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I N T R O D U ÇÃ O

Ao estudar, a partir do bairro, os processos que fizeram a cidade de São Paulo


torn ar-se uma metró pole, pen so ter me aprox imado de duas questõ es. A primeira é
de ordem ló g ica: era preciso discern ir o estatuto teó rico que se pode emprestar ao
bairro n a compreen são do processo de urban izaç ão. A seg un da, embora n ão sen do
absolutamen te in depen den te da primeira, parecia ter uma base h istó rica. T ratav a-se
de ex amin ar a sig n ificaç ão e o sen tido que as con tin uidades h istó ricas, tais como
aquelas que v ê m da relig ião e da propriedade territorial, teriam emprestado à
urban izaç ão. I sto porque, v isto a partir do bairro, este processo demon strav a ser
eiv ado por essas con tin uidades e elas tiv eram forç a e sen tido estruturadores, tan to
que ch eg aram a ser suporte da v ida de bairro. A in stitucion alidade prov en ien te da
I g rej a C ató lica tev e uma forte presen ç a n a urban izaç ão em São Paulo, fato que é por
demais ev iden te, h aj a v ista a coin cidê n cia bairro-paró quia e, sobretudo, a relig iosidade
do pov o. J á n o mov imen to de formaç ão do mercado fun diá rio, a partir das relaç õ es
in tern as da v ida de bairro, pode-se observ ar o embate en tre a racion alidade que
prog ressiv amen te prescrev e e n ormatiza a propriedade, em con fron to com formas de
uso do espaç o que, sucessiv amen te, v ão se rev elan do obsoletas. A adequaç ão das
formas de uso da terra em con son â n cia com as ex ig ê n cias da modern izaç ão capitalista
da cidade, ou em fun ç ão de quaisquer outras deman das sociais, ex ibe a v iolê n cia que,
em g eral, o in stituto da propriedade n ormalmen te escon de. O bairro foi um n ív el, um
â mbito de min h as in dag aç õ es. Estudan do-o por den tro ch eg uei à s con fig uraç õ es da
v ida de bairro e en con trei n o morador o suj eito dessa espacialidade1.

C on siderado desse modo, o bairro apareceu, n o processo de urban izaç ão, como
uma en tidade sociocultural muito div ersa, portadora de uma iden tidade que lh e ia
sen do atribuída de fora, ou sej a, do con tex to da cidade. O que só era possív el porque

1
Aqui, valho-m e d a c at e g or ia d e m or ad or , t al c om o o f iz e r a J os é d e S ouz a M ar t in s e m s e u e s t ud o s ob r e o
c ot id ian o d o s ub ú r b io. C f . M AR T I N S , J os é d e S ouz a. Subúrbio. V id a c ot id ian a e his t ó r ia n o s ub ú r b io d a c id ad e d e
S ã o P aulo: S ã o C ae t an o, d o f im d o I m p é r io ao f im d a R e p ú b lic a V e lha. S ã o P aulo: H uc it e c / P r e f e it ur a M un ic ip al
d e S ã o C ae t an o d o S ul, 1 9 9 2 .
o bairro se in teg rav a aos processos g erais da cidade que, paulatin amen te, moldav am
um modo de v ida urban o.

M as este estudo está cen trado n o bairro, sobretudo porque este n ív el da prá tica
social, compreen dido por relaç õ es de v izin h an ç a, de compadrio e de paren tela,
in screv en do-se n o espaç o, permitiu que se formasse um â mbito de relaç õ es de
qualidade a partir de ex periê n cias v iv idas. É por isso que seria este o melh or n ív el, um
lug ar priv ileg iado para refletir sobre o embate en tre as prá ticas que con fron tam
qualidade e quan tidade; estas, que con cebem, racion alizam, medem e ex ercitam a
mé trica do espaç o e do tempo, fruto de con cepç õ es racion alizadoras, as quais iriam
subv erter irremediav elmen te os modos de v ida n a modern idade. É n o n ív el do v iv ido
que se articulam os fios que lig am e que separam os in div íduos; n este estudo, os
moradores. É aí que se faz e refaz a trama tecida n o mov imen to da relig iosidade e da
propriedade, cada v ez mais circun scritas pelo mov imen to do trabalh o, do din h eiro e
do capital como forma g eral da riqueza.

As premissas deste estudo correspon dem a uma certa forma de compreen der a
urban izaç ão n a sua g en eralidade e també m como um processo específico, que
implicou metamorfoses da cidade e dos seus bairros.

A partir do ú ltimo quartel do sé culo passado, n ov as e modern as relaç õ es lig adas


à política imig ran tista, à s aplicaç õ es produtiv as de capital mercan til ex ceden te da
cafeicultura, e aos mecan ismos de in serç ão social da propriedade territorial,
resultariam n a estruturaç ão prog ressiv a de n ov os mercados, tais como: o mercado
fun diá rio, o mercado do trabalh o e o mercado de produtos. T rabalh os importan tes
mostraram como a aboliç ão da escrav atura estav a articulada com a lei de terras ( 1 8 5 0 )
e com a imig raç ão estran g eira; que estes mercados formav am-se em estreita
depen dê n cia. E mostraram també m como estes dispositiv os foram as premissas para a
in dustrializaç ão de São Paulo2.

2
S é r g io B uar que d e H olan d a, p or e x e m p lo, d e m on s t r ou que e s s e p r oc e s s o d e c om p le x if ic aç ã o s oc ial
c om p or t ava um a or d e m im p e s s oal e ab s t r at a que s e f or m ava d e s af ian d o a or d e m d om é s t ic a e f am iliar d a
c om un id ad e . A as c e n ç ã o d a c id ad e s ig n if ic a, d e f at o, um t r iun f o d o g e r al s ob r e o p ar t ic ular , d o in t e le c t ual s ob r e
o m at e r ial, d o ab s t r at o s ob r e o c or p ó r e o. A ab s t r aç ã o e s t á f un d ad a e m p r á t ic as que s e d e s d ob r am que r s e j am
e m r e p r e s e n t aç õ e s d o m un d o r ur al ou d o m un d o ur b an o. A m od e r n id ad e , d e s e n c ad e an d o e s t a s e p ar aç ã o
his t ó r ic o-e s t r ut ur al a p ar t ir d as c id ad e s , p r oj e t a o ur b an o c om o s í n t e s e d e t od o p r oc e s s o, c om o um c on j un t o d e
p r á t ic as t e n d e n t e s a c on f ig ur ar um m od o d e vid a. O ur b an o s e e r g ue c om o m od o d e vid a, m an if e s t am e n t e ,
s ob r e a op os iç ã o c id ad e -c am p o, que t e n d e a an ular . M as f az r e vive r as r e p r e s e n t aç õ e s d e c id ad e s que f ic ar am
g uar d ad as n a H is t ó r ia, as quais , ao s e r e m r e in t r od uz id as n as p r á t ic as d e vive r n a c id ad e , f az e m c on f un d ir , t an t o
n o p lan o t e ó r ic o, c om o n o p lan o d e um a p r á t ic a p os s í ve l, a c om p r e e n s ã o d e s s e p r oc e s s o. Ao m e s m o t e m p o d á
lug ar a m uit as id e olog ias s ob r e a ur b an iz aç ã o que ab r ig am s is t e m at iz aç õ e s e f in alid ad e s d e d ive r s as or d e n s ; t an t o
n o s e n t id o d e um a t r an s f or m aç ã o r ad ic al d a s oc ie d ad e , c om o n o s e n t id o d a ad m in is t r aç ã o, d a g e s t ã o d as

2
Assim, à medida que estes n ov os mercados foram se forman do, con stituía-se
també m um plan o j urídico para serv ir aos en quadramen tos in stitucion ais das n ov as
prá ticas que n asciam e, com as quais, o pró prio Estado g an h av a con sistê n cia e
presen ç a. M as as n ov as prá ticas que “brotav am”, aliá s em con stan te ampliaç ão e
div ersificaç ão, porque a div isão man ufatureira do trabalh o e a con seqüen te difusão do
din h eiro j amais cessa, n ão n ecessariamen te remov iam o preex isten te. E, quan do o
remov iam, n ão o faziam da mesma forma n em ao mesmo tempo, poden do, até ,
en redarem-se n o preex isten te. Situam-se aqui as con tin uidades relativ as à cidade, à
propriedade territorial e à relig ião; atrav é s delas discuto aspectos pró prios da v ida de
bairro e da urban izaç ão como um processo social.

T ratou-se, an tes de mais n ada, de uma con j un ç ão política e social capaz de impor
uma in flex ão importan te n a h istó ria urban a de São Paulo, capaz de con stituir um n ív el
social g eral que articulav a o campo à cidade. Por isso que, n o fin al do sé culo
dezen ov e, mais claramen te, a cidade de São Paulo começ a a aparecer como local de
v ida propriamen te urban a, como lug ar a partir do qual se defin iria uma un idade de
v ida social destin ada a in teg rar o rural e o urban o. E o urban o era j á o social se
con stituin do, on de cada in div íduo, cada trabalh o formav a-se como parte de um todo
que se perde n o h orizon te propriamen te in div idual, porque se torn av a abstrato.

Essas eram as bases para que o urban o pudesse se con fig urar como modo de
v ida. F en ô men o que obj etiv amen te passou a se con cretizar com a g en eralizaç ão das
trocas e a difusão do din h eiro e que estav a destin ado a se ampliar quan do a
in dustrializaç ão, que se aprox ima da cidade para n ela se an in h ar, atrav essa
v isceralmen te a sociedade, subv erten do-a em seu fav or.

D e fato, as estruturas té cn icas e de in ov aç õ es que a modern izaç ão pela in dú stria


desen cadeou, atin g iram a sociedade in teira e n ov as e sucessiv as formas de empreg o
do tempo iriam acon tecen do até alcan ç ar a casa, a família, a crian ç a, a mulh er e os
idosos. A reproduç ão da sociedade en v olv eu o tempo e o lug ar de reproduç ão da
v ida, e seg uiria produzin do o cotidian o como uma sequê n cia ló g ica e n ecessá ria desse
mesmo processo3.

c on t r ad iç õ e s in t e r n as d o p r oc e s s o. R ic har d M or s e d is c ut iu c om m uit a p r op r ie d ad e e s t as id é ias e m F orm a ç ã o


H is t ó ric a d e Sã o P a ulo ( d e c om un id ad e à m e t r ó p ole ) . S ã o P aulo: D if us ã o E ur op é ia d o L ivr o, 1 9 7 0 .
3
O s e quip am e n t os d om é s t ic os , in t e g r an d o o r ol d as n e c e s s id ad e s s e m p r e r e n ovad as , vir iam c olon iz ar a vid a
c ot id ian a. P ois o hom e m m é d io d e s t a é p oc a, e n r e d an d o-s e n as t e c n olog ias d o c ot id ian o, é f as c in ad o p e los
e quip am e n t os que p os s a t e r , e e s t e f as c í n io s e d if un d e p ar a o alt o e p ar a o b aix o d o c or p o s oc ial.

3
N o plan o da ex istê n cia social dos suj eitos assim urban izados, a frag men taç ão do
tempo e do espaç o ten de a correspon der a perten cimen tos difusos, prov ocan do uma
separaç ão en tre o v iv er e o v iv ido. É assim que o v iv ido se destaca da ex periê n cia
imediata, do â mbito ex isten cial, e v ai sen do perpassado in teiramen te por retó rica e
por estetismo. En quan to o v iv er, como o lug ar da ex periê n cia ex isten cial, en colh e, se
torn a con tin g en te sob coaç õ es e limites que o determin am. D isto resulta que o
h omem urban o ten de a ser teó rico porque ex perimen ta parcamen te o mun do,
percebe-o atrav é s de abstraç õ es e por isso con fun de a disposiç ão de meios e fin s. H á
que ser ultrapassada a dura prov a da abstraç ão n o en con tro de uma h uman idade
h uman amen te con stituída, pen sou H eg el4.

A cidade, que foi destin ada a abrig ar tais processos, foi compreen dida por uma
certa literatura como “cidade h istó rica”5.

N o B rasil colô n ia, toda cidade era uma formaç ão de tempos len tos, plen a de
estabilidades que se mov iam sob o primado de uma con cepç ão clerical do mun do.
M as foi a colon izaç ão portug uesa que prov eu de con teú dos a h istó ria urban a
preg ressa atrav é s de uma prá tica político-econ ô mica que permitiu à relig ião pen etrar
profun damen te n a v ida social, estabelecer con ex õ es profun das, a tal pon to que
formou uma base relig iosa capaz de traduzir-se como modo de ser, ch eg an do
portan to a in teg rar a esfera que den omin amos cultura. Em decorrê n cia, o catolicismo
forn eceu o “pan o de fun do”, o cen á rio ritual para os momen tos fun damen tais da v ida,
de um modo g en eralizado.

Até a in stauraç ão da R epú blica, o pró prio Estado era ag en te de relig ião.
C on tudo, ao cabo de quase quatro sé culos de colon izaç ão, a relig iosidade dos g rupos

4
Ao lon g o d e s ua e x t e n s a ob r a, H e n r i L e f e b vr e ob s e r vou e m d ive r s as oc as iõ e s , e s p e c ialm e n t e n o m om e n t o d e
s e u p e r c ur s o in t e le c t ual m ais d ir e t am e n t e volt ad o à s p e s quis as s ob r e a p r od uç ã o d o e s p aç o e a r e p r od uç ã o
s oc ial, que os s e n t id os t or n am -s e t e ó r ic os , c om o j á havia s id o ap on t ad o p or M ar x n os s e us t e x t os d e 1 8 44,
in t it ulad os M an us c r it os d e P ar is . C f ., p or e x e m p lo, L E F E B V R E , H e n r i. E s p a c e e t p olit iq ue . P ar is : É d it ion s
An t hr op os , 1 9 7 2 , p .1 6 7 .
5
E m C am illo S it t e , ( L ’ a rt d e bâ t ir le s v ille s : l’ ur b an is m e s e lon s e s f on d e m e n t s ar t is t ique s . P ar is : É d it ion s S e uil,
[ 1 8 8 9 ] 1 9 9 6 ) : A c id ad e his t ó r ic a c on s um a-s e n a f r ag m e n t aç ã o d os m e r c ad os . E r a e s t a c om p r e e n s ã o d a
ur b an iz aç ã o que d om in ava o his t or ic is m o ale m ã o n o in í c io d o s é c ulo vin t e , e is t o le vou à id e n t if ic aç ã o d a c id ad e
a um a m e t r ó p ole , quan d o o que d om in ava o p r oc e s s o s oc ial ain d a e r a a ac om od aç ã o d e p op ulaç ã o r ur al n as
c id ad e s . A p e r s p e c t iva ad ot ad a n e s t e t r ab alho é out r a, d iz r e s p e it o à c on s t it uiç ã o f r ag m e n t ad a d a m e t r ó p ole , a
p ar t ir d a c id ad e . E m H e n r i L e f e b vr e , n ’ A re v oluç ã o urba n a , p or e x e m p lo, c om p r e e n d e -s e que a c id ad e p r é -
in d us t r ial, t am b é m d e s ig n ad a c id ad e his t ó r ic a, f oi e n r e d ad a n o m ovim e n t o d a m od e r n id ad e , m as c ar r e g ou
t e m p os le n t os d as f or m as d e us o d o t e m p o e d o e s p aç o. ( C f . L E F E B V R E , H e n r i. A re v oluç ã o urba n a . B e lo
H or iz on t e : E d it or a U F M G , [ 1 9 7 0 ] 1 9 9 9 ) .

4
em presen ç a ( n eg ros, ín dios, imig ran tes) v iria demon strar formas sin g ulares de
ex pressão n o in terior de uma cultura tida por rú stica6.

Em sua pressuposiç ão mais g eral, a idé ia que susten ta este estudo é a de que a
sociedade in dustrial é mov ida por uma ló g ica in tern a que rompe e redefin e os n ex os
da v ida imediata. N ela, os con tatos diretos, as relaç õ es imediatas, um tan to
espon tâ n eas, capazes de criar e de en raizar certos localismos, n ão sobrev iv em, sej a
qual for a estrutura econ ô mica ou política. A in dustrializaç ão como processo implica
g ran de mobilidade de fatores, den tre os quais o prin cipal é a mobilidade do trabalh o,
porque prov oca tan to deslocamen tos espaciais, como també m impõ e reestruturaç õ es
v erticais n o sen tido de mudan ç as que div idem e requalificam sem cessar o pró prio
trabalh o, que j á n ão correspon de ao â mbito das ativ idades cuj os sen tido e fin alidade
eram defin idos ao n ív el da v ida imediata.

É essa cidade, a cidade h istó rica como con ceito, que era a cidade mon acal como
realidade h istó rica, porque circun scrita n um espaç o formado por mosteiros7, que, a
partir do ú ltimo quartel do sé culo dezen ov e, sofrera os impactos e metamorfoses que
a acumulaç ão mercan til, torn ada reproduç ão capitalista da sociedade, acabara por
impor. C on tudo, n en h um destes processos alcan ç a a sociedade de uma só v ez e em
termos absolutos, porque todo e qualquer processo é espacialmen te desig ual e
també m porque é circun stan cial n o tempo.

É possív el compreen der, em termos ló g icos, o desen cadear da urban izaç ão, mas
as possibilidades con cretas tê m que ser descobertas estudan do-se as decisõ es, as
aç õ es, os con fron tos. É preciso descobrir n a in ten cion alidade das aç õ es dos
moradores a afirmaç ão e a n eg aç ão da racion alidade n ão in ten cion al, mas ló g ica e
sistê mica que a modern izaç ão, pela in dú stria, foi fazen do n ascer n o plan o da
econ omia, da política e da sociedade.

F oi, portan to, n o plan o da v ida imediata que estudei o con fron to de estraté g ias e
in dag uei sobre o sen tido que os moradores atribuíam à s in j un ç õ es de uma ordem
distan te, ou sej a, à s in stitucion alidades que aí se realizav am.

A formaç ão social forn eceu os marcos estruturais que, serv in do-me de


parâ metro, mostrou o bairro e a v ida de bairro orig in almen te en crav ados n as

6
C f . B AS T I D E , R og e r . L e p roc h a in e t le loin t a in . P ar is : É d it ion s C uj a, s / d .
7
A S ã o P aulo c olon ial e s t e ve c ir c un s c r it a ao e s p aç o d os m os t e ir os ; d e S ã o B e n t o, d os C ar m e lit as , d e S ã o
F r an c is c o e d o P á t io d o C olé g io. C f . B R U N O , E r n an i d a S ilva. H is t ó ria e t ra d iç õ e s d a c id a d e d e Sã o P a ulo. 4ª e d .
v.1 , Ar r aial d e S e r t an is t as ( 1 5 5 4-1 8 2 8 ) . S ã o P aulo: H uc it e c / P r e f e it ur a d o M un ic í p io d e S ã o P aulo, [ 1 9 5 4] , 1 9 9 1 .

5
estruturas e prá ticas da I g rej a C ató lica, pois o bairro e a paró quia ten diam a coin cidir.
V in h a ex clusiv amen te das prá ticas paroquiais o ethos da v ida de bairro, e foi assim até
que modern as prá ticas, como o futebol, tiv essem lug ar real n a v ida dos bairros. C omo
uma estrutura espacial primordial, o bairro iria g an h an do forma à medida que os
circuitos de modern izaç ão pela in dú stria acon teciam.

N esse sen tido, para en con trar a afirmaç ão positiv a do bairro, en con trá -lo como
un idade de v ida imediata e descobri-lo n um mov imen to que permitisse v er o
florescimen to da v ida de bairro, pelas ex periê n cias e realizaç õ es con tidas, torn ou-se
n ecessá rio iden tificar, a cada passo, os elemen tos, relaç õ es, obj etos e produtos que
afirmassem o bairro. C on tudo, desde log o pude observ ar també m que o bairro e o
n ão-bairro seg uiam j un tos. Q ue a afirmaç ão positiv a do bairro ia acumulan do
elemen tos de sua superaç ão, que, por sua v ez, combin av am de man eira particular as
formas como a cidade e o bairro, em simbiose, mutuamen te tran sformav am-se.
Q uan do percebi o bairro e o n ão-bairro n o mesmo mov imen to, compreen di que o
n ov o, o que faz o bairro e o desfaz con comitan temen te, tem um pon to a partir do
qual o “fazer o bairro” j á n ão faz florescer a v ida de bairro, mesmo quan do essas
relaç õ es ex istem. D esta, que se torn ou a questão cen tral deste estudo, emerg iu a
pressuposiç ão de que as con tin uidades h istó ricas in teg ram produtiv amen te o processo
social até o momen to em que este mesmo processo en tra n uma fase de reproduç ão.
V alh o-me de uma demorada pesquisa para, an aliticamen te, apresen tar e discutir estas
proposiç õ es.

Somen te compreen den do a urban izaç ão como um mov imen to con tín uo, que
n estes ú ltimos dois sé culos v em redefin in do o papel e o sen tido que tev e e tem a
cidade n a H istó ria, poder-se-á in dag ar sobre o bairro, porque a cidade e o bairro são
fen ô men os pré -modern os, que, ao serem en redados n a urban izaç ão capitalista,
correspon dem a uma certa espacializaç ão do processo social da modern idade. M as
ex atamen te por serem pré -modern os carreg am atributos de uma h istó ria preg ressa.
E, n esse sen tido, por que n ão lembrar que muitos dos mon umen tos e obras das
cidades e dos bairros são pré -modern os? A questão é que o bairro foi acon tecen do ao
n ív el da prá tica social, foi g an h an do obj etiv idade, torn ou-se empiricamen te observ á v el,
man ifestan do os n ív eis de in stitucion alidade deriv ados, por sua v ez, das con tin uidades
h istó ricas, que, n o en tan to, articulav am por den tro a v ida de bairro. C ada bairro,
embora n ão sej a territó rio demarcá v el, tem um perfil que deriv a dos con teú dos que
lh e são específicos. D elin eada a questão do bairro n o mov imen to que urban iza a
sociedade in teira, supera-se o camin h o das mon og rafias de bairro.

6
M as, afin al, por que v er a g ê n ese do processo de urban izaç ão estudan do
v erticalmen te o bairro, corren do até o risco de n ão cumprir o retorn o, ou sej a, de
con seg uir v oltar ao pon to de partida ilumin an do alg umas das in fin dá v eis questõ es que
compõ em o con j un to dos impasses da urban izaç ão n o presen te? Por que?

O processo de in v estig aç ão, de con h ecimen to liv re e desin teressado, n ão tem


todas as respostas e n ão as tem sequer para questõ es formuladas de modo
con scien te. M as, sobre este aspecto, a questão é de mé todo. Por isso, ir à g ê n ese do
bairro, procurar as relaç õ es fun dan tes de uma prá tica que j á era a da v ida de bairro,
mesmo quan do ain da podia n ão ter aparecido como tal, e en con trar o lug ar de tais
relaç õ es n o pen samen to teó rico para v oltar à s relaç õ es reais, aos fun damen tos e
seg uir o seu mov imen to, foi a orien taç ão de mé todo aqui adotada. A este propó sito,
são preciosas as observ aç õ es de J osé de Souza M artin s:

“As implicaç õ es metodoló g icas do reen con tro em M arx da n oç ão de


formaç ão econ ô mico-social estão ex postas em dois artig os que Lefebv re
publicou n os C a hi er s I n ter n a ti on a u x d e S oc i ol og i e, em l9 4 9 e l9 5 3 . Sartre, com
quem Lefebv re polemizou duran te boa parte de sua v ida, recon h eceu com
precisão a importâ n cia de sua in terpretaç ão sobre o mé todo: ‘ ...é um marx ista,
H en ri Lefebv re, quem deu um mé todo que n o meu modo de v er é simples e
irrepreen sív el para in teg rar a sociolog ia e a h istó ria n a perspectiv a dialé tica
materialista ( ...) . N ada temos que acrescen tar a este tex to tão claro e tão
rico...”8.

N ossa ex pectativ a é a de poder v islumbrar o v ir a ser de uma urban izaç ão


dilaceran te, seg reg adora, v iolen ta, autoritá ria, discricion á ria e, alé m do mais, ren tista9.

N a v erdade, a questão é de compreen der e demon strar como atributos da


n atureza, da cultura e da h istó ria seg uem en tran do sem cessar n a dialé tica do mun do.
O bairro mostrou-se como um lug ar priv ileg iado para a an á lise dessa metamorfose.
Ali, a n atureza material tran sformav a-se em forç a produtiv a social e dav a-se o

8
M AR T I N S , J os é d e S ouz a. As t e m p or alid ad e s d a H is t ó r ia n a d ialé t ic a d e L e f e b vr e . I n : M AR T I N S , J os é d e S ouz a
( or g .) . H e n ri L e f e bv re e o re t orn o à d ia lé t ic a . S ã o P aulo: H uc it e c , 1 9 9 6 , p .2 0 -1 .
O s ar t ig os r e f e r id os p or M ar t in s ( P r ob lè m e s d e s oc iolog ie r ur ale . C a h ie rs I n t e rn a t ion a ux d e Soc iolog ie . P ar is , v.6 ,
p .7 8 -1 0 0 , 1 9 49 e P e r s p e c t ive s d e s oc iolog ie r ur ale . C a h ie rs I n t e rn a t ion a ux d e Soc iolog ie . P ar is , v.1 4, p .1 2 2 -40 ,
1 9 5 3 ) f or am r e p ub lic ad os e m L E F E B V R E , H e n r i. D e lo rura l a lo urba n o ( an t olog í a p r e p ar ad a p or M ar io G avir ia) .
4ª e d . B ar c e lon a: E d ic ion e s P e n í n s ula, [ 1 9 7 0 ] 1 9 7 8 ., c ap . 1 e 3 , r e s p e c t ivam e n t e .
9
P os t o que o f un d am e n t al s e r á r e g is t r ar que a r e n d a f un d iá r ia n ã o d e ve s e r c on s id e r ad a s e p ar ad am e n t e , c om o
alg o af e it o ap e n as a p r op r ie t á r ios d e t e r r a e / ou a e m p r e e n d e d or e s ur b an os , e m s um a, a d e t e r m in ad as c las s e s
s oc iais . N ã o s e t r at a d e um a c on t r ad iç ã o p r ivad a, que c on c e r n e t ã o-s om e n t e ao m ovim e n t o d a r e p r od uç ã o
am p liad a d o c ap it al. A ur b an iz aç ã o é r e n t is t a p or que a r e n d a in c r us t ou-s e t ã o f un d am e n t e n a r e p r od uç ã o s oc ial,
e n volve n d o, c om d if e r e n t e s s e n t id os , c ap it ais , g r up os , in d iví d uos ... que c on s t it ui um f r e io p od e r os í s s im o à
t r an s f or m aç ã o s oc ial. A e s s e r e s p e it o, c f . M AR T I N S , S é r g io. O ur b an is m o, e s s e ( d e s ) c on he c id o s ab e r p olí t ic o.
R e v is t a B ra s ile ira d e E s t ud os U rba n os e R e g ion a is , R e c if e , n .3 , p .3 9 -5 9 , n ov. 2 0 0 0 .

7
en con tro de diferen tes matrizes socioculturais. Em suma, a cidade, com seus bairros,
os bairros com seus moradores, diferen temen te articulados ao mun do do trabalh o, da
família, da ig rej a e do futebol estiv eram també m desde sempre mov idos por certas
ló g icas, totalizaç õ es parciais, que v isav am a produtiv idade crescen te do trabalh o e a
racion alidade té cn ica do espaç o. O sen tido da h istó ria n a modern idade10 tem sido o de
max imizar o uso do espaç o e do tempo, de modo que os prin cípios quan titativ os
domin ariam os modos de ser. U ma tal direç ão, um tal sen tido do processo social,
an iquilaria a v ida de bairro, esta que foi, como j á assin alado, n a h istó ria urban a,
domín io do qualitativ o. A urban izaç ão, g en eralizan do-se como modo de v ida, é
ex pressão quan titativ a de uma racion alidade té cn ica que seg ue av an ç an do sobre
momen tos e circun stâ n cias da h istó ria urban a preg ressa e apresen ta uma fig uraç ão
disforme porque tem aparê n cia de caos. M as o prog resso té cn ico, traduzin do-se
como forç a produtiv a social, sob as circun stâ n cias do mov imen to da reproduç ão
capitalista da riqueza, é que ex plica a fig uraç ão da forma urban a.

N o urban o sucedem-se, quase in defin idamen te, espaç os super,


h iperfun cion alizados, n uma seqüê n cia de h omog en eidades g eralmen te sistê micas, que
formam as pesadas estruturas urban as, as quais, ao se sobreporem à s formas
preg ressas de uso do espaç o, como aquelas da cidade com seus bairros, frag men tam-
n as. Sen do que os frag men tos dispersos dos v elh os bairros, perman ecen do como
residuais, n ão ex pressam h omog en eidade alg uma, n ão são fun cion ais e, ao con trá rio,
quase sempre fun cion am como en trav es à mobilidade g eral ex ig ida pela urban izaç ão.
São espaç os residuais que g uardam perman ê n cias h istó ricas com as quais se pode
in dag ar sobre as g en ealog ias, sobre as coex istê n cias, sobre as con tin uidades e
descon tin uidades, sobre as temporalidades e sobre o dev ir, a partir da premissa da “lei

10
M od e r n id ad e é um a n oç ã o us ad a p ar a e x p r e s s ar at ualiz aç õ e s , a qualque r p r e t e x t o. S ã o at ualiz aç õ e s r e lat ivas a
e s t r ut ur as m at e r iais lig ad as aos m od os d e c on s um o c ot id ian o, c om o p or e x e m p lo um s hop p in g ; ou lig ad as a
c om p or t am e n t os p s ic oló g ic os . D e t od o m od o, que r s e m p r e in d ic ar a d ir e ç ã o d e alg o n ovo. É e s t e o s e n t id o que
lhe e s t á s e n d o at r ib uí d o n e s t e e s t ud o. E s t a e x p r e s s ã o f oi g an han d o um lug ar n a lin g uag e m c om o s uc e d â n e o d e
m od e r n iz aç ã o, um t e r m o que f oi d e s ap ar e c e n d o d a lin g uag e m e d a lit e r at ur a d e p ois d e c on ve r t id o e m
id e olog ia, n a c on t r af ac e d a t e or ia d o d e s e n volvim e n t o. S ub m e t id a à c r í t ic a, p or que a que s t ã o e r a d e
d e s m is t if ic ar o s ub d e s e n volvim e n t o n os an os s e s s e n t a, as n oç õ e s im p lí c it as n a id é ia d e m od e r n iz aç ã o
s uc um b iam . T r at ava-s e d e c om p r e e n d e r o d e s e n volvim e n t o d o s ub d e s e n volvim e n t o. M od e r n iz ar n ã o
n e c e s s ar iam e n t e d e s e n volvia os p aí s e s p ob r e s .
M od e r n iz aç ã o c om o c on c e it o, hoj e , e x p r e s s a as c ir c un s t â n c ias p e las quais o p r og r e s s o t é c n ic o ar t ic ula c e r t os
n í ve is e m om e n t os d a vid a s oc ial. T r at a-s e d e um p r oc e s s o que r e p õ e s e m c e s s ar a que s t ã o d o ve lho e d o n ovo,
d o d e s e n c on t r o e n t r e as r e laç õ e s s oc iais d e p r od uç ã o e as f or ç as p r od ut ivas . M od e r n id ad e é um a d e s ig n aç ã o
m ais g e n é r ic a, r e f e r e -s e ao p r oc e s s o in t e ir o. U s am -n o c om e s t e s e n t id o E d w ar d S oj a ( c f . S O J A, E d w ar d W .
G e og ra f ia s p ó s -m od e rn a s : a r e af ir m aç ã o d o e s p aç o n a t e or ia s oc ial c r í t ic a. R io d e J an e ir o: J or g e Z ahar E d it or ,
[ 1 9 8 9 ] 1 9 9 3 ) e R ob e r t K ur z ( c f . K U R Z , R ob e r t . O c ola p s o d a m od e rn iz a ç ã o: d a d e r r oc ad a d o s oc ialis m o d e
c as e r n a à c r is e d a e c on om ia m un d ial. R io d e J an e ir o: P az e T e r r a, [ 1 9 9 1 ] 1 9 9 2 ) .

8
da implicaç ão dos espaç os: os espaç os se implicam mutuamen te”11. Apresen tam-se
superpostos, v azios e ch eios, recortados, separados, mas n un ca in depen den tes un s
dos outros. E, alé m do mais, se ex cluem e se in cluem, sem que sej a possív el imputar-
lh es n en h um poder de tran sformaç ão, n o sen tido de restaurar o tempo, como, n este
caso, a v ida de bairro

Q uan do se in dag a sobre qual é o estatuto que se pode atribuir ao bairro n o


processo de urban izaç ão, somos n ecessariamen te lev ados a pen sar n as formas
correlatas de espacializaç ão do processo social: a da cidade e do bairro, posto que,
embora o bairro ten h a tido um â mbito pró prio, ele foi g an h an do realidade em relaç ão
à cidade.

T an to a cidade como o bairro ex pressam os termos con cretos da urban izaç ão e


sempre g uardaram perten cimen tos profun dos. É por isso que cada cidade produz seus
poetas e sua poesia mostra-a como lug ar apropriado. An alog amen te, o bairro produz
també m seus perten cimen tos, os produz a partir de prá ticas simples, comun s e
cotidian as, como se v erá . N esse sen tido, ambos, a cidade e o bairro, como l u g a r es
a p r op r i a d os, realizam-se como h istó ria que con v erg e n a forma da metró pole.

N a metró pole policê n trica do capitalismo, resultado da metamorfose da cidade e


dos bairros, domin am as superposiç õ es e j ustaposiç õ es de espaç os com ten dê n cias à
con formaç ão de territó rios demarcados que resultam das in clusõ es produtiv as n o
processo social. M as, o urban o como processo social e modo de v ida, tan to mostra as
in clusõ es produtiv as, como as “ex clusõ es n ecessá rias” ao processo de reproduç ão da
sociedade. Por isso que n o espaç o da metró pole, em decorrê n cia da frag men taç ão do
espaç o e do tempo, as modalidades de uso do espaç o se sucedem n uma aparê n cia de
caos, j ustapon do territó rios de uso n o urban o; sej am as fav elas, as ocupaç õ es de
propriedade pú blica ou priv ada, ou ain da um cen tro empresarial ou um con domín io
fech ado. Log o, a cidade e o bairro, como prá tica social e como con ceito dotado de
h istoricidade, ten dem a realizar-se. M as, n a sua realizaç ão, in dicam os n ov os
con teú dos da urban izaç ão pela con formaç ão de territó rios: os territó rios do uso. É
por isso que tan to as fav elas como os con domín ios fech ados podem ser
compreen didos como domín ios territoriais auto-admin istrados, como mostra v asta
literatura. T em-se rev elado da maior importâ n cia o estudo das “á reas de con tato”, ou
a “lin h a dura” n as quais se j ustapõ em estes domín ios auto-referen tes do urban o.

11
L E F E B V R E , H e n r i. L a p rod uc t ion d e l’ e s p a c e . 4e é d . P ar is : É d it ion s An t hr op os , [ 1 9 7 4] 2 0 0 0 , p .1 1 0 .

9
N o in ten to de in v estig ar o bairro em profun didade, foi sen do descortin ada a
urban izaç ão como um processo total. Afin al, a tex tura frag men tada da produç ão
espacial con temporâ n ea é uma traduç ão da modern idade capitalista, dos seus con flitos
e con tradiç õ es; o que, em prin cípio, a cidade e o bairro n ão o são, pois são
g en eticamen te pré -modern os. R elativ amen te ao desen v olv imen to desta formaç ão,
tan to a cidade como o bairro estão n a categ oria de elemen tos postos, n ecessá rios, e
em con diç ão de serem mobilizados pela produç ão e reproduç ão de corte capitalista.
Preex isten tes à in dustrializaç ão, são redefin idos sem cessar. Para que n as fá bricas
estiv essem os h omen s, as mulh eres, as crian ç as como forç a de trabalh o, n o â mbito do
bairro estav a a estrutura que suportav a a sua reproduç ão, porque a v ida tin h a a
doen ç a, a festa, a morte, o j og o, o amor... M omen tos e circun stâ n cias que seriam cada
v ez mais determin ados pelo trabalh o abstrato, essa forç a estran h a que era a sín tese da
forç a de cada um.

C laro está que uma tal proposiç ão ex ig e que se con sidere as con cepç õ es
modern as de criaç ão de bairros e de cidades e, desde j á , cabe asseg urar que, sob a
ó tica da literatura que discutiu o bairro como fen ô men o h istó rico e social, alé m da
reflex ão que pude fazer a partir da pró pria pesquisa, n ão se dev eria con fun dir as
estraté g ias imobiliá rias que mov eram e ain da mov em tais produç õ es com a cidade
h istó rica12, e tampouco os bairros j ardin s, con cepç ão fun cion alista do urban ismo
modern o, com o bairro que espon tan eamen te tem sido, n a h istó ria urban a, a traduç ão
de con teú dos sociais da v ida imediata. Era portan to n ecessá rio en con trar os n ex os
que permitissem compreen der como a cidade e o bairro foram sen do en redados n o
mov imen to que arrastav a a sociedade in teira em direç ão à frag men taç ão do espaç o e
do tempo. M as, sem ig n orar que o mesmo processo que criav a o modern o, seg un do
os preceitos do urban ismo fun cion alista, recriav a alh ures formas, espacialidades
impreg n adas de con tin uidades h istó ricas. Em prin cípio, porque, lá n o bairro, o
morador era portador de muitos tempos e com con teú dos div ersos13.

12
E m C am illo S it t e ( ob r a c it ad a) , e n c on t r a-s e a f or m ulaç ã o que c on c e b e a c id ad e his t ó r ic a. T r at a-s e d a c id ad e
que f oi s ub m e t id a à s t r an s f or m aç õ e s im p lic ad as n a m e t am or f os e d o c ap it al m e r c an t il e m c ap it al in d us t r ial. E m
d e c or r ê n c ia, a ac um ulaç ã o c ap it alis t a, n as c id ad e s , p r ovoc a um a in f le x ã o n o p r oc e s s o d e ur b an iz aç ã o p e la
or g an iz aç ã o d os m e r c ad os que p as s a a s e d iar : m e r c ad o d e t e r r as , m e r c ad o d e t r ab alho, d e p r od ut os ... A c id ad e
his t ó r ic a c on s um a-s e n a g e n e r aliz aç ã o d os m e r c ad os , n a c on c e n t r aç ã o g e og r á f ic a d o c ap it al e d o t r ab alho c om o
um c e n t r o d e um a e s t r ut ur a n od al, e m qualque r que s e j a o n í ve l d a hie r ar quia e s p ac ial.
13
“[ ...] n o d om í n io d as c iê n c ias d o hom e m ( s oc ioló g ic as ) é p r e c is o d is t in g uir d ois t ip os d e r e laç õ e s : as r e laç õ e s
im e d iat as e as r e laç õ e s m e d iat as . E s t a d is t in ç ã o d o im e d iat o e d o m e d iat o t r an s b or d a a t e or ia d o c on he c im e n t o
e t e m um s e n t id o g e r al, hum an o. E m um a d ad a é p oc a, os hom e n s , os in d iví d uos e s t ã o lig ad os p or r e laç õ e s que
s ã o im e d iat as e d ir e t as ( c on t r ib uiç õ e s b ioló g ic as , p ar e n t e la e c on s an g ü in id ad e , r e laç õ e s s oc iais p e s s oa-p e s s oa,
am iz ad e , am or ou ao c on t r á r io s ub or d in aç ã o) ou m e d iat as e in d ir e t as ( r e laç õ e s e c on ô m ic as s ob r e o m e r c ad o,
r e laç õ e s p olí t ic as n o E s t ad o, r e laç õ e s id e oló g ic as e t e ó r ic as p or c on c e it os , c at e g or ias , s is t e m as id e oló g ic os e

10
A Cidade Moderna

Parcelado e h ierarquizado pelos usos era essen cialmen te o espaç o das cidades
h istó ricas, as quais se afirmav am atrav é s de uma cen tralidade pressuposta que reun ia,
n o poder cen tralizado, o man do e o coman do. A h istó ria da cidade mostra como se
produziram, da cidade mesma, represen taç õ es muito fav orá v eis, muito sen sív eis.
Sempre h ouv e alg o como um ideal positiv o acerca da cidade, um ideal utó pico n a
compreen são e n as represen taç õ es sociais da cidade. U ma aura de positiv idade que
em prin cípio resultaria de uma sociabilidade essen cial1 4 , situada en tre o real e o
possív el, g erou utopias de cidade. Amaroute, cidade ideal de T omas M orus, dev eria
ter um n ú mero de h abitan tes e de fun ç õ es determin adas. As muralh as, os pó rticos, a
disposiç ão das casas e do castelo dev eriam ser bem con cebidos. Em v erdade, a cidade
ideal teria que ser a resoluç ão de problemas. M as h ouv era també m recusas à cidade
que se ex pressaram de diferen tes man eiras1 5 . C on tudo, n ão parece possív el n eg ar que
a cidade modern a ten h a sido obra e promessa de um mun do melh or, tan to que g erou
um saber pró prio em todos os domín ios do con h ecimen to; pela con j un ç ão das
prá ticas que iam torn an do possív el a v ida urban a em fun ç ão de n ecessidades sempre
acrescidas, redefin ia-se també m o campo do direito. En fim, a cidade modern a
estabelece-se como pó lo da oposiç ão cidade-campo, mas, g radativ amen te, foi sen do
en redada n o mov imen to da reproduç ão social, como momen to e circun stâ n cia desse
mesmo processo.

Para alé m da recusa ou do roman tismo in g ê n uo, este que aliá s tem també m que
ser compreen dido em termos h istó ricos e sociais, situa-se a ló g ica política da

t e or ias ) . A p e s quis a [ ...] d e ve d e s lin d ar a r e d e d e r e laç õ e s at uan t e s um as s ob r e as out r as n a qual e s t á e n g aj ad o o


’ s uj e it o’ ; e é as s im que e la c he g a a s it uá -lo, ao c om p r e e n d ê -lo ob j e t ivam e n t e s e m p e r d e r s ua ‘ s ub j e t ivid ad e ’ , m as
s e m f az e r d e s s a s ub j e t ivid ad e um a e x is t ê n c ia is olad a [ um ‘ im p é r io n um im p é r io’ , d iz ia S p in os a] ” . ( L E F E B V R E ,
H e n r i. M e t h od olog ie d e s s c ie n c e s . P ar is : An t hr op os , 2 0 0 2 , p . 2 5 e 2 6 .) .
14
D ois c lá s s ic os d o e s t ud o d as c id ad e s n a his t ó r ia, F us t e l d e C oulan g e s e L e w is M um f or d , c on s id e r am -n as as
m aior e s c r iaç õ e s d a hum an id ad e . C f . C O U L AN G E S , F ü s t e l d e . A c id a d e a n t ig a . e s t ud o s ô b r e o c ult o, o d ir e it o e
as in s t it uiç õ e s d a G r é c ia e d e R om a. 5 ª e d . L is b oa: L ivr ar ia C lá s s ic a E d it or a, 1 9 41 e M U M F O R D , L e w is . A c id a d e
n a H is t ó ria . 2 v. B e lo H or iz on t e : I t at iaia, [ 1 9 6 1 ] 1 9 6 5 .
15
O m ovim e n t o p olí t ic o-c ult ur al e m f avor d a d e s ur b an iz aç ã o, n a R ú s s ia d os an os vin t e d o s é c ulo p as s ad o, t e ve
e s s e s e n t id o. E x p r e s s ou um a r e c us a ao m od o d e vid a ur b an o. C f . R O D R I G U E S , A. J ac in t o. U rba n is m o e
re v oluç ã o. P or t o: E d iç õ e s Af r on t am e n t o, [ 1 9 7 3 ] 1 9 7 5 .
É p r e c is o c on s id e r ar t am b é m a p r e s e n ç a d e r e p r e s e n t aç õ e s d e r e c us a d a ur b an iz aç ã o p r e vale c e n t e s n a
I n g lat e r r a. N a s e g un d a m e t ad e d o s é c ulo X V I I I , a im ag e m d o “g r an d e t um or ” , d o “m on s t r o” , c om o ob s e r vou
R ay m on d W illiam s , “s e r ia us ad a r e p e t id am e n t e , à m e d id a que L on d r e s c on t in uava a c r e s c e r ” ( W I L L I AM S ,
R ay m on d . O c a m p o e a c id a d e : n a his t ó r ia e n a lit e r at ur a. S ã o P aulo: C om p an hia d as L e t r as , [ 1 9 7 3 ] 1 9 8 9 , p .2 0 5 ) .
E t am b é m ao lon g o d o s é c ulo X I X . C f . B R E S C I AN I , M ar ia S t e la M ar t in s . M e t r ó p ole s : as f ac e s d o m on s t r o
ur b an o ( as c id ad e s n o s é c ulo X I X ) . R e v is t a B ra s ile ira d e H is t ó ria , S ã o P aulo, v.5 , n .8 / 9 , p .3 5 -6 8 ,
s e t .1 9 8 4/ ab r .1 9 8 5 . Ap ud M AR T I N S , S é r g io. O ur b an is m o, e s s e ( d e s ) c on he c id o s ab e r p olí t ic o. O bra c it a d a .

11
sociedade cen trada n a cidade, esta que se realiza n o poder de orden aç ão abstrata e
operacion al que põ e em mov imen to e que faz ex istir uma defasag em en tre a cidade
como preceito e ideá rio civ ilizató rio, e as prá ticas socioespaciais que a con stituem.
C om a g ran de in dú stria, e por ela, foram mobilizados todos os recursos ou meios
preex isten tes do solo, do subsolo, dos h omen s com seus con h ecimen tos, seus saberes
e suas artes, n um mov imen to destin ado a reun ir, acumulan do, aquilo que estav a
disperso para produzir ben s, leis, h omen s, saberes, produtos e coisas, den tre os quais,
o pró prio trabalh o perman eceu sen do essen cial. A cidade pré -modern a, que começ ou
a reun ir as con diç õ es de con v erg ê n cia desse mov imen to, era em prin cípio cen tro de
acumulaç ão mercan til. D ela eman ou um impulso modern izador para a sociedade
in teira que v eiculou muitas das represen taç õ es positiv as da cidade. A acumulaç ão
mercan til permitiu a formaç ão de uma elite, supostamen te ilustrada e local. I sto n os
faz abordar a cidade n o mov imen to que a tran sforma, procuran do ev itar imobilizaç ão
do con h ecimen to em alg uma de suas partes, em suas peculiaridades ou atributos, n a
ten tativ a de compreen dê -la como um fen ô men o total, mov ido pelas con tradiç õ es
desta sociedade. Procura-se o en ten dimen to daquilo que se torn ou essen cial n este
estudo: compreen der a metamorfose da cidade em metró pole, en con tran do o lug ar
do bairro n o processo de urban izaç ão. E desde log o as tran sformaç õ es g eradas com a
modern izaç ão g eral das cidades, apareciam como con diç ão de desen v olv imen to dos
processos in dustriais em curso, estes que se traduziam també m como processos
socioespaciais. A forma espacial e a morfolog ia social das metró poles con temporâ n eas
estav am in scritas n o mov imen to que positiv amen te afirmara a cidade modern a, a qual
se fora erig in do sobre a base da cidade h istó rica, com seus bairros, muitos ain da
rurais. D iz-se positiv amen te, porque a modern izaç ão permitia uma v ida mais div ersa,
com n ov os suj eitos sociais en tran do em cen a. M as, à medida que prog redia a div isão
man ufatureira do trabalh o, sobre a base daquela que fora a cidade h istó rica, as
con tradiç õ es fun damen tais dessa formaç ão econ ô mico-social traduziam-se també m
como con tradiç õ es desta sociedade, j á en tão urban a e in dustrial. A compreen são dos
fun damen tos desig uais desta formaç ão, que permitiram uma leitura aprofun dada sobre
a seg reg aç ão espacial, ex ig e, pelo momen to, que se compreen da a territorializaç ão do
processo social, porque as con tradiç õ es sociais fun damen tais, para alé m do mun do do
trabalh o, en v olv em o urban o como quadro de v ida16. I sto foi possív el porque todas as
relaç õ es modern as, estabelecidas a partir do mun do do trabalh o, ex pressan do
16
E n t r e as e x t r aod in á r ias r e f le x õ e s d e H e n r i L e f e b vr e s ob r e o e s p aç o, a s oc ie d ad e , a c id ad e , a p olí t ic a, o
E s t ad o, e n c on t r a-s e o e s s e n c ial d o e n t e n d im e n t o s ob r e as c on t r ad iç õ e s d a s oc ie d ad e t r an s f or m an d o-s e e m
c on t r ad iç õ e s d o e s p aç o.

12
v ín culos diretos, como por ex emplo os de salá rios, ou in diretos, pela participaç ão n a
distribuiç ão do sobreproduto social, eram també m relaç õ es mediadas pela
in stitucion alidade que prescrev e a in serç ão social da propriedade territorial. N o
en tan to, a cidade h istó rica, lug ar e cen tro de tan tos processos, mostrara-se també m
uma formaç ão de lon g a duraç ão. Lug ar dos tempos len tos, plen a de estabilidades em
todo o Ociden te. A modern izaç ão g eral da sociedade, em cuj o cern e está o capital em
suas diferen tes formas, iria en fren tan do, separan do, arrastan do e remov en do tais
estabilidades e atributos. C rian do propriamen te a cidade modern a, n o sen tido da
formaç ão de uma sociedade muito mais div ersa, que culmin ou n a sociedade urban a,
da qual a metró pole17 con temporâ n ea é a traduç ão mais cabal18.

É n ecessá rio compreen der as metamorfoses da cidade, porque, em prin cípio,


cidade e metró pole n ão se equiv alem, e també m porque o processo do urban o, muito
curiosamen te, g uarda con tin uidades que tê m atrav essado tempos sociais e h istó ricos.
T ais con tin uidades mostram-se essen ciais, desde que se observ e que, atrav é s da
cidade, que era cen tro da v ida civ il e política, foram sen do in staurados os processos
modern izadores, com a formaç ão dos circuitos capitalistas, que rapidamen te
alcan ç ariam os modos de v ida, ali on de a relig iosidade e a relig ião se an in h am, para
circun screv ê -los como processos totais. T rata-se dos I n stitutos J urídicos da
propriedade territorial e da R elig ião, que atrav essaram, quase in có lumes, tempos
sociais e h istó ricos da cidade. A coerê n cia, fictícia e real, do processo de
modern izaç ão, sob o primado da ló g ica capitalista, seg uiu impon do cesuras n o plan o
da v ida imediata, n o v iv ido, in stauran do um processo que tev e orig in almen te a cidade
h istó rica como teatro. Log o, o urban o como modo de v ida tem sua g ê n ese n a cidade

17
Ao t e r m o m e t r ó p ole d á -s e p e lo m e n os d uas ac e p ç õ e s : um a, e s p e c if ic a a r e laç ã o f un d am e n t al d o c olon ialis m o,
“m e t r ó p ole -c olô n ia” ; a out r a, r e f e r e -s e a um a f or m aç ã o e s p ac ialm e n t e c on c e n t r ad a d o p r oc e s s o s oc ial. É
m ar c ad a p or alt o g r au d e hom og e n e id ad e t é c n ic a, é um a e s t r ut ur a p olin uc le ad a. P od e s e r f ac ilm e n t e
in d ivid ualiz ad a n o e s p aç o n ac ion al, c on s t it ui um a r e g iã o ur b an a. O u, c om o que r e m os p lan e j ad or e s , um a r e g iã o
m e t r op olit an a. A G e og r af ia f r an c e s a p r e f e r iu, at é os an os s e t e n t a, o t e r m o ag lom e r aç ã o ur b an a ou m e g aló p ole ,
c om o o ut iliz ou P ie r r e G e or g e ( c f . G E O R G E , P ie r r e . G e og ra f ia urba n a . S ã o P aulo: D I F E L , 1 9 8 3 ) . C om M ic he l
R oc he f or t , ao f in al d os an os s e s s e n t a, n os quad r os d e um a G e og r af ia lig ad a ao p lan e j am e n t o, os c e n t r os n od ais
d e m aior d e n s id ad e e c on ô m ic a e s oc ial c om e ç ar am livr e m e n t e a s e r d e n om in ad os m e t r ó p ole s . E r am as
m e t r ó p ole s d e e quilí b r io d o t e r r it ó r io f r an c ê s . O s g e ó g r af os n or t e -am e r ic an os us am livr e m e n t e o t e r m o
m e t r ó p ole . I d e n t if ic am -n a c om um a e s t r ut ur a alt am e n t e c on c e n t r ad a e p olin uc le ad a, c om o o f az G ot t d ie n e r .
( C f . G O T T D I E N E R , M ar k . A p rod uç ã o s oc ia l d o e s p a ç o urba n o. S ã o P aulo: E D U S P , [ 1 9 8 5 ] 1 9 9 3 ) .
18
A d e n s id ad e his t ó r ic a d os lug ar e s s e t r ad uz p e los ac ú m ulos que n e le s p e r m an e c e m c om o r e s í d uos d e out r os
t e m p os . S ó as s im s e p od e c om p r e e n d e r lug ar e s c om o Alf am a, e m L is b oa, um b air r o d e m uit os s é c ulos . N o
n ovo m un d o, p or e x e m p lo e m S ã o P aulo, a s oc ie d ad e d e m as s as g an hou c on f ig ur aç õ e s m uit o r ap id am e n t e . D ir -
s e -ia, e n t ã o, que o vir a s e r d os b air r os e s t á m uit o m ais d e t e r m in ad o p e los f un d am e n t os d e um a his t ó r ia
c on c r e t a? S im , é is s o m e s m o! P or t ug al t e m s id o há s é c ulos um p aí s d e e m ig r aç ã o. P or out r o lad o, a p r od uç ã o d o
e s p aç o in d uz id a p e los p r oc e s s os d e in d us t r ializ aç ã o, c on d uz à p e r if e r iz aç ã o. O que e quivale ao an iquilam e n t o
d as f or m as his t ó r ic as d e ap r op r iaç ã o s oc ial d o e s p aç o.

13
h istó rica. É o social se con stituin do on de cada in div íduo, cada trabalh o, forman do-se
como parte de um todo, perde-se n o h orizon te propriamen te in div idual porque se
torn a abstrato. N o presen te, o urban o con suma-se n a frag men taç ão do espaç o e do
tempo, mas a cidade e os seus bairros, que in screv eram seus traj etos n a h istó ria
urban a, quan do a pró pria cidade ch eg ou a ser produto e obra de elites urban as e pó lo
da oposiç ão cidade-campo, estão retidos n a metró pole pelos seus frag men tos.

N esse sen tido, pode-se con statar que a simbiose bairro-cidade, como
espacialidade do processo social, comportou uma prá tica espacial con creta, plen a de
relaç õ es imediatas e diretas, que alicerç aram as ex periê n cias da v ida de bairro. N esta
perspectiv a, é possív el discutir o processo de urban izaç ão de um pon to de v ista
qualitativ o, in dag an do sobre como in div íduos e famílias, en quan to moradores de
bairro, v iv em e sobrev iv em os embates que resultam da modern izaç ão g eral,
implicada n o desen v olv imen to do capitalismo, como formaç ão social. T rata-se, como
se v erá , da in stauraç ão de processos que, perpassan do a sociedade in teira, estão
destin ados a rev olv er os modos de v ida. Este procedimen to n os con duziu a pen sar o
pró prio bairro n os seus fun damen tos e també m n a sua g en eralidade. Por isso,
in v ersamen te, à medida em que se ia descortin an do uma idé ia mais g eral de bairro
como um n ív el do processo de urban izaç ão, mais do que como fen ô men o social, a
ex periê n cia que serv ia para a formulaç ão destes pen samen tos era a do bairro
pesquisado.

Estas são as premissas mais g erais deste estudo. D elas deriv am os


procedimen tos adotados, que correspodem a uma man eira de en focar a urban izaç ão
como um processo de g ran de mobilizaç ão do capital e do trabalh o, n o sen tido da
formaç ão social.

Cam p o T eó ric o

D efin e-se uma problemá tica do espaç o n a formaç ão social capitalista que, de tão
ev iden te, faz aceitar, ao que parece sem con trov é rsias, a produç ão social do espaç o
como tema e como problema. Apesar de serem muitas as ev idê n cias, o con h ecimen to
oscila en tre a frag men taç ão e a descriç ão dos obj etos n o espaç o. Ao pen samen to
teó rico coloca-se o problema de compreen der as questõ es da in dustrializaç ão e da
urban izaç ão sob o prisma da espacialidade. Em ú ltima an á lise é preciso articular, n uma
problemá tica, sociedade e espaç o.

14
A reestruturaç ão produtiv a das ú ltimas dé cadas, em fun ç ão das mudan ç as do
reg ime de acumulaç ão fordista, produz os espaç os em ruín as das metró poles. São
á reas portuá rias, zon as in dustriais lin deiras à s ferrov ias com g ran des plan tas in dustriais,
en fim, que acabaram por ficar in seridas n os espaç os metropolitan os, sug erin do as
in terv en ç õ es urban as de cará ter reestruturador. À man ifestaç ão espacial deste
fen ô men o tem sido dado o n ome de desin dustrializaç ão.

U ma perspectiv a pró pria do espaç o deslocaria as abordag en s estruturais e


fen omen oló g icas, sem n ecessariamen te aboli-las, porque sob certas circun stâ n cias,
tê m elas lug ar n a an á lise19.

H á um processo de v alorizaç ão do espaç o em estreita correlaç ão com o


desen v olv imen to das forç as produtiv as, o que muitas pesquisas puseram em ev idê n cia,
mesmo quan do descrev eram e frag men taram o espaç o. A questão ag ora é de pô r em
perspectiv a a urban izaç ão e de recolh er os elemen tos para compreen der, sob a ó tica
do espaç o, as estraté g ias de reproduç ão da sociedade em todos os seus n ív eis.

Sabe-se que H en ri Lefebv re refletiu profun damen te sobre estas questõ es e


dedicou-lh es, in clusiv e, mais de uma obra. M ov ia seu in teresse saber por quais meios
o capitalismo, como uma formaç ão social em processo, con seg uiu aten uar sem
resolv er, duran te um sé culo, as suas con tradiç õ es in tern as. C omo o desen v olv imen to
das forç as produtiv as seg uiu seu curso. Q ual o preç o disso? Por quais meios? F oi en tão
que sem h esitar respon deu: ”isso sabemo-lo n ó s: oc u p a n d o o esp a ç o, p r od u z i n d o u m
esp a ç o”20 . O espaç o in teg ra as relaç õ es sociais e v ai propician do un idade teó rica e
prá tica ao con j un to social.

N esse sen tido, apon tan do a falta de um pen samen to que con ferisse un idade
teó rica ao tratamen to da ex ploraç ão do trabalh o e da espoliaç ão urban a, ex atamen te
porque a reproduç ão dos trabalh adores n ão pode prescin dir de elemen tos materiais e
de con diç õ es socioespaciais, é que adv ertiu Lú cio K ow arick :

“[ ...] n ão obstan te alg un s av an ç os, in clusiv e os realizados em alg un s en saios


deste liv ro, falta ain da muito esforç o teó rico e de pesquisa para obter
19
Ad vog an d o um a c iê n c ia d o e s p aç o, n os d iz H e n r i L e f e b vr e : ” e s t e c on he c im e n t o t e m um alc an c e r e t r os p e c t ivo
e um alc an c e p r os p e c t ivo. S e a hip ó t e s e s e c on f ir m a [ d e um a c iê n c ia d o e s p aç o] , e la r e ag e s ob r e a his t ó r ia, p or
e x e m p lo, e s ob r e o c on he c im e n t o d o t e m p o. E la p e r m it ir á m e lhor c om p r e e n d e r c om o as s oc ie d ad e s
e n g e n d r ar am s e u e s p aç o e s e u t e m p o ( s oc iais ) , is t o é , s e us e s p aç os d e r e p r e s e n t aç ã o e s uas r e p r e s e n t aç õ e s d e
e s p aç o. E la d e ve r á p e r m it ir , ig ualm e n t e , n ã o p r e ve r o f ut ur o, m as t r az e r e le m e n t os e p ô r e m p e r s p e c t iva o
f ut ur o: o p roj e t o d e um out r o e s p aç o e d e um out r o t e m p o n um a s oc ie d ad e out r a, p os s í ve l ou im p os s í ve l...”
L E F E B V R E , H e n r i. L a p rod uc t ion d e l’ e s p a c e , p .1 1 0 , ê n f as e d o aut or .
20
L E F E B V R E , H e n r i. A re -p rod uç ã o d a s re la ç õ e s d e p rod uç ã o. P or t o: P ub lic aç õ e s E s c or p iã o, [ 1 9 7 3 ] l9 7 3 , p .2 1 ,
ê n f as e d o aut or .

15
in strumen tos con ceituais adequados que dê em con ta da problemá tica referen te
à lig aç ão en tre ex ploraç ão do trabalh o e espoliaç ão urban a que, seg un do tudo
in dica, só por razõ es de facilidade an alítica podem ser abordados de man eira
separada. Ou sej a, falta ain da quebrar a separaç ão que usualmen te se faz en tre as
esferas da produç ão e da reproduç ão da forç a de trabalh o”21.

Esta mesma questão ocupara, n os an os seten ta, H en ri Lefebv re, n o momen to de


seu percurso in telectual em que discutia como o meio urban o determin av a os
diferen tes n ív eis da reproduç ão social. C om esse sen tido, con siderou n ecessá rio
aceitar as determin aç õ es do econ ô mico para, em seg uida, deriv ar os demais
momen tos e circun stâ n cias da ex istê n cia social e aceitar que a forma da troca reg e a
prá tica social en quan to prá x is total. Alé m do mais, aceitar que a prá tica social tem uma
ex istê n cia con creta, quer dizer que as prá ticas são compreen didas como ló g icas, tan to
que se pode n elas descobrir con teú dos. Os con teú dos se traduzem por qualidades
que ch eg am a ser qualidades do espaç o, ex atamen te porque o tempo foi sen do
subsumido ao espaç o22. I sso acon tecia à medida que a coerê n cia formal do espaç o,
g uardada n uma h ierarquia de usos adv in das do tempo h istó rico, foi perden do seu
sen tido ao ser recortada por muitas estraté g ias, à medida que as relaç õ es de produç ão
à escala g lobal foram in v adin do o espaç o in teiro, v isan do reproduzirem-se. Os
con h ecimen tos do espaç o abstrato da matemá tica, da g eometria, tan to quan to
aqueles do espaç o có smico, v in dos da ciê n cia da n atureza, como as con cepç õ es dos
g ran des arquitetos e urban istas, puderam “telescopar”, operar e man ipular à distâ n cia,
qualquer pon to da superfície do Plan eta. Assim, atrav é s dessas operaç õ es, faziam
coin cidir uma ló g ica econ ô mica e produtiv a da sociedade, com uma ló g ica de espaç o,
sen do que esta ficav a em con tradiç ão com as formas h istó ricas de uso do espaç o.
C omo, por ex emplo, aquela da cidade com seus bairros. N o bairro, in terv en ç õ es de
tal n atureza foram dilaceran do relaç õ es preté ritas e, como parte dos imperativ os do
processo social, essas in terv en ç õ es ch eg aram ao â mbito da v ida priv ada defin in do o
sen tido da cotidian idade. Pode-se, portan to, con cluir que, n o bairro, log o, n a v ida de
bairro, atuam dois processos: um, que é quase sempre sutil, av an ç a por den tro das

21
K O W AR I C K , L ú c io ( or g .) . A s lut a s s oc ia is e a c id a d e : 2 ª e d . S ã o P aulo: p as s ad o e p r e s e n t e . R io d e J an e ir o: P az e
T e r r a, [ 1 9 8 8 ] 1 9 9 4, p .49 .
22
P ar a m e lhor e s c lar e c e r e s t e p e n s am e n t o e le m b r an d o que K ar l M ar x id e n t if ic ar a a f or m aç ã o s oc ial c ap it alis t a
c om o um a p r é -his t ó r ia d a s oc ie d ad e : “D e s or t e que o p r é -his t ó r ic o, o his t ó r ic o e o p ó s -his t ó r ic o r e c e b e m um
s e n t id o. O p e r í od o p r op r iam e n t e his t ó r ic o d a his t ó r ia d o e s p aç o c oin c id e c om a ac um ulaç ã o d o c ap it al, d e s ua
f as e p r im it iva ao m e r c ad o m un d ial, n o r e in o d a ab s t r aç ã o [ ...] Q uan t o ao e s p aç o [ ...] e le r e ve la as c on t r ad iç õ e s .
A d ialé t ic a s ai d o t e m p o e s e r e aliz a; e la op e r a d e um a m an e ir a im p r e vis t a n o e s p aç o. As c on t r ad iç õ e s d o
e s p aç o, s e m ab olir aque las que p r ovê m d o t e m p o his t ó r ic o, s ae m d a his t ó r ia e n a s im ult an e id ad e m un d ial alç am
a um out r o n í ve l as ve lhas c on t r ad iç õ e s , alg um as s e at e n uan d o, out r as s e ag r avan d o, o c on j un t o c on t r ad it ó r io
t om an d o um s e n t id o n ovo [ ...] ” L E F E B V R E , H e n r i. L a p rod uc t ion d e l’ e s p a c e , p .l5 2 -3 .

16
prá ticas cotidian as, redefin in do n ecessidades e desej os. O outro, superpõ e-se a tais
prá ticas, v em de fora. Por div ersas razõ es, é da maior urg ê n cia tirar con seqüê n cias
desse processo. N ão seria esse o camin h o també m para compreen der como se
aprofun dam as separaç õ es da v ida social? Sobretudo os estiolamen tos das esferas da
v ida pú blica e da v ida priv ada? Pois que h á um ev iden te en colh imen to da esfera
pú blica, dolorosamen te acompan h ado do esfacelamen to do priv ado.

A cidade com seus bairros n ão sobrev iv eria a tais metamorfoses. A cidade e o


bairro implodem. É disto que trata este estudo.

A prá tica social, n o sen tido de ser prá x is total, portan to teoria e prá tica, abrig a
n ecessariamen te con teú dos espaciais, os quais se traduzem como prá ticas de espaç o.
Em con j un to, essas prá ticas fazem aparecer n o espaç o uma sín tese de oposiç õ es e de
superposiç õ es que, n uma h ipercomplex idade, impõ em a adoç ão de procedimen tos
an alíticos, a começ ar por discern ir as determin aç õ es que lh es são in eren tes: primeiro,
uma ordem distan te, v isan do sempre racion alizar o ex isten te, formulada
estrateg icamen te seg un do uma ló g ica empresarial ou estatista, ag e sem poder
n eg lig en ciar o espaç o, sej am quais forem as suas razõ es, porque n o presen te h á uma
h istó ria realizada e realizan do-se n o espaç o. Alé m do mais, proj etos, estraté g ias ou
prog ramas tê m n ecessariamen te que se realizarem n o espaç o. Assim sen do, v ão
in cidir n a ordem de prox imidade, n o v iv ido. É n este n ív el que se fará portan to a
con ex ão do pró x imo com o distan te.

A ordem pró x ima en cerra o con j un to das prá ticas cotidian as, o con j un to da
ex periê n cia ex isten cial. Aqui en tram em con ex ão as represen taç õ es de espaç o, que
são as con cepç õ es estraté g icas de uso, com os espaç os de represen taç ão, que são,
sobretudo, espaç os da v ida e, seg un do a qual, ex istem espaç os sociais que se
in terpõ em, superpõ em e até por v ezes se fun dem. F en ô men o que é obscurecido n as
represen taç õ es abstratas de espaç o. A an á lise tem que mostrar aquilo que a
con cepç ão ten de a n ão con siderar23. R esulta que a produç ão social do espaç o se
compõ e de in fin itas con ex õ es que articulam e ao mesmo tempo desarticulam prá ticas

23
“A s re p re s e n t a ç õ e s d o e s p a ç o, is t o é , o e s p aç o c on c e bid o, aque le d os c ie n t is t as , d os p lan if ic ad or e s , d os
ur b an is t as , d os t e c n oc r at as , ‘ d e c oup e urs ’ e ‘ a g e n c e urs ’ , d e alg un s ar t is t as p r ó x im os d a c ie n t if ic id ad e , id e n t if ic an d o
o vivid o e o p e r c e b id o ao c on c e b id o [ ...] As c on c e p ç õ e s d e e s p aç o t e n d e r iam [ ...] p ar a um s is t e m a d e s ig n os
ve r b ais , p or t an t o, e lab or ad os in t e le c t ualm e n t e .” I b id ., p .48 -9 , ê n f as e s d o aut or .
“O s e s p a ç os d e re p re s e n t a ç ã o, ap r e s e n t an d o [ ...] s im b olis m os c om p le x os , lig ad os ao lad o c lan d e s t in o e
s ub t e r r â n e o d a vid a s oc ial, m as t am b é m à ar t e , que p od e r ia e ve n t ualm e n t e s e d e f in ir n ã o c om o c ó d ig o d o
e s p aç o, m as c om o c ó d ig o d os e s p aç os d e r e p r e s e n t aç ã o” . I b id ., p .43 , ê n f as e s d o aut or .

17
con cretas, em diferen tes n ív eis da prá tica espacial. A an á lise se efetua a partir da lei
das implicaç õ es dos espaç os sociais24.

En con tro con firmaç ão quan to à direç ão e ao sen tido desta pesquisa, n a
compreen são teó rica de M ark G ottdien er e de M an uel C astells.

G ottdien er v aleu-se amplamen te das formulaç õ es de H en ri Lefebv re relativ as


aos processos de produç ão do espaç o. Lamen tou in clusiv e a ausê n cia de um debate
crítico, en tre os g eó g rafos american os, relacion ado a tais proposiç õ es ( como de fato
acon teceria mais tarde em A s G eog r a f i a s P ó s-M od er n a s, de Edw ard Soj a, en tre outros) .
C om toda clareza, ex pressou que

“Essa abordag em den omin ada produç ão social de espaç o elev a o elemen to
espaç o a um foco prin cipal de an á lise j un to com as ativ idades da econ omia e do
Estado. I sso sig n ifica que a forma con temporâ n ea de descon cen traç ão
metropolitan a pode ser abordada prin cipalmen te como um modo h istó rico e
socialmen te específico de d esi g n que pode ser en ten dido se captarmos a relaç ão
en tre tais espaç os e os elemen tos de org an izaç ão social, como a econ omia, a
política e v alores ideoló g icos [ ...] demon strarei que a forma do espaç o n ão só é
um produto social mas é també m seu v alor”25.

Em M an uel C astells a aprox imaç ão temá tica ficou ev iden te a propó sito do
bairro:

”D epois de uma v ig orosa den ú n cia da ideolog ia de bairro como ideolog ia


in teg radora [ ao que acrescen to: reprodutora] Lefebv re põ e o v erdadeiro
problema socioló g ico. O b a i r r o é ou n ã o é u m a u n i d a d e d e v i d a soc i a l ? C oi n c i d em
‘ esp a ç o soc i a l e esp a ç o g eom é tr i c o’ ? H á tr a n sf er ê n c i a d a c om u n i d a d e l oc a l , en q u a n to
n ú c l eo soc i a l , a o n í v el d o b a i r r o?
T rata-se, n o n osso en ten der, da formulaç ão de uma v erdadeira
problemá tica teó rica.”26.

Assim sen do, como a prá tica espacial en feix a uma in fin idade de mov imen tos
cotidian os, é possív el abordar e até distin g uir o espaç o da casa, da rua, da v iela, do
comé rcio, da escola, da ig rej a, do baile, da troç a; en fim, dos j og os, do amor e da dor
referen cian do-os n um momen to à s formas de empreg o do tempo, e, n outro,
in dag an do sobre o sen tido que adquiraram n a h istó ria e n a g eog rafia do lug ar. A
24
“As ab s t r aç õ e s c on c r e t as [ os e s p aç os s oc iais ] e le s e x is t e m ‘ r e alm e n t e ’ [ ...] os lug a re s n ã o s e j us t ap õ e m
s om e n t e n o e s p aç o s oc ial, e m c on t r as t e c om os d o e s p aç o n at ur e z a. E le s s e in t e r p õ e m , e le s s e c om p õ e m , e le s
s e s up e r p õ e m . [ ...] O p r in c í p io d a in t e r p e n e t r aç ã o e d a s up e r p os iç ã o d os e s p aç os s oc iais c om p or t a um a
in d ic aç ã o p r e c ios a: c ad a f r ag m e n t o d e e s p aç o e x t r aí d o p e la an á lis e n ã o e s c on d e um a r e laç ã o s oc ial, m as um a
m ult ip lic id ad e que a an á lis e r e ve la.” I b id ., p .1 0 3 -6 . ê n f as e s d o aut or .
25
G O T T D I E N E R , M ar k . O bra c it a d a , p .2 7 -8 .

18
n arrativ a de um espaç o n o tempo em que foi en g en drado, produzido, é diferen te de
quan do se preten de ex por a h istó ria do espaç o. Pois, en quan to tal, ela pode ser
també m a h istó ria das in stituiç õ es. M as, por ex emplo, a produç ão do espaç o se
ex plica pelas prá ticas espaciais. C omo j á formulado, n o en con tro daquilo que foi
con cebido, prescrito para uso, com o uso mesmo do espaç o. A apropriaç ão é assim
um crité rio para an aliticamen te decompor a prá tica espacial27.

O bairro foi iden tificado n este estudo como um espaç o de represen taç ão que
ch eg ou a ser uma un idade de v ida quase completa. O q u a se era a sua reproduç ão, era
a abertura ló g ica e n ecessá ria estabelecida fora do bairro, a porta de en trada e de
saída para aquele pequen o un iv erso que sempre se refazia.

En quan to un idade de v ida imediata e de relaç õ es, o bairro g an h ou atributos,


perfil, person alidade por tais acú mulos, diria Pierre G eorg e28. M as a partir de um certo
pon to parece que se v ão torn an do raros os acú mulos, os acré scimos n a v ida de bairro.
As g eraç õ es se sucedem sem que se atribuam n ov os papé is n o pró prio bairro e, meio
sem perceber, se esv azia a v ida de bairro. I sto in dica que o cotidian o, mesmo quan do
aparece repetitiv o e ban al, n ão se repete estritamen te. Q ue sempre h á alg o de n ov o
mesmo quan do, n a aparê n cia, prá ticas e procedimen tos parecem n ão mudar. Os
espaç os cotidian os, muito mais tex tura e con tex tos do que tex to, como preten de a
semiolog ia, estão submetidos ao mov imen to g eral da sociedade; n eles se põ em e
repõ em, con tin uamen te, os termos da reproduç ão de cada uma de suas partes:
in div íduos, famílias, lug ares. É assim que o todo se modifica e que se pode abordar a
espacialidade do bairro pelas prá ticas sociais ali man ifestadas como prá ticas de espaç o,
estas que fizeram do bairro um g ran de teatro da v ida: um espaç o de represen taç ão.

O lon g o período de tratamen to estrutural da espacializaç ão do processo social


traz o descon forto de n ão ter tratado das formas de apropriaç ão do lug ar e do espaç o
sob as premissas do empreg o do tempo. I sto quer dizer, sobretudo, da suj eiç ão dos
ciclos da n atureza em relaç ão à emerg ê n cia de um tempo lin ear e h istó rico da
modern idade, n os seus efeitos sobre a v ida imediata. Salv o melh or j uízo, a G eog rafia
das forç as produtiv as respon dia melh or ao con h ecimen to da modern idade, mesmo
quan do adotou posturas críticas. N esse sen tido, é importan te lembrar que M ilton
26
C AS T E L L S , M an ue l. P roble m a s d e in v e s t ig a ç ã o e m s oc iolog ia urba n a . L is b oa: E d it or ial P r e s e n ç a, [ 1 9 7 1 ] 1 9 7 5 ,
p .41 .
27
P ar a um a d is c us s ã o d o m ovim e n t o e n t r e a p r op r ie d ad e e a ap r op r iaç ã o; d a r e laç ã o que e s c lar e c e a
p r op r ie d ad e c om o n ã o-ap r op r iaç ã o, ve r , e n t r e out r os , S E AB R A, O d e t t e C ar valho d e L im a. A in s ur r e iç ã o d o
us o. I n : M AR T I N S , J os é d e S ouz a ( or g .) . H e n ri L e f e bv re e o re t orn o à d ia lé t ic a . S ã o P aulo: H uc it e c , l9 9 6 . p .7 1 -8 6 .
28
C f . G E O R G E , P ie r r e . O bra c it a d a .

19
San tos, j á ao fin al de sua v ida, em A n a tu r ez a d o esp a ç o29, in sistiria n a psicosfera como
sin g ularidade, como meio on de estariam, talv ez, perman ê n cias. C on diç ão que ora
en fren ta, ora sucumbe dian te dos embates da modern idade. I g ualmen te, pode-se
dizer que n ão faltou ao materialismo dialé tico o debate en tre formas materiais e
subj etiv idade. Por sua parte, os situacion istas, ain da ao fin al dos an os sessen ta,
praticav am a deriv a como con diç ão de uma psicog eog rafia. D a mesma forma,
en con tram-se n os C a hi er s d e soc i ol og i e o caloroso debate en tre M erleau Pon ty e H en ri
Lefebv re sobre fen omen olog ia e materialismo, do qual se pode ex trair, pelo men os
em parte, a rica compreen são da articulaç ão dos n ív eis do v iv ido, do percebido e do
con cebido, n a produç ão do espaç o.

Em suma, os espaç os de represen taç ão são distin g üidos pelo uso, mas à medida
que in stituiç õ es e cen tros ativ os criam sucessiv amen te n ormas, prescrev em formas de
uso do espaç o, fazen do-o, n ecessariamen te, a partir de con cepç õ es, de proj etos e
quaisquer que sej am as fin alidades, redefin em as modalidades de uso do espaç o,
crian do n ov as modalidades de empreg o do tempo.

É n um mov imen to que ten de para a fun cion alizaç ão do uso do espaç o, v isan do
uma produtiv idade crescen te dos lug ares, n o sen tido de respon der à ló g ica da
reproduç ão desta sociedade, que as represen taç õ es do espaç o, torn an do-se in ten ç ão-
prá tica, con cepç ão, log o política, produzem espaç o. F azem-n o sempre recortan do os
espaç os de represen taç ão. M as, como estes estão afeitos ao mun do da v ida, afirmam e
n eg am tais determin aç õ es. Eles se recompõ em sempre, mas, in ev itav elmen te,
reproduzin do as separaç õ es e cliv ag en s n a v ida social.

Os espaç os de represen taç ão sug erem uma perspectiv a an tropoló g ica de an á lise.
J á as represen taç õ es do espaç o, uma perspectiv a política e econ ô mica, in strumen tal.
M as o con h ecimen to do espaç o precon izado n a con ex ão de ambos, dos espaç os de
represen taç ão com as represen taç õ es de espaç o, situa-se en tre um e outro daqueles
campos, sug ere um camin h o pró prio: primeiro, n a perspectiv a do tempo h istó rico, da
h istoricidade, porque o espaç o traduz a espacialidade do processo social com as suas
pró prias con tradiç õ es, à medida que elas v ão sen do con fig uradas; seg un do, n a
perspectiv a da ló g ica do espaç o, porque n ão foi in depen den te dela que esta formaç ão
g an h ou ex ten são e profun didade, defin iu-se como mun dial. Sob uma ú n ica
determin aç ão estes espaç os se implicam mutuamen te.

29
C f . S AN T O S , M ilt on . A n a t ure z a d o e s p a ç o. T é c n ic a e t e m p o. R az ã o e e m oç ã o. S ã o P aulo: H uc it e c , 1 9 9 6 .

20
N aç ão, pov o, cultura ou sociedade, desig n a um substrato den so de relaç õ es, de
elaboraç õ es on de se abrig am “m od u s” de compreen der, de perceber os processos de
produç ão do espaç o. Os h istoriadores tê m afirmado que a substâ n cia subj etiv a que
permeia os modos de ser é uma men talidade. C om ê x ito, tê m produzido uma h istó ria
das men talidades. H á certo tempo foi també m den omin ada espírito do tempo, ag ora é
o imag in á rio. O imag in á rio social. Portan to, h á que ser con siderada essa substâ n cia
subj etiv a, essen cialmen te qualitativ a que forma um “pan o de fun do” capaz de lastrear,
de suportar o sen tido que se dá à s prá ticas, de suportar con trov é rsias e disten sõ es. A
percepç ão é um fun damen to de an á lise, porque forj ada sobre uma base material e
prá tica, in teg ra ela també m os processos de produç ão do espaç o. C ompõ e estruturas
sig n ificativ as. H á sempre uma log ística que, v isan do a produç ão do espaç o, in teressa-
se por lh e atribuir sen tido. Os processos de produç ão do espaç o em todo o Ociden te
tiv eram, até o presen te, como “pan o de fun do”, ou, como un iv ersalidade abstrata, o
C ristian ismo, pelo qual se con formou uma con cepç ão de mun do, mas que foi sen do
perpassada pelo ideá rio burg uê s do prog resso material. N as suas con v erg ê n cias,
div erg ê n cias e con tradiç õ es formav a-se um campo, um substrato de v alores sociais,
sob as premissas da h uman izaç ão da h uman idade, pela caridade cristã de um lado, e
do desen v olv imen to cien tífico e tecn oló g ico de outro, mas sob as bases do Estado de
D ireito. N essa con j un ç ão foi g an h an do con torn os o n acion alismo.

Os n acion alismos, fossem de esquerda, de cen tro ou de direita, mais ou men os


cristãos, en fim com todos os seus matizes, operaram como con cepç õ es bastan te
amplas, que estruturav am formas de compreen der o mun do e defin iam formas de
atuaç ão política, sob a qual se estabeleciam as cliv ag en s n a v ida social. En quan to crítica
política, teó rica e prá tica, ofereciam uma perspectiv a de con j un tura, mas a estrutura
fun damen tal dos v alores palmilh av a um camin h o de lon g o alcan ce, in fluin do n os
modos de ser. Puderam, assim, atrav essar tempos h istó ricos e sociais, carreg an do
con tin uidades. As con tin uidades h istó ricas. É por isso que uma razão prá tica, mesmo
mudan do o foco da crítica, in v este h á dois sé culos con tra o ideá rio do prog resso
material v isan do acertar con tas com as promessas de orig em.

Ao n ív el das estruturas subj etiv as, estej am os suj eitos reun idos como pov o,
como g rupo ou até mesmo o in div íduo, aqueles v alores fun dan tes, “o pan o de fun do”,
tê m que ser v alidados por uma prá tica social: os suj eitos en v olv idos, atrav é s de suas
prá ticas, atribuem sig n ificados aos seus pró prios atos, por isso n em sempre reiteram
suas pró prias premissas. Portan to, o sig n ificado e o sen tido que tomam os atos
prá ticos deriv am do con j un to dos v alores da sociedade de uma é poca, mas n ão

21
deriv am completamen te. N esta marg em, n aquilo que n ão é reiterativ o, está o n ov o,
fun cion an do ora como acré scimo, ora como reduç ão.

As con cepç õ es de espaç o, aquelas que v ê m de um saber in stitucion alizado para


se realizar n o espaç o da v ida, tê m que se realizar como prá tica de espaç o. E en quan to
tal compõ em a sín tese do con cebido, do v iv ido e do percebido30 .

A c am inh o de u m c onc eit o

É essen cial asseg urar que a espacializaç ão do processo social, g an h an do realidade


n o â mbito da v ida imediata, se ex pressa a partir de uma prá tica espacial específica.
Pela disposiç ão dos camin h os, das ruas, das casas é possív el in ferir sobre a v ida de
bairro, esta que, em v erdade, é o con teú do do bairro, é aquilo que o defin e.

A v ida de bairro pô de ser apreciada pela sua sin g ularidade. C ada bairro com um
perfil traduzia um con teú do cultural. É com todas as suas especificidades que a v ida de
bairro tem estado n o substrato mais fun do do processo de urban izaç ão. N ela sempre
se situaram os embates en tre aquilo que é n ov o, e quer emerg ir, e aquilo que dev e
perecer. N ela se pô de v erificar lon g as con tin uidades, perman ê n cias sem forç a de
tran sformaç ão que puderam até aparecer como an acron ismos.

V ista sob esse â n g ulo, a h istó ria urban a n ão coin cide ex atamen te com a h istó ria
da in dustrializaç ão, pois que h á uma v ida “citadin a” localizada n o bairro que precedeu
a modern izaç ão g eral da sociedade pela in dú stria. I sto porque os processos
defin idores dessa n ov a ordem social, da sociedade urban a-in dustrial, tin h am que
remov er o ex isten te combin an do criativ amen te o v elh o e o n ov o. A modern izaç ão
g eral acon tecia em muitos plan os, sob o primado do Estado territorial: um, relativ o à
in stauraç ão das n ormas, dos reg istros, dos reg ulamen tos sobre a propriedade
territorial v isan do o uso do espaç o; outro, relativ o ao mun do do trabalh o, como
con seqüê n cia do assalariamen to; outro, relativ o à família, e assim por dian te. D e tal
forma que se org an izav a o mercado de trabalh o com dispositiv os que implicav am

30
O “h a bit us ” g r e g o d o e s p aç o, in s e p ar ave lm e n t e s oc ial e m e n t al, c on s is t ia n um a p r á t ic a e s p ac ial im e d iat a. S e us
m on um e n t os , s e us t r aj e t os t in ham o s e n t id o que a p r á t ic a im e d iat a lhe s at r ib uí a. E n t r e os r om an os e s s a un id ad e
f or a que b r ad a: o “in t uit us ” e o “in t e le c t us ” c om e ç ar am a s e d e s e n volve r s e p ar ad am e n t e s ob o p r in c í p io d a
p r op r ie d ad e p r ivad a. Ab r ig ad as e m p r oc e s s os d e lon g a d ur aç ã o e c om c on t in uid ad e s his t ó r ic as , e s t as e s f e r as
c he g ar am at é n ó s a t í t ulo d e c on c e b id o, vivid o e p e r c e b id o.
S ob r e o m e s m o as s un t o r e f le t i s ob r e a im e d iat ic id ad e d o m un d o e n t r e os in d í g e n as e p ud e t am b é m
c om p r e e n d e r que a p r á t ic a e s p ac ial s in t e t iz ava o m e n t al e o s oc ial e que e n t r e e le s t am b é m n ã o s e havia
e s t ab e le c id o o p r in c í p io d a p r op r ie d ad e . O e s s e n c ial d e s t e s r ac ioc í n ios e n c on t r a-s e n a ob r a d e H e n r i L e f e b vr e ,
c om o j á m e n c ion ad o.

22
n ov as relaç õ es, as quais, alcan ç an do a tex tura mais fin a da sociedade, acabariam por
rev olv er os modos de v ida.

A v ida de bairro floresceu, desdobrou-se com os impulsos positiv os adv in dos da


in dustrializaç ão. A partir de en tão, a urban izaç ão se daria em fun ç ão e em simbiose
com a in dustrializaç ão. E este processo aparecerá por in teiro n a v ida de bairro, até o
pon to em que, ao que parece, in v iabilizará , n o todo e/ ou em parte, a pró pria v ida de
bairro.

Para a v ida de bairro n un ca ex istiram modelos in stitucion ais, mas as relaç õ es


espon tâ n eas que a caracterizaram sempre estiv eram sob o primado de alg uma
in stituiç ão. N o Ociden te, a I g rej a como in stituiç ão secular perpassou e marcou
fortemen te os modos de ser. Por quase dois mil an os a I g rej a C ató lica Apostó lica
R oman a foi ex ercitan do sua presen ç a em dois plan os distin tos mas con v erg en tes: um,
bem alto, que sin tetizou o man do, o coman do e correspon deu à supremacia do poder
eclesiá stico, cen trado n o papado, de on de se org an izou uma h ierarquia de man do,
com v alores capazes de fun dar uma con cepç ão clerical do mun do. O outro plan o foi
aquele da sua territorialidade, n o qual tal orden aç ão abstrata do man do dev eria
realizar-se; era o do bispado, com as paró quias e freg uesias. Em g ran de medida, a v ida
de bairro defin iu-se por suas relaç õ es paroquiais. Em todo o Ociden te a I g rej a
secularmen te atuou circun screv en do o plan o da ex istê n cia cotidian a dos suj eitos e
g an h ou presen ç a coman dan do o tempo da v ida e da morte.

A ú n ica man eira de estudar o bairro, sem cair n o frag men to e n ele perman ecer,
sem ficar preso a um pedaç o da realidade que por ter uma din â mica pró pria seduz, é
con siderar que a cidade é a totalidade de referê n cia para o bairro, e en quan to
totalidade a cidade é a sociedade. Em primeiro lug ar, as determin aç õ es in stitucion ais
que se impõ em à v ida de bairro v ê m da alta h ierarquia da I g rej a, e v ê m do mov imen to
g eral de in stitucion alizaç ão da propriedade n o Ociden te que, n o B rasil, estev e
orig in almen te prescrito n o proj eto de colon izaç ão. A cruz e a espada sin tetizaram o
poder do rei e da I g rej a, estabeleceram as bases para as formas de domín io territorial
e org an izaç ão do Estado e sua supremacia política31. N ão obstan te a supremacia
política do Estado, a I g rej a tev e precedê n cia e en orme presen ç a n a v ida de bairro e

31
C f ., e n t r e out r os , B O S I , Alf r e d o. D ia lé t ic a d a c olon iz a ç ã o. S ã o P aulo: C om p an hia d as L e t r as , 1 9 9 2 ; M AR X ,
M ur illo. N os s o c h ã o: d o s ag r ad o ao p r of an o. S ã o P aulo: E D U S P , 1 9 8 8 ; S M I T H , R ob e r t o. P rop rie d a d e d a t e rra e
t ra n s iç ã o: e s t ud o d a f or m aç ã o d a p r op r ie d ad e p r ivad a d a t e r r a e t r an s iç ã o p ar a o c ap it alis m o n o B r as il. S ã o
P aulo: B r as ilie n s e , 1 9 9 0 .

23
isto fez prev alecer, até o presen te, uma moralidade específica: a moral cristã como
prin cípio e fim.

Estas premissas querem apen as asseg urar que o bairro é do domín io do


qualitativ o. I sto n ão ex clui, ev iden temen te, ex pressõ es quan titativ as dos con teú dos
das relaç õ es que in teg ram a v ida de bairro. Q uerem apen as dizer: à medida que
crescem os con teú dos quan titativ os das relaç õ es, que começ a a prev alecer uma
mé trica do tempo com base n a equiv alê n cia quan titativ a do din h eiro e da propriedade,
a pon to que a reciprocidade orig in al v ai sen do substituída por trocas de equiv alê n cia, o
pró prio bairro se v ai con sumin do32.

Para ser ain da mais claro, é preciso dizer que se uma con cepç ão de tempo,
como a que se in screv e e se sin tetiza n o e pelo din h eiro, permear as relaç õ es,
esv aem-se os con teú dos da v ida de bairro e parece ser este o destin o do bairro. O
bairro e a v ida de bairro defron tam-se com obstá culos: a propriedade territorial, pela
qual se defin e o morador, é um limite h istó rico à reproduç ão do bairro. Afin al, como
os moradores poderiam reproduzir suas famílias n o mesmo lug ar? Alé m disso, a
reproduç ão social cria ex ig ê n cias que articulam e in teg ram, prog ressiv amen te, os
moradores n as prá ticas urban as as mais amplas. Atrav é s delas e por elas o
paroquialismo, o bairrismo, in eren te ao bairro, redefin em-se n a perspectiv a da
sociedade política. N isto está a superaç ão positiv a do bairro. M as, claro que n os
limites da cultura política da formaç ão social n a qual se in serem. É n este percurso do
bairro, por ex emplo, que se dev eria pen sar o trabalh o da mulh er fora de casa, pois, ao
mesmo tempo que a mulh er é con duzida a participar de uma sociedade mais ampla,
mais div ersa e mais complex a, os seus an tig os papé is sociais v ão se desfazen do.
F un damen talmen te, os papé is que desempen h ou n a v ida de bairro. H á portan to uma
con fluê n cia de processos que frag men ta a un idade da v ida de bairro.

Portan to, é n um equilíbrio tê n ue, n um “lig eiro flux o de H istó ria“ que se
combin am, de modo que parece q u a se aciden tal e tran sitó rio, os elemen tos que dão
substâ n cia e con fig uraç ão ao pró prio bairro.

É importan te sublin h ar o quase, porque em termos do tempo do bairro a


H istó ria é , em v erdade, quase um flux o que, con tudo, n ão é tão aciden tal. O tempo
32
A g e n e r aliz aç ã o d as t r oc as e d o d in he ir o ac ab ou p or p r od uz ir um a s oc ializ aç ã o ab s t r at a t an t o d a n at ur e z a
c om o d a vid a, à m e d id a que o d in he ir o, or ig in ar iam e n t e e le m e n t o d e m e d iaç ã o e d e e quivalê n c ia p ar a as t r oc as ,
g an hava aut on om ia e d e f in ia um m ovim e n t o p r ó p r io. E m c on s e qü ê n c ia, a m on e t ar iz aç ã o ab s olut a r e s ult a n a
f r ag m e n t aç ã o d o t e m p o e m f un ç õ e s r e p r od ut ivas . As s im é que s e s up e r p õ e , ao que f or a o t e m p o c om um e
c ot id ian o d a vid a d e b air r o, o t e m p o s oc ial ab s t r at o d o m e r c ad o, d a m e r c ad or ia. É n is t o que e s t á o c on s um o d o
p r ó p r io b air r o.

24
do bairro é de uma estabilidade prov isó ria, é de duas ou trê s g eraç õ es
( ex cepcion almen te quatro, para o melh or dos casos) , porque o bairro é uma
produç ão e, por v ezes, uma con quista n o h orizon te de reproduç ão da família. E a
família só se reproduz in serin do cada um de seus membros n o processo g eral de
reproduç ão da sociedade, n o mun do do trabalh o. Sob esse aspecto, os en raizamen tos
n ão con tam. Aliá s, a reproduç ão social para efetiv ar-se combin a de modo ló g ico e
n ecessá rio aquilo que lh e é essen cial: o trabalh o. N estes termos, trata-se de um
processo mobilizador de h omen s e de coisas. Lev an do à s ú ltimas con seqüê n cias estas
con stataç õ es, o bairro seria quase uma impossibilidade h istó rica, n ão fosse a família o
suporte da v ida de bairro. A família é a men or un idade de iden tificaç ão dos g ran des
g rupos ( cidade-pov o-n aç ão) que ao se territorializar produz o bairro como sua maior
territorialidade. Assim à mobilidade imposta pelo mercado de trabalh o con trapõ e-se a
imobilidade da propriedade territorial, atrav é s da qual estrateg icamen te se reproduz a
família, tan to que será n um j og o que combin a con h ecimen tos, descon h ecimen tos,
estraté g ias domé sticas e familiares, que a den sidade cultural do bairro in siste em
perman ecer, em ser men os prov isó ria, suportan do as separaç õ es impostas pela
mobilidade “n atural” do trabalh o.

N o limite, a sociedade se articula por den tro e sobre a v ida de bairro. M as, à
medida que n ela as g eraç õ es se sucedem, que a v ida ativ a v ai se realizan do, os
perten cimen tos també m se div ersificam, v ão para alé m do bairro, ch eg an do ao pon to,
por ex emplo, de o morador do bairro ter escolaridade adquirida n o bairro e fora dele,
ter uma profissão - h abilidade, atributo con creto referido à qualidade - que se aplica
n o mun do do trabalh o con forme o mov imen to g eral e pró prio do trabalh o abstrato n a
sociedade. Estas relaç õ es ex tern as, “h omeopaticamen te“, v ão ren ov an do os
con teú dos da v ida de bairro. Ele, o morador, participa de sin dicato, v ai ao futebol v er
j og os do campeon ato n acion al, é con sumidor da in dú stria cultural, é eleitor e leitor,
en fim, estabelece n ex os ex tern os ao bairro, n ex os que o fazem perten cer a uma
sociedade política, a uma sociedade muito ampla. A questão seria talv ez de v erificar
até on de o bairro resiste e sobrev iv e.

O mov imen to que con fig ura o bairro tem n a propriedade capitalista da terra
uma mediaç ão essen cial. As famílias se in stalam n um lug ar e asseg uram-se de uma
con diç ão social atrav é s dela, mas n a mesma medida em que esta modalidade de
propriedade suporta e resg uarda a família, porque é també m uma riqueza, defin e a
con diç ão do morador, traduz-se em v eículo de prestíg io social. G eralmen te, é em
relaç ão à propriedade que se estabelecem prestíg io e h ierarquia n a v ida de bairro.

25
C omo a propriedade represen ta a imobilidade, é mais comum que os moradores
troquem mais v ezes de locais de trabalh o que de lug ares de moradia33. T odav ia, é uma
imobilidade, pode-se dizer, coag ida a mov er-se pelas n ecessidades sociais que a
cercam. N ão obstan te, aquilo que foi sobej amen te den omin ado de deterioraç ão
urban a, termo que comporta mais que uma dú v ida, é traduç ão da imobilidade que o
direito de propriedade g aran te, sen do també m, como se sabe, o meio de ex traç ão de
ren das urban as.

N esta busca de um con ceito, parece n ecessá rio reiterar que o bairro, n ão
obstan te sua estabilidade prov isó ria, é um acon tecer fun dado em prá ticas con cretas
que articulam, n um lug ar, paren tela, v izin h an ç a, compadrio sob mú ltiplas formas de
solidariedade e sobretudo de reciprocidade. D efin e-se como uma un idade em relaç ão
à cidade.

A dificuldade em alcan ç ar o seu con ceito está em circun screv er, n o presen te,
essa essê n cia g reg á ria do bairro, perpassada por in stitucion alidades, porque isto pode
lev ar a um formalismo que pouco esclarece da v ida social. O que n os in teressa
particularmen te é que a v ida de bairro implicou uma prá tica social imediatamen te
espacializada n o bairro. I sto fez do bairro uma un idade socioespacial quase completa.
F ez do bairro um espaç o de represen taç ão da v ida. F osse atrav é s dos en terros, dos
casamen tos, das missas, das festas, das procissõ es, da feira seman al, da presen ç a do
louco con h ecido de todos, da presen ç a do bê bado, da meretriz, do padre, do mé dico
de bairro, da professora... C omo j á se v iu, esse teatro acon tecia sob as h ierarquias da
I g rej a e do Estado, que seg uiam org an izan do e impon do div isõ es.

M as, à medida que a in dustrializaç ão prosseg ue, aprofun da-se a div isão do
trabalh o. O espaç o e tempo da v ida v ão sen do fun cion almen te articulados à
reproduç ão social. As relaç õ es ten dem para ser mon etarizadas. N estas con diç õ es, as
relaç õ es de troca g an h am v elocidade in usitada e, assim, todos os â mbitos da v ida
en tram n o mov imen to de reproduç ão da sociedade, torn an do-se con tin g en tes. Estas
tran sformaç õ es só se fazem alcan ç an do o “n ú cleo duro” do bairro e da v ida de bairro,
uma certa e fun damen tal espon tan eidade, e acaba o tempo pró prio do bairro, como
se v erá .

33
E sse as p e c t o f oi b as t an t e s ub lin had o n os e s t ud os s ob r e a c on s t it uiç ã o d as p e r if e r ias m e t r op olit an as . C f ., p or
e x e m p lo, C AR D O S O , F e r n an d o H e n r ique e t al. C ult ur a e p ar t ic ip aç ã o n a c id ad e d e S ã o P aulo. C a d e rn os
C E B R A P , S ã o P aulo, n .1 4, p .1 -47 , 1 9 7 5 ; C AM AR G O , C â n d id o P r oc ó p io F e r r e ir a d e e t al. Sã o P a ulo 1 9 7 5 :
c r e s c im e n t o e p ob r e z a. S ã o P aulo: L oy ola, 1 9 7 6 , e n t r e out r os .

26
R etoman do arg umen tos, v ê -se em H en ri Lefebv re uma recusa j usta em
con siderar, n o presen te, a con ex ão bairro-paró quia, asseg uran do-n os que “em outros
tempos [ teria sido] con stitutiv a de uma realidade, n ão tem ag ora fun damen to. Poderia
ser, in clusiv e, que j á n ão ex istam bairros e só sobrev iv ê n cias e restos de bairros!”34

Pelo ex posto até aqui, h á en orme con cordâ n cia com estas con clusõ es. M as é
n ecessá rio prosseg uir com estas in dag aç õ es porque a un idade teó rica em ex ame é a
da cidade com seus bairros. N o en tan to, h á ain da em Lefebv re uma outra ten tativ a de
compreen der o bairro que é preciso con siderar. T rata-se dos desdobramen tos da v ida
de bairro, e isto é mais do que uma busca de compreen são do bairro. É , n a v erdade,
uma in terrog aç ão sobre a v ida.

“O bairro [ ...] seria a m í n i m a d i f er en ç a en tre espaç os sociais mú ltiplos e


diferen ciados, orden ados pelas in stituiç õ es e cen tros ativ os. Seria o pon to de
con tato mais acessív el en tre o espaç o g eomé trico e o espaç o social, o pon to de
tran siç ão en tre um e outro; a porta de en trada e de saída en tre espaç os
qualificados e o espaç o quan tificado, o lug ar de on de se faz a traduç ão ( para e
pelos usuá rios) dos espaç os sociais ( econ ô micos, políticos, culturais etc.) em
espaç o comum, isto é , g eomé trico.”35.

C om estes arg umen tos, Lefebv re repõ e os termos da problemá tica teó rico-
con ceitual do bairro, sem n eg ar suas afirmaç õ es preceden tes. I n screv e o problema n a
perspectiv a da pró pria modern idade, com seus limites e con tradiç õ es. N ão seria
ex atamen te porque in stituiç õ es e cen tros ativ os, ao atuarem social e espacialmen te,
n ão produzem efeitos an á log os que, reiteradamen te, a d i n f i n i tu m , proporiam o
problema de in dag ar sobre a realidade do bairro, mas porque as prá ticas de espaç o
são cada v ez mais frag men tá rias que se pode propor o problema de in dag ar sobre a
realidade do bairro, mas porque as prá ticas de espaç o são cada v ez mais frag men tá rias
e porque os espaç os g eomé tricos quan tificados av an ç am sobre os espaç os qualitativ os:
os espaç os de represen taç ão. R esulta que as prá ticas de espaç o podem ser
rev eladoras, tan to das coerç õ es, como das apropriaç õ es do espaç o. C riam
possibilidade de recon siderar suas pró prias afirmaç õ es preceden tes, as suas dú v idas
sobre a sobrev iv ê n cia dos bairros. I n screv em o problema n uma perspectiv a h istó rica:
a da pró pria modern idade.

34
L E F E B V R E , H e n r i. D e lo rura l a lo urba n o, p .1 9 8 .
35
I b id ., p .2 0 0 -1 .
N e s t e t e x t o, que é d e 1 9 6 7 , o e s p aç o s oc ial é o e s p aç o vivid o. É p or e s t a é p oc a que a n oç ã o d e e s p aç o s e r á
e n r ique c id a p e la d is c us s ã o d a in t e r s e ç ã o d os n í ve is : p e r c e b id o, vivid o e c on c e b id o que , n o e s s e n c ial, f oi
d e m on s t r ad a e m L a p rod uc t ion d e l´ e s p a c e , d e 1 9 7 4. N e s t a ob r a t am b é m g an hou f or m ulaç ã o b as t an t e c lar a a
d ialé t ic a d o e s p aç o d e r e p r e s e n t aç ã o e d a r e p r e s e n t aç ã o d o e s p aç o.

27
É ev iden te que ex istem, sobrev iv em, persistem espaç os qualitativ os. T rata-se de
uma ex ig ê n cia da v ida. Os espaç os do j og o, do amor, do lú dico, do imprev isto,
con stituem ex ig ê n cia, essen cialidade. M as a urban izaç ão con temporâ n ea foi
con fig uran do uma superfície de urban izaç ão con tín ua36, domín io do quan titativ o,
porque reg ido pelo prin cípio: tempo é din h eiro. Ou, como dizia Lew is M umford ao
tratar da cidade comercial em cuj as en tran h as g estav a-se a “cidade” in duzida pela
in dustrializaç ão: “ag ora o espaç o, como o tempo, era din h eiro”3 7.

N ão obstan te, as qualidades referidas aos espaç os de represen taç ão se in serem


n o circuito do mercado e tê m duas direç õ es: uma é a das in stituiç õ es mercan tis n a
in dú stria do en treten imen to, tais como: clubes, sh oppin g s... A outra é do domín io da
casa.

É n estes termos que se propõ e a questão de pen sar sobre a formaç ão do bairro.
A ten tativ a aqui é a de tratar o bairro como fen ô men o h istó rico e social que n o
processo de urban izaç ão traduziu-se por uma espacialidade específica. Por isso
perseg ui a h istoricidade do con ceito estudan do a I g rej a, a propriedade, a família, o
trabalh o n a forma como traduziam o domín io do tempo sobre o espaç o. Ag ora,
quan do j á são de certa forma ev iden tes os imperativ os do espaç o sobre o tempo,
ascen dem n o h orizon te as lutas por territó rios.

M as os bairros, ou quaisquer dos seus frag men tos reman escen tes, retidos n o
espaç o urban o, sempre g uardarão diferen ç as en tre si, porque as determin aç õ es
in stitucion ais, fossem adv in das da I g rej a ou do mun do do trabalh o, pesaram n a
defin iç ão dos con teú dos qualitativ os da v ida de bairro. Em perspectiv a, v ê -se que n a
g ê n ese do bairro estev e orig in almen te a I g rej a, depois a fá brica, in stitucion alidades que
perpassaram por den tro a v ida de bairro e que proj etaram n o espaç o uma estrutura
fun cion al que correspon dia à adequaç ão ao modo como se tran sformav am os

36
Q ue n ã o s e c on f un d a o que f oi d it o c om a e x t e n s ã o c on s t r uí d a, e d if ic ad a d a ur b an iz aç ã o, ou, c om o p r e f e r e m
os p lan e j ad or e s , c om a “m an c ha ur b an a” . N ovam e n t e , valho-m e d as ob s e r vaç õ e s d e H e n r i L e f e b vr e : “E s t as
p alavr as , ‘ o t e c id o ur b an o’ , n ã o d e s ig n am , d e m an e ir a r e s t r it a, o d om í n io e d if ic ad o n as c id ad e s , m as o c on j un t o
d as m an if e s t aç õ e s d o p r e d om í n io d a c id ad e s ob r e o c am p o. N e s s a ac e p ç ã o, um a s e g un d a r e s id ê n c ia, um a
r od ovia, um s up e r m e r c ad o e m p le n o c am p o, f az e m p ar t e d o t e c id o ur b an o.” L E F E B V R E , H e n r i. A re v oluç ã o
urba n a , p .1 7 .
37
M U M F O R D , L e w is . O bra c it a d a , p .5 5 0 .
C om in d ig n aç ã o, M um f or d ob s e r vou f ar t a e e x aus t ivam e n t e que j á n a an t e -s ala d a in d us t r ializ aç ã o p r op r iam e n t e
d it a “os in t e r ê s s e s d o d in he ir o p r og r e s s ivam e n t e d om in ar am os in t e r ê s s e s d a t e r r a, n o t r aç ar e c on s t r uir os
n ovos b air r os d a c id ad e .” ( I b id ., p .5 3 0 ) . “N o p r ó p r io m om e n t o e m que as c id ad e s s e e s t avam m ult ip lic an d o e m
n ú m e r o e aum e n t an d o e m t am an ho, p or t ô d a a c iviliz aç ã o oc id e n t al, a n at ur e z a e a f in alid ad e d a c id ad e t in ham
s id o c om p le t am e n t e e s que c id as : f or m as d e vid a s oc ial que os m ais in t e lig e n t e s j á n ã o c om p r e e n d iam , os m ais
ig n or an t e s e s t avam p r e p ar ad os p ar a c on s t r uir . O u an t e s , os ig n or an t e s e s t avam c om p le t am e n t e d e s p r e p ar ad os ,
m as is s o n ã o os im p e d ia d e c on s t r uir .” ( I b id ., p .5 3 3 ) .

28
con teú dos, as relaç õ es da v ida social. A propriedade territorial foi o suporte essen cial
dessa espacialidade, ao mesmo tempo que con tribuía para moldar uma h ierarquia
implícita da v ida de bairro. D e todo modo, n ão se pode recusar que a h istó ria urban a
g uarda tipolog ias de bairros. Por isso a busca de um con ceito de bairro, aqui
perseg uida, tev e que con templar div ersidades. O bairro, o n ão-bairro, a cidade e o
urban o tiv eram que ser compreen didos como momen tos de um ú n ico processo, n o
qual as formas de espacializaç ão do processo social n ão se ex cluíam. An tes, se
superpun h am.

A urban izaç ão modern a, em todo o Ociden te, foi se defin in do como um


processo total, como uma forç a mobilizadora em direç ão à s cidades. Em decorrê n cia,
o espaç o urban o foi perden do a cen tralidade pressuposta de orig em e os bairros
ten deriam a perder os seus traç os fun dan tes. É n esse sen tido que a urban izaç ão
an iquilaria os en raizamen tos territoriais. Q ue os perten cimen tos da v ida de bairro
iriam sen do, eles també m, men os determin an tes, e que as iden tidades,
desterritorializan do-se, acabariam sen do mobilizadas para outras esferas da v ida, para
outras escalas, sen do portadoras de outros con teú dos, poden do ser eletiv as e
fun dadas em auto-recon h ecimen to. Processo que con firma a un iv ersalidade da
urban izaç ão con temporâ n ea, n ão obstan te os seus impasses, pró prios desta formaç ão
social38.

Portan to, n este ex ercício de estudar o bairro a partir de uma n oç ão ain da


imprecisa, procurei o seu con ceito. F oi possív el compreen der que a prá tica social da
modern idade foi in teg ran do n ív eis de uma prá tica espacial cotidian a que, articulan do
n uma ordem pró x ima, v izin h an ç a, compadrio e paren tela, sob os desíg n ios de uma
ordem distan te, da R elig ião e do Estado, eram v iv idos como relig iosidade, como
civ ilidade, como operosidade. A con j un ç ão fun cion al destes n ív eis, v isan do a produç ão
social, con traditoriamen te fazia do morador do bairro, suj eito da espacialidade da v ida
de bairro e suj eito do mov imen to do trabalh o. Log o, de uma ex istê n cia in scrita n a v ida

38
H e n r i C oin g , ao e s t ud ar os p r oc e s s os d e r e n ovaç ã o ur b an a n o X I I I D is t r it o d e P ar is , m os t r a c om o, “n o f im d e
c on t as , e s t a s ub c ult ur a op e r á r ia, in s c r it a n a G e og r af ia [ o b air r o] , ap ar e c e c om o d e t e r m in an t e d e um s is t e m a d e
r e laç õ e s s oc iais t ã o c om p le t o c om o o ob s e r vad o [ ...] C oin g d e f in e o que é e x at am e n t e o b air r o d o p on t o d e
vis t a s oc ioló g ic o ao ag r up ar , n um m e s m o c on j un t o d e r e laç õ e s , os e le m e n t os c ult ur ais e as b as e s m at e r iais , que
ap ar e c e m t ã o in t e r d e p e n d e n t e s [ ...] M as e s t a d e s t r uiç ã o [ r e f e r e -s e à s d e m oliç õ e s d o X I I I a rron d is s e m e n t d e
P ar is , ob j e t o d e r e n ovaç ã o ur b an a] p od e r ia t e r s id o d if e r e n t e e , n a r e alid ad e , e s t ava e m c ur s o out r o p r oc e s s o
d e d is s oluç ã o, f un d am e n t ad o n a p e n e t r aç ã o ap r e c iá ve l d e que e s t ava s e n d o alvo a s ub c ult ur a e s t ud ad a, p or
p ar t e d aquilo a que o aut or c ham a ‘ vid a ur b an a’ , is t o é , p or p ar t e d a c ult ur a d om in an t e n a s oc ie d ad e g lob al. [ ...]
A c om un id ad e d e b air r o d is s olve -s e n o m e io ur b an o. P ar a H . C oin g é um f ac t o in e vit á ve l.” C O I N G , H e n r i.
R é n ov a t ion urba in e e t c h a n g e m e n t s oc ia l. L ’ é volut ion d e la vie s oc iale . P ar is : L e s É d it ion s O uvr iè r e s , 1 9 6 6 . Ap ud
C AS T E L L S , M an ue l. O bra c it a d a , p .42 -4.

29
de bairro e de uma ex istê n cia política un iv ersalista, n a perspectiv a da cidadan ia g estada
n o Estado de D ireito, n o mun do do trabalh o e do mercado em g eral. O bairro, n a sua
g en eralidade, mostrou-se como uma modalidade de v ida social, mas, sobretudo, c om o
u m a c i r c u n stâ n c i a tem p or a l d a u r b a n i z a ç ã o q u e tr a d u z a s d i f er en tes esp a c i a l i z a ç õ es d a
v i d a soc i a l , em f u n ç ã o d e c om o se i n teg r a m n o c oti d i a n o, o p r ó x i m o e o d i sta n te, sob o
p r ed om í n i o d e r el a ç õ es i m ed i a ta s, d i r eta s. Por isso, a h istó ria urban a g uarda, de cada
bairro, um perfil sociocultural, resultado de uma con struç ão h istó rica e social, em
prin cípio, sin g ular.

A partir de en tão, torn ou-se possív el pen sar sobre a cidade e o urban o
mobilizan do o con ceito teó rico de bairro. Log o, a urban izaç ão pô de ser
compreen dida e descrita a partir do bairro como um processo prá tico que se ex plicita
teoricamen te: n o bairro se implan tam estruturas da modern idade, n essa direç ão
mobiliza-se positiv amen te a sociedade ( o pró x imo e o distan te) , mas aprofun dan do
sempre as separaç õ es, pois que se g en eraliza a econ omia de trocas, e é n este n ív el da
prá tica social, iden tificado como o “v iv ido”, lug ar das ex periê n cias ex isten ciais, que se
realiza, como abstraç ão con creta, a reproduç ão da sociedade.

M as, desde que o bairro pô de ser iden tificado como um fen ô men o h istó rico e
social, in scrito n a urban izaç ão da sociedade, restou por con siderar, ou por saber,
como operacion alizar a idé ia e a n oç ão de bairro. C omo mov er o seu con ceito, tal
como está sen do con struído? É este o sen tido desta pesquisa.

F in almen te, à procura de um con ceito fui descobrin do que h av ia diferen tes
n oç õ es de bairro perpassan do a v ida social, in teg ran do-a em diferen tes n ív eis. Q ue
uma idé ia de bairro, por v ezes subj acen te, pode comportar represen taç õ es,
idealizaç õ es de espectro bastan te amplo. Pode-se do bucó lico ev ocar o morar en tre
arv oredos e j ardin s, g aran tin do priv acidade, e també m a seg uran ç a tão almej ada,
con tra o un iv erso con cen trado da metró pole. N o discurso e n as estraté g ias
imobiliá rias h á també m as represen taç õ es de bairro como memó ria, como h istó ria,
tan to quan to n o circuito do comé rcio de bairro e em certas prá ticas preserv acion istas.
M as percebi també m que pelo men os em um n ív el da prá tica social subj az uma idé ia
de bairro que se realiza n o plan o do v iv ido, da ex periê n cia ex isten cial como prá tica
espacial. São as prá ticas do espaç o que combin am traj etos cotidian os, estan do
ev en tualmen te lastreadas n a cordialidade de um j orn aleiro ou de um aten den te de
farmá cia, de um man obrista de estacion amen to e assim por dian te. Estas são
apropriaç õ es de espaç o n as quais estão presen tes alg un s dos atributos do bairro.

30
Ev iden temen te, estas prá ticas defin em espaç os qualitativ os ex atamen te n o limite
dos con teú dos da cotidian idade. Assim sen do, rev elam que, ao n ív el das relaç õ es
diretas e imediatas, as prá ticas de espaç o n a modern idade se in screv em
fun cion almen te n a tex tura fin a do urban o39. M as, n os seus con teú dos e sig n ificados
sabe-se que elas arrastam represen taç õ es de um tempo h istó rico mesclan do
ex traç õ es culturais diferen tes, v alores e cren ç as, com todas as frag men taç õ es e
con dicion an tes pró prios da modern idade capitalista. I sto faz do espaç o urban o um
un iv erso muito mais rico de ex periê n cias, um campo de con quistas e de disputas. O
que n ão quer dizer que se possa n ele v iv er mais e melh or. Este é um dos paradox os
da modern idade.

As tecn olog ias do urban o, como por ex emplo o automó v el, a telev isão, os
v ídeos... colon izam a v ida cotidian a, reforç an do as separaç õ es, que ten dem a se torn ar
mais abstratas que reais. Elas alcan ç am o plan o da v ida imediata e n ele aprofun dam as
separaç õ es orig in á rias, como, por ex emplo, as de sex o e idade. N o cotidian o, ain da se
sobrepõ em à quelas separaç õ es orig in adas n o mun do do trabalh o. Assim, as
referê n cias de lug ar e de espaç o n o urban o v ão sen do ex perimen tadas de modo
con tin g en te, em curtos momen tos e determin ados traj etos. Sobre estas separaç õ es se
erg ue o in div íduo, como suj eito teó rico, e a v ida priv ada, como o con tex to de sua
realizaç ão40 .

M esmo assim, o bairro forn ece uma referê n cia de localidade para os citadin os. E
se torn a um j og o, por v ezes prazer desin teressado, descobrir n a n omen clatura do
urban o os elos escon didos, os sig n ificados perdidos41.

39
D e n t r e as c r í t ic as que os s it uac ion is t as f or m ular am , a c id ad e e a c ot id ian id ad e , n o in t e r ior d o m ovim e n t o
p olí t ic o que os e n volvia, s it ua-s e a c on s t at aç ã o d e que havia um a im p os s ib ilid ad e d e ap r op r iaç ã o d o e s p aç o
ur b an o p e los c id ad ã os . E n t r e as s uas in um e r á ve is c on t r ib uiç õ e s p ar a a d is c us s ã o d o m od o d e vid a ur b an o, que ,
aliá s , f or am p r e m at ur am e n t e ar quivad as n os m e ios s up os t am e n t e in t e r e s s ad os n e s s e d e b at e , p os t ular am a
“d e r iva” ou o “d è t ourn e m e n t ” c om o um e x e r c í c io d e ap r op r iaç ã o d o m e io ur b an o. U m p on t o im p or t an t e que os
c on d uz iu n e s s as e x p e r iê n c ias f or am as p e s quis as d e C hom b ar t d e L auw e , c on he c id as p or um d os s e us as p e c t os ,
que f oi a c on s t at aç ã o d os t r aj e t os d e um a n or m alis t a p or P ar is . P ô d e c on c luir que e r a p or c ur t os e r e p e t it ivos
t r aj e t os que s e e s t ab e le c ia a c ot id ian id ad e .
40
” O que hoj e c ham am os d e p r ivad o é um c í r c ulo d e in t im id ad e c uj os p r im ó r d ios p od e m os e n c on t r ar n os
ú lt im os p e r í od os d a c iviliz aç ã o r om an a. [ ...] N a op in iã o d os an t ig os , o c ar á t e r p r ivat ivo d a p r ivac id ad e , im p lí c it o
n a p r ó p r ia p alavr a, e r a s um am e n t e im p or t an t e : s ig n if ic ava lit e r alm e n t e um e s t ad o n o qual o in d iví d uo s e p r ivava
d e alg um a c ois a, at é m e s m o d as m ais alt as e m ais hum an as c ap ac id ad e s d o hom e m . Q ue m que r que vive s s e
un ic am e n t e um a vid a p r ivad a [ ...] n ã o e r a in t e ir am e n t e hum an o.” AR E N D T , H an n ah. A c on d iç ã o h um a n a . 1 0 ª e d .
R io d e J an e ir o: F or e n s e U n ive r s it á r ia, [ 1 9 5 8 ] 2 0 0 0 . p .48 .
É as s im que n e s t e c ur t o e x t r at o H an n a Ar e n d t n os d á um a in d ic aç ã o d a g ê n e s e d a e s f e r a d o p r ivad o. M as ,
s e g un d o e la p r ó p r ia, hoj e n ã o o in t e r p r e t ar í am os as s im , p or que o m od e r n o in d ivid ualis m o t e r ia t r az id o
e n r ique c im e n t o p ar a a vid a p r ivad a. R e s t a p r ová -lo.
41
An s e lm J ap p e ( aut or d e G uy D e bord . M ar s e ille : V ia V ale r ian o, 1 9 9 5 ) , e m vis it a a S ã o P aulo, c ir c ulou n o t r e c ho
d o m e t r ô V ila M ad ale n a-P ar ais o. N a oc as iã o in t e r e s s ou-s e p or s ab e r o s ig n if ic ad o d os n om e s d as e s t aç õ e s :

31
C om a ascen dê n cia do Estado T erritorial, a g estão estatista do espaç o frag men ta
e reú n e, em escalas v ariadas e con forme suas pró prias n ecessidades e desíg n ios, o
territó rio n acion al. As orden s político-admin istrativ as dos distritos e subdistritos foram
se sobrepon do n o plan o do espaç o v iv ido, mas sem poder fazer coin cidir uma
con cepç ão estatista de g estão do espaç o com as prá ticas socioespaciais, ou sej a, en tre
as represen taç õ es de espaç o e os espaç os de represen taç ão42.

Sobre essa ten tativ a de aprox imar a g estão do espaç o com o espaç o da
ex periê n cia ex isten cial, o espaç o v iv ido, sabe-se apen as que, em dado momen to da
urban izaç ão, quan do n ecessariamen te se dav a a j un ç ão do poder político com o
relig ioso defin in do um ú n ico processo, isso foi possív el. N o mais, o Estado territorial
toma a seu carg o a g estão pú blica, con ceben do e recortan do seu espaç o ( o espaç o
defin ido a partir da racion alidade que o in forma) , produzin do-o com v istas à eficiê n cia,
que se traduz por um amplo rol de atributos.

V alen do-me mais uma v ez de H en ri Lefebv re: pode ser que até n em ex istam
mais bairros. D e todo modo, talv ez e apen as pelo costume que temos de g rav ar
palav ras e in seri-las n a lin g uag em tran sportan do-as atrav é s dos tempos, ain da a palav ra
bairro será muito referida, usada e mesmo man ipulada. M as o mais importan te é que
se torn ou possív el iden tificar uma certa i d eol og i a d e b a i r r o pela ausê n cia das prá ticas
que substan tiv amen te fizeram o bairro n a h istó ria. É n este plan o que faz sen tido

S um ar é , C on s olaç ã o, T r ian on , P ar ais o... Ap ó s alg un s m om e n t os d e s ole n e vaz io, quas e p â n ic o, as p e s s oas que o
ac om p an havam c om e ç ar am a e s p e c ular , s e m qualque r c on he c im e n t o: p or que S um ar é ? E C on s olaç ã o, t e r á a
ve r c om c on s olo?
Q uan d o n ã o s e t e m m e ios p ar a s ab e r o p or quê d as c ois as , in d ag ar s ob r e e las n um e x e r c í c io as s im
d e s in t e r e s s ad o é t am b é m um a f or m a d e s e ap r op r iar d a his t ó r ia g uar d ad a n e s s as p alavr as . As ap r op r iaç õ e s s ã o
e m ve r d ad e , t e ó r ic as .
C on vé m le m b r ar aqui um a p r im or os a p as s ag e m , d e um d os livr os d e Ag n e s H e lle r , on d e a f iló s of a hú n g ar a
t e c e u as s e g uin t e s c on s id e r aç õ e s s ob r e o que c ham ou d e “s e d e d e c on he c im e n t o” :
“U m hom e m que c r ê ‘ s ab e r t ud o’ r e s p on d e r á ir r it ad o à s p e r g un t as p ue r is : ‘ t od os o s ab e m ’ , ‘ p or que é as s im e
p on t o’ , ‘ p or que t od os f az e m as s im ’ , ‘ n ã o f aç a t an t as p e r g un t as ’ . [ ...] J á vim os que o ‘ e u s e i que n ad a s e i’ d o
f iló s of o t e m um s e n t id o ir ô n ic o, ain d a que s e t r at e d e um a ir on ia r e lat iva: o f iló s of o t orn ou-s e f iló s of o p or que
s oub e c oloc ar e le p r ó p r io as p e r g un t as p ue r is : p or is s o, e le s ab e t am b é m que as s e m e n t e s d a f ilos of ia d e ve m s e r
lan ç ad as n e s s e t e r r e n o e s om e n t e n e s s e .
As p e r g un t as p ue r is c on t ê m d ois m om e n t os : o s ab e r que n ã o s e s ab e , a aus ê n c ia d e p r e c on c e it os , o
que s t ion am e n t o d os c on c e it os p r on t os e ac ab ad os , p or um lad o; e , p or out r o, a s e d e d e s ab e r , d e
c on he c im e n t o. P or t an t o, n ã o é c as ual que o d e s t in at á r io d a f ilos of ia s e j a s e m p r e e p r ior it ar iam e n t e a j uv e n t ud e .”
H E L L E R , Ag n e s . A f ilos of ia ra d ic a l. S ã o P aulo: B r as ilie n s e , [ 1 9 7 8 ] 1 9 8 3 , p .2 3 , ê n f as e s d a aut or a.
42
A c id ad e d a R e n as c e n ç a I t alian a t r ad uz iu c ab alm e n t e a c on j un ç ã o d a f or m a e d o c on t e ú d o. D iz -n os L e f e b vr e
que a s oc ie d ad e O c id e n t al d a R e n as c e n ç a it alian a d o s é c ulo X I V t e ve a c han c e d e j un t ar o vivid o, o p e r c e b id o e
o c on c e b id o, p r od uz in d o um a lin g uag e m c ó d ig o. N e s t as c on d iç õ e s , r e p r e s e n t aç õ e s d o e s p aç o p r od uz id as p e los
g r an d e s ar quit e t os n ã o p ud e r am s e r f or m ulad as in d e p e n d e n t e m e n t e d os e s p aç os d e r e p r e s e n t aç ã o que e r am d e
or ig e m r e lig ios a e r e d uz id os a f ig ur as s im b ó lic as , o c é u, o in f e r n o, o d iab o e os an j os . C f . L E F E B V R E , H e n r i. L a
p rod uc t ion d e l´ e s p a c e .

32
discutir a idé ia de bairro. Ao que parece uma idé ia que perdeu o seu lug ar; ou que o
perdeu apen as como mediaç ão, n o â mbito da v ida imediata.

O B airro na G eog raf ia

A partir dos an os sessen ta dimin uem as motiv aç õ es de estudos sobre bairro


en tre n ó s. Os estudos ag rá rios foram deix an do para trá s as descriç õ es formais, ain da
que compreen siv as, como as dos bairros rurais, e aden traram n o debate da questão
ag rá ria43.

O destin o do bairro n os estudos urban os n ão foi ex atamen te o mesmo, embora


a G eog rafia U rban a també m fosse deix an do para trá s as “descriç õ es compreen siv as”
de bairro, tais como as elaboradas por R en ato Silv eira M en des, sobre a cidade de São
Paulo”44 ou a de T erezin h a Seg adas Soares, quan do estudou alg un s bairros do R io de
J an eiro45.

F oi n um con tex to de busca de maior rig or an alítico, con firman do o estatuto e a


importâ n cia que a G eog rafia U rban a começ av a a adquirir que, n o in ício dos an os
seten ta, h ouv e um esforç o de sistematizaç ão com a adoç ão de procedimen tos
teó rico-quan titativ os. O plan ej amen to territorial e urban o aparecia como um
h orizon te possív el para uma certa prá tica que queria in terv ir n o processo ( j á en tão
tido por in ex orá v el) que lev av a à urban izaç ão da sociedade. Abriu-se, portan to, uma
v ia in stitucion al de estudos e pesquisas urban as com teor e profun didade bastan te
div ersas.

A pesquisa tev e, a partir de en tão, que respon der a pelo men os dois requisitos:
pela formaç ão acadê mica tin h a a G eog rafia que se firmar em relaç ão aos outros
campos disciplin ares. E, a partir dessa formaç ão, respon der à s deman das de um
con h ecimen to prag má tico. J ulg o serem estas as premissas para compreen der o

43
B as t ar ia e x am in ar os t e m as d os e ve n t os , c om o c on g r e s s os e s im p ó s ios or g an iz ad os p e la As s oc iaç ã o d os
G e ó g r af os B r as ile ir os , n as ú lt im as d é c ad as , p ar a c om p r ovar e s s e r ac ioc í n io.
44
M E N D E S , R e n at o S ilve ir a. O s b air r os d a Z on a N or t e e os b air r os or ie n t ais . I n : AZ E V E D O , Ar old o ( c oor d .) . A
c id a d e d e Sã o P a ulo: e s t ud os d e g e og r af ia ur b an a. v.3 . S ã o P aulo: C om p an hia E d it or a N ac ion al, 1 9 5 8 .
S e m e s que c e r o t r ab alho e lab or ad o p or p r of e s s or e s e alun os d o D e p ar t am e n t o d e G e og r af ia d a U n ive r s id ad e
d e S ã o P aulo a r e s p e it o d e um b air r o d e S ã o P aulo. C f . S Ã O P AU L O . U n ive r s id ad e d e S ã o P aulo. F ac uld ad e d e
F ilos of ia, C iê n c ias e L e t r as . D e p ar t am e n t o d e G e og r af ia. P in h e iros : as p e c t os g e og r á f ic os d e um b air r o p aulis t an o.
S ã o P aulo: E d it ô r a d a U n ive r s id ad e d e S ã o P aulo, 1 9 6 3 .
45
S O AR E S , M ar ia T e r e z in ha S e g ad a. O c on c e it o d e b air r o e s ua e x e m p lif ic aç ã o n a c id ad e d o R io d e J an e ir o.
B ole t im C a rioc a d e G e og ra f ia , R io d e J an e ir o, an o X , n .3 -4, p .46 -6 8 , 1 9 5 8 .

33
trabalh o de J üerg en Lan g en buch 46. T rata-se de um estudo que abordou, de um pon to
de v ista h istó rico-g en é tico, a con formaç ão espacial da metró pole. Q ue mostra como
se difun dia espacialmen te a in fra-estrutura de comun icaç ão e tran sportes: as ferrov ias,
os camin h os, as rodov ias, as auto-estradas, à medida que ativ idades in dustriais com
seus ex é rcitos de trabalh adores g an h av am maior presen ç a por todo o en torn o de São
Paulo, ou, como den omin ou, pelos arredores suburban os. N isto está um g ran de
mé rito ( n em sempre bem compreen dido) : o de estudar São Paulo pela con formaç ão
que v ai adquirin do o seu en torn o. M ostra-n os, desse processo, uma articulaç ão em
lin h as e pon tos que ia se con stituin do como arcabouç o material da urban izaç ão. Os
pon tos eram os “pov oados-estaç ão”, muitos dos quais ev oluíram para a con diç ão de
“subú rbio-estaç ão”; outros eram os “subú rbios-en tron camen tos”, aqueles que se
formav am n o cruzamen to de estradas, quan do ch eg av am a ag lutin ar uma pov oaç ão
suburban a. M as h ouv e també m os “subú rbios-loteamen tos”, que eram os n ú cleos
formados n as á reas de ex pan são suburban a, n o “f r on t” av an ç ado da metropolizaç ão e
que, por essa razão, eram con tin uamen te repostos à medida que os loteamen tos se
sucediam. En tre as aquisiç õ es deste estudo está , portan to, uma tipolog ia dos
subú rbios obtida atrav é s de farta documen taç ão e com base em ex ten sa pesquisa
h istó rica.

I n teressa-n os, particularmen te, reter os momen tos e con stataç õ es acerca da
con fig uraç ão e tran sformaç ão das formas. Por ex emplo, uma articulaç ão de
en tron camen to de estradas pode permitir con fig urar uma forma de subú rbio, pode
ch eg ar a defin ir uma cen tralidade de pov oamen to. Por outro lado, um loteamen to
com um pon to termin al de ô n ibus que acaba por ag reg ar alg umas ativ idades de
comé rcio e serv iç os dá orig em a um subú rbio-loteamen to. N ão passou despercebido
n esse estudo que o processo de loteamen to, lev an do av an te os limites da á rea urban a,
recria alh ures os fun damen tos desse mesmo processo, mas n ão os recria da mesma
forma. A sucessão de n ov os n ú cleos n os pon tos termin ais de ô n ibus, ou n os
en tron camen tos, ao se multiplicarem, à medida em que se multiplicav am, iam
compon do a trama de um v asto tecido urban o metropolitan o, realizaç ão de mú ltiplas
estraté g ias. Sem con tar que o con teú do desse processo també m foi mudan do e,

46
C f . L AN G E N B U C H , J ü e r g e n R ic har d . A e s t rut ura ç ã o d a g ra n d e Sã o P a ulo: e s t ud o d e g e og r af ia ur b an a. R io d e
J an e ir o: I B G E , 1 9 7 1 .
I n t e r e s s a p ar t ic ular m e n t e c on s t at ar que e s t e e s t ud o é um a r e f e r ê n c ia ob r ig at ó r ia p ar a quais que r que s e j am os
e s t ud os s ob r e a G e og r af ia d e S ã o P aulo e que , p or n ã o t e r t r at ad o e x at am e n t e d e b air r o ao t e r d is c ut id o a
e s t r ut ur aç ã o d o e s p aç o m e t r op olit an o ( p r oc e s s o que n e c e s s ar iam e n t e im p lic a d e alg um a f or m a a e x is t ê n c ia d e
b air r os ) , c oloc ou p r ob le m as in e s p e r ad os , m as que n ã o n os f ur t am os d e d is c ut ir .

34
quan do esta trama passou a articular-se com e pelo sistema de metrô , estav a-se j á em
presen ç a de uma sociedade de massas. Estas questõ es serão retomadas n a an á lise.

M as o bairro e a v ida de bairro estão retidos n uma tex tura fin a dos con teú dos da
v ida social, tan to que as tipolog ias, quan do n ão os apag a, ex cepcion almen te os capta.
D e todo modo, a leitura desse trabalh o con firma que o processo de metropolizaç ão
n ão n ecessariamen te se faz pela criaç ão de bairros. Loteamen tos podem até v ir a
con stituir bairros. M as o bairro é um fen ô men o da v ida traduzin do uma espacialidade
específica. N as con diç õ es da metropolizaç ão de São Paulo, acumulam-se em escala
g eomé trica loteamen tos, tren s, ô n ibus, metrô , automó v el... e in ev itav elmen te se é
forç ado a in troduzir o tema da espoliaç ão urban a, da formaç ão das lon g ín quas
periferias.

C ada é poca respon de aos temas que são propostos formulan do suas pró prias
questõ es. H oj e, in dag amos sobre o dev ir da urban izaç ão. Log o, é n ecessá rio adotar
uma abordag em g en é tica dos processos correlatos e seg uir seu mov imen to para
delin ear min imamen te os seus impasses. As tipolog ias por si n ão bastam.

N os an os 7 0 cresceu o in teresse pela ampla problemá tica da cidade e do urban o.


F oram en tão orden ados problemas, obj etos de reflex ão e de estudos, tais como: a
moradia, os con j un tos h abitacion ais, o tran sporte, o uso do espaç o pú blico, a
deterioraç ão urban a, en tre tan tos outros temas. Ao mesmo tempo, a forte tradiç ão
que pesa sobre a G eog rafia como o con h ecimen to dos lug ares, impun h a-lh e um
recorte espacial ou uma localizaç ão. M as o lug ar e o espaç o ch eg am à categ oria
an alítica em um mov imen to de g ran de en v erg adura que pen sa a G eog rafia mais como
uma C iê n cia H uman a e Social. Em termos de con h ecimen to do mun do, dir-se-ia, a
G eog rafia U rban a foi acumulan do uma certa den sidade de con h ecimen to que
correspon de à s premissas teó ricas ( ló g icas e h istó ricas) pelas quais in ten tamos
descobrir as articulaç õ es do g eral com o particular, N este caso, da espacializaç ão-
territorializaç ão do processo de urban izaç ão. I sto n ão quer dizer que os estudos
urban os ten h am superado as estruturas espaciais. O espaç o reificado con tin uou
presen te n os estudos urban os. M as, de fato, o camin h o do mé todo h á de ser o de
uma dialé tica socioespacial. N esse sen tido, foi n ecessá rio estabelecer um tempo e um
espaç o, uma situaç ão, para in v estig ar a urban izaç ão. O bairro apresen tav a as
premissas teó ricas e ló g icas para dar curso a esta reflex ão porque é o elemen tar, e
en quan to tal é uma parte que con té m v irtualmen te o todo. Está n a g ê n ese de todo o
processo de urban izaç ão, como j á discutido n as premissas deste estudo.

35
H á uma v ia de con h ecimen to, de estudo do bairro, que o faz sobrev iv er como
tema e como problema porque o estabelece como um n ív el a partir do qual se pode
discutir a urban izaç ão por in teiro, ou sej a, as diferen tes temporalidades con tidas n a
urban izaç ão da sociedade, ex pressas n a frag men taç ão do espaç o e do tempo: “o que
tin h a que ser perseg uido era a recon stituiç ão do processo de n ascimen to e
con solidaç ão e, ao que tudo in dica, de desag reg aç ão ( estruturaç ão-desestruturaç ão)
desse con j un to de bairros como um processo social”47.

T ambé m ig ualmen te ex plícita é a afirmaç ão de An dré M artin , de que os seus


estudos

“represen tam momen tos de con struç ão do obj eto que para mim possuem
uma ló g ica in tern a [ e que] ten tamos en ten der a g en ealog ia de uma urban izaç ão
tipicamen te brasileira [ ...] , o B rá s deteriorado ex iste desde 1 9 4 0 e a tal pon to
esta deterioraç ão ch eg ou h oj e, que a artista plá stica G erda B ertami j á n ão v ê um
B rá s, mas v á rios frag men tos estiolados e sem con ex ão. A frag men taç ão é o
preç o da modern izaç ão”48

N estes trabalh os o bairro foi sen do rev elado por suas articulaç õ es in tern as, pelo
que lh e dav a un idade como lug ar de trabalh o, de moradia, de en treten imen to,
portan to, de traj etos v iv en ciados em con son â n cia com o uso do tempo da fá brica, mas
també m como um lug ar n o qual as particularidades, por ex emplo, de ser “Alé m-
T aman duateí”, foram sen do in teg radas à h istó ria urban a de São Paulo. V iu-se que o
bairro ch eg ou a ser uma ex periê n cia coletiv a de g ran de den sidade, um plan o da
ex periê n cia ex isten cial, tal como apareceu n o roman ce “Pedro M an eta”, e que estav a
sen do tecida uma h istó ria e uma g eog rafia da cidade e dos bairros, que era també m
uma in teg raç ão desin teg radora de ambos, n a ex ten são de uma urban izaç ão que se
desdobrav a como periferia do urban o.

Estes estudos traziam à luz, portan to, a materialidade do bairro, mostran do


també m a sua impossibilidade, a partir de um certo pon to. C om muita propriedade,
An dré M artin mostrou a “deterioraç ão urban a” do B rá s e a n ecessidade das
in terv en ç õ es pú blicas, dan do ê n fase sobre a mobilidade espacial dos moradores e
con statan do que os mais pobres procuraram a casa pró pria n os loteamen tos recen tes

47
AN D R AD E , M ar g ar id a M ar ia d e . O s ba irros d e A lé m -T a m a n d ua t e í : o im ig r an t e e a f á b r ic a n o B r á s , M oó c a e
B e le n z in ho. S ã o P aulo: F ac uld ad e d e F ilos of ia, L e t r as e C iê n c ias H um an as d a U n ive r s id ad e d e S ã o P aulo, 1 9 9 1 .
( T e s e d e d out or ad o) , p . 1 5 .
48
M AR T I N , An d r é R ob e r t o. O B a irro d o B rá s e a d e t e riora ç ã o urba n a . S ã o P aulo: F ac uld ad e d e F ilos of ia, L e t r as e
C iê n c ias H um an as d a U n ive r s id ad e d e S ã o P aulo, 1 9 8 4. ( D is s e r t aç ã o d e m e s t r ad o) , p .2 .

36
e os que en riqueciam n o B rá s, deix av am os casarõ es, mas “se n ão era possív el ir
diretamen te aos ‘ J ardin s’ , podia-se ir ao men os para o Alto da M oó ca ou B elen zin h o”49.

Estas con stataç õ es, de certa forma, corroboram a n ossa compreen são do bairro
como uma ordem de prox imidade marcada por tran sitoriedade. I sto porque a família
e a propriedade estão n o cern e do que sej a o bairro; a propriedade n a cidade, em
g eral, n ão comporta a reproduç ão da família. Por isso, a descen dê n cia dos mais pobres
dirig e-se para a fren te de ex pan são da urban izaç ão n os loteamen tos, ao passo que a
dos mais ricos procura melh or realizar a ascen são social que ex perimen tam, in do para
j un to da elite. C on tudo, a tran sitoriedade do bairro como fen ô men o socioespacial n ão
impede que dele se produzam represen taç õ es, que dele se reproduzam estereó tipos,
e que ten h am lug ar as ideolog ias de bairro. M uito ao con trá rio, a suposta italian idade
do B rá s, que n ão resistiria ao men or ex ame, seg ue seu curso n as festas, n as can tin as,
n as estó rias dos j orn ais de bairro. M as a família, atrav é s da propriedade, v iv e as
circun stâ n cias h istó ricas do processo de v alorizaç ão do espaç o, tan to pela diá spora
dos descen den tes que tê m de mobilizar-se, dirig in do-se para mais lon g e, como pela
mudan ç a fortuita de uso do patrimô n io imobiliá rio. N este caso, o essen cial é que,
quan do são criadas con diç õ es para obten ç ão de ren da imobiliá ria, a den sidade do uso
que se estabelece, tem lev ado ao en cortiç amen to, log o, à deterioraç ão desse
patrimô n io. Por ex emplo, a feiú ra do B rá s se equiv ale à feiú ra dos outros tan tos
v elh os bairros de São Paulo, com seus casarõ es en cortiç ados.

F in almen te, cabe con siderar que, n ão obstan te os diferen tes propó sitos que
mov em este estudo de bairro, n os dois autores citados, en con tramos um terren o
só lido para aparar as teorias e con ceitos que mov em n osso pen samen to, porque estão
apoiados por só lida pesquisa.

M arcelo J . Lopes de Souza50 rev in dicou um lug ar para o ativ ismo de bairro e, a
pretex to de ter se torn ado n ecessá rio “desn aturalizar” a G eog rafia, con siderou
49
I b id , p .1 6 9 .
Alé m d is s o, An d r é M ar t in p e r c e b e u c om c lar e z a o m om e n t o que a d e s e s t r ut ur aç ã o ve n c e .
“[ ...] p e la vid a as s oc iat iva e c ult ur a e p e lo s ig n if ic ad o p olí t ic o, o b air r o in s c r e ve u-s e n a m e m ó r ia d e s e us p r ó p r ios
hab it an t e s e n o c on c e it o d e t od a c id ad e c om o um b air r o op e r á r io. [ ...] O que ac on t e c e r ia d e p ois d e 1 9 3 0
r e m e t e à s c om p le x as r e laç õ e s e n t r e p olí t ic a, id e olog ia, e c on om ia, e t c . p e r m it in d o in ve s t ig aç õ e s e m vá r ios
c am p os e n í ve is . O B r as il m od e r n iz ava-s e , S ã o P aulo t r an s f or m ava-s e e m g r an d e m e t r ó p ole , m as p ar a
p e r p le x id ad e d e s e us m or ad or e s , o b air r o d o B r á s p as s ar ia a vive r um p r oc e s s o r e ve r s o d e e s t ag n aç ã o,
e s vaz iam e n t o e d e c ad ê n c ia.” ( I b id ., p .8 7 ) .
“E le c om p r e e n d e d ois ‘ s ub -m om e n t os ’ : e n t r e 1 9 3 4-45 quan d o o B r á s ao m e s m o t e m p o at in g e s e u ó t im o e m
t e r m os d e p op ulaç ã o e e quip am e n t os , e e n t r a e m p r oc e s s o d e e s t ag n aç ã o d e m og r á f ic a; e d e 1 9 45 at é 1 9 6 4
quan d o e n t ã o s e p r oc e s s a o e s vaz iam e n t o volun t á r io d a p op ulaç ã o [ ...] ” ( I b id ., p .1 6 9 ) .
50
S O U Z A, M ar c e lo J os é L op e s d e S ouz a. O b air r o c on t e m p or â n e o: e n s aio e ab or d ag e m p olí t ic a. R e v is t a
B ra s ile ira d e G e og ra f ia , R io d e J an e ir o, v.5 1 , n .2 , p .1 3 9 -1 7 2 , ab r .-j un . 1 9 8 9 .

37
n ecessá rio tratar em termos políticos um suposto problema do bairro; foi n esse
sen tido que recuperou as con tribuiç õ es ao con ceito de bairro e que “procurou
aplain ar o terren o para a discussão do ativ ismo”. Arg umen tou lon g amen te sobre as
abordag en s culturalistas, as quais teriam en con trado o bairro sem con flito. E,
in v ersamen te, sobre as abordag en s dos marx istas, os quais, sem poderem raciocin ar
alé m das determin aç õ es do econ ô mico, teriam tratado de con flitos sem bairro. U m
dos mé ritos desta in cursão, que buscav a um arcabouç o teó rico-con ceitual, pon to de
partida para an á lise dos con flitos de bairro n os processos urban os, foi, fora de dú v ida,
o en orme acerv o que v eio à luz com estes estudos e pesquisas, e pelo qual somos
todos dev edores.

A len tidão do con h ecimen to n ão j ustifica n ossa falta em estabelecer os diá log os
n ecessá rios ao con h ecimen to. O fato é que este tex to den so merece a aten ç ão de
todos que buscam um patamar de discussão e de diá log o sobre o processo de
urban izaç ão. Pela importâ n cia de que se rev este, faç o-lh e um con trapon to, ain da que
lig eiro.

N este en saio é particularmen te in teressan te a polê mica esboç ada acerca do


dev ir do bairro. Pois, deparan do-se com a compreen são clá ssica do bairro ( como, por
ex emplo, a de R . Ledrud) , v ia-se dian te da con tin g ê n cia do an iquilamen to do bairro.
Processo que ficav a em con tradiç ão com a positiv idade do “ativ ismo” que mov ia as
sociedades n os an os seten ta e que a Sociolog ia de um modo g eral apropriadamen te
den omin ou de mov imen tos sociais urban os. M an uel C astells, n a mesma é poca, trazia à
luz a org an izaç ão de v izin h os como uma forma de ex pressão política dos mov imen tos
sociais, que ficaria con h ecida por ativ ismo de bairro.

A meu v er, os mov imen tos sociais urban os colocav am em pauta uma n ov a
man eira de compreen der e praticar a política, ex pon do para a sociedade in teira um
“m od u s” de fazer política, in serin do-a n a cotidian idade, j á en tão uma face do
in dustrialismo. I sto é , pun h am em ev idê n cia o Estado como o outro, como o
in terlocutor pertin en te de uma sociedade que, seg un do a ló g ica capitalista, se
socializav a rapidamen te. Eram mov imen tos sociais que reiv in dicav am con diç õ es sociais
de reproduç ão n o urban o51.

51
“N e s t e p ar t ic ular , c on vé m r e s s alt ar os e s f or ç os r e aliz ad os p or vá r ios e s t ud ios os [ ...] que [ ...] r e p e n s ar am a
que s t ã o d a r e p r od uç ã o am p liad a d o c ap it al e d as lut as s oc iais n o c ap it alis m o avan ç ad o a p ar t ir d aquilo que f oi
d e n om in ad o n ovas c on t r ad iç õ e s ur b an as . S e m s om b r a d e d ú vid a, as in t e r p r e t aç õ e s que s ur g ir am d e s t as
p e s quis as c on s t it uí r am um p as s o ad ian t e ” . K O W AR I C K , L ú c io ( or g .) . A s lut a s s oc ia is e a c id a d e , p .48 .

38
Em países como o n osso era a emerg ê n cia de uma con sciê n cia de direitos,
man ifestaç ão de cidadan ia. A afirmaç ão do h omem político que fora sen do g estado n as
diferen tes lutas52. A con j un tura dos an os seten ta v alorizav a o trabalh o da mulh er, a
família reduzida e a ch amada liberalizaç ão dos costumes. A questão como fora
lev an tada por M arcelo Lopes de Souza reiv in dicav a, sobretudo, uma abordag em
política do mov imen to social, que se articulav a a partir de um lug ar; recolocan do o
problema da abordag em política dos mov imen tos sociais n a G eog rafia. Aj udou,
in clusiv e, a compreen der que h av ia um compon en te g eog rá fico, se assim se pode
dizer, n a problemá tica dos mov imen tos sociais urban os. M as con tin uou sen do
n ecessá rio compreen der o bairro n a h istó ria urban a. O bairro sempre estev e afeito ao
“bairrismo” e, en quan to tal, era v ítima de um certo paroquialismo. J á estes
mov imen tos, org an izav am-se em div ersas escalas e em face de problemas que se
en camin h av am como questão social, como questão de toda a sociedade. N a pauta
estav am os tran sportes coletiv os, o abastecimen to de á g ua pela rede pú blica, serv iç os
sociais de saú de, escolas pú blicas, crech es...

Eram, n a v erdade, mobilizaç õ es políticas de teor muito diferen te do


paroquialismo ou do seu equiv alen te: o bairrismo, que estev e n a base da v ida de
bairro, e que, em g eral, foi alimen tado por in stituiç õ es locais on de se articulav am
posiç õ es de man do e de prestíg io pessoal, tecidas n as relaç õ es com os n otá v eis do
lug ar53.

A falta ou ausê n cia de uma abordag em política da sociedade, da urban izaç ão


en tre n ó s, tão corretamen te reclamada, n ão n os permitia con siderar o bairro
en redado n as circun stâ n cias de um mov imen to que urban izav a a sociedade in teira e
rev olv ia os modos de v ida.

52
E s t ud o e m b le m á t ic o a e s t e r e s p e it o f oi t am b é m o e lab or ad o p or É d e r S ad e r . C f . S AD E R , E d e r . Q ua n d o n ov os
p e rs on a g e n s e n t ra ra m e m c e n a : e x p e r iê n c ias , f alas e lut as d os t r ab alhad or e s d a G r an d e S ã o P aulo, 1 9 7 0 -8 0 . R io
d e J an e ir o: P az e T e r r a, 1 9 8 8 .
53
“P e r t e n c e r a um a c om un id ad e p olí t ic a é alg o que im p õ e a f or m ulaç ã o e o c om p r om e t im e n t o c om in t e r e s s e s
d e f in id os c om o un ive r s ais n o â m b it o d a n aç ã o. E n t r e t an t o, o r e c on he c im e n t o d e que há m od os p ar t ic ular e s d e
in s e r ç ã o e d e p ar t ic ip aç ã o n e s s e t od o ( d if e r e n ç as d e c las s e s oc ial, r aç a, g ê n e r o, e t n ia) e que e s s e s m od os
d if e r e n c iad os s ã o, e n t r e s i, ir r e d ut í ve is ain d a que m ut á ve is - t r az ia à t on a a t e n s ã o e n t r e , p or um lad o, m e t as
p e r s e g uid as p e la c ole t ivid ad e p olí t ic a c om o um t od o ( o que , p ar a e la, s e r iam valor e s e d ir e it os un ive r s ais ) e , p or
out r o, e s t ilos , t r aj e t ó r ias , d e m an d as que s ã o p ar t ic ular e s a c ad a um d os s e g m e n t os e c at e g or ias s oc iais que e la
ab r an g e .” AR AN T E S , An t on io A. P a is a g e n s p a ulis t a n a s : t r an s f or m aç ã o d o e s p aç o p ú b lic o. C am p in as : S ã o P aulo:
E d it or a d a U n ic am p / I m p r e n s a O f ic ial, 2 0 0 2 , p .1 3 5 .

39
Arman do C orrê a da Silv a54, ev ocou o bairro metropolitan o e, a ex emplo de
R ich ard M orse, con siderou que a acumulaç ão mercan til, ao fin al do sé culo dezen ov e,
j á defin ia São Paulo como uma metró pole. D iferen temen te, as premissas teó ricas e
ló g icas das quais parto, e també m as questõ es que in v estig o, con duziram-me a pen sar
que h á um processo com momen tos e circun stâ n cias que precisam ser
compreen didos, n o mov imen to que v ai da cidade à metró pole.

C on tudo, deste estudo é preciso reter as seg uin tes con fig uraç õ es:

M etró pole clá ssica, n o in ício do sé culo v in te: defin ida pela v ig ê n cia de circuitos
mercan tis que propiciam acumulaç ão de capital n a cidade.

M etró pole ampliada simples, até os an os cin qüen ta: domín io da liv re
con corrê n cia, alimen tada por econ omia mercan til que g era capital con tin uamen te e de
modo espon tâ n eo.

M etró pole ampliada composta, an os seten ta e oiten ta: domín io do plan ej amen to
g eral metropolitan o, a partir dos in teresses do g ran de capital, n acion al e/ ou
multin acion al, e/ ou do Estado a ele articulado.

É possív el, sem muito esforç o, iden tificar as formas predomin an tes de capital n a
urban izaç ão de São Paulo, tal como n os apresen ta esse estudo. M as resta uma
questão: afin al, como teria aparecido n o urban o, propriamen te, a passag em de uma
fase para outra? Ou de um tipo para outro, uma v ez que se trata de tipificar o
processo socioespacial da metró pole?

A min h a h ipó tese é que o estudo do bairro permite compreen der a urban izaç ão
como um processo total, log o, també m as con fig uraç õ es que a metró pole foi
adquirin do n o seu processo de con stituiç ão-con fig uraç ão-tran sfig uraç ão.

N a metró pole ampliada composta, o que poderia estar acon tecen do com o
bairro? Esta foi a perg un ta que esse trabalh o n ão se propô s. Por n ão tê -la formulado,
n ão in dag ou sobre uma possív el dialé tica socioespacial do capitalismo.

C on seqüen temen te, Arman do mostra o bairro que pesquisou como um â mbito
operacion al de plan ej amen to estatal que correspon dia ao distrito da C on solaç ão, base
estatística e operacion al da admin istraç ão mun icipal, atrav é s da respectiv a
admin istraç ão reg ion al.

54
S I L V A, Ar m an d o C or r ê a. A m e t ró p ole a m p lia d a e o ba irro m e t rop olit a n o, o c as o d e S ã o P aulo: o b air r o d a
C on s olaç ã o. S ã o P aulo: F ac uld ad e d e F ilos of ia, L e t r as e C iê n c ias H um an as d a U n ive r s id ad e d e S ã o P aulo, 1 9 8 2 .
( T e s e d e livr e d oc ê n c ia) .

40
Ag ora, o bairro da C on solaç ão é uma referê n cia de localidade para um un iv erso
social muito amplo, que é a pró pria metró pole. M arcado por um uso misto do espaç o,
mas sob o primado de uma especializaç ão fun cion al: são, por ex emplo, as lumin á rias
que in teressam mú ltiplos usos, comercializadas n o eix o h istó rico que emprestou o
n ome ao bairro: a rua da C on solaç ão.

N ão obstan te, Arman do percebeu e in formou que o destin o dos bairros é o de


se in teg rarem n uma trama cada v ez mais den sa ao serem recortados por
in v estimen tos pú blicos e priv ados. I sto o lev ou a aceitar a con cepç ão da G eog rafia
n orte-american a55 ( da qual, aliá s, se v aleu amplamen te) , de que h av ia bairros in tern os e
ex tern os e que, sen do assim, a C on solaç ão seria um bairro in tern o. Acon tece que o
bairro da C on solaç ão passou a in teg rar esse espaç o tido por in tern o n o processo que
fez n ascer a metró pole. C on tudo, ser ou n ão ser in tern o aj udav a pouco n a discussão
dos en ig mas que a urban izaç ão j á , ag ora, propun h a. M as mostrav a que h ouv era uma
v on tade de con h ecer a urban izaç ão para subsidiar políticas pú blicas.

N a atualidade, len ta, mas seg uramen te, in teressa à G eog rafia a h istoricidade do
con ceito56 e o desv en damen to das ideolog ias de bairro. F icaram para trá s o
h istoricismo das mon og rafias de bairro, as on tolog ias e as n ostalg ias.

O sen so comum pode, a qualquer tempo, ev ocar a cidade com seus bairros. A
lin g uag em g uarda ex pressõ es que atrav essam tempos h istó ricos e sociais. J á o
con h ecimen to, opera com con ceitos. E, in clusiv e, dev e ex plicar o sen so comum.

Por ú ltimo, é n ecessá rio ain da con siderar que h á um mov imen to que v aloriza a
“idé ia de bairro”, tan to que tem estimulado a produç ão de mon og rafias de bairro.
T em esse teor o mov imen to que a Prefeitura do M un icípio de São Paulo, h á alg un s
an os, v em org an izan do a propó sito dos estudos sobre a h istó ria dos bairros de São
Paulo57.

55
C on f or m e in d ic ad o p e lo aut or n a b ib liog r af ia: B lum e n f e ld , H . ( l9 6 7 ) T he M od e r n M e t r op olis . I t s O r ig in s ,
G r ow t h, C har ac t e r is t ic s , an d P lan n in g , T he M I T P r e s s , M as s ac he s e t t s ; D oug las s , H .P . ( l9 6 7 ) “S ub ur b s ” in
S e lig m an , E .R .A.. ( e ) J on hs on , A. ( e d .) E n c y c lop ae d ia of t he S oc ial S c ie n c e s , T he M ac M illan C om p an y , N e w
Y or k ; H e ilb r un , J . ( l9 7 4) “C e n t r al B us in e s s D is t r ic t ” in U r b an E c on om ic s an d P ub lic P olic y , S t . M ar t in ’ s P r e s s ,
N e w Y or k ; B e r r y , B .J .L . ( e ) H or t on , F . E . ( or g .) ( 1 9 7 0 ) G e og r ap hic P e r s p e c t ive s of U r b an S y s t e m s , P r e n t ic e -
H all, N e w J e r s e y .
56
S ã o, a e s s e p r op ó s it o, e x e m p lar e s as d is s e r t aç õ e s ap r e s e n t ad as n o D e p ar t am e n t o d e G e og r af ia d a F ac uld ad e
d e F ilos of ia, L e t r as e C iê n c ias H um an as d a U n ive r s id ad e d e S ã o P aulo. C f ., p or e x e m p lo: R AM O S , Aluí s io
W e llic han . F ra g m e n t a ç ã o d o e s p a ç o d a / n a c id a d e d e Sã o P a ulo: e s p ac ialid ad e s d ive r s as d o b air r o d a Á g ua B r an c a.
S ã o P aulo: F ac uld ad e d e F ilos of ia, L e t r as e C iê n c ias H um an as d a U n ive r s id ad e d e S ã o P aulo, 2 0 0 1 . ( D is s e r t aç ã o
d e m e s t r ad o) .
57
E n t r e os ú lt im os t r ab alhos d is t in g ue -s e p e lo t e or e ab or d ag e m o e s t ud o d e I t aque r a, e s c r it o p or M ar ia C e c í lia
F r an ç a e I n e s G . d e L e m os . C f . F R AN Ç A, M ar ia C e c í lia e L E M O S , Am á lia I n e s G e r aig e s d e . I t a q ue ra . S ã o P aulo:

41
L oc al idade e c om u nidade

Pelo que j á se sabe, o bairro sin tetiza a den sidade h istó rico-cultural do lug ar. N o
seu desen v olv imen to realiza a n oç ão prá tica de localidade sem con tudo esg otá -la. N o
curso da h istó ria do espaç o, a n oç ão de localidade g uardou mais de um sen tido.
Orig in almen te deriv ou da possibilidade de g erar uma apropriaç ão direta. D epois,
g an h ou curso en tran do n as referê n cias abstratas da g eometria do espaç o, como
in tercessão de pon tos: o en con tro da latitude e da lon g itude, por ex emplo. M as, são
sempre as circun stâ n cias orig in ais da apropriaç ão que permitiram n omear as
localidades an tes mesmo que elas ch eg assem a ser um lug ar.

Portan to, a localidade n asce n uma relaç ão prá tica, a partir de um atributo ou
particularidade, pela qual será iden tificada e n omeada. D epois, en tra n a prá tica social
seg uin do um curso que ex pressa v alores n um con tex to de v ida social. M uito depois,
quan do esses atos podem até n em ex istir mais, tran sformados por acré scimos ou por
supressõ es, se põ em a v ag ar n o imag in á rio social como represen taç ão. As lembran ç as,
as h istó rias, as len das fazem-n a obj eto de discurso. M as també m a represen taç ão
cartog rá fica, ao g rafar a n omen clatura dos lug ares, con tribui n a sua preserv aç ão, ag ora
como n omen clatura.

Pode-se portan to sug erir que, ev en tualmen te, uma localidade ch eg ue a ser um
bairro desde que afirme certa cen tralidade. En tre os american os o fen ô men o da
localidade apresen ta os con teú dos do bairro.

D e fato, ao fin al dos an os sessen ta h ouv e um g ran de debate en tre an tropó log os
n orte-american os, tal como n os in formou An th on y e Elizabeth Leeds58, acerca das
con cepç õ es e con ceitos relativ os aos estudos de localidade e comun idade. Em Leeds
& Leeds, h á uma clara discussão que postula a localidade como forma mais adequada
para discutir aquilo que seria a base empírica do Estado T erritorial: o “status do
locus”.

“as localidades como pon tos n odais de in teraç õ es [ ...] caracterizam-se,


mesmo as mais simples, por uma rede altamen te complex a de div ersos tipos de
relaç õ es. Os laç os de paren tesco mais ativ os – aqueles da família n uclear e,
freqüen temen te aqueles com paren tes pró x imos – serão amplamen te
en con trados n a localidade, especialmen te n as pequen as. As amizades mais

P r e f e it ur a d o M un ic í p io d e S ã o P aulo: D e p ar t am e n t o d o P at r im ô n io H is t ó r ic o, 1 9 9 9 . S é r ie H is t ó r ia d os B air r os
d e S ã o P aulo.
58
C f . L E E D S , An t hon y e L E E D S , E liz ab e t h. A s oc iolog ia d o B ra s il urba n o. R io d e J an e ir o: Z ahar , [ 1 9 7 7 ] 1 9 7 8 .

42
pró x imas, n umerosas e v iv as ( se n ão as mais profun das) ten dem a ex istir n a
localidade. A maior parte da paren tela ritual de alg ué m ten de a ex istir n a
localidade, on de pode ser mobilizada mais ou men os in stan tan eamen te. Os
v izin h os que podem ser ch amados para v á rias fin alidades, ex istem por defin iç ão
n a localidade. U ma pletora de g rupos in formais [ ...] como pequen as org an izaç õ es
cuj os in teresses e amplitude de aç ão são n ecessariamen te bastan te limitados
( uma ban da...) são fen ô men os de localidades.”59

Log o, a localidade em Leeds & Leeds é o â mbito de v ida imediata tal como é ,
para n ó s, o bairro, e n ão coin cide com a defin iç ão de comun idade.

C laro está que este estudo n ão aborda uma comun idade de bairro. An tes,
ocupa-se do bairro como circun stâ n cia do processo de urban izaç ão. A diferen ç a
reside ex atamen te em que, por este percurso, está sen do superada a mon og rafia de
bairro, torn an do possív el in dag ar sobre a direç ão, o sen tido e os impasses da
urban izaç ão n o presen te.

N a v erdade, n ão pô de passar despercebido que, n estes termos do “status do


locus”, a localidade é , ela pró pria, a un idade territorial do Estado, com os atributos
daquilo que para n ó s é o bairro. Alex is de T ocquev ille, discutin do a democracia
american a, arg umen tav a até a ex austão sobre como uma sociedade se org an iza de
baix o para cima e pelo prin cípio das tow n shi p s, a auton omia de g estão, que era uma
doutrin a da soberan ia, seg un do a qual todas as localidades se autog ov ern av am60 .

En tre n ó s, como se sabe, os fun damen tos da colon izaç ão ibé rica dissemin aram
arraiais, pov oados, mais tarde iden tificados por bairros rurais. Os bairros urban os
iriam, g radativ amen te, sen do formados à medida que as cidades começ assem a
org an izar, fun cion almen te, seus pró prios espaç os61.

N a base territorial do Estado estão os distritos e subdistritos, os quais tê m


fun ç ão de precisar, ex atamen te, um â mbito territorial, uma localidade. Em suma, o
59
I b id ., p .3 3 .
60
“N a Am é r ic a [ ...] p od e -s e d iz e r que o m un ic í p io f oi or g an iz ad o an t e s d a c om ar c a, a c om ar c a an t e s d o E s t ad o
e o E s t ad o an t e s d a U n iã o” . T O C Q U E V I L L E , Ale x is d e . D e m oc ra c ia n a A m é ric a . S ã o P aulo, C om p an hia E d it ô r a
N ac ion al, [ 1 9 5 6 ] l9 6 9 , p .5 6 .
61
E s ob r e a d e s ig n aç ã o d e b air r o: “e m t od a d oc um e n t aç ã o r e lat iva aos n ú c le os c r iad os c om o ob j e t ivo d e
ab r ig ar um a p op ulaç ã o in d í g e n a, e m f ac e d e as s im ilaç ã o, o t e r m o ald e ia vê -s e ut iliz ad o [ ...] ald e ia é o t e r m o
t r az id o p e lo c olon o p or t ug uê s que aqui s e in s t alou. N a á r e a d e or ig e m t e m um s ig n if ic ad o p r e c is o. V ê -s e
ut iliz ad o p ar a in d ic ar um a f or m a p ar t ic ular d e hab it at r ur al c on c e n t r ad o; c or r e s p on d e ao villag g io it alian o, villag e
f r an c ê s , d or f ale m ã o. N a n ova t e r r a p as s ou a s e r ut iliz ad o p ar a in d ic ar as t ab as in d í g e n as [ ...] C on f ig ur an d o um a
d is c r im in aç ã o c om f un d am e n t os t am b é m é t n ic os , há o f at o d e que p ar a os quad r os d o p ovoam e n t o e ur op e u,
m e s m o quan d o n ã o há o p r e d ic ad o d e vila p ar a e s t e ou aque le n ú c le o, n un c a s e ut iliz a ald e ia, o que s e r ia n at ur al
e m f ac e d a s ua ap lic aç ã o n a t e r r a d e or ig e m . D e f in e -s e o t e r m o b air r o, f ala-s e e m p ovoaç ã o, ut iliz am -s e out r as
d e n om in aç õ e s , p or é m e vit a-s e c uid ad os am e n t e ald e ia” P E T R O N E , P as quale . O s a ld e a m e n t os p a ulis t a s . S ã o
P aulo: E D U S P , l9 9 5 . p .1 0 3 -1 0 4.

43
bairro correspon de a uma certa espacialidade das relaç õ es, en quan to a localidade à
territorializaç ão do Estado.

P rop os iç õ es e P rob l em as

Q uan do alg ué m se refere à metró pole, à cidade ou ao bairro sabe, mais ou


men os, do que está falan do. Estas n oç õ es carreg am, implicitamen te, referê n cias sobre
modalidades do espaç o social e reportam-se, in clusiv e, a diferen ç as de n ív eis, de
escala. Por outro lado, quan do se in dag a sobre a relaç ão que estas n oç õ es g uardam
en tre si n o in terior do processo de urban izaç ão, en quan to modalidades de
espacializaç ão social, é n ecessá rio v ê -las en quan to formas ló g icas que se apresen tam
ao pen samen to, descobrir os seus n ex os, para serem suporte da an á lise.

Pode-se dizer, em prin cípio, que se trata de formas que se mov em em fun ç ão
das con tradiç õ es que abrig am; que se tran smutam umas n as outras de modo n ão
aleató rio n o mov imen to con traditó rio dos seus con teú dos. Por isso, a iden tidade
on toló g ica de cada uma dessas formas realiza-se n o real, en quan to prá tica social.
Assim sen do, o bairro, a cidade e a metró pole, n ão são con fig uraç õ es aleató rias,
ocasion ais e tampouco in teg ram a lin g uag em in depen den temen te do mov imen to do
real, do h istó rico, porque a metró pole con temporâ n ea, tal como se con h ece, é o
dev ir h istó rico da cidade e dos bairros. A metró pole, n a sua complex idade, estav a
in scrita n o mov imen to dos con teú dos da cidade com seus bairros62.

O n ív el mais elemen tar, aquele que tem susten tado as metamorfoses da forma
urban a, é o bairro. É n o mov imen to da parte com o todo que se situa o bairro em
relaç ão à cidade. Alé m do mais, como a recíproca é v erdadeira, a parte con té m o todo
n os seus frag men tos, sen do por isso a cidade uma totalidade em relaç ão ao bairro.
T rata-se de uma totalidade que se mov e n o sen tido de um dev ir h istó rico e cuj os
impasses redefin em o todo e as partes.

62
R e f le t in d o s ob r e s e u c am p o d e e s t ud o, que é a An t r op olog ia, J os é M ag n an i m os t r ou c om o e s t a m e s m a
que s t ã o s e p õ e , s e g un d o s e u p on t o d e vis t a, p ar a os an t r op ó log os : s ug e r iu a n e c e s s id ad e d e ult r ap as s ar o
“p ad r ã o ald e ia” e as s im ar t ic ular a s in g ular id ad e d o ob j e t o c om out r as var iá ve is d a vid a ur b an a, p r in c ip alm e n t e
n as g r an d e s e s up e r p ovoad as m e t r ó p ole s . ( C f . M AG N AN I , J os é G uilhe r m e C . e T O R R E S , L ilian d e L uc a ( O r g .) .
N a m e t ró p ole . S ã o P aulo: E D U S P , 1 9 9 6 ) .
D a m e s m a f or m a, e p or an alog ia, p e n s an d o a G e og r af ia, j ulg am os que os e s t ud os d e b air r o t ê m que e s c lar e c e r a
m e t r ó p ole , m uit o e m b or a n ó s n os s it ue m os n um a ó t ic a d e in ve s t ig aç ã o que s e e s f or ç a p or c om p r e e n d e r a
e s t r ut ur aç ã o g e n é t ic a d a m e t r ó p ole . D e t od o m od o, a m e t r ó p ole é o e n ig m a c om um .

44
U ma v ez in seridos, a cidade e o bairro, n o processo de urban izaç ão, j á en tão
como fun ç ão da in dustrializaç ão, estabeleceram-se as premissas para que a afirmaç ão
positiv a do bairro, como un idade de v ida imediata, fosse també m a sua in teg raç ão à
cidade, de tal forma que tan to a cidade como os bairros ficaram imersos n um
mov imen to que ten dia a n eg ar seus atributos orig in ais: o bairro como um â mbito de
v ida imediata e a cidade como con v erg ê n cia, como cen tralidade. A n eg aç ão do bairro
era també m a n eg aç ão de muitos dos atributos essen ciais da cidade, porque, n a
v erdade, a in dustrializaç ão que prov ocav a a mobilidade do trabalh o e com isso os
desen raizamen tos e a superaç ão dos localismos da v ida de bairro, fazia multiplicarem-
se as estruturas de g estão, remov ia ativ idades pelo territó rio, impon do uma circulaç ão
cada v ez mais rá pida de todos os elemen tos en v olv idos n a produç ão e reproduç ão da
riqueza, g en eralizav a os sistemas de trocas e quebrav a, por den tro, estruturas
materiais e in stitucion ais, como as da I g rej a, por ex emplo, que in screv eram a cidade
n a h istó ria.

O camin h o percorrido se rev elou lon g o; foi n ecessá rio abordar a cidade. A
literatura sobre a cidade in teressa a muitos campos do con h ecimen to e, den tre eles,
h á duas v erten tes prin cipais: uma que susten ta uma utopia tecn oló g ica, reun in do
en g en h eiros, arquitetos, ambien talistas, n uma coleç ão de in ú meros títulos. A outra
que se situa n o plan o do pen samen to reflex iv o e especulativ o, in teressan do à filosofia
e à h istó ria, alé m da literatura como ficç ão.

R elativ amen te à metró pole, o pon to de v ista tecn oló g ico a v ê como lug ar de
in v estimen to, de mov imen tos de massa, de tran sportes de massa; en quan to a
literatura que se in teressa pelos suj eitos sociais em presen ç a a v ê como o lug ar da arte
mural, dos g ran des ev en tos, dos cen tros de con v en ç õ es, das tribos urban as cuj a
ex istê n cia e mobilidade faz con fun dir o pen samen to teó rico sobre a urban izaç ão
porque, supostamen te, a semiolog ia e a semió tica do urban o proporcion ariam um
con h ecimen to suficien te.

Alé m do mais, in teressa reter que n os momen tos particularizados da festa,


mesmo quan do retida n o espetá culo, h á alg uma apropriaç ão da v ida urban a, em que
pese a mobilidade territorial do trabalh o relacion ada com os desen raizamen tos
territoriais permitir, quase sempre, um limite irrisó rio da apropriaç ão, n o urban o
metropolitan o.

Estruturalmen te, pode-se dizer que o processo de urban izaç ão foi con fig uran do
a metró pole em fun ç ão da max imizaç ão do uso de todos os elemen tos en v olv idos n o

45
processo de produç ão material da riqueza, sob as premissas da acumulaç ão capitalista.
Q ue a metró pole foi g an h an do realidade à medida que o processo de con cen traç ão da
ativ idade econ ô mica, da política e da populaç ão, acompan h ado da con cen traç ão das
decisõ es das empresas e do Estado, redefin iam, sem cessar, as formas de trabalh o
urban o e que, em con seqüê n cia, se difun dia o sistema de trocas. É por isso que a
metró pole é a ex pressão mais cabal da frag men taç ão do tempo e do espaç o da
modern idade. Q ue é a sín tese do preex isten te: a un idade do div erso. M as, en quan to
tal, só poderia ser uma sín tese con traditó ria, ao n eg ar a essê n cia da cidade, do bairro
e produzir o tecido urban o que prolifera, com a “periferizaç ão” do todo e das partes.
Esta é uma con seqüê n cia v isív el, imediata.

O urban o como modo de v ida estaria destin ado a superar as separaç õ es,
reun in do os frag men tos dos con teú dos da v ida social, e a propor uma sín tese capaz de
n eg ar a n eg aç ão, da qual a metró pole é ex pressão, possibilitan do, n um n ív el superior,
a apropriaç ão dos frag men tos dispersos.

M as o urban o, utopia real e modo de v ida, â mbito da comun icaç ão e da troca


g en eralizada, da simultan eidade, on de se desfaz a ordem pró x ima e a ordem distan te,
o imediato e o mediato, n ão v ai bem. H á um dé ficit de n eg ativ idade, as desig ualdades
sociais se aprofun dam, con fig ura-se um estado crítico, com con tin g en tes ex pressiv os
de populaç ão assistida. Assim, a temá tica do urban o in ev itav elmen te tratará da
desig ualdade n a frag men taç ão do urban o. N estes termos, proclamar o direito à
diferen ç a ch eg a a ser uma iron ia, porque em tudo subj azem os fun damen tos da
desig ualdade.

A atualidade da urban izaç ão mostra profun das cliv ag en s e separaç õ es. A misé ria
e a riqueza an dan do lado a lado. N ão obstan te, g en eraliza-se o sistema de trocas e as
comun icaç õ es redefin em as relaç õ es en tre pessoas, in stituiç õ es e Estados.

Em suma, foi n a metró pole que o mov imen to da forma afirmou a n eg ativ idade da
cidade, com seus bairros, sem con tudo fran quear o urban o, sob domin aç ão ampla,
ríg ida, formal e quan titativ a do v alor de troca. N ão obstan te, o uso do espaç o e do
tempo n ão n ecessariamen te coin cidem com o v alor de uso, an títese ló g ica do v alor de
troca.

Ora, n o mun do do mercado e da mercadoria, como pode o v alor de uso n ão


coin cidir com o v alor de troca? Só pode median te con flitos que ex põ em limites à
sobrev iv ê n cia de cada um e de todos. A rig idez da forma urban a, ex pressa n a fó rmula

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cada um n o seu lug ar, mostra que todo esse processo, ao espacializar-se, deslocou as
con tradiç õ es do tempo h istó rico ( capital-trabalh o) . T an to que

“este sen tido de lug ar bá sico e in teg rativ o [ o bairro] v eio a ser frag men tado
em partes complex as, con traditó rias e desorien tadoras. O espaç o está se
torn an do muito mais in teg rado e n o en tan to territorialmen te frag men tado.
Lug ares são específicos ou ú n icos, embora em muitos sen tidos eles pareç am
g en é ricos e ig uais. [ ...] E as paisag en s que resultam dos processos modern os
parecem ser pastich es, desorien tadores, in autê n ticos e j ustapostos.”63

Este estudo mostra que o B airro do Limão se torn a cada v ez mais frag men tado,
e, ao mesmo tempo, mais in teg rado à metró pole. Q ue a in teg raç ão é abstrata, se faz
como momen to do processo de v alorizaç ão, a partir da política localizada alh ures.

O urban o, reun ião de todos e de tudo, como modo de v ida, ascen de n o


h orizon te. M as com a impossibilidade de superaç ão dos impasses da frag men taç ão, o
urban o n ão se realiza, aprofun dam-se as separaç õ es. As con tradiç õ es saíram do
tempo h istó rico, n os disse H en ri Lefebv re em muitos dos seus trabalh os sobre a
cidade e o urban o. N o espaç o da metró pole seg uem sen do con formados territó rios:
domín ios demarcados para uso.

J á n ão h á como v oltar atrá s. O din h eiro é o mediador por ex celê n cia das
relaç õ es, in strumen taliza a socializaç ão abstrata da v ida e n a sua capilaridade en cerra
um con j un to de problemas importan tes, até bem pouco tempo ig n orados.

A seg reg aç ão socioespacial tão profun damen te discutida n os an os seten ta, h oj e


g an h a con torn os in suportá v eis, porque está con forman do territó rios: os territó rios de
uso, fruto de uma auto-seg reg aç ão con cebida e admin istrada, como por ex emplo dos
con domín ios e das ruas fech adas, muito diferen te da seg reg aç ão socioespacial que
estav a implícita n os processos sociais, discutida pela sociolog ia urban a dos an os
seten ta. Pode-se dizer que a auto-seg reg aç ão é uma forma ex acerbada a que ch eg ou a
seg reg aç ão. É possív el compreen dê -la como uma estraté g ia da reproduç ão de g rupos
para os quais se produzem discursos j ustificativ os da separaç ão. M as també m h á que
ser imputado à s opç õ es de política econ ô mica relativ as à distribuiç ão de ren da e à
flex ibilizaç ão do trabalh o o curso que a urban izaç ão v em apresen tan do en tre n ó s.

I sto posto, basta dizer que esta pesquisa preten deu discutir a urban izaç ão n os
seus aspectos g en é ticos, abordan do a metamorfose das formas para, com este
procedimen to, trazer à luz alg un s con teú dos do processo de urban izaç ão da

47
sociedade, mas també m para permitir que fosse con siderado o camin h o do mé todo
que aborda o espaç o a partir de uma teoria un itá ria; uma teoria que in teg ra os
aspectos físicos ( atributos có smicos) e sociais, n a ó tica da produç ão social do espaç o,
como con v é m a uma G eog rafia que luta por n ão ficar a meio camin h o da
compreen são do mun do que aí está .

N a v erdade, a urban izaç ão tem um mov imen to dialé tico que resulta das
tran sformaç õ es dos seus con teú dos, os quais se mov em em descompasso em relaç ão
à materialidade do urban o. A an á lise tem que con siderar que h á um mov imen to
pró prio da forma, e que h á um mov imen to pró prio dos con teú dos.

Esta pesquisa permitiu v er o desaparecimen to das formas h istó ricas e


referen ciais do espaç o, aquelas que g ermin aram a partir da cen tralidade da cidade. N o
bairro foi possív el v er, por ex emplo, a perda de cen tralidade da I g rej a, tan to do pon to
de v ista do seu espaç o físico como men tal, à medida que o espaç o do bairro ia sen do
en g olido pelo processo de urban izaç ão e sen do tran sformado em lug ar de trâ n sito.
M as també m o bairro tran sformav a-se à medida que n ov as modalidades de uso do
tempo iam acon tecen do n a v ida social. A modern idade rev elav a-se como um processo
n o qual també m outros referen ciais desapareciam ou perdiam presen ç a n a v ida social:
a cidade, a H istó ria, a patern idade, en tre outros. A an á lise que se seg ue tem por
obj etiv o ex plicar essa destruiç ão, con statan do seus efeitos, sob a h ipó tese de que
estão estruturalmen te bloqueadas as possibilidades do urban o emerg ir como modo de
v ida e assim articular uma sín tese superior.

O mov imen to que fracion a e que aprofun da as separaç õ es n a v ida social em


fun ç ão da div isão man ufatureira do trabalh o e das n ecessidades in cessan temen te
repostas para a reproduç ão capitalista da sociedade, ag ora sob os imperativ os de um
capital que circula liv remen te pelo mun do, é um processo que separa, mas que reú n e
e poten cializa en ormemen te aquilo que reú n e. Este é o traç o mais fun damen tal do
processo de modern izaç ão g eral da sociedade.

Ao fim e ao cabo, n a metamorfose da forma urban a a metró pole con temporâ n ea


acabav a por con fig urar-se como uma an ticidade: uma superfície de urban izaç ão
con tín ua, de cen tralidade mú ltipla e mó v el, h iperfun cion al, por on de se desloca a
multidão, domín io do quan titativ o, com aparê n cia de caos, porque mov ida por
in ú meras estraté g ias.

63
S AC K , R ob e r t , C on s um e r’ s W orld , p .6 42 . Ap ud G I D D E N S , An t hon y . A s c on s e q ü ê n c ia s d a m od e rn id a d e . S ã o
P aulo: E d it or a U n e s p , [ 1 9 9 0 ] 1 9 9 1 . p .1 1 9 -1 2 0 .

48
N a ló g ica da reproduç ão desta formaç ão social, n o seu mov imen to in tern o, é
que está a essê n cia desse processo. A abordag em g en é tica da urban izaç ão foi
cen tralizada n o mov imen to do bairro como fen ô men o h istó rico e social, sen do que a
g ran de dificuldade era h ierarquizar os problemas para discuti-los a partir da teoria da
produç ão social do espaç o. F oi priv ileg ian do o presen te, como con v erg ê n cia
problemá tica da urban izaç ão, que in iciamos este estudo discutin do as políticas de
espaç o, porque n a atualidade elas tê m efeitos reestruturadores n o B airro. E, como o
sen tido g eral do processo social é o de auton omizaç ão das prá ticas, disto decorre que
o passado sej a cada v ez men os importan te para ex plicar o presen te, a n ão ser quan do
se relacion a a forma espacial com os con teú dos sociais e h istó ricos, como n este caso.
N estes termos, pode-se en ten der as con tradiç õ es sociais como con tradiç õ es do
espaç o, e que a dialé tica teria saído do tempo h istó rico, como afirmou H en ri Lefebv re
em mais de um dos seus trabalh os.

I sto ocorre porque a prá tica social frag men tada compõ e, para os in div íduos, uma
rede de n ex os auto-referen tes. Assim sen do, fica em suspen so a questão de saber
porque teriam alg un s moradores in dag ado sobre o seu B airro a partir de suas
ex periê n cias frag men tá rias de v ida.

D e todo modo, a esse propó sito parece plausív el ain da uma h ipó tese: a reun ião
estraté g ica daquilo que a ló g ica do mercado separou para en cadear n as estruturas de
equiv alê n cia n asce como mercadoria n a in dú stria da cultura, desde que se trate,
obv iamen te, de resíduos culturais e h istó ricos. Log o, elemen tos ou atributos que até
bem pouco tempo podiam, liv remen te, ser deix ados ao folclore, n a atualidade
fun cion am como maté ria-prima n a in dú stria cultural. Estaria aqui o afã de restaurar a
memó ria do B airro?

Para dar con ta desta problemá tica foram estruturados quatro capítulos.

O primeiro capítulo v em a título de “I n teg raç ão e frag men taç ão metropolitan a”.
N ele está in icialmen te sen do apresen tada uma lin h a do tempo para referen ciar, ain da
que sumariamen te, os acú mulos culturais, as estruturas e os ev en tos da v ida de bairro.
V ai do zero de v ida de bairro à reproduç ão do bairro sobre outros bairros, com os
loteamen tos que se seg uiram ( 1 8 8 7 -1 9 9 4 ) .

Em seg uida, a proposta de apresen tar o B airro n a metró pole, tan to atrav é s das
políticas de espaç o, cuj a fin alidade é discutir as circun stâ n cias e as in j un ç õ es das
políticas urban as v ig en tes, relativ as à problemá tica dos rios e das v á rzeas de São Paulo,
como relativ amen te ao plan ej amen to urban o, atrav é s da Operaç ão U rban a Á g ua

49
B ran ca; será mostrado que as separaç õ es orig in á rias da v ida de bairro perdem-se n a
estrutura frag men tada da metró pole, in dican do uma fran ca superaç ão dos localismos
da v ida de bairro.

O Limão n ão é mais um bairro, porque o “ex cesso do outro”, fun damen to do


bairrismo, n ão produz qualquer estran h amen to, é muito mais um frag men to da
metró pole, porque é um â mbito de prá ticas cuj a abran g ê n cia é a pró pria metró pole.

É com esse sen tido també m que, em seg uida, mostran do a presen ç a do
estran h o, mostra a in serç ão metropolitan a do C en tro de T radiç õ es N ordestin as e da
Escola de Samba M ocidade Aleg re, localizados bem n o cen tro do Limão,
orig in almen te um lug ar de caipiras de sítio, de caipiras-peix eiros e de trabalh adores.

M as o bairro do Limão defin iu-se, an tes de tudo, pela particularidade de ser “um
bairro ribeirin h o”, con diç ão que determin ou muitos dos acú mulos da v ida de bairro, à
qual se somou a con diç ão de ser um bairro proletá rio.

N esta operaç ão g en é tica, o bairro é tratado també m como uma con struç ão que
deriv a do “en con tro dos diferen tes”: de um lado uma populaç ão residual, dispersa,
que h abitav a o en torn o de São Paulo desde tempos imemoriais, con h ecida por caipiras
do en torn o de São Paulo; de outro, imig ran tes italian os, portug ueses e espan h ó is que
tran spuseram o rio e as v á rzeas desde o in ício do sé culo v in te.

A v ida de bairro sorv ia as ex periê n cias da v ida n a cidade com certa defasag em. A
cidade era o lug ar de oficin as, de in dú strias, das loj as, de comé rcio, de escritó rios, de
con sultó rios. E, como a literatura con ta, tin h a os b ou l ev a r d s, os café s, mas n ão ch eg av a
a ser o lug ar da festa, dos passeios para os moradores do Limão. Pelo men os n ão o
fora por um bom tempo, como se v erá , ex atamen te porque ex istiu um “tempo
pró prio do bairro”. F oram as formas de empreg o do tempo n as fá bricas, com a
in dustrializaç ão, que criaram, n o bairro, as con diç õ es para a ex istê n cia de um tempo
lú dico que, n a sua sin g eleza, fun diu a reza e a festa.

F oi a título de “Prá ticas espaciais e v ida de bairro”, que se descortin ou o tempo


pró prio do bairro, uma descoberta desta pesquisa. T rata-se de um tempo que n ão se
con fun de com o tempo liv re, porque n ão se estrutura em oposiç ão ao tempo de
trabalh o que, n a v erdade, é con sumo produtiv o do tempo. Poder-se-ia sim
compreen dê -lo como uma forma an teceden te à do tempo liv re. D efin e-se por ser um
tempo comum e cotidian o que realiza o bairro como espaç o de represen taç ão. C omo
uma man ifestaç ão da espon tan eidade do v iv ido.

50
C omo a cidade estav a suj eita a um processo con tín uo de aparelh amen to para
respon der à s n ecessidades da circulaç ão de ben s, de produtos, de trabalh adores, em
ú ltima an á lise, para respon der à s n ecessidades da reproduç ão do capital das empresas,
j á que a pró pria cidade fun cion a como capital n os circuitos de v alorizaç ão, estes
processos de produç ão da materialidade do espaç o, que são as tecn olog ias do urban o,
av an ç am sobre os espaç os h istó ricos, como o são os espaç os das cidades e dos
bairros. M as isso n ão é tudo, porque, como discutido à ex austão, o bairro é uma
un idade de v ida imediata que fun da um importan te sen timen to de perten cer, situado
tan to alé m como aqué m dos perten cimen tos do mun do do trabalh o. Em suma, é
outra coisa. O bairro, n a h istó ria urban a, tem sido uma con quista n o h orizon te das
famílias que, n ão obstan te terem um limite estrutural para se reproduzirem n o mesmo
lug ar, edifican do uma h istó ria pró pria, produzem cultura. Ou sej a, as prá ticas
con cretas impreg n am, de qualidades, os lug ares. Por isso, trato de um pon to de v ista
qualitativ o, de atributos culturais do lug ar, discutin do as prá ticas dos moradores, sob
os efeitos dos impulsos modern izadores da sociedade, da relig ião e da relig iosidade.
C om estas in formaç õ es foi possív el uma certa aprox imaç ão qualitativ a dos modos de
v ida das populaç õ es tradicion ais, e també m foi possív el v er o embate en tre o
catolicismo espon tâ n eo do pov o com a in stitucion alizaç ão das prá ticas pela I g rej a.

D eparei-me en tão com um mun do n o qual o sag rado como cultura v irav a
in stituiç ão. N o qual as prá ticas lú dicas do futebol de bairro e o cin ema n asciam sob o
sig n o do sag rado. N o qual a reza e a festa con v erg iram para o espetá culo. É por isso
que, j á n o primeiro capítulo, pen san do o B airro n a metró pole, trato da in teg raç ão
espetacular das prá ticas, apó s discutir as políticas de espaç o.

N o seg un do capítulo estará sen do recuperado “O tempo da reza e da festa”.


Será possív el v erificar a formaç ão social capitalista em processo, porque o trabalh o
assalariado n ão se estabelece de uma v ez. As con tin uidades h istó ricas g an h aram
relev o, foram elas um p l u s em relaç ão à totalidade do processo social em curso. D isto
a família, como suporte da reproduç ão, se mostrou o melh or ex emplo. T ev e um papel
estraté g ico, n esse sen tido, a I g rej a, porque soube v eicular suas men sag en s, que,
in teressan do à sua perman ê n cia e h eg emon ia n a v ida de bairro, fun damen tav a um
pen samen to con serv ador, proclaman do-se como an ticomun ista e operan do com as
categ orias sociais do medo.

N a parte fin al, “D iatribes da propriedade”, será en fren tado o problema da


propriedade territorial, focalizan do n o estran h o, n aquele que v em de fora, o j og o das

51
estraté g ias de v alorizaç ão. Porque, person ifican do o ag en te da modern izaç ão, sabia
articular seus in teresses pessoais à s n ecessidade h istó ricas do Estado e do mercado de
terras, para mov er a imobilidade h istó rica da propriedade territorial, fazen do-a
circular.

Os limites estruturais à reproduç ão do bairro situam-se n o en quadramen to


in stitucion al da propriedade territorial e n a modern izaç ão g eral da sociedade
impulsion ada pela in dustrializaç ão, com a con seqüen te mobilidade territorial do
trabalh o n acion al.

D oc u m ent aç ã o e P es q u is a

M obilizan do o con ceito de bairro torn ou-se possív el ilumin ar certos processos
dos quais ele n ão podia se separar porque v in h am dele. O con ceito de bairro ampliou-
se n este estudo e també m realizou-se n uma sín tese que o supera, n a g en eralizaç ão do
urban o como modo de v ida. A urban izaç ão an alisada e descrita a partir do bairro
mostrou ser um processo n o qual se produzem e se aprofun dam as separaç õ es en tre
os diferen tes momen tos da v ida social; mostrou as auton omias en tre o v iv ido, o
percebido e o con cebido. M ostrou també m, sob alg un s aspectos, que, mesmo an tes
de se terem con fig urado assim tão auton omamen te aquelas esferas, h ouv e um lon g o
percurso n a h istó ria urban a, diferen ciado quan to aos seus con teú dos, e n ão
coin ciden tes n o tempo h istó rico, poré m, certos e determin ados. Esta questão será
an aliticamen te tratada n esta pesquisa.

T iv e que recolh er documen tos div ersos, an tes de mais n ada, porque o bairro
n ão é uma un idade estatística ou de admin istraç ão pú blica, log o, o camin h o foi reun ir
in formaç õ es dispersas. M as como partimos da n oç ão de que o bairro é muito mais um
fen ô men o da v ida e que correspon de a uma espacializaç ão do processo social, um
â mbito de v ida imediata on de se localizam, on de estão as imediaticidades do v iv ido,
n este n ív el foi situada a pesquisa. Q ue a admin istraç ão pú blica, atrav é s de
in stitucion alidades div ersas, tais como as dos distritos e dos subdistritos v ise o
en quadramen to in stitucion al e territorial do bairro, n ão altera em n ada n ossas
premissas, porque é preciso h av er, primeiro, formas de espacializaç ão do processo
social para que se possa preten der um tal en quadramen to. E para discutir a
problemá tica do bairro era n ecessá rio abordar an aliticamen te essa mesma
espacialidade.

52
A parte mais substan tiv a do material de que dispon h o são as en trev istas com os
moradores. T rata-se de en trev istas pré -qualificadas, defin idas a partir de um
con h ecimen to pré v io das diferen ç as en tre moradores que foram delin eadas n o
processo de formaç ão do bairro, e que foram tran sformadas em categ orias bá sicas da
pesquisa. Os moradores orig in ais, pesquisados pelos seus descen den tes, e em raros
casos eles pró prios, eram caipiras, caipiras-peix eiros e imig ran tes. Estes, sobretudo,
portug ueses, italian os e espan h ó is.

A té cn ica utilizada foi a da en trev ista aberta, sen do que a motiv aç ão in icial era a
de propor relatos sobre o bairro e sobre a v ida de bairro. As en trev istas beiram
h istó rias de v ida. São biog rafias ex traordin á rias que serv em aos n ossos propó sitos
apen as n aquilo que v eiculam o pró prio da v ida de bairro, ou aquilo que in teressa à s
prá ticas da v ida de bairro, que possa esclarecer sobre os con teú dos. Q uais sej am,
elemen tos e momen tos da prá tica social que traduzem o “v iv ido”, mas que in teressem
ao con j un to social. É tão somen te por este â n g ulo que os relatos colh idos serv iram aos
n ossos propó sitos.

N ão in terferir n esses relatos, elaborar o material recolh ido, restabelecer os


diá log os, reler os relatos com os en trev istados foi um crité rio. N as en trev istas, certos
fen ô men os, relaç õ es ou produtos, apareceram como recorren tes. Estes é que
permitiram uma base para a an á lise. F oi en tão que n os deparamos com o fato de ter
sido a I g rej a e o futebol, formadores do ethos da v ida de bairro.

A I g rej a apareceu como in stituiç ão modelar. T orn ou-se n ecessá rio compreen der
a sua cen tralidade n a v ida de bairro.

A importâ n cia das prá ticas lú dicas do futebol de v á rzea, com n ex os sociais
capazes de articular a sociedade in teira, e dos quais o bairro era apen as um dos n ív eis,
mereceu uma pesquisa detalh ada. F oi org an izada uma pesquisa sistemá tica n o j orn al
“A G azeta Esportiv a”, ten do sido con sultadas as ediç õ es publicadas à s seg un das feiras,
dos an os de l9 2 9 ao fin al dos an os 1 9 4 0 . Ain da que ten h a sido esta a pesquisa
sistemá tica, uma complemen taç ão foi n ecessá ria, por isso, foram també m con sultados
os j orn ais “C orreio Paulistan o”, “D iá rio de N otícias” e “O Estado de São Paulo”. Alé m
disso, den tre os documen tos recolh idos j un to aos moradores, tiv emos acesso a um
v olume con den sado de recortes de j orn ais que circulav am em São Paulo, n a dé cada de
quaren ta, in teressan do ao futebol de v á rzea. Perten ciam à coleç ão do Sr. N atale,
morador do Limão, esportista e feiran te. Alg un s dos seus recortes ex ibiam ain da o
círculo do seu pin cel de feiran te com o qual escrev ia os preç os dos produtos n a ban ca.

53
M as era em torn o do mov imen to que a propriedade descrev ia, articulan do e
desarticulan do momen tos e situaç õ es con cretas da v ida de bairro, que se pode melh or
compreen der o bairro n o seu dev ir. N o curso deste trabalh o reun i documen tos
retidos n as g av etas e baú s dos meus en trev istados, den tre os quais estão certidõ es de
casamen tos, ó bitos, escrituras, in v en tá rios, deman das j udiciais, carteiras de trabalh o,
alé m de um n ú mero con siderá v el de fotog rafias que in teressam a diferen tes assun tos e
momen tos desta pesquisa. Elas tiv eram v alor de documen to.

R ecorri ao T ribun al de J ustiç a para ex amin ar processos de in v en tá rios; à


Prefeitura do M un icípio de São Paulo para obter esclarecimen tos sobre os
documen tos obtidos e para ex amin ar outros, como por ex emplo os processos
relativ os à con struç ão das pon tes sobre o rio T ietê .

N o arquiv o da C ú ria M etropolitan a de São Paulo pesquisei os assen tamen tos dos
Liv ros de T ombo de Paró quias e outros documen tos.

N o Arquiv o M un icipal con sultei o R eg istro de I n umaç ão do C emité rio de N ossa


Sen h ora do Ó . R ecorri també m à s in stituiç õ es locais, à ig rej a, à escola.

C om base n o seqüen ciamen to das in formaç õ es pude traç ar uma lin h a de tempo
h istó rico do bairro. N ela se in screv em uma sé rie de ev en tos e são assin aladas
circun stâ n cias temporais da v ida de bairro que querem in dicar os períodos de
formaç ão, de reproduç ão e de en quadramen to metropolitan o.

C omo se v ê , n ão se trata de uma h istó ria do bairro. I n v estig o a produç ão social


do espaç o pelo mov imen to do bairro e da cidade. Sobre a lin h a do tempo é possív el
iden tificar um “em si”, ou sej a, o bairro quase como uma estrutura. M as, ain da uma
v ez mais ter-se-á que sublin h ar o quase.

I n v estig uei també m duas estruturas importan tes n a atualidade, para


compreen der as metamorfoses do bairro n a metró pole: O C en tro de T radiç õ es
N ordestin as e a Escola de Samba M ocidade Aleg re.

Para os propó sitos deste estudo foi essen cial a recon stituiç ão aerofotog ramé trica
do setor da v á rzea do T ietê que, partin do do C an al do I n h aú ma, seg ue em direç ão à s
colin as terciá rias da pré -C an tareira. Efetuamos tal operaç ão para os an os de 1 9 3 0 com
base n o v ô o Sara B rasil. Esta documen taç ão permitiu uma recon stituiç ão em duas
escalas: 1 : 2 0 .0 0 0 e 1 : 2 .0 0 0 . Para o an o de 1 9 5 4 , fon te SAC S, foto 1 0 8 , escala 1 : 2 0 .0 0 0
e, para o an o de l9 9 4 , fon te SAC S, foto 3 4 , escala 1 : 2 0 .0 0 0 .

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En trev istas e documen tos, estes de teor e qualidade div ersas, são o suporte da
an á lise que se seg ue. Estão sen do especialmen te v alorizados os relatos colh idos por
pesquisa direta. Eles con duzem a uma in terpretaç ão de teor qualitativ o e, em “ciê n cias
h uman as e sociais o sen so do qualitativ o é con diç ão de eficiê n cia”64.

C omo era n ecessá rio circun screv er uma problemá tica pró pria do bairro n o
processo de urban izaç ão, torn ou-se imperativ o recolh er certas in formaç õ es sobre a
in dú stria em São Paulo.

F oi con sultado o “C atá log o de I n dú strias Paulistas”, publicado pelo


D epartamen to de Estatística do Estado de São Paulo em 1 9 4 7 . As in formaç õ es
referem-se a 1 9 4 5 . F oram coletadas in formaç õ es de cada estabelecimen to com n ome
da empresa, g ê n ero de ativ idade, an o de fun daç ão, en dereç o, capital in v estido e o
n ú mero de operá rios. Os dados foram ag reg ados por localidade seg un do o ramo de
ativ idades, con forme os crité rios de coleta do D epartamen to de Estatística.

As localidades especificadas con stituem a base g eog rá fica da an á lise. Elas foram
defin idas em correspon dê n cia ao teor con ceitual da pesquisa. São elas: San ta Efig ê n ia,
B om R etiro, C ampos Elíseos, San ta C ecília, B arra F un da, Perdizes-Pompé ia, Á g ua
B ran ca, Lapa, C asa V erde, Limão e F reg uesia do Ó .

V isan do org an izar as in formaç õ es foram con struídas as seg uin tes tabelas:

- Etapas de implan taç ão do con j un to das ativ idades in dustriais por localidade, em

1 9 4 5 ;

- R amos da ativ idade in dustrial por localidade, em 1 9 4 5 ;

- R amos da ativ idade in dustrial por localidade, em 1 9 5 6 ;

- M on tan te do in v estimen to e n ú mero de operá rios por localidade, em 1 9 4 4 .

N os mapas das localidades estão datadas as implan taç õ es con forme os ramos.

As in formaç õ es de 1 9 5 2 obedecem a crité rios do I B G E, que são diferen tes das


in formaç õ es utilizadas para 1 9 4 5 . Essa diferen ç a impô s certos procedimen tos para
prosseg uir a an á lise, os quais implicaram n ov as modalidades de ag reg aç ão e de
ex purg o das in formaç õ es. Os mesmos cuidados se impuseram à utilizaç ão das
in formaç õ es relativ as a 1 9 6 5 , cuj a fon te é o I B G E.

64
C AN D I D O , An t on io. O s p a rc e iros d o rio B on it o: e s t ud o s ob r e o c aip ir a p aulis t a e a t r an s f or m aç ã o d os s e us
m e ios d e vid a. R io d e J an e ir o: L ivr ar ia J os é O ly m p io E d it or a, 1 9 6 4, p .5 .

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O L u g ar s em P ais ag em

- É uma multidão de carro, n ão dá prá atrav essar a rua! Assim se ex pressav a a


v elh in h a em meio a um trâ n sito que n ão tran sitav a, mas que també m n ão permitia
atrav essar a av en ida. Até mesmo en tre os mais j ov en s era tarefa difícil, arriscada. É
preciso ser á g il, ter n ascido j á assim n o meio de tan tos carros, para poder
n aturalmen te en fren tá -los todos os dias. C laro, porque aqui e ali, alg un s, os mais
afoitos, metiam-se en tre ô n ibus, camin h õ es, carros pequen os e g ran des. En tre v an s;
ah !, as v an s, apin h adin h as de g en te com um som muito alto realizan do a prosa e
h umor dos pag odeiros. Os pon tos de ô n ibus sim, estes sim tin h am g en te: eram
mulh eres com sacolas daquelas que elas sempre carreg am.

M en in os e men in as v oltan do da escola. Os men ores com as desaj eitadas


moch ilas, os mais mocin h os apen as com cadern os meio amarrotados. T odos mais ou
men os relax ados me pareciam.

T eriam j á perdido a h ora? Ao que parece, n esse an dar da carruag em, j á h av iam
sido iden tificados por mais de um quilô metro, talv ez, todos os ô n ibus alin h ados. Log o,
é melh or n ão “stressar”.

Aqui e ali estav a o barzin h o.

Q uase todo pon to de ô n ibus tem o seu.

Os h omen s, só h omen s en tram.

Põ em um trocado n o balcão e pron to! Lá v em a bran quin h a.

O ch ão é j á uma poç a mal ch eirosa de bran quin h a misturada com outros ch eiros.

H av erá san to para tan tos g oles?

As pessoas, ah ! e a v elh in h a que queria atrav essar?

Aqueles que con seg uem atrav essar e outros que por ali circulam n as calç adas
esburacadas, desn iv eladas, in do até perder de v ista, são moradores.

Aqui é o lug ar deles.

Pen san do bem, tudo v ai. T em ruas e av en idas que tudo só v ai.

Parece uma espin h a de peix e cuj o rabo ficou en talado en tre dois “mon umen tos”
de São Paulo, opostos um ao outro: O J orn al O Estado de São Paulo e o C arrefour. A
cabeç a do peix e está log o ali, a um quilô metro, n o larg o que h á pouco mais de

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cin qüen ta an os tem um pon to de ô n ibus, posto de g asolin a, alg un s barzin h os,
barbeiro, den tista e que h á un s quaren ta an os tem pon to de tá x i e despach an te. Os
ban cos estão n as imediaç õ es.

D e un s tempos mais recen tes para cá , começ aram a aparecer aqui e ali umas
mesin h as para trocar pulseira de reló g io, v en der tampin h as de fog ão e n eg ocin h os da
C h in a.

É g en te para todo lado.

O ô n ibus ch eg a ch eio.

N a padaria o pãozin h o que v ai para o j an tar e os estudan tes que passam em


g rupos simpá ticos in do para a escola n oturn a, parecen do muito aleg res são, em
v erdade, a ú n ica beleza.

Aqui, n a cabeç a do peix e, tudo v ai e també m v em. En tão n um farol de trê s fases
misturam-se n uma desordem muito orden ada, direç õ es e sen tidos: os que só passam,
os que ch eg am, os que v ê m mas n ão v ão até o rabo do peix e.

O coman do eletrô n ico orien ta n os mín imos detalh es os motoristas, com suas
má quin as, e as pessoas, ag ora simplesmen te tran seun tes.

Sem n en h um esforç o sobressai aqui pela mon umen talidade a escola pú blica, que
in teg ra pré -escola e en sin o de primeiro e de seg un do g raus, a I g rej a de San to An tô n io
e o C olé g io das F reiras.

Eram dezoito h oras em um dia de seman a. A n oite começ av a a cair e em uma


h ora o v azio começ aria a aparecer. C laro que os pon tos de ô n ibus teriam g en te por
mais tempo.

Estav a eu n o B airro do Limão, ag ora, n ada mais que um frag men to da metró pole
de São Paulo.

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REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO
EIX OS V IÁ RIOS
B AI RRO DO LI M Ã O
F ERROV I AS
RODOANEL RODOV I AS

M a p a d a DERS A ( 1 9 9 7 ) m o s t r a o s p r i n c i p a i s s i s t e m a s d e t r a n s p o r t e s r e g i o n a i s . Os
r io s P in h e ir o s e T ie t ê fic a r a m n o c e n t r o d e s s a m a c r o - e s t r u t u r a d e c ir c u la ç ã o v iá r ia ,
M ANC H A U RB ANA
p a r a a q u a l e s t á s e n d o p r o j e t a d o e c o n s t r u í d o , e m a l g u n s t r e c h o s , o Ro d o a n e l .

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