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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

RODAS DE CONVERSA BAKHTINIANA

O GROTESCO DE NOSSOS TEMPOS:


VOZES, AMBIENTES, HORIZONTES

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Copyright © Autoras e Autores


Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos
autores.

Rodas de Conversa Bakhtiniana

O grotesco de nossos tempos: vozes, ambientes, horizontes. VIII Rodas de


Conversa Bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021. 1823p.

ISBN 978-65-5869-596-7

1. Rodas de conversa Bakhtiniana. 2. Estudos bakhtinianos. 3. Grotesco. 4.


Olhando o futuro. I. Autoras/Autores. II. Título.

CDD – 410

Capa: Petricor Design


Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana
Cláudia Bortolozzi Maia (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello
(UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luís Fernando Soares Zuin
(USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO DE NOSSOS TEMPOS:


VOZES, AMBIENTES, HORIZONTES

VIII CÍRCULO - RODAS BAKHTINIANAS


15, 16 e 17 de novembro de 2021
Universidade do Estado do Pará [UEPA]
Grupo de Estudos de Linguagens e Práticas Educacionais da Amazônia
[GELPEA]
Grupo de Estudos do Gênero do Discurso [GEGe]

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Organização e apoio:

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

TRÊS ANOS DE ESPERA PELO VIII CÍRCULO RODAS


BAKHTINIANAS: ALGUNS PONTOS

Chegou novembro, mês de aniversário de nascimento de


Mikhail Bakhtin – 17 de novembro de 1895. Mês de realização do
nosso VIII Círculo rodas bakhtinianas com o tema “O grotesco dos
nossos tempos: vozes, ambiente e horizontes”, nos dias 15, 16 e 17
de novembro de 2021.
Foram três anos de espera desde VII CÍRCULO - Rodas de
Conversa Bakhtiniana: fronteiras, realizado na cidade de Cascavel
no Estado do Paraná, quando decidimos contemplar como local do
evento, a região amazônica, mais precisamente a cidade de Belém
do Pará.
A razão dessa demora foi a doença por Coronavírus, que se
expandiu velozmente no início de 2020, quando ocorreria o Rodas,
de forma presencial, em uma das capitais da Amazônia. A
propósito, é lamentável a lembrança que chegamos a mais de
600.000 vidas ceifadas por decisões tomadas nesses últimos anos
pelo governo neofacista que temos em nosso país. Nesse ano de
2021, ainda estamos denunciando com nossas VOZES:
a) não estamos em uma pretensa normalidade que os fascistas
e os neoliberais tanto propagam;
b) devemos dar voz à ciência, às pesquisas que mostram que
não há uma cura preventiva e que esta só serviu para enriquecer
uma parte desses algozes do povo brasileiro, como os dirigentes da
“Prevent Senior”, como anuncia o parecer da Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid. Lembremo-nos também
que a Amazônia, mais precisamente Manaus, foi o laboratório do
experimento vil e fúnebre dos militares e dos médicos nazistas
brasileiros com o medicamento da hidroxicloroquina. Até hoje o
famigerado Conselho Federal de Medicina continua justificando
suas ações perniciosas
c) devemos insistir no Fora Bolsonaro que mente e convoca
seus seguidores fascistas a estarem nas ruas.

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d) devemos questionar as redes sociais, grandes propagadoras


de mentiras, particularmente no período de eleição de Bolsonaro e
no período em que parte da população ficou em casa.
A despeito do que propagam, 2020 e 2021, anos fortes dessa
pandemia, nos trouxe muita consciência e resistência. Isso sim em
nossa memória nunca passará! Nunca esqueceremos as mortes, as
sequelas, a ausência do trabalho na escola, a quantidade de pessoas
que continuaram trabalhando, nas ruas, o desprezo para com a
vida, para com a saúde da maioria do povo brasileiro. As sequelas
permanecem, a desorganização, a fome, o elevado grau de
desumanidade e a crescente pobreza do povo não nos farão
esquecer.
Nesse contexto, realizaremos o nosso VIII Rodas em Belém,
capital da Amazônia paraense. Capital da Cabanagem, das
mangueiras, do círio de Nazaré, das narrativas da Matinta Perera e
da Cobra grande e de muitas outras que representam a região.
Representam os encantados e encantamentos dos povos da floresta,
dos moradores ribeirinhos, das comunidades indígenas e
quilombolas.
Nossa região, está nos noticiários nacionais em razão da
denúncia de invasões de terras indígenas, em razão da “Amazônia
em chamas”. E se se os estudos arqueológicos estiverem certos, os
povos originais habitam a região – conforme pinturas rupestres
encontradas no sítio de Chiribiquete, atual Amazônia colombiana
– há cerca de 19.000 anos e há cerca de 11.000 anos no Sítio da Pedra
Pintada, em Monte Alegre, no Estado do Pará. Essas informações
nos dão conta de quem são os verdadeiros donos, os povos da
floresta e não os latifundiários, as grandes corporações
transnacionais, os empresários regionais, os capangas e os
pistoleiros que defendem o agronegócio, o hidronegócio, o
mineral-negócio, o carbono-negócio. Essas informações nos dão
conta de que não é uma região desabitada e que os povos que
vivem nela garantem a sua sobrevivência, possuem saberes, sabem
coletar, pescar, caçar, colher frutos, curar-se das doenças e,

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sobretudo, sabem muito bem proteger e garantir a sobrevivência


das matas, dos animais, dos rios e igarapés e de nossas tradições.
E são nesses ambientes que construiremos nossas vozes, novos
horizontes para o nosso país, inspirando-nos em Bakhtin para
melhor compreender a realidade, para transformá-la. Que nossas
vozes sejam pronunciadas, que nossos horizontes sejam
construídos, encerremos 2021 com a construção de uma nova
Nação, que encerre a opressão, a pobreza e o capitalismo periférico
brasileiro.
Chega de espera, vamos fazer a hora acontecer do nosso VIII
CÍRCULO RODAS BAKHTINIANAS.

José Anchieta de Oliveira Bentes, novembro de 2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO DOS NOSSOS TEMPOS

Bem-vindos bakhtinianos e bakhtinianas de todo Brasil!

Este site reúne todas as informações que você precisa para


participar do VIII Círculo - rodas de conversas bakhtinianas que
ocorrerá nos dias 15, 16 e 17 de novembro de 2021.

Nos colocamos em diálogo com outras vozes - dos movimentos


sociais indígenas, quilombolas, lgbtqia+, ribeirinhos, de mulheres,
de pessoas com deficiência, de negros e de outras categorias
oprimidas; dialogando sobre os ambientes - os cronotopos - dos
novos tempos e construir novos horizontes de futuros.

Em sua oitava edição, o Círculo, por meio do tema “O grotesco dos


nossos tempos: vozes, ambiente e horizontes”, enfoca, basicamente,
três eixos temáticos, que denominamos de arenas de debates, a
saber: (i) “vozes”; (ii) “ambientes” ; e (iii) “horizontes” .

O evento pretende provocar com o tema do “grotesco”, um tema


de múltiplos sentidos, significados e de variadas possibilidades
para reflexão sobre os nossos tempos. Não se trata – não é
adequado – reduzir, restringir os sentidos e possibilidades,
precisamos montar como centro, como referência, a categoria
bakhtiniana, mas em conexão com os múltiplos sentidos teóricos já
inventados de “grotesco”, particularmente, os sentidos do senso
comum, sempre em conexão com a complexidade do mundo real
em que vivemos.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

HISTÓRICO

O I CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana aconteceu de 07 a


09 de novembro de 2008 na Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar), para comemoração do aniversário de nascimento do
filosofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975). No evento discutiu-se
15 temas: (i) Bakhtin e a dialogia; (ii) Bakhtin e a ideologia; (iii)
Bakhtin e gêneros do discurso; (iv) Bakhtin e a subjetividade; (v)
Bakhtin e a autoria e estilo; (vi) Bakhtin e estética; (vii) Bakhtin e
cultura ;(viii) Bakhtin e marxismo; (ix) Bakhtin e carnavalização; (x)
Bakhtin e o círculo de Bakhtin; (xi) Bakhtin e a educação; (xii)
Bakhtin e o humanismo; (xiii) Bakhtin e a mídia; (xiv) Bakhtin e os
grupos sociais; (xv) Bakhtin e a análise do discurso.

o II CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: “O


PENSAMENTO BAKHTINIANO NA ATUALIDADE” aconteceu
de 6 e 8 de novembro de 2009, na UFSCar, e teve como subtemas

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ou provocações: (i) As ideologias contemporâneas com Bakhtin; (ii)


O humano e as subjetividades na contemporaneidade”; e (iii) A
educação e dialogia na atualidade.

o III CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: "BAKHTIN E A


ATIVIDADE ESTÉTICA: NOVOS CAMINHOS PARA A ÉTICA"
aconteceu de 05 a 07 de novembro de 2010, na UFSCar, com
intenção de ‘intercruzar’ a esfera estética com a ética, a partir das
imagens e da corporeidade que materializam os discursos se
traduziu nos subtemas: “A estética contemporânea sob o signo das
imagens” e “A corporeidade e as exigências estéticas nas relações
no contemporâneo”.

o IV CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: “NOSSO ATO


RESPONSÁVEL”, aconteceu de 15 e 17 de novembro de 2012, na
UFSCar, tendo três subtemas: (i) Sujeito contemporâneo no mundo
contemporâneo; (ii) Mídia como lugar das novas Estéticas; (iii) Ato
Político como ato Responsável.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o V CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: “PRAÇA


PÚBLICA. MULTIDÃO. REVOLUÇÃO. UTOPIA”, aconteceu de
13 a 15 de novembro de 2014, na UFSCar, tendo como subtemas as
obras “Estética da Criação Verbal”, “Marxismo e filosofia da
linguagem”, “A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais” e “A construção da
Enunciação e outros ensaios”.

o VI CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: “LITERATURA,


CIDADE E CULTURA POPULAR”, aconteceu de 07 a 09 de
novembro de 2016, em Recife e Olinda, no Centro de Artes e
Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, a partir
dos seguintes eixos: “A literatura na estética do cotidiano”; “O orbe
estético como materialização da ética”; A cidade como lugar de
constituição dos atos dialógicos; “Os espaços públicos na produção
de sentidos e lutas ideológicas”; “As festas populares de renovação

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da vida”; “A cultura popular singularizada na concretude do


existir”.

o VII CÍRCULO - Rodas de Conversa Bakhtiniana:


“FRONTEIRAS”, aconteceu de 12 a 14/11/2018 em Cascavel-PR, na
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), tendo
quatro eixos temáticos: (i) As fronteiras entre as classes sociais na
sociedade neoliberal – fronteiras entre estrutura, infraestrutura e
superestrutura no cronotopo contemporâneo: armas para abrir
fronteiras entre as ideologias dominantes e as contra-ideologias; (ii)
O poder da literatura no apagamento das fronteiras entre as
línguas, as fronteiras entre as literaturas e fronteiras entre as
concepções do mundo na literatura; (iii) As fronteiras
abertas/possíveis entre a teoria bakhtiniana e o ensino da língua e
literatura: retratar e refletir; e (iv) As fronteiras entre os conceitos
teóricos e o mundo real: entre as salas de aula e os livros.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Comissão organizadora 2021

Coordenação geral

Profa. Alline Rufo (UFSCar)


Profa. Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui (UEPA)
Prof. Guilherme do Val Toledo Prado (UNICAMP)
Profa. Helen do Socorro Rodrigues Dias (UEPA)
Prof. Huber Kline Guedes Lobato (UFPA)
Profa. Josane Daniela Freitas Pinto (UEPA)
Prof. José Anchieta de Oliveira Bentes (UEPA)
Profa. Liana Arrais Serodio (UNICAMP)
Prof. Nathan Bastos de Souza (UFSCar/UNIPAMPA)
Profa. Nelita Bortolotto (UFSC)
Profa. Marisol Barenco (UFF)
Profa. Rita de Cassia Almeida Silva (UEPA)
Profa. Rita de Nazareth Souza Bentes (UEPA)
Profa. Sueli Pinheiro da Silva (UEPA)
Prof. Valdemir Miotello (UFSCar)
Profa. Vanessa França Simas (UNICAMP)

Comitê científico

Profa. Alessandra da Costa Abreu (UERJ)


Prof. Augusto Ponzio - Università di Bari "Aldo Moro"
Profa. Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui (UEPA)
Profa. Dinair Barbosa de Freitas (UEPA)
Profa. Fabiana Giovani (UFSC)
Prof. Flávio Henrique Moraes (UFSCar)
Prof. Guilherme do Val Toledo Prado (UNICAMP)

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Prof. Hélio Márcio Pajeú (UFPE)


Prof. Huber Kline Guedes Lobato (UFPA)
Profa. Josane Daniela Freitas Pinto (UEPA)
Prof. José Cezinaldo Rocha Bessa (UERN)
Profa. Liana Arrais Serodio (UNICAMP)
Prof. Luciano Ponzio - Università del Salento, Lecce
Prof. Mateus Yuri Passos (UMESP)
Profa. Marisol Barenco (UFF)
Prof. Nathan Bastos de Souza (UFSCar/UNIPAMPA)
Profa. Nanci Moreira Branco (UFSCar)
Profa. Nelita Bortolotto (UFSC)
Profa. Priscila de Souza Chisté (IFES)
Profa. Rita de Cassia Almeida Silva (UEPA)
Profa. Rita de Nazareth Souza Bentes (UEPA)
Profa. Sandra Moraes da Silva Cardozo (UFRR)
Profa. Sueli Pinheiro da Silva (UEPA)
Profa. Suzanny Pinto Silva (UEPA)
Profa. Tatiana Aparecida Moreira (IFES)
Prof. Valdemir Miotello (UFSCar)
Profa. Valéria Crístian Soares Ramos da Silva (UEPA)
Profa. Vanessa França Simas (UNICAMP)
Profa. Vania Maria Batista Ferreira (UEPA)

Comissão de monitoria

Prof. Nathan Bastos de Souza (UFSCar/UNIPAMPA)


Profa. Dinair Barbosa de Freitas (UEPA)
Profa. Alline Rufo (UFSCar)
Profa. Liana Arrais Serodio (UNICAMP)
Prof. Guilherme do Val Toledo Prado (UNICAMP)
Profa. Vanessa França Simas (UNICAMP)

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Comissão de informação e comunicação

Profa. Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui (UEPA)


Prof. Huber Kline Guedes Lobato (UFPA)
Profa. Josane Daniela Freitas Pinto (UEPA)
Profa. Marisol Barenco (UFF)

Comissão de acessibilidade

Profa. Letícia Silva dos Santos (UEPA)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

PROPOSTA

O encontro com a palavra do outro nos encharca de


experiências outras e nos permite o exercício da interpretação
no coletivo. Neste VIII Círculo - Rodas de Conversa
Bakhtiniana – 2021, nos dias 15, 16 e 17 de novembro, temos
encontro marcado para uma conversa sobre o grotesco de
nossos tempos contemporâneos. Ângulo virtuoso para, com
Bakhtin, adensarmos nossa compreensão do homem social.
Fica o convite!

Como organizamos o evento:

Serão quatro ARENAS e quatro RODAS DE CONVERSA,


sendo a última delas de encerramento, acolhendo palavras de
todas as pessoas participantes do VIII Círculo – Rodas de
Conversa Bakhtinianas.

As ARENAS são momentos de plenárias em que ocorrem as


discussões iniciais. Para estas, convidamos bakhtinianos ou
bakhtinianas a fazerem falas dialogadas que provoquem os
participantes a respeito da temática do VIII Círculo, estando
assim compostas:

1) Arena de abertura: análise da conjuntura “O grotesco dos


nossos tempos”

2) Arena dialógica I: “O grotesco dos nossos tempos: vozes”

3) Arena dialógica II: “O grotesco dos nossos tempos:


ambientes”

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

4) Arena dialógica III: “O grotesco dos nossos tempos:


horizontes”

As RODAS DE CONVERSA são formadas logo após o evento


das ARENAS, contendo de 15 a 20, um coordenador e um
anfitrião. A plataforma de acesso será pelo Google Meet.

Todas as rodas discutirão, simultaneamente, os eixos


temáticos. Inicialmente, o coordenador ou coordenadora faz
uma fala de aproximadamente cinco minutos para levantar
questões, a fim de incitar a participação de todos. Em seguida,
abrem-se inscrições para cinco conversadores que terão até
cinco minutos para fazer uma fala.

O primeiro inscrito fala, sem interrupções. Ao término, não


há comentários à sua fala e o coordenador ou coordenadora
chama o segundo inscrito, que faz sua fala e assim
sucessivamente. Terminada a lista de inscritos, outra lista é
feita, para quem desejar falar.

Dessa forma, em razão do tom de conversa, justificamos que


nas rodas de conversa não ocorrerão “Comunicações orais”
ou apresentações formais de trabalhos.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

PROGRAMAÇÃO

Dia 15 - segunda-feira

Tarde

Arena de abertura: Análise de conjuntura: o grotesco dos nossos


tempos - (18h00)

Convidadas e convidados:
Luiz Marcos de França Dias - Comunidades quilombolas: vida em
territórios coletivos ancestrais
Wilson Queiroz - Educação e africanidades
Karina Ferro Otsuka - Militante das comunidades tradicionais caiçaras
Vanderley Ribeiro - Pescadores da Ribeira
Mônica Brito - Coletivo de mulheres negras Maria Maria Comunema de
Altamira XINGU
Timóteo Verá Tupã Popygua - Existe Guarani em São Paulo
Gleyson Silva de Oliveira - ONG Olivia LGBTQIA+
Cândido Grzybowski - Diretor do Ibase e organizador intelectual
orgânico do Fórum Social Mundial

Mediador:
José Kuiava (UNIOESTE)

Dia 16 - terça-feira

Manhã

Arena dialógica I: “O grotesco dos nossos tempos: vozes” - (8h30


– 9h30)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Convidado: Prof. Augusto Ponzio (Università di Bari, Bari)


Mediação e tradução profa. Marisol Barenco (UFF)
Roda de conversa I (9h30 – 12h00)

Tarde

Arena dialógica II: O grotesco dos nossos tempos: ambientes” -


(14h - 15h00)
Convidada: Profa. Pampa Olga Arán (Universidad Nacional de
Córdoba)
Mediação e tradução Prof. Nathan Bastos de Souza
(UFSCAR/UNIPAMPA)
Roda de conversa II (15h - 17h30)

Noite

Programação cultural: (18h - 20h)


Lançamento de livros

Dia 17 - quarta-feira

Manhã

Arena dialógica III: “o grotesco dos nossos tempos: horizontes” -


(8h30 – 9h30)
Convidados: Prof. João Wanderley Geraldi (UNICAMP) e Prof.
Valdemir Miotello (UFSCAR)
Roda de conversa III (9h30 - 12h)

Tarde

Roda de conversa de encerramento: avaliação e


encaminhamentos futuros (14h - 15h30)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

1ª CIRCULAR

VIII CÍRCULO – RODAS DE CONVERSA


BAKHTINIANA 2021

15, 16 e 17 de novembro de 2021


Bakhtinianos de todas as partes do mundo,
Com o desejo de nos encontrarmos – virtualmente – ainda em 2021
preparamos uma proposta um pouco diferente para estarmos
juntos em pensamento mesmo que com os
corpos em lugares diferentes na geografia do mundo. Esta é a
primeira Circular do vindouro VIII Círculo – Rodas de Conversa
Bakhtiniana 2021. O evento acontecerá em formato virtual,
pela primeira vez, em 15, 16 e 17 de novembro de 2021. O tema que
nos mobilizará para pensar coletivamente é “O GROTESCO DOS
NOSSOS TEMPOS: VOZES, AMBIENTES E HORIZONTES”.
Em um momento tão inédito como o atual na história de nossas
gerações, no qual uma pandemia corta nossa carne e nos faz ver de
perto a morte, convocamos a pensar os sentidos
que o GROTESCO pode adquirir nestes tempos e nas
possibilidades de pensar na vida, como resposta, como resistência,
como estar no mundo eticamente. Como os escritos bakhtinianos
nos ensinam, o grotesco é lugar de inserção dos valores
contraditórios, em luta, é nascedouro de ambivalências. Nesse
sentido, as VOZES, os AMBIENTES e os HORIZONTES que podem
ser instaurados a partir da reflexão sobre o GROTESCO DOS
NOSSOS TEMPOS entram na ordem do dia e nos fazem responder
com toda a forma de palavra de ordem que possamos
proclamar. Quais são as suas palavras para responder a este
mundo?
Assim, queremos com esse RODAS compreender onde e como as
forças libertárias de nossos dias nascem, se nutrem, vivem, enfim;

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

e como elas podem ser encontradas nestes dias de tanta treva e


temor. Queremos convidar a cada um de vocês a estudar os textos
bakhtinianos e deles vertermos uma compreensão do presente a
partir desses lugares de observação que anunciamos.
Para que tudo se concretize, em breve teremos um site com todas
as informações a respeito do evento. As inscrições acontecerão nos
dias 06 e 07 de setembro e o custo será de 30,00 reais por
participante. Comece, quando possível, seu rascunho para uma
escrita de um texto entre 3 e 5 páginas que desenvolva essa temática
central, será um gosto receber cada um, depois publicaremos, como
sempre, em um ebook depois do evento. O mais importante
de tudo é que queremos conversar sobre esse tema, venha
preparado, então.
Saudações bakhtinianas, 25 de junho de 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

2ª CIRCULAR

VIII CÍRCULO – RODAS DE CONVERSA


BAKHTINIANA 2021

15, 16 e 17 de novembro de 2021


Como dissemos em nossa primeira Circular, em 2021 teremos uma
edição diferente do nosso querido Rodas de Conversa Bakhtiniana.
Reserve a data entre os dias 15, 16 e 17 de novembro de 2021 e
venha conosco pensar coletivamente “O GROTESCO DOS
NOSSOS TEMPOS: VOZES, AMBIENTES E HORIZONTES”.
Para irmos entrando no espírito do RODAS, convidamos você a
postar em nossas redes sociais suas fotos com seus parceiros de
reflexão, com aqueles amigos com que você se encontrou em outros
Rodas, amigos com quem gostamos tanto de estar juntos, de
abraçar...
Que fotos têm aí em seus arquivos e que você gostaria de
compartilhar conosco, para aquecer com um pouco de amor nossos
olhos cansados de telas?
Fica aí o convite: postar fotos de qualquer dos Rodas de que você
participou em nossas redes sociais (Instagram e facebook:
@rodasdeconversabakhtiniana). Ah, use a hashtag
#euvounorodas2021 e marque nossos perfis no instagram e no
facebook! Esperamos, ansiosos, ver a todos e a cada um dos
parceiros nessas sendas bakhtinianas, de vida e de arte.

Saudações bakhtinianas,

12 de julho de 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

3ª CIRCULAR

VIII CÍRCULO – RODAS DE CONVERSA


BAKHTINIANA 2021

15, 16 e 17 de novembro de 2021


Coletividade bakhtiniana das diferentes paragens do mundo!
O encontro com a palavra do outro nos encharca de experiências
outras e nos permite o exercício da interpretação no coletivo. Neste
VIII Círculo
- Rodas de Conversa Bakhtiniana – 2021, nos dias 15, 16 e 17 de
novembro, temos encontro marcado para uma conversa sobre o
grotesco de nossos tempos. Ângulo virtuoso para, com Bakhtin,
adensarmos nossa compreensão do mundo em que vivemos. Fica
o convite!

Como organizamos o evento:

Serão quatro ARENAS e quatro RODAS de CONVERSA,


acolhendo palavras de todas as pessoas participantes do VIII
Círculo – Rodas de Conversa Bakhtinianas.
As ARENAS são momentos de plenárias em que ocorrem as
discussões iniciais. Para estas, convidamos bakhtinianos ou
bakhtinianas a fazerem falas dialogadas que provoquem os
participantes a respeito da temática do VIII Círculo, estando assim
compostas:

1) Arena de abertura: análise da conjuntura “O grotesco dos nossos


tempos”
2) Arena dialógica I: “O grotesco dos nossos tempos: vozes”
3) Arena dialógica II: “O grotesco dos nossos tempos: ambientes”
4) Arena dialógica III: “O grotesco dos nossos tempos: horizontes”

As RODAS de CONVERSA são formadas logo após as ARENAS,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

contendo conversadores, um(a) coordenador(a) e um(a)


anotador(a). A plataforma de acesso será pelo Google Meet.
Dessa forma, em razão do tom de conversa, justificamos que nas
rodas de conversa não ocorrerão “Comunicações orais” ou
apresentações formais de trabalhos.
Nos próximos dias divulgaremos mais uma circular com todas as
informações necessárias para fazer a inscrição no evento. Por
enquanto, você pode ir pensando e ensaiando o texto que vai
inscrever para o caderno de estudos. Circularemos as instruções
específicas em breve.

Saudações bakhtinianas,

17 de agosto de 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

4ª CIRCULAR

VIII CÍRCULO – RODAS DE CONVERSA


BAKHTINIANA 2021

15, 16 e 17 de novembro de 2021


INSCRIÇÃO PARA O VIII CÍRCULO – RODAS BAKHTINIANAS
O GROTESCO DOS NOSSOS TEMPOS: VOZES, AMBIENTES E
HORIZONTES

Toda hora é boa hora para “pôr a palavra a circular”; o ambiente e


horizontes, nos nutrimos na amorosidade coletiva. Apareça! Seja
mais um, uma, ume!

ORIENTAÇÕES PARA INSCRIÇÃO


(EVENTO ONLINE)

O que é requerido:
1. o desejo de pôr a sua “palavra” para circular;
2. como?
i. selecione um tema (do Rodas) e solte o seu dizer;
ii. o seu dizer pode ser em linguagens verbal ou visual (no limite
de 3 a 5 páginas);
iii. a autoria (individual) limita-se a uma submissão e a coletiva
(coautoria) a duas no máximo, desde que os coautores
estejam também inscritos no evento;
iv. cada texto pode ter até três autores.
3. os autores devem responsabilizar-se pela revisão do texto a ser
publicado no livro em formato e-book do VIII Círculo - Rodas de
Conversas Bakhtinianas, publicado pela Pedro & João Editores;
4. sugere-se que o texto contemple um pensamento livre dos
participantes sobre o tema do encontro “O grotesco dos nossos
tempos: vozes, ambientes e horizontes” que enfoca, basicamente,
três eixos temáticos que denominamos de arenas de debates, a
saber: (i) “vozes”; (ii) “ambientes”; e (iii) “horizontes”.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

5. colaborar, pagando a sua inscrição no valor de trinta reais (R$


30,00);
6. autorizar o uso de seu nome, sua imagem, voz e/ou entrevistas,
depoimentos captados durante o evento;

Dúvidas e esclarecimentos, envie mensagem para:


8rodasbakhtinianas@uepa.br

Inscrições e outras informações pelo site


paginas.uepa/viiicirculorodasbakhtinianas

Aguardamos você para mais esse encontro de vozes.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SUMÁRIO

A fruição da vida como grotesco 60


Nara Caetano Rodrigues

O grotesco é o mundo 69
Antonio Sergio Vasconcelos Darwich

O genocídio versus o grotesco: uma reflexão inicial 74


Anchieta de Oliveira Bentes e
Rita de Nazareth Souza Bentes

Consciência individual e coletiva: o eu e o outro 79


Renata de Souza França Bastos de Almeida

Linguagem e máscaras identitárias, exigências para 82


inserção no mundo global
Thayze Bezerra Santos

O Brasil grotesco dos nossos tempos patéticos: o 87


realismo grotesco nos poderes planaltinos
José Kuiava

Ria que a coisa é séria: o riso como signo de resistência 94


política nas páginas do jornal sensacionalista
Nara Karolina de Oliveira Silva, Joseilda Alves de
Oliveira e José Cezinaldo Rocha Bessa

NEPALP: círculo de debate, prosa e poesia, riso e 102


resistência, por
Ana Lúcia Machado

“A vida é uma canção infantil”: atos responsivos nas 115


arenas de luta, vozes e ambientes

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Waleska Maria Costa Betini

“Caguei!”: grotesco, medo e desprezo no discurso oficial 128


da Presidência da República
Sandro Viana Essencio

“Cidadão de bem”: uma análise dialógica do discurso 135


de autor(itarismo) (de um) brasileiro
Cláudia Graziano Paes de Barros

“Eu estou te atrapalhando?” Uma análise do grotesco 142


em nossos tempos
Taila Jesus da Silva Oliveira, Myrian Conceição Crusoé
Rocha Sales e Lícia Maria Bahia Heine

“Não tem outra marca?”: Reflexões sobre as vozes do 148


discurso negacionista sobre as vacinas contra a covid-19
Gabriella Cristina Vaz Camargo

“No meu rosto e nas minhas mãos”: vozes que tecem o 155
poema de Ryane Leão
Oldison de Moura Klock, Lindalva Siqueira dos Santos e
Tamiris Machado Gonçalves

“Você sabe com quem está falando?”: o monologismo 162


do discurso das carteiradas no cronotopo pandêmico
Giliandra Aparecida da Cruz Weisshaar e Nivea Rohling

”Demos início a...”: reflexões e refrações de um 172


professor universitário transmorfo
Guilherme do Val Toledo Prado

”Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que idealizam” 178


Vanessa Ferreira Sardinha e Ádria Araújo Costa Godinho
O grotesco como estratégia na fala do presidente 188
Bolsonaro

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ellen Petrech Vasconcelos

A (in)visibilidade do graffiti 199


Tatiana Aparecida Moreira

A analidade do mal: uma análise do Brasil boçal 205


João Vianney Cavalcanti Nuto

A antigrotesco do princípio do baixo material corporal 210


Flavio Henrique Moraes

A beleza em tempos de separação: Efe Godoy, o 212


grotesco e um sonho,
Marisol Barenco

A carnavalização das redes sociais 222


Marcelly Rodrigues Souza

A constituição do corpo grotesco: “padrões” sociais e 225


seus desdobramentos
Caroline Aparecida de Lima

A criança e o compartilhamento de olhares, encontros e 231


enunciações
Pollyana Fernandes de Faria Machado, Adriele da Silva
Freitas Oliveira e Iacy Carvalho Ferreira dos Santos

A desordem e o regresso: a linha dos tempos sombrios 238


Roseane Cristina Costa Amorim e
Erika Suelem da Silva Pereira

A dualidade da creche no mundo pandêmico: bebês que 244


não cabem em protocolos
Vanessa França Simas

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A emoção do riso no retorno presencial à escola 250


Liliam Ricarte de Oliveira

A entonação responsiva PoeArt de verso a verso: o 255


grotesco poético não será silenciado
Teresa Paula de Carvalho Leôncio

A estética grotesca da drag queen Samira Close no 262


ambiente dos jogos digitais
Edmilson dos Santos Flor Junior, Juan dos Santos Silva e
Leila Heloise da Silva Jerônimo

A Expulsão do Paraíso e as Palavras 269


Josias Teodoro Guedes

A força libertária da divulgação científica no combate à 277


grotescidade da desinformação: vozes, ambientes e
horizontes
Urbano Cavalcante Filho e Vania Lucia Menezes Torga

A ilustração e o grotesco: diálogos com Rui de Oliveira e 288


sua obra
Gisele de Assis Carvalho Cabral

A imagem grotesca da publicidade e do consumo 296


pandêmico
Hadassa Freire Gomes Rodrigues e Gianka Salustiano
Bezerril de Bastos Gomes

A imagem grotesca do corpo de Jurema da Pavuna 301


Márcia de Souza Menezes Concencio

A língua estuprada 308


Gabriele Damin de Souza

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A Literatura dialogando com as Vozes Infantis em sua 313


dimensão alteritária e humanizadora
Islen Barbosa Ramos Machado

A literatura infantil no programa de ensino de 321


português da 2ª classe de moçambique: uma análise sob
a perspectiva da filosofia da linguagem
Micaela Sílvia Simão Fondo Covane

A morte e suas vozes: inumeráveis singularidades 328


Victória Louise de Paula Santos Carminatti

A semântica do “novo” (e do “velho”): anotações sobre 337


um mundo desigual,
Nathan Bastos de Souza

Leitura dialógica: uma forma de existência para além de si 344


Ismael Soares Pereira

A subverção/carnavalização da responsabilidade moral 353


do presidente da rebública
Paulo Everton Fernandes da Silva

A tirania é combatida pelo riso e pela coletividade 359


Maria De Fátima Rocha Medina

A toxína dos catetos 369


Dionísio Geraldo Bahule

A-giganta professora 372


Liliane Corrêa Neves Moura
Ambivalência que se transforma entre os sec. XIX e XXI: 376
A cor amarela em foco
Rita de Nazareth Souza Bentes, Analys Vitória Lobo
Simões e Yanca Carolina Silva Silveira

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ambivalência vida-morte na obra do sul-mato- 385


grossense Ilton Silva
Larissa Mendes da Rosa e Aline Angelo Lima

Análise de vídeo: reflexão sobre o encontro do ator 389


Pedro Cardoso com a plataforma Quebrando o Tabu à
luz dos fundamentos do Círculo de Bakhtin
João Vítor Zanato de Carvalho Ribeiro

Apontamentos de leitura sobre a formação do leitor 394


responsivo
Priscila de Souza Chisté Leite

As crianças migrantes estrangeiras: Vozes infans 407


Joaquim Rauber e Alana Morari

As redes sociais digitais como praça pública e lugar para 412


o grotesco
Orlando Silva de Oliveira e Kélvya Freitas Abreu

As relações de força o riso e a dialogia nos entremeios 421


da educação
Edina Antonia Morozesk e Jean Michel Faria

As vozes autorizadas de poder que circulam na 427


sociedade e a dimensão encarnada das políticas
Polyanna Silva Goronci

Aspectos históricos e pressupostos da Pesquisa 435


Participante a partir de entrevista com Carlos Rodrigues
Brandão: uma análise bakhtiniana
Atuação: uma pequena narrativa sobre o incomodante 448
incômodo
Cintia Aparecida Mendes Rosa

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Autoridade, contrapalavra: grotescos em dialogia 455


Victor Batista Branco

Baile de favela: a exaltação e a polêmica em diálogo 462


Dilma Costa Nogueira Dias, Fábio da Conceição Câmara
e Maria Catarina Wanzeler Carvalho

Bakhtin e o círculo pensados via textos multimodais: 471


excedente de visão, a palavra na vida e a palavra na
poesia
Fábio Marques de Souza e Ivo Di Camargo Junior

Bocas tampadas, risos e vozes que escapam do controle 477


Paulo Cesar de Campos e Liana Arrais Serodio

Caleidoscópio Machadiano: A intertextualidade na obra 484


Missa do Galo – Variações sobre um mesmo tema
Thaís Regina Aiello

Carta à Bakhtin: o cotejo do grotesco com a 489


contemporaneidade
Fabiana Giovani

Chapeuzinho Amarelo e o riso: o banquetar-se na obra 498


destinada à infância
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto

Como a professora Mireille Legrand conseguiu parir o 505


gênero artigo acadêmico
Moacir Lopes de Camargos

Como o ritual cunilingus ilumina as ideias 509


Icaro Cesar Cainan da Cunha Claro Olanda

Como ouvir as vozes das crianças? 514

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Vinícius de Luna Chagas Costa

Comunidades interpretativas: diálogos entre o Círculo 520


de Bakhtin e Stanley Fish
Mateus Yuri Ribeiro da Silva Passos

Contradições e limiaridades na Base Nacional Comum 528


Curricular: a leitura em foco no Ensino Médio
Isadora Cássia Lúcio da Rocha e Luciano Novaes Vidon

Corpo, poesia e voz feminina 536


Gleiciane Lage Soares Poubel

Crianças-robôs esteticamente grotescas 545


Patrícia Yumi Fujisawa

Crônicas do corpo: a interdisciplinaridade em cena 552


Magda Renata Marques Diniz e Diana de Oliveira
Mendonça

Da alma das coisas a uma pequena porção de 559


inutilidade: desbravando o universo grotesco
Etelvino Manuel Raul Guila

Da invasão de hospitais à intimidação da imprensa: 573


Análise dialógica e polifônica de charge sobre discurso
do Presidente Jair Bolsonaro
Vanessa Krunfli Haddad

Dança e música: força revolucionária 581


Isaura Maria de Carvalho Monteiro
De quando foi preciso esquartejar o corpo para 590
compreender o Grotesco
Márcia Fernanda Carneiro Lima

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Democracia em vertigem: uma leitura-ensaio do 593


contexto político brasileiro recente à luz da perspectiva
filosófica de linguagem do círculo de Bakhtin
Gabrielle Leite dos Santos, Erica Poliana Nunes de Souza
Cunha e Julianne Pereira dos Santos

Diante da câmera: a lógica do grotesco nos filtros do 601


Instagram
Cefla de Medeiros Gonçalves e Marília Varella Bezerra de
Faria

Discurso da des(informação) e as vozes sem autoria: o 609


perigo das fake news em tempos de covid-19
Edineide da Silva Marques

Do chão de casa ao chão da escola: o grotesco que nos 615


(trans)forma
Rose Fernandes de Souza e Alexandre Vanzuita

Do cotejo do grotesco bakhtiniano na aula de Língua 623


Portuguesa: novas vozes, mesmos ambientes e
horizontes de possibilidades
Maria Izabel de Bortoli Hentz e Fabiana Giovani

Do Piscinão para o mundo: a hodiernidade do grotesco 634


bakhtiniano
Thaís de Souza Lopes Silveira

Dos meus encontros com Gabriel e os ônibus que 640


carregam o mundo
Bruno Muniz Figueiredo Costa

E daí? Poeminha do asco 644


Hélio Márcio Pajeú

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

É tempo de ouvir as vozes grotescas: discussão sobre as 647


produções de mulheres negras, por
Alessandra Barbosa Adão

É urgente carnavalizar para resistir... 657


Nathalia Viana da Mota

Eco repete e Kevelyn carnavaliza: o oficial e o não- 660


oficial nas vozes dos sujeitos da escola
Ana Lucia Adriana Costa e Lopes

Educação e mediação: as vozes a linguagem do grotesco 668


– o discurso indireto livre na escrita do texto de História
em sala de aula do Ensino Fundamental
Mariano Alves Diniz Filho e Edson Nascimento Campos

Educação, tecnologias e desigualdades em tempos de 677


pandemia
Lorena Bischoff Trescastro, Vania Maria Batista
Sarmanho e Vera Lúcia gomes Travassos

El lado oscuro del grotesco bakhtiniano. Fragmentos 683


sobre lo terrible
Ariel Gómez Ponce

Elogio ao amor e à arte em resposta ao Brasil do tempo 691


presente
Roberta Jardim Coube

Em busca de uma filosofia do Grupo de Terça do 697


GEPEC
Maria Natalina de Oliveira Farias, Guilherme do Val
Toledo Prado e Wilson Queiroz
Em rodas crianças e suas palavras: escritas grotescas? 702
Fernanda Camargo Dalmatti Alves Lima

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em tempos do grotesco as muitas vozes silenciadas nas 709


políticas públicas
Iolanda Silva Menezes de Araujo

Encontro de almas, encontro de corpos 715


André Luiz Neves Jacintho

Entre o clássico e o grotesco: corporeidades infantis por 717


uma perspectiva Bakhtiniana
Carolina Silva Gomes de Sousa

Entre o micróbio e a fuzarca: Traços da ambivalência na 723


arte Sul-Mato-Grossense de Lídia Baís
Alan Silus e Juliane Ferreira Vieira

Enunciados tatuados no tempo e no espaço 729


Reinaldo José de Lima

Escola de palhaços – Grotesco e riso na série Irmão do 734


Jorel
Sandra Mara Moraes Lima

Espectro do retrocesso: o grotesco no discurso do voto 739


impresso
Deywela Thayssa Xavier da Silva e Fabiane Everdosa
Tolosa

Eu grotesco... tu grotescas... ele grotesca... nós 746


grotescamos...
Valdemir Miotello

Exclusão/inclusão na educação: o grotesco discurso 755


capacitista de um Ministro da Educação
Ronielson Santos das Merces, Angélica Bittencourt Galiza
e Vania Maria Batista Sarmanho

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Exu: O oposto do novo cânon 764


Ana Carolina de Souza Ostetto e Vito Rollin Prudêncio

Fazer da Cruz Encruzilhada 769


Clara Barenco de Mello Lacerda e Maristela Barenco
Corrêa de Mello

Foram tantas palavras... 777


Francisca Lucélia Saldanha de Sá Pereira

Formação em ambiente não escolar: um diálogo com 782


sujeitos colaboradores em uma empresa de software
Thais Angela Stella

Grotesco para quem? 790


Thaís Fortunato Dalmazzo

Harry Potter e as fake news: ato ético e teoria da 793


dissonância cognitiva
Fabíola Barreto Gonçalves

Haverá um grotesco negativo como forma 799


contemporânea de realismo grotesco? Considerações
sobre forças libertárias em ambiente digital
Adail Ubirajara Sobral e Karina Giacomelli

História e literatura no grande tempo: vozes em diálogo 805


na sala de aula
Letícia Queiroz de Carvalho e Fernanda Pagungue
Moraes

Homossexualidade, vozes e discurso: uma análise da 815


campanha “Não Julgue Beije” da close-up
Erik Luís Sott de Santis e Fagner Fernandes Stasiaki

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Il riso come rigenerazione del mondo. Studi su Bachtin 821


e Propp
Luciano Ponzio

Imagens do Grotesco Hoje 835


Leandro Faber Lopes

Infância e educação: o grotesco em charges na pandemia 840


covid-19
Vania Maria Batista Sarmanho, Lorena Bischoff
Trescastroe Simone de Jesus da Fonseca Loureiro

IWASA’I 848
Jeovani de jesus Couto

Letras potengienses e grotesco: horizontes dialógicos 853


Tacicleide Dantas Vieira e Fernanda de Moura Ferreira

Língua, sociedade e identidade de gênero 862


Verônica Franciele Seidel

Linguagem e vozes sociais: Modos dialógicos de 870


enunciar um dizer
Liédja Lira da Silva Cunha

Linguagens e(m) práticas discursivas: leituras plurais 879


em tempos de pandemia
Vera Lúcia Pires

Links dialógicos entre experiências estéticas e o 890


grotesco na literatura e no cotidiano
Cleunice Terezinha da Silva Ribeiro Tortorelli

Mamilos são Polêmicos. Por quê? 897

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Jonas Reis Moulin, Gleiciane Lage Soares Poubel e Aline


Rosa Valente Vieira

Manifestações do grotesco no espaço educativo 907


Dilza Côco

Mãos em uma babel: vozes que se cruzam no tempo 911


Helen do Socorro Rodrigues Dias

Merval Pereira e as coxas de Lula: O grotesco como 916


forma de jornalismo “político”?
Maria Leopoldina Pereira

Minha vida, meus heróis! 921


Grace Kelly Lopes Lacerda e Camila Caracelli Scherma

Molas no teto 927


Yuri Marx Silva Milagres e Clara Barenco de Mello
Lacerda

Morte e renascimento, ou a metáfora da formação do 933


discurso de resistência: Ensaio em 3 atos
Renata Helena Pin Pucci

Morte e vida: entre a validade objetiva indiferente e a 940


unicidade irrepetível no encontro com o corpo grotesco
Camila Caracelli Scherma

Movimento pendular dialógico 947


Francisco Leilson da Silva
Na capoeira, a ladainha ambivalente 950
Denise Santos Lima

Narrando as ambivalências da vida e nosso processo 954


formativo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Heloísa Helena Dias Martins Proença, Fernanda Camargo


Dalmatti Alves Lima e Maria Natalina de Oliveira Farias

No corpo doente, no corpo torcido, no corpo 961


atravessado: o grotesco bakhtiniano em Frida Kahlo
William Brenno dos Santos Oliveira

No horizonte, a possibilidade do grotesco: O tempo 967


para a alteridade em resposta ao presente
Rafaela Oppermann Miranda

Notas iniciais sobre os referenciais de Língua 971


Portuguesa do município de Natal
Erica Poliana Nunes de Souza Cunha

Notícia em mãos: audiovisual e discurso na educação de 978


surdos
Ericler Oliveira Gutierrez e Ednalva Gutierrez Rodrigues

O aspecto regenerador, o corpo grotesco cósmico e uma 983


visão ampla de vida dos povos originários: leituras
sobre Bakhtin e Ailton Krenak
Fernanda de Moura Ferreira

O azul na tela e na poesia Sul-Mato-Grossense 989


Juliane Ferreira Vieira, Larissa Mendes da Rosa e Tainara
Borges Da Silva

O barroco e o grotesco de nossos dias 992


Rita de Cássia Almeida Silva e Alef Reis Pimentel
O Brasil e a escatologia bolsonarista: grotesco, discurso 1000
político e texto multimodal
Josane Daniela Freitas Pinto

O Cardeal e a camisinha 1006

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Maria Karolyna Rodrigues Silvano e Fabiana Giovani

O conceito de homem em Bakhtin e os dias atuais: o 1011


caos na ordem e a revelação no grotesco
Regina Godinho de Alcântara, Luan Eudair Bridie Neusa
Mara Silveira da Paixão

O corpo e a alteridade da deficiência em chove nos 1017


campos de cachoeira: o grotesco no Marajó?
Huber Kline Guedes Lobato

O corpo e a fome: do riso subversivo ao grotesco nada 1024


ambivalente
Patrícia da Silva Pacheco

O corpo e a voz da pessoa com deficiência como 1031


contrapalavra e resistência ao segregacionismo oficial
Bárbara Cibelli da Silva Monteagudo

O corpo feminino grotesco: a reversão valorativa da 1040


nudez no ativismo do FEMEN
Maria Eduarda Cardoso

O corpo grotesco e o negro: um corpo que existe e 1047


resiste
Alline Duarte Rufo

O corpo grotesco no cinema: A princesa Fiona e a 1053


representação do corpo sob perspectiva do riso
carnavalesco
Ana Carolina Lourenço de Assis
O corpo grotesco que clama por voz 1062
Josemeire Caetano da Silva

O discurso polêmico e grotesco da Ku Klux Klan nestes 1066


últimos tempos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Marcos Alexandre Fernandes Rodrigues

O estilo grotesco na adaptação do ensino remoto nas 1073


universidades em contexto pandêmico
Ana Paula Santos Pimentel e Aline Caroline Castro de
Castro

O festim do grotesco em tempos de reprodução do igual 1080


Juan dos Santos Silva

O gênero discursivo meme: elementos de estabilidade 1086


composicional e estilística grotesca a partir de Bakhtin
Tássia Aguiar de Souza

O grotesco como estratégia de comunicação política no 1094


cenário de combate à COVID-19
Maria Sueli Ribeiro da Silva e Caroline Janjacomo

O grotesco contemporâneo: a construção do corpo 1101


LGBTQIA+ sob a perspectiva do carnaval
Leila Heloise da Silva Jerônimo e Edmilson dos Santos
Flor Junior

O grotesco da “mamadeira de piroca”: vozes em disputa 1106


Rejane Dias Corrêa Machado

O grotesco da vida 1113


Arlete Ribeiro Bonifácio e Heloísa Helena Dias Martins
Proença

O grotesco de nossos tempos: horizontes para o 1119


envelhecimento
Larissa Picinato Mazuchelli

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco de nossos tempos: vozes indígenas em 1128


reexistência
Antonia Zelina Negrão de Oliveira

O grotesco de todos os tempos – nem de antigamente e 1136


nem de agora, indissociável: as vozes das crianças das
classes populares atravessadas pela escola
Daniele Fontam do Nascimento Cerqueira

O grotesco delivery: A identidade contemporânea do 1141


corpo negro no gênero discursivo quadrinhos
Janaína Moreno Matias, Maria da Penha Casado Alvese
Rudson Edson Gomes de Souza

O grotesco dos nossos tempos: A cultura do 1148


cancelamento
Paula Fernanda Paixão Cordeiro e Cristiane Dominiqui
Vieira Burlamaqui

O grotesco dos nossos tempos e de outros tempos: 1156


palavras-chave
Sueli Pinheiro da Silva

O grotesco dos nossos tempos na pauta da formação 1162


docente
Marle Aparecida Fideles de Oliveira Vieira, Maria Nilceia
de Andrade Vieira e Valdete Côco

O grotesco dos nossos tempos: que vozes ouvir na sala 1169


de aula?
André Felipe Pereira de Souza e Ângela Francine Fuza

O grotesco dos nossos tempos: vozes no Ministério da 1174


Educação brasileira
Miguel Costa Silva, Keila De Jesus Morais Lobato e Lilia
Correa Amorim De Souza

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco e o capacitismo no século XXI 1181


Cyntia França Cavalcante de Andrade da Silva e José
Anchieta de Oliveira Bentes

O grotesco em cotejo: O Nariz de Gogol transposto em 1186


Dmitri Shostakovich e pandemia
Bianca Alves dos Reis

O grotesco em tempos pandêmicos: uma reflexão sobre 1193


as charges de João Bosco
Dinair Barbosa de Freitas e Rita de Nazareth Souza Bentes

O grotesco em/na festa* 1198


Rafael da Silva Marques Ferreira

O grotesco no corpo feminino trans: os 1205


feminismos/azmina nas redes sociais digitais como
forma de resistência
Gessica Maiara de Oliveira Silva e Nara Karolina de
Oliveira Silva

O grotesco nos gotejos dos corpos femininos 1212


Karla Daiane Martins

O Grotesco nos nossos tempos: resistência e 1222


transgressão pela palavra poética
Rosiane Pinto Machado

O grotesco pensado enquanto política do nosso tempo 1233


Marcos Alberto Xavier Barros
O grotesco que grita e endoidece os tempos atuais 1238
Miza Carvalho dos Santos

O grotesco que habita nos olhares 1243


Ana Carolina Loureiro Tavares

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco que liberta: vozes da educação infantil 1247


Flávia Nunes de Moraes

O grotesco rito do adeus no cronotopo pandêmico da 1252


Covid-19: a ressignificação de práticas sociais
Vivian Pinto Riolo

O horizonte apreciativo de “porra” na famigerada 1262


reuniao ministerial do Bolsonaro
Vicente De Paula da Silva Martins

O medo do riso 1270


Maria Isabel de Moura

O perigo do apagamento de vozes no ensino da língua 1272


inglesa
Letícia Kondo

O professor, a palavra e o ato ético 1278


Ana Paula Munarim Ruz Lemos

O que cabe na “barriga do tempo”? – tramas de 1285


vivenciamento na temporalidade humana
Nelita Bortolotto e Gracielle Boing Lyra

O que é o grotesco? Primeiras leituras e aproximações 1292


Edson Rodrigo de Azevedo, Cyntia Graziella Guizelim
Simões Girotto e Ana Caroline Chepak de Souza Ferreira

O realismo grotesco 1300


Alef Reis Pimentel

O realismo grotesco e suas forças libertárias 1305


Maria Leticia Miranda Barbosa da Silva

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O retrato grotesco da fome: Uma análise dialógica de 1314


panem at circenses em Jogos Vorazes
Mikaela Silva de Oliveira

O riso e o grotesco na pós modernidade


Roseli Wanderley de Araujo Serra 1319

O riso nos salvará. Aleluia irmão! 1324


Ana Elisa Alves dos Santos

O RISO, O GROTESCO E O TWITTER: o que faz Irmã 1332


Zuleide nessa arena?
Alan Eugênio Dantas Freire

O suicídio de um solitário anônimo: uma análise a 1349


partir da filosofia de mikhail bakhtin
Adenaide Amorim Lima

Órfãos dos nossos tempos 1353


Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui e Taís Salbé
Carvalho

Os corpos sociais e a não indiferença 1360


Neiva de Souza Boeno

Os destroços do realismo grotesco dos nossos tempos: o 1369


riso reduzido entre vozes e ambientes
Andréa Pessôa dos Santos

Os memes: O riso e a ironia presentes nos discursos 1375


neoliberais e a contrapalavra de estudantes das classes
populares
Alessandra da Costa Abreu, Ana Paula da Silva
Conceição Oliveira e Maria Luiza Oswald

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Os meninos à prova de balas e sua armada defensora 1383


Jandara Assis de Oliveira Andrade

Os piquenos do pução na Veneza Maranhense - Vrasil 1390


José Raimundo Campelo Franco

Palavra como Resistência 1398


Ligia Maria da Silva

Pandemônio, pandemia e o projeto de trabalho como 1403


resistência
Ana Cristina Libânio

Paulo, o homem invertido. Quem comunica a vida? 1412


Inez Helena Muniz Garcia e Jose Maria Ferreira De
Oliveira

Pega de surpresa 1419


Maryelle Florêncio Mariano

Política Linguística para a comunidade surda: o 1423


interlocutor surdo abstrato na Lei 10.436/02 (Lei de
Libras)
Simone Lorena da Silva Pereira

Por um ensino da linguagem outro 1430


Érika Christina Kohle

Por uma pedagogia dialógica na educação básica 1436


Vilson Rodrigo Diesel Rucinski e Luiz Ernesto Merkle

Práticas de alfabetização como possibilidade de 1443


emancipação humana
Nayara Rocha Almonfrey

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Processos escolares e sociais de ensino-aprendizagem da 1452


escrita, cidadania e liberdade: como crianças e jovens
compreendem novas interpretações do mundo?
Cecilia M. A. Goulart

Procurando pistas do grotesco 1460


Natália de Abreu Nascimento

Raízes dialógicas no ensaio: arte e responsabilidade 1464


Hélcia Macedo de Carvalho Diniz e Silva

Red Dot Campaing e Campanha Sinal Vermelho: a 1470


interdiscursividade no combate à violência contra as
mulheres
Bruna Panzarini

Reflexões sobre o diálogo e intercorporeidade para o 1477


trabalho clínico com a linguagem
Marcus Vinicius Borges Oliveira

Reflexões sobre traços do grotesco em discursos 1483


religiosos armamentistas no Brasil
Jailson José Dos Santos, Ilcilene Silva e Jakelyne Santos
Apolônio

Responsíveis e responsáveis: o ambiente digital como 1492


espaço de embates ideológicos e a constituição do
sujeito ético
Loraine Vidigal Lisboa

Se não tiver voto impresso, é sinal de que não vai ter 1498
eleição: o grotesco na palavra pública de Bolsonaro e na
resposta de Regis Soares
Letícia da Silva Gonzaga Rolim e Marilene Gomes de
Sousa Lima

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sem dose e sem dó: O retorno das aulas presenciais 1503


dentro do contexto pandêmico
Lygia Nascimento de Almeida e Gisele Teresa Medeiros
Tanaka

Sexualidade na educação: o discurso grotesco sobre a 1509


sexualidade da pessoa com deficiência intelectual
Angélica Bittencourt Galiza e Ronielson Santos das
Merces

SIGNO E SINAL NO ENSINO DA PALAVRA: o 1515


grotesco pedindo espaço na aula de Língua Portuguesa
do 2º ano do Ensino Fundamental
Daniele Aparecida Russo

Sobre o grotesco na voz de uma educadora em tempos 1520


de pandemia
Zelia Inez Lazaro Rodrigues

Temporalidades 1524
Rosiane Gonçalves dos Santos Sandim

Tempos que inspiram mudança: reflexões sobre aulas 1528


remotas no cronotopo pandêmico
Cíntia Daniele Oliveira do Nascimento

Transenunciação 1532
Francisco Leilson da Silva

Transgrediência ecológica: atravessando por orifícios 1535


(in)visíveis
Guilherme Lisboa Morgan

Tudo que nós tem é nós: Contrapalavras na arte e na 1540


vida

52
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

João Paulo Francisco de Souza, Quelselise Rodrigues


Xavier e Raquel dos Santos Candido da Silva

Um banco em Odessa: Uma (in)certa conversa em 1553


Prymorskyi Boulevard
Sara Rodrigues Vieira de Paula e Jader Janer Moreira Lopes

Um dedo de boa prosa com o mestre caiçara Aorélio 1558


Domingues, no contexto de uma pandemia
Solano Rodrigo dos Santos

Um olhar sobre o destronamento 1565


Nanci Moreira Branco

Um ponto de vista 1569


Angélica Duarte da Silva Araujo

Um pouquinho do vivido...só quem estava lá sabe a 1574


intensidade que foi...
Marissol Prezotto

Um presente, quase, contínuo 1579


Luis Carlos dos Santos Patricio e Luz Miguel Pereira

Um texto em construção: a vida em tempos escatológicos 1585


Reginaldo Lima de Moura Muniz
Uma conversa com as marcas do tempo! 1591
Oto João Petry

Violência dos corpos no ambiente escolar e a potência 1595


das vozes infantis: horizontes para uma educação
transformadora
Thatiane Maria Almeida S. Mendes e Gabrielle Leite dos
Santos

53
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Volatilidade do Instagram em tempos pandêmicos 1601


Gianka Salustiano Bezerril de Bastos Gomes, Hadassa
Freire Gomes Rodriguese Priscila Adriana Nascimento
Silva

Voz popular, ambiente carnavalizado e horizontes 1609


emancipatórios no samba O dia em que o morro descer
e não for carnaval: o grotesco carnavalesco dos nossos
tempos
Gustavo Sampaio Rego

Vozes - O que aprendemos com o grotesco? 1615


Patricia Kerschr P. Bento

Vozes da pesquisa: são possíveis autorias na pesquisa 1622


com crianças?
Ana Alice Kulina Simon Esteves Sampaio

Vozes juvenis: Encontros de leitura enquanto espaço de 1629


escuta amorosa e de construção da autoria
Julianne Pereira dos Santos

Vozes melopoéticas em Tetê e o Lírio Selvagem: Uma 1637


leitura dialógica
Maria Leda Pinto e Alan Silus

VOZES QUE ECOAM OS SABERES COM AS 1645


CULTURAS INDÍGENAS: quando as aulas podem ser
um espaço-tempo para problematizar e recriar formas
de ver, dizer e celebrar as diferenças, po
Denise Wildner Theves

Vozes sociais sobre tecnologias digitais no ensino de 1652


línguas
Albanyra dos Santos Souza

54
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sandman 1660
Mônica Menezes Santos

A Pata e a Coruja. Um jeito de enfrentar dias futuros ou 1666


uma reinvenção do grotesco
Liana Arrais Serodio

O grotesco em nossas vozes. Mas que vozes? 1677


Soraya Cristina Moraes

Veredas do (querer) dizer - Bakhtin e o grotesco 1679


João Nilson P. de Alencar

O Ministério da Educação na praça pública no Brasil 1688


atual
Marina Célia Mendonça (UNESP)

A obra Os invisíveis, de Tino Freitas e Odilon Morais: 1696


elementos para pensar o grotesco dos nossos tempos
Lilane Maria de Moura Chagas; Gabriéla dos Santos

Responsabilidade e moral no discurso da imprensa: o 1705


caso da suástica marcada a canivete por
Aline Saddi Chaves; Marcelo Eduardo da Silva

O grotesco e o elogio do riso: das mulheres 1713


Roselete Fagundes de Aviz

A potencialidade transgressora do verso Faz escuro mas 1724


eu canto do poeta Thiago de Mello na 34ª Bienal de Arte
de São Paulo por
Rosangela Ferreira Borges

O grotesco e a resistência indígena 1729


Laissa Karen Guimarães Moura

55
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A Perversão do Grotesco e a Esperança 1733


Ruy Braz

O grotesco na voz de uma criança surda, “sem língua”! 1739


Ednalva Gutierrez Rodrigues e Ericler Oliveira Gutierrez
Ouedraogo

Representação grotesca em: os sentidos atribuídos ao 1747


objeto livro
Andreia dos Santos Oliveira

A potência do vazio: o acontecimento do “não saber” 1752


como parte do processo nas atividades de análise de
textos
Ana Beatriz Ferreira Dias

No grotesco dos nossos tempos: a escrita e as vozes que 1757


me constituem enquanto escritora.
Ana Lucia Gomes de Souza

O grotesco nas manchetes de grandes jornais do 1763


Sudeste do Brasil durante a pandemia do coronavírus
Monique Brito e Inez Helena Muniz Garcia

O grotesco rei mal coroado 1772


Kátia Vanessa Tarantini Silvestri

A recusa do corpo deficiente em espaços públicos: 1781


cassação da voz
Lidia Ferreira

56
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Textos da Arena

O corpo grotesco bakhtiniano, a pandemia, Crime e 1791


Castigo de Dostoiévski e o Humano hoje
Augusto Ponzio

A paisagem cultural da pandemia - cenários e grotesco 1808


Pampa Olga Arán

57
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

OS TEXTOS DO
RODAS DE CONVERSA BAKHTINIANA

NOVEMBRO DE 2021

58
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO DE NOSSOS TEMPOS:


VOZES, AMBIENTES, HORIZONTES

59
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A fruição da vida como grotesco

Nara Caetano Rodrigues (UFSC)


nacaetano@yahoo.com.br

Introdução
Nesse ano de 2021, retomei a participação no Grupo de Estudos
Bakhtinianos/GRUBAKH, vinculado ao Grupo de Estudos e
Pesquisas em Educação Continuada/GEPEC, composto por
professores e pesquisadores da Faculdade de Educação da
UNICAMP e professores/as de redes públicas municipais, muitos
ex-alunos/as da UNICAMP.
A produção de narrativas e metanarrativas faz parte da
metodologia de estudo dos escritos do Círculo de Bakhtin,
fundamentação teórica principal das reflexões desenvolvidas no
GRUBAKH. Assim, na retomada das discussões do grupo, após o
FALA outra ESCOLA 2021, ocorrido em julho p.p., fomos
desafiados/as a produzir narrativas e metanarrativas, que
pudessem ser socializadas no Círculo Rodas de Conversas
Bakhtinianas.
Como estava bastante impactada pelo meu deslocamento de
posição-sujeito, em função da aposentadoria, seguida da pandemia
provocada pela covid-19, narrei não um acontecimento específico,
mas as sensações provocadas por esse meu novo modo de ser/estar
no mundo. Tendo em vista o objetivo de trazer a problematização
para o Rodas, foram sugeridas leituras que nos aproximassem do
tema geral do evento: O GROTESCO DOS NOSSOS TEMPOS:
VOZES, AMBIENTES E HORIZONTES.

60
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Assim, após a produção da narrativa, leitura e discussão de


narrativas e metanarrativas de membros do Grubakh, encontrei nas
vozes de Bakhtin (2008) e Krenak (2019 e 2020) alguns sentidos que
contribuíram para que eu pudesse criar possíveis inteligibilidades
para o grotesco que há na relação trabalho-fruição da vida e no
modo como estou me sentindo diante da possibilidade da fazer
uma escolha.

1. Ausência de mim
Nos últimos dois anos, tenho vivido uma ausência de mim. Uma
desesperadora ausência do eu que levei anos para me constituir nas
relações com os muitos outros que encontrei nos espaços sociais e
profissionais/acadêmicos, nos quais interagi.
Ao me aposentar, passei a me dedicar aos cuidados de minha mãe
e a administrar a rotina doméstica, dividida entre as demandas da
mãe e dos dois filhos (já universitários). Demandas que, mesmo
não consumindo 8h por dia, passaram a consumir minha energia e
me distanciaram das posições que ocupei como professora,
pesquisadora, orientadora... Ver-me na posição de cuidadora e
dona de casa e tendo meu dia preenchido cada vez mais por
consultas médicas, exames, compras no supermercado, feira,
farmácia, peixaria etc foi me provocando um estranhamento e
desencantamento a tal ponto que não me reconhecia mais naquela
pessoa. Era como se eu fosse um não-eu!
Certamente esse estranhamento foi agravado pelo fato de estarmos,
há quase um ano e meio, vivendo uma pandemia, que nos
aprisionou em casa, restringindo nossa circulação nos espaços
públicos. Além disso, impingiu, como medida de segurança, o
distanciamento social e o uso de máscaras. Sem encontros, sem
abraços, sem sorrisos frente a frente, sequer apertos de mão
sobreviveram, pois quanto menos contato e mais álcool gel nas

61
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mãos, menor a chance de propagação do coronavírus, responsável


pela mortal covid-19. O mundo passou a ser visto pelas janelas do
computador, da sala e, no meu caso, do meu mundo-quarto, de
onde passei a observar o pôr do sol de outono, inverno, primavera,
verão, novamente outono, inverno...
Mas se o mundo todo passou – está passando – por essa pandemia,
por que trazer à reflexão a minha vivência, o meu conflito
existencial para o Grubakh nesse momento?
Acredito que alguns conceitos do pensamento bakhtiniano podem
me ajudar a entender essa desconstituição, quando busco respostas
para minhas questões me vêm à mente noções como de posição-
sujeito, interação, excedente de visão, cronotopo entre outros.
Se o sujeito para Bakhtin se constitui nas interações, não é um
sujeito pessoa individual, mas um sujeito posição ocupada em
tempo e lugar social, então no momento em que perco o contato
com os/as estudantes, quando não sou mais a professora de
nenhum aluno/a na escola, não ocupo mais esse lugar. Mas, e
quando um/a ex-aluno/a me vê e me chama de professora, ele/a me
coloca novamente na posição-professora? Ainda seria eu
professora dele/a no momento presente? Ele/a sempre me verá
como professora ou deixei de ser?
Se não estou mais discutindo o planejamento das aulas, as
demandas do ensino remoto, não estou em nenhuma das janelinhas
com meus colegas professores/as, não sou mais vista sendo
professora? Quando falo com eles/as, falo do não-lugar, pois não
estou compartilhando com eles/as o tempo-espaço do ser-
professor/a hoje. Toda a experiência vivida por eles/as sendo
professores/as nesse período pandêmico eu não vivi, não fui
professora na pandemia, não experienciei a pandemia sendo
professora. Se os/as estudantes e os/as colegas não me viram sendo
professora, não fui professora, não há quem me dê acabamento na
posição-sujeito-professora. Se não tenho o excedente de visão do

62
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

outro que me veja, me complete sendo professora, não existi como


professora.
Recusar alguns convites para bancas, eventos, trabalhos... foram
atos quase violentos, causaram um sentimento de autoexílio,
silenciamento, apequenamento, rompido em alguns momentos em
que me reencontrei em algumas brechas, que me permitiram
respirar como eu mesma.
Talvez tenha estado na fronteira e tenha passado em alguns
momentos por pequenas frestas abertas nesse cronotopo
pandêmico e adverso, como quando uma ex-orientanda me pediu
opinião sobre seu projeto de doutorado. Em nossa interação,
mesmo que virtual, me senti professora-orientadora. Outra brecha
se abriu quando aceitei a provocação de uma colega para
escrevermos um capítulo de livro, nesse processo também me senti
sendo eu, mas era quase como se eu estivesse ocupando um lugar
não meu, como se fosse uma impostora.
O alargamento dessas brechas ocorreu no FALA, quando interagi
com tantos/as professores/as e pesquisadores/as apaixonados/as
pela escola e me senti tão próxima deles/as, de suas vivências.
Mesmo não estando professora naquele momento, senti renascer
um sentimento de acolhimento, de encantamento, de
pertencimento a uma posição-sujeito de quem acredita numa
escola outra e sonha com uma escola outra. Escola essa que pode
ser construída de diferentes formas, estando em sala de aula, frente
às telas dos computadores com os/as estudantes, com colegas
professores/as e/ou pesquisadores/as. O FALA foi uma grande
janela por onde eu pude vislumbrar um horizonte de
possibilidades de reencontro com essa posição-sujeito, que me faz
sentir que faz sentido existir no mundo, exercendo uma postura
ética, estética e cognitiva responsiva, não indiferente frente a
horizontes temáticos que me tocam.

63
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Colocar tudo isso no papel e trazer para esse grupo é como


procurar fios de um tecido desprendido de mim mesma, que, como
o canto dos galos do João Cabral de Melo Neto podem, uma vez
encadeados uns aos outros, tecer manhãs e reconstituir posições-
sujeito, por meio de um diálogo que encontra reações-resposta,
uma vez que possuem um horizonte axiológico compartilhado.

2 Se não sou mais professora, não sou nada/ninguém


Narrar as inquietações desse momento de transição de 30 anos me
entendendo como professora para um ser no mundo em devir, está
me ajudando a compreender o quanto eu não estava preparada
para o caráter inerente de instabilidade, incertezas e incompletude
dessa experiência, que está sendo a aposentadoria.
A ausência que sinto de mim é em si a ausência do meu grande
outro, o/a aluno/a, como já discuti em minha pesquisa de
doutorado (RODRIGUES, 2009). Então, como assumir a posição
discursiva de professora se minhas falas não são mais endereçadas
aos/às alunos/as? Se o cronotopo das minhas falas não se situa mais
no tempo/espaço da esfera discursiva da escola? A conclusão é tão
óbvia quanto assustadora: Não sou mais professora! Sou ex-
professora!
Por mais desestabilizador que seja, preciso aprender a conviver
com essa constituição de subjetividade em devir, incompleta, a
depender das relações novas que estão sendo tecidas em novas
esferas. Nessa constituição, possivelmente, em alguns momentos,
certos sentidos da professora que fui serão rememorados nas falas
da ex-professora que sou. Essa foi - e ainda é - a experiência mais
significativa da minha atuação profissional, está inscrita na minha
trajetória de sujeito social, como memória de passado também
constitutiva da memória de futuro em devir, aberta para o fluxo da
existência grotesca, no qual não há nenhuma garantia, nenhuma
certeza, nenhum compromisso com a organização oficial do
trabalho, nenhuma completude, nenhuma finitude absoluta, só há

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

um recomeçar em aberto, como um salto de olhos vendados rumo


ao abismo. Ainda bem que não salto de mãos vazias, eu posso
esticar o braço e seguir de mãos dadas com quem encontrar lado a
lado nesse novo caminho.
Em meio às instabilidades desse momento, ouço a fala de Krenak:
“A vida não é útil” e vou atrás do contexto dessa fala, na esperança
de que nela possa encontrar sinais, luzes que iluminem o breu do
caminho dessa nova jornada. Então, me deparo com a seguinte
pergunta do ativista e ambientalista:
“Por que tanto medo assim de uma queda se a gente não fez nada
nas outras eras senão cair?”.
Já caímos em diferentes escalas e em diferentes lugares
do mundo. Mas temos muito medo do que vai acontecer
quando a gente cair. Sentimos insegurança, uma
paranoia da queda porque as outras possibilidades que
se abrem exigem implodir essa casa que herdamos, que
confortavelmente carregamos em grande estilo, mas
passamos o tempo inteiro morrendo de medo. Então,
talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um
paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e
fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos,
inclusive prazerosos. Já que aquilo de que realmente
gostamos é gozar, viver no prazer aqui na Terra.
(KRENAK, 2019, p. 31).
Só que para deixar-se levar pelo fluxo da vida, reorientar-se para
viver pelo simples prazer, é preciso desapegar-se da máxima que
orienta nossas escolhas desde a infância: “O que você vai ser
quando crescer?”. Em algum momento de nossa vida ouvimos esse
questionamento e temos que decidir o que/quem seremos como
sujeitos úteis na sociedade, por meio do trabalho. Daí que, na lógica
atual, antes disso e depois disso, não somos nada/ninguém. Assim,
minha narrativa mostra a ex-professora sentindo-se exilada de si

65
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mesma, apequenando-se, deixando de existir. Ela não consegue


vislumbrar possibilidades de ser fora do trabalho, por isso se
reencontra nas brechas que a recolocam na posição-sujeito oficial a
que estava habituada e na qual sentia sua existência legitimada.
Mas e fora do trabalho não há vida para ela? Como diz Krenak
(2020, p. 59), “nós somos o tempo inteiro cobrados a fazer coisas
úteis. É por isso que muita gente morre cedo, desiste dessa
bobagem toda e vai embora.”.
Culturalmente se estabeleceu que “o trabalho dignifica o homem”,
assim é comum o lazer, o prazer, a alegria e o ócio estarem
associados à vadiagem, à preguiça, a comportamentos indignos de
pessoas de bem, que levam a vida a sério e merecem ser
recompensadas por isso. Segundo Krenak (2020, p. 60), “As
religiões, a política, as ideologias se prestam muito bem a
emoldurar uma vida útil.” Daí podemos associar a ideia de prazer,
ócio, alegria à libertinagem, ao pecado, ao que deve ser reprimido
por meio da vergonha, da culpa e da punição.
Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver
em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera
uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de
experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está
cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que
dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos
sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de
vida.” (KRENAK, 2019, p. 13).
Esse pensamento encontra ressonância no que diz Bakhtin, quando
nos fala que “o riso na Idade Média estava relegado para fora de
todas as esferas oficiais da ideologia e de todas as formas oficiais,
rigorosas, da vida, do comércio humano.” (BAKHTIN, 2008, p. 63).
O autor acrescenta ainda que “O tom sério afirmou-se como a única
forma que permitia expressar a verdade, o bem (...). O medo, a
veneração, a docilidade, etc., constituíam por sua vez os tons e
matizes dessa seriedade.” (BAKHTIN, 2008, p. 63). Na época
antiga, o riso já era condenado pelo cristianismo primitivo, pois era

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

visto como “emanação do diabo”, não proveniente de Deus, “o


cristão deve conservar uma seriedade constante, o arrependimento
e a dor em expiação dos seus pecados.” (BAKHTIN, 2008, p. 63,
grifo do autor).
Aí me vejo como a professora que se aposenta e se torna cuidadora,
dona de casa, sem nunca querer ter sido, a contrapelo, sentindo-se
em um autoexílio de si mesma, como que se punindo pela culpa de
não estar “trabalhando”. Bakhtin e Krenak me ajudam a entender
a possibilidade da transgrediência do não oficial e do grotesco que
está diante dos meus olhos como um abismo, que se descortina
como um horizonte de possibilidades, no qual é possível viver sem
trabalho, sem dor, sem culpa, com fruição, com prazer:
O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a
ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da
existência. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam
escravizar a si mesmos. Não podem parar e experimentar a vida
como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso. O mundo
possível que a gente pode compartilhar não tem que ser um
inferno, pode ser bom. (KRENAK, 2020, p. 61).

Considerações finais
No primeiro momento, quando escrevi a narrativa acreditava que
conceitos como de posição-sujeito, cronotopo e interação me
ajudariam a criar inteligibilidades para o que estava
experienciando nesse momento. Sim, ajudaram a entender que sou
uma ex-professora. Isso é fato. Por mais que pareça um abismo, é
chegada a hora de me lançar no fluxo da vida e aceitar que a fruição
que sempre esteve em um horizonte distante, como algo desejável,
mas controverso, talvez não nobre, carregado de preconceitos, de
culpa, agora faz parte do meu horizonte de possibilidades.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Existe vida fora do trabalho! Afinal, “A vida é tão maravilhosa que


a nossa mente tenta dar uma utilidade a ela, mas isso é uma
besteira. A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança
cósmica, e a gente tenta reduzi-la a uma coreografia ridícula e
utilitária.” (KRENAK, 2020, p. 58).

Referências
BAKHTIN, M. A Cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. 6.ed. São Paulo:
Hucitec, 2008.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
_____. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
RODRIGUES, Nara Caetano. O discurso do professor de Língua
Portuguesa no processo de reestruturação curricular: uma
construção dialógica. Tese (doutorado). UFSC, Florianópolis, 2009.
314 p.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO É O MUNDO

Antonio Sergio Vasconcelos Darwich


Universidade do Estado do Pará - UEPA
sergiodarwich@gmail.com

O GROTESCO É O MUNDO

O Grotesco é a unidade dos contrários em luta e transformação. O


Grotesco para uma cidade são as águas do rio Guamá que passam
no seu cais. São as calhas de suas ruas. Suas calles, seu fluxo de
gente. Sua ebulição.
Se formos sintetizar, é isso.
O Grotesco é gargalhar do medo do fim do mundo que pesa sobre
os ombros. A pandemia, a morte, a vida decaída, a renda, a grana,
o arame, a prata que some e se perde no rio de calamidades. Mas o
medo - sabemos - é domável como um cão bravo é domável. O
medo deve ser enfrentado como o desconhecido mundo da noite.
A noite deve ser enfrentada. O rio vai ser atravessado. Quero ver o
dia de poder dizer: sorria, sorria para a fotografia. Dizíamos isso
nos anos de 1980. Toda folia será sempre como um deserto incerto.
Quero ver o dia de poder dier: viva o ócio! Salve, o direito à
preguiça!
E para você, que vive só para o dinheiro, aqui vai todo nosso
desprezo de arlequim. Uma bomba no teu jardim, só pra chatear.
No fim de tudo, colher as rosas dilaceradas pela nossa delirante
gargalhada.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

E o riso vencerá o medo. O medo que não existe mais.


Este é o grotesco que vejo, que ouço, que toco, que cheiro, que trago
nos dentes.
O Grotesco continente.
O encantamento pelo riso.
A festa do corpo e da vida social. A vida e a arte que se opõem às
formas abstratas do mundo ideal. Aristóteles e Platão terminaram
sendo a referência primordial da cristandade, da guerra aos índios
e da escravidão na África. Este Deus do ódio serviu ao capitalismo
mercantilista por séculos. Até transformar o ouro de Ouro Preto e
a prata de Potosi nas máquinas da indústria capitalista moderna.
O Grotesco, do corpo e do riso do mundo popular, da feira, do ator
de rua, do violeiro cego, da arte circence resiste e insiste. A luta de
classes, a música popular, o teatro de bonecos, o teatro da praça a
comida de rua, constroem este gigante das ruas e das multidões.
A multidão, o povo de mil vozes, sua fertilidade, sua abundância,
seus exageros, sua seus gritos, seu deboche, sua comédia, sua
montanhas de fezes, sua feiura e beleza, sua razão e loucura, sua
alegria sem freio e tristeza sem fim é a convergência de histórias e
destinos, de sonhos e de vingança.
Esta multidão é o corpo único e criativo, o inventalínguas, o sábio
invisível das esquinas.
Este povo vive a vida e joga o jogo da vida. Esta multidão fala a
língua do asfalto, da chuva e das paredes de pedra da cidade.
O gigante realista vive a vida no seu turbilhão de dores, faltas,
sofrimentos, doenças, de fezes, de escarro, de tísis, de piolhos, de
pulgas, de moscas, de ratos, de sons, de cantos, de poesia, de paz e
de rebelião.
Esta multidão da carne, do corpo, do sexo, do riso e da
revolta invade as praças, ruas, avenidas e dá forma ao gigante
ébrio das festas dos terreiros.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Este grotesco é, por assim dizer, o princípio da matéria, os


mandamentos da vida material em oposição à rotina morta do
asceticismo, do controle sobre a vida social, em oposição às prisões,
às explicações abstratas do divino espírito santo, ao mundo que
gira ao redor da cabeça.
O grotesco é dotado deste sentido real que vem das raizes mais
profundas da vida popular.
O Grotesco é, como escreveu Bakhtin (1987), na sua obra “A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais”, avesso “a todo isolamento e confinamento em si mesmo,
a todo caráter ideal abstrato, a toda pretensão de significação
destacada e independente da terra e do corpo”.
Este é o princípio realista do Grotesco.
No lugar do medo, da pretensão escolástica e do mundo idealizado,
a esbórnia, a farra, a gargalhada, a glutonaria, a bebedeira, o
sexismo, a voracidade, o exagero, o excesso, a avidez, o carnaval, a
alegria desmedida, a paixão social e a rebelião. O Grotesco é o
carnavalesco que encena a “abolição provisória” do despotismo,
dos privilégios e da injustiça. (Bakhtin, 1987). Segundo Bakhtin, o
carnaval do grotesco é “a segunda vida do povo, baseada no
princípio do riso”(Bakhtin, 1987, p. 07).
Foi justamente, “A eliminação provisória das relações hierárquicas
produziu o aparecimento de uma linguagem carnavalesca típica”
(SOERENSEN, p. 322).
Este é o realismo grotesco da cultura popular. Seu realismo
grotesco e ridente.
O imaginário da cultura popular está impregnado de cataclismas
naturais, guerras, fome e degredo. Daí a única certeza vir
justamente de comer, beber, foder e gargalhar hoje, porque
amanhã, o devir estão em aberto.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Como sabemos, a luta contra estas conjunções de temores forjou a


autoconsciência dos povos, justamente porque estes cataclismas e
a luta da multidão contra a morte violenta e o degredo faz parte,
hoje, de seu mundo interior. E o mundo interior da multidão é o
seu corpo, íntimo e matéria.
O Grotesco é o apelo à transformação criativa, violenta e
barulhenta. A produção do universo combinou os elementos como
o ar, a terra, a água e o fogo. O ser humano é produto deste universo
e desta matéria. Por isso, seu mundo interior é feito de ar, terra,
água e fogo. Nosso corpo é feito da matéria do mundo. Cada célula
nossa é o microcosmo do universo. Isto é o grotesco. O Grotesco é
o mundo. É o realismo do cinema italiano, o cinema de ataque
russo e o cinema novo brasileiro. O Grotesco está nos urubus e
girassóis do tropicalismo. É a velha geral do Maracanã. É a função
poética e a indústria em luta permanente (GRILLO, 2008). O
grotesco é a vida real, o índio, o negro, a mulher, o lgbti, o operário,
nossos deficientes, nossas mortes e vidas severinas são partes da
mesma matéria em movimento, em mudança e em fluxo
permanente. O Grotesco é campo e cidade, homem e mulher, indio
e não índio, morte e vida, palavra e ação, físico e mente como
diferentes caras do mundo. O Grotesco é a matéria em movimento
e mudança. É a história contada pelos simples e pelos loucos”.
(BAKHTIN, 1987).
Mas não vivemos na época de Rabelais. Vivemos a revolução em
permanência ou o futuro morrerá. O Grotesco, hoje, é libertação
coletiva. O Grotesco é a revolução Socialista para concretizar o
Grotesco no mundo e transforma o Grotesco em alguma coisa
superior, impensável, ainda desconhecida, mas superior a tudo que
conhecemos. Nossa história, nosso presente e futuro é um só: o da
felicidade coletiva - ou não haverá futuro nenhum.
Sergio Darwich, set/21

72
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

REFERÊNCIAS:
BAKHTIN, 1987. “A Cultura Popular na Idade Média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais.
GRILLO, S. V. C.. Gêneros Primários e Gêneros Secundários no
Círculo de Bakhtin: implicações para a divulgação científica. Alfa,
São Paulo, 52 (1): 57-79, 2008
SOERENSEN, C.. “A Carnavalização e o Riso Segundo Mikhail
Bakhtin. S/D. In: Revista Travessia, Ed. XI.
(revistatravessia@gmail.com).

73
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O genocídio versus o grotesco: uma reflexão inicial

José Anchieta de Oliveira Bentes (UEPA)


anchieta2005@yahoo.com.br

Rita de Nazareth Souza Bentes


Universidade do Estado do Pará
ritabentes28@gmail.com

Neste texto estabelecemos uma oposição de categorias de ação


entre o genocídio em oposição ao grotesco. Nossa intenção ao
estabelecer o confronto dessas categorias de análise é de
compreender a realidade conjuntural que estamos vivendo.
Começamos explicando a etimologia dos dois termos para depois
pontuar as oposições.
Conforme o Wikcionário (2017), a pesquisa com o verbete
genocídio tem a seguinte informação: do grego antigo γένος
(génos), significando “raça, tipo” ou do latim gēns significando
“tribo, clã”, acrescentando o sufixo cida ou cídio que vem do
latim caedere significando “matar, imolar, derrubar”. Portanto o
termo significa ação, ou política de matar, de eliminar uma raça,
um tipo de gente ou uma tribo inteira.
Apesar do estabelecimento dessa etimologia, o termo não existia na
Grécia antiga, é uma criação moderna. Atribui-se a Raphael
Lemkin (1900-1959) a criação do mesmo, para descrever as
atrocidades do holocausto no livro Axis Rule in Occupied Europe:
Laws of Occupation - Analysis of Government, Proposals for
Redress, de 1944.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nos termos que o genocídio é


a tentativa sistemática de eliminar todos os membros de uma dada
categoria social, em geral definida por características como raça,
etnicidade, religião ou nacionalidade. O Holocausto imposto pela
Alemanha nazista aos judeus da Europa, a destruição das tribos
americanas nativas nos Estados Unidos, o massacre turco de mais
de um milhão de armênios entre 1917 em 1919, e o assassinato de
milhões de pessoas no Camboja na década de 1970 são exemplos de
políticas de genocídios contra populações com vista a promover os
interesses da opressão social, acumulação de riqueza e poder e
outros interesses coletivos (JOHNSON, 1997, p. 115).
O genocídio implica as seguintes características que ocorrem de
forma simultânea: a) a destruição ou extermínio do outro, de tribos
inteiras como sugere a etimologia do termo; b) a violência física, o
ódio ao outro – esse outro foi escolhido para ser alvo dessa
violência, com a apropriação de terras onde moram e de pertences;
c) a deportação, a prisão, o isolamento como formas de opressão;
d) a campanha de que não é gente, de que é gente inferior, que deve
ter controle de natalidade. Tais características tem a marca do
período que Hitler e Mussolini quando assumiram o poder na
Alemanha e na Itália, respectivamente, evento que é conhecido
como o Holocausto, mas que pode muito bem ter a denominação
de genocídio dos povos judeus. Esse termo pode ser estendido para
o período que vivemos, particularmente no governo Bolsonaro em
que:
1) escolheu jornalistas e militantes de esquerda como alvo do seu
ódio – tem usado a Lei de Segurança Nacional (LSN) para perseguir
jornalistas e desafetos políticos.
2) implementou a política de rebanho como forma de solução para
a crise pandêmica provocada pela COVID 19.
3) escolheu os indígenas – uma designação que menos coisifica e
menos os desumaniza seria chamá-los de povos pindorâmicos
(SANTOS, 2015) – e povos quilombolas como povos a serem

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

eliminados – favoreceu a entrada de garimpo, as madeireiras e a


devastação de florestas para a propagação da pecuária e de outras
monoculturas na região amazônica.
E mais, Bolsonaro
subestimou a pandemia de propósito ao difundir a ideia mentirosa
de que a Covid-19 não era preocupante [...]; atacou as estratégias
para conter o vírus, por isso, promoveu aglomerações sem usar a
máscara, atacou prefeitos e governadores [...]; sabotou o auxílio
emergencial ao defender ridículos R$ 200, em 2020 [...]; atrasou o
início da vacinação ao colocar as vacinas sob suspeita [...]; cortou
R$ 35 bilhões do orçamento para a saúde pública no pior momento
da pandemia [...]; investiu recursos públicos em medicamentos
sabidamente ineficazes contra a Covid-19, como a Cloroquina, a
hidroxicloroquina ou a Invermectina [...]; e demitiu ministros que
contrariavam suas determinações negacionistas e genocidas [...];
atentou contra a vida de profissionais da saúde e pacientes ao
recusar-se a trocar as máscaras ineficientes que estavam sendo
distribuídas pela Anvisa; ao não agir rapidamente para abastecer os
hospitais de Manaus, AM, de oxigênio ou suspender a compra de
anestésicos necessários para intubar pacientes; vetou a distribuição
de água potável, cestas básicas, materiais de higiene, limpeza e de
desinfecção a indígenas e quilombolas [...]; tentou esconder
informações e confundir a população quanto a divulgação dos
números que mostravam o genocídio em curso (SANTOS, 2021, p.
1).
Quanto ao segundo termo, o grotesco. Segundo o Wikcionário
(2021), a etimologia vem do italiano grottesco, suscitando o riso, o
escárnio; o ridículo. Está associado a grotta, com analogia a palavra
portuguesa gruta, aludindo principalmente a descobertas feitas em
cavernas e ruinais, onde foram encontradas imagens, figuras,
estátuas metade gente e metade animal, designadas como
grotescas. A mais importante grotta é designada como Casa
Dourada, do imperador Nero.
Portanto, na arte, as atribuições a um realismo grotesco
implicaram, conforme referencias bakhtinianas à atos vividos pelo

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povo, sobretudo na Praça Pública, como uma “espécie de liberação


temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição
provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e
tabus” (BAKHTIN, 2002, p. 8).
Dessa forma, vamos defender que o grotesco, embora ambivalente,
é uma manifestação, uma atividade de ir contra o capitalismo, de ir
contra a colonização, uma ação de resistência, de luta em defesa dos
lugares em que vivem grupos tradicionais, contra políticas de
dominação, de defesa dos símbolos, dos modos de vida praticados.
Nossos atos grotescos que se contrapõem aos atos genocidas deste
governo fascista ocorrem quando vamos para rua gritar “O Fora
Bolsonaro”, levantando nossas faixas e bandeiras dançando ao som
de palavras de ordens e escrachando este governo.
O grotesco por um lado é o riso, é a sátira, é a crítica ao governo ao
poder instituído; por outro lado, já que existe uma ambivalência,
usado no senso comum, é aquela imagem, é aquela situação
horrível. É utilizado como sinônimo de bizarro, escatológico,
extravagante ou cômico. que suscita o riso ou o escárnio; o ridículo,
que, geralmente, as pessoas não aceitam. Dizem que uma situação
ou que pessoa é grotesca. Vamos usar o grotesco conforme o
conceito de Bakhtin, que é a opção que gera o riso contra o
dominador, a sátira, a ridicularização, a crítica ao governo,
tornando-se uma categoria de análise para interpretar o que está
acontecendo no país.
Que tem uma política genocida, como é essa política genocida? É
uma política de matar, escolhendo alvos: os mais pobres, os negros,
por isso precisa armar grupos milicianos que vão exatamente
executar os pobres, os negros. É uma política genocida de Estado,
tem uma ideologia – a de pobres e negros devem morrer, de quer
eles não são gente, eles são uma porcaria na sociedade, eles que
destrói a sociedade, o que vale a classe dominante.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Frente a essa situação, o grotesco é uma categoria de resistência


para combater a política genocida do governo.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Introdução: apresentação do problema. In:
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. 5ª ed. Tradução de
Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec. Brasília: editora
universidade de Brasília. 2002. p. 1-50.
JOHNSON, Alan, G. Dicionário de Sociologia: Guia prático da
linguagem sociológica. Verbete genocídio. Tradução Ruy Jugmann;
consultoria Renato Lessa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1997.
WIKCIONÁRIO dicionário livre. Verbete genocídio. Flórida:
Wikimedia Foundation. Última revisão: 2 maio 2017. Disponível
em: . Acesso em 17 ago. 2021.
WIKCIONÁRIO dicionário livre. Verbete grotesco. Flórida:
Wikimedia Foundation. Última revisão: 1 de fevereiro de 2021.
Disponível em: . Acesso em 17 ago. 2021.
SANTOS, Sérgio dos. Saiba o porquê Bolsonaro é
genocida! In: CCN Notícias. Publicado em 25 março 2021.
Disponível em: . Acesso em 18 ago. 2021.
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e
significações. Brasília. INCTI, UnB, 2015.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Consciência individual e coletiva: o eu e o outro

Renata de Souza França Bastos de Almeida


Unesp - Marília
renata.bastos@unesp.br

Desde que me lancei nas leituras e estudos de textos dos autores do


Círculo, que por sinal foram duras para o meu processo formativo,
percebi que que era necessário mudar, transformar as minhas práticas
na escola pública de educação básica. No entanto, o movimento
transformador não foi e não está sendo obra do acaso, mas sim da
compreensão de que “A consciência individual é um fato social e
ideológico” (VOLOCHINÓV, 2017, p. 97), que influencia meus
posicionamentos e escolhas como professora, mas também, reflete e
refrata do que tenho me alimentado teoricamente e por onde tenho
circulado, para além do espaço da escola.
Esse movimento me fez compreender que o material sígnico que
constitui a consciência deriva das interações com o outro, seja pela
linguagem verbal ou pela linguagem escrita, contudo o elo de ligação
entre as interlocuções é sempre a palavra, pois ela é tratada como “...o
médium mais apurado e sensível da comunicação
verbal” (VOLOCHINÓV, 2017, p. 99). Assim,

[…] A consciência se forma e se realiza no material sígnico


criado no processo da comunicação social de uma
coletividade organizada. A consciência individual se nutre
dos signos, cresce a partir deles, reflete em si a sua lógica e
as suas leis. A lógica da consciência é a lógica da
comunicação ideológica, da interação sígnica de uma
coletividade […]. (VOLOCHINÓV, 2017, p. 97-98).

Se por um lado neutra porque é flexível e se ajusta as diferentes


esferas da vida cotidiana, por outro lado, a palavra, “...pode assumir
qualquer função ideológica: científica, estética, moral e

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

religiosa.” (VOLOCHINÓV, 2017, p. 99), capaz de possibilitar a


produção de sentidos, dos mais variados, dependendo de quem e
como a encontra.
E é exatamente essa palavra que, no meu processo de doutoramento,
encontro semanalmente no Centro de Estudos e Pesquisas em Leitura
e Escrita (CEPLE), grupo de estudos coordenado pela professora
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto, mas também, composto por
outros participantes, que se encontram em diferentes níveis de
formação acadêmica e atuação profissional, na Unesp da cidade de
Marília.
O encontro entre os participantes do grupo é sempre sustentado pelas
leituras dos autores do Círculo, mas também, abre-se para as trocas
verbais que se sucedem após a leitura de trechos e escuta atenta dos
participantes. Essa dialética promove reflexões que tocam não
somente o lado profissional e acadêmico, o corpo interno e o corpo
externo, como também a vida cotidiana de cada um de nós e que nos
faz compreender em Volóchinov que

[…] todo signo surge entre indivíduos socialmente


organizados no processo de sua interação. Portanto, as
formas do signo são condicionadas, antes de tudo, tanto
pela organização social desses indivíduos quanto pelas
condições mais próximas da sua interação […]
(VOLOCHINÓV, 2017, p. 109).

As trocas verbais e a alternância das vozes e, consequentemente, a


não linearidade dos discursos dos participantes, podem possibilitar o
sentimento de totalidade e inteireza, que, em Bakhtin (2010b, p.45)
significa que “o valor de minha pessoa externa (...) é de natureza
emprestada, que eu construo mas não vivencio de maneira imediata”,
quando trata da relação de reciprocidade com o outro.
Nessa direção, sem a intenção de concluir e considerando o conceito
de inacabamento dos autores do Círculo, vou me constituindo na
interação com o outro, sempre aberta para novas possibilidades, o que
provoca em mim um movimento reflexivo.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências

BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: Estética


da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2010b, p.3-194.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem – problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora
34, 2017.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Linguagem e máscaras identitárias,


exigências para inserção no mundo global

Thayze Bezerra Santos


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
thayzebezerra@gmail.com

No VIII Círculo – Rodas Bakhtinianas, o grotesco dos nossos


tempos: vozes, ambiente e horizontes, pretendemos discutir sobre
vozes e como essas vozes constroem nossas histórias de vidas,
posicionamentos e principalmente nossas identidades. Assim, uso
como referência a escrita de Geraldi, linguagem e máscaras
identitárias, exigências para inserção no mundo global para me
aproximar de uma reflexão pessoal que faço ao direcionar meu
interesse de pesquisa para a construção de identidades em sala de
aula pensando em que sujeito encontrar da modernidade à pós-
modernidade.
Lembro de Kathryn Woodward (2005) e do conceito
identidades dito por ela, assim, no plural. Nesse começo quebro
paradigmas – meus, diga-se de passagem – e sim, concordo que as
nossas máscaras identitárias são plurais, individuais e coletivas.
Antes de pôr os pontos nos is, gostaria de me posicionar
acerca do porquê dessa quebra de paradigmas em que me
encontrava antes de ler o texto. A máscara, a meu ver, consiste em
um objeto simbólico. Usamos esse adereço em momentos especiais,
festivos e de conteúdo significativo para nós. Em um contexto e
discussão psicanalítica, a máscara para Lacan, por exemplo, tece
noções de mito(s) e verdades que se deseja esconder, acreditando
ele que a verdade tem uma estrutura de ficção. Dito isso, se as
máscaras passam a ser usadas em uma construção identitária do eu
e do outro, quem sou eu e quem é o outro? Estou sendo eu

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mesmo(a)? Até que ponto as máscaras são constituições da


minha/nossa verdade?
O autor coloca a velocidade e sagacidade do tempo, do que
fazemos no automático, do esquecimento do ontem, pois o hoje é o
atual e o amanhã já se configura como futuro. No que estamos nos
transformando? Quais são as nossas crenças culturais, nossos
valores e o que eles significam em termos de nosso modo de agir
no mundo e interagir com o outro? São questões pontuais
levantadas por Geraldi que não nos aprisionam em verdades, mas
nos direcionam para hipóteses, vozes e dizeres nossos, ao passo
que tempos modernos exigem novas (re)configurações culturais,
de costume, crenças e até mesmo de nossas identidades.
Nesse sentido, sobre concordar que as máscaras identitárias são
individuais, é válido, pois são frutos de nossas narrativas, vivências
e experiências de sujeitos nos mais variados espaços sociais. Por
outro lado, também são coletivas porque as construímos com o(s)
outro(s) e pelo(s) outro(s), em uma (re)existência do eu e uma
expulsão do outro. Assim, aproximar essas máscaras e pensar na
linguagem como forma de comunicação e construção de sujeitos
sociais é entender que toda essa dinâmica de ser, se fazer e se
transformar nos espaços-tempo – onde há vida – é acreditar que
isso também faz parte das nossas competências e habilidades
socioemocionais para lidarmos com o externo e o novo.
Nessa discussão, o novo seria o moderno ou o pós-moderno? Em
que espaço-tempo estamos? Existem máscaras identitárias que não
caberiam nesses tempos? Até que ponto máscaras que adotamos
revelam o grotesco em nós? Desse modo, façamos agora algumas
observações.
No conceito Bakhtiniano de Cronotopo, a ideia de Cronotopo, se
assim podemos simplificar, é a ideia de Bakhtin em relação ao
sujeito histórico que se revela no espaço e tempo sociais, de valores,
de linguagens, de construção e de participação da história.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Podemos pensar, então, que nesse valor histórico e nessa posição


que tomamos no meio social reconhecemos o outro como singular,
como subjetivo e que nessa singularidade vamos nos constituindo,
nos construindo, nos moldando e configurando as unidades de
sermos nos espaços e tempos.
Em síntese, no Cronotopo, vemos o sujeito se revelando nos
espaços, nessa construção, nas formações, no coletivo, isto é, nessa
ideia de que não somos heróis de nossa própria vida como afirmava
Bakhtin. O outro traz para a nossa existência acabamentos
provisórios; ou seja, cada vez que o outro excede sua visão sobre
mim (excedente de visão), me (re)construo e (re)significo, visto que
através desses comportamentos, representações de fala e
linguagens sociais, enxergamos com o(s) outro(s) o que antes era
desconhecido por nós.
Nesta perspectiva, Geraldi discorre sobre as nossas representações
de sujeito na modernidade, ou melhor, como nos constituímos
nesses espaços sociais e como eles nos afetam nessa transformação
social, cultural, histórica e afins, perspectivando, é claro, sobre o
conceito de espaço-tempo e as mudanças oriundas dele. Geraldi
(2010, p. 2),
À aceleração do tempo, a mobilidade num mundo globalizado
pelas novas tecnologias, e supostamente também pela economia,
parece trazer a pá de cal: as identidades com que nos definimos
como pertencentes a uma cultura, a uma nação, a um povo
evaporam-se. O sólido estaria se desmanchando no ar. Somos
‘trans’ ou ‘pós’ qualquer coisa que, talvez, nunca tenhamos
chegado a ser.
O grotesco para Bakhtin traz o conceito de carnavalização, este, por
sua vez, sendo qualquer tipo de demonstração popular que emerge
das massas e escapa às regras institucionalizadas, ou seja, a
carnavalização iguala os indivíduos por meio de situações que os
aproximam, como a linguagem, por exemplo. Desse modo, a
carnavalização ressignifica na sociedade os discursos dos sujeitos,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

permitindo que suas vozes sejam ouvidas e que suas experiências


de vida sejam (res)significadas.
Nesse contexto, para Bakhtin as máscaras na carnavalização
representam a alteridade, isto é, como nos aproximamos dos
outros, perspectivamos um discurso-resposta, um diálogo social
que nos movimente, que nos dê vida, e com isso passemos da
relação do individual do eu para o Outro, o eu com o Outro, e o
Outro e eu. Ainda, sobre adotarmos máscaras identitárias que se
modificam, ganham novas (res)significações e que desejam por
estar inseridas nos espaços sociais em vivências com o outro, sim,
elas revelam nosso riso, desejos, sonhos, aprendizados.
Aprendemos a ser, fazer, conhecer e conviver com o Outro,
também nos apercebendo de suas singularidades.
Sobre essa discussão Geraldi (2010, p. 19), afirma,
Somos múltiplos desde sempre, no processo de constituição de
nossas subjetividades. Somos semelhantes por vivermos num
mesmo tempo compartilhando um mesmo espaço. Mas os percursos
não se fazem em série. Somos únicos e irrepetíveis, como os
acontecimentos de que participamos.
Para tanto, apontar todas essas discussões nos direcionará para
muitas leituras, muitos olhares e principalmente para muitas
considerações inacabadas, visto que, como aponta Bakhtin, como
podemos definir que há acabamento em nossas relações,
enunciações, ações, e construção de máscaras identitárias se
estamos o tempo inteiro nos transformando?
Que possamos com o início desse diálogo (re)avaliar nossos
discursos e posicionamentos, pensando, sobretudo que o outro me
enxerga, eu enxergo o outro e juntos enxergamos o mundo, numa
perspectiva histórico-cultural, de construção e crescimento, por
meio da expulsão (expressão) dele e da existência do eu (singular).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
GERALDI, W. 2010. Linguagem e Máscaras identitárias, exigências
para inserção num mundo global. In: Ancoragens – estudos
Bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João Editores, 147-166.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução
teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org). Identidade e
diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes,
2005.p. 07-72.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O Brasil grotesco dos nossos tempos patéticos: o realismo


grotesco nos poderes planaltinos

José Kuiava
Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste
jose.kuiava@gmail.com

Para compreender a profundidade,


as múltiplas significações
e a força dos diversos temas grotescos,
é preciso fazê-lo do ponto de vista
da unidade da cultura popular
e da visão carnavalesca do mundo;
fora desses elementos,
os temas grotescos tornam-se unilaterais,
débeis e anódinos.
Mikhail Bakhtin

Vivemos em tempos em que as leituras lentas, vagarosas,


extensivas, atenciosas, repetidas e as leituras profundas reflexivas
estão em extinção e em estado de agonia – sem morte anunciada(?)
– em que a leitura crítica é uma raridade nesses tempos, tornando
difícil, quase impossível e inútil, o ato de fazer uma escrita
reflexiva, metódica, multíplice e consistente dos múltiplos,
diversos e controversos sentidos do realismo grotesco histórico real
e do realismo grotesco escrito do Brasil e do mundo de hoje – 2021.
Tempos em que somos utilitários, usuários, produtores e escravos
dependentes do império e do reinado do “príncipe eletrônico”.
Pior, oprimidos em grandes proporções e alienados pela cultura

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

oficial do populismo conservador e vigoroso feito moda na escala


nacional e na escala mundial.
Valendo-me da metade boa desse império da maquinaria
eletrônica virtual e da metade boa do realismo grotesco, vou me
abrigar e me proteger na casa das ciências – “turris eburnea” – e na
casa da literatura – como arma de resistência – onde o ato de fazer
e formular perguntas sempre foi, continua e continuará sendo um
ato muito mais difícil e complexo do que o ato de dar respostas às
novas perguntas e às questões formuladas. Assim, vou encarar o
problema da realidade brasileira de hoje – “ambivalência profunda
e essencial” dos sentidos do realismo grotesco – e começar com
algumas perguntas iniciais, sem respostas intencionais exatas,
únicas e cabais.
Que Brasil é o nosso Brasil dos nossos tempos – anos
turbulentos e marcados pela brutalidade das grosserias de um
mandatário autoritário e autocrático, após o golpe grotesco oficial
do impeachment em 2016?
Qual a realidade estrutural histórica do Brasil de hoje? Ou, quais
são e como são as forças das classes sociais estruturais dominantes
e em quais circunstâncias – processo de correlação de forças –
determinam as ações, os fatos, os acontecimentos e geram,
produzem e reproduzem sem limites as desigualdades sociais
trágicas e horríveis da nossa sociedade?
Quem são e como são os atores, que agem no palco e nos
bastidores do teatro sem visibilidade transparente, e que
personagens representam no campo de batalha no cenário político,
nos espaços econômico e social e no mundo ideológico? Os atores
do poder dominante governam sob o mando e a direção ideológica
de quais forças do poder econômico e ideológico? Garantem os
interesses e os benefícios, lucros extraídos dos bens públicos – bens
de todos – de quais elites das classes dominantes do bloco
histórico?

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Como encarar e usar a ambivalência do realismo grotesco da


pandemia virótica – que aterroriza todos e contamina e mata
milhões de pessoas – e o realismo grotesco da pandemia política –
autogoverno desregrado que destrói as instituições sociais
históricas, desestrutura e dissolve a ainda frágil e mal intencionada
democracia brasileira?
As múltiplas, controversas e inacabadas respostas destas
perguntas, em especial da última pergunta, e dos sentidos da
ambivalência do grotesco no percurso da história, exigem a
explicitação de alguns pressupostos básicos, em seu sentido
radical, para a análise e a compreensão do realismo grotesco dos
nossos tempos – os ambientes e os horizontes do grotesco das
imagens e das vozes da história real viva, da história acontecendo
– uma análise das forças da conjuntura requer uma análise
ampliada e consistente da unidade entre a estrutura
socioeconômica e a superestrutura política e ideológica da história
brasileira.
O fato relevante, que não pode ser omitido, é o fato, segundo o
qual o grotesco “está em toda parte: por um lado, cria o disfarce e
o horrível; por outro, o cômico e o bufo”, do jeito que já escreveu
Victor Hugo, bem referido por Bakhtin.
O método grotesco nos possibilita olhar e examinar o horizonte:
o aquém , o aqui e o além no espaço e no tempo – cronotopos –
onde, quando e em quais circunstâncias ocorrem os fatos e os
acontecimentos, determinados na correlação de forças da luta de
classes – cultura oficial dos opressores versus cultura popular dos
oprimidos.
Primeiro pressuposto – examinar a realidade exige a análise da
história viva, história acontecendo, o realismo grotesco do Brasil de
hoje, as grosserias burlescas do Planalto nas imagens e nas falas
grotescas para elevar a popularidade do mandatário populista. As
imagens de riso falso, riso encenado para o público de apoiadores,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

para a imprensa e para as redes sociais virtuais, são imagens


insanas, com falas absurdas de um mandatário da nação e de seus
assessores ignorantes e apoiadores desinformados. Assim, a análise
da conjuntura política atual precisa ter a base – o método – na
análise da estrutura e das forças dos fatores de produção. Nos
interesses das imagens e das falas grotescas prevalecem as imagens
e as falas ameaçadoras, agressivas e grosseiras para intimidar e
amedrontar os contrários, os opositores concorrentes ao poder. É
preciso reagir, contrapor e vencer esse medo de violência, de
ataques às pessoas, às instituições e de ameaças à democracia,
contrapor e vencer pelas forças da cultura popular.
Segundo pressuposto – a estrutura social de produção e
reprodução da sociedade capitalista ultraneoliberal – o caráter
histórico da realidade estrutural da sociedade capitalista – precisa
ser examinada em suas raízes históricas para entender a conjuntura
atual nas relações das forças dominantes - bloco no poder, elites do
capital – em conexão com as forças da superestrutura – sociedade
civil organizada.
Terceiro pressuposto – a identificação das estratégias do
populismo, arquitetadas pelas elites do bloco histórico da extrema
direita, requer uma análise rigorosa dos meios de manipulação, de
trapaças, de promessas ilusórias, que se fazem mediante
encenações de imagens de um populismo vulgar e proclamação de
falas falsas e mentirosas, como armas para alienar as massas das
classes populares – manipulação das camadas populares menos
informadas, com menor grau e nível de educação e mais oprimidas,
para que votem em seus candidatos populistas e os sustentem no
poder de forma consentida.
Antes de abordar o realismo grotesco planaltino, vou tentar
explicitar o sentido da ambivalência do realismo grotesco. Para
tanto, vou recorrer inicialmente ao sentimento e pensamento de
Ítalo Calvino, que se sentia partido ao meio no sentido longitudinal
– uma metade boa e outra má – um contraste, uma contradição

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dialética, uma ambivalência do realismo corporal – o real material


dado não escrito e o real pensado e escrito. “Partido ao meio,
mutilado, incompleto, inimigo de si mesmo é o homem
contemporâneo”, sentenciou Calvino (CALVINO, Os Nossos
Antepassados, 2001, p.10). Este seria o homem ambivalente
oprimido pelo bloco histórico do tempo, uma correlação de forças
da cultura grotesca oficial e da cultura grotesca popular.
Assim, as políticas e os programas do “não-controle”, da “não-
fiscalização”, da “não-punição” pelos crimes de desmatamentos, de
queimadas, de extração de madeiras das florestas eco vitais finitas da
Amazônia e das reservas de minérios no Brasil inteiro, são ações
impostas e mantidas por força e por interesses do agronegócio – fração
do capital latifundiário, que produz alimentos para os brasileiros e
para a exportação colonialista. Assim, o presidente, os ministros e os
apoiadores são os protagonistas e os proclamadores do
desmatamento das florestas – produzir pastagens e “deixar a boiada
passar”, com riso debochador; em defesa da invasão das reservas
indígenas, o presidente goza: “os índios são indolentes, não
trabalham, não produzem, porque tanta terra para eles?” Este
realismo grotesco é criminoso – protege, vangloria a ação, as
atividades destruidoras do ecossistema pelo capital nacional e capital
estrangeiro em relações de lucros recíprocos.
Quanto às imagens corporais populares encenadas e as falas
agressivas de deboche e de vulgarização do baixo material e baixo
corporal, Bakhtin já alertou sobre a perda dos sentidos de
ambivalência: “Nas grosserias contemporâneas não resta quase
mais nada desse sentido ambivalente e regenerador, a não ser a
negação pura e simples, o cinismo e o mero insulto” (BAKHTIN, A
Cultura Popular na Idade Média, 2013, p.25). Significa que, por trás
do populismo cínico, lá dentro, reina o império do poder das elites
do capital.
A legítima ambivalência do realismo grotesco, que se constitui
como arma poderosa no combate ao grotesco oficial, se arquiteta,

91
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

se organiza, age e se manifesta de diversas formas e por diversos


meios. Dentre os mais eficientes e poderosos meios, está a
imprensa, quando ela é consciente, crítica, ética, formada e dirigida
por intelectuais e protagonistas por uma sociedade justa,
igualitária, democrática, defensora e protetora da vida total e
ecológica do planeta terra.
O lado bom do realismo grotesco se manifesta e se materializa
com escritos críticos, científicos, literários, com desenhos
caricaturais, com as diversas modalidades da arte e cultura
popular, nas imagens fotográficas contrárias às imagens do
realismo do grotesco oficial. Existe ainda a infinitude e a
diversidade de organizações da sociedade civil e política no espaço
da cultura popular: movimentos sociais, associações, sindicatos,
partidos políticos libertadores, organizações científicas,
educacionais, culturais, desportivas, estudantis…
Ficam as perguntas finais: O que é necessário, o que é possível
propor, organizar, estruturar e realizar para transformar esta
realidade? Seria a cultura popular oprimida organizada, crítica,
consciente e politizada a arma revolucionária dos oprimidos?
A mobilização, a organização, a conscientização social, política
e ideológica das massas oprimidas seria a arma revolucionária de
transição para a nova “civilização planetária”?
É isso?
Antes mesmo de ler, leitor amigo,
Despojai-vos de toda má vontade.
Não escandalizeis, peço, comigo:
Aqui não há nem mal nem falsidade.
Se o mérito é pequeno, na verdade,
Outro intuito não tive, no entretanto,
A não ser rir, e fazer rir portanto,
Mesmo das aflições que nos consomem.
Muito mais vale o riso do que o pranto.
Ride, amigo, que rir é próprio do homem.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

François Rabelais
Referências
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento. São Paulo: Hucitec Editora, 8ª ed. 2013, p.25.
CALVINO, I. Os Nossos Antepassados. São Paulo: Cia. das Letras,
2ª reimpressão, 2001, p.1
RABELAIS, F. Gargantua e Pantagruel. Belo Horizonte: Editora
Vila Rica, 1991, p.31.

93
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ria que a coisa é séria: o riso como signo de resistência política


nas páginas do jornal sensacionalista

Nara Karolina de Oliveira Silva


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
narakarolina25@gmail.com

Joseilda Alves de Oliveira


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
joshitalo@gmail.com

José Cezinaldo Rocha Bessa


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
cezinaldobessauern@gmail.com

Pra começo de conversa...


Na contemporaneidade, com a proliferação de sites e redes sociais
digitais, temos presenciado a disseminação instantânea de uma
diversidade de enunciados produzidos em diferentes campos da
atividade humana, que nos instigam a produzir sentidos e a refletir
sobre o mundo e seus acontecimentos. Nesse contexto de produção
e veiculação de discursos e embates de sentidos, destacamos o
espaço de redes sociais como Facebook, Instagram, Twitter e TikTok.
Podemos dizer que essas redes digitais têm transformado não só as
formas de nos relacionar e de nos comunicar com o outro, como
também fizeram surgir novos gêneros além de modificar aqueles já
existentes, de funcionamento dinâmico, multifacetado e complexo.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Logo, nesse universo de interações múltiplas via redes sociais


digitais, podemos citar o meme como gênero de alta disseminação
e circulação, cuja estrutura mobiliza diferentes linguagens e, a
depender da finalidade comunicativa do falante, pode expressar
um tom humorístico, sarcástico, irônico (LARA, MENDONÇA,
2020). Os memes não se restringem a contextos de conversas
descontraídas entre amigos e/ou familiares; eles também são
instrumentos formadores de opinião (GUERRA, BOTTA, 2018) que
refletem e refratam acontecimentos atuais dos diferentes campos
da atividade humana.
Nesse sentido, temos observado que, na construção dos memes, o
riso não é somente utilizado para expressar felicidade/alegria, mas
como visão de mundo, uma forma de denúncia e de
desmascaramento do que há de grotesco nos sujeitos e nos eventos
do mundo. Assim, a partir dos escritos de Bakhtin e do Círculo,
buscamos pensar o riso enquanto signo de resistência política em
memes da página do Jornal Sensacionalista no Instagram.
A escolha pela página Jornal Sensacionalista[1] deve-se ao alto teor
de ironia contido nas postagens, sendo a maioria delas de cunho
político, o que nos interessa dada a realidade devastadora que
estamos vivenciando, no Brasil, com o (des)governo Bolsonaro.
Levamos em consideração ainda o alcance da página, que chega a
ter, em algumas plataformas, cerca de 2.287.104 seguidores, o que
nos permite visualizar um alto impacto das postagens.

… Riso é coisa séria


Ao assinalar o diálogo como princípio constitutivo da linguagem,
Bakhtin (2011) toma o sentido amplo das relações entre sujeitos e
os respectivos discursos estabelecidos no âmbito da vida em
sociedade, não somente nas interações face a face. Na perspectiva
bakhtiniana, “é nas relações dialógicas que a linguagem adquire
‘vida’, e as vozes entremeadas nessas relações de sentido são

95
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

concebidas como vozes discursivas sociais” (KLAFKE, 2012, p. 15,


grifo do autor). As relações dialógicas podem ser compreendidas,
desse modo, como a condição de sentido do discurso.
São os signos ideológicos, ou, no caso de nossa reflexão, os signos
do riso, que os autores (idealizadores da página
Jornal Sensacionalista) mobilizam em seus enunciados, em função
do interlocutor, do auditório social ou do grande público que
“consome” os sentidos associados ao riso carnavalizado, à
concepção de mundo, de história, de verdade, como podemos
depreender, com base no que afirma Bakhtin (1997, p. 57), quando
menciona: “[…] o riso tem um profundo valor de concepção do
mundo […]”. Compreendido dessa forma, o riso pode expressar
uma leitura crítica do mundo, da realidade, vista de forma
diferente, numa perspectiva de oposição e resistência ao “sério”,
ou, melhor dizendo, “o riso não coíbe o homem, liberta-o”
(BAKHTIN, 2017, p. 25).
Para Bakhtin (1997, p. 57), o riso “[…] é uma das formas capitais
pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade,
sobre a história, sobre o homem […]”, o que sugere a dialogia de
múltiplas vozes na construção da consciência social e ideológica do
sujeito, como na religião, na política, nas vozes oficiais e nas
cotidianas, que podem estar expressas no riso. O riso entendido
assim liberta o homem: “a seriedade amontoa as situações de
impasse, o riso se coloca sobre elas, liberta delas” (BAKHTIN, 2017,
p. 25).
O riso grotesco está presente em várias práticas culturais e “quase
onipresente no imaginário do povo brasileiro” (MIRANDA, 1997,
p. 126). Tal fato tem se estendido, com frequência, para as redes
sociais, nas mais diferentes produções discursivas, como estratégia
para dar conta da expressividade popular enquanto percepção
carnavalizada do mundo e da vida.
As produções carnavalizadas da página Jornal Sensacionalista
apontam a índole social do riso (BAKHTIN, 2017), aproximam e

96
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

familiarizam a situação ao seu público. Na referida página, são


vários os exemplos que poderiam ser mencionados aqui, mas o
caso do enunciado escolhido (reproduzido abaixo) aponta o riso
carnavalesco como postura consciente e norteadora de uma
“verdade” que liberta.

Figura 1: Tratamento pré-coice contra o Bolsonaro

Fonte: Página Jornal Sensacionalista[2]

O meme traz, em sua construção composicional, elementos verbo-


visuais que, juntos, constroem um ponto de vista valorativo sobre
a figura do presidente da república do Brasil, Jair Messias
Bolsonaro, e de seu governo. Na parte verbal, temos uma manchete
que diz: “Contra as grosserias de Bolsonaro, repórteres estão fazendo

97
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tratamento pré-coice”, que faz referência à conduta desrespeitosa e


aos ataques de Bolsonaro contra a impressa. Ao mesmo tempo,
esses dizeres associam Bolsonaro a um animal, ao sugerirem que os
repórteres façam um tratamento pré-coice antes das entrevistas, para
que dessa forma não sejam acometidos pelos “sintomas” do
desrespeito expresso nas palavras do presidente.
As construção tratamento pré-coice, utilizada pelo produtor do
meme com vistas a provocar o riso nos interlocutores, dialoga com
outros enunciados do contexto imediato, que fazem referência ao
tratamento precoce da COVID 19, assim como associam a figura
presidencial ao universo animalesco. A escolha das palavras e a
construção da forma verbal aponta para uma fala de aversão e
indignação diante das ações e do discurso de Bolsonaro. O
enunciado pré-coice, incontestavelmente, carrega em si o signo de
valoração pejorativa e, nesse caso, a carnavalização, o riso contido
no enunciado, não sugere um efeito de humor alegre, mas se
apresenta como um signo de resistência às grosserias e ao
autoritarismo do presidente. Considerando que “o riso é um ponto
de visto particular e universal sobre o mundo” (BAKHTIN, 1997,
p. 57), podemos compreender que esse ponto de vista expresso de
forma carnavalizada aponta uma oposição às forças oficiais de
opressão e brutalidade que encarnam as palavras e os atos do
presidente.
Na composição do enunciado, temos também elementos visuais, a
imagem do presidente Bolsonaro acompanhado de alguns
parlamentares, aliados políticos, em um de seus encontros com a
imprensa. Para estabelecermos algumas compreensões sobre essa
semiose do meme, precisamos nos reportar ao momento da fala do
presidente, já que os sentidos são sempre contextuais, e
pressupõem, portanto, um contexto imediato e um contexto social
mais amplo, como sustenta Volóchinov (2019).
O episódio retratado no meme ocorreu em São Paulo. A cena
retrata o momento em que Bolsonaro foi questionado, por uma

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

repórter da TV Vanguarda, aliada à rede Globo, sobre o uso da


máscara, que é um dos meios preventivos sugeridos pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) para evitar a contaminação
e a transmissão do Coronavírus. Após o questionamento da
repórter, podemos perceber que as mãos do presidente são
posicionadas para a frente, no momento em que ele a
responde: “vocês são uma porcaria de imprensa. Cala a boca!”. Essas
palavras expressam uma cena de grosseria de Bolsonaro com a
repórter, uma atitude considerada inesperada e inadequada em
nossa cultura, especialmente quando se trata da postura de um
presidente da república.
As palavras de desvalorização da imprensa e de ordem e
desrespeito para com a repórter revelam, além do o
posicionamento autoritário, um discurso grotesco que tenta
silenciar e intimidar a imprensa, representada pela repórter. Assim,
o riso presente na produção do meme rompe com a ideia
equivocada de que a linguagem do riso não pode dizer a verdade
sobre o mundo, que apenas o tom sério tem esse poder, essa força
expressiva (BAKHTIN, 1997).
A expressividade do todo do enunciado marca a avaliação do
produtor do meme, acentuando a posição contrária ao governo
Bolsonaro e às atitudes deste, manifestando, por meio do humor,
os valores que faltam a esse sujeito, uma vez que ele assume
comportamentos que não condizem com sua posição de
“representante do povo”.
O riso também coloca em jogo o embate entre as forças centrípetas
que tentam normatizar, impor, regularizar, e as forças centrífugas,
que surgem como meio de descentralizar, desestabilizar esses
discursos de autoridade (BAKHTIN, 2015). O que acentua a noção
de que o enunciado é uma arena de lutas, de embates de vozes
sociais, e, portanto, de possibilidade de resistência e libertação do
homem, ainda mais em tempos sombrios como esses que vivemos.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O riso como novas perspectivas de ver e anunciar o mundo


Em nossas reflexões, podemos observar que o riso apresenta
múltiplas faces, e assim como na praça pública da qual trata
Bakhtin (1997), o riso também se constitui, no meme escolhido para
essa discussão, como um signo de resistência às tiranias, aos tabus,
aos preconceitos e às normatizações de poderes oficiais. O riso no
meme apresenta, assim, uma valoração critica quanto às ações e o
discurso grosseiro do presidente Bolsonaro, sinalizando, assim, no
embate de vozes sociais, outras perspectivas de ver o mundo.
Desse modo, o projeto de dizer e toda a força expressiva do meme
da página do jornal Sensacionalista constituem vozes sociais que se
inscrevem em uma arena de lutas contra forças ideologicamente
construídas. O riso encarnado na composição do meme expressa
uma potencialidade de se impor a discursos autoritários que não é
menos significativa que a do “sério”. Logo, compreendemos que o
riso não só pode tratar de coisas sérias, como pode ser considerada
uma forma diferente, leve e libertadora de ver e anunciar o mundo.

Referências
BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas.
Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas de
edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo; Editora 34, 2017.
BAKHTIN, M. Teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio,
notas e glossário de Paulo Bezerra. Organização da edição russa de
Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. 1ª ed. São Paulo: Editora 34,
2015.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal: introdução e tradução do
russo Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Paulo: HUCITEC. Brasília. Editora da Universidade de Brasília.


1997.
GUERRA, C., BOTTA, M.G. O meme como gênero discursivo
nativo do meio digital: principais características e análise
preliminar. Domínios de Lingu@gem. v. 12, n. 3, p. 1859-1877, 2018.
KAFLE. S. R. Traços de carnavalização na instauração do humor em A
farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna. 2012. 130 f. (Dissertação de
Mestrado em Linguística Aplicada), Universidade do Vale do Rio
Sinos. 2012.
LARA, M. T de A.; MENDONÇA, M. C. O meme em material
didático: considerações sobre ensino/aprendizagem de gêneros do
discurso. Bakhtiniana, v.15, n. 2, p. 185- 209, 2020.
MIRANDA, D. Carnavalização e multidentidade cultural:
antropofagia e tropicalismo. Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, v. 9, nº 2, p. 125-154, 1997.
VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia. Ensaios,
artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio
introdutório e notas de Sheila Grilo e Ekaterina Vólkova Américo.
São Paulo: Editora 34, 2019.

[1] Descrição da página: “O jornal isento de verdade”. Acesso em: 02


de Set. de 2021.
[2]Disponível
em:< https://www.instagram.com/jornalsensacionalista/?hl=pt-br>
Acesso em: 29 Ago. de 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

NEPALP: círculo de debate, prosa e poesia, riso e resistência

Ana Lúcia Machado


Universidade Federal de Santa Catarina
analuciamachado1999@gmail.com

“[...] “em Rabelais, o corpo grotesco se mistura não apenas


aos motivos cósmicos, mas também aos motivos históricos de
uma sociedade utópica e, principalmente, aos da sucessão
das épocas e da renovação histórica da cultura”.
(BAKHTIN)”

Para o início da conversa


A epígrafe que abre este texto nos impulsiona pensar muito sobre
nosso lugar e estar, na contemporaneidade, vivendo diferentes
perspectivas acerca do fenômeno do grotesco a partir, também, de
diferentes prismas e da certeza de movimento, transformação e
renovação.
Qual nossa primeira impressão sobre a palavra “grotesco” estando
no bojo de uma crise ética, estética, sociocultural, estando o
contexto capilarizado por uma sanha autoritária e conservadora? O
grotesco enquanto algo que nos remete aquilo que é grosseiro e
indiferente a dor do outro, que escarnei ostensivamente da
desgraça alheia? Ou, o grotesco como expressão de resistência à
brutalidade e violência verborrágica e brutal do cotidiano,
expressão de resistência assentada sobre o debate coletivo e a
amalgama entre o eu e a coletividade e, assentada, também, sobre
o riso e o lirismo, e a jocosidade e a confrontação entre os discursos
oficiais e não oficiais?

102
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Como bem nos mostra o autor: “Na cultura de múltiplos tons até
os tons sérios soam de outro modo: sobre eles recaem os reflexos
dos tons cômicos; eles não perdem a sua exclusividade e sua
singularidade, são completados pelos aspectos do riso”
(BAKHTIN, 2017: p.25).
Grotesco enquanto momento de ressignificar as coisas que nos
cercam, grotesco para entender que essa mixagem de práticas e
enunciados, jeitos e portares no mundo representam o que é o
mundo aos nossos olhos neste momento, mas sem perder o
entendimento de movimento, da transitoriedade e da dialética
histórica.
O próprio Bakhtin (2010), em sua análise, assinala o caráter
ambivalente do grotesco e sua negação no curso de formação e
“deformação” da história. Desde seu apogeu durante o século XVI,
na Renascença, quando o riso “tornou-se a expressão da
consciência nova, livre, crítica e histórica da época (p. 63)” , e no
século seguinte quando da sua decadência com a ascensão do
paradigma racionalista, dos governos absolutistas e da nova ordem
burguesa. Naquele momento até mesmo uma nova concepção da
teoria literária “se levanta contra a invenção artística, contra o
fantástico, defende o ponto de vista de um bom senso estreito e de
paradigma burguês (p. 89).

O caminho se faz no caminhar


Sou professora há mais de três décadas e por conta de meu
envolvimento com as questões da docência tanto por atuar no
Ensino Fundamental, no espaço da alfabetização e do letramento,
quanto por ter trabalhado durante quinze anos como professora no
Ensino Superior nos cursos de Pedagogia e Educação Física, em
2018 pude me integrar ao Núcleo de Estudos em Alfabetização e
Língua Portuguesa (NEPALP) e me inseri, então, mais

103
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

profundamente nos estudos, discussões e debates focados nas


questões da linguagem e nas obras do Círculo de Bakhtin.
O NEPALP foi criado no ano de 2001 por professoras do Centro de
Educação (CED) da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) e dentre seus objetivos se propõe a dar contribuições aos
estudos e práticas no espaço da alfabetização, da literatura e da
apropriação da língua portuguesa, questões sempre pertinentes a
professores e professoras de todas as áreas e a minha pessoa que
desde os idos anos da década de 90 se vê instigada a aprofundar
conhecimentos e práticas pedagógicas acerca das interações
discursivas em sala de aula.
Neste ano, como integrante do grupo de pesquisa NEPALP fui
instigada, a partir das provocações de Bakhtin (2010), que por sua
vez às fez analisando a obra do escritor francês François Rabelais,
a pensar sobre o tema do grotesco na contemporaneidade, tanto
numa perspectiva de senso comum, quanto numa perspectiva
filosófica e histórica. Tal desafio, tanto atormenta com confusos
sentimentos como impulsiona à arte formidável do resistir.
O pertencimento ao núcleo de pesquisa NEPALP tem nos mostrado
que sim, é possível buscar resistência no estudo sistemático, na
comunhão de expressões da arte, na certeza compartilhada de que
dialogicamente minha humanidade depende do outro e que há
uma profícua relação entre literatura, cultura e a análise
bakhtiniana acerca do riso. Neste sentido, os debates no grupo
também nos fornecem recursos para a empreitada humana
constante por ressignificação das perspectivas éticas e estéticas,
ressignificação também do que seja a luta por justiça e cidadania,
bem como, fornecem ferramentas para a prática e análise de outras
portas viáveis no espaço da docência.
Na obra “O conto da Ilha desconhecida”, Saramago (1998) nos faz
refletir que não é porque se pressupõe que os geógrafos já
mapearam e cartografaram todas as ilhas, que não existam outras

104
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ilhas por conhecer pois que novos horizonte, mares e sonhos são
possíveis com vontade e obstinação;
[...] E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu
to pudesse dizer, então não seria desconhecida, A quem ouviste tu
falar dela perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse
caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque
é impossível que não exista uma ilha desconhecida, [...] (1998, p.
17).
Nada é estanque e o germe da resistência, a compreensão da
fantasia, da arte, do riso nos possibilita a busca por outros barcos,
outras ilhas por conhecer. Nesta empreitada, a partir de grotesco
resistência, é possível jogar velas ao mar e mover-se no horizonte
na tentativa de atravessar a crise que nos orbita através do coletivo,
da dialogicidade entre eu e o outro, da alteridade para com a
palavra do outro, do riso como resistência, como bem expressou
Bakhtin (2010), referendando o teórico russo L Pinski,
quando assinalou que a principal fonte do riso é “o próprio
movimento da vida”, isto é, o devir, a alternância, a alegre
relatividade da existência” (p. 121).
Imersa nesse processo de debate e discussão, princípio a
constatação de que as concepções de autores como Bakhtin e
Rabelais, além de nos revelarem a relação entre cultura e literatura,
também, falam muito conosco na contemporaneidade e nos dão
suporte teórico, histórico e estético para suportarmos,
enfrentarmos, transpassarmos os descaminhos que o fenômeno do
autoritarismo fez emergir. Já que a noção do grande tempo nos
mostra a coexistência de sentidos ao longo da história
A noção de grande tempo integra a dimensão do tempo dialógico,
conforme concebido pelo pensador russo. Sua perspectiva teórica,
filosófica, histórica, caracteriza e define tempo a partir do diálogo,
relações indissolúveis entre diferentes dimensões. Configura-se

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

como se sabe, o diálogo com o espaço, sustentado pelo conceito de


cronotopos (BRAIT, 2019: p. 49).
Participo do NEPALP há pouco mais de três anos e me vejo afetada
sobre o enfoque da filosofia discursiva da linguagem a cada novo
encontro. Tenho estado em sala de aula como professora há mais
de trinta anos e a partir do diálogo com as obras do Círculo de
Bakhtin, mais do que nunca, organizo e analiso minha prática
pedagógica fazendo o cotejando de categorias como enunciação,
polifonia e dialogismo.
Nos últimos três anos, o grupo diminuiu e posteriormente voltou a
crescer, e como cresceu! Hoje, somos mais de vinte e nos debates e
diálogos quinzenais vamos ampliando nossa compreensão, não só
acerca da linguagem e as práticas pedagógicas discursivas, mas
também, sobre o mundo e a cultura, bem como, nossa
responsabilidade estética para com esse contexto.
Neste ano alteramos o rumo dos debates e aquilo que a princípio
parecia deslocar-nos para outro polo, nada mais fez do que nos
lançar a voos inimagináveis tempos atrás, nos levou a novas
cartografias. Mexeu “grotescamente” com todo grupo e afetou-nos
muitíssimo sob diferentes perspectivas. Nos oportunizou pensar na
relação entre literatura e cultura e também no riso “como visão de
mundo, a partir da oposição cultura oficial/cultura popular[...]
(BRAIT, 2019: p.53).
Nos deparamos com as dicotomias do entendimento do que seja o
grotesco: o grotesco enquanto expressão de resistência popular ou
o grotesco enquanto enunciado de expropriação e alienação das
camadas populares. O grotesco enquanto resistência nos remete
pensar no escárnio e no riso como direito e lucidez, nas palavras do
autor “[...] o riso, menos do que qualquer outra coisa, jamais
poderia ser instrumento de opressão e embrutecimento do povo.
Ninguém conseguiu jamais torná-lo inteiramente oficial. Ele
permaneceu sempre uma arma de liberação nas mãos do povo”
(BAKHTIN, 2010: p. 81).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Bombardeados que somos cotidianamente por falas que


privilegiam o absurdo, a morte, o descaso com a coisa pública e a
indiferença às dores do outro, tratamos de predicar irascivelmente
essas narrativas como algo grotesco e nos distanciamos do riso
enquanto libertador, antissistema, descortinador de verdades,
[...] as portas do riso estão abertas para todos e cada um. A
indignação, a ira, a revolta, são sempre unilaterais: excluem aquele
contra quem se indignam, etc., provocam uma ira responsiva. Elas
sempre se dividem, ao passo que o riso só unifica, não pode dividir.
[...] tudo autenticamente grande deve incorporar o elemento do riso
(BAKHTIN, 2019, p. 25).
Bom, mas para os participantes do NEPALP esses diferentes tons
do grotesco foram altamente frutíferos e, nos fez e faz, revisitar a
cada novo encontro o conceito de polifonia, na medida em que
somos constituídos por inúmeras vozes e distintos sentidos e que
“A palavra é um evento social, não está centrada em si mesma
como certa magnitude linguística abstrata, nem pode ser
psicologicamente deduzida da consciência do falante subjetiva e
ilhada” (VOLOCHÍNOV, 2013: p. 85).
As discussões e debates sobre o tema, nos oportunizam retomar
teóricos e artistas da literatura de outras épocas e de hoje e a cada
encontro, ampliamos nossas formas de olhar para o humano, o
mundo, o estar no mundo e produzir-se estética e eticamente nele
sempre com o outro.
Uma questão que entendo deva ser muito ilustrativa sobre o clima
dos encontros que começaram a se dar de forma remota desde 2020,
em meio ao isolamento social provocado pela crise sanitária da
COVID-19, foi a institucionalização de um brinde inicial, que tem
sentido de confraternizar e celebrar as presenças. Geralmente
realizado com copos e taças com água, foi batizado de “O brinde
das águas”; água símbolo da vida, elemento muito oportuno para

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o início de uma boa e frutífera conversa sobre “a vida na vida


vivida”.
Ao brinde segue-se para os momentos de “Amorosidade Poética”
ou riso/arte, momento de fruição estética, de deleite mas também
de debates. Nesses momentos compartilhamos vídeos, excertos
literários e poemas que nos fizeram e fazem transitar por diferentes
tonalidades do riso, da resistência já que “O riso não coíbe o
homem, liberta-o” (BAKHTIN, 2019: p. 25).
Em um de nossos encontros, a resistência e a arte de deleite, fruitiva
e desopilante acabou fluindo com apresentação do poema de
Manoel de Barros do livro “Memórias Inventadas -As Infâncias de
Manoel de Barros “Pecados solitários”, um texto lindo em todos os
sentidos, que muito nos agradou e nos fez enveredar pelas
possibilidades, levezas, lindezas e risos provocados pela poesia.
Entendendo as possibilidades do grotesco enquanto expressão e
amalgama de riso e resistência, prosa e poesia, dou aqui o devido
espaço e destaque ao poema já que “toda vivência de ordem
estética expele os limites do pessoal” (BAKHTIN, 2017, p. 413):

Pecados solitários
Quando eu estudava no colégio, interno,
Eu fazia pecado solitário.
Um padre me pegou fazendo.
- Corumbá, no parrrede!
Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e
decorar 50 linhas de um livro.
O padre me deu para decorar o Sermão da Sexagésima
de Vieira.
-Decorrrar 50 linhas, o padre repetiu.
O que eu lera por antes naquele colégio eram romances
de aventura, mal traduzidos e que me davam tédio.
Ao ler e decorar 50 linhas de Sexagésima fiquei

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

embevecido.
E li o Sermão inteiro.
Meu Deus, agora eu precisava fazer mais pecado solitário!
E fiz de montão
- Corumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu a fascinado pra parede.
desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato
Decorei e li o livro alcandorado.
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do do cheiro das letras.
fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
ficar no parrrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também eu aprendi a escutar o silêncio
das paredes.
Esses momentos iniciais são muito produtivos e nos provocam
“imperativamente” pensar tanto na relação entre arte e cultura, a
linguagem como processo multifacetado, aberto, histórico,
dialógico, arte e responsabilidade bem como nos assinala o
pensador:
Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida
é a orientação nesse mundo; é a reação às palavras do outro (uma
reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação
delas (no processo do domínio inicial do discurso) e terminando na
assimilação das riquezas da cultura humana (expressas em
palavras ou em outros materiais semióticos) [...] (BAKHTIN, 2019:
p. 38).
Hoje, ainda mais certa das minhas escolhas teóricas, como
alfabetizadora de crianças de um segundo ano do Colégio de
Aplicação da UFSC, em meio a este contexto do grotesco, do
fantástico, da resistência através da docência em espaço de
alfabetização, alfabetização no formato remoto, algo que também

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pode nos remeter à atmosfera do grotesco, reivindico ao trabalho


com a literatura possibilidades de superação e reinvenção de
mundos, discursos, diálogos e esperança,
Porque a literatura, mesmo assim, é uma metáfora da vida que
continua reunindo quem fala e quem escuta num espaço comum,
para participar de um mistério, para fazer que nasça uma história
que pelo menos por um momento nos cure de palavra, recolha
nossos pedaços, junte nossas partes dispersas, transpasse zonas
mais inóspitas, para nos dizer que no escuro também está a luz,
para mostrarmos que tudo no mundo, até o mais miserável, tem
seu brilho. (ANDRUETTO, 2012, p.24).
Como diria o pensador: “Como a história muitas vezes comete
erros, a comédia é necessária para corrigir tais deficiências”
(EAGLETON, 2020, p.51). E desse olhar para o estado de coisas
nasceu o “Projeto Ananse”. Por quê Ananse? Ananse a aranha da
lenda africana que, no intuito de dar alegria à gente de sua terra,
enfrenta deuses e desafios e traz as histórias que do entorno da
fogueira ao entorno de computadores, tablets, celulares nos
devolverão o riso, o riso potencializador de pensamentos, a
resistência.
Este projeto leva uma vez por semana, a partir de interações na
plataforma virtual, uma literária infantil a ser apreciada, discutida,
tema de desenhos e enredo de sonhos, já que uma proposta de
alfabetização com base nos referenciais bakhtinianos, concebe
[...] o processo de alfabetização de modo dialético e dialógico
caracterizado pela reconstituição contínua do universo de
referências das pessoas, não só linguísticas, portanto gerando
transformações e mudanças qualitativas no entendimento que
possuem de mundo (GOULART, 2019, p. 14).
As obras literárias são escolhidas com muitos critérios e seriedade.
Há que se respeitar a inteligência e sensibilidades de nossas
crianças. Há que ter uma arte gráfica que oportunize um debate
profícuo com o texto escrito, há que inspirar esperanças, distintas e

110
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

inusitadas reflexões e muitas risadas, no mínimo alguma, e estado


de bem-estar e já que a fogueira, ao redor da qual nossos ancestrais
se uniam e encantavam com diferentes narrativas e aventuras, foi
transferida para o computador da sala, é preciso pensar também
nos adultos já que: “As crianças se encantam com o possível e o
impossível. Os adultos se encantam em vislumbrar um caminho
que lhes devolva o sonho (SISTO, 2001, p. 22).
Dentre as obras apresentadas às crianças e degustadas por elas,
está “Uma planta muito faminta”, texto e ilustração de Renato
Moriconi, publicado agora em 2021 pela Companhia das Letrinhas.
Na nossa opinião, a obra, um livro ilustrado, permite uma surpresa,
distintas indagações e abertura de janelas a cada virada de página.
O enredo é de uma planta carnívora, de grande boca
escancarada, escancarada de dentes pontudos e fome sem fim. Uma
planta carnívora que quanto mais come, mais cresce e junto cresce
também a vontade de mais comer.
O texto inicia com uma plantinha singela e sem muitos atributos.
Na medida em que não satisfeita com a luz solar, emerge uma boca
gigantesca e tudo põe-se a devorar, começando por uma
desavisada lagarta, a uma borboleta, a um coelho, a um disco
voador e terminando com um coral de anjos. Quando por fim, se
encontra gigante e satisfeita, é devorada por um dinossauro
herbívoro, devorador-devorado, morte-renovação, fim!
Ao final da apresentação da narrativa, sonoras interjeições de
alegria, alívio, admiração: Ah!, Eita!, Ufa! As crianças abrem suas
câmeras e estão rindo, rebolando sentadas, cantarolando em
homenagem ao dinossauro herbívoro, figura fantástica e
apreciadíssima por todas, indistintamente.
Questionadas sobre o que acharam, algumas estão ainda digerindo
tudo o que viram com sorriso nos lábios e um brilho nos olhos,
outras relatam eufóricas que a história foi muito legal, que é uma

111
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

história muito diferente e que não esperavam por aquele final tão
bacana.
A vida segue, objetivo atingido: as crianças dormirão felizes
pensando que ao fim e ao cabo há que se chegar um dinossauro
laranja e feliz e devorará aquela que tudo insaciavelmente devora,
antes, porém, a alimentaremos com o grotesco de nossos dias.
Passados alguns dias, as crianças apresentam através de desenhos
e textos escritos os excertos de que mais gostaram. Nestas
representações saiu de tudo; da planta faminta de boca escancarada
a devorar uma borboleta, até dragão e disco voador. Entretanto, o
texto “ a planta cresceu e a fome também” foi algo a repetir-se em
várias reproduções.
A insaciabilidade da planta atraiu a atenção de muitos.
Insaciabilidade apresentada por uma boca arreganhada uma “boca
que afinal de contas que abriga um universo e constitui uma espécie de
inferno bucal” (BAKHTIN, 2010: p. 296) provoca o temor do sem fim
pois que apresenta nossa vulnerabilidade. Entretanto, sua derrota
é provocada por aquilo que é inesperado e como boa comédia
desencadeia o riso, pois que o humor pode libertar-nos do
“despotismo do princípio de realidade” (EAGLETON, 2020, p. 26).

Provisoriedade de uma síntese


Tentar em breves linhas apresentar as relações entre o grotesco, as
discussões no núcleo de pesquisa e as influências destes na prática
pedagógica no contexto da alfabetização, que circunstancialmente
se dá por meio de plataforma virtual, revela-se como desafio
hercúleo.
A práxis, tensionamentos entre a teoria e a prática, toma corpo na
minha atividade pedagógica e é potencializada a partir das
discussões do NEPALP onde as abordagens e categorias
bakhtinianas, dentre elas as diferentes potencialidades do riso e a
estreita relação entre dialogismo, polifonia, literatura e cultura,

112
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fornecem repertório teórico para pensar o grotesco resistência,


grotesco engajamento e perspectiva discursiva de alfabetização,
questões tão urgentes para a atual realidade.
Termino aqui minhas breves reflexões com as palavras com que
Saramago encerrou também o conto aqui já mencionado: “Depois,
mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na
proa do barco, de um lado e de outro, em letras brancas, o nome
que ainda faltava a caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A
Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma” (p.
62).

Referências
ANDRUETO, Maria Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. São
Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média. São Paulo:
Editora Hucitec, 2010.
_______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,
2013.
_______. Notas sobre a literatura, cultura e ciências humanas. São
Paulo: editora 34, 2019.
BRAIT, Beth (org). Linguagem e conhecimento (Bakhtin,
Volóchinov, Medviédev). Campinas (SP): Pontes Editores, 2019.
EAGLETON, Terry. Humor: o papel fundamental do riso na
cultura. Rio de Janeiro: Editora Record, 2020.
MORICONE, Renato. Uma planta muito faminta. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 2021.
SISTO, Celso. Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias.
Chapecó: Argos, 2001.

113
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo:


Companhia das Letras, 1998.
VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaevich. A construção da
enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores,
2013.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“A vida é uma canção infantil”: atos responsivos nas arenas de


luta, vozes e ambientes

Waleska Maria Costa Betini


Prefeitura Municipal de Vitoria
waleskabetini@gmail.com

A vida é uma canção infantil


É, sério, pensa, viu?
Belas e feras, castelos e celas
Princesas, pinóquios, mocinhos e...
É, eu não sei se isso é bom ou mal
Alguém me explica o que nesse mundo é real
O tiroteio na escola, a camisa no varal
O vilão que tá na história ou aquele do jornal [...]?
Diz por que descobertas são letais?
Os monstros se tornaram literais [...].
A vida é uma canção infantil, veja você mesmo
Somos Pinóquios plantando mentiras [...]
Precisamos voltar para casa
Onde era feita com muito amor (CESAR MC, 2019, Canção infantil. Grifos
nossos).

Ao ouvir a música Canção Infantil, pulsaram em mim


emoções, sentimentos e memórias afetivas poéticas. Por isso,
enuncio minha contrapalavra diante da indagação do autor sobre o
que é real no mundo. Minha resposta emerge emaranhada às
lembranças da minha infância, entrelaçada com as histórias
infantis, com as vozes polifônicas das personagens, da entonação

115
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

das narradoras, inclusive do prazer de folhear os livros


compartilhados com meus irmãos, das bonecas de pano
confeccionadas pela minha avó Maria Paula e pelas tias maternas.
Impossível esquecer as melodias suaves vindas dos discos
coloridos de vinil da Sonata Rio de meu pai e do tom emotivo-
volitivo das palavras de cada um deles quando queriam
nos corrigir, acariciar ou ensinar. Lembranças que ressoam de forma
delicada, potente e viva, no silêncio do meu coração.

Relembro da melodia sensível da voz doce de minha avó


que entoava cantigas populares, quadrinhas, brincadeiras de
adivinhações, contando os causos da roça entre outras. De modo
especial, recordo de um hábito deleitoso dela, que pontualmente,
parava o serviço da casa, às oito horas da manhã para ouvir conosco
as histórias dos clássicos infantis e as canções populares na antiga
Rádio Difusora de Cariacica. Conteúdos que ela fazia questão de
enaltecer. Lembrança amorosa que embala muitos sentidos! Além
disso, recordo dos cânticos e das preces quase inaudíveis
do terço mariano. Suas mãos, o seguravam sempre firmes. Recordo
da luz refulgente que incidia sobre a horta na casa dela nos dias
ensolarados e dos temperos verdes que, ainda hoje, me
aguçam. Impossível esquecer o cheiro de café torrado na hora
e passado no bule, tomado nas canecas esmaltadas, coloridas! E das
plantinhas bem cuidadas no quintal e colocadas como adornos
dentro de casa.

Lembro-me de como era especial registrar os momentos


mais importantes da nossa vida, mesmo com certa escassez de
recursos, havia um ritual para tirar fotografias, inclusive para
esperar o momento da revelação. As fotos, eram quase sempre em
preto e branco. Coloridas, só pelo dispositivo dos monóculos!
Lembranças da infância repletas de sensações contraditórias: de
bem-estar, aconchego e deleite, já que fui embalada por muitas
canções infantis! Essas melodias e composições ressoam em mim,
muita saudade, ao lembrar da polifonia das vozes suaves e fortes,

116
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

quase sempre afinadas, de minha mãe Maria Neuza e de algumas


tias, na “casa cheia” de minha avó materna. Família numerosa, de
gente batalhadora que fez grandes sacrifícios para sobreviver. Uma
narrativa repleta de significados com lembranças muito reais nas
memórias daqueles que me precederam e que evidenciam aspectos
diversos sobre mudanças e permanências da minha realidade
particular e coletiva. Todas essas falas eclodiram com várias
nuances nas narrativas dos meus familiares, muitas inclusive,
embaladas por emoções, choros, vozes embargadas, sentimentos
de medo e de dúvidas. Uma lembrança forte e real que se
assemelha, com a história de muitos, que percorreram essa
trajetória, em busca de melhores condições (de trabalho e estudo)
para seus filhos. Com efeito, recordo de alguns medos daquela
época, ao ouvir trechos de algumas músicas, tal como a canção:
“Peixe-vivo”:

Como pode um peixe vivo viver fora da água fria?


Como pode um peixe vivo viver fora da água fria?
Como poderei viver, como poderei viver?
Sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia?

O conteúdo dessa música estava atrelado ao meu maior


medo da infância, o de perder meus pais, avós, irmãos ou outras
pessoas queridas. Medo que se confirmou quando perdi meu avô
aos seis anos de idade. Havia ainda o medo de ser sequestrada, já
que uma de minhas tias maternas foi roubada na porta de casa. Um
relato recorrente na narrativa da família. Mas, na relação com
diferentes sujeitos, fui aprendendo que essas memórias sobre as
canções infantis abrigam vitalidade e potência. Elas também
podem ser nosso refúgio diante de algumas circunstâncias,
podendo ainda indicar nossas fragilidades, agonias e traumas.
“Este é então o modo pelo qual se dispõem em torno dois centros
valorativos os componentes do evento existencial [...]”. (BAKHTIN,
2010, p. 137). Isso demonstra que um acontecimento, uma palavra

117
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ou uma imagem podem ter diferentes significados sobre essas


canções infantis, pois, os conteúdos delas indicam valorações
diferentes para cada pessoa, portanto, sentidos distintos.

Dentro desse contexto, o cantor e compositor capixaba


Cesar MC, autor da música A vida é uma Canção infantil desconstrói
paradigmas sociais sobre essa temática porque traz um tom
provocativo e reflexivo na letra da música. Um rap, que é uma
metáfora dos contos infantis com a vida real. O cantor, impressiona
antes mesmo de emitir uma só palavra! É de arrepiar o modo como
ele é responsivo ativo ao vociferar sobre o que percebe em relação
às condições concretas que ocorreram nas periferias do país desde
tempos remotos até o cenário atual. Ele responde, não somente com
sua voz (alta e grave), mas, também com os diferentes cenários do
videoclipe e com o seu figurino intencionalmente planejado. A sua
forma de dançar, o seu semblante ao relatar o que viveu junto aos
seus, nas diferentes etapas da vida, desde a infância tem o tom de
denúncia. Dessa maneira, sua voz esbraveja, protesta, grita, enfim,
é um brado por justiça social. “O tempo assume espessura e peso
de ordem valorativa, enquanto flui na vida de um ser humano
mortal”. (BAKHTIN, 2010, p. 130).

Nessa ótica, as mudanças de cena, os movimentos de cada


uma expõem brincadeiras antigas permeadas num clima de afeto,
no ambiente de uma escola pública, o que me leva a constatar a
importância dada a esse espaço, considerando o papel crucial da
educação para o desenvolvimento integral do ser humano, no que
se refere aos aspectos psicológicos, sociais, culturais entre outros,
principalmente porque uma das funções: “da prática educativo-
crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas
relações uns com os outros e todos com o professor ou a
professora, ensaiam a experiência de assumir-se [...]” (FREIRE,
1996, p. 41).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Essa afirmação dialoga com as palavras do cantor Cesar


MC, com um chamamento, uma convocação para que cada um de
nós, assuma o seu papel na sociedade de forma ativa, crítica,
responsiva, (comprometida), com o bem coletivo. Portanto,
enunciando a importância de se considerar, que a mudança é
possível, porque:

É o saber da História como possibilidade e não como


determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como
subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade
com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não
é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem
intervém como sujeito de ocorrências (FREIRE, 1996, p. 77,
grifos do autor).

Com base nessa fala, observa-se que a realidade não é dada,


ao contrário, ela é historicamente construída, portanto, pode ser
modificada. Com isso, os autores mencionados se pronunciam
apontando a necessidade de se fazer o bem, para concretizar ações
coletivas para transformar o cenário de desigualdades e de
opressões. Por isso, cada vez que revejo as cenas e ouço a canção,
fico emotiva aos detalhes dos diálogos. Os protagonistas, em sua
maioria, são adolescentes negros e negras. Eles atuam de forma
responsiva ativa quando indagam, enunciam suas palavras e
contrapalavras, atingindo lugares profundos não só de quem habita
esses territórios, mas, de todos aqueles que se comprometem com
a libertação do povo, como ensina Freire (1987), (1996), Frei Beto
(2019) e outros. A exemplo, trazemos a narrativa do padre Julio
Lancelloti, (2020) que reverbera essa forma de agir no mundo.
Numa entrevista, ele enfatizou: Humanizar a vida significa entender
que existe conflito. E você não humaniza a vida numa sociedade como a
nossa, sem conflito.

A enunciação do padre se articula com vários trechos do rap


de Cesar MC, ela dialoga com as vozes dos adolescentes que

119
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cantam e problematizam as situações-limite de violências, de


negligência do Estado. Essas vozes indicam a necessidade de
dialogar com os sujeitos que estão no contexto para conhecer a
realidade, ouvir atentamente, o que eles dizem, para perceber as
fragilidades e intervir. No videoclipe são explícitos o racismo
estrutural e institucional, os tiroteios que invadem o espaço escolar,
colocando em risco a vida de muitos. Cenas que expõem a
problemática social de forma muito real, provocando reflexões
sobre as forças ideológicas, o embate entre o bem e o mal, tais como
as cenas apresentadas no videoclipe. Um cenário genocida, de
ausência de cuidado e proteção por parte do Estado, conforme
afirmou o cantor numa entrevista quando declarou que perdeu
vários amigos nessa batalha: “Eu ficava no meu terraço pensando em
como os cantos infantis fazem sentido de um jeito assustador!”

Essa enunciação do artista reverberou com muita potência


dentro de mim, porque o conteúdo de sua canção infantil me causou
desconforto e agonia. Não somente porque atuo como professora
em duas escolas públicas de educação infantil sendo, uma delas, de
realidade semelhante àquelas apresentadas no videoclipe. Diante
do exposto, recordo uma premissa de Bakhtin (2010, p. 142): “Eu,
como único, emerjo do interior de mim mesmo enquanto a todos
os outros eu os encontro”. Ou seja, independente da minha
participação do contexto do outro, eu me encontro com ele, com
suas dores, angústias e medos, sobretudo porque o cenário da
realidade atual é implacável, perverso e desumano, marcado por
violências diversas e desigualdades sociais. Mas eu não estou só!
Ao ver as cenas do videoclipe, ao escutar a música e prestar atenção
na letra, me encontro com as vozes dialógicas de cada um dos
integrantes do Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GeGê),
nas rodas de conversa que ocorrem semanalmente de forma
virtual, principalmente porque todas as questões apresentadas
na Canção infantil do Cesar MC são pontos cruciais da nossa vida
real, da nossa luta, da nossa resposta, do lugar único que cada um
ocupa nas relações sociais com esse outro (BAKHTIN, 2010).

120
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A canção traz uma série de concepções atreladas a diversas


áreas do conhecimento dentre as quais: a linguagem, suas funções,
sua força, ideologias, alienação, imaginário social, silenciamento,
consciência, libertação, opressões, angústias, condições materiais
de existência, consciência, a relação entre o bem e o mal, momentos
de crise, sujeitos, a relação “eu e o outro”, educação, cidadania e
outras. Em virtude disso, é interessante observar, uma fala que é
muito recorrente em todos os encontros. A entonação firme e
acolhedora do professor Valdemir Miotello, coordenador do
Grupo, que afirma: A gente precisa ser resistência, dar uma resposta,
cuidar um do outro! A gente precisa expulsar o opressor que tem dentro
de nós! A nossa palavra é a nossa força, é nosso ato de resistência!
Segundo Bakhtin (2010, p. 98): “O ato responsável é, precisamente,
o ato baseado no reconhecimento desta obrigatória singularidade,
seja o que for e em que condições me seja dada, eu preciso agir do
meu lugar único, [...]”. Na ressonância dessa voz, Bel expressa sua
preocupação sobre o que tem percebido na realidade fascista do
atual presidente da república, Jair Bolsonaro, lamentando:

Eu sinto que há uma falta de vontade, por parte de muitos! É muita


gente que reclama... professores, diretores! Outros. Discutem-se
coisas banais, mas não se discute o que é importante! Que revolução
é essa que a gente quer fazer? Há muita intolerância, muita
arrogância. Mas, Paulo Freire nos impressiona com o modo
provocativo da sua fala, principalmente quando mostra como devem
emergir as lideranças políticas do país. E a gente tem UMA
LIDERANÇA! Olhem a CPI, olhem para o BOLSONARO e
para a família dele! Essas são as NOSSAS lideranças! Lá
chove dinheiro! Nenhum deles tem compromisso com o povo! Eles
estão muito distantes de nós, da nossa realidade. Por isso, a gente
precisa conversar entre nós! A escola tem que dialogar entre si, os
diretores, os professores, todos, mas, nós também temos que dialogar
com nossos amigos, com nossa família! Há muita gente sem
paciência, há muito individualismo, há muita
NEGAÇÃO! (MOURA, - jun. 2021).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Essa enunciação da Bel[2] expressa concepções semelhantes


com a de outros integrantes do Gegê. As falas indicam a
importância de se ocupar outros ambientes para se alargar as
possibilidades de resistência contra o fascismo, o individualismo, a
necropolítica e todas as formas arbitrárias de poder. As palavras
dela, nos move, nos impulsiona a acreditar, especialmente quando
ela destaca um dos trechos enfatizados por Freire, (1987, p. 48): “[...]
Crer no povo é condição prévia, indispensável, à mudança
revolucionária. Um revolucionário se reconhece mais por esta
crença no povo que o engaja do que mil ações sem ela”. Diante
disso, trazemos as palavras encorajadoras do professor José Kuiava
que sempre nos contagia com seu tom de voz emotivo e potente:

Nosso lugar de luta é nas escolas, nas agremiações estudantis, nos


partidos políticos, nos sindicatos, nos movimentos sociais, nos
Conselhos de Escola e outros. Precisamos ser uma resistência
coletiva, em todos os lugares, especialmente diante de tantos
ataques à democracia. Na minha opinião, TODOS os professores
deveriam ler a obra: “A Pedagogia do Oprimido” e praticá-la. Essa
leitura deveria ser obrigatória nas escolas, nos cursos de formação,
de todas as licenciaturas! Todos os professores deveriam conhecer!
O que Paulo Freire escreve é muito PROFUNDO! Eu me
emociono, só de falar! (KUIAVA, _ mai. 2021)

Contudo, ao articularmos essa fala com a da professora Bel,


quando ela reflete sobre as ações dos atuais líderes do país, nos
deparamos com o grotesco, o bizarro e caricato. Assim, como se
percebe em várias situações do cotidiano, inclusive na postura de
parte da classe média, narrada nos versos do rap de Cesar MC, em
que o cantor frisa: Dizia o poeta, o que é feito de ego na rua dos tolos gera
frustação [...]. Por isso, em outro trecho ele canta: Havia outra casa, no
canto da quebrada. Sem rua asfaltada, fora do padrão. Eternit furada,
pequena, apertada, [...] Mas fé não faltava, tinham gratidão!

Essa fala e outros diálogos estabelecidos em diferentes


contextos, inclusive no Gegê, indicam que muitas vozes e ações do

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cenário social estão ligadas a ideia do grotesco. Essa palavra


significa: “Que suscita riso, ou escárnio; ridículo”, (FERREIRA,
2010, p. 388). E também pode ser: “aquilo que é repelente,
horrendo, asqueroso, desagradável, [...], abominável, vomitante,
odioso, indecente, imundo, sujo, obsceno, repugnante, assustador,
abjeto, monstruoso, horrível [...]”. (ECO, 2007, p. 18). Essas
denominações estão associadas a algo pejorativo. Entretanto, há
outras definições para o termo, nem sempre facilmente,
compreendidas, uma vez que ele pode assumir um caráter
ambivalente, porque evoca o grotesco associado ao riso:

O verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o


sério; ele purifica-o e completa-o. Purifica-o do dogmatismo,
do caráter unilateral, da esclerose, do fanatismo e do espírito
categórico, dos elementos de medo ou intimidação, do
didatismo, da ingenuidade e das ilusões, de uma nefasta
fixação sobre um plano único, do esgotamento estúpido. O
riso impede que o sério se fixe e se isole da integridade
inacabada da existência cotidiana. Ele restabelece, essa
integridade ambivalente. Essas são as funções gerais do riso
na evolução histórica da cultura e da literatura (BAKHTIN,
2010, p. 123).

Como se pode perceber, o riso possui vários sentidos,


dentre os quais, ambivalente, universal, dissimulado e outros. Ele
apura, aclara, afina sobre o significado do que é sério, sobretudo,
retira a indiferença, porque nega a ideia do que é monofônico e
petrificado. Ao contrário, o riso liberta e alarga, porque traz um
sentido de carnavalização contra as opressões. Ele é inacabado,
conforme sugere o autor. Assim, como podemos perceber num dos
trechos na canção de Cesar MC que diz: Se o Mengão jogar, pode até
parcelar. Vai ter carne, cerveja, refri e carvão. Essa ideia confirma o
quanto a cultura popular busca brechas para retirar o peso da vida,
mesmo sem ter condições financeiras, diante do que vivencia, como
abordado no rap: As moeda contada, a luz sempre cortada. Mas, fé não

123
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

faltava, tinham gratidão. Mesmo diante das injustiças e das


desigualdades sociais, com toda essa aspereza, da vida precária, no
cotidiano, transforma a dor em alegria, em carnavalização. Há os
festejos, a ironia, mesmo diante das situações difíceis, caóticas ou
sofridas.

Por tais razões, cumpre evocar a voz de Frei Betto (2019)


numa publicação: “Naturalização do horror” em que ele descreve
os dez passos da barbárie do governo Bolsonaro citando que uma
das estratégias utilizadas é fazer com que haja o esvaziamento do
discurso político e impregná-lo de moralismo. Além do total
descaso com as desigualdades sociais. Logo, o frei afirma: Seu foco
não é o atacado, é o varejo: “filme com Golden shower”, filme da “Bruna
surfistinha”, kit gay que nunca existiu; proteção da moral familiar etc. Isso
toca o povão mais sensível à moralidade que a racionalidade”. Exemplos
que evidenciam claramente a concepção do grotesco como uma
possibilidade de criar uma energia carnavalesca para descontruir o
autoritarismo, e escapar das arbitrariedades, sem negá-las, mas, a
partir de um olhar enviesado sobre elas.

Nesse sentido, recorro a indagação de Cesar MC: Alguém me


explica o que nesse mundo é real? Então, lanço minhas contrapalavras
para afirmar, se algo é bom ou mal, depende de qual lado da
história cada um está, porque não há neutralidade, como ensinou
Freire (1987), portanto, não dá para ficar do lado do opressor e do
oprimido, ao mesmo tempo. Ou se educa para a alienação ou para
a emancipação do sujeito. Então, meu ato responsável reconhece
que o vilão está nos contos de fadas, mas, principalmente, na vida
real, nas notícias dos jornais, na retórica de ódio do presidente
Bolsonaro, na sua indiferença pelo ser humano, na sua forma de
silenciamento e de apagamento, do outro. Mas, também está nos
discursos progressistas de docentes que evidenciam uma prática
narradora nas escolas, como afirmou uma das integrantes do Gegê,
o que nos leva a uma afirmação da Canção infantil: Os monstros se
tornaram literais.

124
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Diante disso, nos deparamos com os grupos de religiosos


que não seguem os ensinamentos de amorização de Cristo, mas,
infelizmente, seguem um Messias que defende o armamento, o
racismo, a misoginia, a homofobia, a transfobia e outras formas de
violência. Há evidências que corroboram a existência de um
gabinete do ódio que disparou fake News na época da campanha
presidencial de 2018 para manipular o resultado das eleições. Além
do fato de haver um grupo de parlamentares que defendem a
ditadura. Mas, também por haver provas bem contundentes sobre
o aumento da corrupção no país com incontáveis escândalos,
mesmo durante a pandemia da Covid-19. E a negação do
presidente Bolsonaro para comprar as vacinas, o que aumentou de
forma avassaladora o número de óbitos. Soma-se a isso, os esquemas
envolvendo laranjas em várias áreas da política, a interferência de
Bolsonaro na Polícia Federal para proteger interesses particulares
de seus familiares, o que nos leva a outro trecho da canção: No fundo
a maldade resulta da escolha que temos nas mãos, consequência dos
nossos atos responsivos ativos, das nossas vozes, nos diferentes
ambientes, o que nos leva a constatar: “Mas, somente do interior do
ato aquele que age responsavelmente conhece uma luz clara e
distinta, na qual se orienta”, (BAKHTIN, 2010, p. 82).

Assim, mesmo diante do caos, faço a opção por manter


minha alegria e esperança, como ensina Freire (1996, p. 72): “A
esperança de que professor e alunos juntos podemos aprender,
ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos
obstáculos a nossa alegria”. Por tais motivos, assumo meu lugar
único, de mulher, de mãe, de professora, e outros, para enunciar
minha contrapalavra, afinal, o mais importante é não ser
indiferente ao outro, porque: “[...] É um ser humano esse centro, e
tudo neste mundo adquire significado, sentido e valor somente em
correlação com o ser humano, enquanto tornado desse modo um
mundo humano”, (BAKHTIN, 2010, p. 124). Portanto, assumo meu
lugar, irrepetível com meus atos responsivos ativos, nas diferentes

125
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

arenas de luta, usando minha voz e minhas ações como


instrumento de resistência com meus interlocutores.

Sem dúvida alguma, que conseguir manter a esperança e a


alegria, diante de um governo fascista e genocida é em si, um ato
revolucionário, de carnavalização e de resistência contra o grotesco
do nosso tempo. Por isso, retomo a última parte da epígrafe desse
texto, ao trazer a memória uma das cenas mais delicadas e sensíveis
do videoclipe. A beleza está no coletivo de vozes dos adolescentes
negros e negras que diante do seu contexto de exclusão e de
violência, são responsivos ativos ao iluminar o palco e entoar, um
coro de vozes de arrepiar que diz: Onde era feita com muito amor.
Entre quietude, pausas, silêncios e sons. Esse coro é uma resposta
ao trecho cantado pelo rap: Precisamos voltar pra casa! Que a última
cena do videoclipe, com suas luzes e sombras, sua potência, beleza
e significado nos ensine a tomar a atitude primeira, diante do outro:
a nossa responsividade ativa deve ser a amorização. É isso que
transforma a gente.

Referências

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. [Tradução


de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco]. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2010. 158p.
________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
o contexto de François Rabelais. Editora Hucitec, 2010. 419p.
BETTO. F. Naturalização do horror. Disponível
em: https://www.brasildefato.com.br/2019/08/08/artigo-or-
naturalizacao-do-horror-por-frei-betto. Acesso em 22 agos. 2021.
CESAR, MC. Canção infantil. Disponível em: https://music.
youtube.com/watch?v=oiGC1tyLEis&list=RDAMVMoiGC1tyLEis.
Acesso em 01 nov. 2020.

126
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

_______. Canção infantil: “Rap que faz chorar” revela Cesar MC,
que estudou matemática e foi campeão brasileiro de rima.
Disponível em: https://g1.globo.com/pop-
arte/musica/noticia/2019/07/04/cancao-infantil-rap-que-faz-chorar-
revela-cesar-mc-que-estudou-matematica-e-foi-campeao-
brasileiro-de-rima.ghtml. Acesso em 14 abr. 2021.
ECO. H. História da Feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.
FERREIRA. A. B. H. Mini-aurélio: o dicionário da língua
portuguesa. 8ª Ed. Curitiba, Positivo, 2010.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa. 1996. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987. 17ª. Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
LANCELLOTTI. J. Não se humaniza a vida numa sociedade como
a nossa, sem conflito. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2020-09-20/padre-julio-lancellotti-nao-se-humaniza-a-vida-
numa-sociedade-como-a-nossa-sem-conflito.html. Acesso em 20
mai. 2021.

Notas

Título da música de autoria de Cesar MC com participação


[1]

especial de Cristal no videoclipe oficial da gravadora Pineaple


Stormtv. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ri-
eF5PJ2X0. Acesso em 20 ago. 2021. Mc César é capixaba e foi criado
no Morro do Quadro em Vitória, Espírito Santo, grifos meus.

Maria Isabel de Moura, professora adjunta aposentada da


[2]

Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).

127
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Caguei!”: grotesco, medo e desprezo no discurso oficial da


Presidência da República

Sandro Viana Essencio


Université Paris Sorbonne
sandroessencio@yahoo.com.br

“O peixe vive pela boca” aforisma Guimarães Rosa ao visitar um


aquário em Nápoles. Numa inversão do dito popular que alude ao
fato de se falar demais, morrendo pela boca, o autor nos conduz à
reflexão de que também somos o que falamos. Nossa existência
vista a partir de nós mesmos, o eu-para-mim, se manifesta para o
Outro por intermédio do que falamos sobre nós e sobre nossa visão
de mundo e pelo modo como agimos. Assim, o conjunto de nossas
falas e ações forma a visão estética e ética do indivíduo na série
histórica, ou seja, um indivíduo “entra para a História” como um
discurso construído num dado tempo.
Quando a autoridade máxima de um país opta por exprimir
opiniões pessoais acerca de assuntos ligados ao cargo, e não ao
indivíduo que o ocupa, ela fornece um exemplo claro do aspecto
do discurso que é a relação entre quem fala e seu interlocutor. Eu,
para meus pais, sou filho; para meus avós, sou neto; para meus
alunos, sou professor; para meus amigos, sou igualmente amigo;
etc. A pessoa de carne e osso que desempenha temporariamente o
posto de Presidente da República, ao falar em rede nacional em sua
transmissão semanal, tem como interlocutor todos os concidadãos,
mesmo que em outras esferas da sua vida ela seja filha, avó, neta,
de outrem.

128
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A pandemia do novo coronavírus exigiu das lideranças políticas


um grande ímpeto de leitura da realidade e de tomada de decisão.
O mesmo aconteceu com o Brasil, em que o Presidente efetuou
pronunciamentos regulares ao longo de toda a crise, cuja
cronologia exemplifica a postura da Presidência.
Em março de 2020, quando o país registrava 25 casos e nenhuma
morte, disse: “Está superdimensionado o poder destruidor desse
vírus. Talvez esteja sendo potencializado até por questões
econômicas”; após a primeira morte: “Olha, a economia estava indo
bem... Esse vírus trouxe uma certa histeria. Tem alguns
governadores, no meu entender, eu posso até estar errado, mas
estão tomando medidas que vão prejudicar muito a nossa
economia”; e quando nos aproximávamos de 100 mortes: “Para
90% da população, isso vai ser uma gripezinha ou nada”, “No meu
caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse
contaminado com o vírus, não precisaria de me preocupar. Nada
sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou
resfriadinho”.
Em abril de 2020, ao chegarmos a 1200 mortos: “Parece que está
começando a ir embora essa questão do vírus”; com 5000 mortos:
“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não
faço milagre”. Em junho do mesmo ano, ao atingirmos a marca de
30 mil mortos, ao ser questionado sobre a quantidade excessiva de
vítimas respondeu à concidadã que o inquiria que ela deveria
“cobrar do seu Governador”, e que estava de mãos atadas devido
às decisões do Superior Tribunal Federal (STF).
Em novembro de 2020, com mais de 160 mil mortos :”Tudo agora é
pandemia, tem que acabar com esse negócio, pô. Lamento os
mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia, aqui todo
mundo vai morrer. Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem
que deixar de ser um país de maricas” e no mês seguinte,
questionando a eficácia e segurança das vacinas: “Se você virar um
jacaré, é problema de você. Se você virar Super-Homem, se nascer

129
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino,


eles (Pfizer) não têm nada a ver com isso”; na noite de 25 de
dezembro, com a marca de 250 mil mortos, criticou o uso das
máscaras de proteção dizendo que poderiam causar “irritabilidade,
dor de cabeça, dificuldade de concentração, diminuição da
percepção de felicidade, recusa em ir para a escola ou creche,
desânimo, comprometimento da capacidade de aprendizado,
vertigem, fadiga” nas crianças.
O Senado brasileiro, no exercício de suas funções constitucionais,
cria, em abril de 2021, uma Comissão Parlamentar de Inquérito
para então averiguar os possíveis erros e crimes cometidos pelo
Governo Federal, na figura do Presidente e de seus Ministros,
durante a crise sanitária. As investigações avançaram com
denúncias de corrupção, incompetência e possíveis projetos de
utilizar a população brasileira, mais especificamente a do
Amazonas, como cobaias na experimentação massiva de
medicamentos sem eficácia comprovada. Com o cerco se fechando
em torno da Presidência da República, o Presidente em pessoa
enuncia, em julho do mesmo ano: “Caguei! Caguei pra CPI!”.
Talvez por obra do acaso, poucos dias depois, como uma voz
sufocada por crises crônicas de soluços, o Presidente foi internado
com um quadro agravado de obstrução intestinal.
De acordo com a teoria da psicossomatização, o intestino delgado,
onde ocorre a verdadeira digestão dos alimentos, está associado ao
pensamento consciente e analítico, ali se produzem as diarreias. O
intestino grosso, por sua vez, estaria associado ao inconsciente, ao
lado sombrio do ser, e nele se produzem as prisões de ventre. A
obstrução intestinal aguda que leva alguém a ser para remoção
cirúrgica dos excrementos poderia se enquadrar naquilo que os
autores do livro A doença como caminho avaliam como “o medo de
que o conteúdo do inconsciente venha à luz do dia” (2006, p. 132).
Fato é que o Presidente optou pelo verbo “cagar”. Poderia até ter
optado por outras expressões que remetessem ao baixo corporal

130
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

para exprimir a mesma ideia como “estou pouco me fodendo”,


“que se dane”, mas não o fez. Dentre toda a riqueza do léxico, o
termo escolhido foi o verbo “cagar” conjugado na primeira pessoa
do pretérito perfeito do indicativo. De um ponto de vista da
materialidade histórica, uma mentira foi proferida. Tivesse mesmo
cagado, não teria sido internado pelo seu oposto. Outrossim,
recorrer aos elementos do baixo corporal é moeda corrente no
discurso não somente do Presidente, mas também de seu mentor
intelectual, um astrólogo e autointitulado filósofo que se vale
sobretudo de argumentos ad hominem que atacam seus
interlocutores com insultos que remetem sempre às áreas genitais.
Antes ainda da pandemia, no dia de 22 de abril de 2020, aniversário
de 520 anos do descobrimento do Brasil, durante uma reunião
ministerial que viria a público dois depois, o Presidente ameaça o
Ministro da Justiça de demissão caso não obtenha informações
privilegiadas, não admitindo que sua família e amigos sejam objeto
de investigação da Polícia Federal e, depois de mandar um “vá pra
puta que pariu!” e ilustra: “Os caras querem é a nossa hemorroida!
É a nossa liberdade”. O líder máximo de uma nação, temendo
investigações policiais contra pessoas próximas a si, profere tais
palavras diante de seus Ministros de Estado, exprimindo o medo
associando-o ao orifício anal.
Tendo se valido de um grande carnaval populista, baseado em
cólera e algoritmos, o grotesco empregado pela ideologia veiculada
pelo Presidente da República, bem como o dos discursos que o
gravita, é bem distante do grotesco rabelaisiano do qual falava
Bakhtin. O carnaval vivido por Rabelais e que movimenta suas
obras possui uma força histórico que o propulsa para a frente,
invertendo a lógica da ordem social fazendo do rei o bobo da corte,
elegendo um rei momo para servir como objeto de riso, a
valorização do corpo em processo, de sua inacabalidade. Mesmo o
uso da linguagem chula é diferente em ambos os casos.

131
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Quando surgiu para o grande público através de programa de


humor político no início dos anos 2000, o agora Presidente da
República fazia comentários sobre seus episódios zoofílicos, tão
naturais na vida rural, em que “todo mundo ia atrás de galinha no
galinheiro, alguns mais malandros iam atrás da bezerrinha, da
jumentinha… era comum”. Foi numa mistura de comentários
preconceituosos (aí incluídos os de teor homofóbico, sexista,
racista, xenofóbicos etc) e falas “grostescas” e ridículas, que o então
deputado adquiriu a notoriedade necessária para ascender ao
posto que agora ocupa.
Destacou-se muito mais por suas aparições em programas de
auditório em que era confrontado a situações supostamente
constrangedoras do que em sua atuação como parlamentar por
mais de duas décadas. Não é de hoje que esse tipo de grotesco anti-
rabelaisiano vem sendo praticado. No entanto, se, por um lado, o
recurso ao baixo corporal é o que deu visibilidade risível ao
Presidente, por outro lado, a carga axiológica encerrada por seus
discursos não é de subversão revolucionária como a encontrada em
Rabelais, mas sim de manutenção da ordem e do status quo.
Mas qual é então esse tipo de grotesco que se materializa tão
frequentemente nas falas do Presidente?
É o grotesco neo-fascista do carnaval populista descrito por
Giuliano da Empoli em Os engenheiros do Caos. Neste ensaio
sociológico, o autor franco-italiano analisa os elementos que
constituem o populismo de direita ou, valendo-se dos oximoros de
nossa era, a formação de uma “Internacional dos Nacionalistas”.
Da Empoli acrescenta ainda que na mesma noite em que o
Movimento 5 Estrelas, apoiado por Steve Bannon, concorria às
eleições pela primeira vez, vencendo com um quarto dos votos, o
episódio “Waldo”, de Black Mirror, ia ao ar na televisão inglesa.
Waldo é um personagem de desenho animado que não tem papas
na língua, diz o que pensa e participa do sufrágio com o intuito de
desmascarar a farsa e a hipocrisia do sistema democrático. A

132
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

popularidade do personagem é tamanha que ele chega a ser


incluído num debate oficial entre os candidatos. Com um discurso
repleto de insultos e ataques ad hominem, Waldo se torna o porta-
voz dos desalentados da política. Quando perde a eleição por uma
margem muito pequena de votos, Waldo ordena que seus
seguidores atirem os sapatos sobre a caravana de seu adversário,
provocando uma chuva de calçados como coroamento da vitória
de seu opositor.
A distopia mostra-se então profética. Não somente a eleição da
extrema-direita italiana daquele ano, como também a subsequente
vitória eleitoral de Trump, que é em si a encarnação exagerada do
Waldo, personagem de si mesmo num reality show, cujo discurso
carregado de ódio e notícias falsas desde 2008, chega a influenciar
políticos, como Barack Obama no caso do questionamento sobre a
veracidade de sua certidão de nascimento. Mesmo tendo admitido
anos mais tarde que se tratasse de uma notícia falsa que ele repassara
sem verificar, é importante notar que o primeiro passo declarado da
carreira política de Trump tenha se dado com base em uma mentira.
O grotesco rabelaisiano risonho, alegre e voltado para o devir
coletivo, era derivado da cultura popular e encontrava-se em
oposição ao sublime da ideologia oficial da igreja medieval.
Bakhtin descreve o Barroco como o encontro dessas duas correntes
de visão de mundo. Já o grotesco de tipo neofascista, por estar
esvaziado de sua força subversiva e revolucionária, encontra seu
sublime correspondente nas manifestações estéticas da pintora
Lucimary Billhardt que produz pinturas muito próximas à sintaxe
do realismo socialista stalinista, em que o exagero da harmonia
estética busca uma compensação para a desarmonia do real que
representa.
Enquanto redijo estas palavras, na noite de 7 de setembro de 2021,
199º aniversário da independência do Brasil, o Presidente vai a uma
manifestação em que defende a cassação de juízes da Suprema
Corte e ameaça a ordem democrática, dizendo que o povo não

133
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

admitirá que alguém ultrapasse as regras constitucionais, como ele


estava fazendo ao proferir suas ameaças a integrantes dos outros
poderes. No interior de seu discurso na Avenida Paulista, o
Presidente citou ainda a passagem bíblica que tanto é dita por ele e
os que o cercam: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
Nisso ele tem razão. Quanto mais soubermos as verdades do que
ele esconde em sua consciência, mais conhecimento teremos para
nos libertarmos da limitação ideológica que contaminou o país nos
últimos anos.

Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.
DETHLEFSEN, T.; DAHLKE, R. A doença como caminho. Uma nova
visão da cura como ponto de mutação em que um mal se deixa
transformar em bem. Tradução de Zilda Schild. São Paulo: Editora
Cultrix, 2006.
EMPOLI, G. Da. Les ingénieurs du chaos. Paris: JCLattès, 2019.
ROSA, J. R. Ave palavra. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
2005.
Compilações das falas do Presidente da República consultadas em:
Jornal Estado de Minas (acesso em 07/09/2021):
https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/06/19/interna_p
olitica,1278492/gripezinha-pais-de-maricas-as-frases-de-
bolsonaro-sobre-a-pandemia.shtml
Jornal Deutsche Welle (Acesso em 07/09/2021)
https://www.dw.com/pt-br/v%C3%ADrus-verbal-frases-de-
bolsonaro-sobre-a-pandemia/g-54080275

134
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Cidadão de bem”: uma análise dialógica do discurso de


autor(itarismo) (de um) brasileiro

Cláudia Graziano Paes de Barros


Universidade Federal de Mato Grosso
claudiagpbarros@gmail.com

A partir da perspectiva da “Análise Dialógica do Discurso” (Brait,


2006), o presente texto objetiva refletir sobre uma das expressões
que tomaram parte dos discursos da vida cotidiana brasileira, a
expressão “cidadão de bem”, aparentemente iniciada [e ainda
presente] no contexto do país em redes sociais e que passou a
tomar parte de diferentes esferas da vida dos brasileiros. Para este
estudo, pautamo-nos em alguns conceitos presentes na obra
bakhtiniana, cujo fundamento principal é a ideia que não há
palavra neutra, toda “língua viva” se constitui na interação
discursiva em dados momentos históricos e culturais.
Como vimos dizendo, em contexto brasileiro, podemos observar
que a expressão aparece no discurso de mídias digitais no início do
século XXI, momento em que se pode observar a presença de uma
polifonia no sentido bakhtiniano do termo, de discursos em
choque, de forças ideológicas distintas. De um lado, os anseios de
parte da população para que a efetivação dos direitos promulgados
pela Constituição de 1988, a reconhecida “Constituição Cidadã”,
criada em um contexto de um imenso abismo social, descortina
uma busca dos brasileiros pela efetiva participação social, o anseio
por direitos individuais e coletivos negados historicamente aos
brasileiros: a igualdade de gênero, o fim da violência contra as
mulheres, o fim da marginalidade social imposta a negros e

135
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

indígenas, para citar apenas alguns exemplos; no entanto, essa


busca pela cidadania e criação de leis mais inclusivas traz o seu
contraponto: a construção da ideia de que os direitos devem se
dirigir a um cidadão “de bem”, definido, no estudo realizado por
Bueno et al. (2016), como
aquele que merece a cidadania, a política pública, o tratamento educado
do policial, o que tem o direito de participar. Aquele que não faz parte dessa
categoria representa um elemento perigoso, que vem de espaços marginais,
polui e contamina... O cidadão de bem seria a tradução, pós-crises
econômicas da década de 1980, da categoria “trabalhador”... Se, nos anos
1980, vigorava o binômio “trabalhador” x “vagabundo”, agora temos o
“cidadão de bem” x “vagabundo”, numa atualização dessas categorias
frente às transformações socioeconômicas e demográficas vivenciadas pela
população brasileira nas últimas décadas. (Bueno et al., 2016, p. 348)
ênfase adicionada
Como se observa, os autores destacam que “cidadão de bem” é
uma expressão que designa “aquele que merece a cidadania” e, no
contexto histórico e cultural brasileiro da segunda década do século
XXI, tal expressão toma parte da corrente discursiva da população
em contraposição a “vagabundo”. Esses estudiosos consideram a
expressão “cidadão de bem”, a partir do ponto de vista da
Psicologia, “como um tipo de estratégia discursiva ideológica
(Montero, 2006) que expressa uma patologia social da cidadania
brasileira” (Bueno et al., 2016, p. ).
Os estudos realizados por esses autores se distanciam do momento
em que nos debruçamos sobre o tema para este ensaio em meia
década. Nesse tempo, vimos os discursos de desagregação no Brasil
se acirrarem de tal forma que um político pouco representativo se
afirmou como um “mito” dos que passaram a se auto-intitular
“cidadãos de bem” e acabou por se tornar não somente o presidente
do país, mas o representante de maior visibilidade de inúmeros
discursos de segregação social na história recente do Brasil.

136
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Dadas as limitações deste texto, selecionamos para essas reflexões


alguns dos usos que o atual ocupante da Presidência proferiu
publicamente. Consideramos esses enunciados não isoladamente,
mas como um “elo na cadeia” (Bakhtin, 2017, p. 26) discursiva da
cena sócio-histórica e cultural brasileira dos últimos anos. Por essa
razão e mesmo para demonstrar a seriedade deste estudo,
reforçamos que incontáveis enunciados proferidos pelo ocupante
da presidência do país que estão presentes em diferentes mídias
apresentam a expressão “cidadão de bem”. Além disso,
disponibilizamos, ao lado, os textos completos em que foram
utilizadas:
Todo vagabundo tá armado! Só tá faltando o cidadão de bem (5 de
fevereiro de 2018), disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=aR8x5QVRgd8
A vida do cidadão de bem não tem preço (10 de maio de 2019)
disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=9NKTRMPclgE
Moro estava “perfeitamente alinhado com outra ideologia” e atuou para
dificultar a posse e o porte de armas de fogo para os “cidadãos de
bem”. (01 de junho de 2020) disponível
em https://www.istoedinheiro.com.br/para-bolsonaro-moro-
atuou-para-dificultar-posse-de-armas-para-cidadao-de-
bem/ (ênfase adicionada).
A imprensa de novo fazendo matéria essa semana que tem dobrado ano a
ano o número de armas no Brasil. Eu quero que quintuplique. Quanto
mais armado estiver o povo, melhor é para todo mundo. Porque enquanto
a bandidagem estava armada com fuzil automático lá no Rio de Janeiro, a
imprensa não falava nada, estava legal, estava bacana. Agora quando o
cidadão de bem está comprando arma, o pessoal critica! (26 de
agosto de 2021) disponível em
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/08/4946023-

137
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

bolsonaro-ironiza-aumento-de-armas-no-brasil-eu-quero-que-
quintuplique.html
Como podemos observar nestes exemplos, o uso de “cidadão de
bem” contrapõe-se a “vagabundo” e “bandido” e esses exemplos
denotam que, para o seu autor, aqueles que não estão
“perfeitamente alinhados” com a sua ideologia não participam
dessa categoria.
Nessa medida, com Costa (2021, s/p), consideramos que a
expressão “cidadão de bem” se compõe como “parte de um
sistema de convencimento que tem consequências práticas, ou seja,
como resultado efetivo de uma práxis psicossocial historicamente
determinada”. Os desdobramentos que a popularização dessa
expressão trouxe ao contexto brasileiros são inúmeros e suas
consequências têm interferido em diferentes esferas da vida do
país.
Discursos inúmeros intencionam o fim de direitos trabalhistas, de
direitos à saúde pública, à educação pública, dentre outros. Um
deles, presente no enunciado A vida do cidadão de bem não tem
preço, desvela os sentidos que se atribuem às vidas daqueles não
são os considerados “cidadãos de bem” pelo locutor: são
precificáveis, passíveis de ser eliminadas por quaisquer valores.
Vidas sem valor.
Neste contexto, podemos observar alguns elos encadeados na
corrente discursiva criada neste momento histórico
brasileiro. Ligados a outros discursos que os antecederam e que os
seguirão, esses enunciados não somente respondem a outros no
interior dessa corrente, como também são elaborados em relação
aos interlocutores que a eles respondem. – os interlocutores que
ascenderam o político sem voz a “mito” e à cadeira presidencial
serão foco de outros estudos, dadas as limitações deste texto –
. Refletindo sobre as vidas sem valor, inúmeras vezes citadas de
modo velado na expressão “cidadão de bem”, observamos os
números relacionados à morte de brasileiros. Incontáveis mortes

138
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

causadas pela pandemia, sempre negada; mortes de negros; de


mulheres; de indígenas em aumento geométrico nos últimos anos,
sem contar os dados que se referem ao Brasil como o país que mais
mata a comunidade LGBTQIA+ no mundo, de acordo com dados
do Senado brasileiro.
Esses enunciados desnudam um discurso grotesco, o qual, da
perspectiva dos estudos bakhtinianos, é construído tanto pelo
conteúdo cômico – no presente caso, na possibilidade das múltiplas
leituras risíveis sobre a oratória do autor – como pela perda de
comportamentos considerados normais, o riso se relaciona a algum
tipo de deformação estética ou a algo obsceno e promove diversão
sobre um outro a quem se despreza, por quem se tem aversão.
O obsceno não dito e presente na expressão “cidadão de bem” é o
seu oposto: “o “vagabundo”, o indivíduo “do mal”, o sujeito cuja
vida é descartável. Nessa medida, essa proposta discursiva coloca
toda a população que não se encaixa nos ditos padrões estéticos e
comportamentais “perfeitamente alinhados com a sua ideologia”
(para não citar os padrões físicos, o que daria um novo ensaio)
novamente à margem dos direitos, ocasionando o panorama
caótico que se tem descortinado neste momento histórico do
país. Ao finalizarmos este texto, mas não as reflexões e a
indignação, observamos que a voz da autoridade representada pelo
cargo de presidente ocasiona não somente a verborragia em torno
da falácia perigosa do “cidadão de bem”, como promove a
violência, o medo e o ódio entre os brasileiros, violando,
continuamente, os direitos e garantias fundamentais proposta na
Carta Constitucional brasileira.

Referências
BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o
contexto de François Rabelais. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1987.

139
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

____. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Org. e


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chave. São Paulo: Contexto. 2006.
BUENO, S., LIMA, R. S., & TEIXEIRA, M. A. C. (2016). Sujeito ou
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Paulo. Sociologias, 18(42), 328-355. doi: 10.1590/15174522-
018004214. Disponível em
https://doi.org/10.1590/15174522-018004214. Acesso em 05 de
setembro de 2021
COSTA. J.F.A. Quem é o “cidadão de bem”? In: Psicologia USP
32. 2021. Disponível em https://doi.org/10.1590/0103-6564e190106.
Acesso em 05 de setembro 2021.

Sites:
Youtube. Todo vagabundo tá armado! Só tá faltando o cidadão de
bem. Pânico Jovem Pan(5 de fevereiro de 2018), disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=aR8x5QVRgd8. Acesso
em 04 de setembro de 2021.
Youtube. A vida do cidadão de bem não tem preço (10 de maio de 2019).
Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=9NKTRMPclgE. Acesso
em 04 de setembro de 2021.
Estadão Conteúdo. Para Bolsonaro, Moro atuou para dificultar
posse de armas para “cidadão de bem”. In: Isto é
Dinheiro. Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/para-

140
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

bolsonaro-moro-atuou-para-dificultar-posse-de-armas-para-
cidadao-de-bem/
SOARES. I. Bolsonaro ironiza aumento de armas no Brasil: “Eu quero
que quintuplique”“. Disponível
em https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/08/494602
3-bolsonaro-ironiza-aumento-de-armas-no-brasil-eu-quero-que-
quintuplique.html

141
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Eu estou te atrapalhando?” Uma análise do grotesco em nossos


tempos

Taila Jesus da Silva Oliveira


UFBA
tai.jds@hotmail.com

Myrian Conceição Crusoé Rocha Sales


UFBA
myriancrusoe@gmail.com

Lícia Maria Bahia Heine


Universidade Federal da Bahia
liciaheine@uol.com.br
Neste momento pandêmico, quais vozes sociais circulam e como
elas nos levam a reagir enquanto sujeito responsivo? Como somos
seres sociais e reflexivos, a heteroglossia (o pulular de vozes que
emerge das relações dialógicas) faz parte da nossa convivência, isto
porque, a linguagem é concebida como um conjunto de vozes
sociais que nos constitui. Na concepção filosófica de Bakhtin, o
princípio axiológico atravessa a concepção de linguagem
axiologicamente saturada, atravessando a concepção de cultura e,
consequentemente, alterando o social. Dessa forma, é por meio de
tais enunciações, das diferentes vozes, ou seja, do “agitado balaio
de vozes sociais e seus inúmeros encontros e entrechoques”
(FARACO, 2009, p. 84), que conseguimos evidenciar o grotesco dos
nossos tempos.
Dessa forma, podemos compreender que as vozes sociais “são uma
espécie de tecido em que se entrelaçam palavras e valores, são
conjuntos difusos de representações do mundo e sistemas sociais

142
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de crenças e elementos verbais assumida” (FARACO, 2020). Somos


seres constituídos pela interação com outras vozes sociais e esse
processo contínuo de construção e reconstrução abarca aspectos
sociais, históricos e ideológicos. Pensando dessa maneira, a
Linguística Textual (LT), ciência que se volta aos estudos do texto
e suas relações, vem ampliando seu escopo de análise,
evidenciando estudos voltados aos aspectos sócio-histórico-
ideológicos, propondo uma nova fase denominada
preliminarmente de “fase bakhtiniana”, defendida por Heine
(2014, 2015). Nessa fase, a autora, com base na concepção de
Bakhtin, defende um sujeito social, histórico que apresenta também
seu lado singular, constituído assim de duas faces: uma social e
outra singular. Além disso, o texto apresenta vozes sociais que
devem ser levadas em consideração no momento da construção de
sentidos que, muitas vezes, são silenciados nas análises textuais.
Esse momento da LT traz à baila os fundamentos da obra do
filósofo russo Mikhail Bakhtin e seu Círculo, asseverando os
aspectos sociais, históricos e ideológicos constituídos nos
enunciados, o que corrobora com os estudos da LT. Nesta proposta,
o estudo de referenciação é ampliado, indo além do código verbal,
surgindo, portanto, a referenciação semiotizada que transcende
concepções de texto centradas apenas no código verbal. Dessa
forma, os elementos de coesão podem também ocorrer por meio de
signos semióticos, realizados por ícones, símbolos, índices,
(HEINE, 2015, 2017, 2018, 2019). O que faz transcender o
denominado “erro clássico da Linguística Textual” (HEINE, 2019,
p. 99), em que os estudos estavam focados no código verbal e nas
relações estabelecidas na superfície textual.
Portanto, os estudos do Círculo de Bakhtin não trazem apenas as
ideias de gêneros discursivos e dialogismo, mas também aspectos
semiótico-ideológicos que colaboram nas pesquisas da Linguística
Textual. Assim, cada (signo) presente no texto remete o leitor a
outros textos, ultrapassando os limites cotextuais no processo de
compreensão textual, há um correlacionamento de dado texto com

143
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

outros textos, o que enfatiza ainda mais a não autonomia textual,


observando-o como parte de um projeto de dizer bem delimitado
em um contexto mediato de enunciação. Nesse sentido, tais
contribuições permitem revisitar o conceito de texto, vendo-o como
como um “evento dialógico, semiótico, falado, escrito, abarcando,
pois, não somente o signo verbal, mas também os demais signos no
seio social (imagens, sinais, gestos, meneios da cabeça, elementos
pictóricos, gráficos etc.) ” (HEINE, 2018, p. 18-19). Entende-se, com
isso, que as relações dialógicas se constituem como peça-chave para
a compreensão, pois é por meio delas que se encontram presentes
as diferentes vozes históricas que são evocadas na construção de
sentidos.
Como exemplo, vamos analisar as vozes sociais presentes na
charge do ilustrador Nando Motta.

Nando Motta
Disponível em: https://www.brasil247.com/charges/o-ministro-
que-so-atrapalha. Acesso em: 01 set. 2021

144
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nessa charge, concebida como um enunciado concreto, pois se


configura em um continuum discursivo, os signos verbais e não
verbais compõem o discurso sobre Educação Inclusiva no Brasil na
atual gestão. De um lado, vemos alunos e alunas com e sem
deficiência em um único ambiente escolar o que reforça as vozes
sociais que defendem a inclusão dos alunos em escolas regulares.
Do outro lado, há um discurso oposto que não aceita a inclusão de
alunos com deficiência na mesma escola em que frequentam os
alunos declarados sem deficiência, endossando práticas
capacitistas, sob as quais incide o olhar preconceituoso para a
pessoa com deficiência. Esta menção está simbolizada na cena da
charge onde há um adulto, representando o Ministro da Educação,
que está sentado na frente dos alunos, mais especificamente, de um
cadeirante que levanta a mão e diz: “Professora, o Ministro da
Educação tá atrapalhando!”. A escolha vocabular “atrapalhando”
remete aos discursos daqueles que não concebem ou não aceitam a
inclusão educacional. Na charge há um reflexo e refração da
realidade, pois ao mesmo tempo em que retoma o discurso do
Ministro da Educação, recria a ideia de “atrapalhar” através da
figura que se projeta maior frente aos alunos. A palavra
“atrapalhar” também pode ser compreendida com o desserviço
prestado pelo representante do Estado, ao proferir discursos que
diminuem e fragilizam a identidade da pessoa com deficiência.
As vozes sociais presentes nesta charge refletem e refratam o
episódio ocorrido com o Ministro da Educação, Ministro Milton
Ribeiro, ao declarar no dia 17 que “a inclusão de alunos com
deficiência atrapalha o aprendizado de outras crianças sem a
mesma condição”, e depois em 19 de agosto de 2021 que existem
crianças com "grau de deficiência que é impossível a convivência".
Por assumir uma posição de Ministro da Educação, estas
declarações, além de revelar preconceito em relação às pessoas com
alguma deficiência, mostra também o autoritarismo, para Bakhtin,

145
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A palavra autoritária não se representa – ela apenas é transmitida.


Sua inércia, sua perfeição semântica e rigidez, sua singularização
aparente e afetada, a impossibilidade de sua livre estilização, tudo
isto exclui a possibilidade da representação artística da palavra
autoritária (BAKHTIN, 1983, p.144).

Diante disso, a palavra dita autoritária se alinha aos discursos


oficiais e se impõe de modo incisivo ao outro, ela não permite
manobras e busca sempre influenciar para que seja aceita. Por essa
visão, pode-se afirmar que a palavra autoritária se distancia das
outras para que não haja uma dissolução do viés hierárquico
proposto por ela. Circula por distintas esferas sociais, representa a
voz da política, da ciência, da família etc.
Outro signo ideológico presente na charge é a máscara descartável
usada pela professora e alunos, apenas o Ministro está sem ela. Em
uma pandemia em que o uso das máscaras é uma recomendação
para a sobrevivência, vemos que ela simboliza também a ideologia
partidária, pois o próprio Presidente da República faz declarações
contrárias à ciência e não usa máscara, assim como seus Ministros.
Assim, o grotesco dos nossos tempos surge em múltiplas vozes que
fazem ecoar o preconceito, a alienação, o descaso governamental e
a negligência com os setores básicos da sociedade.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria


do romance. 3ª ed. São Paulo: Hucitec/UNESP, 1983.
FARACO, Carlos Alberto. A noção de autoria em Bakhtin e sua
contribuição para a leitura. Palestra GEADAS I CIESD – Congresso
Internacional de Estudos Sociodiscursivos & VI SENAL –
Seminário Nacional de Alfabetização e Letramento, 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U47ycDs6-zI
Acesso em 21 out. 2020.

146
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias


linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
HEINE, Lícia Maria Bahia. O texto no livro didático: reflexões e
sugestões. Salvador: EDUFBA, 2014.
HEINE, Lícia Maria Bahia. A fase bakhtiniana da Linguística
Textual. In: HEINE, Lícia [et al] (Org.). Sujeito e discurso:
diferentes perspectivas teóricas. Salvador: EDUFBA, 2015.p. 83-
122.
HEINE, Lícia Maria Bahia. Por que uma nova fase da linguística
textual? Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 08, n. 01,
jan./jun. 2017. Disponível em:
https://ojs.uespi.br/index.php/ler/article/view/45. Acesso em: 20
ago. 2017.
HEINE, Lícia; SOUZA, Iracema; SALES, Myrian. O Texto em
discussão: reflexões sobre uma nova fase na Linguística Textual. In:
HEINE [et al] (Org). Inquietações do texto e do discurso:
interpelações, debates e embates.1. ed. Salvador: EDUFBA, 2018.
p.15-32.
HEINE, L. M. B. A referenciação sob a perspectiva do texto como
evento linguístico dialógico. In: MADUREIRA, A. L. G.; SOBRAL,
G. N. T.; ALVAREZ, P. B. H. (org.). Fenômenos Discursivos: da
palavra ao corpo. Salvador: Eduneb, 2019. p. 89-10

147
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“NÃO TEM OUTRA MARCA?”: REFLEXÕES SOBRE AS


VOZES DO DISCURSO NEGACIONISTA SOBRE AS
VACINAS CONTRA A COVID-19

Gabriella Cristina Vaz Camargo


Universidade Estadual Paulista - Campus de Araraquara
gabriellavazcamargo@gmail.com

Este texto foi elaborado para o VIII Rodas de Conversa


Bakhtiniana, com o desejo de “pôr a palavra para circular” e foi
escrito para refletir sobre uma charge, de autoria de Nando Motta,
publicada em seu perfil no Instagram, em junho de 2021. A charge,
que compreendemos como um enunciado concreto (BAKHTIN,
2016), traz à tona o discurso do negacionismo em relação à
pandemia de covid-19. Nosso objetivo principal é analisar,
brevemente, o encontro de vozes que esse enunciado possibilita por
meio das relações dialógicas (BAKHTIN, 2015a) que promove e, para
isso, partiremos das orientações de Bakhtin (2015a, p. 211) que
afirma que: “as relações dialógicas podem penetrar no âmago do
enunciado, inclusive no íntimo de uma palavra isolada se nela se
chocam dialogicamente duas vozes”.
Nesse sentido, a título de compreender o contexto do enunciado
em análise é imperioso ressaltar que a corrida pelas vacinas contra
a covid-19 no Brasil e também no mundo tem provocado inúmeros
debates políticos, sociais, culturais e também científicos. Diversas
instituições renomadas, como universidades mundialmente
reconhecidas, laboratórios altamente qualificados, pesquisadores
premiados, e diversos movimentos sociais de todos os lugares do

148
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

globo têm se posicionado e pensado sobre como a doença tem sido


enfrentada e sobre quais os melhores caminhos para seu combate.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), desde o início da
pandemia, já concedeu inúmeras entrevistas e decretou vários
protocolos de segurança, em busca de conter, de alguma maneira,
a difusão da doença.
Contudo, apesar de todos esses esforços por boa parte da
população mundial, que ainda em 2020, anunciava sua
preocupação por não haver uma vacina capaz de conter o avanço
do vírus, até então, desconhecido, há ainda aqueles que,
especialmente no Brasil, relutam em lidar ou até mesmo enfrentar
essa realidade, a pandêmica. Mesmo com milhares de mortos e de
consequências de ordens diversas como sanitária, econômica,
política, social, educacional etc., há ainda um discurso de negação
que paira sobre o ar dos brasileiros, principalmente, quando o
assunto é sobre as vacinas.
Dúvidas sobre sua eficácia, suas marcas e os laboratórios onde
foram produzidas surgiram de forma acentuada, principalmente,
nas redes sociais. Nesse contexto, o discurso negacionista, muitas
vezes, pautado em escasso embasamento científico adentra as
interações sociais e se prolifera. Dentre essas consequências, casos
de pessoas que recusaram vacina começaram a ocupar espaço nos
noticiários, em alguns deles, a justificativa era por causa da marca
do imunizante[1]. A partir disso, inúmeras respostas surgiram e
surgem ao discurso negacionista nas próprias redes sociais, por
meio de outros discursos, enunciados, signos ideológicos e gêneros
discursivos[2]. Dentre essas respostas, destacamos o trabalho do
artista Nando Motta, que publica suas “charges pela democracia”
em sua página no Instagram[3].
Na charge (figura 1), o artista apresenta dois personagens que caem
em queda livre, de um lado, um que se encontra mais preparado,
equipado com capacete e roupa adequada para a ocasião, além de
carregar uma mochila nas costas, o que representa ser um

149
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

paraquedas. Seu movimento é de oferecer uma mochila igual ao


outro personagem, ou seja, de lhe oferecer um paraquedas para se
salvar, esse outro, ao contrário, não apresenta vestimenta
apropriada e questiona: “não tem outra marca?”. Com a mão à boca
e com os olhos cerrados, como se examinasse a mochila, temos
evidência de uma expressão de dúvida, como se não lhe
preocupasse a queda, mas sim a marca ou a qualidade do
paraquedas que lhe é oferecido.

Figura 1: Não tem outra marca?

Fonte: Instagram, @desenhosdonando, 2021.


Os estudos que advém da proposta teórica e metodológica de
Mikhail Bakhtin e seu Círculo oferecem fundamentos para se
pensar os discursos em seu contexto histórico e social. A charge em
análise pode ser compreendida, como já dissemos, como
um enunciado concreto, uma unidade da comunicação
discursiva (BAKHTIN, 2016) que não pode ser compreendida de

150
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

forma isolada de seu contexto. O enunciado verbal “não tem outra


marca?”, apesar de ser uma pergunta, responde de forma dialógica
aos inúmeros casos noticiados de pessoas que recusaram vacinas
por causa da marca dos imunizantes, que no Brasil, especialmente,
tem recebido as vacinas Coronovac, AstraZeneca e Pfizer.
Ademais, é preciso ressaltarmos os estudos Medviédev (2019) que
entende que a compreensão de um enunciado precisa estar
conectada com o contexto de sua contemporaneidade e também
daquele que a analisa, em suas palavras:
Entender um enunciado significa entendê-lo no contexto da sua
contemporaneidade e da nossa (caso elas não coincidam). É
necessário compreender o sentido no enunciado, o conteúdo do ato
e a realidade histórica do ato em sua união concreta e interna. Sem
tal compreensão, o próprio sentido estará morto, tornar-se-á um
sentido de dicionário, desnecessário. (MEDVIÉDEV, 2019, p. 185)
Os sentidos são, portanto, compreendidos a partir da realidade
histórica e concreta, por meio das relações sociais e da vida
cotidiana. Sem essas condições, o sentido de um enunciado se torna
“sentido de dicionário”, sem relações dialógicas com outros
sentidos, um sentido “morto”.
O enunciado traz em sua constituição um personagem que reflete
o discurso negacionista, em que são refratadas pelo menos duas
vozes: aquela que nega a própria realidade pandêmica e sua
gravidade, bem como as evidências científicas e aquela que, por
meio desse negacionismo, desencadeou mortes, principalmente,
naqueles casos em que há recusa, por exemplo, do uso de máscaras,
e prolongou sofrimentos, já que muitos brasileiros não tiveram
sequer a oportunidade de se vacinarem.
Nesse sentido, para compreendermos o discurso negacionista, ao
que buscamos, brevemente, analisar, por meio da charge, é preciso
também compreendê-lo como um discurso ideologicamente
construído e alimentado, que ao mesmo tempo projeta uma voz de

151
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

negação também silencia uma voz das minorias. Portanto, pautas


como as mortes, o negacionismo, as crises econômica e sanitária, a
desigualdade social desenfreada, a descredibilização da ciência, a
desmoralização da própria democracia são elementos e situações
construídos por meio dessas vozes. Além disso, o personagem em
queda livra que questiona qual a melhor marca para sua salvação é
esse sujeito fortalecido pela voz que constitui o discurso
negacionista e que, nos dias atuais, tem encontrado eco em
diferentes esferas da atividade humana (BAKHTIN, 2016), em
especial, naquelas que participam e que estão as redes sociais.
Desse modo, ressaltamos que as vozes que constituem os discursos
advêm da interação discursiva (VOLÓCHINOV, 2017), que acontece
por meio da relação que os homens estabelecem entre si, ou seja,
por meio da comunicação social. É nesse interim que os enunciados
surgem para responder ou suscitar respostas, construindo
um elo infinito na cadeia da comunicação discursiva (BAKHTIN,
2016).
Referências:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Introdução e
tradução de Paulo Bezerra. 6ª. ed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução,
posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução,
notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2015a.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: A estilística. Tradução,
prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra, organização da edição
russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34,
2015b.
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievich. O método formal nos estudos
literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de

152
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sheilla Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 1ª ed. São


Paulo: Contexto, 2019.
VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia:
ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio
introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo.
São Paulo: Editora 34, 2019.
VOLÓCHINOV, Valetin. Marxismo e Filosofia da Linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

Agradecimentos:
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001.

[1]Em uma pesquisa simples no google é possível recuperar


algumas notícias como exemplo. Exemplo 1: Mais de 400
servidores da educação se recusaram a tomar a vacina contra a
covid-19 em Goiás. Disponível
em: https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/08/18/mais-de-400-
servidores-da-educacao-se-recusaram-a-tomar-a-vacina-contra-a-
covid-19-em-goias.ghtml . Acesso em: 07 set. 2021. Exemplo 2: Em
Teresina, 14 pessoas assinaram termo de recusa da vacina contra
covid por causa da marca do imunizante. Disponível
em: https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2021/08/11/em-teresina-
14-pessoas-assinaram-termo-de-recusa-da-vacina-contra-covid-
por-causa-da-marca-do-imunizante.ghtml . Acesso em: 07 set.
2021. Exemplo 3: São Paulo: mais de 350 pessoas já recusaram
vacina devido a marca do imunizante. Disponível

153
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/sao-paulo-mais-de-350-
pessoas-ja-recusaram-vacina-devido-a-marca-do-imunizante/.
Acesso em: 07 set. 2021.
[2] Essas noções teóricas são desenvolvidas por Bakhtin e o Círculo.
Algumas obras para consulta: Bakhtin (2011; 2015a; 2015b),
Volóchinov (2017; 2019) e Medviédev (2019).
[3]Link para acesso ao perfil no Instagram de Nando Motta,
disponível
em: https://www.instagram.com/desenhosdonando/?hl=pt-br.
Acesso em: 07 set. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“No meu rosto e nas minhas mãos”: vozes que tecem o poema de
Ryane Leão

Oldison de Moura Klock


Universidade Federal da Fronteira Sul - Campus Cerro Largo
oldison.k@gmail.com

Lindalva Siqueira dos Santos


Universidade Federal da Fronteira Sul - Campus Cerro Largo/RS
lindalvahss@gmail.com

Tamiris Machado Gonçalves


Pós-Doutorado PPGEL-UFFS/CAPES/PNPD
mtamiris@gmail.com

Pensar nas vozes presentes nos mais diversos trabalhos já


publicados, sejam eles científicos, artísticos, jornalísticos ou até
mesmo aqueles que jamais foram publicados, mas que habitam no
fundo das gavetas ou jazem esquecidos entre incontáveis folhas
rabiscadas, abre um imenso rol de possibilidades para se concluir
no quão longe pode ir a conexão interpessoal através da história
humana. Seria tão extenso quanto montar uma imensa árvore
genealógica para descobrir que, sob a perspectiva cristã, por
exemplo, todos somos parentes e descendentes de Adão e Eva.
Mas e quanto às vozes? Quantas vozes realmente existem em um
texto? E se fossemos mapeá-las, onde chegaríamos? As vozes

155
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

utilizadas em um discurso são ecos do rio da comunicação


discursiva, são palavras alheias, reflexos e refrações de outrem,
que, ao tocar nossa constituição como ser, encharcam-se de tudo o
que cada quem é, na relação com seu tempo, no deambular dos
espaços pelos quais caminha, na sua constituição múltipla, porém
única, que não coincide com nada. O ser como evento único e
irrepetível (BAKHTIN, 2010).
Tendo em vista os postulados do Círculo de Bakhtin, a partir dos
conceitos de vozes e relações dialógicas, neste ensaio analisamos o
poema “No meu rosto e nas minhas mãos”, de autoria de Ryane Leão.
Os objetivos específicos são compreender que vozes são refletidas
e refratadas nos versos da autora, delineando um caminho de
interpretação possível para os sentidos postos na materialidade
deste poema:
no meu rosto e nas minhas mãos
você pode ver as mulheres índias
que tiveram seus cantos e contos
tomados por outros rostos
e outras mãos
meu sangue também é de cabocla
de benzedeira e feiticeira
posso ouvir os ventos das tribos
me soprando segredos nos ouvidos
não me subestime
jamais
(LEÃO, 2017, p. 80)
Ryane Leão é uma escritora jovem - nasceu em Cuiabá, em 1989 -,
brasileira, negra, lésbica, que escreve em um mundo que gosta de
rejeitar tudo que não condiz com os padrões vigentes no status quo.

156
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Resiliente, a autora empunha a poesia como um cajado de


poderosas magias a fim de enfrentar tudo e todos que ousarem
apontar-lhe o dedo. Seus versos são enfrentamento, discursos de
luta, de reconhecimento.
O poema em questão está no livro “Tudo Nela Brilha e Queima”,
sua primeira obra, publicada em 2017. Os versos desse poema
deixam ver um eu lírico explícito que se conecta com suas origens,
mostrando consciência em relação ao seu estar no mundo. Assim,
vemos o reconhecimento de suas origens, de sua ancestralidade
criando um tecido de força, já que os versos são atravessados por
vozes de reconhecimento, que deixam ver sentidos de
afirmação: “no meu rosto e nas minhas mãos/você pode ver as mulheres
índias” (LEÃO, 2017, p. 80) ; e de consciência das misturas do povo
brasileiro, tal como os versos que apresentam mais características
do eu lírico e expressam a força das diferentes culturas: “meu sangue
também é de cabocla/de benzedeira e feiticeira” (LEÃO, 2017, p. 80).
Os versos lidos nos chamam a atenção para compreender o caráter
dialógico da linguagem, esta que, pelo olhar do Círculo de Bakhtin,
é entendida como um fenômeno social (BAKHTIN, 2015), que
deixa ver os mais diferentes juízos de valor. Em cada palavra, é
possível sentir o íntimo dos sentimentos do eu lírico, que
perambulando por discursos que nos levam a compreender vozes
que remetem às origens brasileiras, diz da força do brasileiro, da
constituição múltipla de nossa cultura. Assim, os versos do poema
compõem um todo de sentido que remete a discursos passados - de
origem, de ancestralidade -, ao mesmo tempo que projetam
discursos futuros, delineando essa ancestralidade como resiliência
e resistência quando localizamos tais versos na relação histórica do
que significa ter origens indígenas no Brasil hoje; o que significa ser
mestiço.
Assim, os versos conectam uma cadeia de vozes outras que tecem
os sentidos do que está posto linguisticamente como texto, como
materialidade do poema, de modo que as interpretações que

157
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fazemos são edificadas a partir das relações dialógicas, que se dão


entre o poema, a autora, o momento histórico em que ambos se
encontram e a maneira como cada quem recorta a realidade de
apreensão de todos esses elementos no momento da interpretação.
Isso porque os movimentos de compreensão de qualquer discurso
compreendem “[...] um texto incluído na comunicação discursiva
(na cadeia textológica)” (BAKHTIN, 2011, p. 309); não se trata de
algo isolado. Conforme explica Bakhtin (2017, p. 38):
[...] Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha
vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro
(uma reação infinitamente diversificada), a começar pela
assimilação delas [...] e terminando na assimilação das riquezas da
cultura humana.
Nestas idas e vindas de pensamentos, leituras e releituras, as vozes
que atravessam o poema de Ryane Leão (2017) dizem também das
lutas da autora como mulher que escreve. Nesses termos, os versos
“não me substime/jamais” dialogam também com vozes sociais que
pretendem demarcar o que é literatura e o que pode ser entendido
como literário, um imaginário social que muitas vezes pode tolher
talentos. Nas palavras da poeta:
“Eu queria conseguir falar, contar a minha história e legitimar como algo
importante. Porque toda história é importante, mas desde pequena eu
sempre ouvia que a minha não era porque ela não cabia naquela literatura
que me era apresentada” (CIÊNCIA E CULTURA, 2019).
Assim, os sentidos de força, reconhecimento e luta que atravessam
os últimos versos do poema também nos chegam pela voz do seu
autor, e por isso não podemos separar o autor de seu texto, daí
conhecer o contexto que circunscreve o autor-pessoa é importante
para tecer sentidos. Isso “[...] porque o autor é o universo emotivo-
volitivo que edifica a arquitetônica criativa por ele posta em ação. É do
autor a valoração refletida e refratada que tece o que ele cria”
(GONÇALVES, 2019).

158
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

De caminho em caminho, encontro em encontro, no


diálogo, chega-se a nada mais, nada menos, que o inesperado: uma
composição única atravessada de muitas vozes. “No meu rosto e nas
minhas mãos” (LEÃO, 2017, p. 80) é este inesperado momento de
Ryane Leão. Isto é, o conjunto de vozes de autores-pessoa, que
passando de voz em voz resultou no que fora criado pela autora-
criadora: um eu lírico que se mostra na relação com suas origens,
que impacta pela força da consciência de sua diversidade, que
contém outros, cuja singularidade é resultado da pluralidade de
tantos outros eus.
O poema de Leão nos fala de consciência. Consciência do que se
foi, do que se é. Consciência que prepara para o combate, para a
luta que é a vida na desconstrução de preconceitos, de estereótipos,
de discursos. Assim, recorremos às palavras de Eduardo Galeano
(2014, p. 371): “A primeira condição para modificar a realidade consiste
em conhecê-la”; e conhecer a realidade é estar propenso ao
dialogismo. Estando abertos ao diálogo, estamos visualizando um
campo de possibilidades no qual as vozes, antes mesmo de
conversarem com o leitor, discutem entre si, discussões estas que -
metaforicamente - muitas vezes acontecem antes mesmo destas
vozes chegarem até nós, mas que viajam tão rápido quanto o vento,
atravessando inclusive os tempos.
Ryane nos mostra esta viagem através dos tempos quando
diz “posso ouvir os ventos das tribos/ me soprando segredos nos
ouvidos”(LEÃO, 2017, p. 80), deixando ver nas entrelinhas que
muito mais do que uma poesia repleta de vozes, ela também é um
ser constituído por inúmeras vozes. Ela tem essa consciência,
justamente o que lhe dá a atmosfera de força e resiliência no poema.
É possível entender que o poema de Leão também é atravessado
por vozes que evocam as brutalidades de períodos passados, em
que os povos originários foram colocados no embate, perderam
espaço, sendo arrancados de seus costumes. Daí nasce também a
força para lutar no grotesco dos nossos tempos: “você pode ver as

159
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mulheres índias que tiveram seus cantos e contos tomados por outros
rostos e outras mãos” (LEÃO, 2017, p. 80); o eu lírico é todas essas
pessoas, carrega, portanto, também essa história.
No poema em análise, vimos versos repletos de vozes e suas
múltiplas significações, algumas vezes até mesmo ressignificadas
com o passar dos anos, mas que adquirem com o casamento da voz
do autor um novo caminho para percorrer e que possivelmente
nesta jornada agregará novas vozes: as das interpretações que
dialoguem com os versos apresentados. Isso porque
“Quase toda palavra da nossa língua pode ter várias significações
a depender do sentido geral do todo do enunciado. O sentido
depende por inteiro tanto do ambiente mais próximo, gerador
imediato do enunciado, quanto de todas as causas e condições
sociais mais longínquas da comunicação discursiva”
(VOLÓCHINOV, 2019, p. 283).
Tendo tudo isso em vista, dizemos que é difícil concluir um assunto
quando sentimos que não estamos prontos para encerrar, pois veja
bem, há tanto para falar e escrever, que chega a ser injusto parar
agora. Neste breve texto sobre vozes, podemos concluir que a
realidade em que vivemos é que todo discurso, toda obra, toda
imagem partilham vozes em sua constituição. Nada se forma
sozinho, por trás de tudo há sempre relações dialógicas que nem
sempre se fazem visíveis a olho nu, mas que quando recebem a
devida atenção, mostram-se infinitos em sua construção.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: Notas
sobre literatura, cultura e ciências humanas. 1. ed. São Paulo: 34,
2015.

160
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, Mikhail. Gêneros do Discurso. São Paulo: Livraria


Martins Fontes Editora Ltda., 2016, p. 98-101.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I. Trad. Paulo Bezerra. 1.
ed. São Paulo: 34, 2015.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato [1920/1924]. Trad.
aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Trad.
Sergio Faraco et al. 1. ed. rev. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2014, p.
370-371.
GONÇALVES, Tamiris Machado Gonçalves. A arquitetônica de
charges com contornos intolerantes: discursos sociais em
tensão. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul. 2019. Disponível
em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/15284. Acesso
em: set. 2021.
LEÃO, Ryane. Tudo Nela Brilha e Queima. São Paulo: Livraria
Planeta do Brasil, 2017, p. 80
VOLÓCHINOV, Valentin. A Palavra na Vida e a Palavra na
Poesia. São Paulo: Editora 34, 2019.

161
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Você sabe com quem está falando?”: o monologismo do


discurso das carteiradas no cronotopo pandêmico

Giliandra Aparecida da Cruz Weisshaar


UTFPR/ MESTRADO
gweisshaar@outlook.com

Nivea Rohling
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
nivea.rohling@gmail.com

As interações sócio-comunicativas, no atual contexto de


polarização político-ideológica, de conflitos sociais, de crise
sanitária mundial escalam rapidamente para a hostilidade. Há uma
crescente produção de discursos violentos e intolerantes no debate
público contemporâneo, sobretudo aqueles em circulação em
mídias digitais, sem a preocupação com seus desdobramentos no
mundo ético. Diante desse cenário em que os diálogos estão
exaltados, o presente texto problematiza uma prática discursiva
particular na cultura brasileira, conhecida por ´carteirada` e que foi
acentuada no cronotopo pandêmico. Neste texto, tomamos esse
período singular de crise sanitŕia global que estamos vivendo como
situado em um cronotopo pandêmico.
De acordo com Rohling (2020), o conceito bakhtiniano de
cronotopo (espaço-tempo) se mostra potente para pensar esse
tempo uma vez que é possível aventar a emergência de um
cronotopo pandêmico em que se produz uma série de enunciados
relacionados à doença, pandemia, vírus, vacina etc. Por meio da

162
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

concepção de cronotopo como uma relação indissociável entre


tempo e espaço, em que uma certa imagem de sujeito é
evidenciada, é que a autora propõe a existência de um cronotopo
pandêmico, sendo, pois, um tempo-espaço que se marca pela
emergência da pandemia deflagrada pela COVID-19, em dezembro
de 2019 na cidade chinesa Wuhan, estendendo-se para 2020 em
diante e que, pelo processo de globalização, espraiou-se por todos
os cantos do mundo.
Nesse cronotopo, se acentuam situações comunicacionais
marcadas por conflitos verbais, dissenso, marcados por tom de
hostilidade e até violência verbal, como no caso da carteirada, e que
são rapidamente viralizadas na cultura digital. Uma carteirada
ocorre em interações em que um interlocutor está em diferente
posição de poder ou hierarquia, e usa desse lugar para se sobrepor
ao seu interlocutor, não raras vezes, burlando ou rompendo com as
regras sociais vigentes em virtude de sua condição privilegiada
ou status social.
A partir da perspectiva bakhtiniana de que a linguagem não é
neutra, mas sim, produzida de modo axiológico e imbricada em
relações de poder, tomamos para essa conversa no Rodas de
Conversa Bakhtinianas o enunciado ”cidadão não, engenheiro civil,
formado, melhor do que você!” e algumas reações-respostas a esse
enunciado que circularam na rede social Twitter. Esse discurso foi
gravado por uma equipe de reportagem que cobria a abordagem
de fiscais da vigilância sanitária no Rio de Janeiro, em abril de 2020.
O vídeo viralizou nas redes sociais em virtude do uso violento da
linguagem, em forma de ataque, por um sujeito, nesse caso, a
esposa que se refere sobre a formação profissional do marido, e que
direciona o ataque aos agentes da vigilância sanitária. O enunciado
foi produzido devido à abordagem dos agentes em um ato de
fiscalização contra aglomerações em restaurantes e bares do Rio de
Janeiro, em situação de crise sanitária da pandemia de COVID -19.

163
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A autuação dos agentes sanitários ao casal, no contexto da


pandemia, é significativa, uma vez que por si só exemplifica a
delicada situação na qual a prática da carteirada ocorreu. Há
também a questão das regulações acerca da pandemia no Brasil
terem sido, desde o início, relativizadas e desautorizadas por
representantes governamentais. Assim, possibilitando e
incentivando que os demais sujeitos realizassem atividades de
maneira normal, aglomerando-se e sem o uso de máscaras, como
determinava o poder público na cidade do Rio de Janeiro por
ocasião do evento em tela.
Nesse contexto, a esposa do casal autuado, respondeu ao agente de
maneira ríspida e grosseira, explicitando o seu ponto de vista sobre
a situação. Isto é, retrucando a autuação com uma carteirada. O
enunciado “cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que
você” concebe-se uma vez que o juízo de valor estabelecido
socialmente para pessoas graduadas é de que quem é formado, é
letrado, está numa posição superior de poder do que os demais na
sociedade. Sendo assim, “autoriza” à esposa utilizar a formação do
marido para dar uma carteirada no agente sanitário, reagindo
assim, numa tentativa de desmoralizar a ação do agente.
Essa atitude valorativa em relação ao título de graduação
como status de poder é histórica e culturalmente construída; um
exemplo dessa construção são os discursos dicotômicos enraizados
ainda na formação escolar, por exemplo, em que o sujeito que vai
para a escola é alfabetizado, e responsivamente terá melhores
oportunidades na vida, tornando-se assim “alguém”, e o sujeito
analfabeto é um fracassado. Logo, o sujeito que pode frequentar a
escola, o ensino superior, torna-se alguém, merece respeito, tem
uma posição de poder acima, diferentemente dos outros sujeitos
menos escolarizados, que não são ninguém, não merecem respeito
e concomitantemente estão numa posição de poder abaixo dos
graduados.

164
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O enunciado salienta também a área de formação: “engenheiro


civil”. A necessidade de acentuar o curso também implica outra
questão, a de que existem áreas de graduação mais valorizadas que
outras, áreas de prestígio, como são conhecidas as áreas do Direito,
da Medicina, da Engenharia, por exemplo. Áreas de prestígio, pois
são historicamente frequentadas, principalmente, por sujeitos de
classes altas, mais abastadas. Nesse sentido, ainda, no enunciado,
o “engenheiro civil” é colocado em contraposição ao “cidadão”,
adjetivo utilizado comumente por profissionais da segurança
pública ao realizarem a autuação de qualquer indivíduo diante de
uma infração. Isto é, a valoração da graduação em Engenharia Civil
possibilita, na visão da esposa, que o marido não seja tratado como
qualquer indivíduo, ao qual o agente se refere como cidadão, mas
sim, deve ser tratado como um Engenheiro Civil, que está numa
posição de poder acima, inclusive, da do próprio agente sanitário.
Esse enunciado (discurso da carteirada), mostra-se, do ponto de
vista bakhtiniano, com um caráter/tom autoritário. O sujeito ao
reenunciar o discurso da carteirada mobiliza a palavra
autoritária, que é aquela que exige nosso reconhecimento
incondicional, e não absolutamente uma compreensão e
assimilação livre em nossas próprias palavras. Ela entra na
consciência verbal como uma massa compacta e indivisível. É
preciso confirmá-la por inteiro ou recusá-la na íntegra. Assim, não
é possível separá-la, aprovar um, tolerar o outro, recusar
totalmente o terceiro (BAKHTIN, 1998[1975], p. 143-144). Esse
enunciado, do ponto de vista bakhtiniano, tem ancoragem em
concepções de divisão de classe de superioridade de um sobre o
outro, torna-se assim autoritário ao passo que não considera o
outro, está fechado para alteridade, sendo assim é um enunciado
produzido em um monologismo, uma negação à escuta.
Para Bakhtin, existem graus de autoritarismo e variedades da
palavra autoritária que podem materializar conteúdos semióticos
diferentes (o autoritarismo como tal, a autoridade, o

165
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tradicionalismo, o universalismo, o oficialismo e outros). No


entanto, as particularidades formais da transmissão e
representação da palavra autoritária são comuns a todas as suas
variantes (BAKHTIN, 1998[1975], p. 143-145). Sobre a relação entre
a palavra autoritária e o falante, Bakhtin afirma:
A vinculação da palavra com a autoridade – reconhecida por nós
ou não – distingue e isola a palavra de maneira específica; ela exige
distância em relação a si mesma (distância que pode tomar
coloração tanto positiva como negativa, nossa relação pode ser
tanto fervorosa como hostil. (BAKHTIN, 1998[1975], p. 143).
Outra particularidade da palavra autoritária é que ela pode
organizar em torno de si massas de outras palavras (que a
interpretam, que a exaltam, que a aplicam desta ou de outra
maneira), porém, ela não se mistura com elas, permanecendo
isolada, compacta e inerte. Dessa perspectiva, podemos aventar
que o discurso da carteirada estabelece, desse modo, uma distância
entre os interlocutores. Impõe não uma ponte dialógica, mas um
muro e usa para isso da hostilidade nas escolhas estilísticas,
mobiliza um tom depreciativo na escolha do léxico.
No entanto, mesmo na mais profunda hostilidade e no espaço da
negação da alteridade também há resposta-ativa. Isso porque na
arena dialógica, a carteirada suscita/requer uma resposta e acaba
por complexificar essa arena porque diversas vozes alheias lutam
para influenciar a consciência dos indivíduos. Vale destacar que
para além da evenciticidade do enunciado, podemos olhar o
enunciado do ponto de vista da historicidade, o que implica dizer
que ele está ligado dialogicamente a outros enunciados, uma vez
que “não pode haver enunciado isolado. Ele sempre pressupõe
enunciados que o antecedem e o sucedem. Nenhum enunciado
pode ser primeiro ou último. Ele é apenas o elo na cadeia e fora
dessa cadeia não pode ser estudado.” (BAKHTIN, (2003[1979], p.
371). Sobre as relações entre enunciados Bakhtin escreve:

166
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros


enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera da
comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de
tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um
determinado campo [...] ele os rejeita, confirma, completa, baseia-
se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva
em conta. (BAKHTIN, 2003[1979], p. 297).
Assim, a carteirada faz emergir, nesse cronotopo pandêmico,
reações-respostas de outros sujeitos frente a essa prática discursiva.
Podemos observar alguns exemplos de reações-respostas
no Twitter, como uma reação responsiva ao enunciado da
carteirada, como na publicação a seguir, do usuário @deltanz:

167
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ao compartilhar o vídeo no próprio perfil no Twitter e opinar


sobre, o usuário responde ao enunciado da carteirada. A reação-
resposta ativa se organiza na replicação da notícia, funcionando
como um discurso citado sobre a carteirada ao mesmo tempo em
que incita outras reações-respostas de outros sujeitos. Vejamos
outros exemplos:

168
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nesse retweet, a resposta do perfil @iCorby expõe um contraponto


sobre área de formação de prestígio do Engenheiro Civil. O
enunciado é construído para se referir ao engenheiro como Uber, e
assim, relacioná-lo a uma posição de prestígio profissional
valorada como inferior em relação à sua área de formação. Nesse
sentido, o enunciado retoma a questão recente referente à ocupação
de profissionais de áreas de prestígio atuando como motoristas de
empresas de transporte privado, como a Uber, 99 Pop, dentre
outras. Essa relação se dá em virtude da precarização das condições
de trabalho e aumento significativo nos índices de desemprego no
Brasil. Nesse contexto socioeconômico, profissionais de diversas
áreas de formação, inclusive de áreas de prestígio, se viram

169
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

forçados a migrar de ocupação profissional. Até mesmo para os


recém-formados nessas áreas, que encontraram nessas empresas a
primeira ocupação profissional, podendo dessa maneira ter uma
renda ou fazer a complementação dela. No próximo exemplo,
vejamos a reação-resposta do perfil @rvieirabh:

No enunciado emitido por @rvieirabh a resposta se dá pela quebra


da visão historicamente construída de que pessoas com formação
superior, detentoras de diploma, possuem bom-senso, isto é, o uso
do termo bom-senso pode estar relacionado à sabedoria, à própria
educação como senso crítico de conhecimento, à racionalidade, que
obtém-se, ou deveria se obter, ao frequentar o nível escolar
superior. Nesse sentido, ambas as reações respostas são
construídas como contraponto ou um contradiscurso à carteirada.
Esses discursos-respostas buscam desqualificar/desvalorizar o
enunciado da carteirada ao apontarem outras perspectivas
valorativas sobre o argumento usado pela esposa - o da formação
em Engenharia Civil.
Diante dessa análise, percebemos a dialogicidade do discurso, uma
vez que este é construído socialmente por sujeitos situados e
constituídos ideologicamente. Vemos a dialogicidade pelas
retomadas valoradas de perspectivas construídas sócio e
historicamente sobre a educação superior e áreas profissionais de
prestígio, assim como posições valorativas das reações-respostas a

170
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

essas perspectivas, realçando, assim, as práticas discursivas como


arena de embates dialógicos em que se pode
forçar/tensionar/pressionar discursos preconceituosos
arregimentados em relações assimétricas de classe, como é a
situação de uma carteirada.

Referências
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética - a teoria do
romance. Tradução do russo por Aurora Fornoni Bernardini et al.
São Paulo: UNESP; Hucitec, 1998[1975].
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. Tradução do russo
por Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003[1979].
BRUGGEMANN, Diogo. Vamos fazer esse casal ficar famoso. A babaca
e o engenheiro que não é cidadão. Brasil, 5 jul. 2020. Twitter: @deltanz.
Disponível
em: https://twitter.com/deltanz/status/1279943222794620928 .
Acesso em: 04 ago. 2021
FISCAIS sofrem ataques ao reprimir aglomerações em bares do Rio;
veja flagrantes. G1, 2020. Disponível
em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/07/05/fiscais-
sofrem-ataques-ao-reprimir-aglomeracoes-em-bares-do-rio-veja-
flagrantes.ghtml. Acesso em: 04 ago. 2021
ROHLING, Nívea. Cronotopo pandêmico e a produção de imagens
corpóreas: reflexões inacabadas. Revista Fórum Linguístico. n. 4, v. 17,
2020, p. 5221-5237. DOI: https://doi.org/10.5007/1984-
8412.2020.e78444

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

”Demos início a...”: reflexões e refrações de um professor


universitário transmorfo

Guilherme do Val Toledo Prado


Unicamp
gvptoledo@gmail.com

Demos Início...
Demos início ao nosso encontro, na disciplina Metodologia do
Ensino Fundamental do Curso de Pedagogia da Faculdade de
Educação, com a partilha de poesias, poemas declamados (até em
inglês) e de apresentação de poetas consagrados, em nosso
“Momentos Artes e Literaturas”. Foi muito gratificante e gostoso
apreciar a diversidade de manifestações em suas mais diferentes
linguagens e entonações! Em seguida, em pequenos grupos,
apresentamos as expectativas em relação ao trabalho na disciplina
e, coletivamente, construímos o nome da turma. Foi bem
interessante ver que, no ano de celebração do Paulo Freire, a
palavra esperançar circulou nos pequenos grupos e, por fim,
compôs o nome da turma: Turma da Cuca Esperançosa/Ninguém
a menos, cada um sendo o que se é/sou a partir do que você é —
Ubuntu. Em verdade, perdi o que estava no chat... Vocês pegaram
o que ali estava escrito? O que as estudantes escreveram?”

Relendo “Demos Início...”


Realizar a leitura da narrativa “Demos início” para um grupo de
professoras que estudam Freinet, em uma manhã de sábado, logo
depois de ter produzido a narrativa na noite anterior após a
disciplina, me fez imaginar o quanto esse movimento de leitura é
muito parecido com uma Roda de Conversa de uma classe Freinet.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ao ler e ouvir, e se colocar na escuta das narrativas narradas,


algumas delas produzidas no contexto da pandemia, fico me
perguntando se a imagem escolhida pela turma da minha
disciplina, da Cuca – uma personagem singular das histórias de
Monteiro Lobato – também não evoca, no contexto em que estamos
vivendo, a possibilidade de transformarmos, as nossas próprias
existências.... Talvez, em diálogo com a ideia de Freire, de
esperançar, a constituição de uma Cuca Esperançosa possa ser
potente para podermos compartilhar, em sentidos marcadamente
bakhtinianos, não sermos, neste delicado e terrível momento,
indiferentes às situações vividas por nossas alunas e alunos. E de
um jeito Cuca Esperançosa, possamos levar alegria e vida ao lugar
da dor e morte, constitutivo da vida humana que temos... Neste
sentido, relembrando o momento de produção do nome da turma,
os sentidos veiculados em relação ao “esperançar” de Paulo Freire,
estavam acompanhados de enunciados relativos às perdas, às
mortes de parentes e amigos próximos, de pessoas queridas que
perderam outras pessoas queridas, da dor de ficar isolado sem
contato com outras pessoas, em seguir, de modo quase mecânico,
as rotinas impostas pela circulação do coronavírus: colocar
máscaras – “acho melhor colocar mais uma, por cima dessa”,
higienizar exaustivamente as mãos – “é a terceira vez antes de sair
que lavo as mãos”, cuidar para não tocar os olhos e bocas – “como
é difícil não coçar os olhos!”, cuidado no ônibus para não ficar
aglomerado demais – “chega para lá”, cuidados na compras de
supermercado e outros estabelecimentos – “pode deixar que eu
embalo!”, higienizar com álcool todos os produtos comprados,
antes de guarda-los na dispensa – “espera, esse eu não passei
álcool, vai pegando esses que estão no balcão”, tomar banho e
colocar a roupa usada para lavar – “tira tudo e já coloca no máquina
e passa álcool antes de entrar”, etc... Rotina exigente, realizada há
mais de um ano e seis meses, que, bem ou mal, impediu a entrada
do coronavírus, a partir dos vetores por ali existentes, mas não
impediu o coronavírus na vida da minha família. Minha esposa o

173
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pegou em uma consulta oftalmológica. Consulta inevitável de ser


realizada, após mais de seis meses intensos na frente do
computador, que acabou por dificultar a leitura com os óculos
prescritos, em mais de dois anos. Mas isso é outra conversa – e sim,
ela está bem! E o “esperançar” de Paulo Freire, também me toca,
pois vivi o quão forte é a doença provocada pelo coronavírus, em
um contexto próximo, mas que em outros contextos, como ouvi nas
narrativas narradas pelas e pelos estudantes da disciplina,
devastou muitas famílias, afetou muitas comunidades, causou
tristeza e dor em muitos dos narradores e narradoras. Penso, neste
momento de escrita, que talvez, também foi o “esperançar
freiriano” que trouxe a baila a imagem da Cuca associada à vacina
– como uma possibilidade de retomar a alegria da vida, fazer
estripulias com os corpos... Os inúmeros memes criadas após correr
mundo que as vacinas, produzidas com muita rapidez pelas
indústrias farmacêuticas, pudessem alterar o DNA, talvez tenham
gerado essa ideia de transformação genética, como divulgado pela
BCC, em reportagem de 20 de novembro de 2020
(https://www.bbc.com/portuguese/geral-55013716) que diz assim:
“Uma correspondente da Casa Branca para um site pró-Donald
Trump, Newsmax, disse a seus 264 mil seguidores no Twitter para
“tomarem cuidado” com a vacina Pfizer/BioNTech. Emerald
Robinson afirmou no Tweet que ela “interfere no seu DNA.””. E
essa interferência, pode ter gerado o entendimento que, uma
transformação genética poderia nos alterar e nos transformar em...
em um jacaré? Com certeza, a imagem da Cuca mobilizada pela
turma de estudantes, favorece uma inusitada carnavalização das
mortes anteriormente narradas e possibilitam um “esperançar”
mais mobilizador e, consequentemente, mais afeito aos desejos e
interesses de pessoas que possam fazer valer outro movimento,
mesmo no contexto de uma disciplina realizada de modo remoto e
emergencial.
Transmorfação

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fui tomar a 2ª dose da vacina no sábado a tarde. De tão ansioso,


cheguei trinta minutos mais cedo. Entrei na fila e esperei. Ao chegar
a minha vez, apresentei os documentos e ouvi: “Que bom! Veio
mais cedo para virar jacaré?” Era a mesma atendente da primeira
vez. Ela lembrou-se de mim e das minhas brincadeiras relativas à
transformação em um jacaré. “Senta lá, que logo, logo te chamam e
você vira um jacaré completo”. Rimos os dois! Foi tudo muito
rápido. A picada no braço, tirar a foto dentro do carro, voltar para
casa. Antes do horário marcado para a vacinação, já estava de volta
para casa. Aproveitei para deixar a louça do almoço toda
arrumada, tomei um banho e fui me deitar, pensando que,
dormindo, eu favoreceria a ação dos imunizantes e assim, ficar
mais resistente aos coronavírus que circulam por aí. Acho que
dormi uma meia hora... Acordei bem disposto! Estava com fome.
Desci e fui tomar um lanche. “Nossa! Essa minha fome está um
pouco desproporcional”, pensei. Preparado o lanche, alguém disse,
não me lembro bem: “Para quem comeu uma pratada de lasanha
no almoço, esse lanchinho está bem reforçado, não?”. Me dei conta
que o sanduiche de pão com queijo e presunto estava “bem
servido” e já havia tomado um copo de suco e preparava um copo
de leite com café para tomar junto com o sanduiche. “Talvez esteja
exagerando, mas realmente estou com fome”. Passada algumas
horas, na hora do jantar, não foi diferente a fome que me assolou...
Fartei-me com as sobras do almoço, recuperei as sobras do jantar
da noite anterior e arrematei tudo com uma boa salada de folhas
com queijo, batata palha, uva passa e amendoim. Tudo regado a
suco de uva, suco de maça e um copo de leite fresco. Inevitável foi
sentir sono e, antes das 10 horas, já estava deitado. Naquela noite,
muitos sonhos estranhos me acometeram: florestas imensas, lagos
profundos, noite estreladas, dias escuros, trovoadas e ventanias e...
muitas, muitas e muitas risadas, ouvidas em diferentes tons,
timbres e reverberações! Na manhã de 2ª feira, já bem disposto, sair
de cama ofereceu uma certa dificuldade, visto que foi um pouco
difícil equilibrar em duas pernas, dado o peso da cabeça e a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dificuldade com o novo apêndice caudal. Dar início a um novo dia,


transformado, é um bom sinal de que as coisas, se não vão
melhorar, vão ficar mais interessantes, dada a possibilidade de uma
nova visão de uma perspectiva outra, mais reptiliana, mais
diferenciada, mais Hahaha! Hahaha! Hahaha!

TransFormação
Transforma-se em jacaré, “virar uma Cuca”, é uma imagem
marcante para pensarmos uma interrupção do tempo social no
contexto pandêmico (talvez de outros também), de dores e
sofrimentos vividos, da quebra das vivências mortificadoras, da
compreensão da nossa finitude. Tal como Bakhtin enunciou, no
diálogo com a obra de Rabelais, os corpos grotescos favorecem a
emergência de outras possibilidades de vida, menos conformadas,
menos individualizadas, um corpo que tem grande apetite, uma
imensa vitalidade, que na ânsia de reproduzir-se, converte todas as
ações em conotação sexual. Um corpo da forma apresentado por
Rabelais – como o da própria Cuca nas palavras de Lobato – que
extrapola os limites do corpo oficial, enroupado, alinhado e perfeito
e, quebrando os cânones estabelecidos, afigura um corpo viril,
desalinhado, desconjuntado, transgressor e muito, muito livre das
amarras oficiais. E Bakhtin, compreendendo as profundezas da
obra rabelaisiana, afirma o valor do corpo em um contexto social
mais amplo, em uma perspectiva social que não idolatra uma
imagem perfeita do homem grego/romano, mas um símbolo que
apresenta, em toda a radicalidade da dualidade, a vida e a morte,
em toda a sua potência. Por fim, como nas imagens televisivas da
Cuca no Sítio do Picapau Amarelo, outro componente marcante da
imagem corporal deste ser mitológico brasileiro, é sua risada, alta,
ressoante, potente e penetrante. O riso da Cuca, não só causa medo
e terror, como também convida a aventura misteriosa, ao convívio
com as diferenças inusitadas, ao encontro de corpos outros, sempre
convidando a vida a e a morte a bailar conosco no limiar tênue entre

176
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estar e ser, entre viver e estar, cada vez mais, próximo da morte...
Hahaha!!! Esse é o convite da Cuca! Transformar-se e poder, na
tensão e na contradição, romper com o estabelecido e viver o
inusitado dos encontros grotescos, em corpos vitais e
decomposição, em corpos prenhes de desejo e prontos para a
chegada de um humanismo estranho, descentrado, celebrando a
alteridade, as múltiplas verdades e a vida, em toda a sua potência
vital e destrutiva.

InsPiraAções
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi
Vieira. 7ª ed. São Paulo, Editora Hucitec, 2010.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Editora Companhia
das Letrinhas, 2018.
MIOTELLO, Valdemir. Falando do Riso...rindo da fala. In: Seródio,
Liana et all. Narrativas, corpos e risos anunciando uma ciência outra.
São Carlos: Pedro & João Editores, 2018, p.31-36.
TIHANOV, Galin. A importância do grotesco In Bakhtiniana, São
Paulo, 7 (2): 166-180, jul/de, 2012.

177
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

”Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que idealizam”

Vanessa Ferreira Sardinha


UEPA
vanessa.sardinha@aluno.uepa.br

Ádria Araújo Costa Godinho


Universidade do Estado do Pará - Uepa
adriagodinho@gmail.com

Apresentação
Na atual conjuntura brasileira, vê-se a grotesca imagem messiânica
do atual presidente criada pela população em prol de suas
necessidades, sejam elas econômicas, religiosas e, até mesmo,
patrióticas. Vindo de uma origem política caótica, Jair Messias
Bolsonaro se destacou na mídia com suas declarações polêmicas e
estranhamente cômicas acerca dos mais diversos âmbitos sociais,
principalmente no que diz respeito às minorias, deixando claro seu
desprezo por essa parte da sociedade. Considerando os
acontecimentos que levaram a sua candidatura, apresentar-se-á no
VIII Círculo – Rodas de Conversas Bakhtinianas uma estória que
irá satirizar esse momento da história do Brasil.
Do ponto de vista bakhtiniano, o grotesco se caracteriza pela
comicidade e deturpação exagerada dos valores e da moral de uma
sociedade. Porém, vale ressaltar que ele detém também uma função
crítica que faz o indivíduo refletir sobre sua realidade. Partindo-se
dessa ótica, surge assim parte do conceito de ambivalência, o

178
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

grotesco não só representa o ridículo, mas também aponta novos


cenários que podem transformar determinada realidade. Em vista
disso, é possível fazer uma correlação do grotesco de Bakhtin (1987)
com a imagem messiânica de Jair Bolsonaro espalhada pela
população brasileira e com a estória que será apresentada mais à
frente. Sob esse viés, recorre-se ao exagero, à ironia e ao
rebaixamento do presidente na estória como elementos grotescos
para satirizar a idealização de um sujeito “enviado por Deus”, a
representação dogmática desse político por parte da sociedade.
A estória, intitulada “O Burrinho de Vera Cruz”, é um relato,
narrado por um fotógrafo, que retrata uma comunidade pastoril
que possui um estilo de vida bastante pacífico. O narrador conta os
absurdos que presenciou acerca de um morador em particular: o
Burrinho. Sendo aceito pela comunidade, mesmo sendo medonho
e grosseiro, Burrinho é descrito como um sujeito esperto que se
aproveita da sua imagem humilde para manipular todos ao seu
redor, conseguindo, em certo momento, levar a população ao limite
da insanidade.A estória, portanto, é a possibilidade de recontar
essa versão da realidade brasileira de maneira diferente,
demonstrando que não existe uma única forma de relatar algo.
“O Burrinho da Vila de Vera Cruz”
Não me causa espanto saber que o caso da Vila de Vera Cruz se
tornou notícia mundial. É com um misto de pesar e orgulho que
posso dizer que foi meu trabalho como fotógrafo o responsável por
essa visibilidade. Entretanto, há coisas que uma imagem não
consegue exprimir, somente a boa e velha narrativa dos fatos, o ato
dilacerador que é botar em palavras o que se viu e sentiu.
Antes de rasgar-me, falarei um pouco sobre quem sou, ou pelo
menos tentarei. Na tão falada flor da idade, considero-me um
homem culto e viajado. Apesar de não ser de origem humilde,
gosto de conhecer cidades pequenas e comunidades reclusas para
registrar suas vidas e seus costumes. Na minha cabeça isso me

179
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tornava uma pessoa melhor e mais vivida, mas hoje vejo que isso
nada mais era do que uma manifestação peculiar do meu ego.
Ouvi falar sobre a Vila de Vera Cruz através de um amigo nascido
lá, ele me contou com fervor sobre os deslumbrantes pastos, sobre
as mulheres belíssimas, sobre as comidas variadas e
principalmente sobre a população calorosa. Até então, o único
motivo pelo qual valia a pena visitar o lugar eram as tais mulheres
belíssimas, mas chegando lá, percebi que a animação com que meu
amigo descreveu seu lar não foi exagero. A soma do lugar e de seu
povo poderia facilmente se igualar à descrição do paraíso. A
atividade pastoril e a produção artesanal à base de lã eram as
principais fontes de renda dos que viviam lá. Isso, além de tornar
seus moradores bastante característicos, facilitava reconhecer
quem vinha de fora.
É importante esclarecer que já conheci muitas outras comunidades
que recebiam bem quem não era natural de lá, mas, considerando
o entusiasmo religioso gritante do local, que costuma ser um tipo
de seletor para a abrigada de estranhos em outros lugares, a Vila
possuía um grau de acolhimento por demais elevado. A maior
prova disso era o Burrinho.
Até hoje tenho dificuldade para explicar o que era aquele ser, sou
grato às minhas fotos por poupar-me deste trabalho. Como uma
exceção, tentarei descrevê-lo aqui. O Burrinho, assim conhecido
pela comunidade, vinha de lugar nenhum e era amigo de ninguém,
se eu não tivesse o conhecido pessoalmente e não tivesse
registrado, diria que sua existência havia sido um delírio coletivo.
Além da sua origem ser um mistério, sua vida era uma incógnita, a
Vila era bastante próspera, mas tinha Burrinho como seu indigente
e protegido. Fisicamente era um homenzinho pequeno e
desengonçado, só usava roupas que lhes eram dadas e nunca
tomava banho. Essas nem eram as características mais repugnantes
do sujeito, destaco que ele cobria seu rosto com um saco de pano
com nós nas duas pontas e com dois buracos para seus olhos

180
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

esbugalhados. Não posso esquecer também o repugnante fato de


que, mesmo com o rosto coberto, seu hálito cheirava a fezes de
ovelha.
Burrinho era quase como um ponto turístico para os moradores,
pareciam nem se incomodar e faziam quase questão de que todos
de fora fossem conhecê-lo. Uma verdadeira aberração fora do circo.
Imagino que até esse momento, pareço estar cuspindo
preconceitos, mas a questão agravante não era apenas a estética...
Quem dera fosse. Meu primeiro encontro com a figura foi durante
uma visita a uma venda local. O lugar era bastante colorido, devido
aos produtos à base de lã tingidos e tricotados dos mais diferentes
jeitos. O artesanato de Vera Cruz sem dúvida era um show à parte,
o que atraía comerciantes de todos os lugares. Enquanto me
deleitava com a delicadeza dos itens que por ali via, minha atenção
foi roubada por uma confusão que acontecia a quase um metro de
mim. Um comerciante tentava segurar uma artesã que por pouco
não avançava para cima do que parecia ser um mendigo
Me aproximei do alvoroço para entender o que ocorria e ouvi coisas
que jamais pensaria escutar num lugar tão pacífico como aquele. A
mulher, cuja banca e produtos encontravam-se revirados no chão,
gritava quase chorosa com o homenzinho:
— E tu quer que eu acredite que não soltou de propósito os teus
cachorros sarnentos pra cima da minha banca? Por que diabos você
passeava com essas pestes logo aqui na feira, Burrinho?!
— OLHA COMO FALA DOS MEUS FILHOS, SUA VAGABUNDA
IMUNDA! E o meu direito de ir e vir, em? Que culpa eu tenho se o
corno do teu marido fez essa banca com o cu?! Aposto que não sabe
nem pegar num martelo direito…
Ao ouvir tais barbaridades vindas de Burrinho, a mulher tentou
avançar para cima dele novamente, mas outra vez o comerciante
impediu.

181
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

— Ora, mulher. Deixe o pobre diabo, não vai adiantar nada sentar
o braço nele!
— Bah não vai adiantar, mas com certeza vai deixar marca. Deus
que me perdoe, mas esse bagal acabou com minha venda. Vou
levar o dia pra lavar, quando podia ir fazer os de amanhã.
E novamente o Burrinho a enfrentou:
— Não tenho nada a ver com isso, tá okay? É uma vagabunda
mesmo, fica o dia inteiro dando essa pomba velha e não quer nem
fazer o próprio trabalho.
Depois de muito bate boca, palavrões e ameaças, o comerciante
entrou em um acordo com a artesã.
— Vamos fazer o seguinte, eu compro o seu crochê pela metade do
preço que me venderia se estivesse em bom estado, só pra lhe
ajudar, assim você não fica tanto no prejuízo. O que me diz?
A mulher, sem muitas escolhas e já bastante abalada pela confusão,
aceitou a oferta e foi embora enfurecida. O povo, que havia parado
seus afazeres para olhar a briga, voltou para suas bancas e suas
vendas como se nada tivesse acontecido. Diferente dos demais, por
ser curioso e não estar acostumado com tamanha disparidade,
permaneci olhando discretamente o Burrinho. Ele ainda reclamava
sozinho, como se alguém ainda estivesse o ouvindo, até que o
mesmo comerciante que impediu que ele apanhasse se aproximou
com um leve sorriso e discretamente entregou para ele o que
certamente era dinheiro. Lutei muito para conter o riso e me afastar
do local, apesar de trágico, era cômico como a artesã deixou ser
enganada por um golpe tão descarado.
Queria eu que naquele momento a severa luz da consciência tivesse
banhado meu corpo, mas estava cego pela minha própria soberba
e pelo desejo irresponsável de me entreter com aquela figura
medonha que, protegida por sua máscara de idiotice, parecia saber
muito bem como ser rei na sua própria miséria.

182
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Por se tratar de uma comunidade pequena, não foi difícil esbarrar


novamente com Burrinho. Cheguei a ver e registrar as mais
inexplicáveis atrocidades cometidas por ele, como: urinar num
senhor que caiu no sono em um mocho, alegando que ele estava
ocupando o lugar de quem poderia precisar; bater num garotinho
com a justificativa dele ter roubado um dos seus cachorros; cortar
os cabelos de uma jovenzinha para deixá-la feia, pois, segundo ele,
a menina era muito bonita e poderia ser estuprada por um
forasteiro; fora a vez que um comerciante lhe deu um isqueiro de
presente e ele causou inúmeros focos de incêndio pela cidade ao
tentar matar o que ele chamava de “matos malditos”, que na
verdade eram árvores.
É importante salientar que, como fotógrafo, era essencial que eu
não interferisse. Cumpri tal exigência da profissão por dois meses
e notei que a população apenas lhe dava leves represálias, até o
padre local apenas lhe dava os incompatíveis “castigos” de ler a
bíblia e ouvir seus sermões nas missas. Era como se estivessem
lidando com um palhaço louco que, mesmo não sendo são, trazia
um profano divertimento para aquela pacata e tediosa
comunidade. Confesso, porém, que mesmo com meu vasto
conhecimento de mundo e minha inegável inteligência, algumas
vezes deixei-me levar pela comicidade que Burrinho trazia.
Certa vez o encontrei quando me dispus a fotografar um dos
rebanhos que pastavam pelo lustroso campo que antecedia a vila.
Eram animais bastante robustos, nem mesmo as fazendas
pecuaristas conseguiriam produzir naturalmente criaturas tão bem
cuidadas. O que destoava do cenário era aquele cínico
sujeito. Burrinho costumava passar algum tempo acompanhando
os pastores apenas para irritá-los. Com a maturidade de uma
criança, ele pegou uma imunda manta de lã que carregava consigo,
jogou por cima dos ombros e começou com uma imitação grotesca
de berros que assustou as ovelhas, deixando-as inquietas. Já quase
acostumado com suas brincadeiras e presepadas, decidi que seria

183
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mais prático manipulá-lo para me deixar em paz. Então tratei de


chamar sua atenção com uma reclamação inusitada:
— Oras, mas que porcaria!
— O que? Vai dizer que estou te atrapalhando? Estou só brincando
com elas, nada te impede de tirar suas fotos. — ele retrucou. Aquele
era o sinal que eu precisava para prosseguir.
— Não é isso, Burrinho, você não me atrapalha. Diferente daquelas
malditas árvores ali naquele matagal, estão acabando com meu
cenário! — continuei, fisgando-lhe de vez.
— Meu amigo… você não sabe como eu sofro com todo esse mato,
me deixam até sem ar só de olhar. Já tentei de tudo para me livrar
dessas pestes, mas ninguém na vila me escuta. — disse ele quase
com empatia. — Sem elas poderíamos ampliar o pasto das ovelhas,
poderíamos até fazer grandes plantações…
Eu apenas concordava com a cabeça. Ele estava tão concentrado no
seu discurso que nem notava que eu também estava tirando as
fotos que queria sem sua interrupção. Pensei estar no controle, mas
distraído com as ovelhas, não dei a atenção devida ao que ele dizia:
—…Deus proverá a salvação, somente Ele está acima de Vera Cruz
e sei que Ele quer que ajudemos uns aos outros, principalmente
quando se trata dessas pragas...
Quando enfim me dei conta do que o infeliz faria, já estava sozinho
no campo e ele já havia adentrado a mata. Desesperado, sai pelo
campo gritando por ajuda, alguns pastores atenderam meu
chamado, mas era tarde demais, as árvores estavam em chamas e
não havia sinal de que Burrinho havia saído de lá. Todos já estavam
se conformando com o pior e se retirando para chamar mais
pessoas para apagar o incêndio, quando uma figura saiu de dentro
das chamas. Burrinho, com ar de vitória, deixou seu manto de lã
cair dos ombros e esticou os braços na horizontal, como Cristo na
cruz, para que todos vissem que ele estava ileso. Ainda com a
câmera na mão, registrei aquilo que parecia ser um milagre.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Naquele instante todos estavam abismados, inclusive eu. Porém,


na manhã seguinte ao incêndio, depois de refletir o ocorrido, dei-
me conta de que foi a lã de seu manto que o salvou por pouco e não
necessariamente uma intervenção divina. Para infelicidade de uma
parte da população, Burrinho se tornou um Messias aos olhos de
quem era cego pela religião e de quem fingia ablepsia por meio da
venda da ganância.
Os comerciantes e alguns pastores compraram a santidade de
Burrinho, pois esse atendia suas antigas e até então atrofiadas
vontades capitalistas, como a criação de uma fábrica de lã e a
queimada controlada das matas para grandes plantações. Aquela
população analfabeta e religiosa, foi facilmente convencida, através
dos sermões do então Messias, de que tais ações seriam boas para
a comunidade e que Deus estava os guiando para o futuro. O que
seus gananciosos apoiadores não esperavam era que o maluco
homenzinho fosse também fazer o que era óbvio que faria: induzir
absurdos.
Em poucos meses, ele convenceu a população de que o cocô das
ovelhas purificava o corpo, que as mulheres deveriam sempre
cortar o cabelo igual dos homens, que queimar as árvores próximas
às casas iria purificar o ar e que todos os que ele chamava de
homens de bem deveriam ter uma arma para se defender de
ladrões. O caos se instaurou na Vila, os homens se tornaram
arrogantes, as mulheres passaram a ser tratadas como inferiores e
os rebanhos aos poucos adoeciam e morriam, pois os pastores
passaram a priorizar as queimadas e com o futuro plantio. Tentei
mais de uma vez convencer aquela gente de que tudo aquilo era
uma loucura e que estavam ficando sem saúde e logo morreriam
na miséria, entretanto, as fezes em seus organismos e a cegueira
moral já os tornara insanos.
O auge do caos foi em uma noite quando Burrinho, vestido todo de
branco, mas ainda com seu saco na cabeça, mudou totalmente seu
tom habitual para discursar.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

—Cidadãos vera-cruzenses! É hora de transformar nossa vila em


cidade, deixar a soja crescer, passar a boiada! Sei que a situação está
difícil, estamos quebrados, mas não posso fazer nada enquanto as
ovelhas estiverem aqui. Deus quer que progridamos. É por isso,
povo de Vera Cruz, que hoje vamos queimá-las!
Com essas palavras sem nexo, Burrinho levou a população até o
pasto com tochas e gasolina. Era uma visão caótica, a luz do luar
que iluminava seus rostos deixava mais à mostra a podridão que a
ingestão de estrume causava em seus corpos. Tirei o máximo de
fotos que pude, já que os impedir naquele estágio de insanidade era
impossível. Aos montes, as pessoas foram jogando gasolina nos
animais, alguns dos pobrezinhos quase se afogavam com o líquido
inflamável, o cheiro impregnava minhas narinas assim como os
berros histéricos torturavam meus ouvidos. Somente Dante
entenderia, talvez, pelo que passei.
O Messias, quase completamente ensopado de gasolina, imitou
mais uma vez Jesus na Cruz, puxando o ar para dizer algo, porém,
antes que pudesse falar, um estrondo mais alarmante que as
ovelhas pôde ser ouvido. Quando nos demos conta, Burrinho
estava em chamas e atrás de nós estava o menino que ele havia
surrado. Com sua mão esquerda, ele segurava na coleira o cachorro
que roubou e com a direita estendia uma arma que provavelmente
era de seu pai.
Desesperados, os que estavam sujos com o líquido inflamável
tentaram se limpar para ajudar o pobre coitado, mas era tarde
demais, suas vestes brancas se tornaram negras, se misturando à
carne queimada. Sua máscara não resistiu muito, parecendo
naquele momento com a face do diabo. Ignorando completamente
o corpo chamuscado, o pai do garoto correu para tirar a arma de
sua mão e o abraçou com força. Os demais olhavam a cena com os
olhos de quem podia ver seus filhos naquele menino. Eu, que já
estava anestesiado pelo horror, apenas fui saciar minha curiosidade
indo tirar o saco da cabeça de Burrinho quando seu corpo já não

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ardia mais em chamas. Todos olharam com desgosto para o rosto


descoberto, era um homem velho, com feições comuns a de
qualquer outro. Assim como sua face, sua santidade havia sido
desmascarada diante do povo.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo/Brasília: Hucitec/Editora Universidade
de Brasília, 1987.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

¬O grotesco como estratégia na fala do presidente Bolsonaro¬

Ellen Petrech Vasconcelos


Universidade Federal de Santa Catarina
ellenpetrech@yahoo.com.br

Imaginemos por um momento um cidadão brasileiro abrindo os


jornais ou portais de notícias mais conceituados do país em meio a
maior crise sanitária já enfrentada, esse cidadão se depara com uma
manchete trazendo a seguinte fala sem cerimonias do líder da
nação: “Caguei. Caguei para a CPI. Não vou responder nada.”.
Qual podemos supor seria a reação desse hipotético cidadão?
Revolta, raiva, vergonha, sentimentos justificáveis já que tal
vocabulário não é esperado de alguém em uma posição tão
importante em um momento tão complexo. Porém, nos afastando
do campo das hipóteses e retornando ao mundo real, percebemos
que ao proferir tais palavras tão impróprias ao cargo, o presidente
Bolsonaro recebe sim muitas críticas, conforme o esperado, porém,
a mesma fala também recebe apoio da sua base aliada, como nesta
postagem:
Figura 1: Comentário do vídeo

Fonte: Youtube Brasil[1]

188
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Comentários assim aparecem em grande número nos comentários


da live[2] do dia 08 de julho 2021. Muitos podem pensar se tratar
apenas de idolatria cega e desmedida, contudo, o apoio recebido
pelo presidente por sua fala pode demonstrar o resultado de uma
estratégia criada para gerar identificação, familiaridade e
proximidade com seus apoiadores, essa tática também se
concretiza por meio de uso de expressões grotescas.
A identificação de setores da população brasileira com Jair
Bolsonaro está baseada, em parte, pelo seu discurso antipolítica.
Lembremos que em sua campanha eleitoral uma das bandeiras
defendidas era exatamente ser alguém fora do sistema vigente,
visto por muitos como totalmente corrompido. É importante
resgatar as condições históricas na qual se desenrolaram as eleições
de 2018, momento no qual ainda estávamos vivendo as
reverberações do golpe contra o governo de Dilma Rousseff, o
processo de impeachment desgastou a instituição política e a figura
do político. O político tradicional passou a ser visto por muitos
como um ente distante de seus eleitores, com uma vida de
privilégios, envolvido em escândalos milionários, com um discurso
cheio de pompa e alheio aos anseios de população. Nesse contexto,
a imagem de um candidato antissistema que se descola dessa
imagem preexistente encontra espaço para prosperar. Uma das
formas exploradas para se dissociar da imagem do político
tradicional foi alterar o discurso tradicional, se distanciando das
formalidades e se aproximando de uma linguagem mais popular.
Isto posto, a linguagem nada formal do presidente Bolsonaro não é
uma novidade para seus apoiadores, pois essa foi uma estratégia já
utilizada desde o período eleitoral.
Bakhtin (2008) ao falar sobre a linguagem popular assevera que as
“diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos,
juramentos blasões populares, etc)” (p. 04) seriam também uma
maneira de manifestação da cultura popular, onde linguagem era
utilizada para expressar a quebra provisória das hierarquias entre

189
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

as pessoas. Essa modificação nas estruturas hierárquicas era


possível em momentos onde se elaboram formas especiais do
vocábulo, sem restrições e liberados das etiquetas e da decência
como na linguagem carnavalesca típica, caracterizada pela
relatividade da verdade, pela lógica das coisas “do avesso” e
permutação do auto e baixo corpóreo.
O enunciado polêmico foi proferido em uma das
muitas lives postada no canal do Youtube do presidente Jair
Bolsonaro, essas transmissões são assistidas principalmente por
apoiadores do governo, utilizadas como estratégia para manter
uma linha de comunicação direta com seus eleitores e também
como uma maneira de atacar opositores, diminuir o impacto da
pandemia, fazer propaganda do tratamento precoce com
cloroquina. Outra função muito importante dessas lives é criar
material para ser replicado pelas redes bolsonaristas. Portanto, o
presidente da república não utiliza o meio oficial de se comunicar
com a população, ele rompe com o oficial e utiliza uma
comunicação informal utilizando de redes sociais, ambiente no
qual dominou nas eleições de 2018, como uma forma de se
comunicar sem intermediários com sua base mais fiel.
Mas, em qual circunstâncias fala tão imprópria a um chefe da nação
foi proferida? Para compreendermos melhor será necessário
retornarmos a 8 de abril de 2021, quando o ministro do STF
(Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso determinou a
instalação da CPI da Covid-19 no Senado Federal. A Comissão
Parlamentar de Inquérito foi instaurada com o objetivo de apurar
eventuais erros e omissões por parte do Governo Federal no
enfrentamento da pandemia em especial a situação de falta de
oxigênio pelo qual passou o estado do Amazonas.
Durante as investigações da CPI, documentos apontam para
possíveis irregularidades na compra da vacina da Covaxin essa
descoberta leva o depoimento em 25 de junho dos irmãos Miranda,
o deputado Luis Miranda (DEM) e o irmão dele, Luis Ricardo

190
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Miranda (servidor do Ministério da Saúde). Durante o depoimento


à CPI os irmãos afirmam ter relatado ao presidente as suspeitas de
irregularidades envolvendo o contrato para aquisição da vacina
Covaxin, em caso de confirmação do ocorrido estaria Bolsonaro
incorrendo em crime de prevaricação.
Dentro deste panorama, gera-se a expectativa de um
pronunciamento oficial negando tais acusações. Contudo, nos
próximos dias segue-se o silêncio prolongado de Jair Bolsonaro, o
qual não nega o encontro com os irmãos Miranda, nem a acusação
de prevaricação. Treze dias se passam e nenhum pronunciamento
oficial ocorre, então no dia 08 de julho a comissão diretiva da CPI
protocola uma carta pedindo ao presidente uma manifestação
sobre o depoimento dos irmãos Miranda, a correspondência é
assinada por Omar Aziz (PSD), presidente da CPI; Randolfe
Rodrigues (Rede), vice; e Renan Calheiros (MDB), relator. O clima
que já estava tenso só piora e em transmissão em uma live em rede
social, no mesmo dia, o presidente afirmou “Você sabe qual é a minha
resposta, pessoal? Caguei. Caguei para a CPI. Não vou responder nada.”.
Para podermos refletir sobre a presença da imagem grotesca na
fala presidencial, é importante retornarmos os estudos de Bakhtin
(2008) sobre o grotesco, eles nos dizem que “na base das imagens
grotescas, encontra-se uma concepção especial do conjunto
corporal e dos seus limites” (1987, p. 275), o corpo grotesco é
considerado aberto e inacabado, tem seus limites apagados, pois
não interessa ao grotesco o fechado e acabado, logo a imagem
grotesca constrói um corpo bicorporal no qual “um elo se prende
ao seguinte, onde a vida de um corpo nasce da morte de um mais
velho” (p. 278) portanto a imagem do corpo individual contido em
seus limites deve estar ausente do grotesco por ser um fenômeno
isolado e acabado. Dessa forma, a imagem grotesca ignora a
superfície do corpo voltando-se para as saídas, excrescências,
orifícios, ramificações, ou seja, tudo aquilo que atravessa os limites
corpóreos. No rosto grotesco, devemos dar atenção a boca, pois “O

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

rosto grotesco se resume afinal em uma boca escancarada, e todo o


resto só serve para emoldurar essa boca, esse abismo corporal
escancarado e devorador.” (p. 277), assim sendo a boca torna-se a
ligação, o caminho que conduz ao baixo corporal. O nariz também
merece destaque pois, pode ser o substituto do falo o qual é um dos
elementos mais importante no corpo grotesco, sendo a relação
entre nariz e falo mais uma forma de aproximar o baixo corporal
do alto corporal. Unir em uma única imagem os polos positivos se
negativos e permitir ao baixo corpóreo ocupar o lugar do alto
corpóreo são característica fundamentais para se compreender a
imagem grotesca.
Para Bakhtin (2008), a imagem grotesca está fortemente presente na
linguagem não-oficial dos povos, principalmente quando a
linguagem liga a imagem corporal a injuria e ao riso, isso
justificaria “um número astronômico de expressões consagradas a
certas partes do corpo: órgãos genitais, traseiros, ventre, boca e nariz,
enquanto aquelas nas quais figuram outras partes: braços pernas,
rosto, olhos, etc., são extremamente raras. (p. 278). Para o autor,
pessoas que têm um relacionamento familiar, próximo riem e se
injuriam da linguagem repleta de imagem grotesca, nas palavras
do autor “A imagem grotesca do corpo, nitidamente
fundamentada, reside igualmente na base do fundo humano
dos gestos familiares e injuriosos. (p. 279), ou seja, a linguagem
familiar está carregada da imagem grotesca. Assim sendo podemos
imaginar então, ser possível o uso da linguagem grotesca para
representar uma maior proximidade entre os participantes de uma
dada interação social.
Voltemos a nos debruçarmos mais atentamente ao enunciado
proferido pelo presidente: “Você sabe qual é a minha resposta, pessoal?
Caguei. Caguei para a CPI. Não vou responder nada.” percebemos em
seu discurso simplista e grotesco se inscreve em um projeto de
dizer o qual atende a sua intenção discursiva: encerrar o assunto
sem dar uma resposta, pois com o seu discurso ele não confirma
nem nega o dito pelos irmãos Miranda e não se comprometendo ou

192
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

abre possibilidade para ser desmentido por possível gravação feita


por eles. Opta por manter seu discurso na superficialidade, não
aprofundando a temática das CPI, cuja comissão tem investigado
possíveis crimes em seu governo. Procura alimentar sua imagem
de antissistema, do político que rompe com a estrutura vigente e se
afasta das formalidades, das falas oficiais e diz de maneira “direta”
tudo que pensa. O uso de uma linguagem grotesca e injuriosa
usada por Bolsonaro procura demostrar força, poder e até mesmo
masculinidade. A opção por uma linguagem grotesca a qual chama
mais atenção pela referência ao baixo corporal e as excrecências é
usado para esconder o desconforto de tocar no assunto sensível ao
seu governo, a acusação dos irmãos Miranda. Nos estudos de
Bakthtin (2008) sobre o grotesco, o autor esclarece que o riso é uma
forma de romper com o medo, porém percebemos que no caso de
Bolsonaro o riso é uma estratégia de esconder a tensão gerada pelas
acusações na CPI e desviar a atenção do assunto o qual pode abalar
as estruturas de seu governo. Percebe-se aqui um padrão já usado
em seu governo para desviar o foco de assuntos importantes com
falas que por vezes se utilizam da linguagem grotesca, chocam
parte da população, viram notícia na mídia ao mesmo tempo
passam a mensagem para seus eleitores fiéis de ser um homem
forte e opositor ao sistema.
Conforme mencionamos anteriormente, o enunciado condenado
por muitos não gerou espanto em sua base fiel de apoiadores, o
contrário é comprovado nas mensagens postadas no vídeo de 08 de
julho de 2021 onde encontramos uma sequência de postagens
apoiando, enaltecendo e comemorando a sua fala grotesca.
Vejamos alguns exemplos:
Figura 2: Comentário do vídeo

193
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Youtube Brasil[3]


Figura 3: Comentário do vídeo

Fonte: Youtube Brasil[4]


Figura 4: Comentário do vídeo

Fonte: Youtube Brasil[5]

Figura 5: Comentário do vídeo

Fonte: Youtube Brasil[6]


Figura 6: Comentário do vídeo

Fonte: Youtube Brasil[7]


Figura 7: Comentário do vídeo

194
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Youtube Brasil[8]


Figura 8: Comentário do vídeo

Fonte: Youtube Brasil[9]


Nesses exemplos de mensagens postadas por seus apoiadores
vemos uma forte identificação com a fala do presidente da
república, alguns demostram se sentir representados, outros
manifestam carinho, outros ainda se sentem impelidos a se incluir
na imagem grotesca e até mesmo qualificam sua fala com clara e
objetivas. Demonstrando, conforme apontado por Bakhtin (2008),
que o uso da imagem grotesca na linguagem pode passar a
sensação de proximidade e familiaridade, tal qual a linguagem
carnavalesca que aboliam as distâncias entre os indivíduos. Há
também a presença de representações de riso, demostrando que o
uso da linguagem grotesca por parte de Bolsonaro gera um efeito
de humor e não estranheza a desaprovação para esse público mais
fiel. É interessante apontar também o encorajamento de muitos a
aderir a linguagem grotesca, a semelhança de um momento
carnavalesco, como podemos verificar na seguinte postagem, onde
o internauta também opta por criar uma imagem grotesca ao
aproximar o baixo corporal ao alto corporal, ou seja, as excrecências
saem do baixo corpóreo do presidente a alto corpóreo dos
senadores os quais fazem parte do grupo de oposição do governo
na CPI, conhecidos como G7[10].
Figura 9:

195
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Youtube Brasil[11]


A fala do presidente da república reverbera por toda a mídia e
redes sociais, de tal maneira que na próxima sessão da CPI[12], o
relator Renan Calheiros (MDB) responde seu discurso do seguinte
modo “A escatologia proverbial do presidente da república
recende ao que ocorreu em seu governo durante a pandemia, todos
nós sentimos esses odores irrespiráveis que empestearam o Brasil e
mataram tantos inocentes ...”, o senador faz menção ao teor
grotesco do enunciado de Bolsonaro ao usar de linguagem centrada
nas excrecências para dar resposta a uma solicitação da CPI, o
relator também aproveita-se para estabelecer uma relação entre o
odor fétido das excrecências e as consequências das ações do
governo no combate a pandemia.
Como nos explica Bakhtin (2008), o medo se transforma em riso, e
assim temos visto como forma de resistência da população ao
autoritarismo do governo Bolsonaro inúmeras charges do
presidente onde o grotesco se faz presente. Mas, em certa medida
Jair Bolsonaro se utiliza do grotesco na linguagem também como
uma maneira de resistir, de sustentar uma imagem criada durante
as eleições de ser um político antissistema, uma estratégia de
manter a conexão com sua base aliada. Usa também como uma
forma de fugir ao debate de temas controversos no seu governo,
tática para manter seu público cativo, realimentando a imagem de
um político próximo que fala tudo, não tem solenidades, não se
prende a formalidades e rompe com o oficial.

Referências

196
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2008.

Notas:
Disponível
[1]

em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIxxoXyrwMo>Acesso
em: 26 ago. 2021.
Disponível
[2]

em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIxxoXyrwMo> Acesso


em: 26 ago. 2021.

Disponível
[3]

em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIxxoXyrwMo>Acesso
em: 26 ago. 2021.
Disponível
[4]

em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIxxoXyrwMo>Acesso
em: 26 ago. 2021.
Disponível
[5]

em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIxxoXyrwMo>Acesso
em: 26 ago. 2021.
Disponível
[6]

em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIxxoXyrwMo>Acesso
em: 26 ago. 2021.
Disponível
[7]

em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIxxoXyrwMo>Acesso
em: 26 ago. 2021.

197
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Disponível
[8]

em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIxxoXyrwMo>Acesso
em: 26 ago. 2021.
Disponível
[9]

em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIxxoXyrwMo>Acesso
em: 26 ago. 2021.
O grupo inclui Omar Aziz (PSD-AM), Randolfe Rodrigues
[10]

(Rede-AP), Renan Calheiros (MDB-AL), Otto Alencar (PSD-BA),


Humberto Costa (PT-PE), Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e
Rogério Carvalho (PT-SE).
Disponível
[11]

em: <https://www.youtube.com/watch?v=zIxxoXyrwMo>Acesso
em: 26 ago. 2021.
Sessão
[12] da CPI de 0907/21. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=RjkJJ2nzoS4 >Acesso
em: 26 ago. 2021.

198
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A (in)visibilidade do graffiti

Tatiana Aparecida Moreira


Ifes
moreira.tatyana@gmail.com

Iniciamos com algumas questões:


O que chama a nossa atenção, quando vemos uma imagem?
Por que algumas imagens nos paralisam e outras passamos por elas
sem que as notemos, mesmo que estejam bem na frente dos nossos
olhos?
Existem tantas imagens espalhadas pela cidade que, em muitas
situações, fica difícil escolher para qual direcionar o nosso olhar...
Em meio ao turbilhão de imagens que circulam diante de nossas
vistas cotidianamente, há letreiros e seus movimentos, painéis de
propaganda, prédios e seus estilos, lixos amontoados, pichações,
graffiti...
Embora seja vasta a lista de opções para o que olhar na urbe, o
nosso foco se direcionará para o graffiti, arte de rua, que também
tem ocupado galerias de arte, e está inserido no contexto da cultura
Hip Hop.
Assim, na paisagem das cidades, mesclam-se rua, poeira, asfalto,
pessoas indo e vindo, muros, prédios, viadutos, latas de spray, etc,
e alguns projetos de dizer, como a produção de um graffiti, suas

199
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

palavras e contrapalavras, tendo em vista que “[...] a compreensão


é sempre dialógica” (BAKHTIN, 2003, p. 316).
Desse modo, “Tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão
alcança, é a paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do
visível, aquilo que a vista abarca. Não é formada apenas de
volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons etc
(SANTOS, 1988, p. 21).
A partir da nossa compreensão responsiva, vamos tecer algumas
considerações acerca da arte do graffiti que tem, no espaço público,
o seu local privilegiado de exposição.
E, para que possamos fazer as nossas exposições, também vamos
mostrar algumas obras da série intitulada “Por que você usa
máscara?” (figura 1), de Mundano, que se denomina artivista, haja
vista o seu engajamento em questões que dialogam entre si, como
as ambientais, políticas, ligadas ao fazer de catadores de materiais
recicláveis, entre outras. Para participar da série, o grafiteiro expôs,
em seu Instagram, a proposta que consistia no envio de uma foto
com a pessoa segurando um cartaz com uma resposta para a
pergunta feita. Após, Mundano faria o desenho da pessoa e do
cartaz.

200
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1 – Enunciado motivador da série

Fonte: Instagram de Mundano


O sucesso da série foi tanto que já conta com centenas de respostas
enviadas por várias pessoas, desde a sua publicização, em fevereiro
de 2021. A série do artivista, como se nota, é uma resposta a uma
forma de prevenção para se evitar o contágio do novo coronavírus,
já que o “[...] o interpretador é parte do enunciado a ser
interpretado, do texto (ou melhor, dos enunciados, do diálogo entre
estes), entra nele como um novo participante. [...] A molduragem
do enunciado do outro pelo contexto dialógico” (BAKHTIN, 2003,
p. 329).
Várias pessoas enviaram suas contribuições, como é caso do poeta
Sérgio Vaz (Figura 2 ) e do Pe. Júlio Lancelloti (Figura 3). Abaixo,
estão os dizeres que ambos escreveram:

201
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 2 – Poeta Sérgio Vaz

Fonte: Instagram de Sérgio Vaz


Figura 3 – Pe. Júlio Lancelloti

202
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Instagram do Pe. Júlio Lancelloti


As respostas do poeta (“Eu uso máscara porque quero ver o Brasil
sorrir novamente”) e do padre (“Eu uso máscara para defender a
vida”) vão ao encontro da perspectiva bakhtiniana de que a
compreensão é prenhe de resposta e, nos cartazes, podemos
observar um teor positivo de quem acredita que as coisas ficarão
melhores, já que se quer “sorrir novamente”, e que devemos
“defender a vida” / o outro, num movimento de alteridade. Logo,
o interlocutor, a partir da proposição da série de Mundano,
“concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o,
aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do
ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e
compreensão desde o seu início [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 271).
Dessa maneira, podemos cotejar as variadas respostas à questão
proposta por Mundano com o contexto da obra de Rabelais, do
Círculo de Bakhtin (2010), visto que esperamos haver o
renascimento de um novo mundo, pós-pandemia do novo
coronavírus, a partir da destruição e do destronamento de velhos
poderes e de velhas verdades, que teimam em ser persistentes,
principalmente os ligados a não valorização da ciência e
daqueles(as) que dão as suas contribuições para o combate não só
da atual pandemia como de outros fazeres científicos.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética de Criação Verbal. Trad. Paulo
Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, Valentin N. Marxismo e
Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi. 7.
ed. São Paulo: Hucitec, 1995.

203
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado,
fundamentos Teórico e metodológico da geografia. São Paulo:
Hucitec, 1988.

204
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A ANALIDADE DO MAL: UMA ANÁLISE DO BRASIL BOÇAL

João Vianney Cavalcanti Nuto


Universidade de Brasília
litcult.unb@gmail.com

Ao abordar o que denomina “realismo grotesco” em Rabelais,


Mikhail Bakhtin (1996) observa que a principal característica das
imagens grotescas e do baixo material e corporal em Rabelais é a
sua ambivalência. Ao contrário dos sentidos mais consagrados do
grotesco, a obra carnavalizada de Rabelais comporta, além da
função satírica, também um sentido positivo, relacionado com a
alegria, a camaradagem, a fecundidade, a regeneração. Bakhtin
percebe no corpo grotesco em Rabelais uma representação do
cosmos. Há, portanto, uma proximidade com o sagrado nessa
representação ambivalente do grotesco. Também há um clima de
alegria carnavalesca no rebaixamento, isto é, a transposição para o
nível das funções corporais de tudo que é elevado, sério, oficial. Um
dos exemplos analisados por Bakhtin, é a forma jocosa, em que, em
um discurso de estilo doutoral, o menino Gargântua (RABELAIS,
2021, p.265-267) conta como descobriu o material mais apropriado
para limpar o cu.
A ambivalência do baixo material e corporal que Bakhtin descobre
em Rabelais contrasta com a tradicional função satírica desse tipo
de representação. Essa função, já muito antiga, continuou existindo
em obras não tão carnavalizadas. Como parte do riso satírico, o
baixo material e corporal aparece de forma agressiva, por exemplo,
em Aristófanes, cuja obra John Wilkins (apud MINOIS, 2003, p. 26)
caracteriza como um “insulto ritualizado”. Essa ritualização ou

205
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estetização do insulto é a dominante estética da


sátira Apokolokyntosis, de Sêneca, escrita para destronar, de forma
agressiva, o imperador Cláudio. Por ocasião da apoteose de
Cláudio, isto é, de sua entronização como Deus, após sua morte,
Sêneca vale-se do baixo material e corporal para denunciar o
caráter nada divino do falecido imperador: “Depois de soltar um
som”, diz o narrador, “por aquela parte do corpo com que se
exprimia mais eloquentemente”, disse o imperador ‘acho talvez
que me sujei’”. E o narrador acrescenta: “Isso não me surpreende,
pois ele sempre sujava por onde passava” (SÊNECA, s.d.).
O baixo material e corporal é uma forma agressiva de denunciar,
mandando a hipocrisia, a desonestidade, a maldade, à merda.
Contundente maneira de colocar falsos deuses, falsos profetas,
falsos messias no seu devido lugar. Nesse caso, o baixo material e
corporal pode ser uma arma – mais limpa que um fuzil. E, como
arma pode ser usado como defesa, mas também como ataque.
Tradicionalmente, o baixo material é eficaz para denunciar aquela
representação oficial com pretensões a parecer ter o mínimo de
decência. Uma forma de abrir os olhos. No entanto, também pode
cegar. A extrema direita aprendeu a utilizar, hipocritamente, a
arma que foi criada e afiada para ferir sua própria hipocrisia. Não
basta tachar qualquer manifestação democrática pela palavra-
estigma de “comunista”. Em tempos de fake news, não basta mentir:
é preciso chocar. Horrorizar! E assim tapar os ouvidos para
qualquer argumentação razoável. Nessa canalhice híbrida, a
esquerda (tudo que for contra a radicalização neoliberal, neocareta,
neohipócrita, neobabaca) é associada a manifestações malignas do
baixo material e corporal. Nos Estados Unidos, o presidente eleito
pelo Partido Democrata é um “comunista pedófilo”. No Brasil, a
imaginação perversa atribui à esquerda a criação da famigerada
“mamadeira de piroca”. E o respeito à diversidade sexual é
chamado de “ditadura gay”. Ao lado dos falsos profetas,
defensores da moral e dos bons costumes (públicos), aparecem os
pseudofilósofos. Um deles incorporou a palavra “cu” ao seu

206
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

monologismo, mas, ao contrário de Gargântua, não inventou novos


meios de limpar a palavra – nem a coisa. Ao contrário de Luciano,
não desafiou a verdadeira filosofia a defender a verdade no
ambiente do submundo, mas conseguiu convencer aos incautos de
que sua diarreia verbal tem aroma de filosofia. Um
verdadeiro fiofósopho!
Com essa base ideológica, o podbre Brasil inventou um novo tipo de
hipocrisia: a hipocrisia transparente. É o país em que político é
flagrado com dinheiro no cofrinho (haja lavagem de dinheiro!). É o
país dos defensores da família de propaganda de margarina, da
moral que não mora na filosofia, dos bombons costumes. O país
dos santinhos dos paus ocos que adoram a dita-dura. Ao afirmar
que o Maior dos brasileiros está acima de tudo, o pior do Brasil quer
ficar em cima de todos. Hipocrisia transparente made in Brazil (with
a helping hand from abroad): o desprezo pela vida, pelo amor ao
próximo, pela alteridade, pelas minorias, pela diversidade da
nação é tão claro quanto a nudez do messias; mas quando o cérebro
não pensa, os olhos ficam cegos...
No país da hipocrisia transparente, nada mais sincero que dizer
“caguei!”. Sinceridade um tanto redundante! Mas que também
surpreende quando justamente aquela parte de corpo que não é a
mais evacuante silencia...
No país da hipocrisia transparente, o baixo material e corporal não
denuncia o que está oculto, apenas ilumina o que já está
escancarado. O discurso paródico dos memes não precisa denunciar
a falsa seriedade: basta abrir os olhos e os ouvidos para o ridículo
ululante. Em vez de revelar pelo rebaixamento, o baixo material e
corporal carnavalesco, no país da hipocrisia transparente, responde
ideologicamente à banal analidade do mal. Mais do que nunca, é
preciso carnavalizar: não se alienar, mas também não desanimar.
Ressignificar a merda, adubando a esperança! Como diria Albert
Camus (após ler Rabelais), é preciso imaginar uma cagada feliz.

207
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

REFERÊNCIAS

ANDERSEN, H. C. Contos de Hans Christian Andersen. Tr. Silva


Duarte. São Paulo: Edições Paulinas, 2011.
ARENDT, H. La banalità del male: Eichmann a Gerusalemme. Tr.
Piero Bernardini. Milão: Feltrinelli Editore, 2018.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Tr. Yara Frateschi. Brasília: Edunb;
São Paulo: Hucitec, 1996.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Tr. Paulo Bezera:
São Paulo: Forense Universitária, 2008.
CAMUS, A. O mito de Sísifo. Tr. Urbano Tavares Rodrigues. Porto:
Porto Editora, 2016.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
Ciências Humanas. Tr. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
LUCIANO DE SAMÓSATA. Luciano [II]. Tr. Custódio Magueijo.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, s. d.
MINOIS, G. História do riso e do escárnio. Tr. Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
PIGNATARI, D. Podbre Brasil!. Campinas: Pontes Editores, 1988.
RABELAIS, F. Pantagruel e Gargântua. Tr. Guilherme Gontijo Flores,
São Paulo: Editora 34, 2021.
RODRIGUES, N. O óbvio ululante. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
SÊNECA. Obras: Medéia, Hélvia, Tranquilidade da alma,
Apokolokyntosis. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.

208
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

209
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A ANTIGROTESCO DO PRINCÍPIO DO
BAIXO MATERIAL CORPORAL

FLAVIO HENRIQUE MORAES


UFSCAR
moraes.prof.vieira@gmail.com

Os contra-argumentos às antíteses barrocas são ressaltadas quando


se coteja as escrituras sagradas em face da realidade social e não
são aleatórios, pois a disciplinarização primária do Ocidente, o qual
habitamos, indubitavelmente, passou pela instância da
cristianização dos povos e da almificação dos espíritos e da
consequente separação desse do corpo. Distanciamento pleno do
princípío do baixo material corporal. Gregório de Matos em quase
toda sua obra ressaltou as diferenças, corrupções do governo,
injustiças daquele princípio. Por isso mesmo, fora considerado o
Boca do Inferno e relegado ao ostracismo. Aqui se elenca ao livro
Gêneses, da bíblia cristã, para que seja possível fazer refratar e
refletir as contradições da teorização e da prática religiosa.
Quando o grotesco se põe a serviço de uma tendência abstrata,
desnaturaliza-se fatalmente. Sua verdadeira natureza é a expressão
da plenitude contraditória e dual da vida, que contém a negação e
a destruição (morte do antigo), consideradas como uma fase
indispensável, inseparável da afirmação, do nascimento de algo
novo e melhor. Nesse sentido, o substrato material e corporal da
imagem grotesca (alimento, vinho, virilidade e órgãos do corpo)
adquire um caráter profundamente positivo. O princípio do baixo
material e corporal triunfa assim através da exuberância
(BAKHTIN, 1987, p. 54).
Referências

210
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Martins Fontes:São


Paulo, 2010.
______. Para uma filosofia do ato responsável. [Traduçã0 aos
cuidados de Valdemir Miotello& Carlos Alberto Faraco]. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010.p155
______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. 7ºed. Editora Hucitec: São Paulo,
2010.
______. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Hucitec: São Paulo,
1995.
______. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Hucitec: São Paulo,
1988
FANON , Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba,
2002. FANON, F. (1968). Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro,
RJ: Editora Civilização Brasileira.
FORTUNATO, IVAN. PATEO DO COLLEGIO: UM LUGAR NA
CIDADE DE SÃO PAULO. TESE: UNESP: RIO CLARO, 2014.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 13.º ed. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1983.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze
lições. São Paulo: Martins Fontes. 2000.
HARVEY, David. (2013). Os limites do capital. São Paulo:
Boitempo.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do
direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997

211
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A beleza em tempos de separação:


Efe Godoy, o grotesco e um sonho

Marisol Barenco
UFF
sol.barenco@gmail.com

– Mãe, me conta uma história?


– “Era uma vez uma princesa que morava em um castelo e...”
– Não, mãe, essa não! Me conta uma história de fada. Quero aquela
do Instagram, que tem asa de borboleta e cabeça de carneirinho.
– “Não é conteúdo para crianças!”
– É sim, mãe, é o que mais preciso saber, como criar coisas que não
existem para que o mundo que existe fique melhor. Conta, mãe, as
histórias de Efe Godoy.
– Vou ter que aprender para contar, filho.
– Aprende, mãe, eu espero, mas não demora ou eu cresço.

212
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Para falar do grotesco nos nossos tempos, primeiro precisamos


compreender o que queremos dizer com esse termo. Ele foi tão
associado ao monstruoso, ao deformado, ao bizarro, que quase soa
uma ofensa. Também não é culpa de quem associa, porque em um
mundo dividido pelas classes sociais, pelos pertencimentos
nacionais, genéricos, categóricos, pela divisão da cultura em “alta”
e “baixa” (tudo dentro da primeira divisão, entre eu – o que
importa, o centro da galáxia – e os outros – objetos inertes e
passivos), tomar uma coisa isoladamente é revesti-la de bem ou de
mal, de bom ou de ruim, de bonito ou de feio, de rico ou de pobre,
e assim por diante. Além disso, tomar qualquer coisa isoladamente
é inseri-la em alguma série preexistente (animais e suas
taxionomias; vegetais e suas taxionomias; minerais e suas
taxionomias, e assim por diante) e compreendê-la como elemento
isolado, mas que faz parte de uma classe, de uma categoria, de uma
caixinha com etiqueta. Mas o pior, e que Bakhtin (1999 e tantos
mais) ajudou a gente a ver, é que todas essas separações são
arbitrárias, ou seja, elas foram criadas pelos seres humanos para
organizar a realidade. A realidade é, ao contrário, essa “coisa”
impossível de ser compreendida, porque vasta, infinita,
imperscrutável pelos nossos modos de conhecimento. Não que a
gente seja limitado: ao contrário, as linguagens humanas nos
colocaram diante do mundo em posição ativa e compreensiva,
responsiva, e não passiva. Não “sofremos” o mundo, nós os
criamos pelas e nas linguagens.
Um outro russo, chamado Volóchinov, escreveu que essas
linguagens não são vazias ou esquemáticas, mas são signos
ideológicos, ou seja, tudo que é enunciado, é linguageiramente
valorado, tem valor. Ambos, linguagem e valor, por sua vez, não
contêm em si os valores, mas são portadores desses. E, indo mais
longe ainda no diálogo com Bakhtin (2010) e outros, nos ensina que
na linguagem estão presentes os índices de valor contraditórios que
compõem o mundo. O mundo, aquele dividido, separado,

213
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

multifacetado, em que tem pobres e ricos, em que uns têm seus


saberes autorizados e outros não, nesse mundo tudo está em
disputa, pelos sentidos, e não separado em caixinhas. Não é que
haja uma coisa ganhando da outra há séculos: em todos os tempos
as forças revolucionárias como que empurram para longe as forças
interessadas na manutenção das coisas injustas. A essas forças
Bakhtin deu o nome de forças oficiais (as que querem manter as
coisas paradas e isoladas) e as forças não oficiais (que lutam com as
primeiras, para movimentar e mudar tudo). Não é a luta do bem
contra o mal, porém. É a luta de quem está no poder das formas de
controle dos recursos do mundo contra os que eles querem
escravizar, dominar, espoliar. Mas é também a luta das formas
caducas de mundo contra as formas novas, em status nascendi,
querendo romper as cascas do que as aprisionou. É a luta do
complexo que não vai conseguir ser enquadrado, não importa quão
forte seja o discurso categorial ou quanto castigo a gente sofra por
não querer caber nele.
Bakhtin, como tantos outros, como Ailton Krenak, por exemplo,
sabem que esse estado de coisas foi historicamente construído, mas
que as forças desse estado de opressão não geram energia para
manterem-se, porque a energia contra o que se colocam é
indestrutível, é a energia da própria vida em sua complexidade e
inesgotabilidade. O próprio movimento do nosso planeta é assim
desde tempos imemoriais, alto e baixo, cedo e tarde, frio e quente,
para fora e para dentro etc. Só que tudo junto em um mesmo
movimento respiratório do mundo. Estamos falando aqui de um
momento (ainda que dure muitos séculos, comparado com as eras
do mundo é um momento) em que as forças foram separadas,
catalogadas, colocadas em esferas quase incomunicáveis da
cultura. Bakhtin e outros sabem que essas forças libertárias às vezes
estão escondidas, guardadas, esperando tempos mais primaveris,
e buscaram encontrá-las, bem assim como nós viemos fazer aqui
nesse encontro. Há forças revolucionárias no nosso mundo
contemporâneo? Mais que forças que “empurram para fora”, será

214
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que há figuras abertas e interpenetradas o suficiente para fazer-nos


lembrar dessas imagens ancestrais, onde as separações são
ridicularizadas, questionadas e detonadas? Imagens que Bakhtin
encontrou em muitos lugares, um deles muito importante, nos
romances em quatro volumes de François Rabelais (escritos entre
1532 e 1552), Gargântua e Pantagruel. Para compreender as imagens
que Rabelais cria, em sua obra, Bakhtin empreende um estudo que
chamará de poética histórica, buscando as suas fontes eruditas e
populares. Um dos pontos altos de sua leitura é trazer à filosofia da
linguagem a ideia de grotesco. Grotescas eram imagens e terracotas
encontradas em escavações na Itália, imagens encontradas
em grotta (grutas), que continham interessantes formas: ao
contrário de nossas imagens separadas, isoladas, fechadas em suas
peles e conceituações, essas formas extrapolavam seus limites, e
misturavam-se uns aos outros, e ao mundo, e continham, nelas
mesmas, outras imagens. A essa forma de olhar o mundo de modo
interpenetrado, avizinhado, não separado, grávido dos mundos,
Bakhtin deu o nome de realismo grotesco.

De repente, acordei, e naquele acordar não estava totalmente


acordada do sono, mas estava em um estado um tanto sonhadora,
um tanto acordada, de modo que consegui olhar o sonho se
esfumaçando, por um lado, e a concretude do meu quarto de
dormir se consolidando, por outro. As palavras que me chegaram,
não sei de qual lado me vieram, mas as recordo com clareza: “Da
sorte de acordar recordando um pedaço só do que foi quando...”
Assim mesmo, esfarelando-se, as palavras escorregavam para
baixo e eu vi que as minhas raízes escorriam, pretas, terrosas, para
cima, como que arrancadas de um areal que as preserva, mas meu
bulbo floria já maduro, enquanto eu ainda sou cama. A parte morta

215
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

e seca de meu corpo beijava a florescência do outro lado, e morte e


vida não tinham duas palavras, e se poderia usar outra para sua
unidade dialógica: beijo, ou carícia. No peso reto do meu equilíbrio
sem gravidade, uma pepita de ouro eu também era, e assim no
espaço não newtoniano eu tanto subia quanto descia, ou flutuava,
ou caía. Dessa sorte eu queria mais, e deixei a mente na bruma para
não acelerar a partida da recordação do pedaço do que foi quando...
E fiquei ali por dois éons, os primeiros, Hadeano e Arqueano,
movendo-me e transformando-me em tantas outras
possibilidades.

Descrizione generata automaticamente”>

216
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Efe Godoy, 2020, “Da sorte de acordar recordando um pedaço só


do que foi quando...” Acrílica, Aquarela e grafite HB sobre papel
de bamboo [Gramatura: 265 g/m2 – constituído em 90% fibras de
bambu e 10% algodão – Papel acid-free (livre de ácido)]

Meu nome é Efe Godoy[1], sou “artista visual, míope e transgenere.


Pesquiso hibridismo em muitas linguagens, com ênfase em recortes
de memórias da infância e fabulações espontâneas”[2]. Vejo o
mundo interpenetrado, nascido dele mesmo em várias e
transgeneres vidas e renovações da vida. Meu corpo, minha arte,
toda marca minha no mundo é assim, antes mesmo de eu dizer
qualquer palavra: ainda vivo a sorte de recordar, ao acordar, desses
éons em que tudo está em relação, em crescimento, em gravidez
híbrida. O que vejo cria o mundo no qual eu mesmo posso existir
em minha beleza, e generosamente desenho, amorosamente crio,
para que juntos não nos esqueçamos de quem sempre fomos.

Essa escrita que pratico também é, a seu modo, grotesca. Mas a


aprendi com outro grande, Walter Benjamin, que diz que se
queremos uma escrita capaz de ultrapassar a forma de “citação
de auctoritas”, vinculada aos tratados doutrinários, precisamos de
outro caminho, não direto, mas que “volte continuamente ao
princípio, regresse com minúcia à própria coisa” (2020, p. 16). Diz
que o modo de ser da contemplação é o movimento de respiração,
e na intermitência do seu ritmo, toma a forma de fragmentos.
Assim que escrevo respirando, deixando que uma coisa penetre ou
se mostre como grávida da outra, uma ideia encontrando outra
ideia, para conseguir pensar no que me foi subtraído pela cultura
oficial do meu tempo. Pois que nasci em uma época de separações
incontestes, e cresci aprendendo sua certeza. A dor que sinto pela

217
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

falta que me fazem minhas mortes e meus partos é indescritível,


bem como o sofrimento de ser alto tendo o baixo todo apagado com
borracha Mercur. Sinto a dor dos mutilados e o desejo de
completude dos fervorosos. Pois que leio a obra de Efe Godoy, bem
como as obras dos artistas que praticam Collage (desde Rodchénko
até os dias atuais, tantos artistas incríveis, e eu mesma tentando ser
uma delas) como o ser humano originário do Caribe que,
impossibilitado de ver a nau espanhola aportada na praia,
acreditou no xamã que a deduziu pelo movimento diferente das
águas. Creio no que Efe e outros e outras veem e, vendo e crendo,
na arte, olho atrás, para a vida, e vejo, finalmente, que está tudo
ainda junto: vida, morte, nascimento, comida, excreção, bebida,
mundo. E essa sou eu.

O realismo grotesco é o nome que Bakhtin deu ao romance de


Rabelais. Mas o grotesco na obra de Rabelais é olhado por Bakhtin
em muitas manifestações, e Luciano Ponzio, em sua obra Ícone e
Afiguração, onde empreende uma leitura semiótica da obra de Marc
Chagall, retoma os aportes bakhtinianos para compreender esse
conjunto de pinturas em sua força estética grotesca. Os corpos
grotescos, uma das dimensões do realismo grotesco desenvolvido
por Bakhtin, presente na obra de Chagall como uma de suas
grandes forças estéticas, tem características que gostaria de
ressaltar. Uma das características marcantes do corpo grotesco é a
sua bicorporalidade, ou a capacidade que tem as imagens em
Rabelais e suas fontes de estarem unidas em seus polos positivos e
negativos (Bakhtin, 1999, p. 269). Trata-se da capacidade quem
alguém tem de romper com seus próprios limites (tanto
quantitativos quanto qualitativos) e misturar- se a outros objetos
(idem).

218
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

São bicorporais também, enquanto imagens prenhes. Nem pronto


nem acabado, em estado de criação, o corpo ele mesmo constrói
outro corpo (idem, p. 277). É um corpo que absorve o mundo e é
absorvido por ele. Em excrescências e orifícios, os lugares onde se
ultrapassam as fronteiras entre dois corpos e entre o corpo e o
mundo (idem, p. 277).
Ademais, um corpo que contém em si o antigo e o novo, um elo
entre o corpo e o corpo seguinte, um corpo que nasce da morte do
mais velho, ou ambos fundidos numa só imagem (idem, p. 277-
278). E, por fim, corpos que se fundem topograficamente ao mundo
em paisagem e relevo (idem, p. 313).
A força dessas imagens é capaz de romper com uma construção
claustrofóbica: o corpo individual, este mesmo categorizado e
tomado em suas classes lógicas e axiológicas. Em um mundo
polarizado, circunscrito, dividido, despotencializado, os momentos
presentes e constitutivos em cada objeto, em cada imagem e em
cada ser passam a ser polarizados, positiva ou negativamente,
axiologicamente. Nesse mundo cindido e separado,
estar entre categorias é o monstruoso, como disse tão bem Foucault
no primeiro capítulo de seu livro As palavras e as coisas. Mas, se
olharmos a régua enquadradora como o distúrbio, podemos ver
que o mundo, a vida, os seres, estão interpenetrados de tal forma
que, como diz Bakhtin, comemos o sol que germinou a semente do
trigo, no pão que temos à mesa. Ou, como diz uma sábia mulher
que conheço, é o céu que se torna minha energia que circula em
minhas veias, quando o respiro: eu sou o céu. Ou, como diz Krenak,
e não usa uma metáfora: “eu sou o rio”.
Assim que precisamos, como Malevitch buscou nos antigos ícones
sagrados da igreja ortodoxa russa o sentido da obra de arte para
formular seu Quadrado negro, de um ponto de fé. Olhamos o mundo
e vemos categorias, vemos gêneros, vemos ou-ou, em um mundo
absolutamente interdependente, interconectado, interformado. Em
formação, em movimento, mudando permanentemente.

219
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Precisamos de um novo ícone, para colocar diante de nós como a


palavra do xamã, pois que o artista é esse que vê miopemente o
mundo, ou seja, o vê através e para além dos enquadramentos que
nos obrigaram a antepor à experiência viva da qual somos parte. O
grotesco de nossos tempos está vivo em todo lugar onde alguém
desveja, como queria Manoel de Barros, ou seja, veja de outro
modo, de um modo revolucionário. Eu encontrei essa visão em Efe
Godoy, e convido que possamos buscar, incessantemente, essa
forma de ver o mundo: aberta, relacional, interdependente,
amorosa.

– Mãe, me conta uma história?


– “Agora mesmo há uma fada que vê o mundo com olhos recém
acordados e que recorda de um pedaço só do que foi quando...”
– Isso sim é que é uma história para crianças...

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: O Contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec,
1999.
BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do Ato Responsável. Trad.
Valdemir Miotello e Carlos Faraco. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Trad. João
Barrento. 2. ed.; 2.reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

220
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2019.
PONZIO, Luciano. Ícone e Afiguração. Bakhtin, Malevitch, Chagall.
Trad. Guido Bonomini, Cecilia Adum e Vanessa della Peruta. São
Carlos: Pedro & João Edi

Nascida em Sete Lagoas (MG), vive e trabalha em Belo


[1]

Horizonte. Transitou pela Escola Guignard – Universidade


Estadual de Minhas Gerais – e segue sua formação em residências
artísticas no Brasil e no exterior, com experiências transformadoras
em Belo Horizonte, São Paulo, Uruguai e México. Sua página no
Instagram contém boa parte de sua obra, e pode ser acessada em
@efegodoy.
Texto escrito por Efe Godoy, na autorização que me concedeu
[2]

para essa escritura.

221
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A carnavalização das redes sociais

Marcelly Rodrigues Souza


Universidade do Estado do Pará
marcellyrodrigues101@gmail.com

Este texto é uma breve reflexão acerca da carnavalização do espaço


cibernético como porta de entrada para a disseminação de
discursos injuriosos.
Com todo o alcance e a sensação de “aproximação” que as redes
sociais proporcionam, o mundo virtual adquiriu um ar de ambiente
carnavalesco, onde “tudo é permitido”, as regras de
comportamento que valeriam para um espaço concreto não valem
no mundo abstrato que existe dentro das redes virtuais. A sensação
de liberdade, de abolição de regras promovem condutas
carnavalescas, o riso afrouxa-se em situações moralmente não
risíveis, os julgamentos e expressões de opinião pessoal desprende-
se do ambiente individual e ganham amplitude no universo virtual.
As redes sociais funcionam como o carnaval em praça
pública na Idade Média, estudado e descrito por Bakhtin (1987). No
passo que o carnaval “diminuía” as distâncias hierárquicas e o peso
de assuntos e práticas rodeadas por tabus, de forma análoga, as
mídias sociais como um elemento de comunicação instantânea e de
grande alcance, servem para estreitar a noção do que é dizível,
risível e passível de compartilhamento e opinião nos nossos
tempos. Nos seus escritos sobre a cultura popular da Idade Média
e do Renascimento, Bakhtin discorre sobre a diminuição do
cuidado de tratamento entre os sujeitos:

222
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Durante o carnaval nas praças públicas a abolição provisória das


diferenças e barreiras hierárquicas entre as pessoas e a eliminação
de certas regras e tabus vigentes na vida cotidiana criavam um tipo
especial de comunicação ao mesmo tempo ideal e real entre as
pessoas, impossível de estabelecer na vida ordinária. Era um
contato familiar e sem restrições, entre indivíduos que nenhuma
distância separa mais. (Bakhtin, 1987, p.14)
A partir deste ponto observado por Bakhtin podemos
analisar as redes sociais como um grande carnaval virtual.
Diferentemente do que foi afirmado por Bakhtin (1987) a respeito
da relação real e ideal estabelecidas pelos indivíduos no carnaval
na Idade Média, como relações impossíveis na vida ordinária, esse
tipo de troca se tornou cotidianamente possível com a
disseminação das redes de comunicação. O contato “familiar”, que
induz muitas vezes uma aproximação ilusória vem possibilitando
exposições comportamentais grotescas em grande escala dentro
das mídias sociais.
Como fonte inesgotável de entretenimento, as redes virtuais
proporcionam e impulsionam conteúdos cômicos de todo tipo para
todos os gostos, desde o ato humorístico mais inocente até o mais
tendencioso e humilhante. Atreladas ao sentimento de
aproximação e liberdade que as redes acarretam, as relações
virtuais se estabelecem como “amizades” onde todos expressam
sua visão, por vezes de maneira cômica-agressiva. Da mesma
forma em que as relações assumiam o caráter familiar no carnaval
na Idade Média e no Renascimento, de acordo com Bakhtin (1987),
os foliões não precisavam polir a linguagem e nem observar os
tabus e, portanto, podiam usar palavras e expressões
inconvenientes para falar uns dos outros.
Nesse contexto, o riso regenerador assim como o riso de escárnio
encontra espaço nas redes sociais. O riso às custas do outro,
humilhante e constrangedor faz morada no ambiente virtual,
principalmente aquele que tem como intuito desqualificar e

223
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

rebaixar moralmente pessoas socialmente estigmatizadas. O riso


explicado por Bergson (1983) que insinua o propósito inconfessado
de humilhar o outro através do riso.
Dessa forma, no ambiente carnavalesco implantado no âmbito
cibernético a linguagem familiar, instaurada pela sensação de
aproximação, assim como nos dias de carnaval medieval e
renascentista, abrem lugar para a livre expressão de grosserias, ou
seja, de palavras injuriosas que não seriam ditas em um local
presencial, ou como dizia Bakhtin (1987) na vida ordinária no
período da Idade Média. Em adição, é importante refletirmos sobre
o paralelismo entre o sentimento de aproximação e a segurança de
está por trás das telas que o meio virtual proporciona, facilitando
manifestações impolidas e ofensivas.
Assim, é importante analisarmos as redes sociais das quais estamos
cercados, observarmos o grotesco das subjetividades se
manifestando e ganhando voz em espaços públicos
cotidianamente, veja bem, as redes podem promover o alçamento
de voz daqueles que antes não eram ouvidos, mas ao mesmo
tempo, expõem as opiniões de maneira nociva de um indivíduo em
relação ao outro sem haver solicitação. O sentimento de
interligação e laços de proximidade que o mundo virtual nos leva
a sentir, eleva e evidencia os comportamentos e pensamentos
grotescos do sujeito.

Referências
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média
e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
Hucitec, Editora da Universidade de Brasília, 1987.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

224
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A constituição do corpo grotesco: “padrões” sociais e seus


desdobramentos.

Caroline Aparecida de Lima


Universidade Federal de Lavras- UFLA
caroline.lima1@estudante.ufla.br

Embasado no referencial teórico-epistemológico do Círculo de


Bakhtin (BAKHTIN, 2010, 2011 & VOLÓCHINOV, 2013, 2017), o
presente diálogo traz em seu cerne a discussões sobre a constituição
do corpo grotesco, corpo esse que se faz presente em nossa cultura
e mesmo sendo rejeitado entre tantos outros é real e persiste, no
grande tempo, como signo de lutas culturais. O presente trabalho
tem como corpus uma imagem veiculada na internet em que
mulheres, com diferentes biótipos, estão marcadas como se fossem
preparadas para uma cirurgia plástica, ou seja, são representadas
com as marcações cirúrgicas. Marcações que possibilitam também
traçar um paralelo com as delimitações feitas em roupas a serem
cortadas conforme um molde pré-estabelecido, destaco aqui, que
esse molde se faz como signo ideológico na construção de sentidos
valorativos que engendram a sociedade. Espera-se com a discussão
compreender o processo que permite que esse corpo grotesco seja
fundamental para os sujeitos entenderem o ser sujeito único em
uma sociedade grotesca em seus atos, estabelecer o processo de
aceitação de cada corpo com todas as suas imperfeições que o
tornam único.
Palavras-chave: Grotesco, Cultura, Tom, Enunciado, Círculo de
Bakhtin

225
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A problemática do grotesco se faz fundamental no social, quando


diariamente é veiculado notícias que discorrem sobre corpos ideais,
sobre a necessidade de atingir padrões de beleza que exigem dos
sujeitos uma perfeição que extrapola o ser sujeito autônomo
corporal. Dito isso, aqui, buscou-se investigar especificamente o
corpo das mulheres e a busca cruel por corpos esculturais que, na
maioria das vezes, não condizem com a realidade de cada uma.
Cada sujeito é único em sua constituição seja física, intelectual e ou
social, mas cada sujeito não é capaz de se ver sem o outro, e esse
outro não precisa necessariamente estar presente fisicamente para
constituir o outro. A título de exemplificação, quando uma notícia,
uma matéria, é veiculada nas redes sociais ela se torna referente a
ser cumprido, almejado ou não, conforme os sujeitos envolvidos
sejam afetados, e quando um sujeito não se encaixa nesses padrões
ele é socialmente comparado a algo grotesco, destoante. Para
Mikhail Bakhtin (2010), em sua obra A cultura popular na Idade Média
e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, é evidente sua
proposta de luta e relutância em seguir um projeto em que exista
um modelo de linearidade histórica e cultural, as formas e a
funções do corpo não devem ser tratadas de forma reducionista.
Os padrões sociais carregam ideologias, crenças que exigem da
mulher um corpo socialmente aceitável, corpo criado
culturalmente e, para tanto, precisa se manter dentro das linhas, ou
seja, se manter dentro de padrões aceitos socialmente. Esses
“padrões” afetam as mulheres, de forma física e psicológica,
especialmente no que diz respeito a forma como se veem no
mundo. Quando estamos diante de revistas com conteúdo voltados
para as mulheres, observamos discursos que reverberam os corpos
“perfeitos”, que enunciam sobre a necessidade de atender as
demandas sociais impostas, normalmente, para atender às
expectativas e aos estereótipos construídos, também, socialmente.
O discurso veiculado são sempre matérias que ditam o regime
ideal, a receita perfeita e milagrosa, assim como o comportamento
ideal para atrair um homem e formas de se adequar ao corpo ideal,

226
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sempre com notícias construídas culturalmente voltadas ao


interesse e necessidade masculina, colocando a mulher em posição
de objetos e bens de consumo. Essa postura gera a reação nas
mulheres, refrações que se materializam na não aceitação dos seus
corpos imperfeitos, que não se enquadram dentro de padrões,
gerando tons emotivo-volitivos, que afetam de forma negativa,
geram insegurança e dão sentido de permissão ao outro de dizer
como o corpo do outro deve ser.
Figura 1 – Foto cedida por TJ SmallsTodo

Fonte: https://www.buzzfeed.com/krystieyandoli/this-photo-
series-shows-the-damage-media-does-on-how-women-s
O enunciado exposto na Figura 1, permite estabelecer relações que
antecedem a imagem, o ver a imagem e os discursos sobre. Após
fazer uma leitura a partir do recorte do corpo, salientando que é
fundamental discutir sobre esse corpo e tantos outros que não se
encaixam em padrões pré-estabelecidos. O corpo, conforme
Volochinov (2013/2017), não deve servir como uma simbolização

227
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

do social, ele tem autonomia e assim o seu modo de ser já é um


signo que o torna essencialmente diferente, assumindo amplas
possibilidades de sentido, ou seja, o corpo é único de cada sujeito
e ao modifica-lo a partir do outro, da relação entre sujeitos que
coexistem socialmente, o corpo na presente discussão também
pode evidenciar contornos de um corpo criado para a sociedade,
um molde estabelecido segundo a relação cultural criada para
definir padrões de beleza aceitáveis socialmente.
É fundamental ressaltar a importância do corpo grotesco em nossa
discussão, pois é por meio da exclusão dele que muitas vozes se
calam e são serem silenciadas, assim como ao falar desse corpo, é
dar voz aos que estão sendo deixados à margem da sociedade. O
corpo é uma forma de conceder, de pensar e interpretar o mundo a
partir da biologia, assim Bakhtin, vê no grotesco uma forma de
humanismo, de tornar-se a relação intersubjetiva entre sujeitos
uma posição um ato ético perante o social, uma forma de resistir
aos padrões de beleza exigidos e que muitas vezes quando um
sujeito está em frente ao espelho distorce a si mesmo em lugar de
outros, à serviço dos outros, sendo também socialmente afetados,
permitindo que a coexistência social seja limitada e posta em uma
arena que reflete e refrata uma tensa luta dialógica que envolve o ser
sujeito e, mais ainda, o ser mulher em uma sociedade de padrões
programados.
Falar sobre o corpo necessita de trabalhar com as questões que
envolvem cultura, afinal, são os meios que engendram a sociedade
culturalmente que perpassam o tempo e formam os padrões.
Assim, a partir da tese de doutorado apresentada por Ekaterina
Vólkova Américo (2012), intitulada Alguns Aspectos da Semiótica da
Cultura de Iúri Lótman, podemos entender e estabelecer um diálogo
com a perspectiva apresentada, entendendo a cultura como as
relações em que todas as semioses estão interligadas e pensar em
cultura é pensar na semiosfera e estabelecer o processo de
compreensão em que a cultura é uma semiose, entendendo a
semiose como o processo em que os signos estão em um processo

228
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de produção de sentidos. Nesse limiar, podemos estabelecer as


relações a partir da perspectiva social, em que há a necessidade dos
sujeitos em alteridade, que coexistem no processo da cultura, pois,
conforme o grande tempo decorre, esses padrões vão se tornando
cada vez mais presentes nas relações que ditam o que é belo ou não
e, assim, sendo aceito ou simplesmente deixado a margem.
A cultura deve ser entendida como o lugar dos signos, em sua
relação de e no continum, em que podemos observar que signos
geram signos, pois é um lugar que não pode ser definido como algo
acabado e pronto, não se define pela condição única e existencial,
mas como um rio que corre em movimentos contínuos, mas que
suas águas jamais fazem o mesmo percurso novamente,
entendemos nesse processo o constante vir a ser do pensar e de
produzir signos, bem como de significar e (re)significar os signos,
assim, discutir o grotesco é ampliar e permitir que esses corpos,
únicos, seja na discussão biológica, seja na discussão social tenham
voz.
Falar do grotesco, portanto, é permitir que vozes antes silenciadas
possam emergir e serem ouvidas nos diferentes seguimentos
sociais, é estabelecer um diálogo por mais tenso, seja na relação de
aceitação dos corpos, seja nas singularidades únicas da vivência do
ser sujeito.

Referências
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. de
Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. 2.ed. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2010.

229
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
Hucitec, 2010a. 419 p.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e
EkaterinaVólkova Américo. São Paulo/SP: 34, 2017.
VOLOCHÍNOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios.
Organização, tradução e notas de João Wanderley Geraldi. São
Carlos/SP: Pedro & João Editores, 2013.
VÓLKOVA AMÉRICO, Ekaterina. Alguns aspectos da semiótica
da cultura de Iúri Lótman. 2012. Tese (Doutorado) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2012.

230
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A criança e o compartilhamento de olhares, encontros e


enunciações

Pollyana Fernandes de Faria Machado


Colégio Pedro II / Professora do Ensino Básico, Técnico e
Tecnológico
pollyanafernandes.uerj@gmail.com

Adriele da Silva Freitas Oliveira


Universidade do Estado do Rio de Janeiro
adrielesfoliveira@gmail.com

Iacy Carvalho Ferreira dos Santos


Universidade do Estado do Rio de Janeiro
icfs.2912@gmail.com

Esse ensaio busca romper com as classificações biologistas, que


“reduzem a infância a um estado intermediário de maturação e
desenvolvimento humano” (SARMENTO, 2005, p.363) e
compreendem que esta é uma categoria constituída socialmente, de
acordo com o contexto econômico, político e cultural, além de
perceber a criança como sujeito integral, produtora enunciados e
articuladora de dialogar com seus pares.
De acordo com Manuel Sarmento (2005), um dos representantes da
Sociologia da Infância, há a necessidade de se diferenciar

231
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

semanticamente infância e criança, não confundindo as duas


categorias. Desta forma,
[...] a Sociologia da infância costuma fazer, contra a orientação
aglutinante do senso comum, uma distinção semântica e conceptual
entre infância, para significar a categoria social do tipo geracional,
e criança, referente ao sujeito concreto que integra essa categoria
geracional e que, na sua existência, para além da pertença de um
grupo etário próprio, é sempre um actor social que pertence a uma
classe social, a um gênero, etc. (Sarmento, 2005, p. 371)

Nessa perspectiva, segundo Arroyo (2006), o homem não nasce


pronto, mas sim é constituído em um processo que dura por toda
sua vida, passando por várias temporalidades, com especificidades
em cada uma delas. O processo de constituição do ser não é finito
e solitário, ele perpassa o encontro com o outro e a ação desse outro
no sujeito e no mundo. Para Bakhtin (2011), a criança se depara com
um mundo apresentado a si através do olhar e palavras da mãe
e/ou pessoas próximas do seu convívio. Também é por intermédio
dessas pessoas que a criança pequena vai se reconhecendo como
parte do mundo e se relacionando com ele:
[...] Dos lábios dela, no tom volitivo-emocional do seu amor, a
criança ouve e começa a reconhecer o seu nome, a denominação de
todos os elementos relacionados ao seu corpo e às vivências e
estados interiores; são palavras de pessoa que ama as primeiras
palavras sobre ela, as mais autorizadas, que pela primeira vez
determinam de fora a personalidade e vão ao encontro da sua própria
e obscura autossensação interior, dando-lhe forma e nome em que
pela primeira vez ela toma consciência de si e se localiza
como algo (BAKHTIN, 2011, p. 46. Grifos do autor).

É através da palavra do outro que a criança explora, participa e se


identifica nas interações com os sujeitos ao seu redor e o mundo.
Essa interação é compartilhada e anunciada com a troca de olhares,
gestos, ruídos, etc. Ela não é literal, necessitando tanto do texto, em
suas diferentes formas, quanto do contexto para haver

232
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

entendimento. “O sentido da palavra é totalmente determinado


por seu contexto. De fato, há tantas significações possíveis quantos
contextos possíveis” (Bakhtin, 2014, p. 109).
No entanto, ainda hoje a infância e as crianças são marcadas por
uma falta e incompletude que o tempo cronológico
“compensaria”.

(A infância) é um tempo de não fala, um tempo de não ter o domínio


da razão, do verbo, da lógica do pensamento racional. A infância se
define pelo negativo, essa sempre foi a tendência. A infância era
uma espécie de fase mais próxima entre o bicho e o ser humano:
tempo dos instintos, do choro, do não controle, dos caprichos. [...]
Ela é vista como um tempo que não tem identidade, que não se
define por si mesmo, se define em relação à vida adulta, tida como
o tempo nobre da vida humana. A vida adulta é o tempo do
raciocínio, da fala, das grandes decisões, da gestão do mundo, da
gestão da cidade e, nesse sentido, todos os tempos anteriores à vida
adulta são considerados tempos preparatórios (ARROYO, 2006, p.
5-6).

O autor afirma ainda que a infância deve ser entendida e pensada


como o que ela é, opondo-se aos que pensam a infância como devir,
como um período de passagem, como um tempo de espera pela
vida adulta. A infância não é um tempo de vir a ser, pois ela já é
acontecimento e a criança um ser social que vive e deixa marcas no
mundo.
Esse ensaio é escrito por três professoras de crianças. Vivemos a
realidade das redes municipais da cidade do Rio de Janeiro e da
região metropolitana. Vivenciamos encontros em contextos
diferentes com as crianças e as infâncias das redes públicas, tendo
o olhar das crianças e suas enunciações para os acontecimentos do
mundo como elo. Entre as redes que se cruzam e relatos dos nossos
pares, a seguir compartilharemos dois diálogos estabelecidos entre

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

as crianças e seus professores relatados pelos segundos em suas


redes sociais:

A leitura dos episódios realizada pelas crianças por vezes gera


divertimento e risos, sobre isso, Mello, Lopes e Lima (2021) refletem
sobre o lugar da criança em uma sociedade que não a toma como

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sujeito enunciador, expropriando a criança do direito de dizer sua


palavra plena. Para os autores,
As crianças são seres ativos e participativos nas culturas. Suas
palavras tomam parte no tecido compreensivo e criativo da
transformação social. Crianças não são seres passivos, ouvintes
passivos, seres humanos incompletos que falarão no futuro. Sua
palavra é o enunciado vivo, ativo e agora (p. 8).

As crianças produzem enunciados, ressignificando eventos, saberes


e palavras trocadas, a externalização desses enunciados
ocasionalmente causa divertimento pelo enunciado subversivo
emitido por elas. As imagens acima são compartilhamentos de
professores nas suas redes sociais e ilustram o raciocínio próprio e
a palavra enunciada pelas crianças que geram risos e reflexões.

Rubem, um professor da rede pública municipal do Rio de Janeiro,


ao ser perguntado sobre o motivo de compartilhar situações
corriqueiras do seu dia-dia com as crianças diz encontrar em suas
postagens, no seu ato de contar a história vivida, uma forma de
refletir sobre suas concepções de educação, suas práticas e as
crianças, considerando as postagens “pérolas” reflexivas:

[...] cara, a sua pergunta é mega, super, ultra importante, super


relevante. Pra mim, pessoalmente... minha opinião, tá?... Toda e
qualquer postagem das minhas crianças só me faz refletir. Tudo me
faz refletir. Por mais que seja até engraçado quando eu boto as
pérolas deles, né, as frasezinhas que eles soltam engraçadas ou até
as imagens de brincadeiras e vídeos, tudo pra mim tem uma pesquisa
em cima! Tudo tem um olhar atencioso, um olhar estudioso sobre o
que eu tô postando. Não é só um divertimento automático, pra mim.
Eu avalio muito sobre essas questões, sabe? E aí, enfim, a gente
pode falar de várias coisas... Alfabetização, letramento, o cotidiano,
a questão da desigualdade... Aí você viaja, a reflexão é uma rede
interminável... Pra mim eu não posto nada por ser engraçado, eu

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

posto porque é engraçado, mas essa graça traz uma reflexão muito
grande, muito forte, não tenho dúvida!” (Rubem).

Rubem ressalta que compartilha suas vivências não apenas pelo


divertimento, mas pela reflexão que essas podem suscitar. O
divertimento e o tom cômico usualmente atribuído a alguma fala
das crianças servem como pano de fundo. Bakhtin (2010), nos
lembra que “nós temos em vista o riso não como um ato biológico
e psico-fisiológico, mas o riso na existência sócio-histórica, cultural
e objetal, e, principalmente, na expressão verbal” (p. 343). Para
Mello, Lopes e Lima (2021), “[...] consideramos contraditório que
uma criança possa lançar a nossa escuta algo que nunca havíamos
pensado, ouvido ou visto, afinal é destinado somente ao adulto o
lugar daquele que sabe e ensina” (p. 12). Às crianças pouco é
considerado o lugar de criação e movimento, assim, suas palavras
causam espanto quando raciocínios não ortodoxos e impensáveis
no mundo adultocêntrico são sistematizados.
A criança que pensa o ainda não pensado (mesmo que por ela) cria
poeticamente novas existências, novos mundos, tempos, territórios,
novas lógicas, através de novas palavras e maneiras de fazê-las
existir na concomitante criação de novas existências. Este
movimento inspira pensar com as crianças em suas distintas
infâncias enquanto povo que, com suas linhas de fuga e seus
movimentos desviantes, lutam crianceiramente em defesa de novos
modos de existência, criando novos espaçostempos que não deixam
de ser novos territórios e que, ao mesmo tempo, tornam-se planos
de desterritorialização na medida em que se abrem para novas
lógicas (MELLO, LOPES, LIMA, 2021, p. 14).

O riso do adulto reflete a sua limitação em dialogar com as crianças


pequenas e o coloca em um lugar de não-saber, este comumente
atribuído às crianças, é um riso desconcertado, sem graça. O riso é
discurso, configurando-se na esfera das interações, portanto, é
marcado pelo contexto de uso, sentido e temporal. A reflexão

236
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

gerada pode proporcionar o movimento de reconhecimento das


outras lógicas para além da adultocêntrica.

Referências
ARROYO, Miguel. Imagens quebradas. [Entrevista concedida a]
Adriano Guerra. Revista Criança do Professor de Educação
Infantil, v. 41, p. 3-7. Ministério da Educação, Brasília, 2006.
Disponível
em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/revcrian_4
1.pdf Acesso em set. 2021.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Questões de literatura e de
estética: a teoria do romance. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
_______________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.
BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], Mikhail. Marxismo e filosofia da
linguagem. 16ª edição - São Paulo: Hucitec Editora, 2014.
MELLO, Marisol B. C., LOPES, Jader J. M., LIMA, Márcia F. C. Por
que rimos das crianças? In. Rev. Linhas Críticas, Dossiê:
Participaciones y resistencias de las infancias y juventudes de
América Latina Brasília, v.27, p. 1 - 18, jan. - dez. 2021. Disponível
em: https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view
/35191/30424 Acesso em set. 2021.
SARMENTO, Manuel. Gerações e alteridade: interrogações a partir
da sociologia da infância. In: Educação e Sociedade, Campinas,
vol. 26, n. 91, p 361 – 378, Maio/Ago. 2005, ISSN 0101 – 7330.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A DESORDEM E O REGRESSO:
A LINHA DOS TEMPOS SOMBRIOS

Roseane Cristina Costa Amorim


Universidade do Estado do Pará
rosecrist2014@hotmail.com

ERIKA SUELEM DA SILVA PEREIRA


Universidade do Estado do Pará
erikapereira222@hotmail.com

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Que absurdo! Quantas atrocidades esse homem fala! Não parece


real. Não vai ser presidente, não. Impossível que venha a ter tantos
apoiadores para elegê-lo!”. Era o que pensávamos. Tivemos
espanto, repulsa, incredulidade. Porque não! Não seria possível um
candidato chegar à presidência do Brasil, em pleno século XXI, com

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

um histórico de um tirano, fascista, contrário às causas sociais tão


reais e justas. Até que...
“Mito! Mito! Bolsonaro presidente! Queremos Armas!”
Ficamos perplexas. “Como assim? Mito? Armas? Não é
possível. Não são apenas alguns, é um número grande de eleitores.
Mas armados? ... Só se for de suas ignorâncias com armas de
brinquedo, daquelas de R$9,99 que expelem uma aguinha”. Até
brincávamos diante de tamanha ignorância, porém, ainda receosas,
parecia que estávamos adormecendo em um pesadelo ao nos
deparar com tanta crueldade e, o pior, pessoas totalmente
favoráveis a ela... Mal sabíamos que o pesadelo estava por vir...

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

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A DUALIDADE DA CRECHE NO MUNDO PANDÊMICO:


BEBÊS QUE NÃO CABEM EM PROTOCOLOS

29 - Vanessa França Simas


SME/Campinas - FE/Unicamp
vanessafsimas@gmail.com

Assoladas e assolados pela pandemia da covid-19 e pelo


desgoverno deste que se diz presidente do Brasil, vimos passando
por momentos extremamente difíceis. Um grande número de
mortes poderia ter sido evitado se houvesse política pública para
isso, muitas pessoas não estariam passando fome também se
houvesse uma política pública que fosse não-indiferente
(BAKHTIN, 2010) às pessoas, aos seus direitos e necessidades
básicas, ao invés de um desgoverno que acaba por matar brasileiras
e brasileiros, seja pela covid-19, seja pela fome, seja pelo ódio. Neste
contexto catastrófico, começou-se, no primeiro semestre deste ano,
a discussão sobre o retorno presencial de bebês e crianças às creches
e escolas.
Do lugar de professora de bebês, discutia com a minha equipe
sobre como agiríamos para protegê-los e protegê-las do vírus, bem
como para nos proteger. Pensávamos nos protocolos da rede
municipal na qual trabalhamos, nos protocolos da nossa creche, nas
propostas possíveis de serem realizadas neste contexto pandêmico,
nos equipamentos de proteção individuais... Enfim, eram vários os
temas que precisávamos discutir e, cada vez que conversávamos
sobre eles, mais surreal nos parecia esse retorno presencial de bebês
para as creches em tempos pandêmicos.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

As bebês e os bebês, muito mais do que as pessoas adultas, se


expressam com o corpo todo, engatinham, rolam, rastejam,
conhecem o mundo também pela boca, levam tudo à boca, sentem
o espaço e interagem com ele e com os outros com o corpo todo,
com todos os sentidos. Elas e eles requerem aproximação,
requerem encontro entre os corpos, seja em pandemia ou não.
Bebês carnavalizam (BAKHTIN, 2013) o distanciamento social, os
protocolos de segurança, o uso de equipamentos de proteção
individuais, a pandemia! Nesse carnaval, me dão esperança de um
mundo possível. Esperança por quê? Consigo sentir, será que
consigo explicar? Talvez mais adiante... Recorrerei a Bakhtin e a
Freire, a Liana e a Ruy, demandarei conversas, quem sabe assim,
em diálogo, com muitos e outros, eu alcance o porquê da
esperança...
Todos os ritos e espetáculos organizados à maneira cômica
apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio,
poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias
oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão
do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente,
deliberadamente não oficial... Isso criava uma espécie de dualidade
do mundo (BAKHTIN, 2013, p. 4, com destaque do autor).
Esse trecho — no qual Bakhtin discorre sobre os festejos
carnavalescos na vida do homem medieval e sobre como eles
revelavam perspectivas não oficiais, questionando o que era oficial,
e criavam uma dualidade do mundo — me faz pensar no trabalho
com bebês neste contexto pandêmico.
Hoje há protocolos para tudo dentro do espaço educativo da
creche: para comer, para se aproximar, para receber bebês e
crianças, para brincar, para tossir, para ir ao banheiro, enfim, para
tudo mesmo. Pensar em protocolos que orientam que pessoas se
mantenham a 1,5m de distância entre elas, esquecendo de
mencionar bebês, nos faz lembrar de histórias de magia, nos remete
a varinhas mágicas, a flutuação de pessoas, que poderiam ser

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

utilizadas para locomover bebês de um espaço ao outro, para trocar


suas fraldas, para que bebês pudessem conhecer o mundo através
de sensações que chegassem flutuando, entre outras situações.
Acho importante mencionar que não desacredito na importância
desses protocolos de segurança, acredito ser preciso realmente um
cuidado com a contaminação do vírus que pelo mundo circula, a
ciência já nos mostrou que para que possamos sobreviver é preciso
controlar a contaminação e que esse controle se dá por um
distanciamento social, pelo uso correto de equipamentos de
proteção individuais e pela vacinação em massa da população.
Todo cuidado com o outro e conosco é preciso.
No entanto, esse “tudo” que foi protocolado não comporta bebês.
Bebês nos revelam que não podem ser protocoladas e protocolados.
Por mais persistente que seja essa tentativa de cercear seus corpos
em isolamento para seu próprio bem, elas e eles revelam que não é
possível: não é possível o uso de máscaras por elas e eles; o contato
entre corpos é sempre preciso na troca de fraldas, no deslocamento
quando não engatinham nem andam, na alimentação, no
acolhimento de um choro, no conhecer o mundo por elas e eles e
em outros tantos momentos. Não é possível protegermos bebês de
serem bebês, elas e eles são com o corpo todo, com todos os
sentidos, sentem o mundo a sua volta com o corpo inteiro. Essa
impossibilidade cria uma dualidade do mundo pandêmico dentro
das creches: o mundo regido por todos protocolos de segurança e
o mundo das bebês e dos bebês, que também precisam ser
protegidas e protegidos.
durante o carnaval é a própria vida que representa e interpreta (sem
cenário, sem palco, sem atores, sem espectadores, ou seja, sem os
atributos específicos de todo espetáculo teatral) uma outra forma
livre da sua realização, isto é, o seu próprio renascimento e
renovação sobre melhores princípios (BAKHTIN, 2013, p. 7).
As mãozinhas da bebê que pede colo no seu primeiro dia na creche;
o bebê que espirra ao lado de todas e todos durante a brincadeira
com argila e materialidades da natureza; o bebê que dá seu

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

primeiro sorriso da manhã quando percebe que a amiga de todos


os dias já chegou e sai correndo em sua direção; o bebê que, por
experimentação ou curiosidade, cospe e observa sua baba caindo
na lata que usa para coletar amoras; a fruta que a bebê oferece à
educadora e esta precisa negar; a mão que vai ao chão ao
engatinhar, vai à boca, vai ao brinquedo, vai ao colega e à
educadora; o ar que bebês compartilham sem usarem máscaras; a
brincadeira que não pára; os sorrisos visíveis que se multiplicam;
as relações que se fortalecem... o viver a própria vida que, neste
momento, “representa e interpreta uma outra forma livre da sua
realização”.
Considerando o momento atual, podemos dizer que protocolos de
segurança são necessários e, talvez também por isso, oficiais. Ser
bebê, contudo, pode ter passado a ser algo não oficial (BAKHTIN,
2018), uma vez que elas e eles são as únicas pessoas que continuam
vivendo sem que seus corpos sejam separados dos demais aspectos
da vida.
no realismo grotesco, o elemento material e corporal é um princípio
profundamente positivo, que nem aparece sob uma forma egoísta,
nem separado dos demais aspectos da vida. O princípio material e
corporal é percebido como universal e popular, e como tal opõe-se
a toda separação das raízes materiais e corporais do mundo, a
todo isolamento e confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal
abstrato, a toda pretensão de significação destacada e independente
da terra e do corpo (BAKHTIN, 2013, p. 17, com destaque do
autor).

As bebês e os bebês em seus modos de viver com o corpo todo e


entre corpos me dão esperança: esperança de que encontraremos
maneiras seguras de não nos isolarmos e nos confinarmos em nós
mesmas e em nós mesmos. Paulo Freire (2005) já dizia que não há
diálogo sem esperança, que “a esperança está na raiz da

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

inconclusão dos homens, a partir da qual se movem estes em


permanente busca” (pp. 94-95).
O continuar-sendo-com-o-corpo-todo e entre corpos das bebês e
dos bebês, não por irresponsabilidade, mas por não haver outro
jeito de serem, revela maneiras não oficiais, utópicas e festivas pro
contexto enfrentado pelo planeta, revela a carnavalização e o
grotesco (BAKHTIN, 2013) da pandemia. Continuar-sendo-com-o-
corpo-todo não tem espaço neste mundo no qual hoje vivemos.
Bebês estariam, diante disso, criando um cronotopo especial, um
microcosmo (BAKHTIN, 2018), ao seu redor? Ou, desde sempre,
por este viver com o corpo todo, já criariam um microcosmo, para
além da característica pandêmica do cronotopo atual? São questões
que guardo para diálogos futuros, para reflexões possíveis...
Volto, então, para o meu esperançar. Esse esperançar, ao perceber
que alguns corpos, por mais necessário que seja, não podem ser
separados dos demais aspectos da vida, quiça também seja
grotesco. É impossível ter esperança no contexto que vivemos,
brasileiras e brasileiros, hoje. Contudo, todos os dias, bebês me
pedem uma resposta. Em meus atos (BAKHTIN, 2010), em resposta
a elas e a eles, é o esperançar que paralisa o meu medo e me move
a construir um trabalho que seja construído com elas e com eles, da
maneira mais segura que pudermos, mas sem impedir que bebês
sejam bebês, porque isso já me mostraram que possível não é.

Referências:
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec
Editora, 2013.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: as formas do tempo e do
cronotopo. São Paulo: Editora 34, 2018.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra,


2005.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A emoção do riso no retorno presencial à escola

Liliam Ricarte de Oliveira


Prefeitura Municipal de Campinas
ricarteli@gmail.com

Depois de 17 anos sendo professora de crianças pequenas me


constituindo nas relações diretas com elas, passei um ano e meio
sendo professora à distância. Muitas vezes, me questionei se
continuava sendo professora nessa condição. E quando voltamos
não era para a mesma escola que eu conhecia. Era uma cercada pelo
medo, pela incerteza, pela procura da escola antiga, pela
construção de uma nova que fizesse sentido dentro das
circunstâncias vividas. Procura que era minha e também das
crianças. Como aquela que, logo no início do retorno, me disse no
parque enquanto mexia na areia pensativa: “Não é que a gente só veio
aqui matar a saudade. Ainda não é escola”.
Não era mesmo. Não aquela que ela conhecia antes do tempo em
precisou se afastar em isolamento social devido à pandemia de
Covid-19. Em meio aos protocolos a serem seguidos a partir do
nosso retorno, vamos constituindo juntos, professora e crianças,
essa nova escola necessária para esse momento em que estamos
vivendo. Mas a vida extrapola os protocolos. Como se revela na
narrativa abaixo. Todas as narrativas apresentadas neste texto são
de minha autoria e podem ser encontradas, entre outras narrativas
do cotidiano escolar, no blog “Me ajuda a olhar”
(http://meajudaaolhar.wordpress.com) e na página do instagram
@me_ajuda_a_olhar.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Conversa de corpo inteiro


Estávamos no refeitório. Todos comiam bolo. Passo por entre as mesas
servindo quem ainda não havia comido quando percebo uma criança
colocando apressadamente a máscara e vindo em minha direção, ainda
mastigando o bolo…
– Minha mãe achou uma barata em casa! – me contou enquanto terminava
de colocar a máscara, ainda mastigando e engolindo o bolo. – Ela estava
assim, ó!
E imediatamente se joga no chão, barriga para cima, balançando as pernas
e braços!

As crianças conhecem os protocolos: sabem que quando estão no


refeitório, porque estão sem máscaras, não podem sair da mesa.
Mas o que fazer quando, no meio de seu lanche, você se lembra de
algo que precisa imediatamente compartilhar? Como algo que não
podia ser deixado para depois, a criança se levanta, ainda
mastigando-engolindo-colocando a máscara-falando tudo ao
mesmo tempo. E ao contar o que queria, aquilo toma tão conta dela
que se esquece que está no refeitório, dos protocolos, do covid e se
joga no chão. A vontade de compartilhar seu pensamento extrapola
todos os protocolos, todas as regras... Se joga no chão e rimos, todos
juntos, da cena.
O riso possui uma ligação indissolúvel com a liberdade. O riso é
um jeito diferente de olhar o mundo… [...] ele instabiliza o que
parece sólido. O riso desmonta o que parece pronto. Ele desilude.
Ele permite um deslocamento (MIOTELLO, 2018, p. 32).
Aquela fração de momento em que nos permitimos todos rirmos
juntos da cena, professora e demais crianças no refeitório olhando
a criança barateando no chão, nos libertou daquela escola cheia de
ordens e proibições. Criança grotesca que, com sua vontade de
dizer, nos convida a quebrar as barreiras que nos têm sido impostas

251
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pelo vírus. Nos convida a buscar cotidianamente formas de manter


a vida em primeiro plano, apesar da morte que nos ronda.

Igual
Estava no parque com as duas crianças daquele dia, o pai de uma e a mãe
da outra. As crianças só se conheciam virtualmente até então e estavam
começando a se enturmar e brincar juntas. De repente, uma vira pra outra,
olha para os pais um pouco afastados e diz:
– Vamos fugir deles? São monstros! – e saíram correndo.
Eu, que estava um pouco afastada dos dois pequenos grupos, esperei um
pouco para entender se eu também fazia parte dos monstros e me preparava
para entrar na brincadeira com elas quando ouço:
– Vem, Lili, vem com a gente!!!
A mãe dá uma risadinha e me diz:
– Elas te têm como uma igual!

As crianças estavam retornando para a escola depois de mais de


um ano afastadas. Brincarem juntas parecia um ato de subversão
nesse momento em que o que mais se fala é de distanciamento. Na
tensão do retorno, cercado de medos e de regras, a criança grotesca
mais uma vez convida a olhar a vida, convida a brincar, a subverter
esse mundo novo junto com ela. Os poucos segundos de tensão
entre ouvir e pensar sobre o convite são quebrados pelo riso franco
da mãe.
O riso abre porteiras. O riso garante uma leveza na existência e nas
vivências. O riso é do cotidiano, é da vida, é um modo libertário de
relações humanas, é um jeito não-oficial de olhar o mundo e a vida
(MIOTELLO, 2018, p. 34).
A professora aceita o convite para a brincadeira e para a vida que
pulsa do corpo grotesco da criança!

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Opinião suspeita
Cada criança fez uma pintura num papel craft grande. Por sugestão da
minha orientadora pedagógica, após a secagem, coloquei os trabalhos na
parede ao lado da sala. A mãe de uma criança, ao buscá-la, recebeu a filha
empolgada com sua pintura e a dos colegas.
– Ficou muito bonita sua pintura, filha! – a mãe falou.
– Qual você gostou mais? – respondeu imediatamente a filha.
A mãe olhou e, após alguns segundo de hesitação, respondeu:
– De cada um eu gostei de uma coisa…
– Ah! Já sei! É porque eu sou sua filha, né? – respondeu a criança dando
uma risadinha e, correndo para outro lado, deu a conversa por encerrada.

Mais uma vez o riso desconcertante. Ao sair rindo dando a


conversa por encerrada, a criança nos leva a pensar: o que ela
esperava ouvir? Ao sentir os segundos de hesitação antes da
resposta, a criança nos mostra que já sabe que o amor incondicional
da mãe sempre vai achar que o que ela faz é o melhor. Como se
fosse o “protocolo” de ser mãe. A criança grotesca queria, mais uma
vez, a quebra do protocolo, a quebra do que ela já entendeu ser a
atitude oficial de ser mãe: ela desejava a opinião sobre sua arte. Um
excedente de visão sobre seu trabalho que somente o outro pode
lhe dar. Talvez um comentário sobre a escolha das cores, do
traçado, sobre o que a levou pintar uma coisa e não outra, sobre
suas intenções. Como professora, procuro apresentar à criança esse
excedente quando vêm me mostrar seus trabalhos, dou opinião,
sugestões, etc; como mãe, confesso que, muitas vezes, ainda sigo o
“protocolo”.
A criança não precisou explicar nada sobre seu entendimento. Seu
riso disse muito.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Algumas considerações
O retorno presencial trouxe à tona para mim, como professora, uma
série de sentimentos opostos entre o querer e o não querer, entre o
desejo e o medo… Mas dentre as inúmeras vivências relacionando
o medo, a dor e a incerteza, as que escolhi narrar traziam o riso, o
que extrapola o sério, o que desconcerta…
... a professora se torna escritora das narrativas pedagógicas como
ato responsável, participante e não indiferente na relação com seus
estudantes: consciências equipolentes na vida levadas para a
narrativa. Porém, as narrativas não são os acontecimentos que os
gerou. Há uma distância entre o vivido e o narrado. E essa distância
em tempo e espaço entre o acontecer e o escrever permite que a
professora se torne uma escritora, que programe o modo como e os
detalhes significantes dos fatos que vai escrever, já que não tem
sequer intenção de contar tudo (SERODIO, 2018, p. 145).
Percebo um olhar que busca o grotesco como uma espécie de boia
de salvação dentro desse mar turbulento e sombrio por onde
estamos navegando. Talvez a busca pelo riso cotidiano represente
a esperança de que navegaremos por mares mais tranquilos em
breve.

Referências
MIOTELLO, Valdemir. Falando do riso… rindo da fala. In
SERODIO, Liana Arrais et all. Narrativas corpos e risos
anunciando uma ciência outra. São Carlos: Pedro e João Editores,
2018.
SERODIO, Liana Arrais. Narrativas como atos ético-estético-
cognitivos de resistência dialógica hetero-formativa. In SERODIO,
Liana Arrais et all. Narrativas corpos e risos anunciando uma
ciência outra. São Carlos: Pedro e João Editores, 2018.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A entonação responsiva PoeArt de verso a verso: o grotesco


poético não será silenciado

Teresa Paula de Carvalho Leôncio


IFRN
teresa.paula@uol.com.br

Face a alguns desafios enfrentados no contexto do ensino da


literatura, tornou-se importante dar destaque ao poeta e sua
produção literária ainda não divulgada nos circuitos de leitores.
Diante disso, propusemos, em 2017, no cronotopo escolar do
Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte,
campus Natal Zona Norte (IFZN), um concurso literário
intitulado PoeArt de verso a verso. Tínhamos em foco o desejo de
revelar poemas inéditos de poetas que até então não tinham tido a
chance e oportunidade de terem seus textos divulgados e
publicados.
O passo a passo do concurso (reuniões de planejamento da equipe
organizadora, elaboração das regras do edital, confecção dos
cartazes de divulgação, registros sistemáticos das ações)
desencadeou o ápice do acontecimento que queríamos por em
evidência: os poetas PoeArt declamando e entoando seus textos
para a comunidade escolar na tarde de 08 de dezembro de 2017.
Inscreveram-se no concurso não apenas poetas alunos do IFZN
como também poetas alunos e professores de outros campus do
IFRN, ex-alunos e comunidade externa, inclusive de outros estados
da federação, haja vista que o concurso fora amplamente divulgado

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nas redes sociais. O evento de divulgação com o recital deu


visibilidade à entonação poética e ao acontecimento valorativo-
ideológico que colocou em destaque a tríade em interação autor-
leitor-personagem.
[...] toda palavra realmente pronunciada (ou escrita conscientemente) e
não adormecida no léxico é a expressão e o produto da interação social
entre os três: o falante (autor), o ouvinte (leitor) e aquele (ou
aquilo) sobre quem (ou sobre o quê) eles falam (o personagem). A
palavra é um acontecimento social; ela não é autossuficiente como
uma grandeza linguística abstrata e nem pode ser deduzida, de
modo psicológico, da consciência subjetiva do falante tomada
isoladamente. [...]
O enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e
morre no processo de interação social entre os participantes do
enunciado. O seu significado e a sua forma são determinados
principalmente pela forma e pelo caráter dessa interação. Ao
separar o enunciado do solo real que o nutre, perdemos a chave
tanto da forma quanto do sentido, restando nas nossas mãos ou o
invólucro linguístico abstrato, ou o esquema do sentido, também
abstrato (a famigerada ‘ideia da obra’ dos antigos teóricos e
historiadores da literatura): duas abstrações que não podem ser
unidas entre si, pois não há terreno concreto para a síntese viva
delas. (VOLÓCHINOV, 2019, p. 128. Grifos do autor).
A presença dos poetas PoeArt no auditório da escola fez valer esse
“solo real que nos nutre”, porque, num país tão marcadamente
desigual nas formas e meios de editoração e circulação de novos
poetas, ter a oportunidade de revelar aqueles que, de outra sorte
não teriam visibilidade, foi, para nós, o estabelecimento de um
compromisso ético-estético singular. Desta forma, a escola que
queremos certamente há de ser uma escola que promova a entrada
e inserção dessas vozes poéticas multidissonantes notadamente no
cronotopo do país pré e continuamente pandêmico no qual viceja o
ódio, a intolerância, o descaso com as artes e com a ciência.

256
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Assim, toda a entonação se orienta em duas direções: para o


ouvinte, como cúmplice ou testemunha, e para o objeto do
enunciado, como terceiro participante vivo, o qual a entonação
xinga, acaricia, aniquila ou eleva. Essa orientação social dupla
determina e atribui sentido a todos os aspectos da entonação. No entanto,
o mesmo é justo para todos os elementos do enunciado verbal: eles
são organizados e tomam forma no mesmo processo de orientação
dupla do falante; essa origem social é mais fácil de ser revelada
justamente na entonação, que é o aspecto mais sensível, flexível e
livre da palavra. (VOLÓCHINOV, 2019, p. 127).
Portanto, as vozes poéticas entoadas no contexto do PoeArt de verso
a verso atuam nessa contraengrenagem e nessa contraideologia em
constante oposição a essas vozes do horror que prega e ostenta o
uso de armas e o aniquilamento das subjetividades. Quando os
poetas PoeArt declamaram seus poemas, fizemos, com eles, uma
revolução estético-literária justamente porque posicionamos
concretamente, no solo da escola que lhe pertence, o poeta e sua
voz expressiva.
É necessário lembramos sempre do seguinte (algo que a estética
psicológica costuma esquecer): a entonação e o gesto tendem a ser
ativos e objetivos. Eles expressam não apenas o estado emocional ou
passivo do falante, mas sempre contêm uma relação viva e enérgica
com o mundo exterior e o meio social: os inimigos, amigos e
aliados. Ao entonar e gesticular, o homem ocupa uma posição
social ativa em relação a determinados valores, condicionada pelos
próprios fundamentos da sua existência social. Justamente esse
aspecto da entonação e do gesto, que é objetivo-sociológico e não
subjetivo-psicológico, deve interessar aos teóricos das artes
correspondentes, pois nele se encontram as forças estético-
criativas, construtivas e organizadoras desses fenômenos.
(VOLÓCHINOV, 2019, p.127).
Não cremos nem defendemos que a literatura seja salvaguarda dos
problemas nacionais; muito menos cremos em pedagogias

257
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

salvacionistas. O acontecimento PoeArt de verso a verso que


propusemos e do qual fomos contemporâneos assenta-se no
compromisso não-álibi de uma vida poética em profusão capaz de
dizer de si e do outro nos limites e fronteiras em que a escrita
poética é traço característico distintivo emotivo e volitivo
(BAKHTIN, 2017).
O tom emotivo-volitivo, que abarca e permeia o existir-evento
singular, não é uma reação psíquica passiva, mas uma espécie de
orientação imperativa da consciência, orientação moralmente
válida e responsavelmente ativa. Trata-se de um movimento da
consciência responsavelmente consciente, que transforma uma
possibilidade na realidade de um ato realizado, de um ato de
pensamento, de sentimento, de desejo, etc. Com o tom emotivo
volitivo indicamos exatamente o momento do meu ser ativo na
experiência vivida, o vivenciar da experiência como minha: eu
penso-ajo com o pensamento. [...] Para nós é importante relacionar
uma dada experiência vivida a mim como aquele que a vive
ativamente. Este relacionar a experiência a mim como ativo tem um
caráter valorativo-sensorial e volitivo-realizador e é, ao mesmo
tempo, responsavelmente racional. Todos estes momentos são
dados aqui em uma determinada unidade, perfeitamente familiar
a qualquer um na experiência vivida do seu pensamento, do seu
sentimento como seu ato responsável próprio, isto é, a qualquer um
que o experimente ativamente. [...]. O momento da atuação do
pensamento, do sentimento, da palavra, de uma ação, é
precisamente uma disposição minha ativamente responsável –
emotivo-volitiva em relação à situação na sua totalidade, no
contexto de minha vida real, unitária e singular. (BAKHTIN, 2017-
A, p. 91).
O transcurso da história PoeArt de verso a verso fez surgir a interação
constante, regular e duradoura entre a pesquisadora/professora e
dois poetas oriundos do concurso. Esse circuito de conexão
estabelecido via rede social deu forma e corpo a um vasto material

258
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

a partir do qual pode-se vislumbrar diálogos acerca do processo de


criação dos poetas Jares Duarte e Milene Bazarim.

Figura 01: Arte do cartaz PoeArt de verso a verso em desenho a


mão

Acervo da pesquisa

Figura 02: Poeta PoeArt Jares Duarte entoando poema autoral

259
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Acervo da pesquisa
Figura 03: Poeta PoeArt Milene Bazarim entoando poema autoral

260
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Acervo da pesquisa

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São
Carlos: Pedro e João Editores, 2017.
VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida
e a palavra na poesia. São Paulo: Editora 34, 2019.

261
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A estética grotesca da drag queen Samira Close no ambiente dos


jogos digitais

Edmilson dos Santos Flor Junior


ECI Professor Paulo Freire
edmilsonsfj@gmail.com

Juan dos Santos Silva


UFRN/Doutorando do PPGEL
juanfflorencio@gmail.com

Leila Heloise da Silva Jerônimo


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
leila.heloise@gmail.com

O texto só vive em contato com outro texto (contexto). Somente em


seu ponto de contato é que surge a luz que aclara para trás e para
frente, fazendo que o texto participe de um diálogo [...] Por trás
desse contato, há o contato entre indivíduos e não de coisas.
(Bakhtin, 2003, p. 401)
Para Bakhtin (2011, 2016), todos os campos da atividade humana se
conectam por meio da linguagem, em práticas discursivas
singulares e concretas. Sua concepção dialógica, que reconhece as
pessoas como sujeitos situados na e pela história, compreende que
os enunciados concretos carregam diversas questões valorativas
em sua composição, refletindo e refratando, à sua forma, atos éticos

262
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de quem os produz. Tais enunciados, conhecidos popularmente


como gêneros discursivos, circulam nas mais variadas esferas da
sociedade humana e abrangem formas relativamente estáveis de
comunicação.
Nesse entendimento, as situações de produção, recepção e
circulação de linguagem não acontecem de forma aleatória.
Diferente disso, elas ocorrem em um tempo-espaço singularmente
construídos por indivíduos que assumem, em maior ou menor
grau, responsabilidade pelos diálogos que estabelecem no mundo
(BAKHTIN, 2010a). Desse modo, o dialogismo dos enunciados,
princípio central do Círculo de Bakhtin, põe em evidência vozes
sociais que, à medida em que se comunicam, estabelecem diálogos
com outras vozes do mundo, em uma rede ampla de enunciados
outros (VOLÓCHINOV, 2017).
Tomando, pois, como base as concepções do círculo sobre o
acabamento dialógico do enunciado, nosso interesse neste trabalho
é dialogar sobre formas contemporâneas que, à luz da estética
bakhtiniana, são consideradas grotescas. Para tanto, reconhecemos
como corpus um enunciado da drag queen Samira Close,
personagem que, na rede de internet, é considerada uma
celebridade da esfera dos jogos digitais. Esse enunciado, por sua
vez, situa-se no gênero discursivo gameplay.
No mundo capitalista em que vivemos, o mercado está cada vez
mais engajado em ofertar diferentes serviços a diferentes públicos,
tendo como centralidade o lucro. No setor dos jogos digitais,
diariamente são lançados algoritmos que promovem
entretenimento a todas as idades, gêneros e estilos de vida. A
cultura de live stream surge exatamente nesse ambiente e se
populariza com a rotina de pessoas que saem cada vez menos de
casa, pois têm, sem muita dificuldade, acesso a shows musicais,
cinemas, supermercados e outros serviços à disposição em
aparelhos eletrônicos. A live stream de jogos digitais, de modo
grosseiro, pode ser definida como um momento de interação entre

263
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

um sujeito qualquer que, de seu computador, compartilha para um


público específico de pessoas o seu ato de jogar o próprio jogo,
estabelecendo, assim, relações dialógicas em comunidade.
Antes de qualquer análise, é preciso que fiquem claros dois pontos:
aqui entendemos (1) o corpo como materialização linguística, ou
seja, como uma forma de comunicação entre um ser específico e os
demais seres que com ele interagem; e (2) e a arte drag como uma
expressão artística, não como identidade de gênero (LOURO,
2004).
Samira close e o acabamento grotesco
Para que uma drag queen ganhe forma, normalmente pessoas
usam recursos estéticos para reforçar estereótipos femininos:
cabelos longos, maquiagens coloridas, próteses de seios, vestidos,
entre outros elementos. Essa tradição tem início no século XVI, no
Teatro Elizabetano, quando homens se transvestiam de mulher
para interpretar certos papéis teatrais. Nesses casos, os roteiristas
usavam o termo drag (drassed as a girl), sinalizando que o rapaz
responsável pelo papel deveria se transformar em mulher para
exercer sua atuação (AMANAJÁS, 2014).
Com o passar do anos, as mulheres conseguiram o direito da
atuação teatral e, assim, a arte drag se expandiu para outros campos
de atividade humana. Nos dias atuais, é cada vez mais comum que
drag queens assumam carreiras de cantoras, de atrizes, de
apresentadoras, de influenciadoras digitais etc. Justamente nesse
contexto de expansão da cultura drag que nasce a personagem
Samira Close, conhecida na internet como streamer de jogos
digitais. Para compreender como ela constrói sua estética, convém
analisar a figura abaixo.

264
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1 - Samira Close em live stream

Fonte: fotograma da gameplay


Samira Close é considerada uma drag queen por ser um rapaz que
se transveste de mulher apenas para promover entretenimento a
um público específico — nesse caso, o LGBTQIA+, do qual faz
parte. Em um primeiro momento, pode-se dizer que sua estética se
aproxima do padrão drag ao se observar recursos como a peruca, a
maquiagem, a roupa e o adereço na cabeça. Tais traços não são
definidores do que vem a ser uma drag queen, afinal, o ser drag é,
antes de mais nada, um ser artístico e, como tal, não se limita a
formas predeterminadas de expressão. Entretanto, considerando a
tradição internacional (sobretudo na série televisiva estadunidense
Rupaul’s drag race) e nacional (com a presença de personagens
como a Pabllo Vittar e a Glória Groove), vê-se que essa
manifestação visual de reprodução do feminino padrão costuma
ser comum a diversas pessoas que trabalham como drag queen,
indo ao encontro do que já se observava no teatro do século XVI.
No entanto, embora haja, nessas considerações iniciais sobre a
estética drag, um aparente padrão seguido por muitos artistas, é
preciso considerar que a própria expressão drag é, por si só, um ato
grotesco. De acordo com Bakhtin (2010b), o acabamento grotesco
do enunciado tem como base a cosmovisão carnavalesca da Idade
Média e do Renascimento. Nessas épocas, o carnaval não era

265
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

simplesmente uma festividade, mas uma forma alternativa de viver


a vida, pois as camadas populares tinham liberdade de destronar
provisoriamente aqueles que socialmente ocupavam classes
superiores. Sendo assim, tal como ocorria nas relações populares
do carnaval, a estética grotesca contemporânea, aqui vista na arte
drag, pode servir como força centrífuga (BAKHTIN, 2015) para o
enfrentamento de certos discursos preconceituosos produzidos por
sujeitos de maior prestígio social (na grande maioria das vezes,
homens brancos, cisgêneros e heterossexuais).
Em nosso recorte, embora reconheçamos que expressão drag não
tem ligação direta com gênero social ou orientação sexual,
consideramos que o público que mais consome essa arte é o
LGBTQIA+. Desse modo, Samira Close, ao se tornar imagem desse
grupo, cria uma força de dispersão dos discursos preconceituosos
— resistentes ao reconhecimento da drag queen como expressão
artística — que tentam restringir os espaços das pessoas que fazem
parte de tal público.
A categorização “drag queen”, por ser uma força de enfrentamento
dos discursos preconceituosos, poderia ser suficiente para delinear
o acabamento grotesco de Samira Close. Contudo, nota-se que sua
forma de se expressar consegue carnavalizar ainda mais o seu
corpo. Ao mesmo tempo em que reforça estereótipos de gênero, ao
lançar mão dos elementos típicos de uma drag queen, Samira se
afasta dele ao manter, em seu visual, características inerentes à
representação masculina de pessoas, como a barba e o uso quase
que nulo de maquiagem (com destaque apenas para o batom).
Tendo em vista essas questões, observamos que, no enunciado em
análise, o grotesco promove uma dupla subversão social: primeiro
ao contrariar discursos populares heteronormativos, resistente à
figura drag, e segundo por, dentro da subversão primária, ainda ir
contra uma estética feminina até então compartilhada por outras
artistas que também fazem drag.

266
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A estética quase que andrógina de Samira Close, em um híbrido


femino/masculino, mostra o inacabamento de sua identidade. Seu
corpo é linguagem responsiva aos discursos que transitam por
diversas esferas sociais, discursos esses que muitas vezes tentam
domesticar sua estética e apagar seus valores. Em vista disso,
podemos inferir que a opção por manter seus traços e transformá-
los em arte faz com que Samira Close use desse grotesco como uma
arma de poder e de resistência.
Nessa conjuntura, a identidade visual de Samira Close reflete e
refrata diversos valores sociais, culturais e históricos. Ao se projetar
para a sociedade da forma como ela se representa, a drag queen
pode encorajar seus seguidores a adotarem também posturas
subversivas às normais sociais. Sendo assim, o seu acabamento
grotesco não se limita a uma postura física, mas também a uma
construção ideológica de ser que, de uma forma ou de outra,
dialoga com enunciados que estão em circulação em esferas outras
que não a dos jogos digitais.

Referências
AMANAJÁS, I. Drag queen: um percurso histórico pela arte dos
atores transformistas. Revista Belas Artes, São Paulo, n. 16, set-
dez/2014.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Estética da criação verbal. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro
e João Editores, 2010a.
BAKHTIN, M. A cultura popular da Idade Média e do Renascimento: o
contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010b.
BAKHTIN, M. Teoria do romance I: A Estilística. Tradução de Paulo
Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

LOURO, G. L. Marcos do corpo, marcas de poder. In: LOURO, G.


L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004
O mundo sombrio de sabrina | Red dead rp - Samira Close. [S. l.: s. n.],
2021. 1 vídeo (11 min). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=PdJFRcOGm0g. Acesso em:
07 ago. 2021.
VANNUCCHI, H.; PRADO, G. Discutindo o conceito de
gameplay. Revista texto digital. v. 5 n. 2, p. 130-140, 2009.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
1.ed. São Paulo: Editora 34, 2017.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A Expulsão do Paraíso e as Palavras

Josias Teodoro Guedes


UFJF
josiastg1@gmail.com

Sentou-se na simples escada que tinha como paisagem um pouco


mais distante o brejo, o matagal e o barranco. O dia se despedia
com a árvore que se movia sem o vento. Seus galhos e folhas
sempre se moviam como as outras árvores, porém um certo dia
percebeu que não havia ventania para tal fenômeno. O que estaria
acontecendo? Naquele dia as crianças não estavam pelo terreno
baldio, muito menos na casa abandonada, local de muitas
aventuras para os pequenos. A rua em sua parte possível de ser
vista por ele não tinha nenhuma criança. Nenhuma no barranco. E
a árvore mexia, se remexia. Parecia por vezes um carro alegórico
criado por Joãozinho Trinta. Seria uma árvore mágica? Resolveu ir
ao local passando pela rua de sua casa passando em seguida pela
outra rua à direita onde havia morado numa garagem chegando à
rua da árvore que movia sem os ventos. Eram elas, as crianças, a
brincar num balanço. Sorriu. Voltou para casa. No caminho
descendo a rua do morro pensou: “um dia gangorro naquela
árvore”.
Tanta felicidade havia naquela árvore. A árvore se mexia e no
entardecer ele sabia que eram elas, as crianças dos ventos da árvore
a brincar. A faca na mão e uma maça. A noite quente já enunciava o
calor da primavera. Olhou as plantas que outrora ficaram em vasos
presas. Fez uma promessa para elas no passado: se um dia tivesse

269
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

um pedacinho de terra, um pequeno quintal libertaria o pé de


jabuticaba que ficou no vaso de plástico por mais de dez anos. O
mesmo faria com a pitangueira, a romanzeira e outras plantas
queridas. A reação de cada uma com o transplante era de um jeito.
Pensava aquele ser já visualizando o brilho de uma estrela que na
verdade era um planeta. Daquele local ouvia o choro de
sua pequena filha. Completara um mês. Estava sendo afagada pela
mãe. Linguagens singelas oriundas de milhares de anos. Uma faca.
Uma maça. A faca cortou a maçã inaugurando um meridiano. A
face oriental e ocidental do fruto. Deixou uma banda no degrau
logo acima de onde estava sentado. Era um ser em ressonâncias de
tantas coisas com uma faca e uma maçã: mastigou, salivou,
degustou, deglutiu... Tudo foi para o estômago.
Depois do estômago o intestino, o reto e o ânus mundo.
Lembrou-se da juventude quando estudou em uma escola de
origem tecnicista. Em sua memória o bairro que o acolhia no
escadão. Tempo de tudo muito pouco, mas já havia sido pior. Veio
em sua mente “nova-mente” um momento importante de sua vida.
Ao final da aula, há tantos anos, caminhava pela rua conversando
com um amigo da sala da sexta série. Estava com apetite. Queria
chegar logo no escadão e subi-lo até sua casa. Perguntou para ele
sobre as coxinhas de frango de sua mãe. Falavam que os
salgadinhos dela eram saborosos. Eram famosos na cidade. Ao que
de imediato seu amigo indagou:
- Gosta muito de coxinhas?
- Muito! Meu salgadinho preferido.
- Vou trazer amanhã uma dúzia de coxinhas para você de presente.
Degrau por degrau subiu a escadaria, teve a longa tarde e toda
noite para a vida cotidiana sem esquecer que no outro dia ganharia
de presente as deliciosas coxinhas. O dia amanheceu. Desceu o
escadão para comprar o pão para o café da manhã antes da aula.
Um pão para cada um da família e sem margarina. Tomou banho,

270
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

colocou o uniforme lavado por ele no dia anterior. Desceu feliz o


morro para a escola.
Uma aula, duas aulas, três aulas. Veio o intervalo e nada!. Sumiu
no recreio. Quarta aula, quinta aula... O sinal do fim das aulas
daquele dia: o amigo nada falara. O portão se abriu para a vida,
para o mundo e para a frustração. Nada das coxinhas. Já
caminhando pela rua o amigo veio correndo pela rua repleta de
alunos e gritou:
- As suas coxinhas!
A felicidade fez lugar naquele ser, em sua alma, em seu estômago.
Pegou a sacola, agradeceu ao amigo e pediu que agradecesse sua
mãe pelas coxinhas. Iria levá-las para casa quando ele disse de
maneira enfática:
- Abra a sacola! É para você!
Abriu. Era uma pedra. Abriu a segunda: outra brita. Seu até então
amigo saiu correndo rindo. Olhou para trás para ver a petrificação
do colega de turma.
Retomou os passos. Foi para casa. Descansou dos quase duzentos
degraus da subida no velho sofá da sala pensando em tudo que
ocorrera. Por qual razão o colega de classe teria feito aquilo?
Levantou-se. Foi para a improvisada cozinha requentar a comida.
Lembrou-se da serralha roxa no barranco aos fundos de casa.
Buscou e picou-a. Deixou de molha na água de sal. Após alguns
minutos refogou a hortaliça e comeu com o arroz, feijão e angu.
Nada de carne. Tempos de crise.

Não eram somente as coxinhas.


A faca cortou mais um pedaço da saborosa maçã. A tão sonhada
maçã da infância onde a fruta era tão desejada e tão renegada para
os pobres, com exceção para um grande esforço da família nos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

casos de doença associado a relato de pouquíssimo apetite com a


presença da palidez e fraqueza.
Não era somente uma maçã.
Decidiu aguar as plantas. Precisavam da água mais do que nunca:
que dia quente! Pensava no que via, no exterior das plantas, mas
não esquecia do que estava debaixo do chão. O entrelaçar e ir das
raízes do aterro daquele terreno, no brejo.
Os pés de couve estavam robustando. Estavam pequenos há tão
pouco tempo. Eram sementes, viraram mudas e estavam a crescer...
A salsinha esparramando-se com exuberância.. A mãe
amamentava sua filha. Aguando as plantas relembrou o que ouviu
às vésperas do feriado do sete de setembro na pequena cidade do
interior de Minas Gerais. Levara juntamente com a esposa a filha
ao oftalmologista para o teste do olhinho. Ela tão pequena. Eles
apaixonados por aquele ser que acastanhava os olhos, assim como
eram os de seus pais. Desceram o morro de uma das principais ruas
da pequena cidade. Em alguns prédios e em algumas casas a
bandeira do Brasil com suas cores eram tocadas pelo vento. O
mesmo vento que a todos toca. Viu tudo aquilo calado. Pensou: “
Aquela bandeira com suas cores e formas é tão minha quanto
deles”. O que há de acontecer amanhã?
A quem pertence a bandeira de um país?
Talvez, decidira nada falar, pela preocupação com o exame de suas
vistas, pelo cachorro que antes de descerem o morro, mordeu um
rapaz trabalhador que o procurou em sua casa e perguntou:
- Este cachorro é seu?
- Não. - Era um cão largado por tudo e por todos. Que corria
rapidamente em busca das bicicletas e motos que desciam ou
subiam o morro velozmente. Entre um e outro a dentada. O rapaz
mostrou a mordida.
- Esse cachorro está vacinado?

272
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

- sim, você pode ficar tranquilo quanto a vacina.


Abriu seu portão. Pediu ao rapaz para lavar a mordida com sabão
no banheiro da casa. Entregou a toalha para enxugar o ferimento.
O álcool gel na porta de entrada da casa para passar nas mãos foi
usado para desinfetar a ferida. O hálito do rapaz cheirava
álcool. Aquilo tudo estava em sua mente. O horário de chegar ao
oftalmologista havia passado. Sua filha faria o teste do olhinho. Ele
o fundo de olho para toxoplasmose. Terminadas as consultas e
exames desceram uma das ruas principais da pequena cidade.
Casas e prédios com bandeiras do Brasil. Um leve vento vez ou
outra flamulava a bandeira ao mesmo tempo que refrescavam seus
rostos. Quando menos perceberam estavam na praça central da
cidadezinha. Convidou a esposa para um lanche numa lanchonete
de quase um século da localidade. Sentaram-se. Fizeram os
pedidos. Ele de frente para o caixa do estabelecimento. Juntaram-
se ao proprietários duas pessoas consideradas de visibilidade da
tradicional e tradicionalíssima cidade, tão perdida enigmática e
contraditória que mais parecia o Triângulo das Bermudas. Eles
falavam do Sete de Setembro. De liberdade. De um homem que eles
deveriam ir para a rua defendê-lo pois nada conseguia fazer pelo
país pois não o deixavam. Falavam enquanto ele mordia e salivava
a observar aquilo tudo saboreando a azeitona preta e o palmito do
lanche. A perna do rapaz mordido e o destino do cachorro
ameaçado de morte vinham à sua mente. Sua filha estava no colo
da mãe de costas para o que estava acontecendo. Debruçou os olhos
sobre a pequena desviando os olhos daquilo tudo.
- Vamos expulsar os comunistas.
Na verdade seu ímpeto era pedir a palavra e amorosamente
dialogar. Seria o país só deles? Haveria espaço para um diálogo
para além do ódio? O que significaria o verbo pedir naquela
conjuntura para além do dicionário? O comerciante da loja de “um
e noventa e nove”, só no nome, fama de outros tempos, quando
todas as pessoas tinham comida no prato, saiu do local e deixou os

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dois amigos. Chegara ao local o ser que entregara para ele as pedras
ao invés de coxinhas. Foi um “oi” seco, que já nasceu morto,
cadavérico. Juntou-se às pessoas a favor da democracia deles e
contra os comunistas também deles. Tudo deles.

O cão e o homem.
O cão que o preocupava fora abandonado no inverno passado
assim como outros que adentravam o quintal da casa até então sem
um portão. Dava pão, água e uns panos velhos e quentes para
passarem a noite. Todos tinham um dono, menos o pequeno cão
cinza que sorria para ele como na música de Roberto Carlos.
Ganhara o coração dele mesmo não se adaptando ao que o pretenso
dono queria como ele fosse. Era um cão de rua. Já havia mordido
outras duas pessoas. Era reincidente. A pressão era enorme em
torno do cão, visto que a rua era de acesso fundamental para dois
morros da cidade. Ele na segunda violência do cão ligou para a
polícia e relatou o fato. O que faria a polícia? Pelo telefone disse que
iriam ligar para um vereador da cidade. A decisão: castrá-lo para
facilitar a adoção e acalmá-lo. Vieram. Levaram-no. Dariam um
novo rumo para a vida do cão. À noite bateram na porta de sua
casa, era o Duque, o cãozinho, de volta. Sem analgésico, sem
antibiótico. Sem nada, inclusive suas bolas, chamadas tecnicamente
de testículos. Descobri que um chamado vira-latas pouco valor tem
para a maioria da população. Castrado, pior ainda numa pequena
cidade. Na área urbana não o queriam, mesmo publicado na rede
social onde uns cinco clicaram na foto com o texto de adoção com
o “dedo polegar para cima”. Os contatos com as pessoas das roças
a respeito da adoção do cão não iam adiante quando descobriam
que ele era castrado.

274
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O homem.
O comerciante da loja da pequena cidade voltou. Trouxe algumas
bandeiras. Disse para o colega de categoria que era para
fortalecerem a luta no dia seguinte, lutarem pela liberdade, pelo
homem que na conversa deles parecia ter vindo do céu, oriundo de
um rolé com Nosso Senhor Jesus Cristo da igreja a qual
frequentavam. ”- Fica com essa bandeira! Ela é da última Copa do
Mundo. “ Quase engasgou vendo e ouvindo aquilo tudo. Pagou a
conta e foram para o mercado. Lá um Professor de História
conversava de maneira educada com os açougueiros. O local estava
praticamente vazio. Da seção onde estavam a ver os preços das
margarinas ouvia a conversa. Viram a promoção de frango. Em
tempos de crise não se perdem certas oportunidades. Foram pesar
o frango na balança do açougue. O diálogo com o Professor
revelava a amizade, a preocupação com os rumos do ódio nas
linguagens que levantavam e roubavam bandeiras como se fossem
só de alguns. A palavra no encontro de trabalhadores de um
pequeno mercado. Apresentou sua filha. Falaram de futuro,
presente e passado. Pagou a conta no caixa e como de hábito nos
últimos tempos dialogou com os trabalhadores sobre os preços e a
falta de apreço de pessoas que deveriam cuidar do povo. O
mormaço que vinha pela janela do táxi ecoava os sons daquelas
falas. Olhava para a paisagem, olhava para o rosto da linda
menininha.

A banda ocidental da maçã.


Pegou a banda da maça deixada na escada e a faca a cortava em
forma de meridianos. O croque-croque da maça na boca. Doce e
suavemente ácida. O cão estava ainda na rua. Não adentrou o
quintal pelo buraco na cerca de bambu próximo ao brejo.
Olhou para o que estava próximo de sua visão. O círculo de pedras
que tanto lhe dava prazer. O que para os vizinhos seria um local

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

para futuro pouso dos alienígenas que riam dos blocos de pedras
oriundos das bases das primeiras casas da cidade que aos poucos
estavam sendo demolidas. Antes da construção da pequena casa
conseguiu uma caçamba de uma obra com alguns blocos de pedras.
Assim que pôde, juntamente com um vizinho, colocou as pedras
em círculo. Para ele, as pessoas ali poderiam sentar e dialogar
conforme quisessem no amor ágape.
Lembrou-se de Adão e Eva. A culpa seria da maçã como muitos
insistiram durante anos em convencê-lo, símbolo do pecado
original? Ou seria culpada a serpente que lá já estava? A árvore do
paraíso é uma goiabeira e nela estava uma gangorra de crianças a
brincar. Gargalhou em sua alma a expulsão do paraíso no Éden
comendo o último pedaço da maçã.
Percebeu na noite enluarada que no meio do círculo brotavam
girassóis.

276
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A FORÇA LIBERTÁRIA DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA NO


COMBATE À GROTESCIDADE DA DESINFORMAÇÃO:
VOZES, AMBIENTES E HORIZONTES

Urbano Cavalcante Filho


IFBA/UESC/USP
urbanocavalcante@gmail.com

VANIA LUCIA MENEZES TORGA


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ
vltorga@uol.com.br

1. Primeiras palavras: sobre a força libertária da divulgação


científica

Em tempos de pandemia, enfrentar e combater à desinformação é


agenda do dia, é questão urgente, é responsabilidade que recai
sobre todos aqueles comprometidos com o bem estar de si, do
outro, do mundo.
A desinformação, materializada na enxurrada de fake news e
também de fake sciences[1] que o mundo tem vivenciado, em
especial, o Brasil nesse cenário atual, tem se mostrado como algo
extremamente nocivo.

277
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

É nesse cenário que encaramos a divulgação científica (daqui em


diante DC) como um fenômeno que pode nos auxiliar nesse
combate, tendo em vista que sujeitos éticos, pesquisadores sérios,
instituições responsáveis e veículos comprometidos têm muito a
dialogar e também apresentar ferramentas que libertem o homem,
as máquinas e os pensamentos do obscurantismo, negacionismo e
da grotescidade das desinformações.
Por isso que nesse texto, convidamos, primordialmente, para essa
roda de conversa, as reflexões que o filósofo russo, linguista, teórico
da literatura e da cultura, Mikhail Bakhtin, empreendeu quando
refletiu sobre a língua, sobre a arte e sobre a cultura no ambiente
russo do século XX. Suas reflexões, ao pensar as questões daquela
época, servem, produtivamente, para tentarmos entender e
explicar muitos fenômenos contemporâneos. Assim, para iluminar
nossas reflexões sobre a força libertária da DC, esse fenômeno
entendido aqui enquanto relações dialógicas entre esferas
ideológicas (a científica, a educacional, a midiática, a cultural, a
ideologia do cotidiano) (GRILLO, 2013), e que materializa nos mais
variados gêneros e discursos os conteúdos, avanços, descobertas da
ciência e da tecnologia que em muito beneficia a sociedade,
buscamos na sua potencialidade enquanto força e prática que,
dialogicamente, auxiliam na construção de um mundo menos
tóxico e com melhores possibilidades de vida para seus habitantes.
É atribuída a Francis Bacon, um grande pensador e influenciador
da Revolução Científica Moderna, a frase: “Saber é poder”. A partir
dela, defendemos a ideia de que o grande potencial que a
divulgação que se faz da ciência pode promover na sociedade uma
melhoria de Vida. É o conhecimento que permite o desvelamento
de coisas e fatos. A ciência, apenas no interior dos muros das
universidades e dos institutos de pesquisa, dos laboratórios e
páginas de livros em bibliotecas, talvez não seja capaz de causar
toda essa transformação. É imprescindível que suas descobertas e
seus resultados possam circular mundo a fora, chegar ao máximo
de pessoas que conseguir.

278
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

2. A DC e a grotescidade do negacionismo: que vozes ouvir?

Numa leitura de dicionário, encontramos para o


vocábulo grotesco a seguinte definição: “Que provoca riso pelo
ridículo, pela extravagância, por ser inverossímil, estapafúrdio ou
caricato” [2]. É nesse universo semântico de invericidade e
inverossimilhança que vemos circular pelos quatro cantos do
mundo e do Brasil, particularmente, um forte movimento de
discursos negacionistas das mais variadas vertentes e ideologias.
Bakhtin, quando produziu sua tese de doutorado na década de
1940 e que esta foi publicada em 1965 com o título de A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais, tornando-se um grande trabalho que serve de referência
para os interessados em história do riso, da cultura popular, da
carnavalização etc., o filósofo russo nos mostrou que o grotesco
está relacionado com a deformidade. Tomamos emprestado
daquele importante trabalho a reflexão que ele empreendeu sobre
o grotesco para pensar o que vivemos nessa cronotopia de
desinformação. No entanto, convém lembrar que Bakhtin pensou
essa corporalidade inacabada em relação ao riso e ao cômico. Nessa
linha de raciocínio que estou empreendendo, quando pensamos
hoje na “deformidade” que as fake news e as fake sciences causam no
mundo, ousamos afirmar que não há nada de risível e de cômico
nesse contexto; o que vemos é o trágico, o absurdo, o
inadmissível. É um verdadeiro “rebaixamento das formas
elevadas” (formas elevadas entendidas aqui como o fazer científico
e o labor dos estudiosos num trabalho incessante para descobrir,
por exemplo, curas para doenças, produzir, em tempo recorde,
vacinas para imunização dos indivíduos atacados por um vírus
perigoso que só no Brasil, já levou à morte, hoje, setembro de 2021,
quase 600 mil pessoas).

279
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Continuando a reflexão: embora o grotesco seja um conceito


relativamente complexo, não podemos, na cronotopia hodierna,
associá-lo simplesmente ao fenômeno empírico e social próximo ao
riso e ao feio; é muito mais que isso, é um esfacelamento do real,
uma desvalorização do agir e fazer humanos éticos.
Estamos relacionando a grotescidade à desinformação, no geral, e
ao negacionismo, em particular. Lima nos lembra que
O termo negacionismo, cuja autoria é do historiador francês Henry
Rousso (2004[7]), designa, inicialmente, a atitude de negar um fato
histórico como o extermínio dos judeus da Europa pelos nazistas.
Os negacionistas visam não rever ou reexaminar o fato histórico,
mas falsear a história, a partir de motivações ideológicas. No caso
do holocausto o que se deseja é apoiar a nostalgia do regime
totalitário, a utopia eugenista de uma nação pura. Esse movimento
é uma reação, é uma forma de se opor à realidade. Trata-se de uma
construção argumentativa que se apoia em valores comungados
por determinados grupos sociais que se mostram abertos a tais
construções discursivas, mas eles também podem visar a um
público mais vasto, dependendo da pauta (LIMA, 2020, p. 393-394).
Portanto, nesse cenário crítico atual, vivenciamos discursos e
atitudes negacionistas por toda parte. São variadas as facetas desse
nocivo fenômeno: é o negacionismo climático[3], no ambiente
virtual[4], pandêmico[5], histórico[6], e também o científico[7], só
para citar esses. É um negacionismo materializado em discursos
que podem levar à morte: temos visto pessoas morrendo por
decidirem não tomar vacina ou não usar máscara como forma de
proteção durante essa pandemia.
Assim, para responder pergunta que lancei no título dessa seção
(“A DC e a grotescidade do negacionismo: que vozes ouvir?”),
advogamos que, considerando a premissa da grande importância
que a comunicação tem para a sociedade, e considerando o
aumento da participação de pesquisadores e acadêmicos, das mais
variadas áreas, atuando na divulgação da ciência, é preciso ouvir a

280
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

voz da ciência mediada por esses comunicadores, pelos


divulgadores. Nesse sentido, além do importante e insubstituível
papel desempenhado pelos cientistas e pesquisadores no labor
científico, tão importante quanto é o papel desempenhado pelo
divulgador (DV). Discursivamente pensando, Cavalcante Filho
(2020) mostra a estrutura enunciativa da DC, sinalizando o papel
mediador do divulgador (que pode ser o próprio cientista ou um
jornalista, por exemplo). Afirma Cavalcante Filho:
Dessa forma, pensar a DC e seu projeto enunciativo-discursivo é
pensar que há 3 lugares de enunciação. A partir de suas intenções,
o DV produz os textos para endereçar ao público não especialista,
considerando toda a complexidade de construção da linguagem,
público-alvo, interesses, intenções discursivas, dentre outros
aspectos, para disseminar os assuntos, muitas vezes considerados
“difíceis” e “complexos” quando produzidos e compartilhados
entre os pares da esfera científica (CAVALCANTE FILHO, 2020, p.
443).
Desse modo, a citação acima nos confirma, e reafirma, a
importância do divulgador, da Divulgação da Ciência como norte
que aponta e promove a quebra dos preconceitos, da notícias
falsas, das grandes mentiras que têm ocupado, de modo especial e
persistente, as mídias sociais. Torna-se, pois, inquestionável, a
necessidade e o poder da DC no enfrentamento à grotescidade do
negacionismo mundial e local, hodiernamente. A sessão a seguir
sinaliza possibilidades e luzes que possam nos direcionar a uma
superação via Ciência da Vida e para a Vida.

3. Diante da grotescidade do negacionismo, que horizontes


vislumbrar? Ou: como Bakhtin pode nos ajudar a enfrentar esse
problema?

281
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Considerando a forte presença de pesquisadores em outros


ambientes fora da esfera acadêmico-científica, se considerarmos,
por exemplo, sua inserção nas redes sociais (a exemplo
do Instagram, Twitter, Facebook, etc.[8]), podemos dizer que um
movimento já vem ocorrendo nesse enfrentamento, mas ainda há
muito a se fazer.
Refletindo sobre a produtividade que as ideias dos membros do
Círculo de Bakhtin pode nos fornecer ao pensar o enfrentamento
dessa grotescidade de desinformações, eu ousaria dizer que isso
seria possível:

1. Pela ética: sob um viés bakhtiniano, o nosso ato ético está


relacionado com o fato de assumirmos responsabilidade
por nossas ações em relação a nós mesmos e ao outro. Ao
agirmos, ao falarmos, estamos nos comprometendo
responsiva e responsavelmente; é o não-álibi, não há álibi
para a existência, como diz Bakhtin em Para uma filosofia do
ato (2010). Em outras palavras, como diz Geraldi: “somos
agentivos: somente agindo somos o que somos” (2010, p.
289).
2. Pela responsabilidade: ou seja, o indivíduo, enquanto
sujeito ético e responsivo, deve se tornar responsável, já que
o sentido das coisas e da vida se dá na relação, o seu
conteúdo é apenas um de seus elementos, a ação
participativa do sujeito é primordial. E aí se encontra
intrinsecamente embutida uma posição, uma
intencionalidade com valores axiológicos
correspondentes. Diz o filósofo: ”Somente a partir do
interior do ato real, único, completo e singular na sua
responsabilidade, que há ainda uma aproximação do ser
único e singular em sua realidade concreta. Somente em
relação ao ato que uma filosofia primeira pode se orientar”
(BAKHTINE, 2003 [1920-4], p. 52, tradução minha)[9].

282
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

3. Pelo diálogo: muito menos que pelo diálogo resultante da


interação face a face, mas , muito mais e efetivamente, na
feitura da Ciência, no diálogo entre estudiosos, no diálogo
entre pesquisa e pesquisadores; no diálogo entre Ciência e
Vida, no diálogo entre sujeitos e sociedade. E é nesse
contexto que a língua(gem), compreendida como interação
discursiva, realidade fundamental da língua
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929]), tem sua natureza marcada
pela direção ao Outro.
Enfim, estamos diante de um cenário que nos implica nos
posicionarmos, sustentados por informações sólidas, verdadeiras
e legítimas. Ou seja, não basta dizer “essa é minha opinião, é assim
que eu penso”. Se o que eu penso e falo, se o que acredito ou acho
não tem embasamento ou fundamentação científica, deixa de ser
opinião responsiva e responsável e passa a ser mera desinformação,
podendo prejudicar o outro. Não há álibi para vermos fake
news e fake sciences por todo lado e não combatermos. Seja como
professores, seja como cientistas, seja como cidadãos. Não
podemos permitir que a grotescidade da desinformação,
simbolicamente relacionada ao baixo material, nas suas mais
variadas materialidades semióticas, continuem a prejudicar a vida,
o mundo, o homem. Porque, com Krenak (2020, p.46) afirmamos:
“...é a comunhão com a teia de vida que nos dá potência.”

Referências
BAKHTINE, M. M. Pour une philosophie de l acte. Trad. Ghislaine
Caponga Bardet. Editions L Age d Homme, Lausanne, Suisse, 2003
[1920-4].
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Trad. De Yara Frateschi Vieira. 8. ed.
São Paulo: Hucitec, 2013.

283
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir


Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010.
CAVALCANTE FILHO, U. Dialogia e comparação em embate e
complementação: anotações metodológicas para uma análise do
discurso da divulgação científica. Polifonia, v.27, n.49, p. 437-454,
out.-dez., 2020. Disponível
em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/is
sue/view/656 Acesso em: 06 set 2021.
GERALDI, J. W. Sobre a questão do sujeito. In: PAULA, L. de;
STAFUZZA, G. (Orgs.) Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável.
Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2010, p.279-292.
GRILLO, S. V. de C. Divulgação científica: linguagens, esferas e
gêneros. Tese (Livre-Docência) Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.
KRENAK, A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia da
Letras, 2020.
LIMA, H. Discursos negacionistas disseminados em rede. Revista
da Abralin. v. 19. n. 3. p. 389-408, 2020. Disponível
em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/1758
/1944 Acesso em: 06 set. 2021.
SANTIAGO, P. R. Fake Science :“nem tudo que reluz é
ouro”. Jornal da USP. Julho 2018. Disponível
em: https://jornal.usp.br/atualidades/fake-science-nem-tudo-que-
reluz-e-ouro/ Acesso em 05 set. 2021.
VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). A interação discursiva.
In: ______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas do método
sociológico na ciência da linguagem. Tradução notas e glossário de
Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de
Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 201-225.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Notas
[1] As fake sciences referem-se a trabalhos considerados ruins e que
são publicados em revistas científicas tidas como de prestígio. Nas
palavras do professor Paulo Roberto Santiago da USP:
“Publicações desse tipo são graves, pois fazem com que o público
acredite em coisas que não estão corretas do ponto de vista
científico. Entretanto, por terem sidos publicados em periódicos de
renome, passam a ser considerados
verdadeiros”. (https://jornal.usp.br/atualidades/fake-science-nem-
tudo-que-reluz-e-ouro/)
[2] GROTESCO. In: DICIO, Dicionário Caudas Aulete. Disponível
em: https://www.aulete.com.br/grotesco. Acesso em: 06 set. 2021.
[3] Refiro-me àquelas situações em que indivíduos não acreditam
nas mudanças climáticas ou não levam em consideração que a ação
do homem interfere no aumento da temperatura da superfície da
terra, ocasionando consequências no quesito climático, a exemplo
do aquecimento global.
[4] Estou considerando o fato de “Nas redes sociais, com o uso de
avatares, os sujeitos acreditam poder participar agora de um cena
da qual foram excluídos por anos, para a qual não possuíam a
senha de entrada. Nesse ambiente virtual tudo podem dizer e
criticar; podem cobrar as dívidas.” (LIMA, 2020, p. 392)
[5] Refiro-me aos discursos que, durante a pandemia provocada
pelo Sars-Cov-2 (o novo Coronavírus), circularam sobre os mais
variados aspectos, seja negando os efeitos da pandemia (como o
caso da “gripezinha”, seja minimizando seus graves efeitos, ou até
mesmo discursos que sustentam o uso de remédio sem
comprovação científica para o tratamento de tal enfermidade.
[6] Como exemplo, posso citar os discursos que alguns indivíduos
fazem na negação ao Holocausto, chegando ao ponto de negarem

285
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o terrível genocídio sofrido pelo povo judeu durante a II Guerra


Mundial; ou duvidam da grande proporção e impacto que tal
fenômeno tenha tido, mesmo que pesquisas mostrem, testemunhas
e sobreviventes relatem.
[7] Estou fazendo referência àqueles adeptos à desinformação, que
não acreditam nas pesquisas científicas e chegam a ponto de
duvidar dos grandes feitos e descobertas resultantes de métodos
científicos rigorosos.
[8] Exemplo disso são os nomes de Átila Amarino: com mais de 1,2
milhão de seguidores no Twitter, mais de 1.5 milhão de inscritos no
seu canal pessoal do Youtube e mais de 1,1 milhão no Instagram;
sem contar os mais de 3 milhões de seguidores no canal
Nerdologia, apresentado por ele desde 2010), e mais uma coluna
quinzenal no jornal Folha de S. Paulo. Para além de Átila, outros
divulgadores têm desempenhado excelente função. A atuação do
trabalho desses profissionais no Twitter no momento de pandemia
que estamos vivendo pode ser visualizada numa lista de
divulgadores científicos, resultante de um estudo feito pelo Science
Pulse e o Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados
(IBPAD). “No topo da lista, considerando todos os critérios de
avaliação, estão o biólogo Atila Iamarino (formado pela USP), a
jornalista Luiza Caires (editora de Ciência do Jornal da USP), o
epidemiologista Otavio Ranzani (da Faculdade de Medicina da
USP), a biomédica Mellanie Fontes-Dutra (da UFRGS), e
Bittencourt, em quinto lugar” (ESCOBAR, Herton, 2020, on line).
Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/a-ciencia-contra-o-
negacionismo/
[9] No original em francês: ”Ce n est qu à partir de l intérieur de l
acte réel – unique, intégral et un dans sa responsabilité, qu il y a
aussi une approche de l être un et singulier dans sa réalité concrète.
Ce n est que par rapport à l acte qu une philosophie première peut
s orienter” (BAKHTINE, 2003 [1920-4], p. 52).

286
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

287
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A ilustração e o grotesco: diálogos com Rui de Oliveira e sua


obra

Gisele de Assis Carvalho Cabral


UNESP - câmpus de Marília
gisele.ac.cabral@unesp.br

Adentrando a Roda...
Como a ideia do Círculo – Rodas Bakhtinianas é colocar a palavra
para circular porque o que eu tenho a dizer somente eu posso dizer
do que lugar onde me encontro, tenho o desejo de trazer para a
Roda um pequeníssimo recorte da minha pesquisa de Mestrado,
defendida em fevereiro de 2021, cujo objetivo foi compreender a
arquitetônica do ato de ilustrar de Rui de Oliveira e as
contribuições de seus livros de imagem para a formação do
pequeno leitor literário. A princípio, explicito que tomei a liberdade
de escrever em primeira pessoa, não por egotismo, mas para
assumir meu ato responsivo e responsável neste escrito no qual
estou consciente de que a minha voz é constituída por muitas
outras vozes desde que me tornei um ser social (VOLOCHINOV,
2013). Portanto, trago nesse meu eu todos os outros com os quais
convivi e compartilhei ideias, afetos e desafetos, que contribuíram
para a minha formação como sujeito social porque:
Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do
mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha
mãe, etc.), com a sua entonação, em sua tonalidade valorativo-
emocional. A princípio eu tomo consciência de mim através dos
outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a

288
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

formação da primeira noção de mim mesmo (BAKHTIN, 2003, p.


374).
No decorrer da minha pesquisa de Mestrado, tive o prazer e a
honra de conhecer o ilustrador Rui de Oliveira – nascido no Rio de
Janeiro (1941), é ilustrador de livros de Literatura Infantil há mais
de 40 anos, Doutor em Artes Visuais pela Universidade de São
Paulo (USP) e atuou como professor por quase 30 anos na Escola
de Belas Artes (EBA – RJ) onde também estudou – com o qual
dialoguei sobre as suas obras compostas integralmente por
materialidades semióticas, os denominados livros de imagem. Por
ocasião do encontro onde dialogamos sobre a obra Chapeuzinho
Vermelho e outros contos por imagem – obra editada e publicada pela
Editora Companhia das Letrinhas (2002), vencedora do Prêmio Luiz
Jardim como melhor livro de imagem (2003) e Prêmio Jabuti na
categoria ilustração (2003), é composta por três contos
intitulados João e Maria, Chapeuzinho Vermelho e O Barba-Azul -,
descobri que o conto Chapeuzinho Vermelho teve um processo de
criação interessante, o que me fez remeter ao grotesco. “Em fins do
século XV, escavações feitas em Roma nos subterrâneos das Termas
de Tito trazem à luz um tipo de pintura ornamental até então
desconhecida. Foi chamada de grotesca, derivado do substantivo
italiano grota (gruta)” (BAKHTIN, 2010, p. 28, grifos do autor). O
grotesco aqui é considerado como um fenômeno novo,
perturbador, que foge à normatividade e ao que já está oficializado
pela sociedade.
O ilustrador recriou o conto mencionado apenas com ilustrações
baseando-se na versão literária de 1697 do francês Charles Perrault
(1628-1703) que, por ter sido uma pessoa influente no século XVII,
escreveu várias obras que precederam a sua mais conhecida Contos
de Mamãe Gansa. No conto aludido anteriormente, encerra com a
vovó e a neta sendo devoradas pelo lobo sem a presença de caçador
para salvá-las, diferentemente da versão dos Irmãos Grimm – Jacob
Grimm (1785-1863) e seu irmão Wilhelm Grimm (1786-1859)
dedicaram-se a recolher e registrar os contos populares de algumas

289
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

regiões de língua alemã – Nesse sentido, Rui de Oliveira subverte


os padrões que dizem respeito à escrita dos contos de fadas que
pressupõem uma forma mais adocicada quando direcionada às
crianças.
Segundo Ana Maria Machado (2010, p.18), “Histórias antes tidas
como vulgares ou grotescas foram inseridas no centro de uma nova
cultura literária, que tinha a intenção de civilizar e educar
crianças.” Desde então, novas versões desse e de outros contos
foram introduzidas justamente para atender aos ideais oficiais
suprimindo partes consideradas grotescas, violentas, maliciosas
das obras destinadas ao público infantil e substituindo-as por
trechos moralizantes e nuançando as histórias com finais felizes,
perdendo assim, os seus elementos originais.
Além de o ilustrador optar pela versão que poderia chocar os
leitores mais conservadores pela ausência de final feliz, construiu o
personagem lobo a fim de retratar um acontecimento real próximo
à época da elaboração da obra. O artista pensou o lobo como sendo
o Maníaco do Parque. Francisco de Assis Pereira, nascido em
novembro de 1967, foi denominado pela mídia como “Maníaco do
Parque” por ter sido condenado a 271 anos de prisão em razão de
ter atacado mulheres no Parque Estadual de São Paulo. Fez
dezenove vítimas: dez assassinatos e nove estupros entre o período
de janeiro a agosto de 1998. Abordava as mulheres dizendo ser caça
talentos de uma revista importante sob a falsa promessa de
fotografá-las em um ambiente ecológico e torná-las famosas.
Quando ambos adentravam a mata, ele cometia a perversidade
(ALVES, 2018).
Esse homem que abordava mulheres indefesas e, com seus
enunciados precisos, levava-as para o parque onde cometia
crueldades se assemelha ao lobo da Chapeuzinho Vermelho que
convence a garota a seguir por outro caminho para que possa ter
tempo de chegar à casa da vovó, devorá-la e esperar pela menina,
pois “[...] uma obra poética, assim como todo enunciado concreto,

290
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

é, de fato, uma unidade inseparável do sentido e da realidade,


fundamentada sobre a unidade da avaliação social que a atravessa
por todos os lados” (MEDVIÉDEV, 2016, p. 188). Com base nessas
considerações, o ilustrador ressignificou o conto a partir de
situações concretas da realidade, dos seus valores axiológicos, da
sua compreensão de mundo e, diferentemente de moralizar,
procurou mostrar o quanto somos seres vulneráveis e podemos nos
iludir por meio de palavras sedutoras. O quanto é perigoso o dizer
do outro quando não é ético. Mas como saber que o outro tem
intenções escusas? Talvez esteja aí a função da Literatura que, ao
recriar realidades, alerta para o que possa acontecer diante de
situações semelhantes.
Para compor a imagem desse lobo, o ilustrador desenhou um
animal com características humanas e colocou-lhe um rabo (Figura
1). Porém, a pedido da Editora, o rabo foi encoberto por ramos e
folhagens (Figura 2) sob a alegação de que poderia causar reações
inesperadas pelo público consumidor ao relacionar o personagem
a um ser demoníaco, grotesco, diabólico. O rabo explícito assume a
forma do grotesco porque é um elemento que choca e perturba e
pode ser vinculado ao que não é aprovado e normatizado pelos
padrões sociais e, principalmente pelas concepções religiosas, uma
vez que:
[...] as imagens grotescas conservam uma natureza original,
diferenciam-se claramente das imagens da vida cotidiana,
preestabelecidas e perfeitas. São imagens ambivalentes e
contraditórias que parecem disformes, monstruosas e horrendas, se
consideradas do ponto de vista da estética “clássica”, isto é, da
estética da vida cotidiana preestabelecida e completa. A nova
percepção histórica que as trespassa, confere-lhes um sentido
diferente, embora conservando seu conteúdo e matéria tradicional:
o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a
desagregação e o despedaçamento corporal, etc., com toda a sua
materialidade imediata, continuam sendo os elementos
fundamentais do sistema de imagens grotescas. São imagens que se

291
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

opõem às imagens clássicas do corpo humano acabado, perfeito e


em plena maturidade, depurado das escórias do nascimento e do
desenvolvimento (BAKHTIN, 2010, p. 22).

Figura 1- O lobo com rabo como está no site do ilustrador.

Fonte: https://ruideoliveira.com.br/en/books/chapeuzinho-
vermelho/

292
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 2 - O lobo com o rabo encoberto. Fonte: arquivo pessoal da


ilustradora
No livro encomendado pela Editora, o rabo não aparece, portanto,
segue ao esperado por quem vende a imagem ao leitor que não terá
surpresas, porém, no site do ilustrador, bem como em suas
exposições, o rabo está presente tal como o artista idealizou
constituindo um espaço público da sua contrapalavra como artista,
uma vez que qualquer pessoa pode ter acesso a essa ilustração.
Embora a Arte seja controlada no espaço livro, ela circula
livremente em outros espaços públicos na sua concepção original
encontrando um modo de manifestar-se, rebelar-se, existir.
Ainda há muito controle e censura sobre o projeto de dizer dos
artistas, como escritores e ilustradores de livros literários,
sobretudo dirigidos às crianças. Desde o início da produção de
livros para o público infantil, é o adulto que decide o que chegará
às mãos da criança, desde quem produz até quem compra esse
produto cultural humano. É o adulto que determina a partir de seus
valores axiológicos o que a criança lerá ou não. Assim, por mais que

293
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o escritor/ilustrador seja consciente disso e tente se desvencilhar


das regras impostas pela sociedade sobre o que julga ser
apropriado para a criança, são poucos que conseguem ir além em
seu modo de produzir porque precisa fazer escolhas e não pode
correr riscos de ser rejeitado por um público, que ao consumir o
produto do seu trabalho, alimenta-o de duas maneiras: financeira
(o artista precisa satisfazer as suas necessidades de sobrevivência)
e psicologicamente (sendo aceito pode continuar exercendo a sua
profissão). Por isso, muitas vezes, atende aos princípios postos por
quem compra o seu trabalho.
Concordo com Michelli (2020, p. 307) ao enunciar que “Ler histórias
maravilhosas ou realistas, ler literatura, no fundo, faz toda a
diferença na formação de seres humanos, como pessoas a quem se
dá a oportunidade de vivenciar, pela ficção, um multifacetado
mundo interno e externo, atribuindo-lhe significação”. A Literatura
tem o poder de contribuir para a humanização das pessoas que
podem construir e reconstruir o seu mundo porque possibilita ao
leitor dialogar com o autor por meio da sua obra, ao conhecer
outras realidades, outras culturas, outros espaços, outras vivências,
outros pensamentos, formando a sua consciência. Desse modo, não
pode ser controlada e domesticada a padrões que são considerados
os ideais. Ao contrário, deve ser aberta, livre, circulante, ética,
vívida, grotesca com a possibilidade de vivenciar o novo, o
perturbador, o emancipador, para que o leitor tenha a
oportunidade de se constituir em alteridade com o verdadeiro
pensamento dos seus outros.
Referências
ALVES, Maria Clara Matos Coelho. Considerações sobre o agir
perverso e o modus operandi: o caso “Maníaco do Parque”. 2018.
54 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia) –
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2018. Disponível
em: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/23216. Acesso em
28 out. 2020.

294
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo:


Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora
Hucitec, 2010.
MACHADO, Ana Maria. (apr.). Contos de fadas: de Perrault,
Grimm, Andersen & outros. Maria Luiza X. de A. Borges (trad.).
Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos
literários: introdução a uma crítica a uma poética
sociológica. Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo
(trad.). São Paulo: Contexto, 2016.
MICHELLI, Regina. Navegar pelos mares do maravilhoso é
preciso: a metamorfose por mãos femininas nos contos da
tradição. In: MICHELLI, Regina; GREGORIN FILHO, José Nicolau;
GARCIA, Flávio (org.). A Literatura Infantil/Juvenil entre textos e
leitores: reflexões críticas e práticas leitoras. Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2020, 1a ed. (digital).
OLIVEIRA, Rui de. Chapeuzinho Vermelho e outros contos por
imagem. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.
VOLOCHÍNOV, Valentin. A construção da enunciação e outros
ensaios. João Wanderley Geraldi (trad.). São Carlos: Pedro & João
Editores, 2013.

295
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A IMAGEM GROTESCA DA PUBLICIDADE E DO


CONSUMO PANDÊMICO

Hadassa Freire Gomes Rodrigues


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
hadassafreire60@gmail.com

GIANKA SALUSTIANO BEZERRIL DE BASTOS GOMES


UFRN
gianka.bezerril@gmail.com

O que é grotesco?
Bakhtin (2010, p.275) elenca ‘’três fenômenos à noção comum de
grotesco’’. A primeira diz respeito à uma ‘’concepção especial do
conjunto corporal e dos seus limites’’. Destacando as características
Rabelesianas, ele traz para sua análise o vislumbre do ‘’motivo do
nariz’’, da boca e dos olhos na imagem do corpo grotesco, esse
último não desempenhando papel tão importante nessa construção
imagética No entanto, olhos arregalados interessam, pois, a
mudança está na transfiguração dos olhos, mas ‘’A boca domina’’;
‘’Os olhos arregalados [...] atestam uma tensão puramente
corporal’’ (BAKHTIN, 2010. p.277).
O corpo do movimento, da atividade, da dialogia, do consumo, da
publicidade, o corpo abismal, o corpo do exagero. Esse é o corpo
em questão nesse texto. As características que queremos enfatizar
aqui são: ‘’olhos arregalados’’ e ‘’A boca domina’’ (BAKHTIN,
2010. p.277)..

296
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Só falaremos acerca dessas caraterísticas do corpo grotesco que


Bakhtin denomina como essenciais para a descrição do grotesco nas
obras de Rabelais, sabidos de que o grotesco não está na ‘’superfície
do corpo’’, mas ‘’ocupa-se apenas das saídas, excrescências,
rebentos e orifícios, isto é, unicamente daquilo que faz atravessar
os limites do corpo e introduz ao fundo desse corpo’’ (BAKHTIN,
2010. p.277).

Consumidor e publicitário pandêmico: corpos grotescos?


O corpo do consumidor e do publicitário, demonstram ser,
sobretudo nesse período pandêmico, grotescos. O Publicitário
continuou criando discursos persuasivos, às vezes, até utilizando
às propagandas de prevenção à COVID-19 (que outrora era de
utilidade pública), para vender mais. Dessa forma, em um
momento de crise, essa boca produtora dominou um número maior
de consumidores, visto que produziu em massa e em diversas
plataformas sociais digitais, das inúmeras, cito o instagram.
A produção nunca foi tão grande, o publicitário nunca vendeu
tanto e a velocidade do enunciado produzido mudou, assim como
a velocidade do consumidor. Aquele que outrora saía para
comprar, agora em casa, isolado do mundo, o sujeito consumidor,
revigorou a sua crença de que gastar seria mais um passatempo e
que não precisava sair do seu isolamento social para sentir a
necessidade exagerada de compra, agora basta sair do mundo
concreto e partir para o virtual, é lá que existe o poder de compra,
é lá que o consumidor abre seus olhos arregalados e absorve
anúncios publicitários rápidos que atendem as suas necessidades.
Sobre esse aspecto, quando a tecnologia perde a afinidade com a
vida, com a ‘’unidade singular’’, se torna destrutiva, dessa forma,
os usuários passam a agir de forma irresponsável e compulsiva, e é
isso que está posto, conforme Bakhtin (2010, p.50).

297
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco do consumidor são seus olhos, já do publicitário é sua


boca. O grotesco não é o discurso, é a compulsão capitalista, essa é
devastadora. E ‘’sejamos sinceros, todos nós somos consumidores’’
(LINDSTROM, 2016, p.11), por que não acrescentar afirmando que
todos nós também somos publicitários? Acima citamos a
plataforma instagram a fim de retomá-la dizendo que a sociedade,
em geral, está se tornando publicitária de seu próprio corpo,
os feeds organizados ou não, os stories compram e vendem, se não é
um produto, é o próprio corpo, é a própria vida do sujeito, é uma
ideologia, é um padrão de vida, a plataforma se tornou uma vitrine.
Na sociedade de consumo, mediante os fenômenos da publicidade,
o sujeito vira mercadoria e mantém sua subjetividade, reanimando,
ressuscitando e recarregando de maneira perpétua as capacidades
esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. Na história, o
desejo humano gira em torno da procura pela singularidade, num
processo de individualização constante. Conforme GOMES, (2016,
p. 149), “As indústrias de bens de consumo, avidamente, produzem
e anunciam mercadorias […] que reiteram a compra e venda dos
símbolos empregados na construção da identidade. Nessa vida
organizada em torno do consumo, a sociedade de consumidores se
“baseia na comparação universal – e o céu é o único limite”
(BAUMAN, 2001, p. 90)”.

Conclusões inacabadas
O corpo publicitário e o corpo consumista, unificados, se mostram
como padrão de ‘’um corpo perfeitamente pronto, acabado,
rigorosamente delimitado, fechado, mostrado do exterior, sem
mistura, individual e expressivo’’, mas são cheios de falhas, são
corpos abertos, com compulsões, inacabados, pois são pairados por
uma ideologia padronizada pela identidade consumista e
narcisista. A característica mais enfática da nossa sociedade, ainda
que disfarçada, é a transformação dos consumidores em
mercadorias.

298
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

No fim, os sujeitos se tornaram grotescos pela boca que domina e


pelos seus olhos arregalados, sempre vidrados, querendo mais,
produzindo mais discursos de venda, mesmo em tempos
pandêmicos, que são sobretudo fatigantes. Os sujeitos se tornam
cada vez mais instagramáveis (CHUL HAN, 2021, p.14)
preocupados com o poder de compra, assim como com o poder de
venda do corpo perfeito, produzindo, dessa forma, o consumismo
exagerado.
O sujeito instagramável procura por uma completude que jamais
chegará, o homem se autoconstrói por vezes da busca pelo corpo
perfeito, por um estereótipo perfeito que contribuam para essa sua
autoafirmação, sempre transitória e em construção. Assim Gomes
(2016, p. 152), afirma que “o sujeito se individualiza e não se pode
pensar numa experiência subjetiva com a noção de uma
comunicação interpessoal, o que se complexifica […] A
subjetividade, nessa direção, como passa a ser feita de opções de
compra, torna a lista de desejos infinita”.
Esses fatores demonstram que há uma necessidade de
preenchimento na vida íntima? Podemos ousar em dizer que essa
necessidade pode ser vista e compreendida pela falta de alteridade,
a relação eu-outro no mundo concreto da vida. É essa relação que
possibilita o reconhecimento do grotesco corporal, isso porque
somos definidos através do olhar do outro e é a partir dele que nos
constituímos enquanto sujeitos.

REFERÊNCIAS
GOMES, Gianka Salustiano Bezerril de Bastos. Anúncio publicitário
direcionado ao público masculino: uma abordagem dialógica. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Centro de Ciências Humanas Letras e Arte – Departamento de
Letras. Programa de Pós-graduação em Estudos da
Linguagem. Natal, p. 179. 2016.

299
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: a dor hoje. Rio De Janeiro:


Editora Vozes, 2021.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec,
2010.
LINDSTROM, Martin. A lógica do consumo: verdades e mentiras
sobre por que compramos. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil,
2016.

300
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A IMAGEM GROTESCA DO CORPO DE JUREMA DA


PAVUNA

Márcia de Souza Menezes Concencio


Universidade Federal Fluminense
biaconcencio@yahoo.com.br

Só construo pedras vivas. São homens.


(Rabelais[1])

Essas imagens[2] mostram parte dos alinhamentos de mais de 3000


megálitos que foram erguidos na comuna de Carnac, na Bretanha,
a oeste da França, por volta de 2000 a.C.. Trago-as para iniciar
minha resposta à provocação do “Rodas 2021” de pensar
coletivamente o grotesco dos nossos tempos, suas vozes, ambientes
e horizontes.
No capítulo quinto do livro “A Cultura popular na Idade Média e
no Renascimento: o contexto de François Rabelais”, Bakhtin afirma
o gigante como a imagem grotesca do corpo. Assim, a imagem que
trago, a partir dessa leitura é a de um gigante desmembrado,
espalhado:

301
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Todas essas lendas de gigantes têm uma relação estreita com o relevo dos
lugares onde elas se contam. A lenda encontra sempre um ponto de apoio
concreto no relevo regional, encontra na natureza o corpo desmembrado
do gigante, espalhado ou amassado. Existe ainda na França um enorme
número de rochas, pedras, monumentos, megalíticos, dólmens, menires
etc, que trazem o nome de Gargântua: São as diferentes partes do seu
corpo, e os diferentes objetos que ele emprega; citemos entre outros o “dedo
de Gargântua”, o “dente de Gargântua”, a “colher de Gargântua”, o
“caldeirão de Gargântua”, a “marmita de Gargântua”, etc[3].
Bakhtin diz um pouco adiante, que essas partes do corpo e
utensílios espalhados por toda a França tinham uma aparência
grotesca excepcional e exerceram grande influência sobre Rabelais,
cuja obra é o coroamento da concepção grotesca do corpo que lhe legaram
a cultura cômica popular, o realismo grotesco e a linguagem familiar. (...)
O livro todo é atravessado pela corrente poderosa do elemento grotesco:
corpo despedaçado, órgãos destacados do corpo (por exemplo nas muralhas
de Panurge)[4]. Sobre as muralhas projetadas por Panurge, Bakhtin
elucida que tiveram sua corporificação grotesca inspirada em uma
metáfora antiga da grande cidade de Lacedemônia: as muralhas
mais sólidas são as construídas pelos ossos dos guerreiros. O corpo
humano é o material da construção[5]. Sob essa influência, Panurge
projeta uma muralha construída com os conos das mulheres e com
todos os espadins endurecidos que habitam as braguilhas claustrais.[6]

Espádua, rebarba compreendida entre a base do talude é o nome do


fragmento do corpo popularmente conhecido como ombro. (...) “Seus
cheiros são suor no trabalho e alfazema em casa. No fim de semana, não
pode sustentar o tabuleiro com as cocadas vendidas na praça. A bursite o
faz doer das seis às 17 horas na fábrica em Pavuna; (...) Ele inflama e
brilha, untado de suor, repetindo o mesmo gesto do empacotamento das
seis às 17 horas para compensar a folga no fim de semana[7].

302
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Na fábrica em Pavuna, está sempre coberta sobre luva de pano ou


descartável, de látex. Sem a luva exala odores de gestos. Perfume, cheiro
de nada, sabão, alho do refogado, mijo de criança, suor, coco para o doce
vendido na praça, ervas para curar bursite e fazer dormir, carne humana
e animal, cheiros de tudo misturado: são aromas da parte do corpo dotada
de cinco dedos. (...) No fim do expediente, tremem, doem, retesam e
relaxam, contaminadas pelo tempo da esteira que segue sempre em frente,
em direção ao moderno[8].

O nome do fragmento do corpo destinado à sustentação e locomoção é


perna. São duas peças, uma direita e outra esquerda, localizadas entre o
joelho do tornozelo. Chegam à fábrica na Pavuna às seis e partem às 17
horas”. (...) “O fragmento destinado à sustentação ou à locomoção, quando
ereto, expõe varizes à flor da pele retorcida, assemelha-se ao arbusto
chamado Jurema, uma arvoreta armada de espinhos, da família das
leguminosas, de ramos duros e flores alvacentas ou esverdeadas[9].

Com os estudos da obra de Bakhtin, no afã de tracejar uma


compreensão dos sentidos do grotesco em nosso tempo, me deparo
com esse corpo despedaçado – tal como os megálitos/fragmentos
de Gargântua – na escritura de Luiz Antonio Baptista, que
salva[10] Jurema Emídio de Carvalho – quarenta anos, negra, carteira
de identidade 2.581, casada, mãe de quatro filhos, moradora da praça
Nossa Senhora de Nazaré, número 36, Anchieta, Rio de Janeiro, operária
da fábrica Franklin na Pavuna[11] –, de algo que o autor descreve
como limites do cotidiano reduzido ao peso do sempre igual[12].
No texto “Arte e subjetividade na experiência teatral: contribuições
de Jurema da Pavuna”, Luiz Antônio Baptista, pondera, questiona
e recusa a estética da procura de si, na qual a arte e subjetividade nos
ofertam o êxtase reconfortante de reencontrarmos, na literatura, na
música, no teatro, na dança, rastros representativos dos afetos primitivos,

303
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

traços pessoais, emoções familiares, medos reconhecíveis alojados no


Sujeito para todo o sempre, à imagem e semelhança de si mesmo[13].
Baptista dá a ver vestígios dessa arte e subjetividade (revestidas de
uma aura solitária e vaidosa), na máquina de propaganda nazista,
cuja estética não admitia qualquer usurpação, escândalo ou
estranhamento que perturbasse as formas nítidas, ancoradas à ideia de
coletividade, nas quais cada indivíduo deveria desenhar-se. O povo alemão,
ao usufruir da arte, arquiteta da identidade sólida e límpida, purificava-se
das misturas do mundo e se envaidecia[14].
A cinematografia foi, entre as artes, a mais utilizada por Adolf
Hitler e Joseph Goebbels, (Ministro da Propaganda na Alemanha
entre 1933 e 1945), para veicular filmes de entretenimento e
propaganda nazista. Baptista, para discorrer sobre o cinema de
Goebbels, denuncia que o povo alemão projetado na tela seguia sempre
em frente, indiferente aos apelos do agora a interromper a marcha triunfal
da história[15], e chama nossa atenção para um público, que ao
consumir a si mesmo por meio da arte, deixava de ir em direção às
surpresas do mundo, escapava dos estranhamentos produzidos pelo tempo
do agora, esse tempo no qual virtualidades de gestos e atitudes desenham
um rosto inconcluso à semelhança de uma obra por vir[16].
Refletindo com Walter Benjamin sobre a politização da arte como
resposta do comunismo à estetização da política pelo fascismo,
Baptista cria um ato estético no qual o corpo se (trans)forma em
uma obra de arte cuja aura solitária e vaidosa é destronada para
narrar o corpo de Jurema – mulher, negra, operária –
desumanizado pelo trabalho.
O corpo despedaçado de Jurema perturba porque estilhaça a
distração, a familiaridade, o torpor: o hoje distraído dá lugar às
urgências do contemporâneo[17]. (...) Do contemporâneo emergem apelos
urgentes produzidos por assombros, exigindo de nós atitudes[18].
Atitudes que possam combater a indiferença diante de existências
que nos acostumamos a naturalizar, como a de Jurema, mas
também a de Mirtes Renata Souza, empregada doméstica, cujo

304
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

filho, Miguel Otávio, de 5 anos, morreu ao cair do nono andar do


prédio de luxo no qual sua mãe trabalhava, no Centro do Recife,
em junho de 2020; ou a babá Raiana Ribeiro, de 25 anos, que foi
agredida covardemente pela patroa, momentos antes de tentar
fugir, pulando do terceiro andar de um prédio em Salvador, na
Bahia, na semana passada.
Cada uma dessas existências pode ser – e normalmente é – narrada
sob a estetização da política, sob a ética do marasmo. Mas no
momento em que nos encontramos com Jurema, despedaçada
diante de nós, revidando cada olhar para prosseguir criando-se sem a
arrogância do fim[19], a politização da arte nos diz, que apesar das
dores de Jurema, de Mirtes e de Raiana, podemos sim, com a
literatura, redesenhar essas histórias.
Nesse momento da história humana onde o cânon corporal, sem
orifícios e excrescências, que Bakhtin nomina como “cânon da
decência verbal”, esse cânon que orienta a arte e a literatura,
que não conserva nenhuma marca de dualidade; basta-se a si mesmo, fala
apenas em seu nome; o que acontece só diz respeito a ele mesmo, corpo
individual e fechado[20], nesse nosso tempo, despedaçar
artisticamente um corpo, criando a imagem grotesca que ignora a
superfície sem falha que fecha e limita o corpo, fazendo dele um fenômeno
isolado e acabado[21], pode ser um ato estético muito potente;
despedaçar um corpo, assim, se torna um ato de amor; um ato de
não indiferença diante dos perigos do mundo do ontem, hoje e porvir,
que naturalizam a humilhação do sofrimento[22].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

305
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na idade média e no


renascimento: o contexto de François Rabelais. 8ª edição. Tradução de
Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec Editora, 2013.
BAPTISTA, L. A. S. Arte e subjetividade na experiência teatral:
contribuições de Jurema da Pavuna. In A. Maciel, D. Kupermann & S.
H. Tedesco (Orgs.), Polifonias: clínica, política e criação (pp. 150-
175). Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria Ltda, 2005.
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte:
Editora Garnier-Itatiaia, 2009.

[1] Rabelais, Livro 3, capítulo 6 – Por que os recém-casados eram


isentos de ir para a guerra.
[2] Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rochas_de_Carnac
[3] Bakhtin, 2013, p. 299-300.
[4] Bakhtin, 2013, p. 282.
[5] Bakhtin, 2013, p. 273.
[6] Idem.
[7] Baptista, 2005, p. 113.
[8] Baptista, 2005, p. 114.
[9] Baptista, 2005, p. 115-116.
[10] “A salvação não é uma recompensa outorgada à vida, mas a
última oportunidade de evasão oferecida a um homem”. Na nota
nº 6, na p. 121, com essa citação de W. Benjamin, Batista faz sua
reflexão sobre a salvação, à qual também recorremos aqui.
[11] Baptista, 2005, p. 116.
[12] Idem.
[13] Baptista, 2005, p. 110.

306
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[14] Baptista, 2005, p. 111.


[15] Baptista, 2005, p. 112.
[16] Baptista, 2005, p. 112.
[17] Baptista, 2005, p. 115.
[18] Baptista, 2005, p. 117.
[19] Baptista, 2005, p. 112.
[20] Bakhtin, 2013, p. 281.
[21]Bakhtin, 2013, p. 278.
[22] Baptista, 2005, p. 119.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A LÍNGUA ESTUPRADA

Gabriele Damin de Souza


Universidade Federal de Santa Catarina
gdamindesouza@gmail.com

REFLEXÕES SOBRE A IMAGEM GROTESCA QUE EMERGE


NA CONTEMPORANEIDADE
Toda reflexão assume seu papel na cadeia discursiva como uma
resposta (BAKHTIN, 1997). Assim, situo minha voz no tempo e no
espaço do Brasil de 2021 e proponho construir, nestas linhas, uma
breve análise das imagens grotescas que emergem na
contemporaneidade. Nesse sentido, assumo meu papel de
pesquisadora e futura professora de Língua Portuguesa e me
coloco diante de determinados enunciados a fim de investigá-los e,
dessa forma, respondê-los do lugar que ocupo no mundo.
Tendo esclarecido isso, adianto que o texto que pretendo escrever
aproxima-se de uma análise embebida de narrativa. Contudo,
espero, no espaço que me cabe, pensar sobre o conceito proposto
pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin e como ele pode fundamentar
uma interpretação do realismo grotesco de nossos tempos. Por
conseguinte, meu objetivo com este trabalho é refletir sobre o estilo
grotesco, como atitude e prática cultural (TIHANOV, 2012), que se
envereda nas mais diversas manifestações discursivas e pode ser
investigado de maneira singular e profunda a partir dos
pressupostos da teoria bakhtiniana.

308
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Comecemos, pois, com uma contextualização.


Deparei-me, dia desses, com o boato de que a Língua Portuguesa
fora estuprada. Era, na verdade, uma noite de quarta-feira e
naquele dia, eu e vários professores do Estado de Santa Catarina,
havíamos nos reunido, virtualmente, para acompanhar e refletir
sobre a efervescente discussão que envolvia a proposta de Lei que
proibiria o uso da denominada linguagem neutra – que,
resumidamente, consiste na reestruturação da marcação de gênero
do português brasileiro, incluindo, para além do masculino e do
feminino, um gênero neutro (PINHEIRO, 2020) – em âmbito
escolar, mais especificamente no ensino de Língua Portuguesa.
Durante o encontro, surgiu a fala de que a linguagem neutra está
sendo descrita como o estupro da língua portuguesa.
Choque, espanto e silêncio foram as primeiras reações que tive
diante deste comentário. Depois, veio a incredulidade e com ela o
riso, mas não uma risada que se dá diante do cômico, ao contrário:
o riso que arrebentou foi aquele nervoso, quase desesperado, que
parece encobrir as palavras: isso não pode ser verdade.
Nos dias que seguiram, passei a contemplar a imagem que se
formara em minha mente. Imagem esta um tanto quanto estranha,
pois atribuía à Língua e à Linguagem um corpo passível de ser
violentado... Cotejando devaneios e questionamentos, cheguei em
Mikhail Bakhtin, mais precisamente à sua análise da obra
rabelaisiana e nela encontrei possíveis respostas para minhas
indagações e um fio que poderia tecer e entremear, em uma grande
tapeçaria, os meus pensamentos.
Inspirada pela inquietude da descoberta,lancei-me na missão de
encontrar um enunciado concreto que trouxesse materializadas –
na escrita – as palavras que me causaram tanto espanto. Parti para
o lugar que considerei o mais profícuo para essa querela:
a internet e delimitei os comentários de portais de notícia como o
espaço em que selecionaria os enunciados que comporiam minha

309
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

base de dados. Dessa empreitada, reuni dois comentários, no


primeiro, o signo linguagem neutra é associado não somente à
imagem de estupro da língua portuguesa, mas também é
caracterizado como excrescência. Seguindo a mesma toada, no
segundo comentário, além de incorporada na imagem de estupro da
língua, a linguagem neutra é qualificada como um desvio.
Após esta seleção, defini algumas questões que guiariam uma
possível interpretação, a saber: (i) à luz da teoria bakhtiniana, por
que estas falas podem ser caracterizadas como grotescas?;
(ii) como elas podem ser compreendidas a partir do conceito
desenvolvido por Bakhtin?; (iii) qual concepção de língua e
linguagem que está por trás desse tipo de valoração do signo
linguagem neutra?
À luz da leitura do quinto capítulo da obra A cultura popular na
Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, trago a
compreensão bakhtiniana da estética grotesca como mote para
compreender o porquê de estes dois enunciados serem, por mim,
qualificados como grotescos.
A imagem exagerada, hiperbólica e ambivalente que deforma e
satiriza o corpo oficial, tem suas origens no imaginário popular: na
festa, no folclore e no carnaval. Em Gargantua e Pantagruel, Rabelais
incorpora e complexifica a ideia do corpo humano e seu valor
cultural. Ao construir imagens em que os limites corporais se
confundem com os limites do mundo, imagens que não somente
satirizam através do exagero, mas que colocam em diálogo o que é
considerado oficial e o que é cotidiano, o escritor francês assimila,
em sua obra literária, elementos da cultura e da realidade histórica
em que viveu.
Um dos aspectos fundamentais do estilo grotesco é justamente seu
teor ambivalente, que quebra e redefine o corpo humano. Bakhtin
(1987, p.270) caracteriza esta dinâmica como o [...] aspecto
topográfico essencial da hierarquia corporal às avessas. Tendo isso
em mente, nas falas selecionadas, a relação avessa entre alto e baixo

310
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

corporal é evidente, pois a língua e a linguagem são comumente


associadas à cabeça que pensa e à boca que fala, enquanto o ato de
estuprar remete aos órgãos genitais. A linguagem neutra, portanto,
é valorada nestes dois comentários como uma violação e um crime
cometido contra o corpo da Língua Portuguesa. Transpõe-se ao alto
corporal elementos do baixo e, nessa transposição, é reforçada a
imagem da violência que permeia os sentidos da palavra estupro.
Diante do exposto, pergunto-me ainda: o que há por trás dessas falas?
De que Língua Portuguesa esses comentários falam?
É inegável que este tipo de afirmação está diretamente ligado a uma
compreensão de língua – e de linguagem – específica e bastante
difundida em território brasileiro: a concepção de que a língua se
constitui como um sistema de regras pronto e imutável que deve
ser apreendido pelos indivíduos. Dentro dessa perspectiva, à escola
caberia o papel de apresentar essas regras arbitrárias aos alunos, os
quais, simplesmente, devem aceitar e assimilar (VOLÓCHINOV,
2018, p.157) esta gramática como correta e única. Nessa esteira,
qualquer mudança ou variação da língua é preconceituosamente
taxada como erro e deturpação.
Assim, finalizo esta reflexão, com a conclusão de que a linguagem
neutra, ao fugir da norma gramatical vigente e a questionar, acaba
sendo valorada – por aqueles que compreendem a língua como um
objeto estanque – como uma violência e como uma violação. Essa
valoração é traduzida em uma imagem que emerge na
contemporaneidade como uma manifestação grotesca.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
HUCITEC, 1987.

311
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, Mikhail. Os Gêneros do Discurso. In: Estética da criação


verbal. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
PINHEIRO, Larissa Roberta Rosa. Linguagem neutra: a
reestruturação do gênero no Português brasileiro frente às
mudanças sociais.30 f; Trabalho de Conclusão de Curso
(Licenciatura em Letras Português) – Universidade de Brasília,
2020. Disponível em: <https://bdm.unb.br/handle/10483/28202>.
Acesso em: 06 Set. 2021.
TIHANOV, Galin. A importância do grotesco. Bakhtiniana, São
Paulo, v.7, n.2, p. 166-180, Jul./Dez. 2012.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

312
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A Literatura dialogando com as Vozes Infantis em sua dimensão


alteritária e humanizadora

Islen Barbosa Ramos Machado


Colégio Pedro II
islenmachado@gmail.com

Trago para essa roda as vozes dos meus alunos do terceiro ano do
ensino fundamental, de uma escola pública do município do Rio
de Janeiro, crianças de 8 e 9 anos que têm me enriquecido , temos
aprendido juntos sobre alfabetização dialógica e
a pedagogia antirracista . Suas vozes se agigantam diante do
cenário grotesco que estamos vivenciando. Olhar nossas
humanidades nos aproxima e também nos desloca.
Fomos surpreendidos em 2020 com o Coronavírus e devido a isso
as escolas foram fechadas e de uma hora para outra fomos
obrigados a conhecer os diversos recursos tecnológicos na
tentativa desesperada de ensinar conteúdos pedagógicos as
crianças que ficaram isoladas em casa, mais de um ano, poucas
tiveram acessos ao ensino remoto e muitos docentes precisaram
alfabetizar dentro do “ quadrado”, no entanto a alfabetização não
acontece dentro de nenhuma forma geométrica, a alfabetização
circula e movimenta cada sujeito em suas relações dialógicas.
A alfabetização é atravessada pelas escutas, interações e
interlocuções e no atual momento pandêmico em que muitas

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

escolas ainda estão no remoto, não está sendo possível alfabetizar


discursivamente o que tem afetado negativamente os sentidos
da alfabetização. Ficando muito claro o que Bakhtin fala do “ lugar
único no existir” dos professores, principalmente do alfabetizador
, esse LUGAR não pode ser negociado e substituido
por atividades remotas , sequenciadas e nem pelas maquinarias
tecnológicas.
Alfabetização precisa das mãos, dos olhos, das palavras , das
entrelinhas , da corporeidade. As janelas da alfabetização são bem
maiores e não se limitam aos minúsculos quadrados de plataformas
que silenciam as vozes e a infância , mas ainda assim a criança
negocia jeitos de burlar esses “ quadrados”. Ativando o microfone
e câmera para tentar interagir com a professora e os colegas ,
quando também tenta mostrar um desenho que fez, contar uma
novidade ou até falar que o pai está com “Coronavírus”.
A criança também desativa o microfone e câmera ao perceber que
sua voz não está sendo escutada responsivamente e que não há
“conexão” embora sua subjetividade “ grite”, os pequenos
quadrados não dão conta de seus gigantes enunciados. É um
espaço de subversões que revelam sua autonomia.
A criança dentro das telas se “aparelham” ficando limitadas em
seus discursos externos , existe um buraco dialógico em suas falas
e réplicas. *
Meus alunos da escola pública durante um ano não tiveram acesso
ao remoto, mas meu filho que estuda no ensino particular esteve
todo o período tendo aulas remotas, mas não sobrava tempo
para as interações, escutas, diálogos, a preocupação era
conteúdista, a professora precisava “dar conta” do currículo que
não foi pensado e nem adaptado à uma situação pandêmica em
que os governantes subalternizam o dizer das crianças.
Essa situação me levou a revisitar algumas leituras e lembrar da
escritora Spivak, em seu livro “ Pode subalterno pode falar?”
Quando critica os discursos hegemônicos e os detentores de saber

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que silenciam os sujeitos que são considerados sem direitos na


sociedade, e grotescamente marginalizamos as vozes
infantis, que etimologicamente significa “Infante” , enquadrando
a criança ainda hoje nesse lugar de não fala, sem voz ,
desrespeitamos suas vivências e existências.
Presenciei nesse período remoto, essas vozes silenciadas pelo “
outro/s” que fala por elas , usando a palavra “reivenção” com um
único sentido, de opressão colocando o docente como o
principal responsável pela aprendizagem do aluno, roubando a
autonomia de sua prática educativa e de suas palavras, já
que há uma inter-relação sócio- hierárquica ( Volóchinov, p. 280) e
empacotadas, prontas para despachar nos alunos .
Paulo Freire dialoga com Bakhtin sobre essa prática bancária e a
não sujeitação do aluno diante desse “eu” individual, singular,
único, que pensa sozinho, mas imbricado pela multiplicidade de
vozes, entende que “ tudo é um ato , também o fazer pedagógico ,
pensamento e o sentimento.
É no convívio social que a criança expressa vivência e o seu corpo
reage a situação de acontecimento que é a “realização efetiva , na
vida real, das diferentes formações ou variedades da comunicação
social.” ( Volóchinov, p. 264 ).
Entendo que as reações orgânicas ficam limitadas no olhar de quem
está atrás das telas e não em quem está sentido, quando não há
interações entre o falante e o ouvinte, aqui especificamente, o
falante é a criança e o ouvinte o professor, que também exerce esse
relação que o silencia , mas também é silenciado .
Crianças sem interação física há mais de um ano retornando ao
sociedade expressando reações orgânicas alteradas, Volóchinov
nos ajuda a pensar a relação da linguagem com a vida social e seus
reflexos comunicativos no processo de desenvolvimento em que
podemos entender os discursos externos e internos das crianças
que são doloridos e cheios de subjetividades. São fluxos de

315
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

acontecimentos que refletem de suas vivências com o luto, as


brigas domésticas, a falta da comida, a ausência dos afetos , do
acolhimento e das oportunidades. O grotesco desmascara as
desigualdades sociais e os discursos ideológicos das autoridades
políticas, quando espalha pelas mídias de que “ Todos estamos no
mesmo barco”. Com certeza são enunciados maquiados por um
presidente que também gritou que “ é só uma gripezinha”. São
muita as situações em que faltam as nossas palavras. Acontece de
gotejar enunciados na consciência na parte inferior da
camada, que é o local das vivências , pensamentos e palavras
ocasionais , confusas e pouco desenvolvidas produzem vazios no
ouvinte dificultando a comunicação discursiva.
“ Nunca poderemos compreender a construção de um enunciado (
por mais autônomo e finalizado que ele nos pareça) sem considerar
que ele é só um momento, uma gota no fluxo da comunicação
discursiva, tão ininterrupto quanto a própria vida social e a própria
história.” (Volóchinov, 2019, p.266)
Ao tentar escrever esse texto para a roda Bakhtiniana lembrei do
que Volóchinov cita no livro “ A palavra na vida e a palavra na
poesia” sobre o estado do escritor quando inicia suas escritas, os
desafios provocados por elas, ao ponto de ser chamada essa de
”tormento da palavra” .
Confesso que me identifiquei com esse pensamento porque é assim
que me senti ao começar essa escrita, olhei para as páginas em
branco com ideias no pensamento, mas veio essa “tormenta da falta
e impotência das palavras“ para expressar não de maneira confusa e
vazia os enunciados dos alunos e suas vozes.
Talvez manifeste aqui no texto essa minha impotência diante das
falas potentes das crianças nas rodas em sala de aula ,
principalmente ao ler o livro “ O pequeno Príncipe Preto, do autor
Rodrigo França.
Assim como fui ( sou o tempo todo) alterada na relação das
crianças com a leitura do gênero discursivo, trago essas vozes ,

316
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

entendendo que o outro está sempre presente e falante nas


interações dialógicas .
“ O orador que ouve apenas a própria voz ou o professor que vê
apenas as próprias anotações é um orador ou professor ruim. Eles
mesmos paralisam a força de seus enunciados e destroem a relação
viva e dialógica.” (Volóchinov, 2011,p. 274)

ANÁLISE POLIFÔNICA NA LEITURA DO LIVRO : O PEQUENO


PRÍNCIPE PRETO – (RODRIGO FRANÇA)

As vozes chegaram antes mesmo de abrir o livro e começar a leitura, um


aluno olhou a capa e perguntou:

“Por que existe mais branco


“Por que é príncipe preto, né? do que preto nas histórias”.
Príncipe pode ser, mas preto!
É moreno!!!!

A resposta veio em seguida do colega:


Então o aluno insiste em sua réplica

“Ele não é preto, é


“Não tem nada a ver, não
moreno!!!! Preto não,
é racismo porque ele é
moreno !!!!! Preto é
preto”.
racismo”.
317
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nesse momento também perguntei:

“Fala pra mim histórias “A Bela adormecida, agora


com personagens brancos com negro é difícil. Eu nem
e pretos?” sabia que existia”.

Lendo o livro , conversamos sobre os termos e significados das palavras


Ubuntu, Baobá , Ancestralidade, nomes que não conheciam e prontamente
um aluno diz:

“ Ubuntu, Urubu!!!! É o nome


de um animal.

Ficaram encantados quando pesquisamos a palavra Baobá e viram a


imagem pelo celular dessa árvore. O autor descreve os traços negróides e
compara brilhantemente os cabelos dos negros , seus black powers com a
“ Euseus
Baobá por ser alta e forte. Então as crianças reiniciaram conheço alguém
discursos que
sobre
esse padrão estético. tem a boca maior do que
um olho. O filme Lupi”
“ Eu já vi alguém com várias
bocas, igual têm umas que são
grandes, pequenas e médias.”

A aluna está se referindo ao ator principal que faz o personagem Lupi,


sendo o mesmo nome do filme.
“ Tia, o nosso nariz
“ A minha é menor.”
brilha , o dele não
( aluno branco)
porque ele é branco.”

318
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nesse momento , o autor fala que seu nariz é igual ao de batata e os


alunos acham engraçado.
Ao lermos sobre os cabelos dos negros, as meninas falam :

“ Falaram que meu


“ Eles me chamaram de
cabelo é de bombril, mas coisa pior , do nome lá
de baixo “.
eu não ligo.”

Então uma criança pede para ela falar no ouvido dela, e logo em seguida ela
diz:

“Foi de capeta tia!!!!” “ Os brancos me zoaram


muito, eram brancos. Falei
para minha mãe, mas eu não
falei tudo pra ela.
O racismo não deveria
Então a aluna segue em seu discurso e um aluno branco em resposta ao
enunciado repleto de reações orgânicas da colega,acontecer porque
levanta e escreve isso
no quadro
: machuca as pessoas.

“ Tia, eu quero
virar uma árvore
igual a Baobá.”

Bakhtin aposta na relação constitutiva entre o eu e o outro que de acordo com


Geraldi o espaço dessa constituição encontra-se na alteridade em que não há
educação, escutas, interlocução sem sermos alterados pelo outro.“ O diálogo

319
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

é a maneira criativa e produtiva do eu se aproximar com suas palavras às


palavras do outro.” ( 2010, p.14)

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução
de Valdemir Miotello e de Carlos Alberto Faraco São Carlos: Pedro
& João Editores, 2010.
Freitas, Maria Teresa. Educação, arte e vida em Bakhtin. Editora:
Autêntica, 2016.
Valentin, Volóchinov. A palavra na vida e a palavra na poesia.
Editora: 34, 2016.

320
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A LITERATURA INFANTIL NO PROGRAMA DE ENSINO DE


PORTUGUÊS DA 2ª CLASSE DE MOÇAMBIQUE: UMA
ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DA FILOSOFIA DA
LINGUAGEM

Micaela Sílvia Simão Fondo Covane


UNESP Marília
micaela.fondo@unesp.br

Introdução
É possível pensar o ensino da literatura infantil sob a perspectiva
da filosofia da linguagem, especialmente contemplando o aspecto
do dialogismo. O presente artigo irá focalizar-se sobre o caso de
Moçambique, compreendendo alguns enunciados escritos no
programa de ensino de português do ensino básico de 2ª classe, a
fim de nele entender a concepção da literatura infantil. Para o
efeito, será necessário, em primeiro lugar, situar geograficamente
Moçambique, depois argumentar a pertinência da filosofia da
linguagem para o estudo da literatura infantil, e, finalmente,
analisar o programa de ensino de português da 2ª classe do ponto
de vista da concepção da literatura infantil.
Situação geográfica de Moçambique
Moçambique como a maioria dos países africanos, é um país
multilingue e multicultural onde coexistem muitas línguas
africanas do grupo bantu com outras não africanas entre europeias
e asiáticas. Embora exista uma polémica relativamente ao número
de línguas bantu faladas em Moçambique, sabe-se que existe um
número de acima de vinte línguas, distribuídas por todo o território

321
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nacional. Dados do Recenseamento Geral da População realizado


em 2017 indicam que a população nacional é estimada em cerca de
30 milhões de habitantes.
Moçambique está situado na Costa Sudeste do Continente
Africano, tendo como limites a Leste o Oceano Índico, a Norte a
Tanzânia, o Malawi e a Zâmbia, a Oeste o Zimbabwe e a África do
Sul, e a Sul este último País é a Swazilândia. Moçambique possui
uma superfície total de 799 380 Km2, estende-se no sentido Norte-
Sul voltado para o Índico com que se confronta ao longo de 2515
Km de linha de costa. Estreitando de Norte para Sul, atinge a sua
largura máxima no Centro Norte, entre a Costa e a confluência dos
rios Aruângua e Zambeze e a menor a Sul, de apenas 47,5 Km, na
zona da Namaacha. Moçambique dispõe-se em anfiteatro a partir
da zona litoral, onde cerca de 40% do território com uma altitude
que varia do zero aos 200 metros, a que se segue, na região que
abrange as áreas de Cabo Delgado, de Nampula e interior de
Inhambane, uma zona de planaltos com altitudes entre os 200 a 600
metros, que se prolonga, entre Manica e Sofala, por uma região
mais elevada com altitudes que atingem os 1000 metros.
O nome Moçambique provém de Mussabin Mbiki, filho do sultão
Bin Mbiki, que habitou na Ilha de Moçambique na zona norte do
país, que até hoje preserva a língua e a cultura árabe na sua grande
parte da população que habita.
Com a chegada dos primeiros portugueses em 1498 a região foi
designada Moçambique que a após a independência se constituiu
como nação. Do ponto de vista administrativo, Moçambique tem
11 províncias, distribuídos em três zonas: Norte – Cabo Delgado,
Nampula e Niassa; Centro – Tete, Zambézia, Manica e Sofala; Sul –
Inhambane, Gaza, Maputo e Cidade de Maputo. A partir de 2013,
o país aumentou o número de distritos, isto é, de 128 passou para
154, em resposta às novas necessidades de descentralização. Isso se
pode afirmar em relação ao número de municípios, que se alargou
de 43 para 54 municípios, em 2013.

322
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A filosofia da linguagem para compreensão da literatura infantil


Nos últimos anos, a literatura infantil enriqueceu-se bastante com
os trabalhos valiosos da linguagem com o entendimento de que a
linguagem é uma actividade social, porque ela existe nas relações
humanas e constitutivas dos sujeitos. Por esse motivo, a linguagem
não pode ser neutra, pois carrega histórias e vida dos sujeitos.
Dessa forma, ela é meio, e ao mesmo tempo, instrumento que
proporciona a constituição do sujeito e insere a criança na cultura
humana.
É preciso afirmar que esta forma de conceber a linguagem surge
com Volóchinov (2017), ao criticar as correntes da sua época, por
um lado o subjectivismo idealista, e por outro, objectivismo
abstracto. Para esse autor, essas correntes são monológicas, na
medida em que a primeira, parte dá visão de que a consciência
individual constitui a fonte da linguagem, pois a “língua é uma
atividade, um processo ininterrupto de criação, realizado por meio
de atos discursivos individuais [...] (VOLÓCHINOV, 2017, p. 148)
e a segunda, ao contrário da primeira, postula que a “língua é um
sistema estável e imutável de formas linguísticas e normativas e
idênticas, encontrado previamente pela consciência individual e
indiscutível para ela (VOLÓCHINOV, 2017, p. 162). Assim,
Volóchinov (2017) procura superar essa dicotomia que esvazia a
compreensão da linguagem, propondo uma concepção dialética,
pois no seu estudo a linguagem é uma actividade da interacção
viva das forças sociais. Assim, a literatura infantil, pensada nos
termos da linguagem, na perspectiva volochinoviana, ela não pode
ser dissociada dos sujeitos que a produzem, ela é também uma
prática social.
Bakhtin (2011) reitera que o emprego da língua efetua-se em forma
de enunciados. No meu caso que trato da linguagem e
especialmente da literatura infantil no contexto escolar, é possível
afirmar que a aprendizagem se dá na interlocução do aluno com o
texto da literatura infantil que o professor leva para a sala de aula,

323
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

e não de outra forma. A linguagem é o único instrumento que faz a


mediação entre o aluno e a sua própria cultura através do texto da
literatura infantil, ademais proporciona o diálogo consistente com
o seu Outro nesse caso o autor do texto.
Para Bakhtin (2011), a única realidade concreta da linguagem é o
enunciado, pois carrega consigo todos os sentidos da vida, da
cultura humana, este por sua vez, podendo ser na forma escrita ou
oral. Considerando a literatura infantil também como enunciado
que exige do aluno leitor uma resposta, um ato dialógico, pode ser
oral e escrita, de qualquer modo, tanto uma como outra
desempenham um papel de extrema relevância na inserção da
criança no mundo da linguagem escrita. Na sala de aula, o
professor usa inevitavelmente as duas formas como a contação de
estórias e a escrita propriamente dita, ambas fazem parte do mesmo
objectivo que a literatura infantil pode e deve proporcionar, desde
que feito na perspectiva dialógica e humanizadora.
Concepções da Literatura Infantil nos programas de português da
2ª classe
Em primeiro lugar, é preciso mencionar que no programa da 2ª
classe resultante da revisão pontual do currículo do ensino básico
em vigor em Moçambique, o autor inicia o seu discurso fazendo
menção de histórias, fábulas, lengalengas, poemas que na verdade
são textos que resultam da invenção da INDE/MINEDH, órgão
responsável desses materias. Além disso, também o programa da
2ª classe apresenta uma lista de obras recomendadas de leitura
obrigatória e complementar. Nessa lista, estão duas obras de
literatura infantil, de OUANA, Miguel: Os animais falam,
PEREIRA, Maria Vitória: A borboleta do arco-íris, o que me permite
reafirmar que há nos programas de ensino apenas a menção da
literatura infantil. Indo à análise dos enunciados presentes no
programa em questão, cabe dizer que, um deles mostra a concepção
que se tem sobre a literatura infantil.
-Ler imagem, frasese pequenas histórias;

324
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

-Relacionar imagenscom letras, palavrase frases;

• Para o desenvolvimento da expressão oral, tal como na 1ª c


lasse, propõem-se também, as seguintes actividades: narrar
pequenas
histórias com base nas imagens;recontar pequenas história
souvidas ou lidas; recitar poemas(INDE/MINEDH, 2015,
p.44 e 103).

É possivel compreender dos enunciados do autor do programa de


ensino que para ele a literatura infantil não desempenha a funçao
humanizadora e nem proporciona o dialogo na perspectiva dos
filosofos da linguagem, pois coloca a literatura infantil como ponte
para desenvolver a expressão oral no aluno baseando-se nos
princípios linguística que valoriza a língua como sinal e não a
linguagem como prática social que valoriza o enunciado como
dialogico e que exige dos sujeitos uma resposta.
Nessa mesma direcção, Linden (2018) tem um respaldo na visão
da linguagemcomo uma actividade dialógica, pois é constituida
por vária vozes sociais e varios enunciados que diaogam uns como
os outros. Assim, Bakhtin (1993), ao apontar que o homem é um
ser essencialmente social, historicamente concreto e definido e seu
discurso é plurilingue e não unilíngüe acredita que a
possibilidade dele de ler um texto plurilingue e bivocal aumenta, a
sua oportunidade de se constituir como sujeito responsivo
e dialogico no seu verdadeiro sentido, pois a literatura infantil é a
propria vida.

Para Volóchinov (2013), a função da linguagem na vida social é


complexa. Em outras palavras, em certo sentido ela é uma
superestrutura das relações sociais, no entanto, possui uma
“influência inversa sobre essas relações [...]”. Portanto, essa

325
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

condição impede que, sob qualquer forma, a linguagem seja vista


como um modelo que segue uma determinada ordem ou sequência
lógica. Entretanto, o INDE/MINEDH no programa de ensino
analisado associa o sentido de um texto de literatura infantil ao
ordenamento das ideias como enunciados isolados ou ligados
mecanicamente, ao afirmar
-Reconta, oralmente, histórias lidas ou ouvidas, tendo em conta a
sequência lógica e o conteúdo do texto original, usando as suas
próprias palavras;
-Numera as frases de acordo com a ordem dos acontecimentos da
história (INDE/MINEDH, 2015-2018, p.9 e 156).

Nesses enunciados, há uma forte indicação de que é recontando,


tendo uma sequência lógica, o conteúdo de um texto, numerando
as frases de acordo com a ordem de acontecimentos da história, que
o aluno constrói o sentido a partir do texto que lê, pois embora
tenham admitido que o aluno use “as suas palavras” deixaram
claro que um texto história se constitui no encadeamento de
palavras soltas.
Na minha posição de pesquisadora que assume a perspectiva
dialógica da linguagem e entendo o enunciado como elo de uma
multiplicidade de vozes sociais, o sentido de um texto literário não
se resume no seu material linguístico verbalizado. Em outras
palavras, o texto literário na perspectiva da filosofia da linguagem
não se subordina exclusivamente ao material linguístico verbal
como um código, pois se constitui nas relações sociais e nele há
vidas, que falam e que ouvem.
Conclusão
Conforme proposto, minha preocupação com o modo como se
apresenta a literatura infantil e a leitura no Ensino Básico em
Moçambique conduziu a escolha do tema. Assim, entendi, a partir
dos discursos analisados, que a visão da literatura infantil é

326
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

reducionista, embora se faça referência à existência da literatura


infantil, na verdade ela não se materializa. Os enunciados
propostos não levam à inserção cultural dos alunos porque se
limitam ao ensino da gramática, frases soltas e silabas isolada,
desvinculando a literatura infantil do seu carácter, social, cultural
e humanizadora.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal, 1ª ed. São Paulo: wmf
martinsfontes, 2011.
INDE/MINEDH, Programas das Disciplinas do 1º Ciclo do Ensino
Primário, Moçambique, 2015.
LINDEN, S.V.D. Para ler o livro ilustrado, 1ª ed. São Paulo: SESI-
SP, 2018.
VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros
ensaios, São Carlos: Pedro& João, 2013. VOLÓCHINOV, V.
N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: editora
34, 2017.
ZILBERMAN, R. A. Literatura Infantil na Escola, 11ª edição, São
Paulo, 2003.

327
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A MORTE E SUAS VOZES: INUMERÁVEIS


SINGULARIDADES

Victória Louise de Paula Santos Carminatti


Universidade Federal da Fronteira Sul
carminattii.victoria@gmail.com

Para Bakhtin (2020) somos sujeitos singulares, irrepetíveis e únicos,


com vidas, contextos e relações igualmente singulares. Mas todo
sujeito é igual em uma certeza, a morte (PONZIO, 2020). A morte,
por sua vez, também será única e irrepetível para cada sujeito em
sua singularidade. Nenhuma morte será igual, mesmo que seja pela
mesma doença, pela mesma causa, no mesmo local e na mesma
hora. A morte pode ser brutal ou não, mas ela é grotesca, pois faz
parte da vida. A vida é uma realidade grotesca, enquanto uns
morrem, outros nascem, enquanto vozes deixam de ecoar, novas
vozes surgem chorando, “[...] quando se elimina e se rejeita o velho
corpo que morre, corta-se ao mesmo tempo o cordão umbilical do
corpo novo e jovem. Trata-se de um único e mesmo tempo ato”
(BAKHTIN, 2008, p. 179).
Chico Buarque, a partir da música “Construção” de 1971, vai tratar
da singularidade de um sujeito, do grotesco em sua realidade e sua
morte. Com outro gênero do discurso, utilizei a fotografia[1],
encanando essa imagem grotesca que se formou em mim com a
história contada na canção de Buarque. Em um exercício de
alteridade, interagindo com as palavras, os signos e as vozes, fui
primeiro até o músico, no lugar dele de um narrador-observador,

328
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

lugar de quem observa o realismo grotesco e se incomoda. Depois


fui ao personagem, lugar de quem sente na pele o suor do trabalho,
de quem sofre o grotesco.

Amou daquela vez como se fosse


a
E atravessou a rua com seu passo tímido

última
Beijou sua mulher como se fosse a
última
E cada filho seu como se fosse o único

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Subiu a construção como se fosse máquina


Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Seus olhos embotados de cimento e lágrima


Sentou pra descansar como se fosse sábado

331
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe


Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música

332
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado


E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido Agonizou no


meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego (BUARQUE[2])

Quando voltei a mim modificada, construí novas compreensões


sobre a imagem de um homem que amou, beijou, atravessou,
subiu, ergueu, sentou, comeu, bebeu, soluçou, dançou, gargalhou,

333
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tropeçou, flutuou, se acabou, agonizou e morreu. Um homem que


age como uma peça dessa grande máquina do capital, um homem
que talvez saiba (ou não) que sua angustia é causada por um
sistema falho e desigual. Um homem que se sente substituível, que
acredita que não é único e sim descartável, pois o discurso
cristalizado na sociedade o fez acreditar nisso. Porque a
substituição constante do recente faz com que seja fácil acreditar
nessa ideologia do mundo global, em que somos mesmo
substituíveis (GERALDI, 2010). Essas mesmas vozes afirmam que
as mortes que são numeradas constantemente são apenas números,
quando na verdade são perdas inumeráveis, são vidas que não
voltam mais, são perdas de sujeitos únicos, irrepetíveis e
insubstituíveis em suas singularidades.
Na realidade contemporânea, em meio à pandemia do Covid-19, a
morte parece estar banalizada, assim como a violência, a pobreza e
a desigualdade. Não é incomum ouvir que “hoje tivemos só mais
uma morte”. Perdemos a capacidade de nos surpreender
(GERALDI, 2010), paramos de nos importar, de nos assustar, de
sentir. Sem importância, a interrupção de uma vida é transformada
em um número, em estatísticas alienadas. Hoje, no dia 07 de
setembro de 2021, as mortes por Coronavírus estão registrados em
“584 mil (+182)” no painel virtual criado pelo Ministério da Saúde
(BRASIL, 2021). Mas, somente porque a morte é uma certeza
natural não quer dizer que é trivial. Como afirma o poeta Braúlio
Bessa no poema “Inumeráveis”, transformado em canção por
Chico Cesar, esses “números frios” são na verdade “nomes”. São
mais de 584 mil existências únicas e singulares que perdemos no
Brasil, são mais de 584 mil nomes com sobrenomes, são mais de 584
mil pessoas que pararam de sonhar. “O X da questão talvez seja
amar” (BESSA, 2020[3]), deixar de ser indiferente, mostrar o quanto
se sente, modificar o discurso vigente.

334
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. A cultura popular na Idade Média
e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara
Frateschi. São Paulo: Hucitec/Brasília, 2008.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Para uma filosofa do Ato
Responsável. Tradução: Valdemir Miotello, Carlos Alberto Faraco.
São Carlos: Pedro e João Editores, 2020.
BRASIL. Ministério da Saúde. Painel Coronavírus. Atualizado em 07
set. 2021. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 07
set. 2021.
CARVALHO, Lívia. Leia na íntegra o poema "Inumeráveis", do
cordelista cearense Bráulio Bessa. Diário do Nordeste, 24 maio 2020.
Disponível em:
https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/leia-na-
integra-o-poema-inumeraveis-do-cordelista-cearense-braulio-
bessa-1.2248744. Acesso em: 07 set. 2021.
GERALDI, João Wanderley. Linguagem e máscaras identitárias,
exigências para inserção no mundo global. In: GERALDI, João
Wanderley. Ancoragens: Estudos Bakhtinianos. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2010. p. 147-166.
LETRAS. Construção – Chico Buarque. Disponível em:
https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45124/. Acesso em: 07
set. 2021.
PONZIO, Augusto. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo.
In: BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Para uma filosofa do Ato
Responsável. Tradução: Valdemir Miotello, Carlos Alberto Faraco.
São Carlos: Pedro e João Editores, 2020. p. 9-38.

[1] Todas as fotografias utilizadas neste trabalho são autorais.


[2] LETRAS, online.

335
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[3] In: CARVALHO, Lívia. Leia na íntegra o poema "Inumeráveis",


do cordelista cearense Bráulio Bessa. Diário do Nordeste, 24 maio
2020. Disponível em:
https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/leia-na-
integra-o-poema-inumeraveis-do-cordelista-cearense-braulio-
bessa-1.2248744. Acesso em: 07 set. 2021.

336
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A SEMÂNTICA DO “NOVO” (E DO “VELHO”): ANOTAÇÕES


SOBRE UM MUNDO DESIGUAL

Nathan Bastos de Souza


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)/Doutorando em
Linguística
nathanbastos600@gmail.com

“Para quem tem uma boa posição social,


falar de comida é coisa baixa.
É compreensível: eles já comeram”.
Bertold BRECHT

A linguagem nos ensina que cada experiência nova do mundo


biossocial exige nomes novos para designar os objetos
recentemente criados. É assim que a morfologia da formação de
palavras funciona, uma vez que inexiste palavra suficiente para
referir no léxico, cria-se item novo. Esse processo pode redundar
em criação inteiramente inédita no léxico da língua, assim como
modificar significados já existentes. Com o advento da pandemia
de Covid-19, o léxico do português (e de todas as línguas)
aumentou para poder designar essa doença e tudo que ela
representa na sociedade.
Não trataremos, neste texto, da formação de novas palavras
relacionadas ao coronavírus, mas sobre os sentidos de algumas

337
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

expressões de novidade: “novo coronavírus”, “novo normal”,


“nova normalidade”, “nova variante”. Desse modo, o objetivo
deste ensaio é refletir sobre a semântica do “novo” e do “velho”,
como significados gêmeos, inseparáveis.
Inicialmente, vamos refletir sobre a frequência com que, apesar de
já haver passado mais que um ano do advento da pandemia, ainda
ouvimos a expressão “novo coronavírus”. Dado o primeiro
momento, entre o final de 2019 e o começo de 2020, a sociedade
ainda não conhecia o vírus, naquele contexto, nomear como “nova”
essa variante amplamente contagiosa do SARS-CoV-2 era
necessário.
Os jornalistas deram inúmeras explicações relativas a essa
“novidade” do vírus da Covid-19. Em boa parte desses textos
didáticos pensados para dar ciência à sociedade, comentava-se que
se esse vírus é “novo”, havia outros vírus “velhos”, por assim dizer,
já conhecidos pelos cientistas. Quando se batizou como SARS-CoV-
2 a esse coronavírus de potencial pandêmico já se sabia da
existência de outros sete tipos, alguns deles erradicados no mundo,
nenhum deles causou tantas mortes como essa variedade.
O SARS-CoV-2, depois que se espalhou da China, em final de 2019,
passou a exigir espaço nos noticiários. De lá para cá, a compreensão
da sociedade sobre o perigo do contágio e o risco de morte
aumentaram, mesmo que muitos ainda considerem que o
isolamento social, o uso de máscaras e mesmo a vacinação não
surtem efeitos. O surgimento do “novo coronavírus” traz consigo
uma situação de emergência sanitária globalmente experimentada.
Em março de 2020 assistimos às notícias dos primeiros casos no
Brasil, ainda agora, em setembro de 2021, estamos ainda
amargando os efeitos terríveis das perdas humanas. Em um país
em que nem mesmo o presidente se importa com nossas vidas,
enfrentar as formas do “novo normal” é uma tarefa de importância
capital, estar vivo é uma maneira de resistir. Os gastos em saúde
pública foram congelados politicamente há algum tempo, nas

338
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

condições materiais do país, sucumbimos dia após dia a mortes na


casa dos mil, dois mil, três mil, até, quem sabe mais.
Com a chegada do vírus e a instabilidade que gerou, assistimos aos
primeiros momentos de quando se popularizou a expressão “novo
normal” ou “nova normalidade”. Com isso, nosso círculo social foi
se reduzindo ao mínimo, no início de uma “quarentena”
obrigatória que nos proporcionaria um “achatamento da curva” de
contágios e consequentemente menos mortes ocasionadas pela
Covid-19. Em certo momento, ainda no começo de nossa
compreensão sobre o que era essa enfermidade, o uso de máscaras
de proteção se tornou obrigatório, dessa maneira, até mesmo a
estética de nossos rostos foi se adaptando a estar “semicoberta”, a
uma “nova” forma de ser.
Essa semântica da novidade parece em si instaurar uma
anterioridade em relação a que se diferencia. Destarte, haveria um
“velho normal”, um “antigo normal” em contraponto a esse
“novo”. A expressão “novo normal” coloca em circulação uma
oposição fundamental entre as urgências e o que pode ser visto
como ultrapassado ou insuficiente para os problemas do agora.
Em seu estudo sobre a obra de Rabelais, Bakhtin (2013) explica a
imagem grotesca a partir de dois de seus aspectos fundamentais: a
atitude em relação ao tempo e a ambivalência. Nas palavras do
autor:
A imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de
transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da
morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. A atitude em
relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo (determinante)
indispensável do primeiro, é sua ambivalência: os dois polos da
mudança – o antigo e o novo, o que morre e o que nasce, o princípio
e o fim da metamorfose – são expressados (ou esboçados) em uma
ou outra forma (BAKHTIN, 2013, p. 21-22).
Na perspectiva bakhtiniana, então, uma imagem grotesca é essa
que contenha um estado de transformação. Assim, em um só signo

339
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

se lê a morte e o nascimento, o antigo e o novo, o mesmo e o


diferente no mesmo lugar. Toda vez que se escuta “novo normal”,
nos referimos indiretamente ao passado, a um momento antes que
nos lembramos com certa carga de saudade. Quando se ouve “novo
normal” estamos, de algum modo, saudosos do “antigo normal”.
Os dois sentidos são gêmeos, não se pode dividir uma semântica
do novo de uma semântica do antigo, do anterior. Mesmo que não
materializado discursivamente esse “velho normal”, como
contraposição essencial para um “novo normal”, lê-se o “velho” no
“novo”, um empresta sentido ao outro.
Comparada às fases do grotesco, a semântica do “novo” e do
“velho” se mantém em uma fase primária de falta de separação. A
determinação do sentido do “novo” só se dá quando é possível
recuperar um “velho”. Por mais que não tenhamos, hoje, uma
ênfase social ou mesmo a circulação de discursos que reforcem a
existência de um “antigo normal/velho normal”, uma “velha
normalidade”, nem mesmo a menção às variantes já erradicadas de
vírus do tipo corona que circularam antes como “velhos
coronavírus”, etc; referir o “novo” – nas expressões de novidade
objeto de interesse aqui – é também referir o “velho”. Nessa
perspectiva, “velho” e “novo” são as formas de uma mesma
semântica relacionada à pandemia e a experiência socialmente
compartilhada a seu respeito.
Com o descontrole sanitário dos contágios, como aconteceu no
Brasil em começo de 2021, quando atingimos o cenário mais triste
e desolador em números diários de falecimentos, houve o
surgimento das chamadas “novas variantes de coronavírus” ou
simplesmente “novas variantes”, com a elipse do nome do vírus.
Entre fevereiro e julho de 2021 assistimos a profusão de um sem
número de variantes “novas” do vírus.
Nesse diapasão, o uso de “nova variante” em lugar de “nova
variante de coronavírus” nos permite compreender um período de
conhecimento tácito sobre o assunto da pandemia. Quando se

340
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

menciona uma “nova variante”, já não mais se faz referência


obrigatória à cepa de coronavírus que tornou a Covid-19 uma
doença de grau pandêmico. Não é preciso dizer a “velha variante”,
mas se referir a uma “nova variante” é suficiente para ativar os
conhecimentos sobre a linguagem e sobre a pandemia que temos
para identificar o elemento em elipse na expressão.
Expressões como “nova variante” e outras, como “novo
coronavírus”, “novo normal”, “nova normalidade”, vem com essa
sina de remeterem ao passado e não conseguiram romper esse
cordão umbilical com o anterior. Essas peças lexicais, portanto, são
ambivalentes, porque em sua emergência se dão pelos menos dois
sentidos acoplados um ao outro, inseparáveis.
Nossa aproximação com a metáfora das velhas grávidas nos leva a
ponderar até que ponto essas expressões da semântica da novidade
conseguem se desvencilhar do “mundo velho” e anterior no qual
foram gestadas. Bakhtin (2013) explica a divisão fatal entre o corpo
velho e o corpo novo, ambivalentes em seu encontro, da seguinte
maneira:
O mundo bicorporal que dá a vida ao morrer. Quando se elimina e
se rejeita o velho corpo que morre, corta-se ao mesmo tempo o
cordão umbilical do corpo novo e jovem. Trata-se de um único e
mesmo ato. [...] Todo golpe dado ao mundo velho ajuda o
nascimento do novo; é uma espécie de cesariana que é fatal para a
mãe, mas faz nascer a criança (BAKHTIN, 2013, p. 179).

Diferente desse parto fatal do novo, que separa e mata o velho em


seu favor – como na literatura carnavalizada de Rabelais – aqui as
ideias que circundam a semântica do “novo” não se desvencilham
da placenta da parturiente forma antiga. Um “novo normal”
sempre enredado ao cordão umbilical do “velho normal”, contra o
qual se contrapõe para significar.

341
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Mesmo sem que haja necessidade, a cada apariação do “novo


normal” ou da “nova variante”, da alusão às formas análogas do
“velho”, esse gérmen de sentido se encontra lá. O parto desse
“mundo novo” no qual atua o “novo normal” não se deu
completamente, o cordão umbilical uma vez que não foi cortado
não erradicou a golpes o velho, como acontece em Rabelais. A
matriz significativa do “mundo novo” é bicorporal porque exprime
em um só corpo sígnico esses dois sentidos, internamente
contraditórios. Dito de outro modo, toda ode ao “novo normal”
recupera um “velho normal”, considerado antiquado, superado,
mas presente.
Podemos concluir que o funcionamento dessa semântica do novo
contraria o pressuposto do parto fatal para a mãe, tal como
explicitado em Bakhtin (2013). O signo “novo normal” e outros
dessa semântica da novidade remetem, inevitavelmente, ao “velho
normal”. O “novo” ao se discursivizar nessas expressões
relacionadas à pandemia não matou no parto ao “velho”. O
“mundo novo” nascente ainda é parte do “velho mundo”,
decrépito.
Resta dizer, por fim, que a semântica do novo é amplamente
rejeitada em relação ao que significam, na prática, o surgimento no
discurso político e econômico no Brasil. O “novo normal”
designou, para amplos setores sociais, um retorno às atividades
anteriores ao advento do vírus ainda sem as condições sanitárias
para evitar contágios e mortes.
Em outras palavras, a semântica da novidade não se prestou
apenas à compreensão do mundo pandêmico, o que lhe
emprestaria valores positivos. Serviu, também, para justificar que
alguns poderiam trabalhar de casa, enquanto outros seriam
obrigados à aglomeração no transporte público; para dividir as
vidas que importam (ou não) ser mantidas; para saber aqueles que
podem se manifestar no ar condicionado dos carros importados

342
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

por um mundo com mais privilégios (e armas!) e aqueles que


precisam por feijão no prato de uma família pobre.
Enfim, a semântica da novidade serviu para cortar: aqueles que a
adota(ra)m e a usa(ra)m sem nenhuma ressalva e com orgulho são,
obviamente, os mesmos que enriqueceram na pandemia, à custa do
trabalho precário de outros tantos expostos ao risco da doença.
Falar de comida, retomando Bertold Brecht na epígrafe deste
ensaio, é supérfluo para quem já comeu, para os que têm fome não.
Por isso, melhor nos posicionarmos junto daqueles que preferem
“feijão” a “fuzil”.

Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de financiamento 001.

Referências
BAKHTIN, M.M. A cultura popular na idade média e no renascimento.
O contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira.
São Paulo: Hucitec, 2013.

343
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

LEITURA DIALÓGICA: UMA FORMA DE EXISTÊNCIA PARA


ALÉM DE SI

Ismael Soares Pereira


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
ismael.soares@ufrn.br

Há algo mais grotesco do que a situação da leitura em nosso país?


Quando soube que “O grotesco dos nossos tempos: vozes, ambientes e
horizontes” seria o tema do VIII Círculo – Rodas de Conversa Bakhtiniana,
ocorreu-me a ideia de refletir sobre algo que, há certo tempo, venho
perseguindo: a problemática da leitura, ou melhor, do direito à leitura.
Nada obstante, devemos ter em conta que, diferentemente do sentido
bakhtiniano do termo – o qual é empregado como uma forma de
resistência ao mundo oficial e hegemônico, como um meio de criar uma
atmosfera humanista e democrática de liberdade mediante o riso e a
carnavalização –, o grotesco a que me refiro, ao dificultar ou mesmo negar
aos cidadãos, principalmente os das classes subalternas, o direito de
acesso às práticas e aos bens socioculturais, não visa a outra coisa senão a
privá-los de um exercício pleno e consciente da cidadania.
Não tenho aqui a intenção de traçar um panorama histórico
detalhado da leitura no Brasil (seria muita pretensão de minha parte), mas
de, num primeiro momento, apresentar a visão por mim assumida; em
seguida, farei uma brevíssima caracterização de como anda essa questão
em nosso país; e, por fim, elencarei alguns encaminhamentos que, talvez,
possam nortear a tão almejada democratização da leitura. Para
desenvolver essas reflexões, ater-me-ei sobretudo à perspectiva dialógica
da linguagem do Círculo de Bakhtin.
Que é leitura, afinal? – é preciso responder isso, antes de tudo.
Não parto de uma posição ingênua que a vê como panaceia, um tipo de
remédio para a cura de todos os males da humanidade. Tampouco a vejo
como uma espécie de poder destrutivo que precisa ser controlado a todo
custo pelas instituições oficiais e estatais. Assim tentou fazer a igreja
durante toda a Idade Média e em boa parte da Idade Moderna, quando,
por deter a custódia dos manuscritos que eram copiados pelos clérigos,
assegurava um certo monopólio do conhecimento e, com isso, tinha
suficiente força para, além de impor as escrituras sagradas aos povos

344
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

colonizados no intuito de catequizá-los, decidir sobre o que podia ser lido.


Também o Estado, com apoio das classes hegemônicas, recorrendo a
inúmeras formas de censura de livros e de outros bens culturais
considerados subversivos aos chamados “valores tradicionais”,
principalmente se pensarmos no período da ditadura militar, tentou
assegurar esse controle; claro, ainda hoje, de forma mascarada (ou, talvez,
explícita), subsiste essa pretensa vontade de poder estatal sobre o privado,
que é vista, por exemplo, quando o Estado, valendo-se de sua autoridade,
prioriza o acesso a determinados bens e práticas culturais em detrimento
de outros. Não estou aqui a querer inventar teorias conspiratórias, todavia
é inegável que, diante da atual conjuntura política brasileira, podemos
enxergar por trás da superfície de muitas diretrizes que outrora visavam
a garantir a democratização do acesso ao livro, uma tentativa de
imposição desses valores considerados “tradicionais”, seja através do
veto, nas escolas, de livros didáticos e literários vistos como contrários a
tais valores, ou através do desmanche das políticas de incentivo à cultura,
sob o pretexto de falta de verba. Além do Estado, os interesses do capital
também exercem muita influência nas decisões sobre o que deve ou não
ser publicado e disseminado, ou melhor, sobre o que é viável ou não para
o consumo. Porque, ao asfixiar seu valor ético e enfatizar seu valor de
mercadoria, a isto o neoliberalismo tenta reduzir os livros: a meros
produtos de consumo.
É igualmente insensato pensar a leitura como um simples
processo de decodificação de textos escritos, o qual se daria por meio da
compreensão dos elementos abstratos e reiteráveis do sistema da língua.
Ancorado no pensamento bakhtiniano, proponho aqui considerá-la a
partir da eventicidade histórica dos sujeitos de linguagem no mundo
social, ou seja, como um acontecimento singular da comunicação
discursiva. Ler, nessa perspectiva, consiste em participar do diálogo
historicamente situado, e, através da compreensão responsiva,
posicionar-se ativamente em relação ao outro. Por ser um centro de valor,
um sujeito dotado de consciência própria, aquele que lê, não pode apenas
se colocar na posição de recepção passiva da palavra alheia; deve também
mostrar sua voz, responder, trazer para o texto lido a antipalavra, isto é, a
sua entonação expressiva carregada de apreciação valorativa. Resumindo,
sem antipalavra não há leitura. Escutemos Geraldi (2002, p. 6):

345
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Um leitor que não oferece às palavras lidas as suas contrapalavras, recusa


a experiência de leitura. É preciso vir carregado de palavras para o
diálogo com o texto. E essas palavras que carregamos multiplicam as
possibilidades de compreensões do texto (e do mundo) porque são
palavras que, sendo nossas, são de outros, e estão dispostas a receber,
hospedar e modificar-se face às novas palavras que o texto nos traz.

Do exposto, podemos inferir que, por um lado, o livro em si,


enquanto forma material esteticamente acabada, quando não aberto,
ocupa uma posição de fronteira, está entre o monumento morto e a cultura
viva, porque embora por trás do texto se possa ouvir as vozes dos sujeitos
concretos, fora da situação de interlocução essas vozes não passam de ecos
distantes e abafados que clamam pela escuta ativa do outro. Mas, por
outro lado, quando o abrimos e o lemos, o livro sai desse limbo, deixa esse
estado entre a morte e a vida e passa a integrar de vez o campo da cultura
humana. Em outras palavras: somente ao entrar no evento dialógico real
com o leitor o texto adquire sentido e é efetivamente (re)criado. Assim,
para Bakhtin (2018), autor e leitor participam igualmente da criação
artística; mesmo que o autor dê um acabamento estético à obra, os
sentidos ali presentes nunca permanecerão estáticos, mas sempre serão
renovados com a leitura dialógica, com a antipalvra do leitor. E diz mais:
“Um sentido atual não pertence a um (só) sentido mas tão somente a dois
sentidos que se encontraram e se contactaram. Não pode haver ‘sentido
em si’ – ele só existe para outro sentido, isto é, só existe com ele”
(BAKHTIN, 2011, p. 382). Na mesma direção, podemos afirmar, sem
dúvida, que a palavra concreta não vive nem na cabeça do autor nem na
do leitor, mas, sim, entre eles, na fronteira dessas duas consciências, pois
sem a interação com o outro não há palavra, não há posicionamento
axiológico.
Isso nos diz muito sobre a inevitável impressão de mudança que
temos toda vez que relemos um livro, como se cada página relida
trouxesse novos elementos, elementos esses que anteriormente escaparam
ao nosso olhar, quando na verdade o que aconteceu é que os sentidos se
atualizaram a partir desse encontro singular e irrepetível do leitor com a
obra (que ao ser lida assume o lugar do outro-para-mim). Se ler é orientar
meus atos responsivos e responsáveis em relação a outro centro de valor
espaçotemporalmente diferente de mim, quando leio eu ocupo um lugar
indivisível no diálogo, um lugar que ninguém além de mim pode ocupar,
de onde só eu posso dizer as minhas palavras com minha entonação e

346
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

minha posição axiológica. Obviamente, é possível reacentuá-las, mas aí as


palavras já não mais servem às minhas intenções, e, sim, às intenções do
outro que, revestindo-as com mais uma camada de fios socioideológicos,
as toma para si. A questão é que nessa troca dialógica eu não só me revelo
para o outro, e vice-versa, como também ao revelar-me eu me descubro,
me construo – em suma, nesse contato eu sou alterado pelo outro.
Portanto, a leitura, como toda relação dialógica, também não
prescinde do elemento axiológico. O plano axiológico está presente em
qualquer interação eu-outro e em qualquer campo da cultura humana. Eu
só sou porque vivencio axiologicamente minha vida em relação a um
outro, assumindo posições e negociando sentidos. Segundo Bakhtin (2011,
p. 51), “Eu mesmo não posso ser autor do meu próprio valor, da mesma
forma que não posso levantar-me pelos cabelos”. Ou seja: eu não basto a
mim mesmo como uma essência dada e pronta, mas necessito do outro,
do seu ativismo criador de valor – tanto quanto ele necessita de mim –,
para tornar-me, para construir-me, embora esse processo de construção
de mim mesmo permaneça eternamente inconcluso. Pois a vida é um
diálogo infindável e aberto que se renova constantemente no transcurso
do grande tempo. Além do mais, a linguagem de que nos valemos para
agir no mundo concreto não é um produto morto, monologicamente
isolado e acabado como o é a palavra dicionarizada (prenhe de significado
mas carente de sentido); é, isto sim: um fenômeno sócio-histórico
dinâmico que se dá entre sujeitos dotados de suas próprias visões de
mundo, ou, como diz Volóchinov (2018, p. 218-219), a linguagem viva é
um “acontecimento social da interação discursiva que ocorre por meio de
um ou de vários enunciados”.
Quanto ao cronotopo da leitura, isto é, a série espaçotemporal que
marca seu acontecimento pleno, pelo qual o sentido vital da obra se realiza
e se renova, Bakhtin (2018, p. 232-233) esclarece que este é formado por
uma complexa trama dialógica entre três cronotopos menores que são, a
um só tempo, diferentes e indissociáveis: o do mundo representado na
totalidade da obra, o do autor e o do leitor. A inseparabilidade entre essas
séries espaçotemporais, as quais constituem o mundo da representação
artística e o mundo real em que se encontram os criadores e os leitores da
obra, nos leva a conjecturar que esse complexo cronotopo da leitura –
essencialmente vinculado a diversas outras séries espaçotemporais
constituintes e constitutivas de nossa trajetória vital nas variadas esferas

347
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

da cultura humana – não deixa de exercer influência em nosso processo


eternamente inconcluso de vir a ser, de tornar-se. “Pelo que vivencie e
compreendi na arte, devo responder com a minha vida para que todo o
vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos”, disse
Bakhtin (2011, p. XXXIII). Sendo assim, não podemos ser ingênuos a ponto
de acreditar que vida e arte são campos dissociados, que existem isolados
um do outro. O artista, para criar uma obra estética, não pode
simplesmente desligar-se da vida cotidiana e adentrar em um novo
mundo (o da fantasia, do mito ou da imaginação), com seu tipo imanente
de linguagem. Pelo contrário, a arte nutre-se de tudo o quanto é prático e
corriqueiro; os elementos que constituem seu todo esteticamente acabado
vem não de outro lugar senão dos cronotopos do mundo concreto. Por
essa razão, ela não pode se eximir de sua parcela de responsabilidade e
culpa sobre a trivialidade que vigora na ideologia do cotidiano. Da mesma
forma, à medida que esta ideologia alimenta-se da arte, também ela torna-
se culpada pela qualidade da criação estética.
Em síntese, mesmo sendo mundos distintos, arte e vida
encontram-se numa permanente interação, onde a obra, com todos seus
elementos estéticos, ao entrar no mundo real por meio do contato entre
autor e leitor e realidade representada, enriquece esse mundo, assim como
o mundo real enriquece o mundo representado com seus cronotopos reais
ali refletidos. Estes mundos fronteiriços são, dessa forma, mutuamente
responsivos. Por isso, uma obra, independente do gênero, não pode ser
reduzida aos limites do texto escrito, ao mundo representado. Consiste,
na verdade, em um fenômeno do mundo externo (o mundo criador) e está
toda voltada para ele, para a interpretação ativa do leitor, e é por meio de
cada elemento representado axiologicamente em seu conteúdo que ela
participa da comunicação discursiva neste mundo criador.
Exposto o que entendo por leitura, detenhamo-nos agora na
situação do Brasil. Isto sim é grotesco! Segundo o IBGE (2019), temos hoje
mais de 11 milhões de brasileiros analfabetos – cerca de 7% da população.
Além disso, estima-se que quase metade da população do nosso país não
lê, e, dentre os leitores, as classes A e B são as que detêm os maiores
percentuais (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2020). Embora eu considere essas
definições, de leitor e não leitor, um tanto superficiais, uma vez que, a meu
ver, mesmo uma pessoa não alfabetizada pode, sim, ser considerada leitor
– repito, ler é interagir com o outro, é participar do diálogo, e não somente
decifrar a palavra escrita; a leitura do meio ideológico que me rodeia e me

348
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

constitui precede a leitura da palavra escrita –, esses dados não deixam de


ser preocupantes. E devemos questionar não apenas o porquê, mas
também refletir sobre como poderíamos contribuir para reverter tal
situação.
Penso que o desenvolvimento econômico de modo concomitante
com a redução das desigualdades sociais é uma condição essencial para
garantir o direito à leitura. Embora, desde muitos anos atrás, forças
centrífugas – como a imprensa de Gutenberg, inventada em meados do
século XV – venham desestabilizando a pretensão de um inquebrantável
controle sobre a cultura escrita, atualmente, forças centrípetas, como os
interesses do capital, têm agido na direção contrária. O alto preço cobrado
pelos livros, por exemplo, não os condena apenas a serem vistos como
mercadorias, mas como mercadorias de luxo, e assim os obriga a chegar a
pouquíssimas mãos, em geral, às mãos de pessoas economicamente
abastadas. Quando, neste caso, o que se espera do Estado é a criação de
estratégias político-econômicas para reduzir os preços e fazer com que a
cultura letrada possa estar à disposição de todos, o que se vê é exatamente
o contrário. Resolve-se a questão aumentando a tributação sobre esses
bens culturais, escancarando de vez o fosso que há muito existe entre as
classes hegemônicas e as subalternas. Pelo menos é isto que prevê o
Projeto de Lei 3887/20201: acabar com a isenção de impostos sobre os
livros, tributando sua venda em 12% – alíquota esta sugerida pelo governo
da nação brasileira para a Contribuição de Bens e Serviços (CBS), uma
espécie de imposto que visa à unificação dos tributos federais. Situação
grotesca essa!
Todavia, mesmo numa sociedade mais justa e igualitária, nem
todos irão adquirir o gosto pela leitura. Existem várias pessoas das classes
A e B que não têm familiaridade com os livros. Portanto, é necessário,
além disso, que se invista na melhoria da educação. Garantir o direito à
educação de qualidade é o primeiro passo a ser dado para que se possa
pensar em democratização da leitura. E falo não apenas de investir
recursos na educação formal – isto é, em escolas e universidade bem
estruturadas e equipadas com espaços e materiais de leitura os mais
diversos, além de um corpo docente e técnico capacitado, atualizado e

1Projeto de Lei em tramitação. Disponível em: https://www.camara.leg.br/


proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2258196

349
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

bem remunerado –, mas também de fornecer condições para que se tenha


uma digna educação para a vida, uma educação onde se toma consciência
do plano ético-axiológico interagindo nas diversas esferas da
comunicação social. Porque para viver dignamente e exercer a cidadania
plena é necessário aprender a se reconhecer como sujeito ético. E isso só
se alcança com a ajuda do outro, melhor dizendo, com a ajuda de tudo o
que é outro-para-mim; é esse outro-para-mim quem me possibilita tomar
consciência de mim mesmo, de me ver como um ser ético, historicamente
posicionado no mundo social. Como já disse, nenhum sujeito eticamente
responsável e responsivo à vida em sociedade se basta para si, mas só
existe e atua plenamente como cidadão quando se orienta para além si,
isto é, para a existência do outro. Assim, enquanto cidadãos conscientes
de nossa cidadania, temos o dever ético de sair da neutralidade e intervir
no mundo que nos cerca, posicionando-nos axiologicamente, levando ao
outro, que nos constitui e orienta todos os nosso atos sociais, a nossa
palavra.
Para que essa educação orientada para o mundo ético aconteça de
fato é preciso eliminar os muitos obstáculos que impedem nosso livre
caminho em direção ao outro-para-mim (jamais esquecendo que esse
outro também pode ser encontrado na cultura letrada). Dentre tais
empecilhos, temos desde os financeiros até a pouca familiaridade com as
ferramentas de acesso e com os espaços capazes de levar as pessoas a tecer
uma relação de proximidade com tais objetos. Por isso, considero
imprescindível que esforços também sejam dirigidos às bibliotecas, em
especial àquelas de caráter público (comunitárias, escolares e
universitárias). A partir do pensamento bakhtiniano, não consigo
enxergá-las de outra forma senão como territórios heterodiscursivos por
excelência, como cronotopos permeados pelas mais diversas experiências
culturais humanas, pelos mais diversos pontos de vista e vozes sociais que
almejam à escuta, ao embate discursivo. Cronotopos como esses –
principalmente por ser um dos poucos, nos dias de hoje, a se distanciar
dessa lógica neoliberal que só visa ao lucro, à produtividade e à pressa –
nos permitem desacelerar, encontrar um novo tempo e uma nova forma
de se relacionar com o outro. Enquanto passarelas que ligam o eu ao outro,
ali não é difícil experienciar um diálogo com alguém que desperte em nós
o interesse pela leitura, seja esse alguém um bibliotecário, um usuário ou
mesmo uma voz que, entre muitas outras que se encontram enfileiradas

350
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nas estantes, clama para ser ouvida, para encontrar outra voz com quem
possa conversar.
Gostaria de dar conclusibilidade a este enunciado e passar a
palavra para você que me lê evocando esta citação de Bakhtin (2011, p.
356): “A palavra, a palavra viva, indissociável do convívio dialógico, por
sua própria natureza que ser ouvida e respondida”. Nesses termos,
assumir a leitura sob a perspectiva dialógica pressupõe, acima de tudo,
confirmar que temos tanto o direito quanto o dever ético de existir para
além de nós mesmos. Porque a existência exige de nós uma participação
ativa (não neutra) no mundo social, sem, contudo, jamais deixar de
considerar as percepções e os pontos de vista alheios. Isso significa, como
vimos, que toda criação estética, enquanto representação da própria vida,
não apenas manifesta os mais diversos atos ético-axiológicos humanos,
mas o faz em relação a nós, direcionando-os a nós por meio de um diálogo
carregado de ativismo mútuo, enriquecedor – um ativismo que enriquece
não apenas os sentidos da obra como também os sentidos da nossa
humanidade.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. São Paulo:
Editora 34, 2018.
GERALDI, J. W. Leitura: uma oferta de contrapalavras. Educar, Curitiba, n. 20, p.
77-85, 2002. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-4060.265. Acesso em: 26
jun. 2021.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Continua). [São Paulo]:
IBGE, 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101736_informativo.pdf.
Acesso em: 06 set. 2021.
INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Retratos da leitura no Brasil. 5. ed. [S. l.]: INSTITUTO
PRÓ-LIVRO, 2020. Disponível em: https://prolivro.org.br/wp-
content/uploads/2020/09/5a_edicao_Retratos_da_Leitura_no_Brasil_IPL-
compactado.pdf. Acesso em: 06 set. 2021.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do
método sociológico na ciência da linguagem. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

351
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

352
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A SUBVERÇÃO/CARNAVALIZAÇÃO DA
RESPONSABILIDADE MORAL DO PRESIDENTE DA
REBÚBLICA

Paulo Everton Fernandes da Silva


UEPA-Universidade do Estado do Pará
pauloevertonf.d.s@gmail.com

O cargo máximo de poder que pode ser exercido no território


brasileiro é o de presidente da república, cabe ao pretendente ser
eleito de forma legítima e cumprir os requisitos instaurados na
Constituição de 1988. Além das inúmeras atribuições que está sobre
o chefe de estado, o presidente eleito deve, por coerência ao cargo
que possui, agir com responsabilidade moral para com toda a
nação. Isso implica diretamente com a postura que é adotada pelo
que exerce tal poder, ou seja, cabe ao Sr. Presidente da república
eleito prezar por um comportamento regido pelo cuidado e
responsabilidade (inclusive moral) para todos.
O Sr. Presidente da república, Jair Messias Bolsonaro, esboça um
comportamento totalmente subvertido aos que são próprios de seu
encargo. Ofensas, xingamentos e preconceitos são marcas
particulares de um governo que não preza pelo respeito com
mulheres, pobres, gays, entre outros. O que fica claro é que o
referido presidente não governa para todos, mas para alguns. As
falas irônicas, os discursos de ódio e a falta de sensibilidade com
vítimas da covid-19 compõem aquele que é aclamado (por alguns)
de “mito”.

353
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A subversão reside no fato de o referido presidente agir de modo


contrário ao que é esperado de um chefe de estado. O conceito de
carnavalização apresentado por Bakhtin traz a concepção de um
mundo invertido, isto é, um local onde a ordem natural das coisas
é corrompida, concordando com isso Fiorin (2002, p.100) comenta:
“Nele (o carnaval), a vida se põe ao contrário, o mundo inverte-se.
Suspendem-se as interdições, as restrições, as barreiras, as normas
que organizam a vida social, o desenrolar da existência normal.”.
A falta de responsabilidade por parte de Bolsonaro quanto à
pandemia do corona vírus, o distanciamento e isolamento social
(lockdown) e as muitas medidas restritivas denunciam seu
comportamento “grotesco”, “subvertido” e “carnavalizado”. Sobre
isso, Marcos Fernandes Gonçalves da Silva (2020) afirma: “Um
líder, como um Presidente da República (PR), tem
responsabilidade moral quando incentiva a desobediência civil
diante da necessidade de isolamento horizontal numa epidemia,
como a do covid-19.”, o que Marcos quer dizer é que o presidente
deve ter um senso responsável por seus atos e falas. No entanto,
isso não ocorre. O próprio presidente subverteu os valores e
princípios comuns ao seu encargo.
O sentido do grotesco apresentado por Bakhtin cabe perfeitamente
em nossos dias. Segundo Bakhtin (2002, p. 22): “[...] as imagens
grotescas conservam uma natureza original, diferenciam-se
claramente das imagens da vida cotidiana, preestabelecidas e
perfeitas. São imagens ambivalentes e contraditórias que parecem
disformes, monstruosas e horrendas, [...]”. Esse caráter
“diferenciador” do grotesco é o que o torna carnavalesco, isso
significa que é uma visão contrária aquilo que era natural/oficial.
O postura do referido presidente é totalmente grotesca, uma vez
que subverte a ordem natural e configura-se como uma anomalia,
assim sendo, define-se por ser um governo disforme, isto é,
manifesta um lado preconceituoso, arrogante, prepotente,

354
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

insensível, vexatório, caluniador, inflexível, etc. Analisando a


postura do presidente Marcos Silva afirma:
O afrouxamento das medidas de isolamento pode ter sido
catalisado por uma atuação inadequada do PR (Presidente da
República). Por um lado, como líder, relativizou, de forma jocosa
inclusive, a epidemia e, por outro, não incutiu o medo, mais
especificamente, não tornou as pessoas mais avessas ao risco.
(SILVA, 2020).
Perceba que a conduta foi extremamente grotesca. Desestimular as
medidas restritivas configura-se como uma atitude insensível e
irresponsável. Marcos Silva continua: “Agora, as perdas de vidas
podem ser desnecessariamente maiores, assim como queda de
empregos e renda. [...]”.
Essa postura é fortemente deplorável e sugere o papel
representativo do presidente como um inimigo tão mortal quanto
o corona vírus. Ghiraldelli (2020), numa coluna de opinião afirmou:
“A Covid-19 e Jair Bolsonaro se fundiram.”, o que o autor queria
transmitir é o fato de o Brasil enfrentar dois grandes inimigos, o
vírus e o próprio presidente. O autor ainda continua: “O presidente
conseguiu exatamente que o vírus fizesse do Brasil um grande
cemitério. Na verdade, assim agiu por conta de ter se tornado, ele
próprio, um agente virótico. [...]. Bolsonaro e o vírus se tornaram
um só.”. Isso nada mais é do que o GROTESCO
MATERIALIZADO.

355
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte da imagem: https://www.focus.jor.br/bolsonaro-e-


denunciado-no-tribunal-penal-internacional-por-crime-contra-a-
humanidade/, acesso em 10/09/2021 às 20:47 hs.

Fonte da
imagem: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/bol
sonaro-pandemia-brasil-entrevista/, acesso em 10/09/2021 às 20:47
hs.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte da imagem: https://domtotal.com/noticia/


1499323/2021/02/bolsonaro-ignora-236-mil-mortos-por-covid-19-e-
ataca-isolamento-vamos-conviver-com-o-virus-a-vida-toda/,
acesso em 10/09/2021 às 20:47 hs.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da breve análise proposta foi possível identificar a imagem
e o comportamento grotesco na própria figura do atual presidente
da República, isto é, a inversão dos valores como compromisso com
o bem-estar dos seus concidadãos e a responsabilidade com falas e
discursos tendo em vista os seus efeitos. Com isto, passamos a
entender Bakhtin. O atual presidente representa “o mundo ao
avesso”, “de cabeça para baixo”, ou seja, é nele (Bolsonaro) que
entendemos o conceito de carnavalização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no


renascentismo: o contexto de François Rabelais. 5ª ed. Tradução
Yara Vieira, São Paulo: Hucitec. Brasília: Editora universidade de
Brasília. 2002.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2ª
Edição, São Paulo: Contexto, 2020.
GHIRALDELLI, Paulo. O grande ataque do bolsovírus: Caos da
pandemia ajuda o presidente a deteriorar os poderes republicanos.
In: Folha de São Paulo, São Paulo, 21 de junho de 2020.
SILVA, da Marcos F. G. COVID-19 e a responsabilidade moral de
um Presidente da República. In: Estadão Blogs, São Paulo, 05 de
maio de 202

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A TIRANIA É COMBATIDA PELO RISO E PELA


COLETIVIDADE

MARIA DE FÁTIMA ROCHA MEDINA


Universidade Estadual do Tocantins
medinafatima@hotmail.com

A frase latina ridendo castigat mores que significa algo como “rindo
se corrige os costumes” dá o tom do gênero cômico, originado da
sátira menipeia, que tratava a condição
humana de forma espetacularmente risível. O início do mundo às
avessas, da ruptura com o oficial, da horizontalidade das relações
e da carnavalização foi na antiguidade, mas na Idade Média e no
Renascimento tomou grandes dimensões, conforme afirma Bakhtin
(1999). Justamente em um tempo carrancudo cujo centro era a
religião e no mundo clássico onde o popular não era reconhecido
como arte oficial, mas conseguiu sobreviver como não oficial. “O
florescimento do realismo grotesco é o sistema de imagens da
cultura cômica popular da Idade Média e o seu apogeu é a
literatura do Renascimento”. (BAKHTIN, 1999, p.28)
No século XVII, o gênero cômico passou a ser periférico por
ser visto com moralismo a partir da época barroca, tornando-se
restrito a situações pontuais[1]. Na sociedade estratificada, “a
ambivalências do grotesco torna-se
inadmissível” (BAKHTIN, 1999,p. 87), por faltar abertura para o
novo. As mudanças

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

políticas e econômicas, além dos movimentos religiosos de


reforma e de contrarreforma que se sucederam na Europa
seiscentista podem ser os motivos de contenção do riso nessa
época. ”A colonização das Américas e a expansão mercantilista, ao
mesmo tempo que a contrarreforma e o absolutismo político, são as
principais coordenadas do quadro histórico dentro do qual se
insere o Barroco. (ÁVILA, 1971, p. 32).
Mesmo assim, a tradição cômica resistiu na literatura não canônica
nas comédias, nas fábulas e nas obras propriamente satírico-
burlescas por meio da pena de importantes escritores que
encontraram maneiras criativas de continuarem
rindo das fragilidades humanas. Na Espanha do Siglo de Oro, o
clima de efervescência estimulou Lope de Vega a escrever textos e
a revolucionar o teatro espanhol cuja grande novidade foi
a comédia nova. Suas obras tornaram-se objeto de crítica ao
romper a rígida estrutura renascentista-aristotélica e tornar-
se modelo para escritores compatriotas e de outros países. Entre
várias mudanças, o teatrólogo espanhol mesclou o trágico e o
cômico em uma única obra, adequou
a linguagem às peculiaridades dos personagens, dividiu
a obra em três atos, em vez de cinco, e rompeu
com a regra das três unidades. Além disso, inseriu o personagem
do gracioso, que é a personificação do riso
em meio ao ambiente sério da corte e da Igreja. Este trabalho prete
nde refletir sobre o riso a partir de Mengo, personagem gracioso da
obra Fuenteovejuna, em perspectiva carnavalesca.
A tirania
Segundo Bakhtin (1999), a cultura oficial seiscentista vivia a
estreiteza de vida burguesa, cujo resultado foi a substituição do riso
como concepção de mundo pela abordagem filosófico-cartesiana a
qual defendia que o essencial não poderia
ser abordado comicamente. A sociedade hierarquizada estratifico
u a verdade como absoluta e expulsou o universalismo cômico-

360
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

grotesco das esferas políticas


e religiosas. Além disso, com a revalorização da estética clássica,
o cômico foi expurgado dos gêneros literários considerados
elevados e reduzido a ferramenta
de ridicularização e moralização. Segundo Bakhtin:
A partir do XVII, o riso refere-se
apenas a certos fenômenos parciais e parcialmente típicos da vida
social, a fenômenos de caráter negativo; o que é essencial e
importante não pode ser cômico; a história e os homens
que a encarnam (reis, chefes de exército, heróis) não podem ser
cômicos; o domínio do cômico é restrito
e específico [...]. (BAKHTIN, 1999, p. 57).
A obra de Lope de Vega, Fuenteovejuna, de caráter social e
reivindicatório, é baseada em um fato real ocorrido na província
de Córdoba (Andalucía) - Espanha, no período dos reis católicos
(1474-1516). A comédia lopesca aborda a desigualdade e
insegurança vivida pela sociedade espanhola na época retratada.
Ao ocupar um cargo policial (comendador) na vila,
localidade distante do controle dos reis, o arrogante Fernán Gómez
de Gusmán impõe-se e submete os moradores aos seus caprichos.
A comunidade vive sobressaltada e indignada perante
os abusos cometidos pelo comendador de quem as mulheres são
os principais alvos. Cheio de lascívia, seu maior prazer é retirar
as recém-casadas dos braços dos maridos para gozá-las e
abandoná-las, em seguida. Acompanhado de dois soldados,
paradoxalmente, Fernán espalha insegurança e medo àqueles que
deveria proteger. A tirania da autoridade, legitimada pelo poder
do cargo que ocupa, tira qualquer possibilidade de confiança
mútua na comunidade e, consequentemente, do riso.
¡Cuántas mozas en la villa,
del Comendador confiadas,
andan ya descalabradas!

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(VEGA, 2000, p.31).


A obra evidencia e critica o abandono vivido
pelas comunidades rurais, distantes da proteção régia e à mercê de
nobres sem escrúpulo. Pelo olhar sensível e observador de Lope de
Vega, é possível imaginar o custo que pagava o país para manter
a opulência, o brilho e o luxo da corte, enquanto a maioria vivia em
situações precárias, em estado de muita pobreza e sem ter a quem
recorrer. Fuenteovejuna, assim, não representa somente a si
mesma. A pequena aldeia é o retrato do país analfabeto e pobre,
mas mergulhado na ambição de conquistar fortunas
oriundas de heranças e de outras origens, em nome da religião.
Sacaré la blanca espada
para que quede su luz
de la color de la cruz,
de rojo sangre bañada.
Vós, a donde residís
¿tenéis algunos soldados?
(VEGA, 2000, p.29).
A sensação de ultraje, por parte do comendador, de impotência,
por parte do prefeito, e de abandono, por parte das autoridades
maiores, estimulamos aldeões de Fuenteovejuna a fazerem justiça
com as próprias mãos. Liderados por Laurência, mais uma recém-
casada, iminente vítima do impostor, e regenerados pelo riso de
Mengo, a multidão invade a casa do comendador e atiram nele
pedras e paus até levá-lo à morte.

O riso e a coletividade são expressões de liberdade e


transformação
Presente em diversas obras do autor, o gracioso
funciona como contraponto entre a seriedade e o riso, entre as

362
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

convenções da sociedade e o desejo


de uma vida equilibrada, inspirada na Idade de Ouro. Mengo, de
simplicidade primitiva, é um dos lavradores da pequena
Fuenteovejuna. Como os demais campesinos do lugar, ele não
aspira a nada além de uma vida sem sobressaltos e feliz. O
gracioso representa o riso festivo e “concretiza a esperança popular
num futuro melhor, num regime social
e econômico mais justo, numa nova verdade”
(BAKHTIN, 1999, p. 70).
Com sua presença espontânea, o personagem, na medida em que
tece, também reúne elementos carnavalescos presentes na obra. No
primeiro ato, por exemplo, ele convida os lavradores para uma
contenda acerca do amor. Essa situação remete aos gêneros orais
formadores por excelência da cultura popular. Além disso, é
possível fazer referência à obra O banquete, em que homens cultos
discursaram e falavam do mesmo tema, coordenados por Platão,
após uma noite de bebedeira. Mengo, ao contrário do grande
mestre da filosofia, revela aos companheiros que não sabe filosofar
nem tampouco sabe ler. Mesmo assim, ele insiste e até oferece
seu estimado alaúde como prêmio, caso saia derrotado. O
gracioso destrona Platão e, ao gosto de Menipo, filósofo cínico que
deu origem à sátira menipeia, Mengo desmistifica a filosofia.
O assunto, antes tratado por sábios e “acrisolado en academias y
escuelas” (VEGA, 2000, p. 44), é motivo de encontro, diversão
e companheirismo entre os lavradores que discutem a partir da
realidade campesina, de um olhar sem contaminação, isto é, uma
filosofia despojada e sem retórica, como defendia a Escola Cínica.
Com sabedoria ingênua, Mengo contraria os lavradores Barrildo e
Frondoso ao dizer que existe nas pessoas apenas
amor próprio. No entanto, ao socorrer Jacinta das mãos de Fernán
Gómez e sofrer castigos físicos por tal gesto de
solidariedade, Mengo contradiz também as ideias platônicas do
filósofo grego e demonstra a existência do amor fraternal. Isso

363
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ocorre por meio de atitudes humanas e concretas que sugerem o


retorno à Idade de Ouro como resposta à opressão e à submissão
da sociedade corrompida.
Comendador: Que lo azoteis.
Llevadle, y en ese roblele atad y le desnudad,
y con las riendas…
Mengo: ¡Piedad!
¡Piedad, pues sois hombre noble!
Comendador: Azotadle hasta que salten los hierros de las correas.
Mengo: ¡Cielos! ¿A hazañastan feas
Queréis que castigosfalten?
(VEGA, 2000, p. 97).
Nesse fragmento, Mengo pede piedade e ironiza a postura do co
mendador que, supondo-se nobre, deveria
agir como tal, sobretudo frente a um lavrador.
E, diante da ordem dos açoites, a risada, originada
da sátira menipeia, transforma o medo
da dor em preparação para causas ainda mais nobres. É a alegria
criadora, gerada pelo afastamento dos sofrimentos. E
transformadora, conforme o desenrolar da história. No casamento
de Laurência, momento parcial da abundância e do riso,
Mengo é convidado a trovar. Frondoso,
seu amigo, faz um seguinte comentário burlesco que ri dos acoites
recebidos a mando do comendador:
Mejor entiendede azotes
Mengo que de versosya
(VEGA, 2000, p. 112).
O gracioso, então, desfigura a lembrança dos açoites
representativos da ordem instalada pelo comendador e a sobrepõe

364
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

com versos/arte no ambiente alegre dos campesinos, seus


amigos e pares. Afinal, a festa em que reunia toda a comunidade
em torno
da abundância de comida e bebida, como também do canto, embo
ra efêmero, era momento
privilegiado de esperança em dias melhores.
Otimista, Mengo improvisa uma copla aos noivos.
Vivan muchos años juntos
los novios, ruego a los cielos,
y por envidia ni celos
ni riñan ni anden en puntos.
Lleven a entrambos difuntos
De puro vivir cansados.
Vivan muchosaños!
(VEGA, 2000,p. 113).
A copla do gracioso revela o espírito das saturnais romanas
que “encarnavam o retorno à idade de ouro” (BAKHTIN, 1999, p.
70) cuja vida longa e harmoniosa almejada seria fruto do respeito
mútuo e da liberdade. No entanto,
o momento de alegria é extremamente curto,
pois aparece o tirano para prender Laurência e Frondoso, recém-
casados. O noivo defende sua companheira de iminente violação
por parte do comendador, mas resulta preso. Diante disso, o povo
se reúne em conselho para encontrar uma solução. O gracioso se
apresenta
como representante dos lavradores que mais sofrem injúrias.
Mirad, señores,
que vais en estas cosas con recelo.
Puesto que por los simples labradores

365
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estoy aquí que más injurias pasan,


más cuerdo represento sus temores
(VEGA, 2000, p. 128).
Mas é Laurência, mulher destemida que, entre várias opiniões dos
moradores, inclusive a de abandonar a vila, chega de surpresa e
insulta os homens pela covardia, inclusive de seu pai, que era o
prefeito. E, assim, mobiliza toda a comunidade para a rebelião que
resulta no assassinato coletivo
do comendador. É também uma morte carnavalizada pelo destron
amento e despedaçamento daquele que cometeu tantas injustiças.
A morte do comendador é geradora de vida para os campesinos.
Assim, após a morte, ao saber que enfrentariam a justiça, os
moradores decidiram que, convocados a depor, todos falariam a
mesma afirmação ao juiz que Fuenteovejuna, ou seja, a vila inteira,
havia matado o comendador, e não apenas uma pessoa. E para
deixar claro o combinado, novamente é ele, Mengo, o promovedor
do riso, que atua como interrogado, no ensaio proposto pelo
prefeito que, naquele ato, simularia o juiz.
Ahora pues, yo quiero ser
el juez investigador,
para ensayarnos mejor
en lo que hemos de hacer.
Sea Mengo el que esté puesto
en el tormento
(VEGA, 2000, p. 155).
Como previsto, um juiz foi enviado à vila para descobrir o
assassino do comendador. Ao ouvir as torturas sofridas pelos
interrogados, alguns amigos
ficaram convencidos de que Mengo os entregaria. Contudo,
o gracioso transformou o interrogatório judicial em riso alegre.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Com ironia, a cada pergunta, o personagem lopesco


responde: “Ay!”, “ay, ay!”, “yo lo diré, señor!”. À pergunta do juiz:
“Quién lo mató?” Mengo responde:
“Señor, Fuenteovejunica!”. A princípio pressupõe que ele
responderia positivamente à expectativa do juiz e revelaria o nome
de alguém da vila. No entanto,
contrariando o tom sério e a verdade absoluta esperada pela
autoridade, Mengo destrona as formalidades jurídicas
e seus representantes ao brincar
de responder e ao usar o nome da vila em diminutivo em tom de
riso.
O caráter carnavalesco da resposta do interrogado ressoa
em toda a obra e em toda a sociedade espanhola da época ao
destronar também o juiz. Ou seja, a autoridade, alheia ao que
ocorria nas vilas abandonadas pela corte, e agindo em interesses
próprios, não conseguia estabelecer a ordem almejada por aquela
comunidade que queria ser respeitada. O gracioso,
com seu riso e sua ingenuidade, contrapõe
à rigidez dogmática e sugere uma sociedade diferente. De forma
grotesca, ele responde às torturas e às perguntas feitas pela
autoridade judicial e se associa aos outros lavradores da vila que
querem apenas uma vida tranquila.

Considerações finais
Embora o gênero cômico tenha se tornado restrito no século XVII,
o teatro lopesco revela a
rebeldia aos padrões estéticos legitimados como canônicos. E, por
meio do gracioso Mengo, da obra Fuenteovejuna, Lope de
Vega revela, também, o triunfo do riso e da força da
coletividade contra a tirania. Essa é, certamente, uma das razões
pelas quais o teatrólogo espanhol encantou o público
do Siglo de Oro. Além disso, essa obra, após vários séculos, pode

367
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ainda inspirar o povo brasileiro que, respeitadas as diferenças


contextuais, vive no século XXI situação semelhante à que
vivenciaram os aldeões espanhóis. Então, destronar com o riso os
discursos de ódio, de abuso de poder que insufla a violência e deixa
o Brasil em tensão constante, sob o governo Bolsonaro, pode ser um
caminho produtivo para a vitória, ou seja, um país aberto para o
novo.
Referências
ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo:
Perspectiva, 1971.
BAKHTIN, Mikhail. O mundo popular da Idade Média e do
Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4. ed. Tradução de
Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília:
Editora da UNB, 1999.
PLATÃO. Apologia de Sócrates e Banquete. Tradução de Jean
Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002.
VEGA, Lope de la.Fuenteovejuna. BuenosAires: Longseller, 2000.
[1] Há semelhanças com a situação política no Brasil atual cujo
governo persegue chargistas, grafiteiros e todos aqueles que
criticam/satirizam os desmandos e abusos de poder orquestrados
pela família Bolsonaro e seus apoiadores.
Esse texto, com alterações recentes, foi publicado, inicialmente, no
Anais. Disponível em: http://www.
letras.ufmg.br/espanhol/Anais/anais_paginas _%201502-
2009/O%20riso.pdf. Acesso em: 02 set. 2021.

368
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A TOXÍNA DOS CATETOS

Dionísio Geraldo Bahule


Universidade Pedagógica de Maputo
dionisiobahule@gmail.com

Proposição I
[…] Nela, o poema está próximo da origem, pois tudo o que é
original é à prova dessa pura impotência do recomeço, dessa
prolixidade estéril, a superabundância do que nada pode, do que
jamais é a obra, arruína a obra e nela restaura a ociosidade sem fim
[…].
MAURICE BLANCHOT, O espaço Literário. 2011

Proposição II
[…] O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela
prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua
falta de exigência e a falta de seriedade das suas questões vitais
respondem pela esterilidade da arte. O indivíduo deve tornar-se
inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não só
estar lado a lado na série temporal de sua vida, mas também
penetrar uns os outros na unidade da culpa e da responsabilidade
[…]
MIKHAIL BAKHTIN, Estética da Criação Verbal. 2018

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Descemos pela Praça 15 com o ponteio das mãos ao encalço


impúdico de um acto – não tanto inumano. Essas coisas de
inumano; do outro; do rosto. Confesso: dessa coisa toda tão
humana de forçar-nos a penetrar na escuta do outro; desse acto
sensível que desce ao lugar do possível e do acto presente – Bakhtin
– faz cruzar isso tudo na ponte entre a disposição existencial e o
gesto da totalidade; do infinito; da vulnerabilidade. Um dia sobre
isso, Levinas – uma dentre várias lanternas com que Bakhtin cruza
seu edifício intelectual – disse alguma coisa como: ser necessário ir
ao rosto do outro por ser nele onde se exige a responsabilidade. No
dia em que passei por ele estava saindo pela Samora Machel em
direção a um estalajadeiro já envelhecido que continuava
encostado na soleira d’uma casa de pasto. Dizem alguns que, por
lá – nasceu o moderno teatro moçambicano: Txova Xita Duma;
Mutumbela Gogo; Gungu – um fabulário aplaudido por nos levar
sem travões ao grotesco de uma sociedade recém-saída de uma
dupla pilhagem: material e antropológica. Fiquei à margem. Mas
depois compreendi que o imperativo ao outro é o degrau da
exterioridade; do aqui; porque o infinito enquanto incapacidade de
nominar fronteiras [do e no outro] rebela e contesta o esgotamento.
Depois que terminamos os portões da Catedral São Francisco para
darmos à travessia principal que nos levaria à Rua Júlio Vieira –
sossegamos os olhos para uma ruela que nos despistou a um coalho
de conchas que nos levou a um sentimento de abandono. Era ritual
necessário fazermos o trajecto. A Kibelândia passou a ser o nosso
começo de conversa que percorria a noite no 101B, um apartamento
exposto às águas e ao espetáculo da modernidade. Naquela
varanda – tive a certeza do que significa a experiência urbana; o
manifesto da percepção fascinado pela dinâmica da electricidade;
a cosmopolita ferrovia dada pelo resultado da expansão da
república industrial.
Nelita, abrigada em Bakhtin, falou da necessidade de pensar o
homem por meio da linguagem; Heidegger também falou dessa
escuta do ser por meio da linguagem; principalmente, por meio da

370
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

poesia. Inclinamos os copos que denunciavam o fim de mais uma


garrafa de vinho; aquele foi um momento de aprendizagem. Tê-la
por um período de meio-mês fez de mim um sedento rapaz de
pastas às costas para fazer um caminho de regresso; de recomeços
epistemológicos. Descemos para a sala depois de nos demorar na
mediana da casa. Alain Badiou ao procurar situar e termos de
tempo e espaço o surgimento da Filosofia – no segundo momento
– o alemão – mostra como Heidegger pede ao momento calculador
que faça o caminho de regresso à linguagem para compreender o
humano o mesmo trajecto que Bakhtin faz transitando Sartre que
situa o ser no lugar concreto. Acho que é impossível pensar a
existência sem o tempo e o espaço; o grotesco nasce também desta
capacidade de espiar com cuidado os sinais dos movimentos e dos
vícios da sociedade; de dar um tempero novo os dessabores e às
glórias.

371
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A-giganta professora

Liliane Corrêa Neves Moura


Universidade do Estado do Rio de Janeiro
lilianenevesmoura@gmail.com

A-giganta professora
Liliane Neves
Grupo Atos- UFF

A caminho, no presente, A-giganta professora

A saia de pregas azuis, a camisa branca engomada


As meias ¾, abotoaduras, emblemas, estrelas de lapela
Em sua minúscula caixinha de tesouros, ela os guarda
Da gaveta, a lupa sai para ajudar a ver
As pequenas, tão pequenas lembranças
Na sua bolsa, resolve carregar
No caminho, ela os encontra
Abre a sua bocarra
Eles tocam o céu
Brincam com as estrelas

372
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sacodem as nuvens
Pegam frutas no topo das árvores
Visitam tubarões e estrelas do mar
Abrem o maior livro do mundo
Sentem dor na barriga de tanto rir
(Ele é de lorotas)
Vão ao centro da terra
Pululam de calor
Rolam na terra, se deitam esparramados
E logo se vão
Seus passos levantam poeira no caminho
Ela os vê se afastar e se agigantar
Não há mais como achatá-los, apequená-los
Os gigantes do presente

*****
“No realismo grotesco, o elemento material e corporal é um
princípio profundamente positivo, que nem aparece sob uma
forma egoísta, nem separado dos demais aspectos da vida”[1]. No
contexto da compreensão da obra de Rabelais, Bakhtin nos aponta
a possibilidade e defesa do entendimento de que a corporeidade
não está separada dos aspectos da vida, inclusive dos aspectos
ligados ao intelecto. No poema a corporeidade da professora, quem
pretensamente ensina, não é separada da corporeidade de quem
aprende. É com o corpo, em alteridade com o outro, que se ensina
e aprende. O formativo, dimensão da vida humana, compreende
todo o corpo e é sempre relação de pelo menos dois.

373
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A aprendizagem vem sendo separada do corpo como se no alto


estivesse, e ao corpo restasse apenas domá-lo em práticas
higienistas de controle, tentando uma separação dessas esferas. A
integralidade do mundo, onde o baixo e o alto não estão separados
é onde Bakhtin encontra as forças do humano. No corpo coletivo e
popular que cresce, renova-se e agiganta-se. “Por isso o elemento
corporal é tão magnífico, exagerado e infinito”[2].
Seu apreço pelo gigante, pelo agigantamento do humano destacam
as forças de alargamento do tempo e do espaço. Buscando esses
índices também em Maiakóvski, Bakhtin diz que
ele “caminhou imediatamente (,) desde os primeiros passos, para
essa atmosfera do grande, ao sair da esfera do médio, do pequeno,
do moderado. Ele caminhou para esse mundo do grande de modo
familiar, com segurança, como “alguém de casa”, sem medo, sem
veneração, sem reverência (o grande é a esfera das massas, a esfera
da rua, e não dos grandes museus antigos, das catedrais, da
mística[3])”[4].
O gigante pode ver espacialmente além do seu cotidiano e
temporalmente compreender as forças do passado e do futuro no
seu corpo, em alteridade, porque pode tocá-los e assim
potencialmente transformá-lo. O passado deixa de ser algo estático
e de plena contemplação para ser algo que ele pode alterar
mexendo nos sentidos que foram criados pela história contada; o
futuro passa a ser uma escritura que ele faz com a sua própria
existência. Seu ato responsável tem a dimensão de, no presente,
ressignificar o passado e transformar o futuro no encontro com o
outro.
Assim, a-giganta professora tem no seu corpo agigantado as
relações com o mundo e com o outro, nele as relações de formação
de si, dos outros e do mundo, não estão segmentadas apenas à sua
mente, às partes altas do corpo. Mas no baixo-corporal, na sua boca
que de tão giganta que é possível que o outro entre, ria, chegue às

374
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nuvens ou ao centro da terra, ao mesmo tempo que nela é possível


acessar o grande tempo da humanidade.
E o agigantamento torna o limiar lugar onde o humano em
acontecimento pode tocar e mexer no passado e no futuro, ele os
aproxima na unidade da responsabilidade. Em cada humano existe
essa possibilidade. E enunciar o grotesco nos nossos tempos, nos
nossos corpos do presente é provocar a desestabilização dos
sentidos que não cansam de tentar separar e hierarquizar as esferas
da cultura entre alto e baixo, superior e inferior, intelecto e
corporal.
[1] BAKHTIN, 2012, p.17.
[2] Idem
[3] Aqui Bakhtin refere-se ao espaço-tempo religioso.
[4] BAKHTIN, 2016, p. 199.

Referências
BAKHTIN, Mikhail.Sobre Maiakóvski. In: BRAIT, Beth (org.). Bak
htin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2016.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: O contexto de François Rabelais. São Paulo:
Hucitec, 2013.

375
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ambivalência que se transforma entre os sec. XIX e XXI: A cor


amarela em foco

Rita de Nazareth Souza Bentes


Universidade do Estado do Pará
ritabentes28@gmail.com

Analys Vitória Lobo Simões


Universidade do Estado do Pará
ana.lys667@gmail.com

Yanca Carolina Silva Silveira


UEPA
yancasilveira2018@gmail.com

1 Nossos primeiros discursos para nos inteirarmos


O nosso objeto de reflexão emerge da leitura do conto “O papel de
parede amarelo” - Charlotte Perkins Gilman, publicado em 1892 o
qual nos desloca para uma reflexão coletiva na versão do VIII
Círculo- Rodas de Conversa Bakhtiniana com o tema “O grotesco
nos nossos tempos: vozes, ambiente e horizontes”. Neste evento
trazemos reflexão sobre impacto do sentido do papel de parede
amarelo presente no argumento relevante do discurso da
protagonista na narrativa em questão.
Para tal envolvimento trazemos um pequeno resumo comentado
da obra de Charlotte Perkins Gilman que nos revela sobre o papel

376
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

da mulher na sociedade, a de esposa dentro de uma relação


especificamente do século XIX, na qual a personagem relata seus
pensamentos em um diário, com espaçamento de tempo entre
estes. Ela se encontra junto do marido Jonh que também é seu
médico e a cuida em uma casa de campo, uma mansão colonial,
com desculpa de ser somente para a melhora de sua mulher e a
mandava ficar em repouso absoluto tentando fazer com que não
tivesse contato com sua produção escrita, assim, interrompendo a
vida de Charlotte como escritora.
2 Inspiração teórico-metodológica à luz da concepção de grotesco
na perspectiva de Bakhtiniana
Nesta reflexão vamos nos valer da orientação do movimento
retrospectivo-prospectivo de Bakhthin (2017) que nos permitir o
deslocamento no tempo- espaço para compreender
posicionamento de Charlotte em relação à cor do papel de parede
amarelo do quarto em que se encontrava durante toda sua estadia
na casa como podemos acompanhar nos trechos a seguir:
Nunca vi um papel tão feio.
Um desses padrões irregulares e exagerados que comentem todo
tipo de pecado artístico.
É esmaecido o bastante para confundir o olho que o segue, intenso
o bastante para o tempo todo irritar e incitar seu exame, quando
seguimos por um tempo suas curvas imperfeitas e duvidosas, elas
de súbito cometem suicídio – afundam-se em ângulos deploráveis,
aniquilam-se em contradições inconcebíveis.
A cor é repulsiva, quase revoltante; um amarelo enfumaçado e sujo,
estranhamente desbotado sobre a luz do sol, em seu lento
transladar.
Em alguns pontos, é de um alaranjado pálido e desagradável; em
outros, de um tom sulforoso e enjoativo (GILMAN, 2016, p. 17).
São dessas primeiras impressões da personagem sobre o papel de
parede amarelo, que percebemos essa inquietação dela e desde o
primeiro contato com o papel de parede amarelo nos faz sentir essa
frustação, a descrição detalhada da cor e seus padrões irregulares

377
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

da imagem do papel amarelo que tem uma grande visão grotesca,


exagerada, com um discurso voltado para repulsa, segundo
(BAKHTIN, (2008, p. 22): “A imagem grotesca caracteriza um
fenômeno em estado de transformação de metamorfose ainda
incompleta, no estágio de morte e do nascimento, do nascimento à
evolução.”, o papel que é colado na materialidade, do concreto nos
dar uma visão de ser feio todos esses padrões exagerados em um
discurso que se transforma ao decorrer do tempo, como podemos
observar:
É tão agradável estar neste grande quarto e rastejar a meu bel-
prazer!
Não quero ir lá fora. Não vou fazer isso, mesmo que Jennie me
peça.
Pois lá fora tudo é verde em vez de amarelo. (GILMAN, 2016, p.67)
Se antes esse quarto com o papel de parede amarelo era visto como
odioso, repugnante, agora já muda totalmente de sentido, pois
torna-se o seu prazer, ali ganha um novo significado onde possa
desfrutar o seu total, sendo parte daquele cômodo, enxerga-se de
maneira diferente e a transforma, um discurso pautado na
ambivalência desse amarelo, em que segundo (BAKHTIN, 2008,p.
22), “Seu segundo traço indispensável, que decorre do primeiro, a
ambivalência: os dois polos da mudança- o antigo e o novo, o que
morre e o que nasce, o princípio e o fim metamorfose- são expresso
(ou esboçados) em uma outra forma ”.
O papel de parede amarelo deixou de ser abstrato para Charlotte e
tornou-se a realidade como se ela deslocasse para dentro do papel,
parecida como a imagem de um espelho no qual se reconhece junto
aos padrões que ganham forma de mulher, e isto provocou
consciências de si mesma, de mulher submissa e presa em um papel
determinado.
Amarelo a cor da loucura, do excêntrico, explosivo, agressivo, tudo
que envolve tensão exterior, aquilo que está palpável ao corpo, para
Gilman ganha outro sentido, segundo Kandinsky (2011), “toda cor
quente puxada para o amarelo, está ligada ao material”. A cor do

378
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

papel de parede amarelo não poderia ser um signo ideológico


melhor para refração da ideia do conceito de grotesco. E isso pode
ser observado em grandes obras para além de o livro “O papel de
parede amarelo” de Charlotte Perkins Gilman, onde a personagem
de seu livro passa por pequenos acessos a essas perspectivas diante
a cor, assim como podemos observar as mudanças de significados,
para Van Gogh e o mês de prevenção ao suicídio- setembro
amarelo.
Apesar de Vincent Van Gogh ter nascido em 1853 e falecido em
1890, podemos fazer uma relação de sua época com a de Charlotte
Perkins Gilman, que nasceu 1860 e seu falecimento em 1935, haja
visto que o pintor possuía depressão e que sua medicação era
baseada na dedaleira, uma substância química extraída de uma
planta, usada para fins medicinais, essa substância era usada em
pacientes depressivos que possuíam alguma deficiência mental, no
entanto soltava pigmentações amareladas e causava alucinações
nos pacientes, Daí vem a indiscutível preferência do pintor pela cor
amarela que teria sido associada por conta dessa contaminação da
dedaleira.
A presença da cor amarela é muito forte tanto na obra da Charlotte
quanto nos quadros de Van Gogh atualmente a cor amarela é
utilizada como símbolo da campanha de prevenção ao suicídio que
se iniciou logo após o suicídio de um jovem chamado Mike Emme,
que tinha apenas 17 anos, ele tinha habilidades mecânicas e acabou
restaurando e pintando um Mustang 68 da cor amarela, que era sua
paixão, a cor era vista de longe e chamava atenção, o jovem
cometeu suicídio em 1994, ele não dava sinais de que possuía
depressão ou que precisava de ajuda, isso chocou a família e os
amigos dele, tanto que no dia do seu velório, a família fez uma cesta
que continham cartões envoltos de fitas amarelas, em homenagem
ao carro de seu filho, esses cartões rodaram a cidade, neles continha
uma mensagem de que se precisasse de ajuda era só entrar em
contato com o casal, as pessoas que sofriam de depressão

379
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

começaram a ligar para pedir ajuda, assim o casal salvou muitas


vidas.
Esse movimento foi crescendo, em 2003 o OMS intitulou o dia 10
de setembro como dia mundial de prevenção ao suicídio e em 2015
a campanha se tornou mais forte, tendo o mês de setembro inteiro
voltado para esse fim, de conscientização e prevenção, a cor
amarela que antes era associada à loucura é utilizada hoje como
uma bandeira e símbolo de prevenção. Van Gogh pintava,
Charlotte escrevia e Mike Emme tinha o seu Mustang, essas três
pessoas tinham em comum a depressão, contudo, eles tinham algo
que os faziam se sentir bem, cada qual se agarrava a isso, como um
bote de salva-vidas.
3 Alguns de nossos posicionamentos
Além da cor, encontramos outras relações dialógicas estabelecida
entre tempo-espaço (movimento retrospectiva-prospectivo) dando
a ideia da totalidade a partir dos sinos ideológicos constitutivos das
materialidades dispostas a seguir:

Imagem 1: O papel de parede amarelo- Charlotte Perkins Gilman


(1892).

380
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Disponível em Acesso em: 07 set. 2021.


Imagem 2: Girassóis- Van Gogh (agosto de 1888)

Fonte: Disponível em
<https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54948162>.
Acesso em 07 set. 2021.
Imagem 3: Setembro Amarelo

381
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Disponível em
<https://www.tjdft.jus.br/informacoes/programas-projetos-e-
acoes/pro-vida/dicas-de-saude/pilulas-de-saude/setembro-
amarelo-mes-da-prevencao-do-suicidio>. Acesso em 07 set. 2021.

Dito isto, dispomos de três imagem que representam as diferentes


perspectivas dessa cor, onde o ponto em comum entre elas foi o
estágio depressivo que todos eles vivenciaram em suas vidas, em
Charlotte nós a vemos por seus escritos de perturbação, o padrão
que aquele papel amarelo representa, a cor e formas, como
podemos observar:
Não sei por que escrevo isto.
Não é algo que eu queira fazer.
Não me sinto capaz.

E sei que John acharia um absurdo. Mas tenho que expressar de


alguma forma o que sinto e penso- é um alívio tão grande!
(GILMAN, 2016, p.35)
Nesta passagem do conto de Gilman, percebemos o quanto a
depressão está assolando a personagem e para tentar lhe aliviar de
alguma forma, ela tenta se expressar através da escrita já que este
ato era revolucionário na época e que até mesmo seu próprio
marido lhe proibia de fazê-lo.
Enquanto o pintor Van Gogh, acaba desenvolvendo a depressão
tendo somente seu irmão mais novo como amigo, o pintor sofria de

382
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

crises nervosas e acabou passando longos períodos de solidão, em


uma das cartas ao irmão Theo, ele escreveu “Eu não quero pintar
quadros, eu quero pintar a vida”, depois de várias decepções,
perda de fé e demissões, e sua saúde estava bem delicada, ele acaba
indo morar no campo, em busca de inspirações e é nesta época que
ele pinta seus quadros mais importantes. Van Gogh, comete
suicídio depois de se manter isolado por um tempo, tendo como
companhia os seus quadros.
Em consequência, o setembro amarelo que vem a ser a prevenção
ao suicídio, o lacinho amarelo como representante de ajuda, o
famoso “ninguém solta mão de ninguém”, letras pretas
representadas pelo luto que pode ser prevenido no cartaz que é em
prol de ajuda ao próximo, o amarelo em contraste representando a
vida.
Tanto Charlotte Perkins Gilman, Van Gogh e Mike Emme,
acabaram cometendo suicídio, Gilman acabou se suicidando em
1935, depois de uma overdose de clorofórmio, três anos depois de
ser diagnosticada com câncer de mama.

Referências:
BARROS, Lilian Ried Miller. A cor no processo criativo: um estudo
sobre a Bauhaus e a teoria de Goethe. Editora Senac; São Paulo,
2006. (p. 175)
BAKHTIN, Mikhail. O vocabulário da praça pública na obra de
Rabelais. In: BAKHTIN, Mikhail.A cultura popular na idade
média e no renascimento: o contexto de François Rabelais.
Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec. Brasília:
editora universidade de Brasília. 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências
humanas. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e

383
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de


Paulo Bezerra. Notas da edição russa Seguei Botcharov. São Paulo:
Editora 34, 2017. (p. 57- 79)
GILMAN, Charlotte Perkins. O papel de parede amarelo. 1 Ed. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2016.

384
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

AMBIVALÊNCIA VIDA-MORTE NA OBRA DO SUL-MATO-


GROSSENSE ILTON SILVA

Larissa Mendes da Rosa


UEMS - Letras Português/Inglês
larissamdarosa@gmail.com

Aline Angelo Lima


Uems - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
aline@mercadoelima.com.br

O artista Ilton Silva (1944-2018) nasceu em Ponta Porã, Mato Grosso


do Sul. Criou-se em meio à arte por ser filho de Conceição dos
Bugres, artista conhecida como primitivista que esculpia
os bugres. Propomos, aqui, tecer um diálogo com a teoria
bakhtiniana no que diz respeito à ambivalência e ao grotesco,
tentando observar traços desses princípios na obra, sem título, de
Ilton Silva, da série Itaúna (2010).

385
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Revista Biografia. Ilton Silva - Série Itaúna (2010).

Bakhtin (2013, p. 17), em A Cultura Popular na Idade Média e no


Renascimento – o contexto de François Rabelais, considera como marca
do realismo grotesco [...] o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano
material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de
tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato. Na obra da série Itaúna
(2010), observamos a unidade entre terra e céu, revelada com as
imagens de signos da cultura Guarani e Kaiowá, como o jaguaretê
(onça), os rostos indígenas, os traços da arte nas pedras nas pedras
que ligam com o céu, a lua e o sol. A ambivalência entre o terreno
e o espiritual aproxima a terra e o céu, o baixo e o alto. Essa ligação
mostra uma indissolúvel unidade entre esses espaços, o que para
Bakhtin (2013, p. 19) não se trata de um aspecto negativo, pois
rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra

386
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de


nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se
simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor. Essa
perspectiva liga-se à cultura Guarani e Kaiowá que, em linhas
gerais, considera que na terra existem os seres espirituais, os quais
têm suas funções, como proteger a natureza e o homem. Desse
modo, não vemos uma separação entre esses espaços, mas uma
interligação entre o terreno e o cósmico.
Podemos também ver a morte na obra da série Itaúna ao
observamos a elevação dos seres ao céu. Parece acontecer uma
modificação de estado de corpo, ou seja, parece ocorrer uma
transformação do corpo carnal, presente no baixo, para o corpo
espiritual que sobe ao céu e chega perto da Lua, ou Jasi, e do Sol,
ou Xiru Pa’i Kuara, ambos filhos do Grande Avô, o Ñande Ramoi
e responsáveis por, na terra, criarem os animais, a fauna e os
Guarani e Kaiowá. Nesse sentido, observamos a união entre a terra
e o céu, uma vez que os espíritos criadores descem à terra para
criarem os elementos e terrenos e, depois, de lá continuam a
proteger suas criações. A criação dos Guarani se dá na terra e a
continuação da vida, após a morte, dá-se na terra sem males, lugar
em que se poderá viver plenamente o jeito Guarani. Assim, vida e
morte estão conectadas à terra, a qual é o princípio de absorção (o
túmulo e o ventre) e, ao mesmo tempo, de renascimento e ressureição (o
seio materno). (BAKHTIN, 2013, p. 18).
A vida espiritual e vida terrena estão sempre em íntima relação, da
mesma forma como estão homem, natureza e espíritos. Os Guarani
e os Kaiowá esperam viver na terra uma relação estreita com a
natureza e os espíritos. Para isso, buscam habitar seus Tekohá, que
se constituem de uma materialidade terrena, mas é, sobretudo, o
espaço onde se inter-relacionam o cultural, o político e o espiritual.
Nessa perspectiva, percebemos a ambivalência que constitui o
modo de ser Guarani e Kaiowá: a ligação entre o terreno e o
espiritual; relações indissociáveis retratadas na obra pela ligação

387
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

entre o céu e a terra, em que não se vê onde um termina e o outro


começa, e onde o movimento das imagens, a subida para o céu,
indica um estado de transformação, ainda incompleto, como se
registrasse o estágio da metamorfose da vida em morte. Morre-se
para viver na terra sem males, um lugar esperado pelos Guarani
durante a vida. Por isso, morte não é negativa, mas representa a
liberdade de um povo, a liberdade de seu modo de ser e o
distanciamento do sofrimento terreno: [...] Onde há morte, há também
nascimento, alternância, renovação (BAKHTIN, 2013, p. 359).
Nesse sentido, a obra de Ilton Silva apresenta traços da
ambivalência vida e morte e retrata a inter-relação entre o terreno
e o espiritual vivida pelos Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do
Sul, demonstrando como esses estados não evidenciam o fim, o
encerramento da vida, mas a continuação dela em outro plano, a
abertura para o novo.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular Na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7ª ed. – São Paulo:
Editora Hucitec, 2013.
REVISTA BIOGRAFIA. Ilton Silva - Série Itaúna (2010). Disponível
em: http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com/2012/11/ilton-
silva-pintorentalhador-e-escultor.html

388
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Análise de vídeo: reflexão sobre o encontro do ator Pedro


Cardoso com a plataforma Quebrando o Tabu à luz dos
fundamentos do Círculo de Bakhtin

João Vítor Zanato de Carvalho Ribeiro


Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto - Mestrado e
joaovzanato@usp.br

Em outubro de 2019, o ator Pedro Cardoso foi convidado


pela plataforma Quebrando o Tabu – presente em redes sociais como
o YouTube, o Facebook, o Instagram e o Twitter – a ler comentários
diversos de internautas, podendo ter a oportunidade de respondê-
los em vídeo. Gostaríamos de analisar tal vídeo (QUEBRANDO O
TABU, 2019) à luz dos fundamentos do Círculo de Bakhtin. Dessa
forma, é inevitável que nos detenhamos a pensar sobre a
linguagem, partindo, nessa perspectiva, do filtro ético-estético
fornecido pela teoria bakhtiniana, que, mais do que fornecer
instrumentos de análise aplicáveis, proporciona-nos o descortinar
de uma verdadeira filosofia da vida, uma filosofia moral, calcada
na responsabilidade ética para com o outro. Como indica Fiorin
(2006, p. 55), “O princípio geral do agir é que o sujeito age em
relação aos outros; o indivíduo constitui-se em relação ao outro.
Isso significa que o dialogismo é o princípio de constituição do
indivíduo e o seu princípio de ação.”. Por isso, tendo em vista os
fundamentos do Círculo de Bakhtin, podemos afirmar que estamos
sempre em resposta a outros, já que, na perspectiva dialógica, todo
discurso se encontra com o discurso de outrem. Como defende o
próprio Bakhtin (apud FIORIN, 2006, p. 18):

389
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno


próprio a todo discurso. Trata-se da orientação
natural de qualquer discurso vivo. E, todos os seus
caminhos até o objeto, em todas as direções, o
discurso se encontra com o discurso de outrem e não
pode deixar de participar, com ele, de uma interação
viva e tensa.

Logo no início do vídeo, Pedro Cardoso, após ler um comentário


ofensivo de um internauta, diz: “Responder isso? Nem tudo merece
resposta.”. É possível problematizar a afirmação do ator, já que, na
perspectiva bakhtiniana, até o silêncio é considerado uma resposta.
Na perspectiva dialógica, sempre estamos respondendo a outros,
seja com palavras ou não. Para o Círculo, qualquer enunciado está
em relação com outros, já que responde a enunciados e espera
respostas. Essa é a noção da compreensão responsiva ativa. De acordo
com Volóchinov (2018, p. 179),

[...] a base da interação discursiva consiste justamente


na compreensão em sentido estrito, isto é, como
processo de constituição. Em geral, é impossível
traçar um limite claro entre a compreensão e a
resposta. Toda compreensão responde, isto é, traduz
o compreendido em um novo contexto, ou seja, em
um contexto de uma possível resposta.
A linguagem, na perspectiva do Círculo, possui três
aspectos fundamentais: o verbal, o não verbal (aquilo que
acompanha o verbal, como expressões faciais e corporais que
significam e que são constitutivas do enunciado) e o extraverbal
(que nos indica o contexto de produção, o contexto sócio-histórico).
Ao levarmos em conta que a interação discursiva é a realidade
fundamental da língua, de acordo com Fiorin (2006, p. 6),

Toda compreensão de um texto, tenha ele a dimensão


que tiver, implica, segundo Bakhtin, uma
responsividade e, por conseguinte, um juízo de valor.
O ouvinte ou o leitor, ao receber e compreender a
significação linguística de um texto, adota, ao mesmo
tempo, em relação a ele, uma atitude responsiva

390
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ativa: concorda ou discorda, total ou parcialmente;


completa; adapta etc. Toda compreensão é carregada
de resposta.

Assim, quando Pedro Cardoso afirma que “nem tudo


merece resposta”, ele próprio já está respondendo, pois sua fala
vem carregada de ênfase valorativa, isto é, é constituída por uma
entonação (processo que tem a ver com uma avaliação apreciativa-
ativa). O posicionamento do sujeito (sua fala, sua expressão
corporal, seu silêncio etc.) revela a sua concordância ou
discordância àquilo que está sendo dito. A escolha – consciente ou
não – das palavras – ou mesmo do silêncio – revela a apreciação
valorativa do sujeito em relação ao objeto. Ainda de acordo com os
fundamentos do Círculo de Bakhtin, é fundamental que levemos
em conta o fato de que a linguagem é ideológica, por excelência. O
sentido acaba sendo construído por nós em relação com o mundo
e com o outro. Em cada discurso, é possível reconhecermos a
presença de diferentes vozes, bem como os diferentes embates
valorativos e entonacionais que operam em cada escolha, em cada
arranjo de palavras enunciadas.
É a partir de tal perspectiva que podemos analisar o trecho
em que Pedro Cardoso lê um tuíte de Eduardo Bolsonaro criticando
a jovem ativista ambiental Greta Thunberg. Pedro Cardoso, em sua
fala, traz as palavras proferidas por Thunberg na ONU, quando a
jovem fez um discurso contundente e provocativo aos líderes
mundiais: “As palavras de vocês são vazias. Vocês estão
destruindo o planeta e só falam em dinheiro, economia. Isso tudo é
mentira.”. Com esse trecho, podemos refletir como os discursos
acabam por refletir e refratar a realidade. Como Thunberg pontua,
em muitos discursos de líderes mundiais em relação ao meio
ambiente, é possível percebermos uma refração da realidade. Por
trás de palavras que se esforçam para divulgar uma preocupação
com as mudanças climáticas globais, há interesses econômicos
contraditórios.

391
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Outro trecho é importante para refletirmos sobre a relação


entre a palavra enunciada e o sentido construído. Cardoso, ao ler o
comentário que diz que “cultura brasileira é coisa de comunista”,
responde que “As palavras se descolam de seu sentido original.”.
Temos aqui, mais uma vez, o conceito bakhtiniano da refração, que
indica uma mudança, uma alteração dos sentidos dos signos ao
longo do tempo. A refração não é necessariamente uma distorção,
mas uma mudança dos sentidos atribuídos a determinados signos.
No contexto do vídeo, Pedro Cardoso ressalta as distorções que
foram promovidas, ao longo da história brasileira, em torno da
palavra “comunista”. “A palavra é o fenômeno ideológico par
excellence” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 98), logo, não possui um único
sentido cristalizado. Em oposição à palavra dicionarizada, abstrata,
congelada, morta, precisamos enxergar a palavra viva, em
constante mudança, sempre ressignificada e adquirindo novos
sentidos a cada vez que um sujeito diferente a enuncia (ou também
quando um mesmo sujeito a enuncia em diferentes contextos
extraverbais).
Assim, a palavra desponta como a arena de conflito entre
grupos sociais, sendo um território de disputa em torno dos
sentidos construídos e circulados socialmente. Portanto, para
entendermos tais movimentos em torno da língua, faz-se
necessário que levemos em conta a língua enquanto discurso,
sendo que o discurso é composto pelo enunciado, o qual, na
perspectiva bakhtiniana, sempre possui um tema. Em torno da
refração da palavra “comunista”, Pedro Cardoso indica que há
uma “confusão temática que favorece o fascismo”. Para o Círculo
de Bakhtin, tema é diferente de assunto, já que a questão do tema
tem a ver com o sentido. Assim, sentidos diferentes podem ser
gerados a depender do contexto extraverbal em que se enuncia,
mesmo que seja em relação a um mesmo assunto. O tema, portanto,
traz posicionamentos ideológicos. As escolhas feitas por cada
indivíduo revelam, então, o posicionamento ideológico de tal
sujeito.

392
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Por conseguinte, o tema do enunciado é definido não


apenas pelas formas linguísticas que o constituem –
palavras, formas morfológicas e sintáticas, sons,
entonação –, mas também pelos aspectos
extraverbais da situação. Sem esses aspectos
situacionais, o enunciado torna-se incompreensível,
assim como aconteceria se ele estivesse desprovido
de suas palavras mais importantes. O tema do
enunciado é tão concreto quanto o momento
histórico ao qual ele pertence. O enunciado só possui
um tema ao ser considerado um fenômeno histórico em toda
a sua plenitude concreta. É isso que constitui o tema do
enunciado. (VOLÓCHINOV, 2018, p. 228, grifos do
autor)

Por fim, Pedro Cardoso deixa-nos com a esperança de que


sempre é possível fomentar a presença de forças centrífugas, as
quais constantemente entram em choque com as forças centrípetas
que tentam, a todo custo, centralizar discussões, práticas e modos
de viver. Contra o fascismo e a ignorância violenta, apresenta-se o
poder do riso, do humor, do grotesco.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São


Paulo: Ática, 2006.
QUEBRANDO O TABU. “Política não tem nada a ver com Deus”
Pedro Cardoso Lendo Comentários. 2019 (10min07s). Disponível
em: <https://youtu.be/Xy9KW705jFo>. Acesso em: 30 ago. 2021.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova
Américo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

393
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

APONTAMENTOS DE LEITURA SOBRE A FORMAÇÃO DO


LEITOR RESPONSIVO

Priscila de Souza Chisté Leite


Instituto Federal do Espírito Santo
priscilachiste.ufes@gmail.com

Este texto é parte de pesquisa desenvolvida no Curso de


Licenciatura em Letras do Instituto Federal do Espírito Santo, em
2020. A investigação objetivou compreender as relações entre
Literatura e Cidade, com foco na análise do livro “As Cidades
Invisíveis” de Italo Calvino.
Desse modo, este artigo é um estudo teórico inspirado nos preceitos
bakhtinianos e pretende apresentar notas de leitura sobre o tema
Formação do Leitor Responsivo. Como modo de apresentar tais
apontamentos, iniciaremos discorrendo sobre a formação do leitor
a partir dos pressupostos bakhtinianos e, a seguir, apresentaremos
questões iniciais sobre a formação do leitor responsivo. Na
sequência, exibiremos os momentos da formação discursiva para,
adiante, expormos os posicionamentos do leitor diante do
horizonte responsivo. Para finalizar este texto, dialogaremos com a
temática Formação do Leitor por meio da Literatura no contexto
escolar.

Questões iniciais sobre a formação do leitor responsivo


Para iniciar essa discussão, cabe responder a algumas questões
iniciais: o que é formar? Quem é o leitor? Mais do que colocar o

394
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

leitor em um formato adequado, é preciso considerar que a


formação pressupõe um modo de contribuir para a apropriação de
um conhecimento que ajude o sujeito a entender a si mesmo, ao
mundo e ao outro de modo sensível e crítico. A formação do leitor,
nesse sentido, toma ares de liberdade. Ler seria o mesmo que
questionar, discordar, concordar, relacionar, interpretar a partir do
diálogo entre um texto e um leitor que possui uma experiência de
vida singular. O leitor seria um debatedor, um interlocutor ativo
que responde ao texto literário a partir das provocações do autor e
que tem a consciência da importância da literatura para a sua
formação intelectual, cultural e estética.
Um leitor responsivo seria aquele que está implicado. É, assim
como o autor, aquele que responde pelo que faz e pelo que diz. Suas
respostas atendem a uma série de acontecimentos presentes na
vida. Por um lado, o autor elabora sua obra em meio ao contexto
em que vive, suas experiências, concepções de mundo. Por outro, o
leitor lê a obra carregado de seus sentimentos, vivências e
concepções. O fato comum é que ambos respondem. Nas palavras
de Bakhtin (2011, p. XXXIV),
O poeta deve compreender que sua poesia tem culpa pela prosa
trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta
de exigência e a falta de seriedade de suas questões vitais
respondem pela esterilidade da arte. O indivíduo deve tornar-se
inteiramente responsável: todos os momentos devem não só estar
lado a lado na série temporal de sua vida, mas também penetrar
uns os outros na unidade da culpa e da responsabilidade. [...] Arte
e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular a
mim, na unidade da minha responsabilidade.
Conforme nos ensina Bakhtin (2011), ao perceber e compreender
um texto (seja ele literário ou não), o leitor ocupa em relação ao que
lê uma posição ativa responsiva:
[...] concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o,
aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição do ouvinte se

395
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde


o seu início, às vezes literalmente a partir da palavra do falante.
Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza
ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante
diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou
naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante
(BAKHTIN, 2011, p. 271).
Pode até ser que não respondamos rapidamente ao texto, mas, cedo
ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido poderá ser
replicado. Isso quer dizer que, ao lermos um texto que faz sentido
para nós, ele passa a constituir nossas futuras respostas a outros
textos. Nossas ideias nascem e se formam em interação e confronto
com pensamentos dos outros, sendo eles oriundos da literatura ou
de diálogos cotidianos: “A contemplação estética e o ato estético
não podem abstrair a singularidade concreta do lugar que o sujeito
desse ato e da contemplação artística ocupa na existência”
(BAKHTIN, 2011, p. 22). Nesse sentido, o leitor vai compreender a
obra a partir do seu lugar, do lugar que ele ocupa e em meio aos
conflitos e contradições que permeiam a sua sociedade. Vejamos,
na próxima seção, como ocorre esta compreensão.

A Compreensão Responsiva
Para Ponzio (2010, p. 11), a compreensão responsiva refere-se a
uma “[...] conexão entre compreensão e escuta, escuta que fala, que
responde, mesmo que não imediata e diretamente; por meio da
compreensão e pensamento participante”. É um ato singular que
compõe a vida do sujeito, seja ele autor ou leitor. Um agir que
carrega toda a vida, no qual “[...] cada ato singular e cada
experiência que vivo são um momento do meu viver-agir”
(BAKHTIN, 2010, p. 44). Assim, objeto estético e mundo estão em
relação com a singularidade dos sujeitos, tanto na vida quanto na
arte. Nesse sentido, responder a um texto está relacionado com a
nossa unicidade, fundada no não-álibi do existir, pois conhecer o

396
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

objeto estético é também um reconhecer que nos obriga


responsavelmente. Para Bakhtin (2010), a transformação do
conhecimento em reconhecimento não é uma questão de utilização
imediata como meio técnico para satisfação de alguma necessidade
prática da vida: “Reafirmamos que viver a partir de si não significa
viver para si, mas significa ser, a partir de si, responsavelmente
participante, afirmar o seu não álibi real e compulsório no existir”
(BAKHTIN, 2010, p. 108).
Conforme Bakhtin (2011), para compreender um objeto estético,
torna-se relevante olhar para a cultura na qual ele está inserido e, a
seguir, olhar para o mundo a partir dele e de tudo aquilo que ele
carrega. Entretanto, compreender um objeto estético não para por aí:
A compreensão criadora não renuncia a si mesma, ao seu lugar no
tempo, à sua cultura, e nada esquece. A grande causa para a
compreensão é a distância do indivíduo que compreende – no
tempo, no espaço, na cultura – em relação àquilo que ele pretende
compreender de forma criativa. Isso porque o próprio homem não
consegue perceber de verdade e assimilar integralmente nem a sua
própria imagem externa, nenhum espelho ou foto o ajudarão; sua
autêntica imagem externa pode ser vista e entendida apenas por
outras pessoas, graças à distância espacial e ao fato de serem outras
(BAKHTIN, 2011, p. 366).
Para Bakhtin (2011), a distância é a alavanca mais poderosa da
compreensão. A cultura do outro só se revela com plenitude e
profundidade aos olhos de outra cultura:
Um sentido só revela suas profundidades encontrando-se e
contactando com outro, com o sentido do outro: entre eles começa
uma espécie de diálogo que supera o fechamento e a
unilateralidade desses sentidos, dessas culturas. Colocamos para a
cultura do outro novas questões que ela mesma não se colocava:
nela procuramos resposta a essas questões, e a cultura do outro nos
responde, revelando-se seus novos espaços, novas profundidades

397
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

do sentido. Sem levantar nossas questões não podemos


compreender nada do outro de modo criativo (é claro, desde que
se trate de questões sérias e autênticas). Nesse encontro dialógico
de duas culturas elas não se fundem nem se confundem; cada uma
mantém a sua unidade e a sua integridade aberta, mas elas se
enriquecem mutualmente (BAKHTIN, 2011, p. 366).
Cabe portanto, no próximo tópico, analisarmos com mais detalhes
como ocorre a compreensão do objeto estético por meio dos dois
posicionamentos do leitor em frente ao horizonte responsivo.

Posicionamentos diante do horizonte responsivo


Bakhtin (2011) explica que existem, ao menos, dois
posicionamentos diante do horizonte responsivo. São momentos
da atividade estética do leitor do objeto estético, considerado por
Bakhtin como co-criador ou autor-contemplador. O primeiro
posicionamento diante do horizonte responsivo é
a compenetração. Ela é uma vivência parcial, pressupõe viver o
que o outro viveu, mas falta o que eu vejo e sou a partir do meu
lugar. Para exemplificar a compenetração, Bakhtin (2011) apresenta
o exemplo da personagem que sofre em uma determinada obra
ficcional ou em uma pintura. Ele diz que, nessa posição, o autor-
contemplador não vê a tensão sofrida dos músculos da
personagem, a pose plasticamente acabada do seu corpo, a
expressão do seu rosto, não vê o céu azul que coloca em destaque
a imagem do sofrimento da personagem. Nessa posição, o
contemplador não percebe os elementos transgredientes da obra,
ou seja, os elementos formais que estão em diálogo com o conteúdo.
Na compenetração, os elementos transgredientes são abstraídos,
desconsiderados, são utilizados apenas como indicativo,
dispositivo técnico de compenetração. Os elementos
transgredientes na compenetração (tidos como expressividade
externa) são considerados apenas como caminho através do qual

398
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

eu penetro no interior do objeto estético e eu quase me fundo nele,


ou seja, eu quase me fundo com o indivíduo que sofre.
Sobre a fusão do contemplador com a personagem que sofre,
Bakhtin (2011) indaga: o que ocorreria com o acontecimento
estético se eu me fundisse com outra pessoa, se de dois
passássemos a um? Que vantagem eu teria se o outro se fundisse
comigo? Será que essa fusão minha com o indivíduo que sofre é o
objetivo da atividade estética? Será que é só considerar que a
expressividade externa é apenas um meio que tem meramente uma
função cognitiva?
Para ele, a compenetração deve ser seguida de um retorno a mim
mesmo, do meu lugar fora do sofredor. Se não saímos do lugar do
sofredor, pode ocorrer um fenômeno patológico do vivenciamento
do sofrimento alheio com meu próprio sofrimento e só. Essa é uma
compenetração pura, vinculada à perda do nosso lugar fora do
outro. Essa compenetração pura, além de ser inútil, é sem sentido:
“Quando me compenetro dos sofrimentos do outro, eu os vivencio
precisamente como sofrimentos dele, na categoria do outro, e
minha reação a ele não é um grito de dor e sim uma palavra de
consolo e um ato de ajuda” (BAKHTIN, 2011, p. 24).
Conforme Bakhtin (1988, p. 40), “[...] a empatia e a co-avaliação
simpática não compõem um valor estético. O conteúdo da empatia
é ético, é uma diretriz axiológica (emocional e volitiva) de uma
outra consciência”. Nesse sentido, podemos aproximar a
compenetração à catarse grega (Aristóteles) – a catarse como
purificação por meio da tragédia, a catarse como purgação das
emoções através da piedade e do temor que purifica as emoções
após assistirmos à tragédia. Uma catarse como empatia que
comove e modela o comportamento. Por conseguinte, “[...] o ato da
empatia pode ser compreendido e reelaborado em diferentes
direções, sendo que a mais difundida é a da compreensão do
conteúdo relacionada com a simpatia, a compaixão e a ajuda”
(BAKHTIN, 1988). Portanto, é possível considerar que a

399
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

compenetração é o primeiro momento da atividade estética. É uma


posição onde o autor-contemplador está um pouco mais afastado
do horizonte responsivo, mas bem próximo do sujeito que sofre, ou
do herói que empreende vitória, ou do desiludido que pretende
acabar com a sua própria vida.
Já o segundo momento da atividade estética é chamado por
Bakhtin (2011) de acabamento do material da compenetração. Ele
explica que atividade estética começa quando retornamos a nós
mesmos e ao nosso lugar fora da pessoa que sofre, quando
“enformamos” (damos forma) e damos acabamento ao material da
compenetração. Em outras palavras, quando a “enformação” e o
acabamento ajudam a preenchermos o material da compenetração,
quando eu compreendo o sofrimento da personagem e dou
acabamento aos elementos transgredientes da obra. Como
dissemos, tais elementos são todo o mundo material da consciência
sofredora. São os elementos que, no acabamento, têm uma nova
função que não é mais a puramente comunicativa.
A postura do corpo da personagem que nos comunicava
sofrimento e nos conduzia para o sofrimento interior, no segundo
momento da atividade estética, torna-se um valor puramente
plástico, como uma expressão que encarna e dá acabamento ao
sofrimento expresso. Os tons volitivos-emocionais dessa
expressividade já não são tons de sofrimento; o céu azul, que abarca
a personagem que sofre torna-se elemento pictural, que dá solução
e acabamento ao seu sofrimento. E todos esses valores (cores,
formas, texturas, no caso da pintura) que concluem a imagem da
personagem que sofre, eu os hauri (eu os coloquei para fora) do
excedente da minha visão, da minha vontade e do meu sentimento
(BAKHTIN, 2011). Eu me compadeço, por exemplo, da
personagem que sofre, mas percebo que a forma, cor, textura são
elementos expressivos que geram a sensação de sofrimento.
Para Bakhtin (2011), os elementos da compenetração e do
acabamento não se sucedem cronologicamente – um após o outro,

400
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

não são passos. Eles possuem sentidos diferentes apesar de estarem


entrelaçados e se fundirem no vivenciamento ativo. Então, o
vivenciamento ativo envolve a compenetração e o acabamento. O
vivenciamento ativo da obra é a fusão da compenetração com o
acabamento do material da compenetração.
Nesse sentido, na obra de arte, os elementos expressivos
transgredientes exercem uma função dupla: orientam a
compenetração e lhe dão acabamento. Nossa tarefa imediata, então,
é examinar os valores plásticos-picturais e espaciais que são
transgredientes à consciência e ao mundo da personagem, à sua
diretriz ético-cognitiva no mundo, aos valores que concluem o
mundo de fora, a partir da consciência do outro sobre ele, da
consciência do autor-contemplador. O elemento transgrediente é o
valor (cor, forma, textura) que dá solução e acabamento ao
sofrimento da personagem. Se pensarmos que elementos
transgredientes estão para a relação forma e conteúdo, podemos
entender que o conteúdo é acabamento com ajuda do material, dos
elementos transgredientes. Fora do conteúdo (que é essa relação
com o mundo – conhecimento e ato ético), a forma não é
significante.
A forma esteticamente significante, então, é a expressão de uma
relação substancial com o mundo do conhecimento (mundo
cognitivo) e do ato (mundo ético). Nessa relação, o artista ocupa
uma posição fora do lugar do acontecimento. O artista é um
assistente desinteressado que compreende o sentido axiológico
daquilo que realiza, sem se submeter ao acontecimento. Por
conseguinte, conteúdo e forma são grandezas diferentes, mas são
interdependentes. Para que a forma tenha significado estético, o
conteúdo que a envolve deve ter um sentido ético e cognitivo. A
forma precisa do peso extra-estético (fora do estético) do conteúdo,
sem o qual ela não pode realizar-se enquanto forma. A forma
artística é a forma de um conteúdo, mas inteiramente realizada no
material, como que ligada a ele: “Para compreender a obra de arte

401
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

é preciso fazer que o objeto estético seja uma expressão da nossa


relação ativa e axiológica. É preciso ingressar como criador no que
se vê, e desta forma, superar o caráter da obra como coisa”
(BAKHTIN, 1988, p. 57). A forma passa a ser compreendida como
expressão da relação axiológica ética do autor-criador e do
indivíduo que percebe (co-criador da forma) com o conteúdo.
Compreender esses dois posicionamentos do autor-contemplador
diante do horizonte responsivo nos ajuda a perceber que, para
estudarmos o objeto estético, é preciso compreendê-lo na sua
singularidade (naquilo que só ele é). É preciso compreendê-lo
sinteticamente, no seu todo. Temos que compreender a forma e o
conteúdo na sua inter-relação essencial e necessária: compreender
a forma, compreender a singularidade e a lei de suas inter-relações.
Nesse contexto, o objeto estético é um conteúdo dotado de forma.
Diante dele, eu me sinto como sujeito ativo. Penetro na forma,
considerando-a como seu elemento constitutivo indispensável. Eu
dou acabamento ao material da compenetração, porque com um só
e único participante não pode haver acontecimento estético; “[...] a
consciência absoluta, que não tem nada que lhe seja transgrediente,
nada distanciado de si mesma e que a limite de fora, não pode ser
transformada em consciência estética, pode apenas familiarizar-se
mas não ser vista como um todo passível de acabamento”
(BAKHTIN, 2011, p. 19-20).
Do ponto de vista da real eficácia do acontecimento, quando somos
dois o que importa não é que além de mim exista mais um
indivíduo, no fundo o mesmo (dois indivíduos), mas que ele seja
outro para mim, e neste sentido a simples simpatia dele por minha
vida não representa nossa fusão num ser único nem a repetição
numérica da minha vida e sim um enriquecimento substancial do
acontecimento, pois minha vida é vivenciada empaticamente por
ele em nova forma, em nova categoria axiológica como vida do
outro, que tem colorido axiológico diferente e é aceita e justificada
diferentemente da própria vida dele. A eficácia do acontecimento
não está na fusão de todos em um mas na tensão da minha distância

402
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

e da minha imiscibilidade, no uso do privilégio do meu lugar único


fora dos outros indivíduos (BAKHTIN, 2011, p. 80).
Nós completamos o outro naquilo que ele não pode fazer sozinho.
Podemos nos compadecer das personagens, mas retornamos para
o nosso lugar, fora da pessoa que sofre (se for esta a sina da
personagem).
A empatia estética – a visão do herói, do objeto, a partir do interior
– se realiza ativamente desde meu lugar exotópico, e precisamente
a partir daqui se realiza a recepção estética, afirmação e enformação
da matéria da empatia na arquitetônica unificante da visão. A
exotopia do sujeito, exotopia espacial, temporal, valorativa, o fato,
isto é, que não sou eu mesmo o objeto da empatia e da visão, torna
possível, pela primeira vez, a atividade estética da enformação.
Todos os componentes concretos da arquitetônica convergem em
torno de dois centros valorativos (o herói e a heroína) e são ambos
igualmente envoltos em um único evento da atividade estética
humana, valorativa, afirmativa (BAKHTIN, 2010, p. 132).
Damos um acabamento que somente nós podemos dar ao que
lemos, do lugar que ocupamos. Nesse sentido, o que foi escrito não
está acabado, só se completa com a presença do outro. Contudo,
esse acabamento é provisório, pois pode ser modificado até o
encontro com outra alteridade. Isso nos leva a pensar que variadas
são as possibilidades de acabamento, fato que, no campo do ensino
de literatura, pode tornar-se bastante interessante, pois o professor
apresenta um texto literário para uma turma que, estimulada a
realizar a leitura, terá muitas coisas a dizer sobre o que leu,
integrando uma roda de dizeres implicados pelo texto, mas
também repletos da vida de cada um dos leitores. Observemos
mais sobre as relações entre a formação do leitor e a educação
escolar na próxima seção.

403
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Literatura, Formação do Leitor e Educação Escolar


Sobre a relação do leitor com o texto literário no campo da educação
escolar, Carvalho (2014) defende ser necessário estimular uma
postura responsiva e participante dos envolvidos no ato de ler. O
encontro entre a palavra e o sujeito que lê estabelece uma
experiência capaz de modificar sua visão de mundo e também
mudar o modo como entende sua própria existência:
“Estranhamento, surpresa, ruptura, imprevisibilidade, incômodo e
tantos outros sentimentos são necessários para que o leitor
problematize a realidade que o circunda e faça do contato com os
livros uma prática também de experiência coletiva inserida na
dimensão histórica” (CARVALHO, 2014, p. 173).
Apesar de considerar a potência do encontro entre leitor e texto
literário, Carvalho (2014, p. 173) pondera que, na prática escolar,
ainda “[...] existem fissuras entre o que teorizamos e o que podemos
fazer com os livros e a leitura em suas múltiplas vertentes na
escola”. Como alternativa ao problema, defende aulas de literatura
que estimulem os alunos a dialogarem com o texto literário e a
agirem sobre ele: “Podemos estimular a interlocução entre nossos
alunos-leitores e o texto, de modo que eles criem uma postura ativa
diante do que leem, estabelecendo conexões entre o passado e o
presente, no sentido de que a leitura seja uma atividade reflexiva e
consciente” (CARVALHO, 2014, p. 175).
Carvalho (2014) afirma que a leitura é uma atividade
sociocultural, pois o ato de leitura não corresponde a
[...] reproduzir a fala do autor, mas, a partir do horizonte social e
das concepções do leitor, tomar uma atitude responsiva ativa, um
ato de constituição de sentido que integra [...] um conflito de vozes
entre o texto, o autor, o leitor, as outras vozes sociais e o próprio
mundo histórico-social que circunda todos os envolvidos no
processo (CARVALHO, 2014, p. 175).
Ainda sobre o trabalho com a Literatura no contexto escolar,
Carvalho (2014) expõe alguns questionamentos, entre eles: quais

404
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

relações estabelecemos com nossos alunos no ato de leitura? A


leitura na escola tem se constituído espaço de interação entre as
múltiplas vozes que compõem o cenário social? Qual a importância
da escolarização da leitura para a formação do leitor ativo? A partir
dos livros, temos possibilitado um diálogo entre a literatura e o
universo dos nossos alunos? Qual a relação entre a Literatura e a
construção de alguns valores sociais?
Tais questões podem mobilizar o professor a superar atividades
tradicionais voltadas para questões puramente gramaticais ou
biográficas sobre o autor. A ideia é que as aulas de Literatura
estimulem um encontro com o texto capaz de provocar espanto,
inquietação, dúvida e perplexidade, ultrapassando expectativas
técnicas ou utilitaristas, assumindo uma dimensão social e
concreta, na qual autor, obra, professores e alunos-leitores
estabeleçam diálogo e compartilhem descobertas que o livro lhes
pode oferecer (CARVALHO, 2014). A partir daí,
As atividades de leitura passam a ser vivas, emancipatórias e, porque
não dizer, sedutoras, uma vez que significam ir além das pretensões
moralizantes e dogmáticas para adentrarem os conflitos e os
paradoxos próprios da condição humana. Nesse processo dialógico
de leitura, o leitor constitui-se em meio às transgressões da própria
língua, trata de assuntos que permeiam sua realidade histórica,
encontra na linguagem metafórica e nos recursos expressivos da
linguagem literária a fenda necessária para se sobrepor à rigidez das
prescrições inevitáveis da vida (CARVALHO, 2014, p. 177).
A perspectiva de ensino de literatura defendida por Carvalho
(2014, p. 178) não ignora a relação entre a linguagem literária, os
recursos expressivos que a caracterizam e os valores socioculturais
próprios do contexto de produção da obra. Considera também a
“[...] compreensão do momento histórico em que vivem os seus
leitores, sujeitos que agregarão à leitura novas significações, a
partir dos seus valores e concepções” (CARVALHO, 2014, p. 178).
Nessa perspectiva,

405
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[...] um leitor participativo e crítico torna-se sensível aos milhares


de Fabianos e Sinhás Vitórias que vivem até hoje, miseravelmente,
no sertão nordestino; às Macabéas solitárias, silenciosas e
silenciadas pela dureza da vida; aos Josés drummondianos que
seguem errantes em seu tempo, sem perspectiva, perplexos diante
das transformações sociais; aos Brás Cubas subversivos e
malandros, tão humanos, tão julgados e incompreendidos e com
tantos outros inesquecíveis personagens que vagam anônimos em
nosso tempo. Sob a ótica bakhtiniana, a leitura constitui-se no
processo de interação verbal, mediada pelo livro e por seus
interlocutores ativos, constituídos por sua vez, pelas suas histórias
de vida, valores, experiências, medos, desejos, contradições,
indignações e, principalmente, por suas realidades históricas
concretas (CARVALHO, 2014, p. 178).
Portanto, o encontro com o texto literário ajuda a pensar sobre
questões urgentes do nosso tempo, estimulando posicionamento
crítico diante dos problemas impostos por uma sociedade desigual.
Uma resposta dada por um leitor responsivo e ativo que “[...]
buscará sempre estabelecer conexões entre o seu mundo, a sua
palavra e o mundo e a palavra do outro, com o qual compartilha,
diverge, concorda, aprende e ensina um pouco do que leu nos
livros e na vida” (CARVALHO, 2014, p. 180).

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.
________. Para uma Filosofia do ato responsável. São Carlos:
Pedro & João, 2010.
________. Questões de literatura e estética (A teoria do Romance).
São Paulo: Hucitec Editora, 1988.
CARVALHO, Letícia Queiroz de. A leitura na escola: as contribuições
de Mikhail Bakhtin para a formação do leitor responsivo. Pensares em
Revista. São Gonçalo-RJ, n. 5, p. 171-182, jul./dez., 2014.

406
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

AS CRIANÇAS MIGRANTES ESTRANGEIRAS: vozes infans

Joaquim Rauber
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Em afastamento
para qualificação com fomento do IFRS.
joaquim.rauber@bento.ifrs.edu.br

Alana Morari
IFRS Campus Bento Gonçalves
alana.morari@bento.ifrs.edu.br

Vozes de crianças.
Vozes de infâncias.
Vozes de crianças e de infâncias.
Vozes de crianças e de infâncias migrantes estrangeiras.
Como dialogamos com essas vozes?

Pensar as crianças migrantes estrangeiras traz uma enorme


responsabilidade. Entende-se as crianças para muito além de uma
visão simplificada, vazia e fragilizada. Há, ainda, a importante
discussão acerca das crianças e das infâncias, muitas vezes,
encaradas como sinônimos. Não são possíveis de serem
sobrepostas como etapas ou fases da cronologia do ser humano. O
percurso histórico da ideia de criança nos mostra que há uma

407
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

construção que desvaloriza, tratando-as como seres incompletos,


incapacitadas para ter voz.
Historicamente essas concepções reforçaram-se de teorias e
tendências, nas quais as crianças são como folhas em branco que
estão para serem preenchidas e treinadas pelos adultos. Cabe dizer
que esse acabamento e esvaziamento das concepções de criança,
como herança, recaem sobre todas as crianças, inclusive as
estrangeiras. Compreender a constituição e os fundamentos das
concepções de uma infância comum e do modo de ser criança na
atualidade expõe concepções postas e naturalizadas acerca de
infância e criança.
Etimologicamente, o termo criança vem do latim creare, que tem o
sentido de “erguer, produzir, levantar”. Relaciona-se ao
termo crescere “crescer, aumentar” do indo-europeu ker “crescer”.
Diante disso, é possível relacionar os sentidos da etimologia das
palavras quando há a referência ao “desenvolvimento das
crianças”.
A etimologia da palavra infância, por sua vez, tem origem do
latim infans, que significa - o que não fala. Guarda relação com a
ideia do ser que acaba de adentrar ao mundo ainda sem linguagem.
Na tradição filosófica ocidental essa relação é traduzida nas
concepções de um ser irracional, sem um pensamento e sem
conhecimento em função da ausência da linguagem. Logo, um ser
que pode ser treinado, ensinado, educado e, portanto, controlado.
E, entrando no mundo com voz, mas ignorada ou apenas assistida
passivamente sob a ideia de que não compreende e não é
compreendida. Assim, a infância estaria pensada como condição
das crianças. A infância como uma representação social dos adultos
sobre o primeiro período da vida humana.
Nos últimos anos tem se tornado frequente as discussões acerca dos
movimentos de migração, mas, bem menos quando referidas às
crianças migrantes. Apresentam para seus contextos e realidades,
como no estado do Rio Grande do Sul, implicações políticas,

408
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

econômicas, sociais, culturais e educacionais. Pouco se têm focado


na abordagem da questão pelo ponto de vista educacional,
especialmente pelas crianças estrangeiras e com elas.
Crianças migrantes estrangeiras que se achegam em espaços que
aparentemente se apresentam como consolidados, fechados,
acabados pelas disposições que já estão dadas. E por isso, pensa-se
nelas mudas. Ainda mais emudecidas pelo idioma. Mas, há de se
pensar que algumas palavras e algumas vozões nos são proibidas
ainda que nesta língua comum do espaço. Extrangeiridade que
habita a todos, mas que erroneamente tendemos a deslocar como
se fosse exterior a nós mesmos.
Alongar e fomentar outras discussões com Bakhtin está
principalmente na celebração da alteridade e na possibilidade de
transgressão de fronteiras. Fronteiras não só geográficas, mas da
palavra, do corpo e da linguagem.

As línguas são concepções de mundo, não abstratas, mas concretas,


sociais, atravessadas pelo sistema das apreciações, inseparáveis da prática
corrente e da luta de classes. Por isso cada objeto, cada noção, cada ponto
de vista, cada apreciação, cada entoação, encontra-se no ponto de
intersecção das fronteiras das línguas-concepções do mundo, é englobado
numa luta ideológica encarniçada. Nessas condições excepcionais, torna-
se impossível qualquer dogmatismo linguístico verbal, qualquer
ingenuidade verbal. (BAKHTIN, 1987, p. 415)

É preciso, portanto, refletir a serviço de quem, por quem e com


quem essa língua opera. Se considerarmos a constituição histórica
das ideias de crianças e infância, esta no singular para se entender
como única e universal, perceberemos que é preciso que reivindicar
a língua às crianças e às infâncias – múltiplas. Assim,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Uma língua, como diz Bakhtin, pode ser vista somente através dos olhos
de outra língua; portanto, a identidade lingüística, seja como forma de ser
específica de uma língua, seja como consciência lingüística, é secundária
no que diz respeito à relação de alteridade que se dá em um espaço mais ou
menos plurilingüístico. Além disso, Bakhtin insiste no fato de que a língua
nacional nunca é unitária; junto com as forças centrípetas que buscam a
unificação existem também forças centrífugas que tentam a dispersão. A
língua nacional se compõe de diferentes formas de falar (segundo o grupo
social, a profissão, o tipo de trabalho), de diferentes linguagens cotidianas,
técnicas, jargões. De fato, podemos falar de plurilingüismo interno dentro
de uma mesma língua nacional, além de um plurilingüismo externo,
determinado pela relação com outras línguas. (PONZIO, 2008, p. 24).

É pela potência de desestabilizar as concepções que pensar a partir


de Bakhtin permite-nos uma reflexão que fica aberta para seguir
ressoando. Refletir acerca da língua que parece dominar neste
espaço geográfico que nos encontramos, nos domina inclusive: não
seria hora de dialogar com outras vozes como as das crianças
migrantes estrangeiras, apostando que elas nos provoquem a dizer
uma língua ainda não dita e longe de ser acabada?

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. A Cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: O contexto de Fraçois Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 1987.
PONZIO, A. A Revolução Bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin
e a ideologia contemporânea. Coordenador de tradução Valdemir
Miotello. São Paulo: Contexto, 2009.

410
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SCHÉRER, René. Infantis: Charles Fourier e a infância para além


das crianças. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009.

411
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

As redes sociais digitais como praça pública e lugar para o


grotesco

Orlando Silva de Oliveira


UERN / IFSertão-PE
orlando.silva@ifsertao-pe.edu.br

Kélvya Freitas Abreu


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão
Pernambucano
kelvya.freitas@ifsertao-pe.edu.br

Ao se falar sobre redes sociais, já associamos o termo às plataformas


digitais destinadas à socialização de conteúdos por meio da
Internet. Todavia, já nos tempos mais remotos os seres humanos
primitivos utilizavam as paredes das cavernas como painéis para
registro e exposição de suas histórias através de desenhos simples,
tais como: animais, plantas, humanos em caçadas e outras
aventuras diversas. Naquela época, as paredes dessas cavernas
eram utilizadas como mural para a socialização de conteúdos
relacionados à vida cotidiana dos membros de um grupo
(DUARTE; SILVA, 2015).
À medida que o tempo foi passando, os avanços tecnológicos
permitiram modificações no modo como as informações poderiam
ser socializadas. Nesse processo de evolução, esses conteúdos
passaram da parede de pedras para o papel impresso, e, a posteriori,
do meio analógico para o digital. A título de exemplificação, com o
surgimento do telefone, as pessoas puderam utilizar a voz para se

412
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

comunicar em tempo real, mesmo separadas por grandes


distâncias físicas. Porém, foi através da conexão dos computadores
digitais em âmbito mundial que os seres humanos puderam fazer
com que conteúdos multimídia com grande volume de dados
pudessem ser enviados, reformulando noções de tempo e de
espaço no processo interativo, pois ainda seria possível a qualquer
parte do globo, por meio da Internet, o acesso a esses conteúdos
independente de hora e lugar.
Desse modo, nos primórdios da Internet, as informações eram
disponibilizadas apenas por pessoas que dominavam os
conhecimentos técnicos necessários à criação e publicação dos
conteúdos. Não era, portanto, algo tão fácil a ponto de qualquer
pessoa conseguir executar tais tarefas. Ainda assim, as tecnologias
relacionadas a esse sistema mundial de redes de computadores
continuaram evoluindo e, no início da década de 2000, os serviços
disponíveis apresentavam a característica de buscar aproveitar a
inteligência coletiva social para aprimorar seus usos, tal etapa foi
batizada de Web 2.0 (BEZERRA; BRITO, 2017). Assim, a partir
desses novos serviços da Internet, o usuário deixou de ser um mero
consumidor de conteúdo e começou a poder contribuir com a
criação dos conteúdos apresentados nos sites ou em outras mídias,
transformando e surgindo uma nova cultura discursiva advinda
dessas redes (FURTADO, 2019).
Nessa nova fase, começaram a aparecer serviços nos quais as
pessoas podiam se cadastrar e criar perfis virtuais descrevendo a si
próprias, criar comunidades e trocar informações sobre os mais
variados temas. Logo, esses serviços começaram a ser chamados de
redes sociais digitais ou simplesmente redes sociais (GNIPPER,
2018). A partir de então, pessoas do mundo inteiro poderiam se
conhecer, através de seus perfis virtuais e trocar qualquer tipo de
informação (qualquer tipo mesmo!).
Portanto, a Web 2.0 foi o marco que democratizou a produção de
conteúdos para a Internet, pois, com o seu surgimento, pessoas

413
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“comuns” e sem grandes conhecimentos técnicos começaram a


publicar suas impressões da realidade, estabelecendo uma nova
forma entre o privado versus o público em suas respectivas redes
sociais, contribuindo, de igual modo, para a chegada massiva da
“praça pública” aos conteúdos da Internet.
Diante disso, ao se tornar “praça pública”, a rede mundial de
computadores nunca mais seria a mesma, visto que o mundo
virtual ganhou uma potência para o grande palco de vozes sociais
de diversas frentes. Essas vozes, que antes eram silenciadas pelo
discurso da cultura oficial que ecoava nos websites, ganharam com
o avanço das redes, sobretudo as sociais, espaço para discursos
híbridos (oficial x não-oficial, distintas formas de interação, estilos,
tons, cronotopos desordenados, entre outros pontos - FURTADO,
2019). Neste quesito, reforçamos que segundo Bakhtin (1996), o
movimento ligado à cultura oficial, esse movimento que busca
normatizar as regras a serem seguidas, deveria ser reconhecido
como realismo clássico. Porém, com as redes sociais, a Internet
deixa de ser uma “vitrine de lojas de grife”, cuja perfeição estética
é a regra, e traz à baila um outro tipo de discurso, um discurso que
zomba das autoridades constituídas, que contesta a cultura oficial,
que satiriza os poderes e poderosos, que ri do que está posto,
questionando a ordem social vigente. Esse palco, essa arena de
valores sociais contraditórios, dá espaço para a dispersão, a
carnavalização, o riso, o rebaixamento, o grotesco. Elementos esses
já sinalizados por Bakhtin (1996), no livro intitulado “A cultura
popular na idade média e no renascimento: o contexto de François
Rabelais”.
Dessa forma, as redes sociais tornaram-se um espaço no qual as
pessoas compartilham todos os tipos de conteúdos, tais como: o
que comeram, por onde andaram, o que compraram, inícios e
términos de relacionamento, tristezas e alegrias da vida, notícias do
cotidiano, questões partidárias, bandeiras políticas, entre outros
pontos. Muitas informações que antes eram tidas como privadas,
escritas em um diário e trancadas a sete chaves, nas páginas das

414
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

redes sociais se tornaram públicas e passíveis de interações por


meio dos famosos likes e/ou das opiniões/comentários de outros
usuários. Entretanto, esse mesmo grupo não transpõe de forma
fidedigna o seu mundo “real”, pois se continua vivendo “à moda
antiga” em relação à sua privacidade, aos seus problemas, às suas
angústias, o que se é revelado nas redes é somente uma parte dessa
realidade que busca uma “aceitação”, um “joinha”.
Assim, essa dualidade no modo de se apresentar na vida “real” e
na vida “virtual”, por meio das redes sociais, coaduna com a
estética do realismo grotesco, descrita por Bakhtin (1996) ao
estudar as obras de Rabelais; uma vez que o realismo grotesco traz
como aspectos importantes a ambivalência, a cultura do riso, a
sátira, os corpos exagerados, inacabados e em constante evolução e
a hiperbolização das necessidades fisiológicas (BAKHTIN, 1996).
Neste caso, a estética grotesca apresenta-se antagonicamente à
cultura oficial pomposa e solene, revelando o corpo humano e a
carnalidade por meio de um tipo estético peculiar (MAJKOWSKI,
2019).
Isto posto, enfatizamos que sob a visão bakhtiniana da
carnavalização e da sua estética grotesca, percebemos, de início,
que os usuários das redes sociais assumem comportamentos
carnavalizados, como por exemplo a utilização de “máscaras”
sociais, visto que muitos assumem um comportamento distinto de
suas ações no dia a dia da vida “real”, sendo que alguns deles até
criam perfis falsos para assumirem papéis sociais que não
experienciam nas suas vidas cotidianas.
Nessa linha, ao fazerem publicações de si próprias, muitas pessoas
buscam, no geral, apenas apresentar os aspectos que a sociedade
valora como “bons”, mascarando nesta grande praça pública
valores, sentimentos e/ou comportamentos que de certo modo
trariam o embate ou que não seriam amplamente aceitos
(dificuldades, desgraças, tristezas, etc.). Por isso, as postagens

415
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

deixam, por muitas vezes, transparecer uma vida cheia de


felicidades, de riqueza e de sucesso.
Por outro lado, essa mesma realidade fez com que surgisse ainda e
ganhasse destaque nas redes sociais a figura dos “influenciadores”
digitais, também conhecidos pela denominação inglesa, influencers.
Logo, refletimos que o papel social de um influenciador é o de fazer
com que as outras pessoas repliquem suas práticas, copiem seu
estilo; fazendo-nos lembrar o papel do ventríloquo, que veste o seu
boneco com uma roupa igual a sua e o manipula apropriadamente.
Em redes sociais, como o Instagram, cujos enunciados são
majoritariamente imagéticos, a questão da estética corporal é um
aspecto de grande relevância social. Todavia, devido às tecnologias
de processamento digital de imagem disponibilizada
pelo Instagram, os usuários podem realizar “aperfeiçoamentos” na
sua própria imagem, distorcendo a realidade de seus corpos
através de recursos denominados de filtros, sobrepondo mais
máscaras nesta praça pública. Há filtros para “correção” dos olhos,
nariz, boca, pele e do corpo como um todo, por meio do aumento
e/ou redução de partes do corpo. As distorções da realidade
corporal exibidas nessa rede social criam uma legião de pessoas
querendo ter a aparência do seu ídolo, mas a estética almejada
muitas vezes é apenas o resultado artificial de um filtro de câmera
(HALLETT, 2020). Esses filtros geram transformações na aparência
do usuário, criando uma imagem alterada de si, algo como um “eu
ideal”, porém, existente apenas no mundo virtual.
Dessa maneira, a influência social promovida pelas redes vem
ditando padrões que promovem o estabelecimento de um corpo
social esteticamente igual (CODEÇO, 2021), mas formado de várias
pessoas distintas, em uma efervescência social pela busca da
estética homogênea. Reforçamos que essa influência promove a
busca pela constante transformação dos corpos, em um processo de
renovação que, com o passar do tempo há, nessa metamorfose, a
cópia da imagem do mais influente pelos que se julgam menos

416
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

influentes dentro do grupo social do qual fazem parte,


comprovando ainda que neste palco virtual temos o embate de
vozes sociais que geram ações, de igual modo, sociais.
Em relação à representação grotesca da realidade, o tempo é
passageiro e promove mudanças na natureza, nos corpos e na
ordem social na qual esses corpos estão presentes (MAJKOWSKI,
2019), posto o grande número de cirurgias plásticas de jovens
querendo mudar a sua estética corporal devido a padrões que a
sociedade estabelece, pois muitos sofrem preconceito ou até
bullying por estarem fora de padrões que são muitas vezes irreais
(LOURENÇO, 2021).
Ainda nesse palco, onde impera as máscaras carnavalizadas e o
grotesco, há também a exibição do exagero através da exposição
das necessidades fisiológicas (flatulência, arroto, vômito, sono, etc.)
e da exibição de prazeres quase que ilimitados, de uma vida
retratada pelas imagens de viagens, festas com comida e bebida em
abundância e da ostentação dos bens materiais de alto valor
financeiro, tudo pela busca de mais engajamento social. O “turismo
de Instagram”, por exemplo, tem feito com que os seguidores de
usuários mais engajados busquem não somente parecer
fisicamente com seus ídolos, mas também visitar e tirar fotos nos
mesmos lugares do mundo onde os ídolos foram e tiraram suas
fotos para exibir em seus perfis nas redes sociais.
Na realidade, esse comportamento carnavalizado de interpretar
personagens na praça pública, transforma as redes sociais em palco
para discursos cujos enunciados trazem a imagem do grotesco para
os conteúdos que circulam nas suas, nas nossas timelines. Por isso,
o grande volume de usuários presentes e crescentes nas redes
sociais despertou a atenção e o interesse de certos grupos sociais,
os quais começaram a utilizar as plataformas das redes sociais de
forma planejada, visando obter engajamento aos seus propósitos.

417
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Um importante grupo que ocupou o espaço das redes sociais foi o


dos políticos, que na busca pela atenção das pessoas, potenciais
eleitores, começou a explorar ações apelativas e exibi-las na
internet, como dar esmolas ou fazer caridade com uma câmera na
mão para filmar a si próprio enquanto pratica o ato. Há também
aquele político que, literalmente, briga (verbal ou até fisicamente)
com outras pessoas, para dizer que está lutando pelo povo ou até
mesmo o político idoso que tenta persuadir o público fazendo a
dancinha da moda que os jovens estão praticando na rede
social TikTok.
Uma das situações mais extremas, publicada e replicada em
praticamente todas as redes sociais, é o caso do atual presidente
que, na época de sua campanha eleitoral para a presidência, sofreu
uma agressão e foi ferido com uma faca na barriga. Ele foi atendido
e tratado em hospital, e, após a cirurgia buscou utilizar as imagens
do seu corpo deitado em um leito com uma cicatriz enorme na
barriga e com uma bolsa de fezes presa ao abdome, devido a um
procedimento de colostomia, como material de promoção política
e de engajamento da comoção popular. Assim, o corpo idoso,
amorfo, arruinado, cortado e costurado do candidato à presidência
do Brasil (campanha de 2018), com fezes em um bolsa presa a si, foi
a estética da campanha grotesca que o levou à vitória nas urnas,
tornando-o o 38º presidente do país.
Em meio à grande polarização política instaurada, as redes sociais
são utilizadas justamente como espaço para as disputas partidárias
e ideológicas. Nesse caldeirão de vozes em disputa, muitos
usuários das redes sociais se valem de gêneros satíricos para
questionar as posições de determinados candidatos, para
questionar os modelos sociais vigentes e os modelos pretendidos.
Nesse cenário, começam a surgir enunciados na forma de charges,
memes, paródias e piadas os quais buscam “destronar o rei”,
questionar as autoridades e criticá-las através da subversão dos
sentidos do que é posto. Desse modo, através da ambivalência
presente nesses gêneros discursivos, os usuários se valem da

418
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estética do grotesco para contestar os discursos da cultura vigente


ou de certas ideologias defendidas pela sociedade.
Aqui no Brasil, as mazelas advindas da “tempestade perfeita” de
crises que o país está enfrentando, nos últimos anos, são muitas
vezes retratadas e refratadas pelos usuários das redes sociais por
meio da cultura do riso, da chacota, da sátira, da zombaria, da
“zueira”. Nesse cenário, a carnavalização dos problemas é uma
forma de expressar a revolta popular, o sofrimento de um povo. É
através do movimento da “praça pública” que as pessoas “reais” se
manifestam nas redes sociais, e a estética do movimento
carnavalizado é a do realismo grotesco. É por meio da estética
grotesca que a realidade pode ser contestada nas redes sociais, já
que através do grotesco a sociedade pode expressar suas angústias,
mazelas e reivindicações, e é nas plataformas-palco das redes
sociais que a cultura popular tem encontrado espaço para
manifestar a sua voz.

Referências
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1996.
BEZERRA, J. C. C.; BRITO, S. O. A importância da Web 2.0 no
processo de ensino e aprendizagem. Revista Expressão Católica,
[S.l.], v. 2, n. 2, jun. 2017. Disponível em:
<http://reservas.fcrs.edu.br/index.php/rec/article/view/1322/1085>.
Acesso em: 04 Sep. 2021.
CODEÇO, F. Era dos filtros: a busca pela estética perfeita nas redes
sociais. Veja Rio, 19 fev 2021. Disponível em:
<https://vejario.abril.com.br/ beira-mar/filtros-estetica-perfeita-
redes-sociais/>. Acesso em: 05 set 2021.

419
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

DUARTE, T. A. C.; SILVA, V. Redes sociais e construções


narrativas no contexto virtual. Revista de Estudos Acadêmicos de
Letras, v. 8, n. 2, 2015.
FURTADO, R. Diálogos do cotidiano nas redes sociais: a liquidez
discursiva nos memes. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019. 299
p.
GNIPPER, P. A evolução das redes sociais e seu impacto na
sociedade – Parte 1. Canaltech, 06 fev 2018. Disponível em:
<https://canaltech.com.br/ redes-sociais/a-evolucao-das-redes-
sociais-e-seu-impacto-na-sociedade-parte-1-107830/>. Acesso em:
05 set 2021.
HALLETT, E. Filtros no Instagram: a modelo por trás da campanha
#filterdrop, pela exibição de ‘peles reais’. BBC News, 13 set 2020.
Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-
54092950>. Acesso em: 05 set 2021.
MAJKOWSKI, T. Z. Realismo Grotesco e Carnalidade: Inspirações
Bakhtinianas em Estudos de Games. Intexto, Porto Alegre, RS, p.
196-214, jul. 2019. ISSN 1807-8583. Disponível em:
<https://www.seer.ufrgs.br/intexto/article/view/92765>. Acesso
em: 04 set. 2021.

420
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

AS RELAÇÕES DE FORÇA O RISO E A DIALOGIA NOS


ENTREMEIOS DA EDUCAÇÃO.

Edina Antonia Morozesk


UFES
edinamorozesk@gmail.com

Jean Michel Faria


UFES
jean.socio.comun@gmail.com

Fundamentada na filosofia da linguagem do Círculo, o presente


texto tem como objetivo propor reflexões acerca das interações e
práticas pedagógicas na educação. Como educadores inquietos e
dispostos à busca do fazer docente que evidencie concepções
dialógicas nas relações entre professor e aluno, tendo estes como
sujeitos, sociais e culturais. Em vertentes que contribuem com esta
composição, apresentamos a dialogicidade no pensamento de
BAKHTIN, FREIRE e STIEG, como proposta para o fortalecimento
das interações nos cotidianos escolares. É no fortalecimento da
interação entre os sujeitos sociais e na dinâmica da mesma, que
abarcando a alegria e leveza entre as relações professores-alunos se
possibilita a potencialização do processo ensino- aprendizado.
Nesta perspectiva ao Refletir sobre o sistema de controle em
FOUCAULT, e o riso nos pensamentos de RABELAIS, propomos
reflexionar acerca dos desafios, rupturas e avanços diante da
educação, permeando assim, a tessitura desta produção.

421
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Palavras- chave: Sujeitos. Interações. Práticas Dialógicas.


O exercício da docência na educação básica envolve desafios,
diante da realidade do mundo atual e suas particularidades, onde
cada aluno é único e apresenta competências e dificuldades
específicas. Adentrando em uma sala de aula, a maior dúvida que
perpassa é a respeito de: Como dialogar com este sujeito (aluno),
e produzir práticas que potencializam o aprendizado? O que
fazer frente ao processo de docilização do aluno na construção
conjunta das práticas de ensino – aprendizagem? Então, ser
professor é sempre estar igualmente envolto na alegria e no
diálogo? Mediante as dúvidas e a vontade de estabelecer
estratégias de comunicação com o outro/aluno, é por onde
perpassam nossas indagações: Ser professor! Frase que condensa os
questionamentos que nos movem... E é no cotidiano da sala de aula
que se encontram muitos conflitos de natureza crítica, pois, ao falar
em educação, faz-se necessário dialogar com alguns conceitos que
norteiam as práticas educacionais. Neste sentido, vale ressaltar que
os conceitos que aqui são mencionados, se firmam como
ferramentas necessárias para nortear nossa reflexão.
Ao pensar a escola, como ambiente de formação dos sujeitos em
fase inicial de crescimento e desenvolvimento cognitivo, e essa
instituição recebe uma variedade de pessoas que transitam neste
espaço, tanto educandos e educadores e com isso observamos a
necessidade organizacional desta e como consequência, a
estruturação da relação de forças e da clara separação entre aqueles
que são responsáveis pela ordem e os que devem ser ordenados.
Em nome desta ordem e organização para o bom funcionamento
institucional, vemos como os alunos são docilizados e
transformados em meros obedientes da ordem e temos com isso a
docilização dos corpos (FOUCAULT, 2004). Como nos mostra
FOUCAULT: [...] em qualquer sociedade, o corpo está preso no
interior de poderes muito apertados, que lhe impõe proibições ou
obrigações”

422
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A instituição escola, partindo da necessidade de ordem e controle,


capitaliza os sujeitos que nela transitam e dada a variedade de
públicos que nelas existem, exige o controle dos corpos e
pensamentos (FOUCAULT), rompendo com seu papel pensado em
libertação e criticidade dos sujeitos para uma realidade controlada
e enrijecida. Assim:
[...] distribuir os alunos segundo suas aptidões e seu
comportamento, portanto segundo o uso que se poderá fazer deles
quando saírem da escola; exercer sobre eles uma pressão constante,
para que se submetam todos ao mesmo modelo, para que sejam
obrigados todos juntos “à subordinação, à docilidade[...]
(FOUCAULT, 2004, p. 207).
Apresentar a escola em sua estrutura institucional, como um
sistema de controle na qual a hierarquia, a ordem imposta e os
limites são existentes de forma a controlar os seres e gerar neste
ambiente um preparatório para a sociedade, indo na contramão
dos documentos norteadores da educação, que buscam garantir a
formação de seres críticos e atuantes no sistema político e social
nacional. Portanto, existe uma contradição, pois por um lado temos
as nossas bases e estudiosos da educação, de onde partem todas as
teorias - e práticas - da educação brasileira e por outro lado temos
os enfrentamentos diários e a necessidade de controle daquele
quadro de estudantes e professores que precisam se comportar
“satisfatoriamente” dentro de uma instituição.
O paradoxo existe, mas, obviamente, sempre temos
enfrentamentos por parte dos profissionais e educandos que nela
habita, para romper o sistema e transformar esta educação em
libertadora. Freire, elucida que:
Os educandos, alienados, por sua vez, à maneira do escravo na
dialética hegeliana, reconhecem em sua ignorância a razão da
existência do educador, mas não chegam, nem sequer ao modo do

423
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

escravo naquela dialética, a descobrir-se educadores do educador.


(FREIRE, 1987, p. 38 )
Neste processo de negação do conhecimento do aluno e sem
interações necessárias até para o mais básico do processo ensino e
aprendizagem, cuja ação participativa e voz ativa na construção do
mesmo se faz de suma importância, o autor nos atenta que:
(FREIRE,1987) “Os alunos possuem seus conhecimentos anteriores,
seus aprendizados familiares e experiências pessoais, culturais e
sociais”. Esses conhecimentos devem vir de encontro ao processo
de construção conjunta, complementação que se faz necessária para
potencializar a aprendizagem do aluno e professor.
[...] o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto
educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado,
também educa (FREIRE, 1987, p. 44).
A construção coletiva do saber na sala de aula é importante, pois
não negligencia o contexto vivenciado pelo aluno, ou seja, ele
encontra sentido na aplicabilidade do conhecimento em seu
contexto e sente a necessidade de seguir, ampliando seus
horizontes colocando-o em um movimento de maior interesse com
a educação.
Nesta direção de ruptura a um sistema fechado com práticas e
deveres impostos, Bakhtin nos apresenta o pensamento de
Rabelais, onde o riso marca o território da livre expressão do
pensamento. Apresentando a seriedade como método de medo e
intimidação e o riso como forma de vencer as barreiras do sistema.
Afirmando que: (BAKHTIN,1987) “O riso não impõe nenhuma
interdição, nenhuma restrição. Jamais o poder, a violência, a
autoridade empregam a linguagem do riso.” O autor afirma que no
ambiente escolar nos momentos de recreação a brincadeira e o riso
marcam através do deboche, o comportamento em relação às
imposições do sistema educacional. sendo que o riso se torna uma
linguagem social, sendo que (BAKHTIN, 2003). nas suas dimensões

424
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dialógicas, há a possibilita que os enunciados dos alunos sejam


produtores de resistência no ambiente educacional.
Nesta perspectiva,(BAKHTIN, 2014) o sujeito produz e é
produzido por meio de sua relação com o outro se efetivando
mediante as enunciações e que esta não pode ser considerada um
instrumento separado das relações sociais. O dialogismo na
perspectiva aqui apresentada, além de estar intrínseco com as
relações travadas entre sujeitos historicamente situados, também
diz respeito ao permanente diálogo, existente entre os diferentes
discursos que configuram o ambiente escolar. Tais reflexões
apontam percursos que podem ser seguidos com o objetivo de
avanços no ato de ensinar.
Logo, os desafios e dificuldades, acerca da reflexão sobre o ato de
ensinar, pautado na acepção do aluno comunicativo, alegre e
pensante, parte do movimento de acolhimento da fala e ação dentro
das realidades do professor e aluno. Nesta direção o autor (STIEG
2014), afirma que “[...] o ensino da leitura e da escrita… deverá
tornar a unidade concreta e real da atividade comunicativa entre
indivíduos situados em contextos sociais sempre reais. A vida se
torna o principal texto a ser estudado.” exigindo assim o exercício
de uma docência que veja o aluno como sujeito constitutivo de seu
processo de ensino e aprendizagem.
Pontando, ao considerar as vozes dos alunos, o desafio está posto a
aqueles que acreditam numa educação dialógica, no sentido de que
o trabalho docente seja capaz de apontar para um direcionamento
de fala e ao mesmo tempo de escuta na/da vida indissociada e sem
sobreposição. São movimentos necessários na sociedade
contemporânea e nas relações humanas, no outro, na unicidade na
diferença, e nas relações culturais e sociais. Ao construir histórias
que, de fato, falem de todos os lugares que o sujeito ocupa, possa e
deve ocupar em um mundo e no Mundo.

425
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências Bibliográficas.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e filosofia da
linguagem. 16. ed. – São Paulo: Hucitec, 2014.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo/Brasília: Hucitec/Editora Universidade
de Brasília, 1987.
BAKHTIN. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
FOUCALT, Michel. VIGIAR E PUNIR. Petrópolis: Editora Vozes,
2004.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa / Paulo Freire. – São Paulo: Paz e Terra, 1996. – (Coleção
leitura).
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2005.
FREIRE, P. IRA SHOR. Medo e ousadia - o cotidiano do professor.
Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1986.
STIEG, Vanildo. A alfabetização no discurso do
letramento: propostas e praticas. São Carlos: Pedro e João, 2014.

426
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

As vozes autorizadas de poder que circulam na sociedade e a


dimensão encarnada das políticas

Polyanna Silva Goronci


Ufes
pgoronci@hotmail.com

Ao ser instigada pelo VIII Círculo – Rodas Bakhtinianas que tem


como tema “O grotesco dos nossos tempos: vozes, ambientes e
horizontes” a soltar o meu dizer e “pôr a palavra a circular”, coloco-
me a pensar sobre as vozes autorizadas de poder que circulam na
sociedade e a dimensão encarnada das políticas. Este texto parte de
um contexto maior de escrita - o projeto de pesquisa intitulado
“Políticas de alfabetização de adultos (1946-1961) – Discursos da
Unesco” - que apresenta a teoria enunciativo-discursiva de
linguagem bakhtiniana como pressuposto teórico-metodológico.
Partindo do objetivo de pesquisa que intenta compreender o
discurso de organismos internacionais sobre as políticas de
alfabetização de adultos, no período de 1946 a 1961, dialogamos, no
Projeto, com os conceitos bakhtinianos de compreensão, discurso,
texto-enunciado. Dentre as categorias que nos auxiliaram a pensar
sobre as políticas de alfabetização de adultos em seu movimento
histórico, no Brasil e em outros países, discutimos sobre as
categorias de história, ancoradas em Le Goff (1990); de
alfabetização, partindo do conceito defendido por Gontijo (2002,
2007, 2008, 2014) e, por fim, de política, ancoradas em Ball (2011) e
Fiorin (2009, 2020).
Este diálogo, portanto, parte das considerações do projeto de
pesquisa que intenta contribuir para as reflexões sobre os discursos,

427
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

as intencionalidades e as vozes que foram privilegiadas por meio


dos organismos internacionais sobre as políticas de alfabetização
de adultos. Agindo, dessa forma, como reguladores dessas
políticas, implementadas no passado, mas que permanecem, na
atualidade, perante novas facetas, buscando legitimar uma
corrente ideológica, uma concepção econômica e, por fim, um juízo
do que deva ser a humanidade. Todavia, procuraremos nos
posicionar responsivamente com nossas réplicas aos discursos que
encontraremos nos documentos produzidos por esses órgãos.
Apresentamos, a seguir, o conceito de política que abordamos no
projeto, buscando fazer uma articulação com o tema deste relevante
evento.
Iniciamos nosso diálogo sobre a concepção de política partindo do
pressuposto de que o termo política é carregado de ideologia e
subjaz o contexto do tempo e o modo como é aplicada, sobretudo,
orquestrada pelas classes detentoras de poder e discursos
dominantes. Chauí (2018, p. 410) assinala que a política foi
inventada quando surgiu a configuração do espaço público, “[...]
por meio da invenção do direito e da lei [...] e da criação de
instituições públicas de deliberação e decisão [...]”. Ou seja, esse
surgimento só foi possível porque o poder político foi separado das
outras figuras que tinham autoridade em exercer o poder privado
ou econômico, a saber, os chefes de família, militar e religioso.
A política nasceu, portanto, “[...] quando a esfera privada da
economia e da vontade pessoal, a esfera da guerra e a esfera do
sagrado ou do saber foram separadas, e o poder político deixou de
identificar-se com o corpo místico do governante [...]” (CHAUÍ,
2018, p. 410) que alternava com as identificações de pai,
comandante e sacerdote. Politikè, origem grega da palavra política,
derivada de pólis, dos acontecimentos da cidade, era compreendida
como atividade pública para atender aos interesses da vida nas
cidades e aos direitos dos cidadãos.[1] Esse conceito de política
vinculado aos direitos públicos dos sujeitos, defendido por

428
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

filósofos da Antiguidade, ganhou especificidade no decorrer da


história.
Le Goff (1990) faz uma discussão interessante sobre a necessidade
de reconhecermos a existência do simbólico que perpassa toda a
história, bem como “[...] confrontar as representações históricas
com as realidades que elas representam e que o historiador
apreende mediante outros documentos e métodos – por
exemplo, confrontar a ideologia política com a práxis e os eventos
políticos (LE GOFF, 1990, p. 12, grifo nosso). Isso significa dizer que,
para cada prática política efetiva, existe o acompanhamento de um
jogo de vozes autorizadas de poder que dão significado e vão
moldando as ações (teóricas e práticas) das políticas.
Nesse sentido, o tipo de política que determinado governo
desenvolve diz exatamente o que se pretende da sociedade ou
como a concebe. Políticas públicas desenvolvidas (ou não) nas
diversas áreas sociais e econômicas nos dão uma visão sobre as
intenções objetivas da ação. Em outras palavras, articulando essa
concepção de política ao nosso objeto de pesquisa, os discursos
impetrados por organismos internacionais, detentores do poder
econômico, materializam-se com facilidade nas políticas públicas
de alfabetização de adultos no Brasil e de outros países, portanto
não há neutralidade quando pensamos em políticas. Esse signo é
envolvido por uma ideologia dominante que marcará, também,
uma determinada prática social.
Trazendo Bakhtin (2009) para o diálogo, podemos perceber a
ligação entre a caracterização dos sistemas ideológicos e a vida
cotidiana, explicando que a ideologia e seus ritos não nos chegam
de forma autoritária, imposta, rígida, mas vai se infiltrando na
nossa vida até se transformar em algo supostamente natural,
comum. Nas palavras do autor:
Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da
arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano,

429
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e
dão assim normalmente o tom a essa ideologia. Mas, ao mesmo
tempo, esses produtos ideológicos constituídos conservam
constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano;
alimentam-se de sua seiva, pois, fora dela, morrem [...] (BAKHTIN,
2009, p. 123).
Nesse texto, Bakhtin (2009) não se referiu, especificamente, à
política como um produto ideológico, porém, a partir dos
elementos que ele estabelece para compor os sistemas ideológicos,
podemos fazer inferência sobre como a ideologia vai se
constituindo a partir das relações cotidianas por meio dos jogos de
poder das vozes que circulam socialmente, conforme nos aponta
Fiorin (2009). Logo, com base nesse entendimento,
[...] a política diz respeito ao poder, ou melhor, aos poderes. Isso
permite incorporar à política não só o que está dentro do campo da
aceitabilidade tradicional desse termo, mas também todas as
relações de poder que se exercem na vida cotidiana (FIORIN, 2009,
p. 148).
Nessa direção, não há neutralidade nas vozes que circulam
socialmente. Ainda conforme Fiorin (2009, p. 153), “[...] as vozes
não circulam fora do exercício do poder; não se diz o que se quer,
quando se quer, como se quer”. Assim, podemos afirmar que há
uma dimensão política nos discursos, sejam eles oficiais, pela esfera
do Estado, sejam eles da ordem da vida cotidiana. Embora pareça,
superficialmente, que essa relação dialógica de poder das vozes
possa engessar os sujeitos, explicando as desigualdades de
determinadas vozes, Faraco (2003, p. 83), citado por Fiorin (2009),
ressalta que a singularidade do sujeito ocorre “[...] na interação viva
das vozes sociais”.
Sendo assim, o dialogismo ininterrupto, “[...] é a única forma de
preservar a liberdade do ser humano e do seu inacabamento [...]”,
prossegue Faraco (2003, p. 72). Fora dessa perspectiva, há o
discurso ideológico do poder, da política, das instituições sociais,

430
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que definem suas manifestações, que é uma dentre as infinitas


possibilidades, como verdades universais. No entanto, mesmo com
a imposição de determinadas vozes sobre o silenciamento de
outras, há esperança na constante transformação do sujeito, porque
ele é inacabado, portanto pode buscar o rompimento com os
sistemas de opressão que buscam delimitar as possibilidades da
existência.
Discutimos até aqui os seguintes elementos que compõem a
concepção de política: carrega a noção de ideologia dominante,
subjaz o contexto do tempo histórico em que é aplicada ou
desenvolvida, está essencialmente vinculada às vozes autorizadas
que circulam socialmente, se retroalimenta na vida cotidiana por
meio do dialogismo ininterrupto e, por último, para concluir a
concepção de política que buscamos demarcar, trazemos a noção
defendida por Ball (2011), de uma política encarnada, feita por e
para pessoas.
Ball (2011) apresenta sua visão sobre as políticas educacionais e as
pesquisas voltadas para essa área, realizadas no Reino Unido, no
final da década de 1990. Fez apontamentos sobre as transformações
que ocorreram na sociedade civil e no setor público a partir da
introdução de novas formas de regulação social subordinadas às
forças do mercado, visualizadas nas políticas neoliberais
thatcheristas. No decorrer do texto, após traçar esse panorama
sobre as mudanças ocorridas, o autor discute os rumos tomados
pelas pesquisas em políticas educacionais.
O primeiro aspecto problematizado por Ball (2011) refere-se às
pesquisas educacionais que não consideram as influências que os
aspectos econômicos, políticos e sociais têm sobre a realidade da
sala de aula e da atividade docente, considerando essas esferas
desconectadas de uma realidade mais ampla da sociedade. Outro
aspecto das análises das pesquisas, abordado pelo autor, baseava-
se em considerar a política com abordagens claras e fixas não
legitimando a permanente luta de sentidos que estão em jogo, como

431
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

a desvinculação com o espaço e tempo no qual emerge uma


política.
Por fim, Ball (2011), critica como a análise das políticas foi
reproduzida nos textos invisibilizando os sujeitos: “Como
beneficiários de primeira ordem, ‘eles’ ‘implementam’ políticas;
como beneficiários de segunda ordem, ‘eles’ são afetados positiva
ou negativamente pelas políticas” (p. 45). Complementa que “[...]
há um silêncio surdo no coração desses textos diligentes, abstratos
e metódicos” (p. 46). Dessa forma, tanto as pessoas que fazem as
políticas quanto as que são por elas confrontadas são deslocadas do
contexto, como se pudesse existir um pacote de ações a ser entregue
em determinado espaço sem considerar o contexto e as pessoas que
dele participam.
O autor finaliza a explicação do seu posicionamento sobre o lugar
dos sujeitos nas políticas educacionais com uma citação de Prunty
(1985, p. 136) que diz: “O analista crítico deve endossar posturas
políticas, sociais e econômicas nas quais pessoas não são nunca
tratadas como meios para um fim, mas tratadas como fim em seu
próprio benefício” (BALL, 2011, p. 48). Assim, o autor defende uma
política encarnada, ou seja, os sujeitos são atores ativos das
políticas, ocorrendo sempre um processo de tradução e recriação.
Nessa direção, a perspectiva de Ball (2011) rompe com a visão de
que as políticas, sobretudo, as educacionais, se originam
desvinculadas das pessoas e se apresentam com um caráter
utilitário para resolução de problemas.
Articulando o conceito de política que explicamos ao contexto
grotesco que estamos vivendo no nosso país, de um desgoverno
ancorado em uma necropolítica[2] que tenta aniquilar as vozes
plurais de negros, indígenas, quilombolas, lgbtqia+, mulheres,
pessoas com deficiência, que não estão “autorizadas pelo poder” e
que retira a dimensão encarnada das políticas, afirmamos que, por
todas essas questões continuaremos lutando, para que todas as
vozes ecoam nos mais diversos ambientes e longínquos horizontes.

432
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
BAKHTIN, M. M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da
linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
BALL, S. J.; MAINARDES, J. (Org.). Políticas educacionais: questões
e dilemas. São Paulo: Cortez, 2011.
CHAUÍ, M. Democracia: criação de direitos. Síntese, Belo Horizonte,
v. 45, n. 143, p. 409-422, set./dez. 2018. Disponível em:
<https://faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/409
4>. Acesso em: 15 abr. 2021.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do
Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.
FIORIN, J. L. Língua, discurso e política. ALEA, [Rio de Janeiro], v.
11, n. 1, p. 148-165, jan./jun. 2009. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/alea/a/djMj5DwcxCY7wXK3nzPTwhf/ab
stract/?lang=pt>. Acesso em: 10 mar. 2021.
GONTIJO, C. M. M. O processo de alfabetização: novas contribuições.
São Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. Alfabetização: a criança e a linguagem escrita. 2. ed.
Campinas, SP: Autores Associados, 2007.
______. A escrita infantil. São Paulo: Cortez, 2008.
______. Alfabetização: políticas mundiais e movimentos nacionais.
Campinas, SP: Autores Associados, 2014.
LE GOFF, J. História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
1990.
[1] Termo especificamente no masculino pois, em Atenas, eram
considerados cidadãos apenas os homens gregos e livres.

433
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[2] Conceito desenvolvido pelo filósofo negro, historiador, teórico


político e professor universitário camaronense Achille Mbembe,
em 2003.

434
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Aspectos históricos e pressupostos da Pesquisa Participante a


partir de entrevista com Carlos Rodrigues Brandão: uma análise
bakhtiniana

Mariana Dionizio dos Santos


Instituto federal do Espírito santo
dionizio.mariana@gmail.com

Priscila de Souza Chisté Leite


Instituto Federal do Espírito Santo
priscilachiste.ufes@gmail.com

“nós somos
nós somos eu
somos nós um eu
somos eu, um tu.
somos:
eu, outro, EUTRO”.
Brandão (1998)
INTRODUÇÃO
O artigo em questão tem como objetivo apresentar aspectos
históricos e pressupostos da Pesquisa Participante a partir de
análise de entrevista com Carlos Rodrigues Brandão, realizada em
18 de maio de 2017, em Vila Velha, Espírito Santo. A conversa teve
a duração de 90 minutos de duração e foi mediada por Priscila
Chisté. Na ocasião, Brandão ministrou curso na Universidade
Federal do Espírito Santo (Ufes) sobre Pesquisa Participante. O

435
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

curso ocorreu entre os dias 22 a 24 de maio de 2017. Participaram


desse evento integrantes de movimentos sociais, alunos e egressos
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Espírito Santo (Ufes).
A decisão de entrevistar o professor doutor Carlos Rodrigues
Brandão se deu sua pela formação acadêmica nas áreas da
Psicologia (graduação), Antropologia (mestrado) e em Ciências
Sociais (doutorado) e por sua experiência e estudos desenvolvidos
nas áreas da antropologia camponesa, antropologia da religião,
cultura popular, etnia e educação, com foco na educação popular e
na pesquisa participante. Desde o seu ingresso no universo
acadêmico, tornou-se militante ativista de movimentos sociais,
atuando através da educação popular. Brandão é um dos nomes de
referência sobre pesquisa participante da atualidade, na América
Latina. Sendo assim, entrevistá-lo contribuiria de forma positiva
para o desenvolvimento de conteúdo do nosso grupo de estudos.
Tal análise integra as ações referentes à pesquisa de Iniciação
Científica (IC) intitulada “Educação na Cidade e Humanidades:
análises de conteúdos discursivos de palestras e entrevista do
Gepech. A IC, iniciada em 2017, faz parte das investigações
realizadas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação na
Cidade e Humanidades (Gepech), do Instituto Federal do Espírito
Santo – campus Vitória. O foco do Gepech é o estudo sobre a
cidade, tema de pesquisa relevante para o campo da educação, pois
pode estimular a compreensão dos aspectos históricos, políticos,
sociais, culturais, filosóficos e econômicos referentes ao
desenvolvimento do urbano.
As pesquisas do grupo iniciaram juntamente com o recém
implementado (2016) Mestrado Profissional em Ensino de
Humanidades e possuem diferentes focos, tais como abordagens
históricas, poéticas, ambientais, geográficas e artísticas. O grupo é
formado por mestrandos, professores e alunos de graduação
bolsistas de IC.

436
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A entrevista que iremos analisar integra outras ações e conversas.


Várias entrevistas foram realizadas entre 2016 e 2018 com o objetivo
de adensar compreensões sobre aspectos inerentes aos estudos da
cidade, sobre o materialismo histórico-dialético e sobre
metodologia de pesquisa. Consideramos que por meio das
entrevistas é possível realizar transposições teóricas e, de certo
modo, exotópicas, pois ao interagirmos com os entrevistados, nos
identificamos e passamos a ver a realidade a partir do que eles
viram; ou seja, colocamo-nos, a cada entrevista, no lugar dos
entrevistados para depois voltarmos ao nosso lugar e
completarmos os nossos horizontes com tudo o que descobrimos
do lugar que ocupamos fora de nossos supostos limites. Conforme
nos alerta Bakhtin (1997, p. 35-36), [...] na vida, agimos assim,
julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender,
levar em conta o que é transcendente à nossa própria consciência:
assim levamos em conta o valor conferido ao nosso aspecto em
função da impressão que ele pode causar em outrem.
Nesse sentido, consideramos que a entrevista além exotópica, é
dialógica e polifônica, pois ao interagirmos com o outro,
aprendemos com ele a não compreender apenas a nossa voz, e
sim, as várias vozes que interagem no discurso. Dentro da
arquitetônica de Bakhtin e o Círculo esses conceitos são
fundamentais. A exotopia refere-se a ir até o outro, apropriar-se
do discurso dele, voltar ao meu lugar, compreendendo-o e
estabelecendo com ele uma inter-ação. “A dialogia diz respeito
a atividade do diálogo e atividade dinâmica entre EU e Outro
em um território preciso socialmente organizado em interação
linguística” (GEGE, 2013, p. 29). Já a Polifonia, “caracteriza-se
por vozes que, livres do domínio de um narrador central,
produzem significados em interação” (GEGE, 2013. p. 91).

Diante disso, como modo de organizar este texto, na próxima seção,


abordaremos aspectos teóricos referentes à entrevista como um
gênero do discurso, a partir da perspectiva bakhtiniana e na
sequência concluiremos esse artigo.

437
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A ENTREVISTA: UM GÊNERO DO DISCURSO


Como já exposto na introdução deste artigo, as entrevistas
realizadas com teóricos de referência é um dos métodos utilizados
pelo Gepech para aprofundar os conhecimentos sobre a cidade,
educação e humanidades. Entendemos entrevista como um gênero
discursivo, ou seja, um tipo de enunciado relativamente estável. De
modo geral, Bakhtin (2011) divide os gêneros discursivos em duas
categorias, primários (simples) e secundários (complexos). Para ele,
o gênero primário acontece pela comunicação discursiva imediata
e o secundário por meio de relações humanas mais complexas,
relativamente muito desenvolvido e organizado
(predominantemente escrito). Santos, Leite e Côco (2017, p. 762),
afirmam que os tipos de gêneros se relacionam entre si, em uma
troca infinita de sentidos que renovam continuamente os gêneros.
“Por meio dessa instabilidade os gêneros vão se atualizando
instaurando novos tipos e formas de enunciados que tentam se
adequar a diversidade e as diferentes esferas da atividade
comunicacional em contextos culturais específicos”.
Entendemos que a entrevista é um gênero misto, pois é constituído
por gênero primário e secundário, dado aos seus aspectos de
interação entre entrevistador e entrevistado. Por meio de um
processo de perguntas e respostas, os discursos são marcados pela
oralidade e, sua linguagem mescla o formal e o informal. Dentro
dessa interação dialógica,

[...] a unidade real da língua que é realizada na fala não é a


enunciação monológica individual e isolada mas a interação,
isto é o diálogo. A recepção torna-se fundamental na
consolidação do diálogo entre os indivíduos. Ao ser interpelado
pela enunciação de outrem no processo de compreensão e
interpretação desses enunciados, o interlocutor oferece suas
contrapalavras, o que torna a relação falante-ouvinte dialógica.

438
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ouvir é parte integrante do falar. Se dá de forma concomitante.


Ambas ativas igualmente. Ambas em relação. Escutar e
auscultar. Os sujeitos, carregando consigo suas orientações
ideológicas, se constituem através do(s) outro(s)
dialogicamente, em uma interatividade complexa e dinâmica
(GEGE, 2013, p. 82).

Como gênero do discurso, as entrevistas possuem três elementos


básicos: o estilo, o conteúdo temático e a construção composicional.
Juntos formam uma unidade orgânica, constituindo a unidade e
sentido do enunciado concreto. O estilo (individual) é indissociável
do gênero - revela estilos de linguagem, que são estilos de gêneros
de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação.
Já o conteúdo temático, segundo Adelino e Nascimento (2017, p.
115), está no campo do sentido que envolve um determinado
gênero, pois a diversidade do gênero é infinita, heterogênea. Sendo
assim, esse elemento diz respeito às escolhas e aos propósitos
comunicativos do locutor em relação a um domínio do objeto e do
sentido. Já a construção composicional é o modo de organizar um
determinado gênero que caracteriza sua estrutura composicional,
na construção do todo.
Com a intenção de evidenciar a importância da entrevista para
ampliar o diálogo do Gepech com outros pesquisadores, na
próxima seção, apresentaremos extratos da entrevista que
realizamos com o professor Dr. Carlos Rodrigues Brandão com o
objetivo de evidenciar discussões sobre o tema “Pesquisa
Participante”.

PRESSUPOSTOS DA PESQUISA PARTICIPANTE SEGUNDO


BRANDÃO
Ao pensarmos em uma pesquisa que visa “[...] favorecer a
aquisição de um conhecimento e de uma consciência que

439
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

possibilitam, a um determinado grupo, assumir de forma crítica e


autônoma seu papel de protagonista e ator social” (LEITE, 2017, p.
253), durante a entrevista foi solicitado que Brandão indicasse
quais seriam os pressupostos da pesquisa participante.
Em um primeiro momento ele não define os pressupostos. Explica
que não há uma forma preestabelecida na antropologia de uma
única metodologia de pesquisa participante. É muito mais uma
relação que se estabelece e se constrói no próprio processo.
[...] a maioria das pesquisas participantes que eu conheço na
prática, inclusive as que eu pratiquei, essas daí elas são pesquisas
que tem um olhar crítico. Veja você a diferença entre pesquisa
participante e o doc, não me interessa a simples fotografia. Não é
das condições de vida de uma comunidade, mas a relação entre
essas condições e um projeto de ação frente a isso. Essas coisas estão
coladas. Segundo muitas vezes na pesquisa tradicional, mesmo
uma pesquisa aplicada, a pesquisa é uma espécie de passo inicial e
conduzida por uma equipe, para se produzir o projeto de ação. Na
pesquisa participante, a pesquisa é um momento de uma ação já
iniciada, ou seja, há o envolvimento um compromisso (BRANDÃO,
2017a).
Brandão (2017a) continua mencionando que é preciso ser flexível,
pois há pesquisas participantes que servem ao povo, mas não quer
dizer que o povo esteja participando. Exemplifica falando do
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (DIEESE), que é um diretório de pesquisa a
serviço do povo, mas não é o povo que participa das decisões da
instituição.
Dissemos que a princípio Brandão (2017a) não define os
pressupostos da pesquisa participante. Contudo, em um
determinado momento da conversa, ele indica alguns
pressupostos. No primeiro, diz que a pesquisa participante não é
uma atividade isolada, mas associada, “[...] pode-se chamar de
educação popular, mobilização popular, uma frente popular de

440
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

luta, de resistência e assim por diante. Então o momento de um


processo que tem início e fim, mas o processo continua. Ela [a
pesquisa] pode ser retomada mais adiante”.
Um segundo pressuposto muito difícil de ser realizado, que aliás já
é um pressuposto marxista, e também é tomado por Paulo Freire, é
aquela ideia da não separação de teoria e prática, ou seja, toda ação
política é uma ação informada por uma teoria, uma teoria crítica,
uma teoria revolucionária, essa teoria ela não é uma espécie de
suporte acima da ação, mas ela emerge na própria ação. É a ação
que reclama um pensar político, teórico, para se informar e por
outro lado a teoria se alimenta da ação, inclusive, ela evolui e se
transforma de acordo com o momento de ação que nós estamos
vivendo, é uma outra dificuldade que tínhamos no nosso tempo,
inclusive com os companheiros marxistas, sobretudo com o pessoal
mais mecanicista, para quem havia um modelo pronto, até havia
uns livrinhos da Rússia, traduzido para o espanhol, os manuais de
leitura de materialismo histórico dialético se aplicava entre
pomeranos, no Rio Grande do Sul, entre índios na Amazônia,
camponeses na Paraíba, pra todo mundo é uma forma só, em que
todo mundo tinha que entrar, que eu sempre achei um absurdo,
por exemplo, numa comunidade indígena tinha que ter luta de
classe, não tem, eles não têm classe social, são sistemas
segmentários, linhagens, clãs, são outro papo, mas tinham que
inventar, tem que meter (BRANDÃO, 2017a).
O terceiro pressuposto citado por Brandão é sobre a variabilidade
de abordagens, para ele existe uma entre várias, cada contexto é
que vai determinar se a pesquisa é mais qualitativa e qual método
mais apropriado deve-se utilizar, por exemplo:
[...] uma pesquisa que vai remontar sobre memória, história
então, vai ser um outro método, eu vou entrevistar algumas
pessoas, se eu vou trabalhar com indivíduos, se eu vou trabalhar
com grupo focal e até mesmo que tipo de interpretação eu vou
fazer. Por exemplo, eu posso produzir um levantamento

441
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

quantitativo e qualitativo de uma realidade e aplicar a teoria


marxista na interpretação, perfeitamente coerente, teoria de
classe, luta de classe, estágios do capitalismo, posso fazer essa
mesma pesquisa e aplicar não propriamente o método positivista
norte-americano que aí também não vai se enquadrar bem, vai
querer fazer um apagamento disso, por exemplo, eu apago classe
social, coloco instituições sociais, eu uso o método crítico, mas
faço uma análise acrítica fica um pouco... é onde eu tenho bronca
do pessoal da Europa (BRANDÃO, 2017a).

Na sequência, Brandão (2017a) explica o que faz a pesquisa ser do


tipo participante: a pesquisa participante é um horizonte, ninguém
chega lá. É possível estabelecer graus de aproximação.
[...] eu costumo dizer o seguinte: é como se a pesquisa participante
fosse um horizonte, ninguém chega lá, ninguém vive uma
experiência pura como por exemplo, nos ideais de Fals Borba nos
anos 70, mas você tem graus de aproximação mais e menos
participante. Você pode partir assim, por exemplo, vindo assim
da direita para esquerda, da pesquisa mais empírica e não
participante possível, aliás é muito comum. Eu quero fazer o
trabalho sobre o lugar da mulher na sociedade, de periferia de
Vitória, elaboro o meu projeto, constituo uma equipe de
estudantes da minha área, vou na comunidade, crio uma
estratégia de abertura de ingresso para fazer minha pesquisa, me
aproximo de algumas mulheres, uma freira, uma professora, faço
a minha pesquisa com um mínimo de explicação para
comunidade, aplico questionários, cumpro as normas do
conselho de ética, faço meu relatório, público o meu livro, viro
doutor e ponto, não quero mais saber, é um primeiro grau. Existe
um outro grau, que eu resumo esse da Maria Malta Campos, eu
vou à comunidade, eu é que fiz o projeto, eu é que tenho a teoria,
quem vai interpretar, mas eu tenho o envolvimento com algumas
pessoas da comunidade, às vezes até uma relação de amizade,
uma relação esporádica, eu envolvo pessoas, dialogo com elas,
crio a pesquisa, sou eu que vou virar doutora, talvez deixo um
exemplar lá, de bom tom. Tem uma terceira alternativa, da Olinda
Noronha, minha aluninha de doutorado, hoje é professora da
Unicamp, nem sei se aposentou, ela morava em Viçosa e a cidade

442
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ao lado Ponte Nova, ela fez uma pesquisa com mulheres bóia fria
que até lá são chamadas camponesas, aliás, madames, só que ela
já tinha o envolvimento, ela já participava como professora da
Federal de Viçosa, de movimento de bóia fria, uma assessora,
digamos. Ela combinou a pesquisa com elas, já vê que tem uma
outra dimensão. O projeto sou eu que vou fazer, vou junto ao
CNPq, ao CAPES, mas ele vai vir de lá para cá, nós vamos debater,
elas vão dar ideia e ela inclusive se comprometeu com as
mulheres de produzir um documento para elas, isso
individualmente, ela orienta fazer, fez a tese e cumpriu, ela
produziu o trabalho, virou doutora, inclusive eu até escrevi o
prefácio do livro, mas ela publicou uma cartilha chamada de
“treta mutreta” que é mais ou menos semelhante ao “meio grito”.
É uma cartilha sobre direitos da mulher bóia fria, direitos
trabalhistas e tal, mas aí depois passou para a Unicamp, veio para
São Paulo, eu nem sei como é ela continua, assim eu nem sei se ela
continua viva, eu já colocaria aqui, eu já colocaria uma pesquisa
consorciada próxima da participante. Agora, participante quando
eu te digo, ela passou o outro passo, ela atravessou o outro lado
do rio, ainda que possam ter momentos de interpretação minhas
como marxistas, dessas ou daquelas correntes, Frigotto, quem
seja. Ainda que seja encarregado de um relatório final, não apenas
o produto, mas todo o processo é vivenciado pela comunidade da
forma mais dialógica possível e inclusive o primeiro destinatário
é ela, inclusive se a comunidade dizer como aconteceu. Lá no caso
da pesquisa dos 10 anos de Goiás, não que a comunidade dissesse,
mas a gente chegou em um acordo que não era preciso fazer
nenhum livro, ninguém tinha interesse em publicar com o
trabalho acadêmico, algumas pessoas da PUC de Goiás tiveram,
porque inclusive foi feito lá o trabalho de tabulação e tudo. Como
eu te disse eu escrevi para lá (para a comunidade) (BRANDÃO,
2017a).

Brandão afirma também que a pesquisa participante se difere de


outras metodologias porque ela dá um salto. “Ainda que possa ter
momentos de interpretação do pesquisador todo processo é
vivenciado pela comunidade de modo dialógico. O destinatário da

443
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pesquisa participante é a comunidade. A pesquisa participante


pressupõe uma intenção e a presença do pesquisador”
(BRANDÃO, 2017a).

[...] eu acho que no caso da pesquisa participante que não é mesma


coisa que a pesquisa em antropologia. Antropologia dialógica, a
perspectivista do Eduardo Vieira de Castro, a questão está muito
mais na intenção e na presença do que dessas questões, de até onde
eu posso interpretar? Com a minha cultura europeia, branca,
excêntrica, uma cultura indígena ou quilombola, do ponto de vista
ético, do ponto de vista epistemológico. No caso a pesquisa
participante, a pesquisa é muito mais um dado de co-
responsabilidade e presença, se eu estou interpretando por
exemplo. É aquilo que eu te falei, eu acho perfeitamente válido e
lúcido, o pessoal do MST faz isso, eu sou marxista tenho esse
parâmetro de interpretação vou pesquisar com vocês, mas a
interpretação que eu vou fazer é essa é dentro daquilo em que eu
creio (BRANDÃO, 2017a.).
Nesse sentido, consideramos que a entrevista realizada apresenta
aspectos fundamentais para compreensão da pesquisa
participante, sobretudo sobre os seus pressupostos, a partir da
visão de um pesquisador engajado com a educação popular. Cabe
lembrar que neste artigo apresentamos somente um pequeno
recorte da conversa.

CONCLUSÃO
Neste artigo, buscamos apresentar recorte de entrevista realizada
com Carlos Rodrigues Brandão. Contudo, sabemos que assim como
ele, outros autores desenvolveram pressupostos da pesquisa
participante, como Orlando Fals Borda (1984), autor que aborda
alguns princípios metodológicos da pesquisa participante, como a
autenticidade, compromisso e compromisso com a causa popular.

444
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

É consenso entre os autores relacionados com a causa popular, tais


como Brandão, Fals Borda e Freire, que os pesquisadores devem
levar em conta o meio cultural pesquisado, compreendendo que as
comunidades populares têm suas especificidades. Cabe ao
pesquisador saber organizar as bases, não ter arrogância intelectual
e sugerir a investigação de modo participativo. Ele precisa
envolver-se com os demais participantes da pesquisa e levar em
consideração os núcleos de liderança, promovendo o conhecimento
metodológico do regional para o nacional e contribuindo para a
independência na realização de outras pesquisas.
Seguindo tais princípios Freire (1984) sugere alguns passos para
realizar pesquisas de abordagem participativa, como: ao fazer a
pesquisa, o pesquisador educa e está se educando com os grupos
populares; a coerência com o caráter político da atividade científica;
o povo tem que participar como investigador e estudioso e não
como mero objeto; compreender os limites culturais dos
pesquisados, como visitas exploratórias aos organismos populares
como escolas, clubes, cooperativas; conversar com as lideranças,
deixando claro os objetivos, o método, da pesquisa; o
comprometimento e envolvimento de todos; o levantamento das
demandas dos grupos pesquisados; por fim a elaboração de um
documento final, com a colaboração dos colaboradores e dos
pesquisadores.
A partir da entrevista realizada percebemos que Brandão faz coro
com os demais teóricos citados e nos ajuda a compreender que a
pesquisa participante é um horizonte, uma espécie de modelo que
tentamos alcançar, mas que não conseguimos realizá-la
plenamente já que existem múltiplos fatores implicados no
processo.
Por meio da entrevista realizada pudemos conhecer um pouco
mais dos estudos realizados pelo professor Carlos Rodrigues
Brandão sobre a pesquisa participante, uma atividade não isolada,
atribuída às mobilizações populares, à educação popular, a

445
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

processos de luta e resistência. Uma teoria crítica e revolucionária


que emerge da própria ação, que evolui e se transforma. Com
diversas abordagens que são definidas no processo da pesquisa e
com a participação do outro com o qual estabelece-se diálogos
capazes de modificar/ampliar o entendimento dos envolvidos no
processo sobre um determinado tema de pesquisa.

REFERÊNCIAS
ADELINO, Francisca Janete da Silva; Nascimento, Erivaldo Pereira
do. Gêneros discursivos: um olhar sobre a entrevista de seleção de
emprego sob a perspectiva de bakhtin. Revista de Gestão e
Secretariado, v. 8, n. 2, 107-227. 2017 Disponível em:
<https://www.revistagesec.org.br/secretariado/article/view/601.>.
Acesso em: 27 abr. 2020.
BAKHTIN. Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal.
[tradução feita a partir do francês por Maria Em santina Galvão G.
Pereira revisão da tradução Marina Appenzellerl. — 2’ cd. — São
Paulo Martins Fontes, 1997.— (Coleção Ensino Superior)
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São
Paulo: Martins, 2011.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Pesquisa Participante e a
Participação da Pesquisa: um olhar entre tempos e espaços a partir
da América Latina. Disponível em:
<http://www.apartilhadavida.com.br/wp-
content/uploads/escritos/PESQUISA/PESQUISA%20PARTICIPA
NTE/A%20PARTICIPA%C3%87%C3%83O%20DA%20PESQUISA
%20E%20A%20PESQUISA%20PARTICIPANTE%20-
%20rosa%20dos%20ventos.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2020.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Entrevista sobre pesquisa
participante. 2017a. Entrevista Concedida a Priscila de Souza
Chisté Leite. Vila Velha. 1 arquivos em vídeo (90 min). Entrevista

446
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

concedida ao Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Educação na


Cidade e Humanidades.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Vinte Anos Depois: Memórias e
reflexões sobre a Investigação-Ação-Participativa. 2017b.
Disponível em: <http://www.apartilhadavida.com.br/wp-
content/uploads/escritos/PESQUISA/PESQUISA%20PARTICIPA
NTE/VINTE%20ANOS%20%20DEPOIS%20-
%20rosa%20dos%20ventos.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2020.
BORDA, Orlando Fals. Aspectos teóricos da pesquisa participante:
considerações sobre o significado e o papel da ciência na
participação popular. In C. R. Brandão (Ed), Pesquisa participante.
São Paulo: Brasiliense, 1984.
FREIRE, Paulo. Criando métodos de pesquisa alternativa:
aprendendo a fazê-la melhor através da ação. In C. R. Brandão
(Ed.), Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1984.
GEGE. Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos,
categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores,
2013.
SANTOS, Mariana Dionizio; LEITE, Priscila de Souza Chisté;
CÔCO, Dilza. O gênero entrevista como estratégia de estudo sobre
a cidade e suas relações com a educação. In: IV Encontro de Estudos
Bakhtinianos [EEBA]: das resistências à escatologia política: risos,
corpos e narrativas enunciando uma ciência outra. Anais. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2017. p. 758-769. Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/1hyn0j90syXrd1E1tmac6dQAjMN
Vh8BVm/view>. Acesso em: 23 abr. 2020.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Atuação: uma pequena narrativa sobre o incomodante incômodo

Cintia Aparecida Mendes Rosa


Universidade Federal Fluminense / INFES
cintiarosa1707@gmail.com

Essa é uma pequena narrativa sobre incômodos. Afinal, não estão


eles aos montes a nos rodear? Não foram eles categorizados como
desnecessidades? Como desconfortos? Não são os incômodos
agentes que propiciam mudanças, sejam elas em quais instâncias
forem? Acredito eu, entretanto, no quê de organismos dilacerantes,
potentes, vivos, gritantes, desgastadores, como uma bomba
relógio, que está imbricado nos incômodos.
BUUUM!!!
E se vai o que estava instituído-posto.
Instaurou-se o caos?
A vida?
A dor?
A falta de ar?
O pensar... pensar... pensar?
São obras de incômodos. Incomodantes incômodos. Incômodos
incomodantes.
BUUUUM!!!
BUUUUM!!!
Eles estão a solta. Corram! Escondam-se! Protejam-se! Respirem!

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BUUUUM!!!
Eles te acharão.
BUUUUM!!!
Eles te pe-ga-rão.
BUUUUM!!!
Eles podem te craquelar.
BUUUUM!!!
Craquelou.
°
Estou diante de uma folha de caderno branca e com linhas azuis e
ela está marcada com ideias que foram traçadas em julho de 2020.
São anotações minhas e que surgiram de um encontro que o grupo
Flora - Filosofias, Lógicas e Reescritas Acadêmico-Afetivas teve
com Marisol Barenco. Na folha que eu arranquei do meu caderno-
autoral (é nele que jogo ideias. Ideias que pulsam, que arrancam
suspiros, que me deixam sem sono) vejo escrito GROTESCO. É
assim que está escrito aqui, em letras em caixa alta que foram
marcadas por uma caneta esferográfica Bic Cristal 1.0 preta. Sobre
a marcação estão os traços deixados por um marca texto rosa que
nem tinta tem mais (de tanto ter sido usado por mim. Coitado!).
Duas ideias estão entorno da palavra GROTESCO.
A primeira: “Se há um incômodo é porque ele foi colocado lá no
lugar de incômodo. Eu posso encará-lo com outras lentes? Mas,
para encará-lo com outras lentes é necessária a reorganização do
próprio enunciador.”
A outra: “O incômodo tem suas tecituras. Por exemplo o sapo chato
que estava na porta da casa da Maria me traz asco, mas ele estava
lá e eu não vi. Lembrar dele me remete ao vivido-ido que não foi
tecido pelo meu espaço-tempo.”

449
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“O sapo chato que estava na porta da casa da Maria” a que me


refiro na segunda ideia anotada em meu caderno-autoral esteve em
um acontecimento que me permeou, rodeando-me por longos dias
e noites, até que eu, unida a ele, inventei e descobri sentidos para
pensar sobre alguns incômodos. “O sapo chato que estava na porta
da casa da Maria” é o pivô das elaborações sobre o que chamo
de incomodante incômodo. Ele estava lá. Simples assim. Estava no
meu caminho. Será que ele me esperava?
Sobre ele eu escrevi em junho de 2020:
“A vida, aberta e provisória, é aquela com atos, descasos, circunstâncias,
acasos. Certa feita o banheiro de minha casa estava ocupado e fui tomar
banho na casa de uma vizinha. Eu precisava sair e o horário se aproximava.
Lá fui eu né. Desprovida da ideia de que algo incomum aconteceria.
Achava que seria apenas um banho. Um banho “normal”. Tudo certo,
banho tomado, roupa vestida. Só faltavam agora desodorante, hidratante,
maquiagem e eu poderia ir para o meu compromisso. O sapo não estava
nessa linearidade! Mas, o que eu faria: “Sapo, não és bem vindo?”, “Você
estraga meus planos?” Não! O pensamento de dominar o tempo
cronológico e situações que deveriam ocorrer nele me fizeram fechar a porta
da casa de minha vizinha com pressa e não olhar por onde eu andava. E
não olhar por onde eu andava me fez esbarrar em algo. Que era o sapo.
Quando o vi, dei um grito e fiquei com nojo. “Eca, um sapo!”, “Hum, que
nojo!”. Parei, o fotografei e fui embora pensando que logo eu havia quase
esmagado um sapo e em como aquilo era nojento demais. Não foi uma
tarefa fácil aceitar perder-me de mim mesma, desconhecer-me. E isso que
a vida pede de um homem ativo, ou seja, aquele que aceita a todo o
momento perder-se de si mesmo, diferir-se de si mesmo, se reinventar: ela
pede o ver em cada acontecimento vias para tornar-se quem se é.”
°
BUUUUM!!!
Sinal do incômodo.
BUUUUM!!!

450
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Olhos arregalados. Coração disparado.


BUUUUM!!!
Cabeça cheia de pensamentos e ideias. Caos.
BUUUUM!!!
Vida.

O incomodante incômodo
A ilustração com o sapo que estava na porta da casa onde eu fora
tomar banho me serve para compor alguns arranjos com categorias.
Faz-me pensar que o incomodante incômodo seja um esbarrar, um
tropeçar, um cair sobre, um ser impelido por aquilo a que se está
rodeado. Ele acontece dentro do que é chamado de viver. Acredito
que o incomodante incômodo não seja o responsável-único por
nenhum tipo de mudança utópica que se espera na esfera do
espaço-tempo, não podendo ser ele responsabilizado por
nomeações que se dão às vivências, por exemplo, quando as
julgamos como boas ou ruins. Incomodantes incômodos são
ocorridos, acontecimentos, flashes no tempo e no espaço que
surgem como convites despretensiosos ao ver, ouvir, compor, falar,
tracejar, tropeçar, caminhar, perambular pela e na vida. Do aceite a
esse convite ou não é que coisas passarão a existir, sendo elas
composições do ser que foi incomodado com aquilo que se foi tido
como um incômodo.
Incomodantes incômodos são como o farfalhar que balança as
folhagens do pequeno canavial de meu quintal. “É finzinho de
tarde e o gigante se move sinuosa e fluidamente.” Esse farfalhar
das folhagens deixa desenhos no ar e me faz pensar em qual a
sensação ou sentimentos vivenciados após essa configuração outra.
O gigante que causa o farfalhar pode ser rejeitado. Pode ser
acolhido. Pode por ali passar, fazer dançarem com ele, fazer
imagens serem formadas a partir dele. Os meus olhos, lançados

451
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nesse evento maravilhoso, me permitem ver que: o gigante,


necessariamente, gera uma ação outra que outrora, anterior ao seu
encontro com o objeto movido, não era vista.
°
- ah amiga, eu n tô conseguindo pegar meus arquivos no celular
poxa
do nada a tela ficou estranha
- É só a tela amiga
Tenta trocar
Seus arquivos ficam lá
Se n me engano n é caro p trocar a tela
Seu touch-screen deve ter queimado
- eu acho q é isso sim
ah amiga
justo agr
lulu vai casar, sou amiga da noiva
a luz tá cara
vou ter q improvisar
pra conseguir
- Vai dar certo
Vai ser mais trabalhoso
Mas vai conseguir
- preciso pegar uns textos lá pra ler
- Vc tá com outro cell?
- humhum

452
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Tô usando ele pro Instagram


- Baixa o zap nele amiga
N tem como?
- vou tentar
por causa do chip
- Ah sim... amiga
Vai dar certoooo
- Eu tô tentando aki
Eu conseguindo t falo amiga
°
Retomo aqui a primeira ideia anotada no meu caderno-autoral lá
em julho de 2020: “Se há um incômodo é porque ele foi colocado lá
no lugar de incômodo. Eu posso encará-lo com outras lentes? Mas,
para encará-lo com outras lentes é necessária a reorganização do
próprio enunciador.” Notem que usei o termo “reorganização do
próprio enunciador”. Essa reorganização é o que, acredito eu,
mostra a entrega do ser incomodado ao compor com. Compor com
o incomodante incômodo. Estar a perambular por vias de, estar
lançado ao encontro com. Cabe aqui, acredito eu, o que Mello (2017,
p. 32) diz:
É preciso dar o passo, colocar-se responsável e responsivo a essa
interpelação que somente eu posso responder, desse lugar único,
insubstituível que ocupo. Não há álibi para a existência e nesse
existir-evento, respondo com meu ato. Vou ao encontro do outro
com palavras e sabendo que nessa alteridade o meu coração é livre
de qualquer armadilha de captura: enjaulado e sem o outro é que
morro, que resseco e desumanizo a mim e aos outros.
Nessa existência sem álibi o que se tem são atuações, sendo estas os
arranjos composicionais no espaço-tempo. Esses arranjos, assim
como o verbo por conjugado no presente do indicativo: eu ponho,

453
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tu pões, ele põe, nós pomos, vós pondes, eles põem, expressam
respostas. Jamais inércia. Sempre ato mais ação. Atuação.
Parando de falar, passo agora a escutar

Penso que os tempos atuais, com desconexões e desencontros,


pedem por esbarrões, tropeções e quedas que impelirão à criação
de vivências outras, vivências que estarão em vias de atuações no
espaço-tempo. Vivências feitas por composições em atos
responsivos e responsáveis de estar e passar pelo outro e por si.
Talvez seja tempo de deixar o incomodante incômodo dilacerar-
nos, nos propiciando um estado outro de viver com, de compor
com. Uma com-posição. Um colocar com. Atuar com.
Atuação.

Referências

MELLO, Marisol Barenco de. O amor em tempos de escola. São Carlos:


Pedro e João Editores, 2017. 207p.
ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. Tornar-se quem se é – a vida como
exercício de estilo. In: LINS, Daniel (Org). Nietzche / Deleuze: Arte,
Resistência. Simpósio Internacional de Filosofia, 2004. RJ: Forense
Universitária, 2007, 355p.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

AUTORIDADE, CONTRAPALAVRA: GROTESCOS EM


DIALOGIA

Victor Batista Branco


UFF
victorbb14@gmail.com

Descobri por esses dias alguns sentidos de formação. Carregava até


poucos dias, e ainda carrego, algumas notas de formação como um
processo meramente individual que se parecem com aqueles
sujeitos que devoram palestras e livros, como uma máquina de
comprimir informações. Uma formação que é apenas técnica e
informativa. A prática pedagógica se transforma num passe de
mágica; a alteridade, os interlecutores são apenas alvos das
técnicas, cujo gatilho abriria a caixa de pandora oca e sem vida,
cujas informações pudessem com docilidade serem depositadas.
Mas, a ideia de formação humana muda drasticamente quando
complexifica-se a imagem de humano. O outro como um ser
dotado de pluralidade e singularidade, dotado de vozes,
(trans)formado pelo encontro e pela dialogia de textos. E se
assentarmos os pés na terra, encontraremos a alteridade concreta;
a voz que sai dali pode subitamente nos elevar ou nos rebaixar em
assombro. Chegaremos ao alto onde nos falta oxigênio, mas onde
tudo é sublime e panorâmico, ou lavados na terra, umedecidos no
solo, sentindo de perto o cheiro da fertilidade, o aroma putrefato, o
odor do esterco. A voz do outro nos irriga; existe um preço, pois
uma parte de si é podado como um galho. Mas, é neste ato que
ganho força para dar fruto.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Acontece ali, no entre, na relação. Nas palavras tolas, quase


repartidas do cotidiano, nas fatias que ficam pela metade. Uma
palavra vale mais que um texto, às vezes. Aquela palavra ficou-me
agarrada à alma, combinando-se aos textos alteritários. Era ela e
não mais.
Ouvi dizer das palavras, das conversas pelos corredores e pelos
trens. É ali que acontece. Na limiaridade. Onde um palavra começa
sem o compromisso de terminar. Aprendi com algumas gigantas...
***
“O que importa é o ser humano real e concreto; uma questão de
ética”. O signo chateava-lhe obscurecido. Permanecia no escuro,
impensado, abandonado nos escombros. De tais restos, fazíamos a
cidade, sem meditar na matéria que feria e inviabilizava a vida.
Do signo impensado erigíamos a bela e cintilante cidade, de
invejável arquitetônica. Rogava-se para si, a grande cidade, a
primogenitura e a genialidade. Não havia sombras de
imperfeições... a sua arquitetônica dava entorno ao discurso polido.
Em suas ruas, no entanto, afastadas do centro, a superfície era de
chão. Ali o signo invadia perfurando, sem ver a quem. E hoje há
quem louve e chame de pérola a tais signos.
Eu corri desesperado, com os pés descalços. As pedras cortavam-
me a carne e, por isso, pude notar. Eu vi, finalmente, as palavras
indizíveis por trás dos discursos polidos. Apertei e os seus signos
eram-me apenas como joio, vazias e ocas, meras informações
tronadas como real.
Chegando nas fronteiras, encontrei uma multidão, um corredor de
vozes. Formava-me uma imagem distinta, dotada de concretude e
calor.
***
O encontro e a dialogia não é dotada de uma amorosidade ingênua
e inóspita. A amorosidade frutífera produz movimento. A

456
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

alteridade impõe-se como voz. Não impõe-se como imposição


monológica, mas impõe-se como um corpo que enuncia a sua
própria voz. A entonação penetra cortante, transmitindo sabedoria,
uma determinada relação com o mundo. A verdade, entonada com
amorosidade, fere-me a pele, penetrando a consciência como
linguagem. Ela não me carrega no colo, mas convoca-me à
responsabilidade.
A relação entre orientadora e orientanda é (ou pelo menos
desejamos que seja) uma mesma espada de dois gumes que penetra
dividindo ambas as carnes. Não seremos mais os mesmos. Não é
um encontro contingencial entre alteridades, mas uma relação
costurada por distintos episódios, cheia de penetrações em
processos de autoria.
Ambos carregam saberes sobre o mundo. Experiências no entre.
Autoridade e maturidade também. Os corpos falam neste exato
momento. O ato, o gesto inaugura e perpetua o que já é antigo. A
palavra antiga reverbera novidade. A alteridade fere o poder, mas
a autoridade pode ser reconhecida como signo e como uma
concretude (como um corpo forjado pelas experiências, uma
consciência madura já bastante rasgado por palavras outras de sua
existência).
***
“O riso degradante rejuvenesce a autoridade”. Falou-lhe com ar de
superioridade e o aluno riu-lhe na cara. A turma riu junto. Todos
caíram na gargalhada. O mestre fechou a cara, mas o seu corpo não.
A gargalhada espremeu-lhe a consciência até tudo nele ser um
assombro de riso, como que das entranhas. As gargalhadas eram
horrendas.
As veias saltavam-lhe do pescoço. Descabelou-se, com as calças
caindo. Com as roupas de baixo revelando-lhe a cor. O aluno caiu
da cadeira, esfregando-se no chão de tanto rir. A aluna do lado

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

batia nas pernas, batia e batia mais ainda, esmurrando o próprio


corpo em gargalhadas.
E não havia mais o tablado, mas corpos ao chão, esfregando-se ao
chão sujo, misturando-se pelos espaços, fazendo de um quadrado,
um roda infuncional. As carteiras foram relegadas ao vento,
colocadas de lado. O espaço foi carnavalizado.
Sem parar de rir, o mestre abriu a porta, cambaleando sem modos
pelos corredores. As pestinhas ultrapassavam-lhe, sem pena de
esbarrar. Depois de muito tempo assistindo os ponteiros do relógio
viajarem incólumes, foi que ele viu a vida em seu fluxo.
***
Rabelais absorve e articula as fontes da cultura popular em sua
autoria. A sua obra é como uma nuvem densa. O riso popular, as
festividades e o vocabulário da praça pública estão presentes nas
imagens de sua literatura (Bakhtin, 1999). O riso ambivalente
degrada, mas também regenera. As festividades são como uma
segunda vida, um segundo mundo em relação às normas e á vida
oficial. Em tais ritos parodia-se a vida cotidiana, rompendo com as
demarcações hierárquicas das relações sociais. Neste contexto
carnavalizado, vive-se provisória, utopicamente e concretamente
esta segunda vida, caracterizada pela universalidade, igualdade,
liberdade e abundância.
Uma nova forma de comunicação é engendrada entre os habitantes
da praça pública. Ali, é cultivado determinados gêneros cômicos
como a injúria. Na cultura cômica popular, ela não é destrutiva,
mas degradante. O seu caráter degradante acompanha-se de um
poder renovador. Ri-se do oficial, da lei, das normas, do poder, de
tudo que institui e está instituído.
Na imagem da sala de aula, o mestre encarna o oficial, o poder em
sua estupidez autoritária. O aluno num ato de dissidência solta o
riso de seu ventre. Um corpo que não se contém diante do poder
disciplinar. O seu riso e gargalhada contagia os outros corpos,

458
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

inclusive do mestre. Desencarnando do autoritarismo, o mestre


deixa o tablado e rola no chão, transformando-se em mais um que
rola no piso da sala de aula. As carteiras escolares que espremiam
os corpos estudantis, agora são espremidos pelos corpos rebeldes.
O quadrado transforma-se em roda.
Os ritmos populares “trombetam” - do neologismo trombetar - cujo
som é o movimento dos corpos ao chão. Ali, a cultura popular faz
seu registro. O espaço carnavaliza-se, os corpos encarnam a
liberdade, o movimento universaliza-se. A roda, o círculo rompe as
paredes. Aquele pequeno corpo social escorrega pelos corredores,
sem modos. As gargalhadas do ventre mancham as paredes
escolares com um borrão. O oficial é exposto quando transgredido.
De repente as normas adquirem transparência. As consciências
saem pelos corredores, carnavalizadas, provisoriamente imersas
em sua segunda vida. Antes que tudo volte ao centro, a consciência
ganha aberturas.
***
Destaca-se na obra de Rabelais o princípio da vida material e
corporal. As “imagens do corpo, da bebida, da comida, da
satisfação de necessidades naturais e da vida sexual” (Bakhtin,
1999, p.16). Os respectivos elementos são herança da cultura
popular cômica, expressando uma concepção estética da vida
prática denominado como realismo grotesco (Bakhtin, 1999, p.17). O
material e o corporal manifestam-se sob a forma “universal, festiva
e utópica” (ibdem). O cósmico, o social e o corporal formam uma
totalidade, um conjunto festivo e alegre.
O povo é seu porta-voz (Bakhtin, 1999). O material e o corporal está
presente numa estética que pode ser vista panoramicamente. De
longe o observador pode ver um movimento, um fluxo dissipando-
se como fumaça, sem fragmentar-se. Ouve-se os gritos, os risos, a
festa. E todos estão ali. Passa-se pela multidão, procurando
caminho; os corpos deformam e articulam novas fronteiras, novas

459
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

vilas como espaços estreitos que de tão estreitos é impossível não


esbarrar, contando conversa. Bebe-se e come-se junto. Os fluidos
corporais compõe a cena sem constrangimento.
De lá de baixo, enxerga-se o que está no alto, todos os conceitos
pomposos. Perfeitamente escritos, separados, completos e
acabados. As definições os acompanham dando-lhe bordas
intransponíveis. Os pilotos riscam os entornos, demarcando os
territórios, dando visualidade sobre quem é mais importante. Sem
vida, no entanto, os conceitos permanecem mudos, não tem o que
dizer.
De lá de baixo a peste taca-lhe um porrolho - bolo de papel
higiênico molhado, em forma de bola - bem ensopado de não sei o
que. Atinge o pobre conceito, fragmentando as suas sílabas. A
palavra esfarela no chão até não se poder ver mais. Mas, é na
medida que elas caem no chão que por fim, encarnam. Quando do
ventre são enunciadas por um som cômico e poroso, então passam
a compor as cenas reais da vida.
Se permanecessem apenas no quadro, perfeitamente escritas, sem
serem enunciadas por corpos populares, não poderiam participar
da vida através de vozes concretas. Vozes que estão enraizadas no
social, na vida concreta, deslizando pelas estruturas sociais
excludentes.
E tomaram todo o colégio, foi o que acabei de saber. Vou para lá
correndo. Uma muvuca na frente da escola. Consigo passar pelas
“paredes” humanas, alcançando o portão. De sentinela, um
“pirralhinho” me pergunta se pertenço ao “partido da brisa”. Com
sorriso tolo no rosto, informo as credenciais e entro. Orgulhoso por
ser reconhecido como um integrante do “partido da brisa”, entro
na escola, encontrando outro espaço. Um espaço carnavalizado,
cujo corpo social agente de renovação a transformação a retoma,
após depor as retrancas do oficial.
***

460
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Melhora esta merda”. Riram desde as entranhas. Não se levaram


tão a sério...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec;
Editora da Universidade de Brasília, 1999.
MELLO, Marisol; NEVES, Liliane. “Qual o sinal de casa, mesmo?”.
In: Guilherme do Val Toledo Prado; Liana Arrais Serodio; Vanessa
França Simas [Orgs.]. Narrar o vivido, narrar o narrado. Encontros
e oficinas de formação. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021.
NEVES, Liliane. Formação como escritura: Um estudo bakhtiniano
com coletivos de professoras. Tese (Doutorado em Educação) -
Programa de Pós- Graduação em Educação, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2021.
PONZIO, Augusto. Livre Mente: processos cognitivos e educação
para a linguagem. São Carlos: Pedro & João Editores, 2020.

461
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAILE DE FAVELA: A EXALTAÇÃO E A POLÊMICA EM


DIÁLOGO

Dilma Costa Nogueira Dias


UEPA
dilmacndias@gmail.com

Fábio da Conceição Câmara


Universidade estadual do Pará
fabiopedagogo10@yahoo.com.br

Maria Catarina Wanzeler Carvalho


Seduc
wanzelercatarina@gmail.com

No enfrentamento da compreensão entre o eu e o outro nos


deparamos com situações que nos causam perplexidade, espanto,
revolta, reflexões e até ressignificações. Neste caminhar de
obstáculos, de turbulências e de alegrias da vida, repensar a relação
entre o eu e o outro, é preponderante.
Neste sentido, não temos como não explicitar o caos pandêmico, no
qual a população mundial necessitava de líderes competentes,
coerentes e coesos que estivessem dispostos a ir em busca dos
melhores recursos, de pesquisas, de estratégias que vislumbrassem
o bem-estar da população. No Brasil, por sua vez, temos uma corja

462
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de políticos que não filtra seus vocábulos, não age em prol do povo,
pronunciam palavras e tomadas de decisões que não visam o
favorecimento do povo brasileiro, mas sim promovem a desordem
por meio de atitudes incoerentes e grotescas.
Falar do grotesco podemos associar ao
disforme (conexões imperfeitas) e ao onírico (conexões irreais), a
palavra “grotesco” presta-se a transformações metafóricas, que vão
ampliando o seu sentido ao longo dos séculos. De um substantivo
com uso restrito à avaliação estética de obras-de-arte, torna-se
adjetivo a serviço do gosto generalizado, capaz de qualificar — a
partir da tensão entre o centro e a margem ou a partir de um
equilíbrio precário das formas — figuras da vida social como
discursos, roupas e comportamentos (SODRÉ; PAIVA, 2002, p.30).
Nesta perspectiva, podemos analisar o grotesco como uma forma
de viver a vida. Situações grotescas temos nos deparado
diariamente como o aumento do feminicídio, o desemprego, a falta
de alimento para a população brasileira, famílias que estão
dormindo na rua, que dependem do auxílio do governo federal,
racismo estrutural, homofobia, o preconceito com as pessoas com
deficiência.
Diante da realidade grotesca, que se torna em muitos casos
desumana buscar alternativas, ir ao encontro de momentos que
diminuem a tristeza se faz essencial. Nesta busca incessante de
ânimo, de fôlego. A música foi uma estratégia significativa que
trouxe alento, paz, direcionamento e alegria para os momentos
caóticos. Vimos vários momentos em que as lives virtuais de vários
cantores entraram em nossas casas trazendo alegria, diversos
projetos de comunidades tocando música clássica, música popular
brasileira como forma de homenagear quem estava na linha de
frente.
Para muitos, o esporte também foi uma forma de esquecimento de
tantas vidas perdidas por conta da pandemia. E na junção entre o
esporte e a música podemos sentir o êxtase, a alegria, a exaltação,

463
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mas também a frustração, o desânimo e até a polêmica. Para


Bakhtin (2020, p. 29) “elogia a ambivalência da palavra” e “não tem
uma perspectiva negativa quanto ao grotesco, nem o limita”
(SODRÉ; PAIVA, 2002, p.57).
Desse modo, o presente trabalho propõe discutir a categoria
grotesco em Bakhtin a partir da primeira versão da música Baile de
Favela, do Mc João explicitando a exaltação, no sentido de alcance
da música a nível mundial a partir da apresentação da ginasta
Rebeca Andrade nas Olimpíadas de Tóquio, mas ao mesmo tempo
retratar a polêmica que a letra da música provoca com a linguagem
de baixo calão e a forma como a mulher é desvalorizada.
Este trabalho que se intitula Baile de favela: a exaltação e a polêmica
em diálogo explicitam o grotesco dos tempos atuais, pois a partir
da análise da música podemos refletir a respeito das questões
sociais que estão intrínsecas e extrínsecas.
A ambivalência ocorre entre os dois opostos que seria a exaltação,
na qual o mundo conheceu a música Baile de favela e provocou um
sentimento de orgulho em todos os brasileiros que repercutiram a
postagem da atleta em suas redes sociais. O sentimento de orgulho
foi tamanho que ao buscar a letra da música, o espanto tomou conta
devido a letra polêmica.
O funk em questão nem sempre foi o que conhecemos na
atualidade. Ele surgiu no final da década de 1960, como música
negra norte-americana por meio da soul music, tendo uma batida
mais pronunciada e algumas influências do R&B, rock e da música
psicodélica (DANTAS, 2021, p.1).
O gênero musical teve suas várias alterações, derivação com outros
ritmos musicais, na década de 70 e 80. Mas, ao chegar no Brasil, no
final da década de 70, o funk carioca passou a ter os primeiros bailes
realizados na Zona Sul do Rio de Janeiro (área nobre da cidade). E
após este movimento os bailes começaram a adentrar o subúrbio.
O principal responsável por introduzir o funk com a batida

464
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

eletrônica que conhecemos foi o DJ Marlboro (POLITIZE, 2018, p.


1).
Em 2000, o funk passou por outras mudanças, é um ritmo que
movimenta milhões. Surgiu do Soul, mas atualmente tem os seus
subgêneros como o funk carioca, o funk ostentação (funk paulista),
o funk consciente, o funk pop e o funk proibidão.
O funk assim como contagia, alegra também gera polêmica como a
dança, a erotização infantil, as letras e o vestuário. E em 2017, uma
sugestão de um projeto de lei propôs a criminalizar o funk, de
autoria do empresário Marcelo Alonso, pois classifica o gênero
musical como crime de saúde pública à criança, ao adolescente e à
família. O projeto teve 20 mil assinaturas, mas a Comissão dos
Direitos Humanos e Legislação Participativa não transformou a
sugestão em projeto de lei.
Desta forma, o ritmo musical, apesar de ser muito tocado nas festas,
principalmente na periferia da cidade, ainda é visto de forma
grotesca. Na qual, outros ritmos musicais são mais valorizados
como ópera, bossa nova dentre outros. O funk é olhado a partir do
viés de subalternização, estigmatização e passa a ser discriminado
da cultura musical sendo configurado como um ritmo
marginalizado de nossa cultura.
O grotesco se materializa no Baile de Favela, composto por
xingamentos, conteúdo sexual, insultos, palavras de baixo calão,
que se refere às partes íntimas da mulher, mas mescladas com
elogios e apresenta de forma bruta e ao mesmo tempo desejo, o que
criará mais ambivalência.
No entanto, o funk tem seu ponto forte, não somente nas letras, som
alto distorcido, mas na forma como ele se apresenta: roupas,
tatuagem, piercing, dança sensual que na maioria assusta para
quem não conhece, mas traz representatividade para aqueles que
apreciam. A maioria dos MC que se apresentam ao público de

465
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

forma estilizada, é uma forma de chamar a atenção para as mazelas


sociais utilizando a vaidade e aclamando em suas mensagens.
Entretanto, por apresentar, na sua maioria, em suas letras,
vulgarização da mulher, palavras de baixo calão, conteúdo sexual
escandalizam muita gente, no entanto, sabe-se que por muitos anos
esses termos pejorativos são utilizados na arte, um exemplo disso
estão presente nas cantigas de escárnio e maldizer, logo, a
sexualidade é um tema constante que pode ser encontrado tanto na
cultura elitizada quanto na popular.
Para tanto, é válido ressaltar, que o propósito do trabalho não é
naturalizar a sexualidade, e estimular a vulgarização, e sim
dialogar sobre o funk e não propagar o uso de palavras de baixo
calão, mas mostrar como este ritmo, que se popularizou na periferia
que na sua maioria denunciam violências e problemas sociais, é
invisibilizado e marginalizado na nossa cultura.
CATEGORIAS ANÁLITICAS
A letra da música, faz referência a questões sociais, sobre a
sexualização e o estupro direcionados a mulher. Em uma análise
crítica e profunda acerca da letra da música, “Baile de Favela”
reforça a ideia da mulher como objeto sexual. Esta canção deixa
claro o desrespeito e a falta de humanização com o outro,
naturalizando questões que tanto avançamos em debates e ações
contra o feminicídio.
Preocupante esta exaltação a respeito da letra da música que
ganhou repercussão mundial nas Olimpíadas em Tóquio. Mas a
questão não tem relação da compreensão sobre a favela, no que
tange, a respeito de um lugar de alegria, cultura, saberes culturais,
diversidade de sujeitos e um espaço educativo.
Em relação a exaltação das favelas como lugar de alegria,
divertimento, vida não tem relação com a discussão sobre a canção,
não queremos dizer que a favela não seja um lugar de positividade,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mas sim o foco é sobre a música que faz referência e naturaliza o


estupro a mulheres.
A visão referente a favela, é de um lugar que explode de saberes,
culturas, músicas, danças, bem como representa vida. Então a letra
da música não tem relação com a questão de inferiorizar quem
mora na favela, mas sim, de todos incluindo quem mora na favela
ou não, pois a letra da música, especificamente, ressalta as
mulheres. Precisamos analisar criticamente o contexto geral e não
tentar justificar atitudes que incentivam e faz apologia ao estupro
de mulheres.
Não queremos marginalizar a favela como lugar de pobreza, fome,
violência, desigualdades sociais, mas sim as práticas que
invisibilizam e ridicularizam, seja a mulher, homem, homofobia,
criança, entre outros. É necessário ressignificar estas práticas que
tentam desvalorizar o ser humano, precisa-se intervir por
processos educativos humanizadores em vista de uma pedagogia
libertadora e crítica.
Desta forma, podemos visualizar a imagem 1, que evidencia as
categorias Bakhtinianas discutidas sobre a letra da música Baile de
Favela a partir da exaltação e polêmica.
Imagem 1 – Categorias Bakhtinianas acerca da letra da música
Baile de Favela: exaltação/polêmica

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: elaboração dos pesquisadores, 20211


No que concerne esta análise acerca da letra da música, precisamos
contextualizar a partir de várias visões e ressignificar essas
analogias que emergem por meio de canções atuais. Veja bem,
todas com o mesmo foco, ridicularizar, vulgarizar a mulher, mas,
como objeto sexual e reforçando práticas e discursos machistas de
uma sociedade do século passado. Portanto, é necessário perceber
essas atitudes e intervir, em vista dos processos educativos por
meio da educação.
_____________________________

1Referências das imagens - Imagem de Rebeca Andrade e Mc João.


GLOBO.COM. Baile de Favela em Tóquio: autor do funk que
embalou Rebeca Andrade, MC João manda energia positiva para
a final. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-
arte/musica/noticia/2021/07/25/baile-de-favela-em-toquio-quem-
diria-mc-joao-manda-mensagem-para-rebeca-andrade-
video.ghtml> Acesso em: 05/08/2021.
Letra da música Baile de Favela. LETRAS. Baile de Favela.
Disponível em: <https://www.letras.mus.br/mc-joao/baile-de-
favela/> Acesso em: 31/08/2021.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A palavra grotesco tem sido recorrente em nosso vocabulário, o que
informa o quanto ela está presente no nosso cotidiano, na nossa
realidade, isto é, uma forma de viver a vida.
Desse modo, a partir da análise da música baile de favela
refletimos a respeito das questões sociais que estão interligadas
intrínsecas e extrinsecamente no grotesco dos tempos
atuais. Percebemos a ambivalência entre a exaltação, em que a
atleta Rebeca Andrade, ao dançar a música faz com que o mundo
deseje conhecer o funk, dance ao som deste gênero e cria nos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

brasileiros um sentimento de orgulho, de diálogo onde as


comunidades locais são pessoas de bem e que buscam seus sonhos.
No entanto, esta exaltação diminui ao conhecer a letra da música
que enfatiza a diminuição da mulher, a cultura do estupro, a
discussão da erotização infantil e a mulher como objeto sexual.
Neste sentido, a favela, ou melhor as comunidades possuem
saberes, culturas, que podem representar formas de denúncia e
anúncio de temáticas sociais. Desta forma, a letra da música ressalta
o machismo, a forma como o hétero enxerga a mulher enfatizando
como sua propriedade ignorando o ato de conhecer, de paquerar,
de ter um relacionamento que parte de ambas as pessoas. A mulher
não é um objeto sexual.
As crianças são protagonistas e precisam participar das discussões
sociais, pois para elas o ritmo é dançante, é contagiante. E elas não
têm ainda a maturidade para ter estas interpretações. Por isso, a
importância de dialogar, de contextualizar a partir de várias visões
e ressignificar essas analogias que emergem por meio de canções
atuais para romper com os pensamentos machistas. Logo, é
primordial perceber as atitudes e intervir a partir de processos
educativos.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. O homem ao espelho. Apontamentos dos
anos 1940. São Carlos: Pedro & João Editores, 2020. 110 p.
______________. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento — o contexto de François Rabelais. Hucitec
Editora/UNB, 1987.
DANTAS, Tiago. Funk; Brasil Escola. Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/artes/funk.htm. Acesso em:
06/09/2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

POLITIZE. Como o funk surgiu no Brasil e quais são suas


principais polêmicas? Disponível em:
<https://www.politize.com.br/funk-no-brasil-e-polemicas/>.
Acesso em: 31/08/2021.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do Grotesco. Rio de
Janeiro: Editora Mauad, 2002.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN E O CÍRCULO PENSADOS VIA TEXTOS


MULTIMODAIS: EXCEDENTE DE VISÃO, A PALAVRA NA
VIDA E A PALAVRA NA POESIA

FÁBIO MARQUES DE SOUZA


Universidade Estadual da Paraíba
fabiohispanista@gmail.com

IVO DI CAMARGO JUNIOR


CEPF/SME RIBEIRÃO PRETO
santacrocce@gmail.com

Tomando a nossa paixão pelo cinema, aqui considerado em seu sentido


amplo, como imagem em movimento, independente de seu suporte, para
este breve ensaio fazemos a aproximação entre Bakhtin – Cinema, o que
revela a força e atualidade das ideias bakhtinianas, mesmo tanto tempo
depois de terem sido formuladas. Para isso, selecionamos alguns textos
multimodais do perfil @cinematologia, da plataforma de redes sociais
Instagram.
A imagem 1, extraída da Série: The Office, dos criadores: Ricky Gervais
e Stephen Merchant, na emissora NBC, durante os anos de 2005 e 2013,
nos permite uma reflexão a respeito do conceito de excedente de visão. Já
a imagem 2, fragmento do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), de
Peter Weir, será o motivador para as nossas reflexões a respeito da palavra
na vida e a palavra na arte.
A vida, conforme nos alerta Bakhtin (2001), “é dialógica por natureza” e,
dessa forma, “viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir,
responder, concordar etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o


corpo, os atos” (BAKHTIN, 2011, p. 348).
O princípio da exotopia pode ser observado na relação criadora como um
estar-fora. A fundamentação deste conceito de exotopia bakhtiniana está
no “excedente da visão humana”, que para Bakhtin é visto também como
um parâmetro ético: existe uma limitação intransponível no meu olhar que
só o outro pode preencher.
No caso do meme 01, temos uma situação cômica na qual o primeiro
enunciador oferece a sua palavra: “Se eu estive brincando você estaria
rindo. Você está rindo?”, o interlocutor, com uma aparência séria, oferece,
de forma irônica, a sua contra palavra: “impossível saber, não consigo ver
o meu próprio rosto”.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 01: excedente de visão.

Fonte: Instagram, @cinematologia.


Como espectadores que somos, com esse excedente de visão que a
personagem não tem, sabemos que ela não está rindo. Bakhtin nos ensina
com isto que
O excedente de visão é o broto em que repousa a forma e de onde ela
desabrocha como uma flor. Mas para que esse broto efetivamente
desabroche na flor da forma concludente, urge que o excedente de minha
visão complete o horizonte do outro indivíduo contemplado sem perder a
originalidade deste. Eu devo aqui entrar em empatia com esse outro
indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê,
colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar,
completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar
se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente
concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu

473
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento. (BAKHTIN, 2003,


p. 23).
Nesta mesma linha, Amorim (2006), estudiosa do pensamento
bakhtiniano, exemplifica o excedente de visão afirmando que “não posso
me ver como totalidade, não posso ter uma visão completa de mim mesmo,
e somente um outro pode construir o todo que me define.” (p. 96).
Imagem 02: A palavra na vida e a palavra na poesia.

Fonte: Instagram, @cinematologia.


Di Camargo Jr (2019) argumenta ser sabido que nas ideias do Círculo
bakhtiniano o autor não vive separadamente a vida e a arte: “arte e vida
não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na
unidade da minha responsabilidade”. (BAKHTIN, 2011, P. XXXIV).
Neste sentido, vida e arte ocorrem o tempo todo, de forma simultânea,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

como se se entrelaçassem e fossem, ao mesmo tempo, como ele definiu o


Jano bifronte.
Entender o cinema e aceitá-lo como linguagem adquire caráter bastante
interessante porque como num jogo os participantes da interação verbal
tem a intenção clara de agir um sobre o outro e assim a linguagem do
cinema pode ser ingênua, mas nunca considerada inocente porque o autor
fílmico procura agir sobre o público e fazer com que sua ideologia chegue
a este via signo, o que pode marcar um encontro ora em conflito, ora em
consenso, pois o espectador (público) pode aceitar em todo ou apenas
parte daquele pensamento distinto de sua ideologia.
No texto “Discurso na vida e discurso na arte”, escrito nos anos 1920,
continha-se, desde aquele momento, uma forma de antecipação dos
conceitos basilares do Círculo de Bakhtin, em especial as ideias de
entonação, presentes na fala de Mr. Keating nesta cena do filme, bases
fundamentais da translinguística, que é como o professor apresenta o
conhecimento no filme, de forma que os conhecimentos e saberes se
entrelaçam e avançam os limites uns dos outros, e uma ideia de orientação
social que seria a constituidora da enunciação, fazendo recordar como o
professor e seus alunos se comunicavam por meio de seus
posicionamentos sociais, contudo, em relação dialógica e constituidora.
De modo geral, a análise da imagem evidencia e dirige o olhar para a
qualidade de vida, a importância de valores como dialogismo, alteridade,
equidade, linguagem participativa, criatividade, entre outros, que também
surgem como características que especificam a obra, seja ela um filme,
suas imagens isoladas ou um meme. Eis o grande diálogo.

Referências
AMORIM, Marília. Cronotopo e exotopia. In: B. Brait (Org.). Bakhtin:
outros conceitoschave. São Paulo: Contexto, 2006.
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de estilística no ensino da
língua. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São
Paulo: Editora 34, 2013.
______. Arte e Responsabilidade In: Estética da Criação Verbal. Cidade:
Editora, 2011.

475
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Bocas tampadas, risos e vozes que escapam do controle

Paulo Cesar de Campos


Liana Arrais Serodio

Pedro escreveu no seu caderno uma síntese do vídeo que


tinha assistido em outra aula: “[...] usar a máscara tampando
bem a boca e o nariz [...]”.
Eu não sei o Pedro, mas as vezes eu me sinto com a boca
tampada, sufocado pela máscara, me sinto não ouvindo
quando a metade do ar que leva minhas palavras é retida pelo
tecido, acho que às vezes engulo minhas próprias palavras
sem que nem sequer resquícios delas cheguem ao outro.
Mas eu não reclamo, nem vacilo, uso máscara até quando
dirijo sozinho, não consigo nem me imaginar na hipótese de
ser confundido com um bolsominion negacionista pela
ausência da máscara. É, essa é a primeira coisa que penso ao
ver alguém em lugar público com a boca destampada.
O que quero contar aconteceu, não na sala do Pedro que é do
7º ano, mas em uma fervorosa sala do 9º ano, uma turma que
já está em um tom grotesco de despedida, na quebra da
ordem por quem já está de saída. Um grupo singular em
relação aos moldes estabelecidos pela escola em outros
tempos. Nada de arrecadação para festas, camiseta de
formandos, dia de pagar mico etc. Esse grupo viveu metade

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

da sua experiência no ensino fundamental II nas


configurações pandêmicas que conhecemos hoje.
Em 2020, quando estavam no 8º ano, tiveram todas as suas
atividades suspensas de início, e depois, as realizaram em
trabalho remoto. Em 2021, o retorno mais efetivo para a escola
aconteceu no 2º semestre.
Em agosto, a frequência era em torno de 50% para essa turma,
formando assim 2 grupos que frequentam de forma
intercalada - apenas 3 famílias optaram por continuar
realizando as atividades de casa.
Cada um desse grupo que está frequentando, em seu ato,
singularmente, tem demonstrado uma compreensão
respondente em relação aos novos modos de interação social
no ambiente escolar.
No início, os alunos pareciam robôs, mas com o passar dos
dias, os protocolos foram se tornando cada vez mais
integrados ao fluxo da vida na escola que a rigidez temerosa
foi perdendo espaço para a força criativa dos sujeitos, ao riso,
ao grotesco, a vida.
Numa sala de aula, nos tempos de hoje, entre sujeitos
adolescentes, uma máscara mal vestida deixando nariz de
fora é quase como mostrar o rego - o começo da divisão das
nádegas - é zoação na certa. Mas nesse caso, a chacota é uma
resposta em que se manifesta o realismo grotesco na interação
social da escola, pois o riso, quebrando a lógica das indicações
nas paredes e até das palavras no caderno, como é o caso de
Pedro, é quase como uma mão invisível que corrige depressa
a posição da máscara do sujeito distraído.
Claro que os jovens sabem sobre a importância do uso da
máscara e todos os outros protocolos sanitários que fazem
parte da escola atual. Sabem das vidas salvas pelo uso de
máscaras e das mortes pela ausência delas. Quero dizer, esse

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

riso carrega a morte e a vida ao mesmo tempo e se expressa


circunstanciado no ambiente social comungado da escola,
mais especificamente, da turma do nono ano.
A escola pública está transformada, desde o retorno mais
efetivo a partir deste segundo semestre de 2021 - ao menos no
ensino municipal de Campinas - as medidas de segurança se
tornaram ao mesmo tempo: prática pedagógica, formação
continuada, componente curricular e discurso cotidiano.
Para mim tudo foi sempre muito tenso, e ainda é, eu utilizo
duas máscaras sobrepostas e nunca consegui orientar com
riso, o estudante que vacila em alguma medida, como
conseguem os alunos do nono ano.
O fato é que, dia desses, eu estava muito convicto que minha
proposta de trabalho para a aula de arte com eles seria
constitutiva e transgressora. Eu havia conhecido naquele dia
o perfil do instagram intitulado @thecovidartmuseum ou
CAM, um projeto criado por José Guerrero, Emma Calvo,
Irene Llorca e o Zhenya Rynshuk Synchronized Studio com
um acervo construído por artistas do mundo todo que
submeteram suas obras realizadas em tempo e sobre a
pandemia da covid-19.
Tudo a ver com eles! – pensei – Quero mostrar e ver o que rola
depois com o diálogo!
Comecei a explicar e o grupo ria, mais uma vez eu sentia que
as palavras eram abafadas pela máscara e eles acharam isso
engraçado. Em outros tempos, antes de conhecer Bakhtin, eu
lembro, esse riso adolescente, que eu-velho chamaria de
sarrista, me irritaria. Por vezes quis controlá-lo.
Mas nesse dia, a minha disputa era com as camadas de
máscaras e as minhas próprias palavras, nem eu mesmo
entendia com clareza o que eu dizia, eu sabia que as palavras

479
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

não estavam chegando até eles. E eles completavam minhas


frases com destreza e criatividade. Desconstruindo tudo.
Em algum momento, tomado pela sensação de sufocamento,
assim como nesta imagem, onde o autor provavelmente sente
somente a boca precisa do ar, me levantei e tirei a máscara –
uma delas – e tentei continuar, mas minha ação desenfreou
um riso incontrolável do grupo mais animado. Acho que eles
imaginaram que iriam ver uma boca, um rego ou a minha
bunda. Eu ri com eles e pude tocar, em certo sentido, o
realismo grotesco refletido e refratado em nossos corpos.
Aos meus olhos, neste caso, o grotesco teve o “sentido de
impossibilidade de não abertura e indiferença. A partir daí
respondente responsavelmente pelo desejo de ir ao encontro
com o outro e criar relações híbridas, íntimas e humanizadas”
(SILVESTRI, 2018, p. 171)

crédito: @segg.wack - @covidartmuseum

480
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Pude sentir o riso em sua manifestação de libertação, me


livrando do meu censor interior como propõe Bakhtin em
Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, penetrando-
me e ventilando com outros ares meu corpo interior. O ar que
eu precisava. Respirei.

[...] Bakhtin insiste que a libertação tem que ser feita um a um.
cada um, no jogo com o outro, com o mundo exterior, tem que
se defrontar consigo próprio, enunciando sua contrapalavra,
afirmando sua palavra responsável, e se constituindo nesse jogo.
(MIOTELLO, 2018, p.32)

Em diálogo com outras narrativas dos sujeitos que colocam


suas palavras para circular, no GRUBAKH-Unicamp,
percebo que a triste relação de poder ainda exerce força
gigantesca dentro das minhas aulas, ainda que na presença de
um professor que se diz bakhtiniano como eu (talvez para
esse sujeito – professor “bakhtiniano” – seja ainda mais difícil
pois quando Bakhtin fala alto uma vez não se encontra mais
fuga em lugar nenhum para o ato responsável). E o riso se
apresenta como uma forma de subverter essa desigualdade.
No GRUBAKH, as narrativas produzidas pelos sujeitos neste
semestre, buscaram tensionar exatamente este ponto, o
grotesco na escola. O grotesco em contraposição aos sistemas
de ensino oficiais.
O valor que eu atribuí a esse riso com os estudantes revela a
distância entre nós ao mesmo tempo que aponta os caminhos
de uma aproximação dos corpos, que foi promovida pelo
grotesco na escola.

481
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“A LIBERDADE vale mais que os padrões.”


“É como se eu tivesse congelado, mas o mundo ainda gira.”
Crédito: estudantes do 9º ano
A imagem que escolhi para compor este texto, atribuída a
@segg.wack foi uma entre inúmeras outras que os alunos do
9º ano problematizaram ao navegarmos juntos pelo perfil no
instagram @covidartmuseum.
Conversamos sobre algumas e propus a construção de uma
obra interindividual, abrindo uma apresentação
compartilhada na plataforma que utilizamos para trabalho
remoto, para que cada aluno construísse, com imagens e
palavras, enunciações acerca do que viu e do que ficou sobre
o que viu.
Assim, para jogar na roda, melhor dizendo, no RODAS, as
outras vozes produzidas nesse encontro grotesco, escolhi

482
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

trazer uma composição feita com enunciações dos estudantes


pelo impacto que me causaram.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2008.
BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. de
Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. 2.ed. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2012.
MIOTELLO, Valdemir. Falando do riso… rindo da fala. In: SERODIO,
Liana et al. Narrativas, corpos e risos anunciando uma ciência outra. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2018.
SILVESTRI, Kátia V. T.. Corpos grotescos: linhas gerais da filosofia
política bakhitniana. In: SERODIO, Liana et al (Orgs.) Narrativas, corpos
e risos anunciando uma ciência outra. São Carlos: Pedro & João Editores,
2018.

483
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Caleidoscópio Machadiano: A intertextualidade na obra Missa


do Galo – Variações sobre um mesmo tema

Thaís Regina Aiello


Universidade Metodista de São Paulo
thais@thaisaiello.com.br

Introdução
Escrito por Machado de Assis no início da década de 1890, o conto Missa
do Galo inspirou em 1964 o pernambucano Osman Lins na idealização de
um projeto, colocado em prática 13 anos depois, em 1977. Assim, mais de
80 anos depois, o conto machadiano ganhava nova vida na obra Missa do
Galo – Variações sobre o mesmo tema (ASSIS et al., 1977, 2008),
reunindo versões de seis ficcionistas brasileiros, cada qual estabelecendo
diálogo intertextual com o texto-base, segundo suas perspectivas e
estratégias.
A partir do pensamento de Bakhtin e seu Círculo, buscaremos
compreender a intertextualidade presente na obra, tendo como recorte a
análise comparativa entre o original machadiano e a produção do escritor
Autran Dourado, intitulada “Missa do Galo (mote alheio e voltas)”.

Dialogismo e intertextualidade
Partimos de José Luiz Fiorin (2020) para abordar o dialogismo, princípio
unificador da obra de Mikhail Bakhtin, para quem a língua possui, em seu
uso real e em sua totalidade viva e concreta, a propriedade de ser
dialógica.
[em todos os enunciados] existe uma dialogização interna da palavra, que
é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre inevitavelmente
também a palavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para
constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está

484
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

presente no seu. Por isso, todo discurso é inevitavelmente atravessado pelo


discurso alheio (FIORIN, 2020, p. 21-22).
O autor observa que o Círculo de Bakhtin concebe um papel central à
linguagem, compreendendo-a como mediação para o acesso à realidade,
sendo que todo objeto está cercado, envolto, embebido em discursos,
“perpassado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações dos
outros” (FIORIN, 2020, p. 22). Em Bakthin, um enunciado se constitui em
relação aos enunciados que o precedem e igualmente aos que o sucedem
na cadeia de comunicação. Assim, sempre solicita uma resposta,
aguardando uma compreensão responsiva ativa, seja ela de concordância
ou refutação. (FIORIN, 2020, p. 36).
Carlos Alberto Faraco (2020) considera em Bakhtin a questão de autor e
autoria, mostrando que o ponto fulcral está na distinção entre o autor-
pessoa, ou seja, o escritor ou o artista, e o autor-criador, aquele que dá
forma ao objeto estético e atua como elemento imanente ao todo artístico.
[o autor-criador] é entendido fundamentalmente como uma posição
estético-formal cuja característica básica está em materializar uma certa
relação axiológica com o herói e seu mundo: ele os olha com simpatia ou
antipatia, distância ou proximidade, reverência ou crítica, gravidade ou
deboche, aplauso ou sarcasmo, alegria ou amargura, generosidade ou
crueldade, júbilo ou melancolia, e assim por diante (FARACO, 2020, p.
38).
O posicionamento valorativo proporciona ao autor-criador a capacidade
de prover o acabamento estético e dar forma ao conteúdo. Não se trata,
portanto, de um estenografo que registra passivamente os eventos da vida,
mas daquele que, a partir de uma certa posição axiológica, propõe os
recortes e os reorganiza esteticamente.
No pensamento bakhtiniano, as noções de enunciado/enunciação ocupam
espaço central, com a linguagem sendo concebida de um ponto de vista
histórico, cultural e social, conforme Beth Brait e Rosineide de Melo
(2020).
[...] a concepção de enunciado/enunciação não se encontra pronta e
acabada numa determinada obra, num determinado texto: o sentido e as
particularidades vão sendo construídos ao longo do conjunto das obras,
indissociavelmente implicados em outras noções também paulatinamente
construídas (BRAIT, MELO, 2020, p. 65).

485
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em Bakhtin, o enunciado tem um autor e se dirige a alguém, a um


destinatário que possui diversas faces e dimensões. Pode ser um
destinatário concreto, interlocutor direto do diálogo da vida cotidiana, ou
ainda um destinatário presumido, que se instala a partir da circulação do
enunciado (BRAIT e MELO, 2020, p. 71).
Sobre intertextualidade, recorremos a Leonardo Mozdzenski (2013), que
resgata a origem do conceito em Julia Kristeva. A partir da noção
bakhtiniana de dialogismo, a filósofa búlgaro-francesa oferece a
perspectiva de que todo texto constitui um intertexto em uma sucessão de
textos já escritos ou que ainda serão escritos. Assim, a obra literária
redistribui textos anteriores em um só texto, sendo necessário pensá-la
como um ‘intertexto’ (MOZDZENSKI, 2013, p. 179).
O enunciado se encontra em constante diálogo com tudo o que já foi dito
sobre determinado tema e, igualmente, com tudo que lhe seguir, em uma
“corrente evolutiva ininterrupta” da comunicação verbal. A
intertextualidade, portanto, não diz respeito apenas a outros textos
referidos, mas também à forma como a pessoa os usa e de que maneira se
posiciona diante deles enquanto escritor, de modo a elaborar seus próprios
argumentos” (MOZDZENSKI, 2013, p. 179-180).

Análise comparativa
No texto machadiano, o personagem-narrador é a versão mais velha do
jovem Nogueira, então estudante de 17 anos, hóspede do escrivão
Meneses por conta de algum parentesco: era primo da primeira esposa de
seu anfitrião. Esse, por sua vez, havia casado em segundas núpcias com
Conceição, mulher de 30 anos a quem traía frequentemente, dando como
desculpas falsas idas ao teatro. Outra personagem da trama é dona Inácia,
mãe de Conceição. O conto está centrado em um episódio que ocorre no
espaço de tempo de uma hora. Esperando o relógio dar meia noite para
poder ir à Missa do Galo, Nogueira aguarda na sala, lendo. Então aparece
Conceição, estabelecendo-se uma interação entre os dois. Nas entrelinhas,
Machado vai revelando sutilezas e até mesmo um certo erotismo velado.
Ao final, dá conta de que, após as férias, no retorno ao Rio de Janeiro, o
jovem fica sabendo que o escrivão havia morrido e que Conceição mudara
para o Engenho Novo, tendo se casado com o escrevente juramentado do
marido.
Dourado praticamente se vale dessa última informação do texto para, com
o recurso de um narrador onisciente, transportar o leitor a um tempo

486
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mágico, que transita entre a contemporaneidade ao fato narrado no conto


machadiano e algum tempo posterior. Desse modo, cria uma possibilidade
narrativa capaz de influenciar de forma decisiva a leitura da proposta
original. Em sua versão, o escrevente ganha nome e história: Joaquim
Fontainha Távora, o grande beneficiário da morte do escrivão Menezes.
O cartório lhe veio de dote, de eito, leito ou direito, como se dizia e era
uso então. Mas não foi tão fácil como a princípio cuidou. A vara era para
ele mais natural do que a coroa da Inglaterra na cabeça do príncipe de
Gales, pensava na sua lógica plebeia (Dourado, 2008, p. 77).
O narrador onisciente, penetrando o pensamento de Fontainha, brinda o
leitor com a indagação: “se herdara o leito, casas, as apólices, o gabinete,
a escrivaninha, os ratos e mesmo as chinelas do Meneses, por que lhe
negavam a sucessão?” (DOURADO, 2008, p. 78). O autor-criador
amplifica o poder onisciente do narrador a partir da referência ao Príncipe
Charles, herdeiro da coroa britânica, nascido em 1948, ou seja, quase 90
anos após os acontecimentos narrados tanto no conto original, quanto na
presumível temporalidade da versão concebida por Dourado. Além disso,
somos surpreendidos com uma Conceição que, de certo modo, se distancia
daquela apresentada no conto machadiano. Com Fontainha Távora, ela
não mais queria repetir a rotina de submissão que vivera ao lado do
escrivão Meneses.
O mote direto do texto original, ou seja, o encontro de Conceição com o
jovem Nogueira na noite da Missa do Galo, só entra em cena quase na
metade do conto de Dourado. O autor-criador estabelece um diálogo
intertextual com o conto machadiano, apropriando-se de detalhes que
conferem novas possibilidades interpretativas. Fontainha Távora é o
ouvinte aflito, acuado, que vai adentrando a trama original, tornando-se
ele mesmo parte da cena relatada. Isso porque, revela-nos o narrador
onisciente, àquela altura ele e Conceição já mantinham um caso amoroso.
A riqueza do diálogo intertextual chega ao ápice quando Fontainha se dá
conta de que, naquela noite, o jogo de traições ganhou novos recortes e
outra dimensão. Ele fora preterido pela amante, que o dispensou,
preferindo o deleite do encontro com o jovem Nogueira.

Considerações finais
Missa do Galo – Variações sobre o mesmo tema é um exercício de
intertextualidade que nos permite compreender o dialogismo pensado por

487
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Bakhtin e seu Círculo. Na obra, constata-se toda a dinâmica inerente às


noções de enunciado/enunciação e à ação do autor-criador, com
valorações que vão construindo novas perspectivas interpretativas.
Revisitar o conto machadiano, após o contato com a criação de Dourado
ou de qualquer um dos outros ficcionistas, modifica a leitura do original.
Da mesma forma, cada uma das produções exerce influência sobre as
demais, em um dialogismo intertextual que permite múltiplas conexões,
proporcionando ao leitor novas descobertas a cada (re)leitura.

Referências
BRAIT, B.; MELO, R. Enunciado/enunciado concreto/enunciação. In:
BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto,
2020.
FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In: BRAIT, Beth (org.).
Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2020.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento e Bakhtin. São Paulo:
Contexto, 2020.
ASSIS, Machado de [et al.]. Missa do Galo: variações sobre o mesmo
tema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, 2008.
DOURADO, Altran. Missa do Galo (mote alheio e voltas). In: ASSIS,
Machado de [et al.]. Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1977, 2008.
MOZDZENSKI, Leonardo. Intertextualidade verbo-visual: como os
textos multissemióticos dialogam? Bakhtiniana: Revista de Estudos do
Discurso [online]. 2013, v. 8, n. 2 [Acessado 17 Agosto 2021], pp. 177-
201. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S2176-
45732013000200011>. Epub 17 Dez 2013. ISSN 2176-4573.
https://doi.org/10.1590/S2176-45732013000200011.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Carta à Bakhtin: o cotejo do grotesco com a contemporaneidade

Fabiana Giovani
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
fabiana.giovani@ufsc.br

Brasil, Século XXI, ano 2021.


Caro amigo Bakhtin,
Escrevemos-lhe enquanto nuvens pesadas cobrem o céu brasileiro. Há
mais de um ano enfrentamos uma ameaça invisível e, mais do que nunca,
a fala, ou melhor dizendo, o diálogo estabelecido na interação, constitui-
se como nossa melhor estratégia de sobrevivência... Nestas linhas,
gostaríamos de dividir com você os pensamentos que – assim como a
chuva condensada que paira acima – atravessam nossas mentes causando
nelas certa turbulência. São tempos difíceis e violentos os que vivemos e,
diante de tantos acontecimentos, temos estado reflexivas sobre aquela sua
análise da imagem grotesca na literatura rabelaisiana, andamos até relendo
sua obra sobre o tema.
Pedimos licença para esclarecer o motivo desta missiva. Chegamos à
conclusão de que o grotesco é um tema muito atual em nosso país e não
passa um dia sequer sem que nos deparemos com uma manifestação que
pode perfeitamente ser compreendida a partir do conceito por você
delineado. Acreditamos, meu amigo, que se você estivesse aqui pelo
Brasil, não lhe faltariam exemplos para cotejar com o que foi um dia
escrito por Rabelais. E é isso que pretendemos nesta interlocução: olhar
para o nosso tempo, a fim de compreendermos como a imagem grotesca
se faz presente como ato de resistência à violência. Pegamos emprestada
a sua fala e justificamos nossa tentativa de análise da contemporaneidade,
pois “o riso não coíbe o homem, liberta-o” (2017, p. 25).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sim, amigo, em tempos apocalípticos nossa única alternativa só poderia


ser o riso... Vestimo-nos de nossas mais estrondosas gargalhadas, que,
guturais, rasgam a garganta e irrompem à boca como um grito de puro
horror. Com os dentes afiados, já que não suportamos armas, enfrentamos
a crise: resistimos e nosso alicerce – nossa libertação – é o riso! E não foi
isso que um dia fez Rabelais? Como você, Bakhtin, muito bem percebeu
na leitura de Gargantua e Pantagruel, obra esta que é atravessada pela
imagem grotesca do corpo que se despedaça, que se deforma, escancara-
se e se mistura ao mundo. Esta imagem que vem do imaginário popular,
da festa, do folclore e se materializa em riso: satirizando o que é
considerado oficial. Tentamos imaginar em quais confins da cultura
popular brasileira Rabelais encontraria subsídios para retratar em palavras
a bizarra inversão topográfica que se estabeleceu neste país tropical. Já
que os que estão no alto apontando seus grossos dedos para nós, que
sempre estivemos abaixo na hierarquia do poder, aproximam-se mais do
que você considera “baixo corporal” e profano. “Pouca saúde e muita
saúva, os males do Brasil são”, profetizou o herói deturpado de Mário de
Andrade, Macunaíma. Presumimos que o francês eo paulista teriam muita
conversa a fiar se um dia resolvessem tomar um chá em algum bar nos
becos de São Paulo ou de Paris... Queríamos nós que o preguiçoso herói
de nossa gente, nascido no mato virgem, não estivesse certo em sua
profecia.
Talvez estejamos em devaneios como num fluxo de consciência, o que
pode prejudicar a sua compreensão do que estamos querendo lhe dizer.
Então, caro amigo, vamos tentar, nessas mal traçadas linhas, esboçar a
nossa compreensão de grotesco a partir de nossa leitura e do lugar em que
nos encontramos. Sabemos que você explora um viés um tanto obscuro,
especialmente, para a crítica literária do período em que foi lançado, não
apenas na obra de Rabelais, mas até mesmo para a sustentação do seu
trabalho de doutoramento: a influência e importância das fontes populares.
Felizmente, você pôde acompanhar em vida que desde o lançamento do
seu livro “Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François” em 1965, o mesmo se tornou referência nos estudos
literários, principalmente àqueles que se dedicam à história do riso e à
cultura popular.
Aliás, falando em cultura popular, caríssimo, dias desses lemos no
prefácio à edição italiana de um livro[1] de um outro amigo, o Ginzburg,
que, ao que tudo indica, Gargântua e Pantagruel, muito embora não
tenham sido lidos por nenhum camponês, nos fazem compreender mais
coisas sobre a cultura camponesa do que obras[2] que deviam, de fato,

490
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

circular amplamente pelos campos da França. Sobre isso, a sua obra sobre
o grotesco nos faz reconhecer que essa visão de mundo, elaborada no
correr dos séculos pela cultura popular, se contrapõe, sobretudo, na Idade
Média, ao dogmatismo e à seriedade da cultura das classes dominantes.
Como você mesmo afirmou, apenas levando-se em consideração essa
diferença é que a obra de Rabelais se torna compreensível. Em outras
palavras, amigo, nos confirme se estamos no caminho da compreensão, o
seu corpo grotesco traz não só uma dicotomia cultural, mas uma relação
de reciprocidade, circularidade entre cultura subalterna e cultura
hegemônica. Quanta beleza nesta reflexão! Sabe, precisamos lhe contar
algo que talvez não saiba: é justamente a riqueza das perspectivas de
pesquisa indicadas por você que fez Ginzburg desejar uma sondagem
direta, sem intermédios, do mundo popular. Ele acha que o seu belíssimo
livro tem um limite, uma vez que os protagonistas da cultura popular que
você tentou descrever - camponeses, artesãos - nos falam quase só através
das palavras de Rabelais. Desse modo, Ginzburg dá a voz para o popular
Menocchio. Mas isso, é outra história que lhe contaremos em outro
momento.
Retomando nossa reflexão, outro parceiro de nossos tempos, o
pesquisador Duarte[3], ao resenhar a sua obra a que referenciamos,
comenta que os limites do vocabulário familiar e grosseiro na cultura
popular da Idade Média só podem ser apreendidos nos festejos
carnavalescos, onde a ordem católica e feudal séria podia ser rompida em
detrimento de uma forma cômica, renovadora. Grosserias, palavras
injuriosas, blasfêmias, juramentos, etc., impregnadas pela visão
carnavalesca do mundo, dirigidos não somente uns aos outros, mas
também às divindades, transcendiam o caráter puramente degradativo e
adquiriam sentido regenerador e renovador da vida. Ainda nas palavras
dele, todas as características da cultura popular da Idade Média e do
Renascimento, que vão convergir com a mediação do nosso reconhecido
gênio François Rabelais, estão permeadas pelo princípio da vida material
e corporal, ou seja, ocorre um rebaixamento para o plano material e
corporal de todas as coisas.
Duarte diz que é esse fenômeno estético que você, caríssimo Bakhtin,
denomina de realismo grotesco. Como você mesmo instaura “O traço
marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao
plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel
unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato”. Graças aos
seus estudos e visão diferenciada da vida, temos então um princípio que é

491
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fundamental para se compreender a obra de Rabelais em sua mais


profunda totalidade, traço que os críticos, principalmente os românticos,
não souberam explorar, deformando, como você mesmo reconheceu, a
essência do grotesco medieval, uma vez que “o princípio do riso sofre uma
transformação muito importante. Certamente, o riso subsiste; não
desaparece nem é excluído como nas obras ‘sérias’; mas no grotesco
romântico o riso se atenua e toma a forma de humor, ironia ou sarcasmo.
Deixa de ser jocoso e alegre”. Portanto, o seu trabalho, Bakhtin, procura
resgatar não somente a essência do realismo grotesco na cultura popular
na Idade Média e na literatura do Renascimento, como também a
“verdadeira” face da poderosa obra de François Rabelais e mais: nos ajuda
a pensar a contemporaneidade!
Voltemos então a tal contemporaneidade e à sua reflexão sobre o grotesco
de modo a entender um pouco melhor o nosso cronotopo e, quem sabe,
sair dessa conversa com mais condição de responder eticamente ao que
somos convocados. Sabe, precisamos lhe confessar que o brasileiro gosta
tanto do grotesco que tem expandido o seu uso; no momento, a área mais
promissora de abordagem do tema é sem sombra de dúvidas a política.
Claramente, isso se deve à influência do líder maior da nação que tem forte
apreço ao uso de expressões ligadas ao baixo corporal - mais do que isso,
devemos dizer que o senhor presidente tem pregado a favor do grotesco
diuturnamente em todos seus atos e discursos. Isso soa um tanto estranho,
não é mesmo?! Nós também achamos. De um líder nacional, esperamos
uma atitude mais cortês, com toques de formalidade e um discernimento
maior na escolha de palavras e de ações. Mas o “chefe” da nação gosta
mesmo é de falar besteira, ele não se importa muito com essa história de
formalidade, não, viu?! Chega a ser até hilário em alguns momentos, pois
ver uma pessoa tão importante falando sobre o baixo corporal em
discursos oficiais acaba nos causando riso - de espanto, de deboche, de
nervoso... um prato cheio para seus estudos sobre o grotesco. Tornemos a
ele...
Da leitura de seus escritos, especialmente a do capítulo 5, percebemos a
importância do corpo na imagem grotesca. Um corpo inacabado, aberto -
no sentido literal da palavra -, que tem seus limites apagados, ou, nas suas
palavras, “atravessados” ao ser explorado em toda a sua potência
transformadora. Como você sugere, “na base das imagens grotescas,
encontra-se uma concepção especial do conjunto corporal e dos seus
limites” (1987, p. 275). Assim, ao trazermos à luz uma análise objetiva
sobre um texto legitimamente grotesco, podemos observar detalhes,
mesmo que de aparência ínfima, repletos de sentido. Apesar de acepção

492
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

incompleta, o grotesco traz em sua estrutura uma significação universal,


na qual vai, conforme comentamos anteriormente, além de uma simples
sátira. Assim, todo o contexto cria uma atmosfera justificadora da
transformação grotesca (1987, p. 271).
Ao tratar dos conceitos de ambivalência (dos polos positivo e negativo) e
hiperbolização das formas corporais, posto que “as fronteiras entre o corpo
e mundo fundem-se em mundo exterior e das coisas (1987, p. 270)”,
denotamos uma eflorescência de elementos ligados ao baixo corporal e
material, transformando o alto corporal no profano. Ao mexer nos
aspectos topográficos, corporificando e rebaixando as coisas, há a
concepção da mistura de corpo ao mundo; desestruturando o oficial com
o não-oficial e, consequentemente, renovando as noções legais e
solenes. Percebemos que na criação do rosto grotesco a boca e o nariz
assumem papel central. Apesar de se localizarem no alto corporal –
presentes no rosto humano – ambos possuem grande importância na
caracterização grotesca do corpo. A boca é a ligação, o caminho que
conduz ao baixo corporal. A imagem da bocarra escancarada pode ser
associada a deglutição e a absorção, mas também ao ventre e as entranhas,
sendo que os acontecimentos mais importantes ao corpo grotesco têm a
boca como lugar central. Já o nariz, geralmente aparece como o substituto
do falo, mais uma forma de aproximar o baixo corporal do alto corporal.
Percebemos também que as bases das imagens grotescas não estão
somente na concepção especial do conjunto corporal, mas também dos
seus limites. Muitos teóricos tentaram compreender o grotesco, mas eles
não conseguiram perceber o que está claro em sua tese, que no corpo
grotesco as fronteiras entre as coisas e os fenômenos são traçadas de
maneira completamente diferente, elas se enfraquecem, permitindo
romper com seus próprios limites, ultrapassar a si mesmo e misturar-se ao
outro. Dessa forma, tudo que vai além do corpo que procura sair e
espalhar interessa ao grotesco, de maneira especial as ramificações que
podem prolongar o corpo, unir a outros corpos ou ao mundo não-corporal.
Assim, ventre, falo e nariz que atravessam o limite do corpo são
frequentemente hiperbolizados, podendo até mesmo levar uma vida
independente deixando o restante do corpo em segundo plano. Ainda
sobre os prolongamentos do corpo grotesco, podemos falar das
excrescências que também se caracterizam por ultrapassar os limites do
corpo. Entretanto, os orifícios caracterizam-se de forma distinta, sendo os
locais onde ocorrem as trocas entre corpos e entre o corpo e o mundo.

493
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Como você diz, “o corpo grotesco é um corpo em movimento (1987, p.


277)”. Isto significa que, por ser incompleto, sempre estará num processo
de construção e criação, se tornando outro. E ao ocupar-se desse processo,
em que há o predomínio da linguagem ligada ao corpo e ao que vem do
corpo - fazendo parte do não-oficial - tem-se um processo de adjunção ao
riso.
Caro amigo, partindo da sua citação de que o corpo grotesco “jamais está
pronto nem acabado e que, contrariamente, está sempre em estado de
construção, de criação de outro corpo, no liame do cotejamento, pensamos
no processo de Metamorfose[4] de Kafka. Ao trazer a metáfora de um
indivíduo excluído das relações sociais, temos a des(humanização) do
personagem principal transformando-se num inseto - que é atribuído como
ser repugnante e grotesco pela sociedade. Então, ao aludir a ideia de que
o “o corpo humano é o material de construção (1987, p. 273)”, temos a
criação de um novo ser, que deixa de ser humano e, em sua bizarra forma
nojenta, passa a ser aceito pela família, bem como aproveita as
(des)vantagens de sua nova forma.
Bakhtin, nosso caro, talvez até este ponto tenhamos demonstrado a
contento nossa compreensão dos seus escritos sobre o grotesco e
esperamos não ter lhe aborrecido com os nossos devaneios… antes de
terminar nossa conversa, porém, precisamos lhe esclarecer algo a mais
sobre o contexto brasileiro ao qual já nos referimos antes. Justamente por
termos um líder da nação que traz o grotesco de modo explícito em seu
ser/agir responsivo e, nada responsável, o povo, o popular logo pegou este
calcanhar de Aquiles e o expandiu. O popular abrindo frestas nas festas de
resistência, entre o choro e o riso, construiu muitos grotescos
representando ao presidente. Eis uma delas para que você tome
conhecimento:
Figura 1: Charge do Presidente Jair Bolsonaro

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Câmera em Pauta[5]


Essa imagem grotesca vai além de uma sátira moral para com o presidente.
Ela representa o rompimento de sua influência, demarcando o fim de uma
(suposta) ascendência e dominação; desestruturando todo o seu discurso,
sua imagem e até mesmo a sua fé – demarcada em sua campanha política.
Ao ridicularizar o rosto de uma autoridade, trazendo o baixo corporal no
lugar do alto; do orifício de excremento no lugar da boca, temos uma
alegoria de significação quanto à fala e aos dizeres de um chefe de poder.
No mais, denota-se também o processo de criação de um novo corpo, já
que “todas essas excrescências e orifícios caracterizam-se pelo fato de que
são o lugar onde se ultrapassam as fronteiras entre dois corpos e entre o
corpo e o mundo, onde se efetuam as trocas e as orientações recíprocas
(1987, p. 277)”. O grotesco na imagem nos revela o escárnio subjacente
da decadência governamental de um indivíduo cujo poder, em tese,
deveria ser pujante. Assim, “a tendência abstrata deforma essa
característica da imagem grotesca, pondo a ênfase num conteúdo, cheio
de sentido “moral”. Mais ainda, ela subordina o substrato material da
imagem ao aspecto negativo, e o exagero torna-se então caricatura (1987,
p. 54)”.
Confirmando as suas palavras de que a boca e o nariz são os elementos
faciais mais importantes na caracterização do corpo grotesco, observamos,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nessa imagem que lhe trazemos, o rosto inteiro de nosso presidente


substituído pelo baixo corporal, deixando-o sem uma face, sem uma
individualidade e identidade. A boca, elemento corporal que “devora o
mundo” é substituída pelo traseiro que representa exatamente o oposto -
não devora, apenas libera os excrementos que “ultrapassam as fronteiras”
entre o corpo e o mundo. A perda de identidade do presidente nessa charge
representa perfeitamente a imagem que o mesmo transpassa à população:
um homem que corporifica os grandes males da sociedade, governa para
os ricos e para as igrejas, ignorando e zombando das necessidades de seu
povo.
A charge que lhe apresentamos é compartilhada por milhões de pessoas
em redes sociais, como forma de riso e de resistência; bem como pontuou
Gargantua[6]: “o riso é a marca do homem.” (p. 59) Como você mesmo um
dia afirmou, “as imagens grotescas do corpo predominam na linguagem
não-oficial dos povos, sobretudo quando as imagens corporais se ligam às
injúrias e ao riso”, como é o caso de nosso exemplo. Nosso governante,
contudo, apresenta-se como uma exceção à regra, uma vez que utiliza da
linguagem grotesca em seus discursos oficiais e entrevistas, o que
demonstra - mais uma vez - o desdém com que governa a nossa nação. Os
excrementos que saem de sua boca - na imagem, seu orifício - ilustram
aquilo que reverbera de sua voz. Assim, a revolta da sociedade que ilustra
seu presidente de tal maneira é proporcional à nocividade do
governante. E diante de tanto temor pelas atitudes de nosso governante,
recorre-se ao riso como forma de libertação pois como você já nos
esclareceu a imagem do baixo material e corporal “é a alegre matéria que
rebaixa e alivia, transforma o medo em riso (p. 293)”.
Assim chegamos às linhas finais deste diálogo. É certo que há ainda muito
o que escrever a respeito dos acontecimentos que constituem o cenário
brasileiro deste nosso tempo-espaço fervilhante e singular, mas cremos
que o objetivo deste texto foi alcançado. Vemosque as nuvens que
atravessavam o céu, cor de anil, aos poucos se dissipam e
podemosvislumbrar de nossas janelas à luz, com isso nos atrevemos a
sentir esperança! Pois o riso nosune, caro amigo, ele se sobrepõe a
seriedade da violência e nos permite resistir. Resistimos!
Assinamos,
GEBAP (Grupo de estudos bakhtinianos do Pampa) por,
Fabiana Giovani
Ellen Petrech Vasconcelos

496
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Bianca Alves dos Reis


Gabriele Damin de Souza
Karla Daiane Martins

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2008, p. 129.
BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas.
São Paulo: Editora 34, 2017.

Notas:
[1]
Trata-se do livro “O queijo e os vermes”, de Carlos Ginzburg (1989).
[2]
O autor cita a obra Almanach des bergers.
[3]
Trata-se do texto de André Luis Bertelli Duarte intitulado Cultura
Popular na idade Média e no Renascimento: revisitando um clássico.
[4]
Trata-se da novela “A Metamorfose”, escrita por Franz Kafka.
[5]
Disponível em: Acesso em: 25 ago. 2021.
Gargântua é um personagem da obra “Gargântua e Pantagruel”, escrita
[6]

por François Rabelais.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Chapeuzinho Amarelo e o riso: o banquetar-se na obra


destinada à infância.

Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto


Faculdade de Filosofia e Ciências _ Unesp _ Campus de Marília
cyntia.girotto@unesp.br

Ao propor a existência de uma relação indissociável entre a categoria


realismo grotesco e, se assim posso nomear, as subcategorias ‘riso,
banquete, olhar pelo avesso’ no texto literário de François Rabelais,
Bakhtin (1992, 1998) provoca uma novidade no universo dos estudos
literários. O mestre russo oferece não apenas novos elementos estéticos a
serem observados como também uma categoria analítica profícua. São
conceitos relativamente pouco abordados pelos estudiosos bakhtinianos,
principalmente por aqueles que procuram tomar tal perspectiva como
fundamentação teórica para as análises na literatura, aqui particularmente
aquela endereçada às crianças: a literatura infantil.
Assim como as categorias de grotesco, do riso e do carnaval, só ganham
vida no pensamento bakhtiniano a partir da leitura de Rabelais, para
aqueles que pretendem analisar textos literários dentro da abordagem
bakhtiniana, é preciso o debruçamento sobre os textos, levando-se em
consideração suas condições de produção externas e seu teor formal-
conteudístico interno.
Neste texto o foco meu foco está sobre a obra “Chapeuzinho Amarelo” de
Chico Buarque de Holanda (1979_ primeira publicação com ilustrações
de ), provocação inspiradora pautada pela companheira do grupo GEGE,
a Oswald. As discussões e reflexões provenientes de nossos dois últimos
encontros me direcionaram para a aproximação entre o pensamento
bakhtiniano e a produção de Chico Buarque em parceria com Ziraldo
(1994_ segunda publicação). Busco demonstrar, portanto, como o riso, o
banquete, o olhar enviesado, relacionam-se artisticamente, revelando a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estética do autor-poeta-músico e do ilustrador como elemento criativo a


partir da imaginação da criança.
Bakhtin associa o grotesco às manifestações populares nos períodos da
Idade Média e Renascimento europeus. A partir da obra literária de
François Rabelais, vincula-o à realidade da própria vida especialmente
durante festas como o Carnaval, elaborando uma concepção de mundo e
um sistema de imagens em que predomina a coletividade, a ambivalência,
a abundância e o riso alegre. Bufões e bobos são os representantes por
excelência dessa categoria, com suas protuberâncias, excrecências e
hibridismos.

Em relação ao motivo do banquete ou do comer e beber em excesso,


geralmente associado a comemorações das vitórias de guerra ou do
nascimento, vale explicitar que tais banquetes servidos pelos heróis
rabelaisianos simbolizam a deglutição e a vitória do mundo popular sobre
o cotidiano oficial medievalesco, assim como o nascimento de novos
tempos em detrimento da visão de mundo unilateral e retrógrada ditada
pelo cristianismo medieval. Os banquetes rabelaisianos, portanto, são
sempre caracterizados pela alegria, pela comicidade e pelo riso, elementos
tão rejeitados no dia-a-dia da cultura oficial.
Em outras palavras, a vitória está na alegria típica das festas populares
sobre a tristeza e o medo que caracterizavam a alta cultura medieval. Essa
fase do triunfo vitorioso das guerras, por exemplo, é obrigatoriamente
inerente a todas as imagens de banquete da época. Segundo o mestre
russo:
Uma refeição não poderia ser triste. Tristeza e comida são incompatíveis,
(enquanto que a morte e a comida são compatíveis). O banquete celebra
sempre a vitória, é uma propriedade característica da sua natureza. O
triunfo do banquete é universal, é o triunfo da vida sobre a morte. Nesse
aspecto, é o equivalente da concepção e do nascimento. O corpo vitorioso
absorve o corpo vencido e se renova. (BAKHTIN, 2010, p. 247).

A obra de Bakhtin me interessa, nessa medida e especialmente, pela beleza


que vejo em sua maneira de abordar os movimentos de transformação da
vida. O ciclo, portanto, de morte-vida-renascimento é sugerido de uma
forma alegre: o que morre dá a vida em seguida, mais abundante e melhor

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(BAKHTIN, 2010). No realismo grotesco, vejo, portanto, a ideia de um


futuro utópico em que tudo o que acontece dentro dessa categoria, teria
como base a celebração e a esperança de mudança para algo melhor.
Apesar das injustiças, da desigualdade social, das hierarquias, ele exalta
os momentos em que tudo isso desaparece na horizontalidade das festas
populares, do Carnaval, da cultura popular. E nós, parte do povo, tenho
reforçado cada vez mais esta minha crença primeira, junto do GEGE,
sempre precisaremos de um respiro, de esperança, de riso, pois as
injustiças muito provavelmente continuarão existindo.
Transformar o medo em um monstro alegre, o terror cósmico em deboche,
as figuras poderosas, como o rei, em rei-momo. Experimentar a liberação
do corpo. Ver a morte como uma passagem para algo que está por nascer.
O ano velho que dá lugar ao ano novo. A primavera que sucede o inverno.
Depois da colheita, as mesas cheias, o banquete. Tudo isso leva-me a ver
como Bakhtin nos apresenta um pensamento que se mostra revolucionário
e ao mesmo tempo otimista.

Vejamos como isso se dá na obra “Chapeuzinho Amarelo”. O leitor pode


gradativamente ir percebendo que Chico e Ziraldo dão o devido valor ao
riso, a superação, ao olhar enviesado: mais vale rir do que é demasiado
sério, tanto quanto sugere Bakhtin em sua análise sobre Rabelais. Celebrar
a vida, ‘banqueteando-se’ muito, parece ser o propósito, ainda que
timidamente, não tão grotescamente como em Rabelais.
Chapeuzinho Amarelo é poema narrativo. Aborda duas questões centrais:
medo e superação, todavia distante de um viés moralizante. Fazendo um
paralelo com próprio título, o leitor conecta-se ao conto clássico. Nele a
protagonista, assim como no poema de Chico, enfrenta um lobo. Todavia,
por motivações outras, no conto europeu, a menina é destemida e envereda
por um caminho incerto, mesmo tendo sido alertada sobre os riscos e
perigos. A cor representativa da essência de cada Chapeuzinho é
relevadora das intencionalidades: o vermelho pode significar coragem e
impulsividade, ao passo que o amarelo, por sua vez, pode designar
covardia e medo, características marcantes da protagonista da obra em
análise.
A nossa Chapeuzinho não está exposta a situações reais de perigo, ela
apresenta um medo descabido, na medida em que não ria, não ia a festas,
não subia nem descia escadas ou mesmo ouvia conto de fadas: ações
convencionalmente consideradas seguras. Além desses temores

500
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

corriqueiros, ela tinha um medo em especial: “[...] o medo mais que


medonho / era o medo do tal do LOBO. / Um LOBO que nunca se via, /
que morava lá pra longe [...]numa terra tão estranha, / que vai ver que o
tal do LOBO / nem existia”. A monotonia do ritmo, presentificada neste
trecho, reforçado por rimas, aponta para a impossibilidade de sair daquela
situação. É como se tudo se repetisse e, apenas quando se quebra o jogo
rítmico, cria-se a possibilidade de mudança, como atesta os dois versos
finais.
Chapeuzinho Amarelo não precisa de salvadores para livrá-la do inimigo
ameaçador, ao contrário da europeia, intermediada pela ajuda de um
caçador. A menina encara e enfrenta por si só aquele que pode ser
compreendido como o medo da própria vida. Ao ficar claro que o tal vilão
não mais a assustava, aquele, imediatamente, passa de “LOBO” (em letras
maiúsculas), para “lobo” (em letras minúsculas). Até esse momento da
narrativa, o antagonista sempre é representado, no campo textual, por
letras maiúsculas (“LOBO”), até a passagem de um lobo ameaçador e
medonho para um lobo inofensivo. O leitor percebe então que o uso de
letras maiúsculas está intimamente relacionado à periculosidade do
antagonista.
Já a ilustração em página dupla que retrata este exato momento é
reveladora. O fundo branco, até então predominante, dá lugar a um
colorido total. As cores, antes sempre focadas nas personagens, saem delas
e criam um cenário. O céu de pôr do sol invade todo o espaço da página
dupla, deixando lugar somente para as silhuetas de Chapeuzinho e do lobo,
agora reduzidos e centralizados. Os dois parecem estar em posição de
confronto, a menina na página esquerda e o lobo, na direita. Chapeuzinho,
de cabeça erguida, encara o lobo, que a fita com um olhar irritado. Aqui,
Chapeuzinho e o lobo travam um duelo silencioso.
As cores não ocupam o espaço branco da página em vão; elas criam uma
atmosfera vibrante. Ao olhar com atenção, pode-se perceber que o
vermelho tem um significado outro, aparece sobreposto ao amarelo. Pode-
se fazer uma analogia entre amarelo/medo e vermelho/coragem.
Chapeuzinho está vencendo seus medos – pelo menos, o maior deles. Já
na seguinte, Chapeuzinho, já destemida, não quer mais saber de medo e
muito menos do lobo, que, por sua vez, não aceita aquela indiferença e
protesta: berra com todas as forças “aquele seu nome de LOBO / umas
vinte e cinco vezes, / que era pro medo ir voltando / e a menininha saber /
com quem não estava falando”. A página dupla é tomada pelo processo de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

transformação do lobo em bolo, a ilustração toda em branco e preto se


inicia com o lobo assustador e termina em um bolo confeitado.
Isso mesmo: a menina, então, “já meio enjoada, / com vontade de brincar
/ de outra coisa”, transforma o seu medo em brincadeira, através de outra
brincadeira, desta vez linguística: a inversão de sílabas. Chapeuzinho
Amarelo consegue transformar um “LOBO” em um “BO-LO”, mais
especificamente, “um bolo de lobo fofo”. Há, dessa forma, o trabalho com
a dimensão lúdica da palavra, uma vez que lobo e bolo são compostos
pelas mesmas letras. É como se o trabalho com a linguagem implicasse
também uma mudança interior, de atitude da personagem. Ou seja, pelo
jogo, pela imaginação, pelo delírio infantil, pode-se alcançar um outro
olhar enviesado sobre o problema do medo. Casa-se aqui o lúdico da
palavra em si e de seus diferentes modos de representação e, assim, de
superação.
O corpo e o mundo do lobo são devorados pela transmutação da imagem
dos caracteres gráficos e pelas imagens simbolizando também a morte do
antigo, do ultrapassado e do oficial (o lobo dos contos clássicos) e a
celebração do novo, de uma nova concepção da realidade e de uma nova
cultura de menina, alegre e multifacetada. O bolo ali está a representar
metaforicamente a alimentação, relacionado está ao ‘banquetear-se’ pelo
riso, pelo cômico, superando e superando-se dialógica e dialeticamente:
comemorações de uma vitória em luta para um nascimento.
É preciso dizer que todo escritor deve ser visto como um reflexo produzido
por uma sociedade em um determinado tempo. Assim, não se pode
desconsiderar a época em que Chico Buarque escreveu Chapeuzinho
Amarelo. Publicado em 1979, o livro aparece como uma balança entre as
décadas de 1970 e 1980 – período em que os militares se encontravam no
poder no Brasil. Outrossim, não seria difícil que Chico Buarque – uma das
bandeiras na luta contra a ditadura – utilizasse a literatura infantil para
criticar, sutilmente, a situação de opressão vivida pelos brasileiros.
Assim, de um lado, pode-se comparar a figura inicial de uma menina
oprimida (“Amarelada de medo”) que tinha o “medo mais que medonho”
de um dia encontrar o lobo. Um lobo que ao perceber que não era
respeitado, gritou “umas vinte e cinco vezes” para tentar se impor.
Nesse plano metafórico, é possível aproximar a figura do lobo aos
generais da ditadura militar que pisavam forte no começo dos anos de
1970, reprimindo e censurando as manifestações de liberdade e
pensamento (transfigurados na pele da menina Chapeuzinho). Note-se que

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o número de vezes que o lobo gritou seu nome (vinte e cinco), pode sugerir
a previsão de anos que Chico Buarque acreditava durar o período militar,
iniciado com o golpe de 1964.
Entretanto, na sequência, a menina foi perdendo o medo do lobo, que,
numa brincadeira, acabou virando um bolo. Nesse sentido, podemos
visualizar o processo de redemocratização no Brasil (final da década de
1970 e início da década de 1980), em que os cidadãos (Chapeuzinho)
começaram a protestar contra a opressão da ditadura (todos os medos da
menina).
Mesmo se interpretado na condição crítica à ditadura, não se pode negar o
caráter essencialmente infantil presente no livro, que, inclusive, foi
dedicado às filhas pequenas do autor. Isso porque Chapeuzinho Amarelo
prima, ao contrário de outras obras mais ligadas à pedagogia do que à arte,
pelo imaginário da criança, num contexto verossímil que se preocupa com
a realidade, mas não com a verdade.
Essa linguagem artística, humana, presente em Chapeuzinho Amarelo,
busca sugerir ideias e experiências, num jogo em que as palavras, os sons
e as imagens se cruzam e constroem uma leitura poética, plena de
descobertas, suscitando renovação constante nas ambivalências da vida.
E o livro de Chico Buarque desemboca justamente nessa questão:
Chapeuzinho Amarelo provoca a imaginação do pequeno leitor, estimula
o questionamento dos porquês da existência dos seus medos, instiga o
lúdico num jogo de palavras, sons e imagens, ensina a transformar o velho
em novo num processo constante de renovação. E são essas possibilidades
inerentes a uma literatura infantil de caráter humanizador, de que tanto
prescinde a formação da criança leitora.
A obra de Chico Buarque e Ziraldo é mesmo, como já dito, a representação
do riso, do banquete pela arte estético-literária por eles projetada. Celebra-
se as crianças e as infâncias; e as possibilidades do porvir em renovação e
superação. Desloca-se do medo para a alegria, a morte pela vida, o
monstro pela festa, o amargor pela doçura, o terror pelo deboche. Não
podemos esquecer que nossas crianças vivem ainda a presença de muitos
adultos e sistemas por eles criados que se caracterizam como verdadeiros
lobos.
Assim como na obra de Rabelais em que a leitura se revela atual, mesmo
que aborde o período da Idade Média europeia, em que pese obviamente
as diferenças na contemporaneidade, também “Chapeuzinho Amarelo”

503
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

faz-nos ver que prevalece ainda hoje diferentes formas de controle sobre
os corpos- mentes de adultos e crianças, análogas às que aconteciam na
esfera social daquela época, quando o único escape à rigidez excessiva
eram justamente as festas promovidas pelo e para o povo.
Em vias da conclusão, creio poder afirmar que Chico Buarque
apoiado pelas ricas imagens de Ziraldo leva a sua protagonista a
inaugurar-se em seu próprio mundo infantil, dá a ela uma nova forma de
olhar para sua realidade, uma nova forma de ver o outro, o mundo e a si
mesma por outra ótica. Ao fazer isso tanto autor, como ilustrador deglutem
a realidade de um lobo mau tenebroso, sério, que trazia uma realidade
revestida pelo medo, para fazer nascer uma nova realidade ficcional,
alegre, inesperada e absurda até, simbolizada pelo mundo redescoberto,
recriado, daí a imagem de um lobo que vira bolo. Um novo mundo na
boca, na face e no olhar de Chapeuzinho, tanto quanto na imagem do lobo-
bolo cuja figura, por si só, também simboliza o alegre e absurdo, e,
portanto, o cômico.
Por fim, podemos pensar que ao imprimir tais qualidades à produção da
obra, em conjunto, Chico e Ziraldo trazem alimentação abundante, um
banquete genuíno, para os leitores mirins que igualmente como a
protagonista tem fome de transformação. Assim, a contar desse mundo
adultocêntrico, em que adultos tudo decidem pelas crianças, por exemplo:
o quê, por quê, para quê, quando, como e onde podem ler; quais são,
então, as melhores obras a serem lidas, os mais adequados momentos, as
melhoras formas, com quais finalidades, por quanto tempo, sob quais
condições etc, etc... autor e ilustrador simbolizam também a fome
insaciável de nossas crianças pelo conhecimento e a sede de muitas delas
em captar e beber o mundo de forma alegre e festiva, desfrutando da
abundância da apreciação estética de um mundo inteiro a ser devorado!

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. de Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
BUARQUE, Chico. Chapeuzinho Amarelo. 13. ed. São Paulo: Editora
José Olympio, 1994.

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Como a professora Mireille Legrand conseguiu parir o gênero


artigo acadêmico

Moacir Lopes de Camargos (Univ. Fed. do Pampa)


lopesdecamargos@gmail.com

O Riso – o voltairesco clown – quem mede-o?


-Ele, que ao frio alvor da Mágoa humana,
Na Via Láctea fria do Nirvana,
Alenta a Vida que tombou no Tédio!
Augusto dos Anjos

Após fortes libações alcóolicas e fartura de comidas - não havia tripas ou a


marvada carne de boi-, ela já estava borracha de olhos obnubilados pelo
apetitoso banquete proporcionado, não pelo velho Platão, mas por Aretino
com o seu delirante/excitante Regionamenti. Porém, precisava de uma ideia
para abrilhantar o seu pobre Lattes que, àquela altura dos acontecimentos,
já estaria perdido pela Via Láctea (Risos). Mas de onde surgem as ideias?
!Hay que buscar inspiración mujer! Ela sempre escutava vozes, diversas vozes
aveludadas com sonidos de violões a la Cruz de Souza, ou teria (em tempos
outros) recebido o famoso troféu língua de veludo?
Especulações à parte, eis que a ideia chegara com os Anjos que
lhe dispararam flechas fatídicas em seu cérebro que ardia como um
fogo fátuo em pura volúpia linguístico-filosófica.

A ideia
De onde ela vem?! De que materia bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta


Do feixe de moléculas nervosas,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Que, em desintegrações maravilhosas,


Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,


Chega em seguida ás cordas do laringe,
Tisica, tênue, mínima, raquítica.

Quebra a força centrípeta que a amarra,


Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!
Augusto dos Anjos

No entanto, Madame Legrand discordou dos Anjos, uma vez que,


apesar de toda volúpia linguageira, nem só de uma
sistemática/paralítica língua vivem as ideias. Assim, inspirada
rabelaisianamente, ela se perdeu nos diálogos de Bakhtin e Ponzio,
indo dar ouvidos ao grotesco. Então, percebeu que les bonnes idées
ficam na casa do caralho. Isso seriam outras vozes absurdas ou teria
qual tom valorativo ou dialógico? Essa casa não é a casa do pai João
onde sempre cabe mais um. Definitivamente não! Propagandas de
desodorante é coisa para se discutir quando se tem problemas de
sovaco. As ideias vêm de baixo para cima, sem cisma nenhuma de
pensar em porralouquisses. Falo, verdadeiramente!
Para resolver esse pequeno enredo dramático, Madame pensou em
adereços inspiradores, mas sem rancores (isso não!). Como professora
exploradora que sempre fora, ela almejava Descobrimentos como
naqueles versos de Valdo Motta: Extáticos dátilos,/ébrios
cabiros,/transidos curetes,/solenes telquinos/em faleno rito,/em orifício
sacro/no antro celeste. E, inspirada, trans-pirada e trans-formada pelos
(re)versos prosaicos e poéticos, o alto (locus privilegiado da escuta) foi,
grotescamente, adornado pelo baixo que continuou a roçar
suavemente entre pelos e peles, uma verdadeira carícia caliente às
ideias da velha mestra.

Desta feita, o ouvido pensante virou o lugar da voz, da fala, do falo eu!
E, sobretudo, em momentos de tantas desnotícias, medos e ameaças
de tanta gentalha reaça, o adereço servira para isolar-se do mundo,
pois nada melhor que estar em sua casa (o caralho em sua própria home
sweet home ou seu novo antro sacro para o mais sublime e puro gozo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de geniais ideias) guardado,


protegido, ungido, a salvo de
enunciados que anunciam
verborreias patéticas.

E assim nasceram as
ideias claras de Madame
Legrand para parir textos
éticos e estéticos, pois tudo
que ouvimos são vozes de
outros, lera ela de pensadores
e estudiosos da filosofia da
linguagem. E, ao final,
leitores/as deixo um recado:
“Duvido que não acrediteis
com segurança nesse estranho
nascimento. Se não acreditais,
muito me aflijo, mas um
homem de bem, um homem de
bom-senso deve sempre
acreditar no que se lhe diz e no
que lê. Não o diz Salomão (115),
Proverbiorum XIV: Innocens credit
omni verbo (116), etc.? E São
Paulo (117), prime Corinthio, XIII:
charitas omni credit (118)? Por
que não haveis de acreditar?
Porque, direis, não há nisso
nenhuma aparência. E eu vos
digo que, só por essa razão,
deveis acreditar com toda a
vossa fé, pois dizem os
Sorbonnistas (119) que a fé, é
argumento das coisas de

507
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nenhuma aparência”. (RABELAIS, 1966, p.54)

Referências
ANJOS, A. Antologia poética de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro:
Ediouro; São Paulo: PubliFolha, 1997.
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o
contexto de Rabelais. 3 ed. (Trad. Yara Frateschi). São Paulo: HUCITEC;
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
MOTTA, Valdo. Bundo e outros poemas. Campinas, SP: Ed. Unicamp,
1996.
RABELAIS, F. Gargantua. (Trad. Aristides Lobo). Rio de Janeiro:
Ediouro, 1966.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Como o ritual cunilingus ilumina as ideias

Icaro Cesar Cainan da Cunha Claro Olanda


Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA
icaroolanda.aluno@unipampa.edu.br

Venerai o Santo Fiofó,


Ó neófito das delícias,
e os deuses hão de vos abrir as portas
das inúmeras moradas do Senhor
e a fortuna vos sorrirá
com todos os encantos e prodígios
Exortação (Valdo Motta)

Em meio a uma profusão de palavras e contrapalavras de um eu para


um outro, e caminhando à sombra do niilismo por estar/ser “dentro
de um navio que sei que vai naufragar”, é que escrevo esse texto
para entrar na “roda” e dar a minha contrapalavra ao corpo
grotesco materializado através das relações sexuais. Faço isso sem
pretensões acadêmicas; sino com aspirações filosóficas, ya que sigo
os passos de Patty Diphusa, sex-symbol e estrela internacional de
exuberantes fotonovelas pornográficas. A bem da verdade, estou
farto, enjoado de tantas planilhas, artigos, e de pessoas que vivem
para o lattes e se esquecem de trepar e gozar prazeirosamente a
vida.
Como escreveu Hilda Hilst, em seu livro Cartas de um sedutor,
“Gosto de cu de homem, cus viris, uns pêlos negros ou aloirados à
volta, um contrair-se, um fechar-se cheio de opinião”. E também

509
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

concordando com Agrado, personagem do filme Todo Sobre Mi


Madre, de Pedro Almodóvar, afirmo que: “soy un modelo de
discreción hasta cuándo estoy comiendo un polla sé que soy
discreta. La cantidad de polla que me comieron en lugares públicos,
sin que nadie, excepto el interesado, se diera cuenta [...]”. Sendo
assim, neste texto, me interessa (re)pensar, à luz das reflexões de
Bakhtin (1987), o ato sexual intrinsecamente ligado ao conceito do
corpo grotesco como prazer. Para tanto, recorro à experienciação
do conceito e de sua ambivalência entre o sagrado e o profano
(enunciados e imagens) a partir do meu “eu” e do plano estético.
Agora, para dar início ao meu interesse preciso dizer, griiiiitar que
não há nada mais grotesco e prazeroso do que um cunilingus. Você
sabe o que é esse signo? Resposta: um beijo grego (que vivam os
deuses e as deusas), um fleur de rose (para ser chique à la française)
ou cunete (bem brasileiro mesmo). Não sabe, nunca ouviu?! Se um
claro que não for a resposta, “você deve ter medo até de beijar na
boca”. Há uma imagem mais grotesca do que chupar um cu?
Talvez. Para mim, não! Um cunete representa, sobretudo, a união
do alto/baixo, sagrado/profano:
A lógica artística da imagem grotesca ignora a superfície do corpo
e ocupa-se apenas das saídas, excrescências, rebentos e orifícios,
isto é, unicamente daquilo que faz atravessar os limites do corpo e
introduz ao fundo desse corpo. Montanhas e abismos, tal é o relevo
do corpo grotesco ou, para empregar a linguagem arquitetural,
torres e subterrâneos. (BAKHTIN, 1987, p. 277-8)
O corpo grotesco, reacentuou Camargos (2007), rompe com o corpo
cânone, estruturado envolta de uma unidade fixa, isto é, um sujeito
uno doutrinado pelos dogmas de nossa herança judaico-cristã. Esse
rompimento reelabora as possibilidades das práticas sexuais dos
corpos. Relembro que a primeira vez que fiz/recebi um cunete tive
um choque/embate entre a cultura oficial (dominante) e a cultura
não-oficial (dominada), uma vez que a primeira, fixada numa
ordem, repugna/va os corpos -de uma sociedade que segue os

510
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

padrões judaico-cristãos- que fugissem ao seu controle, isto é, um


corpo como o meu e tantos outros que se permitem a uma
comunhão harmoniosa/prazerosa do alto (cabeça, boca e língua)
pelo baixo (cu, pinto, buceta), como no poema Encantamento de
Valdo Motta:
Ó Deus serpentecostal
que habitais os montes gêmeos,
e fizestes do meu cu
o trono do vosso reino
santo, santo, santo espírito
que, em amor, nos forjais,
felai-me com vossas línguas,
atiçai-me o vosso fogo,
dai-me as graças do gozo
as delícias que guardais
no paraíso do corpo.
Falar/escrever do baixo corporal já é um ato grotesco, pois cu, ao se
transformar em enunciado, saindo de nossas bocas, assusta e
reforça um enorme tabu a respeito da sexualidade. É comum
recriminar, sobretudo as crianças/pessoas com o termo boca suja,
ou seja, ao pronunciar signos como cu, buceta, pinto, estamos
profanando o alto (cabeça) lugar de nossas ideias, nossos bons
pensamentos, orações. Então, a boca, orifício enunciador de tais
signos, deveria ser o lugar de boas práticas de linguagem. Além
disso, pela boca comemos e nos alimentamos/bebemos para nos
mantermos vivos/sadios. Mas, pela boca pode entrar o prazer por
meio do contato com o baixo corporal: cu, pinto, buceta. Estes
órgãos e seus líquidos, como o esperma, podem se tornar fonte de
alimento para o prazer. Vejamos o exemplo de um excerto do

511
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

livro O terceiro travesseiro de Nelson Luiz de Carvalho: “Não


demorou muito e gozei na boca dele. Como de costume, ele não
deixou derramar nenhuma gota de porra no chão, engolindo parte
dela, e passando a outra para a minha boca, num beijo.”
(CARVALHO, 2007, p. 26).
Enfim, à guisa de conclusão, inspirado em Rabelais, digo e afirmo
que não há melhor cunete vindo de um charmoso boy com uma
farta barba e uma língua afiada, desde que se ponha a cabeça dele
entre as pernas e te deixa, literalmente, de quatro no ato, bem a
la Rita Lee. Fique certo de que, fazendo assim, você sentirá no olho
do cu uma volúpia mirífica, quer pela maciez da barba, quer pelo
calor da língua quente que facilmente se comunica com os
intestinos e atinge, depois, a região do coração e do cérebro, o que
te proporcionará um prazer imenso, além de clarear suas ideias,
tornando-as magníficas, leves, soltas.
E não pense que o prazer vem da beatitude dos acadêmicos - que
vivem para o Lattes- e homens de bem -blasfemando em nome de
Deus- que se acham deuses ou semideuses do plano terreno
postando todos os seus grandiosos feitos logrados pela Capes etc.
Eu vos digo, que o prazer reside no fato de receber/fazer um cunete!
Não importa a idade, os corpos, o que vale é experimentar, tentar,
fazer diferente, sempre!
Referências
ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. 2ª
edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
ALMODÓVAR, Pedro. (Produtor/Diretor). Todo sobre mi
madre [Todo sobre mi madre]. [DVD]. Twentieth Century Fox
Film Corporation. 101 min. color, 1999.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 3 ed. (Trad. Maria E.
Galvão). São
Paulo: Martins Fontes, 2000.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, M. M. A cultura popular na idade média e no renascimento:


o contexto de Rabelais. 3 ed. (Trad. Yara Frateschi). São Paulo:
HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
CAMARGOS, Moacir Lopes de. Sobressaltos: caminhando, cantando e
dançando na f(r)esta da Parada do Orgulho Gay de São Paulo. 2007. 259p.
Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Estudos da Linguagem, Campinas, SP.
CARVALHO, Nelson Luiz. O terceiro travesseiro. 10. ed. São Paulo:
GLS, 2007.
HILST, Hilda. Cartas de um Sedutor. São Paulo: Globo, 2002.
MOTTA, Valdo. Bundo e outros poemas. Campinas, SP: Ed. Unicamp,
1996.
RABELAIS, F. Gargantua. (Trad. Aristides Lobo). Rio de Janeiro :
Ediouro, 1966.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

COMO OUVIR AS VOZES DAS CRIANÇAS?

Vinícius de Luna Chagas Costa


Universidade Federal Fluminense
viniciusgeografo@gmail.com

INTRODUÇÃO
Como professores do ensino fundamental, vivemos situações no
cotidiano onde interpretamos o conceito de infância, buscando
compreender suas vozes e potencialidades nas práticas educativas.
A questão que escolhemos discutir neste artigo está em identificar
a linguagem infantil e seus processos de desenvolvimento
(VIGOTSKI, 2006, p.3).
Desta maneira, ao pesquisar a infância reconhecemos que existem
dois desafios iniciais: o primeiro deles é que historicamente
carregamos concepções adultocêntricas sobre as crianças, desde
sua formação até suas formas de ser e de estar no mundo. Nosso
imaginário (QUIJANO, 1992, p.13) é marcado pela forma como
fomos forjados, e aquilo que conhecemos sobre a infância, inclusive
em sua relação com a educação, são reflexos dessas trajetórias
vividas. É comum, nesta perspectiva, definirmos identidades,
lugares e narrativas para pronunciar as crianças. O que nos inspira
a pensar desta forma sobre a infância? E enquanto adultos, como
nos libertar destas ideias enviesadas?
O segundo desafio reside em conceituar a própria categoria
infância. Acreditamos que a infância é construída no plano social e
marcado pela colonialidade, ou seja, a operação epistêmica que, a

514
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

partir da violenta dominação colonial das Américas no século XVI,


forjou novos paradigmas de conhecimento, onde a uma
humanidade racional se situava na Europa, hierarquizada em
relação ao mundo. Logo, descolonizar o conceito mobiliza
considerarmos a existência de múltiplas infâncias. Cremos que a
colonialidade pela qual o ocidente organizou sua concepção de
infância – teve início na península ibérica e posteriormente muda
seu eixo geográfico para a França e Inglaterra - impediu o
reconhecimento de outras formas de ser na sociedade capitalista,
como nos aponta Aníbal Quijano (1992, p.16). Para o autor, ao
mesmo tempo em que se afirmava uma dominação colonial, criava-
se uma complexa concepção cultural chamada de racionalidade.
Sendo assim, nos valemos da virada epistêmica ocorrida ao final
década de 1990 para superar a visão tradicional das crianças como
seres passivos no mundo social, como produtoras de um
conhecimento “menor”. É bom lembrar que o modelo epistêmico
marcado pelo determinismo biológico é contestado por Michael
Tomasello (2019, p.19) ao considerar a criança como um agente
intencional, um ser de cultura que possui estratégias
comportamentais próprias a partir de práticas e processos de
aprendizagem baseados na cooperação.
Neste eixo encontra-se a teoria histórico-cultural, onde
consideramos o esforço promovido por Lev Semionovitch Vigotski
(2006, p.2) em compreender o desenvolvimento humano através de
suas linguagens para além das idades ou de simples periodizações.
Na tentativa de romper com o determinismo biológico, onde o
homem nasce pré disposto a se desenvolver, esta corrente indica
que nos tornamos humanos a partir da forma como nos
relacionamos com o outro.
Superar as crises (VIGOTSKI, 2006, p.6) desde o nascimento é uma
forma de se posicionar no mundo e, a partir de situações sociais de
desenvolvimento ao longo da vida, produzir transformações de
forma não espontânea, ainda que existam momentos ou idades de

515
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

relativa estabilidade. Aqui faz-se necessário pontuar que o período


em que as crises acontecem no desenvolvimento infantil ainda são
de difícil identificação dada sua singularidade, partilhada por
várias vozes. Segundo o autor, ao considerar o que é singular no
desenvolvimento humano, não há distinção entre afeto e intelecto.
Ao não compreender o homem por partes, Vigotski se distancia de
perspectivas biologicistas e inatas através da ontogênese, que
significa o desenvolvimento do indivíduo dentro de sua própria
espécie, em sua dimensão social. Segundo o autor, a ontogênese
dialoga plenamente com a filogênse, que é a história evolutiva de
uma espécie e a sociogênese (a cultura de um grupo). Aqui
propomos a utilização da ideia de ontogênese como a unidade
entre a criança e a situação social do desenvolvimento, ao produzir
algo novo, uma revolução que a transforma enquanto sujeito
imerso na sociedade. Deste modo, o novo que emerge pode ser
considerado como uma troca que influencia na personalidade da
criança e em sua relação com o mundo.

APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS: INFÂNCIA E


LINGUAGEM
Olhava as crianças ao redor da mãe, às vezes ficavam à minha volta,
tentando fazer com que eu participasse de suas brincadeiras.
Brincavam de casa e escola, de roça e de caça, e eu olhava saudosa,
recordando minha infância na beira do rio Utinga, entre bonecas de
sabugo de milho e enxotando chupins dos campos de arroz.
(JUNIOR, 2019, p.114)
A epígrafe extraída do romance “Torto Arado” foi escrita pelo
baiano Itamar Vieira Junior. Uma das personagens chamada
Belonísia, descreve lembranças de sua infância no sertão.
Compreendemos esse trecho como uma expressão da linguagem
em sua dimensão axiológica, ao evidenciar as narrativas infantis,
memórias e vivências, fundamentais no desenvolvimento das
crianças ao estabelecer sua marca no espaço e no tempo.

516
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Mas afinal o que entendemos sobre a dimensão da linguagem?


Quais são suas marcas na infância? Que linguagens temos antes da
linguagem oral? Para responder a estas questões complexas, mais
uma vez lançamos mão do patrimônio de Vigotski, que buscou
evidenciar a gênese das linguagens, um problema na perspectiva
da psicologia social que nos atravessa. Na teoria histórico-cultural
a linguagem não se encontra restrita a fala – linguagem tipicamente
humana – mas antecede este ato como um processo mental,
complexo e consciente; a linguagem pode ser compreendida como
o que socialmente aprendemos, um enunciado no mundo, de
sujeitos inseridos na cultura e na sociedade.
Nesta perspectiva teórica devemos considerar a natureza do
desenvolvimento como uma transformação da dimensão biológica
através da dimensão social. Rompendo com as visões inatistas,
Vigotski considera o fator biológico, mas indica que o pensamento
verbal não é uma forma natural de comportamento, porém é
determinado pelo processo histórico-cultural.
Ou seja, embora estejamos falando da linguagem, constitutiva da
consciência da criança, é preciso considerar esse desenvolvimento
no plano social e individual. Por isso, deve se olhar o processo a
partir da criança, como uma vida em processo. Compreendendo o
ser humano como um ser social, onde a história da sociedade na
qual a criança se desenvolve e a história pessoal desta criança são
fatores cruciais que vão determinar sua forma de pensar
(VIGOTSKI, 2001, p.4) defendemos que a condição da criança não
pode ser classificada exclusivamente por critérios de maturação
biológica.
Considerando ainda que o autor compreende a linguagem como
um nível de desenvolvimento do pensamento relativamente
elevado, nos aproximamos novamente do que Vigotski (2001, p.41)
chamou de “a grande descoberta das crianças”. Num primeiro
momento a criança que vive em um “mundo de linguagem” como
menciona Tomasello (2019, p.303), estabelece comunicação com

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

seus cuidadores por gestos – entendido aqui no sentido racional,


não como um ato mecânico - mas não ainda como a linguagem
típica da fala humana. Logo, existem diversas formas de conceber
o ser humano como um ser de linguagem e mesmo sem as palavras
crianças com idade inferior a um ano já possuem percepção do
mundo de valores denominado período pré-linguistico do
pensamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos a partir dos estudos sobre a teoria histórico-cultural,
identificar as bases do desenvolvimento humano, um campo de
conhecimento onde repercutem os constructos de Lev
SemionovitchVigotski, quando passa a considerar as crianças como
seres de linguagem constituídas no espaço, em sua dimensão
social. A análise dos textos refletiu a necessidade de olhar
eticamente os seres no mundo, desde seu primeiro ano de vida, ao
entendermos que as crianças em sua potência e como produtoras
de cultura, ao longo de seu processo de desenvolvimento.
Resta-nos como educadores mergulhar na compreensão da gênese
da linguagem – onde a fala e a palavra são atos de comunicação do
ser humano, que é social. Neste sentido contraria-se a visão colonial
de mundo onde tudo é pré-dito. Em qualquer momento para
compreender a criança em seu desenvolvimento precisamos situa-
la a partir do contato com o outro.
Para responder o que seria a infância, consideramos a historicidade
proposta por Ariès, refletindo sobre a existência de um modelo
hegemônico que perpassa a família e a escola, bases inventadas
pela modernidade europeia e que serviram de régua para o restante
do mundo colonizado.
Esse determinismo clássico positivista, sobretudo nos projetos de
educação prescreve uma identidade infantil para nós, os adultos –
que consideramos a criança por seus acúmulos individuais,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

biológicos e de forma linear – indo de encontro aos pensamentos


vigotskianos, que inverte essa ordem por perceber que a criança é
sociocêntrica, e desde seu nascimento se comunica mesmo quando
não vocaliza.
A potência desse texto nos faz perceber o quanto, desde a infância,
somos marcados pela questão da colonialidade. Ainda
caminhamos para romper com os determinismos, certos de que a
consciência permite a construção de caminhos outros, pois a
formação humana está no próprio sujeito.

REFERÊNCIAS:
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro:
LTC. 1981.
JUNIOR, I. V. Torto Arado. São Paulo: Todavia. 2019.
MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidade del ser:
contribuiciones al desarollo de um concepto. In: CASTRO-GÓMES,
S. Grosfoguel, R. (Orgs.). El giro decolonial. Reflexiones para uma
diversidad epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá:
Universidad Javeriana-Instituto Pensar/Universidad Central-
IESCO/Siglo del Hombre Editores, 2007, p.127-167.
QUIJANO. A. Colonialidad y modernidade-racionalidad. In:
BONILLA, H. (Org.). Los conquistadores. Bogotá: Tecer Mundo,
1992, p.437-447.
TOMASELLO, M. Origens culturais da aquisição do
conhecimento humano. São Paulo: WMF. 2019.
VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo IV. Madrid: Visor y A.
Machado Libros, 2006;
VIGOTSKI. L. S. Pensamento e linguagem. Edição eletrônica: Ed
Ridendo Castigat Mores, 2001.

519
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Comunidades interpretativas: diálogos entre o Círculo de


Bakhtin e Stanley Fish

Mateus Yuri Ribeiro da Silva Passos


Universidade Metodista de São Paulo
mateus.passos@gmail.com

Dialogantes?
Neste breve texto, exponho a proposição do conceito de
“comunidades interpretativas” na perspectiva do teórico de
literatura norte-americano Stanley Fish e alguns de seus pontos em
comum com a perspectiva dialógica da linguagem do Círculo de
Bakhtin. Inicio com um spoiler que, espero, pode ajudar a elucidar
uma das implicações centrais da noção fishiana de comunidades
interpretativas.
No filme Dirigindo no escuro [Hollywood Ending], de 2002, dirigido e
estrelado por Woody Allen, temos como protagonista Van
Waxman, um diretor neurótico que ao rodar uma nova película
passa a sofrer de uma cegueira psicossomática e acaba por dirigir
todas as sessões de gravação e edição sem enxergar nada do que se
passa. Após seu lançamento, o filme é um fracasso de crítica e
bilheteria no circuito americano, mas também se torna um sucesso
celebrado no circuito francês, o que resulta em um contrato para a
realização de um filme na França. O desfecho do longa-metragem
pode ser interpretado como um ácido comentário ao mercado

520
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cinematográfica e ao campo da crítica de cinema, mas traz a nós um


curioso questionamento – afinal, o filme é bom ou ruim? A resposta
dependerá, obviamente, de uma nova indagação: para
quem? Ambas as comunidades interpretativas – o mercado e a
crítica de cinema norte-americano e francês – serão capazes de
argumentar, de maneiras que compreendem e validam como
objetivas, e apontar elementos que permitam justificar seus
posicionamentos. Nossa aderência ou aproximação, enquanto
sujeitos e intérpretes, a uma ou outra comunidade interpretativa,
ou de seus pressupostos – e, por que não, de suas influências
ideológicas coloniais – será determinante da leitura e dos
argumentos que assumiremos, e o mesmo raciocínio é aplicável
caso optemos por manter uma postura crítica a ambas.
Como mencionado anteriormente, a ideia de comunidade
interpretativa surge no campo da teoria da literatura, a partir de
questionamentos de Stanley Fish sobre as dinâmicas de autonomia
interpretativa dos sujeitos na leitura e crítica de textos literários,
bem como dos limites da autoridade autoral no estabelecimento de
significados das obras – questionamentos que, conforme o próprio
Fish (1980) aponta, encontram precursores em autores como
William Wimsatt e Monroe Beardsley.
Podemos encontrar alguns pontos em comum entre essas
indagações teóricas que o precedem e “A ciência da literatura” hoje,
de Mikhail Bakhtin (2017). Publicado originalmente em 1970 na
revista russa Новый мир [Novy Mir – literalmente, Nova Paz], o
ensaio põe em xeque uma tendência dos estudos literários na União
Soviética a restringir a análise e interpretação de literatura às
intenções de seus autores e aos sentidos e chaves de leitura que
circulavam na cultura de sua época original de publicação.
Mobilizando o conceito de grande tempo, Bakhtin define o autor
como um “prisioneiro de sua época” (2017, p.16) e propõe a
interpretação da literatura como algo aberto a ressignificações, e
especialmente ao estebelecimento de diálogos entre o texto e os

521
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sentidos e chaves de leitura circulantes na cultura a partir da qual


– dinâmica que se estenderia inclusive à reinterpretação de culturas
por outras culturas, exemplificada no fato de que a noção de
Antiguidade Clássica inexistia durante o período em que viveu a
civilização a que hoje denominamos Grécia Clássica, noção que
hoje é indispensável para a interpretação dessa cultura – e, por sua
vez, constantemente redefinida. O conceito-chave aqui é o do
inacabamento e inesgotamento dos sentidos e significados,
cultivado desde as primeiras obras gestadas no âmbito do grupo
de pensadores e artistas hoje denominado Círculo de Bakhtin,
como Marxismo e Filosofia da Linguagem, de 1929 (VOLÓCHINOV,
2017).

A construção social da interpretação


Em Is There a Text in This Class? – The Authority of Interpretive
Communities, coletânea de ensaios em sua maior parte publicados
em periódicos ao longo da década de 1970, Stanley Fish avança a
discussão em torno da “morte do autor” rumo à da “morte do
texto”, em contraposição a um dos maneirismos da crítica literária
americana identificado, o da recusa à interpretação e a alegação de
se deter fundamentalmente em procedimentos descritivos: ”one of
the standard ways of practicing literary criticism is to announce
that you are avoiding it. This is so because at the heart of the
institution is the wish to deny that its activities have any
consequences. [...] The critic’s greatest fear is that he be found
guilty of having interpreted.” (FISH, 1980, p.355). A própria noção
de comunidade interpretativa surge tardiamente – nos quatro
últimos ensaios (de dezesseis), justamente aqueles não publicados
previamente –, como uma saída de Fish para responder a reações
cada vez mais hostis aos posicionamentos que assume.
No ponto central de seus argumentos, Fish se debruça sobre a
possibilidade, ou mesmo a viabilidade de se interpretar um texto
literário de forma objetiva – de modo a afirmar que num certo

522
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sentido o texto em si não existe, ou existe apenas como um ideal


inalcançável. Em seu lugar, o texto que alguém efetivamente lê
seria produzido no próprio ato da leitura:
What I am suggesting is that there is no direct relationship between
the meaning of a sentence (paragraph, novel, poem) and what its
words mean. Or, to put the matter less provocatively, the
information an utterance gives, its message, is a constituent of, but
certainly not to be identified with, its meaning. It is the experience
of an utterance – all of it and not anything that could be said about
it, including anything I could say–that is is meaning. (FISH, 1980,
p.32)
Fish não estabelece limites entre a materialidade do texto e suas
interpretações pois, em seus termos, não existiria qualquer forma
de texto desvinculada de interpretação. Por mais “desarmada” que
fosse uma leitura, ela carregaria um conjunto de expectativas
anteriores ao ato de leitura: conhecimento ou desconhecimento
sobre o autor, o conteúdo e a linguagem do texto, repertório
anterior de leituras e gostos pessoais, estratégias e comportamento
próprios de leitura, suas reações às palavras e frases, à
materialidade do texto – como pontua, “one does not doubt in a
vacuum but from a perspective, and that perspective is itself
immune to doubt until it has been replaced by another which then
will be similarly immune” (p.360).
Nos doze ensaios da primeira parte de Is There a Text in This Class?,
Fish apresenta sua defesa da autonomia dos leitores em relação ao
texto – focada da invidualidade dos sujeitos, em suas
subjetividades. Porém, frente a duras e apaixonadas detrações o
autor apresenta um novo argumento em favor de sua crítica à
viabilidade de uma leitura objetiva, e então propõe o uso do
conceito de comunidades interpretativas – já presente no capítulo
“Interpreting the Variorum”, publicado originalmente em 1976 na
revista Critical Inquiry, mas presente de forma mais densa e central
nos quatro textos compostos diretamente para a publicação no
livro.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em seus novos termos, não é o indivíduo, autônomo, quem cria


isoladamente as condições de leitura e interpretação de um texto,
mas sua pertença a determinado grupo social que partilha
comportamentos interpretativos – linguagem, ideias, valores,
pressupostos, convenções, estratégias de leitura. A cada um desses
grupos sociais Fish denomina comunidade interpretativa – e
devemos considerar a possibilidade de que sujeitos interajam e
partilhem de ideias de mais de uma comunidade interpretativa
simultaneamente. Nesse sentido, a interpretação de textos deixa de
ser um ato meramente individual e se torna coletivo – ou mesmo
institucional, uma vez que inevitavelmente se relaciona
dialogicamente, ainda que na forma de reação ou refutação, aos
sentidos que circulam e são reforçados pelas mais diversas
instituições sociais.
Lembremo-nos de Volóchinov (2017), quando afirma que nunca
nos deparamos com palavras em si, mas com nossas percepções
positivas ou negativas em torno delas, ou mesmo sua defesa
kantiana da impossibilidade de se ter contato imediato –
literalmente, não mediado – com o mundo dos objetos, uma vez que
esses objetos só seriam perceptíveis e compreensíveis para os
sujeitos no mundo da cultura, mediado pela linguagem, em leituras
a partir das diversas perspectivas ideológicas possíveis.

Uma noção dialógica de interpretação


A validação de interpretações é outro aspecto bastante relevante da
teoria fishiana e, novamente, seria decidida a partir do consenso no
interior de uma comunidade interpretativa, de seus métodos e
chaves de leitura, “a shared basis of agreement” (FISH, 1980, p.317).
Podemos visualizar essa afirmação ao imaginar como o destino de
um artigo acadêmico submetido a evento ou periódico ou de
projeto de pesquisa submetido à apreciação de agências de fomento
ou órgãos colegiados institucionais depende não apenas de suas
virtudes intrínsecas de rigor científico – se ainda pudermos afirmar

524
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sua existência, de forma essencialista – mas também do perfil de


pareceristas que examinarão o material, de sua adesão ou repúdio
às teorias e métodos ali apresentados, sua percepção da pertinência
dos argumentos e da relevância da temática, sua afiliação a uma ou
outra tradição investigativa etc. Desse modo, Fish se esquiva das
acusações de relativismo absoluto e passa a defender que as
interpretações são construídas e validadas a partir de convenções
coletivas – que são bastante distintas entre diferentes comunidades
interpretativas, o que faria com que uma certa leitura considerada
risível e frágil por certa comunidade pudesse ser tomada como
“séria e ortodoxa” (p.349) por outra.
Fish lança um olhar para o campo da crítica literária e, como
antecipado, identifica ali não uma, mas uma vasta pluralidade de
comunidades interpretativas – cada qual com seu próprio conjunto
de valores, pressupostos, regras metodológicas – e aponta para a
impossibilidade da existência de interpretações críticas mais
corretas, superiores ou mesmo mais objetivas em relação ao texto
do que as demais. Embora o expediente de acusar uma ou outra
escola interpretativa de se afastar do texto e obscurecê-lo a partir
da importação de ideias e pressupostos externos seja bastante
comum – crítica tecida, por exemplo, por Susan Sontag (2020)
em ”Contra a intepretação” [Against Interpretation] –, Fish aponta
para a impossibilidade de se aproximar de um texto sem essas
ferramentas externas: ”Strictly speaking, getting “back-to-the-text”
is not a move one can perform, because the text one gets back to
will be the text demanded by some other interpretation and that
interpretation will be presiding over its production (p.354)”. O que
marca a distinção entre as comunidades interpretativas é que seus
pressupostos não são percebidos como conceitos ou leituras
culturais/ideológicas, mas naturalizados como verdades, e assim as
leituras validadas são percebidas como objetivas:
To put it another way, the claims of objectivity and subjectivity can
no longer be debated because the authorizing agency, the center of

525
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

interpretive authority, is at once both and neither. An interpretive


community is not objective because as a bundle of interests, of
particular purposes and goals, its perspective is interested rather
than neutral; but by the very same reasoning, the meanings and texts
produced by an interpretive community are not subjective because
they do not proceed from an isolated individual but from a public
and conventional point of view. (p.14)
Dessa maneira, Fish põe em xeque a binaridade objetividade-
subjetividade e apresenta um elemento outro, que combina ambos
e simultaneamente se constitui como algo distinto, à parte, que teria
como uma de suas implicações a inadequação das tentativas de
estabelecer hierarquias entre leituras e representações de realidade
– assim como de textos, uma vez que o conjunto de regras e valores
de uma são díspares e não se aplicam diretamente sobre a outra.
Essa perspectiva não-binária encontra ecos na discussão que
Volóchinov (2017) apresenta acerca das teorias sobre a natureza da
linguagem que buscavam situá-la em extremos de objetivismo ou
de subjetivismo, enquanto o autor propõe uma outra via, dialógica,
na qual a constituição da linguagem se daria a partir de consensos
coletivos, sempre provisórios, sempre ideológicos, e portanto
resultaria também de disputas sociais – como a luta de classes. A
constituição das comunidades interpretativas opera de maneira
semelhante, a partir de disputas e consensos localizados, que por
vezes entram em choque com comunidades/leituras de texto – e
também de realidade – distintas.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre Literatura, Cultura e Ciências


Humanas. São Paulo: Editora 34, 2017.
FISH, Stanley. Is There a Text in This Class?. The Authority of
Interpretive Communities. Cambridge: Harvard University Press,
1980.

526
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SONTAG, Susan. Contra a interpretação e outros ensaios. São Paulo:


Companhia das Letras, 2020.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São
Paulo: Editora 34, 2017.

527
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Contradições e limiaridades na Base Nacional Comum


Curricular: a leitura em foco no Ensino Médio

Isadora Cássia Lúcio da Rocha


UFES
isadorarocha97@gmail.com

Luciano Novaes Vidon


UFES
pfvidon@gmail.com

Apresentação
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi homologada
contendo as seções destinadas à discussão desde a Educação
Infantil até a etapa do Ensino Médio com a intenção de tornar o
ensino nas escolas brasileiras mais “homogêneo” e “comum”. Na
verdade, a BNCC é uma construção de longa data, sendo prevista
pela LDB 9394, de 1996, bem como em documentos subsequentes.
No entanto, o documento aprovado em dezembro de 2018, no final
do governo Michel Temer, foi atravessado ideologicamente pelo
processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o que,
para muitos analistas, configurou-se em um golpe de estado
jurídico-midiático-parlamentar
Tendo em vista a repercussão da Base Nacional Comum Curricular
e das distintas abordagens acerca da leitura na escola, percebemos
a necessidade de discutir a concepção de leitura da BNCC e do
documento como um todo em sua arquitetônica, a partir de uma

528
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

perspectiva bakhtiniana de linguagem. Para isso, tomamos como


base o texto presente na seção Língua Portuguesa no Ensino Médio
(BRASIL, 2018), para discutir a noção de leitura. Especificamente,
selecionamos o trecho do documento em que são discutidos os
supostos “campos de atuação” em que devem ser socializadas as
práticas de leitura.
A arquitetônica da BNCC
Compreender dialógica e arquitetonicamente a BNCC, com base no
pensamento do Círculo de Bakhtin BAKHTIN, 2001 [1927];
BAKHTIN, 2011 [1919]; BAKHTIN, 2013 [1967]; BAKHTIN, 2014
[1924]; MEDVIÉDEV, 2016 [1928]; BAKHTIN, 2017 [1920-24];
VOLÓCHINOV, 2019 [1921-30], é pensar no Todo que a constitui,
e que vai muito além do conteúdo em si do documento, ou seja, o
texto aprovado pelo CNE e pelo MEC em 2018, no apagar das luzes
do governo ilegítimo de Michel Temer. É preciso relacionar o texto
aprovado da BNCC com seu contexto dialógico, o que significa
adentrar na profunda crise ética, política, econômica, social que o
Brasil enfrenta há algum tempo.
Como o objetivo deste texto não é fazer tão somente uma análise
política desse contexto, mas uma compreensão das influências
desse contexto político na construção e aprovação de
determinada(s) política(s) linguístico-educacional(is) no Brasil
contemporâneo, retomaremos a discussão a respeito da Base
Nacional Comum Curricular.
Com a sua reeleição, em 2014, a presidenta Dilma Rousseff, através
do Ministério da Educação, retoma as discussões para elaboração
de uma Base Nacional Comum Curricular, a BNCC, prevista pela
LDB 9394, de 1996. Em 2015, uma comissão de especialistas havia
sido criada dentro do Ministério para a Elaboração de Proposta da
Base Nacional Comum Curricular. Em 2015, então, é publicada a
primeira versão da BNCC durante o mandato da então presidenta
da República Dilma Rousseff, com o Ministério da Educação sob o

529
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

comando de Renato Janine Ribeiro. Houve na época um grande


debate na mídia a respeito da publicação, e grupos contrários e
favoráveis ao documento se manifestaram.
Em comparação à versão inicial, grandes mudanças foram feitas. O
segundo documento foi publicado em 3 de maio de 2016, com o
dobro da quantidade de páginas e apresenta alterações estruturais
e de capítulos, como a retirada do capítulo intitulado Educação
especial na perspectiva inclusiva e a Base Nacional Comum
Curricular. Essas discussões foram inseridas de maneira diluída ao
longo de um capítulo de apresentação do documento, de maneira
reduzida. De acordo com o texto, a segunda versão é resultado da
discussão em seminários estaduais com professores e pessoas
envolvidas na área da Educação.
Após a publicação da versão de 2016, uma nova discussão sobre o
documento seria iniciada com a comunidade escolar e especialistas,
entretanto, a Medida Provisória nº 746, que dispunha sobre a
reforma do Ensino Médio (EM), modificou o currículo, e
consequentemente, os pressupostos da BNCC. Um ponto
importante é que a reforma do EM foi aprovada antes mesmo do
texto final da Base ter sido homologado.
Há duas questões que gostaríamos de nos debruçar em relação a
esse documento, que pode ser visto em muitas perspectivas:
histórica, política, educacional, discursiva. O nosso foco principal
será o discurso sobre a leitura veiculado pelo documento e a sua
historicidade. Essa versão apresenta diferenças em relação às
versões finais homologadas pelo governo Michel Temer, em 2017 e
2018. Este é o primeiro ponto a ser discutido.
O segundo ponto, tão importante quanto o primeiro, é a profunda
contradição em se ter um documento governamental da
importância de uma Base Nacional Comum Curricular, o principal
documento direcionador do ensino da educação básica no Brasil,
cujos princípios estão assentados em valores como cidadania,
democracia, pluralidade, todos com base na Lei de Diretrizes e

530
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Bases da Educação, a LDB 9394, de 1996, e, claro, com base também


na Constituição Federal de 1988, em um contexto dialógico em que
forças centrípetas conservadoras e ultra-conservadoras ganham
espaço e poder no país, seja com o golpe político-jurídico-
parlamentar que destituiu Dilma Rousseff da presidência, seja com
uma das consequências desse golpe, que foi a eleição de Jair
Bolsonaro para a presidência, em 2018. Como seria possível esse
documento, com um tom humanista poderia/pode conviver com o
tom majoritário do autoritarismo, do protofascismo, do
pseudodemocrático?
A leitura no Ensino Médio a partir dos campos de atuação
Os campos de atuação aparecem na BNCC logo após a descrição
dos eixos de aprendizagem com o intuito de funcionarem como
contextualizadores dos objetivos.

Campos de
atuação

Primeira versão Segunda versão Versão final

1) Práticas artístico- 1) Campo da vida


literárias; 1) Campo pessoal;
2) Práticas político- literário; 2) Campo de atuação da
cidadãs; 2) Campo político- vida pública;
3) Práticas cidadão; 3) Campo das práticas
investigativas; 3) Campo de estudo e pesquisa;
4) Práticas culturais investigativo 4) Campo jornalístico-
das tecnologias da (BRASIL, 2016, p. midiático;
informação e 506)
5) Campo artístico-
comunicação;
literário

531
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

5) Práticas do (BRASIL, 2018, p. 502-


mundo do trabalho 503)
(BRASIL, 2015, p. 39-
40)

De início, vemos que pensar práticas a partir de seus respectivos


campos se apresenta um pouco reducionista e faz parecer que uma
prática está desvinculada da outra, como por exemplo, uma prática
investigativa ou uma prática artística e literária não pode ser
política e cidadã. Se pensarmos que nossas práticas cotidianas são
múltiplas e heterogêneas, essa divisão proposta pela BNCC se
torna um tanto quanto dissociada da nossa vida concreta, que é a
todo momento ativa e responsiva. Em todos os campos há o
seguinte detalhamento: “campo de atuação que diz respeito à
participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita”
(BRASIL, 2015, p. 29).
Na versão final, mantiveram-se os “campos de atuação”, presentes
na segunda versão preliminar, a fim de contextualizar as práticas
de linguagem, mas também houve uma alteração em suas divisões,
antes colocadas como “práticas” na primeira versão preliminar: “1)
campo da vida pessoal; 2) campo das práticas de estudo e pesquisa;
3) campo jornalístico-midiático; 4) campo da atuação na vida
pública e 5) campo artístico-literário.” (BRASIL, 2018, p. 501).
A leitura aparece como uma prática a ser considerada em todos os
campos. São listadas dezoito habilidades relativas a todos os
campos de atuação a leitura aparece como prática central junto à
escuta e análise linguística. No restante das habilidades gerais,
aparecem comandos como “analisar”, “comparar” e “selecionar”
para tratar de elementos como a intertextualidade, variação
linguística, sintaxe e até mesmo de elementos de diferentes
semioses, como é o caso da habilidade seguinte:

532
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(EM13LP14) Analisar, a partir de referências contextuais, estéticas


e culturais, efeitos de sentido decorrentes de escolhas e composição
das imagens (enquadramento, ângulo/vetor, foco/profundidade de
campo, iluminação, cor, linhas, formas etc.) e de sua sequenciação
(disposição e transição, movimentos de câmera, remix, entre
outros), das performances (movimentos do corpo, gestos, ocupação
do espaço cênico), dos elementos sonoros (entonação, trilha sonora,
sampleamento etc.) e das relações desses elementos com o verbal,
levando em conta esses efeitos nas produções de imagens e vídeos,
para ampliar as possibilidades de construção de sentidos e de
apreciação (BRASIL, 2018, p. 508)
Assim como Rojo (2002), concordamos que esses comandos
constituem etapas para o processo de leitura. A autora cita que nas
capacidades de apreciação e réplica do leitor, há a percepção de
outras linguagens como imagens, sons, imagens em movimento,
gráficos, mapas etc.
Sobre os campos de atuação na versão final, quando comparado
aos conteúdos dos campos das versões anteriores, percebemos que
a leitura é tomada como uma questão particular da esfera literária,
mesmo sendo tratada em outros campos, como o artístico literário.
Uma outra questão importante, é que de maneira geral, no texto
homologado, a leitura é tratada como pretexto para outras
habilidades, diferentemente da primeira versão da BNCC, que
coloca como objetivo a leitura, mas sem nenhum objetivo por trás.
Acreditamos que essa característica do texto da BNCC publicado
em 2018 tenha relação com as finalidades do documento,
explicitadas pelo contexto de construção pelo qual foi submetido.
Há uma preocupação muito evidente em formar sujeitos para o
mercado e para o mundo, mas sem uma preocupação com a
cidadania desses indivíduos.
Considerações finais

533
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Enquanto as versões de 2015 e 2016 se estruturam em torno de


conceitos como “dimensões de formação”, relacionadas a trabalho,
ciência, tecnologia e cultura, e “eixos de formação”, entendidos
como letramentos e capacidade de aprender, solidariedade e
sociabilidade, pensamento crítico e projeto de vida, intervenção no
mundo natural e social (BRASIL, 2015; 2016), a versão homologada
em 2018 se fundamenta em Áreas de conhecimento, como Língua
Portuguesa e Matemática, Competências específicas das áreas e
Habilidades. Ainda que essa última versão mantenha, em alguma
medida, noções relacionadas às teorias de letramento, como
multiletramentos, letramento digital, multimodalidades, é no
mínimo contraditório não se ter o conceito de “prática social” como
basilar dessa perspectiva.
Entendendo o signo como ideológico, conforme Volóchinov (2018),
as mudanças conceituais realizadas pela versão final da BNCC
significam uma mudança ideológica. Essa “nova” ideologia, a
nosso ver, vai na direção de uma compreensão associal e ahistórica
dos processos de ensino-aprendizagem, incluídos aqui, claro, os
ensinos de língua portuguesa e de texto.
A ideologia de competências e habilidades, reforçada o tempo todo
na versão de 2018 da BNCC, principalmente referente à temática da
leitura, tende a caminhar em direção a uma perspectiva do
desenvolvimento individual, e não coletivo, plural, que, em última
instância, se encontra com outra ideologia dos tempos atuais no
Brasil, a meritocracia. Para atender a essas ideologias, do
individualismo e da meritocracia, o paradigma metodológico
também precisa ser alterado, passando de uma pedagogia
inclusiva, cidadã, democrática, dialógica, de base freireana, para
uma pedagogia exclusiva, competitiva, isto é, uma pedagogia que
desenvolva competências e habilidades
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo
Bezerra, São Paulo: Martins Fontes, 2011 [1919].

534
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

_____. O freudismo: um esboço crítico. Trad. Paulo Bezerra. São


Paulo: Perspectiva, 2001[1927].
_____. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados
de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2017 [1920-24].
_____. Questões de Literatura e Estética: a teoria do romance.
Tradução de Autora Fornoni Bernardini et al. 7ª ed. São Paulo:
Hucitec, 2014 [1924].
_____. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio
de Janeiro, Forense Universitária, 2013. [1963]
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.
Brasília: MEC, 2015.
_____. Ministério da Educação. Base Nacional Comum
Curricular. Brasília: MEC, 2016.
_____. Ministério da Educação. Base Nacional Comum
Curricular. Brasília: MEC, 2018.
MEDVIÉDEV, Pavel Nikoláievitch. O método formal nos estudos
literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de
Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto,
2016.
ROJO, Roxane. Letramento e capacidades de leitura para a
cidadania. São Paulo: Rede do Saber/CENP_SEE-SP, 2004.
VOLOSHÍNOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e Filosofia da
Linguagem. São Paulo: Editora 34, 2018.
_____. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos,
resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e
notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo:
Editora 34, 2019 [1921-30].

535
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Corpo, poesia e voz feminina

Gleiciane Lage Soares Poubel


Iff
gleicianelage@gmail.com

Jamais peço desculpas por me derramar com essa frase, título de um


dos livros da poetisa Ryane Leão começo essa conversa que não se
compromete já de início com a forma clássica acadêmica de texto.
Nas linhas que seguem tentarei de alguma forma desenhar esse
encontro de vozes de duas mulheres que não se conhecem, mas
dialogam com poesias do ser mulher e sobre a arte de descontruir.
Em diálogo trago alguns fragmentos das poesias de Ryane grafadas
em itálico e em colunas, dois escritos poéticos meus. Não há em
mim o desejo por interpretar a palavra outra. Poesia deve ser
sentida; me disseram uma vez, mas os sentidos também são
construídos historicamente, assim como podem ser
desconstruídos, alterados. Nesse campo de forças, em que lógicas
antagônicas muitas vezes se sobrepõem, evocando um uno
poderoso, segregando outras formas de sentir, convoco todos os
meus sentidos para fazer ressonâncias com essa autora, que me
conquistou com versos simples, intensos, fecundos. Nesse texto
demasiadamente curto, não há em mim habilidade suficiente para
tratar a fundo as questões que atravessam os textos. Opto pelo
encontro das vozes e quem sabe elas possam criar uma melodia que
nos ajude a olhar para as mulheres com outros olhares menos
coloniais.

536
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em outro livro da autora, tudo nela brilha e queima Ryane convida a


mim e a todas as mulheres a encontrar a sua voz. Esses dois livros
povoaram minha cabeça e minha escrita afetiva e com Ryane
também reafirmo a retomada dos nossos corpos, palavras e nossa
voz feminina.
meu recado às mulheres
contem
suas histórias
descubram o poder de milhões de vozes
que foram caladas
por séculos
Com esse chamamento, misturo minha voz a dela em poesias de
experimentações de um corpo feminino. Em prosa e versos, eis que
surge um texto poético sem pretensões de fixar conceitos. São
versos fluidos, frutos de encontros com a palavra do outro,
provocando em mim erupções vulcânicas.
Meu corpo é mutante,
Um rastro de mim.
Diluído entre o ontem e o amanhã.
Se transmuta em desejos,
Em sonhos desconexos.
E qual é o nexo do corpo?
Quem poderá ouvir sua voz?
Decifrar seus códigos,
Suas linguagens.
Poliglota,
Se disfarça.

537
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Personagens escolhidas,
Em cada momento um corpo.
Não como uma balalaica em camadas já dadas!
As mil faces no espelho,
Se ampliam,
Se expandem,
Deformam,
Não cabem.
Não esgotam o ser
irrepetível
Entre tantas palavras,
Nenhuma possível.
Corpo mistério,
Abrigo da imanência,
Recrianças,
Invenção,
Agora.
Um arranjo provisório,
Não aprisionado em uma identidade ou finalidade.
Sem fim ou começo,
Se faz no devir.
Flui em sentidos.
Afeta e se deixa afetar.
Sua primazia é sentir
Ouve seus instintos

538
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sua intuição conselheira


Mas,
Não se assombra com o desconhecido
O estranha para aguçar a curiosidade
Faz dele próximo
O namora
Se demora em conhecer
Aprecia os detalhes
Em busca de pensar o que se pensa
Desenvolve um estilo
Uma estética do pensar
Constitui sua vida de maneira elaborada
Se coloca permanentemente em suspensão
Não ignora as pausas da vida
Faz a elas homenagens,
Reverência,
Oferendas,
E segue.
A inquietação é sua amiga íntima
Se lança em viagens
Arrisca
Inventa trajetórias
Não teme o mal
Nem o bem

539
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nada é uma coisa só


A multiplicidade é preferida do que a escassez do único
Evoca a riqueza da natureza
Se perde em cores e
texturas
Já não quer ser igual
Permite se desconhecer
Experimentar a si mesmo
Outra vez
Outra vez
Outra vez
Ao vento dos acontecimentos
Desenvolve sua arte
Desenha, rascunha, risca
Brinca
Escolhe
Tornar-se no que se é.
E como tornar-se no que se é? Isso implica no viver as intensidades
da vida em seus movimentos, por mais que uma cultura grite em
nós a necessidade de posse e controle, não é assim que a vida se
processa. E como podemos ser potência em tempos de escuridão?
Como reagir diante das agruras da vida? Positividade? Ter em
mente que tudo vai dar certo? Existe um certo? Para isso um errado
correspondente? As coisas são mais que isso ou aquilo. Em uma
vida imprevisível e indomável, sempre em vias de se fazer, também
nós precisamos desconstruir para inventar novas formas de ver e
sentir. Olhemos então essa vida com amorosidade, acolhendo as
dores, os fracassos como também constitutivos da episteme.

540
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

As mudanças mais bonitas


Não vêm com calma e sossego
São uma ventania incontrolável
Jogando tudo pra cima
Nada cai no mesmo lugar
Nem as coisas
Nem o coração
Nem você
- o tempo fechado nos abre
Foi quando o castelo da monogamia que a sociedade me ajudou a
construir desmoronou que vi minha parte mais bonita brotar dos
escombros.
Conhecer o que mora em mim
não quer dizer que eu saiba
lidar com as coisas vastas
Nem preciso saber. Reconhecer minha incompletude faz parte do
meu movimento. Olhar para minha trajetória e perceber que as
coisas não têm um único jeito de existir e que as formas aceitas
socialmente não são as únicas possíveis, me ajudam a ver a beleza
também nos desencontros, pois eles fundaram em mim novas
partidas. Criaram rituais de morte, de finalização de ciclos, de
abandono da ideia de imortalidade e de uma permanência das
coisas que mortificam a vida. De um para sempre. No corpo
feminino, colonizado para ser mãe, puta, casta, desapropriado,
silenciado, também é possível por meio da linguagem construir
novos sentidos. Eles não se anulam, mas engendram novas
possibilidades de um corpo feminino, de uma voz que se expande
ampliando os sentidos de ser mulher. Das muitas palavras escritas,

541
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

das muitas palavras sentidas, encontrei na poesia minha


linguagem.
quando as palavras me encontraram
eu escrevi em paredes e peles e blocos
e cadernos e muros folhas e telas
a poesia
me fez livre
E no exercício da liberdade do corpo em movimento, da voz
feminina, finalizo esse texto ainda em rodopios, entre palavras,
sentidos sempre abertos, conectados, interdependentes.
Como compor com o corpo
Girar em movimentos
E se permitir sentir
Tocar com os olhos o invisível
Sentir na pele o que ainda não nasceu
Deitar no solo
Ser sua própria semente
Fecundar a terra
Fértil
Descansar
Germinar
Engendrar nas profundezas
Algo para embelezar, ser alimento, abrigo
Essa noite tive um sonho
Eu caminhava de pés descalços
E a chuva caia mansa

542
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Alimentava todo meu corpo


Eu crescia e me agigantava
Não era só força como de costume
Era magia, conexão
Meus ciclos aliados à Terra
Minha mãe
Me sentia em seu ventre
Ao mesmo tempo que eu mesma a gerava
No meu útero
E as palavras brotavam na minha pele
Eu era agora
Jequitibá-rosa, Sumaúma, Figueira-brava
Cada folha era uma palavra
Com elas ia compondo
Uma melodia de amor
Terra abrigo
Minha casa
Minha mãe
Trocava secreções e energias em todas as direções
Era terra, ar, água e fogo
Acordei ardendo em febre
Sufocando
Queria gritar,
Corri para ver o céu

543
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Precisava respirar
Ela estava lá majestosa
Uma sintonia silenciosa se fez
Dos meus ossos
Uma a uma
Renascendo minhas ancestrais
Fizemos a grande roda
Cultuamos a grande Deusa
Cantamos e dançamos
Melodias infinitas
As palavras se arranjavam em lindas poesias
Descobri minha linguagem
A poesia brotava em mim
Respirava
Estava viva
Tinha encontrado a minha voz.

Referências Bibliográficas.
LEÃO, Ryane. Jamais peço desculpas por me derramar. São Paulo.
Planeta do Brasil, 2019.
____________ Tudo nela brilha e queima. São Paulo. Planeta do
Brasil, 2017.

544
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Crianças-robôs esteticamente grotescas

Patrícia Yumi Fujisawa


Secretaria Municipal de Louveira
patyfujisawa@gmail.com

Um começo de conversa
Ser professora de escola pública do interior de SP em época de
ensino híbrido em pandemia de COVID-19 não tem sido muito fácil
para mim. As demandas da escola que desconsideram os/as
estudantes ainda insistem em chegar e fazer com que os/as
professores/as e estudantes ajam como robôs na mecanização das
formas de ensinar e das maneiras de aprender.
Na tentativa de não ser (sempre) uma robô, tenho aprendido com
Prado (2013) e com os grupos de estudos do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC) da Faculdade de
Educação da Unicamp, em especial com os/as participantes do
Grupo de Estudos Bakhtinianos (Grubakh) que ao narrar os
acontecimentos vividos por mim na escola posso, com a ajuda de
muitos outros, elaborar compreensões do que se passou.
Procuro, então, nesta conversa compartilhar uma narrativa e as
elaborações possíveis ao pensar nela com o grotesco, o riso e as
lutas contra as ideias dominantes.

Robôs...

545
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O produto era um poema de cada um/a. O processo era mediado


por muitas oficinas, muitas etapas em cada uma das oficinas. Os/as
autores/as eram as crianças-robôs. Crianças-robôs que, com o
passo, o compasso, as respostas previstas, poderiam morar do
Oiapoque ao Chuí, poderiam morar aqui do lado ou ali em
Louveira. As crianças-robôs tinham muitas etapas para cumprir.
Antes delas, porém, era preciso que recebessem um amoroso
convite:
- Vamos participar da olimpíada de língua portuguesa!?
Apreensão. Apreensão nas crianças-robôs? Robôs não sentem,
robôs apenas fazem. Ou será que não? Será que a avançada
tecnologia já deixou sentimentos brotarem nos corações dos robôs?
Talvez nas crianças-robôs. Talvez...
- Mas eu não quero competir. Sou ruim pra escrever texto.
Robô é ruim em algo?
- Calma, gente. Eu sei que o projeto chama “olimpíada de língua
portuguesa”, mas não quer dizer que nós vamos competir entre nós
ou com outro/as estudantes...
- Como não? Olimpíada é competição.
- É, eu também acho, mas nesse caso aqui a proposta é que a gente
estude sobre poesias, poetas e afins para depois escrevermos
poemas. Quem topa?
- Eu ainda tô achando que isso aí é uma competição... Não sei, não.
Onde reseta robô? Esses aí devem estar com defeito.
- Fiquem tranquilos/as, vamos construindo juntos/as.
- ...
As etapas seguiam nos dias da professora-robô: leia o poema,
indique metáforas, assista ao vídeo, converse sobre poesia,
produza um mural de poemas, observe as palavras iniciais de cada

546
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estrofe, oriente a copiar no caderno, mostre as rimas, conte as


sílabas... as crianças-robôs respondiam todas as etapas, uma a
uma.
Narrativa, acervo pessoal da professora, 10/08/2021.

Um meio de conversa
A experiência de ler essa narrativa no encontro do Grubakh
modificou a maneira como interpretei a minha escrita. Ao ler pude
ouvir risos e ver corpos em risos. Risos em uma narrativa que foi
escrita para que eu, professora de escola pública, expressasse
minha indignação diante de uma das tantas desgraças que tem
acompanhado o ensino público em meio a pandemia de COVID-
19, da escola rígida, fria e uniforme que insiste em trazer para
dentro da sala de aula demandas que não são dos/as estudantes
para que os/as próprios/as estudantes respondam como sendo
deles/as. Demandas essas que vieram, dessa vez, disfarçadas com
o convite “amoroso” que fiz.
Bezerra (2018), ao falar do riso enunciado por Bakhtin, me ajuda a
pensar no cômico como uma espécie de fermento para os textos. Os
risos dos/as colegas fermentaram em mim e me fizeram perguntar:
quem a professora queria enganar dizendo que aquele novo projeto
instituído não era uma competição? Quem era aquela professora
que queria, em uma relação hierárquica, em uma relação que
também desconsiderava os corpos e as consciências dos/as
estudantes, a tentar, de alguma maneira, sobrepor a demanda da
escola repassada para ela e, por fim, enfiada goela abaixo nos/as
estudantes? Qual convite amoroso camuflaria as relações que os/as
estudantes já tinham estabelecido com as palavras “olimpíada”,
“projeto”, “poema” e “competição”?
Minha posição de professora, de suposta autoridade no grupo e de
suposta autoridade do grupo que faz convites amorosos não foi o

547
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

suficiente para convencer os/as estudantes de que participar da


olimpíada de língua portuguesa lhes traria alguma vantagem, seria
um percurso interessante, lhes ensinaria algo relevante...
E que bom que não foi!!!
A indignação deles/as me oferece indícios de que, talvez, os outros
tantos enunciados que venho construindo com eles/as não são
violentos como aquele convite “amoroso”, que as palavras que
circulam em nossas aulas não desconsideram o que os/as
estudantes dizem. Assim, eles/as não emudeceram, não aceitaram
o meu convite amorosamente falso sem antes parar para
questionar, como se quisessem me dizer “Espera aí! Isso aí que você
está dizendo que não é uma competição, na verdade, é sim!” ou
ainda “Alto lá! Esse papinho de convite amoroso é uma furada
completa! Vamos ter que trabalhar em um projeto que não
queremos!”
Vejo o grotesco no estudante que contesta a professora do que é
uma competição e o que não é. Ao mesmo tempo, me parece
grotesco a criação estética em uma narrativa do termo “crianças-
robôs”, duas palavras que, a princípio, para mim, parecem que não
poderiam nunca estar em um mesmo enunciado, já que crianças
são vivas, dialógicas, inundadas por várias linguagens, enquanto
robôs são coisas, são produtos, são objetos produzidos por
humanos e que, em desejo futurista, muitos tentam aproximá-los
demasiadamente de formas e atos mecanicamente humanos.
Parece também existir o grotesco em um projeto de ensino que
estabelece etapas, metas, produtos que desconsideram as reais
necessidades dos/as estudantes, enquanto considera que as
crianças não tenham escolhas, que não possam seguir por caminhos
diferentes para a produção de um poema, e que, sobretudo,
precisam produzir um poema quando o que querem é trabalhar em
outros projetos. Talvez eu também veja, com o riso dos/as
participantes do Grubakh, que o grotesco está ainda na construção
estética criada na narrativa na contraposição das falas da

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

personagem do estudante que questiona a olimpíada e nas falas da


narradora professora que tece perguntas sobre o funcionamento
dos robôs.
Quando todas essas formas de corpo grotesco se contrapõem às
formas dominantes – de uma professora que não dá brechas para
que o estudante a contradiga, a elaboração de “crianças” em uma
narrativa sobre a escola e uma elaboração de “robôs” em uma
narrativa sobre a tecnologia, uma professora e um projeto que
ditam os caminhos que as crianças devem percorrer
desconsiderando suas demandas (SIMAS; SERODIO, FUJISAWA,
2020) – é aí que habita o posicionamento estético, ético e político
que se contrapõe ao corpo individualista (SILVESTRI, 2018, p. 175),
egoísta que a sociedade capitalista, pautada na identidade e não na
alteridade, insiste em endeusar. Ou melhor, que, sem ele, esse
modelo de sociedade não vingaria.
O corpo grotesco, reitero, subverte as formas tradicionais e egoístas
de relação engendrada pela ideologia oficial. Sua ação, sua atividade
é a abertura, a interseção, o unir-se, ligar-se criando um corpo maior,
isto é, criando um corpo dialógico. Todos esses corpos grotescos
formam uma multidão de sujeitos em busca de uma constituição que
não seja da massificação, liquidez angustiante, armadilha, opressão
e ocultamento, mas da flexibilidade, diferença, diálogo,
infuncionalidade e renovação. (SILVESTRI, 2018, p. 175)
E não seria mesmo, então, todos esses corpos grotescos formando
corpos que são contra? Contra as armadilhas, contra as
indiferenças, contra a massificação, contra a uniformização do
ensino, contra crianças-robôs? Contra o riso, os corpos em riso?
Mais precisamente, a importância política do corpo grotesco está no
fato de desestruturar a lógica do indivíduo solitário e instaurar a
experiência de um sujeito plenamente dialógico levando-o a lidar
com a realidade de uma identidade não unificada e estável –
totalizadora – mas plural e plástica. (SILVESTRI, 2018, p. 173)
Na narrativa a professora solitária no convite e o estudante solitário
que contesta não estão sós quando me dou conta do grotesco.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Porque é justamente contrapondo o instituído, as ideias


dominantes, ao outro em relações de alteridade que percebo a
subversão. O acontecimento narrado em “Robôs...” deu a ver
situações grotescas. Grotescas porque conheço o contexto
dominante da massificação dos corpos e das consciências que a
escola e a olimpíada de língua portuguesa insistem em perpetuar.
Em contrapartida, só entendo a construção narrativa de “Robôs...”
como grotesca no momento em que ouço e vejo os risos dos/as
participantes do Grubakh enquanto leio o escrito. São os outros
rindo que me ajudam a ver o que não consigo ver sozinha. São os
outros me oferecendo “fermento” (BEZERRA, 2018, p. VIII) à
narrativa que me ajudam a ver o grotesco que não consigo ver
sozinha.

Um final de conversa
Vendo a personagem da professora na relação com as personagens
dos/as estudantes e a relação entre narrativa e leitura percebo o
grotesco não como um ato, mas como uma forma de interpretar o
mundo partindo do outro em uma relação de alteridade. Ali, na
narrativa, vejo o próprio ato de narrar como grotesco, como forma
de expressar o vivido para o outro quando o vivido na escola não é
importante, interessante ou colabora para que a olimpíada de
língua portuguesa seja um projeto bem sucedido. Narrar e dar a ver
a vida vivida e materializada na narrativa é subverter, é resistir, é
lutar e transgredir. É ver-me aos olhos do outro em tom de riso, é,
na criação estética da narrativa, pensar também nas relações da
vida, é tentar não ser robô, mas, se assim for, ser robô com
fermento.

Referências bibliográficas

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BEZERRA, P. Prefácio – Uma obra à prova do tempo. In:


BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiéviski. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2018.
PRADO, G. V. T. Narrativas pedagógicas: indícios de
conhecimentos docentes e desenvolvimento pessoal e
profissional. Interfaces da Educação, Paranaíba, v.4, n.10, p.149-165,
2013.
SILVESTRI, K.V.T. Corpos grotescos: linhas gerais da filosofia
política bakhtiniana. In: SERODIO, L.A. (et al) (orgs.) Narrativas,
corpos e risos enunciando uma ciência outra. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2018.
SIMAS, V.F.; SERODIO, L.A.; FUJISAWA, P.Y. Por Práticas
Compartilhadas de Aprender e Ensinar com as Crianças. Diálogos
com Bakhtin e O Círculo. Línguas & Letras (online), v. 21, p. 220/50-
238, 2020

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

CRÔNICAS DO CORPO: A INTERDISCIPLINARIDADE EM


CENA

Magda Renata Marques Diniz


IFRN
magda.diniz@escolar.ifrn.edu.br

Diana de Oliveira Mendonça


IFRN
dianamendoncado@gmail.com

PARA INÍCIO DE CONVERSA


Esta comunicação tem como propósito discutir um projeto
interdisciplinar, envolvendo três áreas do conhecimento: Educação
Física, Filosofia e Língua Portuguesa. O referido projeto foi
realizado com três turmas do primeiro ano do ensino médio, dos
cursos técnicos integrados em Eletromecânica, Eventos e
Informática, do Instituto Federal do Rio Grande do Norte
(IFRN), Campus Canguaretama.
Para a realização do planejamento interdisciplinar, nosso ponto de
partida foi o livro literário Histórias que os jornais não contam, do
autor Moacyr Scliar, no objetivo de instigar a leitura, a escrita e a
oralidade, sobremaneira, de crônicas. A partir das discussões
teóricas acerca desse gênero discursivo, os discentes das turmas
citadas foram convidados para escrever suas próprias crônicas.
Essa atividade foi desenvolvida durante 2020, período em que os
alunos estavam no Ensino Remoto Emergencial (ERE).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ao final desse ano letivo, uma coletânea, com aproximadamente


sessenta crônicas, foi gerada e as produções textuais centraram-se
na temática do corpo humano em perspectivas sociais e estéticas.
Para organizar tais textos em um arquivo virtual, realizar as
revisões linguísticas e estruturais necessárias, uma equipe editorial
foi composta por docentes das disciplinas envolvidas e por três
discentes convidadas, sendo uma de cada curso. Entretanto, a
discente do curso de Informática não pôde seguir até a versão final
da coletânea.
Depois de uma leitura global, as crônicas produzidas foram
organizadas em categorias à medida que os
elementos/atributos/temática do corpo foram surgindo nos
enunciados, considerando que a teoria bakhtiniana embasou as
devidas interpretações. Vale ressaltar que, para Bakhtin (2011), o
corpo está para além da forma biológica e enformado por
categorias cognitivas, éticas e estéticas. “Nesse sentido, o corpo não
é algo que se baste a si mesmo, necessita do outro, do seu
reconhecimento e da sua atividade formadora” (BAKHTIN, 2011,
p. 47-48, grifo do autor). Assim, é na relação com o outro que o
corpo recebe um acabamento.
Nessa perspectiva, o material compilado foi dividido em o corpo e
a estética, o corpo em memórias e o corpo violentado. De forma a
construir os dados para esta comunicação, publicizar o trabalho
realizado e discutir sobre a experiência da abordagem
interdisciplinar, aplicamos com as alunas que participaram do
corpo editorial do livro de crônicas um questionário por meio
do Google Forms no mês de agosto de 2021. A seguir, discutiremos
as questões e as respostas recebidas à luz da análise dialógica do
discurso.
UMA EXPERIÊNCIA INTERDISCIPLINAR ENUNCIADA
A construção do corpus deu-se por meio de um questionário
estruturado contendo nove questões subjetivas dispostas em um

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

formulário virtual, conforme citado, no intuito de entendermos


como a interdisciplinaridade entre as áreas de Educação Física,
Filosofia e Língua Portuguesa fomentou a concepção sobre o corpo
para as alunas – doravante Participante 1 e Participante 2 – as quais
produziram as crônicas e compuseram a equipe editorial do livro.
Os enunciados dessas alunas foram transcritos nesta comunicação
exatamente como se apresentaram nos instrumentos de pesquisa.
Para a análise, selecionamos as respostas recebidas, notificando
tanto as escolhas linguísticas quanto os discursos dos enunciados.
E por enunciado, entende-se que é “sempre discurso citado,
embora nem sempre percebidos como tal, já que são tantas as vozes
incorporadas que muitas delas são ativas em nós sem que
percebamos sua alteridade” (FARACO, 2009, p. 85).
Vale destacar também que entendemos a interdisciplinaridade do
processo educativo “como meio de conseguir uma melhor
formação geral, pois somente um enfoque interdisciplinar pode
possibilitar certa identificação entre o vivido e o estudado, desde
que o vivido resulte da inter-relação de múltiplas e variadas
experiências” (FAZENDA, 2002, p. 32).
Desta forma, após três perguntas de cunho mais descritivo (nome,
curso e idade), as participantes apresentaram os seguintes
entendimentos acerca do que significa “corpo humano”:
Um vaso de sentimentos, pensamentos e onde tem morada nossa
alma, que é nossa maior riqueza… Muitas vezes esse corpo pode
ser violentado, agredido ou sofrer com as ações externas da
sociedade (PARTICIPANTE 1).
O corpo humano é onde se localiza o espírito e a alma. Com ele
falamos, movemos, sentimos, expressamos, pensamos. Nele se
encontra marcas que remetem a toda nossa história, nossa vivência
como seres humanos. Ele faz parte de nossas lutas e guerras. Cada
pessoa possui o seu (PARTICIPANTE 2).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Analisando os enunciados das duas participantes, percebemos


inicialmente uma concepção ético-religioso-estética do corpo
(BAKHTIN, 2011) generalista em que predomina um ponto de vista
objetivo de um corpo interior (“vaso de sentimentos, pensamentos
e onde tem morada nossa alma” (Participante 1)/“onde se localiza
o espírito e a alma” (Participante 2) e exterior (“sofrer com as ações
externas da sociedade” (Participante 1)/“faz parte de nossas lutas e
guerras” (Participante 2).
Na quinta questão, percebemos que houve mudança na concepção
sobre o corpo humano após as aulas interdisciplinares, o que acaba
por corroborar a afirmação de Dantas e Costa (2012, p. 73) em
relação à interdisciplinaridade, quando esta se refere “a um
princípio basilar que visa estabelecer elos de complementaridade,
de convergência, de interconexões, de aproximações e de
intersecção entre saberes de diferentes áreas”.
Como desdobramento da questão anterior, caso tivessem
respondido afirmativamente, as alunas passariam a um segundo
bloco de perguntas sobre seu entendimento de corpo a partir dos
conhecimentos de cada área contemplada. Após as aulas de
Educação Física, a Participante 1 respondeu que sua concepção
sobre o corpo humano foi modificada, visto que passou a “entender
que o corpo se movimenta” e nele há o desenvolvimento da
autoestima. Ainda para essa discente, “o corpo é um item essencial
da vida em sociedade e a manutenção dele é de extrema
importância”. Para a Participante 2, a disciplina a fez compreender
que o corpo é fruto da interação entre a natureza e a cultura. Em
suas palavras: “cada corpo se diferencia do outro, cada pessoa
pensa diferente, se exercita diferente... Enfim, não precisamos de
um padrão, mas precisamos nos encontrar saudáveis, tanto
fisicamente como emocionalmente”.
Após as aulas de Filosofia, a Participante 1 enunciou que “o corpo
pode pensar, sentir, agir e fazer coisas inigualáveis; o corpo e a vida
em sociedade andam juntas, pensam juntas e cada realidade pode

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

criar uma filosofia diferente”. Para a Participante 2, a disciplina fez


com que ela abordasse “um conceito melhor sobre o corpo,
trazendo o pensamento de uma forma ampla. Que ao pensar
existimos. Somos seres pensantes”.
Depois das aulas de Língua Portuguesa, a Participante 1 destacou
a importância da expressividade do corpo através da linguagem. E,
nesse quesito, “o corpo se expressou através de crônicas, expondo
suas dores e seus sentimentos no papel…”. Em concordância com
esse ponto de vista, a Participante 2 reforça que essa disciplina a
ajudou a expressar melhor o que sentia, como se sentia e a refletir
sobre tais afirmações. Segundo esse sujeito ativo, “o corpo tem
significado, memórias. Cada pessoa tem seus gostos e escolhas. O
corpo que pode ser belo para mim, pode não ser para você”.
Na sexta e última questão, quando se perguntou como fizeram para
planejar a escrita da crônica sobre a temática do corpo na
perspectiva interdisciplinar, desde o começo ao final do texto, a
Participante 1 pensou em uma problemática atual, que a deixava
muito ressentida e ciente do sofrimento dessa pauta. Em suas
palavras:
O corpo numa perspectiva da violência. Achei uma notícia muito
triste na internet e comecei a imaginar a vida das mães das vítimas
da violência do corpo. Então, escrevi na visão de uma mãe de uma
dessas, e no final me agradei muito do resultado. O sentimento de
dor foi transmitido no texto como esperado por mim
(PARTICIPANTE 1).
Para Bakhtin (2011, p. 24), “quando me compenetro dos
sofrimentos do outro, eu os vivencio precisamente como
sofrimentos dele, na categoria do outro, e minha reação a ele não é
um grito de dor e sim uma palavra de consolo e um ato de ajuda”.
Nesse caso, interpretamos que a Participante 1 pretendeu entrar na
cena enunciativa e vivenciar a dor de um outro, por meio do
processo de escrita da crônica, ou seja, como se fosse mãe de uma
vítima da situação e, sendo assim, também vítima. Bakhtin (2011)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

argumenta que a condição obrigatória de uma eficaz


compenetração e do conhecimento ético-estético é relacionar ao
outro o que foi vivenciado.
A Participante 2 relatou que no início quis abordar sobre o corpo,
os sentimentos e o preconceito para com o que o outro acreditava e
seria. Mas resolveu relatar um pouco sobre a história de uma
jovem, escrevendo um pouco sobre sua vivência, conforme
enunciado a seguir:
Pensei e coloquei minha personagem como sendo cristã, para
ressaltar que devemos acreditar no que acreditamos. Trouxe
homens que, ao contrário da jovem, possuíam cristofobia,
mostrando que cada pessoa sente, acredita e escolhe coisas
distintas. No final, abordei duas mortes, duas vidas, dois corpos
que morreram por acreditar no que acreditavam, por aceitar a
Cristo enquanto outros não aceitaram (PARTICIPANTE 2).
Percebemos que o enunciado da Participante 2 é uma resposta, de
algum modo, aos não cristãos; de um posicionamento religioso
como forma de resistência quando escreve uma personagem que
resiste ao que considera uma “violência” do outro. Esse enunciado
revela-se como um produto de interação das forças sociais na qual
este indivíduo está inserido.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ACABAMENTO DO
TRABALHO REALIZADO
Compreendemos que o trabalho interdisciplinar realizado entre as
áreas de Educação Física, Filosofia e Língua Portuguesa
oportunizou algumas reflexões sobre as concepções de corpo
humano ao longo do ano letivo de 2020. Se o corpo, em um
primeiro momento, foi entendido de forma mais “canônica”,
vinculada ao espiritual, após as discussões propostas pelas
disciplinas, percebemos, tanto nas crônicas como nos relatos, que
esse corpo passou a ser pensado na dimensão linguístico-
discursiva, fruto do acabamento estético dado pelas participantes.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Como resultado dessa atividade, podemos afirmar que a


interdisciplinaridade foi considerada impulsionadora para o
processo de leitura, escrita e oralidade do gênero discursivo
crônica, inclusive, diante de um período de distanciamento social,
em que o autoconhecimento, o autocuidado com o corpo e com a
saúde eram e são imprescindíveis para o ser humano.
Referências
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo
Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
DANTAS, A. C.; COSTA, N. M. (org.). Projeto Político-Pedagógico do
IFRN: uma construção coletiva. Natal: IFRN Ed., 2012.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do
Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
FAZENDA, I. C. A. Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. 5.
ed. São Paulo: Edições Loyola. 2002.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Da alma das coisas a uma pequena porção de inutilidade:


desbravando o universo grotesco

Etelvino Manuel Raul Guila


Universidade Federal de Santa Catarina
etelvino.guila@gmail.com

Palavras prévias
A obra de arte é realidade valorada, trazida pelo autor-pessoa que
por sua vez, ao assumir a condição de autor-criador, orquestra
vozes pinçadas dessa realidade, e as volora em outro contexto, o da
sua narrativa, do seu objecto esteticamente acabado.
Bakhtin ([1979] 2011, p.3) ensina-nos que “cada elemento de uma
obra de arte nos é dado na resposta que o autor lhe dá, a qual
engloba tanto o objeto quanto a resposta que a personagem lhe dá
(uma resposta à resposta); neste sentido, o autor acentua cada
particularidade da sua personagem, cada traço seu, cada
acontecimento e cada ato da sua vida, os seus pensamentos e
sentimentos”. Evidentemente, a realidade de uma obra de arte é
concebida pelo autor-criador. A pessoa-personagem, incluindo as
suas experiências, pensamentos, desejos, atitudes; os factos e os
acontecimentos axiologicamente valorados vivenciados pela
personagem referem-se ao trabalho criativo do autor.
O sujeito criador é uma entidade que encontra situado em um
mundo da vida e da arte, ao que o universo representado na obra

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

irá corresponder ao recorte da vida quotidiana. Portanto, ao


constituí-lo o autor-criador mobiliza certos elementos e não outros
decorrentes das valorações feitas destes. Na sequência, o objecto
agora criado é valorado e acabado, podendo ser contemplado.
Por seu turno a contemplação de um objecto de arte fazemo-la com
recurso às nossas leituras, cosmovivências, em outras palavras,
recorremos aos conhecimentos construídos na vida vivida, nas
várias relações dialógicas, no “caldo cultural” em que estamos
inseridos. Por conseguinte, não podemos compreender um
artefacto estético em si. O sentido da obra ou artefacto estético
surge no diálogo entre o objecto e o contemplador, assumindo, de
acordo com Bakhtin ([1979] 2011, p. 23) que “a percepção efetiva de
um todo concreto pressupõe o lugar plenamente definido do
contemplador, sua singularidade e possibilidade de encarnação”.
No prosseguimento do exposto, buscamos neste trabalho exercer a
nossa contrapalavra, analisando os exemplares escritos de a
invenção do cemitério, com foco nas vozes que neles dialogam, na
relação que estas estabelecem com o seu tempo, com os
acontecimentos que marcam o universo histórico e cultural da
realidade a que aludem, essencialmente, buscando observar a
relação que estabelecem com a expressividade grotesca. Para tanto,
iremos nos servir do nosso excedente de visão, que o nosso lugar
único e singular no mundo nos proporciona, possibilitando-nos
contemplar o objecto estético em múltiplas vertentes.
Descrevendo o autor
Pedro Pereira Lopes, um dos escritores da nova geração
moçambicana, veio ao mundo no ano de 1987, na província central
da Zambézia. É mestre em Políticas Públicas pela Escola de
Governação da Universidade de Pequim (China) e graduado em
Administração pela Universidade Joaquim Chissano, antigo
Instituto Superior de Relações Internacionais em Maputo –
Moçambique –, instituição onde exerce as funções de professor e

560
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pesquisador, e é membro da Associação dos Escritores


Moçambicanos (AEMO).
É uma pessoa-criadora versátil, uma vez que escreve vários
géneros textuais, tal é o caso de romances, poesia, contos, relatos de
viagens, ensaios e publicou um romance contos, tendo como
público-alvo receptores-leitores de todas as idades, com maior
destaque para o público infantil e juvenil.
Na sua colecção, para além de “a invenção do cemitério” (2019),
Pedro conta com a publicação de inúmeros títulos, alguns em
Moçambique, outros em Portugal e no Brasil. Destacam-se dos
livros do autor os seguintes: O homem dos 7 cabelos (2012), Kanova e
o segredo da caveira (2013), Viagem pelo mundo num grão de pólen e
outros poemas (Maputo, 2012), A história do João Gala-Gala (2017); O
mundo que iremos gaguejar de cor (2017); Viagem pelo mundo num grão
de pólen e outros poemas e o romance Mundo grave (2018).
O jovem escritor, de carreira já consolidada, há alguns anos, é dos
mais laureados em Moçambique e não só, uma vez que
em 2010 com a obra O homem dos 7 cabelos foi atribuído o prêmio
Lusofonia; em 2015, o seu livro Viagem pelo mundo num grão de pólen
e outros poemas foi selecionado pela web-revista Kids Indoors como
o livro para férias; em 2016, foi galardoado com o prêmio Maria
Odete de Jesus, com a obra o Comboio que andava de chinelos e foi
menção honrosa ao prémio Eduardo Costley White com a coletânea
de contos O mundo que iremos gaguejar de cor; em 2017 a obra Kanova
e o segredo da caveira é recomendada do Plano Nacional de Leitura,
de Portugal e, no mesmo ano, conquista o prêmio literário INCM/
Eugénio Lisboa com o romance Mundo grave. (GUILA, 2019)
É evidente que se trata de um escritor que tem buscado difundir a
memória do passado, do presente e do futuro daquilo povo
moçambicano pretender ser e de outras paragens, facto que lhe
valeu a atribuição do prêmio de “African Writer Excellence

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Award”, pela sua produção literária e contribuição na divulgação


do pensamento africano, em 2019, em São Paulo, Brasil.

Apontamentos sobre o grotesco


O grotesco, de acordo com o Dicionário etimológico da língua
portuguesa de Cunha (2010), teve a sua formação influenciada pela
palavra “grota”, que estabelece alguma relação com a palavra
“gruta”. Na sequência, no Dicionário universal de língua
portuguesa (2000), o vocábulo é apresentado como sendo um
adjectivo que nos remete ao ridículo, caricato, burlesco ou mesmo
excêntrico.
Noutro prisma, Bakhtin ([1965]1987) em A cultura popular na idade
média e no renascimento faz uma abordagem sobre este termo,
trazendo a concepção deste e o remetendo à Idade Média, assim
como à época renascentista. O autor destaca alguns contornos
associados a sua evolução como conceito, ressaltando que o seu
percurso evolutivo foi longo e levou vários anos.
Sustentando-nos em Bakhtin importa trazer alguns subsídios sobre
a abordagem que esta foi tomando com o tempo, na expectativa de
assegurar compreensão do conceito e seu uso devido, eliminando
ambivalências que possam surgir.
De acordo com autor o termo grotesco teve a sua génese numa
acepção bem restrita, sendo que mais tarde, concretamente no
século XV, uma pintura ornamental encontrada em uma gruta na
Itália viria dar sinais de ampliação deste vocábulo, posto que esta
fora chamada de grottesca por derivação da palavra
latina grotta (gruta), associando-se ao defendido por Cunha (2010),
conforme mencionámos precedentemente.
No seguimento do sucedido, decorrente do facto de a pintura
ornamental encontrada apresentar um jogo insólito, fantástico e
livre com formas vegetais, animais e humanas que se
transformavam e confundiam-se entre si, misturando-se nas suas

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fronteiras, o grotesco, ganha novo sentido, passando a exprimir


metamorfose, transmutação em outras formas, inacabamento da
existência.
Discutindo os aspectos relativos ao realismo grotesco, em
particular às imagens grotescas, Bakhtin alarga nosso
entendimento ao advogar que “a imagem grotesca caracteriza um
fenómeno em estado de transformação, de metamorfose ainda
incompleta, no estágio da morte e nascimento, do crescimento e da
evolução. A atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço
constitutivo (determinante) indispensável da imagem grotesca.”
(BAKHTIN, [1965]1987, p. 21.). Evidencia-se nas palavras do autor
que o grotesco distancia-se de coisas acabadas, perfeitas,
associando-se aos tensionamentos intrínsecos ao processo do seu
desenvolvimento, abarcando os fenómenos sócio-históricos.
A base do grotesco, na acepção em pauta, são o riso e a visão
carnavalesca do mundo. Portanto, a noção de grotesco em
referência distancia-se do lúgubre, da tristeza, do estranho, prima
pela ousadia inventiva, pela liberdade absoluta, sem medo; rompe
com as teias axiológicas de visão de mundo assente em uma única
ordem, acabada e indiscutível, sendo que, a título ilustrativo, até a
morte é encarada como constitutivo da vida, um momento de
renovação da vida vivida, necessária a própria vida.

Desbravando o universo grotesco em A invenção do cemitério


Todo o ser humano tem um projecto de dizer, posto que é um ser
expressivo e todos os seus atos são responsivos. Na presente secção
buscamos exercer a nossa responsividade, ou seja, a nossa
contrapalavra face ao livro a invenção do cemitério.
Trata-se de um livro do autor Pedro Pereira Lopes, publicado no
Brasil, no ano de 2019, corporizado por um conjunto de catorze
contos, que trazem um recorte da vida corrente, ora valorada e

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

representada nas narrativas que sustentam a obra. Logo,


assumindo que o autor está simultaneamente na arte e na vida, esta
vai ser fruto de várias experiências, vivências pelas quais o artista,
como ente criador, passou, ao que os textos produzidos vão aludir
a uma determinada realidade.
Importa salientar que o universo de elementos que emergem da
voz das personagens contidas no objeto estético que iremos
contemplar não correspondem, de forma alguma, as experiências
da vivida vida do autor-criador, se tivermos em consideração que
“as personagens criadas se desligam do processo que as criou e
começam a levar uma vida autônoma no mundo, e de igual
maneira o mesmo se dá com seu real criador-autor.” (BAKHTIN,
[1979] 2011, p.6)
Como contemplador[1], fazendo uso do meu lugar exotópico, que
me possibilita ver a totalidade do texto, como objeto estético, o
primeiro aspeto que nos sai à vista quando interagimos com a obra
de Pedro é transgressão aos cânones da escrita em língua
portuguesa. Entenda-se transgressão não no sentido de infração,
mas sim no sentido de ousadia de fazer diferente, fazendo valer a
liberdade criativa, se tivermos em consideração que tal
contravenção é sistematizada, o que nos remete a algo consciente,
portanto, um estilo adoptado pelo autor-criador.
Ao longo do texto verifica-se a omissão do uso de maiúsculas no
início de frases, bem como no início de palavras que se referem a
nomes próprios, no caso vertente nomes de pessoas, de localidades,
entidades religiosas: “wazimbo[2], fenias, matalane[3], deus, jeová,
lichinga[4]”. A par do aspecto descrito ocorre também a omissão do
ponto no final dos parágrafos, o que já não acontece com o final dos
períodos; e no lugar das aspas duplas ou travessão a indicar as falas
das personagens recorre ao uso das aspas simples, tal como mostra
o exemplo:
‘amanhã falarei com ele’, disse fenias com um ar de decepção, ‘espero
ser ouvido’ p. 22

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

‘se quiser vê-lo…’, disse o oficial, lançando um olhar para o relógio, ‘


é quase a hora das visitas’ p. 27
A ousadia criativa do autor exige que o contemplador no exercício
de leitura mobilize conhecimentos constituídos na vida vivida que
os ajude a apreender os sentidos contidos no objeto estético
contemplado, ultrapassando os limites do texto em si, concebido
como artefacto linguístico.
Exporemos agora três aspectos referentes ao léxico que surgem
como elementos integrados na dimensão grotesca, pela ousadia
criativa existente na sua mobilização. Trata-se do recurso ao uso
termos usados na linguagem específica do contexto moçambicano,
o uso de vocábulos de uma das línguas bantu de Moçambique e
criação de alguns nomes de certas personagens de alguns textos.
No que diz respeito ao primeiro aspecto, as personagens recorrem
ao uso destes termos para designar coisas ou seres que existem na
língua de Camões, porém ressignificadas no novo contexto. No
texto de onde vem a alma das coisas os personagens servem-se das
palavras mufanas e madodas para designar, respectivamente, “rapaz
de idade inferior a 18 anos” e “homem respeitável por idade”. Este
fato pode ser visto também nas vozes das personagens dos contos o
cobrador, que recorre ao uso da palavra mamana ‘senhora de uma
certa idade’, bem como em a invenção do cemitério, usando o
vocábulo mukume. ‘capulana grande’.
O uso pelas personagens destes termos das línguas bantu faladas
em Moçambique, concretamente o changana, uma das línguas
faladas na região sul do país e parte do centro, sendo a terceira
língua mais falada em Moçambique, ficando apenas atrás do
Português, e também falado em alguns países vizinhos,
nomeadamente: Africa do Sul, Zimbabwe e o reino de Eswatine, é
uma ação responsável que visa mostrar a diversidade cultural do
país do Índico. Todavia, esta ação pode representar uma dimensão

565
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

política, uma vez que busca marcar o espaço e o tempo de onde o


sujeito enunciador fala.
A incorporação dos vocábulos do bantu nos discursos em que se
usa a língua oficial é uma tendência que vai dando nas vistas, ou
seja, é um movimento que se vai verificando em alguns textos de
escritores moçambicanos. Este facto reflecte uma coexistência
pacífica entre a língua oficial e as línguas bantu. No entanto, o seu
uso pode representar uma necessidade de mostrar a pertinência de
uso destes em contextos livresco.
As línguas bantu devem transcender de línguas marcadamente
orais, das ideias e tornar-se também da literatura, das diversas
áreas de conhecimento, posto que vários são os cidadãos
moçambicanos que não têm o domínio da língua portuguesa, tendo
domínio, no entanto, de pelo menos uma língua bantu.
Tratando-se o da língua camoniana uma língua viva, dinâmica e
em contacto com as outras, isto é, coexistindo com as línguas
africanas de origem bantu é expectável que vocábulos destas
adentrem nela e vive-versa, o que é enriquecedor para ambas as
línguas. Certamente há que ter em atenção, pois “as línguas são
concepções do mundo, não abstratas, mas concretas, sociais,
atravessadas pelo sistema de apreciações, inesperáveis da prática
corrente e da luta de classes.” (BAKHTIN, [1965]1987, p. 415)
No que tange ao terceiro aspecto verifica-se que o autor-criador
mobiliza o conhecimento linguístico relativo a formação de
palavras para criar nomes de algumas personagens. A título de
exemplo temos: boas-vindas, quinzedias, mó-sabiá, fora-de-hora.
Prestando atenção na estrutura interna dos nomes criados
podemos inferir que o autor criador serve-se da composição por
justaposição como o processo usado para o exercício criativo de
alguns nomes.
A obra a invenção do cemitério tem a peculiaridade de trazer na voz
das suas personagens uma densidade de manifestações da vida
corrente do povo, destacando os dramas, a superação de

566
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

adversidades, a religiosidade, entre outros. Em uma noite na


cela retrata-se fatos que avivam a mente sobre um drama popular
que marca historicamente o país.
A falta de um documento de identificação, em plena noite, por
parte de uma personagem vira um ato tido como motivo para
pernoitar na cela, caso seja encontrado pela polícia comunitária,
“somos da polícia comunitária, jovem, mostra-nos a tua
identificação (…) explica que não tem o sagrado bilhete de
identidade, explica por que atrasou.” p.39 / “ ok. Vamos falar como
homens… tens algum [dinheiro] para cigarros?” p.40.
A inclusão deste acontecimento no recorte apresentado na obra
surge para representar os tensionamentos que emergem deste ato.
Importa lembrar que a polícia comunitária, há alguns anos, era a
entidade responsável pelo patrulhamento dos bairros suburbanos
das grandes cidades moçambicanas. A acção trouxe situações
singulares de tensão e superação, facto observado pela sacralização
do documento de identificação. Estamos diante de uma alusão a
um drama real pelo qual número considerável de moçambicanos
experienciou ou teve que subornar os agentes.
Em uma noite na cela, o episódio que retrata a prisão do parafino, o
protagonista da narrativa, faz emergir um outro tema sensível no
contexto da sociedade moçambicana “o machismo”. “parafino quer
chorar, não consegue. não é uma mulher. só as mulheres choram em
circunstâncias como estas.” p.40. Nestas passagens sobressai uma
visão androcêntrica, de exaltação da masculinidade, profanando as
mulheres. Um posicionamento recorrente por parte de homens, até
de mulheres em algumas situações, em muitas localidades do país.
No âmbito da tensão resultante do evento da prisão do
protagonista ressalta-se também o culto aos antepassados. Parafino
invoca os seus antepassados para que o amparem neste momento
de dificuldade. Os entes não morrem para os bantu, apenas passam
para uma outra dimensão. O culto a estes é uma manifestação

567
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cultural presente na vida do povo moçambicano, certamente feita


de diversas formas, de acordo com as raízes étnicas de cada sujeito,
visando protecção do sobrenatural face as adversidades.
Importa dizer que esta manifestação da religiosidade não é
exclusiva, verificando-se a coexistência desta com outras formas,
tal é o caso de islamismo e catolicismo, facto valorado em o irmão de
jesus¸ em que se evidencia a chegada de um suposto irmão de
jesus, issufo, a uma determinada localidade, vindo do céu. A
personagem issufo afirma que “vim do céu (…) vim cá abaixo numa
missão.”/ “pertenço à religião verdadeira, à igreja de deus…” p.54.
Tal como se destaca na bíblia a negação, a descrença em Jesus
Cristo, nos seus ensinamentos, na sua relação estreita com Deus, no
texto, ocorrem situações em que algumas personagens colocam em
causa a personagem vinda do céu e outras ficam desconfiados com
o que ele representava.
“lá no céu, o alimento é feito de maná”
“maná? o alimento que caiu aos israelitas no deserto, na época do moisés?”
“issufo, não tem idade para contar histórias”
“que merda! vocês estão também avariados! vou-me embora, não mais vou
perder o meu tempo” p.56-57.

A postura apresentada pelas personagens é um recorte da


realidade valorada pelo autor criador para mostrar a ambivalência
em que as pessoas vivem a questão da religiosidade, uma questão
deveras complexa.
Na narrativa em referência, a questão dos números sagrados,
destacados na literatura clássica e medieval ocorre nesta narrativa.
Issufo destaca que é irmão de jesus e refere-se que faz parte de um
conjunto de sete irmãos “eu sou um dos filhos de deus, irmão de
cristo” p.62. Portanto, isto quebra a visão que se tinha de cristo, tido
como filho único “sete? Cria eu que ele era o filho único.” p.62.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A tradição ocidental, em questões relativas à religião, ensina-nos,


ao longo dos tempos, que Deus é criador do céu e da terra, e tinha
um único filho. O autor-criador, por meio das suas personagens,
rompe com esta mundividência única, trazendo a figura divina
com mais de um descendente. No entanto, pelo facto das
qualidades da entidade divina não darem azo para que tenha um
qualquer número de filhos, almejando superar a profanação de
possuir mais filhos, o número sete, visto como sagrado na literatura
medieval surge como a solução.
O texto evidencia que merecem alguma atenção na nossa ação
contemplativa. No texto a greve, destaca-se a tensão das
personagens face a uma morte eminente. No episódio, porém, esta
situação é trazida pela voz do narrador:
uma das armas expeliu mais uma em direcção à população. O projéctil,
como um foguete governado, traçou um percurso lúcido, abriu caminho
entre os corpos transpirados e, no interior do bando dos grevistas, transpôs
com violência uma camisa azul, e depois a carne. Com o toque profundo,
esguichos de sangue saltaram. A camisa azul celeste avermelhou-se, a bala
alojara-se perto do coração p.69

Em uma outra situação surge, por parte de beno, protagonista do


conto onde estão as pessoas que fugiram da nossa vida uma visão da
morte como momento de renovação. No texto em alusão, a
personagem numa interlocução com deus sobressai o seguinte:
Recuso-me, senhor, não me dês parábolas!
Não sabes do que falas, tolo
São apenas nomes que azedarão como más recordações, senhor
A morte não é um fim
É um novo começo, senhor. p.84

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Conclusão
É deveras difícil recorrer ao termo conclusão para designar a esta
parte do nosso escrito, assumindo a perspectiva bakhtiniana, uma
vez que nesta a inconclusibilidade é nota dominante, ou seja, é
constitutiva das coisas, tudo existe na relação com o outro, as
coisas, os discursos, as ideias, existem na relação com as outras.
Ademais, o texto como artefacto linguístico é um objecto acabado,
mas este é um enunciado da corrente discursiva e, como tal, é um
discurso inacabado.
A invenção do cemitério, foco da nossa contrapalavra, é uma
realidade valorada, que resulta de um recorte também valorado, o
da realidade cotidiana, ou seja, que faz alusão aos aspectos da vida
corrente. Os elementos trazidos neste são valorados, eles não
aparecem aleatoriamente, sendo impostas pelas vivências e
experiências, que impelem o autor-criador a fazer umas escolhas
em detrimento de outras, a trazer alguns assuntos e não outros.
O livro de contos, a invenção do cemitério, traz uma multiplicidade
de aspectos inerentes à realidade cultural e social em que está
inserido. Das narrativas temáticas que aludem a uma realidade
específica, destacam-se ambivalência em que se vive as questões da
religiosidade, a superação das adversidades, a profanação da
cosmovisão única das coisas, a sacralização das coisas comuns, os
tensionamentos existentes no espaço entre vida e a morte.
A par do anteriormente exposto, há que destacar, em termos
formais, a ousadia do autor-criador patente a ruptura do uso das
regras gramaticais referentes ao uso de maiúsculas em nomes
próprios e em início de parágrafos, associado ao não uso de aspas
para demarcar a fala das personagens.
Em suma, os contos apresentados na obra de Pedro Pereira Lopes
são narrativas da realidade popular moçambicana trazidos pelo
autor-criador em vozes de suas personagens, expressando seus

570
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sentimentos, pensamentos, valores e atitudes diversas. A


interpretação dos mesmos foi possível graças ao nosso
distanciamento, ao nosso lugar extralocalizado em relação às vozes
que estabelecem relações dialógicas nos textos, que foi
fundamental para apreensão dos elementos neles valorados, ao
possibilitar-nos observar inúmeros aspectos acerca deste.
Como leitor-contemplador foi possível constatar que a valoração
feita nos textos sustenta-se em elementos característicos da
expressividade grotesca, ao fundamentar-se no inacabamento, no
distanciamento do lúgubre, na liberdade e ousadia criadoras, no
rompimento dos cânones, na visão de mundo que se distancia da
exclusividade e nos tensionamentos.

Referência bibliográficas
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Media e no
Renascimento: o contexto de François Rebelais. Trad. Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, (1965), 1987.
_______________ Estética da criação verbal. 6.ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, (1979) 2011.
CUNHA, A. G. da. Dicionário etimológico da língua portuguesa.
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DICIONARIO UNIVERSAL DA LINGUA PORTUGUESA. 2.ed.
Maputo: Moçambique Editora, 2000.
GUILA, E. M. R. A representação das vivências de um povo em a
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LOPES, P. P. A invenção do cemitério. São Paulo: Desconcertos
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BENTO, S. Dicionário Changana-Português. Maputo: Texto
Editores, 2011.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Notas
[1] Quando o contemplador busca entender um objecto estético o
faz com as palavras e conhecimentos do mundo a ele circunscrito e
valorados de acordo com as suas vivências. Por conseguinte, a par
do autor-criador este também valora os elementos trazidos na sua
acção contemplativa.
[2] Músico da velha guarda de Moçambique
[3] Localidade situada na província de Maputo, Sul de
Moçambique
[4] Capital da província de Niassa, Norte de Moçambique

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

DA INVASÃO DE HOSPITAIS À INTIMIDAÇÃO DA


IMPRENSA: Análise dialógica e polifônica de charge sobre
discurso do presidente Jair Bolsonaro

Vanessa Krunfli Haddad


Universidade Metodista de Ensino Superior - UMESP
haddad.vanessa@gmail.com

Introdução
O dialogismo, para Bakhtin (2017, p. 39), é o “complexo
acontecimento do encontro com a palavra do outro”, possível por
meio do diálogo entre os enunciados durante as interações
discursivas. Tais enunciados reúnem
diversas vozes independentes, fenômeno ao qual Bakhtin (2010, p.
23) dá o nome de polifonia. O dialogismo é, então, um ambiente de
tensões verbo-ideológicas entre as diferentes vontades das vozes
que habitam os enunciados. Esses embates resultam,
historicamente, em “confrontos sêmicos, deslizamentos de sentido,
apagamentos de significados, interincompreensões, etc.” (FIORIN,
2018, p. 191).
Bakhtin (2002) observou nos conflitos dialógicos um contínuo jogo
de poder. Os grupos sociopolíticos hegemônicos exercem forças
centrípetas para a unificação da língua, com vistas a uma
centralização ideológica que lhes favoreçam. No entanto,
plurilinguismo (linguagens diversas provenientes de outros
grupos sociais) exerce forças centrífugas de descentralização.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Hoje, o Brasil está em crise sanitária, econômica, ambiental,


política, moral e social; com desdobramentos que reverberam,
principalmente, nas condições de vida das minorias. Fiorin (2018)
ressalta que a democracia (constantemente ameaçada no Brasil) usa
as forças centrífugas, enquanto a ditadura (exaltada por parte dos
brasileiros) é caracterizada pelo uso das forças centrípetas.
Esse cenário nos motivou a analisar, com base nas teorias
bakhtinianas de dialogismo e polifonia, a charge de Renato
Aroeira, publicada no site de notícias Brasil 247 em 14 de junho de
2020 (Figura 1), que associa o presidente Jair Bolsonaro à suástica
nazista. Aroeira foi alvo de inquérito da Polícia Federal e da
Procuradoria Geral da República (URIBE, 2020), em uma atitude de
intimidação da imprensa que demonstra a afinidade do atual
governo brasileiro com as ditaduras, as quais, “em seu afã
centrípeto, apresentam um forte componente narcísico, tentando
negar a alteridade, impondo sua identidade e exigindo que os
outros a ecoem” (FIORIN, 2018, p. 173).
Consideramos que a polifonia, e com ela os confrontos sêmicos,
encontra terreno fértil na charge, cuja força está “na pluralidade de
visões” (ROMUALDO, 2000, p. 62). Assim, nosso objetivo com esta
investigação foi fazer, como sugere Bakhtin (2002, p.82), “uma
análise concreta e detalhada” das enunciações do discurso
chárgico, entendendo cada uma “como unidade contraditória e
tensa de duas tendências opostas da vida verbal.”

A charge que incomodou o governo federal

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1: Charge de Renato Aroeira, 14 jun. 2020.

Fonte: Site Brasil 247, 2020


Intitulada “Crime continuado”, a charge de Renato Aroeira é sua
leitura da fala do presidente Bolsonaro durante transmissão ao vivo
em suas redes sociais no dia 11 de junho de 2020, data em que o
Brasil contabilizou 41.058 mortes por Covid-19 (FOLHA DE SÃO
PAULO, 2020). Bolsonaro incentivou seus apoiadores a entrarem
sem autorização e filmarem hospitais para verificarem a ocupação
dos leitos de UTI:
As informações que nós temos, pode ser que eu esteja equivocado,
mas...na totalidade ou em grande parte, né, ninguém perdeu a vida
por falta de respirador ou leito de UTI [...]. Pode ser que tenha
acontecido um caso ou outro, mas… inclusive as informações que
chegam pra nós, seria bom você fazer na ponta da linha...[se] tem
hospital de campanha perto de você, hospital público, arranja uma
maneira de entrar e filmar. Muita gente está fazendo isso e mais
gente tem que fazer para mostrar se os leitos estão ocupados ou não.
Se os gastos são compatíveis ou não. Isso nos ajuda. Tudo o que

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

chega pra mim nas redes sociais, a gente faz um filtro e eu


encaminho para a Polícia Federal e para a Abin [Agência Brasileira
de Inteligência] e lá eles veem o que fazem com esses dados.
(BOLSONARO, 2020).
Na charge, o presidente é retratado logo após transformar em
suástica uma cruz vermelha que, no contexto, representa um dos
hospitais “invadidos”, de acordo com a sua sugestão, e, de maneira
mais ampla, o Sistema Único de Saúde (SUS). Hoje adotada por
hospitais, farmácias e ambulâncias, a Cruz Vermelha é reconhecida
internacionalmente como símbolo de assistência humanitária
imparcial e proteção aos doentes em zonas de conflito (COMITÊ
INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, 1998). A suástica,
cujo significado em sânscrito é bem-estar, integra “quase todas as
culturas antigas e primitivas, desde o período neolítico”
(HABOWSKI et al, 2017, p. 96). O seu grafismo indica o movimento
de rotação, cuja direção, determinada pelos braços das
extremidades, interfere no significado:
que se trate do sentido direto astronômico, cósmico e, portanto,
ligado ao transcendente — é a suástica de Carlos Magno; ou do
sentido inverso, dos ponteiros de um relógio, querendo colocar a
infinitude e o sagrado no temporal e no profano — é a suástica
hitleriana. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 852).
Depois de sua adoção por Adolf Hitler, em 1920, como emblema do
Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, a suástica
teve seu passado cultural de milênios reduzido aos sentidos
ligados ao mal e à morte. Se considerarmos a origem humanitária
da Cruz Vermelha, aprofundamos nossa interpretação inicial: ao
modificá-la, Bolsonaro faz o mesmo que Hitler em relação à
suástica: “apaga” seus sentidos de cuidado e esperança em favor
dos relacionados à morte e indiferença.
A Cruz Vermelha “transformada” em suástica é o enunciado que
resulta das relações dialógicas entre os enunciados “cruz
vermelha” e “tinta preta” (este último com os sentidos de
intimidação e oposição). Destaca-se sua ambivalência, com

576
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

caráteres positivos (cruz vermelha) e negativos (suástica), algo que


encontramos na cosmovisão carnavalesca de Bakhtin (1987, p.18),
em especial no “realismo grotesco” e na “paródia medieval”.
Permanecem identificáveis as vozes dos enunciados de origem,
revelando o conflito de ideologias característico do dialogismo.
Duas ideias opostas travam um embate polifônico - de um lado, o
plurilinguismo das vozes de distintos grupos sociais responsáveis
pelos sentidos da cruz vermelha e do SUS (organizações
humanitárias, profissionais de saúde, cientistas, pacientes,
voluntários etc.); de outro, as vozes do presidente Jair Bolsonaro e
daquelas presentes em seu discurso (políticos, apoiadores, fascistas
etc.).
A cruz vermelha está com as hastes de cima e da direita
escurecidas, como se tivessem absorvido parte da tinta preta, numa
representação da tentativa, pelo governo, de unificação do
discurso. Observamos que a cruz vermelha ocupa dois terços da
charge e é quase duas vezes maior que Bolsonaro, em resposta ao
discurso intimidador do presidente: o SUS é maior que o poder que
lhe ameaça.
A representação de Bolsonaro na charge também é ambivalente, o
que exige
uma dupla movimentação de leitura, englobando a percepção
concomitante de duas máscaras: a primeira da seriedade / autoridade
e a segunda da ridicularização. No caso da segunda, esta traz o bojo
da simultaneidade desses movimentos opostos, mas justapostos, que
se sedimentam como efeito de sentido da charge. (MIRANDA,
2010, p. 37).
Roupas, caricatura e expressões faciais o mostram na posição de
presidente do Brasil. No entanto, a atitude (“pichar” um
patrimônio público) e a linguagem informal são próprias de um
adolescente. A enunciação “Bora invadir outro?” é atribuída ao
presidente, cujo tom impositivo fica evidente em seu semblante.
Então, quem nos chama para a ação? O presidente com olhar

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

intimidador ou o adolescente irresponsável que corre com uma lata


de tinta e pincel nas mãos? A justaposição não permite a separação
das personalidades e, assim, cria o duplo e sarcástico sentido:
Bolsonaro é um presidente que se porta como adolescente? Ou é
um adolescente que usa roupas de presidente? Ressaltamos que
Bolsonaro não usou em seu discurso a palavra “invadir”. Essa é
uma interpretação crítica de Aroeira.
O enunciado “Crime continuado” resume em um único crime as
transgressões presentes no discurso presencial: a morte sem fim
dos brasileiros
Concluímos que as formulações teóricas de Bakhtin nos deram
ferramentas para analisar e atribuir sentidos aos enunciados do
complexo discurso que Renato Aroeira construiu com apenas duas
imagens. Em uma, criou um paradoxo: uma cruz ao mesmo tempo
salvadora e destruidora: a ambivalência da charge revelou as
tensões ideológicas, os deslizamentos de sentido, e as forças de
unificação do poder dominante versus as de descentralização da
pluralidade de vozes sociais. Em outra, Aroeira mostrou o
presidente-adolescente, com a ambivalência e ironia do jogo de
coroação e destronamento da cosmovisão carnavalesca de Bakhtin
(1987).

Considerações finais
As possibilidades da charge enquanto gênero discursivo nem de
longe foram esgotadas com esta breve pesquisa. Bakhtin, como
pensador da função social da língua, tem muito o que oferecer para
futuras investigações do texto chárgico, especialmente no que diz
respeito aos embates ideológicos e às forças que atuam nas
enunciações.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

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______. Problemas da Poética de Dostoiévski. 5. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
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579
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

HABOWSKI, Adilson Cristiano et al. Cruz suástica e o potencial da


propaganda nazista: conjuntura e resquícios históricos. Tabulæ –
Revista de Philosophia, 10 (20):93-116, Jan./Jun. 2017.
MIRANDA, Hellen Suzanna da Cruz. Entre a crítica e o humor: a
influência dialógica, polifônica e carnavalizada das charges
jornalísticas de Angeli na Folha de São Paulo. 2010. Dissertação
(Mestrado em Letras) - Curso de Letras - Área de concentração:
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DANÇA E MÚSICA: FORÇA REVOLUCIONÁRIA

ISAURA MARIA DE CARVALHO MONTEIRO


IFES
isaura.monteiro@ifes.edu.br

A alienação desaparecia provisoriamente. O homem tornava a si mesmo e


sentia-se um ser humano entre seus semelhantes O autêntico humanismo
que caracterizava essas relações não era em absoluto fruto da imaginação
ou do pensamento abstrato, mas experimentava-se concretamente nesse
contato vivo, material e sensível. O ideal utópico e o real baseavam-se
provisoriamente na percepção carnavalesca do mundo, única no gênero.
Mikhail Bakhtin[2]

1 Iniciando a conversa

Nesta escrita, faz-se uma proposta de reflexão sobre o grotesco no


sentido bahkhtiniano em diferentes tipos de dança, em países
distintos, registrados em nossa contemporaneidade. Trata-se de
um documentário americano produzido em 2018: We Speak
Dance, série sobre culturas de dança em todo o mundo. O show
segue o criador, ex-assessor da ONU e Alvin Ailey, treinador da
bailarina Vandana Hart, explorando a dança conectando pessoas,
lugares e cultura. Da Indonésia e do Vietnã, para a França, a Nigéria
e o Líbano, é possível pensar a dança sendo usada politicamente.
Estilos diversificados, grupos subterrâneos e estágios famosos

581
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

revelam a dança juntando pessoas através de uma revolução, de


cerimônias sagradas e de sexualidade.

Figura 1

Junto ao conceito de grotesco, acrescenta-se o de carnavalização,


uma visão bakhtiniana que aponta uma forma alternativa e alegre
de relativizar as verdades e o poder. Bakhtin evidencia o que chama
de corpo grotesco, com permutações entre o alto (cabeça, face =
espírito, dignidade) e o baixo (traseiro, genitais = obsceno,
profano).

2 Bakhtin e o livro sobre Rabelais

Tomando o grotesco e o carnavalesco como ponto de partida,


surge a necessidade de tecer breves comentários sobre o livro de
Bakhtin ‘A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o

582
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

contexto de François Rabelais’. Primeiramente, pode-se dizer que o


livro acende uma discussão atual sobre diversidade, subjetividade
e cultura. Ao analisar o livro de Rabelais, Bakhtin afirma que
“influiu poderosamente não só nos destinos da literatura e da
língua literária francesas, mas também na literatura mundial”
(BAKHTIN, 1987, p.2). É possível também dizer que o livro de
Rabelais, na visão bakhtiniana, traz uma reconciliação entre a
cultura e a vida, mostrando a existência de uma irreverente cultura
do povo enquanto comunidade. Em nossos dias, a celebração das
pessoas pode ser representada e atuada, como será mostrado nos
episódios de dança.

3 O burlesco e a liberdade

Os conceitos bakhtinianos grotesco e carnavalesco podem mostrar-


se genericamente encenados, também chamados ‘”burlescos”. No
texto presente, serão destacadas danças em alguns países
visitados. Busca-se a cumplicidade do público por meio de gestos
corporais, que instigam sensações diversas.

Para estar em plena liberdade, muitas vezes é preciso soltar, fluir


pelos ritmos da vida. Isso pode ser realizado através da dança. Na
ciência, a liberdade é experimentação e raciocínio; bom senso e
sensatez na filosofia; na sociedade, igualdade e solidaridade e na
arte, originalidade e inspiração.

4 O ecoar das vozes nas danças

Pode parecer estranho falar de dança e não presenciá-la, porém, o


que será destacado serão as vozes desses dançarinos e a provocação

583
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que a dança pode trazer com seu grotesco e carnavalização: risos,


lágrimas, espanto, sensações diversas... (mas quem quiser apreciá-
las, verificar nas “Referências”). Serão destacados apenas alguns
episódios, em países diferentes.

. Episódio em Lagos, na Nigéria

O presidente da Nigéria diz para aguentar firme e também diz para


ir com calma , mas, segundo o dançarino, estão todos famintos.
Então, alguns encaram o “desafio de devotar a vida à dança”. Eles
guardam as frustrações e só mostram a vida pensando no corpo
deles. A dança não como ponto final, mas como ferramenta para
falar dos sentimentos e falar sobre os problemas que eles acham
importantes. No dizer deles, a dança vem da alma, é espiritual, a
dança transforma e isso é revolucionário: o segredo da vida é não
ter medo.

Figura 2

584
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Legenda da figura: Um espírito revolucionário está presente em


Lagos,onde Vandana segue dançarinos de rua e conhece Femi Kuti,
filho de Fela Cuti, uma lenda do afrobeat.

. Episódio em Beirute, no Líbano

Um lugar de opostos, onde existem conflitos e guerra social: do


conservadorismo ao extremo a estilos de vida mais liberais.
Refugiados lutam por recursos. Libaneses transitam nesse lugar de
opostos com elegância e resiliência. Diante de problemas políticos,
sociais e econômicos, as pessoas resolveram usar a dança para dar
seu recado. Os libaneses estão usando a dança para unir o povo.
Com muitos anos de diversidade religiosa, cultural e étnica, Beirute
é uma das cidades mais antigas do mundo. Dançar é a língua do
povo. Muitas vezes, a dança “empodera” as pessoas, como a dança
do ventre, pois as mulheres nos países árabes não são muito
consideradas, o homem é “deus”. Apesar disso, existem escolhas
opostas, pois segundo um dançarino homossexual, “a dança não
tem gênero” e a dança para esse dançarino é um ato político, pois
o que ele dança é essencialmente feminino, um apelo sexual. O país
renega o homossexualismo e o dançarino usa esses elementos como
“forma respeitosa de ser o que somos”, “a dança é sagrada”, cada
um é dono da sua sexualidade.

Figura 3

585
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A dança une uma cidade de extremos no Líbano

Figura 4

586
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

FOTO: reprodução

. Episódio em Paris, França

“Fête de la musique”, o dia da música em Paris. Ela inspira cada parte


da cidade a sair e dançar. Os parisienses usam a dança para
aumentar a cultura. O que significa ser parisiense hoje? Uma das
maiores populações de minorias europeias, que enriqueceram a
cultura e dança locais: das batalhas de dança de rua às colaborações
abstratas. Do clássico ao moderno e ao sensual. Há palco para todos
em Paris. Alguns são financiados por instituições opulentas.
Outros, do mundo underground, lutando para sobreviver.

Figura 5

Foto: reprodução

Considerações finais

Voltando à obra de Rabelais analisada por Bakhtin (1987), a


referência seria a feira, marcando o espaço público europeu desde
o Renascimento até parte do século dezessete. Na
contemporaneidade, na periferia do Primeiro Mundo, pode-se

587
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pensar na “feira” com diversas expressões de cultura, incluindo a


dança. Nela, na dança, surgem os lugares de conflito, muitas vezes
em torno do controle social. A cultura popular permite a
participação do povo como sujeito do espetáculo. Muitas vezes
existem questionamentos sobre uma tensão que possa existir entre
a liberdade de expressão e as imposições e/ou repressões
instauradas. Sempre é possível pensar que alguns fatos e crenças
poderiam privilegiar a ótica do grotesco suscitando um riso cruel.
Finalizo com um poema.
Dicotomia na unidade
Maria Inês Ribeiro Albernaz Kury
É assim...
entre saúde e doença
entre luz e escuridão
entre vida e morte
celebração e luto.
Entre dor e alegria
frustração e contentamento.
Entre tristeza e felicidade
Seguindo em frente...
dia a dia
entre uma coisa e outra
nunca só uma, nunca só outra...
O duplo.
O sim, o não, o talvez.
Assim é a vida.
Assim somos nós.

588
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Entre isso e aquilo.


Entre o tudo e o nada.
Resiliência e desespero...
Conexão e desconexão.
Lágrima e riso.
É assim essa grande viagem dúbia
de 0 a 1
de in e out
de on e off
até o fim.

Referências
BAKHTIN, Mikhail A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento – o contexto de François Rabelais. São Paulo:
Hucitec,1987
We Speak Dance (Season 1), Netflix,
2018: https://lescorpsdansants.com/2017/12/11/netflix-estreia-
serie-we-speak-dance-em-2018
Notas:
[2] BAKHTIN, Mikhail A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento – o contexto de François Rabelais. São Paulo:
Hucitec,1987

589
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

De quando foi preciso esquartejar o corpo para compreender o


Grotesco

Márcia Fernanda Carneiro Lima


Grupo ATOS - UFF
fecarneiroecarneiro@gmail.com

Em homenagem a Rabelais, um título quase rabelaisiano.


A BAILARINA
A começar pelos cabelos. O cabelo é cada um dos pelos que crescem
no couro, que com seu crescimento, é chamado de couro cabeludo.
Os aproximadamente cento e cinquenta mil fios capilares, castanho
escuro, que contornam a cabeça da bailarina são rigorosamente
presos em coque amarrado por uma liga de elástico em três voltas
para ficar bem apertado, com cinquenta e quatro grampos de metal
(no mínimo) e uma rede de malhas abertas, cujas aberturas não
podem deixar despontar sequer um fio. De volta em volta, de
grampo em grampo a uma altura específica edifica-se o penteado.
De volta em volta de grampo em grampo o couro cabeludo rasga-
se e os fios de cabelos partem-se até que cansam de crescer naquela
altura.
O rosto. O rosto é a parte anterior da cabeça, limitada por cabelos,
orelhas e parte inferior do queixo. Nesta face, a maquiagem é
presente, mas discreta ao mesmo tempo. Seu semblante deve se
manter sereno para suavizar o contraste de toda dor, esforço e força

590
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que o pescoço denuncia. De preferência, para aprimorar o efeito, o


rosto da bailarina deve ser adornado com um sorriso sereno.
O pescoço. O pescoço ou colo (do latim collum) é a parte do corpo
que une a cabeça ao tronco. O pescoço da bailarina exibe músculos
e vasos, veias e artérias que a cada nota do piano enrijecem e
pulsam. Sete notas musicais, sete vértebras cervicais articulam-se
com o crânio, com as clavículas e com a porção inferior (ou
posterior) da coluna vertebral dando à cabeça movimentos
aparentemente leves e precisamente ritmados.
Braços. Os braços da bailarina, formados pelo úmero, cotovelo,
ulna e rádio, são membros superiores que permitem às mãos,
desenharem no ar uma escrita ágrafa, que só se lê bem com o
coração. Este bate forte no peito. Chega a quase sufocar em banhos
de adrenalina. Quase sai pela boca. Mas estas são as partes internas
da bailarina, não é tanto que consigo penetrar. Vamos voltar às
mãos.
Mãos. São a parte final de cada extremidade superior, responsáveis
neste caso pelo acabamento de leveza para cada movimento
corporal que é conseguido com um esforço colossal de harmonia,
equilíbrio e ritmo obtido pela repetição incessante de determinados
movimentos. As mãos da bailarina são da ordem da mais pura
contradição, pois finalizam o que não tem fim e suavizam toda a
força bruta desse corpo ao limite.
Tronco. O tronco da bailarina é todo torço. Torço, nos diversos
sentidos que esta palavra pode trazer. Em seu abdome adstrito e
marcado pela costura da meia-calça, concentra toda força cósmica
para dar sustento ao pescoço que embala a cabeça que segura o
coque que compõe com os braços que permitem a maestria das
mãos erguidas pela extrema força das pernas tensas que se
projetam sobre virilhas comumente cortadas pelas pregas dos
collants.

591
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Pernas. São as pernas os membros inferiores do corpo humano,


desde o quadril até o tornozelo, incluindo a coxa, os joelhos e as
panturrilhas, o baixo corporal. É do baixo que toda a força vem.
Sempre do baixo (e não é à toa que o esquartejamento da bailarina
acontece de cima para baixo, da cabeça aos pés). A massa magra à
custa da boca que fecha, deixa saltar a musculatura rija e modelada.
Tal deve ser sua elasticidade a ponto de que seus joelhos se
projetem para trás. Panturrilhas firmes, atentas e corajosas
aguentam os choques e explosões musculares provocadas por
saltos, aberturas e giros. Tudo isso orquestrado pelos pés.
Pés. Pés são a parte distal do membro inferior. Vinte e seis pequenos
ossos se contorcem em uma sapatilha de cetim cuja ponta de gesso
deve ser quebrada aos dedos. No interior das sapatilhas, ‘nude’,
dedos retorcidos e aleijados sustentam em sua extremidade toda
essa maquinaria corporal que faz parecer leve aquilo que é pesado,
natural o que é exaustivamente ensaiado e fácil o que é difícil.
Trata-se de um antiquíssimo corpo grotesco. Um corpo cuja pele é
pergaminho da dança. É corpo de meninamulher sem mênstruo,
sem peitos, sem quadril, sem bunda. É corpo humano que por
natureza não voa, mas que diante de nossos olhos, flutua. No palco,
seu lugar de festejo, cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo
nascimento (como diz Bakhtin, no livro, A Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, na
edição de dois mil e dez, duas páginas antes da p.21). No palco, ao
final de cada espetáculo o renascimento e a ressureição se
materializam no riso paródico que seu corpo todo – contraditório e
incompleto, inteiro e esquartejado –, emana em posição de
“révérence” (reverência).

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular Na Idade Média E No
Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7ª ed. – São Paulo:
Editora Hucitec, 2010.

592
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

DEMOCRACIA EM VERTIGEM: UMA LEITURA-ENSAIO DO


CONTEXTO POLÍTICO BRASILEIRO RECENTE À LUZ DA
PERSPECTIVA FILOSÓFICA DE LINGUAGEM DO CÍRCULO
DE BAKHTIN

Gabrielle Leite dos Santos


UFRN
gabriellegabi@gmail.com

Erica Poliana Nunes de Souza Cunha


Universidade Federal do Rio Grando do Norte
ericapolianan.s.c@gmail.com

Julianne Pereira dos Santos


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
juliannepsantos@yahoo.com.br

Perspectiva dialógica de linguagem - a palavra como meio


sensível de observação da vida e das disputas sociais
A perspectiva filosófica de linguagem em Volochinov (2017; 2013)
nos orienta para uma percepção da criação ideológica ancorada no
signo e na teoria do enunciado e dos gêneros discursivos, elaborada
em Bakhtin (2016). Sua empreitada teórica tenta localizar na teoria
marxista uma concepção que entenda o material objetivo da
ideologia, orientada pelas relações sociais mediadas pela
linguagem, em oposição à noção subjetivista individualista que
localiza a ideologia na mente ou no inconsciente, bem como aos
estudos linguísticos do início do século XX que reduzem a
linguagem à estrutura, forma, e retiram toda sua vida na

593
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

comunicação cotidiana e na produção do sentido vivo, histórico,


situado - o que o autor denomina de objetivismo abstrato. Criando
um campo comum e produtivo a partir da perspectiva do
materialismo histórico-dialético, para os estudos em linguagem e
para as ciências das ideologias, e até mesmo para a psicologia, o
Círculo fundamenta um potente aporte teórico-metodológico que
coloca a linguagem como realidade material objetiva da vida social,
da vida interior e da criação ideológica, tendo como pressuposto
sua ligação com as bases sociais em relação dialética com as
superestruturas.
A questão central para a teoria do signo do Círculo é que ele, tendo
como motivo a significação, não apenas integra a realidade material
objetiva enquanto palavra, mas reflete e refrata essa realidade de
modo a produzir sentidos multidirecionais que se cruzam e entram
em embate, a partir dos posicionamentos ideológicos, sociais, de
classe, avaliativos, axiológicos que abriga em seu âmago. Na
condição de enunciado, unidade mínima da comunicação
discursiva, surge de uma vontade de dizer ancorada em um sujeito
encarnado e localizado no mundo, orientado ideologicamente em
um grupo social organizado; configura-se em uma estrutura
composicional construída e reiterada dentro de um dado círculo de
atividade humana; comunica-se com uma corrente de outros
enunciados com os quais entra em diálogo e/ou polêmica; e se
direciona para um outro que compõe o jogo discursivo de maneira
ativa. Na teoria do Círculo sobre o enunciado, o papel da
compreensão e escuta é reavaliado profundamente e a
essencialidade do papel do outro é devidamente reconhecida: a
comunicação discursiva só pode acontecer entre, no mínimo, duas
consciências socialmente organizadas; não pode, em nenhum
estágio ou hipótese, prescindir do outro, aquele que interpela, que
discorda, com o qual se entra em embate ou concordância; todo o
motivo da comunicação se dá pela vontade de dizer que primeiro
surge como vontade de resposta a alguém ou algo; não existe
comunicação para o nada, a partir do nada. Sempre houve um já

594
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dito e, portanto, já valorado, a partir do qual nossa própria


consciência, constituída materialmente por linguagem, se forma e
continua a dialogar, ao longo da vida, em processos de construção
e reconstrução das nossas ideias, valores e sentidos.
É tendo como base esses pressupostos que Volochinov (2017, p. 99)
argumenta que a palavra, por ocupar esse lugar central na
organização social e na vida humana, é “o medium mais apurado e
sensível da comunicação social”. Basta lembrar de seu argumento
primeiro de que somente “Onde não há signo também não há ideologia”
(ibid. p. 91), o que nos esclarece que toda e qualquer palavra é, na
comunicação discursiva, orientada ideologicamente. O teórico
ainda ressalta que “em torno do signo ideológico se formam como
que círculos crescentes de respostas e ressonâncias verbais” (ibid.
p. 101), o que transforma esse material num corpus produtivo para
a compreensão da realidade social e das disputas em torno dela, a
partir dos enunciados situados e seus respectivos horizontes sociais
imediatos, que lhe dão sentido.
Partindo dessa perspectiva teórico-metodológica orientadora,
objetivamos ensaiar um sentido possível para o cenário político
recente brasileiro, em negociação com os discursos postos e o
horizonte social que se apresenta. Para tanto, propomos um
cotejamento dialógico entre o documentário “Democracia em
vertigem” (2019), de Petra Costa, dois episódios do podcast “Café
da manhã” (2021) e um artigo da jornalista Eliane Brum, no El País,
publicado em 06 de setembro de 2021, que refletem sobre nosso
presente imediato e convergem para um alerta comum: nossa
democracia encontra-se em perigo.

Democracia em vertigem - um olhar sobre o golpe


Quando ouvimos falar em ditadura e autoritarismo, o que
geralmente nos vem à mente, como parte do imaginário coletivo,
são os tanques, as fardas, a luta armada... No documentário

595
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Democracia em vertigem” (2019), Petra Costa, diretora e roteirista,


nos lembra e alerta que as democracias não morrem apenas nas
mãos de homens armados, mas que podem ser fragilizadas por
dentro, com apoio das próprias instituições consideradas
democráticas. Esse é o desenho do que vem acontecendo no Brasil
nos últimos tempos. O cenário caótico no qual estamos inseridos
hoje foi construído, como mostra a produção cinematográfica, por
nossa elite econômica, por uma mídia nada ingênua, pelas
mesquinharias e interesses políticos e por sede de poder.
A obra inicia retratando o dia em que a prisão do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva é decretada pelo então juiz Sérgio Moro e
daí parte para uma retomada histórica, passando pelo golpe militar
de 1964, pela resistência a esse período, pela greve dos
metalúrgicos que alçou Lula à política, até chegar aos eventos mais
recentes, como as manifestações de junho de 2013, toda a
articulação política que culminou no golpe contra a ex-presidenta
Dilma Rousseff em 2016, a ascensão ao poder de Michel Temer, o
desvirtuamento da operação Lava-jato, o processo parcial que leva
à prisão de Lula e a vitória de Jair Bolsonaro em 2018.
Todo esse caminho percorrido e os meandros de cada etapa
trouxeram-nos para a conjuntura atual, em que estamos com a
democracia cada vez mais fragilizada. No livro “Como as
democracias morrem”, os autores Levitsky e Ziblatt apontam
alguns sinais de alerta que indicam um comportamento autoritário
mesmo em governos democraticamente eleitos: 1) rejeição às regras
democráticas do jogo; 2) negação da legitimidade dos oponentes; 3)
tolerância ou encorajamento à violência; 4) propensão a restringir
liberdades civis de oponentes, inclusive da mídia. É impossível não
identificar o atual presidente em todos esses sinais, uma vez que
ele questiona a legitimidade do nosso sistema eleitoral; tende a
tachar os seus oponentes políticos como comunistas, corruptos e
até mesmo com ofensas de cunho pessoal; é um defensor de armas,
de dizeres como “bandido bom é bandido morto”, entre outros
discursos de cunho violento e preconceituoso; só dialoga com

596
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

quem está do mesmo lado, cerceando, inclusive, o acesso da


imprensa a ele; entre outros exemplos que demonstram, clara e
infelizmente, como as nossas instituições não estão funcionando
normalmente e como a nossa democracia caminha para a ruína,
caso algo não seja feito a tempo. Aparentemente, o documentário
de Petra Costa ainda não terminou: ele aponta não só para tudo o
que nos fez chegar até aqui, mas também para um futuro sombrio,
resultado de um grande e grave desequilíbrio político-
institucional.

Diálogos e vozes recentes - o golpe em manutenção


Desde que o golpe foi instaurado e consolidado com um
representante da direita extremista/radical no poder, o grotesco
tem se reverberado nas instâncias políticas e sociais. De lá para cá,
foram retirados direitos constitucionais e trabalhistas da
população; vive-se um ataque constante à ciência e uma das
maiores crises sanitárias causada pelo novo Coronavírus;
instaurou-se uma normalização ao discurso de ódio e de ataques às
minorias. Neste ano, 2021, tendo em vista a baixa em sua
popularidade, o poder executivo tem potencializado a sua voz
contra o sistema eleitoral e o Supremo Tribunal Federal,
principalmente com a chegada de uma das datas mais
emblemáticas, politicamente, para o Brasil: o 7 de setembro. O
grotesco deste tempo e deste espaço se constitui por vozes que
advêm da quebra do que se espera para um gestor de um governo
democrático.
Assim como o golpe foi delineado pelo documentário “Democracia
em Vertigem” (2019), a manutenção dele tem ressoado nos diversos
veículos de comunicação e por meio das vozes dos cientistas
políticos. O Jornal Folha de São Paulo tem aberto espaço para esse
debate, com o podcast Café da Manhã¹, parceria entre a Folha e o
Spotify, conduzido pelos jornalistas Magê Flores, Maurício

597
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Meireles e Bruno Boghossian. Há dois episódios especificamente


que trazem à tona as reflexões e refrações que apontam para o fato
de que a democracia brasileira tem sofrido ataques constantes nos
últimos anos.
O primeiro é o episódio “Crise Política: adianta dialogar com
Bolsonaro?”, lançado no dia 26 de agosto de 2021. Nele, os
mediadores, a cientista política convidada e os recortes das falas de
políticos e do próprio presidente em exercício dão visibilidade aos
discursos contraditórios envolvendo a política brasileira. Como o
próprio título já adianta, há uma resistência, uma voz autoritária
que se constitui na figura do presidente quando ele se nega a
dialogar com o congresso, com a população e com aqueles que
poderiam contribuir para a manutenção da democracia. O
presidente, que se ergueu e construiu sua imagem às custas de um
discurso populista controverso, hoje não corresponde nem mesmo
aos ideais de parte de seus apoiadores: assume uma postura
autoritária, de alianças contraditórias, de contestação às
instituições democráticas que foram necessárias a sua própria
eleição. Como avaliou a convidada ao podcast Daniella Campello,
esperava-se de um candidato populista o diálogo, porém, ele
rompe com essa linearidade.
O outro episódio que corrobora com todo esse percurso de ataque
à democracia é denominado “O cerco aos PMs no 7 de setembro”,
publicado no dia 03 de setembro de 2021, e nele se denuncia um
cenário de golpe ou pelo menos uma tentativa de inflar o projeto
ideológico do presidente. Desta vez, durante o episódio, há o
revozeamento de alguns pronunciamentos do governo
questionando as demais instâncias de poder e também das falas de
apoio do governo à Polícia Militar em diversas situações, num jogo
que pode ser interpretado como troca de favores a serem cobrados
no futuro. Leva-se, dessa forma, a uma compreensão da conjuntura
política que pode explicar a liberdade com que o atual presidente e
seus apoiadores têm atacado as instituições e as regras do jogo

598
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

democrático, reforçando, assim, a sua voz autoritária, respaldada


pelo suposto apoio das forças de controle social.
Mantendo esse diálogo com a manutenção do golpe e do
autoritarismo, um dia antes dos movimentos esperados e
convocados pelo presidente para o dia da independência do Brasil,
a articulista Eliane Brum, do Jornal El País², em seu artigo “07 de
setembro - O que fazer quando um presidente se comporta como
terrorista e impõe terror de estado sobre seus opositores na data
cívica mais simbólica do país?”, descreve e revela o quanto os
discursos que corporificam a figura do presidente rompem com o
que se espera de um lugar ético ocupado pelo Presidente da
República. Porém, para a articulista, não surpreende o grotesco que
constitui os discursos, atitudes e medidas do governo atual, uma
vez que sua retórica é marcada constantemente por ataques às
minorias e pela legitimação das forças hegemônicas.
Os enunciados aqui postos, de diferentes tempos, ambientes e
intencionalidades, se encontram no mesmo posicionamento
ideológico em relação à realidade atual do país: a democracia
brasileira corre grande risco e já se encontra gravemente
fragilizada, na medida em que nunca, desde a redemocratização do
país, tantos crimes contra a Constituição e as instituições
democráticas foram cometidos sem nenhuma resposta à altura. No
fundo, parece que há uma descrença na capacidade para ação do
presidente e seus aliados, uma crença cega de que o seu poder é
limitado sobre as forças armadas ou a polícia militar, que suas falas
constituem simplesmente uma bravata, vazias e sem ancoragem na
realidade, como parece ser seu governo e suas declarações caóticas.
No entanto, diversas de suas agendas já foram emplacadas, o país
encontra-se em grave crise política, econômica e sanitária, e nos
encaminhamos para o fim do terceiro ano do mandato de
Bolsonaro sem evidências de uma movimentação mais firme em
defesa da democracia nacional. Apesar da sua ascensão de maneira
democrática ao poder, o seu mandato a cada dia se distancia mais

599
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

do centro idealmente ético de governo, à medida que já se vivencia


o golpe da ineficiência das instituições democráticas, da
impessoalidade do serviço, do descrédito ao jogo democrático e aos
próprios princípios constitucionais. Vivemos um momento de
sombras em que é difícil enxergar os horizontes, mas nossa
principal possibilidade de futuro ético, plural e soberano é a ação
imediata das forças democráticas que nascem e se renovam no
poder popular.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34,
2016.
LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de
Janeiro: Zahar, 2018.
VOLOCHINOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios.
Tradução João Wanderley Geraldi. São Carlos/SP: Pedro e João
editores, 2013.
VOLOCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São
Paulo: Editora 34, 2017.

NOTAS

1. Podcast disponível nos seguintes


links: https://open.spotify.com/episode/5P2qvpEp3p0IFK4M668y
U4?si=3krs06H2SVWfhpCwm3izgA&utm_source=whatsapp&dl_
branch=1 e https://open.spotify.com/episode/6ewtOXktpEqAp4m
eyTCv9U?si=PI92fX2VStC8vdyIl1gROw&utm_source=whatsapp
&dl_branch=1 . Acesso em: 05 de set de 2021.
2. O artigo está disponível em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2021-09-06/7-de-setembro.html. Acesso em 06 de set de 2021.

600
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Diante da câmera: a lógica do grotesco nos filtros do Instagram

Cefla de Medeiros Gonçalves


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
medeiroscefla@gmail.com

Marília Varella Bezerra de Faria


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
mariliavbf@yahoo.com.br

Querer agradar, chamar a atenção, valorizar-se e embelezar-se: o


que existe de mais constante nas condutas dos homens e das
mulheres? O desejo de agradar e os comportamentos de sedução
(adornos, cosméticos, presentes, piscadelas, trejeitos, sorrisos
sedutores) parecem, sob certos aspectos, ser atemporais, desafiar o
tempo, ser os mesmos desde que o mundo é mundo e desde que há
sobre a Terra homens e mulheres, e mesmo desde que as espécies se
reproduzem pela via sexual. Algo de universal e de transistórico
parece estruturar a coreografia sedutora (LIPOVETSKY, 2020a, p.
23).
Partindo do que Lipovetsky (2020a) pondera no excerto acima, é
plausível observamos que a lógica da sedução e o desejo de agradar
são, sobretudo, marcas visíveis em todas as civilizações já
conhecidas. Tal dialética é responsável pela organização das
formas de poder, de controle e das maneiras de viver dentro da
sociedade e, uma vez que estamos diante de uma
“hipermodernidade” (Lipovetsky, 2020b, p. 29), – era marcada,

601
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sobretudo, pela transição entre as antigas mídias de informação e


as novas plataformas informacionais, mais rápidas e produtivas,
chamadas de mídias digitais – “agradar e impressionar” parece ser
o slogan que impera nessas mídias ultracontemporâneas, como as
redes sociais, por exemplo (Lipovetsky, 2020a, p. 24).
Hoje, as redes sociais ilustram uma vida perfeita, seja
no feed no Instagram ou na timeline do Facebook, a grama do vizinho
sempre parece mais verde, assim como no ditado popular. Corpos
esculturais – ainda que totalmente modificados pelo photoshop –
constroem o padrão corporal a ser alcançado, bem como
o lifestyle de influenciadores digitais figuram o padrão de vida a ser
atingido – regado de itens de luxo, viagens caras e roupas de grife.
Esses padrões fundam uma realidade praticamente inalcançável
por boa parte das pessoas do mundo e, assim, a vida de aparências
ganha cada vez mais espaço no território virtual.
Nesse sentido, considerando o Instagram como uma das redes
sociais mais influentes dentro da malha social, uma vez que atinge
mais de um bilhão de usuários mensalmente em todo o mundo,
como mostram dados da pesquisa publicada pelo G1 (2020), a
plataforma de fotos e vídeos caiu no gosto da população por
apresentar facilidade no compartilhamento dos momentos
vivenciados, tanto através do feed quanto do story, esse último
lançado em 2016, inspirado no que já acontecia no Snapchat. Um
outro ponto que se assemelha a aplicativos como o Snapchat e
o TikTok, por exemplo, é a possibilidade de utilizar filtros nas fotos
ou vídeos que são publicados no Instagram. Esses filtros, por sua
vez, possibilitam uma distorção na imagem que é exibida na tela
do celular, seja com fins cômicos – os chamados
“funny filters” – ou com propósitos estéticos, filtros que modificam
o rosto de formas diversas, desde o aspecto da pele, deixando-a
mais limpa e rosada, até a alteração de traços faciais mais
complexos, como o afinamento do nariz, aumento dos lábios e
definição maxilar, por exemplo.

602
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Para Bakhtin (2019), nossa autoconsciência e autoavaliação estão


intimamente relacionadas com nossas visões de mundo. Nossa
própria imagem, por exemplo, se constrói a partir da visão que os
outros têm de nós, “o homem tem uma necessidade estética
absoluta do outro” (BAKHTIN, 2011, p. 33). Nesse viés, é possível
depreendermos que jamais teríamos acesso a uma imagem
completa de nós mesmos, uma vez que somente o outro consegue
nos ver por inteiro, tecer comentários a nosso respeito e, a partir da
exotopia, do excedente de visão e da alteridade, depreender
materializações ao nosso processo de acabamento identitário.
Todavia, a câmera do celular parece, em um primeiro olhar, colocar
o pressuposto bakhtiniano em xeque-mate, uma vez que as lentes
do smartphone preconizam um olhar exotópico de si mesmo por si
mesmo e, nessa lógica, nós teríamos acesso a uma imagem nunca
antes vista: a de nós mesmos diante do mundo, ocupando, de uma
vez por todas, o lugar que, antes, pertencia somente ao outro.
Essa perspectiva de arquitetônica exotópica fundada pela câmera
faria sentido se Bakhtin não fosse um pensador para além de seu
tempo. Em uma filosofia quase que dialogal com a
hipermodernidade, mesmo que em eras totalmente distintas,
Bakhtin teceu reflexões sobre o homem diante do espelho. Em suas
ponderações, o autor repousa seu olhar nas imagens que são
criadas e exibidas no mundo.
O mundo está povoado por imagens criadas das outras pessoas (este
é o mundo dos outros e eu vim para esse mundo); entre elas ainda
há imagens do eu nas imagens das outras pessoas. A imposição da
consciência da criação da imagem do outro e da imagem de si
mesmo. Hoje este é o problema nodal de toda a filosofia. Começar
pela análise da posição primitiva da autoconsciência (mas não no
plano histórico). O homem ao espelho. A complexidade desse
fenômeno (diante da simplicidade aparente). Os seus elementos. A
fórmula é simples: eu olho a mim mesmo com os olhos de um outro
(BAKHTIN, 2019, p. 53).

603
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Logo, é notável que Bakhtin, em seus esboços sobre a imagem do


homem em frente ao espelho, reverbera reflexões remotas ao seu
próprio tempo, sobretudo porque suas ideias podem ser facilmente
transpostas para as lentes do celular que captam nossa própria
imagem. Para além do espelho, as câmeras também permitem uma
autoconsciência de nossa imagem externa, muito embora a visão
que tenhamos de nós jamais consiga se desprender das imagens do
outro, pois nossas concepções e ideologias são fornecidos através
do mundo e do outro. Assim, ainda que uma autoavaliação seja
possível, “não sou eu que olho o mundo com meus próprios olhos,
mas sou eu que olho a mim mesmo com os olhos do mundo, com
olhos alheios; eu sou possuído por um outro” (BAKHTIN, 2019, p.
51).
Desse modo, o efeito do “selfie”, promovido pelas lentes
fotográficas dos aparelhos celulares, apenas permite uma ingênua
noção de imagem externa de si mesmo, pois ainda que nos
enxerguemos por “inteiro”, não conseguimos tecer um ponto de
vista acabado sobre nós mesmos; o olhar exotópico do outro e as
ideologias presentes no mundo sempre estarão irrefutavelmente
memorizados em nossa autoimagem. Há, então, “uma
dependência do outro homem diante do espelho” (BAKHTIN,
2019, p 54). Portanto, necessitamos do olhar externo dos demais
sujeitos para que possamos, finalmente, construir alguma avaliação
sobre nós a partir de nossa imagem projetada no visor do celular.
Essa questão, alinhada ao uso dos filtros no Instagram, viabiliza a
criação de uma autoimagem deturpada, visto que os filtros
modificam a imagem que é contemplada através da tela. Os narizes
afilados, as bocas volumosas, os rostos emagrecidos e as peles
aveludadas parecem nortear o padrão a ser seguido na
hipermodernidade, arquétipos moldados pelas intervenções
cirúrgicas e harmonizações faciais promovidas e exaltadas pela
esfera da moda, da publicidade e do capitalismo desenfreado.
Assim, os filtros passam a caracterizar uma forma mais viável e
simples de alcançar o padrão determinado nesta era social,

604
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

principalmente porque são gratuitos e estão ao alcance de qualquer


pessoa com acesso à internet e ao Instagram, em oposição às
intervenções clínicas. Nesse âmbito, o outro, assim como nós, não
vemos mais nossa imagem real, mas um protótipo esculpido pelas
tecnologias dos filtros, que resultam em uma falsa concepção de
quem somos e como somos no mundo. Logo, o padrão de beleza
promovido pelos filtros altera nossa visão do que é desejável e
normal, colocando tudo o que foge a esse padrão como algo
disforme e repulsivo.
Na prática, o que ocorre é uma inversão da normalidade. O normal,
em termos biológicos, como uma pele com marcas e linhas de
expressão, por exemplo, passa a ser considerado anormal,
enquanto a modificação artificial e atípica instituída pelos filtros
passa a ser vista como espontânea e normal, funcionando como
referência daquilo que é considerado belo. Esse efeito provocado
pelos filtros tem uma ligação direta na sociedade. De acordo com
Rice et al (2020), um curioso fenômeno surgiu: a busca por cirurgias
plásticas motivada pelos filtros do Instagram. Assim, na práxis
social, foi desencadeada uma busca por aquilo que as pessoas viam
nos filtros, como um rosto mais magro e uma mandíbula mais
preenchida.
Assim, a lógica artística da imagem grotesca ignora a superfície do
corpo e ocupa-se apenas das saídas, excrescências, rebentos e
orifícios, isto é, unicamente daquilo que faz atravessar os limites do
corpo e introduz ao fundo esse corpo. Montanhas e abismos, tal é a
estrutura do corpo grotesco ou, para empregar a linguagem
arquitetural, torres e subterrâneos. [...] o grotesco ignora a superfície
falha que fecha e limita o corpo, fazendo dele um fenômeno isolado
e acabado. Também, a imagem grotesca mostra a fisionomia não
apenas externa, mas ainda interna do corpo: sangue, entranhas,
coração e outros órgãos. Muitas vezes, ainda, as fisionomias
externas e internas fundem-se numa única imagem (BAKHTIN,
1987, p. 277-278).

605
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nesse viés, é possível notar que as formas excepcionais do grotesco


extrapolam a fisionomia e a expressão humanas aceitáveis na
sociedade. Outrossim, uma vez que os padrões estéticos
dominantes e quase impossíveis de serem alcançados são ainda
mais evidenciados e enaltecidos no século XXI, os corpos grotescos
configuram-se como uma forma de resistência, pois subvertem a
expectativa das curvaturas admissíveis socialmente e revelam o
sujeito desnudado de filtros. Essa lógica de resistência social do
grotesco é confirmada por Bakhtin (1987, p. 43) quando ele afirma
que “a função do grotesco é liberar o homem das formas de
necessidade inumana em que se baseia a ideia dominante sobre o
mundo”. À vista dessa ideia dominante, Han (2019) considera o liso
como uma marca do tempo atual. Para ele,
o liso conecta as esculturas de Jeff Koons, iPhones e a depilação à
brasileira, como é conhecida a depilação total na Europa. Por que
achamos belo, nos dias de hoje, o liso? Além do efeito estético, nele
se reflete um imperativo social universal. Ele corporifica a
sociedade da positividade atual. O liso não quebra. Também não
opõe resistência. Ele exige likes. O objeto liso extingue
seus contrários. Toda negatividade é posta de lado [...] esse caráter
adaptável e de ausência de resistência é um traço característico da
estética do liso [...] (HAN, 2019, p. 7, grifos nossos).
Portanto, o efeito aplainado conferido às imagens por meio dos
filtros do Instagram configura-se como um signo ideológico da
sociedade contemporânea, assinalada pelos padrões estéticos
inatingíveis e não naturais. Ao contrário dos filtros que impõem o
liso enquanto estética aceitável, as formas crépidas e quebradiças
do grotesco imperam enquanto forma de resistir aos padrões
polidos, impostos na cultura do hiperfiltro. O normal torna-se
grotesco, pois é tido como negativo e representativo de barreiras
em um sistema capitalista construído para o consumo desenfreado
e a obsolescência dos arquétipos corporais, que se tornam cada vez
mais difíceis de serem atingidos. Nessa lógica capitalista, o efeito
grotesco, provocado pela simples naturalidade, é desprezado pela
esfera social, uma vez que a inversão no juízo de valor dos

606
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

indivíduos faz com que a imagem espontânea seja marginalizada,


uma vez que essa não produz lucro e não faz o consumo girar. É
diante da câmera, portanto, e por meio dos filtros, que a lógica do
capitalismo produz o polimento do belo e a repulsão do grotesco.

Referências
BAKHTIN, MIKHAIL M. Cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1987.
BAKHTIN, MIKHAIL M. Estética da criação verbal. 6. ed. Tradução
de Paulo Bezerra. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, MIKHAIL M. O homem ao espelho: apontamentos dos
anos 1940. Tradução de Cecilia Maculan Adum, Marisol Barenco
de Mello e Maria Letícia Miranda. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2019.
HAN, Byung-Chul. A salvação do belo. Tradução de Gabriel Salvi
Philipson. Rio de Janeiro: Vozes, 2019.
Instagram faz 10 anos como uma das maiores redes sociais do
mundo e de olho no tiktok, para não envelhecer. Globo (G1), 2020.
Disponível
em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/10/06/i
nstagram-faz-10-anos-como-uma-das-maiores-redes-sociais-do-
mundo-e-de-olho-no-tiktok-para-nao-envelhecer.ghtml. Acesso
em: 06 de setembro de 2021.
LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da sedução: democracia e
narcisismo na hipermodernidade liberal. Tradução de Idalina
Lopes. São Paulo: Manoele, 2020a.
LIPOVETSKY, Gille; CHARLES Sébastien. Os tempos
hipermodernos. Tradução de Luís Filipe Sarmento. Lisboa: Edições
70, 2020b.

607
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

RICE, S. M., GRABER, E., & KOUROSH, A. S. (2020). A pandemic


of dysmorphia:“Zooming” into the perception of our
appearance. Facial Plastic Surgery & Aesthetic Medicine.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

DISCURSO DA DES(INFORMAÇÃO) E AS VOZES SEM


AUTORIA: o perigo das fake news em tempos de covid-19

Edineide da Silva Marques


UFRN
edineidesmarques@hotmail.com

1 Introdução

A acessibilidade as tecnologias informacionais que deveriam


aproximar as pessoas nesses tempos de covid-19 proporcionou
tantas des(informações), por meio de fake news, fazendo com que o
discurso dessas vozes sem autoria fosse maquiado e se tornasse um
perigo. Entretanto, Bakhtin (2012) explica que o discurso é um ato
ético e todo e qualquer enunciado prescinde de autor e interlocutor,
mesmo que este seja ideal. O discurso se origina por necessidades
de aproximação e compreensão intersubjetiva, de noções
significativas, enunciativas e ideológicas. Melo (2017, p. 75) diz que
“a voz existe, e só existe, por meio de signos ideológicos (palavras)
e enunciados”.
Assim, as fake news surgem como um discurso de des(informação),
numa perspectiva de vozes sem autoria identificada, com uma
finalidade. Por serem entendidas como inconformidades que
geram indicativos de infrações, precisam ser investigadas e
punidas, tendo em vista o perigo que trazem para o meio social.
Além disso, favorecem a instabilidade e o descrédito,
principalmente, com a saúde, enfraquecendo a adesão da
população às medidas preventivas de combate à pandemia.

609
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Tempos difíceis, tempos incertos, tempos obscuros. Pensar nessas


vozes que nos rodeiam, é pensar que no hoje, quando o isolamento
se fez necessário e, ainda se faz tão presente no convívio em
sociedade, é saber que, ainda há o desserviço de des(informações)
disseminadas, fazendo com que o desejo de verdade seja
mascarado e que o discurso fique maquiado, sendo, assim, um
perigo, pois confunde a sociedade.
É preciso compreender que as tecnologias informacionais
deveriam, nesse momento, aproximar as pessoas, sobrepondo os
limites físicos e geográficos por meio de diversas mídias.
Entretanto, essa acessibilidade também trouxe a desinformação,
considerando que há formas perversas de comunicação que
prejudicam e/ou confundem as pessoas, o que Foucault (1996)
explica como “explosão discursiva”, o que se pode entender hoje
por fake news. Alimentando-se dessa desinformação, o receptor
e/ou destinatário passa a se fundamentar somente nessas crenças
falsas, que, muitas vezes, vêm ao encontro de suas convicções.
Assim, constata-se que as fake news tendem a ser aceitas com mais
facilidade, sendo admitidas por esse sujeito como verdades. Tal
tendência relaciona-se ao compreendido como era da “pós-
verdade”. A pós-verdade, conforme explica Santos (2020, p. 20):
[...] não busca explicar e argumentar um acontecimento por meio de
uma verdade objetiva (ou seja, uma verdade por correspondência,
entre o que se é afirmado e os fatos), mas manipular as evidências e
relativizar a verdade. Seus “argumentos” fascinam e trazem fortes
atrações emocionais aos seus adeptos. Suas premissas e formas de
explicação baseiam-se na autoridade, no relativismo, na emoção, no
negacionismo científico, manipulação dos fatos ou em qualquer
outra explanação, motivo ou fundamento de natureza análoga. A
pós-verdade não objetiva apenas engendrar e transformar todo o
cenário político social, busca também estabelecer nossas crenças
pessoais como fonte de conhecimento “verdadeiro” da realidade, a
partir de interpretações alternativas e enviesadas dos fatos.
Nesse contexto, essas (des)informações e vozes sem autoria
disseminadas nesse período pandêmico nas redes sociais digitais

610
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

se misturam, se distinguem e se propagam com uma velocidade


como se fosse o próprio vírus da covid-19. Isso tem influenciado o
comportamento da sociedade a respeito da prevenção e da
segurança. Partindo do contexto de que o discurso se origina por
necessidades de aproximação e compreensão intersubjetiva, de
noções significativas, enunciativas e ideológicas, destaca-se neste
texto o contexto das fake news e o direito autoral com noções do
Círculo de Bakhtin.

2 O discurso fundamentado nas fake news e o direito autoral


O termo conhecido em português como “notícias falsas” ou fake
news diz respeito a informações que se disfarçam da verdade com
a finalidade de enganar, não apresentando qualquer compromisso
com os fatos, disseminando a des(informação). Essa valoração
negativa, de acordo com Arcanjo (2020), é a geração de distintas
percepções equivocadas e, por que não dizer, perigosas, que têm
um direcionamento ao comprometimento da saúde social.
É importante dizer que esse tipo de notícia sempre existiu, sendo
difícil afirmar com precisão as primeiras ocorrências. Entretanto, ao
se considerar o explicitado por Volochínov (2013), de que a
interação interdiscursiva acontece por meio de uma troca verbal
situada entre os entes do discurso, articula-se, portanto, que elas
apresentem raízes desde o início das interações orais entre os
agentes interdiscursivos.
Pensar nessas notícias disseminadas de maneira desenfreada em
tempos pandêmicos é como se vivêssemos em uma pandemia
dentro de outra “pandemia”, isto é, a pandemia de (des)informação
e a da covid-19. O cenário das fake news e da pós-verdade trazem
riscos, fundamentalmente, quando se relaciona a uma atitude
antivacina, fazendo com que se acredite que a vacina pode vir a ser
prejudicial ao ser humano. Assim, D’ancona (2018, p. 68) alerta que

611
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“o recuo em relação à ciência se torna perigoso quando ameaça a


saúde pública ou a segurança dos outros”.
Com base nas exposições, Bakhtin (2006, p. 66) esclarece que “em
todo ato de fala, a atividade mental subjetiva se dissolve no fato
objetivo da enunciação realizada, enquanto que a palavra
enunciada se subjetiva no ato de descodificação que deve, cedo ou
tarde, provocar uma codificação em forma de réplica”. Com isso,
a fake News, com seu discurso de inverdades, tem se expandindo de
maneira significativa nas redes sociais, como se pode comprovar
com a disseminação errônea de diversos remédios caseiros que
prometem evitar a contaminação da covid-19. Uma falsa notícia,
para ser identificada, exige uma leitura fundamentada em outros
elementos (como é o caso de imagens, cores, formas entre outros),
e, de uma compreensão do material subentendido (BAKTHIN,
2018).
Nesse viés, é proeminente pensar no campo do direito, ou seja, na
utilização de dispositivos legais como sendo uma ferramenta no
combate à falta informação. Nesse sentido, cabe destacar que as
leis punem não somente o autor mas também as pessoas que
replicam essas informações indiscriminadamente. A esse respeito,
os parâmetros legais – art. 5º, inciso I e art. 46 (in totum) da Lei nº
9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (Lei dos Direitos Autorais) e a
Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde – são
fundamentais para compreender a legislação brasileira. Entretanto,
ainda há muito a ser realizado no âmbito das legislações, pois,
mesmo havendo punição, baseada no Código Penal,
especificamente no Decreto-lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940,
e no Decreto-lei Nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, a impunidade,
diante de crimes tão graves, é percebida diariamente.
Considerando o descrito, entende-se que as fake news com o
discurso de des(informação) numa perspectiva de vozes sem
autoria são entendidas como inconformidades que geram

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

indicativos de infrações, os quais precisam ser investigados e


punidos, tendo em vista o perigo que trazem para o meio social.

3 Considerações finais
Sabe-se que o momento é de crise e incertezas, que as
des(informações) são muitas e findam por serem acolhidas por
uma grande parcela da sociedade. Assim, no campo da pós-
verdade, constata-se que a verdade não é mais o desejo do criador
discursivo, muito menos o desejo de quem a consome, uma vez que
esse valor está degradado na esfera social, como explica Foucalt
(1996).
Compreende-se, no entanto, que os enunciados da des(informação)
não são atemporais, pelo contrário, exigem uma correlação com o
tempo/espaço em que circulam; e, isso faz com que adquiram mais
chances de se difundirem, fundamentalmente quando relacionam
a eventos recentes. Portanto, são enunciados historicamente
construídos que refletem a realidade de um contexto. Eles surgem
com o intuito de justificar determinada ação e, pelo
descompromisso que têm com a verdade, colaboram para um
cenário de incertezas, favorecendo a instabilidade e o descrédito,
principalmente com a saúde, enfraquecendo a adesão da população
às medidas preventivas de combate à covid-19.

REFERÊNCIAS

ARCANJO, L. Desinformação e os perigos do compartilhamento


de conteúdos falsos. UOL: JC, 2020.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da linguagem. 12. ed. São
Paulo: Hucitec, 2006.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins


Fontes, 2018.
BAKHTIN. M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos:
Pedro e João, 2012.
BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e
consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras
providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l9610.htm. Acesso em:
10 ago. 2021.
D’ANCONA, M. Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em
tempos de fake news. Barueri: Faro Editorial, 2018.
FOUCALT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
FRAGOSO, J. H. R. Direito autoral: Da antiguidade à internet. São
Paulo: Quartier Latin, 2009.
MELO, J. R. B. Vozes sociais em construção: dialogismo,
bivocaliade polêmica e autoria no diálogo entre Diário do hospício,
O cemitério dos vivos, de Lima Barreto, outros enunciados e outras
vozes sociais. 2017. 454 f. Tese de doutorado. Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências
e Letras (Campus Araraquara), 2017.
SANTOS, E. da S. Pós-verdade VS. raciocínio crítico. O manguezal:
revista de filosofia, v. 1, n. 5, p. 19-26, jan./jun. 2020.
VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros
ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

DO CHÃO DE CASA AO CHÃO DA ESCOLA: O GROTESCO


QUE NOS (TRANS)FORMA

Rose Fernandes de Souza


Instituto Federal Catarinense
rosefernandesdsouza@gmail.com

Alexandre Vanzuita
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense
alexandre.vanzuita@ifc.edu.br

Porque a minha vida inteira como um todo


pode ser considerada um complexo ato ou ação
singular que eu realizo: eu realizo, isto é,
executo atos, com toda a minha vida e a cada ato
particular e experiência vivida é um momento
constituinte da minha vida (BAKHTIN, 2012 p.
21).

Cresci, como tantos outros crescem, com os pés no chão, sentindo


na sola dos membros que sustentam meu corpo, a textura áspera e
gélida do piso de cimento batido da nostálgica casa em que me
criei. Recordo-me ainda que, meus pés, quase sempre descalços,
sentiam a terra das ruas em que brincava, os grãos de areia dos
campinhos em que passava horas a correr atrás de uma bola e
recordo-me de igual modo, dos pés calejados de minha mãe que,
ao retornar para casa após um árduo dia de trabalho do chão de
asfalto dos centros das cidades, gentilmente solicitava-me: filha,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tire meus sapatos. Nesse contexto é que apresentamos como


epígrafe introdutória o excerto pujante de Bakhtin, que por sua vez,
me permite revisitar as memórias experienciadas do decurso da
vida, compreendendo cada ato, como um momento envolto de
particularidades, pluralidades e alteridades e, consequentemente,
potencialmente transgressor e formativo.

Nessa direção, a fim de refletirmos como do chão de casa ao chão


da escola há um grotesco ambiente que nos (trans)forma, faz-se
mister compreendermos o que para Bakhtin configura-se como
grotesco:

O grotesco torna-se para Bakhtin um ponto de


vista a partir do qual uma concepção diferente
do humano surge, um humanismo que não é
mais ligado a uma crença no indivíduo e não é
mais sustentado por um abraço e na promoção
das virtudes da medida, proporção ou razão
(TIHANOV, 2012, p. 178).

De tal modo na perspectiva bakhtiniana, o grotesco pode ser


entendido como a estetização do homem ético em contínuo estado
de inacabamento, trazendo consigo suas virtudes, mas também
suas imperfeições, por isso, sempre inacabado. Ante o exposto,
como seres errantes que somos, cada caminho por nós percorrido
traz consigo as memórias de um sujeito "ator-autor-em devir”
(PASSEGGI; ABRAHÃO; MOMBERGER, 2012 p. 31) no processo
de (trans)formar-se continuamente a partir de sua essência humana
grotesca. Daí a importância de refletirmos de igual modo, sobre a
palavra chão, proposta neste artigo como meio, instrumento e
materialização deste contínuo caminhar.

A palavra chão é em sua essência polissêmica e nesse sentido,


implica tanto em questões de ordem materiais e objetivas, quanto
na subjetividade em que a mesma pode ser compreendida a partir

616
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

do contexto em que é empregada, tornando-a assim, um signo


ideológico. Nessa direção, compreendemos que um signo
ideológico não advém da consciência individual, pois, um signo
origina-se da interação verbal, o que exige a participação do outro,
que por sua vez, envolve a semiótica que orienta para o papel
condicionante da comunicação social (CASTRO; PORTUGAL;
JACÓ-VILELA, 2011).

Cada signo ideológico é não apenas um reflexo,


uma sombra da realidade, mas também um
fragmento material dessa realidade. Todo
fenômeno que funciona como signo ideológico
tem uma encarnação material, seja como som,
como massa física, como cor, como movimento
do corpo ou como outra coisa qualquer. Nesse
sentido, a realidade do signo é totalmente
objetiva e, portanto, passível de um estudo
metodologicamente unitário e objetivo. Um
signo é um fenômeno do mundo exterior. O
próprio signo e todos os seus efeitos (todas as
ações, reações e novos signos que ele gera no
meio social circundante) aparecem na
experiência exterior (BAKHTIN, 2006, p. 23).

Em outras palavras, compreende-se um signo ideológico sempre


em movimento, implicando num processo de contínua interação do
eu com o outro, no exercício da alteridade, desenvolvida dentro de
um contexto histórico, social e cultural. A partir desses
pressupostos, seguiremos com a reflexão acerca da palavra chão,
aqui também compreendida como ambiente, espaço físico e
materializado, um signo ideológico.

A SEMIÓTICA DA PALAVRA CHÃO - O GROTESCO QUE


NOS (TRANS)FORMA

617
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

É do chão que tudo nasce e é nele que tudo parece morrer. É nele
que se travam batalhas e disputas territoriais e é por um simples e
complexo pedaço de chão, de terra, que se mata em defesa da
propriedade privada. É o chão que se faz cama para milhares de
pessoas que não tem onde reclinar a cabeça, num país chamado
Brasil, que ocupa a 13ª posição no ranking da economia mundial. É
por esse mesmo chão, por um pedaço de terra, que vemos ser
protagonizada nos últimos tempos, a luta dos povos indígenas
contra o marco temporal, ruralistas e latifundiários que não querem
abrir mão daquilo que não lhes pertence. Chão para que? Chão para
quem? Quantas desigualdades e tensões giram em torno de uma
única palavra: Chão! O grotesco chão.

Fonte: elaborada pelos autores

O chão que vira cama, casa, abrigo, terra firme, vira insegurança
(quando nos tiram o chão), vira cova, sepultura, vira cheiro de
saudade, vira disputa, gera in/exclusão e envolve uma semiótica
salutar, pois implica na luta de classes, resultando num movimento
de reflexão e refração em torno do signo ideológico “chão”. “Um
signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também

618
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-
lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc”
(BAKHTIN, 2006, p. 22).

Nesse sentido, o movimento de refletir no devir da constituição


simbólica da palavra é mais homogêneo e linear, já o movimento
de refratar é mais tortuoso e turbulento, logo, envolve a luta de
classes (SANTOS; SCHERMA, 2018). Nesse sentido, é de uma luta
vinda das profundidades da terra, mas muitas vezes sem chão, que
sigo constituindo-me pouco a pouco como um Ser educadora.

Oriunda dos chãos periféricos da cidade de São Paulo, afetada por


tensões dialéticas num contexto micro e macro de um Brasil recém
saído de um regime ditatorial que adota uma política neoliberal na
década de 1990, o chão da casa em que cresci tornou-se cada vez
mais instável, turbulento. Era como se em alguma medida as placas
tectônicas se chocassem e consequentemente causassem um
terremoto ao mesmo tempo inesperado, mas previsível.

Dadas as condições materiais discrepantes a que um destino


conformista e ditado por outras vozes como inalterável e que
insistia em colocar-me num lugar de subalternidade e precarização,
a fome, por vezes, estremecia o chão de casa e como num processo
de causa e efeito, fazia com que os pilares humanos balançassem e,
assim, algumas dessas estruturas vieram a ruir. Ora consumidos
pelo álcool, ora pela desigualdade e marginalização, ora pelo uso
da força policial de um Estado repressivo que ceifou a vida de um
de meus irmãos com um tiro no peito e outro no coração. E assim,
com caixão lacrado, lá se foi mais um corpo, a sete palmos abaixo
de um mesmo chão. Parece “grotesco” não?!.

Diante de tal situação, quando meus pés pretos sentiram um outro


chão, o chão da escola, minha corporeidade estava embebecida dos
ensinamentos inacabados do chão de casa, da revolta com a fome

619
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que dói, da miséria que gera violências, da negligência


governamental, da ganância dos poderosos, das alegrias em família
quando nada parecia prosperar e pela euforia em cada batalha
vencida no dia a dia. Trocando em miúdos, os processos que me
constituem no devir do (tras)formar-me, não podem ser analisados
de forma linear, pois, envolve um processo dialético e, tampouco,
devem ser observados unilateralmente pelo viés da formação
acadêmica, pois nos constituímos o que somos pela prática social.

A esse respeito, Freire destaca ser lamentável quando educadores,


ao falar de suas trajetórias no processo de constituição de suas
práxis educativas, deixam de lado a importância de sua presença
no mundo, e nesse sentido destaque que:

Não nasci, porém, marcado para ser um professor assim.


Vim me tornando desta forma no corpo das tramas, na
reflexão sobre a ação, na observação atenta a outras práticas
ou à prática de outros sujeitos[...] Ninguém nasce feito.
Vamos nos fazendo pouco a pouco na prática social de que
tomamos parte (FREIRE, 2015, p. 102-103).

Nesse contexto a partir de minha prática e interação num universo


social relativamente “grotesco”, voltei meu olhar para a escola… o
chão da escola e, de forma enviesada e crítica, passei não somente
a considerar, mas também a perceber que sempre estive envolta
direta ou indiretamente nas lutas e disputas que envolvem a esfera
educacional em que grandes setores econômicos insistem em ditar
as regras de um jogo, na errônea ilusão de que as cartas estejam
marcadas, resilientes, resiginadas. Sem titubear a essa lógica
dizemos não, pois lutaremos pelos nossos chãos.

Como a palavra é sempre viva, é arena e é chão, a vida continua a


girar e, para todo pensamento hegemônico, existe um contra
hegemônico. Por isso, trazer um pouco sobre mim, sobre os chãos
que percorri, é também trazer um pouco de nós (dos outros) que se

620
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

entrelaçam na alteridade de singularidades e pluralidades,


gerando um ato responsivo de resistência, transgressão e
existência. Com efeito, não à toa, Bakhtin aponta que uma vivência
somente se torna um dado positivo, na relação com o outro: “Na
vida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos de outro, sempre
regressamos a nós mesmos” (BAKHTIN, 1997, p.37), para os chãos
de onde viemos.

CONSIDERAÇÕES (INCONCLUSAS)

As considerações finais são inconclusas porque compreendendo


que a reflexão levantada não se encerra aqui, antes porém, um texto
implica na possibilidade de um novo recomeço num contínuo
processo de refratar e refletir na realidade dos sujeitos. Nesse
processo de constituição identitária, os chãos que percorremos
incidem sobre nossa atuação presente e nos projeto a possíveis
caminhos de futuro, pois, o que somos hoje é a configuração de
nossas experiências vivenciadas, em uma vida verdadeiramente
vivida.

Tornamo-nos ator e autor de nossa existência, porém, esse


movimento se dá na relação com o outro, e sofre influências de uma
conjuntura cultural e social, em aspectos micro e macros e, assim,
vamos nos constituindo, nos (trans)formando, pouco a pouco na
prática social de que tomamos parte no grotesco de nosso tempo,
na certeza do inacabamento e de que é preciso resistir e existir. Por
isso, é possível afirmar que “[...] meu caminho não sou eu, é o
outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro
estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada” (LISPECTOR,
2021 p. 75), eis o meu chão de (trans)formação.

REFERÊNCIAS

621
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Para uma filosofia do ato


responsável. 2.ed. São Paulo: Pedro e João, 2012.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Marxismo e filosofia da
linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. 2. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
CASTRO, Alexandre de Carvalho; PORTUGAL, Francisco Teixeira;
JACÓ-VILELA. Proposição bakhtiniana para análise da produção em
psicologia. Psicologia em Estudo. 2011, v. 16, n. 1, pp. 91-99.
Disponível
em:https://www.scielo.br/j/pe/a/FHchs93Xq4Rb9KGK9cLsdqQ/?la
ng=pt. Acesso em 15 de nov. 2021
FREIRE, Paulo. Política e Educação. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra,
2015.
LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a viver. org, Pedro Karp Vazquez.
1 .ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2021.
PASSEGI, Maria da Conceição. ABRAHÃO. Maria Helena Menna
Barreto. MOMBERGER, Christine Delory. Da militância contra o
apagamento do sujeito à inquietude da exposição permanente de
si. In: Dimensões epistemológicas e metodológicas da pesquisa
(auto)biográfica. Natal: EDUFRN; Porto Alegre: EDIPUCRS;
Salvador: EDUNEB, 2012.
SANTOS, Gisele da Silva; SCHERMA, Camila Caracelli. A BNCC e
os jogos ideológicos na educação. In:Caderno de textos: VII CÍRCULO
– Rodas de Conversa Bakhtiniana: fronteiras. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2018. 1305 p. TIHANOV, Galin. A importância do
grotesco. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso [online].
2012, v. 7, n. 2, pp. 166-180. Disponível em: . Epub 11 Dez 2012. ISSN
2176-4573. Acesso em 07 de set. de 2021.

622
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Do cotejo do grotesco bakhtiniano na aula de Língua


Portuguesa: novas vozes, mesmos ambientes e horizontes de
possibilidades

Maria Izabel de Bortoli Hentz


Universidade Federal de Santa Catarina (profª aposentada)
mihentz@gmail.com

Fabiana Giovani
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
fabiana.giovani@ufsc.br

O cotejo como ponto de partida

Não é nenhuma novidade nos depararmos com materiais como os


disponibilizados no portal Escrevendo o Futuro[1] tematizando o
ensino de um determinado gênero como a charge e aspectos
derivados desta como humor e crítica e constituindo-se em
referência para a prática pedagógica de professores de Língua
Portuguesa, a exemplo da Aula 55 - Charge - parte 2,
disponibilizada no portal Aulaparaná[2], e tomada como objeto de
nossa reflexão neste texto. O fato é que como professoras, em
trabalho ativo na formação inicial e continuada de professores,
sabemos o quanto a reflexão bakhtiniana sobre gêneros do discurso
tem acompanhado o processo de ensino e aprendizagem da língua
portuguesa fazendo parte não só do discurso de quem está na
prática, mas tendo os documentos oficiais orientadores do ensino
de língua (PCN, BNCC) como nascedouro e ‘propagador’ das

623
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

novas ideias. Ao examinarmos o material a que nos referimos,


encontramos a seguinte charge:

Trata-se, de acordo com o material, de uma charge do artista


Honoré Daumier, publicada na França, em 1831, na qual
representava o rei Luis Filipe I. Chamada de Gargântua[3], a
ilustração ridicularizava o rei, representando-o como um homem
enorme, que engolia todo o ouro, decorrente do pagamento de
impostos pelos seus súditos que saía pelos seus excrementos sob a
forma de privilégios a homens de negócios. A partir desta
exposição, o material orienta para que o estudante do 1° ano do
Ensino Médio compreenda que:

624
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“A charge é um gênero por meio do qual o autor expressa sua visão


sobre situações cotidianas, fazendo uma crítica política ou social.
Para isso, emprega o humor e a sátira. As charges têm como tema
acontecimentos atuais de interesse público. Elas podem ou não
conter legenda e balão de fala. Outra característica importante do
gênero é o contexto de produção. O sentido proposto por uma
charge trará resultado se o interlocutor souber algo sobre o assunto”.
Notamos que a orientação do material, sob a égide dos documentos
oficiais, aborda o importante constructo bakhtiniano “gêneros do
discurso” fazendo menção, como podemos observar na citação, às
características relativamente estáveis inerentes a todo e qualquer
gênero, no que se refere ao conteúdo temático, estrutura
composicional e estilo. Além disso, há um direcionamento para o
contexto de produção do texto e indicação do interlocutor.
Curiosamente, a reflexão de cunho bakhtiniano se limita a
conceituar o gênero, sem ao menos explorar os sentidos do texto
representativo deste gênero que, no caso, é apresentado apenas
para ilustrar a origem da charge. Na sequência do material, não se
faz mais referência à charge inicial e o que se traz é uma atividade
em que se pede para encontrar o humor de outra charge:

625
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Na interação proposta pela atividade, o objetivo é chamar a atenção


para o fato de o humor ser causado pela polissemia da palavra
‘parto’, destacando a sua classe gramatical e não a sua relação com
o mundo que, na verdade, é o que vai provocar o efeito de humor.
Segundo o material “as palavras em destaque possuem a função de
adjetivo na primeira fala e de substantivo na segunda. Observe que
não apenas se modifica a função, mas o sentido da palavra”. Outras
atividades são apresentadas e até ao final da proposta não há
nenhuma outra remissão à charge de abertura, o que consideramos
um desperdício e até um prejuízo para os alunos de ensino médio.
Partindo desta nossa avaliação é que defenderemos aqui as
possibilidades do cotejo do conceito de grotesco da obra
bakhtiniana nas aulas de língua portuguesa, particularmente para
o trabalho com determinados gêneros do discurso como é o caso da
charge, mas também se poderia pensar nos memes, além dos
gêneros da esfera literária. Para tal reflexão, usaremos como pano
de fundo a proposta de material apresentada, especialmente,
porque é impossível olhar/conhecer/analisar a primeira charge
apresentada, tanto no portal Escrevendo o Futuro como na
proposta de atividades anteriormente referida, sem relacioná-la ao
grotesco em Bakhtin.

O cotejo do grotesco em Bakhtin

O grotesco bakhtiniano, reflexão ligada ao corpo, está presente no


livro “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais”, obra em que Bakhtin mergulha na
produção estética de François Rabelais e analisa o protagonismo da
cultura popular. O pensador russo destaca a genialidade de
Rabelais ao mostrar em suas obras que os limites do
vocabulário familiar e grosseiro na cultura popular da Idade
Média só podem ser apreendidos nos festejos carnavalescos,
onde a linguagem séria da ordem católica e feudal instituída

626
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pode ser rompida em detrimento de uma forma cômica, reno


vadora. Assim, “grosserias, palavras injuriosas, blasfêmias,
juramentos, impregnadas pela visão carnavalesca do mundo,
dirigidos não somente uns aos outros, mas também às
divindades, transcendiam o caráter puramente degradativo
e adquiriam sentido regenerador e renovador da vida
(DUARTE, 2008, p. 03)”.
Bakhtin reconhece que as características da cultura popular no
contexto tematizado por Rabelais estão permeadas pelo princípio
de rebaixamento da vida material e corporal. Em outras palavras,
o rebaixamento a que nos referimos trata-se da transferência de
tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato para o plano
material e corporal (do corpo e da terra na sua indissolúvel
unidade). De caráter ambivalente (BAKHTIN, 2008, p. 268), o
grotesco implica na compreensão de que é possível unir numa
única imagem os pólos positivo e negativo (Ibid, p. 269). Voltando-
se para a obra rabelesiana, compreendemos que o princípio do riso
como humor sofre uma transformação muito importante, uma vez
que o mesmo carrega em seu bojo a ironia, o sarcasmo e até mesmo
uma crítica social, além da alegria.
Desse modo, a obra Gargântua e Pantagruel[5] demanda, por meio
do estudo de Bakhtin, uma nova forma de compreensão da
literatura, uma vez que Rabelais rompe com o poder oficial que ela
representa. Abrem-se as cortinas da vida para o não oficial, para o
riso ambivalente já que este destrói as relações de poder e instaura
uma nova vida, a vida da cultura popular, livre e solta do cotidiano
(GEGe, 2010, p. 68). Temos então o corpo grotesco - por meio da
interação entre o baixo e alto corporal - fazendo renascer a alegria.
“Se antes havia uma separação clara entre o oficial e o não oficial,
entre o discurso que legitima o poder feudal e religioso da seriedade
universal e o discurso que luta pela sua existência através das festas
e da alegria popular; agora, com Rabelais, parece-nos que essa
separação deixa de existir. A literatura que sempre foi considerada

627
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

um discurso oficial, que legitima a ideologia que está no poder,


agora traz o discurso popular para dentro do discurso oficial”
(GEGe, 2010, p. 68).
Além dessa relação entre o discurso oficial e popular, o corpo
grotesco para Bakhtin está sempre em movimento. Isso quer dizer
que ele jamais está pronto nem acabado: está sempre em estado de
construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo, além de
absorver o mundo e ser absorvido por ele (BAKHTIN, 2008, p. 277).
Por fim, outra característica do grotesco em Bakhtin que pensamos
ser importante destacar é a questão da boca. Esta tem um dos
papéis mais importantes no corpo grotesco, uma vez que ela
devora o mundo (p. 277). O autor argumenta que todas as
excrescências e orifícios caracterizam-se pelo fato de serem o lugar
onde se ultrapassam as fronteiras entre dois corpos e entre o corpo
e o mundo. Desse modo, os principais acontecimentos que afetam
o corpo grotesco estão ligados aos atos corporais como, por
exemplo, os de comer, de beber e a outras excreções. Nas palavras
do autor, estas relações do começo e do fim da vida são
indissoluvelmente imbricadas (p, 277).

O cotejo do grotesco na aula de Língua Portuguesa


Abrimos este subitem afirmando que nossa intenção aqui não é
fazer uma crítica ao trabalho proposto pelo material do portal
Aulaparaná no sentido de apontar faltas e/ou falhas. A partir de
nossa compreensão do grotesco em Bakhtin, vamos aqui refletir
sobre outros horizontes de possibilidades de trabalho com a
linguagem de modo a ampliar a compreensão da relação entre
língua e literatura e destas com o mundo.
A compreensão do grotesco bakhtiniano nos leva a considerar que
não é possível olhar para a charge de abertura da proposta de
atividade do material da aula 55 sem estabelecer uma relação
dialógica com Rabelais e da história dos seis peregrinos que o seu
personagem herói Gargantua comeu junto com a sua salada, e que

628
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

foram, nas palavras de Bakhtin (p. 272) miraculosamente salvos.


Bakhtin afirma que esse episódio é uma sátira das peregrinações e
da fé na virtude milagrosa das relíquias que protegem das doenças
(no caso, a peste).
Na charge em pauta, temos a criação de outro Gargântua também
comendo os súditos - os impostos sobre os frutos do trabalho do
povo eram acumulados em cestos e esvaziados na bocarra do rei
Luís Filipe - que saem vivos nos excrementos sob a forma de
privilégios e monopólios distribuídos a homens de negócios, cujos
interesses eram defendidos pelos ministros do rei. Pode-se
entender que o grotesco da imagem da charge está representado
nas fronteiras e limites que ultrapassam o próprio corpo, no caso
do rei, o que sugere que fronteiras e limites outros - das relações de
poder, por exemplo - podem/precisam ser ultrapassados, daí a
crítica própria a este gênero do discurso.
A abertura para o cotejo da charge com a obra de Rabelais seria
uma forma de o professor trazer para a sua aula a
indissociabilidade entre a língua e a literatura e mostrar que esta
pode subverter a ordem estabelecida e, a partir disso, instaurar um
novo modo de olhar para a vida real. Em outras palavras, a charge
do material seria uma entrada para o diálogo com a literatura de
Rabelais e levaria para a reflexão sobre questões envolvendo o
discurso oficial em diálogo com o discurso popular. Um
questionamento direcionador seria como relacionar este
acontecimento grotesco com o que vivenciamos em nosso
cotidiano/realidade?
O material menciona que há na charge apresentada muitos
elementos passíveis de análise que mostram a crítica social da
época. Cinco imagens são apresentadas para representar esses
elementos em detalhe, mas elas não são exploradas na atividade.
Tomando o grotesco para enriquecer a discussão, o encontramos
marcado na charge por meio da ambivalência entre o alto e o baixo
corporal, fato que provoca o riso e ao mesmo tempo a crítica,

629
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

trazendo o corpo em movimento que fica evidente, na charge,


quando Gargântua come os súditos - representados nos cestos
cheios de moedas - e estes saem vivos em seus excrementos sob a
forma de privilégios e monopólios para poucos.
Temos, então, a boca aberta do personagem que conduz ao baixo,
aos infernos corporais (come e defeca). A imagem da absorção e da
deglutição, imagem ambivalente da morte e da destruição é
quebrada diante do fato de os engolidos renascerem sob outra
forma: a de benefícios e vantagens para quem não necessita deles.
Seria interessante questionarmos, por exemplo: i) Qual é a condição
social de quem paga os impostos e de quem recebe o retorno desse
pagamento? ii) Quem paga os impostos é quem recebe o retorno
em forma de benefícios? iii) Que ato de crítica temos representada
nessa charge? iv) A partir disso, como e o que trazer desta reflexão
para a atualidade?
No caso da segunda charge, o trabalho volta-se apenas para a
polissemia da palavra ‘parto’ pela função gramatical que ela
assume em cada um dos dizeres representados na situação de
interação que envolve um cidadão que procura o serviço público
de saúde de sua cidade. A exemplo das atividades propostas para
o trabalho com a charge ‘Gargântua’, nas atividades propostas para
o trabalho com esta charge não se estabelece a relação dos
diferentes sentidos da palavra ‘parto’ com a vida real.
Na referência ao ‘parto’, também temos um jogo com o grotesco:
dar à luz (como algo sagrado, sublime), mas representado em um
movimento doloroso, difícil. Tem-se aqui a ambivalência de que
fala Bakhtin: mesmo com dor e dificuldade - polo negativo -
ultrapassa-se a fronteira do próprio corpo para gerar nova vida -
polo positivo - indissoluvelmente imbricados em um único e
mesmo movimento. Os elementos do grotesco como o baixo
corporal, a cópula, a gravidez e o parto estão presentes nessa
charge.

630
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco bakhtiniano também nos possibilita pensar sobre


horizontes outros para a abordagem desse texto no ensino de
Língua Portuguesa. Se o parto significa dificuldade, o que se quer
dizer quando se estabelece relação desse sentido com a busca pelo
serviço público de saúde, direito constitucional de todo cidadão
brasileiro, ou seja, por que é difícil ter acesso à saúde pública? A
quem interessa desqualificar o serviço público de saúde? Em que
medida aqueles que necessitam desse serviço e aqueles
responsáveis por realizá-lo, ambos representantes das classes
populares, assumem o discurso do poder?
Mas o parto também significa ultrapassar limites e fronteiras do
corpo para o nascer de uma nova vida, o polo positivo do grotesco.
Essa compreensão poderia provocar uma discussão na direção do
rompimento com o estabelecido: se os governantes não assumem
sua responsabilidade na oferta de um serviço que é direito
constitucional de todo cidadão brasileiro, a solução é acabar com
ele? Esta situação pode ser diferente? O cidadão e o servidor,
representantes do povo, podem agir na direção de contribuírem
para ultrapassar os limites e as fronteiras da situação social
representada na charge?
Considerando os elementos do grotesco, o efeito de humor se
transforma em ironia e em crítica ao discurso de quem detém o
poder e que, muitas vezes, também é assumido por quem
representa a outra ponta das relações de força na sociedade. E o
trabalho com os textos nas aulas de Língua Portuguesa pode
contribuir significativamente para a compreensão da linguagem e
de sua relação com a vida real.

O cotejo que se abre


O objetivo que tivemos com esta reflexão foi o de ampliar
o trabalho com a charge proposto na aula 55, disponibilizada no
portal Aulaparaná. Para isso, tentamos explorar o grotesco

631
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

bakhtiniano, uma vez que o pensamento do autor, no que se refere


à linguagem, se limita a trazer questões relativas aos gêneros do
discurso para pensar a prática escolar.
Esperamos que o nosso cotejo dialogue com outras vozes -
especialmente as dos professores - para que nos mesmos
ambientes - as aulas de LP - seja inspiração para horizontes de
possibilidades de trazer o grotesco para a sala de aula de modo a
instaurar novas abordagens de trabalho com a linguagem.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais.
Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Br
asília: Editora Universidade de Brasília, 2008, p. 129.
DUARTE, A. L. B. Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: revisitando um Clássico. Fênix – Revista de
História e Estudos Culturais Abril/ Maio/ Junho de 2008 Vol.
5 Ano V nº 2. ISSN: 1807-6971
Disponível em: www.revistafenix.pro.br
GEGe. Lendo o Cultura popular na Idade Média. In: Palavras e
Contrapalavras: conversando sobre os trabalhos de Bakhtin. São
Carlos: Pedro & João editores, 2010.

Notas
O Portal Escrevendo o Futuro reúne as ações do Programa
[1]

Escrevendo o Futuro, dentre as quais se destacam diversas


modalidades de formação presencial e a distância para educadores
e a Olimpíada de Língua Portuguesa. De acordo com o site, trata-
se de um espaço de formação e de interação no qual “Educadores
de todo o país envolvidos no ensino da Língua Portuguesa
encontram [...] subsídios para aprimorar o conhecimento, inovar

632
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

suas estratégias de ensino, inspirar-se com outras experiências e


compartilhar sucessos e desafios vivenciados na prática”.
A aula completa que referenciamos é a de número 55 encontrada
[2]

no
endereço http://www.aulaparana.pr.gov.br/lingua_portuanoguesa
_1. Pertence, portanto, a um material disponibilizado para o estado
do Paraná para ser utilizado nas aulas online no período de
pandemia.
A charge causou a Honoré seis meses de prisão, mas em
[3]

compensação a sua fama se alastrou depois do ocorrido.


Publicado em 1965 este estudo se tornou referência para os
[4]

estudos literários, principalmente àqueles que se dedicam à


história do riso e da cultura popular.
O texto é escrito numa veia humorosa, extravagante e satírica, e
[5]

apresenta muita crueza, humor negro e violência (listas de insultos


explícitos ou vulgares preenchem vários capítulos). Os censores da
Universidade de Sorbonne tacharam a obra de obscena.

633
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Do Piscinão para o mundo: a hodiernidade do grotesco


bakhtiniano

Thaís de Souza Lopes Silveira


Universidade Federal do Rio de Janeiro
thais.silveira@letras.ufrj.br

Para Mikhail Bakhtin, em seu livro Cultura Popular na Idade Média e


no Renascimento: o contexto de François Rebelais, “[a] imagem grotesca
caracteriza um fenômeno em estado de transformação, de
metamorfose ainda incompleta, no estágio de morte e do
nascimento, do crescimento e da evolução” (BAHKTIN, 1987, p.
19). O autor destaca a ambivalência do grotesco, um grotesco que
abarca dois polos e, não somente, um polo negativo, que é “o antigo
e o novo, o que morre e o que nasce, o princípio e o fim da
metamorfose” (BAHKTIN, 1987, p. 19), que é revolução e
renovação. Tomando como ponto de partida a leitura de Bakhtin,
me proponho pensar o grotesco nos dias de hoje a partir do clipe,
lançado em abril de 2021, da cantora Anitta: Girl from Rio. Para tal,
proponho passarmos brevemente pelas fotografias de Júlio
Bittencourt que foram uma das inspirações para o famoso clipe da
cantora. Comecemos, então, por Ramos.
I. Ramos – Uma inspiração
Em 2011, o fotógrafo brasileiro Julio Bittencourt expõe na 1500
Gallery, em Nova York, uma série de fotografias sob o título
de Ramos. As fotografias de brasileiros apreciando um dia de sol no
famoso Piscinão de Ramos (nome pelo qual o lugar ficou
conhecido) ganham o mundo chegando a uma das cidades mais

634
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

famosas e de destaque da atualidade. Contudo, o recorte feito pelas


lentes de Bittencourt está longe das imagens paradisíacas de um
Brasil da Zona Sul. Aqui temos o foco em uma área de lazer pública
localizada na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, no subúrbio,
em um espaço circundado por quinze favelas. As imagens desses
cariocas desconhecidos falam por si só e trazem um momento de
lazer de uma classe popular que representa a população majoritária
do Rio de Janeiro. E se a cidade tem uma face, então seriam essas
faces, se tem um corpo, são esses corpos.

As imagens do Rio de Janeiro cristalizadas por Bittencourt levam


para fora do Brasil uma outra face da cidade maravilhosa, dando
visibilidade a um subúrbio que não pode ser encontrado em cartões
postais. Em seus recortes muitas vezes encontramos o foco voltado
para o baixo corporal o que já nos conduz a Bakhtin se lembrarmos
que “os rebaixamentos grotescos sempre fizeram alusão ao ‘baixo’
corporal propriamente dito, à zona dos órgãos genitais”
(BAKHTIN, 1987, p. 126). Esses corpos reais, negros, diferentes em
tantos aspectos do que a indústria da moda impõe como o ideal de
beleza, chegam aos espectadores para revolucionar a ideia de
brasilidade vendida para o exterior. Aqui, vemos a desorganização

635
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de um espaço público de lazer, o encontro de corpos, a pluralidade,


a comida, a cultura, o erotismo, a alegria.

Em uma das imagens registradas por Julio B. no Piscinão nos


deparamos com um prato de comida nas pernas de uma mulher,
sendo o ato de comer e beber “uma das manifestações mais
importantes da vida do corpo grotesco” (BAKHTIN, 1987, p.
245). Além disso, nesse caso específico, o prato de comida
encontra-se na posição da genitália feminina, nos levando a refletir
sobre a relação corpo, sexo, alimento, vida. A obra de Bittencourt,
assim como o clipe de Anitta, traz imagens de um Rio ao qual
muitos julgariam como degradante, mas de uma forma
revolucionária em que a felicidade da comunidade em um
momento de liberdade reflete-se através das fotografias e do clipe.
“Fotografar é atribuir importância” (SONTAG, 2004, p.41). E a
importância atribuída ao piscinão, à Maré, ao subúrbio pelo
fotógrafo é retomada de uma forma muito inteligente e atual por
Anitta e pelo diretor criativo Giovanni Bianco.

636
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

II. Girl from Rio


Em abril de 2021, dez anos após a exposição do trabalho de Julio
Bittencourt em Nova Iorque, a cantora Anitta lança seu mais novo
clipe: Girl from Rio. A canção que conta com um sample da famosa
música Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, já
traz uma referência à canção desde seu título, lembrando que a
versão em inglês da bossa conta com o título The girl from Ipanema.
E é a partir dos títulos das duas músicas que começamos a notar as
diferenças entre elas – saímos de um bairro da Zona Sul e agora
temos um olhar mais amplo e geral da cidade do Rio, da garota do
Rio e não de Ipanema. O que Anitta quer mostrar fica claro na letra
da música logo na primeira estrofe após o refrão. Anitta canta: “Let
me tell you about e different Rio/ the one I’m from/ but not the one that
you know/ The one you meet when you don’t have no Real”.
O espectador depara-se com um vídeo clipe divido em dois
momentos: um que se passa na década de 1960 na Zona Sul da
cidade, enquanto o segundo momento se passa no Piscinão de
Ramos. A forma de divisão leva o espectador a um Rio artificial,
em que a cantora parece muito mais estar posando e atuando, um
Rio de Janeiro maquiado, posado, organizado, ou seja: criado, algo

637
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que foge à pluralidade da cidade de mais de 6 milhões de


habitantes. Enquanto as cenas gravadas na praia trazem uma
dinâmica muito maior com corpos seminus de pessoas reais, com
belezas naturais e empoderadas da cidade maravilhosa.
Os hábitos retratados como os da comida (a farofa e o churrasco) e
do “dourar” os pelos com água oxigenada são hábitos vistos como
característicos das classes mais baixas, dos suburbanos e
“subalternos”. É impossível ver o clipe e não lembrar das
fotografias de Bittencourt, já que estão presentes o baixo corporal
(que tem foco diversas vezes no vídeo clipe), a comida, os corpos
normais e reais, fugindo de um ideal de beleza imposto pela
indústria da moda. No refrão de sua música, a cantora enfatiza:
“Hot girls Where I’m from we don’t look like models.” Anitta aposta no
empoderamento de corpos negros, reais, com curvas, gingado e
alegria, revolucionando a antiga imagem da modelo Heloísa
Eneida Paes Pinto (a famosa garota que inspirou a canção de Jobim
de Vinícius de Moraes). A aposta é no real contrapondo o artificial,
e a cantora mostra esse Rio suburbano, da favela, desconhecido.
A divisão está presente também no ritmo. A Bossa Nova que nasce
na Zona Sul é substituída pelo funk carioca, ritmo oriundo dos
bailes, das comunidades do Rio de Janeiro. Em Batidão: a história do
funk, Silvio Essinger aponta que se há um ritmo que “está mais
próximo das experiências dos cariocas residentes e circulantes, é o
do funk. Neurótico, melody, new funk, comédia, proibidão ou
erótico, com é conhecido em suas variações” (ESSINGER, 2005,
p.10). Passamos então de uma imagem engessada do estereótipo da
modelo que desfila na praia de Ipanema em um ritmo que pouco
se dança, para o funk, para a praia da Maré (outro nome pelo qual
o Piscinão é conhecido), para as curvas de mulheres de corpos
naturais.
O grotesco em Girl from Rio chega ao espectador através das
imagens, do ritmo, das palavras. O funk que pede o requebrado e
traz em suas letras o erotismo é o ritmo que embala essa nova

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

versão das imagens das garotas do Rio, do povo do Rio. Esse Rio,
muitas vezes excluído é a cidade do requebrado, do batidão, do
“descer até o chão”, do “sentar”, do “bumbum”, do sexo, da
revolução. Um Rio de Janeiro revolucionário e cheio de vida, de
corpos empoderados e seminus na praia, sem vergonha de suas
curvas acentuadas, de seu corpo, de sua cultura, de suas favelas, de
seu povo. É a cidade em sua face grotesca mais revolucionária e
renovadora que se contrapõe a uma visão engessada, irreal e
excludente. São os horizontes se abrindo para essa cidade
maravilhosa que também pertence à Rocinha, à Maré, ao subúrbio,
a todos os corpos que são a face do Rio de Janeiro.
Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: O contexto de François Rabelais. Trad.: Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1987.
ESSINGER, Silvio. Batidão: uma história do funk. Rio de Janeiro:
Record, 2005.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad.: Rubens Figueiredo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Dos meus encontros com Gabriel e os ônibus que carregam o


mundo

BRUNO MUNIZ FIGUEIREDO COSTA


UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA/DOCENTE
brunomunizedu@gmail.com

A sala de atividades tinha grades nas janelas. Pelas frestas, era


possível ver o pátio atrás do prédio principal da escola, onde havia
uma frondosa jabuticabeira em um terreno arenoso. Ao fundo, era
possível ver um muro rebaixado e a principal avenida do bairro.
Gabriel capturou o meu olhar ao primeiro instante. Era curiosa a
forma como ele lidava com aquela janela. Não era incomum que ele
deixasse de se envolver nas atividades com as outras crianças para
ficar olhando pelas frestas.
Nas brincadeiras com as outras crianças, ele era pirata, piloto de
avião e jogador de futebol. Viajava para a praia e observava as
nuvens, a chuva e o sol. Em alguns momentos, o menino deixava a
brincadeira, colocava o brinquedo de lado e ia para a janela olhar
para o lado de fora.
A professora chamava para fazer tarefa. Dizia que era tempo de
aprender a ler e a escrever. E também de aprender os números.
Falava da importância que esses saberes teriam para toda a sua
vida. Gabriel participava e realizava tudo o que lhe era solicitado.
Mas não era incomum que, após realizada a atividade, o menino
corresse para a janela novamente.

640
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Às vezes, a professora chegava a chamar sua atenção por ficar


muito tempo na janela. E pedia para o menino voltar para a mesa
de estudos. Sob protesto, Gabriel saía da janela atendendo à
solicitação.
Em meus anseios de pesquisador, compartilhava o cotidiano com
as crianças na tentativa de aprender com elas sobre suas vivências
naquele espaço. Em um de nossos diálogos, perguntei a Gabriel o
que ele mais gostava de fazer ali. O menino logo respondeu:
Gabriel: É também eu gosto de... de escrever, de... (pausa e
expiração em sinal de enfado). Ah, eu gosto é de saber os, enxergar
os ônibus de longe né? Porque eu sei.
Bruno: De saber enxergar o quê? Os ônibus?
Gabriel: De longe.
Bruno: Daqui você consegue ver os ônibus lá fora?
Gabriel: Ah não! Daqui, daqui dá... algumas vezes de ver de longe,
porque quando que eu fico fora da escola, aí eu vejo os ônibus.
Nesse momento, Gabriel me concedia passagem para o que ele
fazia na janela todos os dias. Enxergar os ônibus de longe, lá fora,
através da jabuticabeira, na avenida que passa lá nos fundos do
prédio, atrás do muro. Em nossos diálogos, ele dizia:
Gabriel: Eu acho que o dia 02 meu pai e minha mãe, a gente vai...
vai... ir lá no parque 4° GAC45. Fica... lá em Nova Era (bairro de
Juiz de Fora), é longe pra caramba! Então a gente tem que pegar só
dois ônibus. Tem que pegar o... os ônibus de São Pedro e ir lá pra
cidade, pegar um ônibus azul e ir lá pro 4° GAC. Pegar de novo o
ônibus azul e depois voltar e pegar o (ônibus) 40. Porque o...
(ônibus) 36, ele não tem... no sábado e no domingo.
Bruno: Humm! E como cê sabe isso tudo de ônibus?
Gabriel: É porque... meu avô falou que o 36, ele num passa sábado
e domingo. E eu também sei os números dos ônibus, porque o... o

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Amazonas é..., quer dizer, o Amazonas é 610, o Monte Castelo é


612, 601, 600 e zero, o Jardim Cachoeira é 636 e 601 também, e...
Garagem é 005, esses ônibus é 001, 002, 003, 004, 005, 006, 007. Né?
O Linhares é 420, o...
João: É, tudo, tudo!
Gabriel: É... tem uns que eu não lembro né?
Bruno: O que traz pro bairro é qual?
Gabriel: O que traz pro bairro?
Bruno: Pra esse... pro seu bairro?
Gabriel: Ah! Pra ir pro meu bairro é só pegar os ônibus verdes.
Bruno: Os ônibus verdes deixam no seu bairro?
Gabriel: É... o meu bairro é Santana, né?
Bruno: Uhum!
Gabriel: Que é..., que o meu... meu ônibus é só 40 e 36, é eles que
são meus ônibus, o 33 ele também é meu, né? Só que o 33 desce ali,
ali na... na nossa rua aqui.
A escola desenvolveu um projeto de ensino que envolvia as regiões
geográficas brasileiras. Com um mapa nas mãos, a professora
apresentava o território brasileiro para as crianças, sua organização
regional e estadual. No diálogo, Gabriel traz os letreiros dos ônibus
novamente:
Gabriel: (…). Eu conheço o Rio de Janeiro, porque um dia eu fui
com o meu avô para o Retiro (bairro na saída da cidade para a BR-
040, que liga Juiz de Fora ao Rio de Janeiro) e vi uma placa com
duas setas: Matias Barbosa e o Rio de Janeiro fica pra lá (indicando
com um aceno de mãos).
Um dia, após a leitura de uma obra de literatura infantil, as crianças
foram solicitadas a desenhar a sua coleção de lugares. Durante a
atividade, converso com Gabriel sobre o seu desenho:

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Bruno: Gabriel, fale pra mim sobre o que você desenhou (coleção
de lugares).
Gabriel: É um desenho que eu fui lá em Benfica (bairro distante da
escola).
Bruno: Ah é? E onde fica Benfica?
Gabriel: Benfica lá pro... só pegar o ônibus azul. Só que eu fiz aqui
Nova Benfica.
Bruno: E você foi a Benfica com quem?
Gabriel: Com meu pai e minha mãe. Foi lá no... no dia dos Finados.
Bruno: E aí é isso que você tá desenhando aí?
Gabriel: (responde afirmativamente com a cabeça).
Bruno: Tá certo. Você gosta de ir a Nova Benfica?
Gabriel: Gosto.
Bruno: É um lugar que tá na sua coleção...
A janela era o lugar onde Gabriel rompia com o instituído pela
escola. Ali, ele experimentava os conteúdos escolares no mundo,
circulando pelos letreiros dos ônibus. E criava a partir dali um novo
movimento instituinte. Reinaugurava o meu mundo todos os dias...

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

E daí? Poeminha do asco

Hélio Márcio Pajeú


UFPE
helio.pajeu@ufpe.br

SEU BOSTA
Hélio Pajeú
E agora, seu Bosta?
O vídeo vazou
A luz acendeu
O patriota sumiu
O peido esfriou
E agora, seu Bosta?
E agora, você?
Você que é sem cérebro
Que quer matar os outros?
Que nunca lê verso
Que odeia, protesta?
E agora, seu Bosta?
Está sem resposta
Está sem recurso
Pode estar com o vírus, sozinho
Não adianta beber
Não adianta fumar
Mas se arrepender, você ainda pode

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Seu 17 afundou
Sua arminha não veio
O dólar a um real não veio
O kit gay não veio
Não veio a soberania
E tudo desmoronou
E tudo ruiu
E tudo, morgou
E agora, seu Bosta?
E agora, seu Bosta?
Não acabou a mamata
Trocou gato por lebre
Sua raiva e seu jejum
Sua amarga hemorroida
Vai sobrar pro seu coro
Sua camisa amarela
Sua incoerência
Seu ódio, e agora?
Com a bíblia na mão
Quer abrir o céu
Não existe céu
Quer fugir pra Disney
Mas a Disney fechou
Quer ir pra rua
A rua não há mais
Seu Bosta, e agora?
Se você gritasse na sua janela
Se você batesse na sua panela
Se você não dançasse
A dancinha do mito
Se você se arrependesse
Mas você não se arrepende
Você é burro, seu Bosta.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Perdido sem Moro


Qual boi-fora-do-pasto
Sem uma fonte decente
Pra se informar
Sem seu herói, que pode ser preso
Querendo fugir você não sai ileso
Você muuuuuuuuuge, seu Bosta.
Seu Bosta, vai pra onde?

Sátira de Hélio Pajeú inspirada no poema José, de Carlos


Drummond de Andrade.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

É tempo de ouvir as vozes grotescas: discussão sobre as


produções de mulheres negras

Alessandra Barbosa Adão


Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) - PPGER
aleadao@outlook.com

Esse texto tem como intento fazer circular a fala e a escrita do que
mulheres negras vêm produzindo/discutindo, em relação à
Literatura e a Escrevivência, conceito gestado por Conceição
Evaristo. É preciso alertar que parte desse texto integra a
dissertação da autora, intitulada “(Re)Contando Histórias
Capixabas: A Escrevivência como ponte para a escrita feminina e
negra”, a ser defendida no Programa de Pós-graduação em Ensino
e Relações Étnico-Raciais(PPGER), da Universidade Federal do Sul
da Bahia (UFSB/ Campus Jorge Amado /Itabuna/ Bahia).
Diante da atual conjuntura do país, que o fascismo, racismo e o
extremismo político se mostram mais acentuado, em que os corpos
negros, indígenas e dissidentes são violados e violentados no
cotidiano, faz se necessário evidenciar e (re)conhecer o que esses
corpos grotescos vêm produzindo. E, antes que digam que o
contexto pandêmico acentuou essas desigualdades e
perversidades, alerto que o Atlas da Violência, desde sua criação
em 2016, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e
colaboração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP),
aponta que jovens, homens e mulheres negras tem sido as
principais vítimas de feminicídio, homicídio e de outras violências,
ao longo de décadas, e pode-se dizer: séculos.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

De tal modo, Joice Berth nos chama atenção para a gravidade


contra essa população, tendo esses referenciais como base, quando
menciona que “[...] houve um aumento de 30,7% no número de
mulheres assassinadas de 2007 a 2017, ano em que foram mortas 4.
936 mulheres (a maior quantidade desde 2007), ou seja, cerca de
catorze por dia.”1 (BERTH, 2020,s/n). Se a intenção é nos calar, e
isso já vem sendo feito há um certo tempo, a luta empreendida,
somando-se a nossa postura política, no campo acadêmico,
simbólico, discursivo e na vida é por (re) existência e resistência.
Nesse sentido, me apoio na produção intelectual de autores e
autoras negras, como, por exemplo, Djamila Ribeiro, Conceição
Evaristo, Sueli Carneiro e outras/os, e nos preceitos da
Escrevivência, para questionar e mostrar o que as mulheres negras,
estão discutindo/produzindo neste país desigual, racista, machista,
etc.
O (Des) Silenciamento de nossas vozes: a Escrevivência como
ponte para a escrita feminina e negra

A Escrevivência tem possibilitado tomar várias direções,


atravessando os caminhos literário, histórico, político,
emancipatório, ligado a oralidade e a tantos outros saberes. Vale
mencionar que entendemos a Escrevivência como um conceito, que
na sua feitura entrelaça “razão e emoção” concebendo
possibilidades de escreviver, distanciando-se da lógica que
preconiza que é apenas a branquitude² quem produz
conhecimento/razão, enquanto os negros, em particular as
mulheres são atribuídas a emoção. Nesse sentido, vislumbro nesta
acepção, a possibilidade de restituição da humanidade e de
autoridade do que a população negra produz.
De tal modo que, desde o processo de colonização, tanto razão e
emoção vem sendo postas em cheque, quando lhes foram
destituídas, tidas como ilegitima, incapazes e sendo aniquilada. E,
aqui faço um adendo para dialogar sobre o conceito de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

epistemicídio, cunhado por Boaventura Sousa Santos, e pelo o que


Sueli Carneiro nos apresenta em sua Tese de Doutorado “A
Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser”
(2005).
A autora na busca por entender a construção do “Outro”, sujeitos
racializados, na articulação com os dispositivos e o biopoder, e de
como estes privilegiam discursos e práticas, inclusive epistemicida,
nos atenta que as universidades brasileiras são um lócus para isso.
Assim, nesses espaços o epistemicídio ocorre “no dualismo do
discurso militante versus discurso acadêmico, através do qual o
pensamento do ativismo negro é desqualificado como fonte de
autoridade do saber sobre o negro, enquanto é legitimado o
discurso do branco sobre o negro.”(CARNEIRO,2005,p.60). Mas do
que isso, como Boaventura Sousa Santos menciona, no período
colonial decorre um processo violento, que
[…] o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão européia foi
também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque
tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas
de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas
sociais e povos estranhos. Mas o epistemicídio foi muito mais vasto
que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu
subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e
grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista ou,
durante boa parte do nosso século, a expansão comunista (neste
domínio tão moderno quanto a capitalista); e também porque
ocorreu tanto no espaço periférico, extra-europeu e extra-norte-
americano do sistema mundial, como no espaço central europeu e
norte-americano, contra os trabalhadores, os índios, os negros, as
mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas, sexuais).
(SANTOS, 1995, p. 328)
Dessa maneira, ao trazermos para o centro a escrita feminina e
negra confrontamos e resistimos ao epistemicídio, imposto desde o
período escravocrata, e me esforço para subverter a lógica mulher-

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

objeto para sujeito-mulher-sujeito possibilitando falar por nós


mesmas, e não mais pelos outros. Tomando a rédea das lutas e dos
direitos, em um primeiro momento na vida cotidiana e que logo se
expande para outras áreas, inclusive a escrita, a literatura, surge daí
o que Conceição Evaristo vai chamar de Escrevivência. A autora
enxerga e sente nesse movimento a potência, pulso e vida de
mulheres negras numa retomada, numa puxada de alavanca para
brecar o imposto, o hegemônico:
Foi nesse gesto perene de resgate dessa imagem, que subjaz no
fundo de minha memória e história, que encontrei a força motriz
para conceber, pensar, falar e desejar e ampliar a semântica do
termo. Escrevivência, em sua conçepção inicial, se realiza como um
ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende
borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de
mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão
também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até
crianças. E se ontem nem a voz pertencia às mulheres escravizadas,
hoje a letra, a escrita nos pertence também. Pertencem, pois, nos
apropriamos desses signos gráficos, do valor da escrita, sem
esquecer a pujança da oralidade de nossas e de nossos ancestrais.
Potencial de voz, de criação, de engenhosidade que a casa-grande
soube escravizar para o deleite de seus filhos. E se a voz de nossas
ancestrais tinha rumo e funções demarcadas pela casa-grande, a
nossa escrita não. Por isso, afirmo: “a nossa escrevivência não é
para adormecer os da casa-grande, e sim acordá-la de seus sonos
injustos”. (EVARISTO, 2020, p.11)
A Escrevivência é mais que a junção das palavras escrever +
viver/vivência, ou de qualquer arranjo linguístico, já que engloba a
insubordinação da escrita feminina e negra em um projeto que
extrapola a escrita, e a própria, Conceição. Entendendo que a
produção de singularidades e subjetividades que se propõe a
escrevivência potencializa sujeitos, que antes tiveram seus
conhecimentos e saberes obliterados, principalmente na escrita,
mas logo a extrapola. Isso fica explicíto quando Conceição Evaristo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dimensiona a leitura e a escrita no seu labor e para outras mulheres


negras,
O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em
ambientes não letrados, e quando muito, semi-alfabetizados, a
romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento
da escrita? Tento responder. Talvez, estas mulheres (como eu)
tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do
mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da
vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da
escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do
mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres
negras, que historicamente transitam por espaços culturais
diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever
adquire um sentido de insubordinação. (EVARISTO, 2007, p.21).
Esse ato de auto-inscrição e de insubordinação em que as mulheres
negras enfrentam, ao longo da historiografia literária e da História,
com H maiúsculo, denota um intento que tem sido muito caro ao
feminismo negro: do não apagamento e
silenciamento/epistemicídio de suas trajetórias e de contarmos nós
mesmas as nossas histórias. Assim, o enegrecimento do feminismo,
conforme nos atenta Sueli Carneiro (2003), vai possibilitar a
politização desses sujeitos fazendo com que estas assumam as
palavras, a dança, a literatura, a performance, a oralidade e tantos
outros saberes como formas de rasurar o que fora introjetado sobre
e sob seus corpos e conhecimentos.
E quando assumimos nosso lugar de fala, e aqui trazemos esse
conceito dialogando com Djamila Ribeiro, entendemos que a
disputa é por existência. Além, é claro, de compreendermos as
relações de poder e barreiras que nos afastam de determinados
espaços na sociedade, enxergando-o para “refutar a historiografia
tradicional e a hierarquização de saberes consequente da
hierarquia social. Quando falamos de direito à existência digna, à
voz estamos falando de lócus social, de como esse lugar imposto

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dificulta a possibilidade de transcendência”. (RIBEIRO, 2017, p.64).


Contudo, a escrevivência tem oportunizado essa transcendência,
ampliando a imanência da fala, coletivizando-a, mas também
confrontando visões universais de mulher, de negritude, da
identidade. (RIBEIRO, 2017).
Opera-se nessa tensão a quebra do silêncio, o estilhaçamento das
máscaras (KILOMBA,2019; FANON, 2008), o abalo necessário, e
muitas vezes desconfortáveis, do discurso hegemônico. Desse
movimento encabeçado por mulheres negras, historicamente
silenciadas e apagadas, é que se remontam saberes e potências
outras, formando contra narrativas e discursos ao que está posto. A
retomada de si, muitas vezes, se dá através da escrita entendida
como ato político e insurgente, como salienta Grada Kilomba
em Memórias do Plantation: episódios do racismo cotidiano, quando diz
que um texto “pode ser entendido como uma forma de “tornar-se
um sujeito” [...] procuro exprimir a realidade psicológica […] como
me foi dito por mulheres negras, baseada em nossos relatos
subjetivos, auto-percepções e narrativas biográficas” (KILOMBA,
2019, p.29).
Ao entenderem a linguagem como espaço de disputa e de poder,
essas mulheres com mais frequência, buscam autodefinir-se,
nomear-se para contar suas histórias de dentro e não mais pelo
olhar do outro, de fora, do discurso hegemônico. Fazendo isso, elas
trazem novas perspectivas estéticas, literárias e insurgentes, a
partir de suas subjetividades, experiências e vivências na sociedade
brasileira, resistindo ao exaustivo discurso imposto sobre seus
corpos que reverberam o racismo e o sexismo. Comungando dessa
tese, Lélia Gonzalez no texto “Racismo e sexismo na cultura
brasileira” (1984), chama a atenção para tarefa árdua de nomear-se,
confrontando a ideia de que o negro está na lata de lixo da
sociedade,
[…] o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as
implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados

652
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na
terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho
assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa
(GONZALEZ, 1984, p. 225).
A partir dessa prática dialógica, desse escrever + viver e escrever +
vivência, do ato político de narrar a vida, em que escrever/falar
transforma-se em ação, inicialmente, individual, mas logo torna-se
coletiva, é que tal conceito partilha um continuum comum de
falares, vivências e cumplicidades da/na vida. Pois, enxergamos
nesses dinamismos que “resistir por meio da literatura
[escrita/leitura/voz] é também reexistir, e para um povo cuja voz
foi e é constantemente sufocada, a escrevivência se torna um
recurso de emancipação.” (MELO e GODOY, 2017, p. 1289).

Considerações Finais
Em uma entrevista recente para o Portal de Notícias Brasil de Fato,
a escritora Conceição Evaristo disparou “a elite intelectual
brasileira - e eu já falei isso e repito - é uma elite burra” (EVARISTO,
2020,s/n). Concordo com a autora, e ainda acrescento que essa tal
elite é seletiva, racista e hipócrita, visto que tem questionado nosso
direito de pensar, falar e escrever, cerceando nossa humanidade,
dignidade, vida, sonhos e possibilidades. Ainda assim, a
escrevivência tem nos apontado maneiras e modos de fazer para
transcender esses entraves, através da escrita, do corpo, das
narrativas e artes em geral. E até do silêncio, como muitas vezes a
escritora Carolina Maria de Jesus fez ao perambular pelas ruas de
São Paulo, na década de 1960.
O perambular, o ir e vir da labuta diária fez com que Carolina
registrasse na mente, nos olhos que enxergam a beleza e a maldade
da sociedade e das pessoas, nas pernas cansadas e marcadas pela
doença, na escuta atenta das notícias e falatórios que chegavam, nas
mãos que carregavam o lixo e nos cadernos o melhor de sua poética

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

escrevivente. Um corpo inteiro, vivo e atento. A parte fundamental


dessa inovação literária-viva, nesse fazer-se e ser feito na criação da
poética é o corpo. Decerto, Carolina nos parece estar um passo à
frente quando idealiza o sonho de ser escritora, corroborando com
o impulso que Anzaldúa dá para que as mulheres do Terceiro
Mundo escrevam “com seus olhos como pintoras, com seus
ouvidos como músicas, com seus pés como dançarinas. Vocês são
as profetisas com penas e tochas.” (ALZANDÚA, 2005, p.235). Isto
é, seja na escrita, no corpo, ou de qualquer outra forma, repasse,
como Carolina, sua mensagem na fissura que muitas mulheres
negras fizeram/fazem.

Notas:
1 Joice Berth traz os do Atlas da Violência, interseccionando com a
questão de gênero, raça e sexo na matéria “O Outro do Outro: A
violência contra a mulher negra não começou na pandemia”.
Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-outro-
do-outro/>. Acesso em: 07 set.2021
2 Entendemos branquitude a partir do trabalho de Maria
Aparecida Bento que versa sobre a identidade racial do branco
brasileiro, pormenorizado no ideário do branqueamento que
decorre de um processo inventado e mantido pela elite branca
brasileira, fortalecendo a auto-estima e o auto-conceito do grupo
branco em detrimento dos demais. (BENTO, 2002)

Referências bibliográficas
ANZALDÚA,G. Falando em línguas: uma carta para as mulheres
escritoras do Terceiro Mundo (trad. Édna de Marco). Revista
Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000.
BENTO, Maria Aparecida da Silva. Branqueamento e branquitude
no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (orgs).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Psicologia social do racismo – estudos sobre branquitude e


branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002b. p. 25-58.
CARNEIRO. Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser
como fundamento do ser. Tese (Doutorado em educação).
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: <
https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-
construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-
do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf>. Acesso em: 20 de abr. 2020.
CARNEIRO, Aparecida Sueli. Mulheres em Movimento. In:
Estudos Avançados v. 17 n. 49, 2003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
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EVARISTO, Conceição.Da representação à auto-apresentação da
mulher negra na literatura brasileira. In: Revista Palmares, p. 52-57.
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EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho da minha mãe, um dos
lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos
Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias,
práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p.
16-21.
EVARISTO, Conceição. A Escrevivência e seus subtextos. In.:
Constância Lima Duarte, Isabella Rosado Nunes; ilustrações Goya
Lopes(Orgs.). Escrevivência : a escrita de nós : reflexões sobre a
obra de Conceição Evaristo -- 1. ed. – Rio de Janeiro : Mina
Comunicação e Arte, 2020.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas ; Tradução de
Renato da Silveira . - Salvador : EDUFBA, 2008.
GONZALEZ, Lélia.Racismo e sexismo na cultura brasileira. In:
Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984.

655
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

KILOMBA,Grada. Memórias da Plantação - Episódios de racismo


cotidiano. Tradução:Jess Oliveira. - 1.ed. -Rio de Janeiro: Cobogó,
2019.
MELO, Henrique F. e GODOY, Maria C. (2017). Escrevivência e
produção de subjetividades: reflexões em torno de “olhos d’água”,
de Conceição Evaristo. Signótica, Goiânia, v. 28, n. 1, p. 23-42,
jan./jun. Disponível em: <
https://www.revistas.ufg.br/sig/article/view/38912/22141>. Acesso
em: 20 mai. 2020.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar:lugar de fala?. Belo
Horizonte(MG): Letramento: Justificando, 2017.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. São Paulo:
Cortez Editora, 1995.

656
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

É urgente carnavalizar para resistir...

Nathalia Viana da Mota


Universidade Estadual do Ceará
nvianadamota@gmail.com

Desde 2019 o Brasil tem-se tornado palco de uma série de


espetáculos dos mais grotescos de todos os tempos: assistimos ao
avesso do avesso do espetáculo do carnaval medieval e
renascentista apresentado por Bakhtin. Hoje, ao que assistimos em
nosso país, pois, no grotesco dos nossos tempos, é a uma série de
espetáculos cujo sistema de imagens e formas materializam-se na
produção e na disseminação de discursos caóticos, catastróficos,
destrutivos, perversos, tóxicos, virulentos e nocivos corporificados
nos atos de fala negacionistas do chefe máximo do poder executivo
brasileiro, o inominável presidente da república, que, - para citar
apenas um episódio dessa série - no enfretamento da pandemia da
COVID-19, ao negar a verdade da ciência negou o direito a políticas
de saúde pública baseadas em evidências e consensos científicos,
negou o direito à vida de mais de 500.000 brasileiros(as) e
consagrou o Brasil no palco da maior crise sanitária de sua
história.
Com efeito, o espetáculo grotesco dos nossos tempos é
precisamente oposto, em seu princípio fundante, ao grotesco
carnavalesco da Idade Média e do Renascimento, o “realismo
grotesco” (Bakhtin; 1987[1965]). Neste, não há palco nem ribalta,
não há uma divisão sectária ou seletiva entre atores e espectadores,
todos (con)vivem concretamente - e não representam -, no

657
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

momento em que dura o carnaval, o devir insurgente de uma


segunda vida, verdadeiramente humana, amorosa e alteritária,
mais alegre e mais justa, livre da seriedade do poder que oprime,
amedronta e amortiça a esperança de um novo mundo. Naquele,
ao contrário, vive-se uma representação negativa e invertida da
essência orgânica e viva do carnaval medieval e renascentista:
cultua-se a perpetuação no poder de um falso messias, acentua-se
o distanciamento excludente e odioso entre os homens
alimentando a polarização moralizante, reacionária, intolerante e
violenta entre eles, quais sejam, “os homens de bem x os homens
do mal”, “a extrema direita bolsonarista x a esquerda comunista”,
“os escolhidos e purificados x os excluídos e pecaminosos”, “os
negacionistas x os cientistas”, “os que podem viver x os que devem
morrer”...
No grotesco medieval e renascentista, ou melhor, no grotesco
carnavalesco, “o cósmico, o social e o corporal estão ligados
indissoluvelmente numa unidade [alegre], viva e indivisível”
(Bakhtin; 1987[1965], p.17) e associados ao sistema de imagens e
formas da festa popular, do carnaval (medieval e renascentista). O
princípio material e corporal dessas imagens e formas, portanto,
não é atribuído “a um ser biológico isolado ou a um indivíduo
‘econômico’ particular e egoísta, mas a uma espécie de corpo
popular, coletivo e genérico” (Bakhtin; 1987[1965], p.17), que clama
por “uma liberdade e uma franqueza máximas do pensamento e da
palavra” (Bakhtin; 1987[1965], p.236; grifos do autor) a fim de não
comungar com a “palavra-violência” (BAKHTIN; 2020[1940]) que,
por sua vez, se trasveste com as máscaras da hipocrisia, da mentira
e da falsidade corporificadas pelas vozes disseminadoras da
ideologia oficial e séria que visam, com isso, a estabelecer nos
indivíduos o medo, a paralisia e o retorno enclausurador a um
passado acabado e obscuro.
O pensamento e a palavra grotescos carnavalescos, ao contrário,
comungam com uma verdade alegre e lúcida que opera pela
coragem de “falar de outra maneira, de ver de outra forma a vida e

658
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o mundo” (Bakhtin; 1987[1965], p.237), através de um olhar


endereçado à outra margem de formas de pensamento e
julgamento oficiais em busca de um futuro em constante devir, à
procura de uma “realidade nova, para além do horizonte aparente
da concepção dominante” (Bakhtin; 1987[1965], p.237). O caráter
fundante da cosmovisão carnavalesca consiste, pois, aqui, na
celebração do ritual ambivalente e biunívoco do
destronamento/coroação do rei do carnaval, ou ainda, no
aniquilamento do velho mundo, da verdade séria e oficial, e no
posterior e simultâneo “nascimento do novo, do novo ano, da nova
primavera, do novo reino. O velho mundo aniquilado é
apresentado juntamente com o novo, [...] como a parte agonizante
do mundo bicorporal único” (Bakhtin; 1987[1965], p.360). Nisto
reside o cerne da concepção carnavalesca de mundo: o processo de
mudança. Nisto consiste o sentido de resistência.
Então, em tempos de crise é urgente carnavalizar para mudar; é
urgente carnavalizar para resistir!

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1987.
BAKHTIN, M. O homem ao espelho: Apontamentos dos anos 1940.
Tradução de Cecília Maculan Adum, Marisol Barenco de Mello e
Maria Letícia Miranda. 2 ed. São Carlos: Pedro & João, 2020.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Eco repete e Kevelyn carnavaliza: o oficial e o não-oficial nas


vozes dos sujeitos da escola.

ANA LUCIA ADRIANA COSTA E LOPES


SECRETARIA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA
alaclopes@gmail.com

Conversa com Hilary, Talita e Kevilyn


Estamos no laboratório, Kevilyn está no quadro e começa a escrever e diz
com tom de autoridade:
Ana, pode escrever...Quem tá copiando?Quem não copiar, vai ficar sem
recreio.
Eu: Quantas vezes vocês ficaram sem recreio?
Kevilyn:Monte.
Eu: Monte? (rio)
Kevilyn: Vai ser esse hoje. Patinho Feio.
Hilary:Eu tenho a história do Patinho Feio.
(Hilary e Talita também estão na sala conversando. Coloco foco em
Kevilyn que assume o lugar de professora e que direciona suas falas para
mim)
Kevilyn:Quero que todo mundo escreva. Todo mundo pode escrever: Pa-
ti-nho Fe-i-o (Fala pausado enquanto escreve as palavras no quadro).
Quem não escrever vai ficar sem recreio!
(Entro na brincadeira e agora sou a aluna Ana )

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sentei. Sentei, tia.


Kevilyn:Sem recreio!
Eu:Sentei! Vou pegar o lápis.
Kevilyn:Talita, escreve no seu.
Eu :Tia, que é que é para copiar?
(...)
Kevilyn; Tá, você escreve tudo aí na lista.
Talita Como que eu vou escrever sem a...
Kevilyn: você tem um lápis para emprestar para ela?Então ‘bora’.
Eu: Tia, já acabei.
Kevilyn:Acabou nada.
Eu:Acabei. Vou copiar o outro.
Talita:Ela vai escrever mais. Ela vai escrever mais. Sabia?
Dando a entender que se eu copiasse rápido, a “professora” passaria mais.
Eu: Então vou escrever devagar, se ela vai escrever mais.
Kevilyn: Vai ficar sem recreio.
Eu: Já, estou lá no três.
Talita:Não apaga o seis.
Eu: E o meu ficou bagunçado, agora.
(...)
Talita:Você está andando rápido. Copiando muito rápido, tia.
Eu: É. Meio mal copiado, aqui também. Mas tá indo.
Kevilyn:Quem está copiando rápido?
Talita:Eu estou copiando o da Hilary ...

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Kevilyn : Vou fazer só até a dez.


Eu:: Sete! (Olho e copio)
Kevilyn: (vira para a mesa) Quem está conversando? ...Volta para o
quadro e continua: Ma-mí-fe-ros.
Eu:Oito.
Hilary:Eu também passei no oito. Eu tô no oito.
Eu:Ih, esse aqui eu errei. E o pé de feijão. Errei, copiei Cinderela de novo.
Aqui. No seis. Não. É. Errei mesmo. Aqui era João e o Pé de Feijão. Aí eu
coloquei...
Talita (diz que errou também).Eu estou copiando tudo errado.
Kevilyn:Pode apagar agora e copiar certo (tom de voz bravo).
Talita:Mentira. Tô copiando tudo certinho.
Eu: Mamíferos... Cabe mais na minha folha, não. João e Maria. Eu copiei
esse?
Kevelyn (com tom bravo)Fica conversando. Não escreve. Em vez de
escrever, não. Fica conversando.
Eu::Eu estou escrevendo, tia.
Kevilyn:Vou escrever até o onze (o tom mostra retaliação)
Eu :Aumentou? Não era só até o dez? (falo em tom de reclamação)
Kevilyn:É. Vai ser até o onze. João e Maria.
Eu: Nossa. E agora? Agora confundiu tudo...
Kevilyn:Vamos parar de conversar?
Ana :Ah, desculpa, tia. (n?)
Eu :A Bela... Tia, não era só até o dez? (reclamo novamente).
Kevilyn:Era. Você está conversando. Era! Você está conversando muito,
pro meu gosto.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Talita:Está não...Você está imitando a tia N? (diz o nome da professora)


Era?
“Você está conversando muito” (faz o mesmo tom que Kevilyn fizera
anteriormente)
Kevilyn:Pode parar!
Eu :A dez. Onze.(copiando a última palavra)
Talita: (desafiando) Tô nem aí.
Kevilyn: Pode escrever isso aqui tudo. Eu vou apagar
Talita :Não, eu tô copiando.
Esta foi uma conversa com crianças que eram encaminhadas para
os laboratórios de aprendizagem, ambiente dentro da escola em
que se propunha a ensinar de forma diferenciada por serem
consideradas “com dificuldades de aprendizagem”[1]. Eu, como
pesquisadora, me coloquei a escuta das enunciações sobre o
aprender nestas conversas e participo deste diálogo entre Hilary,
Talita e Kevilyn que, ao “assumir o papel de professora”, parece
teatralizar as dinâmicas estabelecidas por professora e alunas em
sala de aula, mas no cotejo com o mito de Eco, desvela-se neste
acontecimento a carnavalização, o oficial e o não-oficial em um
mesmo lugar, o grotesco nas vozes e ambientes da escola.
O Mito de Eco
A história de Narciso é conhecida por muitos, mas nem todos
conhecem a história de Eco, a ninfa que se apaixonara por ele. Ela
foi condenada a só repetir a palavra dos outros sem poder lhe dizer
de seu amor. Trouxe a tradução do texto do Livro III de
Metamorfoses que tem como autor Ovídio[2], que narra a história
original da ninfa Eco que se apaixona por Narciso, pois existem
muitas versões que mudam os sentidos que estão postos nesse
mito.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O cefísio o contava, então, dezesseis anos, podendo ser tomado por menino
ou jovem. Muitos moços e muitas moças desejavam-no;mas, tão dura
soberba havia em ternas formas, nenhum rapaz, nenhuma moça lhe tocou.
Viu-o alçando as redes com os cervos trêmulos, ninfa loquaz , que ao ouvir
não fica calada, nem fala antes de alguém, a ressoante Eco. Eco tinha,
então, corpo, não só voz; porém,igual agora, a boca repetia, gárrula, entre
tantas, somente as últimas palavras.
Isto Juno, pois podendo surpreenderas ninfas se deitando em montes com
seu Júpiter, Eco sempre a retinha com longas conversas, para as ninfas
fugirem.Satúrnia entendeu e disse: “a tua língua, que me iludiu
tanto, pouco poder terá, no uso parvo da voz”. E a ameaça confirma:
quando alguém diz algo,Eco repete apenas o final das frases.
Quando, então, viu Narciso errando pelos campos, arde de amor por ele e
a furto os passos segue-lhe; e quanto mais o segue, mais a chama arde,tal,
quando se unta a extremidade de uma tocha, o vivo enxofre inflama-se
perto da chama.Oh! Quantas vezes quis abordá-lo com brandas preces e
afagos. Sua natureza impede que ela fale primeiro; mas a deixa
apenas acolher e ecoar as palavras que ouve.
Por acaso, o rapaz, desviado dos colegas, gritou: “ alguém me escuta?”,
“escuta!” rediz Eco. Queda-se atônito, dirige o olhar a toda parte,alça a
voz e diz: “vem!”; ela chama quem chama.Volve o olhar e não vendo
ninguém diz:“Por que foges de mim” e ouve de volta a mesma frase.
Detém-se e, iludido por voz replicante, fala: “aqui nos juntemos!”, e
Eco, com volúpianunca experimentada, devolveu: “juntemos!”
Seguindo suas próprias palavras, da selvasai e vai abraçar-se ao pescoço
do amado.Ele fugindo, diz: “tira as mãos, não me abraces, morrerei antes
que tu possas me reter!” E ela, apenas: “Que tu possas me
reter!”Desdenhada, se esconde em selva e de vergonhae ramos cobre o rosto
e vive em grutas ermas.
No entanto, arde o amor e cresce com a dor, a insônia lhe consome o corpo
miserável,a magreza lhe enruga a pele e no ar se esvaio suco corporal.
Restam só voz e ossos.A voz vive; viraram pedra os ossos, dizem. Assim,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

se esconde em selva e em monte nunca é vista. Todos ouvem-na; é som o


que nela vive.
Como Kevelyn e Eco se (des)encontram?
No mito, Eco é castigada por Juno por encobrir Júpiter, distraindo-
a com longas conversas. O castigo é não poder usar a voz. Quando
alguém diz algo, Eco, em resposta, pode apenas repetir as últimas
palavras. Quando se apaixona por Narciso, não pode dizer-lhe de
seu amor e apenas repete suas palavras. Rejeitada por ele, esconde-
se entre grutas e definha de dor e amor. Seus ossos viram pedras e
só sua voz ressoa em resposta, a repetiçao como última palavra.
Nessa carnavalização, será que Kevilyn repete o que ouve de
outras vozes sem enunciar por si?
Kevilyn, em sua posição, ressoando o que lhe é dito ,mas não está
apenas repetindo, ela responde repetindo. E por mais irônico que
possa parecer, a palavra que ela repete nesse acontecimento é da
cópia. Insiste para que nós, “alunas”, copiemos. Se não copiarmos,
haverá mais coisas para copiar, ou seja, a punição, a repetição do
que já foi dito, a punição que leva Eco a ter o amor rejeitado por
Narciso. A cópia de Kevilyn é a cópia da aula, que mostra a cópia
da cópia de textos, da cópia...da cópia... da cópia.. que se
repetem...não só no quadro, mas na vida escolar.
Se Eco e Kevelyn se encontram na repetição da palavra do
outro, entre as duas há uma significativa diferença: Eco repete a
última palavra, Kevilyn pode repetir o que ouve em sua sala,
carnavalizando-as. Já não é mais o mesmo enunciado, pois um
enunciado é único e irrepetível. Mesmo que dito pela mesma
pessoa, com a mesma entonação, já não é mais o mesmo
acontecimento. No laboratórionos vivemos o carnaval, que não é
uma forma puramente artística do espetáculo teatral,nele não há distinção
entre atores e espectadores, não se atua ou assiste , o carnaval não tem
fronteira espacial, só se pode vivê-lo. O carnaval é uma forma concreta

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(embora provisória) da própria vida que não é simplesmente representada,


antes pelo contrário vivida enquanto durava o carnaval.[3]
Então Kevilyn não repete, mas denuncia um aprendizado baseado
em recursos mecanicistas que servem para que sua voz seja ouvida
nestas enunciações. Ao denunciar, Kevilyn também se diferencia
de Eco quando pode usar o entonação apossando-se da
palavra, dando-lhe valoração apreciativa ou depreciativa,
dependendo do contexto em que aparece. A entonação sempre se
encontra no limite entre o verbal e o extraverbal, entre o dito e o não dito.
Mediante a entonação a palavra se relaciona diretamente com a vida. E,
antes de tudo, justamente na entonação, o falante se relaciona com os
ouvintes: a entonação é social por excelência[4].
Eco pode repetir a palavra, mas não pode mudar o tom. Com sua
carnavalização da cópia, Kevelyn enuncia, para si e para o outro,
naquele acontecimento. Se Eco repetindo a última palavra é a
escola presa nesta palavra repetida , Kevilyn traz outros sentidos
para sua enunciação da cópia a partir da carnavalização da
aula, do ensino que é oficial em sua escola, mas o faz , destruindo-
o. Eco, afigura o oficial no ensino/aprendizagem do ambiente
escolar, Kevelyn enuncia neste mesmo modelo, destruindo e
denunciando-o em sua aula não oficial.
O grotesco se apresenta em sua verdadeira natureza, que é a expressão da
plenitude contraditória e dual da vida, que contem a negação e a
destruição, consideradas como fase indispensável , inseparável da
afirmaçâo, do nascimento de algo novo e melhor.[5]
Assim , Se eco repete , Kevelyn carnavaliza!

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Palavra própria e palavra outra na síntese da
enunciação. São Carlos: Pedro e João Editores, 2011

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

________A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2013.
Arquivo Metamorfose Ovídio, p. 101/103 -UFSCar- Disponível
em: https://arquivo/6486572/metamorfose-ovidio

Notas
[1]Nota de campo da tese de Doutorado Um novato lá na sala,
tem que pegar ele também, tia. Escreve tudo agarrado! A escuta
das enunciações sobre o aprender nas conversas com crianças. Pós-
graduação em Educação – Universidade Federal Fluminense- UFF-
Niterói 2018.
[2] Disponível em: https://arquivo/6486572/metamorfose-
ovidio arquivo Metamorfose Ovídio, p. 101/103 - Disciplina de
Estudos Clássicos-UFSCar
[3] Bakhtin, 2013, p.6)
[4] Bakhtin (2011, p. 160).
[5] Bakhtin, 2013, p.54)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Educação e mediação: as vozes a linguagem do grotesco – o


discurso indireto livre na escrita do texto de História em sala de
aula do Ensino Fundamental

Mariano Alves Diniz Filho


Prefeitura Municipal de Belo Horizonte - Secretaria Municipal de
Educação
marianodiniz@gmail.com

Edson Nascimento Campos


Faculdade da Saúde e Ecologia Humana -
edncampos@gmail.com

Herbert de Oliveira Timóteo


Prefeitura de Belo Horizonte
herbert.timoteo@gmail.com

Erro de Português
Quando o português chegou
debaixo duma bruta chuva
vestiu o índio
que pena!
fosse uma manhã de sol
o índio tinha despido o português
(ANDRADE, 1927)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O discurso indireto livre expressa uma orientação ativa do


discurso autoral em relação ao discurso alheio. Nele, as ênfases
e as entonações autorais se chocam e interferem nas ênfases da
palavra alheia no enunciado, [...]em outros termos, as relações
entre o discurso do autor e o do personagem se dialogizam como
nas réplicas de um diálogo. (GRILLO; AMÉRICO, 2018, p. 355-
356)

Grotesco é a ambivalência, a união de dois opostos [...] (a


presença do grotesco) relativiza alguns discursos autoritários.
(CARNAVALIZAÇÃO, 2021)

Introdução
Este texto pretende sistematizar observações a respeito da
orientação social mais próxima da sala de aula no ensino-
aprendizagem da escrita de História, dentro do Ensino
Fundamental, tomando a educação escolar como experiência social
de mediação, espaço de contraposição e confronto das vozes do
professor e do aluno, quando o discurso indireto livre é tomado
como linguagem que possibilita a manifestação dialógica do
grotesco, enquanto experiência semiótica de relatividade ou
ambivalência próprias da ação da paródia ainda que a sala de aula
possa ser, também, o espaço social de circulação da absolutização
de sentido própria da paráfrase.

Educação e mediação
A organização da sociedade se realiza pela ação mais remota da
educação sistemática e assistemática através da construção social da
mediação. Pela força socializadora de tal categoria, as forças da

669
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

infraestrutura determinam as direções da superestrutura e, por sua


vez, as forças da superestrutura determinam as direções da
infraestrutura. Isto é, pela força da mediação, ocorre a determinação
recíproca de tais posições estruturantes da sociedade e nessa
estruturação a educação ocupa a função de organização da vida social.
Nesses termos, é possível dizer que a mediação acolhe para a
educação a função reprodutora da ordem social ainda que acolha a
função contraditória, uma vez que, aí, a mediação estará abrigando a
contradição como construção social que funda, distante, a constituição
econômica da ordem social. A essa orientação social mais remota da
estruturação da sociedade se articula a orientação social mais próxima
da educação escolar e, aí, a orientação social da sala de aula, na relação
do professor com os seus alunos. Aqui, por mediação, as ações do
professor e do aluno podem ocorrer pela reprodução e pela
contradição quando as vozes de tais agentes sociais acabam por
assumir uma entonação de conservação e transformação da vida
social. Nesses termos, a voz do professor ao se dirigir ao aluno, pode
assumir uma posição autoritária e a voz do aluno pode assumir uma
posição de submissão ou fidelidade à voz do narrador o que
viabilizaria a manifestação de um certo absolutismo que tornaria
possível a orientação monológica do enunciado na interação
discursiva dos agentes, numa perspectiva de reprodução social. Por
outro lado, a voz do professor pode se orientar para o aluno de modo
autoritário, mas a voz do aluno, em contraposição e confronto, pode
introduzir nas relações discursivas uma certa relatividade que
configuraria uma orientação dialógica do enunciado, o que seria
próprio de um ambiente de transformação social que indiciaria a
presença da contradição.

A interação discursiva: mediação


As vozes do professor e dos alunos acontecem por mediação, pois,
na qualidade de ponte, a interação que aí acontece traz a
determinação social recíproca da linguagem discursiva que

670
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

acontece na interrelação de tais agentes ao se situarem nas


extremidades dessa ponte: a linguagem acontece na determinação
recíproca dos agentes. Em face disso, a mediação como força
socializadora que reúne os agentes pedagógicos da sala de aula
poderá ser orientada reprodutoramente se as ocorrências de
linguagem tiverem um acento monológico. Isto é, se o professor e
o aluno assumirem, com o corpo do enunciado, a orientação que
faz de tal enunciado a realização discursiva absoluta de uma única
voz. Aqui aconteceria a voz reprodutora da paráfrase. Por outro
lado, o enunciado, na voz do professor ou na voz do aluno, poderá
ser a expressão da realização relativa de uma orientação que
contempla o acento dialógico da linguagem do enunciado, isto é,
tal enunciado se torna aqui a materialidade discursiva que abriga
as vozes de tais agentes que na contraposição e no confronto que
estabelecem na interação se tornam as múltiplas vozes que
assinalariam a presença da contradição. Ou seja, a interação
discursiva será constituída aqui pela entonação do dialogismo da
linguagem.

Interação discursiva: discurso indireto livre


Se a interação dos agentes sociais na sala de aula se constitui, no
enunciado, pela contraposição e confronto de vozes, ou se a voz do
narrador, como voz do professor, se encontra com a voz alheia do
aluno, e se, nesse encontro, o que acontece é o embate de vozes na
materialidade do enunciado, o dialogismo acontece. O que se
verifica é a relatividade, ou ambivalência, próprias do grotesco,
pois aqui o acontecimento de linguagem está a refletir e a refratar,
no corpo do enunciado, as orientações sociais que seriam próprias
da orientação reprodutora e contraditória que perpassa a mediação
dos agentes. A voz do narrador entra em réplica com a voz do
aluno e, nisso, acontece o discurso indireto livre. Por outro lado, o
aluno pode escrever um texto que se orienta pela relatividade da
voz instituída de determinado narrador que conta a história e, na

671
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

relatividade do alheio de sua voz, registra a contraposição e o


confronto com a voz do narrador e, nisso, se manifesta a linguagem
do discurso indireto livre. Acontece a figura da paródia como
realização de linguagem do grotesco: aqui, um certo discurso de
narrador que se pretende circular socialmente como oficial acaba
por entrar em réplica, com o discurso oficioso do alheio, instituindo
dialogicamente, no corpo do enunciado, relações discursivas
comprometidas com a contradição.

Mediação: interação discursiva –paráfrase e paródia


A experiência de mediação na sala de aula, que contempla a
interação do professor com os seus alunos, no Ensino Fundamental,
dentro do ensino-aprendizagem de História, pode ser uma
experiência de linguagem que responde pelas exigências sociais da
reprodução. Nessa perspectiva metodológica, o que o aluno diz
acaba por dizer aquilo que a voz do narrador diz, seja ele o
professor- ou a voz autoral do livro didático e, aí, então, a
experiência de linguagem ficaria reduzida aos sentidos de uma voz
que unifica ou absolutiza o que é dito: a voz do aluno escreve uma
paráfrase da voz do narrador. Ler e escrever um texto de História
seria uma experiência de repetição do que é consagrado pela
tradição: uma experiência monológica no uso da linguagem.
Nesse sentido, é oportuno observar, na voz do aluno, a
propriedade de incorporar, parafrasticamente, o que se repete.
Vejamos o que diz Cauã.

Em 1500, os portugueses descobriram o Brasil. Chegando no


Brasil, os portugueses encontraram os povos indígenas. Os
portugueses viram os costumes dos povos indígenas, então,
quiseram trazer roupas, religião e itens de pouco valor na
Europa. Os portugueses davam esses itens da Europa, por troca
de um trabalho que era a extração do pau-brasil, que podia ser

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

usado como corante vermelho para pintar suas roupas e itens.


Eles davam itens que não haviam no Brasil ou eram muito
inferiores como: machados, enxadas, foice, facões, colher, garfo,
faca, espelhos, sapatos, roupas. Os portugueses trouxeram essas
coisas para o mundo dos povos indígenas. Eles ensinaram aos
povos a falar a língua portuguesa para que eles pudessem ler a
bíblia e conversar com os portugueses. Esse processo durou
vários anos de trabalho (CAMPOS; TIMÓTEO; DINIZ FILHO,
2020, p.117-118).

Vejamos, ainda, o que diz Isabelle.

O chamado Descobrimento do Brasil ocorreu oficialmente em 22 de


abril de 1500, quando a esquadra comandada por Pedro Álvares
Cabral chegou em Terra Brasileiras, que na época, era a chamada
Ilha de Vera Cruz, após a chegada dos portugueses os indígenas que
aqui habitavam foram feitos de escravos, mas como não eram
acostumados a trabalhar várias horas seguidas eles foram taxados de
preguiçosos e, por esse motivo, os portugueses trouxeram africanos
para serem usados como trabalhadores escravos, pois eles eram
acostumados como o trabalho pesado” (CAMPOS; TIMÓTEO;
DINIZ FILHO, 2020, p.117).

Por outro lado, a mediação da sala de aula pode ser uma


experiência de linguagem que responde pelas exigências da
contradição. Metodologicamente, a voz do aluno não diz aquilo
que a voz do narrador, localizada no professor, ou na voz autoral
do livro didático, diz. Essa voz contraditória, entra em
contraposição e confronto com a voz do narrador e se institui, na
interação discursiva, a experiência de linguagem do discurso
indireto livre. E, então, o que acontece é a negação da absolutização
do que é dito, fazendo aparecer nessa voz, no corpo do enunciado,
a relativização ou ambivalência das múltiplas vozes que,
dialogicamente, configuram a experiência do grotesco. Surge a

673
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

figura da paródia: se há uma palavra que se repete, a negação de


tal repetição faz aparecer a palavra relativa do acontecimento
parodístico em que tal relatividade faz a consagração do que é
múltiplo naquilo que não se repete.
Ouçamos, na voz do aluno, a habilidade de lidar com a relatividade
do grotesco no corpo parodístico do enunciado.
Ouçamos uma outra voz de Isabelle.

O descobrimento do Brasil ocorreu... Não, calma


‘descobrimento’? Será que é essa a palavra certa? Eu acho que o
termo mais apropriado para usarmos seria INVASÃO, mas aí
alguém vira e pergunta ‘mas Isa, porque usar a palavra
invasão?’ Calma, eu vou explicar. Vamos falar sobre a tal
‘colonização’, esse termo pode ser associado com diversas
outras expressões como: invasão, exploração (termo que
abrange, pesquisa, conhecer e extrair riquezas), dominação
(tanto populacional quanto territorial), povoamento e produção.
Mas não termina por aí não, os portugueses ‘acham’ uma terra
com habitantes, há um certo desconhecimento, negação e
imposição cultural e religiosa, e, certamente, a palavra
descobrimento não cabe nesse contexto, pelo menos não para
nós, não mais.” (CAMPOS; TIMÓTEO; DINIZ FILHO, 2020,
p.118)

Vejamos o que diz Lara.

“Foi invasão”, os portugueses como dizem “descobriram o Brasil”,


mas na verdade se a terra já era habitada pelo povo indígena será
realmente que descobriram? Na minha opinião não como podemos
falar se foi um descobrimento se já havia gente ali. Os indígenas
descobriram mais como eles só viviam ali não tinham como sair,
não teve tanta repercussão, além que também os portugueses eram

674
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

brancos “tinham seus direitos” (CAMPOS; TIMÓTEO; DINIZ


FILHO, 2020, p.118-119).

Enfim, as vozes desses alunos do Ensino Fundamental,


participantes da experiência de educação sistemática em Escola da
Rede Municipal de Belo Horizonte, às voltas com o ensino-
aprendizagem de História, no 7º e 8º anos, está a revelar a
sensibilidade, viva em tais vozes, de experimentar a linguagem da
paráfrase, de absolutização do conhecido. Por outro lado, essas
mesmas vozes revelam, ainda, a sensibilidade com a experiência da
paródia, ou seja, com a relativização do conhecido, abrindo a sua
experiência de linguagem para o enfrentamento do grotesco.

Considerações finais.
Este texto procurou demonstrar que o ensino-aprendizagem de
História, na mediação da sala de aula, articulando, na interação
discursiva, as vozes do professor e dos alunos, pode ser uma
experiência de paráfrase, quando as vozes de tais agentes se
reúnem na absolutização do conhecido: aqui a voz do aluno diz,
parafrasticamente, aquilo que, até certo ponto, o professor diz. Por
outro lado, se, até certo ponto, o aluno diz aquilo que o professor
diz, diz ele, nesse intervalo de “até certo ponto”, aquilo que outras
vozes dizem parodisticamente: a voz de outros narradores na
figura de outros professores ou livros didáticos. Nisso o que se
constata é a relatividade ou ambivalência que tais vozes instituem,
configurando a realização do grotesco. Aqui, a interação discursiva
torna-se a oportunidade para a experiência de linguagem que
funda o grotesco: a experiência do discurso indireto livre que ,
dialogicamente, é um acontecimento de linguagem em que a voz
do narrador entra em réplica, no corpo do enunciado, com a voz da
personagem: em que professor e alunos participam de uma
interação discursiva aberta à relatividade e à ambivalência que
sinaliza a presença do dialogismo da linguagem: a voz do aluno,

675
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

utilizando a voz de outros professores ou de outros livros


didáticos, entra em contraposição e confronto com a voz do
professor ou com a voz autoral do livro didático que figuram como
narrador.

Referências
ANDRADE, Oswald de. Primeiro caderno do aluno de Poesia Oswald
de Andrade. São Paulo: Edição do autor, 1927.
CAMPOS, Edson Nascimento; TIMÓTEO, Herbert de Oliveira;
DINIZ FILHO, Mariano Alves. O dialogismo da linguagem: a
palavra que se repete e a palavra que não se repete – paráfrase e
paródia na enunciação da leitura e escrita do texto de história.
In: Ensaios de Dialogismo. São Carlos: Pedro e João Editores, 2020.
p.105-124.
CARNAVALIZAÇÃO, 2021. 1 vídeo (10 min). Publicado pelo canal
Saber Linguagem. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=pz265X2NY2U&t=277s. .
Acesso em: 25 ago. 2011.
GRILLO, Sheila; AMÉRICO, Ekaterina Vólkova. Glossário.
In: Marxismo e filosofia da linguagem; problemas fundamentais do
método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo, Editora 34,
2018. p.355-356.
VOLÓCHINOV, Valentin. A interação discursiva. In: Marxismo e
filosofia da linguagem; problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. São Paulo, Editora 34, 2008.
p.201-225.
VOLÓCHINOV, Valentin. Discurso indireto livre nas línguas
francesa, alemã e russa. In: Marxismo e filosofia da
linguagem; problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. São Paulo, Editora 34, 2008. p.291-322.

676
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E DESIGUALDADES EM


TEMPOS DE PANDEMIA

Lorena Bischoff Trescastro


SENAI
lbtrescastro@gmail.com

Vania Maria Batista Sarmanho


Gelpea UEPA
vmbgrupobase@gmail.com

Vera Lúcia gomes Travassos


GELPEA
veraluciatravassos@ymail.com

A pandemia do Coronavírus (Covid-19) se alastrou em meados de


março de 2020 e continua ameaçando a humanidade até os dias de
hoje, provocando uma série de mudanças, não só no Brasil, como
também em todo o mundo. A vida das pessoas, sem exceção, foi
afetada em todos os sentidos. O medo, a dor e a insegurança diante
da morte e da necessidade de proteção da vida atingiram adultos,
adolescentes, jovens, idosos e crianças. Medidas de distanciamento
social, uso de máscaras e cuidados com a higiene das mãos para
evitar o aumento da contaminação foram tomadas e tornadas
obrigatórias pelo governo na maioria dos países, estados e cidades.

677
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nesse contexto, foi preciso comunicar às pessoas dos riscos e das


consequências da disseminação do vírus na vida em sociedade, dos
sentimentos provocados, das atitudes adequadas para minimizar
seus prejuízos e da necessidade de se criar, de certa forma, um
caminho para se conviver e sobreviver em tempos de pandemia.
Além do mais, os meios de comunicação em massa vêm noticiando
diariamente fatos chocantes, ocorridos no país e no mundo, bem
como dados referentes ao quantitativo de pessoas infectadas,
mortes e pessoas vacinadas. Tudo isso atingiu a vida em muitos
aspectos, principalmente, em relação à saúde, ao trabalho e à
educação, provocando, respectivamente, o adoecimento, o
desemprego e o afastamento/abandono da escola.
Em relação à educação na pandemia, manter os alunos
frequentando as salas de aula, no modelo vivido até então nas
escolas, ficou inviável. Alternativas para se continuar o ano letivo
e a educação de crianças, adolescentes e jovens foram buscadas,
potencializando aulas online e remotas em plataformas digitais.
Ainda que professores e escolas buscassem proporcionar à
educação, recorrendo à já conhecida Educação a Distância – EAD,
a assimetria no acesso às tecnologias, à Internet e aos dispositivos
digitais, infelizmente, é uma realidade. Nem todos podem acessar
conteúdos e realizar atividades educacionais por via das
tecnologias.
Quanto ao acesso à internet, conforme pesquisa realizada pelo
Comitê Gestor da Internet do Brasil, houve aumento de domicílios
com acesso à internet em 2020, porém esse acesso continua
desigual, pois aproximadamente 90% das residências das classes D
e E, se conectam à rede apenas pelo celular. Tal desigualdade é
refletida também na educação básica como demonstrado no censo
escolar de 2020 que apenas 32% das escolas públicas do ensino
fundamental têm acesso à internet para os alunos, enquanto as do
ensino médio apresentam um percentual de 65% (LEÓN, 2021).

678
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Diante do exposto, é a intersecção entre estes três temas: pandemia,


educação e tecnologias, focando especificamente as desigualdades
educacionais e a exclusão dos alunos no acesso aos conhecimentos
que a escola lhes proporciona, foi o caminho buscado para discutir
essa temática na perspectiva do grotesco e do cronotopo, tratados
por Bakhtin (1993, 2012). Assim, com a paralisação das atividades
presenciais nas escolas para evitar a propagação e o contágio do
Coronavírus, as escolas aos poucos aderiram às aulas online e
atividades remotas, neste contexto, são as desigualdades
educacionais em tempos de pandemia que nos propomos a abordar
neste trabalho.
Figura 1: Desigualdades educacionais na pandemia (Ilustração)

Fonte: Blog Sala de Recursos (2021).

Atualmente, essa problemática, que não é nenhuma novidade, vem


sendo tratada em inúmeras publicações em sites e blogs por
professores, acadêmicos, representantes sindicais e jornalistas. Em
pesquisas sobre o tema, realizadas no site de buscas Google, o que
nos chamou a atenção foi o uso recorrente de uma mesma

679
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ilustração (Figura 1) em mais de uma dezena de textos.


Curiosamente, a autoria da ilustração é desconhecida e, na maioria
dos textos encontrados, a fonte da ilustração não foi citada,
contrariando regras de direitos autorais. Academicamente falando,
tal transgressão beira o grotesco.
A respeito do grotesco, Sodré e Paiva (2002, p.40) afirmam que “o
grotesco é aí, propriamente, a sensibilidade espontânea de uma
forma de vida. É algo que ameaça continuamente qualquer
representação (escrita, visual) ou comportamento marcado pela
excessiva idealização”. O apagamento da autoria de imagem tão
significativa nos causou estranheza e, também, motivou a escolha
da imagem para este trabalho dada a sua representatividade e força
comunicacional no tratamento do tema.
Como se vê, a ilustração, assim como a fotografia, faz um recorte
da realidade. Nela são agrupados: cenário, personagens,
fragmentos do espaço e do tempo. Tudo é enquadrado em um
retângulo dentro da cena narrativa. O desenhista cria nesse espaço,
coerentemente, uma síntese representativa da realidade com alto
grau informativo (RAMOS, 2012). No conceito de cronotropo,
segundo Bakhtin (1993, p.211), “ocorre a fusão dos indícios
espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto”, ou seja,
na cena retratada na ilustração (Figura 1), o tempo e o espaço se
ligam, pois na realidade se fundem e não ocorrem separadamente.
Em relação à temática, a ilustração denuncia as desigualdades
sociais, pois podemos ver na imagem de um lado (à esquerda) as
condições materiais de moradia e os recursos tecnológicos
disponíveis de acesso à informação e ao conhecimento, tais como
TV, celular e notebook, por parte de um suposto aluno, e a ausência
desses mesmos recursos pelo outro (à direita). Na ilustração, na
qual não há uma linha divisória explícita que separe os dois alunos
nela representados, ambos parecem se encontrar no mesmo
contexto educacional mostrado na postura do corpo, lápis na mão
e material didático à frente, porém as diferenças, na leitura

680
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

entendidas por desigualdades educacionais, foram evidenciadas


pelas cores e sua ausência (com e sem luminosidade).
Durante a pandemia Covid-19, crianças deixaram de ir à escola
regularmente e tiveram que estudar em casa sem a interação
presencial com o professor e colegas em sala de aula. Atividades de
socialização e convivência com o(s) outro(s) foram substituídas
pela conectividade proporcionada pela Internet na
comunicação online em atividades síncronas ou em atividade
assíncronas em atividades do ensino remoto. Devido ao
distanciamento social imposto pela pandemia, nesse modelo
educativo, o convívio social e o tempo de aprender foi modificado.
Além disso, estar em casa não é o mesmo que estar na escola, o
lugar e o tempo modificam as interações e, consequentemente, as
aprendizagens delas decorrentes.
Assim como a realidade retratada na ilustração que ora analisamos,
em Bakhtin (2021), o realismo grotesco costumava jogar com a
dupla significação. É grotesco considerar que o processo educativo
durante a pandemia alcance a todos por meios tecnológicos, pois o
que muito se evidencia é que o acesso aos meios tecnológicos está
condicionado ao poder aquisitivo da sociedade. Famílias de poder
aquisitivo baixo que estão sendo afetadas com a pandemia, ao
contrário das que dispõem de meios tecnológicos, têm poucas
chances de prover recursos para seus filhos acompanharem às
aulas, por meio online e remoto, porque entre comer e adquirir
computador sobressai à necessidade de sobrevivência.
Por fim, destacamos que, se o direito à educação perpassa pela
condição de vida da população, precisamos refletir sobre como os
governos e as prefeituras estão fazendo para possibilitar que o
acesso à educação seja direito de todos. Sentimento de indignação,
frustação, raiva, grotescamente nos afeta, pois ouvimos dos
governantes falsas narrativas de que a educação vai bem, quando
há, na realidade, mais exclusão do que inclusão em tempos e

681
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

espaços diversos da sociedade. Esse é um cenário que nos inquieta


e provoca à interlocução...

Referências
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
3.ed. Tradução Aurora Fornoni Bernardi et al. São Paulo: Editora
UNESP, 1993.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. 5. ed.
São Paulo: Hucitec, 2002.
LEÓN, L. P. Brasil tem 152 milhões de pessoas com acesso à internet.
Disponível
em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-08/brasil-
tem-152-milhoes-de-pessoas-com-acesso-internet. Acesso: 07 set.
2021.
SANTOS, C. A. O ano de 2020 e a educação no Brasil. In: Revista
Sala de Recursos, v.1, n.1, p. 27 – 33, jan. – abril. 2021. Disponível em:
http://www.saladerecursos.com.br. Acesso: 20 ago. 2021.
RAMOS, P. A leitura dos quadrinhos. 2. ed. São Paulo: Contexto,
2012.
SODRÉ, P.; PAIVA, R. O império do grotesco. Rio de Janeiro: Mauad,
2002.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

El lado oscuro del grotesco bakhtiniano. Fragmentos sobre lo


terrible

Ariel Gómez Ponce


Universidad Nacional de Córdoba
arielgomezponce@unc.edu.ar

Veo en nuestra cultura popular, esa que el mercado conquistó como


un territorio de expansión y renovación, una inusitada fascinación
por los cataclismos, en especial cuando de pandemias se trata. Esto
dista de ser invención del COVID-19, aún más cuando se acepta,
como hace Mónica Müller (2020:41), que hace un siglo vivimos una
Era epidémica, asediados por virus con los que debimos forjar “un
pacto de convivencia en un equilibrio inestable”. Frágil
convivencia que los relatos masivos bien saben cuando imaginan
algunos de los escenarios que podríamos encontrar ante un nuevo
asedio de la naturaleza. Quizá, por ello, poco sorprendió el arribo
imprevisible de este agente silencioso que vació calles y ciudades,
que nos cubrió de máscaras y sumergió en un clima funesto, como
tampoco puede asombrar que un filme como Contagion (2011, de
Steven Soderbergh), con su virus procedente de China (y, lo que es
más, de un murciélago), haya renovado su popularidad durante el
confinamiento mundial más estricto.
La película descuida ese momento infalible en que todo se precipita
sin remedio en una cadena de contagios para priorizar, antes bien,
otras de las encrucijadas que todavía vivenciamos: improvisación
con protocolos sanitarios, teorías conspirativas, recelo de la prensa
y la sociedad, frenesí por hallar una cura e inocularse, y otros tantos

683
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

temas que, cuando el COVID-19 los transforma en realidad, se


tornan de pronto proféticos. Pero, sobre todo, lo que muestra con
fuerza es el confinamiento, cuestión que también parece regir la
trama de muchos otros relatos sobre el fin de los tiempos. Allí
encuentro lo que me gustaría llamar escenarios de contención,
ambientes obsesionados con el contagio y el aislamiento, y sobre
los cuales quisiera ensayar algunas lecturas desde los aportes de
Mikhail Bakhtin, pues creo estas narrativas manifiestan la vigencia
de cierto grotesco, mediante el cual se nos informa sobre una
percepción del cuerpo individual y social, a veces bastante
ignorada.
Cuando Bakhtin se propuso reconstruir la memoria de la cultura
cómico-popular, percibió algo con claridad: durante las pestes, “la
vida es sacada de su orden banal, la telaraña de las convenciones es
desgarrada, todas las fronteras oficiales y jerárquicas son abolidas,
y se crea un ambiente específico” (1984[1965], p. 225). O, para
decirlo en sus propios términos, cierto rasgo carnavalesco aflora
allí, en el sentido de un tiempo y un espacio de liberación
transitoria, con extensa tradición y cuyo germen, sin dudarlo,
Bakhtin localiza en El Decamerón. Se me objetará con razón que el
arte masivo hoy carece de la celebración de la vida en un ambiente
funesto como lo hiciera Boccaccio, o que arrebata la renovación que
otros géneros carnavalizados vieron en la muerte, confrontando
con la escatología cristiana. Sin embargo, toda iconografía de la
peste destila sentidos grotescos, aunque nuestra cultura actual
elige prolongar otra de sus derivas, aquella que el filósofo
llamó grotesco subjetivo.
Este grotesco, que poco tiene que ver con la vocación transgresora
y utópica celebrada ejemplarmente por Rabelais, supone otra etapa
en el desarrollo de ese sistema de imágenes: una que el
romanticismo trabaja como “paráfrasis” de la cosmovisión popular
y de sus signos fundantes, traducidos “en la lengua subjetiva de la
época” (1984[1965], p. 39). Otras tendencias conciernen a este
grotesco, es cierto. Para Bakhtin, los cambios notables derivan de

684
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

una afición por lo terrible que somete a su cedazo muchas formas


que incluso nutren el carnaval, aunque su carácter festivo, de
comunión cósmica e histórica, se desvanece porque “el mundo
humano se transforma de pronto en un mundo exterior. Y lo
acostumbrado y tranquilizador revela su aspecto
terrible” (1984[1965], p. 41). Y basta solo ver la transición de
algunos motivos a la literatura romántica, especialmente gótica,
como esos espantapájaros, marionetas y diablos cuya
extravagancia muta en malignidad, o bien la locura y las máscaras,
las cuales cesan de negar el sentido único para, en cambio,
disimular un vacío horroroso. “Las imágenes del grotesco
romántico”, señalará Bakhtin, “son generalmente la expresión del
temor que inspira el mundo y tratan de comunicar este temor a los
lectores (‘asustarlos’)” (1984[1965], p. 41).
Diferencias al margen, pienso que es la sucesión de cánones en
contradicción lo que signa la vasta concepción del grotesco en
Bakhtin, algo que, en su expresión carnavalizada, se resuelve como
ambivalencia. El grotesco subjetivo ejerce, si no lo opuesto, al
menos lo contrapuesto a una ambigüedad que se transforma “en
un contraste estático y brutal, o en una antítesis petrificada”
(1984[1965], p. 43). La muerte es ejemplar aquí. Boccaccio primero,
y luego Rabelais, le devolvieron su principio material, presentando
la muerte no como final irremediable, sino como resurrección
productiva, inseparable de la continuidad biológica. Pero esa
literatura romántica que hace de lo terrible su signatura paraliza
dicha ambivalencia o, en el mejor de los casos, atenúa el polo
positivo de la renovación, dando lugar a un sinfín de monstruos
escindidos y revinientes (vampiros, zombis). Lo que edifica este
grotesco es, en definitiva, “un contraste desnudo que crea una
atmósfera trágica, pero, en absoluto, boccacciana [pues] la
dominante de toda la imagen se traslada a la muerte” (2019[1973],
p. 390).

685
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Debería agregar también que, en Bakhtin, ronda la premisa de


que este grotesco zanja una contradicción que se disputa entre lo
universal y lo individual. Si el carnaval es la experiencia colectiva
de cuerpos que se desbordan y vuelven uno, es porque allí no hay
división precisa entre lo íntimo y lo público: antinomia que habrá
de dominar el espacio social cuando el individualismo burgués
acabe de florecer, precisamente cuando el grotesco subjetivo
alcance su apogeo. Se trata nada menos que de un intento por
separar el cuerpo del mundo y el cosmos, cuando las fronteras de
la esfera privada comienzan a blindarse con la aparición del sujeto
burgués (Cfr. GÓMEZ PONCE, 2021). Esto no quiere decir que el
principio material, cimiento de toda imagen grotesca, se pierda.
Más bien, se debilita o, lo que es más, se privatiza: subsiste relegado
en un espacio cotidiano que el arte recorrerá insistentemente en
busca de explorar la interioridad individual. Bakhtin entenderá que
solo dentro de este plano subjetivo y escindido del colectivo, el
individuo podrá reconciliarse con su mundo, motivo por el
cual hablará de un grotesco de cámara: “una especie de carnaval que
el individuo representa en soledad, con la conciencia agudizada de
su aislamiento” (1984[1965], p. 40).
Creo que, siglos después, Contagion tiene la virtud de evidenciar el
vigor de este grotesco que aboga por lo terrible y por un modo de
vida fragmentario. Lo hace con sus ciudades sitiadas, sus calles
desoladas, y sus oficinas y escuelas vaciadas, mientras la población
mundial se confina irremediablemente en sus hogares. Para
sorpresa de muchos (incluso de su propio director), tiempo antes
de que el COVID-19 lo instalara como lugar común, el filme
presentó con naturalidad el “distanciamiento social”, con este
agregado: el cisma no solo es sanitario, pues los rumores y la
discordia también se esparcen virósicamente, alentados por los
privilegios y las desigualdades, en donde se respira un intenso
clima de sospecha que pronto estallará en violencia anárquica. Pero
diría que este ambiente dista de ser novedad, pues los géneros de
la catástrofe replican incasablemente ese modelo de sociedad

686
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

atomista, incluso como un motor de arranque muy eficaz. A simple


vista, son muchas las narrativas que fundan sus tramas en una
humanidad fragmentada en grupos que compiten por la
subsistencia, sometidos a un peregrinaje errático, sin porvenir
posible, y esparcidos en un mundo que repentinamente se ha
vuelto hostil, sea ya por un holocausto bélico (The 100, Raised by
Wolves), una tragedia nuclear (Dark, The Rain), o bien una (bastante
agotada) pandemia zombi (The Walking Dead, Black Summer).
Me pregunto si acaso estas ficciones, en donde la fragmentación
social se repite con la obstinación de quien cuenta versiones de una
misma historia, no están insinuando lo que se ha instalado como
una cualidad epocal, aún más si acordamos que el confinamiento
forzado por la mediatización extrema, y su reclusión en un sinfín
de pantallas digitales, novedades e inmediateces, es un síntoma de
este tiempo, a veces llamado posmoderno. No ha de extrañar que
las formas de la cultura actual insistan en retratar el fracaso de la
experiencia colectiva y corporalmente vivida para escenificar, en su
lugar, ese ambiente que, como bien diría Bakhtin, “adquiere los
acentos sombríos y trágicos del aislamiento individual”
(1984[1965], p. 41).
La otra evidencia de este revival grotesco es más aciaga y, si cabe,
encierra una contradicción tal vez inadvertida: un avance
intempestivo de la naturaleza que supone un retroceso de lo
humano. Si la industria cultural nos ha adiestrado bien, basta solo
presentar una ciudad invadida por vida vegetal para que el
espectador sospeche que alguna catástrofe, la que fuera, ha puesto
a la humanidad en el borde de la extinción. Pero esto no es todo, si
se recuerda que muchos relatos trascienden en su modo de
refractar el cuerpo como un imposible bastión de
resguardo. Contagion es, una vez más, ilustrativa cuando enseña
que “fómites” significa una transmisión por contacto con
superficies, alentada por la irradiación de virus que provocamos al
tocarnos el rostro casi tres mil veces por día. Aquí es la propia

687
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

corporalidad la que se ha vuelto terrible, por estar privada de sí y


de la unión con esos otros cuerpos que, con suerte, podrán
reencontrarse en fosas comunes, sin la fortuna de una despedida
ceremoniosa. En estos ambientes de contención, poco queda de esa
comunión que Bakhtin tanto admirará del grotesco popular, ese
que, como bien describe Pampa Arán, “tiende a borrar o a
desplazar los límites entre la naturaleza y la cultura y a pregnar las
imágenes de la metamorfosis” (2016, p. 132).
Paradójicamente, este cuerpo grotesco se somete también a una
hibridación, solo que la ejerce como mutación divergente y
combinada de murciélagos y cerdos que se encubre para transitar
siniestramente el organismo, sin percibirse hasta el colapso
inmune. Con pavor, una de las investigadoras
de Contagion exclama que “el virus nos descifra más rápido que
nosotros a él”, lectura extrañamente similar a la que despliega Jean-
Luc Nancy ante el incierto epocal por el COVID-19, con quien
“descubrimos hasta qué punto lo viviente es más complejo y más
incomprensible de lo que representábamos” (2021, p. 15).
¿Estamos, entonces, ante un grotesco que escenifica la permanente
regeneración biológica, sin oportunidad de renovación
social? ¿No habla de ello la efusión de zombis, vampiros y ciborgs,
entrelazados al contagio virósico? ¿Qué es, si no, este asedio
comercial del body horror, el gore y otras tantas modalidades
estéticas que hacen del cuerpo un acontecimiento terrible? Si, como
dijera el filósofo ruso, el principio material cambia de signo con cada
época, en nuestro tiempo parece regir uno que connota el
padecimiento corporal, tanto individual como social.
Debo aclarar finalmente que, no hubo, en Bakhtin, intención de
profundizar en esta expresión romántica, aunque una acotada
exploración atestigua la fecundidad de su conceptualización sobre
el grotesco, categoría con la que nos invita a contemplar la unidad
en fenómenos heterogéneos, en apariencia inconexos. Como se ve,
no se podría esperar que esos fragmentos embrionarios más
actuales desnuden lo mismo que el utopismo del carnaval revelara

688
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de la sociedad feudal. Su cuestionamiento es otro, porque la escena


cultural también lo es. Sin embargo, no es menos cierto que el
grotesco subjetivo develó una propia mutación histórica: la de un
sujeto cuya interioridad era asediada por las fuerzas de lo
desconocido y lo siniestro, anunciando así algunas preocupaciones
de ese ego romántico que estalla en el siglo XIX, muchas de las
cuales nuestro tiempo parece compartir. No en vano Bakhtin
advertirá que
hay que reconocer que el romanticismo ha hecho un
descubrimiento positivo, de considerable importancia: el
descubrimiento del individuo subjetivo, profundo, íntimo,
complejo e inagotable. Ese carácter infinito eterno del individuo era
ajeno al grotesco de la Edad Media y el Renacimiento, pero su
descubrimiento fue facilitado por el empleo del método grotesco,
capaz de superar el dogmatismo (1984[1965], p. 45).
Unas pocas palabras, no más, le bastan para rescatar este grotesco
de fronteras inmutables y mundos cerrados, pero exhaustivo en sus
modos de explorar los sentimientos de una época. Se me ocurre,
por ello, que lo que de esta vasta estética amerita una lectura atenta
no es tanto su carácter festivo, como esa actitud crítica que el
filósofo supo definir como un rasgo constante, cuando no
determinante: “una relación profunda con el tiempo”, ligada
siempre “a periodos de crisis, de trastorno, en la vida de la
naturaleza, de la sociedad y del hombre” (1984[1965], p. 14). Para
decirlo con más claridad: es la percepción de los lazos con los
tiempos cósmico, biológico e histórico aquello que el grotesco
densifica y busca hacer visible hasta elevarlo en forma artística.
Esta, y no otra, intuyo que es la potencia de un grotesco que
es capaz de ir más allá de la mera parodia para condensar, en
imágenes fluctuantes e inestables, una metamorfosis en ciernes,
muchas veces no disponible para la conciencia cultural. Dotado de
persistencia y, a la vez, de fluidez, esta escurridiza concepción
estética produce siempre sus propias variaciones históricas,

689
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

poniendo al descubierto esas utopías y temores, contradicciones


sociales al fin que coexisten, aunque sin poder coagular más que
como ambivalencias o contrastes. En ello, precisamente, me animo
a decir que reside la fuerza artística e interpretativa” de ese
grotesco que tanto cautivara al maestro Bakhtin (1984[1965], p. 45).

Referências
ARÁN, P. La herencia de Bajtín. Reflexiones y migraciones. Córdoba:
Editorial Centro de Estudios Avanzados / Ferreyra Editor, 2016.
BAKHTIN, M. “Formas del tiempo y del cronotopo en la novela”.
En: La novela como género literario. Zaragoza: Prensas de la
Universidad de Zaragoza, 2019[1938]. p. 251-287.
BAKHTIN, M. La cultura popular en la Edad Media y el Renacimiento.
Madrid: Alianza, 1984[1965].
GÓMEZ PONCE, A. “Mikhail Bakhtin presents… Joe Dallesandro. Del
cuerpo grotesco y sus sentidos en la posmodernidad”. En: Miranda,
Raquel y Lell, Helga [comp.]. Persona, cuerpos y discursos. Aportes
interdisciplinarios sobre un concepto variable. Buenos Aires: Editorial
Olejnik, 2021. p. 85-203.
MÜLLER, M. Pandemia: virus y miedo. Una historia desde la gripe
española hasta el coronavirus Covid-19. Buenos Aires: Paidós, 2020.
NANCY, J.L. Un virus demasiado humano. Buenos Aires: Ediciones
La Cebra, 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Elogio ao amor e à arte em resposta ao Brasil do tempo presente

Roberta Jardim Coube


IEPIC/Professora
belcoube@hotmail.com

Nestas linhas o interesse pelo amor como alimento para o nosso


“desejo de revolução poética na linguagem [e] na existência”
(BADIOU; TRUONG, 2013, p.50) constitui-se como ato responsável
e responsivo ao Brasil do tempo presente. Na paisagem
vislumbrada, em resposta ao contexto violento de nossa
contemporaneidade, o exercício (heterocientífico, porque de
inspiração bakhtiniana) é refletir sobre “quais imagens
revolucionárias nos ajudam a enfrentar o grotesco?[1]”.
Percorro com Bakhtin (2012) o caminho em que avisto as palavras
de Alain Badiou (2013) e Zygmunt Bauman (2021), cujas
enunciações me aproprio para compor as possibilidades de resistir
à conjuntura racista, misógina, excludente, monológica,
obscurantista do grupo que governa o nosso país. Pensar e
defender “toda poesia existencial” (BADIOU, 2013, p.13), “a
experiência autêntica e profunda da alteridade com que o amor é
tecido” (Ibidem, 2013, p.13) caminha, a meu ver, com as questões
mais próximas de nossos corações, indaga-se Bauman, “Como
podemos enfrentar a crescente desigualdade?” (2021, p.116). De
certo que seu projeto societário humanista é amoroso.
As variadas maneiras de definir o amor, bem como a ação humana
de amar e as diferentes expressões do amor estão interligadas por
um fio que pode ser coletivo. Cada sujeito amoroso, não
indiferente, sendo único e singular, pois fruto do exercício
subjetivo de cada corporeidade no mundo, é um vivenciamento

691
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

encarnado. Onde há amor há vida humana pulsante, erguida pelo


ato responsável dos sujeitos expressivos e falantes. Porque amamos
não somos indiferentes ao outro, suas dores, inquietudes,
sentimentos. Porque amamos a poesia da existência, não
compactuamos com projetos societários excludentes, de visão
limitada de mundo, visão monológica, avessa às diferentes vidas
pulsantes: as corporeidades negras, dos povos originários, as
femininas, transgêneros, os sujeitos com necessidades educacionais
especiais...
Trazemos[2] à cena os horizontes que aspiramos enquanto coletivo
desejante do bem comum: um mundo mais justo, sem nações em
guerra, sem a violência imposta pelo patriarcado branco
heteronormativo (em menor ou maior grau), relações de fato
harmoniosas entre ser humano e planeta Terra (sem a exploração
que suprime seres viventes, considerados equivocadamente
“inferiores” e aniquila os recursos naturais). Enfim, um horizonte
compreendido como o campo de visibilidade coletiva para o bem
comum.
Como docente da escola pública, construo esse exercício com os
estudantes por meio de rodas de conversas[3] com as diferentes
manifestações artísticas (Literatura, música, artes plásticas etc.),
com artistas convidados ou não, leituras e leitores das obras de arte
e do mundo vivido. Assim, valemo-nos da defesa das ações e
interações didático-pedagógicas (interações entre as
corporeidades) pautadas na compreensão de práxis como atividade
livre, universal, criativa e auto criativa por meio da qual o homem
cria (faz, produz) e transforma (conforma) seu mundo humano,
histórico e a si mesmo (BOTTOMORE, 2012). Reconhecemos que,
em tempos de luta pela vida e de resistência da escola pública, é
um imperativo defender o potencial da educação em/com
movimentos criativos conectados à artevida.
Neste movimento coletivo, destaco a relevância da obra Para uma
filosofia do ato responsável (2012), que ao tratar de questões sobre a

692
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estética com o intuito de compreender a própria vida. Olhar a vida


no evento estético, inseparável da ética, do ato responsável diante
da vida de cada corporeidade que compõe o coletivo escolar (que
pode ser cada turma, mas podendo ser composto pelo corpo do
coletivo maior da escola). Se é possível afirmar, a partir da filosofia
da linguagem de Bakhtin, que o diálogo existe, porque existe o
corpo, que o encontro é corpo: intercorporeidade (PETRILLI;
PONZIO, 2011).
O corpo é o próprio discurso, segundo Susan Petrilli e Augusto
Ponzio. Desconsideramos o corpo quando o nosso discurso é
monológico, ou seja, quando não escutamos as contrapalavras;
quando não somos capazes de ser sensíveis às corporeidades que
falam, por não olhar para a vida. A palavra é corpo, ela tem vida
além do ente que a enuncia. O enunciador é corpo, vive além da
instituição escolar e se renova e (des)constrói porque o outro existe,
porque há a relação que é sempre entre corpos – encontros
intercorporais.

Por ele sou também observado


Com ironia, desprezo, incompreensão.
E assim vivemos, se ao confronto se chama viver,
Unidos, impossibilitados de desligamento,
Acomodados, adversos,
Roídos de infernal curiosidade.[4]

Revisitando algumas leituras, volto à indagação “Que imagens


revolucionárias nos ajudam a enfrentar o grotesco?”, sabendo que
“amar é correr riscos...”: “o amor, sendo ele um interesse coletivo,
sendo ele, para quase todo mundo, aquilo que dá intensidade e
significado à vida, não pode ser essa doação à existência em regime

693
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de total ausência de risco” (BADIOU, 2013). E são muitos os riscos


quando coabitamos o planeta localizados na sociedade de
consumo: sociedade do descarte, da produção excessiva de lixo, da
caça às bruxas, do aniquilamento dos refugiados econômicos
produzidos pelo mundo globalizado... “Aprendi muito com Marx.
E ainda estou apegado à ideia socialista de que o critério para julgar
uma sociedade é se ela permite que seus integrantes mais fracos
tenham uma vida decente” (BAUMAN, 2021, p.127).
“Como se faz um novo mundo? [...]. Como alguém
transforma palavras em ações?” (BAUMAN, 2021, 93), eis a nossa
indagação coletiva, do sujeito singular-plural, cuja resposta ainda
estamos a construir, tal como o poeta enamora-se do amor: “A
virtude do amor é sua capacidade potencial de ser construído,
inventado e modificado.”[5]
“O amor [que] está em movimento eterno, em velocidade
infinita.”[6] O amor que nos possibilita exercer a vida em sua
intensidade e, assim, as “lembranças escorrem e o corpo transige
na confluência do amor”.[7] Contra as políticas de extermínio, a
construção amorosa para o bem comum, desafio que exige as
existências de diferenças, das contradições e polifonias. Não há
ingenuidade no elogio ao amor e à arte em resposta ao Brasil do
tempo presente; parafraseando Alain Badiou, a tarefa amorosa é
em si verdadeira, rara e difícil. Os “elementos desregulados,
aleatórios ou indisciplinados da condição humana” (BAUMAN,
2021, p.42) estão e estarão presentes na sociedade. A tarefa é
filosófica e está no horizonte.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

IMAGEM

A noite e os gênios do estudo e do amor – The Night with the Genii of


Study and Love. Américo, Pedro (Pedro Américo de Figueiredo e
Mello). Óleo sobre tela (1883). Museu Nacional de Belas Artes, Rio
de Janeiro – Brasil. Dimensões da obra: 260 × 195 cm.

Referências:
AMÉRICO, Pedro. (Pedro Américo de Figueiredo e Mello). A noite
e os Gênios do Estudo e do Amor – The Night with the Genii of
Study and Love. Óleo sobre tela (1883). Museu Nacional de Belas
Artes, Rio de Janeiro – Brasil. Dimensões da obra: 260 x 195 cm.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião: 10 livros de poesia.


Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012.
PETRILLI, Susan; PONZIO, Augusto. Thomas Sebeok e os signos
da vida. São Carlos: Pedro & João, 2011.

Notas

[1] Provocação dos amigos bakhtinianos do Rodas 2021.


[2]Neste texto, propositalmente, os verbos estão em movimento:
ora em primeira pessoa do singular, ora em primeira pessoa do
plural.
[3]As rodas de conversas foram realizadas durante as aulas com as
turmas do ensino médio do Curso Normal do IEPIC à época
anterior à pandemia da COVID-19. Atualmente (anos 2020 e 2021)
realizamos algumas rodas de conversa virtuais, buscando acreditar
na possibilidade de uma sociedade melhor, no exercício de pensar
e agir no mundo em prol do bem comum – da formação docente de
professoras e professores constituída por humanicidades
encarnadas, como nos ajuda a refletir a filosofia da linguagem de
Bakhtin.
[4] Versos drummondianos, no poema “O outro” (DRUMMOND,
2004, p. 35).
[5] Versos do compositor e cantor Paulinho Moska.
[6] Versos do compositor e cantos Paulinho Moska.
[7] Versos do poema “Sentimento do mundo”.

696
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em busca de uma filosofia do Grupo de Terça do GEPEC

Maria Natalina de Oliveira Farias


Unicamp
natalinafarias2203@gmail.com

Guilherme do Val Toledo Prado


Unicamp
gvptoledo@gmail.com

Wilson Queiroz
Unicamp
wilsonq10639@gmail.com

Este texto constitui uma oportunidade no qual podemos apresentar


um percurso, digamos, filosófica construída a partir dos encontros
do Grupo de Terça(GT) do GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisas
em Educação Continuada, da Faculdade de Educação – Unicamp
em Campinas/SP, em diálogo com seus participantes e a filosofia
da linguagem, numa perspectiva do Círculo de Bakhtin.
O Grupo de Terça foi instituído em 1996 pela Profa. Dra. Corinta
Maria Grisólia Geraldi partir do movimento de parceria formativa
universidade-escola, constituindo um espaço de diálogo em que
professoras e professores e profissionais da escola pudessem

697
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

debater sobre o cotidiano escolar, construir conhecimentos em


parceria; Ou seja, considerar os profissionais das escolas como
sujeitos que produzem conhecimento na própria relação
circunstanciada pelas e nas experiencias vividas por eles. De lá para
cá se passaram 25 anos, e o GT resiste, existe e vive! Por que ainda
resiste, existe e vive?
Desde o anúncio da Organização Mundial da Saúde da pandemia
do coronavírus no dia 10 de março de 2020, os encontros do GT
passaram a acontecer remotamente através do Google Meeting. O
entendimento do movimento dos encontros dos corpos ausentes,
se fez presença diante do outro pelas telas mobilizou as palavras
lançadas como resposta, numa escuta atenta e responsiva. A
palavra falada se apresentou como possibilidade de
retomada/ampliação dessa prática filosófica, constitutiva do GT.
Neste contexto, percebeu-se outros movimentos, em que diferentes
temáticas emergiram no jogo de palavras ditas, réplicas dos
participantes, no qual professores e professoras das escolas
públicas puderam ocupar o espaço da “praça”, imagem proposta
por Bakhtin no diálogo com a obra de Rabelais no livro “A cultura
popular na idade média e no renascimento” (2010). Risonhamente, as
réplicas enunciadas, ambivalentes, olham de soslaio, de canto de
olho, muitas das situações não vividas no cotidiano das escolas,
pela ausência de corpos em contato, pelo encontro visual dos
corpos ausentes.
Os inúmeros relatos dos processos de trabalho da docência
evidenciaram tanto a violência aos corpos em ausência entre as
telas, entre professoras e estudantes, como a apreensão de querer
ver esses corpos ausentes em imagens quadriculadas e em
movimento na tela do celular ou do computador.
Ao mesmo tempo, mas não no mesmo espaço, choros e risos
revelados por narrativas orais e narrativas escritas compartilhadas
no encontro entre a escola e universidade.

698
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Um outro movimento, provocado pela dança desses enunciados


orais das e dos participantes, anunciam novos horizontes de
possibilidades: a imagem de coletivos organizados: Coletivo de
combate ao racismo, coletivo dos profissionais de educação das
redes de ensino da região metropolitana de Campinas, Rede
Formad e Redeale da cidade do Rio de Janeiro. Coletivos que se
evidenciam como importante aliados na luta contra a política de
morte instituída no atual contexto, nacional e mundial.
Esses coletivos mostram um forte movimento orientado pelos
conhecimentose saberes construídas em rodas de conversas, muitas
delas referenciadas teórica-metodológicamente nas perspectivas
freirerianas e bakhtinianas.
Essas rodas de conversas, no GT acontecem, desde o início da
pandemia, as 3ª feiras, quinzenalmente. A dinâmica dos encontros,
a partir do rumo produzido pelos seus participantes, com
atividades de leitura das dissertações e trabalhos de conclusão de
curso orientadas pelos professorespesquisadores do GEPEC,
apresentações orais e escritas de narrativas de situações cotidianas
escolares, compartilhadas no aplicativo de um mural interativo
padletfoi muito potente.
Como afirmaram os professorespesquisadorxs: Guilherme do Val
Toledo Prado e Liana Arrais Seródio, no artigo presente no
livro Saberes Transgredientes (2018):

O que nos chama a atenção neste grupo, é o caráter plural e diverso


que todos assumem ao iniciar-se um grupo de discussão que não
tem pauta fixa, que não pretende sistematizar uma verdade, que
não pretende disciplinar e regular o que foi dito ou o que se diz.
Simplesmente, mas não descompromissadamente, todos se
reúnem para narrar práticas pedagógicas cotidianas, explicitar os
saberes produzidos e conquistados na experiência docente,
manifestar as inquietudes e revoltas face às condições de trabalho

699
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que se instauram, contar as lidas cotidianas. (PRADO, SERÓDIO,


2018, p.152 e 153)

Participantes de diferentes lugares narram o que fazem nas


escolas na relação com seus estudantes e parceiros profissionais...,
e a palavra circula! Livre, leve e solta! Sejam perguntas que
inquietam, mas sem respostas prontas, as palavras adensam-se em
sentidos entre as múltiplas consciências, a partir das produções
orais e produções escritas verdadeiros “nascedouros”, nessa arena
constituída como GT:
.
...a palavra na vida não é autosuficiente. Ela surge da situação
cotidiana extraverbal e mantém uma relação muito estreita com ela.
Mais do que isso, a palavra é completada diretamente pela própria
vida e não pode ser separada dela sem que o seu sentido seja
perdido. (VOLOCHINOV, 2019, p. 117)

A dinâmica que se vive no GT, por meio das narrativas (orais e


escritas) é dado pelo que temos chamado de acontecimento
narrativo: os participantes produzem sentidos outros para
experiencias vividas, narradas e compartilhadas!
Respingam-se sentimentos e pensamentos, no qual, uns na relação
com os outros, outros em relação à uns, afetam-se! Há uma
celebração de viventes numa casa comum ou, como diz Bakhtin ao
apresentar o entendimento de carnaval para Rabelais, uma festa
popular na idade média e no renascimento, um modo de festejo
popular, uma segunda vida, sustentada no riso que liberta e renova
das amarras e padrões sociais, de uma verdade dominante. “Era a
autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e
renovações...” (BAKHTIN, 2010, p.9).

700
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GT traz essa imagem do festejo e da comunhão, que contraria nas


e as linguagens que violentam o processo de trabalho docente,
experimentando outras formas linguageiras cotidianas escolares,
fazendo do riso, uma possibilidade de contraversão do instituído
em tempos tão difíceis e contraditórios.
Referencias
BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o
contexto de François Rabelais. tradução de Yara Frateschi Vieira. São
Paulo: Hucitec, 2020.
BAKHTIN. M. A teoria do romance I: A estilística. Tradução de Paulo
Bezerra. São Paulo: editora 34, 2015.
BAKHTIN. M. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN,
Mikhail. Estética da criação verbal. 4ª edição. Trad. Paulo Bezerra.
São Paulo: Martins Fontes, 2003. (p. XXXIII)
FREIRE. P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1974.
SERODIO, L. A.; PRADO, G.V.P Narrativas de professores e
profissionais da educação – uma posição axiológica outra na produção de
saberes transgredientes em educação. In: SERODIO, Liana Arrais;
SOUZA, Nathan Bastos de. Saberes transgredientes. São Carlos/SP:
Pedro João editores, 2018. (p.152 e 153)
TIHANOV, G. A importância do grotesco. Revista Bakhtinianas.
Jul/Dez, 2012. 166-180.
VOLOCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia. tradução
de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: editora
34, 2019. (p.117).

701
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em rodas crianças e suas palavras: escritas grotescas?

Fernanda Camargo Dalmatti Alves Lima


Escola Comunitária de Campinas/Professora auxiliar,
fundamental 1
fernanda.dalmatti@gmail.com

Para iniciar nossa roda de conversa...


Sou professora dos anos iniciais do Ensino fundamental 1 e
participante do Grupo de Estudos Alfabetização em Diálogos, o
GRUPAD e o Grupo de Estudos Bakhtinianos, o GruBakh. Ambos
são subgrupos do Grupo de Pesquisa e Estudos Educação
Continuada, o GEPEC, da Faculdade de Educação da UNICAMP.
Nestes espaços, as escritas de narrativas dão o tom e a organização
dos estudos, especialmente no GruBakh. No ano de 2020, o
GruBakh teve como livro norteador Marxismo e filosofia da
linguagem (VOLÓCHINOV, 2018) e Para um filosofia do ato
responsável (BAKHTIN, 2017). E neste ano, Estética da criação
verbal (2011), sempre estamos acompanhados pelas narrativas
(PRADO et al, 2015), os diálogos entre o mundo da vida e o mundo
da cultura (BAKHTIN, 2017, p. 43), na escuta e na resposta
responsiva aos outros.
Nessa roda grubakhtiniana como resposta, sem álibi, assumo meu
lugar e vou compondo, com meus parceiros e minhas parceiras de
grupo, saberes outros e a materialidade que me possibilita tomar o
outro como sujeito em sua singularidade para depois de certo
modo voltar às relações com ele, está na narrativa. Para mim a
escrita de narrativas, muitas vezes, é estabelecida primeiramente
no diálogo, oralmente, em roda – mesmo que virtualmente,
em janelinhas – e após esse encontro, vem a narrativa. Noutros

702
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

momentos, vem a narrativa da roda com as crianças, do


acontecimento irrepetível, do acontecimento singular do vivido.
Em 2020, ano pandêmico, corpos ilusoriamente paralisados, rodas
em formatos de janelinhas, apesar deste contexto, foi um ano de
muitos pontos dos sentidos estabelecidos com as leituras que o grupo
estava fazendo.
[...] O texto da Gisele trouxe um fio do meu emaranhado: a
relação criança-estudante com a palavra, mais especificamente o
texto, algo maior, mais complexo, com o discurso alheio e interior,
na relação dela com a turma de 5º ano. Eu continuo pensando no
processo de alfabetização de crianças, entre 6 a 8, 9 anos. No
começo do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (2018), eu
pensava muito na palavra, na sua força, na interação discursiva e
no processo significação da palavra vivida na ideologia do
cotidiano: “[...] toda palavra é um pequeno palco em que as
ênfases sociais multidirecionadas se confrontam e entram em
embate. Uma palavra nos lábios de um único indivíduo é um
produto da interação viva das forças sociais” (VOLÓCHINOV,
2018, p. 140). [...] (Trecho da narrativa Nos fios: palavras, textos... me
constituindo professora. Junho de 2020. Arquivo pessoal).

As palavras estão vivas e lutam em uma arena! Eu-professora me


desfazendo de todas as verdades que até então, acreditara, tendo
sido formada como alfabetizadora, passo a questionar a
palavra morta, acabada, inalterável que até então, ensinava.
Acreditava que todo/a estudante precisava de um contexto didático
favorável, então uma boa proposta ajustada era o suficiente. A
leitura de MFL me fez abrir meus arquivos, olhar meus guardados,
quais pistas tinha de minha formação? O que pensava sobre as
escritas das crianças numa perspectiva social, da palavra
entretecida na força socioideológica?
Meu movimento formativo é circular, em rodas, a cada momento
me encontro com um texto, autor, me coloco a pensar e a narrar
sobre o vivido. Em 2020 as agitações ficaram por conta de pensar

703
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

muito sobre o ensino remoto e guardei essas perguntas. E neste ano


de 2021, no segundo semestre, retomando a leitura da minha
narrativa de junho de 2020, a que apresentei um pequeno trecho
acima, me propus a buscar as respostas destas indagações, retomei
meus guardados do ano de 2018 que foi a minha primeira turma de
1º anodo ensino fundamental, de uma escola da rede privada, em
Boituva, interior do estado de São Paulo para colocar na roda e
compreender com os enunciados de minha turma.

A roda das pequenas narrativas


Abri minha caixa de guardados, de 2018 e lá encontrei muitas
escritas, muitos desenhos, depois escritas e desenhos, não estavam
organizados em ordem cronológica, mas observei que os desenhos
estavam centralizados no começo do 1º semestre, ao final do
mesmo semestre, me encontrei com as cartas que as crianças
fizeram para mim, com escritas e desenhos. Ao reler cada
enunciado, tive a sensação de sentar em roda, com as crianças.
Nessa companhia produzi pequenas narrativas, imbuídas de
memórias, amorosidade, responsabilidade, não indiferença...

(Imagem, arquivo pessoal, 2018)

704
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(Imagem, arquivo pessoal, 2018)

(Imagem, arquivo pessoal, 2018)

Roda das narrativas, afinal o que há de grotesco?


Buscando responder as perguntas que fiz, durante a leitura de
quais pistas tinha de minha formação? O que pensava sobre as
escritas das crianças numa perspectiva social, da palavra
entretecida na força socioideológica? Me encontrei com outro livro
de Bakhtin (1987) e me demorei na introdução, afinal o que sabia
até então sobre o Grotesco era pautada no senso do cotidiano, aquilo
que é feio. Um senso estético bem capenga. Isso era grotesco para

705
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mim. Ao continuar a leitura e pensar respostas sobre minha


formação, compreendi o quão grotesca eu sou, no sentindo do
inacabamento, inconclusão (SILVESTRI, 2018).
O que me fez observar dois panoramas, que sem pretensão de
demonstrar total domínio teórico apresento em roda, a professora
renascentista para a professora grotesca. A professora renascentista
espera a escrita sempre estável, completa, com sequência começo,
meio e fim. Em contrapartida, a professora grotesca, tem consciência
de que “Não há nada perfeito, nada estável ou calmo [...]” (BAKHTIN,
1987, p. 23), as escritas podem faltar ou sobrar letras, porque a palavra
está em arena, na interlocução, estabelece sentido para um auditório,
a proposta está na dialogicidade: o que juntos produzimos de
conhecimento ao escrever? A criança produz os seus dizeres porque
tem para quem escrever, eu-professora aprendo na instabilidade a
refletir sobre o processo de ensino e aprendizagem que aposta sempre
na palavra prenhe de vida, sentidos, desejo de enunciar, de dizer a sua
palavra (GERALDI, 2006).
Com Gustavo aprendi que algumas letras podem até faltar, mas o
sentido está na palavra e no seu contexto de escrita. Ele queria
escrever para mim, expressar o que sente por mim e ele usou todos
os recursos aprendidos até aquele momento, que fizeram sentido.
Já para a Rafa se algum fonoaudiólogo ler, provável que queira
investigar mais a fala dessa criança. Mas, para mim, está bem
nítido, ao expressar os grandes sentimentos foi necessário usar
todos os recursos linguísticos conhecidos até o momento.
E Maria Gabriella ousou e usou todas suas palavras para enunciar a
nossa relação, o parque, a brincadeira, a professora. Está tudo ali,
aglutinado, bem juntinho para não sentir nem um pouquinho de
saudade durante as férias de julho.

O que aprendo em rodas?

706
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Lembro-me de ler essas cartinhas com muita preocupação, a


professora renascentista queria a perfeição, imagine só, metade do
ano e crianças ainda escrevendo assim. Naquelas férias, minhas
pré-ocupação foi em planejar atividades que pudessem fazer
minha turma avançar: escrever as palavras com todas as letras,
escrever sem aglutinar, estudos ortográficos...
Quanto esforço desnecessário.
Hoje, tenho aprendido a rir com os autores e autoras de seus
dizeres, as crianças, encontrando beleza na incompletude, nas
frestas e saboreio em cada roda que faça com minha turma atual, o
prazer de dizer a palavra singular de cada ato que respondemos ao
outro.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora
Hucitec, 1987, p.1-40.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do Ato Responsável. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2017.
GERALDI, João Wanderley; Milton José de Almeida (et al). O texto
na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006.
PRADO, Guilherme do Val Toledo; SERODIO, Liana Arrais;
PROENÇA, Heloísa Helena Dias Martins; RODRIGUES, Nara
Caetano. Metodologia Narrativa de Pesquisa em Educação: uma
perspectiva bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João, 2015.
SILVESTRI, K.V.T. Corpos grotescos: linhas gerais da filosofia
política bakhtiniana. In: SERODIO, L.A. (et al) (orgs.) Narrativas,
corpos e risos enunciando uma ciência outra. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2018.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. São


Paulo: Editora 34, 2018.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

EM TEMPOS DO GROTESCO AS MUITAS VOZES


SILENCIADAS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Iolanda Silva Menezes de Araujo


UFRRJ/GEPELID
ioio.s.araujo@gmail.com

“ERGUER A CABEÇA ACIMA DO REBANHO


Erguer a cabeça acima do rebanho
é um risco
que alguns insolentes correm.
Mais fácil e costumeiro
seria olhar para as gramíneas
como a habitudinária manada
Mas alguns erguem a cabeça
olham em torno e percebem de onde vem o lobo
O rebanho depende de um olhar.”

(Affonso Romano de Sant´anna)

709
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Início esse texto com a epígrafe que abriu minha Dissertação de


Mestrado (2015)[1], essa nunca esteve tão atual. Na conjuntura
política no país, ser insolente e não ser mais um que acompanha a
manada é compreender que não há álibi para fugir da luta. Para
Ponzio (2010),
Desta responsabilidade sem álibi se pode certamente tentar fugir,
mas mesmos as tentativas de alienar-se desta responsabilidade
testemunham o seu peso e a sua presença inevitável. Cada papel
determinado, com a sua responsabilidade determinada, especial,
“não elimina”, diz Bakhtin, “mas simplesmente especializa minha
responsabilidade pessoal”, ou seja, a responsabilidade moral sem
delimitação e garantias, sem álibi...
Na filosofia de Bakhtin, a noção de alteridade se relaciona com
pluralidade, heteroglossia, polissemia, muitas vozes e ideologia.
Nos atos de interpretação e compreensão, a palavra alheia se faz
sempre presente. É a contrapalavra, outro conceito na filosofia de
Bakhtin, para mostrar que sempre quando falamos ou ouvimos,
produzimos enunciados que respondem aos nossos interlocutores.
Dessa maneira, o sujeito é, então, respondente, sendo que sua
ação é sempre resposta a uma compreensão da ação do outro, e
assim o sujeito também é responsável, pois responde pelo sentido
construído que desencadeou sua ação. Geraldi (2010, p.85)
complementa: “Neste sentido, responsabilidade abarca, contém,
implica necessariamente a alteridade perante a qual o ato
responsável é uma resposta. Somos cada um com o outro na
irrecusável continuidade da história”.
Os direitos sociais conquistados ao longo do processo democrático
vêm sofrendo duras perdas nos últimos anos. Não bastasse o
momento difícil e pandêmico, o tempo presente tem sido inundado
pelo grotesco e assolado da maneira mais bizarra e caricata as
políticas públicas. O silenciamento das minorias e dos mais pobres
tem sido o grande lócus dos insistentes ataques de um projeto de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Estado pautado nas políticas neoliberais de uma direita elitista e


excludente.
Diante desse cenário, a Constituição promulgada em 1988,
conhecida como “Constituição Cidadã” inclui artigos que
reconhecem a dignidade da pessoa humana, o estabelecimento de
uma sociedade livre e justa e a proteção aos direitos humanos.
Entretanto, a implementação de uma política neoliberal, ora em
curso, leva indivíduos e camadas significativas da sociedade a
partir do aumento da criminalidade e da insegurança sob o regime
democrático a se voltarem contra a defesa dos direitos
humanos, visto como a serviço mais da proteção de criminosos e
deliquentes do que das vítimas e da população em
geral (SACAVINO, 2008). Esse discurso de ódio, o levante contra
democracia e aos processos de dizer dos mais vulneráveis está em
pleno curso. Os setores identificados outrora com a ideologia
autoritária estão declaradamente de volta ao poder.
Ainda nesse contexto de perdas, as políticas públicas para
promoção de direitos de igualdade e direito das diferenças como o
Programa Nacional de Ações Afirmativas lançado em 2002 sob a
coordenação da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do
Ministério da Justiça que contemplava entre outras medidas
administrativas e de gestão estratégica, as ações que visavam o
aumento de percentuais de participação de afrodescendentes,
mulheres e pessoas com deficiência no preenchimento de cargos
em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores;
estimular desenvolvimento de ações de capacitação com foco nas
medidas de promoção de igualdade de oportunidades de acesso à
cidadania; promover a sensibilização dos servidores públicos para
a necessidade de proteger os direitos humanos e eliminar as
desigualdades de gênero, raça e as que vinculam às pessoas com
deficiência; articular ações e parcerias com empreendedores sociais
e representantes dos movimentos de afrodescendentes, de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mulheres e de pessoas com deficiências. (PROGRAMA


NACIONAL DE AÇÕES AFIRMATIVAS, 2002: 1-3)
Outro importante órgão foi a criação da Secretaria Nacional de
Políticas para Mulheres, em 2003, atualmente vinculada ao
Ministério da Mulher, das famílias e dos Direitos Humanos, que
visava desenvolver ações com todos os Ministérios e Secretarias
Especiais, tendo como desafio a incorporação das especificidades
das mulheres nas políticas públicas e o estabelecimento das
condições necessárias para sua plena cidadania.
Na arena das disputas de poder e do projeto neoliberal, o outro –
pobres, negros, deficientes, crianças e mulheres, são coisificados,
sem escuta, sem voz, sem valor, sem diálogo. Para o GEGe (2011):
Muitos são os acontecimentos e discursos que ainda nos cercam
buscando cercear diferentes posições, diferentes olhares, forçando
uma identidade mediante o apagamento das diferenças. Fico me
perguntando o que Bakhtin e Arendt nos responderiam caso
perguntássemos a eles: Devemos tolerar o outro que é tão diferente
de mim? Penso que responderiam (de formas diferentes, mas essa
direção talvez): devemos aprender com esse outro algo que só ele
pode nos mostrar a respeito do mundo. Grandiosas são reflexões
em torno da pluralidade humana, dos dois valores centro em jogo
(o eu e o outro, bakhtinianos) como forma de enxergar o mundo em
uma ordem que só pode ser dada pela diversidade, pela diferença.

À guisa de conclusão
Retomo o ponto de partida do não álibi “...sem desculpas”, “sem
escapatórias”, mas também “impossibilidade de estar em outro
lugar” em relação ao lugar único e singular que ocupo no existir,
existindo, vivendo” (2010, p.20), do meu fazer ético, enquanto
pesquisadora, de não silenciar frente as perdas do conjunto de
direitos sociais que tem sido negligenciado e por muitas vezes

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

negado em relação às vozes silenciadas nesses dias tão sombrios. A


diferença identifica a desigualdade deforma (GERALDI, 2003).

Referências
AMORIM, M. O Pesquisador e Seu Outro: Bakhtin nas Ciências
Humanas. São Paulo: Editora Musa, 2001.
______. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação
ética, estética e epistemológica. IN.: FREITAS, M. T.; JOBIM E
SOUZA, S; KRAMER, S. (Orgs). Ciências Humanas e Pesquisa
Leituras de Mikhail Bakhtin. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2003
______. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 2009.
______. Para uma filosofia do ato responsável. São Paulo: Pedro e
João, 2010.
BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília:
Ministério da Justiça, 1996.
______. Programa Nacional de Direitos Humanos II. Brasília:
Ministério da Justiça, 2002.
______. Programa Nacional de Ações . Brasília: Ministério da
Justiça, 2002: 1-3
GADOTTI, Moacir. Escola cidadã: uma aula sobre a autonomia da
escola. São Paulo, Cortez, 1992, v. 50.
GEGe. Palavras e contrapalavras: procurando outras leituras com
Bakhtin. São Paulo: Pedro & João Editores, 2011.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

GERALDI, João Wanderley. Ancoragens – Estudos bakhtinianos.


São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
SACAVINO, S. Educação em/para os Direitos Humanos em
processos de democratização: o caso do Chile e do Brasil: (Tese de
Doutorado) Programa de Pós – graduação em Educação.
Departamento de Educação. Pontífica Universidade Católica do
Rio de Janeiro, 2008

Notas:
[1]ARAUJO, Iolanda Silva Menezes de. O lugar da Educação
Infantil na Universidade: memórias da gestão da escola de
educação infantil da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2015. Dissertação, (Mestrado em Educação) Instituto de
Educação / Instituto Multidisciplinar / PPGEduc / Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, RJ. 2015.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ENCONTRO DE ALMAS, ENCONTRO DE CORPOS

André Luiz Neves Jacintho


Secretaria de Educação do Espírito Santo/Professor
andretcho@gmail.com

Minha experinência com o GruBakh teve início em 13 de março de


2021. Antes, porém, nossas almas já se comunicavam através do
livro Metodologia narrativa de pesquisa em educação: uma
perspectiva bakhtiniana, organizada por Guilherme do Val
Toledo Prado, Liana Arrais Serodio, Heloísa Helena Dias Martins
Proença e Nara Caetano Rodrigues.
Buscando novas fomas de me relacionar com a escola, voltei ao
texto que, em 2016, foi essencial para dar continuidade à
dissertação de mestrado Leitura poética da cidade de Vitória na
obra de Elmo Elton. Esse texto chegou até nós, minha orientadora
e eu, no VI CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana:
“LITERATURA, CIDADE E CULTURA POPULAR”, que
aconteceu de 07 a 09 de novembro de 2016, em Recife e Olinda, no
Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de
Pernambuco. Essa primeira experiência com o RODAS foi, sem
dúvidas, uma das mais impactantes da minha vida acadêmica.
Com o passar dos anos (de 2016 à 2021 “muita água passou debaixo
da ponte”) a experiência do círculo e as leituras arrefeceram e a
relação com a escola foi se deteriorando. Daí a necessidade de
reestabelecer pontes entre outros atores do universo escolar. Em
busca desse diálogo, procurei os autores através das plataformas

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

digitais e encontrei primeiramente o professor Dr. Guilherme do


Val Toledo Prado. Este, muito solicito, me indicou o grupo de
estudos GruBakh, coordenado pela professora Drª. Liana Arrais
Serodio, que, por sua vez, também foi muito solicita em me aceitar
no grupo de Whatsaap e, em seguida, nos encontros virtuais do
grupo de estudos. Foi a partir desses encontros que a metanarrativa
passou a fazer parte dos meus interesses, leituras e produções.
Serodio et all (2016, p. 207) tratam a metanarrativa como “[...] ato
interpretativo e produtor de conhecimento na metodologia
narrativa de pesquisa em Educação, na qual os mundos da cultura
e da vida adquirem unicidade para o pesquisador”. Esse mundo da
cultura a da vida que, desde 2020 com o começo da pandemia,
transformou-se em algo grotesco, no sentido dado por Silvestri
(2018, p. 171) “repleto de saliências, abertura e, abertura aqui, tem
o sentido de impossibilidade de não abertura e indiferença. A partir
daí respondente responsavelmente pelo desejo de ir ao encontro
com o outro e criar relações híbridas, íntimas e humanizadas”. Esse
desejo de encontro foi redescoberto a partir das interações com o
GruBakh.
Com a volta às aulas, convivemos diariamente com o perigo da
contaminação, apesar disso esse tem sido um tempo de encontros
e reencontros. Encontros com alunos, reencontro com professores e
com funcionários da escola. Alguns desses encontros foram,
digamos: noves fora, nada. Outros, não. As aulas parecem estar
mais longas; os alunos parecem querer falar mais, (ou será que
estamos mais disposto a ouví-los?). Eles tem tanto a dizer e nós,
pelo menos eu, quero (mos) escutá-los. Tive o interesse renovado
em suas histórias. Parece que esse tempo longe me deixou carentes
de histórias. Foi ouvindo-os que dei conta de ter encontrado um
novo eu, uma nova escola: mais humana, mais acolhedora, mais
disposta ao encontro.
Nesse momento tão “estranho”, tão cheio de incertezas, voltar às
aulas, mesmo com o risco foi uma experiência renovadora,
grotesca, no sentido já mencionado.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Então, me pego narrando essas experiências e, de repente,


questiono-me: por que narrar isso é importante? Porque a partir
das metanarrativas buscamos compreender como o estudo de
Bakhtin no grupo, as leituras feitas desde a faculdade e as relações
estabelecidas entre professores-pesquisadores-narradores afetam o
nosso fazer pedagógico, afetam nosso viver sem álibi, nosso fazer
responsivo e responsável, pois “somente do interior de minha
participação posso compreender o existir como evento, mas este
momento de participação singular não existe no interior do
conteúdo visível, na abstração do ato enquanto ato responsável”
(Bakhtin, 2010, p.66).
E assim, responsiva e responsavelmente seguimos na lida diária
para criar pontes, para realizar encontros de almas e de corpos. E
esse texto pretende ser mais uma ponte para o encontro.

Referências
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável Trad. aos
cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
SERODIO, L. A., CHAUTZ, G. C. C. B., PRADO, G. do V. T.,
PROENÇA, H. H. M., PREZOTTO, M., & RODRIGUES, N. C.
(2016). A metanarrativa e a relação inextricável entre os mundos da
vida e da cultura: uma aproximação entre Bakhtin e a
Educação. RevistAleph,
(25). https://doi.org/10.22409/revistaleph.v0i25.39138
SILVESTRI, Kátia V. T.. Corpos grotescos: linhas gerais da filosofia
política bakhitniana. In: SERODIO, Liana et al (Orgs.) Narrativas,
corpos e risos anunciando uma ciência outra. São Carlos: Pedro & joão
Editores, 2018, p. 165-195.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Entre o clássico e o grotesco: corporeidades infantis por uma


perspectiva Bakhtiniana

Carolina Silva Gomes de Sousa


Universidade Federal Fluminense
carolinagsousa@gmail.com

Em uma escola de Educação Infantil, um grupo de crianças de 4


anos brinca na sala da turma. Algumas brincam com um baralho
de jogo, um menino inventa formas de amarrar uma corda em uma
cadeira para depois decidir o que fazer, enquanto outras brincam
de casinha usando roupas, fantasias, brinquedos dos mais diversos.
Uma mesa vira casa e um cabideiro e um cama viram aviões. Uma
criança anda com uma maleta, precisa dela para viajar para a casa
da avó. Em dado momento, o avião cai e a viajante se vê no meio
do oceano, rodeada por águas-vivas.
A criança que estava amarrando a corda na cadeira consegue
atingir seu objetivo e passa a bater, balançar e sacodir a tal corda e
convidar outras pessoas (crianças e adultas) para brincar com ele,
pulando, desviando do objeto enquanto ele o movimentava. As
crianças viajantes seguiam seu enredo a medida que o criavam e as
crianças jogadoras de carta, aos poucos, iam abandonando o jogo
em busca de outras coisas para fazer.
Em meio a tudo isso, Jorge[1] encontra um parafuso na sala. O
menino observa o objeto, pega e inicia um movimento em direção
a outra criança. A impressão que tenho é que ele vai usar o parafuso
para espetá-la. Interfiro, chamo a criança e a convido para procurar

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ronaldo, um dos funcionários da manutenção da escola, para


entregar o objeto. Jorge logo aceitou e assim saímos da sala em
busca de Ronaldo.
Enquanto andávamos pela escola, procurando algum dos
funcionários da manutenção, aproveito para conversar com Jorge.
Tento descobrir qual seria sua intenção com o parafuso, o que ele
gostaria de fazer. Imediatamente ele responde, sem titubear, que
iria entregar a Ronaldo. Assim que o encontramos, Jorge entrega o
parafuso, dizendo: “Toma! Eu ia brincar com esse parafuso”.
Notando a diferença das versões dadas a mim e a Ronaldo,
pergunto novamente, o que Jorge faria, como ele iria brincar. Ao
perceber que havia se desmentido, a criança fica quieta, apenas me
olhando. Afirmo que não quero brigar com ele, que apenas queria
saber o que ele faria, como brincaria. Assim, Jorge responde: “Eu ia
enfiar no meu olho para eu ficar com um olho só e ver só uma
coisa”.
Não acredito que Jorge furaria seu próprio olho, mas ele construiu
esse enredo e justificou sua fala, criou uma razão para o que havia
dito. O parafuso é pontudo, espera-se que ele seja útil para furar
coisas. Jorge tem dois olhos então, se furasse um deles, usando o
parafuso, nada mais lógico – para ele – que passar a enxergar
apenas uma coisa. Um parafuso, um olho, uma coisa.
Na mesma escola, em outra ocasião, crianças de 4 anos brincam no
pátio aberto da instituição. No pátio havia uma pequena poça de
água, provavelmente formada por uma chuva que pode ter
acontecido na noite anterior. O grupo de crianças rodeia a poça,
algumas olham, outras experimentam colocar os pés descalços e as
mãos. Uma das crianças que brinca com os pés dentro da poça tenta
convencer uma outra, que apenas observa, dizendo que ali não
teria cocô, apenas água e terra. A partir daí, a criança que
observava, não apenas não entra na brincadeira, como também

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

começa a gritar que era cocô sim, que a poça não seria de água, mas
de cocô.
Em ambas situações, remeto-me a Bakhtin e a forma como ele
entende o corpo.
Em sua obra, Bakhtin observa o corpo para além das características
psicofísicas, muito além de um mero aparato biológico, de um
objeto científico, a “coisa muda” das ciências exatas. Ele institui ao
corpo um valor, isto é, apresenta-o em relação a um sujeito situado
em posição única e singular no mundo.
[...]
Para pensar sobre o corpo, recorre à relação entre o corpo interior –
meu corpo, pensado de dentro de mim, sobre si mesmo – e o corpo
exterior – o corpo do outro, apresentado a mim, situado fora de
mim. Associa a essa relação noções basilares que permanecem em
seus textos seguintes, como a de exotopia (ou excedente de visão),
alteridade, acabamento e ato. (TEIXEIRA, Marilia Dalva, 2019, p.46)
As falas sobre furar um olho com um parafuso e sobre a poça onde
as crianças brincavam, molhando pés e mãos ser feita de fezes, tudo
isso se relaciona com o corpo das crianças – o corpo interno e o
exterior. Um olho furado, uma poça de fezes, tudo isso muda se
pensarmos em quem fala, para quem fala e como fala. A criança
que diz que furaria o olho parece querer, com seu corpo, com uma
fala sobre uma ação em seu corpo, provocar uma reação em sua
interlocutora. Da mesma forma, as crianças que falam sobre a poça
de cocô. A primeira criança que menciona a possibilidade faz uso
deste recurso para mostrar como a poça pode ser convidativa à
brincadeira. Enquanto a criança que não quer brincar ali, ao
perceber o que a fala sobre fezes provoca na outra, parece sentir
prazer em repetir as falas, como se quisesse provocar alguma
reação.
O corpo interno e o corpo exterior do menino que fala sobre o que
faria com o parafuso são dois corpos. Ao olhar um objeto, ele

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

enxerga um objeto apenas e não dois, apesar de ter dois olhos. Ele
sabe que tem dois olhos, mas não é possível ter tal percepção,
apenas ao se olhar no espelho ou pela percepção de outrem. O
corpo exterior, o corpo do outro, como o outro o vê, como o outro
lhe mostra esse corpo. Esse corpo exterior está fora dele, não é mais
ele. Ao mesmo tempo, é com o corpo interno e o exterior juntos que
ele se entende na totalidade. Não é possível isso acontecer se ele
considerar apenas o que sente, o que entende por ele mesmo.
“ninguém pode produzir e consumar esse sentido de totalidade
sozinho”. (TIHANOV, Galin, 2012, p.168)
Para Bakhtin, para a formação enquanto sujeito, a participação do
outro é indispensável. O corpo “sozinho” apenas é inacabado.
A corporificação em Bakhtin é utilizada como meio relativamente
simples e eficiente de demonstrar sua concepção de mundo acerca
da inacabamento, uma das bases de sua teoria.
[...]
A incompletude em que se fundamenta não é apenas teorizada,
mas percebida, registrada pelo olhar, sentida em sua
complexidade. Assim é, tanto na arte quanto na vida. De modo
similar, o filósofo apresenta mais um exemplo de corporificação do
ideal de inacabamento: a imagem grotesca rabelaisiana.
(TEIXEIRA, Marilia Dalva, 2019, p.49)

Na obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto


de François Rabelais, Bakhtin procura analisar o diálogo entre a
linguagem popular, inserida no texto, e a linguagem oficial,
clássica. A cultura popular, com sua comicidade, exageros e
vocabulário e imagens tidas como grosseiras e como o corpo seria
inserido em tal contexto. Para Bakhtin, a noção de corpo grotesco é
daquele corpo que rompe com o instituído, e um corpo instituinte,

721
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que desafia as regras do social. O corpo grotesco se opõe ao corpo


clássico marcado por regras. O corpo grotesco
A imagem grotesca do corpo, como representada na obra de
François Rabelais, reflete a liberdade característica do senso
carnavalesco do mundo, que dessacraliza e relativiza, que impede
que forças centrípetas transformem o mundo em um espaço uno e
monológico. (TEIXEIRA, Marilia Dalva, 2019, p.51)
As crianças saem do tradicional e “migram” para o grotesco o
tempo todo. Praticamente no mesmo momento que dizia que
queria o parafuso para brincar, Jorge trouxe a cena onde furaria um
de seus olhos com o objeto. Enquanto uma criança queria atrair as
outras para brincar na poça de água, outra criança “trouxe fezes”
para dentro da poça – no discurso. Tudo isso, ainda que não fosse
realidade, que não fosse de fato uma criança furando o olho ou
crianças brincando em uma poça de fezes, causou estranhamento,
surpresa, choque. Todo esse exagero, todo esse grotesco, causou
reação no outro, com quem é vivenciada essa relação na qual o
corpo se forma. Contudo, ainda que o outro seja necessário, ainda
que essa interação, essa relação com o outro seja necessária para
uma completude, o exagero, a imagem do grotesco reflete a
liberdade.

Referências

TEIXEIRA, Marilia. “Considerações sobre o corpo em Mikhail


Bakhtin.” Voluntas: Revista Internacional de Filosofia [Online], 10.1,
2019, p.46-52. Disponível
em: https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/view/36662/PDF
TIHANOV, Galin. “A importância do grotesco”. Bakhtiniana:
Revista de Estudos do Discurso [online].2012, v.7, n.2, p.166-180.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/S2176-45732012000200011

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Notas

[1] O nome da criança foi alterado para preservar sua identidade.

ENTRE O MICRÓBIO E A FUZARCA: TRAÇOS DA


AMBIVALÊNCIA NA ARTE SUL-MATO-GROSSENSE DE
LÍDIA BAÍS

Alan Silus
UNIGRAN | UFMS - CPTL
alan.silus@ufms.br

Juliane Ferreira Vieira


Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - Universidade
Federal Fluminense UFF - Grupo ATOS
julianevieira1278@gmail.com

Lídia Baís nasceu em Campo Grande, em 22 de abril de 1900. Filha


de Bernardo Franco Baís e Amélia Alexandrina Carvalho Baís, teve
uma infância bastante agitada entre a capital de Mato Grosso do
Sul, os colégios internos para onde ela e suas irmãs eram enviadas
e a Itália, terra natal de seu pai. A família é tradicional no Estado.
O pai é responsável por construir o primeiro sobrado campo-
grandense e ter participado de diversos eventos que contribuíram
com a história da cidade.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A partir de 1914, conforme registra Couto (2013), Lídia começa a


pintar seus primeiros desenhos em óleo e crayon. Em 1922, durante
a Semana de Arte Moderna, estuda pintura com Henrique
Bernardelli e Osvaldo Teixeira, na Escola de Belas Artes do Rio de
Janeiro. A pintora não aderiu ao movimento modernista,
assumindo o estilo surrealista.
Em Campo Grande, intensifica suas práticas de pintura. Com o
falecimento do pai, ela e sua família passam a morar em uma casa
menor que o antigo sobrado. Com essa transição, Lídia passa a lutar
pela construção de um museu para suas obras, atividade nunca
concretizada em vida. A partir de então, já com uma saúde frágil,
passa a viver reclusa de seus amigos e familiares até o momento de
sua morte em 19 de outubro de 1985.
A obra da pintora, conforme os estudos de Rosa (2005, p. 74), marca
o “panorama inicial das artes plásticas em Mato Grosso do Sul pela
atitude e ruptura com o academicismo e a coragem de abordar
temas ousados para uma época em que os processos estéticos da
modernidade engatinhavam em Mato Grosso do Sul”.
Propomos, aqui, um diálogo com a teoria bakhtiniana no que diz
respeito às vozes, à ambivalência, ao grotesco, em uma tentativa de
tecer os fios da compreensão desses princípios, tendo a
obra Micróbio da Fuzarca[1], de Lídia Baís, como uma força que
congrega morte e vida. Entendemos que, para Bakhtin (1988, p.
330): “[...] não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em
cada palavra há vozes às vezes infinitamente distantes, anônimas,
quase impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos estilos, etc.),
quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam
concomitantemente”.
O realismo grotesco, presente na obra de Rabelais, e apresentado
por Bakhtin é um traço marcante de um tempo em que a praça
pública era tomada pela população para festejar as grandes
passagens, a chegada da primavera e as colheitas, por exemplo. O
nosso tempo é outro e vemos a força do oficial querendo asfixiar a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

festa popular, as manifestações artísticas libertadoras ao longo do


tempo. As forças libertárias nunca estão mortas, mesmo sendo um
objetivo das vozes oficiais e opressoras. Elas estão vivas nas obras
de arte, onde podemos ver faíscas das forças do grotesco que se
mostram pela ambivalência.
Ao dialogarmos com a obra Micróbio da Fuzarca, observamos a
presença de um corpo esquelético, que nos remete à morte, ao
medo, ao mal, ao corpo demoníaco. Entendemos a morte não como
o fim de um ciclo, o fim da vida terrena, mas como um prenúncio
de vida, de renovação, de ressureição. Bakhtin nos orienta a tomar
a morte como uma imagem ambivalente, por focalizar o passado, o
encerramento, o condenado e, ao mesmo tempo, o futuro, a vida
nova (BAKHTIN, 2013).

Fonte: Couto (2013)


O corpo esquelético, simultaneamente, apresenta a delicadeza dos
cabelos claros e lisos, os quais estão trançados e recebem uma fita
em forma de laço. Na imagem da morte, há uma faísca de vida, há
um movimento, há uma resistência ao encerramento do ciclo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

terreno. Observamos um corpo corroído pelos micróbios, levado à


terra, em estado de sofrimento. Nesse sentido, o alto e o baixo estão
no mesmo espaço: “[...] o baixo é a terra que dá vida, e o seio
corporal; o baixo é sempre o começo” (BAKHTIN, 2013, p. 19).
Terra e inferno estão conectados pelo fio condutor vida-morte. Há
um corpo agonizante, que não morreu, mas está sem pele,
revelando um sofrimento sobre-humano. Mas, ao mesmo tempo, é
um corpo que dança, que se movimenta. Por isso, afirma Bakhtin
(2013, p. 359): “[...] Onde há morte, há também nascimento,
alternância, renovação”.
Ao dialogarmos com esse corpo em movimento, que dança,
ouvimos a voz das danças macabras da Baixa Idade Média, quando
se tinha uma obsessão pelo cadáver e por tudo o que se remetia à
morte. A arte medieval é profundamente influenciada por essa
obsessão, o que resulta em imagens de corpos devastados, em
processo de deterioração e de podridão, principalmente, do
abdômen (ARIÈS, 1989). Mostra-se o que não se vê, o que se passa
debaixo da terra e o que é, geralmente, escondido dos olhos dos
vivos. O Painel da Dança Macabra de La Chaise-Dieu, em Paris,
mostra os poderosos do mundo medieval, como bispo, sendo
puxados pelos cadáveres, os chamados transis.

Fonte: https://bit.ly/38MZqzk
O imaginário do cadáver em decomposição é uma voz que se ouve
na obra Micróbio da Fuzarca. Nela há referência ao animal, que
corrói e devora a pele, deixando-se ver a carne viva. Entretanto, o
micróbio, aqui, é um animal da Fuzarca, da folia, da festa, do agito,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

da farra. Assim, vemos de um lado, a quase morte e o sofrimento


no corpo esquelético, corroído, plácido, de outro o rabo e os cabelos
que resistem a viver, e se balançam com o movimento da dança.
São dois corpos em um. São traços da ambivalência; a vida e a
morte juntos em um corpo. Não há, porém, acabamento; há
abertura, há resistência do próprio corpo ao último suspiro, pois a
morte não está concretizada.
Vemos aí traços do grotesco do nosso tempo, forças libertárias e
resistentes que se colocam contra o discurso do oficial, da
religiosidade, do conservadorismo, sem apagá-los, sem silenciá-
los, mas a eles resistem, nutrindo-se deles, num jogo de abertura e
fechamento, em um estado de constante transformação. “A
imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de
transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da
morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. A atitude em
relação ao tempo, à evolução é um traço constitutivo
(determinante) indispensável da imagem grotesca” (BAKHTIN,
2013, p. 21-22).
Micróbio da Fuzarca é uma arena de forças, em que vozes centrípetas
objetivam fechar os sentidos, levando o corpo cósmico à morte
eterna; simultaneamente, há vozes centrífugas que abrem os
sentidos, que jogam luz à morte, revelando nela marcas da
renovação e da resistência. É a liberdade das palavras: “[...] ao
gozar de uma total liberdade, as palavras colocam-se em relações e
numa vizinhança completamente inusitadas” (BAKHTIN, 2013, p.
371). É um jogo de abre e fecha de sentidos, de incompletudes, onde
traços do grotesco podem ser visualizados e por onde saem frestas
da força libertária, proporcionando a abertura, o renascimento, a
resistência, a transgressão. Tudo no mesmo corpo; sem separá-lo
da terra e do cosmo. O Micróbio da Fuzarca é uma obra aberta e
incompleta: “[...] não está nitidamente delimitado do mundo: está
misturado ao mundo” (BAKHTIN, 2013, p. 24). O corpo carrega em
si a ambivalência: o micróbio e a fuzarca; o encerramento, o

727
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sofrimento, o fechamento, a quase morte e a dança, a folia, a festa,


a abertura, a vida. Esses traços de um grotesco contemporâneo
estão na obra de Lídia Baís, artista sul-mato-grossense do século
XX.

REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. O Homem Diante da Morte. Volume I. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1989.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara F. Vieira.
7. Ed. São Paulo: HUCITEC, 2013.
BAKHTIN, Mikhail. O Problema do Texto na Linguística, na
Filologia e em outras Ciências Humanas. In: ______. Estética da
Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003
COUTO, Alda Maria Quadros. Lídia Baís: uma pintora nos
territórios do assombro. São Paulo: Annablume, 2013.
ROSA, Maria da Glória Sá. Desbravadores. In ______; DUNCAN, I;
PENTEADO, Y. Artes Plásticas em Mato Grosso do Sul. Campo
Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2005.

NOTAS
[1] Uma das características da artista é não marcar o ano da
produção de suas obras. Isso decorre do fato de ela temer o
envelhecimento e não querer denunciar a própria idade.

728
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Enunciados tatuados no tempo e no espaço

Reinaldo José de Lima


UFF
reinaldojlima@hotmail.com

Sou quem dá pele ao arrepio


Arrasto no profano e no sagrado
E tiro de letra, a letra do passado

Sou quem dá som aos instrumentos


E mesmo antes
E mesmo antes do lamento
Das coisas cortadas
De letras empossadas

Sou que corto o morto


E a salada das noites vadias
Da província vazia
E das mariposas aladas

Trago frio ao tempo e arranco vago


A onda do cinema que nunca,
que nunca vai ser inventado

Dou despudor ao corpo


E copo aos bem amados

729
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Estômago ao vômito
Atropelo ao pedestre
Cansaço ao vulto na cama
Conteúdo ao oco calado[1]

Um mundo que se fecha por conta de uma pandemia. Um país que


se enclausura em face de um longo período de isolamento social. O
país do carnaval deixa suas cores, suas alegrias, suas músicas,
estacionadas em algum lugar do tempo e do espaço, à espera de um
recomeço.
E ainda como se não bastasse o trágico das milhares de vozes
caladas por conta da pandemia, sofre este país por um governo
cujos adjetivos sempre hão de faltar e que tem como política a
morte e o desmonte de instituições públicas e principalmente um
ataque mortífero a arte do Brasil.
Neste texto, como se argumento fosse para alguma criação
audiovisual, o poema acima seria recitado logo em sua abertura, ao
contrário de sua origem, a saber, em uma das cenas do filme
“Tatuagem”[2] (Brasil, 2013) escrito e dirigido por Hilton Lacerda,
em que um poeta é convidado pelo mestre de cerimônias
interpretado por Irandhir Santos a subir ao palco da casa de
espetáculos “Chão de Estrelas”, o nome por si só ao que poderia ser
uma alusão ao grotesco, rebaixando as estrelas ao chão,
avizinhando o alto e o baixo, construindo o palco para os
marginalizados.
Naquele chão estelar o poeta lança aos ventos suas palavras
poéticas que se encontrarão ao final da narrativa cinematográfica,
como força de uma memória de futuro que nos acomete neste
presente em que escrevo essas linhas.
Pensarmos juntos sobre o “Grotesco nos dias atuais” é o que nos
traz a esse movimento conjunto de forças que se unem no tempo e
no espaço através de uma obra cinematográfica.

730
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

No convite feito a escrever sobre o grotesco, tal como “lugar de


inserção dos valores contraditórios, em luta, e nascedouro de
ambivalências” me levou de maneira fluída e rápida à trama
cinematográfica de Lacerda que se passa nos anos de 1978 e 1979,
num momento estanque de decadência da ditadura militar
brasileira. Um grupo anárquico de teatro reluz, com seus corpos
alegres, coloridos e festivos, o amor e a paz celebrados pela arte em
meio aos tempos sombrios que circundavam as várias cidades
brasileiras daquela época, e no filme, especificamente, a cidade do
Recife.
“Tatuagem” uniu, através da arte, esse tempo e espaço daquele
período com o que estamos vivenciando de maneira à moda vida
real, nos dias atuais. A arte é o elo para que as vozes, os atos, as
atitudes construam os enunciados e as palavras de ordem que
possam impedir tamanha arbitrariedade no ataque à vida humana.
Responder com a arte sempre foi uma maneira de fazer com que as
vozes e os gritos ressoassem pelos quatro cantos do mundo.
Responder com a arte é força e potência. E é o que aqui se proclama
com o recorte de “Tatuagem”.
A poesia abre o texto porque é a voz emanada do corpo, deste que
para Bakhtin é tido como valor cultural, e mais ainda o corpo
coletivo e grotesco – aqui o grande encontro com o filme de Hilton
Lacerda. A experiência dos corpos coletivos como uma polifonia de
uma união que é transgressora, altiva e potente.

“O corpo grotesco é cósmico e universal, que os elementos aí


sublinhados são comuns ao conjunto dos cosmos: terra, água, fogo,
ar; ele liga-se diretamente ao sol e aos astros, contém os signos do
zodíaco, reflete a hierarquia cósmica; esse corpo pode misturar-se a
diversos fenômenos da natureza: montanhas, rios, mares ilhas e
continentes, e pode também encher todo o universo. (p. 278)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O cinema elevado ao grande tempo como a arte das imagens,


registro artístico das vozes ao longo da vida. O palco do filme é o
espaço para que os corpos estejam livres, dançando, dialogando
uns com os outros, o alto e baixo corporal em plena efervescência
artística. Em contraste com os corpos endurecidos pelo discurso da
ordem e da repressão. Uma paleta de cores divide os dois grupos
corporais, envolvidos numa bela fotografia cujo hiperbolismo das
cores e da luminosidade dos corpos apontam o grotesco de
Rabelais à luz de um cinema multi, muito característico da cena
cinematográfica pernambucana que resiste aos ataques contínuos
contra as manifestações e expressões artísticas de um modo geral
nas últimas estações.
As cores marcam a narrativa do filme.
As cores marcam o momento que vivemos.
O corpo coletivo cuja identidade não é moldada e que branda-o a
viver livre, marcado nos minutos finais através da montagem
teatral “O cu e a Liberdade”, no palco do “Chão de Estrelas”,
assombrada pela abantesma da censura presente naquela década e
recorrente num nascer sombrio nos nossos dias a cada momento
sazonal dos últimos três anos.
Trazer as imagens de “Tatuagem” é fazer com que as personagens
que pisam no palco metalinguístico de “Chão de Estrelas”
clamando pela liberdade com um fundo musical marcado por um
atabaque sequencial em contraste com o motor de automóveis
militares que se aproximam. “Que diabos afinal é liberdade?”,
clama a personagem de Irandhir... “Democracia tem símbolos?”
Corpos em brilhos de purpurina são atacados pelas cores ocres e
sem vida acompanhadas do pisar de botas inerte. “O século XX
acabou!” diz o poeta ao ser entrevistado nos momentos finais do
filme. “Que venha o futuro. Mas haverá futuro?” ele completa... A
metalinguagem da vida expressa pela arte no grande tempo
anuncia a “porta para o futuro”.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Os corpos resistem.
A arte resiste.
A Arte sempre resiste às ditaduras.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo : Hucitec,
2010.

Notas

[1] Cena do filme “Tatuagem” em que a personagem conhecida


como “poeta” é chamado por Clécio Interpretado pelo ator Irandhir
Santos ao palco do “Chão de Estrelas” para recitar esta poesia.
[2] “Tatuagem”, produção cinematográfica brasileira, do ano de
2013, escrita e dirigida por Hilton Lacerda e filmada em Olinda,
Recife e Cabo de São Agostinho. O elenco conta com nomes como
Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa e Rodrigo Garcia. É listado como
um dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos pela
ABRACINE.

733
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Escola de palhaços – Grotesco e riso na série Irmão do Jorel

SANDRA MARA MORAES LIMA


UNIFESP
sandralima605@gmail.com

Segundo Bakhtin o riso, na Renascença apresenta uma concepção


diferente da que se desenvolve nos séculos seguintes (XVII em
diante). Na Renascença, o riso tem um:
[...] profundo valor de concepção de mundo, é uma das formas
capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua
totalidade, sobre a história, sobre o homem; é um ponto de vista
particular e universal sobre o mundo, que percebe de forma
diferente, embora não menos importante (talvez mais) do que o
sério [...] somente o riso, com efeito, pode ter acesso a certos
aspectos extremamente importantes do mundo. (2010, p. 57).
Diferentemente, nos séculos posteriores, o riso assumirá outra
versão, não podendo mais ser caracterizado por uma forma
universal de concepção de mundo, referindo-se a fenômenos
pontuais, mais especificamente, os de caráter negativo. O que é
importante, sagrado, não pode ser reduzido ao riso. Nesse sentido,
a política, a religião, as forças armadas, esferas ditas sérias de
atividade humana, não podem ser cômicas. Nessa perspectiva, a
linguagem do riso não exprime a verdade do mundo, do homem,
apenas o que é dito na seriedade toca na essência da vida.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Bakhtin advoga, no primeiro capítulo de “A cultura popular na


Idade Média e no Renascimento – O contexto de François
Rabelais”, a favor da perspectiva do riso na Renascença. Para isso
apresenta as vozes de vários pensadores, literatos, filósofos, tais
como Demócrito, Aristóteles, Hipócrates, Luciano, entre outros. A
partir da premissa de Aristóteles: “O homem é o único animal que
ri, argumenta o caráter essencial do riso, sendo este uma das
características de sua humanidade. A partir do momento em que o
bebê começa a rir, define-se como um ser humano, revela, ao
mesmo tempo, a marca de humanidade e sua parcela divina.
Nesse contexto renascentista, o riso tem, assim, uma dimensão
positiva, criadora, regeneradora, curativa, que o diferencia da
concepção dos séculos posteriores, como já mencionado. Essa
concepção renascentista deve sua existência a rica cultura popular
do riso presente na Idade Média. Importante lembrar que essa
cultura medieval do riso se apresentava fora da esfera oficial da
ideologia e da literatura considerada nobre que concebia a
seriedade como a única possibilidade de expressão da verdade, do
bem, do que é importante. Há, na esfera oficial, uma condenação
do riso, alimentada pelo espírito religioso cristão com a crença de
que o riso não provem de Deus e sim de emanação do diabo.
Segundo Bakhtin, foi exatamente esse lugar fora do oficial que a
cultura do riso se apresenta com liberdade e uma implacável
lucidez. É esse distanciamento do que é oficial que permite um
olhar lúcido, pois que permite ver, ouvir, inferir, analisar de outro
prisma. Essa separação também criou a necessidade de se criar
espaço fora da igreja, dos cultos oficiais, um lugar para a alegria,
para o riso e a burla, a instituição do carnaval é um exemplo disso.
Esse fato fez nascer formas cômicas paralelas às formas canônicas.
Essa fronteira entre a literatura oficial e não-oficial começa a ruir
com as línguas vulgares, ou seja, o riso na sua forma mais radical
penetrou na grande literatura e na ideologia superior. Assevera
Bakhtin que “A adoção das línguas vulgares pela literatura e certos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

setores da ideologia devia temporariamente destruir ou pelo


menos diminuir essas fronteiras. ” (2010, p. 62).
Todo o processo histórico, fim do regime feudal e teocrático da
Idade Média, contribuiu para a união, a mistura desses campos,
oficial e não-oficial. “Mil anos de riso popular extra-oficial foram
assim incorporados na literatura do Renascimento.” (2010, p. 62).
Esse riso gestado fora do âmbito oficial e advindo da esfera popular
medieval entra na Renascença com expressão renovada, como nova
consciência, expressando liberdade e criticidade.
Apresentamos essa breve análise de Bakhtin acerca desse
movimento histórico em que a concepção de riso se alterna para
dizer que os processos históricos se alternam sempre. A evolução
humana, ao que parece, se dá em espiral e de tempos em tempos
um dado contexto sócio-histórico-ideológico toca em um ponto
atrás. Oportuno pensar como se dá em nosso tempo atual, quando
a onda fascista retorna em outros contextos, qual o lugar do riso e
do siso e do grotesco. O cenário que se desenha no que diz respeito
à política não só em nosso pais, mas no mundo de modo geral, traz
pensamentos autoritários, vozes que se arvoram donas da verdade
e o grotesco não me parece semelhante que Bakhtin trata na cultura
popular da Idade Média que aponta, ao mesmo tempo, para a
degradação e regeneração do que é a vida. A categoria do grotesco
configura um fenômeno em que ocorre a transformação, o processo
da metamorfose, o movimento de vida e morte. A imagem grotesca
também configura o que é ambivalente, a mudança, principio e fim,
movimento do ciclo vital.
O grotesco de nossos dias beira o absurdo caótico e vincula-se
apenas ao caráter destrutivo, degradante de negação dos avanços
científicos e sociais realizados até então. Parece que esse
movimento direitoso quer novamente instituir um lugar oficial em
que predomine o autoritarismo, a violência e separação.
Movimento de retrocesso, volta aos princípio oficias da IM onde
não há lugar para o diálogo e tudo deve obedecer a uma ordem

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

torpe. É como se a espiral do momento atual estivesse acima das


trevas medievais e com ela dialogasse.
No entanto, é um movimento, por mais concreto que seja, algo que
parece não poder resistir por muito tempo, felizmente. É frágil em
todos os princípios, é um movimento autofágico que tende a se
autodestruir, pois a humanidade, acreditamos, caminha sempre
para um estado de coisa melhor, mais humana, mais generosa, mais
amorosa. Há consciências que seguem trabalhando e lutando para
que prevaleça a democracia, a justiça, a beleza, o diálogo, o amor
nas relações.
Pensando nesse conceito de grotesco, considerando a perspectiva
bakhtiniana em que ele apresenta o cômico sob três aspectos: o
bufo, o burlesco e o grotesco, fizemos uma leitura de um episódio
de uma série de desenho animado, Irmão do Jorel. Essa série é feita
por jovens talentosos, inteligentes e muito irreverentes.
Então escolhi um episódio para ler à luz do que Bakhtin apresenta
sobre o riso. O episódio é o “Profissão palhaço”. O vídeo tem 11
minutos. Disponível em : https://youtu.be/-095uBXbjcw
O que observamos nesse desenho é uma cena na escola em que os
estudantes são questionados acerca do que vão ser quando crescer.
Obviamente a questão e o tom em que falam a professora, os alunos
e a inspetora já revelam toda uma cultura em relação à criança e a
atividade econômica. As respostas deles, porém, vai em outro
sentido, revelando interesses infantis/adolescentes.
A relação estabelecida entre a formação profissional, o regime
escolar e social a que os estudantes são submetidos para se tornar
um palhaço aponta para uma crítica da sociedade em que o
indivíduo é considerado uma peça a ser burilada para determinado
oficio.
O mais interessante é a abordagem do riso, do humor, que a escola
considera. Na cena inicial, na escola tradicional, o lugar do riso é

737
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sempre perigos, o que é ressaltado na fala da inspetora; “humor


não pode”. E na escola de formação de palhaço, que parodia uma
escola militar, o riso é totalmente vetado. Há que se formar
palhaços que não podem se divertir.
Segundo Bakhtin a imagem grotesca do corpo está associada aos
aspectos que mostra as fronteiras entre o corpo e o exterior. Está
relacionado aos limites entre o dentro e o fora, o comer, beber, parir,
excretar, fornicar, aspectos que figuraram durante muitos séculos
na esfera não oficial. Esses aspectos que constituem a imagem
grotesca do corpo sempre estiveram associados ao riso.
Para Bakhtin esse aspecto grotesco está associado à vida, ao
movimento, configura o que é vital, o ciclo de nascer/morrer,
comer/excretar. O corpo grotesco é aberto, as fronteiras entre o
interior e exterior se comunicam. Não é um corpo fechado, pronto,
acabado, delimitado, é vivo. As partes do corpo que constituem a
imagem corporal têm a ver com essas fronteiras, a boca, o traseiro,
o ventre, órgãos genitais, nariz. Nesse contexto, Bakhtin ilustra com
a obra de Rabelais.
No episódio em questão, podemos observar o cômico na categoria
do grotesco. Na escola de palhaços onde o estudante não pode se
divertir, há uma cena em que o riso é resgatado pelo pum de um
deles. É o grotesco, a fenda entre a vida que viceja e as normas que
engessam e matam. É a partir do riso associado ao grotesco, ao
movimento, que se consegue subverter a ordem da referida escola
e dela escapar.
Referências
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
HENRICO, Juliano, et alli. Irmão do Jorel. Youtube. Disponível
em: https://youtu.be/-095uBXbjcw -Acesso em 02 de set. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Espectro do retrocesso: o grotesco no discurso do voto impresso

Deywela Thayssa Xavier da Silva


Universidade do Estado do Pará
deywylla18@gmail.com

Fabiane Everdosa Tolosa


Universidade do Estado do Pará
everdosa13@gmail.com

Espectro do retrocesso: o grotesco no discurso do voto impresso

Este trabalho propõe-se a fazer uma análise dos elementos


grotescos no discurso do voto impresso. Como objeto de análise
apresentamos charges dos cartunistas e militantes Carlos Latuff e
Nando Motta, pois assim como Volóchinov (2019, p. 113)
acreditamos que a arte é imanentemente social, e o meio social
extra-artístico, ao influenciá-la de fora, encontra nela uma imediata
resposta interior. Para fundamentar nossa análise usamos os
seguintes autores: Bakhtin (1987), Cañizal (2006), Eco (2018) e
Volóchinov (2019).
De acordo com Cañizal (2006), o grotesco se reporta aos processos
subversores da ordem social, política ou artística, e segundo
opinião geral dos autores que estudam o grotesco, tal conceito
apresenta características como: exagero, hiperbolismo, profusão,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

excesso e a sátira grotesca que tem como traço o exagero a alguma


coisa negativa.
O grotesco nos nossos tempos tem se projetado na forma de muitos
discursos de retrocesso, e um deles é o discurso da volta do voto
impresso. O sistema eleitoral Brasileiro conta com a urna eletrônica
desde 1996. Essa ferramenta não possui o hardware necessário para
se conectar a uma rede e tampouco a qualquer forma de conexão
com ou sem fio, tais características conferem ao processo eleitoral
segurança e transparência, que inclusive é elogiada por outros
países.
Além disso, esse sistema é assegurado pela lei nº 9.504, de 30 de
setembro de 1997, que estabelece no art. 59. “A votação e a
totalização dos votos serão feitas por sistema eletrônico, podendo
o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) autorizar, em caráter
excepcional, a aplicação das regras fixadas nos arts. 83 a 89”.
Comprovada a legitimidade e o avanço que a urna eletrônica
apresenta ao sistema eleitoral, o discurso de retorno ao voto
impresso significa um discurso grotesco de regressão a fraudes.
Além do mais, Eco (2018) afirma que esses discursos de culto ao
tradicionalismo se configuram como uma característica de um
fascismo travestido de democracia. Entretanto, cabe destacar que
essa recusa à modernidade é uma renúncia apenas dos ideais e dos
princípios democráticos, tendo em vista que os apoiadores do atual
governo utilizam-se dos aparatos tecnológicos para disseminação
de Fake News¹ que refutam a confiabilidade do nosso sistema
eleitoral.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 1: Ameaça a constituição.

Fonte:https://vermelho.org.br/2021/08/05/voto-impresso-e-um-
golpismo-escancarado-por-orlando-silva/

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 2: Instituição reagindo

Fonte: https://pcdob.org.br/noticias/para-deputados-reacao-do-
tse-marca-acao-concreta-pela-democracia/

A imagem acima retrata de forma grotesca o recuo


histórico/temporal que a Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) n° 135/2019 representa. O atual chefe de estado é
representado segurando uma tocha na mão esquerda e um galão
de gasolina em sua mão direita enquanto marcha com intuito de
atear fogo simbolicamente na constituição e na urna eletrônica. De
acordo com Bakhtin (1987, p. 267) “no grotesco, o exagero é um
fantástico levado ao extremo, tocando a monstruosidade” em
consonância com o pensamento do autor pode-se inferir a
expressão imagética da urna eletrônica amedrontada ao presenciar
o ato antidemocrático proposto pela PEC n °135/ 2019.
O grotesco como categoria essencialmente ambivalente, oferece a
possibilidade de representação do passado e de projeção do futuro.
Em relação a charge temos uma alegoria com o atual governo
segurando uma tocha que nos remete ao governo ditador de Nero,
que incendiou parte da cidade de Roma. A charge faz uma

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

intertextualidade com esse fato histórico, destacando o


autoritarismo perverso desses ditadores do caos.
Ademais, na primeira imagem verifica-se o olhar de desespero da
urna eletrônica, já na segunda charge percebe-se a troca de
expressão da urna, pois ela está demonstrando raiva e insatisfação
frente aos ataques que vem sofrendo nos últimos anos. Esses
ataques são institucionalizados pelos aparelhos repressores de
estado, no qual são simbolizados pela classe militar, fato que pode
ser verificado por meio do coturno, parte integrante do uniforme
militar, no qual o presidente aparece apoiando-se, pois trata-se da
classe em que ele pertence.

Imagem 3: O espectro do retrocesso

Fonte: https://novobloglimpinhoecheiroso.files.wordpress.com/20
18/09/urna_eletronica12_latuff.jpg

Na terceira imagem, a suástica, símbolo do nazismo se projeta


como um monstro de formas grotescas que finca as garras na urna.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Essas garras conferem proporções animalescas à suástica, e isso nos


remonta ao que Eco (2018) pontuou como características fascistas
que adquirem novas roupagens a depender do contexto histórico.
A charge 3 é fundamentalmente ambivalente, pois reflete um
passado fascista ao mesmo tempo em que refrata a possibilidade
de um novo espectro do fascismo rondando o Brasil. Essa
percepção da ambivalência nos é possível porque se apoia no
horizonte espacial dos interlocutores, ou seja, numa realidade
compartilhada. Aqui a cor cinza no fundo da imagem carrega uma
metáfora imagética da possibilidade de um futuro nebuloso,
incerto e cinza onde tudo é ditado pelo imperador do caos.

Referências:
BRAIT, Beth. Cañizal Peñuela. Realismo grotesco. In
(Org). Bakhtin e outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
p. 243 – 258.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
HUCITEC, 1987.
ECO, Umberto. O fascismo eterno. 1°. ed. Rio de Janeiro: Record,
2018.
JUSBRASIL. Disponível em:
<https://www.google.com/amp/s/ednacristinadasilvasouza.jusbra
sil.com.br/artigos/112145595/avaliacao-e-a-pedagogia-de-paulo-
freire/amp>.Acesso: 31 de Ago. 2021.
SIGNIFICADOS. O que são fake news? Disponível em:
< https://www.significados.com.br/fake-news/>. Acesso em: 01 de Set.
2021.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Disponível:
<https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2021/Junho/voto-

744
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

impresso-significa-voto-fraudavel-afirma-ministro-barroso-em-
coletiva>. Acesso em: 01 de Set. 2021.
VOLOCHINÓV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia.
1°. ed. Rio de Janeiro: 2019.p. 34.
JUSBRASIL. Disponível em:
<https://www.google.com/amp/s/ednacristinadasilvasouza.jusbra
sil.com.br/artigos/112145595/avaliacao-e-a-pedagogia-de-paulo-
freire/amp>.Acesso: 31 de Ago. 2021.

Notas:
Fake News: significa ”notícias falsas”. São as informações
[1]

noticiosas que não representam a realidade, mas que são


compartilhadas na internet como se fossem verídicas,
principalmente através das redes sociais.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Eu grotesco... tu grotescas... ele grotesca... nós grotescamos...

Valdemir Miotello
UFSCar
miotello@terra.com.br

1. Os tempos de hoje têm nos mostrado uma face fascista do


grotesco. E ao dizer fascista estou afirmando que temos sido
levados a pensar o grotesco como apenas um sentido, uma
direção. Assim podemos pensar o grotesco como adjetivo, e
nesse caso ele é utilizado como aquilo que causa riso ou
mesmo aversão, por ser ridículo, inverídico, esquisito ou
por representar uma situação caricata ou bizarra. O
fascismo grotesco! Essa concepção dá seguimento à
corrente romântica, criando um lugar estático, fixo,
permanente, separado do sublime, do bonito, do claro...
Mas também nos defrontamos nesses tempos com o
grotesco como substantivo, uma pessoa, coisa ou um evento
que tem substância grotesca. O grotesco hoje é abrangente!
E aqui estamos dentro do realismo grotesco burguês, que ao
romper com a cultura popular se transveste de estéril e de
sério. E quero encontrar o grotescar como ação e
movimento, como realismo e popular e folclórico, quando
forças potentes agem em tensão, e assim produzem jogos de
criação de grotesco como morte e como vida, como luta e
como resistência, como corrente sem fim da renovação...
2. Hoje li sobre o golpe militar acontecido hoje mesmo, dia 06
de setembro, ainda em curso, na Guiné. Deve ser o golpe

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

militar de muitos números já, na Guiné. E também em


muitos outros países. Falando em democracia, em
liberdade, em desenvolvimento econômico, em distribuição
de renda, em combate à corrupção, os militares tomam o
poder. E matam gente... e rasgam a Constituição e
destituem os poderes... todos os poderes, visto que resta um
enfraquecimento geral, uma perda sem conta e um país sem
futuro, que vai se arrastar até o próximo golpe. Isso é
grotesco, como adjetivo: um golpe grotesco; militares
grotescos; país grotesco!!! Substantivamente quase tudo
assim é grotesco. O Grotesco quase em estado puro!!! Até
mesmo boa parte da população da capital foi às ruas receber
com vivas os militares golpistas, por incrível que possa
parecer. Mas há movimentos de resistência, e outros futuros
apresentados. E esse movimento se dá na maioria dos
países pobres. Vejam o Haiti. Vejam Mianmar. Vejam
Afeganistão...
3. Essa semana de setembro, aqui no Brasil, vivemos um
período de intenso grotescar. De um lado vão se dando as
vozes do golpe e da ruptura das normalidades. É assim que
estão os fascistas chamando esse momento. E de outro vão
se organizando as vozes que denunciam esses eventos e
anunciam as resistências e as forças contrárias... Como
todos estamos em movimento, esse grotescar exige que se
olhe pra o futuro com as forças do esperançar freireano...
com o vigor do por-vir, dos horizontes possíveis e
vindouros... onde parece morte a vida se infiltra e vence.
Onde a pregação do fim da normalidade democrática
aparece, também aparece o povo se manifestando
libertariamente...
4. Como a gente grotesca? Primeiramente a gente tem que
aprender a produzir no mesmo evento o começo e o fim, o
mesmo e o diferente, a vida e a morte, o sério e o risível.

747
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Aqui se impõe a soberania da esperança como esperançar,


como constituição da corrente sem fim da vida. A gente
grotesca rindo. Esses tempos de pandemia, mais política
que sanitária, poucos de nós tivemos oportunidades de
depurar as dores com risos. Não nos ajuntamos, não
tivemos chances de encontros, não tivemos festas, não
carnavalizamos, não dançamos, não cantamos, não
teatralizamos, não tivemos as quermesses, as festas
populares, as festas de São João, as idas aos botecos. Em
todos esses momentos de forte participação, sempre se
juntavam as vozes garantindo sentidos diversos pra os
sofrimentos do dia a dia. Mas nos últimos anos não vivemos
esses momentos. As festas familiares foram suspensas... o
lado alegre, depurador, vivificador, renovador da vida
ficou prisioneiro da dor. Nem os casamentos foram
realizados... Nem as mortes tiveram seus ritos cumpridos, e
os enterros foram acelerados e sem presença. Não nos
despedimos, não curtimos os lutos. Não vencemos os
sofrimentos juntos. Não revestimos as dores com esperança
e risos. Não grotescamos, mas vivemos um realismo
grotesco capenga, como se tivesse apenas um lado, o lado
da dor e dos prejuízos, totalmente separado do lado da
força da vida.
5. Vamos pensar melhor com alguns dados: a) Loucura do
Sete de Setembro. Claro que imediatamente tivemos uma
lista de sete ou quase pra contrapor, começando pela
gasolina a R$ 7,00 reais, pelo gás de cozinha a quase R$
110,00; dólar a quase 6 reais; Carne a R$ 50,00 o quilo; Óleo
a R$ 15,00; 580 mil mortos na pandemia no Brasil; falta de
vacinas; mansão de 6 milhões do Flávio; Ah, e o Queiróz...
e o Advogado de Bolsonaro em cuja casa Queirós foi
localizado; a crise da água e da energia; e as rachadinhas; 15
milhões de desempregados; meio ambiente destruído sem
dó nem piedade; destruição da Amazônia; Petrobras com

748
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

lucro de 42 bilhões no segundo bimestre; inflação batendo


nos 10%; o real como uma moeda fraca; alimentação do
governo custou 1,2 bilhão, naquela compra que adquiriu R$
15.000,000,00 de leite condensado e R$ 2.000,000,00 de
vinhos; de chicletes foram comprados 2.2 milhões e 32
milhões de pizzas e refrigerantes; 230 milhões de remédios
queimados por vencimento de prazo; quase 50 milhões de
brasileiros com insegurança alimentar; e a lista poderia ser
aumentada sem limite... pra todo lado que se olha é
destruição de uma situação melhor que nós, brasileiros, já
vivemos. Mas olhando melhor pra essa lista, parece
Gargântua falando que vai comer 2,5 milhões de latas de
leite condensado, mesmo que o presidente tenha mandado
enfiar no cú dos jornalistas; 49.786.369 caixinhas de
chicletes, o que daria 137 caixinhas pra cada militar da
ativa... também iríamos rir de monte ao saber que o
escritório de Advocacia da Havan, é que forneceu boa parte
dos alimentos daquela lista de compras.
6. Temos como grotescar? Vejo brasileiros enfrentando com
força essa situação. Primeiro vejo resistências políticas, na
mesma rinha onde o jogo mais forte está sendo jogado. Veja
Lula falando, dando entrevistas sem conta; viajando pelo
Nordeste, encontrando os governadores, falando de futuro;
hoje nas pesquisas já vai aparecendo Lula em primeiro
lugar... e isso lava a alma, é nosso riso maior. Rimos ao
sentir que nosso guerreiro maior está nos ajudando a todos
a virar esse jogo. Ainda é um riso reduzido, pois que a
eleição está distante, mas nossos dentes estão começando a
aparecer... Queremos gargalhar... rir de nós mesmos que
permitimos o país chegar nesse ponto de descalabro. E
sentimos o Presidente sem rumo e ensandecido no grau
máximo. Vemos também o STF ocupando seu lugar de
defensor da Constituição, e recuperando a força da justiça,

749
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

abrindo processos contra o Presidente, fazendo


levantamentos sobre as Fake News, mandando prender
fascistas conhecidos e provocadores... Mas também vamos
resistindo em outras lutas... músicas, piadas, charges,
textos, artigos de jornal, imprensa alternativa, centenas de
sites de esquerda, rádios comunitários... as vozes vão
aumentando sua presença e seu volume. Gente sem medo
que vai nos mostrando que é possível falar, desmascarar,
afrontar...
7. Quando conseguimos por alguns instantes que sejam, falar
em voz alta, rir desbragadamente, dizer alguns palavrões,
fazer alguns gestos obscenos... tudo na direção dos
opressores, é porque o medo de sermos livres está se
diluindo e a libertação está chegando. Já dissemos todos os
palavrões ao general Pazzuello, que esculhambou o
Ministério da Saúde; já xingamos de ladrão o Salles que foi
o Ministro destruidor do Meio Ambiente; já dissemos
muitos impropérios pra Damares, que comanda o
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos;
já chamamos de veados muitos generais e assemelhados no
poder; já xingamos Bolsonaro de todos os palavrões, desde
fascista a corno. E assim vamos tirando as amarras que
prendiam nossa língua e nossas almas... e esses momentos
cotidianos vão concentrando forças pra enfrentar as forças
oficiais e ir minando elas diuturnamente... Forças
equipolentes... que vão se empurrando até se misturarem e
se modificarem.
8. Bakhtin indicou um caminho pra aprofundarmos a escuta
das vozes populares nesse enfrentamento à cultura oficial:
buscar as formas dos ritos e espetáculos; buscar as obras
cômicas verbais; e buscar as diversas formas e gêneros do
vocabulário familiar e grosseiro. E agora pensa como
grotescamos quando fazemos festas sem fim de carnavais
com papelão e isopor... lembra as roupas maravilhosas de

750
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cada bloco... lembra as músicas enormes que dão o ritmo


aos desfiles... e grotesco é a gente dar conta de construir um
universo novo, ocupar a avenida, encantar, e tudo ser
adonado pelas mídias e pela burguesia... Mas fica o recado:
nesse período o Rei Momo dá as ordens! Podemos pensar
nos blocos de frevo, maracatu, forró, baião, bonecos de
Olinda, samba. E pensa nos oito mil quilômetros de litoral
ensolarado na maior parte, onde desfilamos nossos corpos
grotescos. Mas também podemos pensar nos jogadores de
futebol, quase gênios, que se formam em campinhos de
várzea. E podemos pensar nos milhões de pobres e
oprimidos vivendo em casas e lugares horríveis, e seguem
na luta. E pensar no número enorme de estudantes pobres
que conseguiram chegar na universidade e até viraram
doutores.
9. E escuta só pérolas de nossas palavras, quando a gente
grotesca pra valer: “A gente é brasileiro e não desiste
nunca”. E essa outra: “Cala a boca já morreu, quem manda
aqui sou eu”... coisa de gênio popular. E essa então:
“Amanhã há de ser outro dia”. Demais!!! E na luta hodierna
temos um alvo preferencial que é o presidente e os que ele
representa. E assim inventamos muitas palavras pra xingar
o presidente: Bozzo; “Familícia”... é boa demais essa. Em 18
de março desse ano de 2021 foi publicado na Folha de S.
Paulo uma lista com os adjetivos que definem nosso
presidente, escrito por Mariliz Pereira; no dia seguinte
Olímpio Rocha escreveu um outro, com palavras
nordestinas, e vale a pena dizer este em voz alta: “Abigobal.
Zé Mané. Zé Ruela. Abestalhado. Otário da bocona. Mané
de bota. Chupa-cabra. Cri-cri. Malassombro. Mequetrefe.
Frouxo. Rascunho do mapa do inferno. Fi dum que ronca e
fuça. Fi da peste. Orelha seca. Pangaré. Catingoso.
Fedorento. Peidão. Mistura de jabaculê com cobra d’água.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Cara de tabaco. Tabacudo. Zarolho. Ratoeira. Requengelo.


Malacabado. Xexeiro. Infeliz das costa oca. Cão dos inferno.
Cachorro da moléstia. Sapo cururu. Chibata. Carai de asa.
Asilado. Sibito baleado. Bocoió. Cara de fuinha.
Mamulengo. Piranqueiro. Amarrado. Bicho véi leso.
Catarrento. Arengueiro. Zambeta. Zureta. Xoxo. Peste
bobônica. Bexiga lixa. Bexiga taboca. Goguento. Cara de
butico. Bexiguento. Troncho. Sobejo. Afolosado. Batoré.
Bisonho. Brebote. Espinhela caída. Fuleiro. Folote. Fubento.
Malamanhado. Miolo de pote. Fi duma égua. Mundiça.
Roscói. Truscui. Despombado. Inhaca. Cambão. Encangado
com Satanás. Gabiru. Mazela. Gasguito. Gastura no pé do
bucho. Bucho de soro. Não tem no cu o que o priquito roa.
Catrevagem. Do tempo do ronca. Doido bala. Catraia. Cão
chupando manga. Febre do rato. Febre tife. Não vale um
cibazol. Besta amojada. Desmilinguido. Peitica.
Ingembrado. Não dá um prego numa barra de sabão.
Preguento. Presepeiro. Frangueiro. Topada no dedo
mindinho. Cancro. Bicho véi paia. Donzelo. Cruzeta.
Apombaiado. Peba. Fuleiragem. Aluado. Cu de novelo. Cu
de boi. Miguezeiro. Cabrunco. Farrapeiro. Rafamé. Alma
sebosa. Bocó. Mancoso. Morgado. Cabra bom de peia.
Mouco das oiça. Bom pra rebolar no mato. Ariado. Bate
fofo. Entojo. Abilolado. Xeleléu. Visagem do capeta.
Velhaco. Tamborete de cabaré. Sem futuro. Saliente.
Seborreia. Pomba lesa. Empata foda. Perebento. Ferida
lambida. Papangu. Monga. Laurça. Buchada azeda.
Maluvido. Grudento. Langanho. Juda. Garapeiro. Fi do
cranco. Fi da gota serena. Fiofó de macaco. Resto de sulanca.
Encruado. Cheio de verme. Engilhado. Encardido.
Enjeitado. Cabuêta. Jaburu. Caxumbeiro. Virado no
satanás. Aperreio no juízo. Filhote de lombriga. Marmota.
Não vale o peido duma jumenta. Babão de milico. Papa-
figo. Véi do saco. Cafuçu. Garapeiro. Inferno da pedra. Mói
de chifre. Quentura do pingo da mei dia. Remelento. Rola-

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

bosta. Genocida”. É cultura popular na veia!!! Esse é nosso


modo de existência: dar apelidos, mostrar nossa raiva e
nosso ponto de vista sobre o outro é básico entre nós,
brasileiros. Logo botamos pra fora nossa lista de conceitos e
preconceitos. Nossa fraqueza e nossa força. Nossa voz
sendo enunciada a boca pequena, mas que vai encorpando
lentamente. É o cotidiano invadindo o oficial, entrando em
tensão com ele... Uma lista dessas de definições de alguém
que ocupa o cargo maior da nação lava a alma. Parece
Gargântua com sua lista bem elaborada de limpa cus. Até
pensei na lista de limpa cus do presidente. Todos os dias ele
limpa seu cu cagão e cagado; um dia ele limpa nas cortinas
do Palácio do Planalto, outro dia nas câmeras dos fãs do
cercadinho; também limpa nas gravatas dos deputados do
centrão, e limpa nos distintivos dos generais que trabalham
em vários setores do governo; também limpa com as
línguas dos donos de agronegócios e gigolôs do dinheiro da
Faria Lima; limpa cus macios são as falas dos pastores e
padres direitosos; e também seu limpa cus bastante usado
são as páginas dos jornalões tradicionais e as línguas
afiadas de alguns jornalistas bancados pelo planalto; sua
live das quintas-feiras é seu momento preferido pra usar os
limpa cus ao vivo na internet, e muitos ministros e diretores
de estatais e pastores já ocuparam esse “honroso” lugar de
limpa cu; e agora ele deu pra limpar o cu nos assentos de
motos em desfiles pelo país; há pouco limpou o cu no
chapéu do Sérgio Reis, que se deu mal e foi parar no
hospital. E não vamos esquecer que ele usou como limpa cu
recentemente os canhões de nossos tanques em desfile em
Brasília. Hoje, sete de setembro, ele vai limpar o cu nas
bandeiras nacionais carregadas por seu gado em
manifestações em todo o país, e mais especificamente vai
limpar nas bandeiras em Brasília e na Paulista, ameaçando
soltar pums traidores.

753
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

10. E assim podemos aumentar a lista das resistências, onde


visualizamos esse grotescar libertário se dando... nosso
jeitinho brasileiro, que, se não limitar, vira corrupção; nosso
jeito manhoso de relações com os outros, que às vezes se
torna preconceito; nossa risada franca em qualquer
situação, que pode virar deboche arrogante; nossas
invencionices de sobrevivência que podem esconder a
necessidade de mudanças; nossas relações familiares e de
compadrio que nos socorrem nas crises, e também criam
famílias diversificadas; as instituições religiosas e suas
caridades, que também se apresentam como as maiores
fontes de dominação e conservadorismo... E assim a lista
das nossas contradições pode aumentar quase ao infinito.
Mas é nessa rinha que vamos à luta... é nessa arena que o
pau pega... dentro das palavras e dos eventos as tensões se
amplificam, e é ali que se dá a luta de classes. Se queremos
uma sociedade nova, onde o humano é mais, e não é coisa,
temos que enfrentar cada situação, e os temperos desse
enfrentamento são a humildade e a amorosidade.
Humildade que se opõe à arrogância, e não se basta
sozinho, e que reconhece o outro, o diferente e por isso se
coloca na escuta; e amorosidade que se opõe ao ódio e ao
desamor, e que “pode desenvolver uma força muito intensa
para abraçar e manter a diversidade concreta do existir” e
admite as nuances diferentes de cada um com não-
indiferença, e vive “a plenitude da diversidade” em
relações alteritárias. Esse é o caminho pra uma sociedade
em que as diferenças são bem-vindas e são constituidoras.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

EXCLUSÃO/INCLUSÃO NA EDUCAÇÃO: O GROTESCO


DISCURSO CAPACITISTA DE UM MINISTRO DA
EDUCAÇÃO

Ronielson Santos das Merces


UEPA
roniuepa2020@gmail.com

Angélica Bittencourt Galiza


UEPA
angelicagaliza@yahoo.com.br

Vania Maria Batista Sarmanho


Gelpea UEPA
vsarmanho.ctae@escola.seduc.pa.gov.br

O momento pandêmico da Covid-19 trouxe para sociedade


brasileira debates em torno das diferenças de raça, deficiência,
sexualidade, gênero, etnia, religião, dentre outras, as quais por
conta da propagação e contaminação do vírus ficaram
evidenciadas, tendo em vista a vulnerabilidade da população de
baixa renda e das diversas formas de exclusão presentes no meio
social.
Desse modo, percebe-se que, a pandemia da Covid-19, embora seja
considerada uma doença patológica por acometer fisicamente às

755
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pessoas com e sem comorbidade das diferentes idades – ela deixa


outras sequelas de cunho cultural, econômico, social, geográfico e
antropológico - são novos temas que devemos incorporar na seara
de discusssão no campo da educação, problematizando a visão
lógica capacitista, hegemônica e dominante, no que diz respeito ao
discurso de inclusão e exclusão dos grupos sociais em situação de
vulnerabilidade social e educacional. Por isso, em especial,
atravessamos o nosso olhar exotópíco para a situacionalidade da
pessoa com deficiência no contexto brasileiro e amazônico para
compreender de que forma esses sujeitos têm resistido no contexto
da pandemia.
Neste sentido, a dimensão e complexidade da Covid-19 está
relacionada ao cenário político grotesco de extrema instalado na
sociedade brasileira, em que as políticas públicas sociais estão
sendo cortadas e a defesa incessante do feroz discurso capitalista
como forma única de sobrevivência na crise sanitária instalada no
cenário mundial. A propósito, o ensaio aqui tecido, amplia o nosso
campo de visão para o cenário pandêmico, criando conexões como
uma questão social relevante, que é a educação brasileira, como
assunto que é nos caro, por conta das especificidades, de que
natureza já sofre processos de marginalização e discriminação ao
longo da história.
Para tanto, consideramos que a realidade brasileira, no tocante ao
direito à educação das pessoas com deficiência, por sua vez, está
mergulhado em um cenário caótico nas diversas vertentes tais
como: administrativas, pedagógicas, sociais, educacionais e
tomadas de decisão que revelam os tempos sóbrios do grotesco que
estamos atravessando nos indicadores do governo federal atual.
Por isso, quanto ao grotesco, Sodré e Paiva (2002, p.40)
esclarecem que
o grotesco é aí, propriamente, a sensibilidade espontânea de uma
forma de vida. É algo que ameaça continuamente
qualquer representação (escrita, visual) ou comportamento

756
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

marcado pela excessiva idealização. Pelo ridículo ou pela


estranheza, pode fazer descer ao chão tudo aquilo que a ideia
eleva alto demais
Diante do contexto pandêmico, fazemo-nos as seguintes
provocações: O que há de grotesco no discurso do ministro sobre a
problemática inclusão/exclusão? Como as pessoas com deficiência
foram afetadas na educação barsileira no contexto da pandemia?
Por que devemos discutir as politicas sociais no âmbito da
educação para as pessoas com deficiência na Amazônia?
Lunadir (2001) ressalta que as políticas de inclusão escolar, que
hoje vem configurando o campo da educação, definem e fixam
quem é o anormal - categoria cada vez mais inventada pela
modernidade: loucos, surdos, homossexuais, paraplégicos,
meninos e meninas de rua, enfim, os “estorvos” - e a partir disso
decidem se eles participam ou não dos espaços escolares junto com
os normais. No entanto, essa lógica vem atravessada pela noção do
sujeito pedagógico moderno: um sujeito transcendental e único,
um sujeito que na definição kantiana é, simultaneamente, sujeito
cognoscente e objeto de seu próprio conhecimento
Por conseguinte, faz-se necessário abordar a questão da
inclusão/exclusão não significa vê-la como algo experienciado
somente por grupos culturalmente diferentes ou, no caso, por
grupos rotulados como deficientes. Atualmente, a problemática da
inclusão/exclusão vem atingindo a todos nas suas mais diversas
formas, ou seja, todos podem ser excluídos de alguma situação e
incluídos em outra. Não existe alguém completamente incluído ou
completamente excluído o que há são jogos de poder em que,
dependendo da situação, da localização e da representação alguns
são enquadrados e outros não (PINTO, 1999).
Pensar na relação do grotesco e a educação da pessoa com
deficiência e de outros grupos sociais discriminados é a pensar que
a

757
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Disforme (conexões imperfeitas) e ao onírico (conexões irreais), a


palavra “grotesco” presta-se a transformações metafóricas, que vão
ampliando o seu sentido ao longo dos séculos. De um substantivo
com uso restrito à avaliação estética de obras-de-arte, torna-se
adjetivo a serviço do gosto generalizado, capaz de qualificar — a
partir da tensão entre o centro e a margem ou a partir de um
equilíbrio precário das formas — figuras da vida social como
discursos, roupas e comportamentos (SODRÉ; PAIVA, 2002, p.30).
Recentemente, o Ministro da Educação, Milton Cunha, do governo
bolsonarista discursou em uma entrevista nas mídias sociais, no
jornal O povo (2021), dizendo: “O que é inclusivismo?” Se formos
analisar o conceito apresentado pelo Ministro, veremos que não há
definição na língua portuguesa, porque esse tipo de palavra não
representa o paradigma de inclusão que temos discutido em nossos
estudos e pesquisas. O discurso “inclusivismo” é um ato grotesco
por estar assentado numa lógica neoconservadora para tentar limar
às diferenças com deficiência e outras diferenças.
A criança com deficiência é colocada dentro de uma sala de alunos
sem deficiência. Ele referiu-se desse modo “Ela não aprendia, ela
atrapalhava”. A infeliz narrativa de um intelectual da educação,
grotesco por natureza, por provocar manifestações diversas de
instituições acadêmicas, universidades, educadores, grupos
sindicais e sociedade em geral, como forma de repúdio, de revolta,
de indignação, uma voz discriminatória, excludente, insensível por
desconsiderar que um cidadão com deficiência não possa ser
incluído, em salas de aula, de escolas públicas brasileira.
Vejamos abaixo a notícia veiculada pelos meios de comunicação
televisivos e digitais.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Notícia 1 – Fala do Ministro da Educação

Fonte: Jornal O povo (2021)


Analisemos a mensagem dita pelo Ministro da Educação, pode ser
compreendida por Bakhtin como um ato que localiza “as imagens
grotescas do Renascimento, nas formas da cultura popular
especialmente nas manifestações carnavalescas” (Sodré; Paiva,
2002, p.39). Nos dias atuais que estamos analisando, o grotesco está
na voz, na palavra indesejada de uma autoridade e de um educador
ou educadora que querem proibir o direito de existir das pessoas
com deficiência, por causa dos valores coloniais herdados reflete
nas práticas opressoras contra a diferença que se expressa na
constituição da equipe técnica do orgão mais importante da
educação brasileira.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco apresentado na fala de um Ministro é saber que não


deve haver nenhum interesse por parte do executivo brasileiro
fascista, que se materializa por práticas discursivas efetivadas por
meio de fake news, discursos prontos e vazios, falta de
interpretação – para minimizar as lutas históricas dos movimentos
sociais que têm conquistado o direito das alteridades de dizer suas
palavras, ou seja, esse governo fascista quer potencializar o ódio,
investir em opressão e ampliar os entraves atitudinais para impedir
o acesso de alunos com deficiência nas escolas públicas, do mesmo
modo, vai ao contrário do que seja inclusão.
Segundo Camargo (2017) afirma que a inclusão é um paradigma
que se aplica aos mais variados espaços físicos e simbólicos. Os
grupos de pessoas, nos contextos inclusivos, têm suas
características idiossincráticas reconhecidas e valorizadas. Por isto,
participam efetivamente. Segundo o referido paradigma,
identidade, diferença e diversidade representam vantagens sociais
que favorecem o surgimento e o estabelecimento de relações de
solidariedade e de colaboração. Nos contextos sociais inclusivos,
tais grupos não são passivos, respondendo à sua mudança e agindo
sobre ela. Assim, em relação dialética com o objeto sócio-cultural,
transformam-no e são transformados por ele.
Segundo Baalbaki e Deusdara (2011) a problemática do discurso
citado convoca as reflexões no campo dos estudos da linguagem à
investigação situada em uma zona de tensão em que vão se
inscrever os fatos linguísticos que jogam com a língua em seus
próprios limites. Ocupando-se das fronteiras da sintaxe com o
discurso – tomado como processo de produção de sentidos –, as
análises em torno dos modos de encadeamento do discurso citado
na materialidade linguística do discurso citante remetem
integralmente ao plano de organização dos enunciados e ao plano
histórico-discursivo dos efeitos de sentido.
O nosso ensaio remete-se a Análise do discurso de Bahktin,
considerando o enunciado como um processo de tensão do

760
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

discurso grostesco do Ministro da Educação contra às pessoas com


deficiência. Nosso posicionamento, implica no propósito de
discutir as nuances neoliberais de um governo fascista que está
comandando o país – em que suas ações governamentais tem
implementado a politica de desmonte das ações afirmativas
voltadas para as pessoas com deficiência, uma vez que o ministro
esquece do princípio constitucional assegurados a esses sujeitos
sociais, trazendo à baila a processo de exclusão dos marginalizados
e oprimidos na educação brasileira.

Charge 2 – Contrapalavra do enunciado do Ministro

Fonte: rodrigofarmadic (2021)


Nossa atividade de análise, ressalta a necessária problematização
entorno da constituição do discurso sobre o outro - sejam por meio
das práticas sociais, simbólicas, gestuais, discursivas, entre outras
formas – cabe-nos problematizarmos o discurso fascista, neoliberal,
capicitista e dominador que insiste em querer ser potente sobre às

761
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

diferenças, em especial, à pessoas com deficiência, os quais


questionamos o valor axiológico carregado de simbologia das
heranças coloniais que se instituiu na sociedade brasileira para
oprimir as camadas populares.
Reafirmamos que reconhecer e valorizar as palavras, os modos de
ser, de viver e de existir da pessoa com deficiência é uma pratica
libertadora e humanizada para compreender as diferenças como
potências sociais que se afirmam como “outros eus” constituídos
na relação dialógica e horizontal intersubjetivas “eu” e o “tu” por
meio de um encontro ético, libertador, inclusivo e humanizado que
se torne uma prática inclusiva para constituição ontológica da
diferença.
Diante do exposto, conclui-se que somente no encontro dialógico
verdadeiro à vida humana tem sentido na perspectiva da inclusão,
o que faz pensar que é a educação progressista para criar
estratégias humanizadas pautadas nos princípios da
intercomunicação.

Referências
BAALBAKI, Angela; DEUSDARÁ, Bruno. A citação em notícia de
jornal: tensões entre o sintático e o discursivo. Revista Diadorim /
Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Volume 10, Dezembro 2011.Disponível em:
http://www.revistadiadorim.letras.ufrj.br. Acesso em:02/09/2021.
CARMAGO, Edir Pires de. R evista Ciênc. Educ., Bauru, v. 23,
n. 1, p. 1-6, 2017. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ciedu/a/HN3hD6w466F9LdcZqHhMmVq/
?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 02/09/2021.
Disponível em:
https://www.opovo.com.br/noticias/politica/2021/08/17/ministro-

762
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

da-educacao-criancas-com-deficiencia-atrapalham-outros-
estudantes.html. Acesso em: 03/09/2021.
Disponível em: instagram@rofrigo_farmadic. Acesso em:
04/09/2021.
LUNARDI, Márcia Lis. Inclusão/exclusão: duas faces da mesma
moeda. Revista Cadernos. edição, nº 18, 2001.
PINTO, Céli. R.J. Foucault e as Constituições brasileiras: quando a lepra
e a peste encontram os nossos excluídos. In: Educação e Realidade,
Porto alegre, v.24, n.2, jul./dez., 1999. p. 33 – 55.
SODRÉ, P.; PAIVA, R. O império do Grotesco. Rio de Janeiro: Mauad,
2002.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

EXU: O OPOSTO DO NOVO CÂNON

Ana Carolina de Souza Ostetto


Universidade Federal de Santa Catarina
carolostetto@gmail.com

Vito Rollin Prudêncio


Secretaria da Educação de Santa Catarina
vrp_12@hotmail.com

Exu é aquele que vive no riscado, na brecha, na casca da lima,


malandreando no sincopado, desconversando, quebrando o padrão,
subvertendo no arrepiado do tempo, gingando capoeiras no fio de
navalha. (Luis Antonio Simas, 2018)
Para esta “Roda Viva” Bakhtiniana, que traz como tema o grotesco,
escolhemos uma figura enigmática chamada Exu, nesse caso, um
orixá. Muitas histórias se têm para contar dele, as quais estão nos
planos da magia, da religiosidade, do mistério.
Para início de conversa, trazemos uma dessas histórias que se conta
sobre Exu, um poema narrado pelo historiador Luiz Antonio Simas
(2018 apud LOPES, 2020, p. 75):

O Remédio e o Veneno
Um dia, Exu-Elegbara, no Mercado, do centro universal da vida
comunitária de todos os povos, viu-se na contingência de escolher,
entre duas cabaças, qual delas levaria. Uma continha o Bem, um

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

remédio, material, palpável, visível, expresso em uma palavra. A


outra continha o Mal, um veneno, substância espiritual, invisível,
cujo nome não poderia ser pronunciado. Então, Exu pediu, com
insistência, uma terceira cabaça. Finalmente atendido, despejou o
conteúdo das duas primeiras cabaças na terceira e os misturou,
balançando bastante.
Feito isso, avisou aos que insistiam sua manipulação: “A partir de
agora, remédio pode ser veneno e veneno vai poder curar: alma
pode ser corpo; o visível pode ser o invisível e o que não se vê pode
ser uma presença: o dito pode não dizer nas e o silêncio pode dizer
muita coisa”
A terceira cabaça, pela força de Wxu, continha o inesperado.
Orixá Exú é a própria dualidade e contradição. Assim como
misturou o Bem e o Mal em uma terceira cabaça, este orixá é
conhecido como aquele que transforma o certo em errado e o
errado em certo. Ao mesmo tempo em que é o orixá disciplinador,
que exige ordem e organização, que inspeciona os rituais, em um
de seus epítetos, Exú é chamado de Alágógo-ìjà, literalmente
“Senhor do sino da discórdia” (SÀLÁMI, 2015, p. 141).
Em muitas situações, Exu tem sua imagem relacionada ao mal e
assustador, porém, ela é controversa e ambígua, não é nem bom
nem mau, “[...] ele está aqui latente no dinamismo que emana da
nossa própria natureza” (HERNÁNDEZ, 1998 apud LOPES, 2020,
p. 73). Conforme Sikirù Sàlámi (2017), “Alguns o consideram
exclusivamente mau, outros o consideram capaz de atos benéficos
e maléficos ao mesmo tempo e outros, ainda, enfatizam seus traços
de benevolência”. Ele diz a verdade, a qual não é muitas vezes
aceita e algo não muito bom de ouvir, como diz o provérbio iorubá
sobre essa atribuição ao Orixá: Olotó ni òtá aiyé (Aquele que diz a
verdade é inimigo dos seres) (SÀLÁMI, 2017).

765
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Assim, como disse Simas na epígrafe que abre este texto, Exu vive
na brecha, no entremeio. E é por ele estar nesse lugar que o modo
grotesco se evidencia.
Talvez a maior semelhança entre o grotesco é a relação com a boca.
Em outro epíteto, Exu é conhecido como “a boca que tudo come”.
Em um itan[1] que retrata seu nascimento mostra que ele, ao chegar
ao mundo, devorou tudo o que viu a sua frente, inclusive a sua
própria mãe. Nesse sentido, Bakhtin (2012, p. 277) ressalta que “[...]
para o grotesco, a boca é a parte mais marcante do rosto. A boca
domina. O rosto grotesco se resume afinal em uma boca escancarada,
e todo o resto só serve para emoldurar essa boca, esse abismo corporal
escancarado e devorador”. Assim, o grotesco está no entrelugar das
palavras não ditas ou quase ditas.
Exu, então, é o contrário daquilo que é dito como novo cânon. Para
Bakhtin (2012, p. 281, grifo do autor), o novo cânon:
[...] é um único corpo; não conserva nenhuma marca de dualidade;
basta-se a si mesmo, fala apenas em seu nome; o que lhe acontece
só diz respeito a ele mesmo, corpo individual e fechado Por
consequência, todos os acontecimentos que o afetam, têm
uma única direção: a morte não é mais do que a morte, ela não
coincide jamais com o nascimento; a velhice é destacada da
adolescência; os golpes não fazem mais que atingir o corpo, sem
jamais ajudá-lo a parir.
Exu é dual, joga dos dois lados sem constrangimento. Ele não se
basta, assim como nenhum orixá. Por mais poderoso que seja seu
axé[2], ele sempre trabalhará com os outros orixás. Desafia as leis
do tempo, com seu porrete, resolvendo problemas do passado e do
futuro de quem o cultua:
[...] Refere-se ao fato de Exu possuir duas faces, podendo enxergar
na frente e atrás: qualquer que seja a sua posição ele tem domínio
de tudo. Os porretes mencionados são recursos de defesa, atuando
como se fossem braços. Defender-se de inimigos que atacam pelas
costas tem duplo sentido: a defesa contra o que não se vê porque

766
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ocorre atrás de nós e a defesa contra atos e fatos do passado, pois


Exu, como todos os demais orixás, pode agir sobre eventos
passados. (SÀLÁMI, 2015, p. 142).
Ainda sobre seu porrete, também pode ser o seu ogó, que
representa o falo. Bakhtin (2012) vai ressaltar que no novo cânon
partes do corpo que podem ser consideradas grotescas, como
órgãos genitais, traseiro, ventre, nariz e boca, são deixadas de lado.
Para Exu, essas partes são consideradas prioritárias. Assim como
ele tem relação com os órgãos masculinos, há também com os
femininos (buracos). No entanto, Exu não foi “demonizado”,
apenas, por falar dessas partes do corpo, mas sim por seu poder de
transgredir, por seu espírito transgressor.
A energia de Exu, seu axé, é o oposto de um mundo de certezas
absolutas e intransponíveis, de um mundo pacato e
permanentemente igual, como o novo cânon, ela é um elemento
vivo que reverbera em todas as coisas. Exu representa as
mudanças, as revoluções, o movimento, a alteridade, entende o
círculo, o que o rodeia (ou mesmo aquilo que está além).

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A imagem grotesca do corpo em Rabelais e
suas fontes. In: BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade
Média: o contexto de François Rabelais. 7. ed. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2012. (Linguagem e
Cultura, n. 12).
LOPES, Nei. Ifá Lucumi: o resgate da tradição. Rio de Janeiro:
Pallas, 2020.
SALÁMI, Síkírù (King); RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Exu e a ordem
do universo. São Paulo: Oduduwa, 2015.

767
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SALÁMI, Síkírù (King). Exu. Oduduwa, São Paulo, 2017.


Disponível em: https://oduduwa.com.br/?cont=templo-exu. Acesso
em: 1 set. 2021.
SIMAS, Luiz Antonio. O azeite de dendê no carnaval. O Globo, Rio
de Janeiro, 25 jan. 2018. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/cultura/o-azeite-de-dende-no-carnaval-
22325268. Acesso em: 1 set. 2021.
SOUZA, Daniela Barreto; SOUZA, Adílio Junior. Itan: entre o mito
e a lenda. Letras Escreve, Macapá, v. 8, n. 3, jul./dez. 2018.

Notas:
[1] “O Itan é o conjunto de mitos e lendas do panteão africano”
(SOUZA; SOUZA, 2018, p. 99).
[2] Força que dá movimento.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fazer da Cruz Encruzilhada

Clara Barenco de Mello Lacerda


Universidade Federal de Juiz de Fora
clarabarenco@gmail.com

Maristela Barenco Corrêa de Mello


Universidade Federal Fluminense
maristelabarenco@id.uff.br

Se Religião, etimologicamente, vem de religare, e sustenta um


ideário de ligar novamente o que foi desligado e separado,
institucionalmente, as religiões são o aparato, por excelência, do
sistema colonial, e uma das formas de reprodução do colonialismo.
O monoteísmo cristão, na tentativa de domar corpos e almas,
padece de uma espécie de pecado original: cinde a vida, por
demarcar um dualismo, por se constituír de forma binária, por ser
maniqueísta. O monoteísmo eurocristão é mais diabólico (separa e
conduz a desvios) do que simbólico (une e traz presente).
Segundo o Mestre Quilombola, Antonio Bispo dos Santos, o Mestre
Nego Bispo, em uma live com o Professor Renato Noguera,
disponível em seu instagram, no dia 23 de junho de 2020, diz que a
Bíblia do povo colonialista branco, eurocristão e monoteísta,
desterritorializou a terra, inaugurando uma terra maldita, criando
o trabalho como castigo, criando um terror ancestral e fundando
uma cosmofobia, já que os cristãos temem a Deus. Mas para Nego
Bispo, a colonização é um sistema fundado numa cosmologia
monoteísta que produz um pensamento vertical, linear, que tem

769
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

começo, meio e fim. E que por isso não pode confluir, mas se
desenvolver, o que implica na constituição de um pensamento
sintético, não orgânico (noguera_oficial, 23/06/2020).
Este pensamento sintético funda um binarismo entre corpo e alma.
O corpo tornou-se o lugar do profano, do que não é virtuoso, do
prazer, enquanto as promessas de uma vida para além desta vida
são destinadas a uma alma, de forma metafísica. Geni Nuñez
(@genipapos) nos mostra a relação entre “hipersexualização do
corpo e a hiper mentalização do pensamento, como invenções
coloniais”. Ela nos diz:
Como nos ensina Fanon, o mundo colonial é compartimentado. Na
divisão mente e corpo, pessoas brancas são associadas à mente, a
pensamento e intelectualidade e pessoas não brancas a corpo, sexo,
falta de pensamento. Se o que distinguiria o bicho humano dos
demais seria a capacidade de pensar (sic), então pessoas
supostamente menos capazes de pensar estariam mais próximas do
“animal”, do selvagem e mais distantes do
civilizado/pensador/possuidor de uma mente. Tanto por isso que a
maioria das ofensas racistas são animalizadoras, quanto mais
bichos fôssemos tanto menos inteligentes e menos humanos
seríamos. Nesse sentido, a hipersexualização só existe pelo seu
complemento de hipermentalização branca e cishetero. Como a
colonialidade não admite concomitâncias, é muito difícil que se
compreenda que numa mesma pessoa haja a convivência da
sexualidade e do pensamento. Em vez de combater, criticar e/ou
constranger pessoas que usam pouca roupa e/ou fazem fotos
sensuais, que tal combater a hipermentalização branca cis hetero?
É só pela existência dessa positivação da mente que a negação do
corpo se efetiva. Pensamos com o corpo todo. Com os rios de
sangue que conduzem nossos sentimentos, com a bunda, com os
ombros e cabelos. Com o vento que nos possibilita a respiração,
com a água que fertiliza nossas colheitas. Quem me chama de bicho
me elogia. (@genipapos, 10/07/2021).

770
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O corpo e os corpos, como vimos, no monoteísmo eurocristão,


devem ser subjugados através de uma moral, que quase sempre
não coincide com uma ética, enquanto dimensão que nasce de uma
relação política e tem a ver com a qualidade de um modo de viver
na grande morada humana. O filósofo Enrique Dussel (1979),
quando, pensando sobre moral e ética, postula uma moral intra-
sistêmica, que mantém os modelos dados. Ele diz que estas morais
são adequadoras. Ao fazer uma analogia à escravidão do povo
hebreu no Egito, ele diz: “As morais reformistas perguntam: ‘como ser
bons no Egito’ (discutem as normas, as virtudes, etc., mas aceitam o Egito
como sistema vigente). Moisés, porém, pergunta: ’como sair do Egito’.
Mas para sair é preciso haver consciência de que existe uma totalidade na
qual estou dentro e um fora por onde posso transitar”. A ética, como nos
disse Deleuze (1978), a respeito de Spinoza, é uma questão de
potência e não dever ser, ou seja, de moral. Ele não define a vida,
mas a interroga, a interpela, a expande, a convoca. Deleuze diz:
Existe aqui um ponto muito preciso: há uma diferença fundamental
entre ética e moral. Spinoza não produz uma moral, e por uma razão
muito simples: ele jamais se pergunta o que devemos fazer, ele
pergunta-se o tempo todo de que nós somos capazes, o que está em
nossa potência; a ética é um problema de potência, não é jamais um
problema de dever. Nesse sentido, Spinoza é profundamente imoral.
Ele possui uma natureza afortunada, pois o problema moral, o bem
e o mal, ele nem mesmo compreende o que isso quer dizer. O que
ele compreende, são os bons encontros, os maus encontros, os
aumentos e diminuições de potência. Assim, ele produz uma ética e
de modo algum uma moral. É por isso que ele marcou Nietzsche
com tanta força (DELEUZE, 1978).
Adentrando a moral monoteísta cristã, percebemos que a
linguagem religiosa é encharcada de uma moral que, no momento
em que salva um ser humano, é capaz de amaldiçoar o outro,
dividindo e mortificando o mundo de forma desumana. A
pergunta religiosa nunca tem a ver com o que pode o humano, mas
sempre com o que deve ser o humano, dividindo-o entre bom

771
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

e mau. Entre sagrado e profano. Entre vida e morte. A salvação é a


elevação da vida humana e um ideário dirigido a algumas almas,
amaldiçoando outras em um estado de quase morte ou morte em
vida. Como nos diz Geni Nuñez (@genipapo), para a Cristandade
não é possível concomitâncias.
Mas o ser humano é grotesco em sua origem, em sua própria
origem no mundo. De alguma forma ele já nasce salvo, justificado,
aberto e interdependente. O que o torna divisível é nosso próprio
sistema lógico e colonial. Não é à toa que a imagem da origem
humana religiosa traz a criação de um homem e uma mulher
adultos, colocados no mundo. Um homem que vem antes, e uma
mulher derivativa. Não há criança, não há idoso, não há conexão
com o mundo ao seu redor, não existe hibridismo em tal correlação.
Nos relatos da criação cristã, Deus projeta as classificações e assim
elas despontam, estáticas, no mundo. Ainda que a ciência evidencie
que a origem de nossa espécie, extramemente complexa, vem
entretecida no mundo, da combinação de espécies, do pó de
estrelas, em caminhos sempre cruzados, de troca constante com o
ambiente em que habitou. Deus dá a vida ao o homem e a mulher.
Os animais são meros instrumentos de vida. O mundo é projetado
para uma existência como homens e mulheres adultos. Seres
prontos, que seriam determinados por uma natureza. Mas e
aqueles que escapam disso, que não cabem nisso, que extrapolam
isso? E o ser humano múltiplo, incapturável, incategorizável,
rizomático? Para esse, a maldição. “Ame a todos”, diz o pastor.
Todos que habitam e aceitam as prescrições do seu lugar sagrado.
Aqueles que são profanos já não fazem parte do “todos”. São
excluídos, humilhados, não merecem entrar na casa de Deus. A
esperança, o futuro, o amor viram posses de propriedade
privada. Quem não mora na minha casa não merece o que tenho para
oferecer – dizem os administradores dos aparatos institucionais
cristãos.
Neste universo de exclusão, onde se fabrica mais outsiders que
sujeitos humanos, que seja edificada uma nova casa, então; que seja

772
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dita uma nova palavra, capaz de curar e abarcar, a um só tempo, a


diversidade dos sujeitos. Enquanto tal casa e tais palavras
amaldiçoarem algum outro, que sejam derrubadas suas paredes.
Que nos apropriemos daquelas palavras, que roubemos os tijolos
da destruição causada e construamos um lugar grotesco. É assim
que Ventura Profana achou uma nova forma de edificar sua fé. Para
isso, precisou deixar o lugar/condição que a mortificava para
afirmar a sua vida, ainda que para viver, tenha necessitado morrer
para um modo de professar a sua fé. Que ela se apresente:
Eu sou Ventura Profana. Tenho 28 anos. Sou filha de Salvador (BA)
e desenvolvo um trabalho em cima das implicações e dos
desdobramentos do evangelicalismo no Brasil. Então, através da
minha música, através da minha prática na escrita, eu tento
compreender métodos de desenvolvimento de soros, de antídotos,
para um veneno que é colonial, mas um veneno que se organiza, se
estrutura e é sustentado pelo cristianismo e por suas diversas
ramificações. Então, eu procuro, com as minhas práticas,
compreender melhor, de dentro para fora, entendendo toda a minha
formação familiar dentro de um contexto batista, como o Senhor,
como uma mente, como um domínio senhorio que deseja a
eternidade pode ser desmantelado, pode ser destruído, pode ser de
alguma maneira lavado... e, a partir disso, eu tento encontrar
maneiras de garantir a plenitude da vida dissidente, na vida travesti,
na vida preta (...). (https://www.premiopipa.com/ventura-profana/)

No site do Prêmio Pipa, temos a sua biografia:


Filha das entranhas misteriosas da mãe Bahia, donde artérias de
águas vivas sustentam em fé, abunda. Ventura Profana profetiza
multiplicação e abundante vida negra, indígena e travesti. Rompe a
bruma: erótica, atômica, tomando vermelho como religião.
Doutrinada em templos batistas, é pastora missionária, cantora
evangelista, escritora, compositora e artista visual, cuja prática está
enraizada na pesquisa das implicações e metodologias do
deuteronomismo no Brasil e no exterior, através da difusão das
igrejas neo-pentecostais. O óleo de margaridas, jibóias e reginas

773
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

desce possante pelas veredas até inundá-la em desejo: unção. Louva,


como o cravar de um punhal lambido de cerol e ferrugem em
corações fariseus (https://www.premiopipa.com/ventura-profana/)

Ventura sempre foi religiosa, frequentadora da Igreja Batista como


um lugar seguro. Um lugar onde desenvolveu sua música e sua fé.
Porém, depois que se assumiu mulher trans não pôde mais
frequentar a Igreja onde cresceu. Seu porto seguro de fé se
transforma em campo de exclusão. Mas não se deixou abalar.
Buscou uma nova forma de expressar sua religiosidade: pastora,
cantora evangelista e artista. Apropria-se daquilo que um dia a
inclui e em outro exclui, e transforma esse texto de forma a incluir
tantas outras e outros.

Nascemos em manjedouras
E depois de crucificadas
Ressuscitamos
Deize são as yabás falando ao pé do meu ouvido
Juntas em unção
Fizemos da cruz a encruzilhada
Nos levantamos do vale de ossos secos
Transformamos pranto em festa
Nossos cus em catedrais
Conhecemos os mistérios por com eles andar (eu não vou
morrer)[1]

Se as palavras de sua Igreja não puderam a salvar, que se mudem


tais palavras. Se as paredes de tal Igreja não puderam a acolher, que
se faça novas paredes. Se as pessoas de tal Igreja não puderam a
acolher, que se construa sua própria e acolha aqueles que nunca
encontram o acolhimento. “Traquejos Pentecostais para Matar o
Senhor”. É o nome de seu álbum. Se o senhor fecha suas portas,

774
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fecha suas palavras, fecha sua fé até virar pena, que se mate o
senhor e se abra as portas do mundo. Muitas vezes para que se viva
é preciso que se mate e se deixe morrer. Cruz como encruzilhada e
luta.

“Folhetos para Evangelização, Consagração”. Disponível


em https://www.premiopipa.com/ventura-profana/. Acesso em
01/09/2021.

“Cavalo”, foto de Ana Pigosso. Disponível


em: https://www.premiopipa.com/ventura-profana/. Acesso em
01/09/2021

Referências
DELEUZE, Gilles. Ideia e Afeto em Spinoza. Cursos em Vincennes:
aula de 24 de janeiro de 1978. Tradução de Francisco Traverso
Fuchs.
DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis: Vozes, 1979.
NUÑEZ, Geni. Disponível
em: https://www.instagram.com/genipapos/, 10/07/2021.
SANTOS, Antonio Bispo dos. Disponível
em: https://www.instagram.com/noguera_oficial/, 23/06/2020.
PROFANA, Ventura. Disponível
em: https://www.premiopipa.com/ventura-profana/.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Notas:
[1] Parte da música “Eu não vou morrer” de Ventura Profana.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QkgCj5Yts-0

776
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Foram tantas palavras...

FRANCISCA LUCÉLIA SALDANHA DE SÁ PEREIRA


UERN
luceliasaldanha@gmail.com

Quantos outros (próximos ou distantes) morreram em


decorrência da covid 19? Qual a dimensão do sofrimento do outro
em tempos tão sombrios? Enunciar palavras como “sinto muito”,
“meus pêsames” são minimamente suficientes para demonstrar
apoio e conforto? Como o outro as interpreta?
Palavras... O que esperar delas e de quem as expressa?
Essas reflexões me conduzem a este postulado de Bakhtin:

A palavra, a palavra viva, indissociável do


convívio dialógico, por sua própria natureza
quer ser ouvida e respondida. Por sua natureza
dialógica, ela pressupõe também a última
instância dialógica. Receber a palavra, ser
ouvido. (BAKHTIN, 2003, p. 356)

A pandemia nos afastou fisicamente de muitas pessoas, o


contato que conseguíamos estabelecer acontecia via ligação
telefônica ou redes sociais. E quantas palavras foram ditas, nesse
ambiente, aos que perdiam seus parentes e amigos queridos?
Foram muitos “sinto muito”, “meus pêsames”. E eu ficava

777
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pensando sobre o que essas palavras carregavam em sua


expressividade. Elas eram ditas porque ali havia um sujeito
empático, buscando confortar, ou eram ditas para “fazer uma
social”, sem muito se importar com a dor sentida por esse outro?
Se para Bakhtin (2003), a palavra é viva e precisa ser ouvida
e respondida, como ela chegava à dor do outro? Era compreendida
como um ato de gentileza e de empatia?
Mas a vida é fluxo que corre.
E mais palavras soam cheias de refração. Só que agora elas
soam imperiosas, hegemônicas e autoritárias, querendo dar fôlego
às forças centrípetas.
“E daí?” “Frescura.” “Mimimi.” “Histeria.” “Gripezinha.”
Quem as enunciou? De onde elas ecoam? Como elas
refletem no luto daqueles que sofrem por tantas perdas?
Essa voz que ecoa não tem álibi, sabe que existirão as
contrapalavras como forma de resistência. Resistir a escolhas tão
grotescas é um ato responsivo.
Responder a essas palavras é uma forma de as forças
centrífugas combaterem as centrípetas, como defende Bakhtin:

(...) a estratificação e o plurilinguismo ampliam-


se e aprofundam-se na medida em que a língua
está viva e desenvolvendo-se; ao lado das forças
centrípetas caminha o trabalho contínuo das
forças centrífugas da língua, ao lado da
centralização verbo-ideológica e da união
caminham ininterruptos os processos de
descentralização e desunificação. (BAKHTIN,
2002, p. 82)

Essa voz não pode abafar a nossa, porque nós somos a


contrapalavra, somos a resistência que traz à tona o poder da
palavra que liberta, que recusa a hegemonia e a ruptura da
democracia. Somos a palavra que se revela no canto, na arte, nas
ruas, na favela, na academia. Somos a voz que não tem sexo, não

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tem gênero, não tem cor, não tem raça, somos a voz repleta de
outras vozes.
É no texto Para uma filosofia do ato responsável, escrito no
início do século XX, que Bakhtin pensa a respeito do ato ético. O
autor russo postula que as ações humanas, entre elas a linguagem,
não podem ser deletadas, excluídas, elas vêm carregadas de
consequências, o que implica o ato responsável com o outro.
E para corroborar sobre esse sujeito que age e se
responsabiliza pelo que faz ou fala, temos o que nos explica Sobral:

O ato “responsável” (ou ato


responsável/responsivo, ou ato ético) envolve o
conteúdo e o processo do ato, e estes são unidos,
na “unidade do sentido”, pela
valoração/avaliação do agente com respeito a
seu próprio ato. Isso envolve a chamada
“ausência de álibi”, a impossibilidade de
escapar à responsabilidade por seus atos, desse
agente. Assim, todo ato traz a “marca” de quem
o pratica [...]. (SOBRAL, 2009, p. 58)

Assim, temos um sujeito que não pode escapar de assumir


a responsabilidade pelas palavras que lança ao outro. A
responsabilidade é um elemento fundamental que une o individual
e o social em sua estabilidade relativa.
E quais “marcas” são essas? O que elas nos revelam? Um
sujeito que se exime de assumir as premissas impostas pelo cargo
que ocupa? Esse seria o sujeito que representa a falta de
sensibilidade, humanidade ou a falta de competência para estar
num lugar que não combina com a sua escassez de erudição e
lucidez?
Assim como são muitas as palavras, também são muitas as
reflexões. Preferi as perguntas às respostas porque elas
pressupõem mais um fio ao discurso. Que as palavras e as reflexões
lançadas aqui sejam como uma travessia que jamais permitirá o

779
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mesmo caminho, pois sempre teremos jeitos diferentes de


interpretá-lo, refazê-lo. Prefiro, ainda, as perguntas porque nos
trazem as mais diversas inquietações e possibilidades de
conhecimentos. Nos movemos motivados por elas.
E como sujeitos inconclusos e incompletos, dependendo da
existência do outro para nos dar o acabamento, concluo não porque
não tenha mais nada a dizer ou nada a escutar, mas porque é
necessário considerar a alternância e a conclusibilidade, princípios
constitutivos do enunciado, abrindo o espaço para as próximas
palavras que se tornarão os retalhos de um bordado cheio de vozes
renovadas e com novos sentidos.

Referências

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. S. Paulo, Martins Fontes,


2003.

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Organizado


por Augusto Ponzio e Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso
– GEGE/UFSCar. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto
Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do


romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 5 ed. Ed. São
Paulo: Hucitec, 2002.

BRAIT, B. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In:


BARROS, D.; FIORIN, J. (orgs.). Dialogismo, polifonia,
intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1994, p. 11- 27.

BRAIT, B. Sujeito e linguagem: a constitutiva alteridade: Cadernos


de Estudos Linguísticos, Campinas, SP, v. 35, 2011. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8
637130. Acesso em: 5 de julho de 2021.

780
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

FIORIN, J. L. Introdução ao Pensamento de Bakhtin. São Paulo:


Contexto, 2020.

MIOTELLO, V. (2012). Algumas anotações para pensar a questão


do método em Bakhtin. In: Grupo de Estudos dos Gêneros do
Discurso (Gege - UFSCar). Palavras e Contrapalavras: enfrentando
questões da metodologia Bakhtiniana. Caderno de estudos IV (pp.
151-168). São Carlos: Pedro & João Editores.

SOBRAL, A. Do Dialogismo ao Gênero - As bases do pensamento


do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009.

781
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

FORMAÇÃO EM AMBIENTE NÃO ESCOLAR: UM DIÁLOGO


COM SUJEITOS COLABORADORES EM UMA EMPRESA DE
SOFTWARE
Thais Angela Stella
Universidade Federal da Fronteira Sul
thaisangelaa@hotmail.com

Este texto consiste em apresentar uma visão de aprendizagem para


além do espaço escolar, tendo em vista que ela pode ocorrer em
diferentes esferas da atividade humana, inclusive no ambiente de
trabalho. Busco compreender as vozes dos sujeitos que estão
inseridos como colaboradores2 em uma empresa de software.
Apresentarei diversos enunciados proferidos por eles mesmos, a
fim de compreender seus sentidos e suas singularidades por meio
de suas palavras. Será o discurso do sujeito refletido e refratado na
esfera organizacional de uma empresa.
No que se refere à constituição da palavra,ela é determinada tanto
pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se
dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da
interação do locutor e do ouvinte” (BAKHTIN, 2010a, p. 115).
Neste sentido, a palavra é forma de expressão em relação ao outro,
sendo uma ligação entre o eu e o outro.
Seguindo esta perspectiva, como objetivo geral, busquei
compreender como o discurso da aprendizagem em uma empresa
de software reflete e refrata nas vozes dos sujeitos colaboradores.
Para alcançar este objetivo, tracei os seguintes objetivos específicos:
a) Entender como funciona o processo de aprendizagem em uma
empresa de software; e b) Compreender como o processo de

2Utilizo o termo colaboradores, pois, é o termo utilizado na empresa e também é


como eles (trabalhadores) se identificam.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

aprendizagem interfere na formação do colaborador enquanto


pessoa.
Para atingir estes objetivos, busquei entender a importância
de uma formação profissional e humana no ambiente de trabalho,
para que este faça sentido tanto para o sujeito enquanto trabalhador
da empresa como sujeito ativo na sociedade. Busquei compreender
como estes sujeitos se sentem diante do treinamento que lhe é
oferecido ao ingressarem na empresa. Ressalto que os enunciados
apresentados a seguir, foram coletados por meio de questionário
disponibilizado de forma remota, por meio da ferramenta Google
Forms, com exceção do relato do sujeito 01 que é uma das pessoas
responsáveis pelos treinamentos e enviou uma série de áudios
para explicar como funciona o processo na empresa.
Os novos colaboradores, bem como o sujeito 01, foram convidados
a participar e em seguida foram informados sobre o objetivo deste
trabalho e que poderiam desistir a qualquer momento.
Contribuíram com seus relatos ao todo sete dos novos
colaboradores da empresa, os quais não terão seus nomes
revelados, por questões de ética na pesquisa conforme determina a
Resolução 510/2016 sobre pesquisas envolvendo seres humanos em
Ciências Humanas e Social
O processo de treinamento consiste em trabalhar com os novos
colaboradores assuntos relacionados a empresa como um todo e
também algumas funções específicas de cada setor. O treinamento
possui duração de duas semanas, conforme foi destacado por um
dos sujeitos responsáveis pela organização deste setor na empresa:

Sujeito 01: A primeira semana é focada no sistema, em aprender a


mexer na nossa solução. A segunda semana é focada mais na
empresa ao todo, com questões que são bem importantes nesta
área tecnológica, por exemplo, a gente tem um horário que é de
LGPD e também temos um treinamento de atendimento sobre
como saber lidar com o cliente e consultorias (...) e algumas
pessoas de outros setores também vem se apresentar, falar sobre
o seu setor, porque no suporte principalmente que é a maior parte

783
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

do pessoal ali que passa pelo processo de treinamento, eles


precisam ter essa visão ao todo da empresa porque eles serão o
primeiro contato do cliente. Eles também têm treinamento de
Carteira de Cobrança, que o pessoal explica como funciona o
setor, quais são os assuntos relacionados ao setor que eles podem
atender e quais não devem atender, que precisam transferir o
atendimento, por isso a importância dessa segunda semana.

Outra etapa que considero relevante neste processo, é a avaliação


que consistem em um processo muito mais de autoconhecimento
do que uma avaliação por notas ou conceitos, vejamos:

Sujeito 01: No sábado a gente tem um questionário, não gosto de


chamar de prova porque a gente não faz nenhuma imposição tipo
você acertou 10 questões e o fulano acertou 4, eles podem ficar um
pouco chateado e a gente sabe que todo mundo tem um tempo
diferente né, então daqui a pouco tem pessoas que pegam já muito
bem no treinamento e tem pessoas que só vão pegar realmente na
prática quando começar a fazer os atendimentos. Mas o intuito
deste questionário é realmente para eles mesmos saberem como
está esse conhecimento deles em relação ao sistema. Eu posso
falar que realmente é muito bom. A maioria das turmas
conseguem responder muitas perguntas.

Na sequência, questionei um pouco mais sobre os resultados e se


possuía alguma relação direta entre teoria e prática, pois, a
participação no trabalho e o processo de aprendizagem exige um
engajamento com as atividades práticas e nas interações sociais,
fazendo com que os resultados não se limitem a execução de tarefas
mecânicas (BILLETT, 2002 apud HEEMANN, 2005). Obtive a
seguinte resposta:

Sujeito 01: Agora estou fazendo uma forma diferente de correção


dessa prova. Eu diminui um pouco as questões e colocamos
bastante questões com prints dos atendimentos que os clientes
abrem ali na plataforma né, e aí eu abro a plataforma para simular
um atendimento, aí alguma das pessoas ali vai querer responder

784
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

desses treinandos, e aí é interessante porque eles mandam “bom


dia, tudo bem, como posso ajudar?” Daí eu mando minha dúvida,
ele responde, no final pede uma avaliação. Isso vem ajudando
muito e foi uma coisa que eles gostaram bastante.

Com isso, é possível compreender que ocorre uma busca por novas
estratégias de aprendizagem, relacionando o interpessoal com a
aplicação na prática. Desta forma, a aprendizagem ocorre por meio
das relações e pelo aprimoramento do trabalho, em que se testam
novas práticas contribuindo para uma aprendizagem que faça
sentido para o sujeito.
Apresento abaixo um quadro com os enunciados dos sujeitos, em
que eles relatam a partir de sua vivência na empresa, como
sentiram-se ao passar pelo processo de treinamento da empresa,
antes de iniciarem suas atividades práticas.

Quadro 01: Enunciados dos sujeitos colaboradores


Sujeito Enunciado

Sujeito 02 O processo de treinamento focou em muitas questões técnicas e


eu me senti deslocado na grande maioria do tempo (...) acredito
que em algumas partes o assunto deveria ser separado em
módulos, para que o básico seja acessível a todos e cumpra com
seu propósito e o avançado seja direcionado aos funcionários da
área.

Sujeito 03 Foi um treinamento excelente, o pessoal que passou o


treinamento foi muito educado e dominavam o assunto, senti de
verdade a dedicação deles para que entendêssemos o conteúdo
passado

Sujeito 04 (...) foi um bom processo de adaptação, além de estar num grupo
de pessoas que estavam iniciando junto comigo, onde podíamos
aprender juntos e nos sentir à vontade (...)

Sujeito 05 foi muito bom o treinamento, me senti um pouco mais segura


(...).

785
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sujeito 06 Muito bacana e importante este formato, pois nos deixou muito
mais tranquilos e capacitados para iniciarmos em nossas funções
(...)

Sujeito 07 (...) achei muito bacana, o treinamento foi muito bom, no começo
eu estava meio perdido, mas com o passar dos dias entendia cada
vez mais (...)

Sujeito 08 O treinamento foi muito importante para minha introdução na


empresa. Porém sinto que o primeiro dia poderia trazer mais
informações conceituais para ajudar a entendermos o sistema
com mais rapidez (...)

Arquivo pessoal, 2021.

Compreendo que estes enunciados nos revelam como se sentem


estes sujeitos neste contexto, pois expressam suas vozes e trazem
consigo suas singularidades. A idade dos sujeitos que participaram
com suas contribuições, ficam entre 21 e 30 anos, ou seja, são
sujeitos em sua maioria, jovens. Entendo que a relação com o outro
é fundamental, pois, por meio dela é possível elaborar conceitos
com um caráter coletivo e não individual. É necessário
compreender o contexto/cenário social dos sujeitos para assim
dialogar com as palavras que refletem e refratam a realidade em
que foram constituídas. O sujeito se constitui discursivamente, pois
apreende vozes do meio social em que está inserido e relaciona com
sua singularidade. Portanto, as vozes desses sujeitos são
construídas a partir da relação social com o singular de cada um
(BAKHTIN, 2010a).
Ao perguntar para o sujeito 01 o que estava achando deste
processo do qual faz parte como responsável, obtive a seguinte
resposta:

Sujeito 01: É um processo que é muito bom mas tem muita coisa
para melhorar, são duas semanas com muitas informações, então
estamos vendo algumas ideias para trazer algo mais prático
talvez. Então nos próximos meses para as próximas turmas
teremos mudanças aí. Mas justamente porque a gente se preocupa

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

com o aprendizado desses novos colaboradores, porque imagina


você ser contratado na empresa e ir direto para o atendimento,
dificilmente você conseguirá. Aqui no treinamento a gente dá essa
base para que você saiba como assumir um atendimento.

Compreendo que existe essa preocupação por parte da empresa em


melhorar os treinamentos, pois, há uma necessidade em investir na
aprendizagem destes sujeitos para que além do retorno financeiro
que a empresa busca ao vender seu produto final, é necessário
acima de tudo, o investimento nestes sujeitos, os quais são vistos
muitas vezes na esfera da organização empresarial como capital
humano. Contudo, por meio das vozes desses sujeitos,
compreendo que aquele interesse impregnado pelas classes
dominantes em transformar os sujeitos em “homens latas” como
diria Paulo Freire em Educação e Mudança3, que nada mais é do que
simplesmente depositar técnicas sobre estes sujeitos para que eles
produzam sem ao menos saber o sentido daquilo, pode ser
superado por meio de uma formação humana, que está acima da
profissional, fazendo que estes sujeitos sintam-se parte do
ambiente em que trabalham, que sejam capazes de transformar a
sociedade por meio de seu trabalho e não apenas reproduzir
modelos já existentes e que muitas vezes são também excludentes.
Os enunciados apresentados no quadro 01, correspondem a textos
individuais, e ao realizar sua leitura e compreensão, é possível
observar os sentidos que foram produzidos por cada sujeito. No
entanto, ao mesmo tempo que são individuais, são também
coletivos, pois fazem parte de um mesmo grupo. Desta forma, é
possível identificar que dos sete sujeitos, seis descreveram o
processo de treinamento utilizando palavras como: “bom”,
“excelente”, “bacana” e “importante”.
O sujeito 02 mencionou que se sentiu deslocado enquanto não
houve contato com conteúdos diretamente voltados para sua área.

3 Paulo Freire. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.23.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Compreendo que aqui o discurso do sujeito 01, quando menciona


os motivos e a necessidade dos novos colaboradores conhecerem a
empresa ao todo, está sendo refletido neste sujeito e também
refratado. Pois, o sujeito 02 está contradizendo esse discurso, o
motivo da contradição possivelmente está relacionado a falta de
sentido em aprender sobre outras funções que não sejam
pertinentes a área para qual está sendo contratado. Contudo, com
base nestes dois discursos, podemos identificar que o processo de
treinamento ainda não está fazendo sentido para o sujeito 02, e que
isso também já está refletindo e refratando o discurso do sujeito 01,
quando menciona que novas ideias estão surgindo para mudanças
e melhorias com os treinamentos. Porém, compreendo que o
discurso do sujeito 01 vai ao encontro dos demais sujeitos, os quais
compreenderam o sentido dos conteúdos trabalhados.

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a


todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer
discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas
as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e
não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e
tensa. (BAKHTIN, 2010b, p. 88).

Portanto, compreendo que o discurso da aprendizagem


reflete e refrata nas vozes desses sujeitos enquanto colaboradores,
na medida em que eles em sua maioria entendem e incorporam o
discurso de um treinamento para sua integração na empresa. Por
meio disso, é possível entender que o processo de aprendizagem
desta empresa foca no sujeito enquanto humano, e depois enquanto
colaborador, pois, preocupa-se com o desenvolvimento destes no
decorrer dos treinamentos, considerando o tempo necessário para
cada um desenvolver suas habilidades. Finalizo este trabalho,
ressaltando a importância em ouvir e compreender o outro por
meio do diálogo. Compreendo que existe um diálogo entre as vozes
que aqui se expressaram, assim como haverá entre e com as vozes

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que farão a leitura deste trabalho, ambas possuem uma consciência


autônoma, porém, são constituídas por relações dialógicas.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail (Volochínov). Marxismo e filosofia da
linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010a.
BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: Questões de literatura e
de estética: A teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et alii.
6 ed. São Paulo: Hucitec, 2010b.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979.
HEEMANN, Christiane. A Teoria da Atividade e a Aprendizagem
no Local de Trabalho In IV Seminário Nacional sobre Linguagem
e Ensino. 2005. Disponível em:
<http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/SENALE_IV/I
V_SENALE/Christiane_Heemann.htm> acesso em 05 set. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

GROTESCO PARA QUEM?

THAÍS FORTUNATO DALMAZZO


Mackenzie
tata_fortunato@hotmail.com

Faz-se necessário observar sobretudo que isso não acontece apenas e


somente na trama machadiana em HQ, mas também em “Memórias de um
sargento de milícias” de Manuel Antônio de Almeida em HQ, que apesar
de ser uma obra tida como romântica, ela se encaixaria no realismo
grotesco de Bakhtin. O que se observa é que Manuel Antônio de Almeida
fugiu completamente ao idealismo romântico de sua época. Se há traços
românticos em sua obra, eles estão no tom irônico e satírico que assume o
narrador. Assim como o personagem principal, Leonardinho, apresenta-se
como o primeiro anti-herói, reforçando mais uma vez o grotesco.
Ademais, até aqui, em ambas as obras supracitadas, elas convergem com
o que Bakhtin afirma: “O rebaixamento é enfim o princípio artístico
essencial do realismo grotesco: todas as coisas sagradas e elevadas aí são
reinterpretadas no plano material e corporal”. Em “Dom Casmurro”,
Bentinho se apaixona por Capitu sim, mas características físicas são
observadas e só então ele se encontra envolvido por ela. Já em “Memórias
de um sargento de milícias”, o leitor inicia a narrativa sendo introduzido
na sedução entre a mãe de Leonardinho, Maria da Hortaliça, e seu pai,
Leonardo-Pataca, que após uma “pisadela e um beliscão” eis que surge o
protagonista. Assim, a imagem grotesca do corpo ressalta o cômico e faz
referência ao ato sexual em si, reafirmando o rebaixamento afirmado por
Bakhtin.
Mais uma vez, assim como em “Dom Casmurro” em HQ; em “Memória
de um sargento de milícias” em HQ, o cartunista conseguiu absorver o que

790
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

a história mostrava e apresentou ao leitor a essência da obra em sua arte.


Mostrou traços que reforçavam o grotesco (nas formas e nos traços
artísticos). Para Bakhtin, no realismo grotesco, a degradação do sublime
não tem um caráter formal ou relativo. Com isso o ilustrador atingiu seus
objetivos.
Em “O Guarani” de José de Alencar em HQ, o grotesco presente na obra
reafirma os dizeres bakhtinianos novamente. A obra é do movimento
romântico, indianista, que procurava destacar a figura do “herói nacional”,
o índio. A trama mostra Ceci, bela, loira e pura, filha do nobre D. Antônio
de Mariz. Por ela se apaixonam três homens: Loredano, Álvaro e Peri.
Cada qual com um tipo de amor. Loredano, que na verdade é o frei Ângelo
di Luca, é o grande vilão do romance e sua paixão por Ceci não passa de
um desejo sexual. Peri é o herói que se dedica inteiramente a sua amada,
idolatrando-a como sua senhora. E Álvaro, que ama Ceci de forma
respeitosa e a vê como futura esposa. No livro em HQ o ilustrador capta a
dimensão e proporção que esse romance de época pretende mostrar. Com
traços fortes, profundidade e tons quentes, ele insere o leitor nesse
ambiente romântico e hostil que está prestes a se tornar um campo de
batalha.
Dado o exposto, a imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado
de transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte
e do nascimento, do crescimento e da evolução. É ela ambivalente,
inconclusiva. Relacionar Bakhtin com as obras adaptadas reafirma o fato
do quanto tudo está em constante transformação. Pontua um paradoxo
eterno. Talvez a necessidade de adaptar obras tão clássicas para o HQ vem
da carência de novos leitores e por que não dizer novos escritores. O
público jovem atual lê cada vez menos as grandes obras, contudo a
indústria das histórias em quadrinhos é uma indústria bilionária que cresce
cada vez mais, com um contingente de adeptos cada vez maior. A obra de
Bakhtin nos leva a repensar a literatura como elemento dinâmico da
cultura como um todo e para tanto suscetível a mudanças e adaptações.

REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Ilustrações de Alexandre Camanho.
2. ed. São Paulo: FTD, 2015.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de


Brasília, 2008, p. 17.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2008, p. 325.
JAF, Ivan. Dom Casmurro/Machado de Assis; roteiro de Ivan Jaf; arte de
Rodrigo Rosa. 1. Ed. São Paulo: Ática, 2012.
JAF, Ivan. Memória de um sargento de milícias/Manuel Antônio de
Almeida; roteiro de Ivan Jaf; arte de Rodrigo Rosa. 2. Ed. São Paulo:
Ática, 2013.
JAF, Ivan. O Guarani/José de Alencar; adaptação e roteiro de Ivan Jaf;
roteiro e arte de Luiz Gê. 2. Ed. São Paulo: Ática, 2013.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Harry Potter e as fake news: ato ético e teoria da dissonância


cognitiva

Fabíola Barreto Gonçalves


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
fabiolabarreto15@gmail.com

O quinto filme da saga de Harry Potter (alerta de spoiler!), Harry Potter e


a Ordem da Fênix, inicia-se com um conflito: o garoto usou magia na
presença de um trouxa (que é como os bruxos chamam os humanos).
Segue-se a isso uma audiência disciplinar, em que o juiz, Cornelio Fudge,
de modo parcial, manipula a situação. Primeiro, com a entrada inesperada
da defesa, o juiz busca confirmar se ele havia recebido o aviso da mudança
da data da audiência, ficando comprovado que, propositalmente, ele não o
fez, justamente para que o garoto ficasse exposto, isolado, sozinho. Mas a
esse respeito, não foi bem-sucedido. Segundo, em atitude bem Fausto
Silvesca, inquire o garoto, que não consegue completar a frase sem ser
abruptamente interrompido, fornecendo apenas meias verdades, as que o
juiz queria. Assim, Potter, com suas próprias palavras, admite que foi
culpado sem ter como explicar ter sido um caso de vida ou morte. O
curioso é que, no desenrolar da sessão, após os jurados ouvirem as
explicações do garoto, a comprovação de que a defesa não havia sido
notificada da sessão, a versão de uma testemunha confirmando o que
Potter havia dito, e sua absolvição pela maioria, ainda houve aqueles que
levantaram a mão considerando-o culpado.
O que explicaria haver toda uma série de comprovações e ainda assim os
jurados terem seguido o juiz parcial? Respostas a essa pergunta
encontramos na Teoria da Dissonância Cognitiva, oriunda da Psicologia
Social, postulada por Léon Festinger, professor da Universidade de
Michigan e pesquisador do MIT, que aponta que faz parte do
comportamento humano buscar um equilíbrio entre o que eles pensam

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(opinião) e o que sabem (conhecimento). No mundo da vida, é


desconfortável o sujeito perceber que foi feito de tolo, ou que cometeu um
erro, ou mesmo que foi ingênuo. Segundo a teoria, pessoa alguma permite
ter a sua autoestima ameaçada por fatores como esse. Nesse processo, é
mais confortável para o sujeito ficar na defensiva do que reconhecer que
errou. Para tanto, ele nega ou reconfigura qualquer evidência, qualquer
peça que não se encaixe em seu quebra-cabeças pessoal, até que sua mente
se tranquilize. Assim, quanto mais comprometimento o sujeito estiver com
as suas convicções (políticas, religiosas etc.), mais provável é que altere
as evidências que as ameacem (PEREIRA; SABOYA; PEREIRA, 2020).
A esse respeito, o psicólogo Charles Lord realizou um estudo de caso em
que analisava o fenômeno da dissonância cognitiva. Ele fez um
experimento com grupos polarizados que foram colocados para pesquisar
evidências contundentemente contrárias à opinião do grupo. No final, cada
grupo precisava elaborar relatórios aprofundados sobre o tema, no caso, a
pena de morte. Como resultado, ele constatou que, mesmo mediante fortes
argumentos contrários, os grupos ficaram ainda mais polarizados e
comprometidos com suas opiniões iniciais. Ao se depararem com
evidências dissonantes, cada grupo reconfigurou os fatos de modo que
fossem moldados às suas opiniões prévias, trazendo, assim, soluções para
restaurar a harmonia, eliminando o que lhes causava desconforto
(PEREIRA; SABOYA; PEREIRA, 2020).
Face ao exposto, não é surpresa, que um grupo que estava obstinado em
punir Harry Potter, mesmo após todas as evidências, ter continuado em
seu posicionamento, pois, como cidadãos de bem e mantenedores dos bons
costumes, é mais fácil punir um menor infrator do que acreditar que ele
foi atacado e por isso se defendeu. Após a audiência, não satisfeito em ter
sido derrotado na causa, o juiz contou com a mídia, também parcial,
o Profeta Diário, jornal do mundo da magia, que passou a fazer campanha
para desacreditar Harry Potter e Alvo Dumbledore (diretor de Hogwarts,
escola para bruxos, no período em que Potter é aluno), para que eles
fossem considerados mentirosos ou malucos. Isso porque aquele primeiro
evento era apenas uma cortina de fumaça para os negacionistas, uma vez
que, tanto Potter como Dumbledore, passaram a propagar o estado
pandêmico que estava por vir, com o retorno de Voldemort, o Lorde das
trevas. Esse fato poria fim aos treze anos de paz construídos pelo
Ministério da Magia. Assim, em vez de os membros do Ministério se
unirem para derrotar o mal, passaram a negá-lo e a atacar, por meio de fake
news publicadas diariamente no periódico, os que espalhavam a verdade.
Mas como diz o texto bíblico que conhecer a verdade faz com que a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

verdade liberte, Voldemort, por seu histórico de atleta, não causaria


apenas uma gripezinha, mas um verdadeiro bruxocídio, com mais de 580
mil mortos.
Buscando negar tudo isso, Cornélio Fudge, juiz parcial e Ministro da
Magia, passa a perseguir Dumbledore, destituindo-o de vários títulos que
lhe davam status, insinuando sua senilidade ou pondo em dúvida a
veridicidade de suas palavras. A enxurrada de mentiras acabou por
desestabilizar Hogwarts, ao pôr em dúvida a condição de seu diretor.
Numa das cenas do filme, em uma conversa entre Potter e Sirius Black
(outro personagem também alvo das fake news de Fudge e do jornal, que
tem levado a culpa de todas as situações que poderiam ser dissonantes), o
garoto questiona:
Harry Potter: Como é que ele pode pensar uma coisa dessas? Como pode
pensar que Dumbledore vá simplesmente inventar tudo isso... que eu vá
inventar tudo isso?
Sirius Black: Porque aceitar que Voldemort retornou significaria ter
problemas que o Ministério não precisa enfrentar há quase catorze anos,
Fudge simplesmente não quer encarar a verdade. É muito mais cômodo se
convencer de que Dumbledore está mentindo para desestabilizá-lo
(FANDOM, [2008?]).

A obsessão de Fudge por eliminar qualquer dissonância chega a tal ponto


que o ministro nomeia uma interventora para Hogwarts, agora
enfraquecida, a fim de vigiar os passos de Dumbledore, criando a narrativa
de que ele está doutrinando os alunos para formar um exército de bruxos
para derrubá-lo e assumir seu posto de Ministro da Magia. Desse modo,
Fudge inicia um contragolpe para um golpe que não existia, fake
news bem construída pelo jornal, que não hesita em destruir as reputações,
abrindo mão, assim, do ato ético, de ouvir as versões dos envolvidos.
A cada edição, portanto, as manchetes eram locupletadas de fake news,
que viralizavam e acabavam servindo de combustível para o
recrudescimento da opinião preconceituosa, xenofóbica, hegemônica. As
mentiras, travestidas de verdade, geram percepções equivocadas e, muitas
vezes, perigosas, a ponto de se colocar e se manter um tirano no poder
(MENGER, 2019). Na trama, cada pessoa alimentada por essas mentiras
passa a ser uma extensão do braço de Voldemort, um vigia a espreitar, a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

retirar direitos duramente conquistados, a replicar mentiras que trazem


conforto para as opiniões que esses sujeitos orgulhosamente reverberam.
Como aponta Bakhtin, a verdade é construída na relação. Mesmo ciente
de toda a trama, Dumbledore, em seu ato responsável, aconselha Fudge a
reagir e garantir a segurança dos bruxos, pois, no futuro (verdade istina),
seria lembrado como um dos mais bravos ministros, que não se omitira
ante as ameaças do mal. No entanto, Fudge, em seu desejo de poder
absoluto, com seu “bossonarismo”, passou a se achar mais inteligente que
Dumbledore, tendo, assim, atitudes arbitrárias e autoritárias, não perdendo
oportunidade de exercitá-las. Enquanto isso, Voldemort construía sua
arquitetônica da destruição.
Esse tempo tenebroso é uma infeliz coincidência com o mundo da vida,
principalmente considerando a interventora uma cidadã de bem, amante
dos bons costumes, que tinha predileção por retirar direitos de minorias e
dar início à caça aos bruxos. Uma das cenas mostra os centauros agitados,
desapropriados de suas terras habitadas por eles há milênios. São situações
tão estarrecedoras de autoritarismo que toda a comunidade se vê acuada,
ameaçada em seu direito de ir e vir.
Nas paredes da escola, a cada dia, surgem novas normas, desestabilizam-
se grupos organizados, abre-se mão de um ensino questionador para dar
ao aluno uma educação bancária, que lhe permita apenas copiar e nunca
pensar, como aponta Hermione, uma das personagens, durante a aula da
interventora. Apesar do estado ditatorial, em segredo, não tardam em
surgir as forças centrífugas, que começam a ensaiar um coro de revolta.
Os alunos passam, então, a se reunir clandestinamente.
Em uma das cenas mais tristes do filme, em que uma professora é expulsa
e implora à interventora para ficar, temos uma voz de alento, de outra
professora que a abraça e diz: “vai passar”, sendo completado, por nós,
em pensamento: “apesar de você, amanhã há de ser outro dia, hoje você é
quem manda, falou, tá falado, não tem confusão”. Em dias de desalento,
com a gente olhando para o chão, é com isso mesmo que se conta: que os
“patriotas”, os extremistas, os reacionários, os amantes dos bons costumes
passem.
Ao fim e ao cabo, como o negacionismo não pode evitar que a pandemia
chegue, Dumbledore buscou, em seu ato ético, trazer soluções por meio
das interações dialógicas, Voldemort, por sua vez, tinha como prática o
seu plano de morticínios e de imposição do medo. Assim, quando os
membros do ministério reconheceram a volta Voldemort, o ministro caiu

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

em desgraça, sendo destituído do seu cargo. Como aponta Chico Buarque,


“pagou dobrado” por cada sofrimento daquela comunidade.
Tanto Dumbledore quanto Potter derrotaram o negacionismo com a
verdade. O Profeta Diário, por sua vez, mudou completamente o tom,
deixando de publicar fake news sobre Hogwarts, tratando Potter como
“uma voz solitária da verdade”, que suportou a calúnia (FANDOM,
[2008?]). O jornal, apesar dessa reviravolta, jamais admitiria sua
parcialidade, como aponta a teoria da dissonância. A mudança na narrativa
não corrigiu todo o dano que causou ao bruxo. Por não ter compromisso
com a verdade, o noticiário espalhava desinformação que alimentava
mentes ávidas por dar conforto ao seu preconceito, deixando-os, assim,
expostos em suas manifestações, sem máscaras. Com essa postura, os
donos do veículo faziam a caça aos bruxos, ou seja, lutavam contra eles
mesmos, manobravam ideologicamente a massa, criavam clima de terror,
construíam um inimigo imaginário, numa pós-verdade em que os fatos
pessoais se sobrepunham aos próprios fatos (MENGER, 2019).
As fake news não apenas distorcem os fatos como ainda corrompem o ato
ético e moral. Envolvidos nesse mundo, os que conseguem se vacinar
contra as falácias fazem isso numa contracorrente de caráter centrífugo.
Por isso, a demora em reagir, pois se rompe com um mundo doente. Os
sujeitos, na ruptura dessa bolha ideológica, encontram-se em situação de
esgotamento, pois se manter são é pura resistência. Ao olhar o grotesco do
nosso tempo, vem à cena, novamente, o abraço da professora Minerva
(que traz a essência da deusa da sabedoria, das artes, da guerra): vai passar!
De fato, não era uma escolha difícil!

REFERÊNCIAS
APESAR DE VOCÊ. Compositor: Chico Buarque. 1978. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=LZJ6QGSpVSk. Acesso em: 7 set.
2021.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato ético. 2.ed. São Carlos:
Pedro e João, 2012.
FANDOM. Campanha para desacreditar Harry Potter e Alvo
Dumbledore. [2008?]. Disponível em: https://harrypotter.fandom.com/pt-
br/wiki/Campanha_para_desacreditar_Alvo_Dumbledore_e_Harry_Potte
r. Acesso em: 7 set. 2021.

797
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

MENGER, J. B. Signo ideológico e enunciado na construção e


disseminação de fake news. Revista Heterotópica, v. 1, n. 2, p. 136-155,
18 dez. 2019.
PEREIRA, Erick Wilson; SABOYA, Keity Mara Ferreira de Souza;
PEREIRA, Patrícia Gondim Moreira. Juiz das garantias: a adoção de
procedimento acusatório sob o prisma da dissonância cognitiva e vieses
de cognição. 2020. (no prelo).

798
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

HAVERÁ UM GROTESCO NEGATIVO COMO FORMA


CONTEMPORÂNEA DE REALISMO GROTESCO?
CONSIDERAÇÕES SOBRE FORÇAS LIBERTÁRIAS EM
AMBIENTE DIGITAL

Adail Ubirajara Sobral


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE (FURG)
adail.sobral@gmail.com

Karina Giacomelli
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS (UFPEL)
karina.giacomelli@gmail.com

A proposta do VIII CÍRCULO - RODAS BAKHTINIANAS, em sua 1ª


Circular, convida a pensar “nos sentidos que o GROTESCO pode adquirir
nestes tempos, nas possibilidades de pensar na vida, como resposta, como
resistência, como estar no mundo eticamente”, baseando-se na lição de
Bakhtin, que permite dizer que “o grotesco é lugar de inserção dos valores
contraditórios, em luta, é nascedouro de ambivalências”. A proposta nos
provoca, então, a responder à questão “Quais são as suas palavras para
responder a este mundo?”.
Nossa resposta, nossa réplica, não vem só de palavras nossas, mas também
do cotejo de outras palavras que respondem a este mundo, vem também
de outras vozes. E essas palavras alheias, aqui tornadas em parte nossas,
respondem como “forças libertárias de nossos dias”, forças que, “nestes
dias de tanta treva e temor”, têm o destemor de mostrar um sentido outro
do grotesco, o grotesco como réplica a manifestações solenes oficiais que
ensejam a exposição do ridículo a que se expõem.

799
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Segundo Bakhtin,
No realismo grotesco (isto é, no sistema de imagens da cultura
cômica popular), o princípio material e corporal aparece sob a forma
universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal estão
ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É um
conjunto alegre e benfazejo. No realismo grotesco, o elemento
material e corporal é um princípio profundamente positivo, que nem
aparece sob uma forma egoísta, nem separando dos demais aspectos
da vida. O princípio material e corporal é percebido como universal
e popular, e como tal opõe-se a toda separação das raízes materiais
e corporais do mundo, a todo isolamento e confinamento em si
mesmo, a todo caráter ideal abstrato, a toda pretensão de
significação destacada e independente da terra e do corpo. [...] No
realismo grotesco, a degradação do sublime não tem um caráter
formal ou relativo (BAKHTIN, 1987, p. 17-18).

Em outros termos, o realismo grotesco é positivo no sentido de recusar


todas as distinções de “alto” e “baixo”, “sublime” e “corporal”,
“espiritual” e “material”, ou seja, uma reação ao centrípeto da ordem
oficial, que restringe para manter o poder, oposição “a todo isolamento e
confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal abstrato”. Trata-se da
proposição do centrífugo como forma de mostrar a unidade, a ligação
indissolúvel do cósmico, do social e do corporal, e, portanto, uma
oposição ao discurso oficial ao atacar suas próprias bases de seriedade e
solenidade.
Outro aspecto relevante é que, segundo Bakhtin, Rabelais tinha
A tarefa essencial [...] de destruir o quadro oficial da época e dos
seus acontecimentos, em lançar um olhar novo sobre eles, em
iluminar a tragédia ou a comédia da época do ponto de vista do coro
popular rindo na praça pública. Rabelais mobiliza todos os meios
das imagens populares lúcidas para extirpar de todas as idéias (sic)
relativas à sua época e aos seus acontecimentos, a mentira oficial, a
seriedade limitada, ditadas pelos interesses das classes dominantes.
Ele não crê na sua época, “naquilo que ela diz de si mesma e no que
ela imagina ser”, mas quer revelar o seu verdadeiro sentido para o
povo crescente e imortal. Ao destruir as idéias (sic) oficiais sobre a
época e seus acontecimentos, Rabelais não se esforça evidentemente

800
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

por dar delas uma análise científica. Não fala a linguagem das
concepções, mas a das imagens cómicas populares. Contudo, ao
destruir a falsa seriedade, o falso impulso histórico, Rabelais
prepara o terreno para uma nova seriedade e um novo impulso
histórico. (BAKHTIN, 1987, p. 386-87).
As vozes centrípetas a que nos referimos, ao mostrar o ridículo de atos
oficiais desmedidos, desnecessários e mal planejados, revelam que a
dessacralização pode ocorrer tanto exaltando o grotesco como resposta ao
sagrado, oficial (a proposta de Rabelais e do povo), quanto respondendo
ao sagrado, oficial, com a revelação de que há um grotesco negativo que
reside no ridículo de atos oficiais exagerados, desnecessários, sem sentido.
Propomos aqui uma reflexão acerca do que denominamos grotesco
negativo. Por que “grotesco negativo”? Porque, a nosso ver, o ato de
ridicularizar algo oficial, mostrando ser esse ato algo grotesco, não aponta
para o grotesco libertador de que fala Bakhtin, mas propõe, em vez disso,
a libertação mediante a denúncia do ridículo, do grotesco, do
despropositado, em atos oficiais. Aqui não há exaltação ao grotesco como
resposta à seriedade, mas a exposição do que há de negativamente
grotesco na própria seriedade. Por isso, pensamos que o realismo grotesco
de outras épocas se manifesta hoje como o grotesco negativo, aquele que
mostra que um ato oficial é grotesco no sentido de “Ridículo, que se presta
a escárnio.”, “Qualidade daquilo que é risível.” (DICIONÁRIO
PRIBERAM, 2021, s/p).
Vejamos as reações nos comentários do site de rede social Twitter,
recolhidos no dia do desfile, que podem ser divididas, principalmente, em
três grandes grupos: (1) lata velha; (2) Fumacê/Esquadrilha da Fumaça; e
(3) Corrida maluca. Além disso, outros comentários apontam para o
ridículo que foi o desfile: “Joãozinho trinta faria melhor”; “Além de um
cabo e de um soldado, vão precisar também de um mecânico.”; “Pamonha!
Pamonha quentinha”; “B. está em um relacionamento abusivo com as
forças armadas”; “entrega de correspondência mais cara da história”.
Em relação aos grupos que correspondem à maioria dos comentários, no
primeiro a referência foi a um quadro de um programa de televisão em que
um carro velho é reformado. Enunciados como “Ajuda, Luciano”;
“Loucura! Loucura! Loucura!” dão o tom do escárnio em relação à
imagem de blindados soltando fumaça no desfile. Isso também
desencadeou a outra série de comentários jocosos, cuja relação foi feita
com uma estratégia de controle das populações de mosquitos da dengue

801
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

em que um carro, chamado popularmente Fumacê, emite uma “nuvem” de


fumaça com baixas doses de agrotóxico. Os comentários, então,
centraram-se nessa semelhança: “tanques fumacentos”; “blindados mata-
mosquitos”; “campanha contra a dengue”; dengue aqui não”; uma das
poucas coisas úteis do governo: ajudou a combater a dengue”; “arma
química”; sufocando com O²”; “intoxicação com monóxido de carbono”;
“arma de destruição do meio ambiente”, “causar medo nos comunistas de
pegar pneumonia”, entre outros.
Nesse mesmo sentido, outros enunciados relacionam o desfile ao
Esquadrão de Demonstração Aérea (Esquadrilha da Fumaça) da
Aeronáutica, ironizando o fato de ser um desfile da Marinha: “Esquadrilha
da fumaça terrestre”. Do mesmo modo, foram inúmeras as brincadeiras
com as condições dos blindados, como “tanques fumacentos”; “não atira,
mas explode”; “carroças. OPS... tanques” e do próprio desfile: se o
neologismo “tanqueata” foi usado, inicialmente, por críticos, mas também
assumido pelos defensores do desfile, os comentários cunharam outro
termo para ridicularizar o ato: “sucateada”. Houve, ainda, o uso do termo
“sucateiro”, com imagens que retomam uma antiga novela,
chamada Rainha da Sucata.
O último grupo de comentários que destacamos aqui retomou um antigo
desenho animado, produzido nos Estados Unidos entre setembro de 1968
e janeiro de 1969, denominado Wacky Races, que, no Brasil, chamava-
se Corrida Maluca e, em Portugal, A Mais Louca Corrida do Mundo.
Nela, os competidores buscavam o título mundial de “Corredor Mais
Louco do Mundo”. A relação entre o desfile e a corrida da animação, ainda
que tenha sido feita citando os personagens Soldado Meekley e Sargento
Bombarda, que comandavam o Carro Tanque, uma junção de um tanque,
centrou-se no Carro 00: A Máquina do Mal, comandada pelo personagem
Dick Vigarista e por seu companheiro canino Muttley, que, para tentar
vencer, valem-se, sem êxito, de todo tipo de trapaças. Vários comentários
sobre fotos ou vídeos do desfile valem-se de enunciados que mostram o
ridículo de um acontecimento que se pretende solene: “Corrida Maluca”;
“Bolsonaro Vigarista”; “Primeira vez que Dick Vigarista assistiu o desfile
em vez de participar” etc.
Finalmente, é necessário destacar, na série de charges que foram
publicadas em comentários, dois outros grupos: (a) aquelas que
ridicularizam uma função corriqueira dos militares, a pintura com tinta
branca, em caricaturas que mostram os veículos com um pincel como arma
e tanques com acessórios pintando o meio fio e (b) outras que

802
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

relacionaram o canhão do tanque a um falo caído. Tema na psicanálise


como signo de poder, o falo, nesse caso, é parte de um carro de combate
conduzido pelo presidente, em uma manifestação de zombaria, mas
sobretudo de desdém e depreciação do personagem principal de um
conjunto de comentários ditos com intenção de provocar riso, destacando
a hilaridade de um desfile desnecessário e ineficiente como expressão de
força diante da pauta em votação no Congresso naquele dia: a volta do
voto impresso, defendida pelo presidente.
Cremos que esses comentários produzidos como réplicas ao desfile de
blindados da Marinha em Brasília para convidar o presidente a assistir
uma operação militar iluminam a “tragédia ou a comédia da época do
ponto de vista do coro popular rindo na praça pública”, mas na praça
virtual que são as redes sociais, atacando “a mentira oficial, a seriedade
limitada, ditadas pelos interesses das classes dominantes”, ou ao menos de
uma parte delas. Essas réplicas dessacralizam para além da permissão
oficial do riso do carnaval. Elas criam um carnaval próprio, chamando,
talvez em vão, o agir oficial à responsabilidade, ainda que este seja sempre
mais irresponsável, embora não menos responsabilizável (cf.
BAKHTINE, 2003; SOBRAL, 2019).
Não que, como Rabelais, essas réplicas criadoras do grotesco negativo a
partir dessa “seriedade limitada”, dessa “mentira oficial” que foi a
cerimônia, consigam “destruir a falsa seriedade, o falso impulso histórico”
nem propriamente preparar “o terreno para uma nova seriedade e um novo
impulso histórico”. Mas o deboche, o escracho, que mostram, apelando
para o grotesco negativo, o ridículo de algo que se dá ares de importância,
apontam de fato para maneiras de combater a falsa seriedade, o falso
impulso histórico, mormente quando este assume ares de demonstração
autoritária de uma pretensa força.
Trata-se assim de manifestações de resistência ao poder arbitrário do
discurso oficial. Ainda que não disponham de força para se opor ao poder,
os locutores que produzem essas réplicas trazem o centrífugo do riso para
combater o centrípeto da versão oficial do mundo de poderosos. O
grotesco negativo pode ser pensado, nesses termos, como uma forma
contemporânea do realismo grotesco, fundada não na suspensão da
hierarquia do Carnaval oficial, mas na suspensão voluntária, e corajosa,
da submissão à seriedade oficial.

803
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec/Editora da
Universidade de Brasília. Trad. De Yara Frateschi Vieira, 1987.
BAKHTINE, M. M. Pour une philosophie de l’acte. Trad. de Ghislaine
Capogna Bardet. Lausanne:
L’Age D’Homme, 2003.
PRIBERAM, 2021. Dicionário Priberam. Online. Disponível:
https://dicionario.priberam.org/. Acesso: 01 SET 2021.
SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura
comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

HISTÓRIA E LITERATURA NO GRANDE TEMPO: VOZES


EM DIÁLOGO NA SALA DE AULA

Letícia Queiroz de Carvalho


Instituto Federal do Espírito Santo
leticia.carvalho@ifes.edu.br

Fernanda Pagungue Moraes


Instituto Federal do Espírito Santo
fernandapagunguemoraes@gmil.com

Introdução
As relações humanas que compõem o passado são repletas de
subjetividades, de expectativas e incertezas. Determinar os
acontecimentos históricos, partindo da lógica de que tudo leva a
um progresso, é não perceber a historicidade do homem e sua
capacidade de transformação.
O passado, segundo, Benjamin (1987, p. 224), não é algo dado,
conhecido em sua inteireza, mas “como imagem que relampeja”, a
partir do momento que é “reconhecido”. É um composto de
“agoras”, porque é feito de história humana, de experiências, de
grandes e pequenos acontecimentos. Mostra-se através de
fragmentos, sendo recuperado de forma vaga e incompleta através
do trabalho do historiador que, sem pretender retratá-lo “como ele
de fato foi”, constrói uma narrativa redentora. Ou seja, sob a luz

805
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

das tensões da atualidade, o historiador rememora os fatos


relegados ao passado, como uma forma de salvá-los do eterno
esquecimento. A visão histórica de Benjamin é romper com o
tradicionalismo historicista de sempre que leva em consideração a
versão dos vencedores, pois segundo Löwy (2011, p. 20), o
pensamento benjaminiano, pretende “escovar a história a
contrapelo”, abordando as narrativas não-oficiais, a história dos
vencidos e grupos alijados na sociedade. Pautar-se nas experiências
do passado sob a ótica do presente, romper com o tradicionalismo
da continuidade histórica e da versão dos grupos dominantes
assim como trazer à tona as vozes dos marginalizados sociais é,
para Benjamin, uma forma de produzir um novo conceito de
História.
Alinhado a essas perspectivas teóricas, Bakhtin (2012) traz á baila a
questão das “grandes obras”, que seriam as obras contemporâneas,
ou seja, obras que passeiam pelos tempos históricos, que estão em
diálogo constante com os conflitos e tensões das diferentes
épocas. O passado, enquanto narrativa histórica, em Bakhtin, não é
algo desvinculado do presente, mas sim aquilo que colabora para a
compreensão deste, tendo em vista o diálogo existente entre as
temporalidades. Tal diálogo é possível devido à
contemporaneidade de um texto, que ultrapassa as fronteiras do
tempo, sendo ressignificado em cada momento histórico em que é
lido (BAKHTIN, 2012). Nesse sentido, as grandes obras, para
Bakhtin, nunca perdem o sentido, porque a história da
humanidade não está acabada, mas em uma contínua produção.
Diante desses pressupostos, buscaremos destacar no texto em tela
as potencialidades do encontro entre a História e a Literatura na
sala de aula, de modo a ampliar o fazer docente no que tange à
produção do conhecimento histórico, bem como destacar a
importância da leitura literária nos processos de formação docente
e no cotidiano da Educação Básica.

806
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

1 O Grande Tempo bakhtiniano


O conceito de grande tempo em Bakhtin está baseado na percepção
de que a literatura deve ser interpretada à luz dos aspectos
culturais das sociedades, ou seja, uma obra literária deve ser lida
tendo em vista o universo cultural do tempo de sua produção, para
que dessa forma, possa se entender e interpretar os valores que
permeavam tanto a obra quanto o período em que foi escrita. Uma
obra somente será compreendida para além do seu tempo se
mantiver um diálogo entre as diversas temporalidades. Essa
comunicação entre os tempos, de forma que as fronteiras que
separam as épocas não sejam vistas como barreiras, mas como
realidades diferentes, que seria o Grande Tempo bakhtiniano. Um
tempo não linear, “um tempo infinito” (BEZERRA, 2017, p. 85) com
a capacidade de fazer dialogar culturas distintas, sob o olhar da
interpretação, evocando os aspectos históricos sociais de uma outra
realidade.
Tal conceito destaca que somente as grandes obras, aquelas que
possuem várias temporalidades e podem ser inteligíveis nos
tempos subsequentes, podem viver no grande tempo bakhtiniano.
São essas obras que se permitem serem ressignificadas inúmeras
vezes, pois o sentido “que o autor pôs em sua obra” (BEZERRA,
2017, p. 95) não está limitado a um determinado tempo. Ao
contrário, por ser “potencialmente infinito” (BEZERRA, 2017, p.
94), os sentidos propiciam aos leitores diversas interpretações,
enriquecendo a sobrevida de uma obra.
A distância espaço-temporal entre obra e leitor deixa de ser vista
como empecilho a partir do momento que aquela permite ser
revestida de novos sentidos, através do diálogo cultural existente
no grande tempo. Para Bakhtin (2017), as grandes obras, sempre
que revisitadas adquirem novos sentidos a partir do olhar de quem
as interpreta, já que tais obras entram no grande tempo e superam

807
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

as limitações da época de sua criação. Para o autor, o grande tempo


auxilia na evocação dos aspectos históricos sociais e no diálogo
entre passado e presente, ambos dinâmicos, pois são construções
humanas e estão em constante transformação.
É importante reiterar que a noção de passado como um tempo
histórico morto e acabado passa ao largo da concepção bakhtiniana.
A própria ideia de tempo defendida por Bakhtin toma distância da
concepção tradicional. Segundo Machado (1998, p. 33-34) um “[...]
tempo como movimento unidirecional, sequencial, isto é, que parte
do passado e se dirige para o futuro [...] não atende às necessidades
de uma abordagem dialógica”. Ou seja, pensar o tempo como mera
sequência cronológica, limitado por datas, fechado em si mesmo e
sem conexão ou diálogo com outros tempos é não compreender a
pluralidade das relações humanas e sua capacidade de
transformação da própria realidade.
O diálogo com uma cultura distante temporalmente tem a
capacidade de gerar novos sentidos ou novas interpretações sobre
aquilo que ainda não havia sido questionado ou suscitar o
enriquecimento do nosso arcabouço cultural, não de forma factual
ou apenas como uma constatação de fatos e dados historicamente
produzidos, como alerta Bakhtin (2017). Ao invés disso, o encontro
com o passado por meio das grandes obras possibilita uma
“interpretação criadora” (BAKHTIN, 2017, p. 18) de novos
sentidos, pois através das questões levantadas na atualidade do
leitor, ele busca respostas na cultura do outro sem, contudo,
sobrepor as temporalidades distintas, mas contribuindo para seu
diálogo de forma profícu, sem limites para o contexto dialógico.
Cabe salientar aqui que, de acordo com Bezerra (2017),
contrapondo-se ao grande tempo, Bakhtin também trabalha a
noção de pequeno tempo. Por se tratar unicamente do tempo da
escrita da obra e do autor, o pequeno tempo não ultrapassa as
fronteiras, não permite o diálogo com outras culturas e nem
possibilita que as obras inseridas nessa temporalidade sejam

808
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ressignificadas em outros tempos históricos. Se uma obra não for


capaz de manter um diálogo com diferentes períodos, se estiver
fechada em si mesma e somente responder as questões da época de
sua produção e não der continuidade para que seus sentidos sejam
reinterpretados em outras temporalidades irá perecer, não sendo
capaz de manter a supervivência do seu conteúdo.
São as obras inseridas no grande tempo que nunca morrem, pois
cada vez que são lidas ou relidas ganham nova vida, pois o leitor
tem a capacidade criadora de produzir novos sentidos. Para
Bezerra (2017, p. 91) o grande tempo é “tempo universal” , pois
consegue acomodar diversas épocas de forma simultânea sem,
contudo, sobrepor as singularidades culturais de cada uma delas.
Esse diálogo entre as culturas é o ponto fulcral para compreender
a noção bakhtiniana de grande tempo.
Na concepção bakhtiniana, as grandes obras eram polissêmicas e
por isso, a variedade de leituras nas mais diversas temporalidades
tinha a capacidade de criar inúmeras intepretações que podiam ir
além da visão do próprio autor da obra. “Assim, interpretar uma
obra significa completá-la, revesti-la de novos sentidos, e, desse
modo, perpetuá-la no tempo como objeto estético” (BEZERRA,
2017. p. 96). Para Machado (1998, p. 35) “[...] as obras literárias
vivem um grande tempo, pois nascem num presente, mas não se
alimentam apenas de sua atualidade”, uma vez que ultrapassam as
fronteiras temporais, provocam questionamentos e respondem
questões sempre embasadas no diálogo cultural promovido entre
leitor e obra.

2 História e Literatura: diálogos possíveis na formação de


professores
Ricouer (1997) defende a premissa de que História e Literatura são
recriações do passado. Salvo as particularidades de cada uma no
trato com o objeto, ambas ao mesmo tempo reinventam e recriam

809
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

realidades que são adaptadas em cada época, por quem as lê. Nesse
sentido, História e Literatura se entrecruzam na relação com o
tempo e com as memórias das sociedades. Mas, se ambas recriam
o passado, onde estaria o limite entre um texto histórico e uma
produção literária?
Em primeiro lugar, pode se dizer que a História é uma produção
textual que leva em conta a cronologia das ações humanas. É uma
interpretação do ocorrido que pretende legitimar-se no seu
contexto social, tendo em vista a produção de sentido após a
leitura. Pode ser entendida também como uma forma de ver e dizer
uma realidade ausente limitada pelo objeto de estudo (CARDOSO,
1981). Possui métodos e técnicas específicas que questionam os
vestígios deixados por outras gerações e que, a partir da intenção
do autor, produzem significados numa relação entre o começo,
meio e fim da narrativa. Veyne (1971) defende que a História não é
uma ciência, mas sim uma narrativa de acontecimentos
verdadeiros que tem o homem como autor. É uma forma de ver o
passado e não reconstituí-lo na sua integridade.
Com relação à Literatura, percebemos que ela se encarrega do
estudo do movimento das sociedades, seus comportamentos, seus
hábitos, suas atitudes, suas práticas cotidianas, suas expectativas e
assim, dispondo de outro olhar para representar aquilo que
observa. Ao tirar da História o pano de fundo para produzir sua
perspectiva, a Literatura também produz uma realidade, mas que
não exige o compromisso com a passeidade (COUTINHO, 1978).
A narrativa literária, mesmo sendo um texto ficcional, também
possui valores e ideologias assim como um texto histórico, pois
carrega em si a subjetividade do autor. Para Culler (1999), o lugar
de produção de um discurso ficcional é sempre um contexto
histórico, mas isso não querer dizer que a literatura seja o reflexo
da sociedade que a produziu. No entanto, as práticas sociais
próximas do autor tangenciam sua escrita.

810
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A Literatura registra e historiciza as experiências humanas sob


outro olhar; ela também traz à cena sujeitos marginalizados e
desconhecidos; retoma posturas no plano das mentalidades e
preserva a imagem do que foi e do que poderia ser de um
determinado contexto histórico. Como argumenta Culler (1999, p.
45-46), uma obra literária pode ser em sua essência contraditória,
uma vez que pode provocar um emaranhamento do leitor com
texto de tal maneira que esse aceita passivamente “os arranjos
hierárquicos da sociedade”, sem questioná-los. Por outro lado, a
literatura pode contribuir para desvelar as contradições, levantar
questionamentos diante do que está posto assim como “produzir
um senso agudo de justiça que torna possíveis as lutas
progressistas”. Tal caráter só é possível através da identificação
com sujeitos de outras épocas, realidades e status sociais. A esta
identificação, Culler (1999, p. 44) denomina de “o sentimento de
camaradagem”.
Compagnon (2009, p. 10) põe em questão “[...] Quais valores a
literatura pode criar e transmitir ao mundo atual? Que lugar deve
ser o seu espaço público? Ela é útil para a vida? Por que defender
sua presença na escola? Sem a intenção de fechar a questão, mas
exprimindo de forma exemplar, Compagnon (2009, p. 52) afirma
que “[...] A literatura é um exercício de pensamento; a leitura, uma
experimentação dos possíveis [...]”, uma vez que ela permite ao
escritor e ao leitor imaginar inúmeras possibilidades através da
escrita e da interpretação.
A partir dessas considerações, percebemos como os limites que
separam a História e Literatura são tênues, pois ambas são
intepretações e representações subjetivas de uma dada dimensão
social. A Histórica carrega consigo o compromisso com o
acontecido a partir das experiências humanas; a Literatura busca
entender a condição humana e, mesmo quando se trata de uma
escrita ficcional, busca um contexto social para se desenvolver.

811
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Considerações finais
Uma das transdisciplinaridades oriundas desse diálogo entre
História e Literatura, se pensarmos que esses campos do
conhecimento apresentam formas distintas de narrar as ações
humanas em um dado contexto social, as quais podem ser
consideradas representações de um ocorrido ou de um por-vir-a-
ser. Cada uma, embasada em seus procedimentos metodológicos,
traz à cena hábitos e valores de homens e mulheres que
invisibilizados ou não, deixaram sua marca na história da
humanidade. A História, por sua vez, como afirma Pesavento
(2003), produz uma narrativa com pretensão à verdade, pois tem o
compromisso com o acontecido, sendo balizada pelas fontes
disponíveis ao historiador. Tal narrativa é entendida como uma
construção pautada em ausências, lacunas, silêncios, que
preenchidas por uma organização, dão forma a uma escrita. O
passado, quando narrado, não é mimético, mas representado com
base nos vestígios e fragmentos das fontes, na linguagem do
historiador e na sua realidade social, ancorado na plausibilidade
dos nexos para que se faça inteligível aos olhos do leitor.
Diante do exposto, a Literatura pode contribuir para o trabalho do
historiador interessado em explorar as sensibilidades, valores,
hábitos e medos, ou seja, um ethos de outra temporalidade. O
professor de História, atento às pesquisas historiográficas e
buscando trazer para a sala de aula outro olhar diante dos
conteúdos históricos sob o viés da Literatura, poderá contribuir
para que os estudantes despertem em si o sentimento de
sensibilidade diante de outros costumes, o imaginário sobre uma
dada realidade assim como o compartilhamento de uma
identidade com o passado através da escrita literária.

Referências

812
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina


Galvão; rev. trad. Marina Appenzeller. 3.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
______. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização,
tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de
Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017.
BENJAMIN, W. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e
política. Editora Brasiliense, 1987.
BEZERRA, P. “Bakhtin: remate final”. In: BAKHTIN, M. Notas sobre
literatura, cultura e ciências humanas. São Paulo: Editora 34, 2017.
p.81-100
CARDOSO, C. F. S. Uma introdução à História. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1981.
COMPAGNON, A. O demônio da teoria: literatura e senso comum.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
COUTINHO, A. Notas de teoria literária. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 1978.
CULLER, J. Teoria literária: uma introdução. Tradução Sandra
Vasconcelos. São Paulo: Beca Produções Culturais LTDA, 1999.
LE GOFF, J. História e memória. Trad. Bernardo Leitão 7ª edição.
Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990.
LÖWY, M. “A contrapelo”. A concepção dialética da cultura nas
teses de Walter Benjamin (1940). Lutas sociais, n. 25-26, p. 20-28,
2011
MACHADO, I. A. Narrativa e combinatória dos gêneros prosaicos:
a textualização dialógica. Itinerários, Araraquara, p. 33-46, 1998.
NIKITIUK, Sônia (org.). Repensando o ensino de História. São Paulo:
Cortez, 2001.

813
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

PESAVENTO, S. J. O Mundo Como Texto: leituras da História e da


Literatura. História da Educação, Pelotas, p. 31 - 45, 01 set. 2003.
RICOUER, P. Tempo e narrativa, tomo III. Campinas-SP, Papirus,
1997.
VEYNE, P. Como se escreve a História. São Paulo: Editora Edições 70,
1971.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Homossexualidade, vozes e discurso: uma análise da campanha


“Não Julgue Beije” da close-up.

Erik Luís Sott de Santis


UFFS
eriksottdesantis@gmail.com

Fagner Fernandes Stasiaki


Graduado em Direito
fagnerfstasiaki@aluno.santoangelo.uri.br

Introdução
A presente pesquisa busca trazer a homossexualidade e os valores
sociais atrelados a ela, para isso, é necessário descortinar algumas
questões que dificultam o respeito entre eu e outro. Os discursos
hegemônicos perpassam gerações e gerações, há discursos e vozes
das quais nos constituem e que são de outras pessoas, até mesmo
de instituições, lugares, culturas e não se sabe da onde elas vem,
mas esses discursos e vozes estão presentes na sua/nossa fala, no
seu/nosso pensamento e na construção da sua/nossa subjetividade.
Essas vozes ecoam no inconsciente e no consciente humano, elas
carregam signos e ideologias, ou seja, só existe palavra se houver
vozes. Há discursos hegemônicos que se proliferam através da
linguagem e de vozes outras que muitas vezes apenas reproduzem
discursos vazios do qual não os permite tempo de reflexão e essas
pessoas acabam tecendo a lógica patriarcal da sociedade. Essas

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

vozes e discursos sobre as mulheres e homossexuais, por exemplo


já esta arraigado conjuntos subjetivos que foram constituídos ao
longo do tempo e da história da sociedade.
A esfera do feminino foi relacionada com o obscuro, o demoníaco,
o pecado e esse discurso tinha por sua potência a voz da igreja que
condenava as mulheres e toda a esfera do feminino inclusive os
homossexuais. Há vozes e vozes nem todas ocupam o mesmo
espaço na sociedade, dessa maneira resistir é necessário para que
se possa mostrar para as pessoas que não existe uma forma de
existir, de ser, de pensar e de amar. Para a fundamentação dessa
análise busca-se aos ensinamentos e as vozes outras de Bakthin, e a
seleção de uma imagem publicitária da campanha referente ao dia
do beijo, campanha essa que circulou em 2016 e teve uma grande
repercussão por dar voz a outras representações de amor, a
campanha se destacou por mostrar a diversidade de raça, sexo e
idade.
O material selecionado se faz de suma relevância para a análise,
pois o preconceito em modo geral mata pessoas no país todos os
dias, essas temáticas devem ocupar os mais diferentes lugares a
caminho de uma solução. A partir da campanha se elege uma das
imagens publicitárias criadas para a marca close-up que representa
o amor entre dois homens, a campanha repercutiu nas redes e nas
grandes cidades, provocando uma libertação de algumas pessoas,
porém a sociedade ainda julga e fere o direito de ser quem se é.
Após 2016 o Brasil se tornou ainda mais violento contra a
comunidade LGBTQIAP+, nesse momento histórico entre passado
e futuro não se pode tolerar o intolerável.

Vozes, discursos e enunciados: tudo aquilo que ecoa.


Para refletir a linguagem, as vozes e os discursos se pensa em
contexto, uma vez que, a relação entre eu e outro se faz necessária
para construirmos uma unidade comunicativa dialógica. Esse
dialogismo se dá na relação entre falante e ouvinte, resultando

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

assim, em uma interação de troca, portanto ativa. A linguagem tem


essa potência de comunicar e dessa maneira, o processo
comunicativo se faz primordial para a construção do discurso.
Todo discurso parte de alguém e esse alguém é o sujeito do
discurso. (PUZZO, LACERDA, apud BAKHTIN, 2015, p. 201). O
discurso só é possível através dos enunciados que tal sujeito
profere. Logo, o sujeito carrega vivências, olhares, ideologia, ideias,
pensamentos e conclusões a partir da sua visão de mundo, desse
modo, os enunciados também possuem uma perspectiva de algum
contexto.
Segundo Bakhtin, “O enunciado em sua plenitude é enformado como tal
pelos elementos extralinguísticos (dialógicos), está ligado a outros
enunciados.” (BAKHTIN, 2016, p. 79). O enunciado possui sua
amplidão se relacionando entre sociedade, contexto e linguagem,
neles se pode perceber as vozes outras que as constituem, uma vez
que a interação também ocorre no seu interior. Como já exposto
anteriormente, há vozes e vozes, algumas mais altas, mais fortes
estruturalizadas pela sociedade e vozes roucas das quais não
ocupam esse espaço de privilégio, ou das quais foram silenciadas e
rotuladas por um bom tempo, essas, sempre foram resistência e
continuam sendo. Bakhtin irá dizer que,
Cada conjunto verbalizado grande e criativo é um sistema de
relações muito complexo e multiplantar. Na relação criadora com a
língua não existe palavras sem voz, palavras de ninguém. Em cada
palavra há vozes ás vezes infinitamente distantes, anônimas, quase
impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos estilos, etc). , quase
imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente.
(BAKHTIN, 2016, p.101).
Nesse sentido, qualquer palavra tem vozes e assim carrega um
significado, uma intenção e um ponto de vista, essas questões são
possíveis observar na campanha realizada pela marca close-up da
qual foi criada para o dia do beijo, essa campanha contemplou a
diversidade do beijo sem rótulos, a mesma representou o amor das
mais diversas formas. Para o trabalho selecionou-se uma das

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

imagens, da qual mostra dois homens se beijando, a imagem é bem


impactante pelas suas cores e pelas palavras expostas nela.
Analisando a imagem é possível ver as seguintes frases, “Não
julgue, beije” e bem abaixo “Liberte seu Beijo”.

fonte: blog.gabrielmorgante.com

A imagem possui vários tons de azul e branco, um dos homens está


pintado de azul escuro e o outro de azul claro e branco, é pintado a frase
“Não Julgue, Beije” nos seus rostos se pode ver que um complementa o
outro devido parte da frase estar em um e parte estar em outro, o encaixe

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

da mensagem seria o beijo ou a proximidade entre o eu e o outro. Há uma


relação dialógica que junta esses signos ideológicos, por meio dos signos
se comunica várias realidades, os signos são repletos de significados e o
seu conjunto pode criar outras representações. Portando, de acordo com
Valdemir Miotello, o signo carrega valor “sócio-histórico” e “físico-
material” partindo de um lugar “valorativo”, o signo se depara com o
modo de representar e discernir as realidades. Ou seja, o signo é
ideológico. (MIOTELLO, 2014, p. 170).
Através dos signos se pode observar a campanha e as vozes que as
constituem as vozes pelas quais a campanha possui um cunho ideológico
do qual se dá pela própria criação e materialização dela e também as vozes
da sociedade que de alguma forma aparecem ali. Ao escolher utilizar a
diversidade de raça, sexo e idade para essa campanha a marca já mostra
seu lado ideológico e quando isso é materializado por meio desses signos
se pode fazer uma leitura da qual vai além do material da campanha. No
momento que há dois homens ao encontro de um beijo e a frase “Não
Julgue, Beije” ao mesmo tempo que tem uma ou algumas vozes apoiando
esse amor libertário a outras vozes das quais não partem das mesmas
ideologias e buscam julgar sem ao menos conhecer e saber que não há
nada de diferente em amar quem você sente desejo.
Por conseguinte a frase “Liberte seu beijo” carrega uma grande carga
significativa, pois o signo “Liberte” pressupõem que algo está preso,
reprendido o que se pode pensar na história de opressão da comunidade
LGBTQIAP+, esses corpos que foram e são marginalizados pela
sociedade, é muito importante a representação homoafetiva uma vez
que, “A censura sobre os corpos importuna a vida desses indivíduos que
não se enquadram nos padrões hegemônicos, causando desconforto,
insegurança, medo e uma dificuldade de formação de identidade,
[...]” (SANTIS; STASIAKI; ANGELIN, 2021, p. 10). Também se pode
pensar a liberte para alguém que ainda está em processo de aceitação da
sua sexualidade, ou até para aqueles que estão amarados pelo preconceito.
Dessa, maneira observa-se que as vozes possuem espaços diferentes no
mesmo enunciado, ou seja, as vozes são dissonantes o tempo todo em um
mesmo lugar. Essa relação entre eu e outro constituem vozes diferentes
das quais ajudam na significação do todo da campanha.

Conclusão

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Conclui-se que as relações estabelecidas pela linguagem vão além de uma


leitura, um ponto de vista, a relação que a linguagem faz entre eu e outro
é muito importante para se entender a vida, o contexto, a sociedade e os
próprios sujeitos do discurso. Bakhtin nos mostra que a extensão entre eu
e outro se torna mais próximo do que se pensa. O entrelace das relações,
dos contextos se materializam também na nossa posição de falante e leitor
do mundo. As vozes não descansam sempre estão nos mostrando algum
ponto de vista, alguma ideologia que parte de algum lugar. Dessa maneira,
a campanha analisada serve para perceber que as vozes transpaçam de
várias formas o mesmo objeto de análise e que as vozes são dissonantes,
mesmo que a campanha tenha uma ideologia e foi criada para mostrar que
a diversidade merece seu respeito, na mesma campanha também se pode
observar os outros discursos da sociedade.

Referências
BAKTHIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. 1 edição. São Paulo: Editora
34, 2016.
MIOTELLO, Valdemir. Ideologia. In: BRAIT, Beth
(Org). Bakhtin: conceitos-chave. Ed. 1. São Paulo: Contexto, 2005.
Disponível em: < >. Acesso em: 03 Set. 2021.
PUZZO, Miriam Bauab; LACERDA, Edmilson Arlindo. Análise da
linguagem verbo-visual de capa de revista: uma proposta de leitura
bakhtiniana. Caminhos em Linguística Aplicada. Disponível em: .
Acesso em 04 Set. 2021.
SANTIS, Erik Luís Sott de; STASIAKI, Fagner Fernandes; ANGELIN,
Rosangela. Novas masculinidades: uma luta dos movimentos feministas e
LGBTTQIAP+. STASIAKI, Fagner Fernandes (Org). Direito e
Gênero: avanços e desafios. Ed. 1. São Borja: CEEINTER, 2021.
Disponível em: < >. Acesso em: 30 Ago. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Il riso come rigenerazione del mondo. Studi su Bachtin e Propp

Luciano Ponzio
Università del Salento - Lecce
luciano.ponzio@unisalento.it

“È melhor sobre risos escrever, que sobre làgrimas…”


(François Rabelais)

L’esperienza del riso sembra destinata a scomparire quasi del tutto nel
mondo a noi contemporaneo?
Bachtin, soprattutto attraverso la sua lettura rivoluzionaria del Rabelais,
ci ha insegnato l’importanza del corpo sociale e, come “filosofo del
dialogo e dell’alterità”, che la dialogicità si realizza solo in una relazione
intercorporea, come pure l’enunciazione “potenziale patrimonio sociale
della vita umana” (VOLOŠINOV) è realizzabile solo in uno spazio
dialogico.
Quale è la distanza necessaria? Insieme a Bachtin, Barthes ci ha indicato
la distanza necessaria (exotopia in termini bachtiniani)
per ascoltare anche la scrittura del visibile, non solo del leggibile,
avvertendoci che scrivere non è trascrivere. Barthes ci dice che il corpo è
nella scrittura stessa. Se nel parlare – tattica ludica e teatrale –,
l’“esposizione” del pensiero è pericoloso perché immediato, perché non si
lascia riprendere (“lottiamo a cielo aperto con la lingua”, in una serie di
richiami in cui “un corpo cerca un altro corpo”, per agganciare l’altro e in
un discorso che lo “prenda” – funzione fàtica), nella scrizione,
“riscrivendo quello che abbiamo detto, ci proteggiamo, ci sorvegliamo, ci
censuriamo” (BARTHES, 1981 [1974]; tr. it. 1986, pp. 3-7). Se nella
scrizione si perde il corpo in favore del pensiero, in una sorta di

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

messinscena delle idee (in cui la frase diventa gerarchica


nella subordinazione grammaticale), ciò che nelle tre pratiche – il parlare,
la scrizione, la scrittura – ritorna nella scrittura è proprio il corpo: “la
scrittura crea un senso che le parole non hanno in partenza” (BARTHES,
1981). Ma a esaltare ciò è la scrittura letteraria che impone alla parola la
cerimonia del carnevale, ovvero la scrittura ne fa della parola corpo
grottesco, glorioso e insieme scomparsa del corpo visibile, possibile,
dicibile, rappresentabile, autosufficiente, sé-dicente e chiuso. In fondo ciò
che fa Dostoevskij, non a caso amato da Bachtin, è aver creato una
scrittura letteraria che mette in discussione il soggetto statico recuperando
il corpo sociale, un corpo scomposto nelle parole e nelle immagini, come
effetto dei processi di relazione con altri corpi.
Bachtin ci dimostra ancora oggi che il futuro non bisogna solo prevederlo
ma bisogna anche costruirlo, e ciò è possibile attraverso la scrittura ma
solo se essa si rivolge sia al passato sia al futuro, nel segno del Giano
bifronte, ovvero uno sguardo doppio, futuro e da remoto (lungi dalle
espressioni linguistiche tecnocratiche della comunicazione informatica “a
distanza” e dietro freddi schermi-specchio). Lo stesso Rabelais,
in Gargantua e Pantagruel, col suo linguaggio, si rivolge a una
contemporaneità estesa fin ai nostri giorni, benché esso sia giocato su
arcaismi e proverbi popolari.
In particolare bisogna riconsiderare la figura del riso nella sua dimensione
storica culturale e, al tempo stesso, nella sua veste rivoluzionaria,
“visionaria”, per la sua innata capacità contestativa, esorcizzante nonché,
come insiste Bachtin, di un riso rigenerante. Più di altre espressioni
dell’essere umano, è proprio il riso intersoggettivo a rappresentare un
ultimo atto di resistenza, in particolare il riso accoglitore che potrebbe
rivelarsi l’“antidoto” più antico e più efficace poiché capace di annientare
ogni tipo di diseguaglianza e distanziamento sociali delle società moderne,
e farci finalmente vivere bene insieme.
Il segno del riso, è un segno da interpretare ancora oggi, un segno rifratto
nella prospettiva dell’altro, che Bachtin ci passa come testimone per
comprendere anche i nostri tempi. E quindi cercheremo qui di rileggere
non solo retrospettivamente ma anche prospetticamente il suo lavoro, in
un certo senso anche anticipatore, mettendolo in dialogo con autori ai quali
Bachtin, direttamente o indirettamente, si è rivolto per disegnare una
estetica del riso intersoggettivo come specifico linguaggio umano, uno dei
più potenti sul piano creativo.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nell’incontro tra semiotica e scienze demo-etno-antropologiche c’è


dunque un segno, più di altri, che particolarmente caratterizza l’essere
umano: il riso. Il “rider soprattutto è cosa umana”, avverte subito i lettori
Rabelais nei versi binari in apertura del suo Gargantua e
Pantagruel (RABELAIS, tr. it. 2017 [1ª ed. 1953], p. 5); e, prima di
Rabelais, come ci racconta Bachtin (1965; tr. it. 2001 [1979] p. 78), tale
caratteristica umana è stata colta anche da Aristotele nel De Anima (IV
secolo a.C.): “Di tutti gli esseri viventi, il riso è proprio solo dell’uomo”
(come vedremo Aristotele è citato anche da PROPP, tr. it. 1988 [1976], p.
28). Il Rinascimento, dice Bachtin, trova dunque la sua particolare
concezione del riso non solo all’interno di opere letterarie ma anche
attraverso alcune teorie del riso come segno di forma universale della
concezione del mondo.
In riferimento al Rabelais di Bachtin, la presenza di due volti della stessa
realtà insieme, come un Giano bifronte, costruisce una visione metaforica,
dinamica, dall’aspetto comico, ironico, ridente, basata su immagini mai
definite, per nulla isolate o inerti, e quindi inespressive, ma, al contrario,
dotate di “ambivalenza rigeneratrice”, come rinnovamento e
rinvigorimento complessivo di tutta la creatività artistica che irride la
visione dell’ideologia seria e borghese. In Bachtin le espressioni
scatologiche verbali sono il segno esplicito di un’immagine carnevalesca
contro l’ordine e a favore di una cultura del riso liberatorio e liberatore.
All’interno della stessa cultura, la metafora del corpo grottesco, nelle sue
espressioni carnevalesche, contribuisce ad una migliore comprensione
della dinamica del contrasto tra due visioni del mondo: da un lato, il corpo
individuale e chiuso, sé-dicente e isolato rispetto alla relazione con altri
corpi; dall’altra, il corpo aperto, fatto di interstizi e protuberanze, mostrato
nella sue relazioni intercorporee, collegato inevitabilmente con altri corpi.
Come noto, il corpo grottesco e incompibile è magistralmente colto e
descritto da Bachtin nelle parole e nelle immagini nel suo Rabelais. Scritto
da Bachtin negli anni Trenta, era originariamente il lavoro della
dissertazione intitolata Rabelais nella storia del realismo discussa nel
1946 per ottenere il titolo di dottore di ricerca. Ma il lavoro su Rabelais
risultò già allora talmente rivoluzionario che a Bachtin fu negato il
dottorato (il libro poi fu pubblicato solo nel 1965; in Italia arriverà in
traduzione nel 1979; cfr. tr. it. 2001).
Nel suo Rabelais Bachtin recupera il corpo sociale nella festa popolare,
cioè quell’immagine del corpo grottesco e intercoporeo che, come egli ci

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

spiega, è schierato contro ogni logica di assoggettamento e


rappresentazione, contro il potere e il suo esercizio di imporre identità e
differenze.
I corpi di parole e i corpi di immagini prodotti nel Rabelais costituiscono
il tratto distintivo della concezione artistica “non-letteraria”, non
conforme a certi “canoni”, alle regole “letterarie”. La sua non-ufficialità è
quindi ostile a qualsiasi compiutezza e stabilità, serietà angusta, contro
ogni finitezza, determinatezza del pensiero e della concezione del mondo.
La cultura comica popolare del Medioevo e Rinascimento si oppone al
tono serioso. Il recupero del carnevalesco nei riti e culti comici nelle
immagini di buffoni, stolti, giganti, nani, mostri, giullari disegnano una
letteratura parodica dei cerimoniali seri della rappresentazione. Il senso
marcatamente “non-ufficiale” affianca il mondo ufficiale, rendendo
visibile un secondo e molteplice mondo, una seconda vita, un dualismo
del mondo che ne sdoppia l’aspetto, la percezione e la vita. Tale visione
mette insieme i culti seri con i culti comici, questi ultimi ugualmente reali,
in una visione del mondo che si rimette in gioco, celebrando e deridendo
insieme, dove elogio e ingiuria si mescolano indistintamente. Il principio
di carnevalizzazione e il riso liberano i rituali sociali da ogni dogmatismo,
laddove l’elemento del gioco si rivela determinante nelle forme artistiche
e raffigurative, e laddove la dualità è data dai termini
russi vosproizvedenie e izobraženie, tradotti in italiano rispettivamente
con rappresentazione e raffigurazione; in portoghese abbiamo convenuto
tradurli con representação e afiguração (L. PONZIO, 2019).
Nel Rabelais, nel Capitolo primo, “Rabelais e la storia del riso”, Bachtin
traccia sì una storiografia del riso, soprattutto in ambito della cultura
popolare e del valore che in essa ha la festa, ma da tali studi ne trae anche
una estetica e una filosofia del riso. Bachtin inizialmente fa riferimento a
tre autorevoli autori del passato che più di altri hanno influenzato l’epoca
di Rabelais: Ippocrate, Aristotele e Luciano di Samosata. È lo stesso
Rabelais, continua a raccontarci Bachtin, a ispirarsi direttamente a
Ippocrate come “teorico sui generis del riso” (BACHTIN, tr. it. 1979
[1965], p. 77).
Una archeologia del riso dunque lascia le sue tracce già nel Romanzo di
Ippocrate. L’opera, conosciuta anche col titolo Lettere di Ippocrate e
inizialmente assegnata al celebre medico greco, viene ben presto
ricollocata nel genere romanzo, dal momento che tali lettere raccolte in
essa non sono state imbucate dal suo autore ma verosimilmente da un
impostore, tanto da far diventare questo testo, redatto in forma di epistole,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

un’opera menzognera, apocrifa e inventata di sana pianta, in altre


parole: “un raro esempio di romanzo nella letteratura medico-filosofica”
(HERSANT, pref. in IPPOCRATE, tr. it. 1999, p. 10). Il carattere
“romanzesco” delle epistole ippocratiche, la diffidenza verso le norme, il
suo potere di trasgressione, la lucida mescolanza dei generi, il rifiuto
dell’univoco, la capacità di mostrarci solo alla fine “un mondo alla
rovescia”, in particolare quando Democrito viene preso per pazzo, o
quando è il paziente a curare il medico, fanno già di esse un testo dal
carattere “romanzizzato” e “carnevalesco”. Qui il riso anche nella sua
veste salutare in cui, secondo la medicina greca (sposata da Ippocrate e
Galeno), il buonumore favorisce la guarigione, ossia il riso risanatore.
Nel Romanzo di Ippocrate il riso di Democrito messo in scena si fa beffa
dell’autorità, non soltanto mettendo in ridicolo il ruolo specifico di
medico, collegando il mondo triviale con quello scientifico – anche in
veste di gustosa autocritica di un autore che in fondo non appare mai
nell’opera, né come narratore né come medico (HERSANT, pref. in
IPPOCRATE, tr. it. 1999, p. 12) –, ma non mancando anche di farsi burla
della funzione del politico, preso in mezzo tra filosofia, medicina, botanica
e morale, facendone vacillare il mondo delle cose apprese o, come direbbe
Bachtin, il mondo della rappresentazione e dell’ideologia dominante: il
“mondo rassicurante del senso” viene sostituito da “un mondo ambiguo in
cui non c’è più differenza tra ogni cosa e il suo contrario” (HERSANT,
pref. in IPPOCRATE, tr. it. 1999, p. 13). Alla fine avviene un triplice
rovesciamento, ci dice Hersant nella sua prefazione: “il presunto pazzo è
un grande saggio; il terapeuta, un ignorante; la normalità, una demenza”,
causando “uno slittamento dalla competenza medica alla competenza di
filosofo” (HERSANT, pref. in IPPOCRATE, tr. it. 1999, pp. 15-16). In
riferimento al rapporto tra medicina e filosofia, grazie ai nomi di Ippocrate
e Democrito che definiscono il riso come concezione del mondo, Bachtin
ci rivela un particolare non trascurabile: sia la dottrina del potere curativo
del riso sia la filosofia del riso del Romanzo di Ippocratehanno avuto
grande successo e erano assai diffuse nella Facoltà di Medicina di
Montpellier, proprio dove Rabelais studiò e insegnò in seguito
(BACHTIN, tr. it. 1979 [1965], p. 78).
Il secondo capitolo è dedicato a “Il linguaggio di piazza nel romanzo di
Rabelais”, Bachtin tornerà sull’argomento tra medicina e comicità,
riprendendo dal romanzo di Rabelais la virtù curativa del riso e il tema
della deformazione del corpo causata dalle cosiddette “malattie allegre” e
“alla moda”, “risultato di un godimento smisurato” di cibo, bevande,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

attività sessuale, e sono per questo motivo legate al “basso” materiale


corporeo. Oltre al tema ricorrente del corpo grottesco e della sue
deformazioni nelle forme del riso in relazione a certe malattie del
benessere e del lusso smisurato (oggi di “malattie alla moda” ce ne
sarebbero tante altre), il linguaggio di piazza partecipa a assecondare
l’ordine del capovolgimento della parola. Alla fine l’epoca dei Lumi ha
dipinto il riso incontrollabile di Democrito come “riso cattivo”,
“sospetto”, “patologico” e che volge al negativo , da “veicolo di saggezza”
diviene “segno di crudeltà”. Chiosando sullo “strano caso” di Democrito,
Hersant dice che ogni storia del riso è, in fondo, ridicola (HERSANT, pref.
in IPPOCRATE, tr. it. 1999, pp. 22-23).
Bachtin coglie anche in quest’occasione la possibilità di recuperare
elementi costitutivi della teoria del romanzo, citando direttamente l’opera
di Ippocrate, non menzionandola come Lettere di Ippocrate, ma appunto
come il Romanzo di Ippocrate.
Nell’analisi dell’opera di Rabelais, oltre a voler ricostruire storicamente
una estetica del riso come espressione umana che capovolge tutte le
gerarchie e le regole sociali storicamente e istituzionalmente determinate,
di cui l’autore francese ne incarna il portavoce principale con i suoi
personaggi immaginari Gargantua e Pantagruel, da parte di Bachtin c’è
anche l’interesse di sollevare una problematica di carattere linguistico in
relazione a un confronto (anche qui un rovesciamento) tra latino
medievale, usato dall’élite dei dotti, il sapere istituzionalizzato, e il
volgare, utilizzato invece dal ceto popolare e nella vita quotidiana, o il
latino della classicità, coltivato dagli umanisti (BACHTIN, [1965] tr. it.
1979, p. 513; v. anche SINI, 2017, pp. 66-67).
L’opera di Rabelais e la cultura popolare del Medioevo e del
Rinascimento riprende il discorso fra “ideologia ufficiale” e “ideologia
non ufficiale” teorizzato sia in Freudismo (1927) che in Marxismo e
filosofia del linguaggio (1929) firmati entrambi da Valentin Vološinov,
ovvero uno dei maggiori interpreti, insieme a Medvedev, del cosiddetto
“circolo bachtiniano”.
Sugli aspetti gerarchici di carattere linguistico anche Propp è
particolarmente critico nei confronti di certe “estetiche borghesi” che, a
partire dal XIX secolo, hanno assegnato al riso due diversi e opposti aspetti
di comicità, secondo una scala di ordine “inferiore” e “superiore”, ossia
tra “comico volgare” e “comico fine” (PROPP [1976] tr. it. 1988, pp. 8-
9).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Se Bachtin si è soffermato sulla storicità e sugli aspetti culturali del riso


utilizzando come pre-testo l’opera di Rabelais, Propp nel 1976 si è
interessato anche delle forme del riso nelle sue variazioni (per spiegare la
varietà del riso, Propp fa riferimento al quadro di Repin, I Cosacchi dello
Zaporož’e scrivono una lettera al Sultano di Turchia, 1880-1891), non in
maniera generale e astratta (direttamente la sua critica è rivolta a certi
filosofi idealisti). A rivoluzionare proprio la cultura russa del riso è stato
proprio Rabelais, tradotto in russo nel 1961 da Ljubimov: “si può dire che
il lettore russo ha letto per la prima volta Rabelais e per la prima volta ha
sentito il suo riso. […] grazie all’ottima traduzione di Ljubimov, si può
dire che Rabelais si sia messo a parlare russo […]. […] l’importanza di
questo avvenimento difficilmente può essere sottovalutata” (BACHTIN,
[1965] tr. it. 1979, p. 90).
Propp, da parte sua, soffermandosi particolarmente su un tipo di riso che
s’incontra più frequentemente nella vita e nell’arte, ovvero il riso che
deride, (PROPP [1976], tr. it. 1988, p. 19), ci indica la strada per cercare
le forme del riso di volta in volta all’interno dei diversi contesti. Tuttavia,
in questa sua ricerca, come lui confesserà alla fine del libro Comicità e
riso, riuscirà a individuare soltanto sei/sette diversi aspetti del riso. Di
questa difficoltà di identificare e generalizzare sulle forme del riso, non
sintetizzabile come detto nella formule di Bergson che riduce il riso a un
rapporto di causa/effetto (1900; tr. it. 1990).
Uno esempio su tutti è fornito dalla fiaba poco nota della principessa
Nesmejana (il nome in russo significa esattamente “colei che non ride”),
analizzata da Propp nel suo saggio “Il riso rituale nel folclore. A proposito
della fiaba di Nesmejana”, saggio raccolto insieme a altri tre studi di
etnografia storico-strutturale accomunati sotto il titolo Edipo alla luce del
folclore (Edip v svete fol’klora, tr. it. 1975). La fiaba di Nesmejana
racconta nella sua sostanza di una principessa che, per motivi sconosciuti,
non ride mai e suo padre la promette in sposa a chi la farà ridere. La
particolarità della fiaba di Nesmejana è data però anche dall’intreccio dalle
svariate possibilità – non essendoci una trascrizione, la fiaba, ci svela
Propp, è raccontata in 3/4 modi diversi – che danno quindi vita a diversi
modi di ridere. Anche le radici storiche della fiaba di Nesmejana sono
rintracciate da Propp nelle pagine dedicate a “Il riso rituale nel folclore”
(tr. it. 1975, pp. 41-81). Alla russa Nesmejana, Propp fa corrispondere la
dea greca Demetra che ha perso il sorriso perché alla ricerca della figlia
Persefone scomparsa nell’Ade. La fiaba della principessa Nesmejana e il
mito di Demetra (“madre terra” nell’etimo) sono intrecciate a un’altra

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fiaba, dice ancora Propp, intitolata I contrassegni, e le fiabe risalgono a


un’unica radice: le due protagoniste sono “intrecciate” nel segno del riso
dal carattere agricolo, come rigenerazione della terra. Propp si soffermerà
sulla concezione agricola come nascita simbolica nei riti iniziatici
accompagnata al riso, riso che non solo accompagna ma crea la vita.
Diversamente, questa mancata partecipazione al riso possiamo
incontrarla nel protagonista de Il sogno di un uomo ridicolo di Dostoevskij
(Son smešnogo čeloveka, 1877; tr. it. 1995). L’uomo ridicolo è un “eroe
polifonico” in termini bachtiniani, visto anche come variante dell’“uomo
del sottosuolo”, il quale da soggetto del romanzo diviene oggetto del riso
altrui, e di questo riso non è neanche partecipe attivo ma passivo,
nonostante sia consapevole di questa sua condizione di essere ridicolo ma
che è vissuta in un mondo a lui del tutto indifferente. Indimenticabili sono
le prime pagine di questo cosiddetto “racconto fantastico” (etichetta
meramente classificatoria appiccicata alla versione originaria), il cui inizio
contiene tutto il fascino narrativo con i sui ritmi di pieni e di vuoti: il tema
del ridicolo si ritrova sparpagliato sulla superficie sin dalla prima pagina,
tra operatori temporali (adesso, prima, sempre, allora, dopo, ancora, di
anno in anno, alla fine ecc.), cronotopi del racconto che attirano l’occhio
del lettore a diverse velocità avviate dalla forza centripeta della parola
“ridicolo”.
Il rendersi ridicolo dunque può essere ritrovato lì dove la stranezza
rappresenta la deviazione di certe norme di condotta sociale adottate in
particolari contesti.
Così come alcune differenze fisiche rispetto a certi canoni anatomici che
possono essere motivo di ilarità: da difetti fisici a deformità che fanno
ridere, una scoperta improvvisa di un certo difetto può portarci a ridere
– Propp ([1976], tr. it. 1988) cita spesso Gogol’, in particolare Il naso. La
deformazione in fondo sta anche in ogni volto ridente laddove la bocca
arriva fino alle orecchie e anche questa immagine alterata ci contagia nel
ridere insieme senza sapere in fondo il perché. Ma non solo la differenza
fa ridere, anche la somiglianza, dice Propp, può provocare il riso.
Esattamente Propp parla di “sdoppiamento” della figura ([1976], tr. it.
1988) e ritrova nel folclore russo esempi classici di personaggi sdoppiati
(ma qui potremmo estendere il tema del doppio non solo a Gogol’, ma allo
stesso Dostoevskij, a Wilde, a Conrad, a Pirandello, a Saramago ecc.).
Tuttavia, in generale, nei confronti della comicità e del riso, dice Propp,
vi è sempre stato un atteggiamento negativo, persino un certo disprezzo,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

per i quali figurano esclusivamente accezioni che cadono al di fuori


dell’“estetica” e del “bello”.
Vi sarebbe dunque una teoria che distingue una comicità “bassa”,
“volgare” da una “elevata” ma Propp (PROPP [1976], tr. it. 1988, p. 8) ci
avverte che tale distinzione, soprattutto in ambito letterario, è impossibile
da sostenere, e tra i vari esempi porta ancora una volta quello di Gogol’:
accusato dai suoi contemporanei e da alcuni successivi critici e storici
della letteratura di trivialità e di volgarità senza, invece, capirne
l’umorismo. Ma i grandi scrittori, dice ancora Propp ([1976], tr. it. 1988),
come Rabelais non disprezzano affatto la farsa dei buffoni, i saltimbanco,
i clown, i pagliacci e ogni tipo di allegria sfrenata, come fonte delle forme
popolari del riso.
La volgarità, il linguaggio di piazza, finanche un certo linguaggio
scatologico – “le imprecazioni sono la forma più antica della negazione
figurata ambivalente” (BACHTIN, [1965] tr. it. 1979, p. 453) – sono un
tratto distintivo di gran parte dei generi della produzione letteraria,
laddove Rabelais è stato maestro, rivoluzionando le produzioni letterarie
successive ma rinnovando, anche in maniera retrospettiva, tutta la
letteratura del passato. Ma tale volgarità non è riservata solo al testo
letterario. Lotman, per esempio, si soffermerà sul linguaggio e sulla natura
artistica delle stampe popolari russe, ossia i lubki ([1976] tr. it. 2014),
sostenendo che tali testi non possono essere studiati con gli stessi criteri
estetici applicati all’arte ufficiale.
Il linguaggio di piazza è legato alla comicità popolare dal momento che in
esso le illusorie separazioni fra gli individui sono del tutto abolite. Inoltre
il linguaggio della piazza è ambivalente, è bifronte, laddove gli elogi e le
ingiurie sono in esso indistinguibili. La presenza del positivo e del
negativo insieme, in un linguaggio ambivalente, caratterizzano l’intero
linguaggio della cultura comica popolare, dagli effetti di parodia alla
ironia, alla comicità, al riso, che la creazione artistica verbale ha spesso
ripreso. Inoltre il linguaggio della cultura comica popolare è l’espressione
di una visione dinamica, costruttiva, basata su immagini incompibili in
senso assoluto, dotate di una “ambivalenza rigeneratrice” e, come tali,
possono contribuire notevolmente alla rivitalizzazione della vita stessa, e
non soltanto al rinnovamento complessivo della creatività artistica. Il riso
rabelaisiano per Bachtin non è mai denigrante o distruttivo, non si limita
a fare il verso alla realtà ma ad essa contrappone un mondo alla rovescia,
che nel suo contrario mostra il suo vero diritto, a favore di una diversa

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organizzazione sociale, schiudendo quindi sempre una visione del mondo


rinnovata, che non conosce separazioni tra spettatori e attori, platee e
palcoscenici, e in cui non esistono più confini spaziali, né è possibile
sfuggire da questa condizione di dialogo subito.
Terza fonte della filosofia del riso rinascimentale dopo Ippocrate e
Aristotele, dice Bachtin, è Luciano di Samosata, divenuto famoso per le
sue avventure impossibili del suo eroe Menippo di Gadara. Qui il
ribaltamento spaziale di cui parla Bachtin è offerto da Menippo che se la
ride cinicamente (da qui la satira menippea) di una vita fin troppo seria, in
particolare di tutte le credenze e i comportamenti umani intorno alla morte,
derisa finanche nel regno dell’oltretomba, andandole incontro di persona
all’Inferno da vivo, ma anche da morto in altre opere lucianee (LUCIANO
DI SAMOSATA, tr. it. 2020). L’immagine degli inferi, anch’essa di basso
corporeo in senso topografico, è ben presente anche nel romanzo di
Rabelais, anche sotto forma di carnevale, come in tutta la letteratura del
Rinascimento, che Dante inaugura, dice Bachtin (BACHTIN, [1965] tr. it.
1979, p. 329). Bachtin inoltre ci parla dell’importanza del ruolo del riso
come “rinascita allegra” assegnato alla festa popolare, in termini di riso
pasquale (risus paschalis): “tema della nascita del nuovo, del
rinnovamento, si associavano organicamente a quello della morte del
vecchio, su un tono gioioso e abbassante, con immagini
di sconsacrazione buffonesca e carnevalesca” (BACHTIN, [1965] tr. it.
1979, p. 90). Il simbolo del principio materiale-corporeo, dice Bachtin,
proviene da Le metamorfosi o L’asino d’oro di Apuleio (tr. it. 2010):
l’asino come uno dei “simboli più antichi e più duraturi del ‘basso’
materiale e corporeo, che ha nello stesso tempo un valore abbassante (di
mortificazione) e rigenerante” (BACHTIN, [1965] tr. it. 1979, p. 89).
Paradossalmente, finanche morire dal ridere è una varietà della morte
gioiosa, sottolinea Bachtin. Rabelais ne riporterà nove casi, e Bachtin fa
notare che la morte dei vecchi provocata dalla gioia è legata al trionfo dei
figli, alla vittoria della vita giovane (in nota BACHTIN, [1965] tr. it. 1979,
p. 450). Il rapporto riso e morte nel senso del rinnovamento bachtiniano
lo ritroviamo ancora una volte nelle feste popolari, in particolare i riti
funerari come parodia e farsa che culmina in una sfrenata allegria. Per
capire il nesso e l’importante ruolo che gioca il riso tra morte e vita è
necessario ancora una volta rivolgere l’attenzione ad alcuni studi di Propp.
Infatti anche Propp riporta questa relazione strettissima che intercorre tra
riso e morte (PROPP [1963], tr. it. 1993 [1ª ed. 1978], p. 135-190). Come
Bachtin, Propp fa risalire questo legame alla festa popolare, in particolare
alla festa del ciclo del calendario agrario in cui si allestivano dei funerali-

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

farsa che pertanto non erano tragici ma comici: “non si ha il pianto durante
i funerali ed il riso dopo la resurrezione, ma una loro mescolanza: alcuni
imitano il pianto, altri, contemporaneamente, saltano e ridono. Il riso
doveva garantire all’essere ucciso una nuova vita tanto necessaria, come
si riteneva, per un nuovo raccolto […]”, la presenza del riso “indica che
questa morte è una morte che ricrea una nuova vita” (PROPP [1963], tr.
it. 1993 [1ª ed. 1978], p. 189). Propp stabilisce dunque la tesi di una stretta
relazione tra certe feste anticlericali e popolari con il rito riproduttivo di
carattere agrario-magico, in cui morte e vita sono indissolubilmente
legate.
Il lavoro di Propp si sposta anche alla festa della betulla (conosciuta anche
come festa di Semik o festa della Trinità) in cui, in analogia al carnevale,
di questa betulla intrecciata se ne faceva qualcosa di simile a un pupazzo
decorato con un abito maschile o femminile, anch’esso alla fine distrutto,
rappresentando anche qui dei funerali comici. Ma la settimana che
precedeva tale festa si chiamava anche la settimana delle rusalki, anime di
persone morte “di morte innaturale o violenta” (PROPP [1963], tr. it.
1993 [1ª ed. 1978], p. 151), considerate innanzitutto esseri acquatici, che
abitano non nel mare ma nei fiumi, nei laghi, negli stagni, ossia bacini
idrici necessari all’agricoltura. Uscite dalle acque abitano la terra, anche
qui personificate in riti che le raffigurano.
Il riso s’innesta tela regolare della vita che conosce due centri di
valori, io e l’altro, secondo Bachtin, differenti per principio ma correlati
tra loro, e intorno ad essi si distribuiscono e si dispongono tutti i momenti
concreti dell’esistere umano (BACHTIN 1920-24; tr. it. in BACHTIN E
IL SUO CIRCOLO, 2014, p. 163; Cfr. L. PONZIO, a cura, 2020). Il riso
è intessuto nel mondo umano, e s’inserisce in una serie di rinvii, il suo
significato si rende proprio nell’intreccio di queste relazioni col vivente.
L’essere umano è il riso. Il riso, più di ogni segno, è il risultato di un
incontro che eccede la dimensione economica di scambio eguale
tra significato e significante. Riprendendo Bataille (BATAILLE 1989, p.
135), “il riso è il salto dal possibile all’impossibile”, e per saltare ci vuole
leggerezza, incontro intersoggettivo tra oggetto del riso e soggetto che
ride, un incontro che da semplice sguardo diviene visione del mondo
(BATAILLE “Il riso di Nietsche” in Id. [1973] tr. it. 1999, pp. 43-60) .

Referências

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

APULEIO. Le metamorfosi o l’asino d’oro. A cura di Alessandro Fo.


Torino: Einaudi, 2010.
BACHTIN, Michail. L’autore e l’eroe. Teoria letteraria e scienze
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BACHTIN, Michail. L’opera di Rabelais e la cultura popolare. Riso,
carnevale e festa nella tradizione medievale e rinascimentale [1965]. Tr.
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BATAILLE, Georges. Il colpevole / L’Alleluia [1973]. Intr. di Moreno
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BAUDELAIRE, Charles. Dell’essenza del riso e in generale del comico
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DE CAMPOS, Augusto; DE CAMPOS Haroldo;
SCHNAIDERMRMAN, Boris. Poesia russa moderna. São Paulo:
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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

DOSTOEVSKIJ, Fëdor Michajlovič. Il sogno di un uomo ridicolo e La


mite. Due racconti fantastici. Cura e traduzione di Pier Luigi Zoccatelli.
Roma: Tascabili Compton Newton, 1995.
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LOTMAN, Jurij Michailovič. Semiotica del cinema e lineamenti di cine-
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PONZIO, Luciano. Ícone e afiguração. Bakhtin, Malevitch, Chagall. Tr.
port. di Guido Alberto Bonomini, Cecília Maculan Adum e Vanessa Della
Peruta, org. de Neiva de Souza Boeno. São Carlos – SP: Pedro&João,
2019.
PONZIO, Luciano (a cura di). La persistenza dell’altro. La singolarità
dell’altro fuori dall’appartenenza identitaria. Lecce: Pensa Multimedia,
2020.
PROPP, Ja. Vladimir. Edipo alla luce del folclore. Quattro studi di
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PROPP, Ja. Vladimir. Feste agrarie russe. Una ricerca storico-
etnografica [1963]. Tr. it. di Rita Bruzzese e Intr. di Maria Solimini. Bari:
Dedalo, 1993 [1ª ed. 1978].

833
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

PROPP, Ja. Vladimir. Comicità e riso. Letteratura e vita


quotidiana [1976]. A cura di Giampaolo Gandolfo. Torino: Einaudi, 1988.
RABELAIS, François. Gargantua e Pantagruele [1532]. Tr. it. e cura di
Mario Bonfantini. Milano: Einaudi, 2017 [1ª ed. 1953].
SINI, Carlo. Il comico e la vita. Milano: Jaca Book, 2017.
SINI, Stefania. “Venti anni di studi di Michail Bachtin in lingua russa:
repertorio bibliografico ragionato e commentato 1995-2015”. Con la
collaborazione di Elizaveta Illarionova, introduzione di Stefania Sini.
Contiene “Opere di Michail Bachtin”, di Stefania Sini e “Opere su Michail
Bachtin” di Elizaveta Illarionova e Stefania Sini. In Moderna. Semestrale
di teoria e critica della letteratura, XVI, 1-2-2014. Pisa-Roma: Fabrizio
Serra Editore, 2016, pp. 213-421.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagens do Grotesco Hoje

Leandro Faber Lopes


Universidade Federal de Juiz de Fora
leandrofaber@hotmail.com

Imagens do Grotesco
1. O Corpo Cósmico

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2. A Praça Pública

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3. Apesar de Você

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Referências das imagens


Identificação das fotos a partir da parte superior, da esquerda para a direita.

1. O Corpo Cósmico
Foto 1. Leandro Faber Lopes, Coronel Pacheco (MG), Brasil – 2017
Foto 2. Leandro Faber Lopes, Bursa, Turquia – 2016
Foto 3. Mark ANDRIES / US MARINE CORPS / AFP, Cabul,
Afeganistão – 2021
Foto 4. Leandro Faber Lopes, Juiz de Fora (MG), Brasil – 2016
Foto 5. Leandro Faber Lopes, Juiz de Fora (MG), Brasil – 2016
Foto 6. Leandro Faber Lopes, Juiz de Fora (MG), Brasil – 2016
Foto 7. Leandro Faber Lopes, Istambul, Turquia – 2016
*
2. A Praça Pública
Foto 1. Leandro Faber Lopes, Juiz de Fora (MG), Brasil – 2016
Foto 2. Leandro Faber Lopes, Juiz de Fora (MG), Brasil – 2016
Foto 3. Leandro Faber Lopes, Juiz de Fora (MG), Brasil – 2016
Foto 4. Leandro Faber Lopes, Juiz de Fora (MG), Brasil – 2016
Foto 5. Leandro Faber Lopes, Juiz de Fora (MG), Brasil – 2017
Foto 6. Leandro Faber Lopes, Tiradentes (MG, Brasil – 2016
Foto 7. Leandro Faber Lopes, Juiz de Fora (MG), Brasil – 2016
*
3. Apesar de Você
Foto e concepção artística: Leandro Faber Lopes
*

Referências

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

INFÂNCIA E EDUCAÇÃO: O GROTESCO EM CHARGES NA


PANDEMIA COVID-19

Vania Maria Batista Sarmanho


Gelpea UEPA
vsarmanho.ctae@escola.seduc.pa.gov.br

Lorena Bischoff Trescastro


SENAI
lbtrescastro@hotmail.com

Simone de Jesus da Fonseca Loureiro


Semec/seduc
monnyjfl@gmail.com

A pandemia tem causado na vida de todos nós, e, principalmente


na vida das crianças, um grande desastre. Estamos nos referindo ao
o que antes vivenciávamos com regularidade sem o receio de
sermos contaminados pelo vírus Sarscov-2 como: risco de
contaminação, adoecimento e morte de pais, parentes ou pessoas
próximas à família.
Durante a pandemia Covid-19, crianças deixaram de brincar com
seus amigos; ir à escola regularmente ficou em segundo plano e
estar na presença do professor em sala de aula foi substituído pela
comunicação virtual e o ensino remoto. No convívio social, visitar
os avôs foi evitado; cumprimentar as pessoas por meio de um

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

abraço também deixou de ser praticado; sair de casa na companhia


de pais e/ou responsáveis para passear, entre outras atividades
sociais, como brincar com amigos na rua ou na praça deixou de ser
relevante. No distanciamento social e recomendado uso de
máscara, gestos ligados às relações sociais foram suprimidos,
repelidos e grotescamente vivenciados. Quanto ao grotesco, Sodré
e Paiva (2002, p.40) esclarecem que
o grotesco é aí, propriamente, a sensibilidade espontânea de uma
forma de vida. É algo que ameaça continuamente qualquer
representação (escrita, visual) ou comportamento marcado pela
excessiva idealização. Pelo ridículo ou pela estranheza, pode fazer
descer ao chão tudo aquilo que a ideia eleva alto demais
Nesse sentido, a pandemia de Covid-19 provocou na vida das
pessoas e das crianças muitas mudanças na rotina, pois atividades
sociais e espontâneas normalmente vivenciadas passaram a ser
evitadas. O distanciamento social e o confinamento para evitar a
contaminação do Coronavírus modificaram as relações sociais, já
que afastou as pessoas de suas atividades laborais, escolares e de
lazer. Em alguns casos foi tão perverso que isolou as pessoas do
convívio familiar, como é o caso das pessoas contaminadas que
ficaram ou em casa em um quarto ou em um leito de hospital.
Nesse contexto pandêmico o que mudou na rotina das famílias, em
especial nas atividades sociais na infância, como a educação escolar
das crianças? As crianças que tiveram que se afastar da escola e do
convívio social de seus pares, para além dos prejuízos da
aprendizagem, quais os impactos da falta da interação social
devido ao distanciamento social e o recolhimento em casa? No
contexto escolar remoto que conflitos surgiram que irão
transformar esta infância singular, em que muitos alunos ficaram a
margem desse processo, seja por falta do acesso à tecnologia ou
pela falta de apoio familiar? Nesse caso, surge o grotesco de uma
infância roubada ou transgredida em boa parte de seus direitos, em
particular o da educação que tem como papel fundamental de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

promover o desenvolvimento integral, incluindo a socialização da


criança.
O grotesco é tudo aquilo que aos olhos do homem mexe com nossas
estruturas, provoca em nós sentimento de apreciação do feio,
bárbaro, absurdo, disforme, indignação, riso ou choro
simultaneamente, quando nos deparamos com a notícia, uma obra
de arte, uma pintura, escultura, imagens imagéticas, etc. Algo que
nos afeta sensivelmente, nos indigna, causa-nos raiva ou nos
impulsiona a escrever ou a verbalizar repudiando o que vimos ou
ouvimos. Nesse sentido, o grotesco em uma infância pandêmica em
que a criança fica responsável de certa forma em cumprir uma
rotina às avessas que fica fora da escola, ou seja, em que o tempo
de ser criança não segue uma organização que respeite o seu tempo
do aprender, do trocar, do dialogar e viver suas potencialidades.
Em Bakhtin (2002), a ideia do grotesco era de denunciar a forma
cômica das relações de poder estabelecida no Renascimento. Na
obra, a linguagem utilizada era viva, o leitor se via integrado a
gozação, convidado a celebrar gargalhadas. Um riso desbragado e
perigoso que intencionalmente satiriza o mundo medieval em
histórias protagonizadas por gigante. Atualmente, o risível
decorrente de fatos cotidianos e das relações de poder está presente
em memes e charges divulgados via Internet.
Além disso, na obra de Rabelais, além da linguagem viva, as
imagens eram provocativas da representação da realidade de uma
forma figurada pelos gigantes. Na intencionalidade de provocar o
riso do que pode provocar o cômico, a categoria estética do grotesco
se evidencia, tendo em vista que a categoria “responde tanto pela
produção e estrutura da obra quanto pela ambiência afetiva do
espectador, na qual se desenvolve o gosto, na acepção da faculdade
de julgar ou apreciar o objeto, aparências e comportamentos”
(SODRÉ; PAIVA, 2002, p.35).
Desse modo, a provocação ao riso do espectador ou contemplador
seja da obra, escultura ou imagem ativa as emoções tanto

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

positivamente quanto negativamente, seria um julgamento de


valor entre o horror, o pavor, o espanto e o próprio riso.
Atualmente, temos formas de riso com denúncias similares por
meio da charge que se constitui de um texto de humor, que provoca
o riso, mas que também traz uma crítica que remete a uma notícia
ou fato da realidade. A compreensão da charge exige que o leitor
acesse conhecimentos prévios e estabeleça relações de
intertextualidade.
Segundo Ramos (2012, p. 21), “a charge é um texto de humor que
aborda algum fato ou tema ligado ao noticiário. De certa forma, ela
recria o fato de forma ficcional, estabelecendo com a notícia uma
relação intertextual”. De fato, a intertextualidade é um elemento
constituinte da charge em dois níveis: um quando o tema é
reportado na imagem (não verbal) e no texto (verbal) de maneira
explícita; e o outro quando a temática da charge remete a outro
texto conhecido, a notícia. E é, justamente, as relações linguísticas,
cognitivas e pragmáticas de intertextualidade, estabelecidas entre
esses dois níveis, que possibilitam ao leitor compreender,
interpretar e extrapolar o sentido do texto.
Nesta pesquisa, com abordagem qualitativa, selecionamos como
objeto de estudo duas charges da representação da infância no
contexto da pandemia Covid-19 (Figuras 1 e 2). A escolha das
charges se deu porque ambas remetem a contextos distintos da
educação das crianças: a família e a escola. No decorrer da análise,
sem a pretensão de esgotar as possibilidades interpretativas do
discurso da charge, buscamos observar os elementos da
intertextualidade, evidenciados na linguagem verbal e não verbal,
bem como o que remete ao grotesco e aos efeitos de riso provocados
pelo humor.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Charges 1 – Aulas em casa para as crianças...

Fonte: Blog do AFTM (2020).

Os pais não suportam mais as crianças em casa durante a pandemia


e eles demonstram não ter paciência com elas, principalmente pelo
fato de terem que ajudar as crianças em atividades escolares. Isso
beira o grotesco porque a rigor os pais, enquanto pessoas adultas e
mais instruídas, eles deveriam tomar a iniciativa de mediar as
aprendizagens escolares das crianças a fim de contribuir com sua
educação. No entanto, ter que orientar os filhos em atividades
escolares parece provocar uma sobrecarga já que muitos deles,
trabalhando em home office, ocupavam seu tempo realizando
atividades domésticas e laborais. Como se vê, o título dado à charge
“Aulas em casa para as crianças” é irônico, pois as supostas aulas
parecem não ter ocorrido

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Além do mais, esse contexto de certa forma também valorizou o


papel do educador, bem como, e a necessidade de estar em sua
presença, na sala de aula, pois embora a tecnologia ajude nesse
processo de aprendizagem não consegue suprir a medicação do
conhecimento do professor. Ademais, há desigualdades
educacionais quanto ao acesso aos dispositivos digitais e mídias
sociais.
Charge 2 – Volta às aulas preocupa...

Fonte: Blog do AFTM (2020).


Espirrar é um ato espontâneo, involuntário e natural, porém no
contexto da pandemia é algo que provoca medo nas pessoas, pois
é sabido que a transmissão do vírus pelo ar é alta. Além do uso de
máscara, para não se contaminar pela Covid-19, é recomendado
evitar espirros e a aproximação entre as pessoas. O diálogo entre
mãe e filho, na charge, mostra a criança justificando para a mãe o
motivo pelo qual foi suspenso das aulas pela escola, que foi o fato

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de ter espirrado. Então, nesta charge, o grotesco, que provoca o riso,


é o cerceamento de atos individuais tão naturais, como espirrar,
pela comunidade escolar.
As duas charges do Cazo, publicadas no mesmo blog, foram
escolhidas por retratarem a representação da infância na pandemia,
um foca a crítica no contexto da família e a outra, no discurso da
escola, em nosso entendimento, ambas se complementam porque
se ocupam da temática da educação da criança. A dualidade na
percepção do mundo e da vida humana, como provocadora do riso
e da crítica, no estudo do grotesco, bem como da cultura individual
e comunitária, assim como ocorre nas relações de intertextualidade
e construção de sentido em textos contemporâneos, como as
charges que ora analisamos, também foi tratada por Bakhtin (2002).
Ao abordar a importância do grotesco, Tihanov (2012) destaca a
abordagem dada à cultura comunitária e individual, e a desejada
síntese entre elas. No presente estudo, buscamos destacar que o
leitor, para entender o texto, deve recuperar dados conhecidos
tanto da comunidade escolar e coletiva quanto da vida familiar e
privada e estabelecer as relações de intertextualidade entre eles. E,
assim, o grotesco se mostra como elemento provocador do riso e da
construção de sentido.
Por fim, as charges satirizam o momento pandêmico e
impulsionam o apreciador a uma reflexão, provocando no
espectador a um posicionamento diante da realidade e até mesmo
fazendo um movimento de denúncia e resistência sobre a privação
da infância na pandemia, principalmente no que diz respeito à
educação.

Referências
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2002.

846
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

CAZO. Aulas em casa para as crianças. Disponível em:


http://blogdoaftm.com.br/charge-aulas-em-casa-para-as-criancas/.
Publicada em: 13 jun. 2020.
CAZO. Volta às aulas preocupa. Disponível em: . Publicada em: 09
ago. 2020.
RAMOS, P. A leitura dos quadrinhos. 2. ed. São Paulo: Contexto,
2012.
SODRÉ, P.; PAIVA, R. O império do grotesco. Rio de Janeiro:
Mauad, 2002.
TIHANOV, G. A importância do grotesco. Tradução de Bruna Lopes-
Dugnani. In: Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso. V. 7 (2),
Dez 2012. LAEL/PUC-SP. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

IWASA’I

Jeovani de jesus Couto


Universidade do Estado do Pará
gilcouto2010@hotmail.com

Sabor, vamos começar por ele, gostosura que ia bem com fritura,
não foi pelo olhar e nem pelo tato, foi pelo paladar, pelo leve
encantar de ser um vício do bem. No tempo de meninice medido
na vasilha, na sacola veio bem depois, mas a bandeira vermelha
sempre esteve lá anunciando o cheiro cheiroso de quem vem dos
interiores, das águas, dos lados de lá e de cá.
Do quintal ele tem gosto salgado, por que na batedeira levemente
adocicado? No caroço, misturado com farinha sempre ia bem,
açúcar não jogue aqui não, isso não é de Deus e nem de ninguém.
É misterioso, é enigmático...Conta a lenda que havia uma tribo
indígena em que o número de habitantes era bem elevado e os
alimentos estavam cada vez mais escassos.
Então o cacique da tribo foi pragmático, tomou a decisão de
controlar o número de habitantes e todos que nascessem a partir
daquele momento seriam sacrificados.
Um dia, a filha do cacique, chamada Iaçã teve uma criança com o
destino traçado. A mãe sofreu muito, passou vários dias e noites
chorando por sua filha com o fim desgraçado. Assim, elevou os
seus pensamentos à divindade indígena, e pediu que o cacique
encontrasse outra maneira de resolver a questão dos alimentos,
sem o fim trágico.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Foi então que Iaçã ouviu fora de sua oca um choro de criança. Ao
sair, para sua surpresa, avistou sua filha ao lado de uma palmeira,
seu coração se encheu de esperança.
Iaçã correu em sua direção e abraçou a menina que,
misteriosamente, nos braços da mãe desapareceu. Mais uma vez
inconsolável, Iaçã chorou tanto durante a noite até perder as forças
e desfalecer.
O corpo da filha do cacique foi encontrado na manhã seguinte, na
palmeira abraçada. Ela estava serena e parecia sorrir levemente.
Seus olhos estavam abertos e direcionados ao topo da árvore
abençoada.
Iwasa’í, palavra tupi que significa “fruta que chora”, a fruta que
repele água.
Para as populações tradicionais do Marajó é comida, é vida, tem
gente que passa o dia sem nada comer se o pretinho não aparecer.
É produção. Tem gente que espera a safra para conseguir
excedentes para comprar além da comida, o som sonhado, a
geladeira e outros utensílios necessários.
É fundo comunitário em que todos podem se beneficiar, se a
comunidade cooperada se organizar.
Essa compreensão para além dos sentindo do olfato e paladar só é
possível observar a partir das leituras, das conversas, das
sensibilidades no compartilhar, no sorrir, no chorar......
Som de rabeta rompe o silencio dos pensamentos, nas margens do
rio de águas escuras o homem estava, não tinha farinha, foi farinhar
com seu filho, uma lata apenas para acompanhar a bebida amada.
Antes da farinhada voltemos a rabeta com o homem oferecendo um
preço baixo pela rasa, o idoso responde como em um berro “por
esse preço deixa o passarinho comer...” Zoada de rabeta sai
correndo sem nada dizer no tapete das águas.

849
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Homens, mulheres, jovens e crianças, plantam ou cultivam o que a


floresta plantou, sobem nas árvores, colhem e vendem por preços
juntos e injustos, o que se suplantou.
Invisibilizados quando o assunto é proposição de políticas de
desenvolvimento. Políticas que são “popularizadas” pela
modernidade tecnológica. Que falta de discernimento!!
Quem determina quem deve propor? Quem determina quem deve
participar? A comunicação chega em todo lugar?
Ah!!! O silêncio, quebrado pelo som do motor... é barco? Rabeta?
Notícias de fora no zap zap só quando o motor a diesel é ligado lá
pelas 19 horas, isso para quem tem motor, para quem tem antena,
para quem tem internet rural, para quem tem….
E quem tem ou não tem compreende a grilagem pelo Cadastro
Rural? A má fé para comercialização dos créditos de carbono
utilizando territórios comunitários? Cá estão os “proprietários”....
Uma vez as comunidades pareciam resistentes ao estrangeiro que
se dizia dono das terras, resistiram através da unidade de
conservação. Outra vez, a escola negociava mas, as comunidades
não!!!
Revisitando, as pessoas pareciam felizes em alojá-lo porque ele ia
construir o barracão da comunidade....
Era uma vez, ano 2002, em um seminário promovido pela
universidade, o estrangeiro já estava lá, parece um diálogo
cansativo, mas ele não está cansado dessa tal iniquidade.
Será que estamos? Será que conseguimos enxergar o grotesco na
usurpação? Na ambiguidade de vilão e provedor? E a
representação das comunidades tradicionais nas políticas de
desenvolvimento? Temos “acolhimento”???
Ué? Do que se fala? Da comida? Do alimento? Da lenda? Da
cosmovisão? Da política? Do clima? E tem delimitação??

850
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ele pode ser tudo isso, atravessando as fases da vida, com cheiro e
gosto de temporalidades vividas, saciando a forme, sinônimo de
bem-viver e de libertação.
Como garantir liberdade se o estado força a seguir regras e
controles em torno das comunidades da floresta, com normativas
sem inclusão digital, note as sutilezas das arestas.
Produto comunista!!! Que alimenta as pessoas por séculos, ora,
ora... deixe isso para a lenda. Ele agora é internacional, diz a política
neoliberal. Lucros para o mercado capitalista aproveitando-se da
desigualdade educacional e exclusão digital.
Barganhando as florestas em que vivemos em nome das condições
climáticas que obtivemos. Colonialidade atual, relação alienante de
submissão, sem soberania e sem comunicação.
A Amazônia é uma mãe que chora pela sua filha que foi sacrificada,
e que não precisa morrer para mirarmos para a palmeira e para a
diversidade da floresta supracitada. Regularização fundiária como
direito à terra, à reprodução socioeconômica, justiça social e
ambiental é o grito que precisa ecoar, quando o amazônida
despertar.
Bandeira vermelha, na sacola entregou, batedeira, feira, barco ou
rabeta chegou, é ribeirinho ou atravessador. Abelha e palmeira,
peconha no pé, desceu, amassou ou bateu, alimentou, vendeu,
defendeu.
Cooperativa? Merenda escolar? Importar? Sei lá? Quem informa?
Quem organiza? A terra de quem é? Salve o clima!!! Salve a
Amazônia!!! Os salvadores a serviço de quem???
Precisamos do velho aviamento? E toda luta de Chico Mendes e
todos os outros que vieram antes de nós, quem precisa de algoz?
IWasa’í nos alimenta, nos liberta. Linguagem tupi, ancestralidade,
cosmovisão, de mim e de ti AÇAÍ.
___________________

851
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

¹Crônica Poética inspirada nas cartas de Carlos Augusto Pantoja


Ramos Da impressão à Expressão Digital do Colonizador: breves
reflexões para possíveis embates e Carta Iwasa’i: Questões
fundiárias, natureza, ensaio e cosmovisão

852
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

LETRAS POTENGIENSES E GROTESCO: HORIZONTES


DIALÓGICOS

Tacicleide Dantas Vieira


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Norte
tacicleidevieira@gmail.com

Fernanda de Moura Ferreira


IFRN
fernandapotiguar@gmail.com

Considerações iniciais
Como desdobramento de uma pesquisa realizada por professores
e alunos de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, acerca das Letras de
São Paulo do Potengi, município do referido estado, este trabalho
versa sobre a palavra na vida e na literatura, compreendendo-a, de
acordo com o Círculo de Bakhtin, na sua constituição ética/estética.
A partir de uma breve análise do discurso da obra “As aventuras
de um Peão do Trecho: uma saga que precisava ser contada”, de
Moacir Farias, que integra um inventário literário local construído
pela pesquisa junto à comunidade, este ensaio se propõe a refletir
sobre horizontes do grotesco nas Letras Potengienses.
A investigação sobre essas Letras em particular foi uma iniciativa
presidida pelo princípio da (cons)ciência responsiva,
comprometida com a ousadia investigativa, como postula Bakhtin

853
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(2017) ao tratar das questões da literatura de seu hoje. O filósofo e


o seu Círculo advogam o (re)estabelecimento do vínculo mais
estreito entre Literatura e Cultura, orientação que constituiu todos
os estágios da pesquisa desenvolvida, desde a sua concepção
primeira, suscitada pela inquietação dos pesquisadores frente ao
desconhecimento e à fragmentação da produção literária de uma
cidade, do interior do RN, cuja atividade estética mostra-se
extremamente prolífera, por um lado, e carente de catalogação e
visibilidade, por outro.
O desafio se anunciava enfaticamente. A cidade não possui
biblioteca pública e acervo organizado de enunciados literários
locais, tampouco incentivos substanciais nesse sentido. Boa parte
da produção literária de que se tem notícia, se publicada, encontra-
se esgotada ou não reeditada. Embora haja uma agremiação que
reúna autores e artistas da região, a Academia Potengiense de
Letras e Artes (APLA) – coletivo que atesta a quão profícua é a
atividade de criação artístico-literária ali –, ela não dispõe de sede
própria que possa receber a comunidade ou engajá-la no
conhecimento de suas Letras.
Todas essas carências suscitaram um trabalho de pesquisa
caracterizado como uma expedição dialógica por excelência.
Pesquisadores e comunidade, em interação permanente,
confirmaram a necessidade de uma intervenção orientada para o
resgate e o redimensionamento da fortuna literária local. Pouco a
pouco, sobretudo a partir de visitas a acervos privados, foram
encontradas algumas raridades, obras que passaram a constituir
um inventário singular, sistematizado, partícipe da arena dos
discursos literários.
Nesse percurso, uma das primeiras obras a que tivemos acesso é a
que abordaremos na análise. Romance, na sua constituição
heterodiscursiva, conforme Bakhtin (2015), a narrativa possui
subtítulo assertivo e acertado ao dizer-se de “uma saga
que precisava ser contada” (grifo nosso). De fato, nessa esteira, a

854
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

produção literária de São Paulo do Potengi precisa ser “contada”.


Essa constatação culminou na construção de um acervo físico e
digital de diversos títulos, agora e adiante, cada vez mais
(re)conhecido e compartilhado pela comunidade que se vê refletida
e refratada nas Letras Potengienses. Ademais, enuncia-se neste
trabalho, que, de certo modo, traz sua(s) voz(es) às rodas de
conversa bakhtiniana.
O grotesco e a Literatura Potengiense: “As aventuras de um Peão
do Trecho”
O grotesco na perspectiva bakhtiniana é um elemento em
inquestionável harmonia com toda a filosofia que embasa e norteia
a obra do Círculo de Bakhtin, a qual, pautada no princípio do
diálogo e em sua dinâmica de funcionamento, observa e
compreende o mundo de maneira não estanque. Ao contrário,
ressalta a organicidade e a interdependência entre todas as partes
e o aspecto de renovação inquebrantável. O grotesco é um corpo
celeste, portanto, na constelação do eu e do outro.
Dentre as diversas características que colaboram na construção do
grotesco bakhtiniano, a ambivalência merece destaque. A
ambivalência é a propriedade que apresenta a relação de
interdependência fundamental para o ciclo vital, fazendo com que
não haja faixas divisórias pesadas e estagnadas que separem os
elementos. Em outros termos, ela evidencia as contradições
indissolúveis que unidas são o ponto do qual irradia a renovação
da vida. Sem a fusão do velho com o novo, sem a conexão intrínseca
entre o interno e o externo, sem o contínuo entre mundo e sujeito,
sem o ponto de encontro entre o positivo e o negativo não há
condições de a vida prosseguir, uma vez que a renovação é pré-
requisito para a continuidade.
Dessa forma, o grotesco bakhtiniano não é um princípio que se
circunscreve no período que compreende o final da Idade Média e
o Renascimento. Tal recorte temporal selecionado por Bakhtin

855
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(1999) em sua obra “A Cultura Popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais” nos propicia
compreender, por meio do estudo da obra rabelaiseana, a forma
como o realismo grotesco perdura até os dias de hoje nas práticas
populares, em muitas manifestações chanceladas pelo riso e pelo
livre contato familiar. O exagero intencional, o hiper-realismo; a
relação com o corpo em contraste com o que se impõe como o “bom
gosto” ou o “bom tom” (sua decomposição, seus orifícios, seus
locais de entrada do outro e do mundo, a abertura de seus limites,
a mescla entre mundo humano e animal etc.); a emergência alegre
e renovadora do baixo corporal em toda a sua potencialidade; e,
principalmente, a sua capacidade de reacentuação e inversão do
sistema axiológico oficial fazem do Realismo Grotesco uma das
noções mais potentes da tese de Bakhtin acerca de Rabelais, além
de poderoso instrumento de corrosão das opressões e reivindicação
da liberdade.
Dessa forma, a análise da literatura popular e não canônica se
apresenta como ponto de encontro entre o universo da estética da
palavra com a vida pulsante da cultura popular. Em São Paulo do
Potengi (SPP), autores bebem na fonte da cultura popular (e de sua
linguagem própria) para tratar literariamente a palavra, tanto na
poesia quanto na prosa. Para este momento, trazemos de maneira
ilustrativa trechos de um autor que vive e produz em SPP: Moacir
Farias, entusiasta da cultura popular e dos sujeitos anônimos que
compõem o povo simples, matéria-prima de seu único romance
“As aventuras de um Peão do Trecho: uma saga que precisava ser
contada”, apenas disponível em formato de E-Book.
Sob o signo do riso e do alegre e livre contato familiar, o livro de
Moacir Farias conta a história de um homem que sai de São Paulo
do Potengi (RN) para o estado de São Paulo, a fim de trabalhar nas
chamadas “grandes construções” que ocorreram em várias partes
do Brasil na década de 1970 e promoveram o deslocamento de
muitos nordestinos em busca de trabalho, dinheiro e uma vida mais
próspera. Como personagem tipicamente popular, Fabrício, o

856
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

protagonista, usa a variante linguística de seu local de origem, tem


menos amarras sociais do que aqueles que não vivem em situação
de vulnerabilidade social e sua boca veicula impropérios, refere-se
explicitamente ao baixo corporal e às variadas necessidades
fisiológicas, que a Modernidade fez questão de esconder ou
silenciar. Assim, o Realismo Grotesco se evidencia em diversos
trechos do romance, especialmente quando são narradas as
aventuras amoroso-sexuais das personagens, conforme se pode ver
no fragmento abaixo, extraído do capítulo II – “A República do
Nordeste”:
Já no rumo da Dutra, [Eugênio] me falou que já havia trabalhado
em Natal e que tinha gostado muito da cidade etc... Continuando,
lembrou de uma certa farra que havia feito juntamente com um
colega e uma mulher, cuja coragem muito elogiou contando que ela
se prontificou a atuar de recheio para um sanduíche humano,
postando-se entre ele e o colega, nas areias da praia do meio numa
romântica noite de lua Natalense. – Automaticamente, eu fiquei na
frente e o Ronaldo atrás. Só foi ruim quando nossas bolas
automaticamente se chocaram umas nas outras umas nas outras.
(FARIAS, 2014, p. 12)
A lembrança saudosa de um momento íntimo, socialmente
condenado por não estar em conformidade com o apregoado pelos
“bons costumes” – sexo a três na praia; a integração de corpos ao
ponto de haver um contínuo entre os três elementos, antes,
separados e individualizados; o destaque dado ao baixo corporal
por meio da citação às “bolas”; a metaforização da integração dos
corpos em algo comestível, o que dialoga diretamente com o
discurso popular recorrente quando o tema é relação sexual, em
que um devora ou “come” o outro; o acento positivo sobre a
atividade sexual fora dos padrões e do paradigma moderno e/ou
romântico – embora se utilize a expressão “romântica noite”; e o
riso que embasa a queixa de Eugênio são elementos que nos
apontam a presença do grotesco na citada obra, apresentando-se
como uma fresta dentro do que se considera de “bom tom” para

857
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

aflorar a cosmovisão carnavalesca, que opera mediante a realidade


oficial impositiva como refúgio e despressurização. Outro trecho
representativo de traços do realismo grotesco é o que se encontra
no capítulo XVIII, intitulado “Natal no altiplano”:
A peãozada vinha para a beira do rio, observar as mulheres tirarem
as blusas para o banho e os olhares cheios de desejo, focavam mais
nas índias mais novas, com seus seios empinados e rijos, cuja beleza
atraía realmente a atenção, ainda mais de um bando de homens
novos em total abstinência sexual. Inclusive, alguns que tentaram de
aproximar, inventando de tomar banho no mesmo horário, foram
solenemente ignorados, quando não hostilizados pelos nativos
ciosos de suas fêmeas. Como não havia muito o que fazer,
geralmente grande parte daqueles se escondiam na mata ciliar do
rio, o mais próximo possível, para uma sessão de masturbação de
corpo presente, ou como diziam, partir para a covardia de cinco
contra um. Seria cômico se não fosse trágico, era que vez por outra
um peão se deparava com outro em plena liturgia do ofício, quando
também buscava o seu esconderijo. (FARIAS, 2014, p. 107).
Ainda lidando com o corpo em suas expansões, fluidos e instintos,
o trecho evidencia outro fator caro ao corpo grotesco: sua
associação com o mundo animal, tanto ao apresentar as mulheres
literalmente como fêmeas resguardadas por seus machos, quanto
ao escolher a palavra “bando”, comumente associada a animais,
para se referir a um agrupamento de seres humanos. A situação
cômica criada pelo “desespero” dos peões, claramente expressa
pelo fragmento “seria cômico se não fosse trágico”, em não
concretizar seus desejos e tendo de recorrer à citada “covardia”,
também evidencia o centro das atenções no baixo corporal, genitais
especificamente, e demonstra o poder que tais partes possuíam ao
causar alvoroço nas personagens, que tinham seus
comportamentos e intenções submissos à potência regeneradora.
Também a representação das mãos como substitutas da genitália
feminina evidencia o modo como as partes do corpo trabalham
para “atiçar” a força regeneradora do baixo corporal, a fim de
efetivar a mescla entre o interno e o externo via fluido liberado pela

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ação de masturbação. Ademais, a utilização da metáfora “plena


liturgia do ofício” faz com que sejamos direcionados a uma prática
de destronamento, ao passo que o vocábulo “liturgia”, que
habitualmente é utilizado em contextos religiosos, nessa situação,
encontra-se como uma forma de se referir à prática da masturbação.
Em outros termos, uma palavra que nos remete à esfera religiosa é
tirada de seu lugar de sacralidade, de seu ápice, para servir de
metáfora a uma prática socialmente subterrânea, promovendo,
dessa forma, uma inversão, um rebaixamento, um destronamento,
uma aproximação entre aquilo que é celeste e aquilo que é terreno,
o alto e o baixo, o divino e o profano. Uma mistura de opostos que,
por fim, regenera aquilo que é socialmente condenado e que
encontra aval pela capacidade que o riso tem de relativizar
situações duras e condenáveis.
Por último, é importante analisar como as formas da linguagem
popular, recheadas de imprecações, também afloram no texto,
como se pode ver neste excerto do capítulo XVII – “Peripécias no
voo”:
Fui à portaria e perguntei por uma turma de 14 peões que
aguardavam alguém lhes apanhar, e ele foi logo pedindo a um
ajudante que chamasse a “turma do vento” como eles se tinham
denominado. Após esperar um pouco, lá vem o séquito atrás do boy
do hotel. Alguns eu já conhecia. De cara conheci Goela Seca,
Cavalo Peidão, Chico Mororó, Cabeça de Galeto, Mané Totó,
Garrincha, Zé Ruela, Chico Bucho Verde, Zizinho, Quero Quero,
Venta de Quirrimboque, Boca de Traíra e apenas dois, não eram do
meu conhecimento, mas fiquei sabendo se tratar e um baiano
apelidado de Surrupeio e um paraibano, que chamavam de Deixe
que eu chuto, em função do mesmo manquitolar levemente
(FARIAS, 2014, p. 98).
A presença forte da linguagem popular em seus modos de nomear
os sujeitos a partir de critérios jocosos chama a atenção
sobremaneira no fragmento supracitado, bem como demonstra que
alguns dos nomes estão ligados a partes do corpo que são voltadas

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

para suas aberturas – como “Goela Seca” (boca) – ou para o baixo


corporal – como “Deixe que eu chuto” (traseiro) – ou para as
vísceras – como “Chico Bucho Verde” (estômago). Também há o
hibridismo entre homem e animal – como “Cabeça de Galeto” – e
imprecações – como “Zé Ruela”. Ainda há as mesclas, como em
“Cavalo Peidão” que une o hibridismo entre humanos e animais e
a menção às atividades fisiológicas “escondidas” pela concepção
moderna de corpo. Assim, fica claro o quanto a linguagem popular
é elemento basilar para as denominações de caráter grotesco, que
apenas são “aceitas” em função do livre contato familiar, o qual
aproxima os homens enquanto irmãos, colocando-os em patamares
de semelhança, mesmo que temporariamente, e permitindo que
imprecações não sejam interpretadas como ofensas, mas como
“camaradagem” e intimidade.
Por tudo o que foi brevemente explanado, a presença do grotesco
tem um papel importante na obra citada, em virtude de ser um dos
meios para que se concretize o projeto de dizer do enunciado:
trazer à tona uma visão à revelia do discurso dominante e que se
concentra na apreciação do olhar do peão, sujeito socialmente
invisibilizado, subalternizado, visto sob a ótica “das massas” e não
como sujeito produtor de inteligibilidade sobre a realidade
circundante, pelo menos, produtor não autorizado pelas instâncias
legitimadores da nossa sociedade, portanto, uma força dispersante,
que se encontra às margens da arena discursiva e que se utiliza do
grotesco, do riso e da cosmovisão carnavalesca para falar.

Considerações finais
Diante do que foi exposto, “As aventuras de um Peão do Trecho:
uma saga que precisava ser contada”, obra potengiense em foco,
alude ao grotesco em perspectiva bakhtiniana, conferindo
protagonismo a uma voz silenciada em determinados domínios
discursivos. Assim, ela se inscreve em outros horizontes dialógicos,
com ecos não só da praça pública e das ruas, mas também da

860
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

academia, da escola, exprimindo a linguagem viva e a vida em


linguagem, na sua potência sígnica e nas suas forças
socioideológicas.
Referências
BAKHTIN. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira.
São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
1999.
______. Teoria do romance I: A estilística. Tradução de Paulo Bezerra.
1ª ed. São Paulo: Editora 34, 2015.
______. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Tradução de
Paulo Bezerra. 1ª ed. São Paulo: Editora 34, 2017.
FARIAS, M. As aventuras de um Peão do Trecho: uma saga que precisava
ser contada. 1ª ed. São Paulo: Amazon, 2014. E-book. 135 p. ASIN:
B00Q6YM6T2. Disponível em . Acesso em 27 ago 2021).

861
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Língua, sociedade e identidade de gênero

Verônica Franciele Seidel


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
veronicaseidel@gmail.com

A discussão acerca da língua como um sistema autônomo, cujos


valores dependem apenas de uma relação de antinomia, interna ao
próprio sistema, conforme previa Saussure, ou como amplamente
atrelada ao seu contexto de uso, não sendo possível depreender o
significado materializado linguisticamente sem compreender os
fatores denominados de extraverbais, como entendia o Círculo de
Bakhtin, não é recente nos estudos linguísticos. Apesar disso, tal
discussão, ainda que de forma implícita, parece ter sido trazida à
tona com mais força recentemente em virtude da querela que
envolve a linguagem neutra.
Essa inovação linguística tem sido alvo de amplo debate na
sociedade, constituindo foco de atenção não só de artigos
científicos, como também de discussões por parte da população em
geral e, inclusive, do Poder Legislativo, a exemplo do Projeto de Lei
n.º 5.385, de 04 de dezembro de 2020, que veda o uso da linguagem
neutra na grade curricular e no material didático de instituições de
ensino públicas ou privadas na educação básica e superior.
Diante disso, tendo em vista a relevância do tema na atualidade, o
objetivo deste texto consiste em refletir sobre o uso dessa forma de
linguagem a partir da perspectiva bakhtiniana. Para isso,

862
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mobilizamos, algumas proposições elaboradas pelo Círculo de


Bakhtin acerca de seu entendimento sobre o que é a língua, com
foco no conceito de signo ideológico, a fim de embasar a discussão
proposta. Além disso, trazemos para análise alguns excertos do
Projeto de Lei n.º 5.385, buscando compreender as motivações e
implicações dessa forma de expressão.
No contexto brasileiro, a discussão acerca da marcação de gênero
em estruturas linguísticas começou a ganhar destaque, de forma
geral, quando, em 2011, ao assumir a Presidência da República,
Dilma Rousseff autoproclamou-se presidenta do Brasil.
Recentemente, o tema da linguagem neutra voltou a ganhar
destaque quando da divulgação de uma nota da direção
pedagógica do Liceu Franco-Brasileiro, um colégio situado na zona
sul do Rio de Janeiro, informando que a instituição passaria a
apoiar o uso da linguagem inclusiva. Na nota, publicada no dia 10
de novembro de 2020 nas redes sociais da instituição, a direção
pedagógica afirmou que, em virtude de seu compromisso com o
respeito à diversidade, estava tornando público “[...] o suporte
institucional à adoção de estratégias gramaticais de neutralização
de gênero”.
A partir de então, tal nota motivou a constituição de quatro projetos
de lei em 2020, que foram propostos por deputados filiados a
partidos com orientação de direita e que apresentam, portanto,
posicionamentos de cunho mais conservador, buscando uma
estabilização do status quo. Esses dados são importantes, pois,
conforme a perspectiva bakhtiniana, sempre enunciamos a partir
de determinada posição, que é situada sócio-historicamente,
entendendo e valorando o mundo desde essa ótica.
Desse modo, na abordagem do Círculo de Bakhtin, a língua está
ligada, intrinsecamente, às determinações históricas e à ação do ser
humano no mundo. Uma vez que a língua perpassa diferentes
classes sociais, por meio dela, o indivíduo posiciona-se ao enunciar.
Esse posicionamento, no entanto, só se constitui no interior de

863
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

determinado grupo social, indicando que a língua é social, o que


implica que esta existe em virtude do ser humano e de sua ação no
mundo. Assim, a língua seria social por natureza, o que permite
afirmar que a ideologia é indissociável da língua e que esta é
condição para produção, conservação e transformação de valores e
condutas.
A língua está, dessa forma, em constante processo de atualização,
não sendo apenas um sistema abstrato de signos ou um produto
estático, mas um sistema de signos com valor ideológico, conforme
explicita Volóchinov (2018). Tendo isso em vista, importa ressaltar,
ainda, que um enunciado sempre dialoga com outros enunciados,
de modo que atua, antes de tudo, como uma resposta a esses outros
enunciados.
O projeto selecionado para análise – Projeto de Lei n.º 5.385 –, em
seu artigo 3.º, prevê que “Fica expressamente proibida a
denominada ‘linguagem neutra’ na grade curricular e no material
didático de instituições de ensino públicas ou privadas”
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2020). Trata-se, assim, de uma
medida que visa proibir o uso dessa forma de linguagem no
referido contexto com base no argumento de que tal uso é contrário
à norma culta e, portanto, deve ser abolido. A esse respeito, importa
observar que a medida em questão evidencia um não
reconhecimento da linguagem neutra, isto é, não se reconhece nem
se aceita a possibilidade de que seja empregada para referir o
público atendido no ambiente escolar.
A partir desse excerto, podemos perceber que há um movimento
de contenção de sentidos em jogo: o Projeto de Lei visa garantir o
uso de uma única forma (com marcação de gênero) em detrimento
das outras. Instauram-se, assim, forças denominadas por Bakhtin
(2010) de centrípetas – que atuam no intuito de unificar, normatizar
e homogeneizar a língua e, consequentemente, a sociedade.
Bakhtin (2010) salienta, ainda, que a língua carrega consigo, para

864
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

além de formas linguísticas, valores e pontos de vista sobre o


mundo.
Por isso, as forças de centralização e descentralização linguística
são processos verbo-ideológicos (BAKHTIN, 2010, p. 81). Essa
relação entre língua e vida indicada por Bakhtin (2010) permite
inferir, no discurso analisado, uma perspectiva de mundo
determinada: que percebe o gênero como algo fixo e estável (assim
como a existência de apenas duas possibilidades de gênero –
feminino e masculino – definidas no nascimento pelo sexo
biológico) e, portanto, adequadamente expresso pelos marcadores
de gênero linguísticos tradicionalmente empregados.
Essa relação entre língua e sociedade pode ser evidenciada também
por intermédio da definição de linguagem neutra que o documento
legal ora analisado apresenta:
Parágrafo Único – Para efeito desta Lei entende-se por “linguagem
neutra”, toda e qualquer forma de modificação do uso da norma
culta da Língua Portuguesa e seu conjunto de padrões lingüísticos,
sejam escritos ou falados com a intenção de anular as diferenças de
pronomes de tratamento masculinos e femininos baseando-se em
infinitas possibilidades de gêneros não existentes, mesmo que
venha a receber outra denominação por quem a aplica (CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 2020, grifo nosso).
Ao observar esse excerto, percebemos um primeiro argumento,
ainda que implícito, para recusar a linguagem neutra: tal forma de
expressão carece de fundamento por ser baseada em gêneros não
existentes no mundo. Ou seja, se inexistem outros gêneros além de
masculino e feminino, não há razão para o emprego de formas que
apontem para outras possibilidades de gênero, simplesmente
porque essas possibilidades não existem. Assim, notamos que
controlar a língua e, consequentemente, o sentido constitui também
uma forma de exercer o poder, determinando o que é válido/aceito
ou não, nesse caso em termos de identidade de gênero. Busca-se,
então, estabilizar o sentido, negando não apenas a possibilidade de

865
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

usar dada forma linguística, mas a possibilidade de ser o que essa


forma designa, uma vez que enunciar consiste, também, em uma
maneira de reconhecer a existência daquilo de que se fala.
A esse respeito, cabe mencionar, conforme Volóchinov (2018), que
o signo ideológico sofrerá alteração à medida que algum fator de
cunho social, econômico ou cultural da comunidade semiótica que
o utiliza for alterado, já que o signo sempre remete a algo fora de si
mesmo, que lhe é exterior: o signo ideológico é sempre motivado
por algo externo, que diz respeito à própria constituição social da
língua. A partir disso, entendemos que a língua não é um objeto
imóvel, a ser preservado, como indica o Projeto de Lei, mas um
sistema em constante alteração e atualização, já que as mudanças
na sociedade implicam mudanças na língua. Assim, “[...] se na vida
hodierna o gênero não é uma prática tão dicotômica e binária
quanto discursos essencialistas e a escrita normatizada em
gramáticas apregoam” (BORBA; LOPES, 2018, p. 266), tal alteração
na sociedade levará a uma alteração na língua, que pode ser
percebida, por exemplo, por meio da reestruturação linguística que
prevê a linguagem neutra.
Nesse sentido, entendemos que a linguagem neutra carrega
consigo a potencialidade de promover uma ruptura no binarismo
de gênero que estrutura a sociedade brasileira, de forma que, ao
mesmo tempo que expressa uma identidade de gênero fluida, abre
espaço para que essa identidade exista no mundo. Assim, essa
forma de linguagem instaura uma fissura nas “[...] limitações
impostas por categorias sexuais estanques e hegemônicas, i.e.
homem e mulher, que castram as potencialidades identitárias de
alguns indivíduos que essas categorias não contemplam” (BORBA,
2015, p. 95), definindo quem escapa dessa dicotomia como
desviante.
Tal aspecto auxilia a compreender as implicações que o uso da
linguagem neutra representa para os grupos que não se sentem
contemplados pelas formas linguísticas tradicionalmente

866
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

empregadas para designar gênero. Como somos constituídos pela


língua, ao falar utilizamos as estruturas linguísticas que temos
disponíveis, as quais podem repetir e reiterar as normas da
classificação binária de gênero, impelindo-nos a uma identidade de
sujeitos com a qual não necessariamente nos identificamos.
Evidencia-se, assim, a relevância da linguagem não binária para os
grupos que dela se utilizam, o que não elimina a necessidade do
reconhecimento de tal forma pelo restante da sociedade, uma que
vez, conforme explicita Bakhtin (2010), a constituição da identidade
requer um reconhecimento de si pelo outro. Ou seja, o
reconhecimento de uma identidade de gênero que não é inata, fixa
e dicotômica e que não, necessariamente, corresponde ao sexo
biológico passa também pelo reconhecimento das formas
linguísticas não pautadas na binariedade.
Nesse sentido, a linguagem inclusiva busca o reconhecimento de
que existem distintas possibilidades de construção de identidade
de gênero. Entretanto, tal perspectiva implicaria, igualmente,
compreender que o gênero não constitui uma verdade válida para
todos, determinada a priori, o que vai de encontro a outro excerto
do Projeto de Lei n.º 5.385, quando afirma que “[...] o que está em
curso no Brasil e consequentemente no Ocidente é uma tentativa de
destruir [...] o veículo pelo qual expressamos e transmitirmos
valores universais”. Percebemos aqui dois aspectos principais: 1) a
ideia de que existem valores universais; e 2) a ideia de que a língua
deve expressar e transmitir esses valores. A esse respeito, cabe
lembrar que, na abordagem bakhtiniana, valores como bom/mau,
verdade/mentira e certo/errado são construções discursivas, já que
essas categorias não existem no mundo de forma apriorística. Da
mesma maneira, a categorização do gênero em masculino e
feminino constitui uma construção realizada, também, por
intermédio da língua e baseada predominantemente na história da
nossa sociedade, assentada em uma ótica heteronormativa, que

867
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

visa à marginalização daqueles que não se identificam com os


estereótipos propagados por tal ótica.
Tendo em vista os inúmeros movimentos sociais voltados para
repensar a construção da categoria de gênero como algo binário,
que não mais entendem o masculino genérico como um simples
fenômeno linguístico, mas como um produto de convenções sociais
e políticas de sociedades patriarcais (BORBA; LOPES, 2018), alguns
termos parecem não atender mais à realidade da comunidade
linguística que os utiliza. Nesse cenário, são propostas e
empregadas novas formas linguísticas, que derivam do objetivo de
libertar os falantes da normatividade imposta pelo gênero na
língua e, consequentemente, na sociedade.
Com base nas reflexões aqui realizadas, acreditamos ser possível
afirmar que os pressupostos elaborados pelo Círculo de Bakhtin
podem fundamentar a análise e a compreensão do uso da
linguagem neutra no Brasil e que a querela em torno da linguagem
inclusiva evidencia que a língua constitui uma arena de embate
entre diferentes interesses e pontos de vista, estando em jogo: uma
tentativa de conter os sentidos dos signos que remetem, de alguma
maneira, à marcação de gênero; e uma reacentuação desses signos
marcada por uma alteração na forma.

Referências
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética (A teoria do
romance). 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
BORBA, R. Linguística queer: uma perspectiva pós-identitária para
os estudos da linguagem. Revista Entrelinhas, São Leopoldo, v. 9, n.
1, p. 91-107, jan./jun. 2015.
BORBA, R.; LOPES, A. C. Escrituras de gênero e políticas de
différance: imundície verbal e letramentos de intervenção no
cotidiano escolar. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 21, n. esp., p. 41-
285, 2018.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n.º 5.248, de 04 de


dezembro de 2020. Estabelece medidas de proteção ao direito dos
estudantes brasileiros ao aprendizado da língua portuguesa de
acordo com a norma culta e orientações legais de ensino, na forma
que menciona. 2020. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra
?codteor=1946646&filename=Tramitacao-PL+5385/2020. Acesso
em: 05 dez. 2020.
LICEU FRANCO-BRASILEIRO. Nota de esclarecimento –
neutralização de gênero gramatical. Rio de Janeiro, 12 nov. 2020.
Disponível em:
https://liceufranco.com.br/noticias/2020/11/12/nota-de-
esclarecimento-neutralizacao-de-genero-gramatical/. Acesso em:
06 dez. 2020.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 2.
ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

869
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

LINGUAGEM E VOZES SOCIAIS: MODOS DIALÓGICOS DE


ENUNCIAR UM DIZER

Liédja Lira da Silva Cunha


Instituto de Educação Superior Presidente Kennedy
liedjaprofessora@ifesp.edu.br

Neste estudo, explicitaremos o referencial teórico que embasa a


presente pesquisa. Adotamos como principais suportes teóricos as
ideias bakhtinianas acerca dos conceitos de linguagem e vozes
sociais, estas entendidas aqui como a heteroglossia dialogizada em
que a realidade da linguagem é caracterizada; aquela vista como
processo de interação humana por meio do qual o sujeito se
constitui e produz conhecimento, levando em consideração uma
situação comunicativa e um determinado contexto sócio-histórico
e ideológico e com os quais o sujeito se posiciona no mundo.
Linguagem como espaço de interação
Ao referir-se ao ensino da língua, mais especificamente no que diz
respeito ao trabalho com textos, Geraldi (2006, p. 41) afirma que,
seja no âmbito da leitura, no processo de compreensão ou de
interpretação, seja no processo de produção textual, podemos
antever, a grosso modo, três grandes afirmações que apontam
para concepções de linguagem:

• A linguagem é a expressão do pensamento: esta concepção


ilumina, basicamente, os estudos tradicionais. Se
concebemos a linguagem como tal, somos levados a

870
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

afirmações – correntes – de que as pessoas que não


conseguem se expressar não pensam;
• A linguagem é instrumento de comunicação: esta
concepção está ligada à teoria da comunicação e vê a língua
como código (conjunto de signos que se combinam segundo
regras) capaz de transmitir ao receptador certa mensagem.
Em livros didáticos, esta é a concepção confessada nas
instruções ao professor, nas introduções, nos títulos,
embora em geral seja abandonada nos exercícios
gramaticais;
• A linguagem é uma forma de inter-ação: mais do que
possibilitar uma transmissão de informações de um emissor
a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de
interação humana: através dela o sujeito que fala pratica
ações que não conseguiria praticar a não ser falando; com
ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo
compromissos e vínculos que não pré-existiam antes da
fala.
É nesta última abordagem que nossa pesquisa se ancora.
Corroboramos com Voloshinov (2004) quando este afirma que a
“palavra está sempre carregada de conteúdo ou de um sentido
ideológico ou vivencial” (2004, p. 95) e, que é na interação pela
linguagem que o sujeito tanto é constituído como constitui sua
enunciação, na medida em que “[...] a enunciação só se realiza no
curso da comunicação verbal, pois o todo é determinado pelos seus
limites, que se configuram pelos pontos de contato de uma
determinada enunciação com o meio extraverbal e verbal (isto é, as
outras enunciações)” (VOLOSHINOV, 2004, p. 125).
As vozes sociais e a autoria
Os enunciados proferidos são discursos que surgem nas relações
sociais, portanto, não podemos deixar de mencionar aqui a
importância das vozes sociais na construção da autoria.

871
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Corroboramos com Bakhtin (2003) quando este afirma que o


discurso individual se forma e se desenvolve a partir de uma
interação assídua com os enunciados individuais de outrem, por
meio de assimilação. Essa assimilação é resultado da expressão, do
tom valorativo que as palavras carregam. E é com esse tom
valorativo que os sujeitos do discurso reelaboram e reacentuam
seus dizeres.
É a concepção dialógica de linguagem que Bakhtin tanto enfatiza.
“O enunciado é pleno de totalidades dialógicas” (BAKHTIN, 2003,
p. 298).
O discurso do outro, as vozes alheias, sua apropriação e
reconfiguração
Nossas palavras não são ‘nossas’ apenas; elas nascem, vivem e
morrem na fronteira do nosso mundo e do mundo alheio; elas são
respostas explícitas ou implícitas às palavras do outro, elas só se
iluminam no poderoso pano de fundo das mil vozes que nos
rodeiam (TEZZA, 1988, p. 55).
Um dos elementos-chave na teoria de Voloshinov diz respeito à
palavra do outro. Para Voloshinov (2004), o diálogo, elemento
constitutivo da enunciação, é a comunicação verbal entre os
sujeitos, portanto, constitui uma parte da comunicação verbal de
um grupo social, sendo assim, o sujeito, ao expressar seu
enunciado, deixa marcas nítidas das características de sua
sociedade, de sua família, de seu ponto de vista, de seus valores;
evidencia também suas experiências de mundo.
Isso acontece mediante a interação social existente entre os sujeitos,
a partir da assimilação de vozes sociais, assimilação por meio das
relações de força que atravessam um discurso. São essas relações
dialógicas que estabelecem a interação social, com a qual os sujeitos
se abarcam de dizeres alheios para constituírem seus discursos, se
abarcam de vozes sociais presentes nas relações dialógicas.

872
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Encontramos em Voloshinov (2004) a concepção de que as vozes


sociais são responsáveis pela construção de nossos enunciados,
tendo em vista que segundo esse autor, “a situação social mais
imediata e o meio social mais amplo determinam completamente
e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da
enunciação” (VOLOSHINOV, 2004, p. 113).
Logo, sempre que enunciamos algo fazemos isso mediante uma
relação dialógica a partir da assimilação de dizeres alheios que
podem aparecer de diferentes formatos. Quais sejam: por meio do
discurso a partir do estilo linear ou por meio do estilo pictórico.
Ambos os discursos são, segundo Voloshinov (2004), duas
orientações nas quais se movem o dinamismo da interorientação
entre o discurso narrativo e o discurso citado. Ou seja, são formas
de transmissão e apropriação do discurso alheio, porém, com
características diferentes. O primeiro diz respeito a uma
apropriação nítida em volta do discurso do enunciador, de modo
que ambos os discursos assumam seu caráter particular, mas se
estabeleçam a partir de um dinamismo interiorizado; o segundo se
caracteriza por uma atenuação do discurso exterior. Nesse estilo, o
produtor do enunciado se abarca linguisticamente da voz do outro
de maneira que há um apagamento das fronteiras de cada discurso
com o intuito de assumir o discurso do outro a partir de um toque
especial do produtor, de seu estilo próprio, de suas entoações.
Vejamos como entendemos tais fenômenos. O estilo linear
corresponde à incorporação de vozes alheias por meio de uma
citação aberta, é totalmente separada do discurso citante. Já o estilo
pictórico perpassa por uma forma bem diferente de citar a voz
alheia, o discurso apresenta uma bivocalidade, pois os discursos
citado e citante entram num jogo dialógico interno, a separação não
é evidenciada nitidamente.
Para Voloshinov (2004), por meio da incorporação de vozes alheias
o sujeito constrói seu discurso, tendo em vista que a linguagem é

873
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

entendida a partir de relações dialógicas. Ao tratar das formas de


incorporação de vozes alheias no discurso do sujeito enunciador,
Voloshinov (2004, p. 144) afirma que “o discurso de outrem
constitui mais do que o tema do discurso; ele pode entrar no
discurso e na sua construção sintática, por assim dizer, ‘em pessoa’,
como uma unidade integral da construção”. Assim, encontramos
em Voloshinov, em seu escrito O discurso de outrem uma visão
enunciativa e discursiva das formas de citação, ou seja, para ele, as
vozes alheias são fundamentais na construção dos enunciados,
tendo em vista que “quando passa a unidade estrutural do discurso
narrativo, no qual se integra por si, a enunciação citada passa a
constituir ao mesmo tempo um tema do discurso narrativo”
(Voloshinov, 2004, p. 144).
É trabalhando com a noção de estilo que Voloshinov nos evidencia
a forma utilizada pelos sujeitos enunciadores para estabelecer as
relações dialógicas existentes na elaboração dos enunciados.
Quando ele pontua os estilos linear e pictórico para teorizar acerca
da transmissão de vozes alheias presentes em nossos dizeres, ele
nos fornece pistas de como essa transmissão e apropriação de vozes
alheias caracterizam o que ele atribui como estratégia de apreensão
ativa do discurso.
Segundo Bakhtin (1988), as vozes alheias não são incorporadas em
nosso discurso apenas como transmissão de informações, mas
como ideologias que vamos assumindo a partir dessa incorporação.
Essa incorporação pode se dá ou pela palavra autoritária ou pela
palavra persuasiva. A primeira diz respeito à palavra que se impõe,
à palavra que direta ou indiretamente exige um reconhecimento, é
o caso da palavra proferida nas esferas religiosa, política,
educacional, entre outras. Essa palavra constitui a base ideológica
do comportamento do homem, bem como a relação deste com o
mundo; a segunda se caracteriza pela assimilação a partir do
entrelace entre o discurso do sujeito que está proferindo seu dizer
e o discurso alheio. Ela se constitui a partir da compreensão do
sujeito que assimila a voz alheia, que imprime sua apreciação,

874
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estabelecendo seu lugar de interpretante por meio da


responsabilidade e de uma certa distância.
Em contraposição às concepções de língua enquanto estrutura,
Voloshinov (2004) nos apresenta uma discussão coerente acerca do
que sejam as vozes sociais presentes nos discursos proferidos, pois
ele nos evidencia uma noção de linguagem em que o dialogismo é
fundamental, noção esta que a gramática não nos apresenta, uma
vez que quando nos fornece informações acerca das vozes alheias,
nos fornece apenas no campo da forma, da estrutura, não enfatiza
a questão do sentido que está presente na incorporação dessas
vozes. Vemos isso na maneira como a gramática discute essa
questão quando cita as vozes alheias apenas apresentando estas
como discurso direto, indireto, indireto livre, sem atentar para a
importância desses discursos como sendo parte integrante da
construção de novos dizeres.
A gramática se preocupa apenas em relatar o como, a forma como as
vozes alheias se estrutura no discurso, priorizando a discussão nas
diferenças existentes entre as formas de disposição dessas vozes.
Enquanto Voloshinov (2004) nos apresenta essa disposição a partir
de o como, mas nos atentando para o diálogo existente entre o
discurso novo e as vozes alheias. Por isso ele deixa bem claro que
“É preciso levar em conta todas essas características da situação de
transmissão. Mas isso não altera em nada a essência do problema.
As condições de transmissão e suas finalidades apenas contribuem
para a realização daquilo que já está inscrito nas tendências da
apreensão ativa, no quadro do discurso interior; ora, estas últimas só
podem desenvolver-se, por sua vez, dentro dos limites das formas
existentes numa língua para transmitir o discurso”
(VOLOSHINOV/ BAKHTIN, 2004, p. 146-147).
Outra informação bem pertinente acerca da incorporação de
discurso de outrem apresentada por este teórico é a questão da
importância de uma terceira pessoa nesse jogo dialógico. Segundo
Voloshinov (2004, p. 146), “ela (a terceira pessoa) reforça a

875
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

influência das forças sociais organizadas sobre o modo de


apreensão do discurso”. Ou seja, a terceira pessoa influencia, de
algum modo, na forma como o enunciador vai incorporar os outros
dizeres.
Entendemos, ao tratarmos das produções escritas, que elas são
frutos de um constante diálogo entre variados discursos nos quais
os sujeitos vivenciaram em sua trajetória de vida. Concordamos
com Voloshinov (2004, p. 123) quando este defende a proposição
que diz que “o discurso escrito é de certa maneira parte integrante
de uma discussão ideológica em grande escala”. Ou seja, adotamos
a concepção de que por meio do discurso produzido pelos sujeitos
somos levados a identificar que tais discursos só se realizaram
mediante uma interação com outros dizeres.
Quando produzimos enunciados estamos evidenciando um
conjunto de enunciados proferidos anteriormente e que nos
permitiram dialogar com eles com o objetivo de adquirirmos
embasamento suficiente para emitirmos nossos posicionamentos.
“Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja,
constitui apenas uma fração de uma ocorrente de comunicação
verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao
conhecimento, à política etc.).” (VOLOSHINOV, 2004, p. 123).
Segundo Voloshinov (2004), ao tratar do enunciado, tudo que
produzimos enquanto discurso faz parte de uma cadeia de
enunciados, portanto, os textos produzidos em ambiente escolar
estão repletos de enunciados de outrem, com os quais os alunos se
abarcaram para pronunciarem seus discursos. E esses discursos
estão representados a partir de construções escolhidas pelos
sujeitos mediante um estilo próprio, caracterizando a
individualidade do enunciado, mas que evidenciam um caráter
dialógico da linguagem.
No constante relacionamento interativo entre os enunciadores, no
processo de dialogia, o falante endereça-se para um ouvinte, que
está presente em seu dizer e de algum modo constitui esse dizer,

876
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pois no momento em que se diz algo, o sujeito está respondendo a


algo já dito e preparando o terreno que será habitado por outro, um
respondente futuro.
“A língua não é reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, ela
resulta das relações sociais que se realizam entre falantes.”
(VOLOSHINOV, 2004, p. 147). Ou seja, a partir da língua o sujeito
se faz ser ativo na sociedade, ativo porque por meio da linguagem
ele age no mundo, com ela o sujeito reage às emoções, responde ao
que foi dito pelo outro, questiona o dizer do outro, interfere nas
falas do outro, troca experiências com o outro, “apreende a
enunciação do outro” (VOLOSHINOV, 2004, p.147), aprecia, ou
seja, toma uma atitude valorativa, assume uma responsividade
diante do outro, relaciona-se, posicionando-se diante das posições
dos outros.
A língua é um fenômeno social através do qual o sujeito se situa
como ser pensante, ideológico, histórico e social e é mediadora da
consciência. Com ela o sujeito estabelece uma relação dialógica,
uma vez que a palavra orienta-se para alguém. Diante disso,
entendemos a linguagem como Bakhtin, quando este afirma que
A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo
discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo.
Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o
discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de
participar, com ele, de uma interação viva e tensa (BAKHTIN,
1990, p. 88).
Ao operar a língua como um sistema de enunciação, o sujeito passa
a se posicionar, a evidenciar valores sociais, a interpretar relações
de poder, ativando a língua e enxergando-a como algo vivo, algo
concreto, com o qual o sujeito manifesta seu dizer de modo a se
fazer presente na sociedade em que atua, estabelecendo um vínculo
histórico.

877
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Considerações
Se compreendermos a língua como um fenômeno cultural,
histórico e social, conceber o texto do aluno apenas como um objeto
estruturado fonológico, sintático e lexicalmente é negar a função
social da língua; é negar a discursividade do dizer de um sujeito; é,
simplesmente, apagar as marcas de autoria representadas pelos
posicionamentos, pela reestruturação das vozes alheias presentes
nos enunciados dos produtores de textos.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Introdução e
tradução do russo Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003. (Coleção Biblioteca Universal).
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética.
In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo
Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 3-192. (Original
russo, 1920-1930).
CUNHA, Liédja Lira da Silva. Autoria e escrita: uma reflexão
acerca do autorar em memórias de leituras de alunos de 9º ano do
ensino fundamental. 2011. Dissertação (Mestrado em Estudos da
Linguagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Centro de Ciência Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-
Graduação em Estudos da Linguagem, Natal, 2011.
VOLOSHINOV. V./BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da
Linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

878
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Linguagens e(m) práticas discursivas: leituras plurais em


tempos de pandemia

Vera Lúcia Pires


UFSM
pires.veralu@gmail.com

Organizar um livro em tempos de pandemia, enquanto nos


dividimos entre aulas virtuais, home office e reuniões online, quase
que simultaneamente com as tarefas diárias, que se misturam em
meio à nova rotina, foi um desafio. Mas, como todo desafio, tem
sua relevância e recompensa. Neste momento, a importância de
organizar um livro é manter o diálogo e as trocas de pesquisa, ainda
que os encontros face a face nos grupos de estudo e nos eventos
acadêmicos estejam interrompidos há mais de ano. Aliás, não
fossem a comunicação dialógica e as mídias digitais, a humanidade
não saberia enfrentar tempos de isolamento social e mudanças
bruscas nas atividades de docência e profissões em geral.
Este livro materializa a tentativa de preservar nossas trocas
acadêmicas e a produção de conhecimento na área de humanidades
em um contexto desafiador, cientes de que a produção científica
contribui permanentemente para a evolução da sociedade e,
portanto, deve ser mantida.
Entrementes, o que é ser professor nesta sociedade em que vivemos
e, principalmente, neste momento tão conturbado? O que é ser
professor, neste País, em tempos de pandemia, imersos em um

879
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

contexto de morte de pessoas, de animais, da natureza? E sob um


governo antiético e fascista?” (PIRES; KNOLL, 2020)
“No decorrer dos primeiros meses do ano de 2020, a educação
brasileira viu-se diante de um novo desafio. A restrição do convívio
social, devido à necessidade de isolamento para evitar a
propagação do vírus da Covid-19, levou ao fechamento das
instituições de ensino em todo país. Diante da inevitabilidade da
suspensão das aulas presenciais, as escolas buscaram diferentes
alternativas para dar continuidade ao processo de ensino-
aprendizagem.
O momento inusitado provocou muitas discussões em torno do
tema, considerando que o ensino remoto se diferencia do ensino
EaD em questões bem pontuais, tais como formação dos
profissionais da educação, apropriação do uso de tecnologias pelos
alunos, além de outros fatores, que envolvem o perfil do aluno e do
docente.
De acordo com Araujo (2020), o que está acontecendo hoje, no país,
não é EaD, mas um ensino remoto que substitui temporariamente
a educação presencial. No entanto, esse tipo de educação cumpre
um importante papel no momento, à medida que que colabora para
manutenção do vínculo entre estudantes e professores e mantém a
continuidade da socialização.
Em meio a todo esse contexto, os professores seguem, por meios
distintos dos usuais, desenvolvendo atividades que possibilitem a
continuidade do ensino-aprendizagem e que propiciem a
sociabilização entre os alunos. Diante da necessidade de priorizar
o uso de metodologias ativas de aprendizagem, as quais prezem
pelo protagonismo do aluno e motivem seu envolvimento no
processo, cada vez mais, o professor passa a ser um mediador do
conhecimento.” (BENCHIMOL; CHAGAS, 2020)
Conforme nos lecionou Paulo Freire, no cerne de uma abordagem
progressista da educação, esta visa à transformação social. Como
consequência, é na prática do ato de ensinar que se conseguem

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

construir, professores e alunos, novos conhecimentos necessários


para fazer mudanças na realidade concreta, as quais podem levar
às transformações sociais imprescindíveis. Assim, o educador
afirmara: “quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a
ação criadora e modificadora da realidade” (FREIRE, 1989, p. 67).
Defendemos, com Freire, uma prática de ensino reflexiva, que
incentive e instigue nossas alunas e alunos a terem autonomia e a
tomarem iniciativas, a fim de que possam atuar para transformar.
Isso implica em superar a simples transmissão de conhecimentos e
desenvolver nos estudantes uma compreensão crítica e
emancipadora de seu contexto social. A leitura do mundo envolve
o rompimento com a mera reprodução da realidade, envolve a
construção crítica e consciente de conhecimentos compartilhados
solidaria e igualitariamente.
Ao planejarmos a produção deste livro, cogitamos apresentar, entre
os textos, um relato de experiências vividas no ambiente da sala de
aula, sem caráter essencialmente acadêmico. Sendo assim, optamos
por apresentar um texto em formato de relato. O gênero relato
pessoal ou de experiência tem características “relativamente
estáveis” como todos os outros gêneros discursivos na acepção de
Bakhtin (2010). Segundo o filósofo da linguagem, a comunicação só
é possível por meio de gêneros discursivos, que são tão
diversificados na sociedade quanto as possibilidades de
comunicação humana. Sabe-se que os gêneros discursivos são
constituídos historicamente, ou seja, que obedecem a certa
regularidade histórica, ao mesmo tempo em que mantêm relação
direta com a esfera social de uso. Dessa forma, o estabelecimento
de gêneros é a consequência de novas necessidades de interação
sociocultural entre os sujeitos, que constantemente modificam a
cultura e são transformados por ela. Essas possibilidades de
comunicação estão, por sua vez, vinculadas às esferas de atuação
dos sujeitos, fazendo com que haja estreita vinculação entre os
gêneros discursivos e a interação social. Como os gêneros não se

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estabelecem sem a interação, neste movimento, pode-se mostrar o


próprio funcionamento da sociedade.” (PIRES; KNOLL, 2020)
“Educar, implica sempre em uma prática coletiva e um pensar
sobre ela. Educamos e aprendemos ao mesmo tempo. Esses dois
conceitos não são coisas separadas. Pensar sobre o que se faz nos
permite entender porque algo funcionou ou não. Educar é coisa de
profissional, embora, muitos ainda chamem de vocação. Ao
educar, se faz necessário ter um olhar especial sobre os erros ou
equívocos que cometemos. São eles que nos permitem avançar
pedagogicamente.
Quando recebi o convite para escrever um depoimento sobre as
práticas pedagógicas durante a pandemia, pensei que era
prematuro. Viver a pandemia e estar dentro da experiência, pode
comprometer o olhar. Mesmo assim aceitei o desafio. E, assumo o
olhar prematuro e comprometido, tendo em vista, que ainda
estamos dentro do processo e mesmo assim precisamos pensar
sobre isso. Talvez, no futuro próximo, venha a repensar o que vivi.
O relato, certamente, será o mesmo e talvez mudem as impressões.
O que não será um problema. Apenas indica que o distanciamento
pode provocar o amadurecimento.
Escrevi com o objetivo de compartilhar com os demais colegas do
país essa experiência que vivemos. Sou do grupo dos professores
que foram preparados para aulas presenciais, com quadro, giz e
algum material de apoio. Tivemos que aprender algo novo, em um
curto espaço de tempo. Estamos em um país pobre, desigual e com
descaso sobre a educação. Professores fazem milagres com o que
tem. E o que tem, geralmente, está centralizado na mente do
professor e não nos instrumentos. Somos pobres em recursos
didáticos formais embora, os professores inventem a todo
momento formas de ensinar.
Com a pandemia e sem tempo de planejar, tivemos que aprender
rapidamente. E esse aprendizado é o que desejo compartilhar.
Porque vivemos coisas semelhantes como a surpresa, a negação da

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nova forma de ensinar ou o deslumbramento com os diversos


recursos à disposição de alguns.
A melhor coisa para adaptação ainda é o tempo. Com o tempo
passando, a mente tem a possibilidade de aceitar novas situações.
A resistência vai se diluindo nas novas experiências. Porque a
resistência implica em querer voltar a uma realidade que não existe
mais. Na medida que o susto passa, começamos a construir novos
processos. E foi exatamente isso que aconteceu.
Quando a escola se muda para a cozinha dos alunos, significa que
participamos da rotina familiar deles e que as dificuldades agora
vão estar dentro da casa dos professores. Ver os familiares, avós
que levam café, bolo no quarto deles ou vê-los lavando a louça
enquanto dou aula, conversar com as mães e pais, receber os irmãos
menores no vídeo, ter a presença de cachorros e gatos e até vacas
passou a ser rotina. A sala de aula ampliou-se. E ai que se revela a
riqueza do momento que vivemos.
A pandemia misturou a vida privada com a vida profissional de
muita gente. Trabalhar em casa exigiu muita disciplina. Porque a
mesma realidade que os alunos vivem com interferências
familiares, barulhos, caminhão do gás, reforma da casa do vizinho,
filho perguntando o que tem para comer, telefone que toca,
cachorro que late, internet que trava e demais coisas, todas elas
aparecem tanto lá quanto aqui. De alguma forma humaniza a
relação. Estudamos porque queremos que essa casa familiar viva
melhor. O sentido da educação passa pela ideia da civilidade que a
vida coletiva exige. E no momento, essa civilidade está dentro da
casa da gente. Melhor momento para isso nunca tivemos. Das teses
passamos à cozinha.
Com a aula na cozinha passei a fazer parte de novas famílias. Toda
semana cumprimento bebezinhos, irmãos e irmãs pequenas e
grandes. Ex-alunos que moram na mesma casa, converso com as
mães e pais. Assim estabeleci um roteiro novo.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Outra coisa que observo é que temos a oportunidade de aprender


a ouvir as pessoas. O uso de instrumentos como o Google meet ou
o Zoom, por exemplo, exige que a gente ouça. Um aplicativo nos
faz lembrar que não ouvimos mais. Ou que falamos mais que
ouvimos. Ouvir tem sido um momento sagrado. E observo nos
alunos e colegas o cuidado em respeitar a fala do outro.”
(MACHADO, 2020)
“O contexto pandêmico no Brasil inseriu docentes, discentes e
gestores escolares das redes pública e privada no ensino remoto,
independente de questões estruturais e da apropriação desse
método pela comunidade escolar. Espera-se que um país de
proporções continentais saia dessa experiência com amplo material
para posteriores investigações dos limites e potencialidades das
vivências e intervenções pedagógicas realizadas.
Experiências anteriormente relatadas demonstram algumas
potencialidades do ensino remoto, principalmente no que tange a
personalização no processo de ensino e aprendizagem. É possível
que essas experiências sejam levadas para o futuro. Docentes, que
experienciaram a dedicação às potencialidades de cada estudante,
puderam notar os avanços e a qualidade das intervenções caso a
caso. Esse fenômeno foi notado entre docentes e discentes que
vivenciaram o ensino remoto com frequência durante os tempos de
educação não-presencial. As experiências educacionais em meio a
pandemia serão objeto de inúmeras análises posteriores. Delas
serão extraídas potências e limites para possíveis aplicações ou
embasamento de políticas públicas educacionais. Ressalta-se as
particularidades de um país tão diverso e a necessidade de
respeitar as diversidades regionais e socioculturais para pensar e
planejar ações significativas em âmbito educacional.” (RABAIOLI;
MARQUES; BRISOLARA, 2020)
As mudanças foram bruscas e intensas para os alunos, mesmo os
nativos digitais, ao contrário de um processo que acontecia a passos
lentos e de modo desigual no Brasil com a inserção gradual e

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

limitada de tecnologias digitais nas escolas. Não havendo qualquer


passividade no contexto de ensino, Aparici (2014) defende que o
cenário instaurado pelas tecnologias já exige, há muito tempo,
novas abordagens tecnológicas, comunicativas, e, sobretudo,
pedagógicas, que vão além do uso de uma ferramenta. Nesse
sentido, é importante “entender como usar todo esse aparato
digital para vivermos melhor, produzirmos mais, nos
relacionarmos de uma forma mais interessante e eficiente e como
aprender e educar de forma mais adequada” (GABRIEL, 2013, p.
4).
Nesse panorama, “estudos realizados na área dos estudos
linguísticos vêm contribuindo sobremaneira com o
desenvolvimento do ensino da língua materna, uma vez que
propõem novas formas de apresentação da língua a seus usuários.
Embora não seja regra ainda, hoje começamos a perceber uma
integração mais harmônica entre os tópicos leitura, produção de
texto e análise linguística.
Entretanto, a grande questão que se coloca, frequentemente, em
debate, é a seguinte: tem-se que ensinar gramática nas aulas de Língua
Portuguesa? Como todo debate, a questão em voga se mostra
polêmica, pois sabemos que não há como esquecer os aspectos
formais da língua (ligados à fonologia, morfologia e sintaxe), haja
vista a necessidade da produção de textos escritos, como as
tradicionais dissertações, normalmente exigidas em concursos
públicos como o vestibular e mais recentemente o Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM), por exemplo. Por outro lado, apenas o
domínio de regras gramaticais, baseado em classificações de
categorias, funções e nomenclaturas não é o bastante, já que a
linguagem, da forma como se manifesta, requer bem mais
habilidades por parte do usuário.
Os tempos são outros e o professor precisa reinventar-se, porque os
alunos não são mais os mesmos: novas tecnologias, novos
interesses e, consequentemente, novas formas de aprender têm que

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ser propostas e revistas com quase a mesma velocidade com que se


lançam novos equipamentos tecnológicos.
O lugar do ensino da língua culta, entretanto é na escola. Se a língua
se apresenta como um meio de integração social, é preciso respeitar
as variações linguísticas, principalmente na escola, que não deve
ser um lugar para se reproduzir intolerâncias. Ao contrário, a
escola deve respeito a qualquer variação de que aluno faça uso para
poder interagir socialmente. Entretanto, ao apresentar ao aluno a
língua culta, o professor estará oportunizando-lhe a possibilidade
de expressão dessa variante, já que, socialmente, há ambientes que
a requerem.
Ensinar a língua materna em ambiente escolar, tornou-se um
desafio, uma vez que em muitos desses ambientes, há apenas a
figura do professor, giz e um quadro-negro. Isso tudo confrontado
à espetacular era tecnológica em que estamos vivendo. Encontrar
um instrumento que sirva de parâmetro tanta para professores
quanto para alunos, é primordial para que tenhamos uma maior
motivação em sala de aula, a fim de que a língua possa ser,
efetivamente, um instrumento eficaz de comunicação e que, acima
de tudo, seja entendida por aqueles que dela fazem uso.
Se o uso da língua se concretiza na forma enunciados orais e
escritos, por aqueles que participam de uma ou outra esfera da
atividade social, que se busque e se crie instrumentos para facilitar
a convivência entre os atores da sociedade.” (QUEVEDO, 2020)
“Para uma democratização dos saberes institucionalizados,
entretanto, é necessário o acesso à informação mediatizada pelo
professor, com mecanismos que provoquem a tomada de
consciência, a interpretação crítica, a compreensão responsiva e,
assim, seja oportunizado, de fato, o desenvolvimento da cidadania
do sujeito aprendiz. Mas as estratégias só se fazem eficientes
quando associadas a um uso adequado dos dispositivos
comunicacionais e tecnológicos, que organizam social e

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

discursivamente a comunicação entre professor e alunos.” (PIRES;


KNOLL, 2020)
“À guisa de conclusão, verifica-se que as mudanças na sociedade
têm se refletido na sala de aula contemporânea, especialmente no
que diz respeito às transformações nos hábitos de leitura e escrita
dos estudantes. Em um mundo cada vez mais globalizado e
conectado, os alunos, atraídos pela tecnologia e sua velocidade,
muitas vezes abandonam a leitura e a escrita, principalmente em
formatos tradicionais. Vemos a constante solicitação para que os
alunos produzam textos artificiais, cujo único leitor é o próprio
professor. Isso ocorre especialmente no Ensino Médio, quando
grande parte das atividades de escrita se resume à produção de
dissertações para o ENEM.
Outro fator é a falta de motivação dos alunos na realização das
tarefas escolares, que estão ainda muito restritas às paredes da sala
de aula, à lousa e ao giz. E essas tarefas têm como objetivo principal,
na maioria dos casos, a atribuição de nota ao desempenho escolar
do aluno. Esquece-se de que a sala de aula é constituída pela
diversidade de indivíduos, cada vez mais tecnológicos e repletos
de vivências distintas. Por isso, a prática pedagógica deve ser
diversificada e inclusiva, com metodologias atrativas e eficientes.
O cenário atual exige da educação uma ressignificação de suas
práticas. É preciso considerar que o advento da Web 2.0, bem como
os conceitos de ciberespaço, hipermodalidade e hipermidialidade
contribuíram para mergulhar o sujeito contemporâneo em uma
realidade cujas exigências de leitura e escrita diversificaram-se a
cada dia. Nesse contexto, as práticas de letramento
tradicionalmente empregadas têm se mostrado ineficientes no que
se refere a formar sujeitos capazes de compreender, produzir e
editar textos a partir das novas tecnologias e na perspectiva da
multiculturalidade, própria das sociedades globalizadas.

887
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Além disso, há de se considerar que a quantidade de informações


disponíveis com o advento da internet é muito superior ao que
julgávamos possível há algumas décadas. Reconfiguram-se, nesse
contexto, os objetivos da educação. Não se trata mais de transmitir
informações, mas de habilitar o estudante a selecionar as
informações válidas, transformando-as em conhecimento. Em
tempos de compartilhamento virtual, o sujeito contemporâneo é
convocado, também, a produzir conteúdo, o que demanda o
acionamento de uma outra gama de conhecimentos e letramentos.
As práticas de leitura e escrita, nessa ótica, ampliam e
redimensionam, necessariamente, suas metodologias de ensino.”
(PIAIA; FREITAS, 2020)

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN,
Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.
BENCHIMOL, Ana P. F; CHAGAS, Nédilã, E. C. Um novo desafio
para os professores de Ensino Fundamental: como trabalhar
gêneros textuais diante da realidade do Ensino Remoto? In: PIRES,
Vera Lúcia; KNOLL, Graziela F. (Org.) Linguagens e(m) práticas
discursivas: leituras plurais em tempos de pandemia. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2020. P. 33-48.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017.
Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNC
C_20dez_site.pdf. Acesso em: 10 de agosto de 2020.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 20ª ed. São Paulo:
Cortez, 1989.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

GABRIEL, Martha. Educar: a (r)evolução digital na educação. São


Paulo: Saraiva, 2013.
MACHADO, Sônia P. Adaptar-se é preciso: relato de experiência.
In: PIRES, Vera Lúcia; KNOLL, Graziela F. (Org.) Linguagens e(m)
práticas discursivas: leituras plurais em tempos de pandemia. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2020. P. 19-32.
PIAIA, Miquela; FREITAS, Ernani de. Gêneros discursivos,
multimodalidade e multiletramento: proposta de prática
pedagógica para o ensino de língua(gens). In: PIRES, Vera Lúcia;
KNOLL, Graziela F. (Org.) Linguagens e(m) práticas
discursivas: leituras plurais em tempos de pandemia. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2020. P. 83-108.
PIRES, Vera Lúcia; KNOLL, Graziela F. (Org.) Linguagens e(m)
práticas discursivas: leituras plurais em tempos de pandemia. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2020.
QUEVEDO, Saigon. A teoria dos gêneros discursivos como suporte
para o ensino de Língua Portuguesa no ensino médio. In: PIRES,
Vera Lúcia; KNOLL, Graziela F. (Org.) Linguagens e(m) práticas
discursivas: leituras plurais em tempos de pandemia. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2020. P. 197-216.
RABAIOLI, Maristela; MARQUES, Patrícia; BRISOLARA, Valéria.
Limites e potencialidades: experiências pedagógicas em tempos de
pandemia. In: PIRES, Vera Lúcia; KNOLL, Graziela F.
(Org.) Linguagens e(m) práticas discursivas: leituras plurais em
tempos de pandemia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2020. P.
49-64.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

LINKS DIALÓGICOS ENTRE EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS E


O GROTESCO NA LITERATURA E NO COTIDIANO

CLEUNICE TEREZINHA DA SILVA RIBEIRO TORTORELLI


UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA
FILHO - CÃMPUS DE MARÍLIA
ctstortorelli@gmail.com

Olho para o meu olhar que olha o mundo. Meu olhar capta os
detalhes esquecidos do mundo. (PAZ, 1982, p. 15)

Consciências em diálogo
Nossos tempos estão carregados de belezas únicas, de uma estética
vista por poucas pessoas, um horizonte admirado, talvez, pelos
mais sensíveis e poéticos. Neste texto, usamos a poesia, a prosa
poética como nosso eixo para um desenvolvimento. Por isso,
peçamos a gentileza da concessão de usarmos o “nós” na primeira
pessoa do plural. Tiremos o “eu” do centro. Isso é sensato. Como
bem diz Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas (1980, p. 54),
“Coisas que vi, vi, vi - oi... “. São duas faces, ver versus viver. O
personagem viu e, também viveu, o grotesco de seu tempo, seus
cárceres, suas privações, emoções e sentimentos no sertão. E quem
não viu e viveu? Este mundo é o Grande Sertão. São muitos eus
juntos.
Ora, “no real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem
acabam” (ROSA, 1980, p.67). No viver de nossas periferias
reflexivas, somos muitos outros que dialogamos, questionamos,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nos indignamos e, ainda assim, não nos contentamos com as


respostas, queremos dar formato, acabamento ao enunciado,
porque “na palavra, eu dou forma a mim mesmo do ponto de vista
do outro e, por fim, da perspectiva da minha
coletividade” (VOLOCHINOV, 2019, p. 205).
Para o princípio de uma conversa, a fim de enredar outros
horizontes, vários “eus” anseiam por um grito de socorro, de
liberdade, de sentir a linguagem como uma poesia que comove.
Octávio Paz (1982), sabiamente diz, em O arco e a lira, que a “poesia
afeta, encanta e desperta sentimentos, confere ao texto (seja ele em
versos ou prosa) harmonia e beleza”.
Presentemente, não é vão dizer que queremos adentrar uma zona
menos inóspita de nossas indignações porque qualquer ser
humano precisa perceber algum valor em seu próprio mundo para
continuar vivendo. Assim, Octávio Paz nos direciona a refletir
sobre a arte de criar uma arena onde os signos se entrecruzam de
forma menos brutal, num arranjo especial das palavras, para falar de
grotesco, uma vez que a poesia é “exercício espiritual, é um método
de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão
dos eleitos; (…) Inspiração, respiração, exercício muscular. Oração,
litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia” (PAZ, 1982).
Logo, uma das várias possibilidades da linguagem poética,
segundo Aristóteles, é que ela é capaz de levar à inteireza da alma
humana. Todavia, ao pensar nessa completude, convém nos
lembrarmos a máxima de Bakhtin ao dizer que isso apenas se dá
pelo outro porque somente ele nos completa e nos dá acabamento.
A grande multidão apenas vê, não no sentido de enxergar o
mundo, as coisas, o Outro. Vemos verdadeiramente o Outro?
Tiramos nosso eu do centro para que o vejamos? Embora
adjetivemos de grotesca uma atitude a qual não aprovamos,
também cometemos atos grotescos. Há muito tempo que esse
vocábulo deixou de ser uma característica somente da Idade Média
ou da literatura na ficção dos romances de Victor Hugo e demais.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Não raro, alguns mortais carregam o obscuro na alma, já que a


sociedade atual traz em si esse grotesco na área econômica,
cultural, política e até em atos negacionistas. São muitos os que
ficam nas periferias do acaso.
Frestas, muitas frestas escondem uma toda realidade. E o olhar
atento de uma menina curiosa revela os cacos da existência que
mais esconde do que se mostra. Ela observa personagens
específicos que entram para a História. Não, desta vez não é o
Riobaldo de Guimarães Rosa. Os atuais são repugnantes, bizarros
e terríveis monstros de nossos tempos. Proferem discursos
assustadores. E temos mocinhos? Talvez. Então é a festa da
imagem (tudo o que se vê e que se imagina) na fresta da paisagem.
Na gramática do ser e do ter, no enunciado vivo ou em nossos
diálogos com a sociedade, com o Outro ou conosco mesmos,
percebemos sujeitos indeterminados, ocultos, compostos e até
simples que pouco se importam com o vasilhame vazio presente na
varanda da dona Vanda, nem com a sacola de supermercado da
Maria Sacoleira. Muito menos com o pneu furado da bicicleta de
João Pedro. E com a ripa da cama de Gabriela, quebrada pelas
costelas do Mané-tripa-de-aço, alguém se importa? São enunciados
outros que refletem e refratam na dialogia da vida.
Eu tenho, tu tens, ele tem, nós temos um fio que nos costura e que
nos faz humanos. Vós tendes? Eles têm? Sabe aquele fio capaz de
nos fazer sair e adentrar o quintal de nós mesmos? Sabemos apenas
que na varanda de consciências outras, varas verdes de um vegetal
insistem em engravidar telhados. Porém, falta humanidade a uma
grande parte da humanidade tão dependente da herança das
transformações na sociedade de tempos idos, que ainda se encontra
presente hoje, na política, nas questões éticas, científicas e até
mesmo sanitárias. Isso nos obriga a segurarmos nossos queixos
quando nos deparamos com atos grotescos daqueles que “dizem”
nos representar, no lugar do que deveria ser um ato responsivo e
responsável. Sim, aquele ato do qual não conseguimos nos

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esgueirar. É o “não álibi da existência” de que fala Bakhtin (2017),


em Para uma filosofia do ato responsável, ou seja, não é possível negar
a afirmação de que o nosso lugar é único no mundo, de onde somos
convocados, eticamente, a responder, porque o sujeito é exclusivo,
é o único responsável pelos seus atos respondendo por todos eles,
dado que o fato de responder por si mesmo é uma característica
intransferível do agir humano no mundo.
Em nossas meias verdades, como diria Drummond (2001) nos
tornamos gregários, no instinto, porém, continuamos sendo
solitários, egoístas até, no nosso mundinho. Por isso, talvez, a
necessidade de não querermos nos encontrar sozinhos, mas
acompanhados pelos acontecimentos e fatos, que nos pegam de
surpresa. Mas...haverá surpresa? Já não estamos acostumados a
tudo o que nos ocorre em nosso cotidiano? Tornou habitual
ouvirmos os noticiários e não nos pasmarmos com mais de mil
mortos em vinte e quatro horas. Qual será a graça da vida sem essa
surpresa? Há graça? No grotesco das mentes menos sublimes há os
que banalizam essa informação e tantas outras que nos transportam
para o “Congresso internacional do medo” de que fala o poeta
Drummond (2001), referente à época de 1939-1945, o tempo da
guerra. E hoje? Não estamos perante um cenário brutal também
de violência, de morte e de perigo iminente que “esteriliza” os
nossos abraços? Respondamos por favor!

Vias do diálogo libertador


Algumas das muitas travessias somente serão possíveis pelo
diálogo. É lamentável que os “donos do poder” não dialoguem com
o povo. Estamos condicionados a não termos uma escuta respeitosa
e que nos liberte do mundo das incertezas.
Falta, quiçá, aqui, ali, alhures, algo que reafirme, não a nossa
natureza solitária, contudo, aquele olhar de criança, aquele olhar
que se encanta com a doce melodia do tic-tac do relógio ou que se

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surpreende com as gotas iniciais de uma chuva - como se nunca


tivesse chovido. Na verdade, nosso excedente de visão não está
conseguindo completar o outro. “O sujeito olha o outro de um
lugar, de um tempo e com valores diferentes” (GEGe/UFSCar, 2019,
p. 44).
Nessa vertente, e se olhássemos para “O bicho”, do poema de
Manuel Bandeira, “Na imundície do pátio”/ “Catando comida
entre os detritos”? (BANDEIRA, 2001, p. 90). E o interlocutor nos
pergunta: Quem era esse bicho? E o eu-lírico responde: “O bicho,
meu Deus, era um homem”. Entretanto, não enxergamos esse
homem. O “eu” do poema fica indignado, “meu Deus”, e isso é
realmente assustador; um homem visto como um bicho? No
lixo? Este ser representa tantos outros considerados invisíveis,
párias. Ops! Mais um vocábulo modificado culturalmente pelo
tempo, “pária”, do inglês pariah, que quer dizer um marginalizado
social, considerado, então, “marginal”, “pobre”, um “cão sem
dono”, “fétido”, ou seria “O cão sem plumas”, de que fala João
Cabral de Melo Neto? O poeta conta, em versos, as situações
desumanas vividas pelos ribeirinhos do Rio Capibaribe. Portanto,
elucubramos nesse contexto da poesia de João Cabral, a falta de
alteridade ao sujeito de ser capaz de transmutar o “eu” para o outro
nas relações de interação.
Ao expor todas essas facetas e algumas outras subentendidas,
constatamos que há escassez de ato humano, o “eu no outro e o
outro em mim” de que falam os estudiosos da Filosofia da
Linguagem. Repitamos tantas e quantas vezes forem
necessárias: Não tiramos o nosso eu do centro como nos ensina
Bakhtin, pois, na maioria das vezes, pessoas estão fadadas a se
ofertarem como mercadoria, uma vez que cada um “se tornou
empresário de si mesmo” no neoliberalismo, como previa Marx,
(GEGe UFSCar, 2018, p.19).
Nesse grotesco dos nossos tempos ecoam vozes que ainda não
aprendemos a ouvir. Ainda estamos centrados no “eu”. Sendo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

assim, é bom que olhemos profundamente uns para os outros, com


olhos de um “eu” fora do centro. Isso supõe que nosso olhar deve
se voltar para um mundo constituído de seres humanos
expressivos e falantes e, em especial, responsivos.
Essa ideia de ser para o outro, estar com e pelo outro é a
manifestação de linguagem. É a nossa forma de “instaurar a
linguagem como um processo de contínua constituição”
(GERALDI, 2007, p.161). Nós nos constituímos pelo outro, pela
alteridade, na “constituição de um outro centro de valor”
(MIOTELLO, 2018).
Transformamos a vida pelo movimento e pela linguagem. Nossa
interação é que nos concede a firmeza do chão que nos apoia para
a coragem de ajudar, de buscar apoio, de nos colocar no lugar do
outro, de nos importarmos com as condições socioeconômicas e
políticas do nosso país, porque nesse “sossegar” e “desinquietar”,
no vai e vem das asperezas apresentadas pela sociedade, está a
nossa condição de ser humano, de reconhecer o outro como parte
de nós, porque o mundo é também de incertezas como já dissemos.
Em vista de tudo isso, dentre todos os melhores caminhos que nos
são apresentados, ainda o enunciado não foi proferido com todas
as letras mostrando que a Educação é o caminho certo para que
humanidade se humanize, quiçá se liberte. Não é preciso de armas
nas mãos, nem de vírus verbal. Usemos o fio que nos costura “[…]
como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara.
E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a
manhã repetiu na linha do horizonte.(COLASANTI, 2006, p. 14).

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de
Janeiro: Record, 2001.

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BANDEIRA, Manuel. Meus poemas preferidos. 7.ª ed, Rio de Janeiro:


Ediouro, 2001.
COLASANTI, Marina. Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. 12.ª
ed. São Paulo: Global, 2006.
GERALDI, João Wanderley. A expulsão do outro e a re-existência do
singular. In: Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso –
GEGe/UFSCar (org.). Palavras e contrapalavras: enfrentando
questões da metodologia Bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2012.
GERALDI, João Wanderley. Leitura: uma oferta de contrapalavras. In:
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe/UFSCar. O
espelho de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2007.
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso –
GEGe/UFSCar. Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos,
categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores,
2019.
MELO NETO, João Cabral de. O cão sem plumas: In O rio - João
Cabral de Melo Neto, Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 11.
MIOTELLO, Valdemir. Por uma escuta responsiva: a alteridade como
ponto de partida. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018.
_____. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Valdemir
Miotello & Carlos Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Tradução de Olga Savary. Rio de
Janeiro ED. Nova Fronteira, 1982.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio, 1980.
VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaevich. Marxismo e Filosofia da
Linguagem: Problemas fundamentais do Método Sociológico na
ciência da Linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. 2.ª ed. São Paulo: editora 34, 2019.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Mamilos são Polêmicos. Por quê?

Jonas Reis Moulin


Uff/estudante
jonasmoulin@id.uff.br

Gleiciane Lage Soares Poubel


Iff
gleicianelage@gmail.com

ALINE ROSA VALENTE VIEIRA


UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
alinecambuci@gmail.com

“Mamilos são polêmicos”. Com esta frase um garotinho tornou-se


meme na internet muitos anos atrás. Pelo riso somos convidados a
pensar: mas por que os mamilos femininos são polêmicos? Para
iniciar este texto gostaríamos de ressaltar a compreensão do corpo
como uma produção histórica, que não é fixa. Muda no tempo e
também de acordo com a cultura de cada grupo. Essa frase
recortada faz referência a um pensamento ocidental moderno em
que o corpo e a sexualidade ganham especial destaque. “Os corpos
são, afinal, significados pela cultura e são, continuamente, por ela
alterados. Eles são históricos e inconstantes, suas necessidades e
seus desejos mudam”(LOURO, 2019).

897
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Acredita-se que a humanidade tal como a conhecemos tenha em


torno de dez mil anos. E como mamíferos que somos, é através dos
mamilos femininos que a criança costuma ter contato com sua
primeira fonte de alimentação.
É possível afirmar que quase todos os humanos conhecem os
mamilos femininos, já que, possivelmente, tiveram contato com
um, seja no ato de amor materno ou na luta pela sobrevivência, em
que os seres ainda pequeninos recebem, na ausência do peito
materno, ao menos, o contato com alguma forma parecida com um
mamilo feminino, que tem o objetivo de alimentá-los. Mamilos-
Peitos, aparentemente fechados, mas oferecem orifícios que se
abrem para ser fonte de vida, o alimento vital de um novo mundo.
Contudo, muitas vezes é considerado um absurdo que uma mulher
lactante desnude seu seio para amamentar a um filho, lembrando
que é um ato próprio da natureza humana. Parece haver uma
exigência quanto ao rigor de nunca serem mostrados em público.
O que é tão necessário esconder junto aos mamilos femininos? A
Legislação brasileira passou a tratar destes temas recentemente,
graças a conquistas das bancadas femininas na Câmara e no
Senado. O artigo 1 da PL 1654/2019 assegura o direito: “É garantido
o direito de lactantes e lactentes à amamentação em locais públicos
e privados abertos ao público ou de uso coletivo”. É estranho que
algo tão natural, careça de uma lei para acontecer. Assim também
existem outras questões em que o estado assume esse lugar de
controle sobre os corpos dando-nos a ilusão de uma garantia, que,
na realidade não passa de um controle sobre o controle, uma vez
que o ato natural é amamentar o filho, independentemente do local.
Ato este censurado pela erotização do seio feminino e passível do
controle patriarcal pela sociedade machista em que estamos
inseridos. Na realidade, a lei que confere às mulheres a
oportunidade de amamentar seus filhos publicamente não é um ato
de proteção às mulheres, mas resultado de transgressão, que surge
de uma demanda popular, de um movimento de desconstrução de
sentidos para fundar outros. Esse tipo de reivindicação não é

898
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

particularidade nossa, retrata uma luta de movimentos feministas


que tentam romper com esse tabu sobre o corpo e sua hiper
sexualização, pensamento ocidental que em muito também já
influenciou outras culturas. Onde deveriam aparecer mamas com
mamilos de mulheres amamentando seus filhotes, são vistos
objetos sexualizados por essa cultura ocidental.
Não estamos, todavia, afirmando que esse pensamento reflita uma
totalidade. Aqui mesmo, no Brasil, existem várias tribos indígenas
em que o corpo nu, inclusive os mamilos, não são alvo dessa
sexualização e controle. Na China e no Japão antigo,
principalmente no Japão, não era incomum mulheres lavradoras
trabalharem no campo com a parte superior do corpo desnudo, tal
qual os homens. Foi apenas quando tiveram contato com a cultura
ocidental que passaram a sentir vergonha de sua nudez. Até
mesmo na Grécia antiga as vestes femininas cobriam o corpo até
abaixo dos seios, deixando-os de fora, como se a vestimenta fosse
mesmo confeccionada para facilitar a amamentação. Contudo era
uma vestimenta para as escravas e as pobres, geralmente “mães-
de-leite” do filhos da realeza. Quase sempre as divindades
gregas também são retratadas com os bustos desnudos. E também
era assim no Egito antigo.
Bom, não vamos nos aprofundar aqui nas questões históricas e
quais movimentos geraram essa ruptura e mudança de sentidos,
essa mudança no padrão cultural. Queremos ressaltar que essa
construção não é natural no sentido biológico, ela demarca uma
questão moral que busca o controle dos corpos. E controle é poder
(FOUCAULT, 2013). Foucault assevera ainda que “o controle da
sociedade sobre os indivíduos não opera simplesmente pela
consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo.
Foi no biológico, no somático, no corporal que antes de tudo,
investiu a sociedade capitalista” (FOUCAULT, 2007, p. 27). Mas
quem ganha e quem perde com esse controle? Qual o lugar da
mulher enquanto detentora do seu próprio corpo? Para nós,

899
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ocidentais, é totalmente inadmissível qualquer forma de exposição


do mamilo, mesmo que seja a simples marca do mesmo sob a
camiseta. De maneira nenhuma um mamilo pode sequer dar a
intenção de aparecer, mesmo que nos contornos. Inventamos
sutiãs, bojos, protetores e outros tantos artifícios para que o mamilo
não seja mostrado de forma nenhuma. Esse é apenas um dos
controles exercidos sobre os corpos femininos. “Celebram-se e
vigiam-se os corpos. Supõe-se que eles se constituam na referência
que, por fim, ancora a identidade. Talvez por isso, espera-se que
eles sejam inequívocos, evidentes por si. Mas eles escapam e não se
deixam fixar” (LOURO, 2019) A cultura é algo em movimento, atos
solitários ou coletivos fazem surgir novas possibilidades de ver o
que antes era invisível ou invisibilizado.
“ Ela colocou os peitos pra fora ali na frente de todos, não se cobriu,
o garoto já crescido mamava em um seio enquanto apertava o bico
do outro, não tem um pingo de vergonha e pudor”
“Quer um paninho? Você vai deixar todo mundo ver seu peito?”
Nas falas acima o discurso do controle sobre os corpos tenta impor
uma restrição ao ato natural de amamentar, saciar a fome de uma
criança ou até mesmo acalentar um bebê por meio da aproximação
com a mãe, tornando o ato como algo sexualizado, como falta de
pudor. Mas, de alguma forma, as mães que praticam o ato de
amamentar em público traçam uma linha de fuga, abrem uma
brecha, deslocam o ponto pretensamente fixo. Também o fazem os
tatuadores que trabalham desenhando mamilos (Figura 1) em seios
com reconstrução mamária, pós cirurgia de retirada de mama por
câncer. Essa arte solidária sofre muitos ataques dos mecanismos de
controle justamente por sua divulgação expor o mamilo, pois de
maneira nenhuma pode-se mostrar um mamilo feminino - mesmo
que seja apenas um desenho. Assim é necessário um esforço para
descaracterizar a beleza do trabalho o máximo possível com intuito
de contornar as políticas de censura, mesmo que seja apenas um
desenho.

900
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1 – Disponível
em https://www.instagram.com/p/CS7qFv0F_JP

Há postagens de outros tatuadores em que os mamilos são


completamente cobertos por tinta (Figura 2), descaracterizando-os,
e esses sim podem ser mostrados, sem restrições ou banimentos
virtuais, ainda que sejam reais.

901
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

FIGURA 2 – Disponível
em https://www.instagram.com/p/CS1AaNpisOC/

E nessas mesmas páginas virtuais que aceitam os mamilos cobertos


de tinta, como a figura 2, aqueles que não são pintados precisam
ser cobertos de alguma maneira para escaparem à censura. Como
podemos observar nessa imagem, (Figura 3) em que a modelo tem
o corpo quase que completamente pintado, mas, por ela não ter o
mamilo descaracterizado, ele não pode ser mostrado sem que tenha
tido alguma forma de cobertura; neste caso, digital.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

FIGURA 3 – Disponível em
https://www.instagram.com/p/CL3gxExFY_d/

Mulheres são julgadas por andarem sem sutiã e de camisa, algumas


crianças na puberdade sentem vergonha da mudança em seus
corpos, e não é só pela transição, mas também na forma como são
olhadas. Em algumas ocasiões, os seios inteiros podem ser
mostrados, apenas os mamilos é que não podem aparecer. Durante
o carnaval, seios são exibidos, exigindo no máximo um adesivo no
mamilo. Neste período próprio de transgressão, os mamilos
algumas vezes aparecem, mas até nesta época de maior aceitação e
diminuição do controle, sua exposição parece absurda, e apesar de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ser natural a mulher possuir mamilos e amamentar, mostrá-los é


uma violação gravíssima aos mecanismos de controle. No entanto,
são essas pequenas transgressões, como exibir os mamilos durante
o carnaval ou amamentar em público, que provocam as fissuras e
desestabilizam o sistema que obriga às mulheres a submissão de
seus corpos. Não a um marido ou a um pai, “é muito além da
submissão do corpo.; ela se dá pela maneira como a mulher é posta
a serviço do coletivo física, moral e psicologicamente” (SOUSA E
ANDRADE, 2020, p. 71)
A vida começa no seio materno; o seio feminino também pode ser
erótico, e inúmeros significados podem ser dados aos seios e seus
mamilos, e todos esses significados são construídos em cada
cultura. O que queremos evidenciar em nosso texto é o lugar do
mamilo em sua função biológica, refundando o lugar do mamilo
como lugar de nutrição da vida. Um orifício aberto que deixa
passar o leite materno, também nos convida a olhar para esse corpo
aberto. O corpo construído socialmente é fechado, seus orifícios são
negados, esquecidos, proibidos, considerados sujos. Refundar o
mamilo nesse lugar vital de nutrição nos ajuda primeiro a romper
com a objetificação desse corpo feminino. Outras discussões de
sentidos são possíveis, inclusive do próprio sentido da
sexualização em si, mas vamos nos ater à questão do mamilo,
porque ele também é palco de luta e resistência. Há toda uma
discussão de desapropriação e objetificação do corpo feminino em
questão. O seio existe no corpo feminino, não negamos aqui sua
existência ou sentidos. A questão emerge da estranheza e da
necessidade apontada pelas próprias mulheres de possuírem seus
corpos. Homens só têm mamilos (sem seios) porque seus corpos
são formados inicialmente em estrutura feminina para depois se
masculinizar, então por que os mamilos dos homens não sofrem a
mesma objetificação?
Esse texto de denúncia, é uma gota no oceano que tenta aprisionar
o corpo feminino em padrões estéticos para existir e ser mostrado.
O que pode e o que não pode? O que é belo, o que é feio? O que é

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

desejado e o que é banido? Quem tem o lugar de fala e quem é


silenciado?

Para finalizar, não para concluir, pois há muitas ideias aqui e não
conseguimos aprofundar, apenas cutucar a ferida. Convidamos a
olhar por meio dessa brecha e pensar nesse corpo oculto, escondido
dos olhos da sociedade, que tem orifícios, por onde saem os
excrementos. Um corpo vivo que come, transa e se decompõe. Que
sua e tem odores. Que tem desejos diversos não padronizados.
Como temos educado nossas crianças sobre o domínio de seus
corpos? Essas são algumas reflexões outras que não respondem à

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nossa pergunta inicial, mas apontam pistas sobre discussões


necessárias para construção de uma relação com o corpo que o
amplie e não o aprisione. E para não ficar só em nossas palavras,
arriscamos uma última imagem que dialoga com esse texto, uma
poesia com indagações que confluem com nosso pensar.

Referências
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – Nascimento da prisão.
Introdução de Antonio Fernando Caiscais. Portugal: Editora 70,
2013.
FOUCAULT, Michael. Nascimento da bio-política. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
-LOURO, Guaciara Lopes, org. O corpo educado: pedagogias da
sexualidade. Belo Horizonte, MG. Autêntica editora,2019.
-Menhem, Natália, livro: Descontinuidades, 2017, Edição por
Cristiane Lisbôa, capa e projeto gráfico por Letícia Nunes, site:
nataliamenhem.com.br/descontinuidades
SOUSA, Tatiane Bernardo de. ANDRADE, Guilherme Beraldo de.
O peso e o feminino – um corpo discursivizado. In: Michele
aparecida Pereira Lopes; Elizete de Bernardes (Orgs.). Corpos,
sujeitos e discursos: identidades ressignificadas. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2020. 237p.

906
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Manifestações do grotesco no espaço educativo

Dilza Côco
Ifes
dilzacoco@gmail.com

O termo grotesco, discutido por Bakhtin a partir do campo da


literatura, e contemplado no evento Rodas Bakhtinianas de 2021
pode ser relacionado a diferentes ideias, como animalidade,
deboche, escárnio, monstruosidade, exagero, horror, contraste,
ironia, estranho, metamorfose, riso, dentre muitos outros. Nesse
texto buscamos relacionar algumas dessas ideias com fatos da vida
cotidiana em tempos de pandemia da Covid 19, que implicou
mudanças bruscas das rotinas, a partir de março de 2020.
Vivenciamos uma verdadeira metamorfose em nossas atividades
mais triviais. A primeira delas foi relativa a necessidade de
isolamento social, e consequentemente o esvaziamento de espaços
coletivos essenciais para potencializar o desenvolvimento dos
sujeitos como a escola, as universidades, as áreas de lazer, ou até
mesmo reuniões familiares etc. Em contrapartida assistimos a
divulgação de notícias sobre aumento de número de mortos, de
hospitalizados, de desempregados, de desalentados, de moradores
em situação de rua, de pessoas passando fome, do retorno de
índices expressivos de inflação, e muitas outras manifestações que
podemos caracterizar como situações “grotescas” de nosso tempo.
Nesse contexto caótico e desafiante, a presença das tecnologias
digitais de comunicação foram intensificadas e passaram a ocupar

907
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cada vez mais espaços em nossas atividades. Para realizar algumas


delas foi/é possível dizer que as tecnologias de comunicação
tornaram-se oportunidades para acessar conteúdos proveitosos e
ampliar horizontes de reflexão sobre a realidade. Para exemplificar
uma dessas oportunidades dentre muitas outras que o espaço
virtual possibilita/ou, descreveremos as atividades do Museu da
Imagem e do Som (MIS), de São Paulo, que passou a oferecer uma
programação cultural on-line com entrevistas, debates, filmes e
documentários, com participação de intelectuais de expressão
nacional e internacional.
Dentre as opções disponibilizadas pelo MIS, escolhi um episódio
para compartilhar algumas reflexões. Esse episódio apresentou um
debate com o diretor de cinema Jorge Furtado, do filme brasileiro
“Saneamento Básico”. O diretor explicou que a produção
cinematográfica citada teve a intenção de contribuir para estimular
discussões sobre problemática social elementar, que deveria ser
direito de todos, mas que no Brasil parece ainda uma conquista
muito distante. Nesse caso, os excrementos humanos passam da
categoria de fétidos, repulsivos, insignificantes, para um patamar
central de discussão, no sentido de se tornar mobilizador para a
crítica e subsidiar a formação da consciência coletiva. Assim, busca
por meio da linguagem cinematográfica trazer a tona discussões do
cotidiano que merecem ser pensadas e problematizadas.
Outra produção audiovisual do diretor, comentada nesse debate
do MIS foi o curta metragem intitulado “Cretinália”, com duração
de sete minutos, criado no período da pandemia ainda no ano de
2020, disponível em . Essa produção apresenta em seu início um
trecho do discurso de Albert Camus, quando recebeu o prêmio
Nobel de literatura. O extrato do discurso do escritor diz:
A arte não é, a meu ver, um divertimento solitário. É um meio de
comover o maior número de homens, oferecendo-lhes uma
imagem privilegiada do sofrimento e das alegrias comuns. Ela,
pois, obriga o artista a não se isolar, ela o submete à verdade mais

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

humilde e mais universal. E aqueles que muitas vezes escolhem seu


destino de artista porque se sentem diferentes logo aprendem que
alimentam sua arte, e sua diferença, ao admitir sua semelhança com
todos. O artista se forja no incessante ir e vir de si para o outro, a
meio caminho da beleza, sem a qual não pode passar, e da
comunidade, da qual não pode arrancar-se. (CAMUS, 1957 apud
FURTADO, 2020, s.p.)
Além desse texto do universo da literatura, no roteiro do
documentário Furtado (2020) também faz referência ao poema
“The Dunciad”, de Alexandre Poper (1688-1744), para aludir a ideia
de um rei torpe que busca aprisionar a Ciência, exilar a Arte e
amordaçar a Lógica. Com essas fontes, problematiza a realidade
brasileira no período da pandemia indicando que a peste tem
provocado o isolamento das pessoas, enquanto espalha horror e
desordem humanitária. Ao utilizar o termo peste, o faz em duplo
sentido, ligado ao poder do vírus da Covid 19, assim como alude a
discursos e ações governamentais que minimizam os efeitos da
pandemia. Assim, notamos nessa produção ecos de diferentes
vozes utilizadas para evidenciar elementos do grotesco,
especialmente por contemplar enunciados variados e proferidos
pelo governo nesses tempos sombrios de pandemia.
Esse aspecto positivo da incorporação das tecnologias de
comunicação por instituições de caráter público e comprometidas
com uma programação de qualidade para favorecer a reflexão
crítica, não pode ser generalizado. Muito pelo contrário, no campo
educacional assistimos a adoção de várias plataformas digitais e
outros recursos e produtos tecnológicos, que tem se mostrado
devastador na garantia do direito à educação, especialmente da
classe popular.
Os ambientes virtuais tem contribuído para promover uma
supressão de direitos, como a garantia ao espaço público da escola,
da convivência coletiva, do acesso a alimentação, de acesso aos
livros e a outros suportes. Ainda provoca a precarização das

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

condições de trabalho dos profissionais, pois no espaço privado da


casa de cada sujeito, novos desafios se impõem, especialmente
devido a flagrante desigualdade social que perpassa a realidade de
vida da maioria dos brasileiros, inclusive dos profissionais da
educação e dos estudantes. Assim, com um discurso de solução
rápida, as tecnologias no campo educacional têm servido para
impulsionar o crescimento de empresas dessa área, incrementando
a lógica da educação como uma prestação de serviços. Desse modo,
fragmenta os processos educativos, empobrece as relações entre os
sujeitos e responsabiliza as vítimas pela sua falta de condição.
O tempo da pandemia tem criado um verdadeiro oásis para o setor
de tecnologia educacional, onde a degradação da dimensão
formativa do humano com o humano, pouco importa. A expansão
desse setor como condição de base para os processos educativos
tem se materializado no ensino privado e nos sistemas públicos,
por meio de plataformas para salas virtuais, de correção de textos,
de gestão das instituições, de recursos de materiais didáticos
digitais, dentre outros. Essa presença das tecnologias digitais na
educação na consolidação de espaços virtuais permite o recuo dos
investimentos públicos no setor, articulado a processos de controle
e cerceamento da autonomia do trabalho pedagógico. Nesse
cenário, podemos entender que as tecnologias digitais estão acima
de tudo e de todos, pois o que importa é a produção do lucro e
revigoramento das relações capitalistas, mesmo em atividades
essenciais como a formação humana.

Referências
FURTADO, J. Live do Museu da Imagem e do Som de São Paulo
Bate Papo de Cinema. Exibido em 26 dez. 2020. Disponível em:

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Mãos em uma babel: vozes que se cruzam no tempo

Helen do Socorro Rodrigues Dias


Uepa
helensrdias@yahoo.com.br

Outrora todos os homens falaram somente uma língua.


(PONZIO, 2020, p. 174)

Escolhemos para começar nosso diálogo o enunciado de Ponzio


(2020) que se refere à situação do “monolinguismo pré-babélico”,
em que todos os sujeitos falavam uma única língua. O autor parte
da narrativa do mito bíblico da torre de babel, que ocorre “a
passagem de uma situação original de feliz monolinguismo para a
“confusão das línguas”, para o “caos do
plurilinguismo””(PONZIO, 2020, p. 173, grifos do autor), fato
considerado por muitos como um castigo de Deus, mas que é
ponderado por Ponzio como uma dádiva.
A dádiva do plurilinguismo! Que permitiu a multiplicação das
línguas e “[...] tantas danças diferentes, tantas músicas diferentes,
tantas roupas diferentes” (PONZIO, 2020, p. 178), instituindo-se a
“Babel feliz” e nos possibilitando o alargamento de nossa visão de
mundo e das relações dialógicas que podemos constituir a partir
das diferenças.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Neste texto, queremos dialogar a partir das proposições


apresentadas por Ponzio acerca da relevância das diferenças dos
sujeitos nos mais diversos aspectos e sentidos da vida, mesmos que
outrora, também os homens possam ter pensado ser possível
moldar todos em uma única forma. Esse ideal de moldar todos os
homens nessa única forma, que apresentava por objetivo encaixá-
los em uma sociedade que acreditava poder alcançar a “perfeição
dos sujeitos” e buscava um padrão de “normalidade”, em que
todos os corpos deviam ser iguais, os pensamentos sempre lineares,
a linguagem única e padrão, o jeito de sentir, tocar, amar e viver
deveriam caber em um único molde, já instituído socialmente.
Tal molde não acolhia a diferença e singularidade dos sujeitos, pois
não era aceitável para instituição do “normal”, enxergar com o tátil,
escutar com o olhar, ter um cromossomo a mais, ter um corpo
singular, ser um outro para além da considerada “normalidade”.
“Na babel das línguas há um encontro efetivo entre as diferentes
línguas e a experimentação de toda a sua irredutível alteridade”
(PONZIO, 2020, p. 173), que possibilitou então o encontro do outro,
a construção da identidade por meio da diferença a partir das
singularidades e que é libertária dos sujeitos.
Assim, em um movimento de reexistência ambivalente, de
ressuscitar o novo, de valorar o diferente que inverte o que está
moldado e com o desejo de superação da homogeneização social,
construindo, então, apresentamos a babel formada por mãos de
pessoas Síndromes de Down, que participaram da oficina lúdica
“Nossa voz!”, com momentos de diálogos acerca de suas vivências
no contexto da pandemia do coronavírus. e construções que
pudessem ressoar suas vozes.
Para nosso diálogo, neste ensaio, vamos apresentar duas obras. A
primeira é uma torre de babel feita com as marcas das mãos sujas
de tinta guache em uma cartolina, figura 01.
Figura 01: Nossa mãos na Babel

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Adryan Silva, João Oliveira e Laís Gonçalves (2021)


As vozes representadas a partir das mãos que constituem a babel
na figura 01, formam uma torre sem forma e perfeição, de múltiplas
cores, tamanhos e estilos, ecoam a presença da pluralidade e
singularidade dos sujeitos, em termos que nos possibilita

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

compreender que essa é uma realidade rica e complexa que


constitui nossas relações.
A segunda obra é um texto construído de forma coletiva, usando
enunciados para colagem em cartolina, figura 02.

Figura 02: Estamos aqui.

Fonte: João Rodrigues e Isabele Franca (2021)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

As vozes presentes na figura 02, expressam o grito de reexistência,


para toda e qualquer tentativa de apagar, negar, negligenciar as
diferenças dos sujeitos. Ressaltando a grandeza e a dádiva da
pluralidade, que nasce no encontro efetivo das diferenças,
constituintes da babel feliz, que ainda necessita ser reconhecida por
todos.
E embalados nesse sentimento da Feliz Babel, que admite a
pluralidade como um presente libertário, permitindo o desprender
do pensamento da diferença como um aspecto negativo e de
incapacidade do ser. Pois, é a pluralidade que valoriza as
singularidades e reconhece a importância de um outro diferente,
como sujeito que me constitui e fortalece as relações dialógicas. É a
compreensão de que o plural dá um florido à vida e nos convoca,
de forma esperançosa, para uma continua reflexão, de que os
homens não podem se colocarem como submissos a
homogeneização, pois a diferença agrega valores e enriquece as
relações sociais.

Referências
PONZIO, A. A questão babel. In: PONZIO, A. Livre Mente:
processos cognitivos e educação para linguagem. Tradução:
Marcus Oliveira e Marisol Mello. São Carlos: Pedro & João
Editores, p. 173 – 196, 2020.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

MERVAL PEREIRA E AS COXAS DE LULA: O GROTESCO


COMO FORMA DE JORNALISMO “POLÍTICO”?

Maria Leopoldina Pereira


SE/PJF
professora.dina2012@gmail.com

Dizei-me, por favor: serão, talvez, a cabeça, a cara, o peito, as mãos,


as orelhas, partes do corpo reputadas honestas, que geram deuses e
homens? Ora, meus senhores, eu acho que não: o instrumento
propagador do gênero humano é aquela parte, tão deselegante e
ridícula que não se lhe pode dizer o nome sem provocar o riso.
Aquela, si, é justamente a fonte sagrada de onde provêm os deuses
e os homens. (ROTTERDAM, 2004, p. 22)

No domingo 28 de agosto, o colunista do jornal O Globo, Merval


Pereira, a priori, um analista político, se debruçou sobre uma
questão no mínimo estranha. Em sua coluna discorreu sobre as
coxas do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, expostas numa
foto publicada nas redes sociais do ex-presidente, onde ele, de
sunga, posa ao lado da noiva Janja.
O fato por si não deveria gerar tanto interesse a não ser o usual:
uma figura pública que tem em sua companhia um fotógrafo
profissional, encarregado de registrar mesmo momentos
aparentemente “íntimos” e que numa foto aparentemente bucólica,
pois retrata um casal de enamorados, numa viagem a Praia do Pico,
Ceará, com inclusive uma romântica lua cheia ao fundo, expõe as

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

coxas de Lula. Merval Pereira por sua vez, vai além do mero
“visualizar, curtir ou comentar” e transforma esse cenário em
discurso político.
Merval, a exemplo de Erasmo de Rotterdam (2004, p. 22), se detém
naquela que, “é justamente a fonte sagrada de onde provêm os
deuses e os homens”, as partes baixas. De acordo com o colunista,
“não foi só sua coxa musculosa que chamou a atenção dos fãs.
Estava de sunga, e houve até quem comemorasse, sob ela, o
pressentido bilau do Lula. Essa demonstração de virilidade senil
claramente não foi planejada, mas a certas fãs é um detalhe
fundamental do mito”. A pergunta que ecoou na semana seguinte
em diferentes fontes, foi, de diferentes formas, a mesma: qual o
interesse de Merval Pereira “no pressentido bilau” do ex-
presidente?
Análises psicanalíticas baseadas na teoria freudiana, opiniões
políticas, “memes”, charges, e claro, comparações com o atual
ocupante da cadeira presidencial, esta última inclusive destacada
pelo próprio Merval Pereira em seu texto ao destacar que a foto de
Lula traz uma “demonstração de virilidade senil” que, em sua
opinião, “claramente não foi planejada, mas a certas fãs é um
detalhe fundamental do mito”. Ao se referir a tal aspecto físico das
partes baixas de Lula, Merval segue em sua análise e apresenta a
comparação entre os aspectos anatômicos do ex e do atual
presidente, destacando que o último, por ter pernas finas, era
conhecido em seus tempos de quartel, como “Palmito”.
Delineado o cenário, à luz do grotesco trabalhado por Mikhail
Bakhtin (1993 e 2002), teria Merval Pereira se apropriado do
conceito de grotesco para subverter o jornalismo político
conservador? Pouco provável.
Ainda que Bakhtin (1993, p. 43) tenha afirmado que “a função do
grotesco é liberar o homem das formas de necessidade inumanas
em que se baseiam as ideias dominantes sobre o mundo”, visto que

917
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“o grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter


relativo e limitado”, não me parece que ao se concentrar na
presumida virilidade de Lula, Merval Pereira desejasse se libertar
das ideias dominantes acerca da sexualidade dos homens mais
velhos e/ou das comparações anatômicas que a foto em questão
suscitou em apoiadores ou opositores de Jair Bolsonaro.
À luz dos escritos de Bakhtin (1993), o grotesco “abre a percepção
da realidade para novas possibilidades e, por conta disso, pode ser
visto, como uma categoria rebelde que abala os padrões, tanto
estéticos quanto os concernentes à visão de mundo” (SANTOS,
2009, p. 193), mas tal posicionamento certamente não se coaduna
com a posição política/ideológica/editorial de Merval Pereira ou do
aglomerado comunicacional para o qual trabalha.
Ao utilizar o adjetivo “mito” para se referir a Lula e Bolsonaro,
colocando-os assim na mesma narrativa “mitológica”, Merval
aponta, ao final do seu artigo, o que realmente pretende, citando
para tal as aparentes e suspeitas vantagens anatômicas do “mito da
esquerda” sobre o “mito da direita”: o coxão e o bilau avantajado:
a necessidade da busca de uma terceira via para a corrida
presidencial de 2022 que se apresente como opção viável à elite por
ele representada.
Mas o que move Merval Pereira a abandonar sua habitual fleuma
jornalística, sua postura de imortal da Academia Brasileira de se
apropriar de um discurso chulo e vulgar num dos jornais de maior
circulação nacional? Ressentimento, inveja, como apontou Plínio
Teodoro, da Revista Fórum? Inveja disfarçada de análise semiótica,
como comentou Jean Wyllys? O efeito viralizante da foto, como
publicou o site Uol? À luz do grotesco descrito por Bakhtin (1993),
certamente não. A aposta aqui é de que Merval desejou não só
dissertar sobre as anatômicas e consideráveis (aos seus olhos)
vantagens do petista sobre seu opositor, mas também aproximá-los
e ao mesmo tempo atingir aqueles que, em geral, não são leitores
habituais de sua coluna: os cidadãos comuns que não se

918
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

enquadram na polarização direita/esquerda, coxão/palmito, bilau


considerável/bilau não pressentido, e que numa disputa eleitoral
podem representar a derrota, de preferências de ambos os
personagens centrais da coluna.
Sim, ainda que pareça que o personagem em foco seria “o
pressentido bilau de Lula”, ao se apropriar dos aspectos do
grotesco descrito por Bakhtin, Merval Pereira quer ir além, e
apontar que, aspectos anatômicos e virilidades à parte, Lula e
Bolsonaro devem ser restringidos ao aspecto mitológico em que
tanto um quanto outro não pode ser considerado escolha ideal
para governar o país, daí a necessidade premente de “homens
honestos” traduzido na forma de uma terceira via.
Enfim, Merval Pereira utiliza-se sim do grotesco no jornalismo
político na coluna em questão, não como forma de romper com os
padrões estabelecidos, mas sim como forma de provocar o escárnio
da classe social que representa, bem como despertar o interesse
daqueles que consideram a forma vulgar de se referir às partes
baixas de dois oponentes políticos, num país onde a tradição
machista agrega valor aos órgãos sexuais masculinos avantajados
como demonstração de poder e força.
Podemos trazer novamente à luz o que afirmou Erasmo de
Rotterdam (2004, p. 22), “o instrumento propagador do gênero
humano é aquela parte, tão deselegante e ridícula que não se lhe
pode dizer o nome sem provocar o riso”. Se “aquela, si, é
justamente a fonte sagrada de onde provêm os deuses e os
homens”, ao exortar “o pressentido bilau de Lula” para enquadrá-
lo no perfil de “mito”, e então coloca-lo na mesma posição de seu
oponente político, Merval Pereira, conhecedor das astúcias da
linguagem e do poder desta, se apropriou do conceito de grotesco
para ridicularizar duas figuras que tem centralizado o debate
político no Brasil atualmente. Mas terá o jornalista/ imortal da
Academia de fato chafurdado na lama do grotesco? Questões para
o grande tempo... Permaneço com Eduardo Galeano e sua Janela

919
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sobre o corpo (1993, p.138): “A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A


ciência diz: o corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é
um negócio. O corpo diz: eu sou uma festa”.
Em momento tão difícil da vida nacional, a possibilidade que
Bakhtin nos apresenta de olhar para o grotesco, olhar para a cultura
popular, olhar para a feira, pode proporcionar um olhar
diferenciado, invertido para uma realidade tão difícil e dolorida,
rirmos dela e daí retomarmos a festa da democracia, onde não cabe
mitos, mas sim a alegria como forma de vencer o medo.

Referências:
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi. Brasília: Editora da UnB;
São Paulo: Hucitec, 1993.
_____. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Trad. Aurora Fornoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto
Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de
Andrade. São Paulo: Hucitec; Annablume, 2002.
COSTA FILHO, Francisco Carlos. A estética do grotesco como
meio para potencializar a expressividade no corpo cênico. 2019.
125 f., il. Dissertação (Mestrado em Arte) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2019.
GALEANO, Eduardo. As Palavras Andantes. Porto Alegre:
LP&M, 1993.
PEREIRA, Merval. As coxas de Lula. In Acesso em: 06/09/2021.
ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.

920
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Minha vida, meus heróis!

Grace Kelly Lopes Lacerda


Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS
gracelacerdaa@gmail.com

Camila Caracelli Scherma


Universidade Federal da Fronteira Sul
camila.scherma@uffs.edu.br

O herói recém-nascido é como o jovem sol, que ao emergir da água é


obstruído pelas nuvens em sua subida, mas que ao final sobrepuja todos os
obstáculos. (RANK, 2015)

A educação, ao longo da história da humanidade, tem tido


importância singular, seja para auxiliar em processos político-
sociais emancipadores ou para a manutenção de relações sociais e
políticas de dominação e exploração, afetando grandes
contingentes populacionais mundo afora. Se a educação adquire
centralidade na vida das pessoas, se ela ocupa um lugar de
destaque na vida social e política de todos nós, é oportuno e
necessário que a tomemos também como objeto de cotejo e
problematização, de modo a entendê-la na sua completude.
Para Brandão (2006, p. 7),

921
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ninguém escapa da Educação. Em casa, na rua, na igreja ou na


escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da
vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar.
Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias
misturamos a vida com a educação.
Mulheres e homens fazem-se nas e pelas mediações cotidianas que
se estabelecem a partir de sua inscrição econômica-social no
mundo. Nos tensionamentos, nas acomodações, nos caminhos e
descaminhos, nas escolhas e impossibilidades de escolher vão se
constituindo, vão se compondo. O tipo e o modo de educação que
acessamos vai moldando e tingindo os pedaços da vida e
imprimindo em cada um e uma, na sua cronotopia, singularidades
irrepetíveis.
Desde os primórdios da civilização aos dias atuais lança-se mão de
variadas formas e meios para transmitir o legado cultural e
científico para as novas gerações. Com a intensificação da
utilização de sofisticados meios de comunicação e informação de
alcance global, amplia-se substancialmente, a difusão de tipos de
cultura, de tipos de informação, de tipos de conhecimentos, de
tipos e ideários societais.
Nesse contexto e como recurso e expressão discursiva destacamos
a presença do super-herói - signo ideológico -, que faz parte do
imaginário humano e presente em diferentes faixas etárias,
especialmente, na primeira infância. O super-herói de carne e osso,
o super-herói da ficção, o herói nacional, o herói do povo com ou
sem superpoderes, é presença em diversas formas discursivas,
produzindo distintos sentidos no público afetado. Esse signo
ideológico, cheio de sentidos, tem origem ainda nas civilizações da
Antiguidade, carrega consigo a ideologia do imaginário humano a
partir de um ser imagético-ficcional, por vezes, e de carne e osso,
por outras vezes. Para Rank (2015, p. 15-16), “As extensas
investigações de novos pesquisadores demonstram que são os
babilônios e não os hindus que devem ser vistos como a pátria
originária dos mitos, e que, aliás, as narrativas míticas não

922
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

irradiaram a partir de um único ponto, mas, ao contrário, viajaram


indeterminadamente por sobre toda a terra habitada”.
A tradição do herói que é tão antiga quanto a nossa existência, teve
início no imaginário e nas representações psíquicas dos sonhos
humanos, transposto para o sistema astrológico, depois para
lendas, contos de fada, histórias, mitos, discursados a partir do
relato do sobrevivente, o “vencedor”, personificado na figura do
herói. Um homem ou mulher solitário (a) que teve na heroificação
a projeção de algo muito maior que ele, simbolizando a imagem do
poder, o poder da superação, capaz de lutar contra as condições
adversas da vida. O conceito contemporâneo de mito traz as marcas
do tempo, contudo, passou por processos de atualização.
[...] Na verdade as pessoas sempre mantiveram algum interesse
pelos de sua espécie, muitas vezes orientando seu comportamento
pelos exemplos em que se espelham. Antes de tudo, porém, o herói
tem uma finalidade moralista, servindo para avaliar e dirigir
capacidades e condutas [...]. Deste modo, o herói aparece como
responsável pela indicação dos caminhos da humanidade e dos
papéis que são destinados aos demais, distribuindo ensinamentos e
pregando sua moral num espaço onde é perigoso entrar e quase
sempre proibido especular ou ser indiscreto. O herói é herói e ponto
final. Discutir seu papel é pôr em questão a Pátria, a Religião, as
Forças Armadas, a Revolução, o Partido – enfim, todas essas coisas
sagradas e intocáveis, respeitosamente grafados com inicial
maiúscula e inscritas, com força de heróis, na consciência das
pessoas. Menos na consciência dos heróis, evidentemente, que só
viraram heróis por simbolizarem a luta contra as imposições que os
oprimiam. (MICELI, 1991, p. 10-11)
Nas histórias míticas encontram-se processos de estigmatização,
sofrimento e subvalorização, energias e capacidades de
interpelação, superação de limites. Há forte presença do sigo da
invencibilidade contra as forças negativas e impedimentos e da
constituição de um tipo ideal – indivíduos e mentes perfilados – e
conformados a um ideário de resignação, de fidelidade, de respeito

923
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

e engajamento, de sucesso, de forças do bem, da resiliência e


produtividade.
O herói como signo ideológico surge a partir da projeção de sentido
e significado que se tem do objeto ou pessoa em construção,
pensados para comover, distrair ou motivar, e quase sempre
objetivam a movimentação de um poder hegemônico e ideológico
entre, instituições, governos e/ou empresas privadas. Para
Volóchinov,
Qualquer produto ideológico, não é apenas uma parte da realidade
natural e social – seja ele um corpo físico, um instrumento de
produção ou um produto de consumo – mas também, ao contrário
desses fenômenos, reflete e refrata outra realidade que se encontra
fora dos seus limites. Tudo o que é ideológico possui uma
significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou
seja, ele é um signo. Onde não há signo também não há ideologia.
Pode-se dizer que um corpo equivale a si próprio: ele não significa
nada e coincide inteiramente com a sua realidade única e natural.
Nesse caso, não temos como falar de ideologia. Entretanto, qualquer
corpo físico pode ser percebido como a imagem de algo...
(VOLÓCHINOV, 2018, p. 91-92).
Assim como antigamente – o mito do herói, super-herói – exerce
um poder não apenas físico, mas discursivo importante na
sociedade, capaz de manipular e dissuadir. Com o processo da
globalização e o poder das plataformas digitais e mídias sociais, as
características e as manifestações discursivas impregnadas de
conceito de valor correm o mundo em uma velocidade sem
precedentes na história, constituindo e performando corpos e
mentes. “As ‘provas’, os sofrimentos, as peregrinações do
candidato à iniciação sobrevivem na narrativa dos sofrimentos e
dos obstáculos que o herói épico ou dramático tem de suportar
antes de alcançar o seu objetivo (Ulisses, Enéias, Parsifal, certos
personagens de Shakespeare, Fausto)” (ELIADE, 1988, p. 29).
O mito constitui-se em uma fala, porém não é qualquer fala, há
intenções estabelecidas,

924
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A semiologia ensinou-nos que a função do mito é transformar uma


intenção histórica em natureza, uma contingência em eternidade.
Ora, este processo é o próprio processo da ideologia burguesa. Se a
nossa sociedade é objetivamente o campo privilegiado das
significações místicas, é porque o mito é formalmente o instrumento
mais apropriado para a inversão ideológica que a define: a todos os
níveis de comunicação humana, o mito realiza a inversão da anti-
physis em pseudo-physis. (BARTHES, 1988, p. 131)
E assim, os mitos, os heróis, os super-heróis se apresentam ao longo
dos tempos. É importante ter em conta que esses vão se se
constituindo em lugares comuns e do cotidiano, nas e pelas
mediações que se produzem e são produzidas em cronotopias
singulares e irrepetíveis, nas palavras e contrapalavras, nos
embates e disputas discursivas que acompanham homens e
mulheres nas suas experiências existenciais.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Para uma Filosofia do Ato Responsável. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BARTHES, Roland. O Mito hoje. In: AVALON, Manville. (Org). O
poder do Mito. São Paulo: Martin Claret Ltda, 1988. p. 105-136.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. 48ª. reimpr. da
1ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.
ELIADE, Mirceia. O poder do mito. A função dos mitos. In:
AVALON, Manville. (Org). O poder do Mito. São Paulo: Martin
Claret Ltda, 1988. p. 9-31.
MICELI, Paulo. O mito do herói nacional. 3ª. ed. São Paulo:
Contexto, 1991.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

RANK, Otto. O mito do nascimento do herói: uma interpretação


psicológica dos mitos. Tradução e notas de Constantino Luz de
Medeiros. São Paulo: Cinebook, 2015.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da
Linguagem. São Paulo: Editora 34, 2018.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Molas no teto

Yuri Marx Silva Milagres


UFF
yuri_marx_15@hotmail.com

Clara Barenco de Mello Lacerda


Universidade Federal de Juiz de Fora
clarabarenco@gmail.com

- O que tanto teme?


- Eu temo tudo, e nada. Me sinto um gigante forte e um cristal frágil.
Forte enquanto tenho controle, e tudo muda de novo, aí me sinto
frágil.
-E não são esses os elementos que compõem toda a existência?
-
Heráclito nos disse “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo
rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as
mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”. Ele queria nos
mostrar como a vida é composta por oposições, que,
dialeticamente, estabelecem batalhas entre contrários. Realmente o
rio, o ser humano, os animais, o céu, a terra estão em constante
mudança e nada entra em contato com o outro da mesma forma
que fez no passado. Todo movimento é novo, são novos
agenciamentos e novas conexões, entre velhas carcaças do que se

927
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

passou. Porém esse movimento não se dá somente na oposição


entre seres e elementos, mas, principalmente, na conjunção e na
mistura.
O mundo é caótico. Quem ordena o mundo somos nós mesmos
envolvidos no medo constante de perdemos o controle. José Carlos
Rodrigues em seu livro, Tabu do Corpo, nos traz a questão da
“noção de ordem”, que o ser humano tem a necessidade de
ritualizar, classificar, encantar, ordenar, entre outros, o mundo.
Dessa forma, os seres humanos produzem uma certa ilusão de
controle que os dão a segurança necessária para continuar a viver.
Sendo, essa noção, uma junção entre a observação da natureza e
dos aspectos culturais que rodeiam determinada sociedade.
Na nossa sociedade atual, influenciados pela força do movimento
da ciência moderna, tendemos a absorver o conhecimento do
mundo e, logo mais, colocá-lo em caixinhas separativas. Cada caixa
bem etiquetada, para não ocorrer surpresas. A classificação é uma
forma poderosa de controle, mas também uma forma
extremamente vazia de olhar o mundo. O mundo vira estático
quando se fragmenta, nada se conecta com nada e, portanto, se
priva de ver os grandes agenciamentos do devir da vida.
-
- Qual seu objetivo na vida, garoto?
- Ser feliz.
- É uma resposta razoável, mas me parece um tanto estática.
- Mas o que quer dizer essa palavra?
- Estático é aquilo que permanece parado, em um só estado.
- Aaah, entendi! É igual quando você fica quando não tira os olhos
do celular?
-

928
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Para além das estruturas sociais, biológicas e psíquicas, a vida é


feita de escolhas. Há quem viva como uma rolha no oceano,
deixando o seu futuro totalmente a sorte do destino e do contexto
que está inserido. No cenário atual, isso se traduz em hábitos
insustentáveis individual e coletivamente, numa cultura do
esgotamento, como traz Byung-Chul Han em sua obra Sociedade
do cansaço. Questionar a extinção de recursos físicos, mentais e
naturais, é um imperativo, e para a superação desta hecatombe
anunciada, as manifestações subversivas têm se tornado
fundamentais, sejam pelo viés artístico, político ou prático, e que
muitas vezes se atravessam.

Timekeeper 2016 (Rose). Fotografia: Sarah Sze Studio


Link de
acesso: https://www.theguardian.com/artanddesign/2020/oct/26/sculptor
-sarah-sze-interview-planet-pandemic-night-into-day

929
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A artista Sarah Sze é uma artista contemporânea que trabalha com


instalações montadas como esculturas gigantes e espaços
imersivos. A artista explora materiais do cotidiano e aparelhos
tecnológicos para criar novos mundos. A artista diz trabalhar duas
palavras em seus trabalhos: valorizar e oscilar. A valorização é
encontrada ao procurar objetos que já foram consumidos,
misturados ou jogados fora. Procura dar vida ao seu trabalho
através daqueles Sarah Sze, que são considerados lixo. A oscilação
vem na rede de trocas que ela observa no mundo, a transformação
química entre gases, líquidos e sólidos. A artista procura
representar, através da criação desses novos mundos, “a
fragilidade do equilíbrio e o desejo constante de criar estabilidades
e um senso de pertencimento que faça um recorte narrativo.”
A artista nos mostra a possibilidade da criação de um mundo
híbrido, composto por uma série de movimentos e caminhos. Esses
mundos oscilam entre ordens e desordens, movimentos e paradas,
sons e silêncios, imagens e ausências. Formando espaços
fantásticos, onde os significados nunca são uma só coisa.

Mais uma obra da artista:

930
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

https://www.youtube.com/watch?v=_ZZDdGhn8XY
-
A busca por felicidade em nossa sociedade é constante. Uns a
procuram no dinheiro, outros no amor, outros nas amizades, outros
nos estudos. Porém o que buscam além de tudo é uma felicidade
constante. Não se admite oscilações, a tristeza se quer expurgada.
Mas a natureza é mudança. É a mudança de um estado para outro
que existe sem cessar. E a gente é natureza, é da mudança e
oscilação das condições naturais que fomos criados. Somos
mistura. A felicidade é parte de nós, mas as tristezas também.
Fixos nas partes prazerosas, tentamos ir contra a ordem natural das
coisas, nos congelar no tempo, sentir o prazer para além do
momento dele mesmo. Nos agarramos tão forte que ficamos no
passado, esquecendo que podemos reescrever em cima
dele. Jogamos fora tudo que não nos serve no agora. Os processos
se tornam dolorosos. É o fast-food, a rápida comunicação, as
notificações gritantes, os outdoors que tampam a vista.
As cartas estão na mesa, se tornarão castelos, serão incendiadas ou
remetidas para os poderosos só o tempo dirá. Fato é, que este
modelo de vida baseado em filtros de instragram, vídeos de Tik
Tok e grupos de Whatsapp está estabelecido com rigidez e bases
sólidas. Como bagunçar esse mundo? Como se fazer mistura onde
se exige fixidez? Deveríamos olhar para Sarah Sze como quem
busca o segredo de remontar os próprios mundos.

Do que é feito a vida?


De amor e de pão
Do céu e de chão
Do eu e de nós

931
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Qual é a força motriz?


Esperança e a água
A comida e a rede
O querer ser feliz

Onde termina a morte?


No começa da vida
Em uma seda enrustida
No deixar de ser forte

Aqui jaz o eu do futuro


O desejo e o medo
A mudança vem cedo
Antes mesmo de vir

Reflexos de um vão entre o vento

Referências:
Rodrigues, J. C. (1975). Tabu do Corpo. Rio de Janeiro: Edições
Achiamé.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo
Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.
SZE, Sarah Fondation Cartier pour l ’ art contemporain. Twice
Twilight. Youtube, 15/12/2020. Disponível em: . Acesso em:
10/09/2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Morte e renascimento, ou a metáfora da formação do discurso de


resistência: Ensaio em 3 atos

Renata Helena Pin Pucci


Universidade Metodista de Piracicaba
renata_pucci@hotmail.com

Ato 1 – Que grotesco?


Na Apresentação do livro “A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais”, Mikhail Bakhtin
(2010, p. 27) apresenta uma caracterização do “grotesco”, em
especial, do “realismo grotesco”, referindo-se “ao tipo específico de
imagens da cultura cômica popular em todas as suas
manifestações”. Ainda que também discorra sobre características
do grotesco medieval e renascentista e do grotesco romântico e
modernista, assume que a essência estética do grotesco é
devidamente colocada e resolvida no contexto da cultura popular
da Idade Média e da Literatura do Renascimento. Assim, é nesse
âmbito que o grotesco será referendado aqui.
Nesse grotesco caracterizado por Bakhtin, encontra-se uma
unidade que é constituída por elementos distintos, por vezes
contraditórios, mas que compõe um todo íntegro. Ou seja, nas
imagens da cultura cômica popular: “O cósmico, o social e o
corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e
indivisível” (BAKHTIN, 2010, p. 17). O autor explica que, naquele
momento,

933
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O princípio material e corporal é percebido como universal e popular, e


como tal opõe-se a toda separação das raízes materiais e corporais do
mundo, a todo isolamento e confinamento em si mesmo, a todo caráter
ideal abstrato, a toda pretensão de significação destacada e independente
da terra e do corpo. (BAKHTIN, 2010, p. 17, grifos do autor).
Dentro desta concepção de unidade corporal/cósmica, no realismo
grotesco e na paródia medieval, ocorre a degradação do sublime, o
rebaixamento, sendo compreendido os elementos alto e baixo, no
aspecto cósmico, como céu e terra, esta compreendida como
absorção e renascimento, representada pelo ventre e o seio
maternos e, no aspecto corporal, representados pela cabeça e pelos
órgãos genitais. Neste esteio, “rebaixar consiste em aproximar da
terra, entrar em comunhão com a terra concebida como princípio
de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada,
amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida
em seguida, mais e melhor” (BAKHTIN, 2010, p. 19, grifos do
autor). Essa degradação conferida pelo grotesco não é, assim,
somente negativa, mas também positiva e regeneradora, há uma
ambivalência implícita.
Sendo assim, a imagem grotesca caracteriza-se pela incompletude,
como um fenômeno em transformação, e pela ambivalência: o que
nasce e o que morre, o antigo e o novo, o princípio e o fim de um
ser em processo. São imagens que se distanciam da estética clássica
e, por isso mesmo, consideradas horrendas, disformes, não
depuradas das “escórias do nascimento e desenvolvimento”, como
as imagens clássicas “do corpo humano acabado, perfeito e em
plena maturidade” (BAKHTIN, 2010, p. 22).

934
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fig. 1: Mulher grávida. Terracota de Kertch – Crimeia. Séc. IV a.C.,


Museu do Louvre. Disponível em: . Acessado em: 02 set. 2021.

935
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um


grotesco ambivalente: é a morte prenhe, a morte que dá à luz. Não há
nada perfeito, nada estável ou calmo no corpo dessas velhas. Combinam-
se ali o corpo decomposto e disforme da velhice e o corpo ainda
embrionário da nova vida. A vida se revela no seu processo ambivalente,
interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem completo, é a
quintessência da incompletude.” (BAKHTIN, 2010, p. 23)
A noção de incompletude e ambivalência do realismo grotesco nos
provoca na direção de uma concepção muito particular para pensar o ser
no mundo, íntegro, não se separando o corpo da vida corporal, o material
do abstrato, a pessoa do social, opondo-se a todo isolamento e
confinamento em si mesmo. Levando-nos à compreensão que em cada
sujeito e suas relações, “a vida se revela no seu processo ambivalente,
interiormente contraditório” (BAKHTIN, 2010, p. 23).

Ato 2 – O grotesco nas vozes


Partindo da elaboração de que o grotesco é incompletude e ambivalência,
façamos um exercício de pensar as vozes, os discursos de sujeitos sociais.
Pensemos em incompletude, neste momento, como o sujeito que, para
Bakhtin (2006), depende do outro, das relações alteritárias, que lhe dê
acabamento, “e que a demanda de completude – o movimento em direção
ao outro – será sempre um movimento que não produz solução, no sentido
de que o excedente de visão permanecerá produzindo novos acabamentos
a que o eu não tem acesso” (GERALDI, 2010, p. 143, grifos do autor), do
mesmo modo, os discursos são incompletos e tem seus acabamentos no
âmbito social.
Vamos entender por ambivalência as contradições intrínsecas dos
discursos, ou sua natureza constitutivamente heterogênea. Fiorin (2011, p.
40), partindo do dialogismo bakhtiniano, explica que “um discurso deixa
entrever seu direito e seu avesso. Nele, estão presentes pelo menos duas
vozes, a que é afirmada e aquela em oposição à qual se constrói”. Assim,
a voz que clama pela justiça se opõe à injusta, a voz que defende a
educação se opões àquela que a ataca e restringe, a voz que liberta se opõe
à que oprime.

936
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fig. 2 - Discursos e contradiscursos:

Ato 3 – A renovação dos discursos


Usamos a interpretação de Bakhtin (2010, p. 19) à imagem grotesca – vida
e morte: “mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor” - como
metáfora para o processo dialógico de construção dos discursos de
resistência que são construídos a partir de (contra) discursos de ódio.
Na perspectiva do Círculo de Bakhtin, o discurso (todo enunciado) que
emerge em determinado contexto histórico e social, “não pode deixar de
tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência
ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de
ser participante ativo do diálogo social” (BAKHTIN, 2010a, p. 86).
Assim, todo enunciado é ligado aos elos que o precedem e também aos
que lhe sucedem na cadeia da comunicação verbal.
Em um escopo teórico em que todo discurso se orienta para o já-dito e é
orientado para a resposta, temos que qualquer ideia ou expressão do
sujeito surge e se forma no processo constante de interação e luta com o
pensamento dos outros, por sua orientação dialógica “em todos os seus
caminhos até o objeto, em todas as direções o discurso se encontra com o
discurso de outrem e não pode deixar de participar com ele de uma
interação viva e tensa” (BAKHTIN, 2010a, p. 88).
Bakhtin percebe a heterogeneidade constitutiva dos discursos que se
apresentam como a articulação de múltiplas vozes e, segundo Faraco

937
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(2009, p. 58), interessa ao autor “a dialogização das vozes, isto é, o


encontro sociocultural dessas vozes e a dinâmica que aí se estabelece: elas
vão se apoiar mutuamente, se interiluminar, se contrapor parcial ou
totalmente, se diluir em outras, se parodiar, se arremedar, polemizar
velada ou explicitamente [...]”.
À guisa de um fechamento, no processo vívido, dialógico, ideológico,
histórico e social de constituição dos discursos, ocorre a elaboração das
contrapalavras, que respondem aos discursos de ódio, dando a eles
acabamento: concordam com eles, polemizam, discordam etc., criando,
neste processo, a possibilidade da ressignificação destes, da insurgência
do discurso de resistência. Voltando à metáfora da imagem grotesca, que
congrega vida e morte, novo e velho, degradação e renascimento, o
rebaixamento do discurso de ódio pode semear o discurso que o ‘absorve’
e o rechaça: as vozes de resistência. Os discursos de ódio, nesta
perspectiva, têm na sua morte o renascimento, a renovação e, então, pelo
discurso, renovam-se as forças de resistência, a militância, a vigilância.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec,
2010.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo:
Hucitec, 2010a.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
FIORIN, J. L. Categoria de análise em Bakhtin In: PAULA, L.;
STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: Diálogos In Possíveis.
Campinas: Mercado de Letras, 2011, v.2, p. 53-88.
GERALDI, J. W. Ancoragem. Estudos Bakhtinianos. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2010.

I: Disponível em: https://istoe.com.br/chefe-de-fundacao-


palmares-fala-em-escravidao-benefica-para-descendentes/.
Acessado em: 03 set. 2021.

938
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

II: Disponível em: https://www.ifb.edu.br/reitori/25457-nao-basta-


ter-uma-educacao-nao-racista-ela-tem-de-ser-antirracista.
Acessado em: 03 set. 2021.
III: Disponível em:
https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/08/10/ministro-da-
educacao-defende-que-universidade-seja-para-poucos.ghtml.
Acessado em: 03 set. 2021.
IV: Disponível em:
https://coalizaonegrapordireitos.org.br/2021/08/11/nota-coalizao-
negra-milton-ribeiro-ministro-educacao/. Acessado em: 03 set.
2021.
V: Disponível em: https://istoe.com.br/frases-de-bolsonaro-o-
candidato-que-despreza-as-minorias/. Acessado em: 03 set. 2021.
VI: Disponível em: https://jornalnoroeste.com/pagina/noroeste-
revista-2/a-importancia-da-liberdade-religiosa. Acessado em: 03
set. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Morte e vida: entre a validade objetiva indiferente e a unicidade


irrepetível no encontro com o corpo grotesco

Camila Caracelli Scherma


Universidade Federal da Fronteira Sul
camila.scherma@uffs.edu.br

O jogo entre uma validade objetiva, indiferente, abstrata, como valor em


si mesmo, como valor técnico, e a unicidade irrepetível da tomada de
posição, a unidade singular da existência de cada um, a singularidade do
ato, da diferença não-indiferente, é o que move este texto. É um relato, a
partir do meu lugar, da minha vivência, na relação com o mundo objetivo,
do valor técnico e formal.
Neste relato, pensado a partir da correlação de forças que impõem uma
objetividade geral, abstrata e anônima e forças que tensionam essa
realidade puramente objetiva abrindo a possibilidade da instauração de
uma relação não-indiferente, enquanto coenvolvimento concreto, com a
vida e a morte de sujeitos concretos. Aqui, narro dois acontecimentos de
morte e vida, que me mostraram a potência de se dar “um rosto para um
evento de outra maneira anônimo” (PONZIO, 2010, p. 26), diante da
possibilidade (e até mesmo necessidade) de escolher entre a morte e a vida.
Começo pela vivência da morte de meu pai, que teve sua existência
encerrada em decorrência de um câncer, aos 72 anos. Cuidei dele ao longo
de todo o processo do tratamento e estive junto dele até sua última
respiração. Dias antes desse momento, ao levá-lo, pela última vez, ao
pronto atendimento de um hospital público, tive de “entregá-lo” à
enfermagem sem poder acompanhá-lo por conta das regras estabelecidas
pela instituição de saúde. No momento dessa “entrega”, meu pai, ainda
consciente (embora um pouco confuso em função de seu estado de saúde),
olhou pra mim e me disse “Filha, você não está vendo que estão me
levando? Faz alguma coisa!”. Nesse momento, ele foi retirado da minha
presença, e perdemos contato visual. Argumentei, insisti, mobilizei os

940
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fatos, seu estado de saúde, a doença avançada, e continuei sem autorização


para vê-lo. Fiquei na sala de espera, com minha mãe e meu marido. Sem
notícia do meu pai. Esperando. Algum tempo depois, houve a troca de
turno do corpo médico e da enfermagem. Nesse momento, um jovem
médico chama pelo “acompanhante do Sr. Waldomiro”, meu pai. Fui até
ele, que me deu notícias do meu pai, do estado dele, do que estava sendo
feito para atendê-lo e para cuidar dele. Aproveitei a oportunidade e fiz
novamente o pedido para ver meu pai e estar com ele ali. A resposta do
médico para mim foi que, ali, na emergência, na sala em que meu pai
estava, não era possível, de acordo com o regramento. E me disse que,
algumas horas mais tarde, meu pai seria transferido para o quarto e eu
poderia estar com ele. Dirigi, ainda mais uma pergunta ao médico: “Ele
ainda estará consciente?”. Seu olhar baixou. Pensou. Em seguida, me
respondeu: “Pode entrar. Mas não será possível ficar por muito tempo”.
Entrei. Vi meu pai, deitado numa cama hospitalar. Com alguns aparelhos
conectados ao seu corpo. Meu pai me olhou fundo nos olhos: “Filha, que
bom que você chegou! Precisava muito ver você.” Ficamos alguns
minutos de mãos dadas e nos olhando. Minutos depois, pediram que eu
saísse da sala. Horas depois, meu pai foi transferido para o quarto e lá pude
estar com ele. Mas já chegou sem consciência e não abriu mais os olhos.
Foram ainda 4 dias de vida, mas sem poder falar com a gente, e nem nos
olhar.
A regra é genérica, abstratamente determinada, lida com o geral, com um
valor, muitas vezes, igual a si mesmo. Contudo, quando “o mundo em que
a vida é transformada em objeto e situa a identidade sexual, étnica,
nacional, profissional, de status social, em um setor determinado do
trabalho, da cultura, da geografia política, etc.” (PONZIO, 2010, p.21) e o
“mundo vivido como singularidade, no mundo da vivência única, que cada
um se encontra quando conhece, pensa, atua e decide” (PONZIO, 2010,
p.21) se encontram e se unificam no “evento único do ato singular,
participativo, não indiferente” (PONZIO, 2010, p.21), esse encontro
possibilita a “participação do singular”, da vivência única e irrepetível, a
partir do valor único, de uma pessoa única. A regra genérica não me
permitiu entrar para ver meu pai, mas o ato responsável do médico, se
colocando na relação entre a regra geral e a minha existência única e
irrepetível – de filha que queria olhar mais uma vez nos olhos do pai e
apertar mais uma vez (a última) sua mão ainda forte – esse ato unificou os
mundos oficial e não-oficial, o mundo da vida transformada em objeto e o
mundo vivido, da vivência única.

941
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Outra vivência que trago aqui é a da gestação e nascimento de meu filho,


meu primeiro (e único) filho. Grávida pela primeira vez já aos quarenta
anos de idade, no início do segundo trimestre da gestação, tive algumas
complicações. Mais uma vez, me dirigi ao pronto atendimento de um
hospital, onde fiquei alguns dias internada para investigar as causas do
quadro que estava apresentando. A médica, que acompanhou toda minha
gestação desde o início, tinha algumas hipóteses que queria confirmar.
Para tanto, solicitou um conjunto de exames. Alguns deles não foram
autorizadas pelo Plano de Saúde e, por isso, precisei realizá-los à parte e
assinei alguns documentos assumindo esses custos. Minha questão aqui
não diz respeito aos custos financeiros, mas, sobretudo, aos sentidos que
fui compreendendo ao longo desse processo. A justificativa para a não-
autorização de alguns desses exames pelo Plano de Saúde não foi
expressamente dita, mas foi possível compreender pelas camadas de
sentidos durante os diálogos: esses exames são autorizados pelo Plano, de
forma geral, para investigar as causas de abortos já sofridos pelas
pacientes. No meu caso, não tinha sofrido um aborto; minha médica estava
trabalhando de modo preventivo. O resultado dos exames chegaram,
alguns deram positivo e confirmaram uma das hipóteses da médica, que
iniciou o tratamento imediatamente após a confirmação. O tratamento se
estendeu até a explosão de vida de meu filho, em seu nascimento, numa
manhã do mês de agosto.
Novamente, ao construir compreensões sobre essa vivência –
compreensões essas que não se deram naquele momento mesmo em que
tudo acontecia, mas que foram se constituindo ao longo do tempo –, vejo
o conteúdo de uma conduta profissional não tomado abstratamente, como
universalmente válido, mas um conteúdo que se deu na correlação com o
lugar singular de uma existência única. Não se esperou para investigar
uma morte ocorrida, mas para preservar uma vida, única, singular, e
irrepetível.
Bakhtin, como nos lembra Ponzio (2010), discute essa problemática da
unificação do mundo em que as coisas existem genericamente, como
objetos – um mundo que apaga as diferenças – e do mundo vivido – da
existência singular, do evento único, da participação não-indiferente – já
desde seu primeiro escrito publicado em 1919. Nesse primeiro texto,
Bakhtin examina a relação entre a arte e a vida. E, para Bakhtin, ainda de
acordo com Ponzio (2010, p.21), “A ciência, a arte e a vida adquirem
unidade somente na pessoa que as incorpora na sua unidade”.
Trata-se do encontro, de uma dupla responsabilidade:

942
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[…] a “responsabilidade especial”, isto é, a responsabilidade que


decorre da pertença a um todo, relativa a um determinado setor da
cultura, a um determinado conteúdo, a um certo papel e função, e,
portanto, uma responsabilidade delimitada, definida, referida à
identidade reiterável do indivíduo objetivo e intercambiável; e, de
outra parte, a “responsabilidade moral”, uma “responsabilidade
absoluta”, sem limite, sem álibi, sem desculpa, que por si só torna
único, irrepetível o ato, enquanto responsabilidade não transferível
do indivíduo. O ato é por isso, diz Bakhtin, “Um Jano bifronte”,
orientado em duas direções diferentes: a singularidade irrepetível, e
a unidade objetiva, abstrata. (PONZIO, 2010, p.21).
A dupla responsabilidade afasta a ligação mecânica entre esses mundos e
afasta também o valor igual a si mesmo (A = A), o valor universalmente
aceito como válido, posto que entra na relação a vivência única de um
sujeito que conhece, pensa, age, decide, escuta e responde. E essa relação
não se dá somente no campo teórico, mas se dá na vida mesmo enquanto
ela está sendo vivida. E altera a existência de pessoas reais, em suas
vivências reais. É a alternância da morte para a vida. Essa relação da dupla
responsabilidade na existência humana singular encarna a diferença não-
indiferente. Ponzio traz o exemplo dos sentidos da morte na introdução do
livro Para uma filosofia do ato responsável:

falando genericamente, cada homem é mortal, mas isso adquire


sentido e valor somente a partir do lugar único de uma pessoa única,
e o sentido e o valor da minha morte, da morte do outro, do meu
próximo, de cada homem real, da humanidade inteira, varia
profundamente caso a caso, já que são todos momentos diversos do
existir-evento singular. Somente para um sujeito desencarnado, não
participante, indiferente, todas as mortes podem ser
indiferentemente iguais. Mas ninguém vive, diz Bakhtin, em um
mundo em que todos são, em relação ao valor, igualmente mortais.
(PONZIO, 2010, p.20).

A indiferença, a transformação da vida em objeto, a abstração de valores


tomados como universalmente válidos são um conjunto de forças que se
distanciam da unidade da dupla responsabilidade, tratada por Bakhtin.
Ponzio (2010, p.22) afirma que “São particularmente importantes as

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

considerações de Bakhtin sobre as consequências da separação entre


validade objetiva, abstrata, indiferente e a unicidade irrepetível da tomada
de posição, da escolha”. Tomar o valor técnico e formal como valor
autônomo, “que se desenvolve segundo suas próprias leis imanentes,
adquirindo um valor por si e um poder e um domínio sobre a vida do
sujeito, uma vez que tenha perdido sua união com a viva unicidade do ato”
(PONZIO, 2010, p.22), essa cisão tem consequências diretas e profundas
na vivência singular dos sujeitos. “Tudo o que tem o valor formal e
técnico, uma vez separado da unidade singular da existência de cada um e
abandonado à vontade da lei imanente de seu desenvolvimento, pode
tornar-se algo de terrível e irromper nesta unidade singular da vida de cada
um como força irresponsável e devastadora.” (PONZIO, 2010, p.22).
Essa força devastadora de que trata Ponzio, nas vivências singulares que
relatei, são a decisão, a tomada de posição que faz a bifurcação entre a
morte e a vida. Quem nasce e quem morre. Como nasce e como morre. A
força irresponsável, bem como a força responsável irrompem não no
abstrato, mas na unidade singular da existência de uma vida encarnada, de
um corpo encarnado, que respira, que olha, que aperta as mãos dos filhos,
que nasce, que morre, que se despede, que inicia a vida. Todas essas são
ações encarnadas num corpo material.
Bakhtin, ao tratar do grotesco, olha para a obra de Rabelais e constrói
compreensões acerca do corpo grotesco, que “é um corpo em movimento”
(BAKHTIN, 2010, p.277), que “jamais está pronto nem acabado: está
sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro
corpo, além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele”
(BAKHTIN, 2010, p.277). É justamente nesse lugar de encontro do corpo
com o mundo e do mundo com o corpo que quero pensar essa fronteira.
Na obra rabelaisiana, Bakhtin examina o papel essencial que as partes e
lugares do corpo “onde se ultrapassa, atravessa os seus próprios limites”
(BAKHTIN, 2010, p.277).
Desse lugar das fronteiras do corpo, das trocas, do encontro entre o corpo
e o mundo é que se dá a potência da ambivalência.

Por isso os principais acontecimentos que afetam o corpo grotesco,


os atos do drama corporal – o comer, o beber, as necessidades
naturais (e outras excreções: transpiração, humor nasal, etc.), a
cópula, a gravidez, o parto, o crescimento, a velhice, as doenças, a
morte, a mutilação, o desmembramento, a absorção por um outro

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

corpo – efetuam-se nos limites do corpo e do mundo ou nas do corpo


antigo e do novo; em todos esses acontecimentos do drama corporal,
o começo e o fim da vida são indissoluvelmente imbricados.
(BAKHTIN, 2010, p.277)

A morte e a vida, o fim e o início de uma existência única, encarnada, se


dão também no encontro do corpo grotesco. Um corpo que extrapola, que
transborda seus próprios limites para se abrir ao mundo. O corpo grotesco
ignora os limites, ignora o corpo sem falhas, sem aberturas, fechado; ele é
aberto.
Neste breve texto, dois eventos de minha existência singular se mostraram
como um caminho de compreensão sobre os limites e as aberturas entre a
validade objetiva indiferente e a unicidade irrepetível de vidas encarnadas.
O olhar e a tomada de posição de modo limitado, fechado, direto, objetivo,
indiferente pára na superfície das relações e se ancora no álibi dos valores
genéricos; o olhar aberto, enviesado, indireto, único extrapola esses
limites da superfície que fecha e, assim como o corpo grotesco de
Rabelais, estudado por Bakhtin, nos mostra não somente aquilo que é
externo, objetivo, mas se abre como uma “forma de passagem de dupla
saída da vida em perpétua renovação, o vaso inesgotável da morte e da
concepção” (BAKHTIN, 2010, p.277).
A autorização que recebi daquele jovem médico, no plantão de um
hospital público brasileiro, mudou as últimas palavras que escutei de meu
pai. Em vez de guardar em minha memória seu olhar assustado me
pedindo ajuda, guardo comigo, na memória, seu olhar aliviado e grato pela
minha presença. Guardo também aquele aperto de mão, quente, forte,
vivo, que ganhei em nossa última conversa. Ao dar um rosto para o meu
pedido de acompanhamento do meu pai, quebrando as regras estabelecidas
por aquela casa de saúde, foi esta mudança que se deu. O olhar diferente,
sem indiferença, e a escuta ativa daquele médico me deram a oportunidade
de construir uma última lembrança bastante diversa nessa vivência da
morte de meu pai. O modo como a existência de meu pai se prolonga hoje
em minha memória é diverso, é aberto, amoroso.
O nascimento de meu filho, forte, saudável, como uma porta aberta para o
esperançar também foi possível por ter tido em meu caminho o encontro
da dupla responsabilidade, que, como o Jano bifronte, olhou para um
conjunto de valores objetivos de uma determinada esfera de atividade
humana e, ao mesmo tempo e com a mesma força, olhou também para a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

minha existência única e para a irrepetibilidade daquela vida que eu


gerava.
O fechamento deu lugar à abertura, em relações que extrapolaram a
superficialidade e responderam com a abertura para a vida em perpétua
renovação. “E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida:/ vê-la
desfiar seu fio, / que também se chama vida, / ver a fábrica que ela mesma,
/ teimosamente, se fabrica, / vê-la brotar como há pouco / em nova vida
explodida. (MELLO NETO, 2008, p.114-115).

Referências
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São
Paulo: Hucitec, 2010.
MELLO NETO, J. C. Morte e vida severina e outros poemas. Rio de
Janeiro: MEDIAfashion, 2008.
PONZIO, A. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo. In:
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do Ato responsável. [Tradução aos
cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco]. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2010.
“Arte e responsabilidade”.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

MOVIMENTO PENDULAR DIALÓGICO

Francisco Leilson da Silva


UFRN
psileilson@hotmail.com

As vozes que nos cercam se estabelecem como formadores de nossas


concepções e entendimento, assim o grotesco que no cerca define nossos
movimentos na enunciação e como nos organizamos entre vozes e
silêncios. A oscilação como base nesse movimento do falar e calar, assim
da produção dessa realidade um brincar como descreve nesse poema:
Convite
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.
As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.
Como a água do rio
que é água sempre nova.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Como cada dia


que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia?
(PAES, 1996, p. 48)

O movimento do pêndulo se organiza nessa necessidade de movimento e


trocas os sujeitos, que se organizam a través dos gêneros e enunciado. A
interação promove que o corra o movimento pendular. O discurso deve ser
produzido como elemento essencial para circulação da linguagem, que se
organizam em enunciado, assim estabelecidos em ter vozes sociais que se
efetuam nos gêneros discursivos.
O referido entendimento vem da Geografia, as pessoas que moram em
uma cidade, comumente dormem, e produzem dinheiro e circulam a
economia de uma cidade maior que promovem a possibilidade de mais
oportunidades. Assim, a relação do silêncio, a voz, o corpo que se organiza
em suas vivências e estabelece o Movimento Pendular dialógico (MPD).
Os empuxos que o impulsionam são advindos das vivências sociais.
Segundo Bakhtin (2016), os gêneros são essas estruturas que efetivam
esses movimentos são demarcadas pelos diálogos, efetivados nos
enunciados e estabelecidos entre falas e silêncios. O grotesco se estabelece
nessas vivências daquilo que me percebo e percebo aos outros nesse
processo.
Nesse entendimento, a linguagem é compreendida numa perspectiva de
totalidade, deixando à parte a ideia de um sistema linguístico abstrato e
sendo entendida como um fenômeno social fruto das interações entre os
sujeitos e diálogo interpessoal. Por isso, todo tipo de comunicação ganha
status de diálogo, na relação das conversas entre as pessoas; no decorrer
da leitura de um livro; nas mais variadas produções de comunicação.
Esse uso da língua/linguagem está diretamente relacionado à comunicação
em todas as suas formas, pois tudo que está na dimensão do uso para o
entendimento, torna-se linguagem. Por isso, a produção do texto (oral ou
escrito) se torna resultado de situações concretas que se realizam através
da manifestação do verbo, que é enunciado a partir do contexto social do
sujeito, tornando-se real expressão de quem utiliza a linguagem em sua
comunidade linguística, sendo descrita da seguinte forma:

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[...]o uso da língua se efetua em forma de enunciados (orais e


escritos, concretos e únicos “proferidos”pelos participantes de uma
ou outra esfera da atividade humana que o enunciado não se repete,
pois é um evento único (pode somente ser citado); que o
enunciado é a unida real da comunicação discursiva, pois o discurso
só pode existir na forma de enunciados; e que o estudo do enunciado
como unidade real da comunicação discursiva permite compreender
de uma maneira mais correta a natureza da unidade da língua ( a
palavra e a oração por exemplo) (RODRIGUES, 2005 ,p. 155)
Tal maneira de se conceber a linguagem e uso da língua, permite ao
indivíduo perceber a sua presença em toda parte. As relações sociais de
poder, a cultura e as próprias ações políticas são perpassadas pela
linguagem, sendo resultado da interação humana, pois vão além de mero
instrumento ou meio, como afirma Kramer (2002), produção humana
acontecida historicamente, construída nos diálogos que tem vida,
permitindo o pensar ações futuras e, até mesmo, a constituição do
consciente.

Referências
BAKHTIN, M. M. O texto na linguística na filologia e em outras ciências
humanas. In: Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo:
Editora 34, 2016.
KRAMER, S. Alfabetização leitura e escrita: formação de professores em
curso: São Paulo, Editora Ática, 2002.
PAES, J. P. Um por todos (poesia completa). São Paulo. Brasiliense, 1996.
RODRIGUES, R. H. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da
linguagem: a abordagem de Bakhtin. In: MEURER, J. L.;BONIONI
Adair, MOTTA-Roth Désirée, (Orgs). Gêneros: teorias, métodos, debates.
São Paulo: Parábola Editorial, 2005.p.152-183

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Na capoeira, a ladainha ambivalente

Denise Santos Lima


Universidade Federal Fluminense
denisesl2020@gmail.com

Quem foi que disse que falar de corpo grotesco é falar de porcarias,
bizarrices, pornografia?
Quem foi que disse que falar de riso é falar de humor satírico, destinado
unicamente à diversão?
Nessa breve escritura, pretendo trazer uma contrapalavra a essas vozes
pensando no corpo grotesco como forças de abertura, penetração e
transformação. Quando falo de “forças do corpo grotesco”, refiro-me às
forças libertárias que estão presentes no tempo contemporâneo, mais
precisamente nas manifestações da cultura popular.
Em seu livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento – O
Contexto de François Rabelais (2010), Bakhtin fala das forças ideológicas
que Rabelais apresenta, em sua obra literária Gargântua e
Pantagruel (2009), destacando sua ligação estreita com as fontes
populares. Na Idade Antiga, originou-se uma linguagem própria e de
grande riqueza do povo, cuja visão era oposta à ideia de acabamento, de
perfeição, de imutabilidade, de fechamento. Havia dualidade dos corpos,
os quais eram misturados às coisas e ao mundo. Uma linguagem bi
corporal e libertadora. Bakhtin faz uma profunda investigação na literatura
do riso popular rabelaisiano. Um riso ambivalente que “(...) exprime a
verdade sobre o mundo na sua totalidade sobre a história, sobre o homem;
é um ponto de vista particular e universal sobre o mundo, que percebe de
forma diferente, embora não menos importante (talvez mais) do que o
sério”. (BAKHTIN, 2010, p. 57). Um riso que degrada para renovar.
Morte e nascimento no mesmo lugar. Troca biológica com o mundo.
Corpo cósmico sempre se renovando. A morte que não põe fim e sim traz
renovação; rebaixa, destrona, aniquila a valência simbólica das coisas, que
não são vistas como idênticas a si mesmas (estas são julgadas com novos

950
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

olhos a partir de sua nova destinação). “Em Rabelais e nas fontes


populares a que recorre, a ‘morte’ é uma imagem ambivalente, e é por isso
que ela pode ser alegre. [...] Onde há morte, há também nascimento,
alternância renovação”. (BAKHTIN, 2010, p. 359).
É a partir desses princípios que olho para a capoeira, como uma das
imagens de riso ambivalente, uma manifestação da cultura popular. Vejo
a capoeira como uma arena da praça pública: nela, a luta está em jogo.
Luta que teve início, aqui no Brasil, no século XVI, quando os africanos
escravizados e violentados pelos senhores de engenho viram no ritmo e
nos movimentos de danças africanas uma forma camuflada de luta
corporal para se defenderem das agressões e atrocidades das quais eram
vítimas. Luta com a dança do corpo ao ritmo do berimbau, do agogô, do
atabaque e das músicas que revelavam suas culturas. Luta com a palavra
cantada. Palavra que é corpo. Corpo em resistência.
Capoeira não se joga/dança/luta sozinho. É na roda; com gente tocando os
instrumentos; com gente cantando; com gente escutando; com gente
gritando em coro; com gente dançando; todos lutando. A ladainha dá
início à festa. Todos atentos a seus versos. Eles têm religiosidade, narram
fatos sócio históricos em protesto, em denúncia ou em agradecimento aos
ensinamentos dos ancestrais. Não só os versos das ladainhas, mas também
as louvações, chulas e corridos (que acontecem durante a capoeira),
permitem que o cantador manifeste conhecimentos na/da cultura.
Uma vez perguntaram a seu Pastinha
Yê Uma vez / Perguntaram a seu Pastinha / O que era a capoeira / E ele
então, mestre velho e respeitado / Ficou um tempo calado revirando a sua
alma / Depois respondeu com calma em forma de ladainha / A capoeira /
É um jogo é um brinquedo / É se respeitar o medo / É dosar bem a
coragem / É uma luta / É manhã de mandingueiro / É um vento no veleiro/
É um lamento na senzala / É um coro arrepiado / Um berimbau bem
tocado/ É um riso de menino Capoeira / É um voo de passarinho / Bote
de cobra coral / Sentir na boca todo o gosto do perigo / É sorrir para o
seu inimigo, apertar a sua mão / É o grito de Zumbi / Recuando no
quilombo / É se levantar do tombo antes de tocar no chão / É o ódio / É a
esperança que nasce / Um tapa explodiu na face / Foi arder no coração /
É enfim / É aceitar o desafio com vontade de lutar / Capoeira é um
pequeno barquinho solto nas ondas do mar / Oi um barquinho
pequenininho solto nas ondas do mar / Um barquinho que vaga
peregrino. (Mestre Toni Vargas)

951
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

***
Às vezes me chamam de negro
Que eu venho daquela raça / Que lutou pra se libertar / Que eu venho
daquela raça / Que lutou pra se libertar / Que criou o maculelê / Que
acredita no candomblé / Que tem o sorriso no rosto / A ginga no corpo e
o samba no pé / Que tem o sorriso no rosto / A ginga no corpo e o samba
no pé / Que fez surgir de uma dança / Uma luta que pode matar /
Capoeira, arma poderosa / Luta de libertação / Brancos e negros na roda
se abraçam como irmãos. (Mestre Luiz Renato).
As coisas são relevantes e têm sua força (que, muitas vezes, estão
apagadas). É nosso dever ascender essas forças. Nesse estudo, posicionei-
me olhando para a força da ambivalência das palavras como força do
corpo grotesco. Arena de luta com a força das vozes centrípetas que
fecham os sentidos; e vozes centrífugas de abertura e libertação dos
sentidos. “Uma espécie de recreação das palavras e das coisas deixadas
em liberdade, liberadas do aperto do sentido, da lógica, da hierarquia
verbal. Ao gozar de uma total liberdade, as palavras colocam-se em
relações e numa vizinhança completamente inusitadas” (BAKHTIN,
2010, p. 371).
Retomo aqui as forças do corpo grotesco e encerro esta escritura com uma
tentativa de ladainha:
O corpo grotesco
Neste estudo, minha gente / Bakhtin traz Rabelais e a cultura popular / Pra
pensarmos em juntar / O que o novo cânone conseguiu separar / É o corpo
grotesco e o riso popular / É o corpo grotesco e a festa popular / Corpo
aberto, topográfico, misturado às coisas e ao mundo / Natureza e corpo
junto / Alimento e excremento / Injúria e louvor / Alto e o baixo em
igualdade de valor/ É o corpo grotesco e o banquete popular / É o corpo
grotesco e o vocabulário popular / Riso alegre ensinando que morrer é
renascer / Morte que não põe fim e traz renovação sim / Palavra
ambivalente, contrapalavra ao cânone vigente / É rebaixar pra
desmoralizar / É degradar pra renovar / A ladainha vai chegando ao fim
com a renovação de sentidos / poder ver o que não foi visto / aniquilando
o superficial e aquilo que, no oficial, é “bem quisto” / É penetrar pra
assolapar / É perfurar pra afetar / É penetrar pra assolapar/ É perfurar pra
afetar / É o corpo grotesco e a cultura popular / É o corpo grotesco e a
cultura popular.

952
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular Na Idade Média E No
Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7ª ed. – São Paulo:
Editora Hucitec, 2010.
Portal Educação Uol. Disponível em: . Acesso em: 6 set. 2021.
Canal YouTube Mestre Toni Vargas Oficial. Disponível em:
. Acesso em: 6 set. 2021.
Canal YouTube Mestre Luiz Renato. Disponível em:
. Acesso em: 6 set. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Narrando as ambivalências da vida e nosso processo formativo

Heloísa Helena Dias Martins Proença


Universidade Estadual de Campinas
heloisamartinsproenca@gmail.com

Fernanda Camargo Dalmatti Alves Lima


Escola Comunitária de Campinas/Professora auxiliar,
fundamental 1
fernanda.dalmatti@gmail.com

Maria Natalina de Oliveira Farias


Unicamp
natalinafarias2203@gmail.com

Do lugar que enunciamos


Quando tentamos um adentramento no diálogo, como fenômeno
humano, se nos revela algo que já poderemos dizer ser ele mesmo:
a palavra. Mas, ao encontrarmos a palavra, na análise do diálogo,
como algo mais que um meio para que ele se faça, se nos impõe
buscar, também, seus elementos constitutivos. Essa busca nos leva
a surpreender, nela, duas dimensões; ação e reflexão, de tal forma
solidárias, em uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que
em parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a outra. Não há
palavra verdadeira que não seja práxis. Daí, que dizer a palavra
verdadeira seja transformar o mundo (FREIRE, 1987).

954
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Participamos do GEPEC – Grupo de Estudos em Educação Continuada,


Faculdade de Educação da UNICAMP, Campinas/SP, especificamente em
dois dos subgrupos de estudos organizados por membros do grupo de
pesquisa: o GRUPAD – Grupo de Estudos Alfabetização em Diálogo, e o
GruBakh – Grupo de Estudos Bakhtinianos. Os dois grupos possibilitam
uma oportunidade de ocupar o espaço da universidade, problematizando
situações do cotidiano das escolas com profissionais da educação.
Atualmente, em tempos brutalmente obscuros, a participação nestes
espaços nos possibilita narrarmos o que pensamos quando estamos ex-
postas aos dizeres de outros sujeitos e ao narrar, nos expomos com todo
nosso ser. Então, quem somos, o que somos, de onde viemos e o que
queremos/desejamos anunciar, ganha um espaço de interlocução nas
reuniões dos grupos. Assim, dizemos e ao mesmo tempo enunciamos
nossos horizontes de possibilidades. Isso porque a excedência que nos
ajuda a encontrar alternativas vem dos outros que partilham conosco os
encontros suas experiências, seus saberes, mas também suas angústias e
não saberes.
Há em nós três algo que reconhecemos como comum, todas nós
precisamos desse movimento de interlocução e não nos aquietamos, nos
lançamos ao encontro de outros sujeitos e também de nós mesmas. Além
disso, nos grupos, partilhamos o exercício de narrar por escrito nossos
enunciados. Compartilhamos nossas escritas nos grupos, elas são lidas e
nos provocam a conversar. Escrever, narrar nossos acontecimentos, é
reconhecido por nós como um exercício que nos forma. Quando Natalina
escreve que
O coração dos encontros foi viver com o outro inúmeras oportunidades de
escrever narrativas no próprio acontecimento da vida, lê-las, e perceber
nelas como as palavras são orientadas da perspectiva do que lemos em
Bakhtin! Nesse semestre pandêmico, em cada encontro essas
possibilidades se exponenciavam para que pudesse compreender minhas
relações ou me desorientar cada vez mais, me distanciando ou
aproximando do que poderia ser visto. Como também me ajudou a me dar
conta de que eu sou um centro de valor, e que a partir do meu círculo sou
movente, porque o outro me orienta a esse deslocamento. O que enuncio
é valorar, e o que eu valoro? Outra descoberta importante me ajudou a me
orientar nas minhas escritas narrativas; é que quando eu as escrevo sou
lançada no próprio movimento de me movimentar nas palavras, na
arquitetônica proposta por Bakhtin, que os encontros possibilitam tanto no
material verbal, que me joga para escrever o que vivi, e o que vivi

955
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

olhando para a minha chave da memória (Maria Natalina de Oliveira


Farias - Narrativa produzida na relação com o Grubakh - 14/12/2020).
Juntas, mas também com as discussões tecidas nos encontros síncronos e
nos momentos entre encontros pelos grupos de conversas em rede social,
compreendemos que queremos compartilhar nossas narrativas na relação
com as narrativas dos outros participantes. Nós nos interessamos por seus
dizeres, cada participantes e suas vozes nos importa. E a diversidade do
campo de atuação de cada um desses membros – professores/as,
coordenadores/as, diretores/as, sujeitos que circulam na Educação Básica
e na Universidade, ajuda a construir uma rede de resistência em tempos
tão instáveis e desestabilizantes.
Os espaços em que nos deslocamos, escola e universidade, constituem-se
como uma unidade em nossos enunciados concretos, e cada vez mais,
nestes encontros, nos vemos incompletas e inconclusas; portanto, nossos
mundos se ampliam e nos levam a questionar, produzir perguntas e
problematizar as relações, principalmente aquelas mais marcadas por
espaços pouco democráticos e desumanizados, tão presentes em nosso
cotidiano. Percebemos com maior clareza o duplo jogo das palavras
ditas/lidas, em processo de escuta-resposta. Na multiplicidade de vozes, e
na equipolência das consciências nos diferentes cronotopos,
circunstanciam-se em arena os dizeres de um/uma para o outrx, e de
uns/umas para os outrxs. Nossas vozes, marcadas pelas circunstâncias do
vivido, quando reproduzem situações que desconsideram os sujeitos, não
são silenciadas, mas escutadas, problematizadas coletivamente,
reconhecemos a ambivalência da vida, em nossos próprios modos de viver
e, ao reconhecer, com cada participante, são produzidas as excedências
que tanto precisamos. Quando Fernanda narra como vai tomando
consciência das discussões e se reconhece num processo de construção,
considerando o que dialoga com os outros, nos ajuda a entender que as
ambivalências também estão em nós e é necessário reconhecê-las para
viver num mundo não binário, num mundo em que as consciências dos
sujeitos sejam consideradas em sua singularidade, de forma equipolente.
(...) No encontro anterior, com a narrativa da Gi e sobretudo a leitura do
Volóchinov (2018, p. 241 - 262) que foi muito dialógica – consegui
conectar alguns fios que estavam enrolados, mas ainda muitos estão....
Puxarei alguns, sem a pretensão de mostrar algo lógico ou coesão, aqui
dentro está tudo assim, solto, fluindo. Expresso minha gratidão ao grupo
pelas narrativas que tem corroborado nesse processo reflexivo (...) O texto
da Gisele trouxe um fio do meu emaranhado: a relação criança-estudante

956
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

com a palavra, mais especificamente o texto, algo maior, mais complexo,


com o discurso alheio e interior, na relação dela com a turma de 5º ano.
Eu continuo pensando no processo de alfabetização de crianças, entre 6 a
8, 9 anos. (...) Aquela colcha de retalhos inicialmente apresentada, como
uma imagem que trazia sentido sobre a Teoria do Discurso, hoje estampa
as minhas escolhas pedagógicas, no ato de ensinar. Tenho muitas linhas
para serem alinhavadas, em círculos com Volóchinov, Bakhtin e no/com
o GRUBAKH. (Fernanda Dalmatti Lima - narrativa produzida na relação
com o Grubakh - Junho 2020).
Narrar por escrito é um exercício para todas nós e só é possível narrar,
narrando. E, ao narrar nossas experiências que são vividas por cada uma
de nós, com o todo de nosso ser, essas narrativas revelam nossa relação
não indiferente com os dizeres da vida, formação, cotidiano escolar. A
partir da escuta das narrativas e da resposta responsiva aos nossos
outros que nos compõem nesse percurso, vamos, juntos com os/as
participantes dos grupos, sugerindo as leituras que fazemos, os autores que
lemos e vamos produzindo a nossa materialidade — narrativa — do
vivido. Esse processo formativo, coletivo, sem status de vozes, ouvindo a
todos e a cada um de maneira indiferente, é o nosso grotesco, e a vida
construída no sentido contrário do naturalizado.
Assim, reconhecemos que a nossa materialidade é singular, escrita a partir
do acontecimento único, singular e irrepetível. Juntas, compreendemos
que “toda palavra é um pequeno palco em que as ênfases sociais
multidirecionadas se confrontam e entram em embate. Uma palavra nos
lábios de um único indivíduo é um produto da interação viva das forças
sociais” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 140). E é da forma de uma palavra,
de uma única palavra, que nunca será somente uma palavra, que
apresentaremos a seguir, como nossos encontros entrelaçam o vivido com
o texto lido, sempre em relação.

FARINHA: uma única palavra, as vidas que nos formam

— Fer, vem cá ver a minha atividade.


Sou solicitada, no meio da sala cheia de crianças, todas querendo a leitura
e o meu visto, o da professora.
— Calma, Gabriel, já tô indo aí...

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Consigo chegar. Me aproximo, respeitando o distanciamento, ele faz a


leitura da lista de uma receita de bolo, respondendo à questão sobre as
misturas, conteúdo de Ciências. Gabriel lê com muita tranquilidade e
segue com o dedo:
— Bolo. Ovos. Farina. Óleo. Chocolate.
Ao terminar a leitura, ele me olha, com aquele olhar incomodado.
Pergunto:
— Gabriel, o que aconteceu? Você está com dúvida em alguma palavra?
- ele me aponta a palavra FARINA – continuo perguntando: O que você
acha que está faltando nessa palavra?
O menino do longo laudo médico, que em 2020 se apresentou tão tímido
e assustado, foi lá e colocou a letra H entra as letras N e A. Nem preciso
pedir, Gabriel coloca o dedinho e lê, com brilho nos olhos e muita
segurança:
— FARINHA.
Vibrei. Vibramos juntos. Demos um toque pandêmico de mãos e sorrimos.
Naquele momento, não imaginava o que aquilo queria me dizer.... Eu
fiquei feliz e muito satisfeita por ter incentivado e apostado em todas as
propostas de atividades a proporcionar a segurança de seus
conhecimentos, a dizer e a escrever as palavras a seu modo, sempre lhe
disse “Escreva do seu jeito”. Foi nessa aposta, da vida do Gabriel, de que
ele é capaz e no tempo dele, ele me respondeu concretamente.
Gabriel me ensinou (e ainda ensina) que estou aprendendo muito sobre as
linguagens escrita e falada. O primeiro grande acontecimento é que a
linguagem escrita não é uma só fase, é um ciclo contínuo de
alfabetização. Essa criança me levou a profundas reflexões, que a
alfabetização é um processo permanente, a palavra é viva! Entretecida de
forças sociais, históricas de seus falantes. A palavra tem vida e está em
nós, do discurso interior para o exterior. E eu professora, aprendi a ouvir
o que sai de dentro para fora.
Aprendi que as sequências didáticas têm o seu valor, atividades prontas
também, mas que só fazem sentindo se estabelecem diálogo e escuta, em
poder dizer a minha palavra ao outro, no contexto próprio, ou seja, da
vida! Nenhuma atividade é superior que a vivência. O valor de
experimentar escrever, de saborear a escrita, ora com letras a mais ora com
menos, há instabilidades no processo. E aí que mora o verdadeiro perigo,

958
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

eu, professora quero o estável, aquilo que dê base para prosseguir no


processo de ensino e aprendizagem. Porém, o instável é companhia
certeira na vida. O menor sinal de estabilidade é possível caminhar e
progredir, em círculos, em comunhão, em/na/para a vida. Sempre juntos,
nunca só.
Para o Gabriel, faltava a letra H na palavra farinha, para mim, faltava tudo
isso, todas as incertezas, apoiadas por leituras, longas trocas de áudios com
a Renata Frauendorf, a participação do Grupad, no Grubakh, no Grupo de
Terça. A grande certeza é que só a gente não chega a lugar nenhum, mas
juntos, sempre juntos, podemos ir, vagarosamente, sem pressa para o
conhecimento (...) (Narrativa Fernanda Dalmatti Lima, “Aposta na vida”,
agosto de 2021).
Quando lemos, ouvimos Fernanda ler sua narrativa, somos acionadas a
responder. Compartilhar as narrativas nos encontros possibilita a escuta, a
acolhida ao vivido e a resposta do coletivo. A professora que narra o
acontecimento de alfabetização em período pandêmico, que toma
consciência ao narrar a sua aposta grotesca pela vida, pelo inacabamento,
vibra pela letra que falta, pelo processo de interlocução no ensino e
aprendizagem.
O grotesco apresentado pela criança na palavra lida com perfeição e o
reconhecimento da criança da falta de uma letra para que a leitura se
complete na escrita, no ato de ler, produz o espetáculo da praça pública
para a professora (Bakhtin, 2020). A visão da professora formatada se
altera naquele momento. O que não pode faltar é que ela escute a criança.
A escrita perfeita, renascentista, dá lugar à escrita grotesca, com faltas. As
possibilidades de incompletude temporária na escrita são necessárias até a
estabilidade chegar, no exercício dialógico da escrita entre professora e
estudante que se constrói uma palavra outra, mas que só acontece porque
esses sujeitos estão em relação, não qualquer relação, mas uma relação
não indiferente.

E o que podemos dizer?


Uma única certeza: não temos nada a concluir. É justamente a
incompletude reconhecida por nós três e também pelos Grupos de Estudos
que participamos, alimentada pelos estudos das produções bakhtinianas e
do círculo, na relação com o campo da educação ao qual nos dedicamos,

959
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que reconhecemos o grotesco em nossas ações, buscamos jeitos outros de


considerar a vida e a experiência, com os sujeitos.
A consciência formativa e de possibilidades outras que vem em diálogos
com os subgrupos do GEPEC, a partir da escrita de narrativas como esta,
evidenciam a potência de ser e estar em grupos, de dialogar com outras
consciências, além das nossas, reconhecendo que os mundos da vida e da
cultura, em relação, vão nos ajudando a tecer compreensões que nos
formam e transformam nossos fazeres na vida e na profissão.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2020.
BAKHTIN. Mikhail. A teoria do romance I: A estilística. Tradução de
Paulo Bezerra. São Paulo: editora 34, 2015.
BAKHTIN. Mikhail. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN,
Mikhail. Estética da criação verbal. 4ª edição. Trad. Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. (p. XXXIII)
FREIRE. Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1987.
SERODIO, Liana Arrais; PRADO, Guilherme do Val Toledo. Narrativas
de professores e profissionais da educação – uma posição axiológica
outra na produção de saberes transgredientes em educação. In:
SERODIO, Liana Arrais; SOUZA, Nathan Bastos de. Saberes
transgredientes. São Carlos/SP: Pedro João editores, 2018. (p.152 e 153)
VOLOCHINOV, Valentim. A palavra na vida e a palavra na poesia.
tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo:
editora 34, 2019. (p.117).
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. São
Paulo: Editora 34, 2018.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

No corpo doente, no corpo torcido, no corpo atravessado: o


grotesco bakhtiniano em Frida Kahlo

William Brenno dos Santos Oliveira


UFRN
william.oliveira@imd.ufrn.br

Woman so weary
Spread your unbroken wings
Fly free as the swallow sings
Come to the fireworks
See the dark lady smile
She burns…
(BURN IT BLUE, 2002)

O trecho que escolhemos para abrir nossas reflexões aqui neste diminuto
cronotopo acadêmico é de uma canção. Ela aglutina-se a outras músicas
para, unidas, comporem a trilha sonora do Filme “Frida”(2002), dirigido
por Julie Taymor, produzido e lançado pela Miramax films. O trecho
selecionado fala de uma mulher cansada, uma mulher alada. Ele pede que
esta abra suas asas e venha na direção dos fogos de artifício e da senhora
da noite, pois ela a fará incendiar-se. Para nós, esse trecho é bastante
representativo das ideias que pretendemos trazer para este
ensaio/enunciado - se assim podemos chamá-lo. É, justamente, sobre a
obra dessa mulher, que viveu boa parte de seus dias sob o signo de Tânatos
e deu asas às suas opiniões e posições axiológicas, fazendo-as se
perpetuar, que almejamos falar aqui.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Para tanto, iniciaremos dissertando sobre Frida e seu corpo. Situando no


espaço e no tempo, mas, principalmente, dentro de marcas que são muito
caras para nossas pesquisas. Vejamos.

Na esteira do corpo de Frida…


O corpo de Frida Kahlo exige certa restituição permanente desde muito
cedo. Povoado por uma imaginação exagerada (no bom sentido do termo)
e uma inteligência viva e sagaz, ele recebe golpes drásticos e dramáticos
os quais definem o corpo dessa mulher por toda sua vida. Eles o dilaceram
para sempre.
No que tange às suas coordenadas, os registros históricos e geográficos do
corpo da artista mexicana, podemos dizer que estes são muito conhecidos
- inclusive em nossas pesquisas de mestrado e doutorado. Estamos falando
da vida de Frida Kahlo a partir de um enfoque específico: nasce em 1907
com espinha bífida; aparentemente, poliomielite aos seis anos de idade;
politraumatismo por acidente de trânsito aos dezoito anos, com ferida
penetrante na cavidade abdominal causada por uma barra de ferro e
fraturas múltiplas no cotovelo, coluna vertebral, pélvis, perna e pé direito;
três abortos (um espontâneo, dois cirúrgicos); alcoolismo, tabagismo,
anorexia, e uma morte, aos 47 anos (1954), sob suspeita, especulatória e
desumana, de suicício. Evidentemente, esse corpo, em idas e vindas, está
no centro de sua criação artística. Ele faz parte da arquitetônica que
pretendemos abordar nesse curto enunciado acadêmico.
Cabe aqui, também, ressaltar que o espaço mais visível no qual a pintora
mexicana do século passado elabora e reelabora as fraturas de seu corpo
é, notadamente, nos seus enunciados pictóricos. Em outras palavras, nos
seus quadros. Esses enunciados podem ser descritos por inteiro como um
grande autorretrato, um autorretrato total, múltiplo, diverso, desaforado;
ali, na tela, estão, de maneira destacada, a coluna quebrada, a cama de
hospital, a pélvis, o gesso e as faixas, as agulhas, o colete de aço, as úlceras
tróficas… Mas há também outros espaços nos quais Frida pratica a
recomposição de seu corpo enquanto a pintura converge: o espaço de uma
sexualidade inquieta e nada convencional, o espaço do diário e o espaço
epistolar, e, em especial, o espaço da consulta médica.
Passemos, agora, ao cabedal teórico que nos auxiliará na observação do
corpo de Frida Kahlo.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O palimpsesto do grotesco: cores teóricas de nossa reflexão


No que concerne à categoria teórica corpo, nos baseamos,
fundamentalmente, nos escritos de Bakhtin e seu Círculo de estudiosos,
especialmente na tese de Bakhtin: “Cultura popular da idade média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais”. Nosso olhar aqui está
atravessado por esse autor e, portanto, nosso objetivo embevecido pelas
lentes teóricas que possibilitaram nossas reflexões. Foi a teoria
bakhtiniana e suas implicações sobre corpo que nos fez enxergar, no corpo
de Frida, elementos do grotesco. E mais: nos faz perceber marcas das lutas
ideológicas das camadas sociais menos favorecidas. Principalmente
quando Bakhtin, ao criticar a definição de grotesco construída pelo teórico
alemão Schneegans, afirma:
As imagens grotescas prenhes, bicorporais permaneciam
incompreensíveis e ele (Schneegans) não via que, no mundo
grotesco em devir, as fronteiras entre coisas e fenômenos eram
traçadas de maneira completamente diferente do modo como o eram
no mundo estático da arte e da literatura da sua época. (BAKHTIN,
2010, p. 269)
O que Bakhtin faz aqui é apontar, a partir de uma análise crítica e do
diálogo com as vozes de sua época, para uma concepção do grotesco que
foge da assepsia tradicional e vigente. E isso muito nos interessa. Sabemos
que é algo muito ousado o que tentamos defender aqui. Ocorre, também,
que acreditamos no pontapé inicial no mundo acadêmico. O que seria de
nós se ninguém ousasse iniciar seus estudos ou a escrever suas
(in)conclusões iniciais sobre os temas que cercam o fazer
científico? Certamente não estaríamos aqui.
No entanto, não pretendemos dar a palavra definidora e final sobre nosso
objeto de análise. Esse é um ponto de destaque que julgamos necessário
e crucial. Nós somos, simplesmente, mais uma forma de criar
inteligibilidade sobre este corpo e sobre a materialidade verbivocovisual
das produções de Frida. E, muito provavelmente, não seremos a única.
Nem é essa nossa pretensão. Assim sendo, sigamos com a nossa
discussão.
Trazemos, para asseverar nossa posição teórica, assentada sobre os dizeres
de Bakhtin, mais uma afirmação cara para nossa análise:
[...] o corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está
pronto nem acabado: está sempre em estado de construção, de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

criação, e ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse corpo
absorve o mundo e é absorvido por ele (lembremos a imagem
grotesca do corpo no episódio do nascimento de Gargantua e da
festa da matança). (BAKHTIN, 2010, p. 277)
Nesse sentido, o gatilho que nos faz pensar o corpo de Frida como um
corpo grotesco se confirma e se mostra muito coerente, pois ela o usa o
seu próprio corpo para criar um outro que dará conta das demandas
culturais e políticas de sua época. O seu corpo se transforma e é acabado
constantemente em suas telas pelos vários co-enunciadores com os quais
ela estabelecerá relações dialógicas, através de seu corpo pictórico. Frida
dá acabamento ao seu corpo e, ao mesmo tempo, se abre para os
acabamentos do outro, quando coloca seu corpo em tela. Ela o transforma
em um corpo grotesco, pois ele está o tempo todo em constante estado de
acabamento. Em outras palavras, inacabado sempre e sempre aberto ao
olhar exotópico do outro que a constitui.
Passemos, agora, ao corpo em tela.

Em tela, o grotesco dos tempos de Frida


Nesta seção, gostaríamos de trazer, para começo de conversa, a voz do
Byung-Chul Han, no livro “A salvação do belo”, quando este afirma: O
feio, de que fizeram uso os artistas e poetas do fin de siècle, tinha algo de
abismal e demoníaco. A política surrealista do feio era provocativa e
emancipatória. Quebrava de modo radical com os moldes de percepção
tradicionais. (HAN, 2019, p.17). E é com essa afirmação que trazemos o
autorretrato de Frida, intitulado “O marxismo dará saúde aos doentes”,
uma obra de 1954.

964
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1 - O marxismo dará saúde aos doentes


Fonte: https://artsandculture.google.com

Seria muito interessante se conseguíssemos, minimamente, analisar os


mais variados aspectos presentes nesse enunciado pictórico. Porém, o
“enquadramento” dessa situação de comunicação não nos permite.
Gostaríamos de, por isso, nos deter no diálogo entre o título e alguns
elementos verbivocovisuais da obra em si. “O marxismo dará saúde aos
doentes” foi o nome que Frida escolheu para este autorretrato. Em tela,
temos a pintora (devidamente trajada com uma saia típica de seu guarda-
roupas e um de seus coletes) e seu corpo, a cabeça de Karl Marx, três
mãos, dois pássaros (um deles tem a cabeça do Tio Sam, símbolo do
capitalismo norte-americado), um cogumelo, o planeta terra, duas muletas
e uma paisagem bem surrealista.
Ocorre que, a mão que sai da cabeça de Marx estrangula o Tio Sam, numa
tentativa de sufocá-lo e, junto com ele, tirar a vida de tudo aquilo que o
ícone representa: o capitalismo. Frida, atravessando os limites da sua obra
de arte, envia uma mensagem engajada e politicamente esperançosa. O
mal-estar, a doença que se abatera sobre o mundo é o próprio capitalismo
e a cura para este mal estaria no marxismo, ou no próprio socialismo.

965
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Haveria muito mais a ser dito sobre essa ação visual, vocal e verbal dentro
do quadro de Frida. Deixaremos aqui o convite aos leitores deste
periódico: leiam a nossa tese de doutorado e promovam esse acabamento
bakhtiniano conosco.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento:
o contexto de Fronçois Rabelais. 6. Tradução de Yara Frateschi Vieira.
Ed. São Paulo: Cortez, 2010.
BURN it blue. Intérprete: Caetano Veloso. Compositor: Elliot
Goldenthal: DG World / UMG Soundtracks, 2002. CD 289 474 150-2,
Track 24. (5 min).
CASADO ALVES, M. P. O corpo grotesco nas telas de Frida Kahlo.
No prelo.
HAN, BYUNG-CHUL. A Salvação do belo. PHILIPSON, G. Salvi
(trad.) Rio de Janeiro: Vozes, 2019.
HERRERA, Hayden. Frida: a biografia. MARQUES, R. (trad.) São
Paulo: Globo, 2011.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. GRILO, S.;
AMÉRICO, E.V.(Trad.) São Paulo: Editora 34, 2017.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

NO HORIZONTE, A POSSIBILIDADE DO GROTESCO: O


TEMPO PARA A ALTERIDADE EM RESPOSTA AO
PRESENTE

Rafaela Oppermann Miranda


Universidade Federal da Fronteira Sul
rafaelaoppermannmiranda16@gmail.com

Este texto constitui um convite para calcularmos, no horizonte dos nossos


tempos, a possibilidade do grotesco pelo caminho da escuta. Assumindo
o lugar de observação da sala de aula, proponho uma resposta enviesada
ao presente a partir de palavras que me vêm endereçadas sobretudo por
Geraldi (2010a; 2010b), Moura e Miotello (2016), Tihanov (2012) e
Larrosa (2011). Meu objetivo, com estas contrapalavras, é enfocar o
reconhecimento de alteridades como condição necessária para a tessitura
da vida, memória de futuro desejada.

Da escuta, o (res)surgimento das palavras


As interações são perpassadas por histórias contidas e nem sempre
contadas. Por interesses contraditórios, por incoerências. São de um
presente que, em se fazendo, nos escapa porque sua materialidade é
inefável, contendo no aqui e agora as memórias do passado e os
horizontes de possibilidade de um futuro (GERALDI, 2010a, p. 32).
Da escuta destas palavras de Geraldi brotam minhas contrapalavras. Desse
modo, falo na medida em que escuto. Pergunto: podemos entender a
escuta como um caminho para a experiência grotesca quando à serviço do
reconhecimento de alteridades constitutivas de narrativas? A escuta
conduz à resposta.

967
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Pela linguagem é que me constituo ou, dito de outra forma, na e pela


interação com o outro. Esta acepção de linguagem como atividade
constitutiva também me vem endereça por Geraldi (2010b). Se a fundação
do eu se dá por meio da relação com o outro, pensemos, então, a identidade
como uma concessão do outro. Na relação do eu e do outro, a pesar do eu,
minha identidade se constitui. É o que nos lembram Moura e Miotello
(2016).
Eis, então, a possibilidade do grotesco na abertura do corpo interior ao
exterior. Uma consciência que se alarga para receber outra consciência. A
experiência grotesca dos nossos tempos estará na relação social, território
nascedouro de muitos embates.
A relação entre o eu e o outro é de índole dialógica e a palavra funciona
como uma espécie de elo entre os sujeitos. Ao admitir que “a palavra é
uma ponte que liga o eu e o outro. Ela apoia uma das extremidades em
mim e a outra no interlocutor” (BAKHTIN/VOLÓCHINOV, 2018, p.
205), trato da natureza dialógica desta relação. Admito a manutenção da
relação com a alteridade como vital. Ora, ainda que em algum momento a
consciência se feche em si mesma, monologizando-se, ela tende a voltar
ao contato dialógico que tece a vida. Pois que a interação é o lugar da
palavra, da incompletude, da vida.

No horizonte da sala de aula, o grotesco em potencial


Tihanov (2012) nos diz que a categoria bakhtiniana de grotesco pode ser
pensada enquanto o multiforme, o não clássico, o flexível. Cotejando esta
perspectiva com aquela oriunda do senso comum, qual seja a de que o
grotesco é o que destoa, que causa espanto e riso, podemos entender o
grotesco como descentralização, inversão de valores, atitude
revolucionária. Com Bakhtin, somos convocados a pensar um humanismo
descentralizado, um humanismo da alteridade.
Como professora (sempre) em formação, assumo o lugar de observação
da sala de aula. Parece-me que há, na arquitetônica de relações que aí se
estabelecem, um elemento de natureza grotesca a ser considerado. Este diz
respeito à linguagem da experiência, linguagem singular que busca escutar
aquilo que o outro tem a nos dizer, que é aberta a alteridade. Pois que na
sala de aula, é preciso, antes de tudo, uma linguagem de acolhimento. Uma
linguagem que receba o outro em sua totalidade e legitimidade. Uma
linguagem voltada para o diálogo, leia-se entendimento. Aqui, cabe a

968
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ressalva de que não se trata de um acolher neutro, mas antes responsivo e,


como tal, carregado de tensões.
A linguagem da experiência se caracteriza, pois, como uma linguagem de
escuta, isto é, que se dispõe a ouvir atentamente aquilo que o outro tem a
dizer e não a escutar aquilo que se pressupõe como dito. Tal linguagem de
acolhimento e de escuta é também uma linguagem para o encontro de
alteridades e, por isso mesmo, uma linguagem que se abre a experiência
no sentido mesmo que a concebe Larrosa (2011). Escuta, pois, como
tempo para a alteridade, abertura para a palavra outra, tal como defende
Ponzio (2010).
A experiência, segundo o autor espanhol (2011), é o exterior que me altera.
É o outro que me atravessa. Que age em mim. E me transforma. Desse
modo, somente na e por meio da relação com o outro que, exterior a mim,
não sou eu - a alteridade – é que se dá a experiência. Relação que,
sublinho, tem lugar em mim. E me altera. Me (trans)forma.
Da observação da sala de aula, nasce minha percepção de que a categoria
- por vezes oprimida - dos estudantes reclama escuta. Igualmente, de que
a escola necessita de uma pedagogia que, ao prezar a escuta, consagre a
experiência. Se, na palavra, articulam-se presente, passado e futuro, desse
modo, cabe ao professor agenciar a escuta como brecha libertária de
consciências.

No agora, palavras para o porvir


Se bem “toda palavra acompanha e comenta todo ato ideológico”
(BAKHTIN/VOLÓCHINOV, 2018, p. 100), também este texto pode ser
entendido como uma resposta à realidade. No horizonte destes tempos de
instabilidades e tensões acentuadas, tempos exíguos e exímios pela
afirmação de identidades e supressão de indivíduos, vislumbro a
possibilidade do grotesco considerando a escuta como fresta libertária
necessária à vida. Defendo que, na sala de aula, é preciso uma linguagem
que se abra à alteridade. Desse modo, minha contrapalavra maior é escuta.

Referências
GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010a.

969
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

______. Ancoragens – Estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João


Editores, 2010b.
LARROSA, J. Experiência e alteridades em educação. Revista Reflexão e
Ação, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 02, p 04-27, jul./dez. 2011. DOI: .
Disponível em: . Acesso em: 25 ago. 2021.
MOURA, M. I. de; MIOTELLO, V. A escuta da palavra alheia. In:
RODRIGUES, R. H.; PEREIRA, R. A (orgs.). Estudos dialógicos da
linguagem e pesquisas em linguística aplicada. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2016, p. 129-140.
PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010.
TIHANOV, G. A importância do grotesco. Bakhtiniana, São Paulo, v. 07,
n. 02, p.166-180, jul./dez. 2012. Disponível em: . Acesso em: 23 ago.
2021.
VOLÓCHINOV, V.; (BAKHTIN, M.). Marxismo e filosofia da
linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

970
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Notas iniciais sobre os referenciais de Língua Portuguesa do


município de Natal

Erica Poliana Nunes de Souza Cunha


Universidade Federal do Rio Grando do Norte
ericapolianan.s.c@gmail.com

O presente texto é parte de uma pesquisa maior de doutoramento, ainda


em fase inicial, intitulada “Múltiplas vozes: divergentes discursos para
uma base comum no currículo de língua portuguesa do município de
Natal”. A pesquisa surge a partir da inquietação de compreender as vozes
que construíram os referenciais de Língua Portuguesa do município de
Natal e a importância que esses documentos possuem na construção da
prática docente.
A instituição escolar está integrada à sociedade, fruto de uma
sistematização de conhecimento que atende às necessidades vigentes
daquele momento. Nessa perspectiva, a escola é resultado
do cronotopo na qual está inserida, pois o Estado, como definidor das
políticas educacionais, delimita aquilo que se deve estudar, como estudar
e como devem ser ensinado os conteúdos. Tendo em vista ainda a fase
inicial da pesquisa, propõe-se, para este trabalho, um estudo ainda inicial
acerca das vozes que construíram a BNCC e o escoamento de suas
orientações na construção do capítulo teórico que embasa o currículo do
município de Natal.
Para tanto, o estudo proposto aqui se ampara nos estudos bakhtinianos,
uma vez que compreende o currículo como enunciado concreto,
constituído por vozes. Insere-se na área de Linguística Aplicada e na linha
de Práticas discursivas na Contemporaneidade e faz parte da produção
científica do Grupo de Estudos Bakhtinianos (GEBAK), vinculado à
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Para isso, subdivide-se,
primeiramente, numa discussão breve acerca de enunciado concreto e da

971
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

perspectiva dialógica de linguagem que embasam esta pesquisa e, a


posteriore, uma seção com os apontamentos preliminares acerca das vozes
que embasaram os Referenciais de Língua Portuguesa do Município de
Natal.

Apontamentos teóricos sobre dialogismo e vozes sociais


Os estudos bakhtinianos se configuram como uma virada nos estudos das
ciências humanas, confirmando, desta forma, seu distanciamento da
ciência emergente da linguística (objetivismo abstrato). Os nomes que
compõem o círculo, Bakhtin, Medviédev e Volóchinov, buscaram
fundamentação em abordagens filosóficas da linguagem e das artes, indo
de encontro ao formalismo russo, que se afastou das questões filosóficas
para se dedicar às teorias de caráter estrutural e formalista. Os principais
conceitos provenientes do círculo foram discutidos a partir da literatura,
como nos textos “Discurso na vida e na Arte” e “Problemas da Poética de
Dostoiévski”. Por esse motivo, foi na literatura, segundo Renfrew (2017),
que o dialogismo recebeu sua mais plena e atraente expressão ao analisar
os textos de Dostoiévski.
Para compreender o que é dialogismo, é preciso antes passar pelo conceito
de polifonia, o qual faz analogia a um termo musical que significa “muitas
vozes”. Este conceito se opõe ao monologismo ou monológico – termo
criado por Bakhtin. Bakhtin utiliza a ideia de unidade monológica para
caracterizar aqueles romances que apresentam, em todos os elementos da
narrativa, a consciência individual do autor, ou seja, as vozes são
reduzidas à voz do criador. Por esse motivo, ele afirma que o romance
polifônico existe apenas na obra de Dostoiévski, visto que ele não se
estrutura em torno de uma consciência una e única do autor.
No romance polifônico, o personagem é ideologicamente independente,
ele é concebido como autor de uma concepção ideológica próxima, como
um todo constituído pela interação de várias outras consciências. Ou seja,
o romance não é apenas polifônico, ele é dialógico, pois as relações
dialógicas são um fenômeno bem mais amplo que meras réplicas do
diálogo cotidiano. O dialogismo descontrói a ideia do monologismo (de
consciência unitária e autônoma) ao demonstrar que a
consciência responde a algo e está, por sua vez, orientado para uma
resposta. Há a ideia da eventicidade, do acabamento, em que os sujeitos
se relacionam com o autor como um outro sujeito. De acordo com
Volóchinov (2017, p.95), a própria consciência individual está repleta de

972
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

signos. Uma consciência só passa a existir como tal na medida em que é


preenchida pelo conteúdo ideológico, isto é, pelos signos, portanto apenas
no processo de interação verbal.
O dialógico é característico de toda interação humana que se efetiva em
enunciados concretos. Por isso, em suas obras, discute-se a voz e a
corporificação, visto que a língua em uso, o discurso, é material
significativo tanto na vida externa quanto na externa. Isso porque a
consciência do sujeito está não apenas encarnada no corpo, ela está
encarnada da língua (discurso). Por esse motivo, não se deve separar o
enunciado do seu contexto concreto e imediato que lhe constituiu
dialogicamente. A BNCC assim como o currículo precisam ser vistos pela
óptica dialógica, e não apenas como uma série de procedimentos que
orientam o ensino. Como assevera Casado Alves (2016, p.165), o
enunciado é pleno de tonalidades dialógicas: tonalidade de expressão,
tonalidade de sentido, tonalidade de estilo, tonalidade de
composição. Há, nesse sentido, a representação de concepção de
linguagem que é responsiva, que representa um embate de vozes, sejam
de convergência ou divergência dos diferentes discursos.
É baseada nos pressupostos teórico-metodológicos os quais contemplam
essas disputas ideológicas, marcadas pelos signos linguísticos nas práticas
discursivas, nos mais diversos campos de atuação humana, que esta
pesquisa se constitui e aponta para uma investigação que tenha um objeto
que focalize o currículo como corporificado, visto que, na construção do
currículo, há vozes dos professores, dos alunos, dos anseios políticos que
o constituem.

Discussão preliminar: os referenciais de Língua Portuguesa e seus fios


constituintes
A BNCC surge permeada de outras vozes advindas de documentos
oficiais, como a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases
(LDB), que já delineavam a necessidade de haver um patamar comum de
aprendizagem a todos os estudantes. Além disso, esses documentos, com
terminologias distintas, já apontavam que as competências e diretrizes ao
ensino deveriam ser comuns a nível nacional tanto para o Ensino
Fundamental quanto para o Médio, mas que o currículo deveria ser
diverso, ou seja, era necessário deixar espaço para as demandas locais e
regionais.

973
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Como apontavam os documentos oficiais, já se existia a necessidade de


criar uma base comum que contribuísse para o alinhamento do que o
educando está aprendendo em cada escola. Considerando isso, a BNCC
(BRASIL, 2017) definiu as aprendizagens essenciais ao estudante a partir
de dez competências gerais. Conforme esse documento, competência é a
mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para
resolver demandas complexas da vida cotidiana, do exercício da cidadania
e do mundo do trabalho, comprometendo-se, dessa maneira, com a
formação integral e tendo como objetivo a desfragmentação do sujeito.
Porém, apesar da BNCC evidenciar um posicionamento a favor de um
patamar comum, no documento final, há a intenção também de inserir as
necessidades e demandas de um país plural como o Brasil. Isso pode ser
observado na justificativa a seguir, a fim de mobilizar instâncias diversas
para se construir um currículo local, seja no âmbito federal, estadual ou
municipal:
No Brasil, um país caracterizado pela autonomia dos entes federados,
acentuada diversidade cultural e profundas desigualdades sociais, os
sistemas e redes de ensino devem construir currículos, e as escolas
precisam elaborar propostas pedagógicas que considerem as necessidades,
as possibilidades e os interesses dos estudantes, assim como suas
identidades linguísticas, étnicas e culturais (BRASIL, 2017, p.15).
Como pode ser visto, a BNCC dá o encaminhamento de que cada instância
educacional – seja pública ou privada – passe a elaborar currículos a fim
de implementar as bases que compõem a base comum. Todavia, caberá a
essas instâncias, sistemas e redes de ensino, se organizarem, em seus
planejamentos, rotinas e eventos escolares para incorporar em seus
currículos temas contemporâneos que afetam a vida humana a nível local,
regional e global de maneira transversal e integradora. Para orientar essa
construção, a BNCC delimita que, para cada competência geral, há
habilidades a serem desenvolvidas e objetos de conhecimento organizados
em unidades temáticas. Há competências e habilidades pensadas para a
Educação Infantil, para o Ensino Fundamental – anos iniciais, Ensino
Fundamental – anos finais e para o Ensino Médio. A partir do Ensino
Fundamental, deixa-se de lado a nomenclatura “campos de experiência”
utilizada no Ensino Infantil e passa-se a pensar as competências pelas
áreas de conhecimento. Entre as áreas está a de linguagens, integrada
pelos seguintes componentes curriculares: Língua Portuguesa, Arte,
Educação Física e, no Ensino Fundamental – Anos Finais, Língua Inglesa.
Para essa área, são elaboradas seis competências específicas que visam à

974
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

articulação dos componentes curriculares que devem ser incorporadas aos


currículos locais.
Diante do percurso de construção da BNCC até a necessidade de criação
dos currículos a níveis federal, estaduais e municipais, a Secretaria
Municipal de Educação de Natal (SME) organizou comissões para cada
componente curricular a fim de atender ao que regimenta a BNCC quanto
à elaboração do currículo. Para tanto, após a divulgação da Portaria Nº
35/2018 - GS/SME, de 17 de maio de 2018, foi instituída a comissão que
seria responsável por elaborar o currículo do componente de Língua
Portuguesa, a qual se intitulou de Grupo de Estudo e Trabalho de Língua
Portuguesa. Esse grupo foi composto por onze professores do quadro
permanente da rede municipal de ensino de Natal, além de três assessores
pedagógicos da área designados pela Secretaria Municipal de Educação
de Natal. O documento teve sua elaboração durante os encontros de
formação continuada presencial, durante o ano de 2018, com os
professores. Após a elaboração de atividades, sugestões e expectativas de
aprendizagem, o documento foi disponibilizado para consulta pública
durante o período de 30 dias. As sugestões foram discutidas e
sistematizadas pela comissão. Posteriormente, ele passou por uma
avaliação, orientação e adaptação por dois professores colaboradores da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte para, enfim, compor a atual
versão.
Os referenciais de Língua Portuguesa do município de Natal se efetivam
como compreensão responsiva às orientações da Base Nacional Comum
Curricular. Compreende-se aqui que o Currículo é um enunciado
impregnado de tonalidades dialógicas advindas dos documentos oficiais,
das vozes que circundam a educação, das escolhas teóricas dos professores
que foram os autores do enunciado concreto objeto desta pesquisa. Como
afirma Bakhtin (2016),
Cada enunciado isolado é um elo na cadeia da comunicação discursiva.
Ele tem limites precisos, determinados pela alternância dos sujeitos do
discurso (dos falantes), mas no âmbito desses limites o enunciado, como
a mônada de Leibniz, reflete o processo do discurso, os enunciados do
outro, e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (às vezes os mais
imediatos, e vez por outra até os muito distantes – os campos da
comunicação cultural). (p. 60)
A partir da citação acima, é interessante pensar quais são os fatores que
levaram a construir um documento único e local para orientar a prática dos

975
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

professores de Língua Portuguesa do Município de Natal. A Base Comum


elenca competências e habilidades, passa a chamar aqueles conteúdos de
objeto de conhecimento e essas nomenclaturas são apropriadas num
processo de valoração para as práticas de ensino. Mudar nomenclaturas,
trazer documentos ditos novos atendem às imposições de uma sociedade
que diz que a escola continua com uma configuração ultrapassada. A
BNCC se apresenta como o novo, mesmo trazendo uma concepção de
linguagem de base interacionista que já era orientada nos Parâmetros
Curriculares Nacionais.
Pensando nessas questões, nessas inquietações, consideramos esse
currículo como enunciado concreto que se efetiva no estenograma do
diálogo, na complexa inter-relação do texto e do contexto emoldurador a
ser criado. Ou seja, ao mesmo que é lançado ao seu auditório, professores
da rede municipal de Natal, responde às políticas públicas, ao formato do
fazer escolar e ao tempo social e histórico. Na apresentação do documento
(páginas 5, 6 e 7), há a exposição de qual a função a ser desempenhada
pelo currículo ao seu público. Logo nas primeiras linhas, na página 5 dos
referenciais, há a informação de que se trata de “documento de caráter
normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens
essenciais que todos os estudantes devem desenvolver ao longo das etapas
e modalidades da Educação Básica”. As práticas de leitura e de escrita
terão, de maneira definidora, as orientações presentes nele. Isto é, apesar
de compreendermos que a linguagem se constitui de maneira dialógica em
interação com as intenções dos sujeitos da comunidade escolar, há uma
voz reguladora definindo objetivos e intenções.
Ainda na parte introdutória, foram utilizados termos como “esfera/campo
de atividade humana”, “gêneros discursivos” e, de maneira diferenciada
em relação à concepção adotada na BNCC, apresenta a abordagem
plurilíngue na aprendizagem de Língua Portuguesa. Ao mesmo tempo que
apresenta concordância nas orientações teórico-metodológicas com a Base
Nacional Comum Curricular para o segmento de língua portuguesa, há
uma responsividade de adotar uma outra abordagem para atender a alguma
necessidade da situação local.
Os pontos suscitados aqui são inquietações que ainda serão desenvolvidas
nos próximos passos da pesquisa, iniciada em 2021. É mostrado já na
introdução dos referenciais um embate de vozes teóricos e de interesses
entre os sujeitos e axiologias ao fazer docente do professor de Língua
Portuguesa a nível local, o que aponta para a necessidade de um estudo
mais aprofundado durante a efetivação deste projeto.

976
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

REFERÊNCIAS
AZEVEDO, I. C. M. de; DAMACENO, T. M. S. S. Desafios do BNCC
em torno do ensino de língua portuguesa na educação básica. Revista de
estudos de cultura | Nº 7 | Jan. Abr./2017.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso.São Paulo: Editora 34, 2016.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2013.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular
(versão preliminar). 2015. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio Acesso em: 21 set. 15
e Acesso em: 20 ago. 19.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (versão final). 2017.
Disponível em: . Acesso em: Acesso em: 20 ago. 19.
CASADO ALVES, M. P. O enunciado concreto como unidade de análise:
A perspectiva metodológica bakhtiniana. In: RODRIGUES, Rosangela
Hammes; PEREIRA, Rodrigo Acosta. Estudos dialógicos da linguagem e
pesquisa em linguística aplicada. São Carlos: Pedro & João Editores,
2016. p. 163-177.
GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história.
Tradução: Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo:
Parábola Editorial, 2017.
VOLOCHINOV. V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo:
Editora 34, 2017.
VOLOCHINOV. A construção da enunciação e outros ensaios. Tradução
João Wanderley Geraldi. São Carlos/SP: Pedro e João editores, 2013.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Notícia em mãos: audiovisual e discurso na educação de surdos

Ericler Oliveira Gutierrez


Universidade Federal do Espírito Santo
kekagutierrez@hotmail.com

Ednalva Gutierrez Rodrigues


Universidade Federal do Espírito Santo
nalvaguti@hotmail.com

O programa Notícia em mãos


Atualmente, a política pública de educação para surdos é inclusiva, com
abordagem bilíngue. Significa dizer que o sujeito surdo incluído no ensino
regular tem direito ao acesso da informação em duas línguas: o português
escrito e a língua brasileira de sinais. Todas as informações e conteúdos
distribuídos na escola devem eliminar qualquer barreira de comunicação.
Nesse sentido, foi criado, em mil novecentos e noventa e nove, o Notícia
em mãos, um programa de televisão educativo e cultural, apresentado em
língua brasileira de sinais, produzido pelo Núcleo de Televisão Educativa
da Secretaria de Educação do Distrito Federal- Canal E. Segundo Silva
(2003), o programa Notícia em mãos contribuiu para divulgar a cultura
surda, dar acesso à informação e à educação e cumpriu com a função de
representação, ao permitir que o telespectador surdo se identificasse com
a imagem exibida na tela.
O programa abordava temas transversais do currículo da Educação Básica,
no formato de revista eletrônica, com duas reportagens, uma entrevista,
quadro de opinião reservado a pessoas surdas e um quadro de dicas sobre
os temas. A proposta destinou um espaço maior na tela ao intérprete de
Língua Brasileira de Sinais deveria. De acordo com as orientações da

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Associação Brasileira de notas técnicas- ABNT, um quarto da tela deve


ser destinado à janela de interpretação.
Apesar da determinação, televisões e produtoras insistem em impor aos
telespectadores surdos janelas de sinalização, muito pequenas. A língua
de sinais é espaço- visual, ou seja, ela é executada no espaço e percebida
pela visão (QUADROS; KARNOPP, 2010). Um campo visual reduzido
para o telespectador surdo equivale a um áudio com ruídos para o ouvinte.
A proposta de comunicação do programa privilegiou o canal visual do
sujeito, conforme Figura 1.
Figura 1– Captura de tela da Intérprete de Libras e imagem de casal de
surdos conversando

Fonte: Programa Notícia em mãos (2002).


Nota: Acervo das autoras (2020).
Consideramos que o programa rompeu com a estética oficial, ao criar um
produto com “[...] imagens ambivalentes e contraditórias que parecem
disformes [...] se consideradas do ponto de vista da estética “clássica”, isto
é, da estética da vida cotidiana preestabelecida e completa” (BAKHTIN,
1987, p. 22).
A proposta do programa incluiu apresentadora surda, por refletir na tela a
identidade surda, o que corroborou para inscrever o Notícia em mãos em
um campo de acessibilidade e respeito às diferenças, como expresso na
Figura 2.

979
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 2– Apresentadora surda sinalizando a cabeça da matéria

Fonte: Programa Notícia em mãos (2002).


Nota: Acervo das autoras (2020).
O programa, ao definir um quadro exclusivo para entrevistados surdos,
criou um espaço de prática social reforçando a ideia de que tanto a
produção, quanto a recepção acontecem em situação social e cultural,
configurando o programa uma rede de enunciados, polifonia e dialogismo
(BAKHTIN, 2003). Nesse sentido, apresentadora surda, entrevistados e
telespectadores compartilham a experiência única e irrepetível, de pessoas
que significam o mundo primordialmente pela experiência visual e não
auditiva como a maioria.
Metodologia
A pesquisa adotou, como metodologia, a pesquisa qualitativa, assumindo
a interpretação dos processos e seus significados produzidos pela
experiência social. O uso de métodos e princípios foram constituídos por
singularidades e contradições imbricadas às relações sociais. Utilizamos
dados visuais como estratégia analítica, considerando que a proposta
abrange o estudo de mídia (BANKS, 2009).

980
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Os dados foram produzidos por meio da observação de uma aula de


português para o nono ano do ensino fundamental, em uma escola pública
em Ceilândia-DF, em que o programa Notícia em mãos foi veiculado.
Utilizamos como instrumentos de produção de dados a filmagem da aula,
a gravação da participação dos alunos durante a exibição do vídeo e a
discussão sobre o vídeo e seu conteúdo.
Com uma conversa informal, a aula foi iniciada. A professora explicou
que passaria um vídeo em Língua brasileira de sinais e que após a
veiculação iria fazer um debate com os alunos sobre as impressões deles.
Durante a veiculação do vídeo, os dois alunos, fizeram observações
quando viram as imagens do dia em que a comunidade surda se reuniu em
frente ao Congresso Nacional para se manifestar em favor da aprovação
da Lei da Libras. A reportagem apresentou a votação no senado federal e
o momento que o presidente do senado anunciou a aprovação da Libras
como uma língua de comunicação e expressão legítima os surdos
brasileiros (Figura 3).

Figura 3– Alunos veem trecho do programa

Fonte: Acervo das autoras (2021).


Os alunos discutiram entre si, comentando as imagens e destacando a
diferença entre o espaço destinado à intérprete de Libras no Notícia em
mãos em comparação com as publicidades veiculadas com legenda e
janelinha de interpretação. Ao final da exibição, a professora perguntou o
que mais chamou a atenção deles. O aluno X destacou a mensagem sobre

981
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

a aprovação da Lei de Libras (BRASIL, 2002) e da luta pelo


reconhecimento da Libras. A contrapalavra do participante indicou a
possibilidade de produção de sentidos e compreensão responsiva, com o
diálogo entre a obra e seus interlocutores.
A partir da temática discutida, o aluno X pode contextualizar o debate para
a realidade vivida por ele, ponderando que no passado os surdos não
tinham direito à intérpretes de Libras na sala de aula e eles, naquele
momento histórico e social, tinham acesso a uma professora de português
como segunda língua e ao serviço de intérprete educacional durante as
aulas das demais disciplinas. Nesse sentido, aferimos que o
programa Notícia em mãos configurou-se como um gênero discursivo,
possibilitando a criação de novos elos, entre os enunciados dos
realizadores, personagens /atores sociais e os interlocutores surdos,
configurando a ininterrupta cadeia da comunicação real, conforme
postulado por Bakhtin e seu círculo (BAKHTIN, 2003).
Conclusões
Consideramos que a participação discursiva dos alunos atesta a relevância
do audiovisual como instrumento provocador de diálogo. A produção do
programa, em um formato contra-hegemônico, constitui-se de vozes e
imagens, singularmente grotescas, e, por este viés, se transformam em
vozes espaço-visuais, polifônicas e inclusivas.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
BANKS, M. Dados visuais para pesquisa qualitativa. Porto Alegre:
Artimed, 2009.
BRASIL. Lei n.10.436/2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais.
QUADROS, R.M.; KARNOPP, L. B. Língua de sinais brasileira: estudos
linguísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
SILVA, R. S. Análise de conteúdo do programa Notícia em Mãos. 2003.
Monografia de conclusão de curso (Graduação em Comunicação
Social/Habilitação em Jornalismo) – Faculdade de Ciências Sociais
Aplicadas, Centro Universitário de Brasília. Brasília, 2003.

982
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O aspecto regenerador, o corpo grotesco cósmico e uma visão


ampla de vida dos povos originários: leituras sobre Bakhtin e
Ailton Krenak

Fernanda de Moura Ferreira


IFRN
fernandapotiguar@gmail.com

O grotesco em perspectiva bakhtiniana nos direciona a algo além da


simples ampliação sobre o entendimento de tal conceito em outros
pensadores. Parece nos apontar para um modo de entender a vida e sua
dinâmica de funcionamento. Nessa esteira, é importante ressaltar o caráter
unificado e unificante que permeia a obra do Círculo de Bakhtin, uma vez
que todas as reflexões e categorias discutidas, algumas bem delineadas
enquanto outras se desenham ao longo da evolução e maturação do
pensamento bakhtiniano, formam um todo absoluta e indissoluvelmente
entrelaçado. Com as noções e categorias presentes no texto “A Cultura
Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais” (2010) não poderia ser diferente, em virtude de ser uma obra em
que se abordam questões completamente atreladas ao princípio dialógico
e têm estreita relação com o aspecto regenerador, o qual é inegociável e
célula-máter de toda a vida que se celebra nas manifestações populares
descritas e estudadas por Bakhtin, por meio da análise da obra de Rabelais.
O aspecto regenerativo é o que diferencia o grotesco em perspectiva
bakhtiniana do grotesco pensado por outros estudiosos.
É o aspecto regenerador que faz com que seja possível que todo o edifício
teórico presente na tese sobre Rabelais seja erigido. É o aspecto
regenerador também um dos responsáveis por uma concepção bakhtiniana
de vida popular que interpreta o mundo e os sujeitos em reciprocidade,

983
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

interdependência e, acima de tudo, formando um único organismo, em


íntima relação com o cosmos. Portanto, a vida que pulsa do grotesco sob
a ótica bakhtiniana está para além das trincheiras do eu, do outro e do
mundo, pois não promove a separação entre eles, muito menos os vê de
maneira absoluta, desconectada ou individualizada.
Isso nos fica evidente quando Bakhtin (2010) argumenta que o corpo
grotesco não é individual. Ao contrário. O corpo grotesco é sempre um
corpo universal, um corpo em diálogo, em contato, em área de toque:
Observemos ainda que o corpo grotesco é cósmico e universal, que
os elementos aí sublinhados são comuns ao conjunto do cosmos:
terra, água, fogo, ar; ele liga-se diretamente ao sol e aos astros,
contém os signos do zodíaco, reflete a hierarquia cósmica; esse
corpo mistura-se a diversos fenômenos da natureza: montanhas,
rios, mares, ilhas e continentes, e pode também encher todo o
universo. [p. 278]
Enquanto cósmico e universal, o corpo grotesco dialoga não apenas com
o outro; atrela-se, mistura-se, torna-se bicorporal, constitui-se com o outro
que não apenas é humano, mas também pode ter outras formas de vida. O
corpo grotesco se encontra com os fluidos, os absorve, dá-lhes tratamento,
excreta-os. Encontra-se ainda com todos os elementos terrenos e não
terrenos. O corpo grotesco não vive sozinho e não se sustenta de maneira
isolada e autocentrada. O outro, em sentido lato, é uma necessidade
constitutiva. Com isso, é plenamente compreensível que seja um corpo em
harmonia não apenas com outros corpos, mas com o universo e sua
materialidade, como peça integrada em uma engrenagem muito maior, de
vida em sentido lato, amplo, universal e cósmico.
Nesse ponto, talvez seja possível uma aproximação com cosmogonias
relegadas ao descrédito, ao campo da superstição, do animismo
depreciativo e que não foram consideradas dignas de atenção ou ouvidos
amorosos.
Sobre o descrédito que ronda as formas de pensar a vida e o mundo das
comunidades originárias, Krenak reflete que:
James Lovelock, criador da teoria de Gaia, foi colocado para fora de
um programa de pesquisa da Nasa, marginalizado pela turma que
acreditava demais na teoria de Darwin. Para eles, a ideia de que a
Terra é um organismo vivo era anticientífica. Até o final da década
de 1990 se desprezou qualquer pesquisa que quisesse tratar esse

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

organismo como uma coisa inteligente. Thomas Lovejoy, que é


considerado o pai dos estudos da biodiversidade, e todo um grupo
de pesquisadores que trabalhava sobre a teoria de Gaia foram
dispersos – o status de alguns cientistas foi caindo até o ponto de
não ter mais ninguém financiando suas pesquisas.. Claro, há
discípulos deles que seguem trabalhando: aqui no Brasil, por
exemplo, temos o Antonio Nobre, que é um continuador dessas
especulações sobre as diferentes linguagens que o organismo da
Terra utiliza para se comunicar conosco. Mas, nos últimos cinco,
seis anos, com o agravamento da crise climática, com o planeta
fervendo, esses negacionistas começaram a declinar de sua posição
cética e querer entender a teoria de Gaia. Deixo isso para os
incrédulos. Quem já ouvia a voz das montanhas, dos rios e das
florestas não precisa de uma teoria sobre isso: toda teoria é um
esforço de explicar para cabeças-duras a realidade que eles não
enxergam. [p. 18-20].
O modo como as esferas legitimadores chancelam as formas de
interpretação do mundo, por vezes, promove a marginalização de
cosmogonias consideradas não modernas, rudimentares, primitivas. Mas
e se pensarmos a vida em sentido lato, não a restringindo ao homem, mas
como algo maior e que toca a universalidade e o cósmico? Uma
cosmovisão integradora com direcionamento dialógico pode ser frutífera.
Se o corpo grotesco é cósmico e, assim sendo, integra-se ao todo e se
compreende parte da corrente da vida, a cosmovisão dos povos originários
pode se aproximar do pensamento bakhtiniano.
Ouçamos mais uma vez Ailton Krenak (2020):
Aqui, do outro lado do rio, há uma montanha que guarda a nossa
aldeia. Hoje ela amanheceu coberta de nuvens, caiu uma chuva e
agora as nuvens estão sobrevoando seu cume. Olhar para ela é um
alívio imediato para todas as dores. A vida atravessa tudo, atravessa
uma pedra, a camada de ozônio, geleiras. A vida vai dos oceanos
para a terra firme, atravessa de norte a sul, como uma brisa, em todas
as direções. A vida é esse atravessamento do organismo vivo do
planeta numa dimensão imaterial. Em vez de ficarmos pensando no
organismo da Terra respirando, o que é muito difícil, pensemos na
vida atravessando montanhas, galerias, rios, florestas. A vida que a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é e pensam que é


só uma palavra. Assim como existem as palavras “vento”, “fogo”,
“água”, as pessoas acham que pode haver a palavra “vida”, mas não.
Vida é transcendência, está para além do dicionário, não tem uma
definição. [p. 28-29]
Aqui, o corpo grotesco dá as mãos a cosmogonias dos povos originários
ao enxergar a integração, a união e a organicidade do homem com o
mundo. É preciso apenas lembrar que, nessa direção, o homem está em
contato direto com a terra, com o chão.
O chão é o local onde tudo começa e termina, tanto no sentido biológico
quanto em várias mitologias, inclusive a cristã ocidental, uma vez que o
homem foi formado do barro (chão) e veio e retornará ao pó da terra
(chão). Acerca disso, Bakhtin (2010) coloca que
a morte, o cadáver, o sangue, o grão enterrado no solo, faz aparecer
a vida nova: trata-se aqui de um dos motivos mais antigos e mais
difundidos. Conhecemos uma outra variação dele: a morte semeia a
terra produtora e fá-la parir. [p. 286]
O chão é prenhe de ambivalência, local de nascimento e sepultura, é a
grande câmara regeneradora por excelência. O chão é a materialidade
palpável e indiscutível das mésalliances. O chão é o tudo e o nada. Se, de
fato, temos uma essência humana, como alguns filósofos argumentam,
seria o chão a matéria-prima para encontrá-la e foi justamente essa matéria
da qual nos distanciamos em nome do “progresso”, que é, segundo
Krenak, “essa ideia prospectiva de que estamos indo para algum lugar”
[2020, p. 10]. Para além de todos os efeitos terapêuticos positivos que
estudos vêm mostrando, o contato com a terra – tanto em seu aspecto
literal como metafórico – é um dos contatos mais diretos com uma
concepção de vida muito mais ampla do que a simples valorização da vida
“humana”, já que nem todas as vidas, em tese, humanas são assim
consideradas, visto que muitas, na realidade, são relegadas a categoria de
sub-humanidade.
Ainda sobre o contínuo homem-cosmo, Krenak (2020) afirma que:
Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que
somos a humanidade e nos alienamos desse organismo de que
somos parte, a Terra, passando a pensar que ele é uma coisa e nós,
outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo que exista algo que

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

não seja natureza. Tudo é natureza. Tudo em que eu consigo pensar


é natureza. [p. 83]
E complementa:
Muitos povos, de diferentes matrizes culturais, têm a compreensão
de que nós e a Terra somos uma mesma entidade, respiramos e
sonhamos com ela. Alguns atribuem a esse organismo as mesmas
susceptibilidades do nosso corpo: dizem que esse organismo está
com febre. Faz sentido: nós não somos constituídos de dois terços
de água e depois vem o material sólido, nossos ossos, músculos, a
carcaça? Somos microcosmos do organismo Terra, só precisamos
nos lembrar disso. [p. 72]
O microcosmo citado por Krenak também aparece nas reflexões de
Bakhtin nos estudos sobre o grotesco enquanto corpo cósmico. Portanto,
na mesma direção, Bakhtin (2010) explica que:
[...] as pessoas assimilavam e sentiam em si mesmas o cosmos
material, com os seus elementos naturais, nos atos e funções
iminentemente materiais do corpo: alimentação, excrementos, atos
sexuais; aí é que encontravam em si mesmas e tateavam, por assim
dizer, saindo de seu corpo, a terra, o mar, o ar, o fogo e, de maneira
geral, toda a matéria do mundo em todas as suas manifestações, e
assim a assimilavam. [p. 294]
Por fim, a ausência de limites entre o corpo grotesco e o mundo é que alça
o corpo a uma escala cósmica, bem como o cosmos se corporeifica.
Talvez os saberes tradicionais construídos no contato imediato com o chão
e com o outro ao longo de milênios pelos povos originários, à revelia dos
grandes centros de pesquisa e universidades, se coadunem com a visão de
vida global apresentada por Bakhtin em suas obras que abordam não
apenas o grotesco, mas o próprio princípio dialógico. Não seria o princípio
dialógico uma forma de compreensão não apenas da atividade discursiva,
mas da vida dos seres? Seria possível pensarmos o chão, segundo a
interpretação bakhtiniana, como esse espaço, físico e/ou simbólico, do
diálogo em sentido lato (diálogo entre os diferentes corpos que se quedam
mortos para servir de matéria-prima para a manutenção da vida e
renovação da própria terra; diálogo entre o inelutável fim de todos, que
nos mistura com elementos outros como animais, plantas, vida parasitária,
elementos orgânicos e inorgânicos; diálogo irremediavelmente necessário
para que a vida prossiga via transubstanciação)?

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Este ensaio, para finalizar, se apresenta como um exercício de


pensamento.

Referências:
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.
KRENAK, A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O AZUL NA TELA E NA POESIA SUL-MATO-GROSSENSE

Juliane Ferreira Vieira


Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - Universidade
Federal Fluminense UFF - Grupo ATOS
julianevieira1278@gmail.com

Larissa Mendes da Rosa


UEMS - Letras Português/Inglês
larissamdarosa@gmail.com

TAINARA BORGES DA SILVA


Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
tainara2017borges@gmail.com

O Mato Grosso do Sul de Manoel de Barros (1916-2014) é também o


estado do artista plástico Ilton Silva (1944-2018). Manoel, nascido em
Cuiabá, no Mato Grosso (o do norte), veio ainda adolescente para as terras
sul-mato-grossenses, dividindo seu tempo entre as planícies alagadas do
pantanal e a capital Campo Grande. Já da região fronteiriça entre Brasil e
Paraguai, nasceu Ilton Silva, criado em meio à arte por ser filho de
Conceição dos Bugres. Poeta e Artista Plástico nutriram-se da força da
terra vermelha e das águas correntes do Estado para comporem suas obras,
delineando a palavra e a formas com as cores da identidade sul-mato-
grossense. É o azul que alinhava o diálogo entre a Deusa da Fertilidade e
a poesia Deus Disse de Manoel de Barros, buscando dar o tom para

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tecermos uma compreensão dos traços do grotesco contemporâneo na


referida obra.
Bakhtin (2013), em seu estudo sobre a obra de François Rabelais,
apresenta-nos o realismo grotesco como um aspecto acentuado da Idade
Média, tempo em que a praça pública era palco de grandes comemorações,
onde a população poderia festejar as passagens de estações e as colheitas.
A imagem grotesca tem como uma de suas marcas o estado de
transformação, de metamorfose ainda incompleta, a qual apresenta um
estágio de morte e do nascimento, de crescimento, de evolução ao mesmo
tempo.
Trata-se uma imagem ambivalente, inconclusa, aberta. É esse traço que
destacamos nesse diálogo estabelecido entre a Deusa da Fertilidade e o
poema Deus Disse:

Deus disse
Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.
Manoel de Barros (1999).

Ao nos aproximarmos da obra Deusa da Fertilidade, observamos um


corpo feminino em destaque, que tem em si outros corpos. É um corpo não
clássico, pois é multiforme, com linhas curvas e formas não
convencionais. Assim, evidencia-se uma vontade de mudança, de
transformação de um corpo do qual se originam outros corpos, o que o
faz aberto. Há a presença de várias formas femininas ao lado da deusa, o
que a diferencia de obras clássicas que apresentam as deusas em destaque
e ao seu lado seus súditos, como ocorre na obra O nascimento de Vênus,
de . A Deusa da Fertilidade está próxima às suas criações, às mulheres que

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dela nascem, revelando formas imprecisas, incompletas, que fogem ao


ideal clássico de corpo feminino.
O azul, em diferentes tons, é a cor predominante na retratação da deusa. A
tonalidade clara acalma e, ao mesmo tempo, amplia nossa noção de tempo
e de produtividade, trazendo o movimento da vida, da criação. Já as
tonalidades mais pigmentadas de azul levam-nos à monotonia, ao
sombrio, ao infinito.
Isis, a deusa egípcia, responsável pela fertilidade ou infertilidade das
terras, representa a fertilidade feminina, a maternidade humana, a origem
da vida, a alimentação e a morte. A deusa congrega sentidos ambivalentes,
pois ao mesmo tempo que cria a vida também é capaz de ceifá-la.
Para Bakhtin (2013, p. 359): onde [...] há morte, há também nascimento,
alternância, renovação. Vida e morte, assim, constituem Isis como uma
deusa envolta a mistérios, pois é a Grande Mãe, mas também é a guia dos
falecidos pelos caminhos do mundo inferior.
Na obra, a Deusa parece evocar a sua característica mística de criação e
de aconchego, revelados na expressão tranquila dos corpos à sua volta,
porém também há corpos que evidenciam o medo e a morte pelos olhos
arregalados e fechados, em repouso. A regente de poderes misteriosos
vestida da cor azul protege e, também, retoma as imagens de elementos da
natureza, como o céu e o mar. Uma mulher azul que tem o poder da vida
e da morte, capaz de alimentar e provocar a fome. Um corpo ambivalente
que guarda em si [...] uma relação substancial com o ciclo vida-morte-
nascimento (BAKHTIN, 2013, 128-129).
As diferentes tonalidades de azul que ligam o céu e a terra, o místico e o
real, a vida e a morte na Deusa da Fertilidade também é o azul linguagem
que transforma o Pantanal-paisagem-planície alagada em Pantanal
linguagem, o qual se constitui de pigmentos azuis do céu, das águas, dos
pássaros, fazendo-se material de produção para o poeta. Na poesia de
Manoel de Barros, a criação, o ato da vida dialoga com a obra Deusa da
Fertilidade, ao apresentar o ato de criação e a força da linguagem se
revelando na natureza e no homem. O corpo místico de Deus entra em
cena, renovando o cenário com a presença do homem. Não é, pois, a
natureza que pertence à humanidade, mas é o homem que pertence à
natureza.
O dom da vida é dado por Deus, um fenômeno místico, limitado aos seres
celestiais, aos deuses. O homem pertence à terra, à natureza, cabendo a ela

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ações humanas, como ter sotaque, voz, cílios. A espiritualidade interliga


o homem à natureza e da árvore faz sua dona, a qual nasce no chão e ao
alto sobe. Homem e natureza são partes integrantes da mesma rede
orgânica. O ciclo da vida passa pela linguagem: o existir é executado pela
linguagem: Deus disse. A linguagem cria e transforma a natureza. Vida
pantanal, vida homem. Palavras parecem bailarem ao som do chamamé
correntino, parecem se achegarem. Elas têm perfume, som e silêncio e,
concomitantemente, são do divino e do feitiço. Como diz Bakhtin (2013,
p. 371), é uma espécie de recreação [...] das palavras e das coisas
deixadas em liberdade, liberadas do aperto do sentido, da lógica, da
hierarquia verbal. As palavras avizinham-se com outras linguagens;
avizinham-se com os pássaros, as águas, o céu, a terra, a vida e a morte. Ao
gozar de uma total liberdade, as palavras colocam-se em relações e numa
vizinhança completamente inusitadas (2013, p. 371).
O azul da obra Deusa da Fertilidade e o azul do poema de Manoel de
Barros mostram as ambivalências da existência humana e cósmica.
Interligam dois polos de mudança, como forças libertárias, abertas,
flexíveis. O azul linguagem congrega o novo e o antigo, o que nasce e o
que morre, a fartura e a fome, o som e o silêncio, o movimento e a
monotonia, o cósmico e o terreno, o princípio e o fim da
transformação. Vida-morte conectam o homem à mãe terra, ao início, à
regeneração. São forças ambivalentes que delineiam a tela e a poesia sul-
mato-grossense, aqui visitadas, marcando a força de resistência de uma
terra produtiva e regeneradora.

Referências
BARROS, Manoel. Para encontrar o azul eu uso pássaros. Campo
Grande, MS: Saber Sampaio Barros Editora Ltda, 1999.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular Na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7ª ed. – São Paulo:
Editora Hucitec, 2013.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O barroco e o grotesco de nossos dias

Rita de Cássia Almeida Silva


Universidade do Estado do Pará
cassiaalmeida@yahoo.com.br

Alef Reis Pimentel


UEPA
alefpimentell@gmail.com

Abrimos várias redes sociais no decorrer do dia. Tentamos não nos deixar
levar pela sedução de continuar a apertar o próximo link. Pelas imagens
fazemos o primeiro recorte/seleção do que desperta nossa atenção.
Surpreendemo-nos com algumas situações que, para nossa visão de
mundo (em geral bastante estreita), parecem não demostrar uma razão de
ser. Mas se nós nos construímos a partir do outro, também o que julgamos
grotesco é o reverso do que é o grotesco de nós para o outro-eu.
(BAKHTIN, 2010).

A entrega de uma estátua de madeira feita em tamanho (quase) natural,


representando Jair Bolsonaro traz um fluxo de pensamentos reações que
ecoam em sentimentos controversos entre os que apoiam e os que não
apoiam o atual governo. Nossa atenção foi despertada pela estética barroca
predominantemente presente na estátua, trazendo outras questões que são
apontadas como características barrocas, que podem nortear o debate:
Estará o barroco presente atualmente nas formas de manifestação da
sociedade brasileira?

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O que denominamos barroco foi um estilo que surgiu na Itália,


anteriormente berço da Renascença. O estilo barroco é marcado por
artistas que traziam ‘o maciço e o severo’ e ‘grandes efeitos de luz e
sombra’ e para muitos foi visto como ‘o estilo que resultou da degeneração
da Renascença.’ (WOLFFLIN, 1968. p.29) e tinha no código visual sua
forma de expressão predominante. Com exuberância, dinamismo, culto ao
contraste, oposição entre ideias e rebuscamento da linguagem, que
inclusive serviram para impressionar súditos e afirmar a grandeza de papas
e monarcas, como também para criticar governos, esse movimento
artístico se firmou por representar um forte dualismo, pois carrega o
espírito medieval cristão e as novidades pagãs e terrenas acirradas após o
descobrimento do Novo mundo e do desfazimento de várias verdades
apregoadas pela Igreja e pela instâncias de poder, como a Monarquia.
Ao vermos essa estátua, imediatamente estabelecemos uma comparação
com as estátuas barrocas esculpidas pelos indígenas, e que se encontram
no Museu de Arte Sacra do Pará. Um ‘barroco brasileiro’ com a matéria
prima que aqui tínhamos disponível, talhada a partir das explicações que
eram dadas pelos jesuítas que tentavam impor essa forma de arte para os
indígenas, mas que estes acabaram por esculpir as imagens a partir de sua
visão e conhecimento de mundo.
Mas porque trazer o barroco para essa discussão? O barroco tem como
traço distintivo o grotesco, o excesso, o rebuscamento, o exagero das
formas, o contraste marcado entre as coisas da esfera espiritual e as coisas
terrenas, e para além disso, o conflito entre o que se julgava representar o
bem e o mal. Uma descrição que serve também para falar sobre o que
vemos na atual conjuntura mundial e, no que nos afeta de forma mais
constante, na conjuntura político-social do Brasil. ‘A seriedade com que
se procurava exprimir uma grande ideia desapareceu. Uma insipidez
generalizada busca satisfação suprema no exagero da riqueza decorativa.’
(WOLFFLIN, 1968. p.32).
O grotesco que, quase sempre nos faz rir, se apresenta como fenômeno de
desarmonia do gosto e tem a figura do rebaixamento como marca, o qual
é ‘operada por uma combinação insólita e exasperada de elementos
heterogêneos, com referência frequente a deslocamentos escandalosos de
sentido, situações absurdas, animalidade, [...] e desejos’. (SODRE e
PAIVA, 2002. p.17). Assim apontando os excessos corporais como a
forma de questionar a realidade e renovar o homem.
A partir disso, percebe-se de modo gritante na contemporaneidade o
espírito dual, marca da estética Barroca, que agora funde o velho (Idade

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Média/retorno da Ditadura), o novo (Neo-Renascimento/busca pela


identidade e valorização das identidades) e o ego exacerbado da
modernidade. Com isso se expõe o conflito entre a vida espiritual e a vida
material, por exemplo, com pessoas que seguem a risca a ordem de um
pastor e não se vacinam, contradizendo anos de estudos científicos em prol
de uma fé que por si só não sustenta. O homem do séc. XXI vive
angustiado pelo fato de viver em meio a catástrofe, como fome, seca,
mortes e pela própria incerteza de quem é e se existe algo além desta
vida”.
A escultura feita em madeira do então Presidente Jair Bolsonaro, entregue
no último dia 6 de setembro de 2021 no Palácio do Planalto por os que se
dizem seus apoiadores de Mato Grosso de Sul-MS, assim como a estátua
de metal de Passo Fundo-RS, podem ser consideradas como o ápice
palpável dessa visão conflituosa em que nos encontramos. As estátuas
carregam elementos da arte barroca como o feísmo, com traços toscos que
representam bem quem serviu de modelo, e aí vem a dúvida, se os artistas
tiveram essa intencionalidade ou se, como os demais, estão tão
mergulhados na visão estoíca gerada por este cenário em que vivemos que
julgam ter produzido uma obra prima.
Quando colocamos que as estátuas são um ápice, é porque não podemos
concentrar a análise apenas nos objetos, mas em todo o momento histórico
social que gerou tais objetos: a percepção grotesca sobre o diverso, e a
divisão da opinião social referente ao governo, o jogo de luz e sombra das
notícias que circulam as redes sociais, as ameaças a vida que nos soterram
de diferentes formas, marcando o próprio dualismo contemporâneo, que
pode gerar consequências cada vez mais graves, num quadro que chega a
ser doentio, tendo em vista que hoje vivemos em uma sociedade movida
por imagens, em que o exagero melodramático e o sensacionalismo
ganham cada vez mais espaço por se atrelarem ao discurso religioso,
muitas vezes deturpado em prol da promoção egoísta de um grupo
minoritário que busca cristalizar a figura do presidente como o messias
salvador.
Não só de ingenuidade se reveste o atual Barroco, e grande parte da
população, entre aqueles que nunca acreditaram e os que passam a rever
seus posicionamentos, escancaram seus posicionamentos, trazendo pelas
mesmas redes sociais a crítica, mesmo que seja pela ridicularização
extrema, ou por posicionamentos fortemente embasados na História,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

buscando uma forma de repudiar e expurgar o atual governo ao


ridicularizar a estátua da figura que o representa.
Para NÃO finalizar, seguem as imagens e comentários para fomentar
nossas discussões:

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/bolsonaro-


ganha-estatua-esculpida-por-apoiador-do-mato-grosso-do-sul.
Acesso em: 06 de set. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2021-09-


08/estatua-bolsonaro-rs-inaugurada-divide-opinioes-fotos.html.
Acesso em: 10 de set. 2021.

Referências

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável Tradução aos


cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2010.
SODRE, M. PAIVA, R. O império do grotesco. 2.ed. Rio de
Janeiro. Mauad X, 2002.
WOLFFLIN, H. Renascença e Barroco/ tradução de Mary Amazonas
e Antonio Steffen. São Paulo. Perspectiva, 1968.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O Brasil e a escatologia bolsonarista: grotesco, discurso político


e texto multimodal

Josane Daniela Freitas Pinto


Universidade do Estado do Pará
josane.daniela@uepa.br

Em 01 de janeiro de 2019, assume a presidência do Brasil, Jair Bolsonaro,


representando os valores conservadores, a família tradicional, o ódio aos
comunistas, o desprezo pelas minorias, entre outros. O contexto político
torna-se caótico, diante das ameaças diárias à democracia. E o quadro se
agrava com a pandemia do COVID-19, que nos trouxe o distanciamento
social, o ensino remoto, o caos nos serviços de saúde, o grande número de
mortos, a negação da gravidade do vírus e a negligência na compra das
vacinas. Hoje, vivemos em um país que “se tornou a privada presidencial”
(VENERA, 2021, p1), por causa da falta de decoro do ocupante do cargo
máximo da nação, que repete sempre em suas falas a menção ao produto
da defecação e também se refere insistentemente ao ato de defecar . Aí
está o grotesco de nossos tempos, de nossa realidade brasileira.
Bakhtin (1987), em sua obra A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais, apresenta-nos a
discussão sobre o grotesco, com o objetivo principal de compreender a
influência da cultura cômica popular e estabelecer os limites da
multiplicidade das manifestações da cultura popular. A partir desse estudo
da obra de Rabelais, Bakhtin (1987, p. 17) define o grotesco da seguinte
forma:
O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a
transparência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na

1000
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sua indissolúvel unidade de tudo que é elevado, espiritual, ideal e


abstrato.
O rebaixamento se caracteriza como um princípio artístico importante
dentro do realismo grotesco. Dessa forma, o que é sagrado e elevado passa
a ser reinterpretado no plano material e corporal. É importante destacar
que o rebaixamento apresenta um sentido renovador, no lugar de ser
degradante. Assim, o grotesco assume o sentido de ambivalência. Bakhtin
(1987, p. 19) afirma:
E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas
também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo,
negação e afirmação. Precipita-se não apenas para o baixo, para o
nada, a destruição absoluta, mas também para o baixo produtivo, no
qual se realizam a concepção e o renascimento, e onde tudo cresce
profusamente. O realismo grotesco não conhece outro baixo; o
baixo é a terra que dá vida, e ´seio corporal; o baixo é sempre o
começo.

Ao dizer que o grotesco caracteriza-se por ser “negação e afirmação”,


Bakhtin assume seu duplo sentido, ou seja, morte e destruição, para, a
partir delas, haver o renascimento, o ressurgimento. Sodré e Paiva (2002,
p. 39) também reforçam esse sentido do grotesco identificado por Bakhtin
na obra de Rabelais: “Pelo ridículo ou pela estranheza pode fazer descer
ao chão tudo aquilo que a ideia eleva alto demais”. Na verdade, o grotesco
subverte a realidade, transgride os limites entre natureza e cultura, entre
homem e animal, possibilitando a renovação.
O realismo grotesco ainda continua se fazendo presente no cotidiano e na
contemporaneidade. Hoje, por vivermos na “sociedade em rede”, termo
cunhado por Castells (2017[1999]), a comunicação foi ressignificada,
pelo uso das redes sociais, que conecta indivíduos e forma comunidades
virtuais.
A nova mídia eletrônica atrai o discurso político que se instala nas
diferentes redes sociais de forma dinâmica, intensa, polêmica. No
ambiente digital, o discurso político circula por meio do uso estratégico
das imagens e dos enunciados, compondo os textos multimodais. Assim,
o texto multimodal forma uma única unidade textual, por causa da ideia
de coesão, devido à composição das linguagens visual e verbal, que

1001
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

operam juntas, uma auxiliando na construção do significado da outra,


principalmente no meio digital.
Tomando a ideia da presença escatológica no governo atual, verificamos
diversas imagens e notícias, confirmando a fixação do atual presidente em
usar a escatologia para a expressão de seus pensamentos. Como
consequência, temos a criação de várias postagens nas redes sociais, nas
quais verificamos as fezes personificadas na principal figura bolsonarista,
devido a sua ausência de decoro. Dessa forma, selecionamos duas
postagens nas quais se encontra o uso do texto multimodal, que realiza
a combinação de dois modos semióticos (visual e verbal) para a
materialização discursiva do realismo grotesco.
Na Figura 1, apresentamos uma postagem da Página do Facebook,
intitulada Ministério da mamadeira de piroca, realizada no dia 16 de
agosto de 2021. Do lado esquerdo, temos um bolsonarista, que usa a
imagem do Bolsonaro no peito e chifres. Logo acima dele, há o seguinte
enunciado: “Se fizer merda, a gente tira!” e abaixo o ano de 2018, que foi
o ano das eleições presidenciais. Vários eleitores usaram esse enunciado
como justificativa para votar nele. No lado direito, temos a imagem das
fezes, na qual o apoiador se transformou e logo abaixo o ano de 2021, pois
este é o ano da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid e na qual
foram revelados vários crimes praticados pelo governo federal e, mesmo
assim, ainda há apoiadores que justifiquem as atitudes de um presidente
que não mostrou nenhuma empatia pelos mais de quinhentos mil mortos
na pandemia. O grotesco apresenta-se na imagem como o rebaixamento
de seus apoiadores ao “baixo produtivo” (BAKHTIN,1987, p. 19), a
identificação da animalidade humana pela imagem das fezes. O baixo
produtivo é a representação do mais nível mais inferior, pois se devolve à
terra tudo o que não é mais necessário, para, a partir da terra, haver o
ressurgimento.

Figura 1: Postagem da Página Ministério da Mamadeira de Piroca

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: https://www.facebook.com/MMPiroca/posts/933734490539626
Na Figura 2, observamos uma publicação da Página Humor Político, no
dia 30 de agosto de 2021 no Facebook. Diante da notícia divulgada nas
redes sociais, que o quarto filho do Bolsonaro, Renan, realizou uma
tatuagem do rosto do pai em seu braço, surge a seguinte postagem:
Figura 2: Postagem da Página Humor Político

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: https://www.facebook.com/humorpolitico/photos/a.77154648967
3999/1907471579414812/
A postagem se caracteriza pela presença da imagem do Renan
apresentando a tatuagem. No lugar do rosto do pai, vemos as fezes e logo
acima o enunciado: “Papai, tatuei a tua cara”. O grotesco se apresenta
neste rebaixamento da associação do Bolsonaro com as fezes, que ocorre
devido a sua insistente verbalização escatológica. As repetidas vezes em
que falou sobre fezes ou se referiu ao ato de defecar possibilitaram que o
associassem ao próprio excremento humano.
Podemos identificar o conceito bakhtiniano de realismo grotesco na
realidade brasileira. Na presidência, temos um político que se elegeu com
os votos de eleitores conservadores e avessos aos partidos de esquerda e
diariamente apresenta nas diferentes mídias sua fixação pelas fezes e pelo
ato de defecar. Essa é a imagem grotesca que nos governa e exala sua
completa ausência de empatia pela população, que vem sofrendo por conta
da destruição do país em todas as áreas. No entanto, o conceito de grotesco
que Bakhtin nos traz é ambivalente. Na imagem das fezes, identificamos
a sujeira, a podridão, a destruição, mas também podemos alimentar a
esperançam, que desse fim surgirá um novo horizonte, um novo país, que
estará livre de um governo escatológico e genocida.

1004
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
BATEMAN, John. Text and image: a critical introduction to the
visual/verbal divide. New York: Routledge, 2014.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 18. ed. v. 1. Tradução
Roneide V. Majer. São Paulo: Paz e Terra, 2017[1999]. (A era da
informática: economia, sociedade e cultura; v.1)
SODRÉ, Muniz.; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro:
Mauad, 2002.
VENERA, José Isaías. Bolsonaro, que fezes aqui? Le Monde
Diplomatique Brasil, 16 julho 2021. Acesso em: 01 set. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O Cardeal e a camisinha

Maria Karolyna Rodrigues Silvano


Universidade Federal de Santa Catarina
mariasilvano90s@gmail.com

Fabiana Giovani
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
fabiana.giovani@ufsc.br

A primeira vez que o presidente norte-americano Ronald Reagan veio a


público pronunciar-se sobre a crise da AIDS, causada por um vírus que
devastou grande parte de diversas comunidades no país e no mundo,
ocorreu em 1987 – seis anos após o início da pandemia no país.
Reagan, figura de um partido extremamente conservador, governou seu
mandato com extrema negligência para com as comunidades que sofriam
com o vírus, fator que gerou o início de uma militância engajada dentro
dessas mesmas comunidades afetadas. Talvez uma das organizações mais
importantes e significativas do ativismo contra a crise da AIDS/HIV tenha
sido a ACT UP, Aids Coalition to Unleash Power, localizada no Lesbian
and Gay Community Center na cidade de Nova York. O lema da ACT UP
definia a organização como um grupo diverso e não partidário, unidos a
partir da revolta e comprometida com a ação direta para o fim da crise
da AIDS (SCHULMAN, 2021).
Segundo a escritora e ativista Sarah Schulman (2021), a ACT UP agia nas
mais diversas frentes para a reivindicação do acesso a medicamentos,
pressão para a priorização das pesquisas de novas drogas na área da saúde
e na luta contra o estigma e preconceito dos portadores do vírus através de
campanhas e demonstrações públicas. Uma das grandes contribuições da
organização durante seu período de atuação entre 1987 e 1993 foi a nova
imagem criada para pessoas com AIDS, trazendo um poderoso caráter de

1006
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

base através de demonstrações públicas, fotografias, cartazes, arte e vídeo


(SCHULMAN, 2021).
O escritor e ativista Sean Strub conta em seu memorial Body Counts: A
memoir of politics, sex, AIDS, and survival (2014) a história por trás de
um desses cartazes criado em 1989 por dois membros da ACT UP,
Richard Deagle e Victor Mendolia. KNOW YOUR SCUMBAGS para uma
demonstração da organização, chamada Stop the church!, voltada contra
as movimentações da Igreja Católica de Nova York que prejudicavam o
trabalho de conscientização da organização sobre sexo seguro e uso de
preservativos. A figura escolhida para ilustrar o cartaz foi o Cardeal
O’Connor, um dos membros da Arquidiocese Católica de Nova York.

(DEAGLE E MENDOLIA, 1989)


Segundo Strub (2014), toda a movimentação de O’Connor girava em torno
da condenação de estatutos anti-descriminação e do ativismo LGBT,

1007
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

como, por exemplo, banir a participação de grupos gays de irlandeses-


americanos a participarem de paradas anuais de São Patrício e expulsar
um grupo gay católico dos espaços administrados pela arquidiocese na
época. Além disso, O’Connor também atuava para impedir que hospitais
administrados pela igreja distribuem camisinhas ou desenvolvessem
conversas de prevenção do vírus e conscientização sobre sexo seguro.

(GRAN FURY, 1988)

1008
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O cartaz conta com a figura Cardeal O’Connor trajando vestes religiosas


ao lado de um preservativo descartado, ambos com o mesmo tamanho e
formato, com o trocadilho KNOW YOUR SCUMBAGS, um trocadilho
com a palavra em inglês scumbag – que pode ser traduzida como um
xingamento ou como depósito de sêmen. Em baixo do preservativo lê-
se: THIS ONE PREVENTS AIDS, ou em português, ESTE PREVINE A
AIDS. A proposta do cartaz levantou um debate muito mais polêmico
dentro da ACT UP do que outros cartazes muito mais explícitos criados
também dentro da organização, como o desenvolvido pelo coletivo Gran
Fury de 1988, com a imagem explícita de um pênis com os dizeres USE
CONDOMS OR BEAT IT (STRUB, 2014).
Com base no relato de Sean Strub, é possível levantar a questão: por que
um cartaz com uma imagem não explícita causou mais polêmica e
burburinho dentro da organização do que um cartaz com uma imagem
explícita de um pênis?
Uma hipótese pode ser levantada quando levado em consideração o que
Mikhail Bakhtin tem a dizer sobre o corpo grotesco em A Cultura Popular
na Idade Média e no Renascimento. Para Bakhtin, a lógica artística da
imagem grotesca ocupa-se das saídas e excrescências, rebentos e orifícios,
tudo o que atravessa os limites do corpo e introduz o fundo dele (p. 277).
No cartaz, o preservativo utilizado e descartado representa o baixo
corporal através da excrescência que é o sêmen, trazendo à tona o corpo
que o produz, quanto o orifício pelo qual circula, a fronteira do corpo e do
mundo. Por sua vez, a figura do Cardeal representa o alto corporal,
fechado, sagrado e canônico, e é quebrada quando se mistura com o
profano do preservativo – ambos no mesmo formato, e como lê-se em
baixo, o preservativo pelo menos serve para alguma coisa, para a
prevenção da AIDS/HIV.
O grotesco bakhtiniano surge dessa forma, não apenas para provocar o riso
da sátira mas tecer através da comparação das duas figuras, nos cartazes
tão parecidos, uma crítica social contra as ações conservadoras e
extremamente prejudiciais da Igreja Católica.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rebelais. São Paulo: Hucitec;
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SCHULMAN, Sarah. Let the Record Show: A political history of ACT


UP New York, 1987-1993. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2021.
STRUB, Sean. Body Counts: A memoir of politics, sex, AIDS, and
survival. Nova York: Scribner, 2014.

1010
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O conceito de homem em Bakhtin e os dias atuais: o caos na


ordem e a revelação no grotesco

Regina Godinho de Alcântara


Universidade Federal do Espírito Santo
rgodinho6@gmail.com

Luan Eudair Bridi


Universidade Federal do Espírito Santo
luan.bridi@edu.ufes.br

NEUSA MARA SILVEIRA DA PAIXÃO


UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
maraperolaufes@gmail.com

“Bem, e se eu estiver enganado? […] Se de fato o homem, quero dizer, o


gênero humano, não for canalha? Então tudo o mais não passa de
preconceitos, tão somente espalhados para pôr medo... então não há
qualquer limite.. e é assim mesmo que deve ser! …” (FIORDOR
DOSTOIEVSKI, Crime e Castigo).
“Sou um homem doente... Sou um homem despeitado. Sou um homem
desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo
absolutamente nada de minha doença, nem sei ao certo do que sofro. Não
me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e aos médicos”
(FIORDOR DOSTOIEVSKI, Notas do Subterrâneo).
“E era razoável, porque pessoas livres, bem nascidas e bem educadas, ao
lidar com pessoas honestas, naturalmente sentem o instinto e o incentivo

1011
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

para fugir do vício e abraçar a virtude. E isso é o que eles chamam de


honra. Mas quando as próprias pessoas são restringidas e constrangidas,
elas tendem a se rebelar e quebrar o jugo que as oprime. Pois todos
estamos sempre inclinados a buscar o que é proibido e a cobiçar o que
nos é negado” (FRANÇOIS RABELAIS, Gargantúa y Pantagruel).
“Com quem você está falando agora? Quem você pensa que vê? Você
sabe quanto eu ganho por ano? Quer dizer, mesmo se eu contasse, você
não acreditaria. Você sabe o que aconteceria se de repente eu decidisse
parar de trabalhar? Uma empresa grande o suficiente para ser listada na
NASDAQ vai à falência. Desaparece! Ele deixa de existir sem mim. Não,
você claramente não sabe com quem está falando, então deixe-me lhe dar
uma dica. Não estou em perigo, Skyler. Eu sou o perigo. Um cara abre a
porta e leva um tiro e você pensa isso de mim? Não. Eu sou aquele que
bate!” (BREAKING BAD, Walter White).
“Tem sexo, mas tem camisinha (ah, tem) Menino que beija menina, que
beija menino, que beija menina (menina) Tem Diplo, tem Lan, tem Anitta
Tem bunda, tem baile, tem ousadia Tem copo pra cima (vai), loucura (vai)
e nós bola” (RAVE DE FAVELA (feat. Major Lazer & MC Lan e Anitta).
Se adentrarmos no universo de Raskolnikov, personagem principal do
romance “Crime e Castigo”, de Fiodor Dostoievski, encontramos o
homem que luta entre abismos - ser ou não ser, querer ou não querer, dizer
ou não dizer, se revelar ou se esconder - ou seja, sofrendo no auge de suas
(in)decisões.
Já em “Notas do Subterrâneo”, do mesmo autor, vislumbramos um
narrador amargo e isolado, o Homem Subterrâneo, que, de forma crítica e
zombeteira, se diz mau, mas impelido pela moral que o atordoa, busca um
sentido para a vida, aterrorizado pelo seu próprio eu (sub)consciente.
Em Gargântua e Pantagruel, de François Rabelais, tem-se no grotesco e na
carnavalização, a revelação do homem como um todo. Esse homem
festivo, bêbado, libidinoso, glutão, que defeca e vomita, trai e nem sempre
tem compostura, é o ser real, pois, em Rabelais o “[...] personagem [...] é
mostrado em sua estrutura e em todos os processos de sua existência”
(BAKHTIN, 2014, p. 287).
Walter White, protagonista da série “Breaking Bad”, impulsionado por um
revés da vida – o câncer – vive um turbilhão de decisões, cujo desenrolar
mostra que, na pele de um talentoso professor, pai de família doente,
frágil, dócil, há também um ser totalmente violento e psicopata, capaz de,
além de traficar, embebedar seu próprio filho de 17 anos, violentar sua

1012
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mulher e influenciar e induzir seu jovem parceiro Jesse Pinkman a realizar


ações criminosas que não queria. E, Pinkman, por sua vez, que incialmente
se apresenta como delinquente, mostra nuances que o colocam como um
rapaz bem-intencionado e com sentimentos nobres, o fazendo oscilar entre
o “bem” e o “mal”, colocando-se, assim como White e Raskolnikov, na
fronteira de suas ações e no inacabamento de seu ser.
O “eu-lírico” do funk Rave de Favela, quer baile, quer álcool, quer sexo,
não importa o sexo, e como em toda “boa rave”, deseja viver um “delírio”,
um “arrebatamento”, já que, mesmo sendo na favela, “rave com funk ficou
[mais] excitante”.
Podemos nos perguntar o que há de tão sedutor nesses personagens que
nos atraem de maneira tal que os lemos, vemos, ouvimos, cantamos, de
forma ininterrupta e incessante, instaurando, concomitantemente, repulsa
e atração, fadiga e admiração, afinidade e desprezo? Quem são esses
“homens” e o que “representam” em nós e para nós? Ou quem somos nós
neles? Que “eu” se revela por meio “deles”, que, de maneira deliberada,
nos impõe e traduz a própria vida?
E o que nos diz sobre eles, Mikhail Bakhtin, um homem que conviveu 58
anos com o regime stalinista e que, sofrendo os reveses do exílio, calado
e perseguido, na então União Soviética nos anos 1930, encontrou na
literatura o mosaico de vozes capaz de expressar e denunciar a alma
humana?
Em “Problemas da Poética de Dostoievski”, Bakhtin conceitua o homem
como um ser totalmente indefinido, inacabado, sempre como “vir a ser”,
em um eterno “porvir”, que se desvela, incondicionalmente, humano e ao
mesmo tempo irracional, polvilhado de incertezas que o redefinem como
um misto de mocinho e bandido, existindo enquanto ser sempre “no
limiar” (BAKHTIN, 2018). Já, em “Questões de Literatura e Estética”
(2014), mostra a importância de Rabelais para a literatura e o pensamento
de sua época, ao desnudar e tirar o humano de sua condição limitada aos
tabus e valores da época.
Assim, se em Dostoievski o homem passa a ser entendido sob a ótica do
“por vir”, em Rabelais, por meio da “estratificação linguística”, passa a
ser visto de uma forma ampla, em que se rompem as barreiras e os valores
que hierarquizavam e limitavam a linguagem, pois marginalizavam a
cultura popular (BAKHTIN, 2014). Pode-se dizer que ambos os
personagens apresentam, como dito pelo próprio Bakhtin (2014, 2018),

1013
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

um novo olhar sobre a linguagem, por meio da qual, diferentemente da


literatura romantizada, vislumbra-se o homem “real”, o “homem no
homem”, incidindo, consequentemente, para além da renovação e
reinvenção da própria literatura, na emersão de uma “outra” concepção
humana.
É certo que Raskolnikov, o Homem do Subterrâneo, Gargântua e
Pantagruel, traduzidos por Dostoievski e Rabelais, expressam um conceito
de homem em Bakhtin, que, embora entendendo o humano como ser
indefinido, dá conta de sua própria integridade, pois o tem em sua
plenitude, absorto em seus distintos contextos de vida e em todas as
diferentes e diversas tessituras sociais que o cercam e que o colocam
sempre em posição limítrofe, “prelúdica” e na mais incompletude de seu
ser.
O que diria, pois, Bakhtin de Walter White e do Funkeiro que canta o sexo,
o álcool e a festa rave? Que contradições e similaridades imprimiria em
suas observações acerca deles?
Se em White, temos o desespero e o sofrimento como propulsores da
delinquência e da criminalidade, assim como em Raskolnikov, temos no
Funk a exacerbação da sexualidade e da sexualização, exprimindo a
essência do grotesco, assim como em Gargântua e Pantagruel.
Destarte, entendemos, por meio Bakhtin e com ele, que, em White e no
Funk, é a essência do homem que se desnuda, captada, agora não mais por
Dostoievski e Rabelais, mas pela cultura popular atual, que continua
revelando-se grotesca, e inculta frente aos olhos de alguns “castos”.
Essência que se desvela, tão inconstante e controversa, impura e incasta,
mas ao mesmo tempo, real e possível. Logo, é o próprio homem que se
manifesta, independentemente de classe social, um homem no encalço de
sua perfeição, mas extremamente imperfeito, e por isso insatisfeito e
infeliz, na sua ad aeternum via crucis em busca da felicidade. Daí a
atração e o fascínio por esses personagens.
Em meio a um cenário mundial marcado pelo conservadorismo e pela
inculcação de um falso moralismo, encontramos uma cultura popular
submersa e imersa nos “submundos da sociedade”, que, para muitos, não
pode ser chamar de cultura. Assim como Breaking Bread, o “Funk” da
favela provoca olhares e opiniões contraditórias; suas letras, carregadas de
sexualidade exacerbada, expressam uma linguagem periférica e violência
e os “guardiões da família brasileira” não podem suportar essa
“blasfêmia”, esse “lixo musical”, já que esse “caos” pode perturbar a sua

1014
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“ordem” e revelar o que realmente são e tentam incessantemente esconder


de si mesmos e do “mundo que o cerca”.
Se, de acordo com Bakhtin (2014), Rabelais, ao evidenciar o bizarro,
mostra o homem popular em sua mais intrínseca realidade, o Funk
demonstra, ao salientar algumas nuances atuais também esdrúxulos, a
realidade do homem atual, residente das favelas e das periferias. Esse
homem que mora em locais, historicamente, marginalizados, onde
políticas públicas são escassas e a violência e a pobreza imperam. Como
disse a cantora Anitta em uma de suas entrevistas: “O funkeiro canta a
realidade dele. (...) Para mudar as letras do funk, você tem que mudar antes
a realidade de quem está naquela área”. Mas, onde a empatia (antipatia)
com essas figuras? O quê ou “que outro” verdadeiramente transparecem
ou escondem que aproximam ou apartam? São as palavras do outro
ecoando em mim ou eu que sempre estive nas palavras do outro?
[...] eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é
uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma reação
infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no
processo de domínio inicial do discurso) e terminando na assimilação das
riquezas da cultura humana (expressa em palavras ou em outros materiais
semióticos). (...). Para cada indivíduo, essa desintegração de todo o
expresso na palavra em um pequeno mundinho das suas palavras
(sentidas como suas) e o imenso e infinito mundo das palavras do outro
são o fato primário da consciência humana e da vida humana [...]
(BAKHTIN, 2017, p. 38).
Logo, é no outro que a minha/nossa essência existe, porque a minha
consciência não existe sem o outro, já que “[...] eu tomo consciência de
mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através
do outro e com o auxílio do outro. [...]” (BAKHTIN, 2011, p. 341). Assim,
se vivemos em eterno “devir”, vivemos na alteridade e é somente nela e
com ela que nos compreendemos.
Portanto, em nossa condição de inacabamento, encontramos em
Raskolnikov, no Homem do Subterrâneo, em Gargântua e Pantagruel, em
Walter White e no Funk o outro, que nos acalma ou aterroriza,
evidenciando em nossa própria existência quem realmente somos,
afundados em nossa própria caricatura, uma vez que o outro me dá a
medida de mim, e dele não há como fugir, nem mesmo me travestindo de
outro eu.

1015
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Consideramos, com este ensaio preliminar, a possibilidade de um início


de diálogo, que se abre a um Bakhtin contemporâneo, que expõe e explica
nossa própria “surrealidade”, em meio ao caos que se quer ordem, e nos
afirma em nossa alteridade impositiva e soberana.

Referências:
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética: A teoria do
romance. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. Trad. de Paulo
Bezerra. São Paulo/SP: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas.
Trad. do russo por Paulo Bezerra. São Paulo/SP: Editora 34, 2017.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas na Poética de Dostoievsky. 5 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2018.
DOSTOIEVSKI, Fiodor. 1821 – 1881. Crime e castigo / Dostoiévski;
tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Porto Alegre, RS: L&PM,
2008.
DOSTOIEVSKI, Fiodor. 1821 – 1881. Notas do Subterrâneo /
Dostoiévski; tradução Moacir Werneck de Castro. 7 ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2009.
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Trad. David Jardim
Júnior. Belo Horizonte: Itatiaia, 2009.
MC Lan, Anitta e Major Lazer. Rave de Favela. Disponível em:
https://www.vagalume.com.br/anitta/rave-de-favela-part-major-lazer-
mc-lan.html. Acesso em 20/07/2021

1016
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O CORPO E A ALTERIDADE DA DEFICIÊNCIA EM CHOVE


NOS CAMPOS DE CACHOEIRA: O GROTESCO NO
MARAJÓ?

Huber Kline Guedes Lobato


Universidade Federal do Pará
huberkline@gmail.com

Pra começo de conversa...

Trago esse Mapa Conceitual[1] para mostrar a forma como


organizo as ideias a partir da leitura e análise de um texto.
Compreendo que as ideias impressas nos textos de um livro, artigo,
teses, dissertações e outros, podem ser transformadas em um Mapa

1017
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Conceitual. Assim, é possível elencar os principais conceitos do


todo da obra e organizá-los mediante uma figura verbo-visual que
é o Mapa Conceitual.
Aqui nesse texto, o Mapa Conceitual será a porta de entrada para
que o leitor compreenda as minhas palavras e as transforme em
palavras alheias. No Mapa trago as principais características da
personagem Marialva que é uma menina do romance Chove nos
Campos de Cachoeira (a seguir CCC ou “Chove”) do escritor
paraense e marajoara Dalcídio Jurandir.
A obra trata dos caminhos percorridos por Alfredo e seu irmão
Eutanázio em Cachoeira do Arari no Pará. É no limiar das
narrativas, das lembranças e dos acontecimentos desses
personagens que surgem as pessoas com deficiência do contexto
paraense. Muitas vezes essas pessoas são vistas como grotescas no
contexto da obra.
Assim, o texto que escrevi traz em seu título o seguinte
questionamento: O grotesco no Marajó? A intenção é provocar o
leitor para que reflita sobre a pessoa com deficiência e pense acerca
dos corpos e das alteridades deficientes presentes em nosso
contexto social. Será que essas pessoas são consideradas grotescas
em CCC?
Para abordar a ideia de Grotesco, trago os apontamentos de
Bakhtin sobre a imagem grotesca do corpo na obra A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais (BAKHTIN, 1987). Assim, o corpo com
deficiência será analisado sob a ótica bakhtiniana a partir de alguns
excertos sobre a personagem Marialva que aparece no romance
dalcidiano.[2]

É por isso que eu digo...


Antes de adentrar na análise do Mapa Conceitual e da personagem
Marialva é preciso entender dois conceitos-chave que apresentam-

1018
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

se aqui nesse texto desde o seu título: o corpo e a alteridade da


deficiência.
Em relação ao corpo, Bakhtin (1987, p. 277) diz que “[...] o corpo
grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto nem
acabado [...]”. Esse corpo, por ser dinâmico, é compreendido a
partir dos atos de comer, de defecar, de urinar, de copular, de dar
à luz, por meio dos orifícios que ligam esse corpo ao mundo
exterior e a outros corpos, inclusive os deficientes.
Esse corpo incompleto e ativo pode ter inúmeras formas: de
humano, de animal, de monstro, de anjo, de diabos e de deuses.
Mas que não é um corpo individual, pois pelas suas cavidades e
excrescência constitui um outro corpo. Conforme Bakhtin (1987, p.
278) “[...] o corpo grotesco é cósmico e universal [...]”, por isso,
inconcluso e mutável em sua alteridade.
O conceito de alteridade pautado em Mikhail Bakhtin é um
princípio arquitetônico do mundo real, implicando que a vida
conhece dois centros de valores que são essencialmente diferentes,
mas correlacionados um com o outro: “[...] eu e o outro; e é em
torno desses centros que todos os momentos concretos do Ser se
distribuem e se arranjam” (BAKHTIN, 2014, p. 81).
Em relação ao corpo e a alteridade da deficiência, utilizo o
pensamento de Skliar (1999) sobre a invenção e a exclusão da
alteridade deficiente a partir dos significados da normalidade. O
autor traz críticas ao mencionar que: o ser deficiente auditivo, o ser
deficiente visual, o ser deficiente intelectual, “[...] constituem,
todavia, a matriz representacional, a raiz do significado identitário,
a fonte única de caracterização – biológica – desses outros (SKLIAR,
1999, 19-20).
O corpo e a alteridade da deficiência precisam ser compreendidos
por meio de fontes sociais, culturais, históricas e políticas. O fator
biológico não é o mais relevante e interessante para a compreensão
da deficiência. Cabe um olhar para o seu contexto arquitetônico e

1019
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

para o seu mundo concreto. Assim, intento analisar a pessoa com


deficiência em CCC de Dalcídio Jurandir.

Eu te disse, não disse?!...


Se não disse, então vou dizer que em si a obra Chove nos Campos
de Cachoeira é um texto grotesco dalcidiano que rompe com o ideal
do belo amazônico, das florestas exuberantes, de um Marajó de
lindos rios e maravilhosas praias. O romance explora, de maneira
concreta e real, os aspectos do sofrimento, da pobreza, da doença e
da miséria. Traz personagens que mostram o lado grotesco
bakhtiniano do ser marajoara.
O romance é de 1941 e compõe um conjunto de 10 (dez) livros de
Dalcídio Jurandir que formam o chamado Ciclo do Extremo Norte.
O autor é grotesco por expurgar a pobreza do Marajó. Dalcídio, por
meio de suas palavras, dar à luz ou vomita toda a miséria que aflige
a vida dos moradores da região amazônica e marajoara. O autor
diferencia-se dos demais escritores da década de 1930, pois não traz
a beleza esplêndida da região, mas a pobreza vivida em seus
personagens, inclusive a amargura de uma personagem com
deficiência.
A menina cega no “Chove”, surge a partir das lembranças de seu
pai – o Major Alberto – e de seu irmão – o moribundo Eutanázio. A
garota é uma personagem dos momentos de reflexão do pai e do
filho. Por meio das memórias e das vozes de ambos, navegamos no
horizonte de Marialva. Os dois moram em Cachoeira do Arari. Já a
menina cega – que é a caçula – mora com as duas irmãs em Muaná.
A análise que faço sobre a personagem dar-se a partir de dois
elementos que a caracterizam: a hipérbole e o eufemismo. Em
relação a hipérbole, ou seja, um pensamento que consiste em
exagerar algo com finalidade expressiva, percebe-se o uso de
alguns termos como: muito branca, muito frágil, seus pés muito
brancos, se alongam, e sua solidão aumenta.

1020
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Neste sentido, os “[...] exageros se encontram nas imagens do corpo


e da vida corporal, assim como em outras imagens [...]”
(BAKHTIN, 1987, p. 265). As caraterísticas superabundantes da
personagem são cruciais para que o leitor perceba o corpo e a
alteridade deficiente de Marialva. Há, assim, um corpo grotesco
que encontra-se em profusão e em excesso. Isso demarca o estilo
grotesco de Marialva.
Tem-se também o eufemismo, isto é, o uso de termos mais
agradáveis para suavizar uma expressão. Inclusive, a Marialva é
caracterizada pelo uso de: ceguinha, freirinha e fininha. São termos
que, além de escritos no diminutivo, suavizam o sentido da
alteridade deficiente e mostram um corpo grotesco eufêmico.
Dessa forma, o autor pariu o corpo e a alteridade deficiente em
“Chove” por meio de um grotesco compreendido como um
fenômeno artístico e social. No seio desse ser grotesco há a sua
ambivalência e a sua dialética, sobretudo quando o autor usa a
hipérbole e, ao mesmo tempo, o eufemismo para revelar as vozes,
o horizonte e o ambiente de Marialva e de sua realidade marajoara.
É relevante destacar que a personagem mostra, também, toda a sua
subversão e ao ficar “[...] enfezada na rede, ela pensa fugir assim
mesmo cega” (JURANDIR, 2019, p. 88). Existe uma Marialva que,
mesmo a sociedade da década de 1940 tratando-a de forma
exuberante e eufêmica, é revoltada contra a ordem social vigente.
A sua vontade de fugir, revela um corpo e uma alteridade
deficiente inconformada com as vozes sociais.
Marialva foi emoldurada há quase um século. Mesmo assim, a
menina cega se faz presente em nossos tempos. Seu corpo grotesco
hoje é visto por meio de “[...] algumas representações sociais das
identidades dos sujeitos deficientes [...] (SKLIAR, 1999, p. 19). Tais
representações engendram falas preconceituosas sobre o corpo e a
alteridade deficiente na sociedade.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Pra (não) encerrar essa conversa...


Peço ao leitor que retome seu olhar para o Mapa Conceitual
elaborado no início do texto. O mapa tem um sentido filosófico em
seus detalhes, pois busquei mostrar, verbo-visualmente, um efeito
aumentativo e diminutivo em seus diagramas. Até mesmo, o nome
“Marialva” na vertical esquerda começa com letras maiores e
finaliza com letras menores: fiz isso para evocar a hipérbole e o
eufemismo do texto de Dalcídio Jurandir e sua personagem com
deficiência.
Dalcídio é grotesco ao trazer uma personagem com deficiência
junto a uma Amazônia e um Marajó de muitos percalços sociais.
Hoje os corpos e as alteridades com deficiências são vistos
grosseiramente – inclusive, pelo Ministro da Educação – como
aqueles que atrapalham a sala de aula e que é impossível a
convivência. Que sejamos grotescos bakhtinianos no sentido de
carnavalizar e rir dessas vozes e representações, bem como lutar
para que sejam expurgadas para longe de nossos tempos,
ambientes e horizontes. É preciso resistência!

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1987.
________. Para uma filosofia do Acto. Trad. de Carlos Alberto
Faraco e Cristovão Tezza. coord. Bruno Monteiro. Porto: Deriva
editores, 2014.
LOBATO, Huber Kline Guedes; BENTES, José Anchieta de
Oliveira. O uso de mapas conceituais na pesquisa de

1022
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

representações sociais. In: OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de;


OLIVEIRA, Waldma Maíra Menezes de; LOBATO, Huber Kline
Guedes (orgs.). Pesquisa educacional sobre representações
sociais: o uso da técnica do desenho e dos mapas conceituais. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2018, p. 55-86.
SKLIAR, C. A invenção e a exclusão da alteridade "deficiente” a
partir dos significados da normalidade. Revista Educação &
Realidade. 24 (1), p. 15-32, jul/dez, 1999.

NOTAS
[1] Para Lobato e Bentes (2018, p. 73) o “Mapa Conceitual é um
elemento que possui diversos conceitos que indicam relações entre
cada conceito ou palavra os quais usamos para representar algo no
mapa”.
[2] Chove nos Campos de Cachoeira apresenta três personagens
com deficiências: a irmã de Eutanázio chamada Marialva (cega); o
sineiro da cidade conhecido por: seu Leão (surdo); e um garoto
apelidado de Bode (surdo). Aqui, analiso apenas a personagem
Marialva.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O corpo e a fome: do riso subversivo ao grotesco nada


ambivalente

Patrícia da Silva Pacheco


Colégio Pedro II / GEGe
emilialobato71@gmail.com

I
Éramos aproximadamente dez professoras em encontro de planejamento
em uma sala virtual do Meet. E isso nem faz tanto tempo assim: não foi
no tempo em que os bichos falavam, mas no ano 2 da nova era pandêmica
dominada pelo Sars-CoV-2, mais conhecido como Coronavírus. Tempo
estranho! Tamanho avanço tecnológico, que nos permite encontros
virtuais outrora concebidos apenas em filmes de ficção científica,
convivendo com uma pandemia que nos traz de volta métodos de
prevenção de contágio viral dos tempos em que os bichos falavam...
Pensando bem, acho que os bichos continuam falando sim. Aliás,
gritando: principalmente por socorro! Muitos de nós, infelizmente, é que
perdemos a capacidade de conversar e ecoar suas vozes. Diante de tantos
estímulos técnico-audiovisuais, parece que ficamos surdos. Incapazes de
compreender o que rios, rochas, matas, mares, bichos e seres das mais
diversas naturezas, que estão aqui há muito mais tempo, têm a
ensinar. Surdos que nos tornamos a esses irmãos, quebramos o elo com
nossa própria ancestralidade. E quem fala isso é uma voz muito querida
que sabe conversar com essas energias ancestrais: Ailton Krenak! Sua voz
potente, fecundada numa escuta atenta, vem tentando acordar nossos
ouvidos. Não por acaso, na atual era pandêmica, vem se tornando uma
pronúncia de mundo das mais ouvidas em diferentes canais digitais e salas
virtuais.
Espero que consigamos ouvir de verdade. Recuperar o princípio da escuta
de nossa própria ancestralidade numa interlocução amorosa com KrenaK:
conectar o pequeno e mesquinho tempo de nossa existência pandêmica
com o grande tempo do Simpósio Universal de que nos fala Bakhtin. E

1024
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que nesse simpósio, tecido dialógico da existência humana, possam ser


contemplados rios, rochas, mares, matas e bichos para que consigamos
frear tamanho desequilíbrio ambiental que explode em pandemias. Quem
sabe assim, os encontros virtuais, em que cada um fica literalmente no seu
quadrado, sejam uma opção para diluir fronteiras geográficas
estabelecidas por longas distâncias, mas não uma obrigação exclusiva
quando o contato presencial se torna uma ameaça.
Pois bem, éramos aproximadamente dez professoras dos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental, de uma escola da Rede Pública Federal de Ensino,
na cidade do Rio de Janeiro. Cada uma no seu quadrado virtual,
conversávamos sobre possibilidades de trabalhar o conto popular “Sopa
de Pedra”, recontado por Ana Maria Machado, com nossas turmas de 3º
ano de escolaridade. Eram várias as propostas quando a conversa
enveredou para uma análise da figura de Pedro Malasartes, personagem
central da narrativa, em seu ato de esperteza que estava sendo associado
ao famoso “jeitinho brasileiro”, numa alusão ao que se poderia chamar de
“malandragem: necessidade de levar vantagem passando a perna nos
outros”. Nesse momento, meu ouvido que tenta arduamente desenvolver
uma escuta dialógica, lembrou uma vez mais de Bakhtin, algo recorrente
quando o assunto é Literatura na vertente arte, política e vida. E nessa
escuta, tentei trazer a ideia da carnavalização e do riso subversivo. As
colegas se interessaram e abriram espaço para que criássemos proposições
em que as crianças dialogassem com Pedro Malasartes e sua “Sopa de
Pedras” na perspectiva apresentada.
Se você não conhece esse conto, é fácil encontrar nas redes. Inclusive em
vídeos no You Tube na voz de Bia Bedran e diversas outras contadoras e
contadores de histórias. Antes de seguir nessa conversa, dá uma paradinha.
Vai lá. Faz um encontro com Pedro Malasartes ou outra personagem que,
dependendo da versão escolhida, protagoniza a narrativa e faz valerem
artimanhas subversivas para vencer imperativos de uma cultura oficial que
prima por um corpo individual apartado de seu teor coletivo, comunitário,
aberto, ambivalente...
Depois volta aqui e vamos continuar essa prosa...

II
Gostaria de continuar essa prosa entre mim, você, Pedro Malasartes e
Bakhtin tendo por horizonte a questão ideológica, bem complexa, por

1025
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sinal, pois não se prende a um único sentido. Na concepção alteritária de


linguagem e de sujeito apresentada pelo Círculo Bakhtiniano, o signo
ideológico assume caráter central justamente por compreender a ação da
linguagem e do sujeito no mundo em sua singularidade polifônico-
dialógica que não apenas reflete como também refrata a realidade. Sendo
assim, a expressão é um signo ideológico ao propor, para além de um
“espelhamento mimético” do real, uma possibilidade de refratar as
imagens cotidianas em múltiplos sentidos: centelhas que irrompem do
contínuo estabilizado e emergem em novas formas de sentir e
pensar sobre si, o outro, o mundo. Isso se deve em grande parte pelo fato
de a palavra, ou qualquer outra forma de expressão, se constituir como
arena de luta, o sensor mais sensível das ações e lutas cotidianas. Mas o
que isso tem a ver com os chamados contos populares ou de tradição oral,
como “Sopa de Pedra”, por exemplo?
Tais contos, de certa forma, refletem o subjugo em que os chamados
“oprimidos” são submetidos por parte dos “opressores” desde tempos
remotos. Mas, ao mesmo tempo em que refletem a opressão, também se
constituem em uma forma de refração dessa realidade, de transformação na
palavra e no riso subversivo do estado de submissão imposto pela chamada
cultura oficial “estabilizada” e estabilizadora de sentidos. Se, por um lado,
acabam por reproduzir ou cristalizar preconceitos de classe e valores
oficialmente estigmatizados, por outro, também vão sofrendo modificações
na tentativa de afirmar valores que refratam novas formas de pensar e agir.
Eis aí a arena de luta em que a palavra se torna palco e que nos faz
compreender a expressão viva como a afiguração das ideologias do cotidiano
em conflito e transformação.
Bakhtin acreditava que, nas classes populares, esse movimento de subversão
dos sentidos opressores cristalizados, em geral, se dava de forma mais
dinâmica do que nas classes socialmente privilegiadas ou naquelas que
acabam por se identificar e, numa ação alienada, reforçam essa hierarquia.
Para o filósofo russo, a principal forma de subverter os sentidos oficiais
estabilizados é no riso ambivalente, crítico, grotesco, na palavra irônica
desmoronadora da cultura que privilegia o “alto corporal” (cabeça: sede de
um pensamento muitas vezes apartado das confluências vivas e fecundas da
cultura). É nesse âmbito que se destacam alguns dos chamados contos
populares, que, geralmente, fazem alusões ao “baixo corporal”: o estômago,
o intestino, às genitálias, aos orifícios de excreção... Simbolicamente, é no
comer, beber, mijar, cagar que a vida cotidiana se renova. Escatologia que
apresenta momentos finais de uma forma vital que, ao ser absorvida pela terra,
reinicia um novo ciclo de fertilidade. Na cópula, que também está ligada ao

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

baixo corporal, é a própria renovação da existência que se afigura


explicitamente. E nessa cultura dos “de baixo”, seja na pirâmide social ou nas
instâncias corporais, as sensações estão presentes na tomada de consciência
para uma nova vida. Não se apartam de uma consciência intelectualizada.
Sem segmentar pensamentos e sensações, os contos populares como
“Sopa de Pedra” mostram que os desafios cotidianos se apoiam em ambas
as dimensões. O ato ético e o comportamento estético, apesar de ocuparem
campos distintos na existência (esfera da vida e esfera da cultura,
respectivamente), se encontram no momento singular do fazer responsivo-
responsável. Cultivar determinados valores na relação com o outro está
interligado com o que sinto, com o que vejo, como vivo, com o que sofro
e preciso superar, transformar em mim e na relação com o meu grupo
social. Para isso, a palavra fria, mecânica, burocratizada, estabilizada e
reprodutora de um pensamento único não dá conta. É preciso criar formas
outras de agir numa expressão viva, criadora, que contorna pelo riso
subversivo e ambivalente as formas estáticas da vida.
Pedro Malasartes, para conseguir comer (satisfazer uma função básica do
seu baixo corporal) e subverter a avareza que cotidianamente encontra em
seu caminho, usa dessa palavra e desse riso subversivo, numa tentativa
extrema de sobrevivência. Numa alusão a Perseu, que tomo emprestada
de Ítalo Calvino, “usa sua palavra como escudo que lhe permite olhar
indiretamente para a Medusa”. Assim, em vez de ser petrificado pela
fome, corta a cabeça da indiferença alheia e, em seguida, a convida para
comerem juntos. Eis o riso subversivo e ambivalente. Eis a forma como,
muitas vezes, “os de baixo” agem: nas brechas e em desvio diante de um
contínuo de opressão que não cessa de vencer esse jogo pela força
arbitrária, fria, individualista e excludente. Malasartes tenta se afirmar e
vencer, dia a dia, nos conflitos cotidianos, na palavra carnavalizada, na
esperteza do riso que subverte. Artes de ser e viver em tensão.

III
Um pouco depois do encontro virtual com minhas colegas de trabalho, que
me levou a elaborar uma conversa entre “nossas e nossos” estudantes,
Pedro Malasartes e Bakhtin, sob a perspectiva do riso e da palavra
carnavalizada, sou estética e eticamente impactada pela postagem da
amiga Rita Ribes, em outro ambiente de interação nas redes: Facebook.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A realidade da fome, presente em “Sopa de Pedra”, uma vez mais me assalta


os olhos e os demais sentidos, mas dessa vez, como em tantas outras em que
sou assaltada por essa imagem, nada virtual, nas inumeráveis esquinas,
marquises, calçadas de minha cidade, não encontro o riso subversivo
afigurado pela “esperteza” de Pedro Malasartes. Ao contrário, escuto uma
palavra única que insiste em afirmar que a vida não é para todas e todos. Que
muitos e muitos corpos são inúteis e desnecessários. O Mercado, essa
entidade que ganhou vida própria, já se alimenta e se dá por satisfeito com 1/3
de nossos corpos consumidores. O restante é desprezível e, assim sendo, não
gera riquezas e não participa do banquete de produção de lucros para a nação.
Corpos que não somam para aumentar os índices de nosso (atualmente) parco
Produto Interno Bruto e tampouco são vislumbrados pelas “ações
responsáveis” para a ampliação do Índice de Desenvolvimento Humano
(igualmente parcas nesse momento pandêmico-fascista da política nacional e
internacional).
Ao pensar na imagem da fome em “Sopa de Pedra” e em como Pedro
Malasartes subverte no riso essa realidade, fui ao encontro de Bakhtin em
sua obra sobre a Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento,
convidada a conversar com Rabelais e suas figuras “patagruelescas” que
evocam a festa e a carnavalização para pensar a vida em sua dimensão
transformadora, ambivalente, desestabilizadora de sentidos únicos. Com o
realismo grotesco presente nas imagens rabelaisianas, compreendi o
sentido do “baixo corporal” numa relação de extrema comunhão com a
terra que acolhe os restos de nossas atividades corporais essenciais como
o mijo, a merda, nosso próprio corpo em decomposição num trabalho
cíclico de renovação da vida. Fertilidade. A terra túmulo também é terra
ventre.
Permanecendo na esfera do grotesco, que tem no termo
latino grota (gruta) sua raiz etimológica, ainda guiada por Bakhtin e
Rabelais, fui levada para os subterrâneos da Roma antiga, nas Termas de
Tito, onde tomei conhecimento da existência de figuras ornamentais tidas
como insólitas por não apresentarem fronteiras que delimitassem as
esferas minerais, vegetais e animais. Alusões a formas em transmutações
e confluências que metamorfoseiam-se evocando sentidos de
inacabamento constante da existência em um grande corpo coletivo.
Seja na terra que acolhe os excrementos em decomposição e se torna ao
mesmo tempo ventre prenhe de fertilidade, seja nos subterrâneos em que
uma vida pulsante corre e se erige em conexões inacabadas independente
do poder oficial que tenta se impor como único e possível ponto de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

chegada, o realismo grotesco nos apresenta um corpo social, coletivo,


aberto, com todos os orifícios em festa, em comunhão com a vida em
transformação. O corpo grotesco seria assim um corpo revolucionário que
se afigura sem medo do poder opressor que tenta negar sua existência. Um
corpo gigantesco como o de Gargântua que não se inibe diante da
opulência da Notre Dame: do alto da catedral, mija sem pudor alagando
todo o entorno, submergindo os sentidos aí constituídos pela ordem
vigente: eclesiastas e seus comparsas.
Em contraposição, de volta à nossa era pandêmica e à postagem da amiga
Rita, vejo a tentativa crescente de ausentar o corpo alheio: é a tentativa de
anulação de muitos corpos o que vem se afigurando. Uma imagem em
negação da existência. Descartados para os subterrâneos da invisibilidade,
esses corpos individualizados habitam ruas e “grutas” que em nada se
assemelham ao grotesco vislumbrado por Bakhtin nas figuras gigantescas
apresentadas por Rabelais ou nos ornamentos “insólitos” das escavações
nas Termas de Tito. Nenhum sentido subversivo. Nenhuma ideia de
metamorfose. É o próprio acabamento do sentido de humanidade presa
que está nas cadeias cada vez mais fragmentárias da existência que separa
um corpo do seu grande corpo coletivo.
Quando o comer e o morar são negados pelo jogo do poder opressor, todo
o resto das atividades corporais se degenera sem perspectiva de
regeneração: copular, mijar, cagar estão desconectados dos sentidos
transformadores da vida, pois não existe uma terra que acolha e regenere.
A esterilidade social ganha corpo no individualismo capitalista. Aí está a
grande diferença entre o realismo grotesco renascentista e o grotesco nada
ambivalente que ganha força quanto mais despregados do comunitário nos
tornamos. Daí, urgem muitas conversas entre crianças de todas as idades,
Pedro Malasartes, Bakhtin, Rabelais, Krenak, rios, pedras, matos, mares,
bichos, gentes, eu, você, nós. Que possamos todas e todos desfrutar desse
banquete revolucionário na palavra e nas ações cotidianas. No um mais
um. Nem que seja a partir de uma horta com sopas comunitárias
embriagadas e embriagados de literaturas! Saúde!

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto da obra de François Rabelais. Trad.: Yara
Frateschi Vieira. Brasília: Editora da UnB, 1987.

1029
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

____. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.


____. Para uma filosofia do ato responsável. Pedro & João Ed., 2010.
_____. Estética da criação verbal. Martins Fontes, 2011.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições
americanas. Editora Companhia das Letras, 1990.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
______. A vida não é útil. Companhia das Letras, 2020.
MACHADO, Ana Maria. Sopa de Pedra. 1. ed. [S. l.]: LpC, 2021. 8 p.
Livro digitalizado.

1030
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O corpo e a voz da pessoa com deficiência como contrapalavra e


resistência ao segregacionismo oficial

Bárbara Cibelli da Silva Monteagudo


Unesp
escfabarbara@yahoo.com.br

O presente texto pretende dialogar na busca de compreender as forças


centrífugas e centrípetas bakhtinianas como forças presentes na vida
humana. Se as forças centrípetas buscam centralizar, monologizar, se
constituem como forças oficiais, as forças centrífugas buscam repelir,
descentralizar, romper com a palavra única. Recentemente no Brasil, o
Ministro da Educação, realizou uma entrevista e suas palavras buscavam
criar uma ideia de normal e com isto, excluir e segregar a pessoa com
deficiência da matrícula em salas regulares, se contrapondo às leis
brasileiras e internacionais que preconizam o direito à inclusão da pessoa
com deficiência na rede regular de ensino. Antes da inclusão como
perspectiva educacional e social a escola exigia que o aluno se adequasse
para integrar-se, hoje, ela deve se adequar para incluir o aluno, uma
mudança de paradigma da integração para inclusão. Nosso Ministro, como
nós brasileiros e o mundo pudemos ver e escutar, se opõe à inclusão.
Nós temos hoje 1,3 milhão de crianças com deficiência que estudam
nas escolas públicas. Desse total, 12% têm um grau de deficiência
que é impossível a convivência. O que o nosso governo fez: em vez
de simplesmente jogá-los dentro de uma sala de aula, pelo
“inclusivismo”, nós estamos criando salas especiais para que essas
crianças possam receber o tratamento que merecem e precisam
(Mílton Ribeiro, Ministro da Educação do Brasil, entrevista em
19/08/2021).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Uma simples consulta, o discurso e dados utilizados pelo Ministro caem


por terra, de acordo com os dados do censo, em 2020, 13,5% das crianças
e jovens brasileiros ainda são matriculados em salas ou escolas exclusivas,
portanto, não estão incluídas em escolas regulares. Então, se houvesse um
Ministério da Educação realmente preocupado com a inclusão, seria
necessário uma politica pública que se preocupasse em entender porque
ainda 13,5% dos alunos com deficiência encontram-se segregados e não o
contrário. Importa a nós trazer os corpos, as vozes das pessoas com
deficiência como contrapalavra ao senhor Ministro e analisar o contexto
em que se inserem a partir dos conceitos de corpo grotesco, praça pública
e carnavalização como forças centrífugas que lutam pela liberdade e
inclusão de todos.

As vozes de três influenciadoras digitais em reposta ao Ministro da


Educação
Com a palavra Tathi: “Ministro, eu não atrapalho ninguém, o senhor
atrapalha o Brasil”(Tathi Piancastelli, influenciadora digital). Tathi
carnavaliza, destrona o Ministro, a palavra oficial e entrona o popular, a
voz da pessoa com deficiência mostra que é um sujeito e não recuará em
sua luta.

Fonte: http://portalf11.com.br/bloco/103373/0/noticias

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Com a palavra Ivy, influenciadora digital filha do Senador e ex-jogador


de futebol Romário: “A deficiência não nos torna incapaz”. Ao dizer isto,
Ivy ironiza, porque torna o Ministro incapaz de incluir, sua palavra
demonstra o quão incapaz o homem de Estado é, sua voz torna visível ao
povo brasileiro que uma pessoa com deficiência conhece todos os lados,
inclusive o discurso e a incapacidade de um sujeito que segrega, exclui.
Ivy se entrona como uma voz inclusiva, como sujeito humano capaz de
reconhecer as potencialidades de cada um, ao mesmo tempo carnavaliza
ao destronar quem deveria ser uma autoridade pela inclusão. Ela se coroa
uma autoridade em seu discurso pela capacidade de cada ser humano.

Fonte: https://conexaoplaneta.com.br/blog/ivy-faria-filha-de-
romario-que-tem-sindrome-de-down-escreve-carta-ao-ministro-da-
educacao-e-rebate-sua-infeliz-declaracao/

Com a palavra Laíssa Silva: “Senhor Ministro da educação, sou Laíssa


Guerreira, uma adolescente com deficiência e quero lhe fazer um pedido,
se não nos ajuda com a inclusão, que Vossa Excelência possa se excluir
da educação, não nos atrapalhe”. Laíssa inverte, pela inclusão mostra que
o Ministro não está à altura das demandas sociais e educacionais de seu
cargo, satiriza sua fala, promove o riso, carnavaliza a palavra oficial.

1033
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: https://oglobo.globo.com/brasil/direitos-humanos/ativista-
de-15-anos-lamenta-fala-de-ministro-da-educacao-contra-inclusao-
de-pessoas-com-deficiencia-precisamos-de-acolhimento-empatia-
25172961

Três corpos, três vozes que emitem sua contrapalvra e canavalizam,


invertem, o não-oficial ganha espaço e se contrapõe ao oficial nas redes
sociais, no espaço virtual.
Corpo grotesco em contraposição ao belo
O corpo grotesco bakhtiniano permite a contraposição aos padrões de
beleza corporal, ao oficial. O belo em uma perspectiva hegemônica é
bonito e o feio é mau. O correto e errado se tornam plausíveis pelo
conceito de belo instalado pelo oficial que inclui e exclui (pela
representação negativa ou pela negação). Um corpo real, inacabado, que
desafia as representações do “normal” de nosso tempo, um corpo grotesco
possibilita a resistência ao oficial.
Bakhtin destaca o realismo grotesco como distanciamento da cultura
helenística clássica, também apresenta a importância do romanesco por
reconhecer a vida e a cultura na subjetividade do ato humano, dos corpos,
porque celebra a pessoa, a cultura popular. O corpo adquire um valor não
apenas biológico, mas um valor cultural. O corpo de um sujeito e seus

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

limites não podem ser percebidos por si mesmo, para Bakhtin (2003), há
um corpo interno que é percebido pelo sujeito, um elemento de
autoconsciência em que se tem sensações, necessidades, controlado pelo
sujeito e um modo de existência do corpo que permite sua totalidade, a
completude possível apenas na vida destes corpos com o mundo exterior.
O corpo precisa do outro, ele não se basta por si mesmo, o outro que o
reconhece. O corpo exterior também traz consigo o corpo interior,
formando um todo, assumindo o corpo um valor cultural. Na arte, o sujeito
cria para o outro o sentido de totalidade, onde ética e estética podem
permitir-se o encontro na vida.
O corpo coletivo seria uma possibilidade de união transgressiva, pelo riso,
cultura e natureza se harmonizam, e se tornam uma experiência
libertadora, encontro do físico e do espírito se dá pelo riso, como
possibilidade de totalidade. Volochinóv (2017), destaca que o corpo como
consciência, com sua natureza, por si só, não pode ser um signo. Na
interação do espírito e do corpo pelo riso que a totalidade pode se
constituir. O corpo vai além do biológico, do individual, para Bakhtin ele
possui um valor axiológico, por ter uma posição no mundo, única e
singular, interior e exterior como exotopia.
Bakhtin apresenta três categorias para explicar como compreendemos o
outro e a nós mesmos, eu-para-mim, eu-para-o-outro e do outro-para-mim.
Eu-para-mim é percebida por nós de forma fragmentada, internamente e
de forma descontínua, pois, não temos a visão de nós mesmos em nossa
totalidade, só percebemos e vivenciamos de forma interna. Não
percebemos porque nossas reações não são produzidas para nós e sim para
um mundo fora de nós. Na autobiografia e no autorretrato o autor se torna
um observador externo, está fora de si mesmo, de forma transgrediente a
si mesmo busca uma nova consciência e nas redes sociais, as
influenciadoras sociais citadas acima, mesmo ao falar de si mesmas, elas
trazem este mundo que está nelas, mas também externos.
Essa completude que se dá com o outro, o excedente de visão ou exotopia,
na categoria do outro consigo me ver como elemento do mundo exterior
(BAKHTIN, 2003). Singularidade e insubstituibilidade, lugar único e
singular de cada sujeito em sua existência, no outro para mim é possível a
unidade da finitude, as fronteiras do corpo com o mundo se delineiam. “O
corpo não é algo que se baste a si mesmo, necessita do outro, do seu
reconhecimento e de sua atividade formadora” (Bakhtin, 2003, p.48). O
valor axiológico de meu corpo não é possível por mim mesmo, é o outo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que permite a valoração, somente na relação com o outro é que isto se


torna possível.
“As figuras dos gigantes e as suas lendas são estreitamente ligadas à
concepção grotesca do corpo” (Bakhtin, 2010, p. 287), podemos dizer que
ao usar um estereótipo, concluir que o deficiente atrapalha, o Ministro cria
uma ideia como a do gigante, que o diferencia do sujeito dito normal, mas
as influenciadoras pegam esta palavra, o grotesco atribuído as suas
características subjetivas e as transformam em riso de escárnio a um
“Ministro que atrapalha o Brasil”.
“Pode-se dizer, para concluir, que na concepção grotesca de corpo nasceu
e tomou forma um novo sentimento histórico, concreto e realista, que é a
ideia abstrata dos tempos futuros, mas a sensação viva que cada ser
humano tem, de fazer parte do povo imortal, criador da história” (Bakhtin,
2010, p.322), assim, a pessoa com deficiência tem esta sensação viva de
pertencimento a humanidade e escreverá sua história com apoio de outros
sujeitos que corroboram com uma visão inclusiva de todo sujeito no fio da
história humana, não, às suas margens, mas no centro, traçando esta
história de forma coletiva, pelas vozes de cada um e de todos.
“Não é apenas o corpo biológico que se repete nas novas gerações, mas o
corpo histórico da humanidade em progresso, que se encontra no centro
deste sistema” (Bakhtin, 2010, p. 322). Cada sujeito humano traz consigo
a história, alguns, como o Sr Ministro fazem parte de um grupo que tentam
controlar o poder, normatizar, explorar, outros estavam em outros lugares
e espaços de luta e não abrirão mão desta história que corre em suas veias
e a luta por uma sociedade justa, inclusiva, libertária não se ajoelhará
diante destas vozes que tentam monologizar.
O cômico como força centrífuga ao segregacionismo
O cômico realiza o rebaixamento dos comportamentos considerados
normais através da deformação ou de algo obsceno, como ato responsável
de um sujeito de forma libertadora em relação a seus opressores. O humor
procura abalar os protocolos pelo riso, os personagens que o ministro
considera que atrapalham assumem suas vozes e rebatem. O sorriso está
no próprio ato responsável destes sujeitos, como contrapalavra dos
sujeitos, ou seja, retomam a fala do Ministro e respondem a ela com suas
próprias vozes. O que atrapalha, pautado em valores tradicionais e
segregacionistas como a ideia de feio, é invertido e o baixo se levanta,
evidencia que o feio é a segregação, o desrespeito ao ser humano

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

subjetivo. O monstruoso se torna sublime e o que aparenta ser sublime


revela-se monstruoso.
A palavra dita torna sua forma monstruosa quando enfrentada pelo ato
responsável das pessoas que foram atacadas e os costumes e valores do
oficial se ridicularizam a cultura de uma elite que tenta estabelecer o que
é normal e colocar às margens tendo que sair de seu padrão de
normalidade. A voz do oprimido permite ressoar como uma chacota ao
opressor. Uma postura ética em relação à diversidade, indo de encontro a
toda normalidade imposta por uma elite que tem seu berço esculpido na
escravidão. O ataque à inclusão vem ao encontro de interesses de empresas
privadas e filantrópicas que querem se apossar dos recursos públicos, para
tal, precisam adotar uma politica pela não inclusão, segregacionista,
limitante e necessita ser respondida por nós, o grotesco dos discursos, dos
corpos são possibilidades de forças centrífugas. O grotesco promove o
rebaixamento do oficial por meio de vozes das pessoas com deficiência
diante das palavras do Ministro da Educação a respeito dos deficientes
atrapalharem na sala de aula das classes regulares, como contrapalavra ao
sistema oficial, onde os marginalizados pelo sistema podem inverter,
destronar o oficial para coroar suas palavras como sujeitos de direitos. O
nojo ao oficial pode rebelar uma forma de resistência a toda
monogilização e padronização imposta pelas relações de poder. A
violência das palavras oficiais promove atos de resistência dos que se são
afetados por ela, pela voz da pessoa com deficiência o sujeito humano é
recolocado em seu pertencimento como direito legítimo do qual não abrirá
mão de ocupar seus espaços e emitir sua contrapalavra.
Na realidade, a fala do referido Ministro estabelece uma publicidade, um
ato de divulgar ao público uma ideia segregacionista, excludente em nossa
sociedade. Não se trata de algo impensável, é calculado para conseguir
apoio dos conservadores, ao mesmo tempo realiza a propaganda de ideias
opostas à inclusão, tem intuito de influenciar opiniões de outros indivíduo
as, mas pela contrapalavra, a sociedade e com uma força incrível, a pessoa
com deficiência toma-lhe a palavra e a destrona, inverte, subverte, pelo
riso, Laíssa diz que ele é quem atrapalha. O riso, a voz, subverte a
propaganda segregacionista e mostra que a pessoa com deficiência não
abrirá mão de seu espaço, de sua voz, o popular ocupa seu espaço.
A praça pública como lugar do carnaval medieval e as praças públicas
virtuais como espaço e tempo da carnavalização

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Os blogs, instagram, facebook, no caso das influenciadoras acima, tornam


a praça pública de nossos tempos, espaço de carnavalização, de inversão,
do povo se coroar. Elas rebatem a voz oficial, saem das grotas do popular
para desestabilizar o discurso oficial, rimos com suas respostas delas a fala
do ministro, sentimos o jocoso se entronando como não oficial, popular.
“Por essa razão o riso, menos do que qualquer outra coisa, jamais poderia
ser um instrumento de opressão e embrutecimento do povo. Ninguém
conseguiu jamais torná-lo inteiramente oficial. Ele permaneceu sempre
uma arma de liberação nas mãos do povo” (Bakhtin, 2010, p. 81). As
praças públicas, lugar do carnaval na idade média, agora ocupam outros
lugares no espaço virtual e esses lugares agora podem ser espaços de
encontro de palavras outras, de sujeitos libertos da palavra oficial que
tanto tenta centralizar. As influenciadoras digitais provam que são capazes
de ocupar estes espaços e produzir novos atos de dizer que desestabilizam
o oficial.
“O destronamento carnavalesco acompanhado de golpes e de injúrias é
também um rebaixamento e um sepultamento. No bufão, todos os
atributos reais estão subvertidos, invertidos, o alto no lugar do baixo: o
bufão é o “rei do mundo às avessas””(Bakhtin, 2010, p. 325). As
influenciadoras digitais, na praça pública virtual, carnavalizam, se tornam
rainha do mundo às avessas ao poder centralizador, autoritário e
segregacionista representado pela fala oficial.
“No Renascimento, o inferno enche-se cada vez mais de reis, papas,
eclesiásticos e homens do Estado, não apenas recentemente desaparecidos,
mas mesmo ainda vivos” (Bakhtin, 2010, p. 347). Temos muitos homens
de Estado que nos últimos anos enchem o inferno, mas este mesmo ainda
vivo também, por sua voz desce ao inferno. Também o vocabulário da
praça pública em nossos tempos passa por esses espaços socais, por essas
vozes que tentam resistir a toda palavra autoritária. “A praça pública em
festa reunia um número considerável de gêneros e de formas maiores e
menores impregnados de uma sensação única, não oficial, do
mundo”(Bakhtin, 2010, p. 133). Ocupemos as praças públicas físicas e
virtuais imbuídos desta força não oficial do mundo. Os gêneros da praça
pública são capazes de “travestir, rebaixar, materializar e corporificar o
mundo” (Bakhtin, 2010, p. 169), libertar-se exige a ousadia, o ato
responsável de cada ser humano.
“Utilizar o adjetivo “carnavalesco” numa acepção ampliada, designando
não apenas as formas de carnaval no sentido estrito e preciso do termo,
mas ainda toda a vida rica e variada da festa popular no decurso dos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

séculos e durante a Renascença, através dos seus caracteres específicos


representados pelo carnaval dos séculos seguintes, quando a maior das
outras formas ou havia desaparecido ou degenerado”(Bakhtin, 2010,
p.189-190). Enfim, o carnavalesco nos insere na história humana não
oficial, como resistência, subversão, tão importantes em nosso contexto
que forças centrípetas tentam segregar, enfim, ampliar o uso dos espaços
que permitem a contrapalavra é um caminho possível.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In:
Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São
Paulo/Brasília: Hucitec/Editora Universidade de Brasília, 2010.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem.
Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
Tradução, notas e glossário de Grillo, Sheila; Américo, Ekaterina
Vólkova. Ensaio introdutório de Grillo, Sheila. São Paulo: Editora 34,
2017, 373p.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O corpo feminino grotesco: a reversão valorativa da nudez no


ativismo do FEMEN

Maria Eduarda Cardoso


FHO - Fundação Hermínio Ometto
eduarda1608@gmail.com

Quando lhes conseguirmos um corpo sem órgãos tê-lo-emos


libertado de todos os seus automatismos e restituído à sua
verdadeira liberdade. Voltaremos então a ensiná-lo a dançar às
avessas como no delírio dos bailes <<musette>>, e esse reverso
será o seu verdadeiro direito (ARTAUD, 1975, p. 50).

O que é um corpo, ou melhor, o que é um corpo humano? Ora, um


corpo humano é um organismo material, é uma totalidade que
cumpre funções fisiológicas, é o resultado conjunto de milhares de
partículas e células agrupadas que constituem uma matéria, é carne
fresca, é só um corpo … Ou não? Pode um corpo, ao se desnudar,
ao tirar os véus que o cobrem, incomodar? Pode um corpo sendo
apenas um corpo não ser só um corpo? Pode um corpo desobedecer
sua história fisiológica e ordenada?
Deleuze e Guattari (2010), através da Esquizoanálise, apresentam o
ser humano enquanto uma máquina-órgão que vivencia o mundo
através de seus fluxos e estabelece múltiplas conexões com outras
máquinas-órgãos, tendo como pano de fundo o desejo enquanto uma
força produtiva que se movimenta e atua nas inúmeras
possibilidades do processo de criação de sentido e de ser no
mundo, se opondo à ideia de uma psique possível de ser
estruturada. O desejo, além de produtivo, é afirmativo,
deslegitimando nessa ótica um sujeito naturalizado como
insuficiente e rodeado pelo destino da falta. Ainda há, entretanto,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

uma sociedade e instituições carregadas de mecanismos de


administração e de domesticação do desejo, pregando uma
economia e uma territorialização do corpo, em outras palavras,
uma operação de organização e apropriação do ser (GUATTARI;
ROLNIK, 1996). O viver intrinsecamente é um devir, um
movimento ininterrupto impossível de caber na pequenez da
teoria, na ordenação e em discursos monológicos em que há sempre
a mudez da alteridade e da multidão. Nenhum sujeito pode e deve
permanecer mudo, pois está longe do que Bakhtin (1997) nomeia
como uma relação dialógica, em que mesmo não havendo
consenso, há vozes em espaço de igualdade enquanto singulares e
únicas.
Focalizando a discussão, o corpo feminino ao se colocar nu ao olhar
do outro fora da esfera íntima, fora do quarto e das quatro paredes
que os cercam e o escondem da visão pública não é só um corpo,
mas sim um corpo territorializado atrelado a um grande mar de
polêmicas e espanto. E o que este corpo é ao ser exposto e
evidenciado na vida social, nas ruas, na televisão, nas capas dos
jornais? Há discursos populares alegando imoralidade, futilidade,
pecado, indecência, mas sabemos que em todas essas alternativas
ele é sempre transgressor e pode se movimentar de um terreno
territorializado para uma (des)territorialização dos valores que se
conectam a ele.
As mamas femininas e seus polêmicos mamilos são um tabu há
anos e, apesar de nós mulheres já termos queimados sutiãs,
contestarmos os padrões de beleza, denunciarmos a indústria da
moda, empenharmos em poder se vestir como desejamos e até
lutarmos para, penosamente, amamentar nossos filhos em público,
suportando os olhares incrédulos, as mamas ainda são censuradas.
A elas apenas cabe a função de amamentar (de maneira
“reservada”) e de ser um brinquedo sexual, causando inquietação
até mesmo se por um acaso houver uma demarcação em uma
roupa, igualmente todos sabendo que mulheres possuem mamas e
sempre terão. Dessa forma, podemos afirmar que o corpo e em

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

específico as mamas femininas foram enclausurados em discursos


sexistas, tendo sua imagem, sua figura, sua simbologia violentada
e sentenciada pelos princípios vigentes, ditos verdadeiros e
corretos.
Nesta linha, o movimento FEMEN é um coletivo ativista feminista
que tem como lema o sextremism (sextremismo), preceito em que a
sexualidade e o corpo feminino são tidos como armas contra a
cultura do patriarcado, como as próprias ativistas anunciam: “Our
Weapon are bare breasts!”. O grupo tem como histórico e marca a
performance do corpo de suas militantes com as mamas à mostra
em lugares de livre acesso estratégicos somados a discursos
inscritos em cartazes ou até no próprio corpo da agente do protesto,
sempre denunciando o sistema machista, sexista e todas as
narrativas que se beneficiam destes, por isso um dos símbolos
utilizados é a letra cirílica Ф, elemento que visualmente se
assemelha ao formato das mamas femininas. As ações formuladas
pelo FEMEN, assim, representam uma linha de fuga da visão social
tradicional do corpo da mulher atrelado ao sexismo, isto é, vai além
do corpo enquanto uma objetivação sexual em que a mulher é tida
como uma mercadoria perfeita para o prazer de cunho sexual do
outro, através de uma erotização exacerbada, em especial pautada
para o olhar masculino, ideal por trás dos grandes números de
ocorrências de assédio sexual. Nos protestos planejados pelo
FEMEN, as mamas podem ser (re)significadas, sendo um
instrumento de deformação desses valores que representam
normativas e regulamentações da vida humana, se posicionando
enquanto possibilidade de rompimento de ideologias consideradas
“sérias”, familiares, morais e cristãs, melhor dizendo, evidenciam
uma outra face da imagem de uma mulher seminua e da figura de
suas mamas.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Protesto FEMEN denominado “STOP JUSTICE SEXISTE!” no Ministère de la


Justice, Place Vendôme (França) em fevereiro de 2021 em apoio ao caso Julie (nome
ficticio) e outras vitimas de estupro que tiverem impencilhos com justiça.
Fonte: Website FEMEN (https://femen.org/stop-justice-sexiste/)

Bakhtin (2010) na obra A Cultura Popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais, apresenta o conceito
de carnavalização, sendo este um fenômeno oposto às narrativas
oficiais formadas pelas legislações sociais acerca do vivenciar
humano que ditam como se deve não apenas se comportar
fisicamente, mas pensar, se comunicar e se relacionar com tudo
aquilo que nos cerca. A carnavalização, por conseguinte, é alocada
em uma perspectiva crítica e ativa, estabelecendo um movimento
contrário aos sentidos prescritos nas normas, transcorrendo uma
reversão de valores (BAKHTIN, 2010). Passa-se a negar e zombar
de um arranjo de sentidos para dar luz a horizontes outros,
existindo um processo de criação, de sátira, mas que não se limita
apenas ao uso da ironia ou da ação de rir da tão caríssima
serenidade dos valores morais tradicionais, mas evocar uma
reflexão, isto é, ter como pano de fundo uma criticidade e uma

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mudança de paradigma pretensiosa. Nas próprias palavras de


Bakhtin (2010) carnavalizar é:

[...] lançar um olhar novo sobre o mundo; um olhar destituído de


medo, de piedade, perfeitamente crítico, mas ao mesmo tempo
positivo e não niilista [...] a liberação total da seriedade gótica, a fim
de abrir caminho a uma seriedade nova, livre e lúcida (p. 239).

À vista disso, o FEMEN não só consegue se desviar de um espaço


interditado à multiplicidade, à liberdade de sentidos e de
construção de relações fora do mito do consenso, mas utiliza do que
Bakhtin tanto se dedicou. A cena das mamas despidas e em total
destaque, carregada ainda das noções de hipersexualização, é
usada para denunciar a lógica sexista e, com isso, o corpo
promíscuo se torna grotesco e permite um embaralhar dos valores.
Tudo fica ao avesso, a distorção é a cena da vez. E esse grotesco que
o corpo se torna é justamente um elemento ligado a carnavalização,
este sendo segundo Bakhtin (2010) o outro lado da lua do homem,
uma imediação que rompe com os moldes tradicionais, não mais
isolado, fechado, regimental, imutável, mas aberto, flutuante, não
acabado e em devir. Logo, um corpo grotesco não só carnavaliza-
se, mas caminha além dos seus supostos limites, se rebelando, é o
que Artaud (1975) e seus leitores Deleuze e Guattari (2010; 1999)
irão nomear de um Corpo sem Órgãos (CsO), um corpo que não se
reduz à disciplina, à hierarquização ou à funcionalidade, um corpo
que é imbuído da multiplicidade, da fluidez, aberto a
experimentações e conexões do corpo em contato com o mundo,
sendo o plano de imanência e consistência do desejo.
De vítimas, os corpos femininos se tornam uma arma, uma
manifestação marginal, a contrapalavra posta no lugar do silêncio
e de uma posição antes reativa. O corpo se torna grotesco
justamente por reinterpretar, desconjugar e contrariar tudo aquilo
que lhe foi antes atribuído, renovando os jogos valorativos e
questionando as normas de gênero. E, dessa maneira, podemos
afirmar com as próprias palavras do FEMEN que:

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O sextremismo é uma zombaria feminina do extremismo masculino


vulgar e seus atos sangrentos e um culto ao terror. O sextremismo é
uma forma de provocação não violenta, mas altamente agressiva; é
uma arma desmoralizante todo-poderosa que solapa os
fundamentos da velha ética política e da podre cultura patriarcal
(2021, texto disponível no website oficial do FEMEN na aba “About
Us” com tradução livre da autora)

Por fim, ainda deixando possibilidades abertas sobre o que


pode um corpo, podemos dizer o que ele não pode: se cristalizar,
se reduzir a um organismo e ser a pretensão de um aparelho
unitário. Cabe ao corpo rir, dançar, zombar, desmontar e
carnavalizar todos os pronunciamentos ditos sérios e honrados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARTAUD, Antonin. Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus


seguido de O Teatro da Crueldade. Trad. Luiza Neto Jorge e
Manuel João Gomes. Lisboa: &etc, 1975.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria
Ermantina Galvão G. Pereira. 2º Ed. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Anti-Édipo: Capitalismo e
esquizofrenia. Trad. Luiz B. L. Orlandi. 1º Ed. São Paulo: Ed. 34,
2010.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra Neto; Ana Lúcia de
Oliveira; Lúcia Cláudia Leão; Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1999. v.3.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

FEMEN. About us. Disponível em: https://femen.org/about-us/.


Acesso em: 10 de ago. de 2021.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do
desejo. 4º Ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1986.

Nota:
1 Sextremism is the woman’s mockery of vulgar male extremism and its

bloody mayhems and a cult of terror. Sextremism is a non-violent but


highly aggressive form of provocation; it is an all-powerful demoralizing
weapon undermining the foundations of the old political ethics and rotten
patriarchal culture.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O corpo grotesco e o negro: um corpo que existe e resiste

Alline Duarte Rufo


UFSCar
adrufo@gmail.com

O meu corpo faz parte da minha existência; é com ele que


compreendo e sinto o mundo, existo e resisto na vida. A ele são
atribuídas valorações por mim e pelos outros, com ele me identifico
e me afasto de diversos grupos, com ele compreendo o outro e a
mim mesmo. O corpo foi estudado e compreendido por diferentes
teóricos, em diversas áreas do conhecimento, levando em
consideração o tempo e a cultura em que viviam. Partindo do ponto
teórico metodológico do filósofo da linguagem russo Mikhail
Bakhtin, que desenvolveu e aprofundou suas perspectivas sobre o
corpo ao longo da vida, aqui o corpo é compreendido como uma
junção entre o corpo exterior e um interior no processo de
alteridade da constituição do outro, ou seja, o modo como sinto o
mundo e o vivencio tanto no palpável, no sentido (o corpo exterior)
quanto no vivenciamento das emoções e reações internas (o corpo
interior). E esse processo de alteridade só é possível na relação com
o outro. Quando toco alguém, sinto no meu corpo exterior esse
toque, mas o compreendo no meu vivenciamento interior como
uma emoção mais forte, uma repulsa, uma vergonha, e esse outro
constitui e valora o meu corpo. Nesse sentido, o meu corpo e o dos
outros estão o tempo todo se constituindo de diferentes formas e
valorações. E, assim, os corpos recebem signos ideológicos que os
valoram positiva ou negativamente na sua vivência social.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ao se observar a história ocidental, percebe-se o estabelecimento


de uns como belos e outros como feios, sempre em uma dicotomia.
Umberto Eco, nas suas duas obras História da Beleza e História da
Feiura, defende que o feio não se construiu ao longo da história em
oposição ao belo, mas sim com suas próprias características e nem
sempre é valorado como negativo. Ser feio também possui o seu
teor de positividade: entre os feios, a feiura é um parâmetro
desejado e avaliado. A beleza, por sua vez, normalmente é um
desejo inalcançável, acima das capacidades humanas, quase um
patamar de divindade. Ela é sublime e quase perfeita, uma busca
sem fim e insaciável, uma vez que ninguém está satisfeito com seu
estado de beleza, como se sempre fosse possível ser mais belo. Isso
leva a pensar que o mais humano e carnal são os feios, os
monstruosos e grotescos. Essas valorações constituem-se nas
relações sociais sobre o corpo, uma vez que ele é uma das
características da existência.
O monstro, enquanto conceito que inicia na arquitetura, mas se
estende ao longo do tempo ao estético e ao ético, estabelece aquele
que quebra a norma, que mostra algo, incitando desejo. Apesar de
iniciar como uma denominação positiva, posteriormente se torna
negativa e, até hoje, carrega essa carga. O monstro é concebido
como aquele cujo aspecto não se está acostumado, seja pela forma
de seu corpo, pela cor, pelos movimentos ou pela voz, que
subvertem a ordem de um certo mundo. Ao valorar como monstro
o outro, está-se colocando-o em um patamar de afastamento
estético do humano. Esse local gera a falsa impressão de que ele
não sente dor, não tem família, não tem sentimento, que é
totalmente desqualificado como um ser pensando e sensitivo e,
assim, odiá-lo ou matá-lo torna-se fácil e desprovido de uma culpa
moral. Matam-no como a um animal, porque há uma
desumanização. Já o grotesco, no início, era mais associado a um
traço de arte. Posteriormente, seu sentido alarga-se, passando a um
estilo de representação que se caracteriza pelo exagero, o
hiperbolismo, a profusão, o excesso. Esse grotesco carnavalesco, do

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cotidiano, permite olhar o mundo de forma diferente, aproximando


o que normalmente está distante, possibilitando a compreensão de
uma ordem diferente de mundo. Um corpo em movimento,
profundamente positivo, diferente de outras perspectivas que
veem o grotesco como negativo e o separa dos aspectos da vida.
Mikhail Bakhtin afirma que o princípio material e corporal do
realismo grotesco é o povo que constantemente cresce e se renova.
Por isso, o corporal é exagerado e infinito, sendo seus exemplos a
fertilidade, crescimento e superabundância. Um corpo grotesco é
um corpo que jamais está “acabado: está sempre em estado de
construção, de criação e ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse
corpo absorve o mundo e é absorvido por ele” (BAKHTIN, 2008, p. 277).
Esse corpo faz parte de uma sociedade que o constitui no processo
de alteridade, entre o eu-outro. O outro valora meu corpo da mesma
forma que eu valoro o corpo dele. Esse processo, todavia, não é tão
amoroso e compreensivo quanto parece. O outro me invade e me
modifica e o faz contra a minha vontade e, muitas vezes, contra
mim. A alteridade também faz parte de um processo de
desumanização e exclusão social. Ao perceber o outro como
diferente de mim, valoro seu corpo e seus atos como negativos e
afasto esse outro de mim e de qualquer característica que posso
ligá-lo ao humano. Desse modo, não há um processo de empatia e
sua exclusão social e até mesmo exterminação não me afeta, pois
ele é colocado em uma outra categoria.
Nesse sentido, é possível observar as relações e mecanismos de
exclusão social e extermínio no mundo ético, principalmente,
porque neste há o processo de racismo contra a população negra. O
negro, ao longo da história, foi excluído socialmente,
comercializado e exterminado e as justificativas para isso eram a
cor da sua pele ou características fenotípicas que inferiorizavam
esse corpo socialmente – o que ocorre até os dias atuais, com casos
de racismo ocorridos nos últimos anos no Brasil e plano de fundo
dos discursos preconceituosos aflorados pauta-se em um governo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de direita liberal. Evidenciam-se altas taxas de mortalidade da


população negra no nosso país pela letalidade policial, tendo em
vista que, segundo a pesquisa, a vigilância policial opera de modo
racionalizado, ou seja, relaciona diretamente pessoas negras a
suspeitos criminais, flagrando em maior intensidade as suas
condutas ilegais em detrimento de uma menor vigilância e suspeita
sobre pessoas brancas. No Atlas da Violência, publicação científica
de extrema importância que mostra os índices da violência pública
no Brasil, há evidências de que a violência, historicamente,
continua recaindo sobre a população negra. Os dados do Atlas da
Violência de 2019 mais uma vez reforça que os negros são a
população que mais sofre com a violência, porque correspondem a
75,5% das vítimas de homicídios em 2017, número que cresceu 7,2%
em relação ao ano anterior – ao passo que, para a população não
branca, houve uma redução de 0,3% da taxa. Além disso, estima-se
que o número de homicídio da população negra aumentou em 30%
nos últimos dez anos. Por esse viés, pode-se observar como, apesar
do processo histórico de libertação dos escravos e da luta pela
igualdade de direitos, a população negra ainda é valorada
negativamente; seu corpo é desqualificado, menosprezado, sua
ética é questionada e ele se torna o outro diferente do eu, que deve
ser morto. E, de fato, ele é morto, como mostram suas altas taxas de
homicídios. Também excluídos socialmente, pois, segundo a
Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias),
dos 752.277 presos no Brasil (quarta maior população carcerária do
mundo), 426.433 são pretos ou pardos, dados estatísticos do
Infopen no período de janeiro a junho de 2019.
Tendo em vista que o corpo grotesco é aquele que subverte uma
ordem, que constitui a dualidade e transcende os limites,
compreende-se que o corpo, também, é resistência, é o positivo e o
negativo, o desejo e a repulsa, mas acima de tudo, é a
transcendências dos limites e das relações sociais. Ele existe e
resiste, porque pulsa vida e uma vida negada, mas que insiste em
viver. O corpo negro enquanto corpo humano é um corpo grotesco,

1050
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

em constante mudança e transformação. O corpo humano, seja ele


como for, é um corpo grotesco e como tal, deve abraçar essa sua
característica que apenas o enriquece e aceitar que suas diferenças
são transgressões que constituem a sua vivência singular. Assim,
ser diferente da norma vigente é ser profundamente
revolucionário, é exigir e resistir apenas pelo ato de viver. É
transgredir pelo corpo, uma vez que ele faz parte de um realismo
grotesco, de movimento, de subversão da ordem, de
transformação. É não aceitar o silenciamento da sua singularidade
enquanto sujeito, da violência, e se colocar ativamente como uma
resistência. É construir laços de amorosidade em tempos de ódio e
saber que existir é o maior ato revolucionário que os excluídos
podem exercer nos tempos atuais.

Referências:
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. A Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento: o Contexto de François Rabelais. 6 ed.
São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Para uma Filosofia do Ato
Responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010a.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e Filosofia da
Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
Ciência da Linguagem. 14 ed. São Paulo: Hucitec, 2010b.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
ECO, Umberto. História da Feiura. Rio de Janeiro: Record, 2014.
ECO, Umberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2010.
KAPPLER, Claude. A noção de monstruosidade. In: Monstros,
Demônios e Encantamentos no Fim da Idade Média. São Paulo:
Martins Fontes, 1993.

1051
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

KAYSER, Wolfgang. O grotesco, objeto e palavra. In: O Grotesco


- Configuração na Pintura e da Literatura. São Paulo: Perspectiva,
1986.
RUFO, Alline Duarte. O corpo e o outro: constituição da alteridade
em uma perspectiva bakhtiniana de O Silmarillion de J. R. R.
Tolkien em cotejo com o racismo. São Carlos: UFSCar, 2020.

1052
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O corpo grotesco no cinema: A princesa Fiona e a representação


do corpo sob perspectiva do riso carnavalesco

Ana Carolina Lourenço de Assis


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
anacarolinalourenco27@hotmail.com

O corpo, ao longo dos séculos, sempre foi grande representação das


identidades humanas, das adaptações do tempo e do espaço social,
como foi o caso das culturas gregas e egípcias que traziam em suas
obras esculpidas ou pintadas o corpo como o reflexo da sociedade
e pensamento vigentes da época. Na contemporaneidade,
principalmente em período pandêmico, o século XXI se tornou o
espetáculo dos “likes”, extremante dependente de um pensamento
positivista. A formação sociocultural que se apresenta como
identidade dessa sociedade positivista é norteada por fatores
ideológicos de um sujeito que vai de encontro a qualquer
representação que exprima negatividade, como afirma HAN (2019,
p.7). A “sociedade da positividade”, como o filósofo denomina à
sociedade que nega qualquer corpo estranho, não liso ou que não
seja adaptável às influências do dia a dia, principalmente, à
midiática; faz com que segreguemos tudo e todos aqueles que não
estão nos moldes ou padrões considerados visualmente confortável,
do liso (sem protuberâncias, exageros) e que repulsa todas as outras
que causem estranhamento, angústia ou confronto. Ou seja,
qualquer corpo que represente entraves para uma comunicação
acelerada, polida e cíclica dentro de uma arena discursiva. Assim,

1053
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

inserindo os sujeitos em bolhas que os isolam de contatos das


práticas sociais do mundo.
A percepção trazida pelo teórico Byung- Chul Han nos
apresenta um sujeito que busca por uma conclusibilidade, e de
maneira célere, mas apenas alcança de um ser onírico, tangente à
sua real vivência, afinal, o sujeito é um ser encarnado, inconcluso,
historicizado que está no mundo agindo e atuando pela linguagem,
e com uma corporalidade construtiva e indissociável do meio que
o constrói, como bem diz Bakhtin (2011, citado por CASADO,2017).
Por isso, sua identidade é arquitetada por meio de enunciados
concretos valorativos.
Ao falarmos de construções por meio da linguagem, e tendo
Bakhtin e o Círculo, como pressupostos para as nossas discussões
futuras neste texto, visto que ele é um teórico que perpassa as
fronteiras dos estudos das ciências humanas, permitindo um olhar
holístico sobre as diversas áreas do conhecimento; encontramos o
cinema como meio de comunicação que anos após anos calcifica o
pensamento de um ser “liso”, do olhar e comportamento unilateral,
sobretudo pelas produções Disney. Criações essas que negam e
excluem todo e qualquer corpo que possa representar o corpo
grotesco, definida por Bakhtin no livro “A cultura Popular da Idade
Média e no Renascimento: contexto de François Rabelais”, o qual
sua contextualização será melhor explanada um pouco mais
adiante em nossa discussão. No entanto, muitas dessas ancoragens
estão associadas, como dito anteriormente, por ancestralidades
comportamentais que antecedem as produções cinematográficas.
Como exemplo, tem-se os filmes de animação das empresas
Disney, que trazem em suas telas raízes históricas das narrativas
orais do mundo maravilhoso, cujos enredos até hoje impulsionam
pensamentos sociais sobre a imagem e comportamento do “certo”
e do “errado”; do “corpo belo” e do “corpo grotesco” e são
passadas de gerações em gerações. Assim, para que possamos
estabelecermos um cotejamento dialógico entre as imagens das
mulheres na atualidade, principalmente no âmbito do cinema, em

1054
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

gêneros discursivos de filmes de animação, são corporificadas,


traremos para essa arena discursiva a representação do corpo
feminino sob a perspectiva carnavalesca das teorias de Bakhtin da
princesa Fiona, personagem, do filme Shrek, da DreamWorks
Animation, com a finalidade de observarmos como a identidade de
um corpo e comportamento próximo ao sujeito concreto é uma
questão social e precisa ser abordada.
O imaginário nunca foi tão racional
A princesa Fiona é uma personagem que corrói as identidades já
estabelecida no clã real dos Contos de Fadas (doravante CF)
canônicos, pois as forças centrípetas e centrífugas atuam
concomitantemente em sua jornada e, principalmente, em sua
construção identitária. Porém, para que possamos compreender tal
afirmação e as demais alusões que aqui serão explanadas, torna-se
imprescindível situarmos historicamente o gênero discursivo CF,
estabelecendo, assim, uma relação com a atualidade, incluindo as
produções Disney.
Não é de hoje que o contar ou criar histórias se tornou uma
atividade expressiva e necessária para a existência humana.
Nascidas para falar aos adultos, as narrativas maravilhosas fazem
parte do cotidiano humano há milênios, tendo sua produção em
maior escala feita por anônimos e em coletividade. Sua projeção, a
qual era realizada por meio da oralidade, fez com que esses textos
fossem mudados, esquecidos e, às vezes, até perdidos pela poeira
do tempo. Apesar desses percalços, O Oriente e Ocidente, por
exemplo, concomitantemente, estiveram na busca de registrar suas
identidades, atribuindo-lhes valores à língua materna e/ou
endossando a verdadeira forma de ver e sentir a vida e, para isso,
era comum utilizarem as histórias maravilhosas, como ilustrou
Nelly Coelho (1991).
Além disso, acredita-se que essas narrativas são verdadeiras anciãs
textuais, que seus “textos-matrizes”, por exemplo, ocorreram A.C.

1055
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Depois na Idade Média, e, posteriormente, no Renascimento,


quando suas lentes atingiram proporções mais sólidas, físicas, pois
passaram a serem registradas em produções literárias, por meio
das contistas como os Irmãos Grimm e Perrault. Apesar disso, foi
nesses dois últimos períodos quando houve várias divergências
sobre o processo de importância da linguagem e identitário dos
sujeitos. Elas, as narrativas maravilhosas, começaram a serem
consideradas, principalmente pelo Cristianismo, gêneros que se
distanciaram das verdades humanas, e encaradas como meros
contos infantis, apenas textos lúdicos, como afirma Nelly Coelho
(1991). Dessa forma, percebe-se que, apesar da oscilação sobre a
importância do maravilhoso, independente do tempo ou das
regiões, elas seduziram os humanos pela maneira simbólica e
realista de como seus enredos são propagados. Foram vários os
povos (celtas, bretões) e regiões (Índia, Grécia Antiga, Egito,
Império Romano, este último como divulgador dessas histórias no
Ocidente, após beber das águas “mágicas” das narrativas do
Oriente, como “As mil e uma noites”) que contribuíram para esse
caudal das narrativas maravilhosas, as quais continuaram a serem
passadas de gerações em gerações, e cujo resultado foi um
verdadeiro oceano de pistas e caminhos que resistiram ao tempo e
as metamorfoses sociais (COELHO,1991).
Porém, para muitos, esses textos são gêneros irrelevante quanto ao ato
do desenvolvimento do indivíduo, visto que essas histórias,
corriqueiramente, estiveram associadas ao imagético, ao sobrenatural,
ou às forças ocultas; o oposto da racionalidade, sendo suficiente
somente para o entretenimento infantil ou doutrinações
comportamentais sociais (Coelho,1991). A autora ainda endossa o fato
de que, mesmo em pleno novos séculos, essas narrativas continuam a
serem vistas como produções que não possuem acréscimo(s)
significativo para o desenvolvimento humano em qualquer que seja a
idade; mensagem essa difundida muito pelo senso comum, o que
corrobora na crença errônea de que elas são irrelevantes e, por isso,
não devem ser consideradas “digna” de estudos científicos. Mas,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

apesar de parecer defrontar-se ou mesmo não contribuir para o que se


chama de “desenvolvimento moderno” nessa “era einsteiniana”,
como se referiu Nelly Coelho (1991), a ciência precisou e precisa ser
levada a considerar o um “novo” maravilhoso como parte umbral do
campo científico (entende-se como ciências todos os aspectos que
envolvem o desenvolvimento da humanidade). No entanto, os CF
são textos que
leva muito à sério angústias e dilemas existenciais e se dirige
diretamente a eles: a necessidade de ser amado, de ser considerado
sem valor; o amor pela vida e o medo da morte. Ademais, oferece
soluções de modos tais que sejam possíveis de apreensão pela
criança no nível de compreensão. [...] (BETTELHEM,2007)
Todavia, vive-se em um momento de suma importância para o
resgate às discussões desses gêneros discursivos. O campo
cinematográfico, por exemplo, voltado para os super-heróis, para
as sagas vampirescas, ou poternas, para as princesas
carnavalizadas, para os ogros como heróis, para os sucessos das
ficções científicas são exemplos de que o onírico, o fantástico,
deixaram de ser vistos como puros produções entretenimentos
para se tornarem caminhos basilares para verdades humanas e
sentidos ocultos, os quais o “mundo real” não é capaz de dar conta
sozinho.
Assim, é possível afirmar que os contos maravilhosos trazem
heranças multiculturais importantes até os dias de hoje. Na Idade
Média, por exemplo, a nova visão de mundo tende pelo
espiritualismo imposto pela Igreja Católica, e é nesse período que
se consagrou a imagem da mulher idealizada, por meio do culto
marial (veneração da Virgem Maria e consequentemente
sacralização da condição feminina), como afirma Nelly Coelho
(1991). Essa incumbência sobre pureza, padrões, limitações dadas
à mulher perdura na contemporaneidade, transformando-as não
mais só em seres idealizados, mas também marginalizado
socialmente, visto que seus desejos eram totalmente emudecidos e

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

considerados pecados pelos dogmas da Igreja Católica. Diante


disso, percebe-se que estudar as narrativas maravilhosas é estudar
a vida humana. As reflexões de Moita Lopes (2006) ilustram
justamente essas necessidades de pesquisa, inserida na Linguística
Aplicada responsiva à vida, aproximando a pesquisa da vida e
integrando justamente o que ele chama de “Vozes do Sul” em
análise. Ou seja, traz à tona o que não é facilmente compreendido
ou que escapa aos percursos de pesquisas canônicas, colocando o
foco do tema no que é tangenciado na sociedade, segundo Signorini
(1998), citado por Lopes (2008), seja no mundo fantástico (bufões,
ogros, bruxas, etc.) ou no mundo real (mulheres, negros, pobres,
etc.) as celeumas que envolvem as suas existências, as quais
precisam ser abordadas, considerando suas vozes.
“Os ogros são feitos de camadas”
A metáfora acima, dita peço personagem Shrek, alude sobre os
diversos dilemas enfrentados pelo herói e heroína do filme. A fim de
que possamos construir nossa análise sobre o corpus proposto,
precisamos compreender a narrativa e qual a sua relação com os CF.
O filme traz um casal que aparentemente parecem incompatíveis, pois
ele é um ogro e ela uma princesa. Porém, o conflito existencial que
acompanhou Fiona, o qual gira em torno do seu verdadeiro “eu”,
iniciado no feitiço, é revelado, e, no final, a princesa também é uma
ogra. Fiona é uma princesa, a qual representa o corpo grotesco, o qual
apresenta como características marcantes desse estilo o hiperbolismo,
a profusão, o excesso (BAKHTIN,2010) e a cosmovisão carnavalesca;
ou seja, a personagem aguça o que Bakhtin chamava de dualidade de
mundo, visto queos bufões, ogros e bruxas pertenciam ao “riso ritual”,
que eram os festejos carnavalizados; e a representação monárquica, a
qual ela também pertencia, está associada aos “cultos sérios”, aos
comportamentos determinados pela Igreja e pelo Clã de Realeza. Essa
dualidade na percepção de mundo e da vida humana já existia há
milênios, anteriormente mesmo à civilização primitiva, como afirma
Bakhtin em livro “A cultura Popular da Idade Média e no
Renascimento: contexto de François Rabelais”, obra a qual ele aponta

1058
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

as reflexões de Rabelais e o seu olhar sobre o corpo grotesco. Assim,


percebe-se que a busca pela imagem da princesa encantada “perfeita”,
contida nas histórias tradicionais, reafirmada nos dogmas da Igreja
Católicas, no período da Idade Média, é conflito que se torna
norteador durante toda a animação. Diante dessas cargas culturais,
percebe-se a convergência entre a animação da DreamWork e o
gênero do maravilhoso: a auto realização existencial de Fiona
encontrando seu verdadeiro eu, que durante quase todo o filme, ela
crê ser os dos padrões impostos pela cultura cristã e social sobre o que
é ser princesa (ser linda e bela- de acordo com a imagem imposta pela
sociedade vigente) e cuja beleza está associada aos corpos e rosto
“perfeito”, e, obrigatoriamente humanizados. Tais padrões se
concretizamos no mundo real coloca em arena a necessidade de
padrões do corpo, de uma estética lisa, o liso sem qualquer resistência
táteis ou visuais, os quais são caracterizados como imagens de ternura
e gracilidade (HAN, 2019).
“Á noite de um jeito; de dia, de outro. Essa será a norma, até
encontrar/receber o beijo do amor e assumir sua verdadeira forma”
(Princesa Fiona; Shrek (DreamWork)). A citação, dita pela princesa
para aclarar o “feitiço” posto nela, é a explicação para o público
sobre qual é o seu dilema existencial dentro do filme que a envolve.
A partir desse encanto, há a justificativa de sua prisão na torre mais
alta, onde é guardada pelo dragão. Assim, percebe-se uma das
efabulações básicas dos CF: O obstáculo ou prova, a qual precisa
ser vencida, como um verdadeiro ritual iniciático, para que a
heroína alcance sua auto realização existencial (Coelho,1991). Ou
seja, o encontro do “amor verdadeiro”, que deve acontecer depois
do herói vencer o dragão, e o tão necessário “beijo de amor” passa
a ser o ideal que precisa ser alcançado por ela para que se torne a
princesa humanizada e “normal” que todos esperam de um conto
de fadas. A carência que Fiona tem pela aceitação e pela
“normalização” vem acompanhada de toda carga de padrões
descritos no CF apresentados por décadas, seja na Literatura ou no

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cinema. Em todas essas versões, o “beijo do amor verdadeiro” é a


solução para qualquer conflito ou problema (representado pelo
feitiço de uma bruxa) ostentados no Contos de Fadas ditos
tradicionais com Bela Adormecida, com Aurora; Branca de Neve.
Portanto, mesmo Fiona sendo uma personagem de um filme de
animação, ela ilustra a realidade de muitas mulheres que possuem sua
identidade questionada por padrões corporais, devido a uma
sociedade altamente dependente das telas e escravas de si. Assim, a
base das imagens grotescas, encontra-se uma concepção especial do
conjunto corporal e dos limites, ou seja, as fronteiras entre o corpo e o
mundo, e entre os diferentes corpos, traçam-se de maneira
completamente diferente do que nas imagens clássicas e naturalistas
como menciona Bakhtin (2010). Fiona quebra, corrói os padrões de
imagem, comportamento e buscas do “eu” pautado no “beijo do amor
verdadeiro”; é por meio da fronteira do corpo entre ela e Shrek que
ela se realiza e se aceita como ogra, o que nos ensina que a verdadeira
construção de vida está associada à sua realização pessoal.

Referências
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: O contexto de François Rabelais. São Paulo:
Hucitec;2010;
____. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: ed. 21,
Paz e Terra, 2007.
CASADO ALVES, M da P. Os dramas do corpo na arquitetônica das
concepções bakhtinianas. In: ANDERSON, S; MALDONADO, R
(Org.). Colóquio Barroco IV. Natal- RN: EDUFRN,2017, v 1, p.303-
322.
COELHO, N. Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Ática, 1991.
HAN, B.C. A salvação do belo. Petrópolis, RJ: Vozes, ed. 2, 2019.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

LOPES, M. Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo:


Editora Parábola, 2006.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O corpo grotesco que clama por voz

Josemeire Caetano da Silva


Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP
josemeirecaetano@gmail.com

O grotesco na imagem, na voz, na pele e na alma reverbera a


resposta. Na ética, ao criar novos sentidos às respostas dadas ao
preconceito. No diálogo de grupos marginalizados, que lutam na
arena discursiva, Carentes de voz, vez e valor, cujas palavras se
calam frente à marginalização de uma sociedade contrária à beleza
do respeito ao corpo e aos sentimentos.
O grotesco belo, ilustre e fascinante é o grotesco da comunidade
LGBTQIA+, muito além de uma sigla criada para responder e dar
voz a todos que, com orgulho, levantam não apenas uma bandeira,
mas um ideal de gerações e gerações, o ideal do respeito e da
indignação ao preconceito escancarado aos quatro cantos.
O corpo não apenas fala, mas sente e tem formas multicoloridas.
Na cultura popular, a expressão de séculos e séculos de luta! O
fenômeno do estado de transformação, não da matéria, mas da
alma. A polissemia transmutada da palavra cultura em nossos dias.
A praça pública vira a internet em tempos sombrios e pandêmicos.
A imagem grotesca caracteriza um estado de metamorfose
incompleta…

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Cada movimentação da cultura popular é uma possibilidade de


luta. De todos os sujeitos juntos, porém respeitando as fronteiras
que os separam. O riso é o lugar que constitui a resposta, o riso
alegre, o riso libertador. É o rir de si mesmo e o rir do outro,
simbolizando a liberdade de expressão. A imagem grotesca
caracteriza o nascimento do amor e a morte do preconceito.
No estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da
evolução está a ambivalência que move o moinho constante do
nascer e do renovar-se. A atitude em relação ao tempo de hoje, de
ontem e de amanhã, pois o hoje é o grotesco do amanhã que tanto
nos preocupava ontem, enquanto traço constitutivo, determinante
e indispensável da própria imagem grotesca.
O corpo grotesco é a infância e a velhice dos pensamentos
retrógrados. Na medida em que nasce, vive, dialoga, transmuta-se,
envelhece e renasce. A metamorfose que luta insistentemente para
constituir-se no princípio e no fim. Nas vozes sedentas por vez, por
resposta e, principalmente, por respeito. Na mundo às avessas do
tempo e do espaço em constante esperança.
No preconceito vivido pela comunidade LGBTQIA+, temos formas
de degradação. Formas herdadas dos disfarces das festas
populares, das diabruras e dos infernos. Do fogo que ainda queima
corações que lutam por respeito, dignidade e voz. De um corpo
grotesco, aberto para o exterior, ao relativizar os discursos de ódio.
Na lógica interna de todos os exageros, do grotesco que devora e
procria liberdades.
No colorido dessa comunidade, metamorfoseia-se um movimento
interno da própria existência e da possibilidade de transmutação
de formas em outras. Máscaras, corpos, formas, cores e valores a se
amalgamar em uníssono. Consciências estampadas nas máscaras
ao atravessar e violar fronteiras naturais.
Das formas grotescas e festivas a contemplar e espalhar exageros
positivos. No corpo grotesco, o jogo da vida baseado na inter-

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

relação com a realidade. A essência do grotesco estampada nas


máscaras de cada membro LGBTQIA +. O ir e o vir, o que nasce e o
que morre, no interior de dois corpos unidos e germinados. O
crescimento, o inacabamento perpétuo da existência a renovar-se
em célula viva. Na individualidade à coletividade orquestrada pelo
novo, pelo original, pelo diálogo.
A fantasia reverbera o social, renova a vestimenta hierárquica una
e indivisível. Permuta do superior ao inferior de um corpo
grotesco, alegre, multiforme e multicor. A hiperbolização desse
corpo nas pinturas dos rostos, dos tecidos, dos adornos. Caráter
concreto, material e corporal ao dialogar com culturas, tempos,
histórias. No hiperbolismo das imagens grotescas, materiais e
corporais dessa comunidade.
O destronamento da utopia social em meio a negação do
preconceito. As inversões que criam faces, dão vozes e coroam
identidades. Na fronteira entre a realidade e o simbólico, a
ressignificação do grotesco. Ao sensibilizar a todos e a cada um a
comungar com o sentimento da coletividade. Do corpo ao mundo,
do mundo ao corpo grotesco, morto e renascido.
Os mistérios e enigmas desvelados nas vozes e nas máscaras
multicor. Enigmas do mundo, ou melhor, dessa comunidade que
destrona o preconceito. No jogo da vida vivida, sentida, sofrida,
injuriada... mas, renovada diariamente. Na praça pública das redes
sociais, o grotesco materializado na própria língua. Na língua que
fala, na língua que sente, na língua que responde e responde
sempre.
A corporificação grotesca nas ruas, avenidas e na praça pública da
internet. Nas inversões carnavalescas das drags, sentimentos de
liberdade e verdade. Sentimento de pertencimento e de diálogo
constante, interpessoal, uno e inacabado. Enriquecimento de uma
cultura poluída e transvestida de preconceito, incolor e inodor Aos
olhos, ouvidos e pele de quem não sente, de quem nega o dito, e
fere, e mente.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A ridicularização da verdade e do poder que cala e mascara a


liberdade. O corpo grotesco é a personificação do corpo em
mudança, em movimento. Do corpo que fala, grita e dialoga, mas
que não está pronto nem acabado. É a metáfora de um corpo que
absorve o mundo e é absorvido por ele. Na renovação da palavra,
da boca ao pensamento, um corpo a expressar-se.
Na pintura dos corpos, dos rostos, das máscaras, das fantasias
reina a renovação histórica da cultura que liberta, que cura, que tem
voz. É a boca que escancara a verdade e abre a porta de figuras que
lutam por seu lugar. É um corpo híbrido que nasceu e tomou forma
em um mundo carente de respeito. Personificado nas cores
coloridas, travestidas de ideologia, universalidade e cultura.
Na imagem da velhice, a esperança de uma juventude que
refloresce. É o rejuvenescimento não do biológico, mas do cultural
e do individual da coletividade. A permutação do tempo, do
espaço, da negação pela afirmação do ser. Trata-se de uma lógica
do avesso, por negar o medo de mudar. É a afirmação de vozes que
falam, cantam, gritam e marcam a identidade.
Na imagem grotesca, a certeza de um ideal individual e coletivo
LGBTQIA+. Vozes sedentas que clamam pelo diálogo, que
refletem, respondem e deixam marcas. Terra, fogo, água e ar
representam o corpo grotesco na cadeia infinita da vida corporal.
Do ventre à terra; do nascer ao morrer e renascer constantemente
em um ciclo infinito. É um corpo grotesco que clama por voz e
respeito, que luta e simplesmente quer viver.

Referências
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. 5. ed. São Paulo:
Editora Hucitec, 2002.

1065
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O discurso polêmico e grotesco da Ku Klux Klan nestes últimos


tempos

Marcos Alexandre Fernandes Rodrigues


Universidade Federal do Rio Grande (FURG)
rodmaf2@gmail.com

Palavras Iniciais
Ao vislumbrar axiológica e teoricamente a temática “O grotesco
dos nossos tempos: vozes, ambiente e horizontes” do VIII Círculo
– Rodas Bakhtinianas, este pesquisador assumiu o compromisso de
analisar dialogicamente o discurso da KKK, mais especificamente
da WCKKKK. Por curiosidade, alguém poderia perguntar: “Por
que a escolha deste objeto-discurso de investigação científica? Seria
ele importante para o contexto sociocultural brasileiro?” A resposta
é sim. É que, neste país, percebe-se a ascensão de um processo
discursivo de apreensão/reelaboração/reacentuação que pretende
“Fazer o Brasil Grande Outra Vez” seguindo o “estilo de vida
americano”. Não por acaso, este autor encontrou estes comentários
a seguir em um fórum de supremacismo branco criado pelo ex-
líder da KKK:
Eu amo muito a Klan. Infelizmente somos um país sem liberdade de
expressão onde a criação de tais grupos seriam inviáveis (TABBYK,
2019, n.p.).
Está na hora de uma Ku Klux Klan surgir neste país! Temos que
erguer as massas e as pessoas brancas. Temos que unir e esmagar o
inimigo em comum... Os não-brancos! (VARGREICHENBACH,
2019, n.p.).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Pelas hipóteses deste pesquisador, os dois usuários são do Rio


Grande do Sul, tendo o Tabbyk se graduado em “Letras – Redação
e Revisão de Textos” em uma universidade de Pelotas no ano de
2019. Em todo caso, é importante alvitrar que, se o discurso da KKK
está virtualizado, o auditório social desta organização de repressão
racial neocolonial não está restrito aos Estados Unidos da América
(EUA – doravante), visto que ela pode aguardar uma compreensão
ativo-responsiva de seus discursos no Brasil. Nessa perspectiva,
parece seguro afirmar que brasileires/as/os participam implícita ou
explicitamente da situação de enunciação em que vozes ideológicas
de ódio racial estão em diálogo.
Demarcado o tema desta pesquisa em análise dialógica do discurso,
o objetivo é perscrutar de que maneira a WCKKKK, por meio de
seu discurso, posiciona-se em relação a grupos étnicos racializados
e com eles trava polêmicas. Com efeito, há que se refletir sobre esta
pergunta exploratória nesta investigação. É ela: o projeto de
idealidade racial e religiosa da WCKKKK, que visa a um processo
de higienismo e eugenia na sociedade estadunidense, teria uma
pretensão política de modo a ser institucionalizado? É um
problema a ser elucubrado! A esse respeito, a justificativa deste
pesquisador não é nova, mas necessária. De acordo com a
Declaração de Durban (2001), é fulcral o esforço coletivo no
combate a ideologias neonazistas, neofascistas e nacionalistas
violentas baseadas no preconceito racial e origem nacional.
Para essa empreitada, selecionam-se dois enunciados de uma
página virtual da WCKKKK como corpus discursivo. Conforme a
pesquisa em análise dialógica do discurso orienta, o pesquisador
faz movimentos exotópicos ao estar em diálogo com seu objeto, o
qual, bakhtinianamente, é visto como um sujeito que enuncia e
responde a vozes ideológicas. Em empatia com o objeto-sujeito, o
pesquisador de sua posição única e singular entra em empatia com
ele no intuito de compreender o mundo pelos seus olhos, mas sem
necessariamente precisar concordar com seus valores ideológicos.

1067
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Por fim, dá-se ênfase às noções de polêmica aberta e velada


presentes da obra do Círculo de Bakhtin, Medviédev e Volóchinov.

Polêmicas do discurso de repressão racial neocolonial


Bakhtin (2015), ao se referir ao romance, intersecciona várias noções
dentre as quais é possível mencionar polêmica, discurso bivocal,
bilinguagem, discurso heterovocal, heterolinguagem, heteroestilo,
heterofonia e heterovocalidade. Sim, o romance dostoievskiano,
por exemplo, é um todo orgânico em que múltiplas consciências
estão em diálogo. Elas possuem certa liberdade ou independência
relativa em relação ao autor. Nesse tipo de romance, várias
linguagens sociais estão orquestradas pelo autor e estão em
correlação dialógica. Para além do discurso literário, as noções
acima mencionadas podem ser observadas em funcionamento no
discurso da KKK e de suas ramificações de ódio racial, visto que,
em seus projetos discursivos, várias linguagens patrióticas, cristã,
colonial se vislumbram e se iluminam uma a outra. Ao se dirigirem
a um auditório social diverso, as organizações de repressão racial
neocoloniais respondem a vozes ideológicas, visando recrutar e
intimidar em suas páginas virtuais.
Ouve-se sempre uma multiplicidade de vozes ideológicas,
contextos cruzados e entonações expressivas no discurso da KKK.
Embora haja uma visão de puridade, o discurso dessa organização
de ódio racial é extremamente mesclado e híbrido. Ao decidir
ameaçar, a KKK polemiza abertamente com a população negra,
LGBTQIAP+, feminista e latina que não se resguardam em seus
parâmetros para seu projeto de eugenismo racial e higienismo. Em
outros momentos, ela volta-se veladamente a quem procura
intimidar.
Sabe-se que, na história de colonização ao que veio a ser chamado
de EUA, os primeiros assentamentos puritanos tinham o homem
branco colono protestante como chefe da família e a ela a mulher
era socialmente inferior, destinada a tarefas domésticas e à fazenda

1068
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(GRANT, 2014). Na verdade, as primeiras mulheres que chegaram


à Virgínia no século XVII foram comercializadas em um mercado
humano, estando acessíveis aos fazendeiros com mais capital
(GRANT, 2014). Embora os puritanos convocassem o seu meio
social a uma leitura individual dos textos sagrados, a sociedade era
patriarcal, branca e reguladora, até mesmo porque a Igreja era o
centro do assentamento. Naquele momento histórico, não era
surpresa, pois, visões apocalípticas nas quais o diabo personificado
no “outro” indesejado espreitava a cada sombra.
Em 1861, em um salto histórico, no entremeio das tensões que
centripetavam e centrifugavam valores entre as colônias nortistas e
sulistas, estourou a sangrenta e fratricida Guerra Civil (1861-1865)
nos EUA (AMEUR, 2005). Dessa tensão secessionista, formou-se a
Confederação que, em seu ordenamento, reconheceu o sistema de
escravização que submetia forçadamente milhões de negros a um
trabalho servil, humilhante e desumano. Apesar do presidente
republicano da União, Abraham Lincoln, ter assinado a
emancipação negra em 1863, foi somente durante a Reconstrução
que mais de 4 milhões de escravizados foram libertos a partir da
13ª Emenda Constitucional que foi integrada à Constituição em
1865. Um ano depois, veio a 14ª Emenda que garantia os mesmos
direitos cívicos entre brancos e negros naquele país (AMEUR,
2005).
Do processo de Reconstrução em diante, surgiram a KKK e outras
organizações de ódio (Filhos do Sul, Fraternidade Branca,
Cavaleiros da Cruz Negra, Cavaleiros da Camélia Branca) no
intuito de obstaculizar o exercício de um direito básico da
população negra, a saber, o de existir. Não parou por aí, uma vez
que as leis Jim Crow foram promulgadas com o fito proclamar a
segregação racial nos estados do Sul.
Mesmo que tenham se passado 156 anos (1865-2021), a KKK
continua em atividade nos EUA e aí é válida a refutação de uns
discursos. Em primeiro lugar, a KKK jamais foi uma organização

1069
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

secreta, visto que sua principal atividade era o recrutamento e a


intimidação social. O rosto nas marchas era encapuzado, porque
esses racistas não queriam receber represálias. Em segundo lugar,
a KKK continua perigosa, uma vez que ela objetivava conquistar e
dominar grupos étnicos racializados. Ela está presente nos EUA,
Brasil e Rússia, dentre outros países. Em terceiro lugar, a leitura de
que existiram 5 gerações da KKK na história dos EUA (1865-1871,
1915-1944, 1946-1960, 1950-1970, 1970-2000) não é produtiva,
porque instaura lapsos temporais. Ao invés disso, é melhor
escrever que, devido ao seu coro de apoio, essa organização jamais
deixou de existir na medida em que havia/há vozes ideológicas
racialistas que mantiveram/mantêm seu diálogo vivo no curso do
tempo. Feito isso, leia-se a seguinte citação retirada de um texto
lavrado em uma página virtual de autoria da WCKKKK:
O suicídio racial em nome da igualdade é uma loucura. Na opinião
da Klan, isso mostra falta de amor e carinho pela Raça Branca. A
Klan acredita que os brancos são superiores aos não-brancos.
Quando alguém chega a um homem da Klan [Klansman] e faz o
comentário, “somos todos criação de Deus e a única diferença na
raça é a cor da pele”, dizemos a eles que eles estão parcialmente
corretos. Deus é o criador, e ele criou a todos nós, mas há um
mundo de diferença entre as raças além da cor da pele.
Por que tantas pessoas estão empenhadas em promover a mistura
de raças e a igualdade racial? Porque o objetivo de Satanás é que
violemos a lei de nosso Pai Celestial ao misturar nossa semente com
as outras pessoas do mundo. O que costumava estar errado agora
está certo. O que costumava ser ruim agora é bom. Nosso mundo
virou de cabeça para baixo e só podemos culpar a nós mesmos por
sermos tão crédulos (CAVALEIROS DA CAMELIA BRANCA DA
KU KLUX KLAN, [entre 2004 e 2016], n.p.).
A WCKKKK tem como símbolo a cruz em chamas, o que se traduz
ideologicamente como um devocionismo à figura de um Jesus
arianizado que se sacrificou por uma humanidade branca. É que os
membros da WCKKKK e da KKK se consideram a expressão única

1070
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de humanidade, o que coloca o “outro” na condição de


desumanado, que, enquanto tal, pode ser conquistado. A esse
respeito, esses supremacistas brancos creem que “os brancos são
superiores aos não-brancos”. Ao assim se posicionarem, eles
parecem polemizar de forma velada com “não-brancos”, mas essa
categoria racista é específica para negros, pardos, latinos e povos
originários, o que poderia tornar essa polêmica aberta. Nessa
perspectiva, parece que a WCKKKK tenta legitimar seu discurso a
partir das vozes ideológicas do divino e do diabo. Sim, porque, se
um centripeta valores a serem obedecidos, o outro centrifuga
valores a serem corrompidos. Nesse discurso que trava uma
polêmica velada, mas também aberta, acusa o “não-branco” de
revirar/subverter valores, haja vista que “O que costumava estar
errado agora está certo”.

Palavras Finais: alguns arremates


Nesta oportunidade, no contexto do VIII Círculo – Rodas
Bakhtinianas, analisou-se o discurso de uma organização racial
neocolonial chamada WCKKKK, que, como se vislumbrou,
reivindica valores de dominação racial do passado colonial dos
EUA. A partir de seu discurso populista, percebe-se que, de uma
instância cidadã, a WCKKKK pode pretender institucionalizar seu
projeto de idealidade higiênica em uma instância política de modo
a impedir o “suicídio racial” em nome da “igualdade”. Para tanto,
necessita engajar possíveis apoiadores, de um lado, e intimidar
eventuais adversários, de outro. Já denunciado o corpus discursivo
à Safernet, espera-se poder subsidiar novas pesquisas na área das
Ciências da Linguagem, das Humanidades e Sociais para se
contrapor ao discurso grotesco e antidemocrático dessa
organização neocolonial.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
AMEUR, Farid. A Guerra de Secessão (1861-1865). Tradução: Pedro
Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2005.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski.
Tradução: Paulo Bezerra. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: A estilística. Tradução:
Paulo Bezerra. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2015.
DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO DE DURBAN.
Disponível em: . Acesso em: 4 set. 2021.
GRANT, Susan-Mary. História concisa dos Estados Unidos da
América. São Paulo: EDIPRO, 2014.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O ESTILO GROTESCO NA ADAPTAÇÃO DO ENSINO


REMOTO NAS UNIVERSIDADES EM CONTEXTO
PANDÊMICO

Ana Paula Santos Pimentel


Universidade do estado do pará
ana.pimentel@aluno.uepa.br

Aline Caroline Castro de Castro


Universidade do estado do Pará
castroaline944@gmail.com

Introdução
A partir do que conceitua Bakhtin (1987) o exagero, o hiperbolismo,
a profusão, o excesso são segundo opinião geral, os sinais
característicos mais marcantes do estilo grotesco. Diante disso foi
percebido um estilo grotesco na linguagem no momento da
adaptação do ensino remoto nas universidades públicas,
sobretudo, na universidade do estado do Pará - UEPA. Uma vez
que, não houve um acordo solidário por parte de muitos alunos
para com os demais que não obtinham acesso ao mecanismo de
ensino proposto.
Mediante a situação de pandemia sendo vivida por todo o mundo,
no Brasil o que dificultou ainda mais foram as péssimas condições
administrativas tomadas pelos governantes vigentes em questão,
sobretudo o atual presidente do país, Jair Bolsonaro. Que diversas
vezes diminuiu e desdenhou do quão complexo era o momento que

1073
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

se vivia, e massificou muitas falas de desrespeitos aos mortos pela


doença e seus impactos da sociedade, dando aval para
posicionamentos como a permanência de se pensar uma
meritocracia, uma vez que a solidariedade ao próximo deveria ter
sido posta em vigência.
Por vezes foi observado que os alunos que defendiam o retorno
imediato das aulas não tinham sequer consideração com o restante,
de forma que as falas abordadas eram sempre incisivas, parecendo
ser mais interessante começar as aulas de qualquer jeito ao invés de
sobreviver à pandemia. Afinal, o ranque de prioridades em meio
ao contexto pandêmico por si só é de linguagem grotesca.

Desenvolvimento
Com o primeiro caso de covid-19 foi confirmado em 26 de fevereiro
de 2020 no Brasil no estado de São Paulo, no mesmo mês
começaram as primeiras ações governamentais ligadas ao combate
da pandemia. Desde então, medidas como lockdown e também
medidas preventivas de restrições foram tomadas. Entretanto,
naquela época achavam-se que seriam apenas alguns dias ou até
mesmo semanas, que logo tudo iria voltar ao normal. Contudo,
semanas e meses foram passando-se, e muitos mais casos se
confirmando, teve-se o aumento de mortes de muitos cidadãos e o
vírus sofrendo variantes preocupantes para a sociedade.
Ao redor do mundo, de acordo com a pesquisa apontada pela
revista Science (2021) são mais de 2,7 milhões de mortes e mais de
124 milhões de casos até março de 2021, os países com mais casos
são Estados Unidos, Brasil, Índia, Rússia e França. Quando se fala
de mortes o ranking muda: EUA, Brasil, México, Índia e Reino
Unido. Ou seja, o Brasil é um dos países mais atingidos pela
COVID-19. Até 11 de março de 2021, 11.277.717 casos e 272.889
mortes foram relatados. Esses números representam 9,5% e 10,4%
dos casos e mortes em todo o mundo, respectivamente, mas o Brasil
representa apenas 2,7% da população mundial. No final de maio

1074
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de 2020, a América Latina foi declarada o epicentro da pandemia


de COVID-19, principalmente por causa do Brasil. Desde 7 de
junho de 2020, o Brasil ocupa o segundo lugar em mortes em todo
o mundo. (CASTRO; et al, 2021)
Diante disso, é notório afirmar o quanto as consequências podem
ser devastadoras quando não se tem uma gestão política de
qualidade e apta a manusear de forma eficiente os danos que o
vírus pode causar em um país, haja vista que embora a
disseminação inicial tenha sido determinada pelas desigualdades
socioeconômicas existentes, a falta de uma resposta coordenada,
eficaz e equitativa provavelmente alimentou a propagação espacial
generalizada do SARS-CoV-2.
Dentro desse contexto uma das medidas que foi colocada em
prática para que os alunos estudassem, haja vista que a pandemia
estava longe de ter fim, foi o método de Ensino Remoto
Emergencial (ERE). No qual o ERE foi uma modalidade de ensino
online que tem a tecnologia como aliada para que as aulas tanto do
ensino escolar, quanto ensino universitário acontecesse em meio à
pandemia de covid-19.
A pandemia apresentou desafios que extrapolaram as questões
sanitárias e, abruptamente, exigiram a aquisição de uma nova
cultura de convivência social e de práticas profissionais, senão
totalmente inéditas, nunca antes utilizadas de maneira tão massiva
ou institucionalizadas. Nesse contexto, talvez por ser um ato
eminentemente social, a educação foi um dos segmentos mais
afetados e desconfigurados de suas tradicionais formas de se
materializar, uma vez que passou a ser efetivada por meios
totalmente remotos, organizando-se em um conjunto de práticas,
metodologias e orientações curriculares específicas que foram
oficializadas e convencionalmente denominadas de Ensino Remoto
Emergencial.

1075
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Devido às peculiaridades que o constituem, advindas de sua


natureza emergencial e do modo abrupto com que foi posto em
prática, o ERE que era pra ser um sistema inclusivo entre os
estudantes em meio à pandemia, acabou se tornando um sistema
excludente, levando em conta que muitos estudantes foram
deixados de lado nesse processo de ensino que foi implementado
em medidas incisivas. Não se pode chamar de ensino uma
modalidade na qual muitos profissionais da educação nem sequer
tiveram ensinamentos de como manusear os aparatos tecnológicos
que iriam usar para ministrar as aulas, uma modalidade na qual
não se teve preparação prática pedagógica que visassem um
método de aprendizagem efetivo entre seus alunos e professores.
Em decorrência disso, uma das medidas tomadas pela
universidade foram as distribuições de chips de internet para
alguns alunos, afinal houve discussões e resistências por meio de
como o ensino estava sendo implementado. Muito se falou de como
essa nova modalidade de ensino na prática estava contribuindo
ainda mais com as questões psicológicas que muitos alunos e
professores estavam passando, todavia, a pandemia estava em seu
auge, com números de mortos e infectados aumentando cada vez.
E muitos educadores sofreram com a pressão de ministrar aulas
para cumprir horários.
A partir de um estudo feito pela Fiocruz junto com o Comitê Gestor
da Internet no Brasil (CGI.br)
Uma pesquisa divulgada em 2019 aponta que 58% dos domicílios
no Brasil não têm acesso a computadores e 33% não dispõem de
internet. Entre as classes mais baixas, o acesso é ainda mais restrito.
A pesquisa foi feita pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil
(CGI.br), entre agosto e dezembro de 2018. Os dados apontam que,
nas áreas rurais, nem mesmo as escolas têm acesso à rede mundial
de computadores: para o sinal chegar aos locais mais remotos.
(BRASIL, 2020)

1076
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Diante disso a forma encontrada para que os alunos continuassem


seus estudos foi feita de forma excludente e silenciadora para com
essas pessoas, principalmente as que não usufruem de meios
tecnológicos para assistirem as aulas e consequentemente
acabaram sendo isolados, deixando-os para trás. No qual seria
relevante ter-se levado em conta que o Pará é um estado
extremamente desigual, onde grande parte dos cidadãos paraenses
são de famílias de baixa renda, na qual sobrevivem com menos de
um salário mínimo. Ou seja, essas questões extremamente
importantes deveriam ter sido levadas em conta ao adotar o ERE,
sabendo que muitos dos alunos não possuem nem mesmo um
celular pessoal para que pudessem ter suas aulas, muitos não tem
um espaço adequado em casa para que seu estudo seja produtivo e
muitos não possuem rede de internet em sua residência.
Como tais questões não foram levadas em conta ao adotar o sistema
emergencial remoto, houve uma evasão muito grande de
estudantes nas salas de aula. Estudantes que foram excluídos,
deixados para trás e brutalmente silenciados. Onde a educação
deveria ser uma forma de inclusão e não de exclusão. De acordo
com Ferreira (2015), normalmente silenciar-se causa certo
desconforto nas pessoas, tende-se a pensar que não há
comunicação no silêncio, o que se constitui em um equívoco,
partindo do pressuposto de que ele é uma forma de linguagem.
Nesse sentido, a Análise do Discurso torna-se relevante nesse
assunto, ora a análise entende o discurso como prática. Para
Orlandi (2007), o silêncio não é só ausência de sons, mas também
algo que significa e que se distingue do implícito, que precisa do
“dito” para colocar-se sob o sentido.

Conclusão
É possível percebe-se que o silenciamento pode ter diversas formas,
na qual o Ensino Remoto Emergencial também se tornou uma

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

alternativa de silenciamento, levando em conta os diversos


números de alunos que não tiveram a oportunidade de falar de
seus obstáculos para que não continuassem o curso, e muitos
acabaram optando pelo trancamento nas universidades, haja vista
que não obtinham meios para assistirem às aulas.
Contudo, a forma dita eficaz para manter os estudos em meio à
pandemia foi pensada de forma desigual por meio das autoridades,
que fogem do alcance de professores e coordenadores, pois se sabe
que o ERE partiu de uma implementação imposta pelo governo que
em inúmeras vezes tentou apagar a gravidade do que estava
ocorrendo e atribuiu o ensino remoto como proposta para a
continuidade das atividades. Mediante esse contexto, hoje tem-se
uma evasão em massa de estudantes das universidades, e sem
perspectivas de retorno.

Referências
BRASIL. Coronavírus faz educação a distância esbarrar no desafio
do acesso à internet e da inexperiência dos alunos. FIOCRUZ:
FUNDAÇÃO OSWALDO Cruz, Ministério da Saúde. 2020.
Disponível em: <>
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e o
renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi
Vieira. Editora Universidade de Brasília: São Paulo, 1987.
CASTRO. Et al. Padrão espaço-temporal de disseminação da
COVID-19 no Brasil. 2021. Rev. Science, v. 372, n. 6544, p. 821-826.
2021. Disponível em: <>
FERREIRA, Yvonélio Nery. Percursos do silêncio: as narrativas de
Luiz Vilela. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Santa
Catarina, 2015.
ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos
sentidos. 6ª ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O FESTIM DO GROTESCO EM TEMPOS DE REPRODUÇÃO


DO IGUAL

Juan dos Santos Silva


UFRN/Doutorando do PPGEL
juanfflorencio@gmail.com

Quando nos propomos a discutir sobre um determinado aspecto


da vida social temos a necessidade de situar em que tempo esse
evento ganha materialidade. Ora, o tempo que corre por trás de um
evento não o define apenas na linha temporal da história, mas
também adiciona a ele diversos elementos idiossincráticos daquela
realidade. Do mesmo modo, o espaço no qual esse tempo atua
também dá relevo a uma atmosfera que não é neutra, mas
responsiva a determinados aspectos do tempo que corre e do
espaço que se ocupa. Juntos, tempo e espaço constroem realidades
sociais, edificam imagens que contextualizam e dão
enquadramento a certos eventos, abre caminhos possíveis a serem
seguidos por um determinado sujeito e, sobretudo, preenche de
sangue vivo de sentidos as vozes que se transformam em
posicionamento, corpos, identidade e eventos sociais.
Esse laço simbiótico entre tempo e espaço é denominado por
Bakhtin de cronotopo (2018). Na tentativa de mapear
historicamente o aparecimento do romance, o teórico vai até os
antepassados da literatura grega e chega até a literatura de seu
tempo analisando heróis e narrativas em que a influência do tempo
e do espaço eram soberanas para as possibilidades de construção

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de realidade na arte. Em um primeiro momento, os heróis nasciam,


cresciam e morriam como seres unificados, destinados a
cumprirem grandes feitos, derrotarem poderosos inimigos,
defenderem suas pátrias e, ao final, encontrar glória eterna na
calmaria de uma vida simples ou na memória das pessoas após sua
morte heroica. Já o herói dos tempos de Bakhtin, cínico e ideólogo,
encontra em sua realidade uma série de caminhos abertos e que ele
pode, a depender da sua relação com os outros personagens e com
as questões de sua época, seguir ou não. Não há mais destino, há
um destronamento da trajetória de vida dada pelo divino e a
abertura para uma realidade em que o sujeito está aberto para a
eventividade da vida. Nesse sentido, hoje, em que tempo estamos?
Qual cronotopo situa nossas possibilidades de performance no
mundo?
Diversas discussões teóricas tentam situar em que paradigma
temporal a sociedade contemporânea se encontra. Após a
revolução francesa, intensificou-se a expansão da lógica capitalista
em substituição ao modelo medieval, caracterizando um novo
processo de construção de práticas econômicas no mundo que,
inevitavelmente, respinga nas formas de organização social. Com a
manutenção da ordem capitalista no mundo, mas com uma série
de avanços tecnológicos que propiciam uma globalização a nível
mundial e novas formas de interconexão entre economias e
culturas, discute-se hoje novas formas de denominar essa
modernidade que passou por intensas mutações e adaptações na
medida em que avançou pelo globo. Há quem a defina como pós-
moderna, justamente pela crescente mudança de práticas de
interação entre economias, sociedades e sujeitos em virtude da
globalização e dos avanços tecnológicos, os quais estreitam as
relações entre países e levam a modernidade para um outro
patamar no qual as verdades lineares e, por vezes, únicas, dão
espaço para visões múltiplas de realidades individuais de sujeitos
e grupos. Por outro lado, há quem defina essa modernidade como

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

líquida (BAUMAN, 2001), dada a fluidez das relações resultantes


desse alto processo tecnológico que muda a forma com a qual as
pessoas se relacionam. Ainda, há quem defina esse tempo como
hipermoderno (LIPOVESTSKY, 2004), vendo essa realidade atual
como uma intensificação de práticas da modernidade, a qual
encontra na individualidade desenvolvida pelos sujeitos e suas
pautas como forma do sistema ampliar sua dominação sistêmica.
Não nos interessa definir aqui qual lente é mais certeira para definir
a realidade que vivemos, mas destacar que, independente de qual
visão se toma, é inegável o agravamento das práticas capitalistas
no nosso tempo. A tecnologia traz inúmeras facilitações para a vida
dos sujeitos, porém, traz com ela diversos reveses que, no
cotidiano, passam despercebidos e ampliam o domínio do sistema.
Por exemplo, as redes sociais ampliam as possibilidades de se
comunicar com outros sujeitos, no entanto, os algoritmos cada vez
mais mostram apenas aqueles sujeitos que pensam como nós e que
postam o que nos agrada, criando bolhas que apenas reproduzem
para o “eu” outras cópias de si. Por outro lado, facilita-se o uso de
serviços como carona e pedidos de comida enquanto aumenta a
precarização do trabalho e a naturalização da falta de vínculos
empregatícios. As ferramentas de mídias digitais abrem as portas
para que qualquer um abra seu perfil e compartilhe suas questões,
mas só aquilo que é mais compartilhado - e não necessariamente
verdade e importante socialmente - ganha visibilidade. Logo,
fazendo referência ao cronotopo bakhtiniano, parece que a
realidade cronotópica em que vivemos oferece diversos caminhos
para os seus sujeitos seguirem e se construírem, no entanto, esses
caminhos parecem, disfarçadamente por meio de uma falsa
democracia, levar a destinos tidos como ideais para o sistema.
Nesse sentido, parece que, assim como os heróis gregos, o sujeito
moderno/pós-moderno/hipermoderno possui um destino: servir
aos interesses do capital.
É possível escapar desses caminhos pré-estabelecidos? É possível
parar o movimento que o sistema faz parecer natural, questioná-lo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

e abrir caminhos em outra direção? É possível desafiar a ordem


cronotópica e partir em busca do desconhecido? É ao se debruçar
sobre as obras de Rabelais que Bakhtin (2010; 2018) percebe um
cronotopo que opera de forma diferente, apresentando
personagens, criaturas e situações que fogem à norma de sua época
e instauram uma espécie de realidade totalmente distinta e
desafiadora. Bakhtin (2010) nomeia essa nova atmosfera que se
gesta na literatura de Rabelais de realismo grotesco e o caracteriza
como um universo no qual as relações entre os sujeitos do mundo
social são subvertidas e dão lugar a uma espécie de celebração, tal
qual a festa tradicional, em que os sujeitos se despem de seus
papéis sociais e assumem novos, de forma momentânea, enquanto
esse realismo se manter de pé. O que ocorre é um destronamento
da ordem dominante e a coroação do efêmero, dando
permissividade para que certas expressões de corpos, identidades
e discursos até então menosprezados ganhem materialidade e
evidência no meio social. Da mesma forma, aspectos higienizados
da cultura, como o baixo corporal, o sexo, as secreções e demais
questões tidas como íntimas, ganham repercussão e materialidade.
É esse processo que explica a obra de Rabelais composta de
criaturas tão estranhas e excêntricas em um tempo medieval tão
devoto da “normalidade”. É justamente essa normalidade que
nomeia esses corpos de grotescos, e apenas durante o processo do
carnaval é que são aceitáveis para além da sombra.
Logo, são nesses momentos de realismo grotesco, de performance
do carnaval, que os sujeitos encontram possibilidades de se
desviarem do caminho proposto pelo capital. Ora, como dito
anteriormente, além de uma concepção que enquadre uma visão de
modernidade, é imperativo compreender que o capitalismo não
acabou e continua subjugando sujeitos ao consumo desenfreado e,
para aqueles que não sustentam esse modelo de consumo - uma
grande maioria-, resta a exploração de seu trabalho, cultura e vida.
Isso já foi provado ao longo da história com a dizimação dos povos

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originários, com a escravidão dos negros, com a repartição do


mundo entre países colonizadores, com o papel inferior da mulher,
com a criminalização e patologização de sujeitos queer, a caça a
movimentos sindicais e uma série de outras perseguições que
tentaram apagar modelos de vida que fogem daquele estabelecido
pelo sistema. Logo, ao assumir aspectos como esses, o sujeito tatua
em si as marcas que o definem como grotesco e, além disso, o marca
como alvo de caça para os “soldados” do capitalismo.
Assim, na esteira de produção do capitalismo, modelos tidos como
tradicionais, originários e exemplares, como sujeitos brancos,
héteros, cristãos e seguidores fiéis da cartilha capitalista, seguem
suas vivências sem serem perturbados por esse enquadramento
social e, por vezes, servem como vigias do sistema, uma vez que ao
encontrarem sujeitos que fogem desse padrão os coloca em um
paradigma de estranho, diferente ou errado. A cultura, que se
enriquece com a diferença e com a troca de vivências, vira uma
arena em que verdades entram em conflito pela hegemonia de um
discurso dominante e homogeneizador. Aquele que desafia a
ordem, mesmo que pouco, ameaça o sistema por se tornar espelho
para outros que também não são contemplados pelo corpo único
vendido pelo capitalismo. O que pode acontecer se todos se
motivarem a serem quem são? Se a exploração não for mais
naturalizada e a violência sobre os corpos for efetivamente
percebida pelos sujeitos, como o sistema se mantém? O cronotopo
sustentado pelo capital se estende de forma alienadora e violenta
para garantir seu espaço como maior corpo celestial sobre os
demais cronotopos. Mas ali, por vezes maior, por vezes menor,
orbita o carnaval, abrindo caminhos outros e possibilidades
distintas de construção de si e do mundo. Guiados por essa lua, que
mesmo não tendo a potencialidade imediata de um sol, os corpos
grotescos encontram a si e aos seus iguais, e tentam manter sua
existência e em meio a massa indistinta que o capital tenta criar.
O sistema capitalista cria seus tipos relativamentes estáveis de
sujeitos, assim como, cada tempo da história cria seus tipos

1084
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

relativamente estáveis de corpos grotescos. Cada sujeito, a partir de


sua subversão, conquista um alvo maior ao longo de sua trajetória
pelos caminhos proibidos pelo sistema. É dever do pesquisador
pensar utopicamente, afinal, se não acreditamos em mudanças
efetivas no mundo, não há sentido na nossa pesquisa. Assim, quem
sabe, um dia, os sujeitos se perceberão todos como alvo, como
operários à mercê de um sistema que os explora cada vez mais. E,
assim, grotescos e idênticos se perceberão como diferentes,
singulares e particulares, mas ligados por um fio de humanidade
que os torna igual. Talvez, nesse momento, um novo cronotopo se
forme, e então, poderá ser carnaval o ano todo.

Referências
BAKHTIN, M. Cultura popular na idade média e no renascimento:
o contexto de François Rabelais – 7a edição. Tradução de YAra
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
BAKHTIN, M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do
cronotopo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34,
2018.
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien.
São Paulo: Zahar, 2001.
LIPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos. Tradução de M.
Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2004.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O gênero discursivo meme: elementos de estabilidade


composicional e estilística grotesca a partir de Bakhtin

Tássia Aguiar de Souza


Universidade Metodista de São Paulo
tassiaguiar@gmail.com

INTRODUÇÃO
Com a popularização dos memes de internet, por volta de 2010, a
investigação sobre o fenômeno da replicabilidade ganha o campo
da Comunicação, destacando-se um notável esforço na proposição
de taxonomias que facilitem as investigações sobre esses
replicadores. Entre as propostas de classificação conhecidas dos
memes de internet, nos interessa neste trabalho a da jornalista e
pesquisadora israelense Limor Shifman (2014) de uma função dos
memes como forma de participação política. Segundo ela, memes
de discussão pública são aqueles que nascem exclusivamente dos
usuários da rede, reforçando o modelo participativo da web 2.0.
Neste modelo, as peças costumam ser amadoras e podem ser
compostas no formato de texto verbal, imagem, gif, vídeo e/ou a
combinação de duas ou mais destas formas. A crítica política e
provocação do riso são elementos indispensáveis nos memes de
discussão pública e o compartilhamento das peças conta com a
interferência de cada usuário em seu conteúdo.

O gênero meme
A discussão sobre os memes como gêneros discursivos também
ganha volume desde o início deste trabalho. Autores como Calixto
(2017) e Porto (2018), por exemplo, apresentam fundamentação e

1086
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

olhares distintos para assim caracterizá-los. Calixto considera


subgênero, forma e conteúdo, e considera para a concepção de
memes como um gênero discursivo, suas implicações na cultura
contemporânea a partir da sua configuração nos ecossistemas
comunicativos.
Porto (2018), no entanto, chama atenção para um eco de Bakhtin em
Shifman quando a autora divide os memes em três dimensões para
fins de análise: conteúdo, forma e posicionamento. Ela observa no
conteúdo da autora israelense, o que Bakhtin postula como
conteúdo temático; a forma seria a construção composicional e o
posicionamento seria o estilo.
Sob a mesma égide, buscamos categorias estéticas com elementos
humorísticos para auxiliar-nos no trabalho de identificação dos
variados estilos presentes nas formas discursivas dos memes
políticos de discussão pública. Percebemos que nas diversas e
importantes classificações meméticas existentes os principais focos
de segmentação são a forma, a mídia e o conteúdo, havendo ainda,
pouca discussão sobre os memes como um gênero discursivo.
Iniciamos a discussão do gênero meme pontuando a
necessária cumplicidade discursiva entre produtor e replicador de
memes, cujo amparo epistemológico encontramos também em
Bakhtin. Ele diz ser insuficiente as funções linguísticas de ouvinte
e locutor no processo da comunicação verbal, em que
compreendem os esquemas dos processos ativos da fala no locutor
e os processos passivos de percepção e compreensão na fala do
ouvinte. Para Bakhtin, o que o próprio locutor espera não é uma
compreensão passiva, mas uma resposta, uma adesão ou uma
objeção ao seu pensamento. Dessa forma, cada enunciado é um elo
de cadeia muito complexa de outros enunciados. Pois.
Chegamos então ao que parece ser um dos pontos mais relevantes
para o entendimento do meme político de discussão pública como
um instrumento válido de ativismo político: o querer dizer do

1087
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

locutor que, para Bakhtin, se realiza acima de tudo na escolha de


um gênero do discurso. Os gêneros do discurso são tão
indispensáveis quanto as formas da língua para um entendimento
recíproco entre locutores, ele diz. “Na prática, usamo-los com
segurança e destreza, mas podemos ignorar totalmente sua
existência teórica (...) falamos em vários gêneros, sem suspeitar de
sua existência” (2010, p. 301).
Certo, então, de que a variedade dos gêneros discursivos é infinita,
Bakhtin (2010) propõe três elementos-chave para a definição de um
gênero que fundem-se indissoluvelmente no enunciado marcado
pela especificidade de uma esfera de comunicação. São eles:
conteúdo temático, construção composicional e estilo.
Seguindo o roteiro de Bakhtin, os dois aspectos iniciais nos
parecem mais próximos de um consenso: o primeiro deles é a
determinação de nossa esfera de comunicação sendo as redes
sociais, pois, mesmo que os memes ganhem as ruas e o noticiário
em determinadas situações, como veremos no próximo capítulo,
seu processo de configuração discursiva se dá no ambiente digital.
O segundo é o conteúdo temático dos memes políticos de discussão
pública que se concentra na política institucionalizada com suas
complexas ramificações e desmembramentos. O alvo da crítica
pode ser uma personalidade política, um projeto de lei, um
escândalo de corrupção etc. – o tema é uma escolha enunciador,
porém, o padrão adotado pelos produtores de memes dessa
categoria nos permite caracterizá-lo como um elemento estável.
A construção composicional corresponde aos modos típicos de
organização do texto que compreendem as partes do enunciado e
como elas se distribuem moldando o discurso. Todo enunciado
deve seguir este padrão que é pré-estabelecido pelo gênero. Aqui,
identificamos as formas mais usuais dos memes de internet,
sobretudo os de discussão pública, conforme pontua Shifman:
peças compostas no formato de texto verbal, imagem, gif, vídeo
e/ou a combinação de duas ou mais destas formas. No entanto, cabe

1088
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

assinalar que a materialidade do discurso interfere na


caracterização do gênero, segundo Bakhtin. Portanto, dada essa
variação composicional dos memes, temos um novo gênero
discursivo a cada formato.
O humor é fator comum de sucesso entre os virais e os memes.
Vimos em Shifman (2014) e Chagas (2016), que esse mesmo recurso
se mantém como um padrão nos memes de discussão pública.
Entendemos assim, que a especificidade do riso é questão de estilo.
A terceira característica do gênero discursivo bakhtiniano pode ser
observada na adequação da linguagem, que vai depender da
finalidade do enunciador e da própria estrutura imposta pelo
gênero. O estilo é individual. Apesar de encaixar-se nos moldes de
um gênero pré-determinado, é no estilo que o indivíduo ganha
ressonância. Quanto mais padronizado for o gênero, menos
individual ele será, ou seja, menos espaço haverá para uma
manifestação de estilo. Quando falamos de memes digitais, que
perpassam as mais diversas culturas e camadas sociais, os estilos
passam a ser fatores de sucesso relevantes na aceitação e replicação
das peças.
Desta maneira, entendemos que as categorias estéticas
desenvolvidas no eixo comum do riso compreendidas no
enunciado dos memes políticos de discussão pública tornam-se
elementos de estilo e contribuem sobremaneira para a
compreensão dessa categoria memética como um gênero de
discurso.
Silva (2010) aponta distinções entre seis categorias estéticas
humorísticas que nos ajudam a elucidar essa distinção estilística
dos memes. São elas: cômica, grotesca, irônica, espiritual (ou
humor), caricatural e satírica.
Nos interessa neste estudo, especialmente, a categoria grotesca que,
segundo Silva, distancia-se do real provocando no espectador um
“estranhamento” do mundo a partir do que é absurdo ou

1089
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

inexplicável e provoca um riso tanto zombeteiro quanto catártico.


Essa categoria relaciona-se com o fantástico, o insólito, o absurdo,
o horror, o antinatural aproximando o objeto do feio, do
monstruoso – basta lembrar do vampiresco Michel Temer da escola
de samba Paraíso do Tuiuti, em 2018 – Por isso mesmo, Souriau
(1999 apud SILVA, 2010) sublinha que “o grotesco, como categoria
estética, se situa na intersecção de outras esferas: como a do cômico,
do fantástico, do bizarro e do pitoresco”, provocando o medo, mas
também provocando o riso nervoso. Silva destaca ainda a
existência de modalidades nessa categoria vinculadas à
escatologia, à teratologia (estudo de anomalias e malformações
humanas), aos excessos corporais e às partes baixas do corpo. No
entanto, diferencia-se do cômico por desfigurar a realidade em si
mesma e não sua aparência. O compromisso do grotesco com o riso
se manifesta em tudo aquilo que é vulgar, cruel ou grosseiro.
Analisemos o meme abaixo. A esfera de comunicação é o Twitter,
portanto, dentro do ambiente que caracterizamos como próprio do
gênero discursivo dos memes políticos de discussão pública: as
redes sociais. O tema é a paródia do cenário político nacional e seus
desdobramentos na esfera pública em que o presidente Jair
Bolsonaro é protagonista indiscutível, e a forma imagem + texto se
impõe como estrutura composicional de um mesmo gênero
discursivo. Identificados os elementos acima, nos resta apontar a
forma estilística presente no meme.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1_Meme sobre ausência do candidato Jair Bolsonaro em


debates eleitorais

Fonte: Twitter

O chiste e o cômico aparecem na figura 1 com a desvalorização


moral de Jair Bolsonaro, à época, candidato à presidência da
República no segundo turno do pleito de 2018. O candidato que
havia se esquivado de todos os debates televisivos durante o
primeiro turno alegou que não participaria novamente na segunda
fase do pleito em função da bolsa de colostomia recém-implantada.
Porém, neste caso, a categoria que salta aos olhos é o grotesco por
sua relação com a escatologia.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos que a identificação recorrente e necessária entre os


produtores e usuários que compartilham os memes é própria de
sua classificação enquanto um gênero discursivo secundário
(complexo), pois, à medida em que absorvem o diálogo cotidiano e
outras manifestações de comunicação verbal espontânea,
produzem sentido em diferentes culturas e esferas sociais. A
produção de sentidos desse gênero discursivo é reforçado
pelo conteúdo temático que tem relação com os lugares-comuns da
política: elementos literários ou culturais, entre outros, conforme
identificado por Chagas (2017).
Mas é na forma estilística que compreendemos estar situada a
abertura para o posicionamento ideológico do enunciador. A
escolha, consciente ou inconsciente, pelo riso destruidor e grotesco
dos memes, permite o posicionamento do discurso dentro de um
contexto social, político, moral etc, que desperta uma espécie de
catarse coletiva no rebaixamento da figura central do meme, e
demarca espaços no conflito de narrativas próprio de contextos de
crise.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2010. p. 277-327.
CALIXTO, Douglas. Memes na internet: Entrelaçamentos entre
Educomunicação, cibercultura e a ‘zoeira’ de estudantes nas redes
sociais. São Paulo, 2018, 221 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da
Comunicação) – Universidade de São Paulo.
CHAGAS, Viktor. Não tenho nada a ver com isso: cultura política,
humor e intertextualidade nos memes das Eleições 2014. 2016.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

CHAGAS, Viktor; FREIRE, Fernanda; RIOS, Daniel;


MAGALHÃES, Dandara. A política dos memes e os memes da
política: proposta metodológica de análise de conteúdo de memes
dos debates eleitorais de 2014. Intexto, Porto Alegre, v. 38, p. 173-
196, 2017.
JÁ acabou, Jéssica?. Museu de Memes. Rio de Janeiro. Disponível
em: . Acesso em: 03 ago.2021.
SHIFMAN, Limor. Memes in digital culture. Cambridge: MIT,
2014.
SILVA, Silvano Alves Bezerra da. Estética utilitária: interação
através da experiência sensível com a publicidade. João Pessoa:
UFPB, 2010.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO COMO ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO


POLÍTICA NO CENÁRIO DE COMBATE À COVID-19

Maria Sueli Ribeiro da Silva


Centro Universitário de Rio Preto - UNIRP
mssuribeiro@yahoo.com.br

Caroline Janjacomo
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
caroljanjacomo@gmail.com

INTRODUÇÃO
Há cerca de dois anos, o Brasil, bem como todo o globo, vem
enfrentando um dos maiores desafios da atualidade: a pandemia
de Covid-19.
Em situações como essa, onde um tema passa a ser de interesse
amplo e urgente para a sociedade como um todo, um tipo
específico de comunicação é, em geral, empregada pelas
instituições governamentais: a Publicidade de Utilidade Pública -
uma via comunicacional que busca informar, orientar, prevenir e
contribuir, desta forma, para o bem-estar social. A publicidade de
utilidade pública (PUP) é utilizada pelo primeiro setor (Estado)
enquanto uma ferramenta de Comunicação de Interesse Público
(CIP), destacada por Costa (2006) como o âmbito das ações
comunicacionais lançadas para dotar a população de informações
que lhe permitam viver e compreender o mundo, sempre

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

objetivando o interesse coletivo. Trata-se, portanto, de uma


responsabilidade do Estado para com a população. Essa
responsabilidade torna-se ainda mais urgente quando observado o
contexto pandêmico, assim, campanhas de promoção dos hábitos
preventivos, bem como, posteriormente, de incentivo amplo e
massivo à vacinação, seriam indispensáveis à luta contra
a disseminação da doença, e deveriam ser distribuídas no maior
número de canais de comunicação possíveis, de forma a abranger,
informar e conscientizar toda a sociedade.
Entretanto, apenas em maio de 2021, foi possível ver uma
comunicação estruturada de vacinação nacional contra a Covid-19,
e um possível atraso do governo federal em relação a uma
campanha informativa, passou a ser questionada nas mídias e
redes sociais, sendo também um dos temas da CPI da Covid-19,
instaurada pelo Senado em abril, frente a crise sanitária vivenciada
pelo país (AGÊNCIA SENADO, 2021).
A campanha foi erguida em torno da figura do “Zé Gotinha”, velho
conhecido dos brasileiros. Criado em 1986 pelo artista plástico
Darlan Rosa, em prol de uma campanha de vacinação contra a
poliomielite, o personagem tem sido empregado em publicidades
de utilidade pública contra variadas doenças possíveis de se
prevenir com vacinação massiva (FIOCRUZ, 2021). Todavia, a
forma como “Zé gotinha” foi apresentado no contexto, por vozes
ligadas diretamente à presidência, denotou um forte
posicionamento político, materializado na construção física dessa
mascote. A mascote reflete, assim, o discurso do governo federal,
carregada de novos sentidos e como um signo grotesco, ao portar
uma seringa (em forma de fuzil) e encapado com a bandeira do
Brasil.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

I. IMAGEM, IMAGEM GROTESCA E SIGNO


Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2011, p.31) discorre sobre a
imagem externa, enfatizando: “eu não estou só quando me
contemplo no espelho, estou possuído por uma alma alheia.” E
complementa (idem, p. 32-33):
Minha imagem externa não pode vir a ser um elemento de minha
caracterização para mim mesmo. Na categoria do eu, minha imagem
externa não pode ser vivenciada como um valor que me engloba e
me acaba, ela só pode ser assim vivenciada na categoria do outro, e
eu preciso me colocar a mim mesmo sob essa categoria para me ver
como elemento de um mundo exterior plástico- pictural e único.
Já, ao abordar o grotesco, em sua obra a “Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais”,
Bakhtin (2013, p.16) diz que “tem na obra de Rabelais o princípio
da vida material e corporal: imagens do corpo, (...) da satisfação de
necessidades naturais (...). São imagens exageradas,
hipertrofiadas.” Daí o traço marcante do grotesco ser o
rebaixamento, “isto é, a transferência ao plano material e corporal,
o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade (...). (idem, p. 17).
No realismo grotesco, o cósmico, o social e o corporal se relacionam
de forma viva e indivisível.
Nesse sentido, “a imagem grotesca caracteriza um fenômeno em
estado de transformação, de metamorfose incompleta” (BAKHTIN,
2013, p. 21). Para o autor, a ambivalência é um traço da imagem
grotesca, que expressa polos de mudança, o antigo e o novo, o que
morre e o que nasce, o princípio e o fim, como uma metamorfose.
Logo: “As imagens grotescas, com atitude fundamental diante da
sucessão das estações, com sua ambivalência, convertem-se no
principal meio de expressão artística e ideológica do poderoso
sentimento da história e da alternância histórica (...)” (BAKTHIN,
2013, p. 22).
Nessas reflexões acerca das imagens grotescas, Bakhtin nos mostra
como o corpo grotesco não está separado do resto do mundo, nem

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

isolado, nem acabado e nem é perfeito. A imagem do grotesco


consiste em um corpo “que dá vida e desaparece e outro que é
concebido, produzido e lançado ao mundo” (idem, p. 23).
Volóchinov, em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, aborda a
questão ideológica do signo, que pode ser um corpo, um produto,
uma imagem, que se faz dentro de relações históricas, sociais,
culturais:
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou
social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto
de consumo; mas, ao contrário deste, ele também reflete e refrata
uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico
possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em
outros termos, tudo que é ideológico é um signo (VOLÓCHINOV,
2014, p. 31).
“Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele
também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer a realidade,
ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um outro ponto de vista específico
(...)” (idem, p. 32). Desse modo, Volóchinov mostra que um signo
ideológico não apenas refrata uma realidade, mas também se
constitui num fragmento material desta.
Quando um signo se revela como imagem grotesca, ele carrega
significados, que antes possivelmente estivessem mascarados,
ganha voz, sentido e materialidade no contexto em que foi inserido,
implicando que está carregado de uma ideologia. Sem, contudo,
estar acabado, ultrapassando seus próprios limites de sentidos e
significações

2. O POST: ANÁLISE E DISCUSSÃO


Para este estudo, tomamos para análise um post do deputado
federal Eduardo Bolsonaro, filho do, então, presidente Jair Messias
Bolsonaro, em que a figura do Zé Gotinha aparece com um fuzil

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nas mãos e uma bandeira do Brasil como capa, sugerindo, em tese,


a ideia de um super-herói armado.

Figura 1: Zé Gotinha armado


Fonte: VIDON (2021)
O post ocorreu, no dia 12 de março de 2021, nas redes sociais do
deputado, logo após o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dizer
“que Jair Bolsonaro mandou o Zé Gotinha embora porque achou
que ele era petista” (KUHL, 2021, p.2). Apesar da credibilidade do
personagem Zé Gotinha e seu papel de conscientização sobre
vacina no Brasil desde a década de 80, o sentido da mensagem nos
leva a outro, e não, de fato, ao que foi enunciado.
Em um primeiro momento, conforme noticiado pelo jornal
online Extra (VIDON, 2021), Eduardo publicou o conteúdo sob a
legenda “Nossa arma agora é a vacina!”, entretanto, essa postagem
foi apagada e logo substituída com a correção “Nossa arma é a
vacina!”, o que fortalece a ideia de uma urgência de
posicionamento do governo perante a questão da vacinação no
país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com esta análise, notamos que houve uma atribuição do grotesco
sobre o personagem Zé Gotinha, em prol da expressão
materializada de um discurso político. Nas campanhas de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

vacinação anteriores, Zé Gotinha era apresentado com suas


características originais: formas arredondadas, expressões leves e
amistosas e na posição de um defensor da saúde que,
verdadeiramente, luta contra as moléstias. Além disso, a mascote
foi sempre caracterizada com ares infantis, até porque, esse era seu
público-alvo.
A imagem compartilhada pelo deputado Eduardo Bolsonaro,
todavia, muito pouco se assemelha ao Zé Gotinha original. Ele
parece mais esguio, mais adulto, sua expressão é mais confiante, e
ganhou, como acessório, uma esvoaçante bandeira brasileira
enquanto capa. Tais características poderiam não ter grande
impacto se não fossem acompanhadas por outra mais chamativa, a
qual não estamos acostumados a ver associada ao personagem:
uma imensa e pontiaguda seringa, acoplada por outras peças que a
fazem, no todo, se assemelhar a um fuzil. Desta forma, é possível
perceber que a nova caracterização da figura do Zé Gotinha o
transformou em um novo signo, dotado de novos significados que
não estavam presentes na sua construção original. Se, inicialmente,
esta mascote era empregada apenas como elemento de uma
propaganda de utilidade pública, no sentido de conscientizar a
população em prol de campanhas de vacinação, com a nova
roupagem, Zé Gotinha passa a ser também protagonista de uma
propaganda política do governo federal, recebendo características
que vão ao encontro de ideias apresentadas cotidianamente nas
falas do atual presidente e seus aliados.
Se antes a imagem do Zé Gotinha era quase imaterial - como o
próprio nome diz, este personagem foi construído em forma de
uma gota (líquido), sob uma noção incorpórea - na nova
apresentação, ele é provido de um excesso de materialidade
grotesca, que lhe associa a um rosto definido, bem conhecido e
pronto para participar das próximas eleições. O grotesco ecoa, na
figura da mascote, sobretudo, através da imagem da arma, uma
ideologia de morte. O signo é ideológico, pois remete a algo situado

1099
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fora de si mesmo, como vimos em Volóchinov (2014). Nesse post, a


imagem do Zé Gotinha é um signo que refrata uma imagem
grotesca e que passa a integrar uma campanha eleitoral.

REFERÊNCIAS
AGÊNCIA SENADO. Senadores querem que Wajngarten esclareça
falta de campanhas publicitárias sobre a pandemia. Senado Notícias,
11 mai. 2021. Política. Disponível em: <
https://bityli.com/XtDQB>. Acesso em: 08 ago. 2021.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra.
6ª. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Trad. Yara F. Vieira. São Paulo:
Hucitec, 2013.
COSTA, J. R. V. A comunicação de interesse público. In: COSTA,
João Roberto Vieira da (Org.). Comunicação de interesse público:
ideias que movem pessoas e fazem um mundo melhor. São Paulo:
Jaboticaba, 2006. p. 19-27.
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ – FIOCRUZ. A casa do Zé Gotinha.
Disponível em: <https://bityli.com/W2Fua> . Acesso em: 08 ago. 2021.
KUHL, N. Eduardo Bolsonaro posta Zé Gotinha com ‘fuzil de
vacina’.Metrópoles, Política, 12/03/2021. Disponível em: <
https://bityli.com/mRWAt >. Acesso em: 30 ago. 2021.
VIDON, F. Eduardo Bolsonaro publica foto do Zé Gotinha com uma
seringa no formato de fuzil. Extra, Notícias Brasil, 13 de março de
2021. Disponível em: < https://bityli.com/SiKTq >. Acesso em: 02 set.
2021.
VOLÓCHINOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. M. Bakhtin/ V.N. Volóchinov. Trad. Michel Lahud e Yara
F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 2014.

1100
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco contemporâneo: a construção do corpo LGBTQIA+


sob a perspectiva do carnaval

Leila Heloise da Silva Jerônimo


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
leila.heloise@gmail.com

Edmilson dos Santos Flor Junior


ECI Professor Paulo Freire
edmilsonsfj@gmail.com

Em sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores


de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” se veria
questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é
“incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas
não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural
pelas quais as pessoas são definidas (BUTLER, 2018, p. 30-31, grifo
da autora).
Judith Butler (2018), no excerto disposto acima, resume, em poucas
palavras, como o corpo LGBTQIA+ é visto em uma sociedade na
qual qualquer sexualidade desviante da heteronormatividade é
posta à margem. Da mesma forma como a autora pondera, o corpo
homossexual, por não se adequar às normas hegemônicas, parece
não corresponder ao ideal humano, o que o faz ser considerado
incorente, descontínuo e destoante, ou seja, tudo aquilo que o faz
pertencer a qualquer uma, menos à noção de pessoa. Como se sabe,
a identidade é construída socialmente. Somos, a todo momento,
interpelados pelas entidades culturais que nos rodeiam. As

1101
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

unidades espaço-temporais agem sobre nós de tal modo que


passamos a acreditar naquilo que estipulam como correto. Nesse
viés, os corpos padecem, especialmente pq eles surgem como meios
passivos sobre os quais “se inscrevem significados culturais, ou
então como o instrumento pelo qual uma vontade de apropriação
ou interpretação determina o significado cultural por si mesma”
(BUTLER, 2018, p. 21). Por mais que um indivíduo tente se adequar
ao meio social, buscando, a todo custo, seguir as regras da
hegemonia, sobre ele continuará recaindo significados culturais
que ultrapassam seu controle porque ao sujeito resta, apenas, a
característica de mero instrumento do meio social.
Se pararmos para pensar nessa construção, perceberemos que a
perpetuação da visão quase desumanizada do corpo LGBTQIA+
vai ao encontro das imagens hiperbólicas do realismo
grotesco descrito por Bakhtin (1993). Nesse realismo, de acordo com
o filósofo russo, “o princípio material e corporal aparece sob a
forma universal, festiva e utópica” (BAKHTIN, 1993, p.17). Em
outras palavras, o corpo ganha, nesse cenário, caráter cósmico,
exagerado e infinito, subvertendo, de tal forma, os valores
corporais com construções que revelam partes do corpo humano
que, normalmente, mantém-se escondidas, como, por exemplo,
orifícios, saliências, excrementos etc. É claro que essa constatação
não vem do nada. As ponderações feitas por Bakhtin acerca da
estética do corpo grotesco advêm do estudo da obra “A cultura
popular da Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais”. Neste livro, fruto de sua tese de doutorado, o autor traz
à tona o estudo da cultura popular, de suas festas e de seus ritos,
tudo isso no ambiente da Idade Média e do Renascimento. A escrita
de Rabelais, expoente do riso carnavalesco, foge do convencional.
O escritor tem como marca principal de seu estilo individual o
rebaixamento do corpo, indo, desse modo, totalmente contra o
cânone literário da Antiguidade Clássica. Em suas obras, ele não
esconde seus gostos peculiares, o que revela seu princípio cômico
e sua clara referência ao carnaval, período festivo, de desconstrução

1102
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dos valores hierárquicos e de subversão do social, uma “forma


concreta (embora provisória) da própria vida” (BAKHTIN, 1993, p.
6). É com base no rebaixamento que o corpo grotesco é construído.
Diferentemente da estética do belo, na qual o corpo é tido como um
templo perfeito e bem acabado,
[...] as imagens grotescas conservam uma natureza original,
diferenciam-se claramente das imagens da vida cotidiana,
preestabelecidas e perfeitas. São imagens ambivalentes e
contraditórias que parecem disformes, monstruosas e horrendas, se
consideradas do ponto de vista da estética “clássica”, isto é, da
estética da vida cotidiana preestabelecida (BAKHTIN, 1993, p. 22).
O corpo grotesco é, pois, construído sob o viés do exagero, da
hipérbole, da profusão e do excesso, chegando a beirar a
monstruosidade, assim como são referidos, na
contemporaneidade, os corpos LGBQIA+. No entanto, ao invés de
saliências, de fluidos ou de excrementos à vista, esses corpos,
simplesmente, recebem atributos grotescos porque “ameaçam uma
ordem que dá equilíbrio e acabamento para muitos” (SILVA;
CASADO ALVES, 2019, p. 26). Historicamente, o discurso da
hegemonia determina aquilo que é aceitável e aquilo que deve ser
rejeitado. Como o corpo homossexual integra a parcela da
população que se encontra fora dos padrões pré-estabelecidos, logo
eles são taxados como monstros sociais por não contribuirem para a
manutenção do equilibrio identirário. Louro (2000, p. 10) diz que
os mecanismos normativos possuem bastante poder sobre a
sexualidade de um modo geral, especialmente porque somente
“uma forma de sexualidade é generalizada e naturalizada e
funciona como referência para todo o campo e para todos os
sujeitos”. Silva (2020, p. 83), por sua vez, pondera que “fixar uma
determinada identidade como a norma é uma das formas
privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças”,
sendo, portanto, essa normalização um dos processos mais sutis de
manifestação do poder. Isso significa que os corpos grotescos, para
além do mero estranhamento, misturam-se “não apenas aos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

motivos cósmicos, mas também aos motivos históricos de uma


sociedade utópica e, principalmente, aos da sucessão das épocas e
da renovação histórica da cultura” (BAKHTIN, 1993, p. 284).
É fato que a imagem do corpo do realismo grotesco desvia da
imagem do corpo moderno. No entanto, como mencionado
anteriormente, devido ao fato de o grotesco se caracterizar como
aquilo que desvirtua do convencional, as atribuições elencadas por
Bakhtin (1993) entram em consonância com as características
contemporâneas dadas aos corpos aqui em questão. Vale ressaltar
que, apesar de os estudos bakhtinianos terem sido desenvolvidos a
partir do gênero romance, as contribuições do teórico ultrapassam
as fronteiras literárias e encontram morada no âmbito da vida
social, tendo em vista que “[...] a arte é imanentemente social: o
meio social extra-linguístico, ao influenciá-la de fora, encontra nela
uma imediata resposta interior” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 113).
Sendo assim, dos escritos rabelaisianos da Idade Média, o realismo
grotesco se estende aos dias atuais e se materializa nos corpos dos
sujeitos que fazem referência à praça pública e ao riso carnavalesco.
Como afirma Bakhtin (1993, p. 277), “como já o sublinhamos várias
vezes, o corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está
pronto nem acabado: está sempre em estado de construção, de
criação, e ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse corpo
absorve o mundo e é absorvido por ele” (BAKHTIN, 1993, p. 277).
Nesse contexto, como, na contemporaneidade, esses sujeitos
continuam tendo seus corpos violados por meio da homofobia, por
exemplo, e suas ideologias permanecem sendo negligenciadas pelo
discurso tradicional, eles se encontram à mercê da representação
hegemônica que, muitas das vezes, acaba dizendo mais sobre a
sociedade de um modo geral do que sobre os sujeitos que são
constantemente menosprezados, posto que é por meio do outro que
encontramos acabamento.
O grotesco contemporâneo, portanto, à luz do carnaval, esfarela os
padrões sociais e rompe com a estabilidade. Mesmo que tentem ser
vistos de outra forma, esses indivíduos continuarão sendo postos à

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

margem das relações sociais porque, novamente consonante à


Butler (2018, p. 92), “o corpo fantasiado jamais poderá ser
compreendido em relação ao corpo real”. Sendo assim, enquanto a
perspectiva de um padrão identitário ideal for perpetuada, a qual
retira de grupos específicos suas características humanas pelo
simples fato de não corresponderem às expectativas frustradas da
normatividade, sujeitos descontínuos continuarão sendo
perseguidos em um eterno “caça às bruxas” moderno.

Referências
BAKHTIN, MIKHAIL. A cultura popular da Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1993.
BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética.
In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2011a, p. 3-192.
BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In ______. O
corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2a ed. Belo Horizonte,
2000.
SILVA, J. S.; ALVES, M. P. C. Forma do grotesco: metonímias de
violência no absurdo. A forma do grotesco: metonímias de
violência no absurdo. Per.Form[AR], v. 1, p. 20-32, 2019.
VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios,
artigos e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova
Américo. São Paulo: Editora 34, 2019.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco da “mamadeira de piroca”: vozes em disputa.

Rejane Dias Corrêa Machado


FME Niterói/Professora
prof.rejane.machado@gmail.com

A representação fálica na disputa ideológica e política representam


a concepção do conservadorismo da ideologia cristã. No ímpeto de
fortalecer a candidatura do atual presidente da república, Jair
Messias Bolsonaro, uma publicação nas redes sociais propagandeia
o uso de mamadeiras com o bico em formato de pênis nas creches
públicas brasileiras.
A mamadeira de piroca, uma criação do bolsonarismo para
deslegitimar a educação pública brasileira no período do governo
do Partido dos Trabalhadores, representa de forma brilhante o
grotesco para Bakhtin. ”O realismo grotesco costumava jogar com
essa dupla significação. O ‘balanço’ do realismo grotesco, o jogo do
alto e do baixo, é magnificamente posto em movimento; o alto e o
baixo, o céu e a terra se fundem (p. 140-141).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/as-evangelicas-a-
mamadeira-de-piroca-e-a-eleicao-de-bolsonaro/
A construção do Salvador das famílias cristãs, a adesão à pauta
purificadora fortaleceu-se com construções inverídicas
relacionadas às questões sexuais. A quebra da tradição religiosa
por meio da carnavalização:
Todos os ritos e espetáculos organizados à maneira cômica
apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio,
poderíamos dizer, em relação às formas do culto e as cerimônias
oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão
do mundo, do homem e das relações humana totalmente diferente,
deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado, pareciam
ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e
uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam
em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões
determinadas (BAKHTIN, 1996, p. 4-5).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O pênis passa a ter seu papel festivo na construção da palavra


outra à falácia relativizada à promoção do ensino na primeira
infância. O surgimento de contra-palavras (BAKTHIN 2011) na
arena de disputa das narrativas, a falsa notícia com uso do grotesco
converte o aspecto carnavalesco, cômico, daquele objeto que fora
ridicularizado ao ponto de proporcionar o riso, a piada, o deboche.

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/entretenimento/criti
ca-as-fake-news-mamadeira-de-piroca-vira-febre-entre-folioes/

Essa ideia carnavalizada constitui-se em defesa da legimitidade e


da autonomia do fazer docente na luta contra-hegemônica da
desqualificação do processo educacional nas instituições públicas
de ensino que, em palavras próprias dos conservadores, propagava
ideologias “comunistas” em um processo de doutrinação
“esquerdista” das crianças. Os esquerdistas, por tanto, cometeriam
o ato criminoso de aliciar crianças com mamadeiras com bicos em
forma de pênis no intuito de estimulá-los à prática do sexo oral.

1108
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

https://desciclopedia.org/wiki/Arquivo:Mamadeiraamericana.jpg

O festejo carnavalesco sobre uma ideologia cristão-conservadora


passa a simbolizar, em uma arena política ideológica, o
rompimento do presidente com as expectativas de uma política
pública baseada na integridade e contra a corrupção. Ações e vozes

1109
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que rompem com a verdade e propaga o ódio, a partir de uma visão


grotesca do falo humano.
A disputa de narrativas, na construção de palavras próprias e
palavras outras que provoquem contra-palavras mobilizou vozes
de forma bastante acentuada no cenário político brasileiro. O
símbolo passa a ser utilizado para ridicularizar as políticas
equivocadas adotadas pelo presidente da república e seus
seguidores.

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/mamadeir
a-de-piroca-de-leite-moca-a-power-point-da-feira-os-memes-do-
cartao-corporativo-do-governo/

1110
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/mamadeir
a-de-piroca-de-leite-moca-a-power-point-da-feira-os-memes-do-
cartao-corporativo-do-governo/
É a representação do grotesco no que tange a quebra das
concepções cristãs e conservadoras, como afirma Bakhtin (1996),
com o uso do falo masculino para desestabilizar o cenário político,
ideológico, social e cultural. Carnavalizar o grotesco possibilitou a
disputa ideológica de múltiplas vozes em arenas dialógicas
diversas.

Referências
A mamadeira de piroca ganhou as eleições no Brasil, diz Wagner
Moura. https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2019/03

1111
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

/15/a-mamadeira-de-piroca-ganhou-as-eleicoes-no-brasil-diz-
wagner-moura.htm, acesso em 07/09/2021.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de Fraçois Rabelais. 3. ed. São Paulo:
Hucitec, 1996.
BAKHTIN, Mikhail, VOLOCHÍNOV, Valentin N. Palavra própria e
palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2011.
Crítica às fake news: mamadeira de piroca vira febre entre foliões.
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/entretenimento/criti
ca-as-fake-news-mamadeira-de-piroca-vira-febre-entre-folioes/,
acesso em 07/09/2021.
“Eles têm um pênis na porta da Fiocruz”, “fazem cocô em crucifixo”, diz
Capitã Cloroquina. https://www.lucianoseixas.com/2021/05/eles-
tem-um-penis-na-porta-da-fiocruz.html, acesso em 07/09/2021.
Mamadeira de
Piroca. https://desciclopediahttps://desciclopedia.org/wiki/Mamad
eira_de_pirocahttps://desciclopedia.org/wiki/Mamadeira_de_piro
ca.org/wiki/Mamadeira_de_piroca, acesso em 07/09/2021.
Mamadeira de piroca.
https://www.reddit.com/r/Arrependinaro/comments/g4tnb7/mam
adeira_de_piroca/, acesso em 07/09/2021.
Mamadeiras eróticas não foram distribuídas em creches pelo PT.
https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-
verifica/mamadeiras-eroticas-nao-foram-distribuidas-em-creches-
pelo-pt/, acesso em 07/09/2021.
Mamadeira de piroca de Leite Moça a Power Point da feira: os
memes do cartão corporativo do governo.
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/mamadeir
a-de-piroca-de-leite-moca-a-power-point-da-feira-os-memes-do-
cartao-corporativo-do-governo/, acesso em 07/09/2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco da vida

Arlete Ribeiro Bonifácio


Gepec-FE-Unicamp
arletebonifacio@gmail.com

Heloísa Helena Dias Martins Proença


Universidade Estadual de Campinas
heloisamartinsproenca@gmail.com

sobre encontros e possibilidades

Eu não vou dar conta de escrever. Escrevi apenas uma página e não
vou dar conta. Agradeço, mas não vou participar desta vez.
Arlete, 31/08/2021 – Encontro do Grubakh [1]

Responder à vida e às pessoas, com a intensidade do viver quando


entendo que não tenho álibi, me implica em responder à Arlete
quando, no finalzinho do encontro do Grubakh a escuto dizer que
não iria participar do Rodas porque não daria conta de terminar o
seu texto. Como assim, não daria conta? Senti nas suas palavras e
no seu olhar, o desejo de participar, de fazer parte, mas por outro
lado, os limites da vida, de tempo, das demandas cotidianas. Como

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

não responder ao grotesco desse cotidiano que nos amarra, nos


dificulta os caminhos enquanto nos aponta outros?
Vamos escrever juntas? Ao dizer isso à Arlete e com a resposta dela,
nos acolhemos uma a outra. Em tempos que a escuta também vira
moeda num mercado educacional que vende educação, como
bolachas, cremes e chocolates empacotados, nos acolhermos é
também resistir à lógica do tempo e da produção mercantil
exacerbada, a custo de qualquer coisa. Trazemos para nossa escrita
a dualidade da vida, num esforço de resistir para existir. Nos
tempos atuais,
Não há nada perfeito, nada estável ou calmo [...] A vida se revela no
seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada
perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Essa é
precisamente a concepção grotesca do corpo. Em oposição aos
cânones modernos, o corpo grotesco não está separado do resto do
mundo, não está isolado, acabado nem perfeito, mas ultrapassa a si
mesmo, franqueia seus próprios limites (BAKHTIN [1940], 2013,
p. 23).

Sobre o quanto somos íntimas ou o quanto nos conhecemos, na


vida e no trabalho, poderemos dizer no futuro, talvez. Esse
exercício de escrita partilhada, pode ser um jeito de nos
aproximarmos, de nos conhecermos para além de nossa
participação no grupo de estudos quinzenal e trocar, em alguns
encontros, princípios e conversar aportadas em conceitos da
filosofia bakhtiniana.
Neste segundo semestre de 2021, em meio a tantas turbulências que
vimos vivendo na relação com a escola básica, como resposta ao
convite de narrar a viva vivida na escola, na relação com a educação
e com o que vimos estudando, Arlete escreve uma narrativa e com
isso se posiciona, faz uma escolha, partilha suas aproximações com
as leituras que compartilhamos. O fato de Arlete ter escrito a
narrativa, nos possibilita tecer uma conversa, partilhar nossas
posições e nos descobrirmos no exercício de narrar. Nós nos

1114
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

colocamos em relação, em processo de escutar-dizer-escutar,


juntas, e tentamos resistir à lógica do presente que nos rouba o
próprio tempo, transformando-o em mercadoria.

A narrativa da Arlete:
Uma imagem maravilhosa! Carregada de Signos!

Composição feita pela Arlete a partir da imagem de Capa do


Facebook da DONNE in Rinascita UDINE. Disponível em:
https://www.facebook.com/donneinrinascitaud/Acesso em agosto
2021.

Outro dia eu recebi essa imagem de uma amiga e logo pensei em


Bakhtin; o que me fez refletir e refratar sobre o que disse Liana,
num dos encontros virtuais do GRUBAKH, a respeito das imagens
que ocupam nossos pensamentos, na relação com o outro: a imagem
nos provoca, nos afeta e ocupa o lugar de muitos signos verbais.
Ao contemplar esta cerca ganhando “asas” como que tornando-se
livre, imaginei que a cerca-pensamento desse artista não suportou
estagnar, feito uma espécie de empecilho, dificultando o
relacionamento com seus outros e com todo um
mundo... Resolvendo aos poucos e discretamente transformar-se
em pássaros... Indo embora, livre; deixando o outro livre...
Liberdades e voos.
Então, fiquei refletindo para que, para quem e por quem são feitas
as cercas; para que e a quem elas servem?
Como o mundo seria maravilhoso, se não existissem as cercas das
desigualdades, das misérias, das (in)diferenças provocadas pelos
pré-conceitos de cunho étnico-raciais ou de classes, ou pelas

1115
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

religiões, ou pelas enfermidades. E multiplicidades da existência…


todas elas...
Imaginem vocês, se todas as “cercas” intransponíveis batessem
“asas”, voassem para bem longe e, no lugar delas fossem
construídos, com o princípio da alteridade, os caminhos, as pontes,
as passagens para o relacionamento com o outro?
Atualmente existe mais uma grande cerca invisível por causa da
pandemia, que tem isolado completamente alguns grupos, ainda
que apenas fisicamente - porque existem muitos meios de
comunicação de massa, e celulares, aplicativos e “plataformas”
que, com a existência da internet e os equipamentos necessários,
favorecem a interação social e, portanto, a comunicação e o
relacionamento com o outro.
Mas, infelizmente, sabemos que nada é para todos. Existem ainda
as cercas da falta de oportunidades, da falta de recursos financeiros,
do analfabetismo absoluto ou aquele que se refere ao
desconhecimento das parafernalhas digitais... E, dependendo da
geografia, muitos dos mínimos recursos tecnológicos sequer estão
disponíveis; então essas pessoas são afetadas para além da falta do
relacionamento baseado no contato físico.
São diversos os grupos que estão ainda mais segregados por essas
cercas invisíveis, hoje.
São alunos e professores, são amigos, parentes, comunidades
inteiras... Essa semana, por exemplo, os meios de comunicação
estão noticiando o impacto que muitos alunos de escolas públicas
terão para fazer a prova do Enem, porque muitos não tiveram
acesso à internet e, portanto, não assistiram às aulas remotas, nem
mais nada...
Será que essas cercas algum dia poderão ser deslocadas, dando
lugar à garantia de amplos direitos mais humanos para todos os
eus-outros de todos os mundos?
Como se desconstroem cercas?

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O cotidiano nos mostra que a utopia de um mundo sem cercas é


um desejo com poucas chances de tornar-se real, concreto, mas
entendemos que podemos fazer isso no limite das nossas
possibilidades, nas relações que tecemos na vida, sempre
considerando o outro com todo seu ser e exercitando a escuta
verdadeira, sem álibi (BAKHTIN, 2010), no limite do que damos
conta, numa vida que cerceia e pune o tempo todo e de diferentes
modos. Num viver que hierarquiza sujeitos e fada ao fracasso
diante das desigualdades, como numa roda da fortuna, prevendo
o futuro de crianças e jovens, excluídos de viver múltiplas
experiências porque precisam cuidar de sobreviver, brigando pelo
alimento para o corpo e não só.
Ao analisar a obra de Rabelais, Bakhtin destaca que sua tarefa
essencial
[...] consistia em destruir o quadro oficial da época e dos seus
acontecimentos, em lançar um olhar novo sobre eles, em iluminar a
tragédia ou a comedia da época do ponto de vista do coro popular
rindo na praça pública. Rabelais mobiliza todos os meios das
imagens populares lúcidas para extirpar de todas as ideias relativas
à sua época e aos seus acontecimentos, a mentira oficial, a seriedade
limitada, ditadas pelos interesses das classes dominantes
(BAKHTIN [1940], 2013, p. 386).

De certa forma, nós duas, lutamos contra a lógica da desigualdade


e da exclusão do nosso tempo, procurando pontes. Nós duas, ao
decidirmos escrever juntas, porque o limite do tempo e das
atividades cotidianas não nos permitiria tecer a escrita
individualmente, porque precisaríamos nos dedicar a construir o
texto juntamente com todas as tarefas que desempenhamos
diariamente e nos faltava tempo, ao nos juntarmos resistimos à
lógica do individualismo e nos colocamos em colaboração, uma

1117
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

segurando na mão da outra, produzindo coletivamente a partir de


escolhas individuais, mas também em colaboração.
De certa forma, exercemos o grotesco e rompemos com uma
impossibilidade. Porque o individualismo é o esperado, a
competição é a lógica do capital. Agimos com nosso corpo grotesco
e negamos ficar sozinhas como membros de um coletivo, e nos
juntamos. Encontramos no limite da vida que vivemos um jeito de
transformar a cerca em asas. As asas que nos permitissem voar para
enunciar nossas palavras e ao fazer isso não nos rendemos à lógica
do capital. Resistimos.

Referências:
BAKHTIN, Mikhail [1920-24]. Para uma filosofia do ato responsável.
São Carlos: Pedro & João, 2010.
BAKHTIN, Mikhail [1940]. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento. São Paulo: Hucitec, 2013.
Notas:
[1] O Gubakh é o Grupo de Estudos Bakhtinianos, subgrupo de
estudos do GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
Continuada, da Faculdade de Educação da Unicamp com
atividades coordenadas atualmente pela professora Liana Arrais
Serodio e que iniciou suas atividades em 2010.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco de nossos tempos: horizontes para o envelhecimento

Larissa Picinato Mazuchelli


Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul / Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
lpmazuchelli@gmail.com

Fonte: Marna Clarke “Time as we know it”

O grotesco na obra de Rabelais reestrutura o corpo


horizontalmente. Aqui, o homem e seu corpo não são
fechados e acabados, mas expressivos e em relação constante
de transformação com os elementos do mundo. A hierarquia
medieval, que dissocia os fenômenos e os afasta, é, assim,
destronada; os fenômenos abstratos, cósmicos e míticos são
trazidos ao plano material, já que é através do corpo humano
que a matéria se torna “criadora, produtora, destinada a
vencer todo o cosmos, a organizar toda a matéria cósmica; no
homem, a matéria toma um caráter histórico” (BAKHTIN,
2010, p. 321).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A quebra hierárquica e o movimento de


destronamento vão além, contudo, do corpo humano
biológico. A análise de Bakhtin sobre o grotesco em Rabelais
é um caminho para compreendermos também o corpo
histórico da humanidade em transformação. A leitura de
Bakhtin sobre a obra de Rabelais reside, assim, na
compreensão de que a concepção grotesca do corpo
possibilita um sentimento histórico, concreto e realista, “a
sensação viva que cada ser humano tem, de fazer parte do
povo imortal, criador da história” (BAKHTIN, 2010, p. 322).
É sobre esse sentimento histórico coletivo, ou melhor,
sobre sua falta ao pensarmos a respeito do processo de
envelhecimento, a que esta breve reflexão se debruça.
O chamado envelhecimento ativo, criado em 2002 pela
Organização Mundial da Saúde como um modelo de
envelhecimento a ser seguido, é amplamente aceito mas
ainda pouco debatido (BOUDINY, 2012; RIBEIRO, 2012). De
maneira geral, o modelo se sustenta no incentivo a atividades
e ambientes que promovam saúde e bem-estar, na promoção
de autonomia e independência e na garantia à participação da
vida social (ou seja, atividades como emprego, vida cívica,
educação, artes e práticas espiritualizadas) e de segurança (ou
seja, garantia de proteção, dignidade e cuidados,
considerando as necessidades particulares dessa população).
O modelo busca, assim, responder à multidimensionalidade
do processo de envelhecimento, abarcando aspectos
importantes da vida pessoal, econômica e social, além de
considerar determinantes comportamentais e de serviços de
saúde e assistência social. Dessa forma, esse modelo

reforça o caráter de mútua responsabilidade (...) que (...) postula a


autorresponsabilização individual no atingir de níveis de funcionamento

1120
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mais elevado ao mesmo tempo que coloca nos decisores políticos, nos
sistemas sociais e de saúde, a responsabilidade de promover respostas que
tornem as opções por um estilo de vida saudável, ou ativo, a melhor e ‘de
mais fácil escolha’ para os indivíduos (RIBEIRO, 2012, p. 38).

Embora o modelo se apresente de maneira positiva ao


buscar a multidimensionalidade do envelhecimento, na
prática, observamos que o envelhecimento ativo tornou-se
um instrumento de participação econômica compulsória, de
controle e de responsabilização de escolhas que parecem ser
exclusivamente individuais: “Você precisa cuidar da sua
saúde se não quiser desenvolver doenças graves no
envelhecimento”; “Seu envelhecimento é resultado das
escolhas que você fez ao longo da vida” são apenas alguns
exemplos de enunciados que circulam e que indicam o
apagamento da complexidade dessas escolhas, já que são
deshistoricizadas; ou seja, desterritorializadas, desconectadas
do complexo imbricamento de fatores relacionados às
decisões diárias consideradas mais banais como aquelas
associadas ao “estilo de vida”. É notório, por exemplo, o
quanto o acesso à alimentação saudável tornou-se uma
commodity. Enquanto a agricultura familiar brasileira é
renegada e os preços de legumes e verduras crescem,
compreender que a decisão por escolhas “mais saudáveis” de
alimentação é individual significa apagar os efeitos
aterradores de uma política da morte, engendrada em todos
os cantos da vida social e política brasileira, que determina,
em grande medida, quais famílias podem acessar alimentos
mais saudáveis.
Na prática, portanto, o envelhecimento ativo torna-se
um desejo, uma promessa de vida que só é possível de ser
realizada em sua integralidade por alguns. Assim, o

1121
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“envelhecimento ativo” se torna um “envelhecimento para


manter-se produtivo, empregado, trabalhando” para aqueles
cuja aposentadoria não garante seu sustento digno. Vale
notar, aqui, que a preocupação com a previdência é uma das
recorrentes apreensões utilizadas por analistas a respeito da
chamada “revolução da longevidade” (OMS, 2002;
KALACHE, 2014). Afinal, é certo que o corpo da humanidade
nunca vivenciou tamanha longevidade. O Brasil, por
exemplo, apresenta um envelhecimento vertiginoso. Estima-
se que em 2060, o percentual de pessoas com mais de 65
chegará a 25,5% da população, representando cerca de 58,3
milhões de pessoas. Hoje, o país conta com 9% da população
(cerca de 19 milhões) com mais de 65 anos.
Esse envelhecimento ativo, embora importante em
termos de avanço das discussões realizadas na virada do
século, ainda se funda na prática da vida ensimesmada, sendo
elevado à preocupação internacional, capaz de acabar com
sistemas econômicos e de saúde. Torna-se pesado, atravanca
o caminho do progresso. Nesse contexto, reforça-se a ideia de
que “é preciso que cada um se responsabilize por si”. É
preciso exercitar-se (a si), alimentar-se (a si), cuidar-se (de si)
para evitar o colapso do sistema! O indivíduo é removido da
coletividade, da história e transformado em algoz. “Agora
todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130. Não há capacidade
de investimento para que o Estado consiga acompanhar.”, diz
Paulo Guedes, Ministro da Economia. Os passivos, os
infuncionais (PONZIO, 2010), devem sempre ser lembrados de
seu custo. Afinal, já não produzem riqueza. O velho na
sociedade capitalista sobrevive, “sem projeto, impedido de
lembrar e de ensinar, sofrendo as adversidades de um corpo
que se desagrega à medida que a memória vai-se tornando
cada vez mais viva” (CHAUÍ, 2016 p. 19).

1122
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Assim, o modelo de envelhecimento ativo articula-se a


discursos eugenistas e homogeneizadores da cultura oficial,
sustentados no “novo cânon” a que Bakhtin se refere ao
discutir a obra de Rabelais:

A propriedade característica do novo cânon (...) é um corpo perfeitamente


pronto, acabado, rigorosamente delimitado, fechado, mostrado do
exterior, sem mistura, individual e expressivo (...) Essa superfície
fechada e unida do corpo adquire uma importância primordial, na medida
em que constitui a fronteira de um corpo individual fechado, que não se
funde com os outros. Todos os sinais que denotam o inacabamento, o
despreparo desse corpo, são escrupulosamente eliminados, assim como
todas as manifestações aparentes da sua vida íntima. (...) O corpo do
novo cânon é um único corpo; não conserva nenhuma marca de
dualidade; baseia-se a si mesmo, fala apenas em seu nome; o que lhe
acontece só diz respeito a ele mesmo, corpo individual e fechado. Por
consequência, todos os acontecimentos que o afetam, tem uma única
direção: a morte não é mais do que a morte, ela não coincide jamais com
o nascimento; a velhice é destacada da adolescência; os golpes não fazem
mais que atingir o corpo, sem jamais ajudá-lo a parir. Todos os atos e
acontecimentos só têm sentido no plano da vida individual: estão
encerrados nos limites do nascimento e da morte individuais desse
mesmo corpo, que marcam o começo e o fim absolutos e não podem jamais
se reunir nele (BAKHTIN, 2010, pp. 279-281)

A limpeza e o corpo que se fecha para o mundo


encobrem suas marcas de transformação. São os movimentos
de elevação, de desconexão com a materialidade da vida. Mas
as rugas insistem em aparecer. Assim como as manchas de sol
na pele, os cabelos brancos, as peles flácidas, os músculos que
já não têm a mesma força, os passos lentos e qualquer outra
mudança rebaixam esse corpo. É contra os apagamentos
dessas mudanças e a favor dessa historicidade marcada no

1123
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

corpo; ou seja, desse atravessamento do mundo no corpo, que


Brum parece lutar quando pede para que a chamem de velha:

Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na


linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma
palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra
que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição
efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas
“ido”, aquele que já foi. Velho é – e está. Alguém vê um Boris
Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique
Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos
(BRUM, E., 2012, s/p).

O velho reivindica memória acumulada, corpo


histórico, “sensação viva que cada ser humano tem, de fazer
parte do povo imortal, criador da história”, como dito
anteriormente. O corpo velho caminha, topograficamente
para baixo, e pulsa em transformação. Um corpo que, se levar
golpes, poderá parir, como o gago que se dirige a Arlequim
em Rabelais.
Essa pequena reflexão busca, assim como Rabelais,
horizontalizar e coletivizar o envelhecimento. Trazê-lo para
baixo, não o descartar. Mas vivê-lo em toda sua
complexidade, em seu horizonte grotesco de abertura e
transformação, corpo que ultrapassa fronteiras entre o corpo
e o mundo, lembrança de corpo pelo qual se efetuam as trocas
e as orientações recíprocas, corpo onde o encontro com o
mundo é possível. É preciso, sem dúvidas, garantir cuidados
e segurança, já que a violência contra essa população aumenta
– segundo o relatório do Disque 100, referente a 2019, as
denúncias de violência contra os idosos representam o 2º
maior número de registros, representando 30% das
denúncias, somando 50.118. É necessário, portanto, olhar

1124
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

para as especificidades de cuidado de saúde, mas é


fundamental fazê-lo corporificando o envelhecimento, na
matéria, na topografia do baixo, “no plano alegre dos
rebaixamentos da festa popular”; na “certeza alegre e lúcida
da imortalidade histórica relativa do povo e de si mesmo no
povo” (BAKHTIN, 2010, p. 286). Assim podemos realizar o
“destronamento carnavalesco do rei vencido” (BAKHTIN,
2010, p. 295) que, nesse caso, seria o “corpo infantil almejando
a juventude que almeja a longevidade; fantasia de perenizar
o corpo jovem no avanço dos anos de vida; desejo de viver
muito, horror de ficar velho” (PY; SCHARFSTEIN, 2001, p.
123). É preciso colocar, então, o corpo que envelhece em
movimento, com o passado e com o futuro, já que esse corpo
não está pronto nem acabado. Como o corpo grotesco, “está
sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo
constrói outro corpo; (...) esse corpo absorve o mundo e é
absorvido por ele.” (BAKHTIN, 2010, p.227)
Assim, poderemos trazer a velhice para a coletividade,
para que possa se misturar às coisas, ao mundo e para que
deixe de se ensimesmar. Dessa maneira, sua potência de vida
aumenta e “o aspecto procriador e cósmico do corpo é
sublinhado em todos os lugares” (BAKHTIN, 2010, p. 282).
Nesse sentido, além de se investigar e problematizar o
modelo de envelhecimento ativo, é fundamental pensar um
envelhecimento engajado porque em relação de abertura e
transformação com o mundo e com a vida, mantendo a
“sensação viva da imortalidade histórica coletiva”
(BAKHTIN, 2010, p. 284). As fotos de Marna Clarke, que
abrem e encerram essa brevíssima reflexão, nos trazem esses
corpos que envelhecem, suas marcas, seus atravessamentos,

1125
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

destronam o rei vencido e nos mostram a transformação e o


devir de novos e grotescos horizontes.

Fonte: Marna Clarke “Time as we know it”

Referências

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
Hucitec, 2010.
BOUDINY, K. “‘Active ageing’: from empty rhetoric to effective policy
tool”. In: Ageing & Society, First view article, p. 1-22, 2012.
BRUM, E. Me chamem de velha. Revista Época, 2012. Disponível em:
https://www.geledes.org.br/chamem-de-velha-por-eliane-brum/ Acesso
em: 7 set. 2021.
CHAUÍ, M. “Os trabalhos da memória”. In: BOSI, E. Memória e Sociedade:
lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
CLARKE, M. Time as we know it. Disponível em:
http://www.marnaclarke.com/time-as-we-know-it Acesso em: 7 set. 2021.
PY, L.; SCHARFSTEIN, E. A. “Caminhos da Maturidade: representações
do corpo, vivências dos afetos e consciência da finitude”. In: NERI, A.
(org). Maturidade e Velhice: trajetórias individuais e socioculturais.
Campinas: Papirus, 2001.
RIBEIRO, O. “O envelhecimento “ativo” e os constrangimentos da sua
definição Sociologia”. In: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do
Porto Número temático: Envelhecimento demográfico, pp. 33-52, 2012.

1126
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

PONZIO, A. Encontros de palavras: o outro no discurso. São Carlos: Pedro


& João Editores, 2010.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Active Ageing: a Policy Framework,
Geneva, World Health Organization, 2002.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco de nossos tempos: vozes indígenas em reexistência

ANTONIA ZELINA NEGRÃO DE OLIVEIRA


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ
zelinanegrao@yahoo.com.br

Ao iniciar este texto que pretende ser palco de letramentos


múltiplos, quer porque expresse o excêntrico de uma linguagem
em suas semioses e semânticas várias e características; quer porque
manifeste as vozes de reexistência de um povo com saberes
próprios e com formas particulares de sentir e pensar (ARIAS,
2010), tenho a necessidade de dizer que escrevo a partir das
possibilidades que as linguagens manifestas pelos povos indígenas
me impõem a escrever; escrevo pela possibilidade de estar próxima
a uma realidade sociocultural onde o sentir e o pensar se
encaminham para uma vivência decolonial, em que o grotesco é
parte flagrante de corpos cujo “o cósmico social e o corporal estão
ligados indissoluvelmente numa totalidade, viva e indivisível”
(BAKHTIN, 1993, p.17).
Assim, caminho por espaços onde as linguagens desejam viver a
interculturalidade grotesca, de nosso dia a dia, como processo e
projeto político (WALSH, 2009), para que possamos nos afastar do
predomínio de teorias eurocêntricas e nos aproximarmos dos
saberes de povos que pensam e agem no coletivo, no oral, em
práticas de um mundo real e diferente. Tão real e diferente que a
charge de Brum (2020) no jornal Tribuna do Norte, é capaz de

1128
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

significar a grandiosidade desse mundo, tendo em vista o atual


contexto sócio-político de nosso país. Um presidente fascista,
reacionário, de extrema-direita, individualista e no uso de uma
linguagem carregada de preconceitos, comparar-se aos indígenas,
é digno de repulsa – Tupã os livre!

Charge da Tribuna do Norte #charge #brum #charge #chargespoliticas #indigenas


#indios #bolsonaro #tupa

Se Tupã for capaz de livrar os indígenas e todo o Brasil desse mal


que nos assola, seremos capazes de compreender, conforme a fala
da líder indígena Sônia Guajajara, coordenadora nacional da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que a existência
dos homens do “progresso” e da “globalização”, daqueles que se
intitulam detentores de conhecimentos eurocêntricos e que
impõem aos indígenas uma língua-nação, está nas mãos daqueles
que durante séculos, têm resistido ao epistemicídio e ao genocídio;
está nas mãos daqueles que heroicamente têm resistido à inúmeras

1129
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tentativas de apagamento e destruição de saberes tão próprios e tão


ricos, que seriam capazes de nos ajudar a enfrentar o mundo
caótico no qual nos inserimos (ARIAS, 2010). É o carnavalesco de
nossos tempos, nos apontando para as contradições e
ambivalências, tão presentes na realidade marginal de nossas
sociedades e nos impondo atentar para a necessidade de olhar os
indígenas a partir do desejo de vivenciar liberdades que os afastem
das ideias dominantes sobre o mundo (BAKHTIN, 1993, p.43).
Imagem: Pilar Emitxin

https://www.revistaamazonas.com/2019/03/13/a-gente-vai-pra-luta-porque-a-
terra-chamaentrevista-com-sonia-guajajara-lideranca-feminina-indigena-
brasileira/

Seremos capazes de apoiar a nossa própria existência? Ou


perpetuaremos séculos de ignorância em relação ao bem viver dos
povos ancestrais? Seremos capazes de buscar as bases de saberes
plurais, que nos mostram que a razão e o coração precisam estar
em consonância nas dinâmicas sociais? Pois, é preciso Corazanar

1130
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(ARIAS, 2010) para que se entenda as práticas de existência,


renascimento e reexistência dos seres da Floresta.
Se conseguirmos ir em frente e não nos sabotarmos grotescamente,
daremos espaço às forças centrífugas de expressão de vozes de
lideranças, que desde a Constituição de 1988 vêm buscando ser
ouvidas, vozes como a de Krenak, líder indígena, ambientalista,
filósofo, poeta e escritor brasileiro da etnia Krenak. Em suas muitas
entrevistas e obras, Krenak vem nos alertando para a importância
de encontrarmos o equilíbrio com o meio no qual estamos inseridos
como forma de compreendermos a pluralidade das formas de
viver. São essas formas de viver, tão ameaçadas pelo governo
Bolsonaro, que têm sido bombardeadas, por meio da liberação
ilegal de garimpos em terras indígenas; por meio da abertura de
terras em preservação para o comércio ilegal de madeireiros; por
meio do passar a boiada a partir do infringir à Leis nacionais e
acordos internacionais, como a Convenção 169 da Organização
Mundial do Trabalho (OIT) que prevê a consulta prévia aos
indígenas sobre qualquer medida que venha a afetá-los; por meio
das Propostas de Emenda à Constituição (PECs), como a PEC
215/2000 – que prevê a alteração na demarcação das terras
indígenas, assim como as demais apensadas a ela. Todas essas
medidas arbitrárias caminham em direção a uma abstração
civilizatória, tão propalada pelo presidente do Brasil e tão
desconexa em relação ao que se espera de um país que ainda hoje
não reconheceu a importância da preservação ambiental, como
forma de vida para todos, indígenas e não indígenas.

1131
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

https://br.pinterest.com/biomarilia5/ailton-krenak/

Somos capazes de nos desafiarmos para que o grotesco se torne


crítico e intimide as idealizações (SILVA, 2011) impostas por uma
cultura segregacionista? Somos capazes de nos degradarmos para
cavarmos o túmulo corporal que nos aprisiona? Seremos capazes
de nos regenerarmos em busca de um novo nascer de corpos
sociais, coletivos que apontem para identidades que vivem entre
fronteiras não delimitadas, e nos possibilitariam “uma experiência
de união transgressiva”? (TIHANOV, 2012, p.170).
Acreditamos que em nossas ambivalências existam espaços para as
transgressões críticas; existam espaços para que compreendamos
que a história dos povos indígenas no Brasil não inicia em 1988 com
a Carta Magna; existam espaços para que, a partir de um olhar
singular, vivenciemos “[...] a experiência criativa comprometida

1132
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

com um tipo especial de reflexão sobre a vida” (SODRÉ, 2014, p.67).


No refletir sobre a vida, nos permitiremos conjugar vozes com os
indígenas e dizer “MARCO TEMPORAL NÃO”, pois acreditamos
que as terras indígenas têm sido essenciais para o equilíbrio
ambiental por meio da preservação e garantia de CO2, chuvas e
mananciais de água para todos (ISA, 2021). No refletir sobre a vida,
reconheceremos nossas ambiguidades e assimilaremos que boa
parte das terras indígenas são reclamadas por superlatifundiários,
a maioria políticos, que têm legislado em causa própria, e nos
levado a admitir que o grotesco, “[...] pelo ridículo ou pela
estranheza, pode fazer descer ao chão tudo aquilo que a ideia eleva
alto demais” (SODRÉ, 2014, p.36).

https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/indigenas-de-117-povos-iniciam-
novo-acampamento-em-brasilia-dF1

Vozes indígenas em reexistência: MARCO TEMPORAL NÃO!

1133
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

REFERÊNCIAS
ARIAS, Patricio Guerrero. Corazonar el sentido de las
epistemologías dominantes desde las sabidurías insurgentes,
para construir sentidos otros de la existencia (primera
parte). In: Calle14: revista de investigación en el campo del arte. 4
(Julio-Diciembre), 2010.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
Hucitec, 1993.
ISA – Instituto Socioambiental. Após relatório, julgamento do
‘marco temporal’ é suspenso e será retomado na quarta (1/9),
26/09/21. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-
br/noticias- socioambientais/apos-relatorio-julgamento-do-marco-
temporal-e-suspenso-caso-sera-retomado-na-quarta-19. Acesso
em: 30/08/21.
SILVA, F. L. C. M. Considerações sobre o Conceito de Grotesco
nos Quadrinhos.
In: XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação,
Recife, PE – 2
a 6 de setembro de 2011. Intercom – Sociedade Brasileira de
Estudos Interdisciplinares da Comunicação.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. 2. ed. Rio
de Janeiro: Mauad X, 2014.
TIHANOV, G. A importância do grotesco. Bakhtiniana, São Paulo,
7 (2), p. 166- 180, Jul./Dez. 2012.
WALSH, Catherine. Interculturalidade crítica e educação
intercultural. 2009. (Conferência apresentada no Seminário
“Interculturalidad y Educación Intercultural”, Instituto
Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, La Paz).
Disponível em: <https://docs.google.com/document/d/. Acesso em:
12 set 2017.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BRUM. Jornal Tribuna do Norte. Charge: Tupã os livre.


Disponível em: Charge da Tribuna do
Norte #charge #brum #charge #chargespoliticas #indigenas #indio
s #bolsonaro #tupa. Acesso em: 30/08/21.
EMITXIN, Pilar. Imagem de Sônia Guajajara. Disponível
em: https://www.revistaamazonas.com/2019/03/13/a-gente-vai-
pra-luta-porque-a-terra-chamaentrevista-com-sonia-guajajara-
lideranca-feminina-indigena-brasileira/. Acesso em: 30/08/21.
SILVA, Mari. 28 imagens de Ailton Krenak. Disponível
em: https://br.pinterest.com/biomarilia5/ailton-krenak/. Acesso
em: 30/08/21.
ANDES. Imagem sobre o marco temporal. Disponível
em: https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/indigenas-de-
117-povos-iniciam-novo-acampamento-em-brasilia-dF1. Acesso
em: 30/08/21.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco de todos os tempos – nem de antigamente e nem de


agora, indissociável: as vozes das crianças das classes populares
atravessadas pela escola

Daniele Fontam do Nascimento Cerqueira


Universidade Federal Fluminense
danifontam@hotmail.com

Depois de ouvir Patrícia Borde ler Eduardo Galeano, n’O Livro dos
Abraços (1997), Marisol Barenco de Mello diz:
- Um abraço é uma imagem linda para um dos princípios
fundamentais da teoria bakhtiniana, Pati. O que morre pequeno no
encontro desses mundos que são os corpos humanos? Toda
pretensão de ser, em si mesmo, ensimesmado, por si, aprendi com
Bakhtin. E o que nasce é o humano no homem, que é pelo menos
dois...
Patrícia: - Encontro é morte e renascimento. Eu e outro que em
diálogo se alargam (...).[1]
As vozes nesse texto são vozes-outras que se tornaram outras-
minhas e que agora são do mundo. Mas quem fala nesse texto,
principalmente, são as crianças das classes populares com todos os
afetamentos que a escola lhes tem causado. A escola pública na
condição de espaço que estão tentando calar através de um plano
que tem por objetivo colocar as classes populares num lugar de
reprodução, de apertar parafuso, enroscar porca, apertar parafuso,
enroscar porca... para nunca terem tempo de parar e olhar sua
potência. Mas, nem todo plano sai da forma que seus idealizadores

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

esperavam. E isso me faz, ainda, ter vontade de colocar minha


palavra no mundo. Minha palavra enxarcada de vida minha e de
outros que me abraçam - me respondem - por onde passo, mesmo
quando nossos corpos físicos não se tocam. Esse texto é o outro me
fazendo falar. É resposta aos que me abraçam e são abraçados por
mim.
Certa vez, em um dos encontros do Grupo ATOS-UFF[2] chegamos
a cogitar que a escola não é mais lugar de amor. Momentos depois,
nenhum ou quase nenhum de nós concordava com a ideia. Em
outro dia, conversávamos sobre a escola estar matando a condição
das crianças de responderem ao mundo e no mundo. E por algum
momento compactuei com essa enunciação. Mas ela não é
verdadeira – e isso também ouvi e acolhi nas e das mesmas rodas.
Mesmo que o plano seja esse e mesmo que a maior parte de nossas
práticas – intencionais ou não - levem consigo a tentativa de calar e
matar a palavra das crianças nas escolas, isso não se concretizará.
Não temos essa força, nada tem. As crianças dizem e respondem ao
mundo e no mundo apesar de nós. O oficial que a escola impõe não
tem a força da arte, do icônico que impreterivelmente vive na
criança e em sua ancestralidade. A criança resiste ao apagamento e
à tentativa de ser calada, porque a humanidade resistiu e isso
reverbera dela – ela enuncia apesar de nós. São forças
indestrutíveis, vivas nas diferentes formas de cultura. Enunciações
potentes, mas não consideradas para montar um mundo dito ideal,
que ela não é chamada a participar da construção.
Em Rabelais, sentimos a força do não oficial. Em suas obras traz o
vocabulário das praças públicas – espaço no qual a hierarquia
imposta e punitiva não está presente. Palavra que é corpo
enunciando sem reservas, sem álibi, sem medo. A praça pública
que é lugar da diversidade, da ambivalência – riso e choro; clareza
e confusão; certeza e incerteza... Mas Rabelais não vêm sendo
compreendido, acho que pelo mesmo motivo que a escola está
sendo espaço de equívocos – É que não conseguimos encontrar um

1137
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

lugar filosófico para entender a vida. E na Idade Média, também


não se tinha um lugar filosófico para se compreender a praça
pública e as festas populares. A vida não é um bom lugar para
compreendermos a vida. A vida só pode ser compreendida na arte.
Rabelais viu a vida na força revolucionária da praça pública, das
festas populares, do riso – que caracteriza o humano. A
humanidade é feita de idas e vindas – caos e renascimento.
A criança tem em sua essência a ambivalência, o corpo grotesco que
os adultos não conseguem esconder. Mesmo que a podem, ela
floresce de novo. A menina, no mesmo momento que está vestida
com uma roupinha velha e até furadinha, se vê com um vestido
brilhante e rodado. O menino que já passou fome consegue lembrar
do dia em que comeu tanta banana andando pela feira nas ruas, e
rir de se escangalhar. O grotesco é isso: renascimento e morte num
mesmo lugar. É a velha grávida que ri, mesmo prevendo a morte;
é a cidade banhada pelo xixi que é considerado uma riqueza aos
olhos daquele que ignora... Os memes atacando a conduta do
presidente Jair Bolsonaro não é o grotesco – ali não tem
renascimento, só morte.
Sobre o grotesco, em mais um encontro do Grupo ATOS, alguns de
nós, inclusive eu, começamos a nos trazer como exemplos de
grotesco, nos referindo à Idade Média. Então, alguém disse – “Ok,
podemos nos trazer como exemplo do grotesco que vive em nós,
mas lembrando que não somos europeus”. Temos heranças
europeias fortes, mas não somos europeus. Essa ideia de nos trazer
como exemplo de grotesco iniciou quando começamos a trazer
para discussão a ideia de tempo enquanto historicidade. Nos
referindo às festas, usamos termos, como “hoje em dia não jogamos
mais xixi uns nos outros”; “hoje em dia não esfregamos mais cocô
pelo corpo e saímos pelas ruas”... De fato, isso não é mais tão
comum. Mas ainda requebramos o corpo todo, descendo até o chão
e é difícil segurar o mais sutil remelexo ao som de um batidão ou
de uma cuíca. E é nessa hora que reconhecemos a inutilidade do
historicismo.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A Idade Média nos ajuda a ver direito essa questão do conceito de


história, porque é um buraco negro nas linearidades da história.
Bakhtin nos propõe um novo olhar histórico. Para ele, a noção de
tempo não é oficial, é uma categoria de mudança (no mundo ou no
ser humano) – categoria cronotópica. A noção de tempo que o
realismo grotesco traz é histórica. Não trata de “hoje” ou “naquela
época”. Trata de toda nossa história, desse humano que já chegou
num mundo que já existia e de toda a história ancestral a dele, que
o constitui. Trata desse tempo cósmico, ao qual não temos acesso,
mas que vive e se expressa em nós e por nós, encarnado no corpo e
nas imagens. Tempo de permanente transformação, na imagem do
corpo grotesco indissociável de nós. Então, não há “hoje em dia não
fazemos mais isso” – está em nós, impreterivelmente, sem escolha.
A escola tem sido lugar de tentativa de silenciamento e
invisibilização desse corpo. Não só da criança, mas do nosso, de
professores. Um espaço de uma ciência hierarquicamente
constituída, que desconsidera a palavra das classes populares, sua
história, sua cultura. Na escola encontramos a reprodução de algo
que nos foi entregue como modelo pronto e acabado. A escola até
é o lugar da arte, do encontro, do riso, da palavra solta, da dança e
da música. Mas são expressões desconsideradas. Não são válidas
porque são consideradas pela burguesia como feias, imorais e
violentas. É o corpo grotesco encarcerado, que de “antigamente”
não tem nada, pois está bem ali, vivo, indissociável. O menino quer
aprender para ser “alguém na vida”, porque disseram para ele, que
até então, ele não é ninguém. A cultura do menino fica presa,
escondida, porque não é bonita. – “Você não pode criar, menino!
Criar é perigoso, faz a gente pensar sobre a vida e sobre o que nos
oprime. Faz a gente querer sair desse lugar do silêncio e da
invisibilidade. Aí não pode, isso é muito feio. Fica aí quietinho,
repetindo o que eu mando e você será alguém na vida. Um alguém
que eu quero que você seja, e não, o alguém que você quer ser”.
Referências:

1139
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento:


O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.
MELLO, M. B.; BORDE, P. A. Cotejo em Bakhtin: o nascimento do
sentido no abraço humano.
RABELAIS, F. Pantagruel e Gargântua (Obras completas de Rabelais
– 1); organização, tradução, apresentação e notas de Guilherme
Contijo Flores; ilustração de Gustave Doré. São Paulo: Editora 34,
2021.

Notas:
[1] Retirado do texto Cotejo em Bakhtin: o nascimento do sentido no
abraço humano, de Marisol Barenco de Mello e Patrícia do Amaral
Borde.
[2] O grupo ATOS/UFF é um grupo de estudos Bakhtinianos, da
Universidade Federal Fluminense – Niterói.

1140
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO DELIVERY: A IDENTIDADE


CONTEMPORÂNEA DO CORPO NEGRO NO GÊNERO
DISCURSIVO QUADRINHOS

JANAÍNA MORENO MATIAS


UFRN
jannamatias@yahoo.com.br

Maria da Penha Casado Alves


UFRN/Professora efetiva
penhalves@msn.com

Rudson Edson Gomes de Souza


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
drudson@hotmail.com

É por traduzir essa materialidade que o tempo atua como portador


da marca da ação humana, isto é, da cultura humana num
determinado espaço. Então, o espaço-tempo, amalgamado na ideia
de cronotopo, é a única chave de acesso aos sentidos, isto é, os
sentidos de uma obra só podem ser objetivados se revestidos de uma
expressão espaço-tempo. (BAKHTIN, 2018).

Introdução
O corpo, vértice de vida que completa outro corpo. Nem máquina,
nem culpa: festa. O eu e o outro, felizes e infelizes separadamente,

1141
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mas também em completude, pois “o lugar singular do outro que


o corpo ocupa como valor em relação ao sujeito em um mundo
singular concreto. Meu corpo, em seu fundamento, é um corpo
interior; o corpo do outro, em seu fundamento, é um corpo
exterior” (BAKHTIN, 2003). É nessa festa do corpo que
expressamos sentimentos, condições psicológicas, socioculturais e
econômicas. E nisto vem à baila nossas insígnias étnicas, bem como
as diferenças biológicas entre as raças, povos e nações, ou ainda as
nossas formas de expressão, que remontam identidade e
diferenças. Um grande baile de linguagem no qual o agir, o falar, o
sentir, o andar e pensar estão impregnados de representatividade
de diferentes modos de vida de um determinado grupo social,
sempre em constante mudança. Retomando o dito: o corpo é uma
festa cultural, é uma festa de linguagem.
Na obra “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais” (BAKHTIN, 2103), assim chamada
de obra cômica verbal, Bakhtin traz à luz a literatura, em latim ou
língua vulgar, literatura em que se encontra a concepção
carnavalesca do mundo como característica principal e que utiliza
amplamente essa linguagem. Neste trabalho, en passant, os
capítulos da obra: O riso – O vocabulário da praça pública – As
formas e imagens da festa popular – O banquete – A imagem
grotesca do corpo – O “baixo” material e corporal. No recorte, nos
ancoramos no capítulo 5 – A imagem grotesca do corpo –. Bakhtin
(2013) compreendia o grotesco sob a perspectiva de classe, aquela
que tensiona os valores e os conflitos sociais, ou seja, é uma visão
que se associa ao lugar social na cultura popular, sendo ela uma
resposta ao que ele vai chamar de cultura aristocrática.
Hugo (1985), ao mencionar Rabelais, apresenta o grotesco
enfatizando o ventre humano como sendo um fardo formidável
para o homem, pois, segundo o poeta, quebra constantemente o
equilíbrio desse corpo com a alma, grotescamente pelo que está
dentro deste ventre, o intestino, as tripas, que ele afirma ser a
serpente, a besta. Por ser ele o centro da nossa matéria, configura-

1142
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

se como sendo tanto a nossa satisfação quanto o nosso perigo, pois


contém a saciedade, o apetite e a podridão. Para o autor, ele
preenche a história, sendo responsável por quase todos os crimes.
De fato, para Hugo (2002), há um claro entendimento do grotesco
como sendo o polo oposto ao sublime, porém, combinando e
formando o que ele chama de real.
É esse contexto de corpo e grotesco que nos embasa para
atendermos ao convite outrora feito: trazer a nossa voz para
“bailar” com a palavra do outro sobre o grotesco de nossos tempos
contemporâneos.
O grotesco no gênero discursivo quadrinhos: breve análise
Num primeiro momento, destacamos a escolha pela construção e a
análise do grotesco em uma tira. Partimos do pressuposto de que a
percepção a respeito do grotesco teria se dado, num primeiro
momento, com as artes visuais, conforme Ledo (2019). Esse autor
aponta para o fato de que a percepção do grotesco como
manifestação artística, é característica estilística marcante no
gênero discursivo quadrinhos e, consequentemente, em seus
subgêneros. Segundo Silva (2011), podemos perceber elementos
grotescos no que considera como sendo a primeira personagem
regular de tiras em quadrinhos – Yellow Kid (criação de Richard
Outcault, jornal New York World), sendo, neste caso, um tipo de
grotesco menos ligado ao domínio dos afetos, aquele que choca em
seu sentido literal, mas que é mais característico do sentido do
grotesco teórico, conforme Bakhtin (2013).
Na tira em quadrinhos a seguir, buscaremos mesclar as percepções
sobre o grotesco, tanto em Bakhtin quanto em Hugo, na forma de
observarmos como o corpo pode dar forma à identidade, fazendo
com que os sujeitos sejam reconhecidos e valorados, configurando
suas marcas sociais e, principalmente, como esse corpo serve de
inclusão ou exclusão na relação de trabalho, especialmente no
ambiente da França contemporânea. Vale ressaltar que, no Brasil,
encontramos o mesmo cronotopo de escravidão, ou da “evolução”

1143
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

do trabalho do homem negro, mas, com uma particularidade


relevante diante do ambiente francês, espaço atual de observação
de um dos autores deste ensaio. Essa particularidade recai sobre o
fato de que, enquanto no Brasil, o corpo delivery é representado
primeiro pelo pobre e, consequentemente, por questões sociais,
pelo negro, na França, ele é quase que exclusivamente representado
pelo corpo negro. Daí, a escolha em fazer a ponte entre os
ambientes, singulares, mas ao mesmo tempo plurais.

Figura 1: O Grotesco Delivery

Fonte: Autoria: Rudson Gomes-Souza.


À primeira vista, não há nada de grotesco clássico na tirinha.
Contudo, não estamos buscando necessariamente esse conceito,
mas sim, os reflexos do conceito do grotesco apontados por
Bakhtin, que podem emanar dessa ilustração. Notadamente, não há
exagero; também não há a indicação ambígua de referências ao
baixo corporal do ser humano; entretanto, o aspecto da crítica vai
se configurando a partir da materialidade discursiva verbal e
visual. Um grotesco crítico, desafiador, desabonador de discursos
cristalizados; um grotesco que faz emergir discursividades
constituídas dialogicamente com os discursos anteriores, que traz

1144
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o passado para a arena do presente.


A imagem, ao mesmo tempo que é pluricultural, pois envolve dois
países com culturas distintas, faz-se grotesca justamente por trazer
a mesma personagem, o mesmo corpo, uma mesma situação que
imprime a forma identitária dos sujeitos retratados, ou, de um
único corpo: negro. Mudam-se o tempo e o ambiente, mas o corpo
(negro) da personagem atribui a ela a sua identidade. Nesse ponto,
podemos abordar o conceito de cronotopo, em Bakhtin (2006),
como sendo a relação espaço-tempo a qual determinará a imagem
do homem no mundo representado por ele, conforme o tempo no
qual se encontra. Trata-se de uma imagem inacabada, pois está
sempre em formação, sendo o tempo o agente o qual interioriza-se
no sujeito, construindo-o e modificando a sua vida, o seu destino e
a si próprio (OLIVEIRA E FREIRE, 2011).
Diante de tantas leituras de corpo que podem ser feitas, da tira em
quadrinhos, observamos, ainda, o cronotopo do trabalho,
especificamente do que é realizado ou destinado socialmente ao
negro. O ambiente é diferente, como já citamos, e isso torna a
imagem ainda mais grotesca. Mesmo com uma diferença de quase
500 anos, ao corpo negro e imigrante é imposto tão somente o
trabalho de servir. Tratando esteticamente da imagem em si,
podemos também observar a presença do grotesco na harmonia
dos contrários, na qual, segundo (HUGO, 2002, p. 26). “(...) o feio
existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no
reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz"
Na tira, temos, de um lado, a escravidão retratada como sendo o
lado feio; e, no outro quadro, supostamente de evolução (tanto do
negro quanto do trabalho), o processo de uberização do trabalho
como sendo o lado bonito. Contudo, na verdade, essa falsa
valorização do trabalho do corpo negro, o qual passou de escravo
para empreendedor, é grotesca porque explora corpos e mão de
obra, ainda mais num país cujo lema é liberdade, igualdade e
fraternidade. O que tem se denominado uberização do trabalho diz

1145
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

respeito a um falso empreendedorismo que torna visível a


exploração dos sujeitos, o não cumprimento de direitos básicos do
trabalhador e uma visão de trabalho centrada no sujeito individual
que se faz explorador de si mesmo (CHUL-HAN, 2017). Nesse
cronotopo pandêmico (CASADO ALVES, 2020), com o
distanciamento social, os serviços de delivery mostraram um tecido
social esgarçado e a reinvenção do capital para cada vez produzir
lucros, explorando corpos e vidas ao limite do cansaço e do
adoecimento.
Para concluirmos a nossa análise, recorremos ao livro Sociedade do
Cansaço (CHUL-HAN, 2017) para apontarmos que o grotesco
também se faz presente em um corpo cada vez mais esgotado pela
exigência do que o autor chama de época da velocidade, a qual a
valorização de indivíduos está na intensa quantidade de tarefas
que podem ser realizadas ao mesmo tempo. Destarte, a exploração
e a escravidão não ficaram no passado, mas apenas se revestem de
novas indumentárias, como passar do transporte braçal de
alimentos com um cesto para o falso empreendedorismo
caracterizado por roupagem socialmente mais valorada, como o
uso de bicicleta, motocicleta, celulares e outras ferramentas
tecnológicas.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec,
2013.
BAKHTIN, Mikhail. O corpo como valor: o corpo interior. Estética da
criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2010.
CASADO ALVES, Maria da Penha. O cronotopo da sala de aula e os
gêneros discursivos. In: Revista Signótica, [s. l.], v. 24, n. 2, 2012.

1146
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

CASADO ALVES, Maria da Penha. Olhares bakhtinianos sobre o


contexto pandêmico. Mesa Redonda, evento on-line (2h 26 min), 22
jul. 2020. Publicado pela Abralin. Disponível em:
https://aovivo.abralin.org/lives/olhares-bakhtinianos-2. Acesso
em: 15 de jul 2021.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Giachini, Enio Paulo. 2.
Petrópolis: Vozes, 2017.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de
Cromwell. Tradução e notas de Célia Berrettine. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2002.
HUGO, Victor. William Shakespeare [1864], éd. Bernard Leuilliot,
Critique, Paris, Laffont, coll. « Bouquins », 1985.
LEDO, Allan Cesar Dourado. Configurações Do Grotesco Nas
Histórias Em Quadrinhos De Lourenço Mutarelli. Dissertação de
Mestrado. Disponível em:
http://repositorio.utfpr.edu.br:8080/jspui/bitstream/1/5089/1/confi
guracoesgrotescolourencomutarelli.pdf. Acesso em: 06 de set 2021.
OLIVEIRA, Maria Eveuma de; FREIRE, Manoel. O Cronotopo
Narrativo: Uma Análise Do Romance Dôra, Doralina. Anais do
SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.
SILVA, Fabio Luiz Carneiro Mourilhe. O grotesco nos quadrinhos.
Rio de Janeiro: Multifoco, 2011.

1147
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO DOS NOSSOS TEMPOS : A CULTURA DO


CANCELAMENTO

Paula Fernanda Paixão Cordeiro


Universidade do Estado do Pará
paula.cordeiro@aluno.uepa.br

CRISTIANE DOMINIQUI VIEIRA BURLAMAQUI


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ
cristiane.burlamaqui@uepa.br

Muito se tem discutido a respeito da “cultura de cancelamento”,


um fenômeno que surge com a popularização das redes sociais.
Trata-se de um linchamento virtual seguido da perda em massa de
seguidores. A “cultura do cancelamento” também é a
materialização de julgamentos virtuais: comentários, críticas de
pessoas que falam o que pensam sem qualquer ética. Quais os
limites de expor opiniões sem infringir leis e causar dor e
constrangimento ao outro?

1148
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 1 - Consequências da cultura do cancelamento

Fonte: Jovem Pan – Cultura

Imagine fazer login em sua rede social e ver uma enxurrada de


comentários depreciativos sobre uma postagem mal interpretada
ou até redigida de forma inadequada, sem ter a oportunidade de se
explicar por tal equívoco. Ser criticado, linchado, “cancelado” nas
redes sociais tem consequências para a vida real.

1149
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 2 - O “kit gay” para crianças de 6 anos que foi distribuído


nas escolas.

Fonte: Via Facebook

Em 2004, antes de Haddad ser Ministro da Educação, o Governo


Federal lançou o programa “Brasil Sem Homofobia”, que
recomendava, entre outras coisas, a produção de material
educacional para combater o preconceito nas escolas. Dessa forma,
surgiu o material do projeto. Mas em 2011, alguns grupos religiosos
do Congresso começavam a fazer pressão para que o material, que
eles chamaram de ‘kit gay’, não fosse lançado. Como Haddad era o
Ministro da Educação, ele passou ser chamado ‘O CRIADOR’ do
‘Kit gay’. Na verdade, a criação do Escola Sem Homofobia está no
poder legislativo, pois foi encomendado pela comissão dos Direitos
Humanos da Câmara dos Deputados. Com a aprovação do
Ministério Público, o Ministério da Educação encomendou a
referida produção, a qual foi elaborada por membros de
organizações não-governamentais de combate à homofobia. Por
causa da polêmica, O Governo Federal cancelou o projeto antes

1150
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mesmo do conteúdo ser aprovado pelo Ministério da Educação.


Até hoje, muita gente usa as redes sociais para dizer que o material
era uma espécie de Cartilha sexual para incentivar a
homossexualidade entre as crianças. Mas isso é falso! A UNESCO
confirmou a total adequação desse instrumento à faixa etária
destinada, bem como recomendou sua distribuição para combater
o preconceito nas Escolas.
Além disso, essa história teve mais um desenrolar. Diversos vídeos
na internet mostravam até o então candidato Jair Bolsonaro
criticando o projeto e alegando que o livro “Aparelho Sexual e Cia
– Um Guia Inusitado para Crianças Descoladas” fazia parte do
material do Escola Sem Homofobia. Mas esse livro nunca fez parte
do programa, e, inclusive, o TSE ordenou que estes vídeos de Jair
Bolsonaro, associando este livro ao Haddad, fossem retirados do
ar. Então, não, o Haddad não criou o “Kit gay”.

Imagem 3 – Evento com Lula na “Expocatadores”, em Brasília.

1151
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 4 – Adélio Bispo acusado de esfaquear o presidente J.B.

1152
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Imagem Real³, Fotografia de Ricardo Stuckert, Instituto


Lula.| Imagem editada⁴, Aos Fatos.
Nas imagens 3 e 4, temos um dos exemplos da falta de limites da
cultura do cancelamento. Trata-se de uma difamação do Partido
dos Trabalhadores, tendo como alvo específico o ex-presidente
Lula. Em tal situação, os internautas criaram uma montagem de
Adélio, homem que esfaqueou Jair Bolsonaro, no mesmo ambiente
que Lula, dando a ideia de que aquele seria filiado ao PT.
Semelhante montagem, claramente, pretendia zombar do ex-
presidente, como se este tivesse alguma relação com a tentativa de
assassinato ocorrida. Tal brincadeira de mau gosto reflete o caráter
da cultura do cancelamento: as pessoas estão se tornando cada vez
mais intolerantes, ou seja, não suportam quem pensa diferente, ou
até mesmo quem tem um passado ou vida não condizente com suas
crenças. Essa toxicidade chega a caçoar de autoridades,
demonstrando falta de respeito e até de compaixão pelo próximo.
Por outro lado, o “cancelamento” também tem aspectos positivos,
a exemplo do movimento em rede #MeToo, criado nos Estados
Unidos com o intuito de evidenciar as denúncias de abuso sexual
cometidas pelo ex-produtor de cinema Harvey Weinstein contra
várias atrizes. A ambivalência e o exagero caracterizam esse
fenômeno virtual, fato que nos mobiliza a discutir até que ponto a
popularização da internet e das redes sociais vem impactando a
vida em sociedade.
Pode acontecer em diversos ambientes. No entanto, no meio
virtual, essa prática foi potencializada, em virtude, essencialmente,
do anonimato, o qual pode tanto encorajar denúncias como
incentivar discursos de ódio e violência gratuita. Suas
consequências podem ser gravíssimas, as quais vão desde
problemas financeiros e reputações destruídas a distúrbios de

1153
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

saúde (alimentares, neurológicos, pânico, comportamentais),


ansiedade, medo, suicídio.
Grotesco também é o prazer sentido pela dor alheia. Torcer, vibrar
com a “derrota” do outro. Agredir alguém por determinada
atitude, sem perceber as falhas como constitutivas da natureza
humana. A criação de mitos, a idolatria de atitudes que
desconsiderem as limitações humanas. Cada sujeito responde ao
contexto em que vive, às formas de opressão e às hierarquias
existentes em cada sociedade. Cada sujeito responde ao seu tempo,
ao espaço social, ao momento histórico. Existe, neste movimento
respondente, um agir orientando-se para a exterioridade,
dinâmico, incompleto e único. O orientar-se para a exterioridade
requer ética, é preciso agir eticamente. O grotesco aponta para o
horizonte, para possibilidade de mudança, para a conquista de
justiça social, para o descoroamento, para a subversão das
hierarquias impostas.

Referências
BACKTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Universidade de
Brasília, 2008
Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/actualidad/1539847547
_146583.html> Acesso em: 20 de agosto de 2021.
Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/webstories/cultura/2020/08/o-
que-e-a-cultura-do-cancelamento/ >Acesso em: 20 de agosto de
2021.
Disponível em: <https://jovempan.com.br/noticias> Acesso em: 20
de agosto de 2021.

1154
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. São Paulo: Perspectiva: 2013.


LIMA, Fernanda de Almeida. Do Grotesco: Etimologia e
conceituação estética. Revista InterteXto, UFTM, v. 9, n. 1, 2016.
MANDELL, Carolina Hamanaka. O Corpo Grotesco como
articulador da cena: Meyerhold, Hijikata e os corpos que dançam,
2009, 112 f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas), Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2009.
VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na
poesia. Ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização
tradução, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. Editora 34, 1ª edição, 2019.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO DOS NOSSOS TEMPOS E DE OUTROS


TEMPOS: PALAVRAS-CHAVE

Sueli Pinheiro da Silva


UEPA
suelipinheiro2011@gmail.com

Falar sobre o grotesco parece ser coisa do passado? E quando o


passado, assim entendido, reverbera no presente de modo
contundente, assustador, para uns tantos e descortinador e
revigorador para tantos outros. Revisitar o passado não nos parece
assustador quando se trata de uma recordação, uma lembrança
boa... De outro modo, a sensação de pesadelo renovado nos chega
atroz. Vejamos um grotesco numa certa linha do tempo...

Houve o tempo de um grotesco


Grotta,
Gruta
Um GROTESCO
Ambivalente...
Um GROTESCO
Carnavalesco?
Carnavalizado!
Risonho?

1156
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

RISÍVEL!
O tempo de um GROTESCO
DESCOMUNAL!
COLOSSAL!
CORPORAL?
Não!
BAIXO CORPORAL!
Um GROTESCO
EXCREMENTAL!
VISCERAL!
QUE TRANSITAVA O
BUCAL
ANAL
ESCROTAL
VULVOVAGINAL
Houve o tempo de um GROTESCO
CORPORAL?
BAIXO CORPORAL
Um GROTESCO:
VIDA TRIPADA
EM TRIPAS
Morte e vida?
MORTEVIDA
Morte em vida?

1157
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Vida em morte?
VINDA EM MORTE?
NASCIMENTO EM FINDO
SEMFINDO...
VELHAS GRÁVIDAS, RINDO...
Riso?
GARAGALHADAS!
Houve o tempo de um GROTESCO
ALTO-BAIXO
EXCREMENTO
ORIFÍCIOS
BOSTA
EXPURGO
ARROTOS
BARRIGAS-PANÇA
BEBÊS GIGANTES
HOMENSMUNDO
CORPOS VELHOS,
FECUNDOS
HÁ NOS NOSSOS TEMPOS UM GROTESCO
FÚNEBRE
ESCÁRNIO!
SEPUCRAL!
ABISSAL!
Um grotesco

1158
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ESCROTO!
ESGOTO!
NEFASTO!
Mamífero?
MORTÍFERO!
FASCISTA!
CARNIFICISTA!
NÃO SOU COVEIRO!
TÁ OK?
Um grotesco
Bárbaro?
NÃO!
BARBÁRIE!
QUE MATA
A MATA
QUE PENSA
QUE ESPANTA
O ÍNDIO
QUE ALIMENTA
A PANÇA
DA GRILAGEM
A engrenagem
DA DESTRUIÇÃO
(E DA MORTE)

1159
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

QUE É FORTE
NOS CORTES
À TALHADAS
NO DESMONTE
DO ACESSO
Á VIDA
DE PRESENTES,
À MEMÓRIA
DE ANCESTRAIS
Um grotesco
PRETO?
PREGUIÇOSO
MULHER?
FRAQUEJADA
CALA A BOCA!
CALA A BOCA JÁ MORREU!
.............................
VOLTA PRA GRUTA
DE ONDE VIESTE!
..............................
FESTEJAREMOS
COMO BEBÊS GIGANTES
À GARGALHADAS BUFANTES
NAS RUAS
NAS PRAÇAS

1160
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

E TOMAREMOS
O TRONO
QUE NUNCA FOI TEU...
E BRINDAREMOS
AO RENASCIMENTO
INEVITÁVEL
DE TEMPOS
BEM VINDOS...
De uns de tantos EUS, para tantos OUTROS!

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO DOS NOSSOS TEMPOS NA PAUTA DA


FORMAÇÃO DOCENTE

Marle Aparecida Fideles de Oliveira Vieira


PPGE/UFES
fidelesmarle@gmail.com

Maria Nilceia de Andrade Vieira


PPGE/UFES
nilceia_vilavelha@hotmail.com

Valdete Côco
PPGE/UFES
valdetecoco@hotmail.com

Introdução
Em tempos de incertezas e em um cenário de permanentes
contradições, somos instadas a discutir e avaliar nosso lugar no
mundo com o chamado do VIII Círculo – Rodas de Conversa
Bakhtiniana, que tematiza “o grotesco dos nossos tempos: vozes,
ambientes e horizontes”. Tal chamado nos move a (re)pensar
nossas lutas emergentes frente às (des)igualdades demarcadas em
cada contexto e classe social, pois com Bakhtin aprendemos que
nosso estar no mundo se ancora no outro, sujeito, pessoa e também
no contexto, sempre situado.
Nessa compreensão, no âmbito da educação brasileira, os últimos
tempos (sobretudo pós-golpe de 2016), vêm nos exigindo constante
vigilância, em especial no que se refere aos direitos sociais e, entre
eles, o direito à educação. Nesse intento, a partir do chão em que

1162
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pisamos e na pauta comum ao Grupo de Pesquisa Formação e


Atuação de Educadores (Grufae), nos dispomos a tomar parte
nessa arena dialógica, focalizando ataques recentes à formação
docente.
Quando analisa a obra de Rabelais, Bakhtin (2013) destaca as
manifestações do grotesco na Idade Média e no Renascimento a
partir das festas populares da época, em especial o carnaval. Nessas
festividades carnavalescas, ganha destaque a exposição do corpo
em suas protuberâncias, orifícios, excrementos, evidenciando a
presença do grotesco como parte dos posicionamentos que se
opõem à cultura oficial, rivalizam de forma cômica e irreverente o
poder hierárquico e opressor.
Na perspectiva de Bakhtin (2013), o conceito de grotesco se
materializa na cultura popular pelo exagero, pela exposição das
“partes baixas” do corpo humano como “[...] imagens ambivalentes
e contraditórias que parecem disformes, monstruosas e horrendas,
se consideradas do ponto de vista da estética ‘clássica’”
(BAKHTIN, 2013, p. 22). Em sua ambiguidade, o corpo grotesco
tanto pode remeter a algo repugnante como também pode
expressar ou enaltecer a vida.
Considerando tal ambivalência, Bakhtin (2013) assinala que a
imagem do grotesco se conectava tanto ao sofrimento do povo e à
sua insatisfação com as relações verticalizadas da sociedade na
época como também à sua força de mobilização. Em meio a
contradições desse contexto, afirma que, na concepção grotesca do
corpo visibilizada pelas festas populares, “[...] nasceu e tomou
forma um novo sentimento histórico, concreto e realista, que não é
a ideia abstrata dos tempos futuros, mas a sensação viva que cada
ser humano tem, de fazer parte do povo imortal, criador da
história” (BAKHTIN, 2013, p. 322), nos convocando a assumir
nosso lugar irrepetível no tempo vivido.

1163
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco de nossos tempos


Ao buscarmos adjetivar o termo “grotesco”, o dicionário nos indica
aquilo “que causa riso ou aversão por ser ridículo, inverídico,
esquisito ou por representar uma situação caricata; bizarro”
(GROTESCO, 2021, s/p). Na atual conjuntura perturbadora e
contraditória, nas pautas educacionais, as variadas personalidades
que vem ocupando o Ministério da Educação do Brasil (MEC) e o
Conselho Nacional de Educação (CNE) nos últimos dois anos têm
atuado por meio de atos oficiais no sentido de “passar a boiada”.
Bakhtin “[...] por meio da literatura de Rabelais, [...] observa a
divisão dos polos representativos do sério e do cômico [...]”
(PAJEÚ; BOMBONATO; BORGES 2012, p. 75). Nessa direção,
entendemos que o povo utilizava o cômico para expor de maneira
satírica a cultura dominante. Em nosso contexto, observamos que
esse modo grotesco, caricato de alguns agentes políticos brasileiros
nos remete à obra de Rabelais. Portanto, aqui o cômico tornou-se
cotidiano e em muitas situações compõe o discurso oficial,
diferente do que essa obra retrata, em que o grotesco se dava como
forma de denúncia da cultura oficial e dominante.
Por vezes, vemos em nosso país, o discurso oficial sendo praticado
de maneira satirizada, grotesca, o que nos leva a perceber o cômico
como forma de criar uma “armadilha” ou uma desculpa para
justificar falas, gestos e legislações como algo menor. Essa
ambivalência em torno das ações oficiais evidencia,como afirma
Cañizal (2010), certa semelhança com o que vivenciamos
atualmente. Para ele, a atitude do povo, referenciada nas festas
carnavalescas, por vezes, “se diluía ou naufragava no corpo amorfo
das massas que se entregavam à alucinação da folia” (p. 245).
Ainda que não seja possível, neste texto, analisarmos a conjuntura
educacional do país, realçamos o grotesco nas ações oficiais com
medidas direcionadas ao controle da formação docente por meio
da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017) que
tenta criar a ideia de que todos/as terão as mesmas condições de

1164
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

aprendizagem; e da Resolução n. 02/2019, que institui a Base


Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da
Educação Básica (BRASIL, 2019) sem movimentos de diálogo com
a comunidade acadêmica e com professores e professoras. A partir
desse contexto, vimos que “[...] o que está em jogo de fato são
concepções distintas de educação, de sociedade e de formação de
professores” (ANPED, 2019a).
Desconsiderando o posicionamento de entidades (ANFOPE, 2018;
ANPED, 2019b) e universidades, a aprovação da Resolução n.
02/2019 (BRASIL, 2019) implicou na revogação da Resolução n.
02/2015 (BRASIL, 2015). Resolução esta, construída com intensos
debates e participação de entidades educativas e formativas. Com
interesses privatistas na educação pública, propostas reducionistas
da formação docente e estreito alinhamento à BNCC, a Resolução
n. 02/2019 representa um retrocesso na concepção de formação que
se reduz à mera instrumentalização técnica de professores e
professoras. Nas pautas educacionais, o que temos visto é que o
Conselho Nacional de Educação (CNE) “que hoje tem um perfil
composto por empresários da educação, priorizando o setor
privado, vem aprovando normativas que fortalecem a educação à
distância, a formação aligeirada, o rebaixamento teórico na
formação dos profissionais da educação” (TAFFAREL, 2019, p. 615-
616).
Diante dessa conjuntura e em uma perspectiva bakhtiniana,
consideramos também que a imagem do grotesco carrega em si um
tom de criticidade uma vez que afronta e desafia a ordem vigente
estabelecida. Ou seja, o grotesco mobiliza a criatividade da cultura
popular, que nos convoca “[...] a enfrentarmos e combatermos
incansavelmente a tática do silenciamento, ocultamento e inversão
que visa construir um consenso em torno do abominável que é a destruição
da educação pública, sua privatização e mercadorização” (TAFFAREL,
2019, p. 620, grifos nossos).

1165
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Num horizonte que nos convida ao ato ético-político-social


compromissado com as pautas em questão, nos posicionamos em
defesa da ciência e da universidade como direito de todos e todas,
fazendo coro com entidades acadêmicas, científicas e sindicais que
coletivamente têm se posicionado e lutado para que as ações
grotescas do governo atual não passem despercebidas aos nossos
olhos. Com nossas vozes buscamos denunciar, para além das
ameaças à formação docente, materializadas nas legislações em
vigência, as atrocidades que têm vitimado muitas vidas, seja por
conta da Pandemia da Covid-19, seja por conta do descaso com
milhares de pessoas que, mesmo vivendo em um país gigantesco e
com uma potencialidade enorme de produção de comida, ainda
estão passando fome! Temos pessoas sem acesso à internet, pessoas
fora da escola. Em pleno século XXI ainda lutamos pelo acesso à
terra, ao território.

Para não encerrarmos a conversa...


Em tempos de negacionismo, de treva e temor e, diante da perda
de mais de 580 mil vidas no Brasil, buscamos com essas linhas
denunciar o grotesco dos nossos tempos que tem insistido em nos
silenciar e nos oprimir. Esperamos com nossas vozes e nossas ações
fazer o enfrentamento necessário a uma política que vem tentando,
a todo custo, priorizar as pautas econômicas em detrimento das
pautas sociais.

Compreendendo, com Bakhtin, o grotesco como expressão de


contradições sociais e políticas e ainda como manifestação
irreverente de liberdade e crítica, queremos denunciar medidas
políticas grotescas de desrespeito à educação e anunciar horizontes
de nossa constituição como corpo coletivo presente na
(re)construção da história. Seguimos enunciando outras
possibilidades de oposição a esse sistema opressor, na perspectiva
de, com nossas ações coletivas, projetar horizontes na educação e

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

na formação docente, a fim de nutrir novas e diferentes forças


libertárias.

Referências
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM EDUCAÇÃO (Anped). Entrevista com Luiz Dourado (UFG) sobre
propostas de alterações nas Diretrizes 02/2015 para Formação de
Professores. 2019a. Disponível
em: http://www.anped.org.br/news/entrevista-com-luiz-dourado-
ufg-sobre-propostas-de-alteracoes-nas-diretrizes-022015-para.
Acesso em: 07 abr. 2020.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM EDUCAÇÃO (Anped). Posição da ANPEd sobre texto referência –
DCN e BNC para formação inicial e continuada de Professores da
Educação Básica. UMA FORMAÇÃO FORMATADA. 2019b.
Disponível em: https://anped.org.br/news/posicao-da-anped-
sobre-texto-referencia-dcn-e-bncc-para-formacao-inicial-e-
continuada-de. Acesso em: 14 nov. 2019.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL PELA FORMAÇÃO DOS
PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO (Anfope). Manifesto ANFOPE
em defesa da Formação de Professores. 2018. Disponível
em: http://www.anfope.org.br/wp-
content/uploads/2020/03/MANIFESTO-DEFESA-
FORMA%C3%87%C3%83O_PROFESSORES-Anfope-Forumdir-
14Dez2018.pdf. Acesso em: 9 jun. 2021.
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. 8. Ed. São Paulo: Hucitec, 2013.
BRASIL. Resolução n. 02, de 1º de julho de 2015. Define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior
(cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para

1167
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação


continuada. Disponível
em: http://portal.mec.gov.br/docman/agosto-2017-pdf/70431-res-
cne-cp-002-03072015-pdf/file. Acesso em: 17 abr. 2021.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Disponível
em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/. Acesso em: 23
ago. de 2021.

BRASIL. Resolução n. 02, de 20 de dezembro de 2019. Define as


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de
Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional
Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica
(BNC-Formação). Disponível
em: http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2019-pdf/135951-
rcp002-19/file. Acesso em: 13 abr. 2020.
CAÑIZAL, E. P. Realismo Grotesco. In: BRAIT,
Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave. 1 ed., 2ª reimpressão. São
Paulo: Editora Contexto, 2010.
GROTESCO. In: Dicionário Online de Português. Disponível
em: https://www.dicio.com.br/grotesco. Acesso em: 20 ago. 2021.
PAJEÚ, H.; BOMBONATO, P. G.; BORGES, R. F. C. Sendas
investigatórias em A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. In: GRUPO DE
ESTUDOS DOS GÊNEROS DOS DISCURSOS. Palavras e
contrapalavras: enfrentado questões da metodologia Bakhtiniana.
São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
TAFFAREL, C. N. Z. Opinião. Base nacional comum para formação
de professores da educação básica (BNC-formação): ocultar,
silenciar, inverter para o capital dominar. Disponível
em: http://costalima.ufrrj.br/index.php/FORMOV/issue/view/108.
Acesso em: 08 abr. 2020.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco dos nossos tempos: que vozes ouvir na sala de aula?

André Felipe Souza (UFT)4


Ângela Francine Fuza (UFT)5

Revisitar os conceitos do Círculo de Bakhtin, por conta das


novas direções tomadas no doutoramento em Letras, faz-nos
perceber o quão necessário é fazer chegar à sala de aula tais
discussões. Nesse sentido, discutir as teorias da linguagem,
pensando na formação do professor de língua, é emergencial, a
julgar os tempos difíceis em que vivemos. Por essa razão, o “VIII
Circuito de Rodas de Conversas Bakhtinianas” figura um espaço
bastante profícuo para diálogos nessa direção.
Na condição de professores-pesquisadores, precisamos,
constantemente, revisitar os estudos teóricos da linguagem, em
especial, os estudos dialógicos do discurso. Dito isso, pensamos a
discussão sobre o ensino de língua como ponto de partida para
perceber quais “vozes sociais” emergem no contexto da sala e,
porque não, do contexto social mais amplo. Antes de avançar às

4 Doutorando em Letras pelas Universidade Federal do Tocantins (UFT).


Professor efetivo da rede estadual de ensino do Pará.

5 Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas.


Atualmente, é professora Adjunta da Universidade Federal do Tocantins (UFT),
docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras/Porto
Nacional) e do Programa de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e
Literatura (PPGL/Araguaína).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

reflexões aqui pretendidas, é mister pontuar os questionamentos


que nos fizeram chegar a esta escrita.
O trabalho com os gêneros, sobretudo, em contexto
pandêmico, requer possibilitar que os alunos assumam as posições
enunciativas em determinados contextos sociais. Nesse sentido,
questionamo-nos: a escola, por exemplo, compreende o que seria
essa posição enunciativa? Como possibilitá-la, a julgar o atual
contexto sócio-histórico-político, no qual essas vozes (sobre)
vivem? O aluno é visto como um sujeito socialmente situado?
Desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(BRASIL, 1998), os estudiosos desse documento concebem o texto
como o centro das aulas de língua portuguesa e propõem a prática
de produção textual baseada em práticas sociais,
consequentemente, voltada aos gêneros discursivos, que passaram
a ser considerados pelos currículos e materiais didáticos, em geral.
No entanto, não basta levar o gênero para a sala de aula, seja ela
física, seja ela remota, sem ter a clara diferença entre desenvolver
um trabalho numa perspectiva enunciativa dos gêneros e,
meramente, transmiti-los com o foco somente na estrutura
composicional, com o nítido apagamento da função enunciativa,
social que perpassa a produção do enunciado, ou ainda não
compreender a posição social desses sujeitos do processo de ensino.
Apesar dos avanços do ensino de língua com a ascensão dos
gêneros do discurso no contexto escolar, por vezes, ainda é
frequente a simplificação do trabalho com os gêneros, uma vez que
as abordagens exclusivamente formais e, até mesmo, prescritivas,
oriundas da tradição escolar, continuam rondando as salas de
aulas. Quanto a essa percepção, Rojo (2009) afirma:

Nas práticas de produção, assim como nos


materiais didáticos que circulam em sala de
aula, o texto entra menos como produtor de
sentido e mais como suporte de análises
gramaticais, agora também textuais, como se o
mero conhecimento de estruturas e tipos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

textuais, regras e normas pudesse fazer circular


o diálogo e os sentidos dos textos (itálico do
original) (ROJO, 2009, p. 88).

Ao consideramos as diversas instituições sociais que


constituem a sociedade, inúmeros são os modelos discursivos
responsáveis pelas interações nas esferas de socialização. Por esse
motivo, emerge a relevância do trabalho pautado nos gêneros
discursivos para a familiarização dos nossos alunos com distintas
práticas interativas.
A escola tem recorrentemente trabalhado com simulacros
de gênero. Como solicitar ao aluno a produção de uma carta do
editor, sem que haja condições reais/sociais de produção desse
enunciado? O aluno sabe qual a intenção discursiva ali pretendida?
Para quem escreve? Ele sabe de onde está produzindo? Pensar a
educação como uma transmissão é um claro retrocesso,
compreender o gênero como forma textual estática a ser
reproduzida, não como maneira de organizar interações, deixa-nos
ainda mais distantes de um pensamento crítico e libertador, como
nos recomendava Paulo Freire.
É necessário, assim, que o professor trabalhe a dimensão
enunciativa dos gêneros, para que o aluno reconheça, a exemplo,
sua posição de enunciador, a julgar sua construção histórico-social.
Ao considerar os tempos negacionistas e contraditórios em que
vivemos, pensamos que a escola deve assumir papel importante
nesse sentido, de modo a contemplar uso real de gêneros na vida
extraescolar. Devemos apresentar o que é posição enunciativa, por
meio de exemplos para analisá-las, com base em textos reais de
gêneros. Enquanto professores (as), precisamos partir dos
seguintes pontos de vista: quem são os produtores típicos desse
gênero? Em que ambiente social são tipicamente produzidos? Em
quais ambientes sociais eles circulam? Por que são produzidos?
Para quem são produzidos? Conduzir esse aluno a perceber que há
produção, recepção e circulação dos gêneros, que diferem segundo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o contexto. Ao serem trabalhados em sala de aula, alguns gêneros


são deslocados de suas esferas originais de produção, ocasionando
certo artificialismo, no entanto, ao resgatar as suas condições de
produções, é possível aproximá-los de sua elaboração original.
Bakhtin (2013) nos ensina que o grotesco é o lugar de
inserção de valores contraditórios. De forma análoga, a questão que
se impõe é a ambivalência ao desconsiderar o aluno, sobretudo, em
meio à maior crise sanitária do país, e vê-lo como uma estatística
negativa, apenas números, como se houvesse um apagamento da
voz desse ator social, que foi submetido a um ensino remoto com
poucas ou quase nenhuma condição de estudo. Uma vez que esse
sujeito deixa de ser agente, dificilmente, o aluno será observado
como autor no processo de gerenciamento de vozes sociais
presentes em seu enunciado.
Nessa direção, Geraldi (2015) nos orienta a nos
distanciarmos da “transmissão” de saberes, pois isso impede o
desenvolvimento da autoria, haja vista que a escola e a sociedade,
ao invés de conceberem o aluno com sua autonomia e suas
valorações, pouco consideram a sua história, seus valores, sua
heterogeneidade, anula-o. Logo, parece-nos impossível
desenvolver criticidade e estimular exercícios de cidadania, como
deveria ser a função social da escola, seguindo o viés freireano, sem
o estímulo e a liberdade para que o aprendente assuma seu
posicionamento enunciativo. O fato de sermos sujeitos históricos
exige que a escola nos enxergue com tal, precisamos assumir esse
lugar de fala.
Os tempos atuais nos fazem repensar a posição social desses
sujeitos na escola, que são os alunos que tiveram/têm dificuldades
para manter a convivência social durante a pandemia. Não
podemos desconsiderar o contexto, a relação de produção, a
circulação e recepção, as interações sociais entre os sujeitos, a
estrutura da escola como instituição localizada numa sociedade
específica, pautada num sistema político, social, econômico e
cultural específico. Devemos considerar toda essa complexidade e
pensarmos que não é simples, tampouco, banal o trabalho com os

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

gêneros do discurso, “os tipos relativamente estáveis de


enunciado”, conforme define Bakhtin (2016 [1979], p. 12), quanto
com uma educação que, de fato, estimule a criticidade com
liberdade e postura cidadã. Nesse sentido, seguimos mobilizando
vozes e estabelecendo diálogos para resistirmos.

Referências

BRASIL, MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino


Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 1998.
BRASIL. MEC. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. 8ª ed. São Paulo:
Hucitec, 2013.
BAKHTIN, M.M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução,
posfácio e notas de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: 34, 2016[1979], p.
11-70.
GERALDI, J.W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro &
João, 2015.
ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão
social. São Paulo: Parábola, 2009.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO DOS NOSSOS TEMPOS: VOZES NO


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

MIGUEL COSTA SILVA


Universidade do Estado do Pará - UEPA
miguel.silva@uepa.br

KEILA DE JESUS MORAIS LOBATO


Universidade do Estado do Pará - UEPA
keilinhalobato@yahoo.com.br

LILIA CORREA AMORIM DE SOUZA


Rhema Educação
liliadesouza.uepa@gmail.com

Ao considerar o cenário político e educacional brasileiro no período


de 2018 a 2021 percebemos a constante presença dos discursos
grotescos e ambivalente, precipuamente no campo educacional.
Esses discursos provocaram inquietações em nós em relação aos
múltiplos sentidos de como a educação vem sendo colocada a
serviço do capitalismo pragmático e/ou aos fins ideológicos do
governo, especialmente quando se constata por meio das vozes dos
discursos de pessoas públicas, tais como, os dos Ministros da
educação brasileira a mecanismos de morte e subversão da

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

educação. Partindo dos pressupostos das discussões dialógicas


bakhtinianas e pensando esta realidade a partir dessa categoria,
fomenta-nos a ideia do grotesco como lugar de inserção de valores
contraditórios, portanto de ambivalências, de lutas e de
reexistências, a partir do nascedouro. Assim, nos perguntamos:
quais os princípios e fins da educação Nacional? Qual o caráter
ético e responsável do ser social? Uma vez que as vozes do grotesco
envolvem o Ministério da Educação brasileira, enquanto instituição
de Estado.
Importa elencar, que no período de 2018 a 2021, o Ministério da
Educação brasileira (MEC) é “comandado” por: Ricardo Vélez (1
de janeiro a 8 de abril de 2019); Abraham Weintraub (9 de abril de
2019 a 19 de junho de 2020); Carlos Decotelli (25 a 29 de junho de
2020); Renato Feder (03 de julho de 2020 declinou sem ser
nomeado) e Milton Ribeiro (nomeado desde 16 de julho de 2020,
permanecendo até a escrita deste texto em setembro de 2021). Neste
trabalho se analisa as vozes do grotesco, desses ministros que
representam a atualidade do governo Bolsonaro.
Sendo assim, fizemos um breve histórico das vozes do grotesco,
representados nas entrevistas e depoimentos no decorrer de seus
mandatos no Ministério da Educação. Essas narrativas
protagonizadas por esses ministros serão apresentadas neste
trabalho por meio de falas e charges como forma de entrecruzar os
diálogos e compreender as ambivalências na perspectiva
bakhtiniana. Além possibilitar a denúncia da realidade como forma
de esperança e renovação para construção de novos tempos.
As narrativas nos levaram às indagações desses discursos nas
vozes do grotesco, discutidas em Bakhtin (2002), a qual
relacionamos com o cenário atual da educação e os princípios
referenciados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei no
9.394/1996), no título II - Dos Princípios e Fins da Educação
Nacional, artigos 2º e 3º e seus incisos, que fundamentam discursos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

da democracia, da pluralidade de ideias, do respeito à liberdade,


do apreço à tolerância e a diversidade.
Conforme Bakhtin (2002), no livro A Cultura Popular na Idade Média
e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, o grotesco se
desenvolve no rebaixamento do corpo, nas vozes e nos ambientes
grotescos, não contendo o fim degradativo, mas renovador.
Entendemos que o grotesco está representando uma fissura, do
ponto de vista da ambivalência das ideias de alto e de baixo, de
forte e de fraco, do temor e da esperança, analisando que nesse
contexto da educação brasileira, os ministros estão cada vez mais
desrespeitando os princípios básicos da democracia, da
pluralidade de ideias, do respeito à liberdade, do apreço à
tolerância e da diversidade, pois as vozes dos discursos estão
arraigadas nos preconceitos, na intolerância, no nefasto, nas
incredulidades. Vozes que, em caráter biológico, se tornam “fezes”
para a sociedade, que vai para terra como adubo, como as fezes
tomando conta de todo o país.
A seguir ilustramos o grotesco do Ministério da educação:

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

VOZES DO GROTESCO - ANÁLISE DIALÓGICA DO


DISCURSO

RICARDO VÉLEZ – 1

ABRAHAM WEINTRAUB – 2

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CARLOS DECOTELLI – 3

RENATO FEDER – 4 (não foi nomeado)

MILTON RIBEIRO – 5

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Considerações
Nesse sentido, foi um grande desafio de trabalhar com o conceito
de grotesco, da ambivalência, do rebaixamento, do renascimento,
compreendendo onde e como nascem as forças, o fortalecimento
das ideias e como elas podem ser encontradas nestes dias de tanta
incredulidade e trevas, reforçando o caráter e a busca por novos
tempos, enquanto ser social e responsável.
As lições que as teorias bakhtinianas possibilitam não se restringe
apenas na releitura do grotesco na sociedade brasileira, também na
possibilidade de acessar aos mecanismos produzidos por essa
reflexão, os quais direcionam para ressurgimento e permanência da
resistência e esperança, por meio do discurso livre e dos resultados
de pesquisas, os quais contestam o uso arbitrário dos objetivos reais
da cidadania, democracia e direitos humanos. Dessa forma, o
presente estudo reforça a necessidade de enxergar o que era a
educação, e o que é hoje a partir do contexto aqui apontado.
Ao reportarmos às falas de pessoas que estiveram ou estão a
comandar o Ministério da Educação por meio das charges,
compreendemos o sentido e significado das imagens dentro de um
contexto que exige manifestação e mobilização concreta de ações
contra atos irresponsáveis e sem alicerce epistemológico de
reconhecimento às diferenças socioculturais existentes no Brasil.
Conforme Bakhtin (2002), na discussão do renascimento as fezes
servem de adubo, para renascer da terra a esperança, do ponto de
vista biológico as fezes vão se misturar à terra, e se transformar na
resistência. Na ambivalência se discute o novo, o renascimento de
novas ideias, de um novo tempo, reconectando os valores,
transformando e reinventando a mudança da sociedade que não
suporta mais o descaso, essas vozes e discursos, de ministros
preconceituosos, desse governo pautado no fascismo e na
intolerância dos sujeitos. Para tanto, a obra rabelaisiana, discutida
por Bakhtin, nos traz um efeito estético de uma análise dialógica

1179
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que devemos acreditar no renascimento, na esperança de novos


horizontes para o futuro.

REFERÊNCIAS:
BAKHTIN, Mikhail. Introdução: apresentação do problema. In:
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. 5ª ed. Tradução de
Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec. Brasília: editora
universidade de Brasília. 2002.
BRASIL. Lei no 9.394/1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Disponível em: >. Acesso em: 03 set. de 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO E O CAPACITISMO NO SÉCULO XXI

Cyntia França Cavalcante de Andrade da Silva


UEPA
cyntiafranca@gmail.com

José Anchieta de Oliveira Bentes


UEPA
anchieta2005@yahoo.com.br

Vivemos em tempos sombrios na qual a educação é um dos


segmentos que está constantemente sofrendo inúmeros ataques.
Uma violência diária que ameaça nossa dignidade, nosso ser
massacrado por políticas excludentes.
Recentemente a educação inclusiva passou por mais uma violência
na qual o Ministro da Educação Milton Ribeiro em seu discurso
afirmou que as crianças, adolescentes e jovens com deficiência
atrapalham as crianças sem deficiência em sala de aula regular.
Afirmou ainda que é impossível a convivência com elas. Tal
argumento foi usado para justificar o Decreto nº 10.502, de 30 de
setembro de 2020 que Institui a Política Nacional de Educação
Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da
Vida. Esta política abre precedentes para a matrícula em escolas ou
classes especiais no intuito de manter as crianças, adolescentes e
jovens com deficiência fora das salas regulares.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Kassar (2004, p. 24) afirma que “as classes especiais públicas vão
surgir pautadas na necessidade cientifica da separação dos alunos
‘normais’ e ‘anormais’ na pretensão da organização de salas de
aulas homogêneas [...]”. Desta forma, esse modelo de educação
segregacionista traz em seu bojo um enorme retrocesso, pois sua
finalidade é colocar as pessoas com deficiência mais uma vez em
guetos, rotuladas e excluídas, retrocedendo décadas de direitos
conquistados.
As pessoas com deficiência foram consideradas como irrelevantes,
aprisionadas, excluídas, desvalorizadas historicamente, apenas
pelo fato de serem como são, “foram vidas detidas por uma
instituição, aprisionadas pelas condições que lhes foram impostas,
maldição das relações de poder” (LOBO, 2015 p. 13).
A não aceitação da diferença do outro faz parte do processo
histórico que a muito buscamos abolir. A educação Especial no
passado tinha por base o modelo clínico no qual era voltado para
uma reabilitação, compreendendo a deficiência como uma condição
que desabilitava de algo. Eram retirados do convívio social e sobre
elas pesava-se o imaginário a partir da “oposição binária:
normalidade & deficiência” (CARVALHO, 2010. p. 54).

Esse pensamento no faz refletir sobre a desvalorização do ser


humano que não corresponde ao considerado “normal” e surge a
partir da concepção de incapacidade. É com o discurso do Ministro
Milton Ribeiro que traz à tona o preconceito e reforço do “ser
capaz”: Se é capaz de participar da aula sem atrapalhar os demais
fará parte da sala regular e se não for “capaz” irá para sala especial.
Essa fala se baseia no capacitismo – ou ableism em inglês – que de
acordo com Campbell (2001) é
uma rede de crenças, processos e práticas que produz um tipo
particular de compreensão de si e do corpo (padrão corporal),
projetando um padrão típico da espécie e, portanto, essencial e
totalmente humano. A deficiência para o capacitista é um estado

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

diminuído do ser humano (CAMPBELL, 2001, p. 44, tradução


nossa).

Diante deste conceito podemos perceber a afirmação que em sala


de aula as pessoas com deficiência atrapalham o aprendizado das
outras crianças é um discurso capacitista do ministro da educação,
pois ele supõe que elas – as pessoas com deficiência – não possuem
capacidade para acompanhar as aulas.
Esse pensamento excludente segundo Carvalho (2010, p. 49) se
pauta a partir dos “estigmas e preconceitos relativos as
características biopsicossociais dos indivíduos”, é uma forma de
considerar aqueles que não são deficientes como superior.
Neste sentido, o Ministro da Educação que é um homem que
corresponde aos critérios eurocêntricos – como homem, branco,
heterossexual, sem deficiência – que corrobora com o pensamento
abissal (SANTOS, 2007) que evidencia o preconceito e busca
segregar todas e todos aqueles que estão fora do padrão de
normalidade alocando-os do outro lado da linha, na intenção de
mantê-los longe e invisíveis.
Neste discurso capacitista fica explicito que as pessoas com
deficiência incomodam, destoam do todo e por esse motivo devem
voltar a ser invisíveis. Um pensamento de intolerância proferido
por um representante da educação é preocupante e inaceitável pois
“na medida que o discurso tem o poder de instituir a realidade
formando nas representações ao seu respeito, podemos dizer que
as práticas discursivas são significativas na construção de nosso
imaginário” (CARVALHO, 2010, p. 52). E a partir dessa fala que se
permite, então, legitimar a exclusão.
Esse capacitismo escancarado em pleno século XXI revela quão
nocivo é a falta de conhecimento sobre a educação inclusiva e negar
a possibilidade de aprendizagem conjunta no ensino regular é
compactuar com o sistema segregacionista.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

E onde o grotesco se apresenta nesta conjuntura? Ele está na


presença do Ministro como uma ignorante no assunto. Está em seu
discurso revoltante e desprezível que busca invisibilizar as pessoas
com deficiência buscando em seu pensamento eurocentrado alocá-
los do outro lado da linha abissal.
Contudo, compreendendo a ambivalência do termo, temos uma
outra perspectiva do grotesco. Segundo Davis (2006) ele pode ser
como um contraponto ao poder estabelecido, ele “enquanto uma
forma visual foi relacionada como o inverso do conceito de ideal”
(DAVIS, 2006, p. 2) é o feio, o fora da norma, um incomodo aos
olhos daqueles que se consideram dentro dos requisitos
preestabelecidos da normalidade.
Para o olhar capacitista as pessoas com deficiência também são
grotescas, por não corresponderem ao padrão de normalidade
instituído.
Desta forma, é preocupante que no século XXI estejamos sendo
ameaçados pelo retorno a um passado no qual as pessoas com
deficiência eram negadas ao direito de ser, de viver dignamente.
Isto posto, é importante ressaltar que, sabemos que a educação
inclusiva ainda precisa de muitos ajustes para que ela aconteça de
uma forma significativa, porém retirar as pessoas com deficiência
da sala de aula regular e segregar em sala especiais é ferir o direito
a diferença além de ser um grande retrocesso. Nós precisamos
fomentar a discussão sobre remover as barreiras de aprendizagem,
debater forma de inclusão significativas e não buscar a apagamento
da pessoa com deficiência sob ideia capacitista de que atrapalham
em sala de aula.

Referências
BRASIL, Decreto n° 10502 de 30 de setembro de 2020, Institui a
Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com

1184
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Aprendizado ao Longo da Vida. Disponível em: . Acessado em: 28


ago. 2021.
CAMPBELL, F. K. Inciting Legal Fictions: Disability’ s Date with
Ontology and the Ableist Body of the Law. GriffithLaw Review 10,
2001: 42-62.
CARVALHO, R. E. Educação inclusiva: com os pingos nos “is”. Porto
alegre: Mediação, 2010.
DAVIS, L. A construção da Normalidade: a curva do sino, o
romance e a invenção do corpo incapacitado no século XIX. Trad.
José Anchieta de Oliveira Bentes. In: DAVIS, Lennard.
(Ed.) The Disability Studies Reader. 2nd Ed. New York: Routledge,
2006, p. 3-16. (Texto digitalizado, não publicado).
KASSAR, M. C. M. Uma leitura da educação especial. In: GAIO,
Roberta. MENEGHETTI, Rosa G. Krob. Caminhos pedagógicos da
educação especial. Petrópolis: RJ: vozes, 2004. P. 19-42.
LOBO, L F. Os infames da história: pobre, escravos e deficientes no
Brasil. Lamparina: RJ, 2015.
SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a
uma ecologia de saberes. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 79,
p. 71-94, nov. 2007. Disponível
em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010
1-33002007000300004. Acesso em: 28/08/ 2021.

1185
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco em cotejo: O Nariz de Gogol transposto em Dmitri


Shostakovich e pandemia

Bianca Alves dos Reis


Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
biancaalvesdosreis@gmail.com

O Nariz é uma obra de ficção satírica escrita por Nicolai Gogol, na qual
conta-se a história de um oficial residente da cidade de São Petersburgo
que nota o desaparecimento de seu nariz - o qual adquire vida
independente e abandona seu rosto. Ao abordar um enredo cuja fantasia
está no trivial, tem-se a origem do absurdo presente na omissão da
realidade, caracterizando toda a obra num espectro enigmático. Atraído
pela temática, Dmitri Shostakovich compôs uma ópera homônima em
1928, entretanto, só recebeu o devido reconhecimento e engajamento a
partir dos anos 60; nela, pode-se perceber o florescer de sua imaginação,
a qual é impelida a trazer em sua obra elementos que aludem ao grotesco.
Neste texto, será retratada a ópera de Dmitri sob a produção da Royal
Opera House 6- conduzida pelo diretor artístico Komische Oper Barrie
Kosky e traduzida por David Pountney para o inglês.
Com isso, ao estilo da ópera, ao descortinar uma investigação sobre os
pormenores que circundam o tema, pode-se exteriorizar aspectos repletos
de significação no que diz respeito à adjunção da teoria bakhtiniana
cotejada com a substância ligada ao viver, impulsionando e engendrando
relações com o cenário atual de pandemia, em que o nariz também tem
uma grande notoriedade.

Figura 1 - Royal Opera House

6 Trata-se da principal casa de espetáculos no distrito de Covent Garden, em


Londres, sendo uma das mais importantes do mundo.

1186
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Youtube, 2017. 7


Num processo de construção semiótica, o nariz - como uma das partes
mais simbólicas do grotesco, sendo aferido intrinsecamente como
substituto do falo - ganha vida. Isto é, há o processo de materialidade e
criação do novo; o corpo grotesco, cuja essência é incompleta, “jamais
está pronto nem acabado: está sempre em estado de construção, de criação,
e ele mesmo constrói outro corpo.” (BAKHTIN, 1987, p. 277) Assim
sendo, agora humanizado, tem sua própria existência numa parição
ocorrida ao alvorecer e sente a necessidade da autodissipação do corpo
que lhe deu à luz (do Major Kovaliov). Cultuado por prostitutas, em uma
cena picaresca, o Nariz busca sua própria autonomia - trazendo, num
encadeamento alegórico, a premissa de que “o corpo humano é o material
de construção” (BAKHTIN, 1987, p. 273)
No decorrer da apresentação, há a procura histérica pelo desaparecimento
nasal, mostrando-o, concomitantemente à investigação do oficial,
vivenciando o novo. Possuído pelo que se pretende a caráter do grotesco,
há a germinação de sentidos quanto à forma e ao significado,
circunscrevendo possibilidades latentes no que diz respeito à concepção
do que se vê.
O Nariz, demarcado pelo hiperbolismo da forma, adquire toda a proporção
do ser; não há cabeça, dorso e braços. “Dentre todos os traços do rosto
humano, apenas a boca e o nariz desempenham um papel importante na
imagem grotesca do corpo” (BAKHTIN, 1987, p. 276) Posto isso, numa
metáfora elevada - e num mesmo conteúdo proposicional - deixando
somente as pernas e o nariz descomedido, tem-se a percepção da
constituição do falo, juntamente com a iluminação que favorece a

7 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zOrjvU9bnms&t=6687s>.


Acesso em: 05 set. 2021.

1187
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ambiguidade da forma, concatenando na inversão topográfica da


hierarquia corporal.
Figura 2 - Royal Opera House

Fonte: Youtube, 2017. 8

Após incessantes buscas, o oficial finalmente encontra seu estimado nariz,


entretanto, como um novo corpo, já não lhe serve mais. Tenta a todo custo
pô-lo em seu lugar; falhando sucessivamente. Este pequeno drama implica
o satírico do nascimento material circundado ao nariz: o corpo trouxe uma
nova parte ao mundo. Houve a concepção da parte pelo todo inteligível,
fazendo com que o realismo extraordinário da obra supere as noções de
fantasia, ligando-a ao cômico popular.
Figura 3 - Royal Opera House

Fonte: Youtube, 2017. 9


Ainda na persecução de algo que o complete, toda a população ajuda
Kovaliov a preencher sua parte faltante, despindo-o e colocando-lhe o

8 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zOrjvU9bnms&t =6687s>.


Acesso em: 05 set. 2021.

9 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zOrjvU9bnms&t= 6687s>.


Acesso em: 05 set. 2021.

1188
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sardônico acessório. E ao ocupar-se deste processo, em que há o


predomínio da linguagem ligada ao corpo e ao que vem do corpo - fazendo
parte do não-oficial - tem-se o seguimento de adjunção ao riso, pois “de
maneira geral, a temática das injúrias e do riso é quase exclusivamente
grotesca e corporal.” (BAKHTIN, 1987, p. 278):

Figura 4 - Royal Opera House

Fonte: Youtube, 2017. 10

A irreverência de toda a cena, rompendo com os padrões estruturais de


uma ópera, escandaliza todo o feito, tornando-a anômala. Assim, o
contexto propicia a informação imagética concernente à atmosfera
procedente da transformação grotesca, posto que as “fronteiras entre o
corpo e mundo fundem-se em mundo exterior e das coisas.” (BAKHTIN,
1987, p. 270). Essa imagem, portanto, vai muito além de uma simples
sátira moral visando à figura depravante implicada pelo baixo corporal;
ela destrona e renova os paradigmas e moldes de um espaço proveniente
da nobiliarquia, bem como os preceitos subjacentes da ordem social -
acarretando em uma análise fidedigna ao não-oficial, ao popular, ao que é
imposto e que causa aversão - fazendo com que o caráter absurdo da
realidade supere o fantasioso.
Subitamente, tão rápido quanto sumiu, o nariz aparece repentinamente no
rosto do major, desvelando uma crítica fundada na idoneidade de que todo
o ocorrido não passa de algo inverossímil. No fim, a peça termina com o
oficial perdendo seu nariz novamente, só que através de um espirro:

10 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zOrjvU9bnms&t= 6687s>.


Acesso em: 05 set. 2021.

1189
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 5 - Royal Opera House

Fonte: Youtube, 2017.11

Tal excrescência, oriunda do orifício nasal, caracteriza-se pela


transcendência das fronteiras entre dois corpos, tal como numa dobradiça
que junta os dois termos e os acoplam ao mundo, onde acontecem as
permutações entre as relações recíprocas. Desse modo, “a lógica artística
da imagem grotesca ignora a superfície do corpo e ocupa-se apenas das
saídas, excrescências, rebentos e orifícios, isto é, unicamente daquilo que
faz atravessar os limites do corpo e introduz ao fundo desse corpo.”
(BAKHTIN, 1987, p. 277)
Interligando o enfoque da obra no nariz (e no baixo corporal) mais a sua
forma de finalização, coteja-se os sentidos essenciais e fundamentais do
grotesco no presente demarcado pela pandemia, tornando o diálogo da
obra - transpassado pelo tempo - deveras atual, cuja significação das
acepções é corpulenta.
Em contexto de pandemia, o nariz aqui, assim como na ópera supracitada,
possui o sentido corpóreo e o formato do nariz passa a ser consumado:

Figura 6 - #SarawakGags

11 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zOrjvU9bnms&t= 6687s>.


Acesso em: 05 set. 2021.

1190
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Internet, 2020. 12

Ao explorar as possibilidades de produzir rupturas de ideias engessadas,


há a sedimentação axiológica por meio de caricaturas repletas de sentidos
ínfimos, isto é, transpõem a superficialidade do jocoso e contribuem num
novo valor: se não usar a máscara adequadamente, determinado sujeito
estará sendo tão inconveniente e inadequado quanto a correlação do baixo
corporal, visto que, ambos produzem excrescências e, na idealização
grotesca, compartilham da mesma matriz composicional simbólica. Em
vista disso, percebe-se que, em níveis de veiculação, a linguagem da
cartum acima se materializa por meio da dimensão semântica, enquanto a
dimensão imagética é proibida, pois o sagrado não pode ser
“representado” pela somatização. Assim:

“Ela é ao mesmo tempo universalista: é uma espécie de pequeno drama


satírico da palavra, o drama do seu nascimento material, ou o do corpo que
traz a palavra ao mundo. O realismo extraordinário, a riqueza e o alcance de
seu sentido, um profundo universalismo marcam essa cena admirável, da
mesma forma que todas as imagens do cômico autenticamente popular.”
(BAKHTIN, 1987, p. 270)

Por fim, a indexicalidade dos sentidos correspondem às pressões e


convenções do contexto, fazendo com que obra e cartum sejam um

12 Disponível em: <https://br.ifunny.co/picture/assim-mascara-assim-cueca-


d81V6Nbe7>. Acesso em: 05 set. 2021.

1191
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

microcosmo de uma esfera social demarcada por singularidades de um


determinado período histórico, permutando-se em encadeamentos
específicos.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento. São Paulo. Ed. Hucitec [Brasília], 1987.

1192
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco em tempos pandêmicos: uma reflexão sobre as


charges de João Bosco

Dinair Barbosa de Freitas


Uepa
dinair.freitas@uepa.br

Rita de Nazareth Souza Bentes


Universidade do Estado do Pará
ritabentes28@gmail.com

1 Iniciando a reflexão
A nossa reflexão neste ensaio ao VIII Círculo – Rodas de Conversa
Bakhtiniana tem como objetivo refletir o discurso grotesco nas charges de
João Bosco “Desmatamento na Pandemia” (02/08/20) e ”Desmatamento
aumenta” (09/08/20). João Bosco é cartunista, chargista e critica
contundentemente o discurso oficial do governo brasileiro em 2020
quanto às questões de Meio Ambiente.
O discurso do João Bosco traz sua voz como posicionamento em defesa
da Amazônia, evocando políticas públicas de preservação ao meio
ambiente tanto local quanto nacional, contestando a situação atual de caos
em que se encontra o nosso “pulmão do mundo”.
Essas charges refratam um tempo no qual a crise pandêmica provocada
pela Covid-19 no período da primeira onda, com muitas mortes, e
simultaneamente, agravando a crise socioeconômica instaurada aqui no
Brasil. O contexto exigia políticas públicas de combate à Pandemia
simultaneamente à crise.
As charges de João Bosco foram publicadas em agosto de 2020 como
resposta ao discurso grotesco do ex-ministro Ricardo Sales quando se
referiu à agilidade em modificar, aprovar e simplificar “o regramento” do

1193
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Meio Ambiente face à Pandemia da Covid-19 a fim de desburocratizar a


política do Meio Ambiente “Então pra isso precisa ter um esforço nosso
aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de
cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e
mudando todo o regramento e simplificando normas” (Ricardo Sales,
2020).
2 O grotesco em discussão: um percurso de orientação
Nesta discussão problematizamos o discurso grotesco na charge de João
Bosco com temas sobre o Meio Ambiente no contexto pandêmico à luz do
método-dialético do movimento de retrospectiva-prospectiva de Bakhtin
(2017), que se articula com a concepção do grotesco com base na
perspectiva de cotejamento entre as duas charges. Tais charges são textos
verbo-visuais, com tons político e humorístico por meio do exagero dos
traços de pessoas, dos espaços e das cores em contraste.
A concepção de grotesco é desenvolvida por Bakhtin (2002) na obra “A
Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais” . É onde se discute a cultura popular em contraponto à
canônica, o popular e o erudito, o velho e novo, o real e o imaginário.
Utiliza o riso para confrontar o poder da época por meio de uma linguagem
popular da época da Idade Média e do Renascimento, em que o realismo
grotesco é fundamental como observamos:
[...] o elemento material e corporal é um princípio profundamente
positivo, que nem aparece sob uma forma egoísta, nem separado dos
demais aspectos da vida. O princípio material e corporal é percebido
como universal e popular e como tal opõe-se a toda separação das
raízes materiais e corporais do mundo, a todo isolamento e
confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal abstrato, a toda
pretensão de significação destacada e independente da terra e do
corpo (BAKHTIN, 2002, p. 17, grifos do autor).
O corpo se mescla com a vida real dando sentido ao caráter cósmico e
universal; um corpo vivo ideologicamente no sentido de não estar
completamente singularizado nem separado do resto do mundo. Nos
termos que: “O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto
é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua
indissolúvel unidade, de tudo que é elevado espiritual, ideal e abstrato”
(BAKHTIN, 2002, p.17).
As imagens que definem o grotesco se caracterizam por apresentar corpos
em transformação, inacabados e imperfeitos, corpos “grotescos” e

1194
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“hipertrofiados”, funde-se o “princípio do baixo o material e o corporal”,


o da terra e do corpo espiritual, ideal, entre o nascimento e a morte - a
ambivalência. Reflete uma imagem do corpo rebaixado em suas funções
vitais. A degradação e o rebaixamento carregam um valor negativo e um
positivo. Rebaixar consiste em “aproximar da terra, entrar em comunhão
com a terra concebida como princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de
nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se
simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor”
(BAKHTIN, 2002, p. 19, grifos do autor).
Nesse conceito, é fundamental a ambivalência da imagem porque o
rebaixamento é imbricado com a regeneração que traz o corpo
carnavalizado pelo riso, rebaixando o alto para dar lugar ao renascimento.
A fim de problematizar esse conceito, a escolha dessa materialidade é
significativa porque enriquece a discussão trazida pelo cartunista João
Bosco, belenense, como ativista em prol das causas sócio-político
ambientais na grande região amazônica, conforme está exposto no seu
blogspot “ Lápis de Memória”. Selecionamos as charges “Desmatamento
na Pandemia “(02/08/20) e ”Desmatamento aumenta” (09/08/20), para
reflexão, dispostas a seguir:
Charge 1 “Desmatamento na Pandemia”

Fonte: http://jboscocartuns.blogspot.com/2020/08/desmatamento-na-
pandemia.html
Charge 2 “Desmatamento aumenta”

1195
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: http://jboscocartuns.blogspot.com/2020/08/desmatamento-
aumenta.html
As charges, por um lado, trazem consigo várias vozes para o embate
dialógico: em seus desenhos está a voz do governo evidenciada pelas cores
amarela e verde, a voz dos latifundiários que comanda os desmatamentos
pelo objeto motosserra, com as quais confronta. Por outro lado, estão as
vozes com as quais compactua a dos cientistas que correm contra o tempo
em busca de entender a Covid-19, de encontrar uma vacina para impedir
o avanço da pandemia, a voz dos ambientalistas que ainda acreditam em
um meio ambiente sustentável.
O chargista confronta essas vozes, rebaixando o que há de oficial pelo
discurso do ex-ministro Ricardo Salles:
Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos
nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de
imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e
mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de
ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de
ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir
esforços pra dar de baciada a simplificação, é de regulatório que nós
precisamos, em todos os aspectos (SALLES, 2020, p. 1).
As charges em estudo tratam do desmatamento estabelecendo uma relação
direta com a pandemia, ou seja, temos um embate entre o discurso do
chargista e ativista ambientalista JBosco que se contrapõe totalmente
através de sua arte ao discurso governo que nega a pandemia da mesma
forma como também nega o desmatamento das florestas. Nesse discurso
de negação do Ministro Ricardo Sales representando o governo
bolsonarista realça a ambivalência quando o vírus transfigurado em árvore

1196
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

representando o positivo e negativo, vida-morte, morte das pessoas e das


floresta e vida do vírus.

3 Conclusões provisórias
A relação entre o verbal e o visual é percebida fortemente no jogo de
contraste das palavras e desenhos com as cores, isto é, na charge 1 o título
“Desmatamento na Pandemia” dialoga intensamente com o título
“Desmatamento aumenta” da Charge 2. Na primeira charge o autor
denuncia o desmatamento no contexto da Pandemia e na segunda, ele grita
sua indignação expresso no subtítulo em caixa alta e com o realce
amarelo“100 MIL MORTOS...”, demonstrando que a morte se refere às
pessoas e às florestas.
O tom destas charges de JBosco é eminentemente político-artístico, não
destaca o humorístico devido às condições conjunturais em que a
sociedade belenense e brasileira que ainda está vivenciando. O destaque
mesmo é para os temas em foco como discurso de denúncia e indignação
à inercia do governo com relação às ações de política pública sanitárias e
ambientais.

4 Referências
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
Hucitec, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In:
BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e Ciências humanas.
Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição
russa Seguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 57- 79.
G1.GLOBO. Ministro do Meio Ambiente defende passar a boiada e mudar
regras enquanto atenção da mídia está voltada para a Covid-19. G1 página
da política. 22/05/2020. Disponível em: . Acesso em 07 set. 2021.

1197
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO EM/NA FESTA*

Rafael da Silva Marques Ferreira


Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Espírito Santo
rafaelsmferreira@hotmail.com

Figura 1: A drag queen “Mulher Mangueira” durante a Parada 2018.


Foto: Paulo Pinto. Fonte: Fotos Públicas. Disponível em:
http://percolates4.rssing.com/chan-3362200/all_p1852.html.
Acesso em 16 set. 2018.
Rosto coberto por pesada e exagerada maquiagem, olhos
arregalados, boca escancarada que exibe uma grande língua e

1198
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dentes hiperbolizados. Essa é a imagem de uma das participantes


da edição de 2018 da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo que
se apresentava como Mulher Mangueira, a partir da qual iniciaremos
nossas percepções acerca do grotesco da Parada.
Muito expressiva, durante toda a Parada, Mulher Mangueira era
constantemente requisitada para ser fotografada, filmada e
entrevistada pelos outros participantes. Em todos esses momentos,
sua marca eram as caretas: abrindo muitíssimo a boca, como pode-
se perceber pela figura anterior e a próxima. Por esse motivo,
vejamos o papel desta cavidade do corpo humano na constituição
do corpo grotesco.
A boca é a cavidade onde se encontram os dentes que servem para
triturar os alimentos. Por meio dela, comemos, devoramos,
mastigamos e engolimos tudo o que é necessário para satisfazer
nossa fome; em seguida, os alimentos chegam ao estômago para
serem absorvidos e depois – todo o lixo – eliminado. Dessa forma,
a boca, que está no alto (cabeça), liga-se ao baixo (ventre, reto, ânus)
produzindo uma imagem ambivalente ao unir extremos opostos.
Nela, também está a língua que nos faz sentir o prazer pelo que
comemos e bebemos, pelo que lambemos e chupamos, bem como o
desagradável gosto daquilo que cuspimos, seja por nojo ou por
puro desprezo. Também por ela vomitamos, pela boca entra o que
nos nutre e sai o que nos faz mal. Por fim, é pela boca que sentimos
o prazer do beijo – proibido de maneira sistemática aos LGBT, mas
que, no contexto da Parada, é temporariamente naturalizado.
Com sua boca aberta, que se pretende assustadora e divertida ao
mesmo tempo, a Mulher Mangueira carrega em si o exemplo
máximo do corpo grotesco da Parada em 2018, pois
Em oposição aos cânones modernos, o corpo grotesco não está
separado do resto do mundo, não está isolado, acabado nem perfeito,
mas ultrapassa-se a si mesmo, franqueia seus próprios limites.
Coloca-se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo

1199
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo
sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações
e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios,
falo, barriga e nariz. É em atos tais como o coito, a gravidez, o parto,
a agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais,
que o corpo revela a sua essência como princípio em crescimento
que ultrapassa seus próprios limites. É um corpo eternamente
incompleto, eternamente criado e criador, um elo na cadeia da
evolução da espécie ou, mais exatamente, dois elos observados no
ponto onde se unem, onde entram um no outro (Bakhtin, 2013 p. 23,
destaque meu).
Na estética clássica, o corpo é algo rigorosamente acabado e
perfeito, isolado, fechado e solitário. Por essa razão, afirma Bakhtin
(2013, p. 26), descarta tudo aquilo que leve a pensar que ele não está
acabado, tudo o que se relaciona com seu crescimento e sua
multiplicação. A sua idade preferida é a plena maturidade, pois é a
que está o mais longe possível, simultaneamente, tanto do
nascimento quanto da morte.
O cânone clássico mostra apenas os atos efetuados pelo corpo no
mundo exterior, os atos e processos intracorporais são
desprezados; o corpo individual é apresentado sem nenhuma
relação com o corpo popular que o produziu. Por isso o corpo do
realismo grotesco – aberto, incompleto, misturado ao mundo,
confundido com os animais (em nosso exemplo, destacamos os
“cabelos” da Mulher Mangueira composto por fios e borboletas) e as
coisas, um corpo cósmico e que representa o conjunto do mundo
material e corporal em todos os seus elementos – lhe parece
“monstruoso, horrível e disforme. É um corpo que não tem lugar
dentro da ‘estética do belo’” (BAKHTIN, 2013, p. 26).
As imagens grotescas eram verdadeiras alegorias que encarnavam
o princípio material e corporal da festa, do banquete, da alegria
presentes na literatura e na arte da Idade Média e do Renascimento.
O riso popular que degrada e materializa, que organiza e
acompanha todas as formas do realismo grotesco estava ligado ao
baixo corporal. Assim, por meio da literatura de Rabelais, Bakhtin

1200
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

observa a divisão dos polos representativos do sério e do cômico


que se direcionam, respectivamente, para o alto e para o baixo.

Figura 2: Mulher Mangueira: o grotesco alegre da Parada 2018.


Fonte: Dados gerados na coleta.
Na faixa que cobre o imenso e desproporcional corpo rosa,[1]
enfeitado por um minúsculo biquíni verde, a drag queen traz seu
nome: “Mulher Mangueira”. Este faz tanto alusão à escola de samba
Mangueira (que tem como cores as mesmas que predominam
nos trajes, acessórios e maquiagem da figura em questão: verde e
rosa), mas também brinca com a ideia de que se trata de uma
mulher que possui uma mangueira (termo popular para órgão

1201
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sexual masculino). Ela é rainha coroada (não nos esqueçamos de


que estamos tratando de uma drag queen) e bobo da corte ao mesmo
tempo; masculino e feminino concomitantemente; assustadora e
primaveril na mesma proporção; encantadoramente estranha ou
ainda estranhamente encantadora... enfim, grotesca: “Uma das
tendências fundamentais da imagem grotesca do corpo consiste em
exibir dois corpos em um” (BAKHTIN, 2013, p. 23, itálicos no
original).
Além da, já destacada, boca, o traseiro também desempenha um
papel importante na concepção do corpo grotesco e fica em
bastante evidência. A bunda abunda, com destaque
preponderante, hiperbolizada. Se antes, as nádegas – parte externa,
mas ao mesmo tempo, privada; onde se situa o ânus, orifício sujo
designado unicamente para a saída de excrementos[2]
(representantes do fim, da morte) – deveriam manter-se cobertas e
escondidas, no realismo grotesco promovido pela cosmovisão
carnavalesca da Parada, são celebradas sem que haja
necessariamente uma conotação sexual, mas apenas como uma
forma de enaltecimento do corpo humano.
Na vida cotidiana dos indivíduos isolados as imagens do “inferior”
corporal conservam apenas seu valor negativo e perdem quase
totalmente sua forma positiva; sua relação com a terra e o cosmos
rompe-se e as imagens do “inferior” corporais ficam reduzidas às
imagens naturalistas do erotismo banal (Bakhtin, 2013, p. 20).
Tal qual o orifício superior que nos alimenta e nos mantem vivos
ao mesmo tempo que serve para expelir o que não nos serve em
forma de vômito; o ânus funde morte e prazer, início e fim, portal
pelo qual expelimos dejetos internos para o mundo exterior e por
onde o mundo é capaz de nos penetrar.
Com o grotesco, há um rompimento nos limites de um corpo
clássico, organizado em torno de um sujeito uno, com uma
identidade fixa, regido por leis que condenam tudo o que diz
respeito à carne, ao terreno, ao humano. Em oposição à perspectiva
corporal da estética clássica, as figuras descritas por Rabelais e

1202
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estudadas por Bakhtin (deformadas, irregulares, espantosas e


apavorantes, se observadas sob à luz do cânone que privilegia o
estático e consolidado) se assemelhavam às práticas da vida
cotidiana vide seu contínuo inacabamento: “(...) o corpo grotesco é
um corpo em movimento. Ele jamais está pronto nem acabado: está
sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro
corpo; além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele”
(Bakhtin, 2013 p. 277, destaques do autor).
O grotesco, impregnado da visão carnavalesca, libera o mundo de
tudo que nele pode haver de terrível e atemorizador, tornando-o
totalmente inofensivo, alegre e luminoso: “(...) no grotesco popular,
a luz é o elemento imprescindível: o grotesco popular é primaveril,
matinal e auroreal por excelência” (Bakhtin, 2013, p. 36). Tudo o
que causava medo e espanto na vida ordinária era ridicularizado
no carnaval, pois “O medo é a expressão extrema de uma seriedade
unilateral e estúpida que no carnaval é vencida pelo riso (...)
(Bakhtin, 2013, p. 41).

Referências
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. 8. ed. São Paulo: Hucitec Editora,
2013.
TREVISAN, J. Devassos no paraíso. Editora Max Limonad LTDA,
1986.

*Este texto integra minha pesquisa de doutorado intitulada “A


Cultura Popular na Contemporaneidade: o Contexto da Parada do
Orgulho LGBT de São Paulo em Três Dimensões - Memória,
Protesto e Festa”. O presente trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. This study was

1203
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.

Notas
[1] “O aspecto essencial do grotesco é a deformidade. A estética do
grotesco é em grande parte a estética do disforme” (BAKHTIN,
2013, p. 38)
[2] De acordo com Trevisan (1986), além de pecado, o sexo anal foi
considerado, em muitas sociedades (que inclui a brasileira) como
“crime de sodomia”, punido com prisões, degredos e até, em
alguns casos, com a morte.

1204
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO NO CORPO FEMININO TRANS: OS


FEMINISMOS/AZMINA NAS REDES SOCIAIS DIGITAIS
COMO FORMA DE RESISTÊNCIA

Gessica Maiara de Oliveira Silva


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
gessicamaiara07@gmail.com

Nara Karolina de Oliveira Silva


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
narakarolina25@gmail.com

Feminismos, presente!
Como forma de resistência à hegemonia masculina, o feminismo,
em sua pluralidade, surgia como uma ação política na luta pelo
reconhecimento da humanidade das mulheres, isso porque, no
sistema patriarcal “[...] a mulher determina-se e diferencia-se em
relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o
inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto;
ela é o Outro” (BEAUVOIR, 2019, p. 12- 13). Tal essencialização das
mulheres é parte de uma narrativa histórica, visão utópica de
unidade que parte de um projeto egocêntrico de sujeito universal.
Assim, como forma de redefinir as engrenagens do sistema e
instituir o direto ao lugar de fala, a escuta de outras vozes sociais,
os feminismos nas redes sociais digitais atuam como uma forma de

1205
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ativismo (HARAWAY, 2009). Ou seja, é no espaço virtual que


mulheres encontram uma oportunidade para romper o regime de
autorização discursiva patriarcal que legitima apenas uma voz
única e apaga outras formas de existência.
Logo, com este texto objetivamos refletir sobre as representações
do “ser mulher” em artigos de opinião da revista virtual AzMina.
Escolhemos esta revista pelo fato dela adotar uma postura plural
nas abordagens feministas, reconhecendo e conferindo visibilidade
às vozes para os diversos assuntos sobre a experiência da condição
feminina. Além disso, tanto o feminismo quanto o próprio espaço
de ativismo social, no caso da revista AzMina, constituem uma
metáfora da praça pública conforme a leitura
bakhtiniana, entendendo, de acordo com o autor, que a praça
pública “[...] era o ponto de convergência de tudo o que não era
oficial, de certa forma gozava de um direito de
“extraterritorialidade” no mundo da ordem e da ideologia oficiais”
(BAKHTIN, 1987, p. 132, grifo do autor).
Assim, não limitado à biologicidade e padrões impostos pela
sociedade heteronormativa, o corpo feminino, nesse sentido, é
político. Consiste numa instância transgressora. Não se trata de
considerar o corpo como individualizado, mas como coletivo, o que
corresponde à oposição do que é preconizado pela cultura oficial.
Essa ambivalência semântica é denominada na estética bakhtiniana
como realismo grotesco (BERNARDI, 2009). Nesse sentido,
seguindo a articulação na oposição entre os corpos dos dominantes
e dos dominados dentro de uma estrutura de poder hegemônica,
compreendemos que
O corpo universal que cresce e é eternamente triunfante, sente-se
no cosmos como em casa. O corpo é o último grito do cosmos, o
melhor ele é a força cósmica dominante; [...] Ele não passa de uma
fase triunfante do povo e da humanidade, uma fase indispensável à
sua renovação e ao seu aperfeiçoamento (BAKHTIN, 1987, p. 298,
grifos do autor).

1206
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Segundo a ambivalência, o corpo universal, aquele que dita as leis


da cultura oficial, corresponde ao masculino, heterossexual, branco
e classista, em contrapartida ao corpo grotesco feminino lésbico,
trans, negro e periférico que surge como forma de subversão.
Levando em consideração as multiplicidades do ser “Bakhtin
chama de “corpo grotesco”; que se caracteriza pela implicação, pela
inseparabilidade intercorporal – o indissolúvel nexo de união entre
identidade e alteridade (PONZIO, 2009, p. 207, grifo do autor).
Logo, o eu integra a alteridade, se afirma no mundo a partir de seu
lugar único, intrasferível, mas é a presença do outro que constitui
o ser. Somente a partir do excedente de visão do outro é possível
uma visão ampla do eu, ou seja, quando nos relacionamos,
participamos de um (in)acabamento. Assim, os enunciados da
revista AzMina a serem analisados refletem e refratam diferentes
vozes sociais e pontos de vistas, dialogam com o presente, passado
e futuro e estão atravessados de entoações, avaliações,
posicionamentos ideológicos.

Eu amo ser uma mulher trans


O enunciado escolhido para a reflexão a que nos propomos nesse
texto foi produzido por Jaqueline de Jesus, que se define na
página AzMina como: escritora e mulher trans negra. Logo, podemos
dizer que seus escritos manifestam suas ideologias e se
caracterizam como um instrumento de resistência diante das
ideologias oficiais refletidas nos discursos machistas, homofóbicos,
etc. Neste enunciado em específico, a autora reflete sobre o modo
como a autodefinição e o lugar de privilégio de classe tornaram sua
experiência de ser mulher trans empoderadora. Percebemos que
toda dor e desprezo se deve ao fato de sua existência enquanto
mulher não ser aceita pela sociedade heteronormativa.

1207
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1- Eu amo ser uma mulher trans

Fonte: Página AZMina[1]

Nesse enunciado, Jaqueline de Jesus reflete sobre o modo como a


autodefinição e o lugar de privilégio de classe tornaram sua
experiência de ser mulher trans empoderadora. Percebemos que
toda dor e desprezo se deve ao fato de sua existência enquanto
mulher não ser aceita pela sociedade heteronormativa. Diante
disso, percebemos a resistência das mulheres negras trans, contra
os discursos e todas as ações patriarcais que correspondem às
ideologias oficiais e que vão de encontro as lutas das minorias.
Considerando que “a transexualidade é uma questão de identidade
[...] A mulher transexual é toda pessoa que reivindica o
reconhecimento como mulher” (JESUS, 2012, p. 8). A
regulamentação binária mina com a variedade de sexualidades,
assim como também rompe com a hegemonia de uma
heterossexualidade compulsória do desejo. Logo, o desbancamento
da heterossexualidade evidencia o gênero como construído e não

1208
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

definido pelo sexo inscrito no corpo através de valores que


cristalizam e produzem um modo de ser (BUTLER, 2019).
A partir do seu lugar de fala, de inscrição social, ela problematiza a
consideração de tomar as experiências trans como universais
(RIBEIRO, 2019). Considerar a vida de pessoas trans a partir de
uma única experiência é negar a multiplicidade de existências trans
a partir de outras dinâmicas interseccionais de opressão. Nesse
sentido, o sujeito não está encerrado a modos de se perceber e ser,
ele é social e se relaciona com pessoas, nacionalidades. Ele é fruto
do seu espaço sócio-histórico, pessoas com as quais se relaciona, e,
por isso, singular (BAKHTIN, 2010).
Em uma passagem mais adiante do enunciado, em “Eu tenho
consciência de que o meu riso é resistência in natura”, a presença do riso
atua como uma prática de resistência aos dizeres sexistas, racistas
e transfóbicos, e suas ideologias oficiais (BAKHTIN, 1987), essas
que não reconhecem a humanidade de Jaqueline de Jesus. Logo,
“[...] o riso impede que o sério se fixe e se isole da integridade
inacabada da existência cotidiana. Ele restabelece essa integridade
ambivalente” (BAKHTIN, 2013, p.105). O sério, nesse sentido, são
os enquadramentos, ideologias oficiais que decretam normas
universalizantes acerca de corpos e subjetividades. Assim, o riso
cumpre o papel de alargar os horizontes, reconhecer outras
existências. Reconhecendo as multiplicidades de experenciar a
condição feminina, a autora, em seu projeto de dizer, reitera sobre
o modo como as opressões e privilégios subvertem a lógica da
universalidade.

O ser mulher não é universal: é um devir


Em nossas reflexões, podemos observar a liberdade concedida pelo
ambiente de praça pública da revista AzMina como um espaço
destinado a dar visibilidade às lutas das minorias sociais. Assim,
constituído por um tom de resistência, Jaqueline de Jesus em

1209
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sua experienciação do “ser mulher” reflete uma visão e concepção


de mundo “não-oficial”.
Nesse sentido, o rebaixamento do modelo heterossexual
corresponde à degradação do corpo universal. Jaqueline de Jesus é
a antítese dos valores da branquitude, heteronormativa,
reconhecidos pela cultura oficial e assim, se constitui como um
corpo grotesco, à oposição do da humanidade. Logo, é preciso
considerar que o ser é um devir. O empoderamento, autoaceitação
é um processo, e não o ato encerrado (BERTH, 2019). E, nesse
processo de autoaceitação, é importante considerar o fato de que o
“eu olho a mim mesmo com os olhos de um outro, me avalio do
ponto de vista de um outro” (BAKHTIN, 2019, p. 53). Ou seja, a
experienciação do ser mulher é múltipla, singular e se constitui na
e pela alteridade.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o
contexto de François rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira.
São Paulo: HUCITEC: [Brasília] Editora da Universidade de
Brasília, 1987.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do Ato Responsável [Tradução aos
cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco]. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. 8ª ed. Trad. Yara Frateschi Vieira.
São Paulo: Editora Hucitec, 2013.
BAKHTIN, M. O homem ao espelho: Apontamentos dos anos 1940.
São Carlos: Pedro & João Editores, 2019.
BERNARDI, R. M. Rabelais e a sensação carnavalesca do
mundo. In.: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São
Paulo: contexto, 2009, p. 73- 93.

1210
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BERTH, J. Empoderamento. São Paulo: Sueli Carneiro, Pólen, 2019.


BEAUVOIR, S. O segundo sexo. A experiência Vivida. v.2. Tradução
Sérgio Millet. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da
identidade. Tradução de Renato Aguiar. 17ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2019.
HARAWAY, D. J. Manifesto ciborgue Ciência, tecnologia e
feminismo-socialista no final do século XX. In.: TADEU, T
(Org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2ª ed.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
JESUS, J. G de. Orientações sobre identidade de gênero: conceito e
termos. Brasília, n. 366, 2012.
PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a
ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2009.

Notas:

[1] Disponível em:< https://azmina.com.br/colunas/eu-amo-ser-


uma-mulher-trans/> . Acesso em: 29 de Ago. de 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco nos gotejos dos corpos femininos

Karla Daiane Martins


Universidade Federal de Santa Catarina
kdaianemartins@hotmail.com

Da bela e recatada à símbolo de desejo sexual, as mulheres sempre


tiveram seus corpos sujeitos a diversas restrições sociais. Ao longo
dos anos, a mídia, a igreja, a literatura e as demais artes têm sido
alguns dos segmentos responsáveis por ditar ou reforçar as regras
que buscam reger os padrões de comportamento feminino.
Em um trabalho que analisa histórias em quadrinhos feministas,
Dantas (2020) elucida que são três os principais temas sobre os
quais circundam a imagética feminina:
O desejo, incorporando o lugar do belo dolente que a filosofia
clássica dedica às musas ou o erotismo nos onipresentes nus
artísticos – a maioria destes, de juventude e brancura imaculada. O
riso, ao depreciar e impingir abjeção a toda sorte de dissidência
corporal que escape aos padrões normatizados pelo desejo. E o
risco, este desliza e confronta a norma: o corpo que se reivindica
sobrevivente, que altera a si mesmo ou impõe sua porosidade, suas
fissuras, seus excessos, ou seu mero existir. (DANTAS, 2020, p. 3).
O corpo feminino como objeto de desejo reflete a figura da mulher
ideal, composta por doçura, fragilidade e sensualidade. Presente na
literatura, na música e na publicidade, a imagem feminina
desejável descarta tudo o que provêm do baixo corporal, pois este
suprime qualquer traço de delicadeza convertendo-o em desprezo.
As manchas, marcas, texturas e fluidos são os vestígios indesejáveis
que, além de provocarem o riso, causam desgosto e aversão - não

1212
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

somente naqueles julgam de fora, mas também naquelas que,


proprietárias do corpo, submetem-se a produtos e procedimentos
estéticos em busca do padrão cobiçável.
A imagem do corpo como símbolo de desejo muito se assemelha ao
que Bakhtin (2010, p. 179) reconheceu como o cânon corporal
moderno, popularizado na literatura e nas demais artes nos últimos
séculos. Este, de acordo com o filósofo russo, é composto por um
corpo perfeitamente delimitado, fechado em si só, que esconde
todas as características que ultrapassam seu limite individual.
Dessa forma, “todos os sinais que denotam o inacabamento, o
despreparo desse corpo, são escrupulosamente eliminados, assim
como todas as manifestações aparentes da sua vida íntima”. Nesse
sentido, aquele que foge à regra, que transpassa suas próprias
delimitações, admitindo manchar-se, rasgar-se e transbordar-se, é
o que consideramos o corpo grotesco: é liberto de si mesmo, mas
socialmente enclausurado.
A partir de sua análise sobre a obra rabelaisiana, Bakhtin (2010) não
difere aspectos dos corpos femininos e masculinos. O autor enfatiza
que, para o grotesco, interessam, majoritariamente, o nariz, a boca,
o falo e o ventre, além de “tudo que sai, procura sair, ultrapassa o
corpo, tudo que procura escapar-lhe” (p. 276-277). Contudo,
sabemos que as atitudes responsivas têm pesos diferentes
conforme o gênero. O grotesco, por si só, causa estranhamento
quando fora do contexto familiar, mas o proveniente do corpo
masculino provoca, majoritariamente, o riso - enquanto o feminino
gera nojo e vergonha.
Da mesma forma, Bakhtin (2010, p. 278) elucida que interessa ao
grotesco não apenas a fisionomia externa, mas também a que é
“interna do corpo: sangue, entranhas, coração e outros órgãos.
Muitas vezes, ainda, as fisionomias interna e externa fundem-se
numa única imagem”. Esses elementos, porém, apesar de fazerem
parte do realismo grotesco, são tratados com certa naturalidade nas
esferas sociais. Diferente disso, a menstruação é o único sangue do

1213
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

qual as pessoas se envergonham, pois é tratado como sujeira,


aspecto digno de nojo, o que acaba levando as próprias mulheres a
sentirem desprezo por sua natureza e esconderem as mudanças
sofridas mensalmente por seus corpos.
Além disso, parece-nos que algumas características grotescas são
socialmente desejadas nos corpos masculinos, pois a ausência delas
remete à delicadeza esperada nas mulheres. Assim, aquilo que diz
respeito à feminilidade é considerado negativo nos homens, já que
quebra o padrão estético de másculo e viril. O oposto também
ocorre: determinados gestos, formas, cores e comportamentos que
são naturais às mulheres, mas esperados nos homens, fogem à
naturalidade quando relacionados ao feminino e provocam repulsa
por quebrar a expectativa da imagem de desejo composta por
delicadeza e sensualidade.
Além do desejo e do riso, Dantas (2020) enumera o risco como a
terceira forma de manifestação da imagética feminina. Este
concorda com a ideia bakhtiniana de que “somente o riso, com
efeito, pode ter acesso a certos aspectos extremamente importantes
do mundo” (BAKHTIN, 2010, p. 57). Nesse sentido, as
características do corpo grotesco que causam riso - e até mesmo o
próprio riso - podem ser usadas como forma de resistência. A
ênfase orgulhosa naquilo que é considerado repulsivo chama a
atenção e pleiteia pela existência, batendo de frente com a
estigmatização. Com isso, utiliza-se do desprezo para a
visibilidade, fazendo-se com que o riso torne-se diálogo e, pouco a
pouco, o desgosto e a aversão passam a dar lugar à naturalização
daquilo que já é, por si só, natural. Todavia, este caminhar é longo.
O apagamento do baixo corporal na imagética feminina é uma forte
característica dos anúncios publicitários. Há algum tempo vêm
surgindo manifestações de vieses feministas que questionam as
empresas sobre a representação do corpo feminino em suas
propagandas, as quais, em sua grandiosa maioria, costumam
priorizar a beleza canônica do corpo desejável e artificial. Esses

1214
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

movimentos têm surtido efeito e já é possível observar algumas


mudanças nas campanhas publicitárias de determinadas marcas.
Os comerciais de absorventes íntimos, embora tenham a
menstruação como o assunto principal, sempre apresentaram essa
temática pelo viés do estigmatizado, evitando as nomenclaturas
que remetem ao período menstrual e mascarando a cor do sangue
ao representa-lo com líquidos azuis. Ainda, a encenação das
mulheres durante “aqueles dias” por anos alternou entre a figura
frágil, que sofre os efeitos da TPM e tem seus comportamentos
ditados pelas mudanças hormonais, e a figura livre e sorridente, na
qual o foco publicitário acabava sendo a pele macia e/ou o conforto
que o produto proporcionaria ao ser discreto e impedir que outras
pessoas notassem que a mulher está menstruada.
Atualmente, após muitas reflexões e questionamentos, os
comerciais de absorventes íntimos têm buscado abordar o tema da
menstruação de maneira mais naturalizada. A exemplo disso, as
marcas Carefree e Sempre Livre lançaram, em 2021, a campanha
publicitária intitulada “#DeixaFluir”, cujo slogan é: “vaginas são
molhadas e fluidos são naturais[1]: estar confortável com eles
também pode ser” (#DEIXAFLUIR, 2021).
A campanha conta com uma propaganda que foge dos padrões de
estigmatização da menstruação, além de contar com um elenco de
mulheres[2] com traços diversificados, desvencilhando-se dos
arquétipos preestabelecidos da imagem feminina como item de
desejo. Assim, dispondo-se de forma séria das imagens que muito
já foram utilizadas como motivo de riso, as marcas favorecem os
movimentos de resistência aos padrões de beleza, pois sua
propaganda alcança públicos diversos, inclusive aqueles que,
conscientemente ou não, reforçam tais padrões.
Ainda sobre o corpo grotesco, Bakhtin (2010) já afirmara que este
não é fechado sobre si mesmo, mas ultrapassa suas fronteiras e
converge-se com o mundo. Nesse sentido, o autor elucida:

1215
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Observemos ainda que o corpo grotesco é cósmico e universal, que


os elementos aí sublinhados são comuns ao conjunto de cosmos:
terra, água, fogo, ar; ele liga-se diretamente ao sol e aos astros,
contém os signos do zodíaco, reflete a hierarquia cósmica; esse
corpo pode misturar-se a diversos fenômenos da natureza:
montanhas, rios, mares, ilhas e continentes, e pode também encher
todo o universo. (BAKHTIN, 2010, p. 278).
Nessa direção, o comercial desfruta de diversos elementos da
natureza misturados a aspectos do corpo grotesco. Flores, conchas
marinhas, frutos, mares e cachoeiras desmembram-se, envolvem e
tornam-se partes do corpo e fluidos corporais. Por ter a temática
relacionada ao molhado, as imagens são a todo tempo encharcadas
por líquidos de diferentes cores e densidades, que misturam-se à
própria água e ao suco de frutas cortadas. Essa fusão de elementos
causa um efeito de naturalidade ao baixo corporal e, ao mesmo
tempo, mistura o alto e o baixo - o sagrado e o profano - para causar
incômodo àqueles que estão pouco acostumados com o tabu nos
meios em que a propaganda circula.
A figura 1 mostra um dos momentos em que frutas cortadas são
utilizadas pela propaganda como metáforas visuais para
representar vulvas - naturalmente úmidas/molhadas. Estas são,
ainda, retratadas de outras maneiras, por meio de pinturas,
bordados, desenhos, flores, todas de diversos tamanhos, formatos,
cores e níveis de lubricidade. Não apenas vulvas são retratadas,
mas também úteros e ovários - que também compõem o baixo
corporal e estão diretamente relacionados ao período menstrual.

1216
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1 - Elemento da natureza representando o baixo corporal


feminino

Fonte: (#DEIXAFLUIR, 2021, 0:23)

Além da mescla entre corpo e mundo, o comercial mostra a


combinação de diversos elementos do alto e do baixo corporal,
principalmente olhos, mãos/dedos, vulva, ventre e boca - sendo a
última considerada a parte mais importante do rosto para o
grotesco. Esse rebaixamento, que é como Bakhtin chama essa
mistura de elementos, “é enfim o princípio artístico essencial do
realismo grotesco: todas as coisas sagradas e elevadas aí são
reinterpretadas no plano material e corporal” (BAKHTIN, 2010, p.
325). Durante toda a propaganda, o corpo funde-se em si mesmo e
dissolve-se com o mundo externo por meio de imagens que são, ao
mesmo tempo, dúbias e explícitas.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 2 - Alto e baixo corporal incorporam-se em desenho

Fonte: (#DEIXAFLUIR, 2021, 1:05)


A figura 2 mostra o desenho de um útero cujos ovários foram
substituídos por olhos - que, no vídeo, piscam personificados -
formando a representação de um rosto. Nele, o canal vaginal
simboliza um nariz que escorre, sendo o líquido rosa equivalente à
menstruação.
O rebaixamento do alto corporal na propaganda assemelha-se com
parte da análise que Bakhtin realiza sobre a obra de Rabelais. A
figura que - em cores delicadas de tons suaves - remete a um útero
e, ao mesmo tempo, um rosto, altera a imagem de ambos os
elementos e renova, principalmente, a imagem do baixo corporal
que, transformado em face, torna-se uma figura bonita e delicada.
Na imagem abaixo (figura 3), o desenho de uma boca transforma-
se na representação de uma vulva, onde os respingos de saliva
passam a retratar os fluidos aos quais a campanha publicitária se
refere. No momento de convergência das imagens, traços abstratos
em movimento que representam algo líquido juntam-se e formam
uma boca na vertical, que, por sua vez, transforma-se em vulva

1218
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

num movimento que remete ao desabrochar de uma rosa, como se


as partes do corpo se juntassem florescendo e gotejando.
Figura 3: Desenho de lábios na vertical causa interpretação
ambígua

Fonte: (#DEIXAFLUIR, 2021, 0:55)


A boca, propriamente dita, já é um aspecto importante para o
realismo grotesco, mas encontra-se na parte alta do corpo: a face.
Ao misturar-se com uma vulva, que fica escondida na parte baixa,
coberta por camadas de tecidos, ressignifica ambos os elementos -
e os respingos também são ressignificados, pois remetem a gotejos
diferentes.
Os objetos ressuscitam literalmente à luz do seu novo emprego
rebaixador; renascem à nossa percepção: [...], tornam-se aos nossos
olhos perfeitamente concretos, sensíveis. No terreno novo do
rebaixamento, todas as características particulares da sua matéria e
da sua forma podem ser apalpados. Assim, a imagem do objeto se
renova. (BAKHTIN, 2010, p. 328)
Além da imagética, a música[3] presente no comercial utiliza-se de
recursos semelhantes para associar os elementos da natureza e do

1219
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

alto corporal aos aspectos do corpo grotesco. Em todas as cenas, os


efeitos visuais combinam-se com a letra da canção que, a todo
momento, faz jogos de palavras com referências que provocam
ainda mais a sensação de molhado buscada pelo slogan da
campanha.
São inúmeros os detalhes que, minuciosamente, ajudaram a
construir uma campanha publicitária que ajuda a quebrar a
tradição de representação dos corpos femininos de maneira
canônica e ficcional. A mudança de abordagem no assunto da
menstruação (e dos demais fluidos corporais) é um grande passo
na busca pela naturalização de características estigmatizadas nos
corpos femininos.
Dessa forma, a campanha publicitária #DeixaFluir, por meio de
elementos da natureza misturados aos aspectos do corpo grotesco
e, ao mesmo tempo, do alto corporal, colabora com a luta pela
quebra dos padrões predeterminados que procuram, a todo tempo,
impor como os corpos femininos devem ser e portar-se. Sem
romantizar o período menstrual - e nem demonizá-lo -, as marcas
conseguiram mostrar que gotejos são naturais e que é possível, sim,
sentir-se confortável com eles.

Referências:
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
DANTAS, Daiany Ferreira. Estética e humor nos quadrinhos
feministas: a reconquista política do corpo pelo riso na HQ A
origem do mundo (2018). Tempo e argumento, Florianópolis, v. 12,
n. 31, e0102, set./dez. 2020.
#DEIXAFLUIR com SEMPRE LIVRE® e CAREFREE®. [S. l.: s. n.],
2021. 1 vídeo (1min 10s). Publicado pelo canal semprelivrebrasil.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UV_iTWp-

1220
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fxo. Acesso em: 01 setembro 2021.

Notas:
[1] O slogan contém a observação: “quando são incolores ou
levemente esbranquiçados, sem odor, ardência ou coceira.
Consulte o seu ginecologista” (#DEIXAFLUIR, 2021).
[2] A propaganda é direcionada a mulheres cisgênero, mas as
reflexões aqui apresentadas referem-se a todos os corpos que
menstruam.
[3] A música utilizada chama-se Banho e é originalmente cantada
por Elza Soares. Na propaganda, a canção está na voz de Tulipa
Ruiz. A música original pode ser acessada
em: https://www.youtube.com/watch?v=-1fcaBBti4A.

1221
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O Grotesco nos nossos tempos: resistência e transgressão pela


palavra poética

Rosiane Pinto Machado


Universidade do Minho
ane_machado2010@hotmail.com

Palavras iniciais
Pensar que a gente cessa é íngreme. Minha alegria ficou sem voz.
(Manoel de Barros, 2002)

Em tempos difíceis, a arte salva! Precisamos ouvir a música da vida,


respirar o som da palavra. “Era preciso desver o mundo” (BARROS,
2015, p. 14) “para encontrar nas palavras novas coisas de
ver” (BARROS, 2015, p. 13). É com esse convite do poeta Manoel de
Barros que inicio este caminho da escrita, numa linguagem
primaveril, colorida, subvertendo a dor, irrigando as
insignificâncias da vida, num ato revolucionário de amor e
poeticidade, para que o voo da palavra alcance novos horizontes.
A pandemia é um momento na história que nos coloca no
movimento das ambivalências da vida. Nesse cenário grotesco que
estamos vivendo, a tristeza atravessa o tempo-espaço na
humanidade. Na manhã do dia oito de janeiro deste ano, todo o
meu corpo gemeu de dor, e diante dessa adaga perversa que
invadiu meu peito, seus gumes cortaram a alegria em infinitos

1222
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pedaços. A dor da morte da minha mãe pela COVID-19 se juntou a


dor de milhares de pessoas no mundo inteiro, ao mesmo tempo em
que tentava lutar pela minha sobrevivência, uma vez que também
estava infectada pelo vírus. Nesse mesmo dia, foi o sepultamento
da mulher mais incrível, que tive a honra de chamar de MÃE. Meus
irmãos não puderam preparar o velório, colocar uma roupa no seu
corpo gélido, receberam o caixão lacrado, sem cerimonial fúnebre.
Apenas uma breve despedida à distância no cemitério. Recebi uma
chamada para acompanhar aqueles minutos do enterro, mas não
tive forças para ver a última pétala da minha Rosa cair. Naquelas
horas intermináveis, naquela arquitetura silenciosa do quarto, sem
abraço algum chorei, como uma criança encolhida querendo voltar
para o útero, para o aconchego da casa materna. Buscava por algum
consolo, meus olhos procuravam incansavelmente pelas memórias
construídas ao longo dos momentos vividos ao seu lado, que,
mesmo vivendo longe, sentia sempre tão perto. Mas, nada
acalmava aquela dor dilacerante, a sensação de névoa que me
distanciava de tudo em volta. Por ora, lembrava que estava ali,
porque ouvira longe o tilintar do sino amoroso, do outro lado da
porta, que anunciava que precisava alimentar o corpo. Passei dias
ali, prisioneira das minhas lembranças, buscava seus vestígios, pelo
som da sua voz, fechava os olhos para sentir aquela presença tão
marcante. A cada memória do nosso último encontro, a dor
penalizava ainda mais meu corpo febril. Senti remorso pelos
momentos que não passamos juntas. Perdi a noção do tempo, as
horas passavam despercebidas.
A experiência pungente do luto materno me fez mergulhar
profundamente nas águas turvas desse tempo tão complexo e
sombrio. Fiquei submersa, sentia um sabor amargo da realidade,
sentia falta de ouvir a voz que contava os causos do outro lado do
rio, fartava-me de saudade das palavras que me abençoavam ao
final das nossas chamadas. A ausência da minha mãe ampliava a
solidão, e sem esforço algum deixei que a tristeza fizesse morada

1223
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

em minha alma, e meu riso ficou adormecido por algum tempo. Na


penumbra das madrugadas a insônia me fazia companhia. Buscava
nas mensagens dos familiares e amigos palavras de consolo.
Durante as manhãs, meus olhos inertes conseguiam mirar as
nuvens que enfeitavam a janela, os pássaros foram incansáveis e
lastimaram o verão inteiro. Conforme as folhas das árvores
mudavam de cor, as feridas cicatrizavam e anunciavam a
transformação da vida. Deixei suas cascas caírem junto com as
folhas secas. Esperei pacientemente a terra agir e transmutar todo
o vivido até ali. Durante aquele tempo percebi o sentido da vida e
da morte como parte de um único processo. O amor materializava-
se em palavras, abraços de consolo, e adoçava pacientemente
aqueles dias.
Sentia um vazio enorme, como retrata Mia Couto (2003, p. 15), [...]
“A Cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausência
permanência de quem morreu”, fartava-me de saudade daquelas
palavras que me abençoavam. Ao mesmo tempo, buscava
subverter a dor nas nascentes da minha pesquisa. E a cada dia
encontrava na literatura meu bálsamo e nela seu poder
transformador. A poesia trouxe novamente o sentido da vida. O
sabor brincante das palavras poéticas trouxe novos sentidos e a
renovação para aqueles/naqueles momentos tão amargos. A poesia
alimenta, cura e alivia as dores do mundo. Encontrei na potência,
na força da arte, minha força para aceitar o vazio daquilo que não
podia compreender. E aceitei as peraltagens da poesia de Manoel
de Barros (1999) que enche os vazios com seus despropósitos.
Então, pensei: por que não falar da cura pela palavra, com a
palavra, uma vez que a linguagem poética, compõe parte de meu
trabalho de pesquisa no Curso de Doutorado, mais
especificamente, os poemas de Manoel de Barros musicados por
Márcio De Camilo[1], fase em que estou na escrita da minha
tese[2]?

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Movida pela minha experiência e provocada pela temática “O


grotesco dos nossos tempos: vozes, ambiente e horizontes”, do VIII
Círculo - Rodas Bakhtinianas 2021, compartilho com o coletivo
minha experiência de cura pela linguagem que nos atravessa, da
linguagem como doação, da linguagem que subverte os tempos tão
difíceis e, sobretudo, da linguagem poética. O tema convida a
pensar os sentidos do grotesco, a carnavalização e o riso como
possibilidades de pensar a vida como resistência, como resposta a
muitas questões. Aceitei a convocação de encontrar minha palavra
com a do outro. Assim, trago a linguagem poética como ato de
resistência, que me fez emergir da minha dor singular, fez-me
respirar de novo e devolveu-me o sentido da vida. Nessa
perspectiva, trago para o VIII Círculo - Rodas Bakhtinianas 2021 um
pequeno recorte da minha pesquisa de doutorado, em que
apresento alguns elementos da carnavalização no Espetáculo Cênico
Musical Crianceiras poesias de Manoel de Barros.

A carnavalização e o riso no espetáculo Cênico Musical


Crianceiras[3]
O tempo brinca e ri
(BAKHTIN, 2002)

Para circular nesse encontro, trouxe as cores de um pequeno


retalho do Projeto Crianceiras, uma vez que ele compõe essa colcha
dos tecidos da minha pesquisa. Assim, nesse prisma selecionado,
destaco o Espetáculo Cênico Musical Crianceiras, que encanta o
público com o enredo inquietante, o brincar dos intérpretes e a
estranheza dos encontros verbais do poeta. Os poemas de Manoel
de Barros (1916-2014), musicados por Márcio De Camillo[4], são os
pilares de toda magia e encantamento do Espetáculo Cênico Musical
Crianceiras.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 1 – Sequência Poema Se Achante

Fonte: Arquivo Crianceiras


A Coletânea Poética do Crianceiras valoriza o tempo histórico das
obras do poeta. Entre o corpus selecionado para compor o primeiro
trabalho do Crianceiras estão os livros de Manoel de Barros: Poemas
concebidos sem pecado (2010), Livro sobre nada (2002), O fazedor de
amanhecer (2017), Poemas rupestres (2004) e Cantigas por um
passarinho à toa (2009).
O Projeto Crianceiras dialoga sob a égide da infância em Manoel de
Barros (2010, p. 187) “livre e sem comparamentos”, com as
analogias, o vernáculo rupestre pantaneiro e a polissemia. Diante
disso, indagamos: que ligações e relações existem entre o mundo
grotesco na contemporaneidade e o mundo alegre do Espetáculo
Cênico Musical Crianceiras que ora investigo?
Neste texto apresento alguns elementos do gênero carnavalesco no
caleidoscópio da festa de renovação do Projeto, celebradas entre
camadas de cores, cortejo, e o riso. O riso presente diante da
natureza brincante do poeta, das insignificâncias da vida, e nas
inutilidades da poesia.
Tudo isso é levado para o palco sob a direção de Luiz André
Cherubini[5], que brinca com várias facetas da semiótica que
transcorrem ao longo das apresentações, como a música, o ritmo, a

1226
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

luz, as cores, na sombra que transpassa a tela e evoluem para


coreografias, tudo alinhado ao ritmo, ao movimento e à linguagem
poética que fazem a seguinte fusão: corpo, palavra e poesia como
uma “poética na incorporação”[6].
O Espetáculo Cênico Musical é uma poética corporal, uma fábrica de
sentidos e efeitos sob a luz da carnavalização, nos contrapontos da
força da palavra e da poesia que perpassam os 10 poemas
musicados que compõe a Coletânea Crianceiras Manoel de Barros. O
cenário vale-se de diversos elementos, num efeito de rotação de
movimentos elencados em diálogo com as iluminuras da artista
Martha Barros[7] projetados na tela.
Imagem 2 Sequência Poemas Bernardo e Sombra Boa

Fonte: Arquivo Crianceiras.


O espetáculo Cênico Musical é uma grande festa. As cenas
evoluem poeticamente, os artistas com sua alegria contagiam a
plateia em volta, que abraçam o poema.
Imagem 3 – Sequência Poema Sabastião

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Arquivo Crianceiras.

O espetáculo apresenta um universo de sentidos e significados, a


linguagem como acontecimento, doação, num processo sincrético,
um ambiente transformador, mágico, sagrado, criativo e inovador.
O músico Márcio De Camillo e os artistas divertem-se no palco,
jogam com alguns personagens da poesia barreana e os efeitos das
iluminuras da artista Martha Barros. O espetáculo acontece
num frisson de magia pela arte. Alguns personagens interagem
com a plateia, que respondem entusiasmadas ao convite. A
participação das crianças nesse movimento de vida na poesia é o
ponto culminante da apresentação.
“O teatro é uma combinação da voz de muitos artistas” (Cherubini, abr.
2020)[8]. Nesse evento, o palco é um grande lugar de diálogo, um
evento de vida, uma arena de poeticidade. No Espetáculo Cênico
Crianceiras, são aproximadamente 45 minutos de poemas
musicados, no movimento arquitetônico da arte, que se entrelaça
com a palavra outrem, que dançam com a polifonia dos sentidos
que se alteram. A palavra poética em destaque, transportada para
o palco na fusão dos efeitos, numa simbiose de elementos visuais,
o carnavalesco presente nos movimentos de todo o espetáculo.
A carnavalização aqui se assume numa acepção bem mais ampla
no sentido da riqueza dos elementos da vida e renovação que estão
presentes nas diversas festas populares. O Espetáculo Cênico é
como essa grande festa que se vive no encontro com a palavra
poética. Além disso, ressalto que, durante o espetáculo, a plateia
não é mera espectadora. Existe um ambiente de envolvimento

1228
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

polifônico e de interlocução. As crianças participam durante todo


o espetáculo, que perpassa toda uma arquitetônica, nessa “plateia
artista” cada criança entra no evento do existir, numa performance
atuante e singular. A arte traduzida/revelada enquanto travessia
para o voo da linguagem poética. A potência das palavras do poeta
Manoel de Barros (2017) se constituiu na minha vida, “Meu fazedor
de Amanhecer”.

Considerações inacabadas
A poesia salva, a arte salva! A experiência de vida-morte-
renascimento expressada neste texto por meio de minha
experiência singular, junta-se ao movimento de muitas outras
vozes nesse tempo pandêmico. O relato de minha experiência se
entrecruzou no pulsar da vida pessoal e acadêmica e, assim, este
texto se constituiu.
Tudo isso que é genérico adquire sentido e valor a partir do lugar
único do singular, do seu reconhecimento, na base do seu “não-
álibi no existir”.
“Não-álibi” significa “sem desculpas”, “sem escapatórias”, mas
também “impossibilidade de estar em outro lugar” em relação ao
lugar único e singular que ocupo no existir, existindo, vivendo.
(BAKHTIN, 2017)
Retomar minha pesquisa imersa na dor, no caos do luto, foi um
respirar que me trouxe de volta ao sentido da vida. Mergulhar na
poeticidade do Espetáculo Cênico do Crianceiras e nos poemas de
Manoel de Barros foi e continua sendo viver a palavra na vida e na
poesia, e a arte como ato de resistência, ato transformador.
Encontrei verdadeiramente na voz do poeta, nas canções de Márcio
De Camillo, nas iluminuras de Martha Barros, no Espetáculo Cênico
Musical (que envolve muitos artistas), nas imagens das crianças nos
espetáculos, na di/fusão do Projeto Poesia na prática e Projeto

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

escola Crianceiras, proposta educativa de Cibelle Rosa da


Transformadoria[9], em parceria com a Diverte cultural e no pulsar
de vida materializado no site Crianceiras, nutrido por Izabella
Maggi[10]. Na leveza da palavra poética, a celebração da vida, o
riso. Este, presente nas celebrações irreverentes e alegres da
resiliência.
Com todos eles, com suas diversas vozes poéticas, compreendi que
o riso pode ser libertador, que a poesia pode ser uma fonte
inesgotável de cura e que a arte humaniza o humano em nós.
Assim, apresentei um breve recorte da tese – este Espetáculo poético
e potente que nos atravessa –, com destaque para grande festa
vivenciada no teatro, no intuito de compartilhar minha dor
particular na pandemia, dando visibilidade à arte na sua potência
humanizadora e salvadora.
Enfim, finalizo meu texto destacando como o Menino do
Mato (BARROS, 2015) que a nossa visão seja um ato poético de
olhar – olhar para novos horizontes, deixar o vento revirar nossos
sentidos e alçar o voo da palavra para o renascimento.

Referências
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira.
5. ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução:
Valdemir Miotello, Carlos Alberto Faraco. 3. ed. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2017.
BARROS, M. Livro Sobre Nada. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
BARROS, M. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004.
BARROS, M. Cantigas para um passarinho à toa. Ilustrações de
Martha Barros. 8. ed. Rio de Janeiro: Galerinha Record, 2009.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BARROS, M. Poemas concebidos sem pecado. 2. ed. São Paulo: Leya,


2010.
BARROS, M. Menino do Mato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
BARROS, M. O fazedor de Amanhecer. Ilustrações de Ziraldo. São
Paulo: Moderna, 2017.
COUTO, M. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São
Paulo: Companhia das Letras. 2003.
FAGUNDES, I. Poética na Incorporação: Maria Bethânia, José Inácio
Vieira de Melo e o Ocidente na Encruzilhada de Éxu. São Paulo:
Penalux, 2016.

Notas
[1] Os dados apresentados aqui compõem a tese em andamento por
mim realizada pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da
Criança, orientado pelo Professor Dr. Fernando Azevedo, da
Universidade do Minho, em articulação no Brasil com o Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa
Catarina (PPGE/UFSC), em coorientação com a Professora Dra.
Eliane Debus.
[2] Minha pesquisa em andamento se intitula “O lugar da poesia na
infância: Crianceiras, uma ponte entre Manoel de Barros e o uso estético
da lingua(gem). Curso de Doutorado que realizo na Universidade
do Minho, Braga – Portugal.
[3] Este item constitui parte da análise da pesquisa em andamento
citada.
[4] Músico, compositor e instrumentista. É também produtor
artístico e cultural da Criatto Produções. Produziu o Projeto
Crianceiras, com o objetivo de promover a educação através da arte
(sujeito participante de minha pesquisa).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[5] Diretor Teatral do Espetáculo Cênico Crianceiras ♫ (sujeito


participante da minha pesquisa).
[6] “Poética na incorporação”, termo cunhado por Igor Fagundes
(2016), ator e professor de Filosofia Estética e Dança no
Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Usa esse termo em seu livro Poética na Incorporação e
explicita o conceito de arte na sua potência desnorteante
(FAGUNDES, 2016).
[7] Filha de Manoel de Barros. Artista plástica e ilustradora de
diversas obras do pai poeta.
[8] CHERUBINI. Entrevista, abr. 2020 (dado coletado para a tese).
[9] Arte-Educadora do Projeto Poesia na Prática (sujeito
participante da minha pesquisa).
[10] Produtora Cultural da Criatto Produções (sujeito/participante
da minha pesquisa).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO PENSADO ENQUANTO POLÍTICA DO


NOSSO TEMPO

Marcos Alberto Xavier Barros


Secretaria da Educação - CE
m.albertoxb@gmail.com

Pra começo de conversa


Pensar o contemporâneo pode ser sempre um exercício profícuo de
refletir sobre a vida. Quando pensamos o contemporâneo, estamos
fazendo um trabalho de, não saindo dele, olhá-lo pela ótica daquele
ou daquela que o coloca como objeto a ser analisado. Agamben
(2009) vai dizer algo parecido, quando comenta o ser
contemporâneo em termos de um distanciamento, para
compreendê-lo. Neste caso, difícil é o distanciamento daquilo que
se vive, ainda que, para a análise de seu tempo, o pesquisador ou a
pesquisadora vão ter de colocar-se numa distância crítica,
principalmente se envolve este contexto o político, em que se
afirmam, muitas vezes, paixões que avassalam o coração da
sociedade.
Nesse contexto, trato de pensar o contexto político enquanto modo
de refletir sobre as decisões em sociedade. A política, então, pode
ser vista, nesse enfoque, como “toda ação humana que produza
algum efeito sobre a organização, o funcionamento e os objetivos
de uma sociedade” (DALLARI, 1984, p. 11). E é, levando em
consideração essa tomada de decisões – em suas mais diversos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

matizes –, que, neste trabalho, procuro trazer considerações


teórico-analíticas sobre a perspectiva do grotesco na política
contemporânea, a partir da análise do horizonte social
contemporâneo: das investidas que levaram à queda da presidenta
Dilma Rousseff, em 2016, seguidas de uma nova organização da
estrutura política.
Tendo dito isso, trago, primeiramente, a noção de grotesco, tanto
em Wolfgang Kayser quanto em Mikhail Bakhtin. Em seguida, levo
em consideração uma crítica a cada um dos autores. Depois, incito
a que pensemos numa convergência para lidarmos com o horizonte
social da política brasileira contemporânea, no grotesco como
possibilidades de abertura para novos sentidos ante os tempos de
enfrentamento por afirmações democráticas.

No curso do diálogo: por um grotesco da vida cotidiana


Nesta minha fala dialogal, devo pontuar que vejo o grotesco como
um conceito em transição, não acabado. Isto porque, na própria
definição do termo, muitas são as investidas quanto à sua
caracterização, daí termos, na verdade, muitas contribuições para
o desenvolvimento do estudo do grotesco. Em meu entender, para
uma compreensão do termo, na nossa era, devemos evitar o
reducionismo, e, mesmo, a irredutibilidade.
Grotesco, grotesca são termos que remontam a fins do século XV e
que designavam uma pintura ornamental exuberante, quando das
escavações nas termas de Tito e, posteriormente, em outras regiões
da Itália. Wolgang Kayser analisa o fenômeno do grotesco peças
artes e pela literatura cânone, em que o autor envereda pela
definição em termos do “horroroso”, do “monstruoso”,
manifestação desenvolvida no seio do romantismo (KAYSER,
2003). Em uma crítica ao autor, poderíamos dizer que este, todavia,
“tende a naturalizar muitas particularidades do grotesco a fim de
conseguir uma fórmula que circunscreva todas as suas formas de
incidência” (SANTOS, 2009, p. 141).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O pensador russo Mikhail Bakhtin, por outro lado, vê no grotesco


a possibilidade para uma nova vida (BAKHTIN, 2013). É no corpo
que estão as principais fontes do grotesco. Aliás, temos, aqui, o
conceito de realismo grotesco, por meio do riso popular. O caráter
ambivalente do riso não é recuperado na obra de Kayser, de modo
que, na esteira do pensamento de Bakhtin (2013), a obra do
estudioso alemão serviria apenas de fundamento para o grotesco
moderno, não abarcando, assim, o realismo grotesco vivenciado em
fins da Idade Média e do Renascimento. Uma crítica à perspectiva
bakhtiniana seria a de que Mikhail Bakhtin está “convicto de sua
utopia de redenção das aflições da vida comum por meio do riso
do povo, [subordinando] o incômodo suscitado pelo grotesco à
festividade alegre de uma cultura popular que por vezes assume
em seus escritos as feições de uma Idade de Ouro” (SANTOS, 2009,
p. 141).
Levando em consideração essas duas limitações, podemos trazer
alguma luz para a questão. Primeiramente, Kayser (2003) acaba se
preocupando, é bem verdade, com o lado do horror do grotesco,
esquecendo esse caráter regenerador, ambivalente, que dá o riso.
Por sua vez, Bakhtin (2013) investe ‘todas as suas fichas’ na utopia
do riso carnavalesco, e o corpo grotesco, neste caso, tem um sentido
regenerador. Parece que, para Bakhtin, só há grotesco quando se
trata de uma época de apogeu, quando, sabemos, os sentidos não
permanecem os mesmos na História, daí por que o grotesco pode
muito bem trazer elementos do passado, incorporar elementos do
presente, projetando novos pensares de sua constituição.
Nesse sentido, penso o grotesco no contexto da vida
contemporânea política brasileira. Chamo este contexto
de horizonte social, seguindo Volóchinov (2017), as condições
espaço-tempo da política brasileira dos nossos tempos. Como tal,
este horizonte apresenta-se como uma realidade-em-formação
(BARROS, 2019), daí por que é um espaço aberto à contestação de
narrativas ditas oficiais. Um caso que gostaria de destacar, aqui, é

1235
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o espaço da charge política para ressignificar tais narrativas.


Exemplo disso é o corpo grotesco de personalidades públicas,
corpo aberto, para produzir novos significados.
Em minha visão, o grotesco existe na medida em que procura novos
significados a uma realidade já existente, realidade esta que pode
ser considerada “horrorosa”, para uns, mas que devolve um caráter
regenerador pelo riso, como pensava Bakhtin (2013). Não se trata,
também, de um riso simplesmente sarcástico pelo grotesco, mas
também, de mostrar um corpo aberto, bicorporal, sempre em
construção, cósmico (que leva em consideração vários elementos,
como fogo, terra, ar, misturando-se a montanhas, mares,
continentes, etc.).

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio.O que é o contemporâneo? e outros ensaios.
Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.
BARROS, Marcos Alberto Xavier. A cena política brasileira ao revés:
Análise Dialógica do Discurso carnavalizado em charges políticas
de Vitor Teixeira do contexto do impeachment de Dilma Rousseff
ao governo de Michel Temer. 2019. 236f. Tese (Doutorado
Acadêmico em Linguística Aplicada) – Centro de Humanidades,
Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada,
Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2019. Disponível em:
http://www.uece.br/posla/wp-
content/uploads/sites/53/2020/02/TESE_MARCOS-ALBERTO-
XAVIER-BARROS.pdf. Acesso em: 04 set. 2021.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. São Paulo:
Abril Cultural: Brasiliense, 1984.

1236
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na


literatura. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2003.
SANTOS, Fabiano Rodrigo da Silva. Grotesco: um monstro de
muitas faces. In: ______. Lira dissonante: considerações sobre
aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e
Souza [on-line]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2009. p. 135-271. Disponível em:
<http://books.scielo.org/id/m2ys3/05>. Acesso em: 18 jun. 2017.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova
Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco que grita e endoidece os tempos atuais

Miza Carvalho dos Santos


UFF
mizacarvalho@id.uff.br

1.
O senso comum diz que estamos vivendo um tempo grotesco, que
o presidente é grotesco e que tudo que está acontecendo nesse
contexto político, social, econômico no Brasil é grotesco. Não, o
presidente não é grotesco; não vamos cair no entendimento
superficial disso que Bakhtin compreende como uma concepção de
mundo. O grotesco dito pelo senso comum está sendo visto
somente por um de seus pólos. E se assim vemos o momento atual
brasileiro podemos dizer que estamos vivendo o terror. O terror
que estamos vivendo se manifesta devido à ausência de mudança,
uma vez que estamos passando por um momento em que só
vivenciamos o polo negativo das coisas, como se não fôssemos
capazes de enxergar também os germes revolucionários de
transformação. O momento atual é grave sim, gravíssimo, mas o
que o Círculo de Conversas Bakhtinianas nos propõe é: alargarmos
a nossa visão para assim conseguirmos um olhar de águia que
abarque ao mesmo tempo a tragédia e o riso de um momento atual
em que haja centelha de mudança. Trata-se de uma coexistência do
sério e do riso, daquilo que se mantém e o que inaugura.
Atualmente há muita gente querendo manter a pior face
conservadora da nossa sociedade e apontá-la como modelo único,
mas há também forças apontando caminhos múltiplos, apontando

1238
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

a sociedade plurilógica que somos, com caminhos abertos e


múltiplos.
Não encontraremos o grotesco no lugar comum, o mais provável é
encontrarmos o grotesco nas praças públicas ou em qualquer lugar
onde o oficial tropeça em uma brecha e abre-se uma oportunidade
para viver forças revolucionárias que tencionam as forças
moralizadoras. Não estou dizendo isto sozinha, trago aqui as
palavras do Grupo Atos[1] que ouviu Marisol, que ouviu Bakhtin,
que ouviu Rabelais, que ouviu o povo na praça pública, nas feiras!

2.
Já se perguntaram por que excluem o riso como uma forma de
pensar o mundo? É possível restituirmos o aspecto cômico como
oficial? Derreter essa cristalização de uma visão de mundo
unicamente séria?

É possível a gargalhada sepultar os fundamentos do fascismo


atual?

3.
Ao vivenciar as manifestações populares, comecei a observar uma
situação que me chamava muito a atenção: uma folia de reis estava
a devotar santos, faziam seu cortejo com ladainhas e, na mesma
hora e lugar, a garrafa de cachaça rolava solta. Isto sempre me
intrigou e eu perguntava como isso era possível. Juntinho no
mesmo lugar: o santo e a cachaça. Não tinha quem me respondesse
os motivos dessa ambivalência.
Só muito tempo depois Bakhtin e seu livro A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais me
responderam tal inquietação. Sim, estas festas guardam resquícios
concretos dessa visão de mundo sem separatividade e nos convida

1239
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

a compreender o grotesco como visão de mundo que não quer


divertir, mas revolucionar. Bakhtin chegou nessa compreensão ao
estudar e fazer a poética histórica de Rabelais. Tal visão me prepara
para ler o mundo de uma forma mais ampla, aberta, contraditória,
inacabada. Este texto pode ser compreendido como um texto que
prepara o olhar, a escuta para o mundo em outras bases. Ao me
colocar na posição de ler uma cultura quero acessá-la na sua
totalidade, imbuída da concepção grotesca do mundo.

4.
A leitura do livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
O contexto de François Rabelais me fez começar a compreender que a
ambivalência não está só na praça pública, nas festas populares,
apesar de estes serem os lugares mais certos onde encontraremos o
grotesco. Mas o exercício é conseguir encontrar o grotesco em
outros tempos e espaços da cultura: em um desenho de criança, em
uma atividade prática de leitura e escritura com crianças, em uma
cena de um filme, em uma poesia, peça teatral, ou em uma simples
conversa cotidiana. Compreender o grotesco como uma concepção
de mundo onde no mesmo lugar da crítica encontra-se a faísca
revolucionária é, para nós do Grupo Atos, um compromisso não só
teórico e epistemológico, mas também político, feito na linguagem,
nas diversas dimensões da cultura.

5.
Quando observo o povo indígena ou as populações quilombolas
consigo ver o quanto eles lutam para tentar impedir a destruição
de suas matas, de seus lugares sagrados. A destruição da mata é a
destruição do seu próprio corpo. Ouço os Ticunas contarem sobre
suas árvores, vejo os desenhos que fazem de suas matas e floresta
e, de repente, encontro uma faísca revolucionária: eles têm os donos
das árvores, seres que guardam em si essa dimensão de corpo
grotesco.

1240
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(Imagem do livro: O livro das Árvores – Ticuna)

Quando vejo essa imagem do Mapinguari, esse bicho todo peludo,


com unhas afiadas, dentes pontudos e uma boca na barriga, sou
levada para dentro deste universo dos seres encantados, onde o
corpo por vezes pode parecer terrível, mas aos poucos passamos a
compreender que é um corpo no grande tempo dos corpos
cósmicos, fazendo-nos lembrar o quanto nossos próprios corpos
são abertos. Estas forças que estão vivas no Mapinguari, quando
trazidas pelos professores Ticunas, possibilitam-nos acessar a força
desses seres e, assim, passamos a, com eles, querer proteger as
árvores, proteger a nós mesmos se nos entendermos como corpo
amplo, natureza.
O Mapinguari ataca os caçadores abrindo sua segunda boca e
soltando um grito muito alto que faz a terra estremecer; quem ouve
esse som endoidece ou se perde na mata. Eu me avizinho ao
Mapinguari para acender em mim a força desse grito que vai

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

endoidecer todos os integrantes da bancada bala, bíblia e boiada,


nesse momento em que alguns governantes querem impor um
Marco Temporal que não reconhece as terras indígenas
demarcadas e homologadas depois da Constituição de 88. Esse
texto acorda todos os donos das árvores para que caminhemos em
marcha com gritos e gargalhadas em torno do planalto para dizer
não às arbitrariedades.
As imagens na cultura não estão no passado, o Mapinguari renova
sua existência no momento presente desta enunciação,
convocando, em qualquer um que o veja, essa força do grito (ou
quem sabe de uma gargalhada?!) que endoidece aqueles que lidam
com a vida de maneira exploratória, com fins lucrativos.
Mapinguari hoje está presente! Em vigília contra as forças
mortificadoras e sendo essa imagem que acorda nosso corpo
cósmico e aberto, pronto para a luta e para a festa na refundação de
um novo Brasil possível.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: O contexto de François Rabelais. Trad de Yara
Frateschi Vieira – São Paulo: Hucitec, 2013.
TICUNA. O livro das árvores. Organização Jussara Glauber.
Benjamim Constant: Organização Geral: Professores Ticuna
Bilíngues, 1997. 96p.

Notas:
[1] Grupo de Estudos e Pesquisa Bakhtinianas da UFF

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco que habita nos olhares

Ana Carolina Loureiro Tavares


Universidade do Estado do Pará
ana.tavares@aluno.uepa.br

Muito ponderei antes de escrever este texto. Receio de, em meio a


tantos absurdos que enfrentamos como brasileiros no atual cenário
político, voltar a atenção para uma pauta pessoal. Mas se é para
falar do grotesco e todos as palavras de prefixo “des” que o
acompanham (destoante, desarmônico, desorganização), talvez
não seja tão pessoal assim. Então vamos ao meu relato.
Ao longo dos meus 30 anos, nunca fui aquela pessoa muito
interessada por esportes ou segui a risca uma alimentação
saudável. Poucas vezes me matriculei numa academia, por
exemplo. Tirando a fase do muay thai, lá pelos meus 19, 20. Isso,
junto com a genética do meu amado pai, fez com que eu nunca
coubesse muito bem nesses moldes impostos pela sociedade que
todos já conhecemos.
Por falar em academia, esse ambiente sempre me pareceu hostil
para os que não cabem nos tais moldes. Há pouco tempo, ganhei
num sorteio um mês grátis em uma. Como de graça, até injeção na
testa, fui lá. Fiz algumas aulas de dança, boxe e treino funcional.
Tudo muito bom, tudo muito bem. Até o dia em que resolvi entrar
na sala de musculação, afinal, de graça, até injeção na testa.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

No momento em que eu entrei, senti vários olhares em cima de


mim, como se eu fosse um extraterrestre, saído de uma gruta,
talvez. Eu claramente não fazia parte daquele ambiente. “Ah,
Carol, será que não estavas sendo paranoica?”, vocês podem
pensar. Pergunta para qualquer outra pessoa gorda, ela vai te dizer.
Aí veio o questionamento: será que eu realmente nunca me
importei com atividades físicas, ou inventei isso,
inconscientemente, como um mecanismo de defesa, pelo fato de
não me encaixar muito no perfil atlético? Sabe, na verdade, na
época da escola, eu gostava de handebol, de futebol também. Será
que a minha rejeição por ambientes onde acontecem atividades
físicas não é proveniente desses olhares de estranheza em cima do
corpo gordo?
Fui perguntar para um amigo, educador físico, o que ele achava a
respeito. Ele me contou que já ouviu meu relato através de várias
outras vozes. Que isso é recorrente e que, em algum momento, já
lhe desmotivou em relação a profissão (hoje ele segue a pesquisa
no campo da biotecnologia).
Ah, e as lojas de roupa? Quando você é gordo e entra num
provador com algumas peças, com certeza já passou pela situação
de a vendedora perguntar “e aí, deu?”. Poucas vezes lembro de ter
ouvido “e aí, gostou?” ou “que tal, essa cor (ou essa estampa) te
agradou?”. Não, para o gordo, com sorte, uma peça vai caber.
Gordo não pode exigir esse negócio de cor, de estampa. Entrou? O
botão fechou? Se dê por satisfeito.
Só que além de gorda, sempre fui respondona. Por que as pessoas
vivem oferecendo receitas de chá, de dietas mágicas, QUE EU NÃO
PEDI? Tia, alguma vez já te sugeri uma cirurgia plástica no seu
rosto? E vontade não me faltou hein. E na vez que mandaram eu
“me cuidar para não perder o marido”? Respondi que ele é que tem
que cuidar para não me perder. Meu marido deve ter o mesmo IMC
que eu e nunca vi ninguém questioná-lo sobre isso – mas isso é
pano para outra longa manga, de importância equivalente.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Mas em 2020, com a pandemia, esta mente ansiosa ficou mais


ansiosa ainda. Comprei uma bicicleta. “Resolveu tentar emagrecer,
Carol?”. Essa gente não sabe, mas o vento no rosto e a sensação de
liberdade (para uma mãe de um menino de 5 anos, que às vezes
mal consegue ir ao banheiro sozinha) de uma boa pedalada,
também compensam muito.
Agora é yoga. “Está tentando mesmo emagrecer, né, Carol?”. Yoga
é maravilhoso, minhas dores nas costas sumiram. Continuo sendo
estressada, yoga não é mágica, mas melhoro um pouco a cada dia.
Auto estima não é sobre se sentir bonito, sabia? É sobre acreditar
que o TCC vai sair, também sobre ter certeza nas tomadas das
próprias decisões, e mais um monte de coisa.
Então hoje eu pedalo, pratico yoga, e mesmo assim, meu corpo
ainda é assunto para algumas tias, e eu as evito quanto posso. Tento
acreditar que não é por maldade, mas poxa, precisamos mesmo
falar sobre o meu corpo toda vez que nos encontramos? Sabe, a
gente pode falar sobre o tempo, sobre o cenário econômico. Se
terminar o assunto, a gente conversa sobre a novela. Também
conheço várias séries. Vamos esquecer meu corpo um pouquinho.
Essa conversa de preocupação com a saúde não está mais
funcionando. Nunca foi realmente pela saúde. O corpo gordo
incomoda. Incomoda na academia, incomoda na praia, incomoda
na TV. A gente nem nota. Eu mesma já reproduzi esse discurso de
preocupação com a saúde quantas vezes?
Quando você me pergunta se eu estou tentando emagrecer só por
que me viu pedalando, mesmo sem eu nunca ter mencionado
preocupação em emagrecer contigo, estás tentando cortar as
minhas bordas para eu caber nos teus moldes. Tia, esses moldes são
seus! Quando eu pedalo, visto um biquíni ou me interesso por
yoga, só por querer pedalar, vestir um biquíni e aprender sobre
yoga, não estou romantizando a obesidade, nem sendo subversiva.
É só eu vivendo, despertando e experimentando.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ainda sobre o que conflita com o normal, tenho mais uma para
contar. Trabalhei por três anos numa empresa com mais de trinta
funcionários, sendo 60% mulheres e de todas, eu era a única com
cabelos cacheados. Diariamente, me solicitavam que eu “ajeitasse”
minha juba. Adivinha quem mais uma vez aparou suas arestas para
caber nos moldes alheios?
Formol neles. Agora eu completava o time de lisinhas no meu
uniforme azul marinho e scarpins nude que sufocavam
diariamente meus pezinhos nº 37 no Icoaraci – Ver-o-peso. O chefe
gostava assim. Vejam bem, não há problema algum em alisar o
cabelo. Ou cachear, colorir, descolorir. Desde que você faça para se
sentir bem; não para se sentir parte.
Entrei para o clube do corte de cabelo em casa nas primeiras
semanas de pandemia, decidi embarcar na transição capilar e
eliminar de vez tudo que ainda era alisado. Nunca tinha
experimentado um cabelo acima do ombro. Quiçá das orelhas.
“Joãozinho”. “Teu marido deixou?”. Disforme total. “Mas porque
ela faria isso?”. Aí eu pergunto, estariam o feio e o belo no objeto
(no caso eu de cabelo curto) ou no sujeito observador?
Já que algumas amigas se inspiraram na minha decisão, assim
como eu me inspirei anteriormente em outras mulheres, digo que
está nos olhos de quem vê. Entendo assim, que mesmo o grotesco,
e talvez especialmente ele, é capaz de inspirar, através do mostrar
que fugir do convencional pode ser um caminho libertador.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco que liberta : vozes da educação infantil

Flávia Nunes de Moraes


Prefeitura do Município de Piracicaba
flavianunesmoraes@gmail.com

INTRODUÇÃO
O objetivo deste texto é apresentar a reflexão a partir da narrativa
de uma professora de educação infantil no contexto do mundo da
vida com as crianças pequenas. Apresenta a voz das crianças
pequenas desconstruindo uma formatação do espaço/tempo da
escola. O movimento dialógico, proposto no GRUBAKH- grupo de
estudos Bakhtinianos, vinculado ao grupo de estudos e pesquisas
em Educação Continuada (GEPEC) da Faculdade de Educação da
Unicamp, instigou a escrita de uma metanarrativa ampliando
perspectivas de compreensão do acontecimento narrado.

A NARRATIVA (AGOSTO 2021)


Desde que retornei para o chão da escola tenho experimentado uma
explosão de sentimentos. Registro tudo, mas, na maioria das vezes,
são escritas fragmentadas e ainda não consigo compartilhar. O que
sei é que a escrita está sendo uma importante companheira de
trabalho. Quando revejo esses fragmentos em momentos diferentes
posso pensar sobre eles de forma, também, diferente, produzindo
conhecimentos. Busco, com intensidade, aflorar meu olhar não
indiferente a tudo que tenho vivido e isso tem sido encantador.
Agora, posso visualizar a Flávia supervisora organizando as

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

formações na secretaria, envolvida na escrita de ofícios e


formulários com outros olhos. A vida na escola permite com que
eu revisite esse lugar com uma posição axiológica diferente de
quando estava envolvida naquele movimento.
Todos os dias vivencio situações que me convidam a refletir sobre
o meu papel com as crianças pequenas e cada minucia, cada detalhe
vai me constituindo e alterando conhecimentos, não sou mais
aquela professora que iniciou em 2002. Estou aprendendo a ser
professora de jardim I com as crianças, ressignificando diariamente
minhas crenças a partir deste cotidiano, dessa renovação diária da
vida. Nada é repetido.
Agora, apresento um dos fragmentos que me fez refletir muito e
mobilizou a necessidade de compartilhar e ampliar possibilidades
de compreensão.
Estávamos, eu e algumas crianças, organizando um espaço para a
realização de uma experiencia de artes, a proposta era que as
crianças escolhessem os materiais para a confecção de algo para
ficar exposto na sala e renovar o ambiente. Organizei a exposição
de diferentes materiais como tesoura, cola, papeis diferentes,
caixinhas de embalagens, lã, lantejoulas, pedrinhas, barbantes,
areia, folhas e outras possibilidades artísticas.
As crianças ficaram alvoroçadas na escolha dos materiais e eu ali
fazendo algumas intervenções para garantir a segurança de todas
na euforia. Ana selecionou os materiais que queria usar e saiu com
as mãozinhas cheias para sua mesinha longe dos amigos, conforme
orientação para distanciamento, impossível. Saiu afoita e apressada
e tropeçou, derrubando alguns materiais no chão. Demonstrando
indignada com a situação, verbaliza, pausadamente, em alto e bom
som, um palavrão. Neste momento, a atmosfera da sala se altera
completamente, as outras crianças silenciaram e olharam para ver
qual seria minha reação. A tensão tomou conta do ambiente. Ana,
assustada, visivelmente chocada, deu-se conta de que falou algo
que não deveria, rapidamente acrescentou: ‘Desculpa, eu sei que

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

não é pra falar isso aqui’. Não abri minha boca, mudei de assunto e
continuamos o que estávamos fazendo. Sinceramente, achei toda
situação engraçada e curiosa, mas não demonstrei, não demonstrei
nada na verdade. Mudei o foco, já falei sobre outra coisa e
continuamos resgatando a ‘normalidade’.
Fiquei pensando nisso por um bom tempo e no final do dia, já
sozinha, registrei para refletir sobre as coisas que estavam
passando pela minha cabeça.
Foi interessante observar como as crianças censuraram a situação e
como elas reagem em diferentes espaços que habitam, regulando
as ações a partir das ‘regras’ que conhecem; os olhares esperando
minha reação com algo que interrompeu uma certa normalidade
nas relações ali; a auto censura imediata da Ana, afirmando que
aquele espaço não permite essa fala, mas parece que estava me
dizendo que há espaço em que é permitida.
Nos meus pensamentos, ainda sem condições de me aprofundar,
veio a ideia do grotesco que, talvez, desconstrói uma linearidade
formatada, que causa espanto e muda a ordem das coisas. A vida
na sua inteireza.

O GROTESCO EM MOVIMENTO:
A posição renovada e mobilizada a partir dos excedentes de visão
compartilhados por sujeitos não indiferentes, nos encontros do
GRUBAKH – Grupo de estudos bakhtiniano, GEPEC, Grupo de
Estudos e Pesquisas em Educação Continuada, Faculdade de
Educação, Unicamp –ampliou as possibilidades para reflexão da
narrativa produzida. Imersa em um tempo e um espaço diferente
do vivido torna-se nítido agora que o confronto entre professora
dos procedimentos burocráticos e do planejamento previsto está
pulsando, a todo instante, neste encontro com a vida do existir
evento ‘[...] dois mundos se confrontam, dois mundos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

absolutamente incomunicáveis e mutuamente impenetráveis:


mundo da cultura e o mundo da vida’ (BAKHTIN, 2017 p.43).
O cotidiano da escola se apresenta como novidade, nada é repetido
e é por este motivo que não pode ser antecipado, somente eu posso
viver da forma que vivo e ver o que vejo, sentindo o que sinto,
partindo do princípio de que:
O eu para mim constituo o centro da origem do ato e da atividade
de afirmação e de reconhecimento de cada valor, já que este é o
ponto singular no qual responsavelmente participo no existir
singular. [...] A minha comprovada participação no existir é não
somente passiva (o prazer da existência), mas sobretudo ativa (o
dever de ocupar efetivamente o meu lugar único) (BAKHTIN,
2017, p. 123).
Dialogando com a filosofia bakhtiniana, a posição do riso na
resposta à criança Ana, que mesmo contido, provocou a
desestabilização, a leveza e a sensação de liberdade em mim, na
certeza de que o outro libera o eu da sua prisão isolacionista
(MIOTELLO, 2018), abrindo as portas para um movimento que se
estabelece com a potencialidade e a riqueza da presença do outro,
o outro em mim e eu no outro.
O riso deve desmistificar, denunciar a sociedade sisuda, autoritária,
monofônica e domesticadora. O riso faz uma tradução na língua do
baixo material, do grupo não oficial de quem se manifesta em seu
corpo e falas grotescos, os modos de ser e de viver do grupo que se
defronta e se confronta com a ideologia oficial (MIOTELLO, 2018,
p.33).
Ana me mostrou, enunciou sua palavra, apresentou também sua
vida fora daquele espaço, quando pede desculpa pelo seu ato,
desconstruiu os gêneros verbais compartilhados neste espaço da
linguagem oficial e nos presenteou com uma atmosfera
desconcertante. Todos ali pensaram sobre isso, mesmo que nada
tenha sido verbalizado. Isso é grotesco.
O grotesco aparece na escola para mostrar que existe vida e
humanidade e que a linguagem vai muito além dos formatos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

impostos pelos adultos, que, muitas vezes, se apresentam como o


lugar da razão, do oficial, de uma ideologia universal, como
superior a vida social das crianças fora deste espaço.
O grotesco me deu a chance de pensar sobre meus atos, a liberar o
censor moral de que a professora deveria chamar a atenção, o que
poderia ter sido feito se não estivesse inteira para a vida e estivesse,
apenas, repleta de teoricismo.
Silenciar pode ter sido o ato responsável daquele encontro.

REFERÊNCIAS
MIOTELLO, Valdemir. Falando do riso...rindo da fala. In
SERODIO, Liana et al. Narrativas, corpos e risos anunciando uma
ciência outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018, p 31-36 ISBN
978- 85-7993-585-5
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo:
Martins FonteS, 2000. 413 p. Traduções de Maria Ermantina Galvão
G. Pereira.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São
Carlos. SP: Pedro & João editores, 2010.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco rito do adeus no cronotopo pandêmico da Covid-19: a


ressignificação de práticas sociais

Vivian Pinto Riolo


Universidade Federal de Minas Gerais
vivianpriolo@yahoo.com.br

Em memória do professor Dr. Vanildo Stieg e de todas as vítimas da Covid


-19.

Considerações iniciais

A pandemia resultante da transmissividade do novo coronavírus


(SARS-CoV-2), popularizado como Covid-19, trouxe mudanças
substanciais às práticas sociodiscursivas das diversas culturas. Tais
transformações, de ordem profissional, familiar, educacional, entre
outras, foram marcadas por narrativas que circundaram os espaços
midiáticos refletindo como as diversas culturas precisaram lidar
com as consequências do momento histórico em suas
comunidades. Dentre tais práticas, destacamos a questão o
momento do adeus como um rito de passagem profundamente
marcado por alterações de ordem social e psicológica.
Conforme estudo desenvolvido no ramo da Psicologia no período
da pandemia, os ritos pertencem a uma categoria ampla de
cerimônias de passagem, como práticas estruturantes das
diferentes culturas das quais derivam os rituais que se configuram
como gestos e ações que compõem o rito. Tratam-se de ações

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

simbólicas valorizadas em sociedades pelo teor emotivo derivado


das crenças em que estão sustentados. Assim, os ritos fúnebres
envolvem uma série de ações que permitem a compreensão
processual da transição entre vida e morte que nem sempre ocorre
no momento da morte física do ente querido (OLIVEIRA-
CARDOSO et al, 2020, p. 2).
Em 2020, a imagem do jovem palestino Jihad Al-Suwaiti
acompanhando o tratamento de Covid-19 de sua mãe, Rasmiye Al-
Suwaiti, pela janela de um hospital na Cisjordânia viralizou em
diversos sites e diversas redes sociais. A atitude do filho comoveu
os internautas por todo seu esforço para escalar as paredes do
hospital, a fim de simplesmente olhar para a mãe que também tinha
comorbidades que agravavam sua situação. Não obstante ao
quadro clínico desfavorável, o rapaz teve uma oportunidade para
entrar no quarto da unidade de tratamento intensivo para
despedir-se da matriarca, mas, após algum tempo, Rasmiye Al-
Suwaiti não resistiu e veio a óbito. O corpo da idosa foi retirado
ilegalmente do hospital por familiares para que fosse possível
realizar uma despedida, o que gerou grande repercussão.
É fato que a cerimônia fúnebre é um momento ímpar e de tradição
cultural, mas em função das regras sanitárias para falecimentos em
decorrência da Covid-19, inúmeras pessoas foram impedidas de
experienciar os rituais de adeus, intensificando o luto dos entes
queridos. Grande parte dos familiares e amigos enlutados teve que
lidar com a despedida tendo como registro apenas as últimas
palavras que disseram às vítimas do vírus ou que delas ouviram.
Algumas, inclusive, urgiam da contrapalavra, mas não tiveram tal
chance.
A prática social da cerimônia de despedida e passagem foi negada
a diversas famílias pela supressão dos rituais fúnebres. A palavra
de despedida e o acolhimento por meio da amorosidade entre os
sujeitos foi substituída pelas condolências no cronotopo da esfera
digital. De certo modo, essa substituição cronotópica apaziguou a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ausência dos ritos, presentificou o momento dos pêsames e das


homenagens, e eternizou lembranças que podem ser acessadas,
igualmente, de qualquer outro espaço e tempo.
Por significar o encerramento do ciclo de vida, o rito de passagem,
na cultura brasileira, costuma ser um momento extremamente
afetivo. É comum as pessoas se abraçarem como forma de prestar
condolências que nem sempre acompanham palavras oralizadas.
Alguns, inclusive tocam na pessoa falecida, oferecem flores que
acompanham a urna funerária. Mas todo esse processo foi
interrompido e, em muitos casos, os familiares e amigos foram
privados até mesmo de realizar um cortejo e, quando podiam fazê-
lo, o ritual só podia ser realizado com a urna trancada.
A morte, para muitos, é considerada como um fim em si mesmo de
um corpo biológico que se desfaz em sua história. Mas ela também
é culturalmente entendida como um processo de renovação. O
próprio rito fúnebre remete a essa noção, visto que após a morte de
um sujeito, um novo ciclo se inicia para os que lhe eram próximos.
Sendo assim, a morte é igualmente um período de renovação.

1. Memorial inumeráveis: da tradição dos ritos à renovação das


práticas sociais
Na obra A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento (1987
[1965]), Bakhtin tenta explicitar a formação da ideologia não oficial
de uma cultura popular na relação com a cultura oficial, já
institucionalizada, analisando o sistema de imagens da cultura
cômica popular medieval. Na obra, a linguagem popular com suas
valorações axiológicas presentes na comunicação ordinária são
tomadas como a linguagem da praça pública, na qual a noção de
grotesco se insere, visto que entre enunciados elogiosos, surgem
injúrias e xingamentos ou o inverso, orientados pelo tom emotivo
da avaliação que se estabelece na interação (PONZIO, 2013, p. 125).
É na lógica particular do realismo grotesco analisada por Bakhtin

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que a orientação para baixo do corpo se insere, isto é, o


rebaixamento.
Desse princípio de orientação espacial do discurso que o filósofo
vai discorrer sobre a duplicidade de tons que a linguagem
reverbera na praça pública, quando são mencionadas as partes do
baixo corpóreo grotesco bem como relações de rebaixamento como
morte, xingamentos, injúrias, com seus equivalentes “para cima”,
tais como vida, elogios e louvações, respectivamente. Para Bakhtin,
contudo,
Esses rebaixamentos não têm um caráter relativo ou de moral
abstrata, são pelo contrário topográfico, concretos e perceptíveis;
tendem a um centro incondicional e positivo, para o princípio da
terra e do corpo que absorvem e dão à luz. Tudo o que está acabado,
quase eterno, limitado e arcaico precipita-se para o “baixo” terrestre
e corporal, para aí morrer e renascer (BAKHTIN. 1987 [1965], p.
325).
Com base nessa importante discussão proposta por Bakhtin, nos
valemos das relações por ele estabelecidas para discutir como a
morte na sociedade cronotópica da pandemia da Covid-19, no
Brasil, alterou práticas discursivas dos ritos fúnebres em função da
dificuldade de poder estar presencialmente nas cerimônias de
despedida de seus entes queridos. Diante da impossibilidade de
muitos em vivenciar os ritos fúnebres, foi preciso ressignificá-lo, o
que fez com que surgisse uma prática de escrita colaborativa na
internet, a fim de que os familiares pudessem prestar suas
homenagens e pessoas íntimas ou conhecidas da vítima pudessem
prestar suas condolências, como forma de amenizar o luto.
Para isso, ilustramos nossos apontamentos a partir do Memorial
Inumeráveis (2020), projeto proposto pelo artista Edson Pavoni,
cujo propósito é registrar a história das vítimas do novo
coronavírus. Tal iniciativa se estabelece em um espaço colaborativo
entre familiares e amigos das vítimas com jornalistas e escritores
voluntários que se cadastram no site do projeto para organizar as

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

breves narrativas que contam a história das vidas que foram


ceifadas durante a pandemia, extraindo das marcas estatísticas
veiculadas em jornais seres humanos, com nomes, famílias e
histórias.
A página principal que leva o nome do projeto e registra o número
e o nome das vítimas como um repositório dos dados também pode
ser retroalimentada pelas narrativas estabelecidas nos perfis do
projeto em suas redes sociais. Por seu atributo interativo, os sites de
redes sociais permitem perceber com mais clareza não apenas o
vigor que há na iniciativa, mas uma prática discursiva que derivou
do momento histórico em que estamos inseridos. A sociedade atual
é envolvida por práticas tecnolinguageiras, dentre as quais o
memorial se insere. Os sites de redes sociais, por sua vez, tornaram-
se o espaço das condolências do rito fúnebre que, no espaço
presencial, é costumeiramente regado de afeto e amorosidade e
discursos elogiosos. As palavras emotivas de carga positiva são
evidenciadas em voz alta com homenagens feitas com rosas e
coroas de flores, enquanto as ressentidas são apenas guardadas ou
expressas entre os mais íntimos.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1: Tecnointerações no Facebook

Fonte: https://www.instagram.com/p/CTUz9HkHCM9/

Na esfera digital, contudo, é possível perceber que a prática se


assemelha, mas a proporção é alargada. A homenagem com flores
se mantém por meio de caracteres especiais como os emojis ou
imagens que são colocadas nos comentários, o espaço da
tecnointeração. A força desses tecnossignos derivados de um
tecnografismo tal qual nomeia Paveau (2017, p. 319) demonstra um
movimento dialógico e alteritário que se estabelece em rede, ainda
que muitos dos que interagem sequer conheçam a vítima, mas que
pela empatia ou por sua falta, diante das curtas narrativas, reagem
em um ato responsável (BAKHTIN, 2010 [1920-1924]). Tais
comentários podem tanto ser escritos quanto editados a qualquer

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tempo e podem ser editados de qualquer lugar, dado o


funcionamento tecnodiscursivo de sua inscrição.
Para além do louvor à vida que está sendo homenageada, há
também a injúria, mas estas ocorrem em menor proporção, dada a
visibilidade que os comentários possuem. De um modo geral, não
vemos com constância insultos e ofensas. Elas estão pouco
presentes e, quando surgem (figura 1), ou estão ligadas a questões
políticas (gripezinha) ou ao mérito da divulgação desse tipo de
morte em detrimento de outras que ocorreram no país (hipocrisia).
Notamos apenas algumas ocorrências nos comentários mais
relevantes da publicação fixada na página do Facebook que esclarece
o objetivo do memorial.
Por ser um espaço reservado às histórias de vida finalizadas por
um vírus e pela precariedade do serviço público, há um tom
emotivo-volitivo de protesto nos enunciados ali construídos. Os
próprios administradores das páginas nas redes sociais já replicam
a história enviada ao memorial com as hashtags #inumeráveis,
#nãoéumnúmero, #nãovamosesquecer, como marcadores que têm
potencial argumentativo, afetivo, documental e de rastreabilidade
do discurso, pois além de demonstrarem termos de engajamento
na causa, tais tecnopalavras permitem o registro e a busca desse fio
discursivo na esfera digital (PAVEAU, 2017, p. 203 - 204).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 2: Tecnointerações no Instagram

Fonte: https://www.instagram.com/p/CTUz9HkHCM9/
Ao visitarmos as páginas do projeto no Instagram e Facebook,
podemos ver de maneira pontual a prática do rito de adeus sendo
transposta para a esfera digital. No tocante ao costume de enviar
flores, a adesão a esse movimento parece ser mais evidente no
Instagram (figura 2), enquanto no Facebook (figura 1), há maior
interatividade com relação a palavras de apreço e tecnoreações com
os emojis de lágrimas, de raiva e de força. Em ambas as redes, os
corações como sinônimo de curtida e empatia são visíveis.
Entre as várias publicações que ressaltam a validade do Memorial
Inumeráveis e de sua abertura nas páginas das redes sociais, nossa
hipótese se confirma: a prática do rito fúnebre no ambiente digital
tornou-se um meio de ressignificar a morte e o momento do luto
para muitos que não puderam fazê-lo presencialmente. A
possibilidade de eternizar a história dos entes queridos em um
memorial e de expressar os afetos nos comentários das redes
sociais, de certo modo, já tem o embrião do processo de luto.
Embora a prática da verbalização escrita ou oral possa ser realizada

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

em quaisquer outros gêneros do discurso que permitam a


expressão das subjetividades, todo esse movimento potencializado
pela escrita colaborativa e interativa demonstra não apenas as
práticas discursivas atualizadas, mas mostra o lugar dessas práticas
na história das culturas.
.
Referências
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais [1965]. Trad. Yara Frateschi Vieira.
São Paulo: Hucitec; [Brasília] Editora da Universidade de Brasília,
1987.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1920-1924]. Trad.
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Acesso em 25 ago 2021.
OLIVEIRA-CARDOOSO E.A., SILVA B.C.A., SANTOS J.H.,
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28:e3361. Disponível em:
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g=pt#. Acesso em 25 ago 2021.
PALESTINO rouba corpo da mãe de hospital para enterrá-la “da
forma que ela pediu”. Portal G1 [editorial Mundo], 13 out 2020.
Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/10/13/palestino-pega-
corpo-da-mae-de-hospital-para-enterra-lo-da-forma-que-ela-
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1260
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

PAVEAU, M. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des


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PAVONI, E. et al. Inumeráveis: Memorial dedicado à história de
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PONZIO, A. No Círculo com Mikhail Bakhtin. São Carlos. Pedro &
João Editores, 2013.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O HORIZONTE APRECIATIVO DE “PORRA” NA


FAMIGERADA REUNIAO MINISTERIAL DO BOLSONARO

VICENTE DE PAULA DA SILVA MARTINS


UNIVERSIDADE ESTADUAL VALE DO ACARAÚ - UVA
vicente.martins@uol.com.br

A presente fala situa-se no âmbito da Arena dialógica III: “O


grotesco dos nossos tempos: horizontes”. Tentei, inicialmente,
desvelar o que poderia ser horizonte em tempos grotescos e minha
busca me levou à releitura de Marxismo e filosofia da
linguagem (2009), de Mikhail Bakhtin e à análise da necropolítica
brasileira em tempos de pandemia. Por essa razão, revisei o
conceito de “horizonte apreciativo” em Bakhtin, analisei o
emprego da expressão ”porra” na famigerada reunião ministerial
de 22 de abril de 2020 e percorri, para organizar melhor meu
pensamento, a estudos bakhtianos robustos como os de Miotello
(2011); Santos e Miranda (2020); e Silveira (1981).
Além do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública da Justiça Moro e
Bolsonaro, 23 autoridades participaram da reunião realizada no
Palácio do Planalto. Em trabalho anterior (MARTINS, 2020),
levantamos as principais expressões definidas por nós como
“coprologismos” (palavrões, palavras chulas) extraídas do texto da
degravação do vídeo da reunião, um arquivo com 75 páginas,
nomeado eletronicamente como “LAUDO N12 1242/2020 -
FNC/DITEC/PF, de ampla divulgação pública nos jornais de
grande circulação no país.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fiz, inicialmente, a tentativa de desvelar o conceito de “horizonte


apreciativo” fazendo as vezes de filólogo: a começar pela
etimologia de horizonte, que vem do latim horĭzon, -ontis, e este do
grego ὁρίζων, -οντος horízōn, que etimologicamente significa
‘círculo’ ou ‘círculo separador’. Não avancei muito pela via
filológica. Horizonte precisou ser considerado, no campo
semântico, isto é, no plano figurativo, com acepção de
possibilidades ou perspectivas que se oferecem em um assunto,
situação ou matéria. Na degravação, isolei a expressão “porra”, por
se constituir, além do tabuísmo, o principal tema da enunciação no
discurso extreminista de Bolsonaro. Por isso, situá-la no seu
instante histórico se fez imperioso para efetivamente compreender
a enunciação, dotada de uma significação muito particular na
ascensão da extrema-direita ao Palácio do Planalto. A expressão
“porra” não é vista aqui como mero coloquialismo, reiterável e
idêntico, que expressa desgosto ou enfado, fundados sobre uma
convenção linguageira, e sim, reveladora das instâncias do
autoritarismo do governo Bolsonaro.
O que pretendo deixar claro é o seguinte: a expressão “porra” no
discurso extremista de Bolsonaro não deve ser apreciada
como uma palavra fortuita ou tabuística, típica da linguagem
informal ou recurso enfático, para dar mais força ao enunciado,
mas como um marcador frasal da recente ascensão dos grupelhos
das direitas no Brasil, neofascistas e representantes das forças
político-partidárias mais conservadoras e reacionárias no Brasil,
que culminaram na eleição, em 2018, de Jair Bolsonaro.
A recorrência de “coprologismos” ao longo da reunião ministerial,
não apenas me permitiu, após sua degravação, o isolamento da
expressão “porra”, também me possibilitou, na condição de falante
e cidadão crítico, compreender sua significação e opor a palavra
do seu locutor (no caso, Bolsonaro) uma contrapalavra. O
presidente Bolsonaro sem o mínimo de pudor ou respeito à liturgia
do seu cargo e ao contexto pandêmico que o país vivia em abril de

1263
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

2020, causou um profundo mal-estar civilizacional sem


precedentes na história brasileira. Para tomar uma metáfora de
Bakhtin(2009), o discurso bolsonarista produziu uma espécie de
“uma faísca elétrica”, que nos fez perceber, com lucidez, estarmos
diante de um governo com comportamento
autoritário: afinal, como acender a chama da existência com uma
lâmpada depois de ter cortada a corrente?
A recorrência de “porra” ao longo da reunião ministerial me
proporcionou outrossim o desvelar de um problema de ordem
linguística no discurso autoritário de Bolsonaro, considerando
previamente a inter-relação entre a apreciação e a significação da
expressão, tão caro nos estudos recentes discursivos. O “porra”
insistemente usado na “fala real” do presidente Bolsonaro, durante
a reunião ministerial, para além de sua significação no sentido
objetivo, trouxe acento de valor ou apreciativo
determinado, expressão de uma fala viva de um presidente
autoritário com retórica de extrema-direita.
Após a a divulgação pelo STF, em vídeo, da reunião ministerial,
pude ouvir as principais frases do presidente Jair Bolsonaro, em
que por diversas vezes profere “porra” com entoação
expressiva, uma fala inteiramente marcada de carga semântica
coprológica e autoritária. O que mais me impressionou foi que o
emprego recorrente do “porra”, além de
sua amplitude doseu espectro semântico, contou com a audiência
social representada pelos ministros de Estado, totalmente
indiferentes aos desvios de conduta do presidente. Postulo aqui
que o emprego de “porra” não foi obra do acaso, houve, sim, uma
fala orientada para a intenção escolha léxico-semântica deliberada,
portanto, com orientação apreciativa, reforço retórico do discurso de
extrema-direita.
Coloco aqui ainda o seguinte: não pude analisar, limitadamente, o
“porra” no discurso do presidente, ao longo da reunião ministerial,
como uma mera interjeição, de uso informal, uma fala do

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

aborrecimento, com mera significação objetiva (denotativa), e sim,


uma fala que trouxe uma conotação apreciativa do governo no
contexto da pandemia no país: o governo realmente desaprecia o
povo. A expressão “porra”, ao longo da reunião ministerial, não se
constitui uma palavra elevada a umnível superior de uso da língua
portuguesa, mas foi uma palavra abaixada a um nível de inferior,
por sua adesão imediata à extrema-direita brasileira, com teor
fortemente ideológico e radicalizado. Sinceramente, não vejo outro
caminho de análise discursiva sem considerar o largo emprego de
“porra” no discurso de Bolsonaro durante o “agrupamento”
ministerial, sem me ater a expressão “porra”
como objeto ontológico, ligada à evoluçãodo horizonte apreciativo
de um “grupo político que tem como finalidade a defesa de uma
agenda liberal para a economia, que apresenta como prioridades o
êxito capitalista, a proteção à propriedade privada e o lucro, o apoio
ao corte de direitos trabalhistas e a terceirização. Para alcançar suas
metas, pressiona políticos e comete atos ilícitos e antidemocráticos”
(SANTOS e MIRANDA,2020,p.52)
A expressão “porra”, como ilustra o exemplário abaixo, situa-se, de
forma mais ampla, no contexto do capitalismo neoliberal, o mesmo
que criou as condições para o surgimento e o desenvolvimento de
movimentos reacionários, na estreita afinidade com o neofascismo
na América Latina, como evidencia o governo Bolsonaro. É por essa
razão que analis o“porra” dentro d do horizonte apreciativo mais
alargado e dialético, cuja significação léxical não se reduz à
generalidade dos dicionários, mas apontá-lo como um léxico que
se dilacera por contradições vivas, um léxico que os porquês
do movimento de Bolsonaro conseguir a façanha de penetrar ao
mesmo tempo no discurso ingênuo, individualizado, descrente e a
desesperançoso das populações desfavorecidas economicamente
e ligar-se aos interesses da capital internacional. Veja-se como
podemos atestar nos trechos abaixos, extraídos da Folha de São
Paulo, no período em tela.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

EXEMPLÁRIO DE “PORRA” NA REUNIÃO MINISTERIAL


Ao longo da reunião ministerial, fizemos um breve levantamento
do emprego da expressão “porra”: Uma vez proferido pelo
ministro da Economia Paulo Guedes (p.70); três vezes proferido
pelo pelo atual presidente da Caixa Econômica Federal Pedro
Guimarães (p. 37 e 38); e cinco vezes proferido pelo presidente Jair
Bolsonaro (p.23, 56 e 58)
“Desculpa o meu ponto, presidente, quando o senhor falou, pô, o
...eu vo ... eu vou me emocionar. O Luiz Lima, que nadou com meu
pai, foi atleta olímpico, teve a esposa e a filha de catorze anos presa
ontem, no camburão. Que porra é essa? Desculpa .. .” (Pedro
Guimarães, Arquivo 00004.MTS, 10:00.132 (17982), p.37)
“A gente é Deus, porra! O ser humano é Deus. Todos são artistas.
Mas isso não é um estado constante. Acontece num desvio que o
taxista deu para não matar um pedestre. Ele foi Deus naquele
momento. Posso ter sido numa vírgula em 50 anos de profissão.
Não foi o constante das interpretações.” (Mônica Bergamo, Colunas
e Blogs, Folha de São Paulo, em 9/9/2018)
“Desculpa o meu ponto, presidente, quando o senhor falou, pô, o
...eu vo ... eu vou me emocionar. O Luiz Lima, que nadou com meu
pai, foi atleta olímpico, teve a esposa e a filha de catorze anos presa
ontem, no camburão. Que porra é essa? Desculpa .. .” (Pedro
Guimarães, Arquivo 00004.MTS, 10:00.132 (17982), p.37)
“E havendo necessidade, qualquer dos poderes, pode, né? Pedir as
forças armadas que intervenham pra reestabelecer a ordem no
Brasil, naquele local sem problema nenhum. Agora todos, né? Tem
que se preocupar com a questão política, e a quem de direito, tira a
cabeça da toca, porra! Não é só ficar dentro da toca o tempo todo
não! “Tô bem, eu tô cuidando da minha imagem, a imagem tá aqui,
eu sou bonitinho, e o resto que se exploda” . Não! Tem que fazer a
sua parte. Então é isso que eu tento, ten ... te ... tenho falar com

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

vocês, porque depois de wn certo momento, onde chegar a ... na ...


na ... a cabeça dessas pessoas, fica difícil voltar atrás. Daí querem
uma crise, é urna crise. Não tenho amor por essa ... por essa ... por
esse mandato a ... pe ... pe ... pela cadeira de Presidente. Ne .. . ne ...
zero, zero! Não vou provocar ninguém. E assim corno a defesa faz
urna nota muito boa dizendo que vai cumprir a constituição,
liberdade, e co ... dez! E não aceita golpe, dez! Também não aceita
um contragolpe dos caras, porra!” (Jair Bolsonaro, Arquivo
00002.MTS08:00.129 (14386), p.23)
“E nós sabemos o ... o que, a ideologia dele e o que ele prega. E que
ele sempre foi. O que a ... tá aproveitando agora, um clima desse,
pra levar o terror no Brasil. Né? Então, pessoal, por favor, se
preocupe que o de há mais importante, mais importante que a vida
de cada um de vocês, que é a sua liberdade. Que homem preso não
vale porra nenhuma.” (Jair Bolsonaro, Arquivo 00008.MTS,
00:00.150 (1), p.58)
“É um caso pronto e a gente não tá dando esse passo. Senhor já
notou que o BNDE e o ... e o ... e a Caixa que são nossos, públicos,
a gente faz o que a gente quer. Banco do Brasil a gente não consegue
fazer nada e tem um liberal lá. Então tem que vender
essa porra logo.” (Paulo Guedes, 04:07.664 (7419), P. 70)
“Mesmo assim, Bolsonaro já afirmou que não abre mão da medida.
“Quem quer tomar que não tome, mas não enche o saco de quem
quer tomar, porra”, disse o presidente, na sexta-feira (22). Costa
criticou o posicionamento de Bolsonaro. “O presidente da
República não é cientista, não é médico, e não deveria caber a ele
tomar essa decisão”, disse o senador.” (Iara Lemos, Equilíbrio e
Saúde, Folha de São Paulo, em 24/05/2020)
“Quando eu estava fazendo o livro ‘Pavões Misteriosos’, lembrei
que o Moacyr Franco tinha uma música sobre a rádio AM, um
tributo que lançou para ironizar o surgimento da FM. Mas não
tinha certeza e não conseguia achar a informação. Perguntei pro

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Paulo, que falou ‘lembro sim, vou ver aqui e te mando’. Dias
depois, chegou na minha casa um DVD com o registro de um
programa de TV de 1990 com o Moacyr cantando a música. Porra,
quem é que tem isso? E quem passaria o VHS para DVD só para eu
poder assistir?” (Rafael Gregorio, Ilustrada, Folha de São Paulo,
em 26/02/2019)
“Que porra é essa? O cara vai pro camburão com a filha. Se fosse
eu, ia pegar minhas quinze armas e .. . ia dar uma ... eu ia se ... eu
ia morrer. Porque se a minha filha fosse pro camburão, eu ia matar
ou morrer. Que isso? Tava nadando na ... na ... é uma atleta
olímpica. Você tira a pessoa, a pessoa tá nadando com catorze anos.
Eu tenho uma filha Maria de catorze anos. Se a minha filha fosse
pro camburão ou eu matava ou morria. Que isso? (Pedro
Guimarães, Arquivo 00004.MTS,10:00.132 (17982), P.37)
“Se você não sabe, você não sabe. Você usa o seu não saber como
prova de que o Adélio agiu sozinho, isto é uma vigarice. Ô mulher,
para com isso, porra. Adélio agiu sozinho, a prova é que não temos
prova.” (Mariana Sanches, Poder, Folha de São Paulo, 22/05/2020)

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Marxismo e filosofia da
linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009
BRASIL. Serviço Público Federal.MJSP - Polícia Federal: DITEC-
Instituto Nacional de Criminalística. Laudo nº
1242/2020 - INC/DITEC/PF: Laudo de Perícia Criminal
Federal (Registros de Áudio e Imagens). Disponível
em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/leia-integra-
da-transcricao-do-video-da-reuniao-ministerial-de-22-de-abril-
entre-bolsonaro-e-ministros.ghtml
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito 4.831 Distrito
Federal: Ministro Celso de Mello

1268
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(Relator). http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/ane
xo/decisao4831.pdf
MARTINS, Vicente de Paula da Silva.Covid-19: a gramática do
inimigo. São Carlos: Pedro & João Editores, 2020. Disponível
em https://pedroejoaoeditores.com/2020/07/02/covid-19-a-
gramatica-do-inimigo/
MIOTELLO, V. Discurso da ética e a ética do discurso. São Carlos:
Pedro & João. Editores, 2011.
SANTOS, Mayara Aparecida Machado Balestro dos e
MIRANDA, João Elter Borges (Orgs.). Nova direita, bolsonarismo
e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo [livro
eletrônico.Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2020. (Coleção
Singularis, v.9). Disponível
em https://www.textoecontextoeditora.com.br/assets/uploads/arq
uivo/600fc-ebook-nova-direita-bolsonarismo-e-fascismo.pdf
SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa daA produção social da
linguagem: uma leitura do texto de Mikhail Bakhtin (V. N.
Volochinov), Marxismo e filosofia da
linguagem. Trans/Form/Ação [online]. 1981, v. 4 [Acessado 20
Setembro 2021] , pp. 15-39. Disponível
em https://www.scielo.br/j/trans/a/3Sshdj4ZWHCxCP7g7xFQYvK
/?format=pdf&lang=pt

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O medo do riso

Maria Isabel de Moura


Universidade Federal de São Carlos
marisabel@terra.com.br

“O riso impede que o sério se fixe e se isole da integridade inacabada da


existência cotidiana” (Bakhtin, Cultura, p. 105)

“Olha lá, quem ri na sexta, chora no domingo!”. Era assim,


profetizando tristeza, que minha amada avó tentava conter nossas
inesgotáveis e sonoras risadas. Adolescentes típicos, minha prima,
meu irmão e eu, não perdíamos chance de rir. Ríamos de tudo.
Ríamos de nós, dos outros, ríamos do nada. Uma delícia! Almas em
estado de graça, mas, convenhamos, enervantes aos adultos
emparedados na seriedade da vida.
E quando a farra era grande, lá vinha ela com sua inquietante
advertência: dois dias após haveria choro. Como assim, nossa
bobeira seria castigada?! Que louco! E espantávamos a breve
inquietação com um “Hiiiii, vó, nem vem!.”. Algumas vezes, meu
pai ouvia e saía logo arrumando as coisas “O que é isso, mãe, pra
que botar essas bobagens na cabeça deles? E vocês aí, dá pra parar
com essa algazarra? Coisa mais irritante!”. Sem demora saíamos de
perto com mais motivos para rir, agora deles. Conhecíamos bem
essa polêmica. As crendices, superstições e provérbios que minha
avó se servia para lidar com a vida versus a racionalidade do meu
pai. Tenho certeza que ela nunca se rendeu. Deixava ele falar e no
final resmungava um “Vai vendo, vai vendo...”.
Voltando as risadas, logo entendi que ela tinha um certo problema
com a alegria. Não que fosse mal-humorada, de jeito nenhum, mas

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

seus sorrisos, me lembro bem, eram discretos. Pensando melhor,


vejo que combinavam com suas piadinhas irônicas ou com um jeito
malicioso de ver as coisas que a qualificavam a inventar apelidos.
Aqueles sim aguçavam nossa percepção. O vizinho da casa em
frente era o Seu Cuzinho. “Seu Cuzinho, vó?!”. Gargalhadas
nossas, sorriso maroto dela com um “Tá, já chega”.
Mas tinha um momento no ano em que ela se mostrava mais
relutante à alegria. Nas passagens de ano a família queria festa. No
correr dos meses tínhamos os aniversários, os almoços de domingo,
mas estavam mais para encontros. Climão festivo mesmo era no
final de ano. A ceia no Natal e os churrascos no reveillon. Família
reunida, conversa frouxa que meu pai animava com seu talento
para contar piadas. Agora era a hora deles. Riam até. A gente
achava meio chato, ficávamos inseguros. O que deu naqueles
adultos sérios que tinham o dever de nos proteger? Verdade que
toda aquela euforia trazia uma vantagem. Como não havia
censuras, tudo estava autorizado, as piadas eram um modo
vigoroso de acessar um mundo muito interessante. Só minha avó
parecia indiferente ao riso dominante. Ficava por ali se ocupando
com alguma coisa. Meu pai se sensibilizava: “Relaxa mãe. Recebe o
ano novo com alegria.” e ela de pronto: “Eu lá vou ficar me
arreganhando pra coisa que eu não conheço. Sabe Deus o que pode
acontecer, o que me espera!”, “Para com isso, mãe!”, “Me deixa,
rapaz. Vai se divertir.”.
Minha avó viveu assim recusando o riso franco, aberto, gozador.
Às vezes ouvíamos a história do incêndio que matou seus pais, da
separação dos irmãos quando cada um foi morar com um
parente… fatos que assombraram sua vida inteira e lhe negaram o
riso despreocupado, libertador e principalmente a crença no porvir.
Quando penso nisso, dou razão ao meu pai quando pedia que ela
não dissesse certas coisas para as crianças, afinal já faz tempo venho
brigando com uma mania estranha de pisar de mansinho no

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

primeiro dia do ano. “Foi mal, vó, suspeitar do que não conheço?!
Eu podia passar sem essa!".

O PERIGO DO APAGAMENTO DE VOZES NO ENSINO DA


LÍNGUA INGLESA

Letícia Kondo
UNESP - Marília
leticiakondo_k@hotmail.com

As histórias importam. Muitas histórias importam.


As histórias foram usadas para espoliar e caluniar,
mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar.
Elas podem despedaçar a dignidiade de um povo,
mas também podem reparar essa dignidade despedaçada.
(ADICHIE, 2019, p.32)

Exercer o papel de professora de Língua Inglesa, doravante LI, para


crianças do Ensino Fundamental anos iniciais só me é possível a
partir da concepção da alteridade defendida pelos filósofos russos
da linguagem Bakhtin. Volóchinov e Mediviedév. O Outro, de
acordo com os russos, é aquele capaz de nos olhar de fora e nos
trazer completude, para isso, é necessário estarmos abertos à
dialogia. Com relação a importância do Outro para nossa
constituição, Bakhtin (2010, p.323) expressa:
Eu não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo
sem o outro; eu devo encontrar a mim mesmo no outro, encontrar o

1272
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

outro em mim (no reflexo recíproco, na percepção recíproca)


(BAKHTIN, 2010, p.323).
O Outro em minha vida, ou seja, meus alunos, pequenos
aprendizes desejosos pelo conhecimento, me atribuem
determinada profissão, eles me constituem professora de inglês e
eu os constituo alunos. Nas palavras de Miotello (2018, p.20)
Eu sou professor, porque eu tenho alunos, se eu não tivesse alunos
eu não seria professor. Se eu tivesse compradores, eu seria
vendedor. Então, depende de com quem eu estou me relacionando,
eu sou uma coisa ou outra coisa. E, a cada coisa, eu sou único:
marido, pai, avô, professor, comprador, eu tenho mil caras, eu não
tenho uma só. Mas cada uma dessas é a metade do outro e a metade
minha, e o outro me constitui.
Logo, ao receber determinado papel, professora de Língua Inglesa
para crianças, sou incubida de suas responsabilidades e vou além,
vendo meu papel como mais do que uma nomenclatura carregada
de responsabilidade, mas como meu próprio ato resposivo e
responsável ao mundo, um não-álibi da minha existência: minha
contrapalavra. Assim, conceber o ensino de determinada língua
torna-se uma eterna postura de (auto)reflexão, movimento de ir e
vir em busca de sentidos e significados à Educação.
Sabemos que o inglês recebeu status de língua global à
comunicação no mundo pós-moderno. Pessoas de diferentes partes
se comunicam em inglês com o intuito de serem entendidas e
conseguirem realizar suas transações comerciais. Nesse sentido, a
idealização de dominar tal idioma para ter sucesso financeiro e
oportunidades de melhores empregos em multinacionais atinge o
ambiente escolar. Ao se tomar como fato “saber inglês é necessário
para alcançar o sucesso na carreira profissional” acaba-se
propragando, sem muita criticidade, uma assertiva que influencia
os contextos sociais e atinge as salas de aulas. As escolas acabam
cada vez mais cedo incluindo aulas de LI em seus currículos como
forma de preparar sujeitos ao mercado global. Desta forma, as
crianças estão sendo expostas e inseridas ao contexto do ensino da

1273
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

LI dentro das salas de aulas regulares e, muitas vezes, este ato de


ensinar a língua acaba sendo propagador de ideias reducionistas e
repletas de preconceitos.
Anterior ao advento da Base Nacional Comum Curricular – BNCC,
documento oficial e orientador das maneiras de trabalhar o inglês nas
salas de aulas a partir do sexto ano do Ensino Fundamental; os
PCNs[1] (1998) assumiam o papel de respaldar o ensino da LI no
Brasil. As propostas presentes em tal documento oficial adotavam a
terminologia “Língua Estrangeira” referindo-se ao ensino da Língua
Inglesa. Terminologia um tanto complicada, já que olhar determinada
língua como “Estrangeira” nos coloca em posição de submissão a ela
e afastamento. Propaga-se a ideia de aprendizes de uma língua da
qual não se tem parte na construção, isto é, retoma-se a concepção de
língua morta, sem possibilidade de ser alterada pelos movimentos de
uso. Assim, as vozes hegemônicas, desejosas pelo monologismo são
fortalecidas – para os russos da linguagem, as forças centrípetas.
A não possibilidade de modificação da língua gera a perspectiva de
uma falante nativo ideal a ser imitado, no qual a pronúncia dos
norte-americanos estadunidenses e ingleses recebem validação de
“pronúncia correta” a ser alcançada pelos falantes/aprendizes da
LI. A respeito disso Agra (2016, p.13) afirma:
O mito do falante nativo ainda permeia nossas salas de aula porque
aqueles que não conseguem se aproximar de um conceito ideal de
uso da língua se sentem marginalizados e inferiorizados. A língua
estrangeira acaba sendo apresentada como superior aos nossos
alunos – uma meta impossível de ser alcançada”.
Sabemos que o ensino da LI não pode ser encarado de forma tão
reducionista, a Língua Inglesa está presente em diferentes
contextos de trocas verbais, sua disseminação globalizada faz com
que ela adquira características próprias dos falantes em uso, não
sendo possível esperar que esses atinjam a mesma pronúncia dos
nativos, cujo estereótipo reforça o ideal do branco colonizador que
se incomoda com o rompimento da voz única (RIBEIRO, 2020).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Os preconceitos linguísticos nascem de situações nas quais são


exigidas formas de apagamento de características específicas da
língua oral dos aprendizes de inglês em detrimento da pronúncia
“única” e “correta” produzida pelos norte-americanos
estadunidenses ou ingleses. Na série televisiva norte-
americana That 70’s show, o personagem Fez retrata um estudante
estrangeiro que se mudou para os Estados Unidos. Muitas das
cenas de comédia protagonizadas por Fez se referem a questão de
seu sotaque ao falar em inglês e, em diversos momentos, podemos
perceber o preconceito praticado contra a nacionalidade do
personagem. A própria questão do seu nome faz alusão a um
preconceito linguístico, já que o grupo de amigos americanos a qual
pertence não consegue pronunciá-lo e, por isso, o chamam Fez, uma
sigla criada a partir de “Foreign Exchange Student”, cuja tradução
seria “Estudante Estrangeiro”.
O décimo episódio da sexta temporada retrata um momento
específico no qual o preconceito linguístico é demarcado pela
postura do personagem Red Forman, figura nacionalista, de fortes
princípios sobre a supremacia do governo americano, e pai de um
dos amigos do grupo. A cena reproduz o momento em que Red
Forman ajuda Fez a treinar respostas para a prova de obtenção do
visto de permanência no país. Fez não consegue pronunciar
corretamente a palavra “America”, realizando a troca do fonema da
letra “r” pela letra “d”. Assim, sua pronúncia da palavra é feita
como “Amedica”.
Após várias tentativas de correção, Red perde a paciência com
determinada pronúncia e grita para Fez: “Não existe ‘d’
em America”. Neste momento, podemos perceber a frustração do
estrangeiro e o preconceito linguístico de um falante nativo que não
consegue aceitar a variação linguística possível de acontecer em seu
idioma. Os princípios da dialogicidade e alteridade são inexistentes
perante da necessidade de submeter o Outro ao monologismo, ao

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

apagamento dos diferentes sujeitos que constituem as vozes do


mundo dialógico.
Para fechar meu ciclo de palavra e me abrir para as possibilidades
de contrapalavra, faço referência à epígrafe inicial na qual
Chimamanda Ngozi Adichie faz referência à sua história,
vinculando-a ao problema das vozes monologizantes,
propagadoras de histórias únicas e de sujeitos únicos. Situação da
qual precisamos qual a não dialogicidade e não alteridade se
sobressaem. Precisamos nos posicionar diante de tais vozes,
exercer nosso ato responsivo e responsável perante o mundo.

Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única.
Julia Romeu (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
AGRA, Christiane Batinga. Inglês se aprende na escola pública:
reflexões sobre a introdução da língua inglesa no Ensino
Fundamental I à luz do multiletramentos. Dissertação (Mestrado
em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Alagoas,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras e
Linguística. Maceió, 2016.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum
Curricular. Brasília, 2018.
MIOTELLO, Valdemir. Por uma escuta responsiva: a alteridade
como ponto de partida. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Paulo
Bezerra (Trad.). Rio de Janeiro: Forense-Universitaria, 2010.

Notas:
[1] Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental.

1276
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O professor, a palavra e o ato ético.

Ana Paula Munarim Ruz Lemos


Unesp - Universidade Estadual Paulista
ana.lemos@unesp.br

Considerando-se as raízes históricas, sabe-se o quanto a educação


sempre esteve e foi comandada por quem não se formou para isso,
mas sim, para atender a um projeto de nação civilizatória elitizada,
absolutista, endereçada ao conhecimento mínimo, apenas para não
receber o estigma de um país formado por sua maioria de
analfabetos (FILHO, 2020).
O discurso da educação para todos, paradoxalmente dirigido a
poucos no século XIX, perpassou o século XX e continua
constituindo a voz oficial da contemporaneidade. Não é de se
espantar como essa diretriz permanece forte, pois atende a uma
elite que, por séculos, permanece no poder e perpetua regras,
valores, e se apropria de conhecimentos elaborados a fim de
continuar no poder. Essa voz, a que tudo naturaliza, marcada com
a adjetivação de “verdade inquestionável” desta camada da
sociedade, aliena e produz uma aparente sensação de que a
educação é pensada para todos e por todos.
Análoga foi a formação de professores, o fio condutor dessa
formação procurou sempre atender a essa elite e a seu discurso
oficial, e, assim continua. Todo o sistema e seus governantes, até
hoje, tenta dissipar as situações necessárias para consolidar, já na
formação inicial e continuada, a condição precípua de tais sujeitos
como professores que “pensam” e não que são “pensados”.

1278
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nesse viés, Bakhtin ao analisar a obra de Rabelais, nos apresenta o


conceito de carnavalização como forma de romper com a ordem
social oficial, por meio do “grotesco”, lugar da liberdade e da
renovação, para além das amarras hierárquicas que sobrepuja a
cultu ra popular, o discurso não oficial, como força transformadora
da realidade, da vida.
Transpondo essa realidade ao contexto escolar, o professor pode
apresentar-se como aquele que vive uma constante ambiguidade
entre o oficial e o não oficial, entre as forças centrípedas e
centrífugas que envolvem a escola e seus enunciados.
Desse modo, e segundo as palavras de Arena (2020):
Há no ar escolar um embate não revelado entre o sagrado e o
profano, entre o oficial e o não-oficial, entre o conservador e o
inovador, entre o controlador e o rebelde, entre a linguagem de boa
estirpe e a linguagem sem berço, entre a cultura erudita e a popular,
entre a cultura industrializada e a cultura aparentemente ingênua
que compõe a essência humana. (ARENA 2020, p.12)
Sendo assim, será que o ato de viver ético do professor na escola
tem o poder de transformar a vida? Quais os projetos de dizer que
o identifica como humanizador na estética e na ética?
Em face a o exposto, parte-se do cotidiano escolar para pronunciar
a vida, anuncia-se a escola infância como um espaço onde as
relações entre seus sujeitos crianças e professor, se constituem a
partir das trocas verbais e extraverbais, portanto, enunciados que
emergem de seus projetos de dizer.
O espaço escolar é terreno fértil para forjar essas relações, cada
sujeito dentro dessa esfera, produzindo cultura e também sendo
transformado por ela, tendo em vista a palavra dialógica
impregnada de sentido, nascida no social, constitutiva das relações
e promotora das trocas entres os sujeitos.
As crianças ao adentrarem a escola da infância, deparam-se com
um universo de enunciados e vão aos poucos estabelecendo
relações com o mundo e com os outros, em meio a um espaço,

1279
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

espera-se, potencialmente humanizador, inundado das riquezas da


cultura humana. “Nessa concepção, a escola é uma travessia de
encontros humanos, espaço-tempo de compartilhar vozes,
histórias, ind agações, saberes, sonhos – essas substâncias de que
somos feitos.” (BUENO, 2018, p.11)
O professor como ser humanizado e humanizador, com sua
história de vida, traz em seu âmago uma relação intrínseca com a
cultura. Esta relação o constituiu e constitui como um ser único e
singular, o permitindo posicionar-se diante do mundo, trazendo
seu ponto de vista, suas percepções estéticas, seus valores e suas
escolhas acerca da vida e de um vir a ser. Desse modo:
Quando eu me posto sobre um determinado lugar, me coloco
diante de você e me anuncio, eu estou dizendo para você como eu
vejo o mundo, e ao mesmo tempo eu estou cobrando de você que
me diga como você vê o mundo. (MIOTELLO, 2018 P.41)
Mas será que isso acontece realmente? O professor, em meio ao jogo
oficial, posiciona-se, liberta-se, pensa e age como força centrífuga
diante das forças centrípedas que envolvem o cotidiano da sala de
aula? O quão potente é o seu ato de viver ético e o se u projeto de
dizer junto as crianças?
Bakhtin em seu livro “Para uma Filosofia do Ato Responsável”
(2020) nos diz não haver álibi para nossa existência e o quanto
ninguém pode ocupar nosso lugar neste mundo, a não ser nós
mesmos. Portanto, o ato ético responsável e responsivo, singular e
irrepetível, confere ao professor a responsabilidade de ocupar um
lugar único na escola da infância e em um tempo e espaço, onde
sua palavra (seja ela verbal ou extraverbal) proferida ao outro
(criança), pode se tornar propulsora de desenvolvimento humano.
Por outro lado, o “eu” único e singular, não se constitui sozinho, o
“eu” é constituído na relação estabelecida com o “outro” por meio
da alteridade e, isso só pode ocorrer porque assim como há um “eu
para mim”, há um “eu para mim do outro” e, nesse encontro de
dois centros de valores, vamos nos constituindo como sujeitos.
Portanto, o professor só é professor porque existe o aprendiz (est

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

udante/aluno), um completa o outro, já que se encontram em uma


posição exotópica e valorativa . Assim como Bakhtin (2020), Rinaldi
(2019) também aponta para a importância do outro na constituição
do indivíduo e o quanto esta relação contribui para uma formação
humana, quando aborda a contribuição da subjetividade da criança
e do educador vinculadas aos seus relacionamentos com os
“outros”.
Desde este ponto de vista, refletindo sobre como o outro se
evidência na construção do indivíduo, é possível salientar o quanto
a “alteridade marca o humano, pois o outro é imprescindível para
sua constituição” (GEGE, 2009, p.29), o outro me constitui, me
‘incompleta’ e por meio do diálogo em uma perspectiva dialógica,
vamos constituindo nossos pontos de vista, nossos valores, nossa
cultura pautada no social.
A alteridade na relação “outro eu”, “eu outro”, contribui para a
formação de duas consciências do eu, mesmo que este “eu” p
rocure sempre uma completude e um acabamento por meio da
identidade e de um discurso monológico (na perspectiva
linguística da palavra). Porém, somente em um discurso dialógico
e na incompletude do “eu” nós nos constituímos como sujeitos
singulares, únicos, posto ser o “outro” quem me busca para me
incompletar, para instabilizar, e, desse modo, garantir minha
existência.” (GEGE/UFSCAR, 2012, p.13).
Se o outro se faz necessário para que o “eu” se constitua, é por meio
da linguagem eminente entre os sujeitos da escola da infância, que
as relações de vivência, aprendizado, trocas, saberes, pesquisas,
escuta, gestos, os constituem. O professor nessa relação deve se
expor ao aluno, dizer como fazer, organizar, pensar, produzir,
ensinar sua autoria, pois, ensinar é um ato humano.
Nesse ponto, a contribuição de Bakhtin, ao analisar a obra de
Rabelais, no que se refere às trocas não hierarquizadas, sem filtro,
despretensiosas, proporcionadas no c ontexto da carnavalização,
parece ser de grande valia para o universo escolar. Sem obstáculos

1281
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que separam professores e alunos, ambos podem se expressar de


maneira límpida e sincera, e aproximar linguagens e trocar
vivências.
Com isso, leva-se à baila, a palavra alteritária, tecida fio a fio, do
outro para o “eu, do “eu” para o “outro”, em um entrelaçamento
de enunciados vivos e que tem como princípio, a humanização,
portanto, a vida.
Assim, a palavra do diálogo entre o aprendiz e o professor, que
emerge das relações sociais, exprime enunciados de vida e arte, em
pesquisa, ideologia, humanidades, saberes, a fim de que este se
emancipe como ser social, político, histórico e cultural na
sociedade.
Portanto, as relações estabelecidas entre o professor e as crianças
pela linguagem, tendo palavra como ponte, dialogam com
diferentes horizontes sociais dentro de um tempo e espaço,
formando suas consciências e os constituindo como sujeitos sin
gulares, em um evento único, composto de um coletivo de valores
éticos e de humanização.
Sendo assim, o ato de viver ético do professor na escola da infância
e em suas relações, promove possibilidades em seus muitos
projetos de dizer, quais sejam, a observação, o olhar, a escuta, a
organização do espaço escolar, a palavra e, exprime enunciados
vivos no encontro com as crianças, fazendo emergir ecos de uma
“infância potente”, forjada no humano, propulsora em
desenvolvimento, garantindo a vida como seu conteúdo norteador.
As crianças por sua vez, respondem aos enunciados do professor,
construindo suas teorias, socializando suas vivências, se
apropriando de saberes intencionalmente planejados, brincando,
produzindo cultura e por meio dela se desenvolvendo, desde o
mais simples gesto até o mais complexo. Tudo isso, forma o tecido
da escola da infância em resposta responsiva a um dos seus
protagonistas, o professor.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Desse modo, a linguagem torna-se o fio condutor de todas as


relações estabelecidas no contexto escolar, e é nas relações de trocas
entre seus sujeitos, que os projetos de dizer se constituem e se
potencializam.
Valendo-se de teorias fundadas em uma perspectiva
humanizadora, que possibilitam transcender, como diz Bakhtin
(2020), uma memória de passado rumo a uma memória de futuro,
na projeção de um vir a ser, podemos dizer com Geraldi
[...] no mundo ético, tempo dos acontecimentos, cada um tem a
responsabilidade pela ação concreta definida não a partir do
passado – que lhe dá condições de existência como um pré-dado –
mas a partir do futuro, cuja a imagem construída no presente
orienta as direções e sentidos das ações. É do futuro que tiramos os
valores com que qualificamos a ação do presente e com que
estamos sempre revisitando e compreendendo o passado.
(GERALDI, 2019, p.128).
Sendo assim, todo o cotejo apresentado acima, vislumbrando uma
memória de futuro, espaço e tempo de transformação e de
esperança, tem-se na figura do professor, aquele que pode
metamorfosear as relações estabelecidas no contexto escolar,
anunciando-se diante das amarras hierárquicas, olhando para as
escolas como praças da idade média e enunciando a renovação
rumo a uma educação que dissipe a opressão e celebre a vida. E
nesse sentido, parece-nos que o ato de viver ético do professor é
fundamental para uma educação humanizadora e emancipatória.

Referência bibliográfica
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra.
São Paulo: Martins Fontes, 2020.
_______. Para uma Filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2020.

1283
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BUENO, M.C. No Chão da escola: por uma infância que voa.


Cachoeira Paulista, editora Passarinho, 2018.
GEGe, Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. Palavras e
contrapalavras. Glossariando conceitos, categorias e noções de
Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.
GEGe, Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. Palavras e
contrapalavras. Conversando Sobre os Trabalhos de Bakhtin. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
GEGe/UFSCAR. Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. A
Escuta Como Lugar do Diálogo – Alargando os Limites da
Identidade. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
GERALDI, J.W. Ancoragens Estudos Bakhtinianos. São Carlos:
Pedro &João Editores, 2019.
MIOTELLO, Valdemir. Discurso da ética e a ética do discurso. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2018.

1284
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O que cabe na “barriga do tempo”? – tramas de vivenciamento


na temporalidade humana

Nelita Bortolotto
Universidade Federal de Santa Catarina
nelbortolotto@gmail.com

Gracielle Boing Lyra


Ufsc
gboinglyra@gmail.com

“[...] uma certa ‘carnavalização’ da consciência precede


e prepara sempre grandes transformações, mesmo do
mundo científico.”
(Mikhail Bakhtin)

Duas questões em sequência: O que é o tempo? Podemos dele nos


privar? A primeira é pergunta que permanece no percurso da
história cultural. A segunda é consenso: não podemos nos furtar a
esse acontecimento. O indiscutível é que, seja na linha histórico-
filosófica seja na metafísica, os conceitos de tempo têm sido objeto
de formulações distintas. Mas é com Bakhtin, filósofo da
linguagem, que vamos perseguir palavras. Ele diz que o tempo
carece ser tomado na sua relação com o espaço, por repercutir
vivamente nos atos humanos – ver, portanto, cronotopicamente o

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ato humano. Fomos, desse modo, alertados de que tempo e espaço


são indissociáveis: para conhecer o homem é preciso olhar a vida
em movimento, olhar para os contextos dialógicos em que o
homem está, na dimensão da grande temporalidade (passado-
presente-porvir) dos acontecimentos, no diálogo infinito da cadeia
discursiva humana.
Dito isto, o universo ficcional é, por certo, ideação, mas não só, é
espaço de conhecimento do homem social, de encontro de vozes,
de coocorrência de valores (autor-herói-leitor) que não apenas
refletem, mas também refratam as experiências da vida, o
vivenciamento (BAKHTIN, 2003). A literatura é entrada para a vida
vivida, para a arte que enlaça a vida pela ficção. Em vista disso, a
literatura tem paragem relevante nesse cenário fatídico em nível
mundial, a pandemia por Coronavírus – Covid-19, isto porque a
literatura é riso-arte, diante do insólito tempo-espaço da
contemporaneidade que tem refreado a convivência pública.
Afinal, “somente o riso [...] pode ter acesso a certos aspectos
extremamente importantes do mundo.” (BAKHTIN, 1993, p. 57).
São tempos obscuros que impõem (re)formular modos de viver
com o outro, seja em ambiente de caráter público (ruas, praças,
museus etc.), seja privado. A balança, vida pública e vida privada,
roga conexões outras entre tempo e espaço cotidianos de antes e
um outro, tempo pandêmico, de resistência para existir. É um
tempo que inquieta, desassossega.
No ano de 2009, Queirós, escritor mineiro, publica seu livro Tempo
de voo, com ilustrações de acentuação onírica e surrealista, do
premiado artista espanhol Afonso Ruano. Como em outras obras,
Queirós, em sua narrativa, catalogada como infantojuvenil, traz em
prosa poética a complexidade da compreensão do tempo na vida
vivida pela voz de uma criança dirigida a um senhor de idade
madura. O autor mantém – o que é medular em seus escritos –
perspectiva de universo da criança. Ao aproximar arte e vida,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

possibilita pensar a vida a partir do interior da própria vida, a vida


na temporalidade humana.
“Só existe um tempo: o tempo vivo.”. É desse jeito, com afirmação
contundente, que inicia a prosa poética do autor-narrador
(QUEIRÓS, 2009). Seu texto-arte. Sua entrada possível ao evento do
dizer. Na leitura (escuta) do intérprete, afiança Bakhtin (2017), se,
por um lado, o interpretante necessita compreender o que o autor
compreendia (ponto de partida), por outro, necessita ir ao encalço
da interpretação ativa e criadora que lhe faculta a posse de
conhecimentos outros construídos na vivência do “grande tempo”,
contextos do passado e presente, para reapreciá-los em novos
contextos (memória de futuro).
Um tempo de voo em voo no tempo grotesco de pandemia
planetária. Não é trocadilho, é convite a duplo encontro: do sério e
do ridente; da contemplação interpretante que pensa a passagem
do tempo.
- Nossa! Você está tão trincadinho!
[...]
- É o tempo, meu menino, é o tempo!
(QUEIRÓS, 2009)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1 – Tempo de voo


Fonte: Queirós, 2009.

É um encontro de palavras e contrapalavras entre gerações polares,


a criança e senhor em idade avançada (trincadinho) diante dos
“mistérios do tempo”, que, para o autor-narrador, é tempo vivo,
em movimento. Com singular singeleza poética, Queirós (2009)
trata do tempo (herói na narrativa) com entradas possíveis de
sentido à criança para entendimento desse fenômeno – à primeira
vista, intangível a ela. O tempo “está sempre acordado, viajando e
vigiando tudo; troca a roupa do mundo; muda a história, desvia
águas, come estrelas, mastiga reinos, amadurece frutos; moramos
dentro dele”. Essas e outras tantas passagens salientam o modo
poético de o adulto envolver a criança (e autor-criador, seu leitor)
em camadas de sentido sobre tempo, acentuando-se uma narrativa,
escrita e ilustrada, encharcada de imaginação criadora.
Se, como diz Bakhtin, em qualquer momento do desenvolvimento
de contextos dialógicos, sentidos esquecidos poderão ser
relembrados e terem sua festa de renovação, quando, em escala
mundial, a presença de vírus mortal atinge a sociabilidade de
nossos dias e acarreta impensáveis rearranjos do cotidiano, deixar
pulsar reflexões sobre o tempo (tempo das epidemias anteriores), é
desenrolar fértil experiência de um tempo outro, o “tempo atual de
pandemia” (grotesco, é certo).
Tempo de voo, livro para todo leitor, leitura para qualquer época,
tema para todo tempo, instiga acontecimento peculiar, instiga
regresso à contemplação do cotidiano agora estranhado, apinhado
de novos sentidos na cognição (conhecimento), na arte e na vida. A
entrada do interpretante na obra de Queirós (2009) é de muitas vias.
Aqui, põe-se foco na imagem de Alfonso Ruano e texto de Queirós
quando dialogam sobre a metáfora “barriga do tempo”. Tempo
metamorfoseante: ora é barriga, ora é relógio, pés de galinha e
outras tantas formas em poesia fabulosa.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 2 – Tempo de voo


Fonte: Queirós, 2009.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ruano reserva à “barriga do tempo” epitélio grotesco, disforme,


fantástico, que recua em limite contido de espaço: uma “barriga”
multissemiotizada, com elementos multidirecionais e
multifacetados em suas formas, texturas, cores (girinos, gavetas
abertas, cabeças humanas grandes e pequenas de crianças, casas,
pedras, coração, animais, plantas, aves, entre outros constituintes
do universo fantástico ou da realidade concreta). Nela tudo cabe;
ao mesmo tempo, nada mais cabe: “Nada fica fora do tempo.
Moramos dentro dele e impedidos de abraçá-lo.” (QUEIRÓS, 2009).
O cinto é retesado. Tudo à espreita do olhar da criança e adulto
diante de avolumada “barriga”.
Não como testemunhas, mas como personagens no tempo vivo do
cotidiano epidêmico, com a ideia da morte atravessando ambientes
públicos e privados, a ambientação neste estado inusitado levou
a pensar: “o que cabe na barriga do nosso tempo?”. Um tempo de
vivenciamento (público ou privado) com contornos definidos,
fechados ou, como aponta Bakhtin em sua teoria filosófica, um
tempo aberto para viver a vida como acontecimento, tendo em
vista profusos caminhos como perspectiva? Um tempo como
possibilidade para escolha de caminhos, de palavras que libertam
mediante aditamento de relações dialógicas estabelecidas entre eu
e outro, de consciências que alargam nessas relações em vista de
um mundo outro? Um tempo em que a vida humana é
compreendida em sua temporalidade e espacialidade, ou seja, em
um cronotopo no qual se inscreve, no campo da arte, vida e cultura,
o humanismo? Como diria Bakhtin, uma compreensão que
dimensione tempo e espaço como formas da mais imediata
realidade.
Novos ritos cotidianos embrenham-se na cultura do povo e
assentam lugar cativo (trabalho home office; escola entrou nos lares,
tempo alargado com a família; alteração de tipo de lazer etc. ). O
cotidiano do antes é memória recente, é o agora que (re)cria,
exteriorizam-se outros modos de interação para convívio público
ou privado. As possibilidades do movimento interpessoal foram

1290
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dilatadas. É, pois, tempo de riso, não apenas em nível pessoal,


acima de tudo riso aberto, carnavalesco, riso com o outro. É tempo
de amorosidade, no sentido bakhtiniano. Renovação. Tempo de
dar um sentido outro ao grotesco de nossos dias, favorável a seu
matiz ambivalente, de renovação do vivido, diante do que foi ou é
surpresa insólita e (in)controlável, para viver o presente da vida
como inacabamento, como devir amoroso entre eu e tu diferentes;
todavia, não indiferentes, mas solidários como humanidade. Com
compreensão do tempo, em aberto, para a constituição de outras
histórias, de outros rumos, alinhados à interpretação de Bakhtin à
obra de Rabelais: “o corpo grotesco se mistura não apenas aos
motivos cósmicos, mas também aos motivos históricos de uma
sociedade utópica e, principalmente, aos da sucessão das épocas e
da renovação histórica da cultura.” (BAKHTIN, 1993, p. 284).

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento. Tradução de Yara Frateschi. 2. ed. São Paulo-Brasília:
HUCITEC, 1993.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução
do russo de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências
humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e
ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo
Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo:
Editora 34, 2017.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Tempo de voo. Ilustrações de
Alfonso Ruano. São Paulo: Colombo de Corda, 2009.

1291
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O que é o grotesco? Primeiras leituras e aproximações

Edson Rodrigo de Azevedo


UNESP - Campus Marília
er.azevedo@unesp.br

Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto


Faculdade de Filosofia e Ciências _ Unesp _ Campus de Marília
cyntia.girotto@unesp.br

Ana Caroline Chepak de Souza Ferreira


Unesp
ana.chepak@unesp.br

O que é o grotesco? Existiria uma resposta que poderia defini-lo


exatamente? Fomos convidados a participar do Rodas e assim
fomos provocados por suas palavras geradoras. Santos (2009),
pesquisador da FCL da UNESP, sugere o grotesco como um
monstro de muitas faces, pois suas definições são polissêmicas,
dinâmicas e se transformam com o tempo. Seriam as manifestações
humanas com características do grotesco são universais? Mas,
afinal, o que apresenta traços de animalidade, deboche, ironia,
escárnio, monstruosidade, ou ainda, exagero, excesso, ritual,
horror, contraste, dentre outros elementos, poderiam conter,
dialogar ou tangenciar o grotesco em algum de seus elementos?

1292
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Muitas são as questões postas no grupo GEGE e no PROLEAO que


nos fazem pensar.
Apoiando-nos no mesmo autor, vemos que variando de acordo
com os valores estéticos de período histórico para período
histórico, de artista para artista, e mesmo no âmbito da fruição
estética de espectadores particulares, o grotesco mostra-se como
uma categoria mutável; portanto, seu conceito é um terreno
movediço para os que buscam uma sentença universal para a
definição do que ele seja. Não sem razão as pesquisadoras Sodré e
Paiva (2002) falam-nos de um grotesco como um tipo de criação
que às vezes se confunde com as manifestações fantasiosas da
imaginação e que quase sempre nos faz rir. E como elas também
nos perguntamos: será algo que se tem feito presente na
Antiguidade e nos tempos modernos e que atravessa de fato
tempos diversos, à maneira de uma constante supratemporal?
Todas estas questões vão provocando e alargando nossa palavra,
vindo de nossa dialogia com os autores que tomam por sua vez de
sua palavra para partilhar sua compreensão acerca do grotesco.
Nas enciclopédias, o grotesco é tido como a definição de um gênero
decididamente cômico na literatura, na música e nas artes plásticas.
Porém, de onde surge? Quem cria? Por quê? Para quê? Bem, se há
heterogeneidade na definição conceitual e para nós não cabe aqui
tal aprofundamento, e, se longe estamos de responder todas as
questões aqui postas, seguimos com a ideia de que a aparição do
vocábulo tem uma “origem” na história “oficial” da cultura
Ocidental.
É pelo mestre Kuiava de nosso grupo de estudos e pesquisas que
advém o lembrete sobre a etimologia da palavra grotesco. A
expressão começou a ser usada em fins do séc. XV, proveniente do
italiano grotta (gruta, caverna), etimologicamente designando um
tipo de decoração ornamental encontrada em grutas na Itália, com
motivos que misturavam e combinavam de maneira inusitada os

1293
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

reinos vegetal, animal e mineral, contrariando a ordem da


natureza.
A despeito de tantos outros pesquisadores que se debruçaram
sobre a questão, aqui interessa-nos a abordagem feita pelo
pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), que discorreu sobre o
que chamou de “realismo grotesco”. Bakhtin, para o qual o termo
“grotesco” passou a exprimir a transmutação de certas formas em
outras, no eterno inacabamento da existência, diz-nos que o motivo
ornamental romano era apenas um fragmento (um caco) do imenso
universo da imagem grotesca que existiu em todas as etapas da
Antiguidade e que continuou existindo na Idade Média e no
Renascimento.
E assim cabe-nos mais uma pergunta: se o termo “realismo”
quando empregado por Bakhtin é para dizer do “realismo
grotesco”, do que exatamente está falando o pesquisador. Questão
posta no último encontro do GEGE (03.09.2021), igualmente
provocadora, ela nos leva a refletir sobre muitos outros conceitos
correlacionados. Professor Miotello e Kuiava como camaradas
mais experimentados são convocados a explicitar sua palavra.
Provisoriamente, junto das palavras de nossos educadores e da
leitura da obra do mestre-russo “ A cultura popular na idade
Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais”” vamos
na direção de compreender que o “real”, neste caso, aludiria à
ligação com a própria vida cotidiana, que afinal é o que
fundamenta a análise de Bakhtin – a expressão da vida e do corpo
em um tempo-espaço em que a cosmovisão Carnavalesca se faz
presente, em que o real da vida é transformado/
parodiado/invertido através do grotesco.
Vale dizer que dentro da ampla produção bakhtiniana, a obra sobre
a qual nos debruçamos (todas as sextas à tarde, especialmente para
nós em leitura inicial) é representativa de um de seus escritos mais
tardios, data de 1965 . Trata-se da revisão de sua tese de doutorado
escrita em 1940, em que Bakhtin analisa o conjunto da obra literária

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Gargantua e Pantagruel”, uma pentalogia escrita pelo francês


Rabelais no séc. XV (1494-1553). Segundo Victor Hugo, Rabelais é
considerado um autor não menos importante do que William
Shakespeare, Miguel Cervantes ou Dante Alighieri. Informação
que nos espanta e enche de curiosidade.
A nosso ver, é possível para o leitor - mesmo sem o prévio
conhecimento da obra de Rabelais (embora recomendado, nenhum
dos autores deste texto têm, ainda, leitura sequer inicial da obra) -
conhecer e compreender pela análise trazida por Bakhtin do que se
trataria o “universo rabelaisiano”, que lhe serviu de base para
ilustrar as características da teoria que construiu acerca do realismo
grotesco. Esse universo é composto por seres e histórias fantásticas
e narra as aventuras de dois gigantes (Pantagruel e seu filho
Gargantua) pelo mundo, tendo como inspiração e pano de fundo
elementos da cultura popular presentes na rua, nas praças públicas,
nos mercados, nas feiras e festas europeias, ambientes que Rabelais
frequentou e em que “bebeu” (no sentido figurado e literal, como
assinala Kuiava) para escrever sua obra maestra.
Professor Miotello, professor Kuiava.... Patrícia, Priscila,
Alessandra, Oswald, Waleska são seres expressivos e falantes que ,
ao expor suas palavras, provocam-nos mais e mais e, assim, vamos
no coletivo dialógico, nas trocas, nos cotejos, elaborando um
quadro: o universo de Rabelais, que, para Kuiava, é mesmo
predominantemente alegre e festivo, em que não prevalece a
“monotonia da existência diária”. A literatura de Rabelais é cômica,
tem o intuito primeiro de fazer rir, e foi por muito tempo
desvalorizada, considerada uma literatura inferior.
Como aponta Santos, “as manifestações do grotesco em vários
contextos históricos receberam a designação de mau gosto, o que
pode ser visto como sintoma do papel subversivo dessa categoria
estética” (2009, p.262). Isso pode ter explicação no fato de que neste
“sistema de imagens” pensado por Bakhtin, o princípio
organizador é o “baixo material e corporal”, a saber, tudo o que se

1295
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

relaciona com as partes inferiores do corpo, como tanto salientou


Miotello nestes três últimos encontros do GEGE: – barriga, intestino
(tripas), órgãos genitais, bexiga, e portanto os atos e necessidades
físicas relacionados a essas regiões: comer, beber, defecar, urinar,
copular, cuspir, etc (ainda que não esteja localizada no baixo, a boca
também exerce um papel fundamental nesse sistema).
Dessa maneira, a linguagem literária de Rabelais foi desenvolvida
dentro de um contexto e vocabulário específicos, que quando vistos
sem considerar seu aspecto ambivalente, salienta e ressalva Kuiava,
pode ser julgada por um viés moralizante, em que se enfatiza
apenas o polo negativo – um alerta e crítica severa que Bakhtin fará
sobre a linha modernista (e romântica, analogamente) do grotesco
_ outro aspecto genuinamente essencial para a discussão do
‘grotesco”. Vejamos a citação abaixo:
A fim de ter uma compreensão justa dos gestos e imagens
populares Carnavalescos [...]é importante levar em consideração o
seguinte fato: todas as imagens verbais e articulações desse tipo
faziam parte do todo Carnavalesco impregnado por uma lógica
única. [...] Na sua participação nesse todo, cada uma dessas
imagens é profundamente ambivalente: ela tem uma relação
substancial com o ciclo morte-vida-renascimento. Por isso essas
figuras são destituídas de cinismo e grosseria, no sentido que
atribuímos a esses termos. Mas as mesmas imagens (por exemplo a
projeção de excrementos e a rega com urina), percebidos em um
outro sistema de concepção de mundo, onde os polos positivos e
negativos do devir (nascimento e morte) são separados um do
outro, opostos um ao outro em imagens diferentes que não se
fundem, transformam-se efetivamente em cinismo grosseiro,
perdem sua relação direta com o ciclo morte-vida-renascimento e,
portanto, sua ambivalência. Elas consagram então apenas o aspecto
negativo, e os fenômenos que elas designam tomam um sentido
extremamente vulgar, unilateral (como é o sentido moderno que
tem para nós as palavras “excremento”, “urina”). [...] Os
especialistas tem o hábito de compreender e julgar o vocabulário

1296
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

da praça pública em Rabelais em função do sentido que ele


adquiriu na época moderna, isoladamente dos atos Carnavalescos
e da praça popular que constituem seu veículo. Por isso, não podem
captar sua profunda ambivalência (2010, p. 129).
Desta citação depreende-se também outro conceito essencial, que é
a ideia carnavalesca de mundo posta na obra de Bakhtin, em que
ocorrem rituais e brincadeiras milenares, que podem estar
presentes inclusive em outras festas ou manifestações populares
que não necessariamente o Carnaval. Nessa visão mais alargada,
nada é tratado com demasiada seriedade, piedade ou ordem, e
principalmente as hierarquias ficam suspensas – acontece uma
inversão de papeis entre o alto (o que é elevado, importante,
sagrado) e o baixo (o terreno, o profano) o que caracteriza o
processo de “rebaixamento” e “degradação”.
A lógica da inversão é própria da cultura popular, todavia
concepção não espetaculosa do Carnaval por nós conhecida,
bastante característica dos tempos atuais, e sim a uma grandiosa
visão universalmente popular dos milênios passados. As imagens
são marcadas pelo exagero, sendo comuns corpos com
protuberâncias e excrecências, a exemplo dos gigantes. O exagero
tem um caráter positivo e afirmativo, pois é reflexo da abundância.
A linguagem (os termos eleitos na gramática rabelesiana)
característica dessa visão é o vocabulário da feira, do mercado
popular, composto por xingamentos, blasfêmias, insultos, palavras
de “baixo calão” (que literalmente podem se referir às partes baixas
do corpo), mas mescladas com elogios (o que criará mais
ambivalência). Também são recorrentes os usos de superlativos,
formando uma gramática jocosa, tal como pede a visão
carnavalesca de mundo. Em Rabelais há ainda muitas enumerações
e descrições de desmembramentos do corpo, possivelmente devido
à sua formação como médico.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Dentre as muitas características assinaladas no GEGE, por Miotello,


destacamos a ambivalência como primordial – movimento em que
os polos opostos, como vida e morte, se aproximam ou se unem em
uma mesma imagem, como imagens de nascimento e morte, que
aparecem frequentemente juntas. Um exemplo muito citado pelo
professor é a imagem de velhas grávidas representadas em
estatuetas, assim descritas por Bakhtin:
Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam
no Museu L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas
cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos
ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um
tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco
ambivalente: É a morte prenhe, a morte que dá à luz (2010, p.22).
Se Bakhtin é um autor que dá o devido valor ao riso: mais vale rir
do que é demasiado sério _ como tanto salientou-se no penúltimo
encontro do grupo (“Estou morrendo de rir”_ Oswald) , celebrar a
vida, e inclusive, comendo e bebendo muito, é preceito que
provém de sua leitura, que tanto se revela atual mesmo que aborde
o período da Idade Média europeia, pois pesando obviamente as
diferenças na contemporaneidade, segundo nossa outra parceira
Patrícia, prevalecem ainda hoje diferentes formas de controle sobre
os corpos e mentes, análogas às que aconteciam na esfera social
daquela época, quando o único escape à rigidez excessiva eram
justamente as festas promovidas pelo e para o povo.
Enfim, com o GEGE seguimos vendo que a obra de Bakhtin nos
interessa especialmente pela beleza em sua maneira de abordar os
movimentos de transformação da vida. O ciclo morte-vida-
renascimento é sugerido de uma forma alegre: o que morre dá a
vida em seguida, mais abundante e melhor (BAKHTIN, 2010). No
realismo grotesco há a ideia de um futuro utópico em que tudo o
que acontece dentro dessa categoria teria como base a celebração e
a esperança de mudança para algo melhor. E, notadamente, neste
tempo atípico e tão singular, esperançar, nesta perspectiva, é vital!

1298
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; 2010.
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. Normas para apresentação de
monografia. 3. ed. Escola de Administração de Empresas de São
Paulo, Biblioteca Karl A. Boedecker. São Paulo: FGV-EAESP, 2003.
95 p. (normasbib.pdf, 462kb). Disponível em: . Acesso em: 23 set.
2004.
OLIVEIRA, N. M.; ESPINDOLA, C. R. Trabalhos
acadêmicos: recomendações práticas. São Paulo: CEETPS, 2003.
PÁDUA, E. M. M. Metodologia científica: abordagem teórico-
prática. 10 ed. Campinas, SP: Papirus, 2004.
SANTOS, Fabiano Rodrigo da Silva. Grotesco: um monstro de
muitas faces. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2009.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O Império do Grotesco. Rio de
Janeiro: Mauad, 2002.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O realismo grotesco

Alef Reis Pimentel


UEPA
alefpimentell@gmail.com

Por fins do século XV grupos de arqueólogos encontraram em


grutas na Itália, um distinto tipo de ornamentação, arquétipo
diferente de arte, uma forma de perceber o mundo então renascida.
O termo grotesco, derivado de grotta, representa esse conjunto
decorativo ressuscitado, o qual difere em características com o
padrão de arte até então explorado. Segundo Lima:
“Esta ornamêntica era composta por desenhos, pinturas e esculturas
que ilustravam a mistura dos reinos animal, vegetal e mineral. Esta
combinação deu origem a formas que, por romperem com o ideal
clássico de arte (mimesis do real, verossimilhança), foram
classificadas hostilmente como quiméricas, irreais, monstruosas e
até mesmo diabólicas.” (2016, P: 02).
Visto como fenômeno de desarmonia do gosto pelo padrão clássico
dominante, as representações grotescas nunca largaram o
imaginário e a vida do ser humano, inclusive na
contemporaneidade. Com o passar do tempo seu conceito
transcende desenhos, pinturas e esculturas para percepções da vida
cotidiana, as quais são notadas e representadas por mestres da
escrita moderna. Na obra a cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais, publicada em 1965,
Bakhtin, evidencia a realidade grotesca no princípio da vida

1300
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

material e corporal. Rabelais retrata praticas festivas populares, as


quais geralmente derivam de celebrações oficiais do Estado ou da
Igreja. Nas festas populares era “onde a ordem católica e feudal
séria podia ser rompida em detrimento de uma forma cômica,
renovadora.” (DUARTE, 2008, P: 03). E nesse momento de
liberdade festiva e renovadora, seguindo Duarte, “ocorre um
rebaixamento para o plano material e corporal de todas as coisas;
esse fenômeno estético Bakhtin denomina de realismo grotesco.”
(2008, P: 03).
“No realismo grotesco (isto é, no sistema de imagens da cultura
cômica popular), o princípio material e corporal aparece sob a forma
universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal estão
ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É um
conjunto alegre e benfazejo.” (BAKHTIN, 1987, P: 17).
Uma forma de reconhecer o sistema de imagens da cultura cômica
popular e o todo alegre e benfazejo é pelo que mais lhe marca, o
rebaixamento. “O traço marcante do realismo grotesco é
o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal,
o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é
elevado, espiritual, ideal e abstrato.” (BAKHTIN, 1987, P: 17). Logo
“no realismo grotesco se destaca, sobretudo, a imagem do corpo”,
(LEITE, 2011, P: 08) como se percebe na obra de Rabelais.
“O corpo grotesco possui dimensões exageradas, seu apetite é
exagerado, e manifesta positivamente os princípios da vida material
e corporal, como a comida e a bebida em abundância [...]. Esse
corpo é modelo para uma sociedade carnavalesca, que se alimenta
em abundância, festeja alegremente e se entrega livremente aos
prazeres sexuais.” (LEITE, 2011, P: 08-09).
Por meio do rebaixamento exacerbado do corpo e da matéria em
festejos populares, o qual se exemplifica no gesto de glutão vivido
pelo paraense frente a mesa farta do almoço do Círio de Nossa
Senhora de Nazaré, o realismo grotesco se vincula ao riso, mas não
ao riso individual e apenas sarcástico da modernidade, e sim o riso
carnavalesco, coletivo, festivo e renovador, tradicional das festas

1301
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

do povo, o riso que todos riem das festas da Idade Média e do


Renascimento. De acordo com Galin Tihanov, para Bakhtin: “O riso
prospera no momento em que o cânone do corpo chamado de não
clássico reina.” (2012. P: 171). E o corpo não clássico ou grotesco
reina na glutinaria, no exagero de bebida, na linguagem vulgar dos
encontros familiares e em outros múltiplos elementos salientados
em festas populares. É importante ressaltar que o princípio da vida
material e corporal se encontra positivamente exposto, ou seja, as
imagens realistas grotescas, heterogêneas, exageradas e inacabadas
fazem parte do cenário cômico das festas carnavalescas, são
inerentes à comemoração popular e princípio fundamental para se
alcançar a carnavalização, no que “consiste na apropriação, pela
literatura, das manifestações da cultura popular”.
Mostra-se crucial entendermos que todos os elementos da
comemoração popular estão apresentados pela visão e espírito
carnavalesco, pois, como Bakhtin dispõe:
“Para compreender a profundidade, as múltiplas significações e a
força dos diversos temas grotescos, é preciso fazê-lo do ponto de
vista da unidade da cultura popular e da visão carnavalesca do
mundo; fora desses elementos, os temas grotescos tornam-se
unilaterais, débeis e anódinos.” (1987, P: 45).
Assim, é no ambiente de carnaval que os elementos realistas
grotescos se sobressaem, não que existam apenas neste momento,
mas, é no espírito de carnaval que as hierarquias sociais se partem
e o povo ganha uma momentânea nova vida. “A cultura
carnavalesca constituía, ao lado do mundo oficial, uma espécie de
segundo mundo ao qual os homens da Idade Média pertenciam
[...]. A cultura carnavalesca associa-se assim ao não oficial.”
(CAVALCANTI, 2010. P: 17). E justamente por essa sua
característica não canônica carrega o riso coletivo como fonte de
liberdade, pois, as festas oficiais se encontram ao lado do sério e da
ordem. O carnaval “É a festa que, libertando de todo utilitarismo,
de toda finalidade prática, fornece o meio de entrar

1302
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

temporariamente num universo utópico”. (BAKHTIN, 1987. P:


241). Logo:
O carnaval, do lado da utopia, é o reino da universalidade, da
liberdade, da igualdade e da abundância: “a consciência da alegre
relatividade das verdades e autoridades no poder” (idem, ibidem). É
o mundo ao revés, a lógica do avesso que, ao negar, renova e
ressuscita. (CAVALCANTI, 2010, P: 17).
É nesse espírito de festa que as representações grotescas,
carregadas do baixo material e corporal, provocam o riso
carnavalesco, fundamentos básicos para se alcançar a
carnavalização e também para universalizar o corpo humano, uma
vez que, este se integra a terra e ao cósmico pela aceitação do baixo
corporal. Com isso, reina a visão não canônica, a forma não padrão
de escrever a história, os detalhes reais e por muitas vezes negados,
mas, nunca inexistentes às festas tradicionais e ao ser humano de
qualquer período.

Referências:
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo. Hucitec.
1987.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Em torno do
carnaval e da cultura popular. Textos escolhidos de cultura e arte
populares, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, P. 7-25, nov. 2010.
DUARTE, André Luis Bertelli. Cultura popular na Idade Média e
no Renascimento: revisitando um clássico. Fênix – Revista de
História e Estudos Culturais. issn: 1807-6971. v. 5, ano. V, n. 2. P: 1-
7. Abril/maio/junho de 2008.

1303
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

LEITE, Francisco Benedito. Cultura popular na Idade Média e no


Renascimento no contexto de François Rabelais como obra de
maturidade Mikhail M. Bakhtin. Revista Magistro – issn: 2178-
7956. v. 2, n. 1, P: 4-14. 2011.
LIMA, Fernanda. Do Grotesco: etimologia e conceituação estética.
Revista intertexto/issn: 1981-0601. v. 9, n.1. P: 1-19. 2016.
TIHANOV, Galin. A importância do grotesco. Bakhtiniana. São
Paulo. 7 (2). p. 166-180, jul/dez. 2012.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O realismo grotesco e suas forças libertárias

Maria Leticia Miranda Barbosa da Silva


Grupo ATOS - UFF
mirandamarialeticia@yahoo.com.br

Bakhtin, buscando compreender a obra de Rabelais e a cultura


popular da Idade Média e do Renascimento, – uma vez que
percebeu que as fontes populares destes períodos determinam o
sistema de imagem e a concepção artística do escritor – desenha um
panorama das manifestações e das forças libertárias do realismo
grotesco. Nesse estudo, mostra como o cômico popular se
transformou ao longo dos séculos, levanta suas características e nos
provoca a pensar: Onde encontrar as forças desse riso hoje?
Ele se debruça sobre a cultura do contexto de Rabelais e percebe
que o riso e o cômico popular, naquele período, tinham suas raízes
no riso ritual presente nas sociedades primitivas, que não
conheciam o sistema de classes e Estados, nas quais “os aspectos
sérios e cômicos da divindade, do mundo e do homem, eram,
segundo todos os indícios, igualmente sagrados e igualmente,
poderíamos dizer, oficiais” (BAKHTIN, 2013, p. 5). Porém, com
uma diferença: na Idade Média e no Renascimento, o cômico
popular havia se tornado um mundo não-oficial, do povo, que se
contrapunha às forças e manifestações da Igreja e do Estado.
Entretanto, Bakhtin percebe que, mesmo distanciado do riso
primitivo, o cômico medieval era popular e libertário, positivo,

1305
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ambivalente e destronador. Que o carnaval da Idade Média e do


Renascimento tinha suas fontes nos ritos cômicos, velhos de milhares
de anos, na dualidade da percepção do mundo e da vida humana
que existia nas sociedades antigas, nas fontes e imagens cômicas
que, alteradas ao longo dos séculos pelo sistema de classes e
hierarquias, deram origem a uma linguagem própria de grande riqueza,
que expressava a percepção carnavalesca de mundo do povo.
Mesmo o riso já sendo um riso outro, era um riso festivo e
libertador.
Na Idade Média e no Renascimento o sistema de imagens da
cultura cômica popular, os elementos e as manifestações do
realismo grotesco coexistiam e se contrapunham às manifestações
do realismo renascentista, sério e oficial. No realismo grotesco, “o
cósmico, o social e o corporal estão ligados indissoluvelmente
numa totalidade viva e indivisível” (idem, p. 17). O princípio
material e corporal existe sob a forma universal, festiva e utópica.
Ele é marcado pelo rebaixamento e pela degradação de tudo o que
é espiritual e abstrato, trazendo para a terra e para o corpo tudo o
que é elevado, através do rebaixamento que faz renascer. O corpo
no realismo grotesco é o corpo fértil, aberto e coletivo, que tem uma
vida abundante marcada pelo exagero, pela festividade, pela
unidade com o corpo coletivo. O riso é ambivalente, possui uma
força indestrutível que destrona e liberta. Uma visão de mundo que
se contrapunha ao sério, ao corpo isolado, egoísta, individualista,
mesquinho e burguês, que revelava um modo de vida pré-
determinado, fragmentado, um corpo jovem, perfeito, fechado em
si, idêntico a si mesmo. Os cânones do realismo grotesco
dialogavam, lutavam e se interpenetravam com os cânones
clássicos, instituídos por uma sociedade já dividida, em que o
homem vivia sua vida privada e se distanciava da praça pública.
Bakhtin, em seu estudo, viu que as forças do cômico popular, do
riso ambivalente e libertário deste período se degeneraram nos
séculos seguintes, no romantismo e no modernismo, “perderam
seu polo positivo, sua relação com um universo em evolução”

1306
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(idem, p. 21), “seus laços vivos com a cultura da praça


pública” (idem, p. 30). Entretanto, ele nos provoca: essas forças do
riso não morreram, pois são INDESTRUTÍVEIS! “Embora reduzido
e debilitado, ele (o riso popular) ainda assim continua a fecundar
os diversos domínios da vida e da cultura” (idem, p. 30).
Se não morrem, onde estão? Como ver as faíscas dessas forças na
vida contemporânea? Seria possível? Elas vivem como ruínas. Mas
onde?

Compreender a cultura: um ato responsivo


Bakhtin, buscando compreender a obra de Rabelais e a cultura
popular na Idade Média e no Renascimento, – uma vez que
percebeu que as fontes populares destes períodos determinam o
sistema de imagem e a concepção artística do escritor – desenha um
panorama das manifestações e das forças libertárias do realismo
grotesco. E neste estudo, mostra como o cômico popular se
transformou ao longo dos séculos e levanta suas características.
Ele nos provoca dizendo que o realismo grotesco sempre foi
enfrentado e visto a partir dos cânones burgueses como algo
menor, de baixa qualidade. Que a complexidade do realismo no
Renascimento ainda não foi suficientemente enfrentada pelos
pesquisadores ao longo dos séculos (BAKHTIN, 2013, p. 21), uma
vez que possuía duas vertentes e apenas uma é valorada
positivamente: a oficial, a derivada da burguesia, que apresentava
um princípio fragmentário e rotineiro de uma vida pré-
estabelecida, fechada em si. A outra vertente, derivada da cultura
popular daquela época, que apresentava o princípio do
eternamente ridente, destronador, renovador, inesgotável e
indestrutível, ainda precisa ter seus sentidos reestabelecidos (idem,
p. 26).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Tal colocação me inquieta: Como nos aproximamos de uma cultura


outra, de uma época, de um lugar, de um povo tão distante de nós?
Podemos acessar as forças e os sentidos da cultura cômica do
Renascimento, um momento (e talvez um dos últimos da cultura
europeia) em que existiam resquícios do homem aberto, da praça
pública, do homem coletivo, se vivemos atualmente tão afastados
e desconectados do ventre fecundo da terra e do povo (idem, p.21),
dessa unidade que parece ter sido perdida, sob o paradigma da
vida privada, individualizada e fragmentada? Seria possível
atravessar as fronteiras de épocas e acessar esse riso ambivalente,
que destrona e ao mesmo tempo faz renascer?
Bakhtin mostra que é possível, e trago aqui algumas pistas que
encontrei em sua teoria.
Primeiro, para o filósofo, a cultura não é uma categoria abstrata ou
algo com um sentido em si. A cultura é enformada nos signos: nas
manifestações, ritos, linguagens e obras da humanidade,
portadores materiais de sentido. E esses enunciados, como
conjuntos complexos de signos, são textos produzidos pelos
homens e precisam ser compreendidos como tal.
Desta forma, podemos falar ao mesmo tempo em muitas culturas e
na cultura como uma: a humana, entendendo que ela é composta
por textos e signos constituídos por uma pluridiscursividade
dialógica (PONZIO, 2020). Ao nos aproximarmos de tempos e
espaços determinados, podemos escutar as tensões ideológicas e
condições específicas nos quais esses textos e enunciados são
criados e coexistem em uma determinada comunidade e, até
mesmo, em um indivíduo. A cultura não é singular, ela é feita de
muitas culturas interpenetradas, mas nunca uma, sempre muitas,
ou uma unidade complexa.
Segundo, para conhecermos uma cultura outra, um rito outro, uma
pintura, um texto, um gesto outro, devemos, segundo Bakhtin, ver
o outro como outro, como outra consciência, e realizar um
movimento de compreensão criadora: tentar uma aproximação para

1308
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

olhar o mundo com os olhos daquela época (mesmo sabendo que


isso não é possível totalmente), daquele contexto, daqueles textos e
dar uma resposta, que não renuncia ao nosso tempo e lugar.
Escutamos o outro, seus signos, em uma relação alteritária,
cotejando textos e criando sentidos, pois nossa escuta é criadora.
Para Bakhtin, um texto “só tem vida contatando com outro texto
(contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que
ilumina retrospectivamente e prospectivamente, iniciando dado
texto no diálogo” (BAKHTIN, 2011, p. 401).
Algumas concepções, as antropológicas, por exemplo, acreditam
que é possível ver a cultura do outro, olhar o mundo como o outro
e fazer, em seguida, um tipo de reconstrução daquela vida e de seus
sentidos. Porém, práticas assim são unilaterais e empobrecedoras,
pois partem do princípio de que há uma verdade em si, que pode
ser descoberta e revelada, e não acrescentam nada de novo no
encontro (idem, p. 366). Para Bakhtin, a compreensão criadora é
ativamente responsiva, dialógica, cocriadora e ela “continua a
criação, multiplica a riqueza artística da humanidade” (idem, p.
378).
Dessa forma, não temos como “descobrir” ou “revelar” os sentidos
de outra cultura, como se os sentidos estivessem ali para serem
descobertos. Mas, podemos sim compreender a cultura do outro,
criando sentidos nesse ato responsivo, cotejando textos do nosso
tempo, do nosso lugar único e insubstituível que ocupamos, em um
diálogo que supere fechamentos de sentidos, uma vez que estes são
infinitos!
Hoje, vemos sentidos nas pinturas da Idade Média que os homens
daquela época não percebiam naquele contexto, vemos mais, pois
vemos do nosso lugar e do grande tempo da história.

A compreensão recíproca entre séculos e milênios, povos, nações e


cultura assegura a complexa unidade de toda humanidade, de todas

1309
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

as culturas (a complexa unidade da cultura humana), a complexa


unidade da literatura da sociedade humana. Cada imagem precisa
ser compreendida e avaliada no nível do grande tempo (BAKHTIN,
2011, p. 407).
Mas é preciso afirmar que não vemos “do nada”, “inventado”.
Vemos a partir do diálogo e da escuta com os signos materiais
encarnados daquela vida. Vemos a partir do nosso lugar
distanciado – no tempo, no espaço e na cultura – em relação ao
outro que buscamos compreender. Um ver que não é inaugural,
mas um ver responsivo. Temos uma memória do passado e do
futuro daquelas manifestações.
Foi isso que Bakhtin fez para compreender a obra e o contexto de
Rabelais: se aproximou da cultura popular encarnada nas
manifestações, nos ritos e espetáculos da época, nas obras verbais,
no vocabulário familiar e grosseiro da Idade Média e do
Renascimento. E, a partir daí, dessa compenetração, viu um tempo
em que o povo vivia em unidade com a terra, com o cosmo. Um
tempo em que o povo pulsava com a força do riso da praça pública.
Sem renunciar ao seu lugar no tempo e a sua cultura, Bakhtin viu
beleza naquele povo. Escutou sua força. E, do seu lugar único e
insubstituível, percebeu que aquele riso libertário se enfraqueceu,
mas não morreu, uma vez que é indestrutível. Bakhtin viu que
aquela força está em nós, mesmo que enfraquecida, e deu a ver o
que viu, nos convocando a ver também, pelo cotejo de textos e nas
linguagens, outras culturas, outros textos invisibilizados, a partir
de outros paradigmas, que não os de morte, fechamento e
apagamento do humano.

O realismo grotesco no mundo contemporâneo


Bakhtin, buscando compreender a obra de Rabelais e a cultura
popular da Idade Média e do Renascimento, - uma vez que
percebeu que as fontes populares destes períodos determinam o
sistema de imagem e a concepção artística do escritor - desenha um

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

panorama das manifestações e das forças libertárias do realismo


grotesco. E neste processo de estudo, mostra como o riso e o cômico,
dentro do sistema de imagens da cultura popular vêm se
transformando ao longo dos séculos, e nos provoca a ver essa força
no mundo contemporâneo.
Levantando as características do realismo grotesco, ele ressalta o
aspecto do baixo corporal, do corpo aberto e incompleto
(agonizante-nascente ou prestes a nascer), que não está nitidamente
delimitado no mundo: está misturado ao mundo, confundido com
animais e as coisas. Um corpo cósmico, que representa o conjunto
do mundo material e corporal de todos os seus elementos.
(BAKHTIN, 2003, p. 24).
Bakhtin vê as imagens da Idade Média e do Renascimento, que
apresentavam essa visão de mundo popular, coletiva e libertária,
da vida que continha a morte, da velha grávida que continha a vida
em seu ventre, da criança que nascia pela boca da mãe, do gigante
que urinava e alagava o mundo. Imagens ambivalentes e
regeneradoras, de dois corpos em um, um corpo prenhe, em estado
de parto. Imagens de mundo festivo, de luz, primaveril, matinal e
auroreal por excelência (idem, p. 36). Signos que apresentam as forças
libertárias de um povo que vivia em unidade com o mundo.
IMAGEM?
Bakhtin diz que temos uma memória do grande tempo e a
acessamos, não como acredita a psicanálise, pelo inconsciente
coletivo: uma nuvem de símbolos com sentidos fixos que paira
sobre os homens ou dentro dos homens, mas a acessamos pela
memória das línguas, dos gêneros, dos rituais, nas linguagens
(BAKHTIN, 2011, p. 380). Essa memória penetra nos discursos e
nos sonhos (narrados, conscientemente lembrados) dos homens
pelos símbolos, que são continuamente renovados a cada novo
diálogo, por sujeitos encarnados, em um determinado contexto
histórico, social e cultural (BAKHTIN, 2019).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Como faíscas, vejo as forças libertárias do realismo grotesco,


daquele riso ancestral que encarna a unidade do homem com o
cosmo e do corpo que renova a vida, nos desenhos das crianças.
Pela linguagem, nos gêneros, vejo que elas vivem a conexão com
essa força que, em muitos, se enfraqueceu, mas não morreu, como
tentam afirmar alguns discursos.
Como faíscas, vejo que as crianças tocam, pela linguagem, signos
que se renovam nesse diálogo e em suas criações, iluminando
retrospectivamente e prospectivamente todos os sentidos da
humanidade.

“Máscara caindo. Somos árvores”


Manuela da Silva Sawabini, 11 anos, 2020.

NOTA: Esse projeto discursivo foi criado a partir da composição de


três pequenos textos. A repetição do primeiro parágrafo, em cada
parte, é um recurso linguístico usado para dar unidade à escritura.

Referências:
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Trad. Yara Vieira - São Paulo: Hucitec,
2013.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6 ed. Trad. Paulo Bezerra -
São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. O homem ao espelho: apontamentos dos anos 1940.
Trad. Cecília Maculan, Marisol Barenco, Maria Leticia Miranda -
São Carlos: Pedro & João Editores, 2019.
PONZIO, A. Livre Mente: processos cognitivos e educação para a
linguagem. Trad. Marcus Vinicius e Marisol Barenco de Mello. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2020.

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O RETRATO GROTESCO DA FOME: UMA ANÁLISE


DIALÓGICA DE PANEM AT CIRCENSES EM JOGOS
VORAZES

Mikaela Silva de Oliveira


UFRN
mikaelasilva682@gmail.com

Há um lado sombrio e perturbado da vida.


Mas há um lado alegre e luminoso também.
(A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, Suzanne Collins)

Na obra distópica de Suzanne Collins, Jogos Vorazes (2010), vemos


um retrato triste e deplorável das ações de um governo opressor
sobre a população, levando crianças e adolescentes (tributos) a
uma arena para lutarem entre si pra sua sobrevivência, em um jogo
(voraz) planejado para servir de lição aos distritos que esse governo
atua. Ao longo da obra, o tema fome é reforçado pela protagonista,
Katniss Everdeen, mostrando os dois extremos da fome do
país, Panem. Enquanto uns morrem de fome nos distritos, na
Capital do país pessoas enchem-se em banquetes, demonstrando o
ato grotesco do comer. Nesse ponto, esse texto vem a tratar da
relação dialógica da cena do grotesco, de Bakhtin, com o retrato da
política de pão e circo de Jogos Vorazes.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Parte 1: A fome do corpo tributo


Segundo Bakhtin, “o comer e o beber são uma das manifestações
mais importantes da vida do corpo grotesco. [...] É no comer que
essas particularidades se manifestam da maneira mais tangível e
mais concreta: o corpo escapa às suas fronteiras, ele engole, devora,
despedaça o mundo [...] (1993, p. 245). É esse retrato em que o corpo
grotesco da Capital se manifesta com clareza, o ato de comer
perturba tanto os que passam fome quanto aos que se esbanjam.
– Pelo menos vocês dois têm bons modos – diz Effie Trinket assim
que terminamos o prato principal. – O par do ano passado comeu
tudo com as mãos, como um casal de selvagens. Perturbou
completamente minha digestão.
O par do ano passado eram dois adolescentes da Costura que
jamais, em nenhum dia de suas vidas, tiveram comida suficiente
em suas mesas. E quando tiveram comida, a etiqueta certamente foi
a última coisa em que pensaram. (COLLINS, 2010, p. 52)
A fala da Effie, que tanto incomoda a protagonista, demonstra esse
ato grotesco que se manifesta pela boca, o simples ato de comer não
é simples, a falta do comer refrata no corpo que extrapola, ao se
aproximar do mínimo que lhe foi negado. “A verdadeira felicidade
surge, muito antes, do excesso, do alegre, do exuberante, do sem-
sentido; a saber, do transformar em luxo o necessário (HAN, 2020,
p. 74-75)”, isto é, quando aquilo que é tão distante do ser é rejeitado,
algo básico de sua sobrevivência se torna tão seletivo, tão restrito,
que se torna luxo e a única razão de felicidade para os habitantes
desse distrito é saciar essa fome.

Parte 2: Os jogos festivos do banquete


Bakhtin, ao falar de Rabelais, retrata bem a cena de banquete que
envolve o corpo grotesco da fome. É no banquete que a cultura
popular se mostra com mais clareza, é a fartura, o exagero, o

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extremo. “Essa tendência à abundância e à universalidade é o


fermento adicionado a todas as imagens de alimentação, graças a
ele, elas crescem, incham até atingir o nível do supérfluo e do
excessivo (BAKHTIN, 1993, p. 243)”. O povo da Capital vê os
banquetes como algo festivo, alegre, sinal da boa ação do governo
para eles, a utopia dentro da distopia, a vida boa dentro do mundo
mau. Extremos que a Katniss percebe e o desmonta.
A única coisa em que consigo pensar é nos corpos flácidos de
nossas crianças em nossa mesa de cozinha, enquanto minha mãe
receita o que os pais não têm condições de dar a elas. Mais comida.
Agora que somos ricos, ela manda um pouco para elas levarem
para casa. Mas antigamente, com muita frequência, não havia nada
a ser dado e a criança não tinha como ser salva. E aqui na Capital
eles vomitam pelo prazer de encher seus corpos ininterruptamente.
Não por causa de alguma enfermidade do corpo ou da mente, nem
por causa de alguma comida estragada. É o que todo mundo faz
numa festa. É o que é esperado. Faz parte da diversão. (COLLINS,
2011a, p. 91)
Enquanto um lado do castelo abriga a fartura do banquete, no lado
de fora a falta estrangula. É nesse banquete que os extremos se
mostram, as bocas escancaradas do riso aparecem, felizes por
poderem mostrar que tem, que possuem, que são felizes, que
esbanjam felicidade. É sobre isso que fala o Panem et Circenses,
tirar o pão de quem tem fome, dar a quem não tem, e transformar
esse ato grotesco em diversão para os privilegiados.

Parte 3: Os vitoriosos ou (sobreviventes) do Panem et Circenses


– É um ditado de milhares de anos atrás, escrito numa língua
chamada latim sobre um lugar chamado Roma – explica ele. –
Panem et Circenses se traduz por “pão e circo”. O escritor queria
dizer que em retribuição a barrigas cheias e diversão, seu povo
desistira de suas responsabilidades políticas e, portanto, abdicara
de seu poder.

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Penso na Capital. No excesso de comida. E na diversão mais


importante de todas: os Jogos Vorazes.
– Quer dizer então que é para isso que servem os distritos. Para
fornecer o pão e o circo. (COLLINS, 2011b, p. 241)
A única função dos distritos para a Capital é fornecer suprimentos,
cada distrito é responsável por uma atividade, como o distrito da
Katniss é responsável pelo carvão. Pouco fica para os distritos,
poucos são aqueles que conseguem viver da atividade e a Capital
deixa acontecer. Não é por acaso que a autora cita o Panem et
Circeses na história, é a verdadeira política de fornecer o banquete.
“O banquete celebra a vitória, é uma propriedade característica da sua
natureza. O triunfo do banquete é universal, é o triunfo da vida sobre a
morte. Nesse aspecto, é o equivalente da concepção e do nascimento.
O corpo vitorioso absorve o corpo vencido e se renova” (BAKHTIN,
1993, p. 247). O corpo grotesco aqui revela-se no poder que o comer
traz, o banquete demonstra supremacia, vitória, hierarquia, a
Capital demonstra sua superioridade mostrando o banquete como
algo exclusivo, como forma de enfraquecer os distritos, para que
eles não se rebelem, ao mesmo tempo que os usam a beira do
banquete como bobos da corte para causar o riso aos superiores,
através do jogo da fome, Hunger Games.

Considerações Finais
Esse ponto da obra, o Panem et Circenses, demonstra, assim como
Bakhtin viu em Rabelais, a figurado corpo grotesco à mesa, mesmo
a mesa na obra sendo uma arena. O banquete trata-se aqui como
prémio, mas um prémio com muita luta por traz, como nos
banquetes medievais, o povo planta, o rei come. O povo de Panem
morre, para a Capital rir. Um verdadeiro espetáculo de horrores.
Mas é isso que o corpo grotesco da Capital reduz os distritos, a um
entretenimento. “Para ser, para pertencer ao mundo, é preciso ser
algo que entretém. Apenas aquilo que entretém é real ou efetivo.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Não é mais relevante a distinção entre mundo fictício e mundo real,


[...]. A própria realidade parece ser um efeito do entretenimento.
(HAN, 2020, p. 206). Os tributos só se tornam algo de valor no ato
de entreter, o ato do pão e circo acontece quando o povo se torna
entretenimento. Tudo não passa de entretenimento para deixar um
lado mais feliz e o outro preso ao poder da fome.

Referências
BAKHTIN, Mikhail Mikahailovitch. O banquete em Rabelais. In:
BAKHTIN, Mikhail Mikahailovitch. A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução
de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 1993, p. 243-264.
COLLINS, Suzanne. Jogos Vorazes. Tradução de Alexandre D’Elia.
1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2010.
COLLINS, Suzanne. Em Chamas. Tradução de Alexandre D’Elia. 1ª
ed. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2011a.
COLLINS, Suzanne. A Esperança. Tradução de Alexandre D’Elia. 1ª
ed. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2011a.
HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento: uma desconstrução da
história da paixão ocidental. Tradução de Lucas Machado. 2ª
reimpressão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O riso e o grotesco na pós modernidade

ROSELI WANDERLEY DE ARAUJO SERRA


UNICAP
rfserra@gmail.com

Em seu livro sobre Rabelais, escrito na segunda metade da década


de 1930 e na década de 1940 , Mikhail Bakhtin (2008) apresentou
Gargantua e Pantagruel como um mundo único e estrangeiro, ao
mesmo tempo belo e repulsivo. Em seu marco Rabelais e seu
mundo (1965), Bakhtin sugeriu que o riso que ressoava na obra de
Rabelais era particular e praticado em momentos específicos. É
uma espécie de riso que, como qualquer um dos inúmeros dialetos
ou línguas ao longo dos milênios, murcha e morre. A possibilidade
de reviver o riso rabelaisiano é tão assustadora quanto, digamos,
reviver uma guerra mundial.
O riso não difere dos sistemas políticos, das relações comerciais ou
das práticas artísticas: evolui ao longo do tempo, e é resultado e
causa de transformações materiais e sociais. Para o homem
medieval, o riso era o grande nivelador.
Inclusivo e comunitário, o riso não deixou ninguém intocado; não
menos universal do que a fé, era um pouco mais subversivo. Na
verdade, como observa Bakhtin (2008), o riso do final da Idade
Média marcou uma vitória, embora temporária, não apenas sobre
o sagrado e até sobre a morte; também sinalizou “a derrota do
poder, dos reis terrenos, das classes superiores terrestres, de tudo

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que reprime e restringe”. Para o homem medieval: ria e o mundo


inteiro rirá com você .
O riso tem diferentes faces: pode ser curativo, alentador, irônico,
sádico e portanto, grotesco. Ri-se do que é considerado feio,
estranho, anormal, fora das normas sociais estabelecidas pela
humanidade. Ri-se também daquilo que é velado. Ri-se do
grotesco, inclusive.
O termo grotesco está associado ao sentido de algo escondido e, por
isso, perturbador. A palavra vem do italiano grottesca, que, por sua
vez, é derivada de grotta, ou seja, gruta. No século XV, a palavra
era usada para descrever decorações estranhas ou pinturas
ornamentais descobertas nas paredes subterrâneas dos banhos
termais do imperador Tito em Roma.
Assim como algumas obras de arte distorcem a ordem normal do
mundo, revelando que figuras surpreendentes nas formas vegetal,
animal e humana são arranjadas com a excepcional independência
artística, as sociedades humanas de “tom sério”, para não dizer
hipócritas, tendem a se sentir indignadas com as manifestações
dessa categoria estética não só na arte, mas na vida. O grotesco,
assumiu então o significado de mau gosto, imperfeição (mas não
necessariamente obscenidade), ridículo, monstruoso e até
diabólico.
A grotesca imagem bakhtiniana é caracterizada pela versatilidade
de transformação ou metamorfose. Sua ambivalência é
extraordinária, semelhante à sua atitude em face do tempo e da
evolução. Sua ousadia perpétua modifica o antigo e incorpora o
novo; isso permite a associação de elementos heterogêneos que
afrontam o bom senso. Entende que tudo o que existe é relativo e
também que a ordem das coisas no mundo pode sofrer infinitas
alterações. O grotesco é dinâmico, provocando a morte dos velhos
e a germinação do que está por vir.
A representação do corpo, da linguagem corporal e as funções do
corpo, por séculos têm sido preocupações comuns centrais das

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sociedades preconceituosas e moralistas, que não convivem bem


com a diversidade publicamente, mas que literalmente vão a
público para a praça do carnaval fantasiar-se e abraçar aquilo que
ela mesma condena: os papéis invertidos, a liberdade de mostrar-
se, a coragem de ser quando escondido atrás das máscaras e das
fantasias que lhe permitem ser aquilo que desejam ser, nem que
seja por alguns dias.
Embora o grotesco seja difícil de definir, sabemos quando o vemos.
Seria possível, que em nosso tempo, o grotesco tenha se tornado o
aterrorizante? Acreditamos que sim.
Por exemplo, o que pensou a sociedade quando trabalhadores de
colarinho azul e branco uniram-se a ativistas estudantis em 2011
para protestar contra os valores desumanizadores corporificados
por Wall Street? Afinal, um grupo de pessoas vestiu a máscara
sinistra do herói anarquista Anonymous do filme V de Vingança
(2005). A máscara foi inspirada na icônica figura de Guy Fawkes,
“o único homem que entrou no parlamento com intenções honestas
para matar o rei”, e cuja imagem acabou se tornando um símbolo
de rebelião e até da anarquia. As máscaras não apenas protegiam
suas identidades, mas também sinalizavam que, embora essas
pessoas tivessem origens diferentes, eles compartilhavam
preocupações comuns.
Essa convergência de opostos socioprofissionais, junto com sua
fusão de referências culturais contemporâneas com demandas
éticas atemporais, tudo o que se desenrolou no palco de Wall
Street, estava fundido no grotesco.
O riso do carnaval é “dirigido a todos e a todas, incluindo os
participantes do carnaval”. Inclusiva e comunitária, esta risada tem
um significado filosófico profundo, é uma das formas essenciais da
verdade sobre o mundo como um todo. Como tal, o riso medieval
desafia a seriedade medieval.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sobre esta última, Bakhtin (2008) postula que na seriedade


medieval estão os elementos de medo, fraqueza, humildade,
submissão, falsidade, hipocrisia ou, por outro lado, violência,
intimidação, ameaças e proibição. Como se estivesse olhando para
a nossa era pós-moderna tanto quanto para o início da era moderna
de Rabelais, Bakhtin acrescenta que esse tipo de seriedade oprimiu,
amedrontou, amarrou, mentiu e vestiu a máscara da hipocrisia.
E assim, há milhares de quilômetros de distância, e vários séculos
depois, nos vemos mergulhados em um tipo semelhante de
liminaridade que deu errado. Aqui, também, o grotesco tem
balançado a estética na nossa esfera política, religiosa e social.
Assumindo que , na pós modernidade o grotesco é o grotesco,
assumiu então o significado de mau gosto, a soceidade
conservadora consider que grotescas são as paradas gay, as
manifestações em favor do aborto, do negro, do índio , das pessoas
empoderadas assumindo seus cabelos e corpos que fogem aos
padrões daquilo que é considerado belo, quando o belo é apenas
uma questão de ponto de vista com base naquilo que é agradável
aos olhos de cada um.
Na verdade, grotesca é a fome, a miséria, a misoginia, a homofobia
e exploração do outro. Grotescos são os abismos sociais, a
desvalorização da vida e o pouco ou nenhum desejo de que a
humanidade tenha minimamente condições de boa moradia, saúde
e educação.
Bakhtin fez distinção entre o riso da Idade Média e o que ele chama
de “a pura sátira dos tempos modernos”. O satirista moderno, ao
contrário do bobo da corte medieval, situa-se acima do mundo de
que zomba. O riso inspirado no carnaval, ao mesmo tempo em que
zombava, também zombava dos zombadores.
Numa frase atribuída ao moribundo Rabelais, ele supostamente
declarou: “Não tenho nada, devo muito, e o resto deixo para os
pobres.” Esta é a regra de ouro para o escárnio dos que estão no
poder: deixe-os rindo para nós mesmos, não menos do que para

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

eles. Retire-se do escárnio e corra o risco de comprometer não só as


melhores instituições políticas, mas também a nossa humanidade.
E era assim que Rabelais queria. Para o bom doutor, o grotesco não
era um insulto, mas sim um insight da condição humana. Mais de
meio milênio depois, em um mundo dominado pela indignação e
indignação e em grande parte abandonada pelo riso, uma dose do
grotesco pode ajudar a digerir melhor os acontecimentos, pelo
menos dando uma boa risada.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo/Brasília: Hucitec/Editora Universidade
de Brasília, 2008.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O RISO NOS SALVARÁ. ALELUIA IRMÃO!

ANA ELISA ALVES DOS SANTOS


Rede Municipal do Rio de Janeiro
anaelisa.alsan@gmail.com

“Ninguém pode saber onde termina o medo dominado e onde começa a


alegria despreocupada”.
Mikhail Bakhtin

TEATRO[1]: (raiva) Tô saindo fora. Cansei de você.


ESCOLA: Me deixa explicar. Tá havendo um mal entendido.
Calma!
TEATRO: Não tá havendo mal entendido nenhum não. Cansei de
bancar o palhaço, só isso.
ESCOLA: Eu não te traí, você tá tão nervoso que nem consigo
explicar...
Teatro e Escola estavam brigando novamente. No corredor. Ali
mesmo, na saída do auditório as vozes se enraiveceram.
TEATRO: Como assim a gente não pode ensaiar?
Toalhas, mesas e cadeiras foram colocadas no espaço do auditório
após o almoço. Formatação esta que não poderia ser alterada.
Aquela decisão autoritária na ausência dos estudantes deixou
Teatro muito, mas muito furioso.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

TEATRO: Tem nada pra explicar não. Tá tudo muito claro. Não
pode tirar suas cadeiras do lugar. Não pode fazer barulho. Não
pode ensaiar em outro horário. Não pode fazer festa que não seja
cívica. Não pode tirar os armários do lugar. Não pode montar peça
com temas polêmicos. O que seriam temas polêmicos? Não, não e
não. O que mais é não? Até Olodum você diz que é macumba. Já
nem sei mais com quem estou lidando. Se isso não é traição o que
que é então? Que tipo de escola é você? Tô sufocado, porra!
Em meio àquela revolta, a terrível metamorfose. Se Teatro ficasse
muito nervoso... Ai, ai, ai. Agora já não dá mais tempo. É
irreversível! Teatro começa a se contorcer em espasmos
musculares. Hiperventilação à vista. Um mugido de revolta
estreme as paredes de Escola. Com o pouco de sanidade que ainda
lhe restava, Teatro sai correndo em quatro patas, arromba os
portões com seus chifres já enormes e ganha o mundo correndo
como um louco. Sim! Teatro havia se transformado no indomável
Touro de Creta. Um touro de qualidades extraordinárias, poupado
por Minos do sacrifício ao deus Poseidon. Indignado, o deus
Poseidon amaldiçoou o touro fazendo com que fosse tomado por
uma fúria incontrolável (Graves, 2004, p.166).
Já deu para perceber que este touro não era de brincadeira. Muito
perigoso! Em seu novo estado de consciência, Teatro corre pelas
ruas da cidade cuspindo fogo pelas ventas, causando terror.
Naquele momento, sua cólera era incontestavelmente irrefreável.
Esse guerreiro de tantas vicissitudes, corria e corria completamente
transtornado; seguia disparado, assustado pelo barulho das
buzinas dos carros. De súbito, a trombeta ensurdecedora de uma
carreta monológica estronda nos ouvidos. Pancada brusca. Gritos
de pavor! E flutuou no ar como se fosse sábado. E tropeçou no céu como
se ouvisse música... E se acabou no chão feito um pacote tímido[2].
Teatro. Transfigurado.
Touro abatido estava.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Assassina! Ignominia-Monológica!
Nós vamos protestar. No torpor sem esvaziar. Mas... sua força lá se
vai
O ar entra... O ar sai... O ar entra... O ar sai... Entra...
Sai...................................

A trajetória de Teatro aqui no Brasil nunca foi fácil, sempre


caminhou tendo que brigar pelo seu direito à palavra-gesto-
libertária. E sua luta por uma escola democrática nunca foi menor.
Muito pelo contrário, sempre foi muito intenso na peleja de “dar”
vozes aos estudantes. Cansado estava de ser encarado apenas como
um instrumento pedagógico. Embotado estava como ferramenta-
ajuste de jovens indisciplinados. Esgotado estava de ser percebido
como potencial didático para o ensino de outras disciplinas.
Exaurido estava do seu papel constrangedor de bobo da corte nas
festas cívicas. Ele só queria ser ele mesmo. Polimorfo, fecundo,
divertido. Então é isso? Eu sou obrigado a transmitir comportamentos
entendidos como socialmente aceitos? Era só o que me faltava! Pensava.
A essa altura, Teatro já vislumbrava um clarão em forma de túnel
a convidá-lo. Dionísio com um sorriso embriagado e um cálice na
mão, surge no portal de entrada do “Céu das Artes” para recebê-
lo. Seria esse o seu fim na escola? Dionísio derrama o elixir-
derrisório contido em seu cálice na cabeça do nosso agonizante.
Teatro ainda sob o efeito de sua metamorfose taurina, estrebucha a
escutar risos, muitos risos; de longe, de perto, vocalizados, agudos,
sonoros, explosivos... Era como se um saco gigante de gergelim
tivesse explodido cheio de gargalhos com bocarras escancaradas.
Eram risos com peidos de todas as idades. Imagens começam a
flutuar na sua mente...
APRESENTADOR (eufórico): E com vocês - Aaas Irmãããs
Gorduraaaa[3]!!!
Sutiã de frigideira cobrindo os peitos masculinos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Pança nua bamboleante com shortinho


Imagem costurada no riso ambivalente
Exagerado-Carnavalesco
Cômico-Grotesco
Funkesco
(Alto grau de toxidade dardejada aos corpos esculpidos pela lei)
No auge do refrão-no-batuque-do-funk, Gabriel - um jovem de 14
anos, exsudando por todos os seus poros e orifícios, agarrava suas
banhas com as pontas dos dedos e as sacudia vigorosamente.
Escândalo. Escândalo de caráter libertário! O auditório lotado da
escola se mijava de tanto rir. Sem dúvida, um acontecimento que
nos reporta às fontes populares medievais da cultura na praça
pública, onde o cômico destrona as regras e quaisquer
possibilidades hierárquicas. As Irmãs Gordura botaram pra quebrar
literalmente. Quebraram o sério. A imagem artística por elas
produzida deslocou pelo riso o sério enfadonho-fabricado no
cotidiano escolar. Fomos para bem longe das bundas amassadas
por horas numa cadeira, mergulhamos nas águas fronteiriças entre
arte-vida e nos refrescamos ao sabor das ondas cômico-grotescas.
As bocas se escancararam e escarraram de tanto rir. As gargalhadas
gargalhantes expulsaram o medo da culpa pela opressão. Não
havia espaço para consciências dominadas naqueles instantes de
êxtase libertador. O riso ambivalente, não excludente, alegre,
festivo e regenerador[4], partiu como bala de canhão explodindo os
grilhões da seriedade que oprimem um corpo livre. A figura
provocativa da alegria reinante nesse existir-evento-único havia
perfurado as barreiras canônicas do corpo trancado, do corpo
“perfeitamente pronto, acabado, rigorosamente delimitado,
fechado, mostrado do exterior, sem mistura, individual”[5].
Estamos vivendo numa cultura em que, segundo Certeau[6](...) o
direito se “apodera” dos corpos para fazê-los seu texto. Texto este que a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

escola confinante de inúmeras grades e cadeados escreve pelos seus


rituais cotidianos, as regras e hábitos condicionantes do corpo
preso no escafandro da assinatura abjeta da ordem dominante
pela modelação das carnes[7]. Não é à toa que muitos estudantes
saem correndo para as aulas de educação física, para as aulas de
artes, no intuito de escapar do espaço comprimido pelo tempo da
lei organizada numa ordem social.
Todavia, o riso ambivalente está aí, está aqui, está lá, acolá. Agora
mesmo. Totalmente disponível. Ludibriante que é, elixir curativo.
Às Irmãs Gorduras, nossas homenagens pela contrapalavra
producente da religação ao corpo grotesco de lei cósmica-universal.
Honrarias aos momentos de expurgo das forças canônicas do corpo
fechado circunscrito na lei. Louvores aos orifícios do corpo aberto
na unificação dos corpos por um riso só.

O céu foi testemunha naquele dia calorento.


Teatro expulsou a lei narrada para os corpos.
...Entrou pela boca do pinto...
...Saiu pelo cu do pato...
Quem quiser que conte quatro!

Mas o que é isso?


Nosso Touro-Teatro se estrebucha mugindo convulsivamente e
num pinote se levanta. Ele solta gargalhos extravagantes em
direção ao céu e volta a correr em disparada.

Fragmento Amplificador
A tensão aflorada entre Teatro e Escola advêm de pensamentos
antagônicos construídos pelo embate ideológico entranhado na

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

história do teatro-educação. A afiguração apresentada pelos


personagens alegóricos, evidenciam a necessidade de um caminho
libertador para ambos os lados. O que fazer então? Que atitude
tomar nas relações de um mundo em constantes disputas nos mais
diversos campos da cultura? O pensamento freireano traz como
reflexão filosófica muito importante, a consciência como arena de
luta ideológica de enfrentamentos políticos nas relações humanas,
que se constituem em um constante estar sendo em comunhão
mediatizadas pelo mundo[8]. Ser em comunhão. Relações em
comunhão. Estar em comunhão. Freire apresenta a realidade social
brasileira de origem capitalista em constantes conflitos numa
relação de opressor e oprimido baseado na luta de classes sociais.
Nessa dualidade, ambos, opressor e oprimido coexistem como
forças internas e externas constituídas socialmente, e que diante de
tais forças, o sujeito-humano se vê aprisionado contra a sua própria
natureza social. Da mesma forma, Teatro e Escola, como campos da
cultura, lutam numa arena que precisa ser outra, que precisa ser do
outro, que precisa ser alteritária. A arena da alteridade pode vencer
a supremacia por uma escola que respire processos
humanizadores. A opressão impõe a desumanização, enquanto o
oprimido imprime como um dos resultados, o fatalismo provocado
pela permanência do estado de coisas. Mas nesta jaula, Teatro
recusa-se a ficar. Na relação com base opressora é impossível um
caminho como via da construção do ser mais[9], do ser em
dialogismo com os outros; do teatro, da arte, como caráter
desafiador no âmago da concepção libertadora, presente no ser no
mundo[10], que se faz em ação-reflexão-transformação. Isso é o que
acreditamos. E esperamos que aconteça com o teatro nas escolas -
por uma transformação libertária. Na constituição humanizadora,
tanto Teatro quanto Escola, devem deixar o mundo da cultura
penetrar no mundo da vida, e o mundo da vida penetrar no mundo
da cultura, para o mergulho no ato responsável, no existir-evento-
único que supera a separação entre a cultura e a vida (Bakhtin,
2012, p.44). Nesta esfera, ambos, tornam-se inconclusos, abertos,

1329
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

livres para criar eventos de escuta e amorosidades. Para nós, a


ambivalência tem uma dimensão de interpenetração, onde o
mesmo e o diferente, estão no mesmo lugar. Onde tem cultura tem
vida. Onde tem vida tem cultura. Onde tem teatro tem escola, tem
educação, tem estética para uma vida ética. Cultura é o cultivo da
vida! Escola e Teatro provocaram reflexões em conflito, o confronto
dialógico traz em seu clímax o corpo grotesco e o riso libertador do
medo, da opressão, da morte. Teatro jamais seria o mesmo depois
de ouvir as gargalhadas dos estudantes provocadas pelas Irmãs
Gordura. O riso exprime a verdade sobre o mundo em sua totalidade,
sobre a história, sobre o homem, e seus saberes adquiridos na vida
social (Bakhtin, 2013, p.57). O riso destrona, entrona, regenera, traz
a vida de volta - a vida na cultura do grande tempo. O riso decerto
nos salvará!

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução
aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. 8ª edição. Tradução Yara
Frateschi Vierira. São Paulo: HUCITEC Editora, 2013.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 3ª ed. Petrópolis:
Editora Vozes, 1998.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2011.
GRAVES, Robert. Mitos gregos. São Paulo: Madras, 2004.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva,
2015.

Notas:

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[1] TEATRO E ESCOLA – Em letra maiúscula são tomados como


personagens alegóricos, como personificação de princípios
revestidos de atributos e propriedades definidas (Pavis, 2015, p.11).
[2] Letra da música Construção de Chico Buarque.
[3] Irmãs Gordura – personagem criado e apresentado pelo
estudante Gabriel do nono ano em 2018 na Escola Municipal
Sidharta da cidade do Rio de Janeiro.
[4] Bakhtin (2013, p.10)
[5] Bakhtin (2013, p.279)
[6] Certeau (1998, p.231)
[7] Certeau (1998, p.235)
[8] Freire (2011, p.102)
[9] O educador Paulo Freire utiliza este conceito para a
compreensão da natureza humana como vocação histórica na
busca do ser mais, o homem é um ser com os outros em comunhão
(2001, p.104 e 105)
[10] Freire (2011, p.100)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O RISO, O GROTESCO E O TWITTER: o que faz Irmã Zuleide


nessa arena?

Alan Eugênio Dantas Freire


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
alandfreire@gmail.com

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na construção das identidades contemporâneas, a sensação de
pertencimento a um grupo social torna-se uma insígnia coletiva
deveras cara à edificação dos valores individuais. Embora vivamos
uma época de individualismo em rede, conforme nos orienta
Castells (2011), os interesses em comunidade aparecem como forte
evidência daquilo que nos constituímos enquanto indivíduos. Por
essa razão, as redes sociais digitais surgem como vitrines da cultura
contemporânea, possibilitando a formação de multidentidades, ou,
no dizer de Hall (2006), das múltiplas identidades culturais.
O ciberespaço, assim, torna-se um valioso meio para a constituição
do real e das formas cotidianas de vida do homem contemporâneo,
que, imerso em uma liberdade de expressão como nunca vista antes,
destrói barreiras, efetiva laços sociais e traduz a sua experiência em
relação ao mundo e ao outro em seus discursos repletos de indícios
que fazem emergir as diversas identidades sociais.
No Twitter, rede social digital em que o usuário disponibiliza de
140 caracteres para comunicar, percebe-se claramente a
manifestação das visões de mundo dadas na contemporaneidade,

1332
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

a partir de perfis públicos que se interligam, de maneira a gerar


uma dinâmica própria entre “seguidos” e “seguidores”. Nesse
recente ambiente de linguagem e interação, podemos analisar a
identidade cultural dos seus usuários e as visões carnavalizadas
que estes possuem da sociedade, através de paródias que revelam
um costume cada vez mais evidente na internet: através da tela, o
usuário se esconde, revela-se e rebela-se.
Em consonância com essa assertiva, escolhemos o perfil
@Irma_Zuleide para a análise dessa visão carnavalizada do mundo
e da vida presentes no Twitter, a partir do qual é formada uma
paródia dos costumes evangélicos, promovendo uma
desritualização permeada pelo riso. No perfil analisado, é
construída a identidade de uma líder cristã, a partir de uma
linguagem grotesca, além de interações com seus seguidores, que
dão grande visibilidade aos usuários e nos permitem identificar
traços de um segundo mundo em relação à cultura evangélica.
Partindo dessa condição, entende-se que as identidades que
emergem das redes sociais digitais são excelentes exemplares da
transgressão contemporânea, marcada fortemente pelo que
Bakhtin (2010) concebe enquanto carnavalização.

O conceito de carnavalização para Bakhtin


Em sua tese A cultura popular na Idade Média e no Renascimento,
Bakhtin (2010) analisa a relevância do riso no entendimento do
contexto da obra de François Rabelais. Em seu texto, Bakhtin (2010)
entende a festa enquanto concepção carnavalizada do mundo e da
vida, propondo a carnavalização como uma atitude cônscia e
norteadora de uma proposta estética. Na Idade Média e no
Renascimento, o carnaval respondia enquanto festa pagã, onde as
hierarquias sociais impostas pela cultura escolástica eram minadas.
Mesmo que transitória, a festa assumia o caráter de liberdade,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

abundância, universalismo, uma vez que mantinha a possibilidade


de contrapor-se à cultura dominante. Assim, expõe-nos Bakhtin:
O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à
cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da
sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas
carnavalescas os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos,
gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e
categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem
uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura
cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e
indivisível. (BAKHTIN, 2010, p. 3-4).
Trata-se, assim, de uma quebra das rotinas sociais, manifesta em
uma realização do homem medieval, para quem a comicidade,
embora se contrapusesse à tradição, constituía elemento muito
importante para seu cotidiano. Além do carnaval, o elemento
cômico da cultura popular percorria outras tantas festas que
legitimavam a diferença em relação ao culto tradicional, gerando
antinomias essenciais para a formação de dois lados: os defensores
do riso e os representantes da oficialidade séria e conservadora.
Essa percepção do paganismo proveniente do carnaval,
contrapondo-se ao fundamento religioso, promove o entendimento
necessário do riso enquanto dessacralização, “ambivalente: alegre
e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo, burlador e sarcástico,
nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente”
(BAKHTIN, 2010, p.10). Configura-se, assim, como manifesto
democrático das camadas populares, propiciando a criação de um
mundo às avessas, em que “todos” riem, o que seria inconcebível
fora do carnaval.
Tais atividades cômicas resultam, para Bakhtin (2010), na formação
da cultura popular, em que coexistiam um segundo mundo e uma
segunda vida. Não se tratava de uma representação, mas de forma
efetiva da própria vida, como uma oportunidade de suspensão da
rotina ordinária a que os homens eram atribuídos. O homem
medieval não se comportava passivamente frente ao carnaval, mas

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o vivia, como bem nos sugere Bakhtin, ao defender a ideia de que


o carnaval se situava entre a arte e a vida cotidiana:
Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez
que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo.
Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do
carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma
fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de
acordo com as suas leis, isto é, as leis da liberdade. (BAKHTIN,
2010, p.6)
Dessa forma, percebe-se que equiparar o carnaval a mera
manifestação artístico-cultural seria desqualifica-lo enquanto uma
possibilidade de estetização da existência e de quebra dos tabus
vigentes, impostos por um regime que enaltecia o tom sério de seus
rituais.

Riso e Carnavalização no Twitter


É esse sentimento de transgressão e de liberdade, trazido pelo riso,
que permeia as redes sociais digitais, condicionadas pela
Cibercultura, proposta por Pierre Lévy, para quem a virtualização
aparece como o movimento constitutivo e de contínua criação da
nossa espécie, e não como um falseamento do real, “não se trata de
modo algum de um mundo falso ou imaginário. Ao contrário, a
virtualização é a dinâmica mesma do mundo comum, é aquilo
através do qual compartilhamos uma realidade” (LÉVY, 2011,
p.148). A Cibercultura assume, assim, uma dinâmica própria da
vida cotidiana, existindo enquanto espaço de livre comunicação e
informação, troca de saberes e interação entre os usuários.
Quanto às redes sociais digitais, especificamente, temos uma
interação mútua e emergente, com laços de pertencimento
relacional que estabelecem nós essenciais à sua manutenção. No
contexto brasileiro, elas tem se tornado uma febre, crescendo a cada
dia, com destaque para o Facebook e o Twitter, que acumulam o

1335
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

maior número de usuários. Para esta, temos uma rede mais simples
que aquela, em que os atores sociais estabelecem comunicação em
140 caracteres, tornando a interação mais rápida e, por que não
dizer, fluida.
O Twitter, bem como as outras redes sociais digitais emergentes,
tem promovido novas expressões do riso, uma vez que este tem
sido um grande atrativo para o uso de tais tecnologias. É comum,
inclusive, encontrarmos perfis unicamente cômicos, como o
analisado nesta pesquisa, de onde emergem identidades
evangélicas que beiram o grotesco. Ao contrário do que se espera
do modelo de vida moral, o perfil @Irma_Zuleide constrói outra
identidade, baseada na chacota dos evangélicos a partir de suas
próprias tradições e costumes. Tal percepção traz à tona o
pensamento de Bakhtin (2010), ao nos mostrar que o riso ritual,
distante do culto sério, evidencia o escarnecimento do herói e a
conspurcação do que seria sagrado.
No folclore dos povos primitivos encontra-se, paralelamente aos
cultos sérios (por sua organização e seu tom) a existência de cultos
cômicos, que convertiam as divindades em objetos de burla e
blasfêmia (“riso ritual”); paralelamente aos mitos sérios, mitos
cômicos e injuriosos; paralelamente aos heróis, seus sósias
paródicos. (BAKHTIN, 2010, p.5).

No Brasil, país de culto predominantemente cristão, as


denominações evangélicas têm crescido amplamente, adquirindo
uma visibilidade cada vez maior nos meios de comunicação de
massa. Essa disseminação da cultura evangélica nos apresenta um
ideal de vida ascética, marcada pela dualidade pecado e graça,
como também pelo uso de expressões que remetem às escrituras
bíblicas e a grandes figuras do Cristianismo. O que temos no perfil
analisado é uma desconstrução do heroísmo desses atores sociais,
a partir da sua paródia burlesca.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

@Irma_Zuleide: uma serva do Senhor e inimiga de Satanás.


O perfil @Irma_Zuleide aparece como um dos mais seguidos no
Twitter brasileiro, possuindo mais de 1.297.000 seguidores e de 29,5
mil postagens. Com um background com imagem de mulheres em
um culto religioso, o usuário assim se descreve: “Eu sigo Jesus e dou
unfollow em Satanás! Amém?”, com chamadas para dízimos via e-
mail. O usuário se apresenta como alguém que reside em Natal, no
Rio Grande do Norte, o que é retomado em algumas postagens que
fazem menção a lugares conhecidos da cidade.
Já em sua descrição, percebemos a utilização de uma linguagem
que evidencia o costume evangélico (pela utilização das palavras
Jesus, Satanás e Amém), mas que revela uma inovação no discurso,
com a utilização do estrangeirismo unfollow, que remete a uma
prática do Twitter, em que o usuário elimina da sua lista de
atualizações aquele que seguia antes. No próprio nome do usuário,
temos a expressão Irmã, como se tratam os evangélicos entre si,
aliado a Zuleide, lembrando um nome comum. Além disso, a
imagem atribuída ao usuário traz uma mulher de cabelos longos e
expressão serena, próprias da cultura evangélica, como podemos
ver a seguir.

1337
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 1 - Perfil de @Irma_Zuleide

O perfil Irmã Zuleide apresenta discursos de profanação contra


aqueles que “não seguem Jesus”, além de evidenciar o nome de
“Satanás” em suas postagens, como um inimigo que sempre a
tormenta. Para tanto, utiliza-se de expressões como “repreendido”,
“amarrado”, ou “Queima Jeová!”, dentre outras que guardam a
ideia da repreensão e que tem constituído o imaginário do povo
brasileiro quanto à cultura evangélica.

Figura 2 - Postagem 01 - @Irma_Zuleide

1338
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 3 - Postagem 02 - @Irma_Zuleide

Aqui, há o uso de linguagem hiperbólica e que confronta o bendito


e o maldito, dando especial destaque para o último enquanto
aquele que é responsável pelos desvios daquilo que seria uma vida
exemplar. Tudo o que pode desviar o ser do caminho perfeito é
atribuído a “Satanás”, inclusive nas situações mais comuns,
isentando o homem de sua responsabilidade ou culpa. Por outro
lado, aparece a figura bendita do “Jeová” como aquele que pode
vencer o inimigo, proporcionando uma dualidade presente em
grande parte das postagens de Irmã Zuleide. Esse confronto fica
explícito na postagem a seguir:

Figura 4 - Postagem 03 - @Irma_Zuleide

Ao passo que há uma associação entre “Satanás” e o vício do


tabagismo, também temos a “bíblia” sendo utilizada enquanto
arma, uma vez que guarda a palavra de “Deus”. Percebemos, desse
modo, que há um processo de desritualização, uma vez que o
sagrado das escrituras é substituído pela simbologia da violência
e/ou defesa física. Assim, há uma inversão do mundo, apresentada
através de uma espécie de contra-cultura ou de negação da
identidade primitiva.

1339
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 5 - Postagem 04

Supera-se o mero riso alegre, que passa a ter sua força regeneradora
enfraquecida, e vem à tona uma reflexão de tom satírico e cruel,
propiciando o realismo grotesco indicado por Bakhtin (2010) e o
complexo simbolismo das máscaras por ele elaborado.
O motivo da máscara é mais importante ainda. É o motivo mais
complexo, mas carregado de sentido da cultura popular. A máscara
traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre
relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a
negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a
expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das
fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara
encarna o princípio de jogo da vida, está baseada numa peculiar
inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas
mais antigas dos ritos e espetáculos. (BAKHTIN, 2010, p.35)
A máscara traz, assim, uma outra noção de pertencimento, uma vez
que, no perfil analisado, há a criação de um novo mundo,
contraposto à forma dominante que temos para a cultura
evangélica contemporânea, marcada pelo ideal de vida beata e de
serenidade frente ao mundo. Com o grotesco (Bakhtin, 2010), temos
a liberação do homem, destruindo quaisquer princípios de
tradicionalismo, mistificação ou seriedade. Este homem abre as
possibilidades para um novo mundo, a partir de “uma certa
carnavalização da consciência” (Bakhtin, 2010, p.43). As
identidades são, como ocorre na construção dos discursos de Irmã
Zuleide, desmistificadas, dando vazão à construção do elemento
cômico da cultura popular.

1340
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Diferentemente do contexto da obra de Rabelais, analisada por


Bakhtin (2010), as redes sociais digitais revelam um processo de
carnavalização perene, que independe de calendário festivo. Há
uma nova cultura, em que os limites do público e do privado são
ínfimos, promovendo uma espécie de compartilhamento que
traduz a velocidade do tempo ora instalado: tempo de urgências,
da fluidez, do instantâneo e da falta de privacidade. Vejamos como
Lévy, ao tratar da virtualização do presente, indica-nos a existência
virtual e seus modos de vida:
Ligada à emergência da linguagem, surge uma nova rapidez de
aprendizagem, uma celeridade de pensamento inédita. A evolução
cultural anda mais depressa que a evolução biológica. [...] A
passagem do privado ao público e a transformação recíproca do
interior em exterior são atributos da virtualização que também
podem ser muito bem analisados a partir do operador semiótico.
Uma emoção posta em palavras ou em desenhos pode ser mais
facilmente compartilhada. O que era interno e privado torna-se
externo e público. (LÉVY, 2011, p.72-73)

Na Cibercultura, especialmente nas redes sociais digitais, os


homens gozam de uma liberdade de expressão bastante singular,
que se vale da dessacralização imposta pelo próprio ciberespaço
para construir a si mesmo enquanto um ser livre das moralidades
vigentes. No ciberespaço, institui-se uma nova moralidade, que
não entende nenhum regime como dominante, mas os próprios
usuários são os responsáveis pela formação dos valores instituídos,
em acordos que são constantemente quebrados e/ou
transformados.
O perfil Irmã Zuleide, enquanto público, é amplificado, sai dos seus
prováveis limites da vida off-line. Mesmo se dizendo de Natal,
percebe-se, nas interações estabelecidas, que há a quebra de
fronteiras, dado que esse perfil tem visibilidade profunda em
outras regiões do país, como vemos abaixo.

1341
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 6 - Postagem 05 - @Irma_Zuleide

Vejamos que há elementos, na postagem que nos indicam, além da


dualidade de mundos em relação à cultura evangélica, a expansão
da visibilidade do perfil analisado, o que se configura como um
valor inerente e caro ao Twitter. Existe uma espécie de jogo de
poder entre os usuários, dado pela quantidade de seguidores e pela
capacidade que têm as suas postagens de serem divulgadas –
retuítadas – no ambiente virtual. Além da visibilidade, outros
valores podem ser analisados,
como reputação, popularidade e autoridade, o que contribuem
diretamente na formação do capital social dessas redes, conforme
nos orienta Raquel Recuero (2010), em sua obra Redes Sociais na
Internet:
Uma primeira mudança significativa que esses sites proporcionam
é relacionada com o capital social relacional, ou seja, com as
conexões mantidas e amplificadas no ciberespaço. Sites de redes
sociais proporcionam que os atores aumentem significativamente
suas conexões sociais. (RECUERO, 2010, p. 107-108)

Tais conexões favorecem o desenvolvimento de novos discursos,


que buscam alcançar o outro e sua cultura. Com Irmã Zuleide, o que
temos é uma reputação edificada sob a justificativa do riso para a
crítica da cultura evangélica, entendida enquanto regime
dominante e poderoso regulador moral da sociedade. Para tanto, o
perfil apresenta ironia e sarcasmo disfarçados em um discurso que
poderia ser o veiculado nas instituições que são alvo da crítica.

1342
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Vejamos, em duas postagens, a crítica erigida em relação ao


costume do dízimo nas igrejas evangélicas:

Figura 7 - Postagem 06 - @Irma_Zuleide

Figura 8 - Postagem 07 - @Irma_Zuleide

Nas postagem 06, percebemos uma visão do dízimo enquanto uma


prática essencial para o evangélico. No entanto, essa visão
apresenta-se carnavalizada, ao fugir do tom da seriedade e
apresentar uma associação entre o pagamento do dízimo, o show
de Lady Gaga e o comportamento agressivo do pastor.
Na postagem 07, há a ridicularização do herói, própria da atitude
burlesca do carnaval, ao atrelar o Bispo Edir Macedo ao número
171, que comumente é entendido como corrupção, desvio de
caráter, roubo. Assim, o dízimo perde o seu valor institucional –
totalmente espiritualizado e ligado a uma prática deixada pelas
Sagradas Escrituras – para assumir uma significação que contradiz
o costume evangélico e suas tradições.

1343
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Além do dízimo, outras práticas evangélicas são alvo da


carnavalização apregoada por Irmã Zuleide. Dentre elas,
resolvemos analisar três sátiras específicas: o culto religioso, o
sentimento fraternal e a doutrina conservadora. Para o evangélico,
o culto aparece como um lugar de oração, adoração a Deus, estudo
da Bíblia e confraternização. No entanto, Irmã Zuleide, ao fazer
menção aos ritos sagrados da Igreja, ridiculariza-os, ora fazendo
chacota dos irmãos congregados, ora menosprezando o sentido
real do culto religioso. Em uma de suas postagens, o usuário define
o público-alvo dos rituais evangelísticos:

Figura 9 - Postagem 08 - @Irma_Zuleide

Note-se que há um entendimento contrário ao ideal de vida ascética


proposta pela cultura evangélica em relação ao culto. O que nos
apresenta a postagem em análise é a compreensão do culto
enquanto espaço direcionado a pessoas que não são bonitas, não se
vestem bem e não são engraçadas. Assim, o discurso que provoca
o riso é alheio aos ideais da cultura dominante, por vezes
contradizendo-a, uma vez que associa a práxis religiosa do rito a
uma sensação de infelicidade e insucesso.
Neste mesmo espaço de rito e adoração, temos a confraternização
como um elemento salutar à vida cristã. A cultura evangélica
propõe, através de seu discurso, a proposta da construção de um
mundo novo a partir da união e do sentimento de fraternidade
entre os homens, entendidos por ela enquanto irmãos. Mais uma
vez, Irmã Zuleide desritualiza a cultura, irrompe o sagrado, quando,

1344
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

em uma de suas postagens, sugere uma distância de


responsabilidade em relação ao outro. Assim, ela coloca:

Figura 10 - Postagem 09 - @Irma_Zuleide

Desfaz-se, assim, o envolvimento entre os irmãos evangélicos,


descaracterizando sua doutrina, tão maculada por alguém que, de
acordo com a cultura dominante, deveria honrar a identidade e
leva-la adiante. Quebram-se os tabus e a ordem é a da desordem.
Não há indícios de respeito à tradição evangélica nos discursos
de Irmã Zuleide, o que tem gerado críticas por parte dos
representantes desse tom sério no Brasil, pois, assim como prevê a
carnavalização proposta por Bakhtin (2010), há uma desidealização
do sagrado, o que realmente não poderia ser concebido fora desse
espaço de interação em que subsistem as redes sociais digitais:
O riso celebra sua liturgia, confessa seu símbolo da fé, une pelos
laços do matrimônio, cumpre o ritual fúnebre, redige epitáfios, elege
reis e bispos. É interessante observar que toda paródia, por menor
que seja, é construída exatamente como se constituísse um
fragmento de um universo cômico único que formasse um todo.
(BAKHTIN, 2010, p.76)
Em uma última postagem para análise, Irmã Zuleide ainda faz outro
afronte à cultura evangélica, ao utilizar-se de uma das práticas mais
condenadas pelo Evangelismo – o esoterismo. Através dos signos
do Zodíaco, o perfil sugere conselhos que variam desde as
orientações de cunho sexual à ratificação das práticas doutrinárias,
como temos a seguir:

1345
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 11 - Postagem 10 - @Irma_Zuleide

A profanação do sagrado dá-se, na referida postagem, ao misturar


elementos que se julgariam totalmente dissociáveis e incoerentes
entre si, como “iluminado” (que retoma o ideal bíblico de vida
cristã) versus “placa de motel” (elemento constituinte da tradição
dita mundana e pecaminosa); bem como acontece em “Deus vai agir
em sua vida” frente à citação dos “recalcados satânicos” – a
dualidade dos mundos e dos heróis da tradição evangélica.
Em todas as postagens, os indícios de carnavalização presentes no
comportamento linguístico evidenciam a construção de um
“mundo às avessas”, díspar da cultura dominante. Ao invés de
uma “serva do Senhor e inimiga de Satanás”, Irmã
Zuleide apresenta-se como o exemplar da liberdade propiciada
pelas redes sociais digitais e a consequente visão carnavalizada do
mundo e da vida.

CONSIDERAÇÕES NADA FINAIS


A legitimação da Cibercultura na pós-modernidade tem
proporcionado uma reflexão cada vez mais constante e fecunda das
redes sociais digitais enquanto espaços autênticos de sociabilidade
e de difusão da cultura popular. Através do ciberespaço, o
cotidiano das pessoas é reconfigurado, uma vez que se ampliam a
velocidade da informação e o controle do homem sobre suas mais
diversas esferas de atividade. Os novos valores impostos pela
cibercultura impõem certa ressignificação, dadas as condições do

1346
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ambiente em que se inserem. Conceitos como presença,


visibilidade, reputação, popularidade e autoridade, por exemplo,
assumem outro status no ambiente virtual, tornando-se, neste
ínterim, requisitos de avaliação por parte dos usuários na
constituição de suas identidades.
Nessa reconfiguração do cotidiano, o Twitter aparece como uma
vitrine de imagens individuais e coletivas dadas pelo discurso e
que se propõem, pelo riso, a um processo de carnavalização
possível. É o caso do perfil analisado, @Irma_Zuleide, em que
observamos claramente a constituição de um segundo mundo e
uma segunda vida em relação à cultura evangélica contemporânea.
Irmã Zuleide quebra as regras, vence os limites da doutrina,
destrona heróis, assim como nos propõe Bakhtin (2010), ao tratar
do carnaval enquanto festa pagã de contraposição aos ritos oficiais
da Igreja e do Estado Feudal.
Na análise das dez postagens selecionadas, além do congraçamento
pagão, percebe-se uma forte crítica aos costumes evangélicos, como
o dízimo, o culto e a confraternização, bem como aos líderes que
representam a seriedade das instituições, o que corrobora com a
concepção de riso e carnavalização de Bakhtin na formação da
cultura popular.

Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi
Vieira. 7.ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet,
os negócios e a sociedade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6.ed. São Paulo: Paz e
terra, 2011.

1347
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11.ed.


Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaraciara Lopes Louro. Rio
de Janeiro: DP&A, 2006.
HERMANN, Rosana. Um passarinho me contou – relatos de uma
viciada em Twitter. São Paulo: PandaBooks, 2011.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
LEVY, Pierre. O que é o virtual? Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre:
Sulina, 2010.
SANTAELLA, Lúcia. LEMOS, Renata. Redes sociais digitais – a
cognição conectiva do twitter. São Paulo: Paulus, 2010.

1348
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O SUICÍDIO DE UM SOLITÁRIO ANÔNIMO: UMA


ANÁLISE A PARTIR DA FILOSOFIA DE MIKHAIL BAKHTIN

Adenaide Amorim Lima


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
adenaideamorim@gmail.com

É praticamente impossível falar sobre a morte sem atrelá-la a uma


crença, isso porque seja do ponto de vista biológico, filosófico ou
religioso, ninguém pode afirmar categoricamente sobre a natureza
de sua experiência. Para muitas pessoas, em momentos muito
particulares de suas existências a morte é como se fosse uma tábua
de salvação, o livramento de uma existência pesada, oca, sufocante,
cinza e sem sentido ou pode ser o exercício da liberdade de alguém
devido à alguma condição de vida degradante e sem perspectivas.
Mas essa atitude também está baseada em uma crença, na de que
com a morte irá cessar todo e qualquer sofrimento vivenciados
nesse mundo, a crença de que são mais seremos.

Exceto em casos de doença mental e momentos de desespero,


podemos compreender, ao mesmo tempo, o suicídio como um
exercício de liberdade individual e como um crime premeditado, o
de assassinato de si próprio. Por se tratar de um fenômeno
demasiadamente humano, filosoficamente a morte voluntária pode
ser compreendida e analisada a partir de diferentes perspectivas.
Neste texto reflexivo abordaremos essa temática na perspectiva
filosófica de Mikhail Bakhtin, não que esse último tenha se
dedicado a pensar sobre a morte voluntária, mas é que ele possui
uma perspectiva sobre a morte que nos ajuda a compreender

1349
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

melhor o foco de estudo deste texto, uma análise do


curta/documentário Solitário Anônimo.

É possível desaparecer do mundo diante do outro?


Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a morte voluntária a
partir do curta/documentário Solitário Anônimo (18 min.) dirigido
por de Debora Diniz. Este curta narra uma história real ocorrido no
ano de 2006. Nessa história, um idoso é encontrado em um
gramado em um estado crítico de desnutrição e desidratação, mas
o que torna esse caso excepcional é que em um dos bolsos da
vestimenta deste homem foi encontrado um bilhete com os
seguintes dizeres:

Data: 20.09.006
A quem interessar possa.
Meu nome: Solitário Anônimo
Não tenho familiares nem parentes nessa região do país.

A partir deste bilhete surgem as indagações: Quem é este homem?


Porque se intitula Solitário Anônimo? O que ele faz ali? E o
desenrolar do curta vai ficando cada vez mais interessante e
enigmático quando o Solitário Antônimo, socorrido por uma equipe
de saúde, recusa as intervenções médicas e pede insistentemente
para deixá-lo morrer em paz. Daí vem mais indagações: Este
homem é um suicida? Teria tentado se matar outras vezes sem
sucesso, por isso teria ido para longe de casa? Por que ele não pôs
fim a sua vida de uma forma mais rápida? E porque morrer em um
lugar onde ninguém o conhecia? Teria ele uma doença mental, uma
doença terminal? Por que todos empenharam em manter a sua vida
e não respeitaram a sua vontade?

1350
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Diante de tantos questionamentos, muitos deles sem respostas,


algo no chama à atenção, antes da sua morte biológica, que não se
concretiza, o Solitário Anônimo se distancia de toda e qualquer
pessoa que mantinha relações ou conhecimento e tenta se anular no
mundo, vai para um lugar onde tem certeza de que ninguém o
reconheceria e como ele mesmo diz: se joga fora. Longe daqueles
que o retém de algum modo em suas memórias ele teria a sua
primeira morte, longe daqueles que são capazes de afirmar a sua
identidade, sua existência e dizer quem ele é.
Para Mikhail Bakhtin, somos seres abertos, inacabados e estamos
sempre nos constituindo na relação com o outro. Desse modo, o
nosso existir-evento sempre está sendo atualizado, acrescentado a
cada encontro nosso com esse outro, a cada nova tomada de
decisão. Existimos porque existe o outro, quando nascemos parte da
nossa identidade nos é dada por esse outro que nos dá um nome,
uma história anterior ao nosso nascimento, de como e quando
nascemos, além de memórias que nos diz muito sobre quem somos.
Também esse outro será quem nos concluirá, após a nossa morte.
Por essa razão que, para Bakhtin, um homem que não dialoga, não
convive, não é visto, não é ouvido e nem sentido, visto que, assim,
tal homem seria um não-ser, ou, praticamente, um homem morto.
Precisamos do outro para nos colocar no mundo e para nos concluir
quando morrermos.
Morte absoluta (o não ser) é o inaudível, a irreconhecibilidade, o
imemorável [...]. Ser significa ser para o outro e, através dele, para
si. O homem não tem um território interior soberano, está todo e
sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos
olhos com os olhos do outro (BAKHTIN, 2010, p. 323, grifos do
autor).

Nesse sentido, na perspectiva bakhtiniana, o modo como o Solitário


Anônimo escolheu para morrer, em público, fez com que essa
primeira morte que ele buscava não se concretizasse. Diante

1351
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dos outros, agora desconhecidos, o Solitário Anônimo, mesmo contra


a sua vontade, por meio da linguagem, acaba forjando uma nova
identidade que passou a ser com esses novos outros de sua vida.
Para além das obrigações legais de um cidadão para com o outro,
o fato é que não passamos totalmente despercebidos diante dos
outros, há obrigações éticas e morais que nos obriga a nos ocupar
com esse outro em determinadas situações, o ato ético assim nos
obriga.

Conclusão
São as relações e as interações que estabelecemos com o outro ao
longo da nossa existência que nos torna únicos no mundo. O
mundo é constituído por sujeitos cujas características mais
marcantes são a diversidade de personalidades, pontos de vista,
posições valorativas etc. O ser humano torna-se ao longo de sua
vida essa amálgama de relações e mudanças que o torna irredutível
a definições exatas. Fica claro que a linguagem é a condição
fundante para o desenvolvimento do humano. Fora da linguagem
não há consciência, não há homem, não há o mundo tal qual o
conhecemos. Esse mundo que se constitui dialogicamente e nos
conecta a todos por intermédio da palavra, mesmo em tempos
históricos e contextos diferentes e mediante qualquer relação com
o outro sempre seremos alguém para esse outro, até mesmo
um Solitário Anônimo.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. 2 ed. São
Carlos: Pedro e João, 2010.
SOLITÁRIO ANÔNIMO. Curta Metragem. Debora Diniz. Brasil:
2006, 18 min.

1352
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ÓRFÃOS DOS NOSSOS TEMPOS

CRISTIANE DOMINIQUI VIEIRA BURLAMAQUI


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ
cristiane.burlamaqui@uepa.br

Taís Salbé Carvalho


Universidade Federal do Pará - PPGL
t.salbe@gmail.com

Um galo sozinho não tece amanhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que amanhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

João Cabral de MELO NETO

A proposição do VIII Círculo – Rodas de Conversa Bakhtiniana suscitou


a amplitude do Grotesco como categoria de análise apresentada por
Bakhtin (1965) em sua tese doutoral sobre Rabelais. A partir de então,
lançamo-nos ao desafio de refletir sobre questões de nossos tempos,

1353
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sobretudo aquelas que impactam violentamente sobre nossas vidas,


considerando a ambivalência e a incompletude do grotesco bakhtiniano
presente no signo/questão “órfão” como fenômeno social circunscrito nas
questões humanas dos nossos tempos.
Bakhtin (1993[1965]) estabelece um diálogo crítico com alguns
pensadores de seu tempo, por ele caracterizados pelo formalismo e pelo
idealismo. A partir deste diálogo, Bakhtin vai demonstrando as limitações
daquelas abordagens e as possibilidades de compreensão da riqueza das
imagens criadas por Rabelais como uma forma de resgatar as tensões
sociais constitutivas da ação humana na transição da Idade Média para o
Renascimento.
Para abarcar a riqueza da narrativa rabelesiana, Bakhtin (1993[1965])
argumenta que é preciso restituir elementos capazes de reconstituir o
pensamento e a vivência nos tempos de Rabelais. O realismo grotesco, a
praça pública e o banquete são algumas categorias evocadas pelo pensador
russo em sua tarefa de (re)estabelecer o valor de François Rabelais como
um cânon da literatura francesa que enfrentou as normas, a moral e as
formas do discurso oficial introduzindo no cânon a voz da praça pública e
transgredindo todo um sistema de pensamento instituído em sua época.
A orfandade como questão atual e de outros tempos abre-se como
possibilidade de problematizar os significados deste signo/questão em sua
ambivalência e incompletude, como constitutivo de sistemas de
pensamento que refletem e refratam as tensões que emergem em cada
cronotopo (tempo/espaço).
Grandes guerras, epidemias, disputas ideológicas (patriarcalismo,
escravagismo, fascismo, nazismo etc.) submetem o signo/questão “órfão”
às ausências e aos abandonos que resumem as cegueiras do humano frente
ao humano!
Etimologicamente, a palavra órfão tem sua origem do Latim ORPHANUS,
“criança sem pai ou mãe”; e que na língua grega significa “o que não tem
pais”, literalmente “privado, desprovido”. Por conseguinte, enquanto
questão da linguagem, a palavra órfão nos oferece um horizonte de
possibilidades de significados. E em diálogo com o tema do VIII Círculo,
uma dessas possibilidades é pensar a palavra “órfão” no sentido do
abandono que o humano vem conduzindo seu pensar e seu agir frente ao
próprio humano e ao mundo em que vive.
Não existe nada mais grotesco, e aí alargamos um pouco mais o sentido
de grotesco o qual Bakhtin pensou, na direção de que esta questão/signo

1354
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

possa ser também percebida como o total abandono e alijamento do


humano por ele mesmo.
Perceber que o humano se esqueceu de quem é, nos coloca diante da crise
da humanidade sem precedentes, e nos faz viver o grotesco enquanto
órfãos de nossos tempos. Ao esquecer nossa humanidade, vamos rumo ao
aniquilamento do próprio humano que vive em nós e do humano no outro.
Destruímos tudo à nossa volta, destruímos o mundo enquanto
possibilidades de o real acontecer.
É inadiável voltar o olhar a caminhada enquanto seres humanos que
acolhem de forma amorosa - e aqui amor deve ser visto enquanto cura,
cuidado do humano por ele mesmo - ao ser e às suas possibilidades de
acontecer, e, portanto, percorrer nossa travessia vislumbrando que
também somos o acontecer de possibilidades de vir a ser, transitando
dialogicamente entre o bem e o mal, como o Janus de duas faces; entre
morte e vida, tal qual a velha grávida sorrindo; e, por isso mesmo, nos
fazendo seres humano em procura da nossa humanidade, incompleta e
ambivalente.
Enquanto humanos somos entre-seres que vivem em busca de nos
conhecermos, habitando a linguagem de forma poético-amorosa,
acolhendo os outros seres que habitam este mundo. Para o filósofo alemão
Martin Heidegger (2005[1947]), o abandono do humano por ele mesmo
tem sua origem no fato de ele não mais se ver como parte originária e
constituinte de um mundo em eterna brotação, e que tem na linguagem a
sua morada, o seu ethos.
O esquecimento de que a linguagem é a nossa morada nos leva a agir não
mais de forma poética, nos fechando à escuta da linguagem e, por
conseguinte, do ser. Este esquecimento nos leva a pensar apenas de forma
racional, tecnicista, procurando fundamento e não mais o fundar
originário, o manifestar das coisas e dos seres enquanto linguagem em
acontecimento constante.
Segundo Heidegger (2012[1950]) não somos nós humanos que temos a
linguagem e, sim, ela que nos tem. Para o filósofo alemão, é somente pela
linguagem que nos constituímos enquanto humanos, ou seja, vivemos no
vigor da ética, do ethos originário do ser, habitando, assim, a linguagem
enquanto caminho de possibilidades para nos tornarmos seres humanos.
O que percebemos em nossos tempos é um total esquecimento de que
somos doação da linguagem. Por isso, vigora uma soberba sem tamanho

1355
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

do homem frente ao próprio homem e a todas as coisas que habitam o


mundo como forma de dominação, o que leva à degradação tanto dele
mesmo - homem - quanto de tudo o que o cerca. Em consequência deste
cenário, o que estamos vivendo em nossos tempos nada mais é do que a
disputa entre humanos e a consequente aniquilação entre seres, a
dominação dos meios de vida natural e sua completa destruição, nos
orientando a uma das mais severas formas de orfandade do humano.
A iconografia da orfandade é extensa, e cada época tem nas imagens a face
mais ambivalentemente grotesca de uma sociedade. Nos rostos dos
“Órfãos”, de Thomas Kennington (1856-1916), materializam a
idealização grotesca da orfandade no final do século XIX: duas crianças
órfãs que sorriem discretamente, uma cena de abandono, um prato vazio à
sua frente em posição de esmola, ao fundo uma parede descascada e
manchada reproduzindo a degradação do espaço e uma pequena valise
como que indicando o espólio dos dois órfãos.
Imagem 1 - Órfãos (1885) de Thomas Kennington

Fonte: Thomas Benjamin Kennington - óleo sobre tela - 1885 - (Tate


Gallery (London, United Kingdom))
Benjamin Kennington estudou na Real Academia, em Londres e na
Académie Julian, em Paris. Ficou conhecido pela reprodução de cenas

1356
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

domésticas e pelo realismo de sua arte. Seus quadros como “Órfãos”, “A


Viúva e o Órfão”, “Sem Abrigo”, “Uma Pitada de Pobreza” são exemplos
disso. Expôs ao público os miseráveis do século XIX. Pintou as crianças
de rua que a elite desejava esquecer. Nesta como em outras telas de
Kennington, a forma com que o pintor reproduziu as cenas deslocando os
seus personagens da vida cotidiana, acaba limitando a compreensão do
todo e denotando seu idealismo em uma imagem romantizada da
orfandade. A representação da realidade deslocada da vida concreta
subverte-se em uma ideia que subjaz a realidade ao estancá-la na forma de
um “grito” isolado dos “gritos” dos outros “galos”.
Na fotografia abaixo, é possível observar como a imagem absorve o
acontecer da vida, uma cena do grotesco de nossos tempos em toda a sua
ambivalência e incompletude.
Imagem 2 - O Grotesco dos nossos tempos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: Mídia Ninja. Diponível


em: https://www.instagram.com/p/CThYYU_tm2U/. Acesso em: 07 Set.
2021.
Pessoas caminham na mesma direção em uma calçada da capital federal
do Brasil, em ato pró-governo Bolsonaro. Ao fundo é possível identificar
a Esplanada dos Ministérios. Em primeiro plano, vestido de verde-amarelo
e enrolado na bandeira do Brasil, um casal ignora o corpo jogado ao seu
lado, na beira da calçada, deitado em posição fetal.
A cena de abandono do humano pelo humano, um símbolo da degradação
das relações materializadas na invisibilização do outro e, também, um
retrato das políticas genocidas do atual presidente e de seu discurso vazio
que evoca “Ordem e Progresso”. A completa degradação de outro ser
humano que ao ver dos transeuntes merece nem mesmo compaixão, visto
que é completamente invisível.
A imagem das manifestações de 07 de Setembro de 2021 - Ato pró-
governo Bolsonaro, são um reflexo das contradições que hoje deixam de
orelha em pé qualquer um que compreenda o potencial alteritário da
democracia e, no outro extremo, o autoritarismo de uma ditadura militar.
Observa-se as faces do bolsonarismo que abandonam o bom senso e o
discernimento sobre questões que inviabilizam as pautas que defendem:
bradam pela liberdade democrática para atacar as instituições que
garantem tal liberdade; são os detentores da moral e dos bons costumes,
mas elegem têm como mito um político corrupto que usa o Estado para
enriquecer e faz de seu gabinete um cabide empregos, de negociações com
o poder paralelo e de desvio de verbas públicas.
Quais são os órfãos de nossos tempos? Do que eles estão alijados? O que
vos falta? A relação entre linguagem, realidade e humano/sujeito em sua
ambivalência e incompletude elucida questões a serem enfrentadas neste
e em outros tempos. A orfandade como questão de nossos tempos aponta
para a abertura de outros horizontes a serem vislumbrados, visto que “Um
galo sozinho não tece amanhã: ele precisará sempre de outros galos. (...)”
(MELO NETO, 1996, p. 35).

Referências:
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
HUCITEC; Brasília: Editora da universidade de Brasília, 1993.

1358
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Trad. Márcia Sá Cavalcante


Schuback - 6. ed. - Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora
Universitária São Francisco, 2012.
_____ Carta sobre o Humanismo. Trad. Rubens Eduardo Frias. - 2 ed. rev.
- São Paulo: Centauro, 2005.
MELO NETO, J. C. A educação pela pedra (1962-1965). Rio de Janeiro,
RJ: Nova Fronteira, 1996.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

OS CORPOS SOCIAIS E A NÃO INDIFERENÇA

Neiva de Souza Boeno


Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso e Secretaria
Municipal de Educação de Cuiabá
professoraneivaboeno@hotmail.com

Procuramos, neste texto, refletir sobre a dialogicidade ou a


intercorporeidade nas relações sociais. Esses conceitos, no entendimento
de Augusto Ponzio (2010, p. 129), são dois lados de uma mesma moeda,
e foram elucidados nas pesquisas de Bakhtin, nas obras que versam sobre
a poética de Dostoiévski e de Rabelais. A outra face da dialogicidade
estudada pelo filósofo russo em Dostoiévski mostra-se, portanto, em
Rabelais; ou seja, mostra-se a intercorporeidade considerada no corpo do
realismo grotesco. Para Bakhtin, como ressalta Ponzio (2010), a
linguagem do corpo grotesco refere-se sempre não a um corpo individual
e isolado, mas ao corpo nas suas relações com outros corpos, em uma
relação ao menos bicorporal; particularmente visto que a nossa identidade
se constrói nas diversas relações que estabelecemos com o outro, pelo
encontro entre duas alteridades. É nessa perspectiva que vamos delinear o
nosso discurso.
Nosso ponto de partida é o romance Noites brancas, de Dostoiévski,
publicado em 1848. Nessa escritura literária, tem-se a manifestação
da intercorporeidade (ou dialogicidade), por meio da relação
desenvolvida entre os protagonistas do romance, os quais se
colocam (a despeito deles) em um entrelaçamento de corpo próprio
e de corpo alheio, superando o corpo da identidade (ou
da arquitetônica do eu de cada um deles) envolvido no corpo da
alteridade. Em outras palavras, recortamos da narrativa
dostoievskiana alguns momentos em que o “diálogo com o outro
[...] se realiza apesar do outro e de si mesmo, das próprias
intenções” (PONZIO, 2010, p. 133).

1360
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em particular, nessa obra, Noites brancas, a paixão do protagonista-


sonhador pela jovem Nástienka nos proporciona algumas páginas
românticas e comoventes, a ponto de desejarmos que os dois se acertem e
construam juntos um terreno comum e único de amor, tendo em vista o
histórico e a vida singular de cada um deles antes do encontro, do
verdadeiro encontro. Tal encontro, sobre o qual estamos falamos, é o
encontro como evento que se manifesta, que acontece na vivência e, por
conta disso, não se pode marcar ou planejar antes, é imprevisível e onde
tudo pode acontecer. Logo, um encontro entre singular e singular e, ao
mesmo tempo, entre outro e outro (duas consciências, duas alteridades,
duas singularidades).
Esse romance é constituído por cinco capítulos intitulados com uma
metáfora temporal: “Primeira noite”, “Segunda noite”, “Terceira noite”,
“Quarta noite” e “Manhã”. É nesse tempo de quatro noites brancas e uma
manhã que a vivência entre os protagonistas se apresenta ao leitor, um
tempo que podemos afirmar ser o tempo da alteridade, aquele que supera
o tempo da identidade (o tempo real, funcional, cronológico). Tempo que
se configura como o tempo dilatado no “espaço literário” (BLANCHOT,
1987) do romance ou mesmo “tempo perdido” (PROUST, 2017 [1913-
1927]) com o outro e na relação com o outro, por meio das memórias
narradas pelo herói sonhador, o qual não é mais o mesmo de antes,
principalmente após o encontro com Nástienka e a construção da relação
entre eles.
Na “Primeira noite” conhecemos o protagonista que volteia pela cidade,
relacionando-se com as pessoas que vê pelas ruas e os diversos espaços da
cidade de Petersburgo, realizando, assim, o seu diálogo interior (“eu-para-
si”), também um discurso da própria identidade através de uma relação
consigo mesmo, mas sempre entretendo uma relação, pois não existe um
corpo sem relação. A exemplo desse discurso interior do protagonista-
sonhador consigo mesmo, reportamos o excerto a seguir:
As casas também são minhas conhecidas. Quando caminho, é como
se todas avançassem para a rua em minha direção, olhassem para
mim com todas as suas janelas e quase dissessem: “Bom dia, como
vai sua saúde? Eu estou bem, Graças a Deus, e em maio vão me
aumentar um andar”. Ou: “Como está sua saúde?”; “Amanhã vão
me reformar”. Ou: “Eu quase me queimei e fiquei mesmo
assustada”, etc. (DOSTOIÉVSKI, 2009 [1848], p. 12).

1361
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Desse excerto, podemos nos questionar se haveria a possibilidade de


vivermos uma vida sem nos relacionarmos com o outro (exterior a mim),
apenas nos relacionando conosco mesmo como faz o protagonista no
início do romance; como ele se apresenta a nós, leitores. Cremos que, para
se viver a vida, é necessário e essencial mantermos relações com o outro
(em suas diversas materialidades corpóreas), pois é o outro que nos
constituiu. Esse pensamento é a máxima do encontro verdadeiro, da
dialogicidade, da intercorporeidade. A identidade de cada um de nós se dá
por meio do outro; é através da imagem que o outro constrói de mim, que
me mantenho em formação, em construção, justamente pelas relações
sociais, relações dialógicas.
Um outro fragmento que recortamos da vivência dos protagonistas se dá
também nessa “Primeira noite”, é propriamente o encontro entre os
protagonistas. Era tarde, passava das dez horas e o protagonista-sonhador
cantarolando pela marginal do rio aproximava-se de sua casa quando
avistou uma moça. O herói aproximou-se da moça e não foi notado; sua
preocupação por ela foi manifestada, especialmente, quando ouviu o
soluço espesso. Sim, a moça chorava a soluçar e o herói, já tocado e
emocionado, diz: “Meu Deus! Fiquei com o coração apertado”
(DOSTOIÉVSKI, 2009 [1848], p. 17).
Nesse momento, a manifestação da escuta se dá, a verdadeira escuta da
parte do protagonista-sonhador acontece (não falamos aqui da escuta
como obrigação ou devido à obediência a algo ou alguém). Trata-se de
uma “escuta que responde a outra palavra fazendo-se palavra outra”
(PONZIO, 2010, p. 136). Esse tipo de escuta verdadeira, a escuta da
palavra outra é sinestesia e “é também sinestesia intercorpórea, como
escutar o prazer do prazer do outro, o medo do medo do outro, o
sofrimento do sofrimento do outro: é a sinestesia de ‘ter o outro na própria
pele’ (Lévinas)”, como nos ensina Augusto Ponzio (2010, p. 136).
Nesse discurso de intercorporeidade, manifesta-se, então, o olhar e a
atenção do protagonista-sonhador em direção a um outro (exterior a si
mesmo); nesse caso, em direção à moça (Nástienka). A partir daí a relação
entre dois outros começa, pelo encontro inesperado, o encontro entre dois
únicos, dois seres singulares. É nesse momento que começa a construção
de uma relação entre corporeidades diferentes, que não são, porém,
indiferentes uma à outra; em Noites brancas, os protagonistas têm
corporeidades diferentes (ele – ela) e não são indiferentes um ao outro
(não são indiferentes entre eles). Mais adiante, mesmo sem conhecer o
protagonista-sonhador, mesmo desconfiada, Nástienka não recusa esse

1362
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

outro que está diante de si, que a escuta e lhe oferece ajuda, por nada, sem
interesse ou intenção ou motivo secundário.
Na “Segunda noite”, os protagonistas se encontram conforme o
combinado e Nástienka afirma que eles precisam “começar de novo” a
relação, pois o protagonista-sonhador, para ela, ainda era um
desconhecido. Então, ela decide inteirar-se de quem era seu interlocutor,
desejando saber de sua história, conforme vemos no excerto a seguir:
– [...] Bem, que tipo de homem é o senhor? Vamos, comece, conte
a sua história.
– História? – exclamei assustado. – História? Mas quem lhe disse
que tenho uma história? Eu não tenho história...
– Então como é que viveu, se não tem história? – interrompeu ela,
rindo.
– Absolutamente sem qualquer história! Vivi assim, como se diz,
para mim mesmo; isto é, absolutamente só, completamente só,
sozinho. Compreende o que significa “sozinho”?
– Mas como assim, sozinho? Quer dizer que nunca viu ninguém?
– Oh não, ver eu vi, sim; mas, apesar disso, sou sozinho.
– Ora, será possível que o senhor não fale com ninguém?
– No sentido estrito, com ninguém. (DOSTOIÉVSKI, 2009 [1848],
p. 27-28)
Praticamente constatamos que a resposta do protagonista-sonhador é
estranha (“Eu não tenho história...”) e, possivelmente, reagiríamos, na
condição de leitores, como Nástienka que o indagou: “Então como é que
viveu, se não tem história?”, interrompendo a fala do protagonista e rindo
da situação singular dele. Como imaginarmos uma pessoa que não tenha
uma história para contar? Notoriamente, podemos pensar que se trata, de
fato, de uma pessoa completamente solitária, sem relação com o outro,
apenas consigo mesmo, realizando aí apenas um dos momentos principais
da “arquitetônica do eu”, na teoria bakhtiniana, o “eu-para-si”, seja no
plano espaço-temporal seja no axiológico. Nessa perspectiva, como afirma
Augusto Ponzio (2010, p. 128), “o diálogo é a mesma alteridade
constitutiva da arquitetônica do eu”. Viver a vida, novamente frisamos,
significa viver, portanto, por meio da relação com o outro (os outros), uma
vez que não existe vida sem relação com o outro.
Depois de o protagonista ser categórico, afirmar que não tem história e
que não se relaciona com ninguém (nenhum outro, além de si mesmo), ele

1363
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

se apresenta como “um sonhador”, com uma imagem própria sua, uma
alteridade, porém concluindo a questão dizendo que não tem história. Ao
contrário de Nástienka, que tem sua história contada em várias páginas do
romance (do ponto de vista físico-material), ainda no desenvolvimento da
“Segunda noite” da obra. Aliás, além de ganhar um “espaço literário”
amplo, sua narrativa recebe um título: “A história de Nástienka”.
Praticamente, podemos dizer que se trata de um romance dentro do próprio
romance, como um quadro no quadro na pintura de Magritte, ou um conto
no conto na escritura literária de Clarice Lispector.
Assim, de posse do conhecimento da história de Nástienka, podemos
refletir sobre a imagem que temos de nós mesmos (“eu-para-si”) e a
imagem de nós construída pelo outro (“eu-para-o-outro”), essa alteridade
constitutiva do ser. Nesse sentido, cada protagonista tem, inicialmente,
uma própria imagem: Nástienka, com uma história vivida nas relações
com a avó e, sobretudo, com o seu primeiro amor e namorado que ela
espera ansiosamente pelo retorno; ele, o sonhador, solitário, que não tinha
uma verdadeira história para contar, a sua única relação era consigo
mesmo, a ponto de dialogar interiormente com as casas de Petersburgo,
como reportamos anteriormente. Evidente que tal situação grotesca, na
qual a intercorporeidade se mostra como enunciação não iterável, somente
é realizável em um espaço dialógico, em um “espaço literário”
(BLANCHOT, 1987).
No encontro, a construção de uma terceira imagem se inicia, justamente
pela relação entre o sonhador e a Nástienka. A vida singular de cada um
dos protagonistas se constrói através do encontro; e, depois, não se trata
mais da relação de um “eu” e outro “eu”, mas da relação de um nós,
construído nessa relação entre singular e singular. Pela intercorporeidade
(ou dialogicidade), a relação deles vai se modificando, não são mais as
duas pessoas desconhecidas, estrangeiras do primeiro encontro, nem
mesmo permanece o ato de desconfiança de Nástienka em relação ao
sonhador (ato narrado nas duas primeiras noites). Desse encontro, começa
o delineamento de uma relação verdadeira de confiança, de risadas juntos,
de sentimentos compartilhados; enfim, de alegria desinteressada. É uma
conquista recíproca, pois nessa nova relação os protagonistas se
conquistam reciprocamente, sem saber o porquê apesar deles. Cada um
ciente da história singular e anterior do outro.
O protagonista-sonhador e a Nástienka se enamoram, mesmo ele sabendo
que ela tem namorado, e mesmo ela sabendo que o namorado poderia
voltar. Nos diálogos, os quais preenchem as quatro noites do romance,

1364
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

afigura-se uma relação de envolvimento, participação, cumplicidade, um


intrincado indissolúvel, plenos de ternura, limpidez, respeito e dedicação
ao outro. Esses discursos, nos fazem, o tempo todo, querer protegê-los de
um sofrimento, de resguardá-los e de torcer pela história que ora
constroem juntos. É como se, em nosso envolvimento de leitor, crescente
com a história, fôssemos também ganhando a consciência de que, quanto
mais o sonhador e a Nástienka se relacionavam, maior era a chance de eles
construírem uma relação juntos.
Na “Quarta noite”, os personagens vivenciam horas intensas do mais puro
vislumbre de um futuro juntos, de promessas e desejos de amor, entre risos
e volteios, entre encantamentos e carinhos, até que... Um último “golpe de
teatro”: o namorado retorna para Nástienka, e eles devem decidir
rapidamente qual é a melhor solução para os dois, tendo em vista que o
encontro deles estava indo na direção de uma relação de amor. Ambos
sofrem pela situação: o sonhador chora; Nástienka chora e, depois,
decidem seguir separados, mesmo sendo um distanciamento sofrível. Para
o bem dela, o protagonista-sonhador dá um passo para atrás, e ela corre,
não sem tristeza, para os braços de seu namorado.
Esse homem desconhecido (o namorado de Nástienka) que aparece no
final é a máxima afiguração do Outro (o verdadeiro outro): que incomoda,
que não se espera, que aparece subitamente e transforma
improvisadamente a situação (a relação) que estava se desenvolvendo em
uma determinada direção, no planejamento de um futuro juntos etc. E
como um “golpe de teatro”, mudou-se tudo de novo. Essa nova mudança,
porém, é uma mudança sem retorno à situação inicial: porque agora o
protagonista-sonhador tem uma história para contar (a história é contada
na primeira pessoa do singular); aliás, a história está literariamente e
literalmente escrita e contada nesse romance de Dostoiévski (Noites
brancas), e Nástienka e o sonhador construíram essa história juntos.
O protagonista-sonhador, no final do romance, exclama e logo interroga
(sua questão – que dá acabamento ao romance –, vem seguida de três
pontinhos, o que amplia ao infinito a reflexão sobre o assunto ofertado
pela escritura literária): “Meu Deus! Um momento inteiro de júbilo! Não
será isto o bastante para uma vida inteira?” (DOSTOIÉVSKI, 2009
[1848], p. 82). Assim, tal como a vida que não conclui, a narrativa de
Dostoiévski, nesse romance, não encerra o discurso/diálogo, abre-se a
outras compreensões respondentes. O sonhador, portanto, sente-se feliz

1365
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pelos momentos de alegria vivenciados com Nástienka, por meio da


relação construída pelos dois.
Nesse romance de Dostoiévski, na vida singular das personagens e no
diálogo entre elas prevalece o sentido do “humanismo da alteridade”
(PONZIO, 2010) nas relações e, também, o sentido sobre a existência no
mundo. O título Noites brancas é basicamente uma declaração da
autoconsciência dos protagonistas e sobre a relação que construíam
momento a momento. O mundo de cada ser não é pleno de harmonia, de
certeza, de realizações, mas, sim, configura-se como uma arena dialógica,
como diriam Bakhtin e Volóchinov (2004 [1929]). Notemos, portanto, que
o mundo singular de cada um não é apenas sua fragilidade, mas também a
sua fortaleza, o seu ponto de renovação, de geração de novos outros
mundos, de novos sentimentos, de novos comportamentos.
O procedimento estético de Dostoiévski no último capítulo de Noites
brancas,mostra-nos o discurso penetrante do herói e sua dialogicidade, ou
seja, o discurso da impossibilidade de subtrair-se, de fechar-se, de não
envolvimento, de indiferença com o outro. Essa intercorporeidade é
própria da existência, da vivência, de um diálogo sofrido, não de
sofrimento (no sentido de ficar doente), mas como corpo social, em uma
condição que não se escolhe, ligada também à responsabilidade sem álibi,
ou seja, responsabilidade não delegável. Desse capítulo, reportamos
alguns excertos com as palavras-imagens que demonstram a relação do
protagonista-sonhador consigo mesmo, com o outro e com o mundo em
que vive; nessa afiguração, os cronótopos e a imagem que ele constrói
sobre a pessoa com quem ele convivia reforçam e tonalizam seu estado e
discurso interior (diálogo interior).

[...] O dia estava ruim. A chuva caía e batia melancolicamente em


minhas vidraças; no quarto estava escuro, lá fora encoberto. Minha
cabeça doía e girava, a febre se infiltrava em meus membros.
(DOSTOIÉVSKI, [1848] 2009, p. 79).
[...] Olhei para Matriôna... Era uma velha ainda jovem, bondosa,
mas, não sei por quê, de repente ela me apareceu com o olhar
apagado, com rugas no rosto, encurvada, decrépita... Não sei por
quê, pareceu-me de repente que meu quarto envelhecera tanto
quanto a velha. As paredes e o piso haviam perdido a cor, tudo se
apagara; as teias de aranha tinham se proliferado. Não sei por quê,
quando olhei pela janela, pareceu-me que a casa em frente também

1366
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ficara decrépita, apagada, que o reboco das colunas tinham


descascado e caído, que as cornijas estavam enegrecidas e rachadas,
e que as paredes de um amarelo forte e brilhante, estavam todas
manchadas... (DOSTOIÉVSKI, 2009 [1848], p. 80-82)

O protagonista-sonhador de Noites brancas, depois de ler muitas vezes a


carta de Nástienka e de lágrimas rolarem em sua face, mostra-nos que não
é indiferente à sua amada, que não é indiferente ao mundo novo dela
anunciado na carta; e, mesmo vivenciando a dor da separação e da
impossibilidade de indiferença, seu diálogo transpõe-se em um discurso
amoroso para um amor além, do tipo “ti voglio bene” (expressão italiana
que não é traduzível como “Eu te amo”, “Je t’aime” ou “I love you”),
afirmando-lhe:
Mas lembrar-me daquela ofensa, Nástienka! Erguer uma nuvem
escura sobre a sua felicidade clara e serena; levar tristeza ao seu
coração, acusá-lo e fazê-lo amargar um remorso secreto, obrigando-
o a bater tristemente num momento de júbilo; pisar uma só das flores
ternas que adornarão suas madeixas negras quando for com ele ao
altar... Oh, nunca, nunca! Que seja claro o seu céu, que seja luminoso
e sereno o seu lindo sorriso; abençoada seja você pelo momento de
júbilo e felicidade que concedeu a um coração solitário e
agradecido! (DOSTOIÉVSKI, 2009 [1848], p. 82, grifos nossos).
Do discurso delineado por nós, ressaltamos a essencialidade de, em nossos
dias atuais, refletirmos sobre a constituição da identidade pela alteridade,
sobre a relação do eu com o outro, a relação do corpo próprio com o corpo
alheio, sobre a intercorporeidade e a dialogicidade como princípios
fundamentais para a busca da humanidade. Sobretudo, de podermos
construir relações verdadeiras e termos um “tempo disponível” (PONZIO,
2010) para a alteridade, tanto a própria quanto a do outro, um tempo para
“outramente que ser” (LÉVINAS, 1974), e principalmente de darmos
escuta ao outro.
Assim, concluímos nossas reflexões retomando o que nos ensinou Bakhtin
quando diz que “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se
algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade”
(BAKHTIN, 2011 [1979], p. XXXIV), ou seja, aquilo que se descobre na
arte, devemos trazer e aplicar na vida! Atitude de não indiferença ao outro
é uma das grandes lições presentes nesse belo romance de Dostoiévski,

1367
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que nos faz pensar mais sobre a indiferença no mundo, sobre o


“humanismo de identidade” (PONZIO, 2010). Pensando e agindo, quem
sabe possamos, logo mais, ver um mundo melhor, movendo-se em direção
ao “humanismo de alteridade” (PONZIO, 2010).

Referências:
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São
Paulo: Hucitec, 2013 [1965].
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. Prefácio à edição
francesa Tzvetan Todorov. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra.
6. Ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011 [1979].
BAKHTIN, M. M.; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da
linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na Ciência da
Linguagem. Tradução Michel Lahud & Yara Frateschi. 11. ed. São Paulo:
Hucitec, 2004 [1929].
BLANCHOT, M. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Rocco, 1987.
DOSTOIÉVSKI, F. Noites brancas: romance sentimental (das
recordações de um sonhador). Tradução de Nivaldo dos Santos. Gravuras
de Livio Abramo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2009 [1848].
LEVINAS, E. Autrement que’être ou au-delà de l’essence. La Haye,
Netherlands: Martinus Nijhott, 1974. (Phaenomenologica 54).
PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010.
PROUST, M. Em busca do tempo perdido. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2017 [1913-1927]. 7 v.

1368
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Os destroços do realismo grotesco dos nossos tempos: o riso


reduzido entre vozes e ambientes

Andréa Pessôa dos Santos


Uerj
a.pessoas70@gmail.com

Provocada pela temática O grotesco dos nossos tempos: vozes, ambientes


e horizontes dialoguei de imediato não propriamente com a categoria
do realismo grotesco que consta nas formulações bakhtinianas sobre a
obra do escritor francês François Rabelais. Provocada pela temática e
tomada pela compreensão do que vivemos nestes nossos tempos não pude
entrever, inicialmente, qualquer relação de vozes, ambientes ou mesmo de
imagens da atualidade que fossem compatíveis com o sentido do realismo
grotesco descrito por Bakhtin ao analisar a obra rabelaisiana.
No livro A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais, Bakhtin nos revela a unidade, o sentido e
a natureza ideológica profunda da cultura popular cômica da Idade
Média, do seu apogeu no Renascimento e de seus desdobramentos no
domínio da arte e da estética literária ao longo dos séculos. Assim,
destacando o valor estético da cultura popular e seu valor como uma
cosmovisão carnavalesca do mundo, Bakhtin interpreta a obra rabelaisiana
definindo duas importantes categorias: o realismo grotesco e
a carnavalização.
No realismo grotesco de Rabelais, as imagens da vida material e corporal
aparecem através de formas grotescas, exageradas, festivas e utópicas, os
elementos materiais e corporais não são compreendidos em sentido
restrito. O grotesco se caracteriza pelo princípio da ambivalência, pelo riso
ambivalente, ou seja, o riso contraditório que através de um sistema de
imagens grotescas e de degradações paródicas possibilitam a compreensão
da visão cômica do mundo. Assim, as formas cômicas e ambivalentes da
cultura popular destronam o discurso oficial e opressor.

1369
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Atento ao princípio cômico que preside os ritos, espetáculos carnavalescos


populares, obras literárias e gêneros verbais particulares da vida cotidiana
da Idade Média, Bakhtin (2013, p. 20) destaca que o riso ambivalente
rabelesiano ao mesmo tempo que destrona aponta simultaneamente para
um novo começo, para o renascimento que, na unidade de um conjunto de
tensões e contraposições (morte/ressurreição; morte/nascimento),
restaura, renova e transforma. É a morte risonha que engendra a vida.
Ainda sobre o grotesco rabelaisiano, Bakhtin (2013, p. 23) afirma também
que “Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo,
um grotesco ambivalente: é a morte prenhe, a morte que dá luz.
Combinam-se ali o corpo decomposto e disforme da velhice e o corpo
ainda embrionário da nova vida, vida que se relaciona com um universo
em evolução.”
Neste sentido, grotesco se refere ao conjunto de imagens degradantes que,
em estado de transformação daquilo que é morte, regenera, ressuscita, dá
vida e faz crescer em evolução. Imagens grotescas inscritas na literatura
(e na vida!) que possibilitam uma cosmovisão da vida em perspectiva
carnavalesca, ou seja, visão de mundo em que o baixo produtivo da vida
(material e corporal) não tem apenas um sentido negativo, mas que, a
partir do princípio do riso libertário, carrega em si seu pólo positivo
apontando para uma renovação.
O riso medieval, potência central das festas populares, levava o povo ao
patamar de uma cosmovisão carnavalesca da vida. A partir de espetáculos,
brincadeiras verbais e ritos de espírito cômico, ria-se do opressor,
permitindo que os oprimidos ganhassem o direito de trazer à praça pública
o avesso da vida. Assim, ria-se do poder da igreja e do Estado, todos os
valores dos opressores eram ridicularizados em praça pública. A
percepção carnavalesca é entendida, pois, como a transposição de formas
concreto-sensoriais simbólicas do carnaval para a linguagem literária que,
a partir da unidade complexa e contraditória, provoca o riso ambivalente,
riso que amortalha e ressuscita.

O realismo grotesco rabelaisiano e o grotesco do senso comum


Diante da impossibilidade de compreender a vida dupla e a ambivalência
do grotesco dos nossos tempos, se comparado ao grotesco medieval e
renascentista, só me foi possível atribuir sentidos ao grotesco da
atualidade na perspectiva do senso comum, ou seja, como situações,
vozes, imagens e ambientes degradantes que causam aversão justamente

1370
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

por serem bizarros, ridículos, inverídicos e que por vez, mas nem sempre,
provocam um falso riso diante do escárnio.
Vivenciamos tempos sombrios e do recrudescimento de vozes
individualistas, negacionistas, obscurantistas, racistas, sexistas e de tantas
outras vozes sociais que incitam à violência contra diferentes grupos
sociais. Vozes que dominam nosso espaçotempo no âmbito da
confluência de inúmeras crises, crise sanitária, crise econômica, crise
política, crise hídrica e crise humanitária. Crises que se agigantam num
contexto de movimentos negacionistas de várias ordens que se espraiam
nas tensões das culturas.
Entre vozes, imagens e ambientes avassaladores dos nossos tempos não
pude compreender o grotesco do modo como esta categoria foi tratado por
Bakhtin ao analisar as obras rabelaisianas. Só pude compreendê-lo, então,
a partir do termo cunhado pelo senso comum, ou seja, o grotesco de cunho
eminentemente negativo que, no âmbito de graves crises retratadas em
imagens, gestos e vozes infames, expõe a própria crise do ato responsável
da humanidade na contemporaneidade.
O grotesco que pude entrever foi entendido, portanto, como escárnio em
sentido exclusivamente vil, sem ambivalência, sem qualquer possibilidade
da simultaneidade de um polo positivo. Este sentido definiu minha
compreensão responsiva diante da profusão de vozes, imagens, gestos e
ambientes hostis que configuram o tempo histórico que vivenciamos no
mundo e, particularmente, no nosso país.
Diante da (im)possibilidade de vislumbrar o grotesco que se estabelece na
unidade de tensões de um conjunto de contraposições, de polos negativos
e positivos (já que só podia compreender o grotesco que cava o túmulo,
mas não regenera!), reforcei minhas indagações na busca daquilo que
poderia ser compreendido como centelhas de imagens e vozes sociais que
apontassem para o que ressuscita e dá vida diante da gravidade dos nossos
tempos pandemônicos de uma política de morte e luto.
Nesta busca incessante, pensei em mirar o grotesco de discursos
negacionistas e fundamentalistas dos nossos tempos, mas não a partir de
elementos da comicidade ambivalente da cultura popular inscrita nas
palavras literárias de grandes clássicos ou mesmo em obras de artistas
plásticos consagrados. Assim, voltei meu olhar para a ambivalência
inscrita em gêneros discursivos verbais e não-verbais carnavalizados que,
em tempos do que se convencionou chamar de distanciamento social,

1371
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

circulam freneticamente nos ambientes virtuais das redes sociais, seja no


Facebook, no Instagram, no WhatsApp, no Twitter, entre outras.
Gêneros discursivos gerados na contemporaneidade e que, através da
comicidade, das paródias, das caricaturas grotescas, colocam em tensão os
discursos oficiais e não-oficiais, os discursos progressistas e os discursos
reacionárias que, no encontro e no cotejo de textos, promovem diálogos
tensos que retroalimentam a ideologia do cotidiano e a ideologia oficial.
Gêneros do discurso que constituem a permanente disputa de sentidos na
unidade das respostas dos sujeitos que frequentam as redes sociais. Redes
que, em certo sentido, ocupam os lugares dos círculos e das praças
públicas onde ocorrem encontros potentes desses nossos tempos.
Entendi que a partir deste ambiente virtual, que promove o encontro de
tantas vozes ambivalentes em constantes tensões, seria possível entrever
vestígios da comicidade popular que, na unidade de contradições,
anunciaria renovados sentidos da vida. Seria este um bom caminho a
seguir? Seria uma trilha viável para o entendimento das tensões de vozes
e horizontes degradantes, mas que ao mesmo tempo apontam para o
avesso cômico da vida? Talvez!
Ao longo do caminho vislumbrado, encontro uma importante advertência
sobre as possibilidades das degradações paródicas da modernidade.
Bakhtin (2013, p. 19) afirma que “A paródia moderna também degrada,
mas com um caráter exclusivamente negativo, carente de ambivalência
regeneradora. Por isso a paródia, como gênero, e as degradações em
geral não podiam conservar, na época moderna, evidentemente, sua
imensa significação original”. Diante desse alerta, passei a me perguntar
se ainda seria possível entrever, nos gêneros carnavalizados que circulam
nas redes sociais, a comicidade do riso ambivalente e festivo em imagens,
vozes e ambientes que apresentam as degradações da contemporaneidade.
Seria possível entrever o grotesco regenerador e o riso
ambivalente ressoando em gêneros verbo-visuais marcados por sátiras,
ironias e imagens hiperbolicamente caricaturizadas que expõem a
deterioração dos nossos tempos sombrios?

Sobre os destroços do realismo grotesco e a possibilidade do riso reduzido


dos nossos tempos
Na (im)possibilidade de encontrar aspectos essenciais daquele realismo
grotesco renovador e ambivalente na atualidade, encontro, nas próprias

1372
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

palavras de Bakhtin, uma nova trilha para a compreensão de


manifestações do grotesco que, a partir da negação indissoluvelmente
associada a uma afirmação, nos possibilita entrever sentidos de
renascimento, ainda que de modo menos potente.
Bakhtin (2013, p. 21) afirma que o campo da literatura realista dos últimos
três séculos está praticamente juncado de destroços do realismo
grotesco, (…) destroços que às vezes, apesar disso, são capazes de
recuperar sua vitalidade. Na maioria dos casos trata-se de imagens
grotescas que perderam ou debilitaram seu pólo positivo, sua relação com
o universo em evolução. É apenas através da compreensão do realismo
grotesco que se pode entender o verdadeiro valor desses destroços ou
dessas formas mais ou menos vivas.”
Neste sentido, descendo e subindo os degraus de uma trilha estreita e
curvilínea, encontro um ponto de alargamento possível para a minha
busca. Seria pertinente, pois, entrever o realismo grotesco, não exatamente
a partir de seus princípios originais, mas vislumbrá-lo em formas e
valores de destroços do realismo grotesco medieval através de gêneros
verbo-visuais que expõem o grotesco dos nossos tempos nas redes
sociais? Certamente!
Ao acessar nova trilha para as minhas indagações, também encontrei uma
outra importante formulação bakhtiniana que me fez avistar novos
horizontes nesta busca de sentidos. Sentidos que agora apontam para a
compreensão dos valores dos destroços da força criativa do riso
ambivalente entre vozes e imagens grotescas mais ou menos vivas
dos nossos tempos.
Ao analisar a literatura carnavalizada dos séculos XVIII e XIX, Bakhtin
encontra vestígios do que entende ser não o riso ambivalente,
propriamente dito, mas um riso abafado que chega à ironia, ao humor e a
outras formas de risos reduzidos que se manifestam sem a potência do riso
ambivalente marcante da cultura cômica popular da Idade Média e do
Renascimento. Cultura que, em todas as suas etapas, se opôs à cultura das
classes dominantes para destroná-la e para apontar, na unidade de um
conjunto de contraposições, possibilidades da renovação simultânea que
transforma.
Ao analisar os romances de Dostoiévski, Bakhtin afirma que o riso
reduzido se manifesta em seus romances polifônicos a partir, via de regra,
da introdução da narração que quase sempre se constrói em tons irônicos-

1373
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

paródicos ambivalentes. Assim, Bakhtin (2008, p. 190) afirma que “Sob


certas condições e em certos gêneros, porém, o riso pode reduzir-se. Ele
continua a determinar a estrutura da imagem, mas é abafado e atinge
proporções mínimas: é como se víssemos um vestígio do riso na estrutura
da realidade a ser representada, ser ouvir o riso propriamente dito.”
Bakhtin entende que cada um dos atos da história mundial foi
acompanhado pelos risos do coro. Mas nem todas as épocas tiveram um
corifeu da envergadura de Rabelais. O legado de sua obra poderá iluminar
a cultura cômica popular de outras épocas, em outros tempos históricos,
inclusive, e por que não dizer, dos nossos tempos.
Por fim, tomando distância dos sentidos únicos e compreendendo os
grotescos possíveis, posso entrever, agora sim, valores dos destroços da
cultura cômica medieval ecoando no realismo grotesco dos nossos tempos.
Valores de destroços que, entre risos abafados e reduzidos, atravessam
vozes, ambientes e horizontes num movimento de múltiplas redes
libertárias que enfrentam o escárnio negacionista, a morte e o luto.

Referências
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. São
Paulo: Hucitec/Brasília: Ed. UnB, 2013.
_____. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

1374
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

OS MEMES: O RISO E A IRONIA PRESENTES NOS


DISCURSOS NEOLIBERAIS E A CONTRAPALAVRA DE
ESTUDANTES DAS CLASSES POPULARES

Alessandra da Costa Abreu


UERJ/PROPed
alessandra.uerj2005@gmail.com

Ana Paula da Silva Conceição Oliveira


UERJ / PROPED
ana.pedagogia@yahoo.com.br

Maria Luiza Oswald


Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
moswalduerj@yahoo.com.br

Este texto tem como objetivo discutir o papel dos memes na sociedade
atual, numa perspectiva que revela “o grotesco dos nossos tempos”,
quando professores, instituições educativas e a ciência aparecem atacadas
de forma grotesca nas redes sociais, numa tentativa de desprestigiar a
escola pública, atitude identificada com a política de privatização do
governo Bolsonaro. Para iniciar essa discussão selecionamos dois
memes:

Figura 1:

1375
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Figura 2:

É patente o crescimento de memes que circulam nas páginas de internet e


redes sociais. A memética apresentada por esse tipo de discurso possui um
caráter criativo unindo mídias, imagens, sons, podendo incorporar aos

1376
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

textos personagens, obras de arte, cenas de filmes, novelas, desenhos,


acontecimentos sociais, pronunciamentos políticos, situações que
viralizam na internet, promovendo outras leituras e interpretações que
apontam para a “ambivalência do grotesco” (Bakhtin, 2010), cuja potência
está em fazer rir questionando a verdade absoluta do discurso oficial.
Pensar o papel dos Memes na nossa sociedade atual nos remete a
movimentos de cotejos com o papel do riso popular da Idade Média que
representava caminhos para libertação da consciência humana, pois “o riso
não coíbe o homem, liberta-o” (BAKHTIN, 2011 p.372). O Meme,
apresentado na figura 1, coopera para que uma parcela da população ria
da escola pública causando forte indignação à outra grande parcela que
não aguenta mais ver as instituições públicas sendo desqualificadas.
Revela, portanto o caráter plástico da linguagem e sua capacidade de
transformação, pois enquanto produto da vida social “a linguagem
encontra-se em um perpétuo devir e seu desenvolvimento segue a
evolução da vida social” (VOLOCHINOV, 2005 [1930], p. 11). A
ambivalência, nesse caso, se dá nos novos discursos que são produzidos
em resposta ao discurso oficial que pretende desmerecer o ensino público.
Para Bakhtin,
o movimento deixa de ser o de formas completamente acabadas num
universo também totalmente acabado e estável; metamorfoseia-se
em movimento interno da própria existência e exprime-se na
transmutação de certas formas em outras, no eterno inacabamento
da existência (BAKHTIN, 2010 p. 28).
Buscando uma aproximação com os estudos bakhtinianos
compreendemos que enunciar é expressar sentimentos, ideias, valores e
pensamentos proferidos por diferentes campos da atividade
humana. Sendo oral ou escrito, todo enunciado envolve conteúdo, estilo
da linguagem e construção composicional (Bakhtin, 2011 p. 262).
Estamos atentas aos enunciados acompanhados de uma diversidade de
gêneros de discursos em que também estão incluídas as réplicas do diálogo
do cotidiano carregadas de vertentes ideológicas, semióticas, sociais e
políticas.
Diferente de Marx, que pensava a ideologia como uma ferramenta da
burguesia para oprimir o proletariado, Bakhtin percebia que as classes
populares também possuíam suas ideologias, normalmente
revolucionárias e em oposição aos interesses daqueles que desejavam
oprimi-las. Na obra de Rabelais, encontramos o riso ambivalente, pois ao

1377
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

passo que é alegre e festivo também é burlador e sarcástico. Esse riso nega
e ao mesmo tempo afirma, despreza e concomitantemente faz renascer
(BAKHTIN, 2010). Rabelais escrevia textos cujas narrativas possuíam um
caráter cômico e carnavalesco de grande repercussão. Através da sátira,
sua escrita realizava críticas importantes e incomodava vieses religiosos e
figuras públicas de seu tempo (Século XVI). No prefácio de Clássicos
Rabelais: Gargântua, Victor Hugo escreve “Rabelais é a máscara
formidável da comédia antiga, um rosto humano e vivo”. Enquanto alguns
são luto, Rabelais é paródia. Pensamos os memes deste tempo inspiradas
nesta perspectiva, sem com isso ignorarmos a existência de outras forças
sociais se apropriando da memética para satirizar negativamente a
educação pública.
A imagem presente nos memes que apresentamos nesta escrita fez uso da
obra-prima de Edvard Munch, pintada pela primeira vez em 1893.
Classificadas como iniciadoras do expressionismo (um importante
movimento modernista da primeira parte do século XX), as obras do
artista abordam temas como a melancolia, a ansiedade e o medo. O Grito
inspirou outras formas de arte, inclusive como a série de
filmes Scream (Pânico, no Brasil), no qual serial killers usam máscaras
inspiradas na expressão principal do quadro.
O meme de número 01 foi produzido pela Galeria de Estudos e Avaliação
de Iniciativas Públicas (GESTA) que compõe o movimento “Todos pela
Educação”, liderado por grupos de empresários[1]. O movimento tem
apresentado interferências efetivas na educação brasileira, através do
apoio às reformas educacionais de cunho gerencialista. São os ideários
neoliberais presentes na educação pública. Vimos que é na imagem
memética, aparentemente lúdica e divertida que os discursos oficiais
também se propagam. O meme de número 02 é uma resposta de Anna
Júlia, estudante do 3º Ano do Curso Normal de uma escola da rede
estadual do Rio de Janeiro.
Não esgotamos as possibilidades discursivas presentes nos memes quando
estes dispõem sobre a ambivalência sinalizada em Rabelais. Contudo, não
ignoramos a faceta, ardilosa e calculada das organizações empresariais ao
se apropriarem da memética para enunciar de modo satírico e negativo
seus ideais. O grito demonstrado no meme é de uma denúncia maliciosa à
escola pública, como se ela não realizasse seu papel formativo e não
desempenhasse sua função social. O site (Gesta) possui inúmeros memes
com a mesma proposta do Meme apresentado na figura 1, na intenção de
culpabilizar as instituições públicas e seus professores por um suposto

1378
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fracasso da escola, ou seja, memes que visam divulgar um discurso


grotesco sobre os professores e o papel da escola pública na sociedade
tentando proclamá-la sob uma única voz, a de cunho negativo. No entanto,
o impacto desses memes entre as / os jovens das classes populares,
estudantes da escola pública, reafirma que em cada discurso que é dito
sempre haverá novas aberturas e outras vozes ecoarão, trazendo novos
dizeres e revelando que “a vida se revela no seu processo ambivalente,
interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem completo, é a
quintessência da incompletude” (BAKHTIN, 2010 p. 23).
Estudos de Benjamin que abordam, assim como Bakhtin, uma perspectiva
libertária da palavra (2012), apontam que:
Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um
monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de
barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.
Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia
dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo (Walter
Benjamin, 2012, p. 245).
Assim como Benjamin (2012), percebemos que todo mecanismo
usado para divulgar a cultura de alguma forma acaba sendo corrompido
pelo mercado e se tornando também um mecanismo da barbárie. Escovar
a história a contrapelo é buscar compreender outros usos, além daqueles
que já nos parecem definidos pelo mercado. Benjamin (2012) propõe em
Experiência e pobreza pensar outras formas de estar no mundo e assim
construir um sentido positivo de barbárie, entendendo como “bárbaro”
aquele que abre novos caminhos com pouco e que isso só é possível por
meio da experiência com a enunciação de novas vozes. Esta proposta de
Benjamin dialoga com os estudos Bakhtinianos de pensar uma perspectiva
libertária no encontro com a opressão, mostrando que ninguém domina
ninguém e que a vida em sociedade é um lugar polifônico onde muitas
vozes ecoam e se completam, “entendendo que o verdadeiro grotesco não
é de maneira alguma estático: esforça-se, aliás, por exprimir nas suas
imagens o devir, o crescimento, o inacabamento perpétuo da existência”
(BAKHTIN, 2010 p. 44-45). Na busca por dizer os seus próprios
discursos, as/os jovens vão criando suas “artes de fazer” (CERTEAU,
2014).
Anna Júlia, estudante do Ensino Médio de uma escola pública, “escovando
a História a contrapelo” constrói o Meme, apresentado na figura 2,
trazendo a sua contrapalavra, porque percebe que é comum ver práticas

1379
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de ataque à escola pública porque para ela esse é o interesse dos grandes
empresários. Segundo a estudante (que já estudou em escola particular)
esse tipo de afirmativa é utilizado como propaganda para atrair alunos para
as escolas privadas sob a alegação de que:
a escola pública não tem estrutura, não tem conteúdo, não tem
professores dedicados (...), que só tem alunos ruins e criando essa
imagem vai favorecer o outro lado. Dificilmente essas pessoas que
estão ocupando os cargos importantes no governo ou pensando a
educação pública tiveram experiência com essa escola e não dão
uma imagem boa do lugar (...) A gente vê muito da elite, essas
minorias falando de um jeito bem nojento das instituições públicas
e a tentativa deles é continuar no topo, [nós somos melhores, nós
somos superiores] na tentativa de nos fazer acreditar que isso é
“verdade”. Mas quando você tem a experiência de estar em contato
com a escola pública é uma coisa muito diferente do que eles tentam
ditar pra você. A escola pública expandiu o meu olhar e me permitiu
ver além dos muros da escola. Não ter a experiência do que se vive
na escola pública significaria desconhecer seu real significado.
Percebo que a escola pública é desfavorecida pelas elites porque não
querem que o pobre tenha voz. Não dar credibilidade à escola
pública é perpetuar práticas de controle e de preservação dos valores
hegemônicos (Anna Júlia, 17 anos).
As narrativas de jovens estudantes em interlocução com os estudos
bakhtinianos nos permitem compreender a arquitetônica do lugar da
liberdade do ato. “A contemporaneidade tenta nos engolir e ditar suas
vozes. Ditar os temas, as ideologias, os gêneros, as éticas e estéticas [...].
Porém, podemos responder e construir a contemporaneidade de uma outra
maneira (GEGE, 2010 p. 21). E assim, entre atos e resistências, vamos nos
constituindo como sujeitos e ocupando nosso lugar no mundo.
Portanto, as redes sociais, Whatsapp, Facebook e outros espaços onde as
relações emergem e em que esses Memes são divulgados acabam atuando
como possibilidades de invenção para outras relações que nos ajudam a
ler e a compreender que não existem lugares demarcados de forma fixa e
que os Memes podem ser produzidos como mecanismo disciplinar de
manipulação, mas também como espaço da contrapalavra, ecoando
os discursos das classes populares que resistem na luta pelos seus
direitos. O que nos permite perceber que a distinção está nos usos e na
experiência produzida por cada sujeito. Do mesmo modo que existem

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

procedimentos e artefatos tecnológicos que são usados para fazer a


vigilância, controle e alienação, buscando garantir atitudes e
comportamentos frente ao modelo dominante, existem igualmente
procedimentos populares cotidianos que não se curvam a essa dominação,
subvertendo a ordem e formando a contrapartida dos processos de
dominação; é assim que os “praticantes” criam golpes, “vigiando para
captar no voo possibilidades de ganho” (CERTEAU, 2014, p. 46).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal/ Mikhail


Mikhailovitch Bakhtin; prefácio à edição francesa Tzevetan Todorov;
introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6ª Ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2011.
_____. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto
de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2010.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre
literatura e história da cultura. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense,
2012.
GRUPO DE ESTUDOS DOS GÊNEROS DO DISCURSO (GEGe).
Palavras e contrapalavras: conversando sobre os trabalhos de Bakhtin. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. Ephraim
Ferreira Alves. 22ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
VOLOCHÍNOV, V. N. Estrutura do enunciado. Tradução de Ana Vaz,
para fins didáticos. 1930, com base na tradução francesa de Tzvetan
Todorov (“La structure de l’énoncé, 1930). In: TODOROV, T. Mikhail
Bakhtine: leprincipedialogique. Paris: Seuil, 2005 [1930], p. 287-316.

Notas:
[1]
Fundação Itaú para Educação e Cultura, Fundação Lemann, Fundação
Maria Cecilia Souto Vidigal, Fundação Roberto Marinho, Fundação
Telefônica Vivo, Instituto Natura, Instituto Península, Instituto Sonho
Grande, Instituto Unibanco, Movimento Colabora Educação, Movimento

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Pela Base, Movimento Profissão Docente. Disponível em:


https://todospelaeducacao.org.br/educacao-ja/. Acesso em: 05 set.2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

OS MENINOS À PROVA DE BALAS E SUA ARMADA


DEFENSORA

Jandara Assis de Oliveira Andrade


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
jandara.aassis@gmail.com

o grotesco como discurso xenofóbico e racista contra o BTS


Este texto traz uma breve descrição acerca do grupo musical de pop
da Coreia do Sul BTS, sua comunidade de fãs, nomeada de ARMY,
e a forma como esta atua contra os ataques racistas e xenofóbicos
direcionados ao grupo nas redes sociais. Para isso, em um primeiro
momento apresenta o grupo, em seguida, o fandom e, por fim,
centra-se nas ações defensivas deste.
No contrafluxo da indústria cultural norte-americana e europeia,
temos nos deparado cada vez mais com as produções culturais dos
países orientais, excepcionalmente, com aquelas de origem sul-
coreanas, as quais tem conquistado fãs ao redor do globo. Isso se
deve a chamada “Onda Coreana”, fenômeno que resulta do foco
em investimentos na indústria cultural do país, promovido pelo
governo sul-coreano como forma de incentivar o crescimento
econômico do país. Fato que teve início na última década do século
XX e resultou na atual exportação de produções televisivas,
cinematográficas e musicais para as mais diversas partes do globo.
Tal estratégia foi aplicada e ajudou a minimizar os impactos
econômicos causados pela crise asiática de 1997 na Coreia do Sul.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nesse sentido, o primeiro produto de exportação foram os K-


dramas (séries televisivas), os quais conquistaram fãs
internacionais que criaram meios para expandir o alcance dessas
obras (ALMEIDA; NICOLAU, 2019). Os K-dramas conquistaram
fãs em diversas partes do mundo, fato que foi impulsionado
também pela ação dos próprios fãs que criaram meios para
disseminar tais produções, um exemplo disso é o surgimento
de fansubs, isto é, sites de fãs que colocam legendas nos k-dramas
em diversos idiomas e disponibilizam para outros fãs terem acesso.
A partir da expansão desses produtos, diversos outros começaram
a ter seu alcance expandido, uma vez que, como as novelas
brasileiras, os k-dramas apresentam elementos da sociedade sul-
coreana. A música pop sul-coreana, as produções cinematográficas
– conforme visto com o sucesso do filme Parasita (2019) que ganhou
reconhecimento e vários prêmios internacionais – e os
próprios Idols (forma como são chamados os artistas coreanos) da
televisão, do cinema e da música acompanharam esse crescimento
e começaram a ganhar notoriedade no cenário internacional.
Aqui, no entanto, dou atenção à música pop sul-coreana ou ao K-
pop como é conhecida, a qual é um gênero híbrido que mistura
elementos do pop, do hip-hop, da música eletrônica, entre outros.
Esse gênero também se caracteriza pelas músicas terem letras que
misturam trechos em coreano e inglês. Além disso, é um tipo de
música na qual os aspectos visuais como roupas, coreografias e
cenários têm grande importância, com a forte presença de
performances perfeitas construídas para prender a atenção do
público. Com relação a constituição dos Idols de K-pop, Almeida e
Nicolau (2019, p. 24) afirmam que “são formados por meio de
grupos essencialmente masculinos (boyband), femininos (girlgroup),
cantores solos, grupos mistos (masculino e feminino) ou duos
(duplas)”, o que garante uma grande variedade de possibilidades
de formações ao gênero. Esses são geridos por grandes empresas
de entretenimento que investem maciçamente na seleção, no

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

treinamento, no debut (forma como é nomeada a estreia dos Idols) e


na gestão das carreiras dos artistas.
Com relação ao surgimento do K-pop é importante apontar que
ocorreu no início dos anos 1990, com o debut do grupo Seo Taiji and
Boys, contudo, a consolidação do gênero ocorreu devido à crise
financeira que ocorreu nesse período na Ásia e impulsionou o
governo sul-coreano a investir de forma maciça na cultura como
forma de escapar do cenário crítico. Nesse período, a exportação do
K-pop se concentrou principalmente entre os países Asiáticos e
apenas por volta de 2012, com o sucesso de Gangnan Style, do Psy,
que o gênero atraiu a atenção do mercado ocidental, tornando-se
um fenômeno mundial.
O K-pop, atualmente, conquistou um importante papel na
economia da Coreia, de modo que é responsável por uma parte
considerável do PIB do país. Isso ocorre pela venda de produtos
ligados à indústria cultural, pelo fomento ao turismo e pela venda
de outros produtos culturais, como roupas e pratos típicos da
culinária sul-coreana ou até mesmo o idioma. Assim, os grupos
musicais, os filmes e os k-dramas são responsáveis pela
disseminação não apenas de produtos, mas também de aspectos
ideológicos e políticos, os quais impactam no comportamento dos
fãs em todo o mundo. Um dos maiores disseminadores dessa
cultura, nesse contexto, é o Bangtan Sonyeondan, grupo formado por
sete componentes, o qual debutou no cenário da música pop da
Coreia do Sul em 13 de junho de 2013. O BTS, como se tornou
mundialmente conhecido, em 2019, foi responsável por inserir 5
bilhões de dólares no PIB da Coreia do Sul. Tal fato está
correlacionado ao crescimento do grupo que, desde 2016, tem
conquistado recordes de vendas e de streaming de músicas (como
ocorre com a permanência do hit Butter em primeiro lugar da
tabela BillboardHot 100 Singles, da revista Billboard, a qual é
publicada semanalmente e mostra as músicas mais vendidas –
online e de forma física –, ouvidas nas rádios e em streaming em

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

território norte-americano), bem como nomeações a premiações


importantes e obtenção de prêmios populares e profissionais
dentro e fora do mercado asiático.
O crescimento do BTS está atrelado à sua presença constante em
mídias digitais, por meio do compartilhamento, venda e
divulgação de produções próprias do grupo ou midiática, nesse
caso é importante incluir a constante interação que o grupo
mantém com sua comunidade de fãs, seja mediante à realização
de lives, de postagens na conta do Twitter do grupo ou de respostas
aos comentários dos fãs no aplicativo Weverse, criado pela empresa
que gere o grupo, a Big Hit Music, com o objetivo de estimular esse
diálogo.
A fanbase do BTS foi nomeada pelo grupo quase um mês após o
seu debut, a qual foi batizada como Adorable Representative M.C of
Youth ou, simplesmente, ARMY como ficou conhecido
mundialmente. O fandom se utiliza das ferramentas digitais para se
organizar, de modo que votações, divulgações e protestos ocorrem,
quase exclusivamente, por meio das redes sociais. O Twitter, nesse
contexto, é utilizado como uma plataforma de compartilhamento
de notícias e de ações do fandom, o qual atua não apenas em ações
ligadas ao BTS, mas também ao ativismo em diversas causas
sociais, políticas e ambientais. Em 2020, por exemplo,
a fanbase igualou (e ultrapassou) a doação de 1 milhão de dólares
do BTS para a iniciativa Black Lives Matter. No Brasil, o fandom em
parceria com a Fiocruz criou uma campanha de arrecadação de
fundos para doar cestas básicas às famílias em situação de
vulnerabilidade social (essa ação foi organizada pela fanbase Army
Help the Planet e foi nomeada como ARMY contra a fome, a
iniciativa arrecadou pouco mais de 60 mil reais. A informação está
disponível em: . Acesso em: 06 de set. de 2021).
Aqui é importante apontar que o significado do nome Bangtan, em
coreano, tem um sentido expressivo e que lança uma luz sobre a
relação idol-fandom, além de sobre as ações tomadas pela

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

comunidade de fãs do grupo no sentido de garantir premiações,


boas vendas, audiências em eventos e programas bem como a
proteção diante de todo e qualquer ataque malévola sofridos pelo
septeto. Bangtan significa resistente a balas e a sigla ARMY,
traduzida do inglês, significa exército. A ideia é de que
o fandom atua como um colete à prova de balas que garante a
resistência do grupo. Essa imagem defensiva se torna mais
evidente quando observamos a defesa dos fãs a todo e qualquer
ataque direcionado ao grupo.
Nesse contexto, o mercado musical ocidental é marcado por um
predomínio de artistas norte-americanos, britânicos e canadenses
brancos, de modo que há pouca abertura para artistas sul-
americanos, africanos, asiáticos e até mesmo de outras partes da
Europa. Essa predominância pode ser comprovada com a criação
de categorias especificas para encaixar artistas que fogem da tríade
dominante. Há, por exemplo, o Grammy latino, uma premiação
voltada precisamente para artistas oriundos de países latinos,
separada da premiação principal o Grammy Award. Seguindo essa
linha de ação, outras premiações, ao invés de promover a inclusão
de diferentes artistas falantes de outras línguas e oriundos de
variados países, tendem a segregar os artistas que fogem do
estereótipo branco, europeu e norte-americano em categorias
restritivas que nãos os permite ascender ao padrão dominante. Essa
seletividade promove um cenário de segregação e,
consequentemente, de preconceito contra os artistas que estão fora
do eixo central.
O BTS em inúmeras situações foi alvo de preconceito étnico e
xenofóbico. Um exemplo de tal situação ocorreu em março de 2021,
quando um radialista alemão, durante seu programa ao vivo,
comparou o septeto ao Coronavírus, vírus que matou milhares de
pessoas em todo o mundo. Diante da repercussão gerada, a radio e
o radialista pediram desculpas públicas por tal ação. No mesmo
mês, uma empresa americana, famosa por criar Cards

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

colecionáveis, lançou uma coleção de cards com a caricatura de


diversos artistas, contudo, o BTS foi representado sendo golpeado
pela estatueta do Grammy (figura 1). A imagem chamou a atenção
por destoar da forma como os demais artistas foram representados.
Essa representação gerou diversos questionamentos nas redes,
levantados pelos fãs, inclusive a criação da hashtag “Racism Is Not
Comedy” (racismo não é comedia).

Figura 1 – Card colecionável do BTS da linha "Garbage Pail Kids:


The Shammy Awards"

Fonte: disponível em: . Acesso em: 06 de set. de 2021.


Neste texto, considero grotesco o discurso xenofóbico e racista que
tentam inferiorizar o BTS. Tais ações são rechaçadas e fortemente

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

combatidas pelos fãs do grupo que estão sempre atentos para ações
negativas contra os meninos à prova de balas e a sua etnia asiática.
De forma abreviada tentei mostrar como isso ocorre por meio de
ações em redes sociais e da organização do fandom.

Referências
ALMEIDA, Naiane; NICOLAU, Marcos. A reapropriaçãoda
indústria de cultura pop sul-coreana como estratégia de expansão
global e conquista de fãs. Temática, ano XV, n. 8, ago. 2019.
NAMID/UFPB -http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/temática.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

OS PIQUENOS DO PUÇÃO NA VENEZA MARANHENSE -


BRASIL

José Raimundo Campelo Franco


Universidade Federal do Maranhão
dedafranco2015@gmail.com

Notas introdutórias
A projeção em forma de resumo expandido se faz a expressão de
um acontecimento da pesquisa de tese conclusa pela Universidade
Federal Fluminense e denominada como “Os piquenos da Baixada
Maranhense: subsídios para geografias outras do lugar”
(FRANCO, 2019), com financiamentos da FAPEMA e orientada
pelo Prof. Dr. Jader Janer Moreira Lopes. Expande-se também
como continuidade de discussões, tendo em vista a extensão de
novas abordagens ampliadas com o atual projeto de pesquisa
intitulado: “Territórios sociais do piqueno do Maranhão: histórias,
cultura popular e estudo de caso” da Universidade Federal do
Maranhão, onde se utiliza de bases teóricas respaldadas nas
Histórias das Infâncias, na Geografia das Infâncias e no Cronotopo
Bakhtiniano.
Extralocalizações do brincar nos puções das beiras-do-campo
A temporada em que as águas se tornam predominantes nos
campos naturais da Baixada Maranhense, as precipitações das
chuvas engendram recomposições climáticas que assumem o
poder dos movimentos e trazem as mudanças para as
funcionalidades de um novo ciclo sazonal. Conforme a intensidade
pluviométrica e o compasso dos dias, ou mesmo de meses, a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

concebida estação do inverno finalmente está alcançada em toda


sua plenitude, porquanto o comportamento do homem baixadeiro
também vai mudando em seus hábitos e necessidades para se
adaptar e conviver com os novos cenários, que precisarão de
reorganizações e instrumentalizações adequadas com o ambiente
agora dominado por imensas massas líquidas.
Nestas prevalências naturais, ressaltam-se dois brinquedos
dispostos na esteira ambiental solos-águas que trazem rituais
diversões nas temporadas do elemento água, que servem de
balneários, os quais são chamados na cartografia das falas de
adultos e crianças de pução (águas encalhadas em campos naturais)
e porto (finais de ruas terminadas em campos inundados), ambos
também são sinonímias de beira-do-campo.
O primeiro brinquedo destacado é incidente na fase das águas
enchentes e pantaneiras, quando a manifestação paisagística da
região inundável ilumina exuberâncias nos olhares emotivos, que
fazem os baixadeiros recitarem nos romantismos ecológicos
como Pantanal Maranhense. O segundo brinquedo, ocorre no pico
das cheias e será discutido noutra abordagem.
No confinamento das primeiras águas, os piquenos (como são
chamados meninos e meninas no Maranhão) carnavalizam, quanto
maior for o grupo interativo, até que estes pequenos represamentos
líquidos sejam tomadas pelos incrementos extravasados dos lagos.
Com a fase avançada em que os calados trazem profundidades
para as margens urbanas, o potencial naturalismo percebido,
ganha, na ribeirinha cidade de Viana-MA, que é circundada por
lagos, a alcunha de Veneza Maranhense, geograficidade linguística
enraigada no lugar, advinda da velha geografia descritiva e
naturalista que alvorecia no Brasil no início do século passado
(LOPES, 1933; ANDRADE, 2008).
Esta abordagem, aqui compartilhada, refere-se ao brinquedo pução,
tendo acontecido, no final do ano 2018, nas ascendências

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pantaneiras, quando cumpria um trabalho de campo que coletava


cenas, ações e relatos espelhados nas culturas das crianças em
territórios comuns de brincar das hinterlândias campestres do
bairro São Benedito.
Vi energias contagiantes se desprendendo daqueles movimentos e
nas buscas de mais achados, ousei entrar nas águas para captar
mais informações e, assim, acompanhá-los em mais um
protagonismo infantil (de uma longa rotina que ainda viria), ou
seja, o brincar de tomar banho com as crianças na intenção de
buscar uma extralocalização mais panorâmica às sensações do
“estar-criança”, como um piqueno maior, daquele rico e oportuno
momento.
Ainda que a prática seja insistida por muitas crianças que buscam
diversões nas águas barrentas dos poções na Baixada Maranhense,
elas acontecem com aqueles piquenos mais ativos em movimentos
corporais, as mais frequentes nos campos e, sobretudo, os(as) que
gozam das prerrogativas dos pais em permitirem que suas crianças
vivam mais intensamente gozando destas brincadeiras no
diversificado cabedal das disponibilidades do brincar tradicional
no lugar.
Nestas prerrogativas, a negatividade constituinte da infância
idealizada por Sarmento (2005, p. 368) apresenta suas faces, pela
preocupação em proteger a saúde das crianças pelas suspeições da
qualidade das águas mediante o seu estado de exposição:
Certamente que estas interdições se sustentam numa prática de
protecção, constituem, quase todas elas, avanços civilizatórios e não
está em causa a sua radical abolição [...]. A interdição simbólica de
pensar as crianças a partir da positividade das suas ideias,
representações, práticas e acções sociais – por outras palavras, a
ruptura dos adultos com o pensamento infantil, não como
pensamento distinto, mas como pensamento ilegítimo,
incompetente, impróprio e inadequado –, sendo filosófica e
pedagogicamente construída [...].

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

As experiências foram variadas. Dentre tombos levados, ser alvo


fácil numa guerra de barro, emprestar, inconscientemente, meu
corpo como trampolim em um salto acrobático e muitas outras
travessuras, foram algumas alocações que me conduziram a certas
confianças e aberturas com as alteridades e, portanto, salutares aos
bons encaminhamentos que me fizeram concluir a pesquisa um ano
depois.
Foram múltiplas as investidas com as águas rasteiras para as
criações e reelaborações dos saltos de mergulhos chamados
de mortais, assim como, os gritos de contentamentos que
exprimiam comemoração e júbilos pela fluência dos
acontecimentos que ali ganhavam incessante sequência.
Os nados se sucediam com breves braçadas, tolhidas bruscamente
por encerramentos do reduzido tamanho da piscina natural. Os
mergulhos também eram bem improvisados, pouco sucedidos de
imersão, arranjados com parte dos corpos expostos na superfície
hídrica e continuados em posições rasteiras ou ligeiramente
gatinhadas sob as águas rasas da microtopografia, autorias infantis
em paródias perfeitas com intertextualidades de incorporarem
uma piscina naqueles divertimentos (PONZIO, 2017).
Rasas e barrentas, pois o solo mal consolidado das várzeas
orientam um fundo lamacento e levemente movediço mediante a
conformidade do confinamento ainda estar bem restrito, já que
nestes estágios, as parcas inundações iniciantes assumem ritmos
que duram mais de dois meses.
A felicidade de experimentar as águas mais uma vez é sempre uma
vontade ascendente nos semblantes dos assistidos. Seus diálogos e
empenhos com os corpos transparecem satisfações e prazeres, que
demonstram arrojos de sempre estarem engajados em alguma nova
forma de fazer algo, como se exercessem com mais intensidades,
expressividades cultivadoras de aventura ou liberdade.

1393
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A brincadeira encerrou com as glorificações elevadas daquela etapa


do trabalho ter sido ilesa de qualquer imprevisto com as crianças,
contudo, o problema do banho daqueles que não detinham estas
liberdades com seus cuidadores, recaiu para seu momento de
buscar a solução, cuja possibilidade desagradável de contrairmos
chateações ou mal-entendidos de cuidadores, que na sombra de
uma insatisfação ocasionada, poderia comprometer à credibilidade
da pesquisa ou perder alguma criança integrante do agrupamento.
Embora o pedido tivesse feito somente a quatro meninos
voluntários que gozavam de permissões, a envolvente e
convidativa brincadeira enfeitiçou mais onze crianças a caírem nas
águas. Senti minha parcela de culpa pelos(as) demais que não
podiam, já que o frenesi dos(as) brincantes e a minha entrada na
bagunçada brincadeira se transformou numa bomba de incentivos
à participação dos outros que não tinham arbítrio para tal.
No final de todas as estripulias, aqueles piquenos e piquenas “menos
soltos” ao convívio comunitário e mais subpostos às regras
familiares se mostraram desesperados no momento de ir para casa,
caindo em prantos ao lembrarem da desaprovação dos pais, para
com os riscos imaginados. As lástimas formaram muitas vozes em
choramingos, onde algumas captadas diziam: “mamãe vai
me dale”, “papai é brabo”, “eu nunca tinha banhado no pução”,
“professor, fala com meu pai?”.
Conforme o enredo da cultura grotesca disposta no Círculo de
Bakhtin, assim se obteve nas épocas medievais: “Ao contrário da
festa oficial, o carnaval era o fundo de uma espécie de libertação
temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição
provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e
tabus.” (BAKHTIN, 1987, p. 08).
Na posição temporal da pesquisa, estávamos em dias iniciais dos
trabalhos de observação de campo. Apenas com uma auxiliar na
pesquisa, tratamos de fazer um pequeno censo nas casas daquelas
crianças para explicar o que aconteceu e assim livrá-las de supostos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

castigos e também de não deixar a pesquisa em descrédito. O


desdobramento desta seção de visitas acabou por ter reflexos
positivos, já que acabamos viabilizando mais contatos com os pais
(além daqueles já encontrados anteriormente pelos campos), em
que boa parte destes foram visitados com apresentações da
pesquisa e seus esclarecimentos iniciais.
O tumulto do agrupamento de banhistas estarem juntos ao
chegarmos nas primeiras casas, também impactou beneficamente
as boas perspectivas da pesquisa, onde todos os(as) responsáveis
acabaram vendo com bons olhos o mérito dos trabalhos,
concordando com a participação dos seus filhos e filhas na
investigação. Pelo outro lado do fato mais importante: nenhuma
das crianças fora castigada sob o lapso do banho não autorizado,
que, por outro lado, simplesmente marcavam um realismo grotesco
de ações de rupturas com algumas regras de segurança na familiar
subpostos nas negatividades constituintes com os poções.
No realismo grotesco (isto é, no sistema, de imagens da cultura
cômica popular), o princípio material e corporal aparece sob a forma
universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal estão
ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É um
conjunto alegre e benfazejo. (BAKHTIN, 1996, p. 17).
Um bom indicativo abstraído dessa etapa com o grupo, foi a
necessidade de preservação e cuidados com os campos inundáveis,
já que em outros convívios com menores ou nulos adensamentos
urbanos, os riscos diminuem e esta prática se faz mais ativa e
cultural. Numa vista mais geral, observou-se o realismo grotesco
das crianças em revitalizarem suas infâncias e ancestralidades com
a divertida brincadeira de corpos e águas, ainda que isto possam
lhe custar medos e dissabores advindos das regras do microcosmo
local. Finalizo, portanto, relevando uma das conclusões mais
graciosas e pressentidas ao longo da tese, exaltando na forma de
uma prosa poética e amorosa a aludir que as crianças compõem

1395
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estes ambientes na perfeita fusão dos piquenos serem a, e da beira-


do-campo e a beira-do-campo ser os, e dos piquenos.

Registros de interatividades nas brincadeiras do banho de poção.


Fonte: Arquivos da pesquisa (2018).

1396
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
ANDRADE, M. C. de. Geografia, ciência da sociedade: uma
introdução à análise do pensamento geográfico. 2 ed. São Paulo:
Atlas, 2008.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento - o
contexto de François Rabelais. 3 ed. Tradução de Yara Frayeschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 1996.
FRANCO, J. R. C. Os piquenos da Baixada Maranhense: subsídios
para geografias outras do lugar. 2019. 321 f. Tese (Doutorado em
Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2019.
LOPES, R. Antropogeografia. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica da
Universidade do Brasil (Publicações Avulsas do Museu Nacional
Nº 18). 1933.
SARMENTO, M. J. Gerações e alteridade: interrogações a partir da
sociologia da infância. Educ. Soc. Campinas, vol. 26, n. 91, p. 361-
378, Maio/Ago. 2005. Disponível em
http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em 15 ago. 2016.

1397
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Palavra como Resistência

Ligia Maria da Silva


Secretaria da Educação do Estado de São Paulo
ligiasilva.academico2021@gmail.com

Introdução
Este trabalho tem como proposta compreender o fenômeno
ideológico da palavra, através dos enunciados do texto “O amanhã
não está à venda” do escritor Aílton Krenak. Buscaremos
compreender as relações estabelecidas entre palavra, signo e
ideologia, conforme a temática o grotesco dos nossos tempos:
vozes. Qual a importância da palavra nas relações e, por que a
palavra do eu é tão importante para o outro? A palavra se posiciona
como uma ponte entre o eu e o outro, na perspectiva da alteridade,
das relações dialógicas em meio a um contexto social. Assim,
almejamos que a pesquisa contribua para novas discussões, acerca
das relações de alteridade e valoração do meio ambiente, da
cultura, da etnia e da formação humana. Ao ler esse
autor, retomamos com pesar a existência de um país colônia, onde
a biodiversidade está sendo extinta e a diversidade entre os povos
não é tolerada, trata-se de um país de desigualdade, injustiças e
fome, estado pandêmico da alma. A natureza nos alerta
constantemente como o autor Krenak escreve “O vírus da Covid-
19 não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas
humanos”. A humanidade através das suas escolhas
governamentais vem agravando a situação da Terra e o que retrata
o Brasil com as queimadas, a destruição da floresta, a retirada de

1398
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

madeira ilegal, os garimpos e a negação da terra aos indígenas com


o marco inicial. Através do uso das mídias, da ciência e da
tecnologia, podemos expressar nossos sentimentos, pensamentos e
ações como fazem Aílton Krenak, Nilma Lino Gomes, Grada
Kilomba, Lilia M. Schwarcz entre tantos outros escritores, cientistas
e pesquisadores utilizam-se da palavra, singular que, ao mesmo
tempo, é povoada por outras vozes da alteridade (PAJEÚ, 2018, p.
131). Assim, é possível observar a palavra como resistência,
liberdade, para que haja um amanhã para os seres humanos.

Palavra, Signo e Ideologia


Para pensar na palavra devemos atentar o olhar para o mundo a
partir do singular e das relações das diferenças, já que a palavra
ocorre nas trocas entre o eu-outro, na perspectiva da alteridade, que
para Bakhtin, “permite nos distanciarmos de um etnocentrismo
amargo, uma vez que a alteridade é exatamente o elemento que
abre o sujeito, que o torna inacabado, que o faz reconhecer a
diferença” (BAKHTIN, 2010, apud, PAJEÙ, 2014, p.127). Qual a
importância da palavra nas relações? Por que a palavra do eu é
importante em relação ao outro? A relevância da palavra nas
relações se dá, pois, o eu é um presente do outro, construído nessa
relação dialógica com o outro. Segundo a filosofia da linguagem a
definição de palavra vem ligada a um fator ideológico já que:
A palavra é produto ideológico vivo, funcionando em qualquer
situação social, tornando-se signo ideológico porque acumula as
entonações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores
sociais, concentrando em seu bojo as lentas modificações ocorridas
na base da sociedade e, ao mesmo tempo, pressionando uma
mudança nas estruturas sociais estabelecidas (BRAIT,2018,p.178-
189).
O sujeito passa a compreender o mundo pelos processos de
comunicação, que se dão interna e externamente de maneira
ideológica, o outro dirige ao eu signos, conscientes por uma palavra

1399
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nova (a interiorização), refletem e refratam da palavra do outro


assumindo o ato responsivo responsável. Diante disso podemos
considerar que:
A palavra aperta todos os canais da vida. Ele envolve tais
significações culturais entrelaçadas por diretrizes dialógicas e
ideológicas que expressam à multiplicidade das contradições
sociais pela linguagem, pela palavra, pelos signos ideológicos que
formam enunciados e integram os processos interativos dos
sujeitos com outros sujeitos por meio dos seus bens culturais
(PAJEÚ,2018, p.130).
Através das mudanças sociais que nos permeiam, a língua
reverbera e desencadeia respostas avaliativas conforme seu
contexto, trazendo consigo a ideologia, envolvendo significações e
bens culturais, a palavra é sempre a palavra de outrem que envolve
alteridade. A partir do texto do escritor Aílton Krenak,
vivenciamos muitas perdas, a miséria humana, a pandemia, a
destruição da Natureza, o isolamento social, de acordo com o autor
contribui para que as pessoas possam refletir “se somos de fato
uma humanidade” (KRENAK, 2020). Na filosofia da linguagem o
princípio de alteridade coteja com pluralidade, polifonia, ideologia
nesta relação de muitas vozes, que necessita correlacioná-las às
outras concepções, ideias que nos faz refletir e refratar-se, assim nos
constituímos através do outro. Desde este ponto de vista, vale
salientar que:
As palavras, nesse sentido, funcionam como agente e memória
social, pois uma mesma palavra, figura em contextos diversamente
orientados. E, já que, por sua ubiquidade, se banham em todos os
ambientes sociais, as palavras são tecidas por uma multidão de fios
ideológicos, contraditórios entre si, pois frequentaram e se
constituíram em todos os campos das relações e dos conflitos
sociais” (MIOTELLO, 2018, p.172). Assim, nas relações dialógicas
as palavras “tomam distância para dar espaços às contrapalavras
necessárias à compreensão e a análise” (GERALDI, 2012, p.32-33).

1400
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Considerações Finais
Quando lemos krenak, devemos atentar-se a nossa contrapalavra,
ao nosso ato responsivo responsável, aos povos da floresta:
quilombolas, caiçaras, ribeirinhas e indígenas que lá se encontram
a preservar o que temos de mais precioso a biodiversidade, a
Natureza. Porém, também devemos responder a um país
extremamente desigual, que apresenta grandes desafios sociais,
econômicos e políticos. Segundo Miotello “a classe dominante
confere ao signo ideológico um caráter intangível, imutável e
supraclasses sociais, abafando ou ocultando a luta dos índices
sociais de valor, e divulgando o discurso da monovalência”
(MIOTELLO, 2018, p.173).
Não se pode aceitar os acontecimentos de destruição de um povo,
de uma floresta, de uma etnia como algo natural, como se não
estivéssemos falando de nós mesmos (excedente de visão). Ainda
conforme os estudos do filósofo Peter Singer “devíamos estar
preparados não apenas para respeitar todo o ser vivo, mas também
para atribuir à vida de todo o ser vivo o mesmo valor que
atribuímos à nossa” (SINGER, 2018, p.189). Toda palavra é
carregada de intenções e na relação responsiva que princípio da
ressignificação do ser humano inacabado, como sujeito
participante dos processos de interação, de troca e de relação com
o outro. Diante disso Bakhtin considera que “Somente o ato
responsável supera toda hipótese, porque ele é de um jeito
inevitável, irremediável e irrevogável a realização de uma decisão;
o ato é o resultado, uma consumada conclusão definitiva”
(BAKHTIN, 2010, p.76).

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.

1401
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

_______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2010.
BRAIT, Beth. Bakhtin conceitos-chave. In: BRAIT, Beth de. (Org.)-
5 ed.,3.ª reimpressão.- São Paulo: Contexto, 2018.
GERALDI, J. W. Heterocientificidade nos estudos linguísticos. In:
GEGE. Palavras e contrapalavras: enfrentando questões da metodologia
bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012. p. 19-39.
GOMES, Nilma Lino. Um Olhar além das Fronteiras: educação e
relações raciais. Belo Horizonte: Autêntica,2010.
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe/UFSCar
(Org.). Palavras e Contrapalavras: enfrentando questões da metodologia
Bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
_______. Palavras e Contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e
Noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019.112p.
_______. Palavras e Contrapalavras: constituindo o sujeito em alter-ação.
São Carlos: Pedro & João Editores, 2014.142p.
KRENAK, Aílton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia
das letras, 2020. Disponível
em: https://www.ufrgs.br/historiasepraticasartisticas/2020/06/17/o
-amanha-nao-esta-a-venda-dica-de-leitura-professor-eduardo-
veras/. Acesso em 06 de setembro de 2020.
MIOTELLO, Valdemir. Ideologia. In: BRAIT, Beth de. (Org.) [et al].
Bakhtin conceitos-chave. 5 ed.,3.ª reimpressão.- São Paulo:
Contexto, 2018,pp.167-176.
SINGER, Peter. Ética Prática. 4.ed.Editora Martins Fontes-Selo
Martins, 2018.
STELLA, Paulo Rogério. Palavra. In: BRAIT, Beth de. (Org.) [et al].
Bakhtin conceitos-chave. 5 ed.,3.ª reimpressão.- São Paulo:
Contexto, 2018,pp.177-190.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Pandemônio, pandemia e o projeto de trabalho como resistência

Ana Cristina Libânio


Prefeitura de Pouso Alegre
kecalibanio@hotmail.com

Não sei quem sou, que alma tenho.


Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou
variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha
perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a
um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos
fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade
que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres.
Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu
ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma
suma de não-eus sintetizados num eu postiço.
Fernando Pessoa[1]

Desde o golpe de 2016, vivemos um cotidiano grotesco aqui no


Brasil. O próprio motivo do golpe e o julgamento e prisão do ex-
presidente Lula, todo o seu desenrolar com um judiciário parcial e
midiático, não deixou de nos apresentar um cenário grotesco dos
nossos tempos. Como se isto não bastasse, continuamos com os

1403
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

desdobramentos do golpe, elegendo um “pandemônio”[2] para


enfrentarmos, pouco tempo depois, uma das maiores pandemias
que o mundo já viu. Nós brasileiros, que até então éramos
referência mundial em vacinação, com um plano nacional de
imunização reconhecido mundialmente, implantado desde 1973,
estamos assistindo atônitos a quase 600mil mortes por covid 19.[3]
Todo o discurso mobilizado para a governança do presidente:
desvalorização da ciência, das instituições democráticas, da
educação e saúde pública, gratuita e de qualidade, dos negros, das
mulheres, dos indígenas, do meio ambiente etc. (a lista parece não
ter fim) desvelam o grotesco de nossa estrutura social escravocrata,
hierarquizada, discriminatória.
Depois de um ano e meio convivendo com uma pandemia que
parece não ter fim, constatamos que o Brasil ampliou a lista de
bilionários no mundo, agregando mais 11 novos empresários e
executivos à lista, segundo a revista Forbes, com um patrimônio de
220 bilhões de dólares. Uma crise econômica, em uma crise
sanitária completa a equação do mundo capitalista: os pobres
ficando cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais
ricos. [4]Tudo isto seria cômico, ridículo, se não fosse trágico.
Muito trágico.
E a escola no meio dessa pandemia com este pandemônio
desgovernando o país? A escola não vai bem, obrigada. Aliás, a
escola busca suas brechas, suas parcerias, formas outras de
estabelecer vínculos com os alunos e familiares. Porém, quem
participou do X Seminário Fala Outra Escola, ocorrido de forma
remota em julho de 2021, organizado pelo GEPEC, teve a
oportunidade de ver que também há muitos horizontes, não sem
dor, abertos pela escola. O grotesco como resistência.
O governo federal se recusou a disponibilizar verba para que os
alunos pudessem minimamente acompanhar o ensino
remoto. Todo o movimento de busca de contato com os alunos e
familiares proposto pelos profissionais da educação, não teve, na

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sua grande maioria, incentivo, apoio e infraestrutura por parte das


esferas políticas, seja ela federal, estadual ou municipal. Assim
penso, que os projetos desenvolvidos com os alunos no contexto
pandêmico nos faz pensar no “grotesco estudado por Bakhtin na
Cultura Popular na Idade Média e Renascimento como forma de
resistir, enfrentar, afrontar, rir-se, contrapor-se à cultura oficial que
oprime, reduz, determina não por valor mas por poder”(SERODIO,
2021)[5], na tentativa de calar todas as outras vozes.
Pretendo contar aqui um pouco do que aconteceu no
desenvolvimento dos projetos vividos por mim com os
adolescentes do 6º ao 9ºano durante o trabalho remoto.
Propus rodas de conversas, a partir de temas sugeridos por eles.
Conversamos sobre a música de nossas vidas, o filme que mais
gostamos, nossos animais de estimação, conversamos sobre jogos,
sobre sonhos (como nos imaginamos daqui a 10 anos), o que os
cheiros nos fazem lembrar, sobre a pandemia, a morte... Um ano e
meio de pandemia, com a escola abrindo e fechando, oscilando e
mesclando o ensino remoto e presencial escalonado, coloquei para
mim um objetivo como orientadora educacional, neste contexto
pandêmico. De tentar estabelecer mais vínculos do que é possível,
em minha função profissional, no presencial: dos alunos com a
escola, dos alunos com seus pares, dos alunos e familiares, dos
familiares e a escola, no intuito de criar um canal de apoio, para
amenizar os sofrimentos do isolamento social.
Fui aprendendo mais sobre os adolescentes com os quais eu
trabalho. E como o trabalho foi remoto durante um longo período,
tive a oportunidade de conhecer “mais de perto” também aqueles
estudantes que nunca são enviados para mim, na sala de orientação
educacional. E destes encontros, quero contar como foi a primeira
roda, proposta como um projeto que denominei Diário da
Quarentena, que teve a duração de 4 meses no ano de 2020. Escrevi
tudo o que aconteceu, como que querendo guardar cada momento,
com sua singularidade. Porém, o que muito me causa desconforto

1405
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

na dinâmica escolar é a dificuldade que temos como profissionais


da educação que somos, de ouvir os adolescentes sem dar
conselhos ou lição de moral.
1º encontro no ZOOM com os alunos do 8º e 9ºanos
Devagar os alunos foram chegando meio ressabiados e abrindo
seus áudios e vídeos. Muitos professores participaram deste
1ºencontro: Saulo, Cléria, Rogério e Pedro, que conseguiu entrar
quase no final. A Maria, supervisora, esteve comigo o tempo todo,
desde a aprendizagem aos primeiros testes com compartilhamento
de tela do aplicativo ZOOM.
Iniciamos o encontro com muitos vídeos fechados e, devagar fomos
abrindo para o outro, entre risos, falta de jeito, vergonha,
observando as mudanças físicas, o novo corte do cabelo, a cor, o
lugar de onde cada um falava... Disse da minha saudade e o quanto
era bom vê-los. Os professores também falaram da falta que
sentem.
Aí perguntei: como vai a vida? Cada um pôde falar um pouco do
que estão fazendo. Weslley nos contou que está aprendendo a
cozinhar. Fiz a maior festa com ele!! E falei com ele o que diz o
poeta: “cozinhar é um jeito de amar as pessoas” Aí ele disse que então
anda amando todo mundo porque está cozinhando pra todo
mundo! Disse também que a mãe está ensinando-o a fazer
crochê. Eduarda nos contou que é babá de duas crianças.
Perguntamos de que horas a que horas ela cuida das crianças. Ela
trabalha das 14:00 às 22:00 horas. Aí então afirmei: então fica difícil
para você estudar. Não... minha mãe me acorda cedo pra fazer as
atividades da escola. E quando não está estudando e nem
trabalhando, o que gosta de fazer nas horas vagas? Fomos ouvindo
cada um a respeito do seu cotidiano. Depois apresentei o projeto
do Diário da Quarentena da Escola PIO XII, um diário de múltiplas
linguagens pra gente dar sentido aos nossos sentimentos,
pensamentos, descobertas neste tempo de isolamento social.
Trouxe algumas imagens para nos ajudar a pensar no projeto e por

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

coincidência, havia entre as imagens selecionadas, a imagem de um


homem forte, tatuado, sentado no banco da praça tecendo um
trabalho de crochê. Alguns alunos estão aprendendo a tocar um
instrumento, outro se desafiou a aprender uma nova língua, e
outros contaram que estão saindo de casa e encontrando os amigos,
negando assim a seriedade da pandemia.
A Maria, supervisora, aproveitou a pergunta de um aluno para
falar a respeito da importância de realizar as atividades da
plataforma digital e etc e tal.
Eu fiquei incomodada com a longa fala da supervisora sobre o
tema, pois ali o meu objetivo era conversar com os alunos, escutá-
los, acolhê-los de alguma forma.
E se a gente fosse traduzir este momento de isolamento social em
uma palavra? Perguntei. A Professora Cléria, convivência,
professor Saulo, solidão, Ryan saudade de poder encontrar com
quem eu quero, Eduarda, ansiedade, Jaqueline, horror, Renato,
saudade também, Marjori, saudade da escola, da família, dos
amigos... Dos professores você não sente saudade? Perguntou o
Saulo para a aluna. Aí entrou a Maria, supervisora, pondo panos
quentes, dizendo que saudade da escola é saudade dos professores
também. Saudade dos amigos, da escola, tá um tédio, diz Sandra,
aluna do 8ºano. Saudade dos amigos, das piadinhas disse Eyshila.
Vazio, pontuou o professor Pedro. Falta de gente, disse Carlos, o
aluno mais admirado pelos professores. Saudade, afirmou o
professor Rogério. Quando os alunos disseram que saudade já
haviam dito, ele reafirmou: mas não tenho outra palavra!
Terminamos o nosso encontro marcado pela saudade e marcando
um novo encontro para a próxima sexta-feira.
Ana Cristina Libânio, 25 de junho de 2020

1407
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Foi assim que iniciamos o projeto Diário da Quarentena. Era para dar
cor, forma, ritmo, imagem aos nossos sentimentos e descobertas,
durante este período tão difícil de se enfrentar, principalmente
sozinho. A ideia era organizar a comunidade escolar para o
acolhimento, para o compartilhamento das experiências, para que
cada um tivesse a escuta do outro, que o coletivo se escutasse nas
falas e olhares de cada um/a. Para que tivéssemos a oportunidade
de compreender que este outro nos constitui e que não poderíamos
ser indiferentes a ele. “Nenhum conteúdo seria realizado, nenhum
pensamento seria realmente pensado, se não se estabelecesse um
vínculo essencial entre o conteúdo e o seu tom emotivo-volitivo,
isto é, o seu valor realmente afirmado por aquele que pensa.”
(BAKHTIN, 2020, p. 87).
Os estudantes enviavam seus desenhos e textos por fotos via
whatsApp e eu organizava os slides e mostrava no grupo do
projeto, com a autorização deles, o que foi compartilhado comigo
para o nosso Diário da Quarentena.
Apresento duas situações cotidianas vivenciadas pelos
adolescentes e socializadas no projeto:

1.

1408
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

2.

A primeira, por se tratar de um adolescente que diz da sua raiva e


das dificuldades por ele vividas durante o isolamento; quebrando
a visão romanceada de muitos em tempos definitivamente tão
difíceis. O aluno me envia o que tem feito durante o isolamento ou
o que gosta de fazer: assistir o desenho japonês do
Pokémon, “criaturas ficcionais que os seres humanos capturam e
os treinam para lutarem um contra o outro como um esporte”[6].Se
pensarmos o Pikachu como um signo,“o signo não é somente uma
parte da realidade, mas também ele reflete e refrata uma outra
realidade [...] (BAKHTIN, 2017,p.93). Neste contexto pandêmico,
bom mesmo seria se fôssemos o Pikachu:“com os melhores
poderes, as melhores falas, as melhores batalhas... Um Pokémon
que começa perdendo, segundo o aluno, e depois vira e ganha”. Em
que momento faremos esta virada? Em que momento na realidade
hoje a vida ganha?
Na segunda situação, no slide organizado por mim, trago a nossa
conversa de whatsApp, onde o aluno me conta que ele queimou o
arroz e que por isto não vai fotografar o que fez. Tento dizer que
errar faz parte de todo processo de vida. Encarar o erro com mais
leveza não é fácil, mas não deixa de ser um aprendizado
importante.

1409
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O adolescente traz o riso como valor ao cozinhar com a mãe. “O


melhor são as piadas que a gente faz”. Pensei no valor libertário
que o riso tem, nas palavras de Miotello (2008, p.31): “O riso possui
uma ligação indissolúvel com a liberdade. O riso é um jeito
diferente de olhar o mundo [...]. Em nossas rodas de conversas foi
possível perceber que o mundo do trabalho abre suas portas muito
cedo para os adolescentes da periferia. E neste contexto de crise
econômica e sanitária, os adolescentes exercem papéis importantes
na dinâmica familiar: cuidando dos irmãos menores que não estão
indo para creche, arrumando, cozinhando etc. Mas há o riso!! O riso
que desestabiliza, o riso que alivia, o riso que humaniza, o riso que
resiste a dureza da vida, o riso que se ri com o outro e evidencia
uma “relação de equipolência entre as duas consciências”.

Mas o desafio é viver...


Os atos irresponsáveis deste desgoverno e os lutos vividos nesta
pandemia afetará escatologicamente as próximas gerações. Este
contexto nos desafia a tomarmos nossa posição, “o ato baseado no
reconhecimento desta obrigatória singularidade”, não temos álibi,
“ser realmente na vida significa agir, é ser não indiferente ao todo
na sua singularidade”(BAKHTIN, 2010,p.101). Estamos todos
sendo desafiados a sobreviver durante este período pandêmico, em
outras palavras, a ideia era tentarmos sair vivos disso tudo, vivos
nos princípios que nos é caro, vivos na esperança de dias melhores,
vivos na articulação de movimentos de resistência... “nas margens
do redemoinho, só de mãos dadas é possível sobreviver sem perder
a alegria.”[7]

Referências
MIOTELLO, Valdemir. Falando do riso... rindo da fala. In:
SERODIO, Liana et al. Narrativas, corpos e risos anunciando uma

1410
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ciência outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018, p. 31-36
ISBN 978-85-7993-585-5
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São
Carlos. SP: Pedro & João editores, 2010.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Marxismo e filosofia da
linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

Notas:
[1] ”Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa”.
Lisboa: Ática, 1966. p. 93.
[2] Miguel
Nicolelishttps://www.instagram.com/tv/CTDaZXygzDi/?utm_me
dium=share_sheet
[3] https://www.migalhas.com.br/quentes/338766/referencia-
mundial--conheca-a-historia-do-pni--o-programa-de-imunizacao-
brasileiro
[4] https://www.brasildefato.com.br/2021/05/06/os-ricos-ficam-
mais-ricos-e-os-pobres-cada-vez-mais-pobres-na-pandemia
[5] Conversas no grupo de whatsApp do Grubakh/GEPEC no mês
de setembro de 2021
[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Pok%C3%A9mon
[7] Metáfora que eu pego emprestada do Guilherme Prado,
coordenador do grupo NOZSOUTRES/GEPEC no dia 2/9/2021

1411
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Paulo, o homem invertido. Quem comunica a vida?

Inez Helena Muniz Garcia


UFF/RJ
inezhmg@gmail.com

JOSE MARIA FERREIRA DE OLIVEIRA


UNILASALLE
barrocobp@gmail.com

[...] em todas as coisas ouço as vozes e a sua relação dialógica.


Bakhtin

A pandemia da Covid-19, que nos assola desde os inícios do ano de


2020, se alastrou ligeiramente mundo afora, e em princípios do mês
de julho deste ano, segundo as agências de notícias, contabiliza 3,5
milhões de mortes no mundo. Entretanto, há um consenso de que
já morreram muito mais pessoas do que o anunciado oficialmente,
podendo esse número chegar a duas ou quatro vezes mais, ou seja,
entre sete e 13 milhões de mortes. Além dos milhões de mortes,
evitáveis, poderíamos afirmar, mais de 100 milhões de
trabalhadoras e de trabalhadores foram reduzidos à pobreza,
segundo relatório da Unesco. Essa pandemia tem produzido
efeitos catastróficos, não apenas biológicos, mas com graves
impactos sociais, econômicos, políticos, culturais, que
comprometem a vida em todo o planeta.

1412
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A vida, quem comunica a vida, é o ponto central de nossa discussão


neste texto, tomando como ponto de partida a Carta de Paulo aos
Gálatas[1].
Enquanto pessoas que se assumem e se desejam cristãs,
compreendemos o anúncio de Jesus, o Cristo como
“Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto, que a
liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, pela caridade,
colocai-vos a serviço uns dos outros. Pois toda a Lei está contida
numa só palavra: Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,
13-14),
Buscaremos refletir, ao longo deste texto, onde reside “o grotesco
dos nossos tempos: vozes, ambientes e horizontes”, ao buscarmos
diálogos com a Bíblia, considerado o livro de inspiração para a
pessoa cristã.
Por que a Bíblia? “Quando entrar setembro/ E a boa nova andar nos
campos [...]”[2]. A boa nova é a Palavra anunciada por Jesus
Cristo. Setembro de 2021 – 50 anos da realização do Mês da Bíblia
na Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil, que nessa edição
tem como tema a Carta de São Paulo aos Gálatas e o lema “todos
vós sois um só em Cristo Jesus” (Gálatas 3, 28d). O autor dessa
epístola nos questiona: quem comunica a vida? (Gl 3, 19).
Mas que autor é esse para quem a lei de Cristo não é um legalismo,
que semeia a destruição, mas sim é a lei do amor, que traz a
transformação definitiva do mundo pela justiça e pela paz, pela
prática contínua do bem a todos, sororidade e fraternidade,
indistintamente?
Entre os anos 54 e 57, na região da antiga Macedônia (cf. Barbaglio,
2017), o homem que por determinado tempo fora conhecido como
Saulo, a quem, neste texto, denominamos Paulo, o homem
invertido, escreve uma carta às comunidades da região de Galácia.
Essas comunidades passavam por uma profunda crise de
identidade e de rumo da própria existência.

1413
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sem constrangimentos, ao identificar o problema vivido na


comunidade, o autor da carta pergunta: “como é possível tão
apressadamente abandonar a boa nova de Cristo e passar a outro
evangelho”? (Gl 1, 6)
Inicialmente, o apóstolo faz uma memória do caminho que
percorreu até o seu encontro definitivo com Jesus Cristo, o
crucificado e ressuscitado. Em seu itinerário, houve o profundo
encontro que provocou a inversão de direção de sua vida. É nesse
momento que Saulo, perseguidor das comunidades cristãs, se
transforma em Paulo, anunciador da boa nova de Jesus (Gl 1,15-24).
Que boa notícia é essa?
Ao visitar a Carta aos Gálatas, ocorreu-nos priorizar a
problematização levantada por Paulo em Gl 3,21: “Então a Lei é
contra as promessas de Deus? De modo algum! Se tivesse sido dada
uma lei capaz de comunicar a vida, então sim, realmente a justiça
viria da Lei”. A questão colocada por Paulo, em objeção aos
judaizantes, para quem a observância da lei era o mais importante,
fundamenta-se na seguinte interrogação: Se a lei não é capaz de
comunicar a vida quem então é capaz de realizá-la?
O tema central da Carta aos Gálatas é o amor gratuito de Deus. Para
Paulo, a fé em Jesus Cristo significa aderir ao Evangelho de Jesus
Cristo crucificado (cf. Gl 2,19-20). A seguidora e o seguidor que se
identificam com o evangelho do crucificado são capazes de mudar
inteiramente o itinerário de sua vida, inverterem o seu
comportamento ético e gestarem novas relações com o mundo (cf.
Gl 5,25-26), pois é Jesus Cristo que liberta homem e mulher da
condição de escravizado (cf. Gl 5,1). Portanto, é Jesus Cristo que nos
faz iguais; na comunidade seguidora não existe judeu nem grego,
nem escravo e nem livre, não há homem e nem mulher. A
comunidade é testemunha e anunciadora das novas relações
estabelecidas pela adesão ao seguimento de Jesus Cristo (cf. Gl 3,28-
29; 4,7).

1414
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Galácia, anos 54-57, Brasil anos 2020 e 2021. Nessa sindemia[3], um


Brasil profundo se revelou e se revela para nós a cada dia:
intolerâncias, preconceitos, racismos, fascismos, neofascismos,
moralismos, homofobia, fundamentalismos, ódios, perseguições
aos pobres e despossuídos, fanatismos cada vez mais acirrados.
Testemunhamos que líderes religiosos, autoridades eclesiásticas e
fiéis das várias denominações cristãs defendem, enaltecem e
aplaudem um (des)governo que dissemina, que incentiva tais
atitudes e princípios, que tem como marca os dedos apontados
como arma, que banaliza a vida, que debocha das vítimas da
Covid-19.
“Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe
de mim”, afirma Jesus Cristo, ao referir-se ao profeta Isaías
(Mc[4] 7, 6). Qual a religião verdadeira? É estar aberto ao outro,
estar aberto às necessidades do outro.
Quem é o outro? Para refletirmos sobre o outro, convidamos para
a prosa Mikhail Bakthin e alguns autores que estudam a sua obra,
o seu legado.
De acordo com Sobral (2014, p. 01):
a filosofia ética de Bakhtin constitui uma ontologia dialógica que,
não vendo sujeitos em geral, considera a situacionalidade dos
sujeitos particulares, no âmbito da sociedade e da história, sujeitos
interagentes definidos em seus atos por sua assinatura autoral, na
vida, na arte, no discurso.
Somente mulheres e homens, restabelecidos de sua consciência de
libertas e libertos, são capazes de nunca se esquecerem dos pobres
(Gl 2,10), de serem solidários e fraternos com o outro, seu
semelhante (Gl 6,2), a fim de ajudá-lo a tomar consciência do seu
próprio fardo (Gl 6,5) imposto pela perseguição.
Aliamo-nos a Bakhtin (2010, p. 128):
Somente um amor desinteressado segundo o princípio “não o amo
porque é bonito, mas é bonito porque o amo”, somente uma atenção

1415
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

amorosamente desinteressada, pode desenvolver uma força muito


intensa para abraçar e manter a diversidade concreta do existir, sem
empobrecê-lo, sem esquematizá-lo’’
Uma atitude de escuta alteritária é “a escuta que vai até o horizonte
do outro e tenta vê-lo do ponto de vista de seu ambiente”, afirmam
Sobral e Giacomelli (2020, p. 09), ao que Ponzio (2010, p. 14),
complementa: “[...] palavra que se dá na escuta, no “dar um tempo
ao outro”. Da centralização do eu à centralização do outro: é a
revolução bakhtiniana.
Quem comunica vida? Na (in)conclusão deste texto que busca essa
reflexão/discussão, fizemos uma digressão, sim, necessária,
ao dialogarmos com a Carta de Paulo aos Gálatas e a dimensão
alteritária na perspectiva bakhtiniana para pensar “o grotesco dos
nossos tempos: vozes, ambientes e horizontes”.
Pelas trilhas que seguimos, embora entendamos que não se possa
ler o passado com os olhos de hoje, o grotesco se mostra nas
contradições, nos conflitos que se estabelecem entre os seres
humanos que se denominam cristãos, para quem a lei
maior deveria ser o amor incondicional anunciado, experienciado
e compartilhado por Jesus Cristo, mas que fazem do ódio, da
calúnia, dos preconceitos e racismos, que adotam a necrofilia como
política seus princípios de agir no mundo.
No contexto da sindemia/pandemia-pandemônio da Covid-19,
cabe a nós a justa ira, que nos faz lutar e crer que “somente o amor
pode ser esteticamente produtivo, somente em correlação com
quem se ama é possível a plenitude da diversidade” (Bakhtin, 2010,
p. 129).
“Vede com que letras grandes vos escrevo, de próprio punho” (Gl
6, 11).

1416
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências:
BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato responsável.
Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto
Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BARBAGLIO, Giuseppe. As cartas de Paulo II. São Paulo: Loyola,
2017.
BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2017.
PONZIO, Augusto. Procurando uma palavra outra. Tradução aos
cuidados de Valdemir Miotello et al. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010.
SOBRAL, Adail. Ontologia dialógica e escuta alteritária: para uma
proposta pedagógica bakhtiniana. Resumo apresentado ao XXIX
ENANPOLL (9 a 11 de junho de 2014). Disponível em:
http://www.linguagemememoria.com.br/lermais_materias.php?c
d_materias=377 Acesso em: 03 setembro 2021.
SOBRAL, Adail/; GIACOMELLI, Karina. Educação dialógica
alteritária: uma reflexão. Línguas & Letras, Vol. 11, n. 49. Dossiê:
Estudos dialógicos e incursões na prática docente, p. 07-27. Unioeste
Cascavel. Disponível em:
http://e-
revista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/24675/pd
f Acesso em: 04 setembros 2021.

Notas:

[1] Gálatas, doravante Gl. Todas as citações bíblicas ao longo do


texto foram extraídas da Bíblia de Jerusalém: São Paulo: Paulus,
2017.
[2] Trecho da canção “Sol de primavera”, de Flávio Venturini.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[3] Segundo o Centro Estratégico de Estudos da Fiocruz – CEE, “o


termo sindemia (um neologismo que combina sinergia e pandemia)
não tão novo assim.
Foi cunhado pelo antropólogo médico americano Merrill Singer na
década de 1990 para explicar uma situação em que “duas ou mais
doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que
a mera soma dessas duas doenças”.
“O impacto dessa interação também é facilitado pelas condições
sociais e ambientais que, de alguma forma, aproximam essas duas
doenças ou tornam a população mais vulnerável ao seu
impacto”. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1264.
Acesso em 04 setembro 2021.
[4] Evangelho de Marcos, capítulo 7, versículo 6.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Pega de surpresa

Maryelle Florêncio Mariano


Unicamp
marianomaryelle@gmail.com

Pega de surpresa
Maryelle Florêncio Mariano
A volta não foi aos poucos, foi quase 100%, não foi priorizando o
acolhimento, mas “fingir”, fingir que estava tudo normal, quando
não estava/está. A ordem para voltar o máximo como antes.
O oitavo ano fez a prova bimestral de geografia. Durante a correção
percebi duas provas com respostas exatamente iguais e não
comentei nada. Por coincidência essa era a última aula do dia. Ao
fim, liberei os alunos mais cedo e pedi para falar em particular com
os alunos que colaram.
Poderia deixar para lá, mas não, insisti.
Respirei fundo e falei:
—“Vocês sabem o que tenho a dizer né”
Um rapidamente se antecipa e fala que pode se explicar:
— “Me desculpe professora, mas eu colei todas as respostas dele,
não estava com cabeça para responder.”
Com a voz trêmula ele me disse que a mãe estava na UTI e como
ela quem o ajudava, ele ficou perdido sem saber o que fazer.

1419
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Na hora eu travei. Senti até um frio na barriga. Estava totalmente


desorientada e toda fala que tinha feito, desmoronou.
Apenas disse que compreendo e dispensei.
Essa mãe vive na escola, como não me contaram?
Perguntei à coordenação, ninguém sabia e não estavam
acreditando, mas acreditando, mas não acreditando no que eu
estava falando.
A tarde a coordenadora me ligou e disse consternada que era real.
Até quando?
Chorei na volta para a minha casa.

Na partilha
Comecei a participar esse ano do Grupo de Estudos Bakhtinianos
(Grubakh), que faz parte do Grupo de Estudos e Pesquisas em
educação Continuada (GEPEC) da Faculdade de Educação da
Unicamp, tenho escutado muitas narrativas semelhantes e
diferentes da que escrevi, tenho me visto em muitas situações e me
questionando sobre as mudanças que são necessárias em minhas
práticas pedagógicas, principalmente para esse momento
pandêmico.
Fiz a partilha dessa narrativa com o grupo, ao fim pude ver rostos
lamentosos do ocorrido, pude retornar aquele momento com os
alunos e esse momento da partilha foi transgrediente ao momento
ocorrido, pude olhar para mim com as contribuições dos
participantes. Em Bakhtin (2011):
avaliamos a nós mesmos e do ponto de vista dos outros, através
dos outros procuramos compreender e levar e levar em conta
momentos transgredientes à nossa própria consciência. (Bakhtin,
2011, p. 13)

1420
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Os mesmos rostos lamentosos que vi, também vivi, nessa narrativa


pude expressar a minha indignação do momento pandêmico que
estamos vivendo, e perguntar: quando os corpos vivos passaram a
ser objetificados? Escrever e ler as narrativas para o grupo passa a
ser um modo grotesco de enfrentar o vivido com outro olhar.
O tempo todo sou bombardeada com as notificações que chegam
ao meu e-mail, não há um momento em que eu não saiba o que está
acontecendo. Tudo é metricamente programado. Sei, entre os
estudantes de quem faz a atividade, de quem não faz a atividade e
a que horas entregou.
O remoto e agora o híbrido me objetificaram, me assemelho a uma
máquina em que não posso parar, tenho que estar sempre ligada,
no google sala de aula, nos e-mails e como se não bastasse, nos
grupos de whatsapps que, convenientemente, funcionam também
vinte quatro horas por dia.
Nessas conexões online, quase não há falhas. Conseguimos mapear
toda a rotina do aluno estabelecido pelo google sala de aula. Como
um sistema tão apurado de movimentação de informação, tão ágil,
não me possibilita saber que a mãe de um aluno se encontra numa
UTI devido a complicações do COVID-19?
Como é contraditório, saber de toda a informação quantitativa e
não saber de quando um aluno está com sua mãe em um leito de
hospital. É assim que essa falta de informação tenta me fazer ficar
indiferente a vida do outro, a ponto de querer chamar a atenção do
aluno pela cola na prova e não saber o que estava acontecendo?
Ao mesmo tempo penso que a atitude do estudante foi uma forma
de resistir ao sistema educacional vigente, pois mesmo não
conseguindo realizar a prova de maneira adequada, ele sabia que
precisaria dessa nota para compor a média, então mesmo em um
momento de muita dor, teve que resistir e fazê-la, nesse caso a cola
foi a maneira que conseguiu.

1421
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Vejo com um olhar de profunda indignação todo esse


acontecimento, pois me mostra cada vez mais a massificação desses
corpos pela escola. Foi uma falha da tecnologia? Foi uma falha
conveniente?
Nesse tempo de pandemia, muitos alunos voltaram para a escola,
mas ao passo que voltam ficam um mês sem voltar ao presencial,
assistindo aulas de casa. Será essa uma falha deliberada em relação
a não notificar a escola? Será que a escola não notifica
deliberadamente aos corpos que vivem nela?
É impossível voltar às aulas como se nada tivesse acontecido, como
se não tivéssemos em um país que há um número estratosférico de
vítimas desse vírus. Tenho que, muitas vezes estafantemente, me
equilibrar no híbrido, entre os alunos que estão em casa e os alunos
que estão em sala de aula. Em dois espaços tempos iguais, mas
também diferentes.
Não é concebível uma situação como essa, em que estamos
sobrecarregados e não temos as informações que são
imprescindíveis para continuar.
Narro esse acontecimento como forma de pelejar, registrar e resistir
a essa massificação que parece querer implantar uma possível
tentativa de objetificação dos alunos.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e
tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo/SP: Editora WMF
Martins Fontes, 2011.

1422
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Política Linguística para a comunidade surda: o interlocutor


surdo abstrato na Lei 10.436/02 (Lei de Libras)

Simone Lorena da Silva Pereira


UFRN
simone_lorena@hotmail.com

Este texto tem como objetivo problematizar os estatutos jurídico-


linguísticos presentes no ordenamento normativo brasileiro e suas
contribuições para a construção da imagem discursiva abstrata do
interlocutor surdo. Nossa escora esta atravessada pela perspectiva
indisciplinar da Linguística Aplicada, pelas discussões da Teoria
do Direito Linguístico, dos Estudos surdos e pelo entendimento de
linguagem de Bakhtin e do círculo. A Lei 10.436/02, intitulada Lei
de Libras, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais como meio
de expressão e comunicação da comunidade surda brasileira,
constitui-se como nosso objeto de análise.
A norma, ora citada, surgiu a partir de uma emenda no Projeto de
Lei do Senado (PLS) nº131/1996, posteriormente alçando o status de
Projeto de Lei (PL) nº4.857/1998, que teve como finalidade o
reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais como meio de
comunicação e expressão empregado no cotidiano das
comunidades surdas brasileiras. Vale ressaltar que, nessa emenda,
ocorreu a substituição da expressão “Linguagem Brasileira de
Sinais – Libras” por “Língua Brasileira de Sinais – Libras”. Não
obstante, especialistas da área da linguística e da educação especial,
que constituíam o corpo técnico de especialistas, recomendaram a
alteração de “língua” por “linguagem”. Entretanto, a Comissão de

1423
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Educação posicionou-se favorável a nomenclatura Língua


Brasileira de Sinais, opção adotada no projeto inicial, aprovada em
todas as instâncias.
Diante desse cenário, foi publicada a Lei de Libras que reconhece a
Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) enquanto meio de
comunicação e expressão das comunidades surdas do Brasil. Além
de garantir a inclusão da disciplina de Libras de forma obrigatória
nos cursos de Licenciatura, Educação Especial e Fonoaudiologia e,
de modo, optativo nos demais. No entanto, interessa-nos frisar a
forma como a legislação refere-se a Libras posto que, no art. 1º, “é
reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a
Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de
expressão a ela associados”. Observamos, na definição do
reconhecimento da Libras, o emprego de termos “meio” e
“recurso” de expressão e comunicação.
Ora, a escolha das palavras que formam o texto revela determinado
posicionamento axiológico implicando no agir do ser cognoscente
e ético. Logo, texto nenhum é inocente visto que, “são políticos
porque todas as formações discursivas são políticas. Analisar texto
ou discurso significa analisar formações discursivas
essencialmente políticas e ideológicas por natureza”
(KURAMARADIVELU, 2006, p. 40). Dito isso, adentramos nos
estatutos jurídico-linguísticos presentes no ordenamento
normativo brasileiro, a saber: língua oficial, língua nacional e meio
de comunicação e expressão.
O primeiro estatuto diz respeito a condição de “língua oficial” que,
geralmente, tem o seu reconhecimento por meio das normas
constitucionais dos Estados Nacionais sendo considerada uma
construção político-jurídica. Segundo Abreu (2018), a língua oficial
compreende prototipicamente duas funções, a saber: (1)
instrumentalização linguística dos Estados na esfera das relações
tanto internas (2) quanto externas. Desse modo, cabem aos Estados
Nacionais a determinação de com qual(is) idioma(s) irá

1424
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

empreender os processos da burocracia estatal (interna) e a


comunicação com outras nações em âmbito internacional
(externa).
O segundo estatuto jurídico-linguístico trata da condição de
“língua nacional” que aparece, de forma recorrente, em
alguns documentos normativos infraconstitucionais. Ao contrário
do que se pode pensar o termo “língua nacional” difere, em
hermenêutica jurídica, do sentido de “língua oficial”. Entende-se a
língua nacional como “toda aquela devidamente tutelada pelo
Estado (ela mesma ou algum direito linguístico dos seus falantes),
em um ou múltiplos aspectos (administrativo, cultural, processual
etc)” (ABREU, 2018, p. 61). Abreu (2018) afirma, com base nas
experiências de países como Canadá, África do Sul e Índia, que nem
toda língua nacional alcança a condição de idioma oficial, embora,
o inverso seja possível[1].
Não obstante, a ambiguidade no manejo dos termos “língua
nacional” e “língua oficial” no ordenamento jurídico pode
ocasionar prejuízos no processo de nacionalização das diversas
línguas existentes nas nações. Principalmente, quando se dá a
entender que a língua oficial é a única língua nacional. Essa espécie
de autopreservação de uma língua oficial e nacional unificadora
representa “uma diretriz volitivo-emocional fria, totalmente
desprovida de quaisquer elementos de amor-carinho e estética”
(BAKHTIN, 2011, p. 45).
Diante desse contexto, carregado de incoerências taxonômicas, no
que tange as línguas brasileiras, surge o último estatuto jurídico-
linguístico: meio legal de comunicação e expressão. Tal categoria
foi idealizada como forma de fundamentar a criação da Lei
10.436/2002, anteriormente citada. Para problematizarmos esse
estatuto jurídico-linguístico, retomamos, na íntegra, o texto
normativo da Lei de Libras:

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Art. 1º É reconhecida como meio legal de comunicação e


expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos
de expressão a ela associados.
Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais -
Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema
lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical
própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias
e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.
Art. 2º Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e
empresas concessionárias de serviços públicos, formas
institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de
Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização
corrente das comunidades surdas do Brasil (BRASIL, 2002, p.
1, grifo nosso).
Notamos que esse diploma normativo não faz referência a Libras
como idioma oficial da República ou língua nacional. Apesar de ter
em sua base normativa-constitucional, desde a fase de elaboração
do Projeto de Lei 131/96 no Senado e na Câmara dos Deputados, o
artigo 126[2] da Constituição Federal, que trata da tutela do Estado
sobre o patrimônio cultural brasileiro, não encontramos vinculação
direta com esse dispositivo na materialidade linguístico-discursiva
da Lei de Libras. Assim como, não há referência ao artigo 13 da
Carta Magna, ora citada.
DA NACIONALIDADE
Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República
Federativa do Brasil.
§ 1º São símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o
hino, as armas e o selo nacionais.
§ 2º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão ter
símbolos próprios. (BRASIL, 1988, grifo nosso).
Podemos apreender, então, que os membros do Congresso
Brasileiro circunscreveram a Libras na condição de meio legal de
comunicação e expressão, e não enquanto língua nacional, como
alternativa para resguardar a delimitação linguística de um país
atravessado por uma ideologia nacionalista de matriz monolíngue
que, por conseguinte, “não leva em consideração os falantes

1426
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

bilíngues ou multilígues (ou mesmo monolíngues em outra língua


que não o português) no Brasil e seus interesses e necessidades
educacionais, entre outros” (MOITA LOPES, 2013, p. 27).
Essa visão somente fortalece a ideia, elaborada no século XVIII, de
que a constituição dos Estados nacionais deveria permanecer
assentada na estabilidade e homogeneidade de uma nação e um
povo e, consequentemente, uma língua. Isto posto, retomando a
discussão da categoria “meio legal de expressão e comunicação”,
Abreu (2018) aponta que o próprio governo federal se refere à
Libras como segunda língua oficial do Brasil. Igualmente, no Enem
de 2017 um dos textos motivadores, cuja fonte foi o site oficial do
governo, mencionou a Libras como idioma oficial. Todavia, não é
classificada e reconhecida juridicamente, de forma explícita, como
tal.
Atestamos a importância da Lei de Libras, diante dos vários anos
de lutas da comunidade surda brasileira, entretanto, apontamos
que a falta de conhecimento sobre o outro surdo ocasiona o
enformamento da Língua Brasileira de Sinais na condição jurídico-
linguística “meio de comunicação e expressão”. E o sujeito surdo,
enquanto ser de linguagem, fica mascarado por um outro
morto posto que é compreendido abstratamente, fora de sua
atividade singular no existir-evento. Assim,

[...] compreender um objeto significa compreender meu dever em


relação a ele (a orientação que preciso assumir em relação a ele),
compreendê-lo em relação a mim na singularidade do existir-
evento: o que pressupõe a minha participação responsável, e não a
minha abstração (BAKHTIN 2010, p. 66).
Por fim, em primeiro lugar percebemos que, os equívocos presentes
na localização do estatuto jurídico da Libras repercutem no
adensamento de obstáculos para que seu processo de
nacionalização ocorra, de fato, no ordenamento jurídico brasileiro.
E, em segundo lugar que, a resistência do reconhecimento da

1427
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

condição de língua nacional da Libras pode também estar


relacionada a diferença na modalidade linguística que é expressa
por meio do corpo, das expressões faciais e manuais que
constituem os parâmetros linguístico-discursivos que formam os
sinais. A performance corporal subverte as feições, degrada a
postura “correta” do corpo, a profusão e incorporação visível das
emoções, dos sentidos diante da língua sinalizada tornando esse
sujeito o estereótipo do corpo grotesco. Assim como o gago, na cena
da commedia dell’arte italiana, contorcia-se na tentativa de falar –
esforço comparado com os espasmos do parto - e Alerquim dá uma
cabeçada em seu ventre para fazer nascer a palavra (Bakhtin, 1993).
Será que o corpo do surdo precisa de um “chute no ventre” para
que a palavra venha a “boca” e assim, alcance à condição de língua?

REFERÊNCIAS
ABREU, Ricardo Nascimento. Estatutos jurídicos e processos de
nacionalização de línguas no Brasil: considerações à luz de uma
emergente teoria dos direitos linguísticos. Revista da ABRALIN, v.
17, n. 2, 30 jun. 2018.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi
Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1993.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 6 ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2010.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Editora do Senado,1988. BRASIL, Emenda nº 1, de 3 de março de
2002, do Projeto de Lei nº131/1996. Dispõe sobre a Língua Brasileira
de Sinais e dá outras providências. Disponível em:
<http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-
1/projetos-de-lei-m>. Acesso em: 13 abr 2021.

1428
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BRASIL, Lei 10.426 de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua


Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm>.
Acesso em: 13 abr 2021.
KUMARAVADIVELU, B. A linguística aplicada na era da
globalização. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.). Por uma
linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial,
2006.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Ideologia Linguística: como construir
discursivamente o português no século XXI. In: MOITA LOPES,
Luiz Paulo da (Org.). O português no século XXI: cenário
geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.

Notas:
[1] Tomadas por uma perspectiva jurídica, toda língua oficial é
também língua nacional, mas o contrário não é necessariamente
verdadeiro (ABREU, 2019, p. 61).
[2] Título VIII, Capítulo III, Seção II – Da cultura: “I - as formas de
expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; § 3º A lei
estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens
e valores culturais” (BRASIL, 1988).

POR UM ENSINO DA LINGUAGEM OUTRO

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Érika Christina Kohle


PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO UNESP MARÍLIA,
PROFESSORA DA EDUCAÇÃO BÁSICA DA SE -SP, DIRETORA
DE ESCOLA
erika.kohle@gmail.com

Ao falarmos de grotesco - como algo sem separação nítida de


fronteiras, não podemos esquecer da questão da educação
brasileira, que apesar de ter proporcionado maior acesso de
crianças à Educação Básica na segunda metade do século XX não
teve esse acesso acompanhado pela ênfase na qualidade dos
processos de ensino necessários para a formação das crianças e
jovens brasileiros, uma vez que os tentáculos do senso comum
sufocam as tímidas tentativas de estudo dos conhecimentos
científicos. Ainda hoje, segunda década do século XXI, a qualidade
da educação brasileira é um objetivo a ser atingido, não pelas
políticas públicas, porque o seu interesse é outro, mas por
iniciativas de trabalhos coletivos e solidários da área de Educação.
Nestas duas primeiras décadas do século XXI, foram elaborados,
na área de alfabetização, o Pró-letramento (2008), o Plano Nacional
de Alfabetização na Idade Certa (2014) e o Programa Mais
Alfabetização (2018). Tais políticas governamentais, de esquerda e
de direita, não alteraram nem os dados qualitativos, nem os
quantitativos na alfabetização, conforme demonstram dados da
pesquisa Educação 2017, divulgada no mesmo ano, pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), baseada nos dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad –
Contínua), que afirma haver 11,5 milhões de analfabetos com mais
de 15 anos no Brasil. Em 2019, o governo de extrema-direita pôs em
marcha a Política Nacional de Alfabetização com o decreto nº 9.765,
capítulo V, artigo 8º, parágrafo VI, que prega a “produção e
disseminação de sínteses de evidências científicas e de boas

1430
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

práticas de alfabetização, de literacia e de numeracia” (BRASIL,


2019).
Especificamente em relação ao ensino da escrita, o Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais Anísio Teixeira
(INEP), para fortalecer a política conservadora, divulgou dados
gerados como resultado da Avaliação Nacional da Alfabetização
(ANA) – Edição 2016, indicadores em que alunos do terceiro ano
de Ensino Fundamental foram classificados como insuficientes. O
percentual de insuficiência na alfabetização no Brasil, no ano de
2016, foi de 51,22% para a região centro-oeste, 44,92% para a região
sul, 43,69% para a região sudeste, 69,15% para a região nordeste e
70,21% para a região norte. É preciso, contudo, submeter a
elaboração da ANA, seus objetivos e seus conteúdos, a análises que
tenham outras concepções de alfabetização.
Levando em conta esse cenário ainda permeado pelos tentáculos
do senso comum na educação brasileira, e os fracasso das tentativas
de carnavalização de desvincular este conhecimento das práticas
escolares, pretende-se refletir acerca do processo de ensino-
aprendizagem da linguagem escrita, defendendo o processo de
apropriação de atos de escrita pelas crianças, na perspectiva de
Volóchinov, de Bakhtin e de Medvédev, por meio de textos vivos
pelos quais se estabelecem as relações entre os usuários da
linguagem escrita. Os enunciados escritos medeiam a interação
entre os sujeitos e abrem as múltiplas possibilidades de sentidos
das palavras, uma vez que “[...] o emprego da língua efetua-se em
forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos,
proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade
humana” (BAKHTIN, 2016, p. 11).
Por esse motivo, as propostas de escrita baseadas no oferecimento
diversificado de gêneros dos enunciados para as crianças em fase
de alfabetização se embasam no entendimento da linguagem
escrita como objeto social em situações de interação com o outro –
um interlocutor real – inscrita em suportes condizentes com os

1431
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

interesses e necessidades das crianças. Para que essa proposta se


realize, uma alternativa possível seria levar a cabo projetos que
viabilizem a concretização da escrita real e necessária. Por meio da
escolha do tema, determinado pelas especificidades de cada
situação social de troca verbal e pela intenção de troca, a criança vai
se apropriando pouco a pouco das formas de escrever que cada
tema solicita. Por meio desse tipo de abordagem, é possível,
também, compreender a função que a escrita real desempenha no
desenvolvimento das crianças quanto à aprendizagem dos atos de
escrita durante a própria atividade de criação, diferentemente dos
processos de alfabetização que se realizam por meio de exercícios
que configuram a escrita destituída de intenções, como transcrição
da fala, porque
[...] os efeitos desse ensino são tragicamente evidentes, não apenas
nos índices de evasão e de repetência, mas também nos resultados
de uma alfabetização sem sentido que produz uma atividade sem
consciência: desvinculada da práxis e desprovida de sentido, a
escrita se transforma num instrumento de seleção, dominação e
alienação. (SMOLKA, 1989, p. 38).
Por esse enfoque criticado pela autora da citação, a escrita teria um
fim em si mesma e conduziria ao conhecimento estrito dos aspectos
técnicos do sistema. De modo diverso, quando o professor ensina o
aluno a escrever por atos reais de escrita, enfatizando o modo como
a linguagem se materializa no dia a dia das pessoas, por meio do
enunciado e de suas condições de produção, a criança desenvolve
a compreensão de como os textos são criados tanto no plano de seus
conteúdos quanto no plano de suas formas.
Entretanto, o ensino da escrita que se fecha em si mesmo ainda
acontece na escola e se apoia na concepção mecanicista e associativa
do processo de aprendizagem. Na prática, ainda se percebe a
aprendizagem fragmentada da escrita, que se dá a partir das
unidades da língua (fonemas, sílabas ou letras) de forma
descontextualizada, e o processo de ensino da linguagem escrita
configura-se como uma transmissão de técnicas que tem como foco

1432
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

a caligrafia e o estabelecimento de relações entre fonemas e


grafemas, de forma imposta, por não ter origem nas necessidades
de leitura e escrita das crianças.
Ilyenkov (2007), filósofo marxista soviético, estudou as teorias do
conhecimento e deu ênfase à unidade entre o subjetivo e o objetivo,
quando discutiu questões de psicologia e educação. Estudou ainda
aspectos do desenvolvimento do pensamento e a apropriação do
conhecimento no ensino escolar, especialmente na relação entre a
escola e teoria histórico-cultural. Ele critica a escola apoiada na
escolástica, promotora de um ensino que enxerta e entulha a cabeça
das crianças de conteúdos inúteis. Ressalta que esse tipo de ensino
pode trazer resultados perigosos, como a formação de “[...] uma
pessoa obtusa ou de mente estreita”. (ILYENKOV, 2007, p. 16).
Na contramão da posição teórica da escolástica por ele criticada,
faz-se necessário assumir outro pressuposto, o de que as relações
da criança com a cultura dá-lhe condições para seu
desenvolvimento, porque o homem é um ser de natureza social e
tudo que há de humano nele provém da sua vida em sociedade.
Cada geração começa a sua vida em um mundo criado pelas
gerações precedentes e se apropria das riquezas deste mundo ao
participar das diferentes formas de atividade social para
transformar suas condutas em condutas especificamente
humanas.
A luta por um ensino que promova o desenvolvimento intelectual,
moral e ético; que propicie condições objetivas de participação
social às crianças, deve ser fortalecida. Isso só é possível quando o
professor organiza sua prática considerando as necessidades das
crianças para incluí-las em atividades com as quais e pelas quais
elas encontrem sentido e motivo no que fazem na escola e em suas
vidas.
A escola se conscientiza, então, de que, quando o ensino visa à
simples transmissão de conteúdo, o conhecimento que daí decorre

1433
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

é meramente formal, descritivo, calcado em definições, explicações


e exercícios para a sua fixação, sem impacto na formação humana.
Na organização do processo de ensino-aprendizagem da
linguagem escrita, ao provocar situações de criação de enunciados
escritos para um interlocutor, em que o ato de escrever se torne
uma necessidade para a criança, o professor fornece as condições
propícias para ela considerar tal ato crucial para sua vida,
encontrando motivo para agir e aprender.
Trabalhar com os diversos gêneros do enunciado leva a criança a
compreender a linguagem escrita como um processo de
interlocução entre sujeitos, e a se inserir no fluxo infinito de
encadeamento de enunciados trocados entre os participantes desse
processo essencialmente humano. Desta forma, os princípios
escolásticos criticados por Ilyenkov (2007, p. 29) desaparecem para
dar lugar ao que salva a criança – “a vida real [que teima em
permanecer viva] ao redor da escola”.

Referências
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR
6023: informação e documentação: referências: elaboração. Rio de
Janeiro, 2002.
BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34,
2016.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira. Avaliação Nacional da Alfabetização: resultado
2016. Brasília, DF: INEP, 2016. Disponível
em: http://inep.gov.br/educacao-basica/saeb/sobre-a-ana. Acesso
em: 01 set. 2020.
ILYENKOV, E. Our Schools Must Teach How to Think! In: Journal
of Russian and East European Psychology, vol. 45, n. 4. Jul–Aug 2007,
p. 9–49.

1434
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SMOLKA, A.L.B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização


como processo discursivo. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1989.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

POR UMA PEDAGOGIA DIALÓGICA NA EDUCAÇÃO


BÁSICA

Vilson Rodrigo Diesel Rucinski


Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
dieselrodrigo@gmail.com

luiz ernesto merkle


Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
luiz.zilli@gmail.com

Em tempos de disputas ideológicas e de batalhas e embates


materializados no campo do discurso, há uma pluralidade de vozes
que emergem desse cronotopo que evidenciam os contrates
ideológicos entre os discursos oficiais e não-oficiais. Esses embates
reverberam para todas as esferas discursivas e, evidentemente, não
seria diferente para a esfera da educação e das práticas
pedagógicas.
Por muito tempo houve um contraste entre os discursos oficiais
presente nos documentos que guiam a educação do país, os dizeres
das autoridades brasileiras e as práticas em sala de aula. Há cada
vez mais uma tentativa de transformar a educação e os processos
pedagógicos em meras ferramentas de manutenção das ideologias
e dos interesses políticos dos governantes e das classes
privilegiados social e economicamente, opondo-se aos próprios

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

documentos que guiam as práticas docentes em território nacional,


como a Base Nacional Comum Curricular (doravante BNCC).
De acordo com a BNCC (BRASIL, 2018), dentre as competências
gerais para a educação básica no Brasil, estão habilidades como:
Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-
se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as
relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas
ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade,
autonomia, consciência crítica e responsabilidade. (BRASIL, 2018,
p. 9)
Além dessas competências, o documento compreende como uma
das habilidades necessárias a desenvolver nos discentes da
educação básica a “valorização da diversidade de indivíduos e de
grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e
potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza” (BRASIL,
2018, p.10), além do exercício do diálogo e da empatia.
O documento também discorre sobre os direitos de aprendizagem
e desenvolvimento na educação infantil, entre eles estando a
capacidade de se expressar como sujeito dialógico, criativo e sensível
(BRASIL, 2018).
Diante desta breve análise do principal documento que norteia as
práticas docentes no país, é possível considerar que, embora não
cite autores como Freire ou Bakhtin, os ideais de uma educação
dialógica, que faça com que a diversidade de vozes encontradas em
sala de aula sejam não somente respeitadas, mas ouvidas,
promovidas e valorizadas, permeiam a concepção da BNCC.
A problemática emerge ao observarmos, tanto em mídias oficiais
quanto em mídias não-oficiais, discursos que não apenas
desconsideram essas premissas presentes no documento oficial,
como antagonizam a ideia de dialogia presente no corpo da BNCC.
Dessa forma, é importante que, enquanto pesquisadores da
linguagem e da educação, possamos compreender como se

1437
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

desenvolvem essas práticas e como podemos promover práticas


que, de fato, apliquem os ideais de dialogicidade presentes nas
bases teóricas e ideológicas dos documentos oficiais que
acompanham o contexto educacional brasileiro desde os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) até documento
norteador atual, a BNCC.
Assim, cabe refletirmos sobre o que se configura como uma prática
pedagógica que se denomina dialógica. Sobre isso, é importante
evidenciarmos que, mesmo que os agentes presentes no processo
educacionais não percebam ou admitam, todo o contexto
pedagógico é, em sua própria natureza, dialógico. De acordo com
Matusov (2009, p.1), “não importa o que os professores ou os
estudantes façam (ou não façam), seja em sala de aula ou além dela,
eles estão incluídos em relações dialógicas” [1].
Esse pensamento vai de encontro com os pensamentos do círculo
de Bakhtin sobre dialogismo. Para o círculo de Bakhtin, “o conceito
de dialogismo está relacionado aos sentidos produzidos entre os
falantes em enunciados postos em diálogo/interação” (SILVEIRA;
ROHLING; RODRIGUES, 2012, p. 21). Em suma, toda interação
discursiva há diálogo, mesmo que o discurso seja um monólogo,
por exemplo.
A questão não é se a educação é dialógica ou não é, mas se as
práticas discursivas presentes no processo educacional são pró-
dialogismo ou não. Então, o que faz um projeto educacional ser
pró-dialogismo? De acordo com Matusov (2009), uma pedagogia
pró-dialogismo consiste em considerar o professor como um
aprendiz. Dessa forma, o professor faz parte do processo de ensino-
aprendizagem como um sujeito que aprende juntamente com os
alunos. Assim, o professor não deve vir com um conhecimento fixo
e rígido ao entrar em sala de aula, mas entender que esse
conhecimento que ele traz será modificado ao ser agregado aos
conhecimentos que os estudantes trazem.

1438
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A partir das reflexões de Bakhtin[2] (2004), podemos compreender


que práticas educacionais que mantém o papel do professor como
única figura detentora do conhecimento da sala, faz com que os
alunos percam, gradativamente, ao longo dos anos de sua educação
básica, a capacidade de escrever criativamente, de expressar suas
vozes, e passam apenas a reproduzir vozes e estilos presentes em
seus livros didáticos. Segundo o autor, a partir dessas práticas não-
dialógicas, “os alunos começam a temer qualquer expressão
original, qualquer frase que não lembre os clichés apresentados em
seus livros” (BAKHTIN, 2004, p. 23)[3].
O professor deve, a partir desses pressupostos, desenvolver um
ambiente em sala de aula que promova e estimule a criatividade
dos alunos, não apenas a sua capacidade de criar a partir dos
ensinamentos apresentados pelo professor, mas sua capacidade
(re)criar sua própria realidade a partir da interação, do diálogo,
entre as diversas vozes presentes em sala de aula, incluindo, claro,
a voz do professor, mas que esta não seja a única ou a mais
importante do processo.
As práticas pedagógicas, para desenvolver uma verdadeira
pedagogia dialógica, ou pró-dialogismo, devem abraçar os dizeres
dos alunos, os discursos, as ideias e as realidades que eles trazem
em suas vivências e em suas práticas dentro e fora da escola. Ao
exigir que o aluno se expresse de determinada maneira, podando,
assim, sua voz, produz nos discentes o medo e a insegurança em
valorizar e promover sua própria voz e, por consequência, suas
próprias vivências.
Essas práticas não-dialógicas, por assim dizer, apagam e
invisibilizam a pluralidade de práticas e saberes e corroboram para
a manutenção de uma sociedade que subalterniza aqueles que não
fazem parte das classes privilegiadas economicamente e
socialmente.

1439
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Observar os estudos e vivências de Bakhtin no que diz respeito à


pedagogia dialógica nos ajuda a perceber a importância de
promover nos alunos os seus estilos pessoais, longe da replicação
de estilos presentes em livros didáticos, durante períodos de
grande movimentação política e ideológica presentes no governo.
De acordo com Cuenca:
Construindo um ambiente que abrace a diversidade a partir do
dialogismo, Bakhtin promoveu que seus alunos se posicionassem
em relação aos outros – como as opiniões de seus colegas de classe,
as regras gramaticais, o professor, e o regime de autoridade presente
nas normas escolares. (CUENCA, 2010, p. 47)[4]
Para o autor, de acordo com as práticas ilustradas por Bakhtin, um
ambiente de ensino em que o dialogismo se faça presente em suas
práticas e que cultive as vozes individuais de cada integrante do
processo de ensino-aprendizagem, promove a democracia
(CUENCA, 2010).
Assim, é possível compreender a importância de um processo
pedagógico que promove o dialogismo nas práticas discursivas em
sala de aula, e não somente em documentos oficiais, para que
possamos combater os discursos autoritários que visam
homogeneizar as vozes das populações subalternizadas e construir
uma realidade embasada em respeito à diversidade de vozes,
dizeres e saberes. E é com essas premissas que podemos construir
uma pedagogia realmente dialógica.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, MIKHAIL M. Dialogic Origin and Dialogic Pedagogy
of Grammar : Stylistics in Teaching Russian Language in Secondary
School. Journal of Russian & East European Psychology, v. 42, n.
6, p. 12–49, 1 nov. 2004.
https://doi.org/10.1080/10610405.2004.11059233.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em:


http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_1105
18_versaofinal_site.pdf.
CUENCA, Alexander. Democratic Means for Democratic Ends: The
Possibilities of Bakhtin’s Dialogic Pedagogy for Social Studies. The
Social Studies, v. 102, n. 1, p. 42–48, 30 dez. 2010.
https://doi.org/10.1080/00377996.2010.484442.
MATUSOV, Eugene. Journey Into Dialogic Pedagogy. UK ed.
edition. Hauppauge, NY: Nova Science Publishers, Inc., 2009.
SILVEIRA, Ana Paula Kuczmynda; ROHLING, Nívea;
RODRIGUES, Rosângela Hammes. A análise dialógica dos
gêneros do discurso e os estudos de letramento: glossário para
leitores iniciantes. Florianópolis: DIOESC, 2012. Disponível em:
https://scholar.google.com.br/citations?view_op=view_citation&hl
=pt-
BR&user=LhHdWOoAAAAJ&citation_for_view=LhHdWOoAAA
AJ:4DMP91E08xMC. Acesso em: 30 ago. 2021.

Notas:
[1]Tradução própria para “[...] whatever teachers and students do
(or not do) whter in their classrooms or beyond it, they are locked
in dialogic relations” (MATUSOV, 2009, p. 1)
[2] É importante ressaltar que as reflexões do autor sobre uma
educação dialógica foram concebidas em seu período enquanto
professor em uma escola secundária na Russia, em um período de
extrema repressão e totalitarismo por parte do governo. No
entanto, é inegável as semelhanças das práticas vividas pelo autor
em sala de aula com o contexto brasileiro que persiste até a
atualidade.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[3]Tradução própria para “The students begin to fear any original


expression., any turn of frase that does not resemble the clichés in
their books” (BAKHTIN, 2004, p. 23).
[4]Tradução própria para “Constructing an environment that
welcomed diversity through dialogue, Bakhtin asked students to
position themselves in relation to others—such as the opinions of
other classmates, the historical rules of grammar, the teacher, and
the regime of authority speaking through schooling norms”
(CUENCA, 2010, p. 47)

1442
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Práticas de alfabetização como possibilidade de emancipação


humana

Nayara Rocha Almonfrey


Instituto Federal do Espírito Santo/ Mestrando
nayararsso@gmail.com

Neste texto, objetiva-se relacionar a proposta de escrita, com o


objeto de estudo do oitavo rodas bakhtinianas. A intenção,
é dialogarmos com a temática do evento “O grotesco dos nossos
tempos: vozes, ambiente e horizontes”. No intuito de conversarmos
com a propostas do evento, especificamente com o eixo temático
horizontes. Este trabalho está ancorado na perspectiva bakhtiniana
de linguagem, relacionando os conceitos da perspectiva
enunciativa discursiva de alfabetização, com o conceito de
emancipação em Paulo Freire.
Assim, acreditado que a linguagem acontece na interação entre
sujeitos. Deste modo, os discursos são produzidos levando em
consideração o contexto histórico, social, cultural e ideológico de
cada comunidade na qual os indivíduos estão inseridos.
Por conseguinte, o processo de alfabetização também acontece por
meio da interação/mediação entre os sujeitos e, no caso da
educação formal, entre professores e alunos, mediados pelos textos
produzidos por meio da interlocução entre eles, considerando
também os seus contextos existenciais.

1443
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A palavra viva, a palavra completa, não conhece um objeto como


algo totalmente dado; o simples fato de que eu comecei a falar sobre
ele significa que eu assumi uma certa atitude sobre ele ñ não uma
atitude indiferente, mas uma atitude efetiva e interessada. E é por
isso que a palavra não designa meramente um objeto como uma
entidade pronta, mas também expressa, por sua entonação (uma
palavra realmente pronunciada não pode deixar de ser entonada,
porque a entonação existe pelo simples fato de ser pronunciada),
minha atitude valorativa 102 em direção do objeto, sobre o que é
desejável ou indesejável nele, e, desse modo, coloca-o em direção
do que ainda est· para ser determinado nele, torna-se um momento
constituinte do evento vivo em processo. (BAKHTIN, 1993, p. 50)
Nessa perspectiva, compreendemos que o texto é a unidade de
ensino que permeia a alfabetização, uma vez que é por meio dele
que os sujeitos interagem e, consequentemente, aprendem.
Corroborando esse pensamento, encontramos nos Parâmetros
Curriculares Nacionais, o entendimento de que:
O discurso, quando produzido, manifesta-se linguisticamente por
meio de textos. O produto da atividade discursiva oral ou escrita
que forma um todo significativo, qualquer que seja sua extensão, é
o texto, uma ‘sequência’ verbal constituída por um conjunto de
relações que se estabelecem a partir da coesão e da coerência
(BRASIL, 1998, p. 21).
Logo, a alfabetização, como estudo e apropriação da modalidade
escrita da língua, acontece pela via de textos que irão culminar nas
representações dos sujeitos acerca de sua realidade, conforme
aborda Gontijo:
Na concepção interacional (dialógica) da língua, na qual os sujeitos
são vistos como atores/construtores sociais, o texto passa a ser
considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como
sujeitos ativos que – nele se constroem e são construídos. Desta
forma há lugar, no texto, para toda gama de implícitos, dos mais
variados tipos, somente detectáveis quando se tem, como pano de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interação


(GONTIJO, SCHWARTZ, 2009, p. 73).
Desta forma, a construção do processo de alfabetização dos
estudantes, acontecem por meio das interações que emergem do
contexto em que eles vivenciam. Suas aprendizagens, emergem
deste cotidiano da luta social de classes, e todos os acontecimentos
que permeiam esta sociedade, reverberam em suas vidas. Assim,
consideramos que todos os acontecimentos históricos, políticos,
éticos e estéticos que se revelam em meio as contradições da
sociedade capitalista, fazem parte da vida dos nossos alunos.
Com isso, a alfabetização e a apropriação dos processos de leitura
e escrita, não podem desconsiderar todo o processo de confluência
de vozes que acontecem a partir dos encontros dialógicos que
permeiam a nossa existência. São nestes encontros que construímos
a nossa consciência, que nos reconhecemos enquanto sujeitos
atuantes no mundo, e a partir desta conscientização buscaremos a
transformação da nossa realidade social.
(…) mais conscientização, mais se desvela a realidade, mais se
penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos
encontramos para analisá-la. Por esta mesma razão, a
conscientização não consiste em estar frente à realidade assumindo
uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode
existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta
unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser
ou de transformar o mundo que caracteriza os homens. Por isso
mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É também
consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os
homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo”
(FREIRE, 1979, p.73).
Os textos orais e escritos construídos pelos nossos alunos não são
neutros, assim como as nossas práticas educativas enquanto
professores alfabetizadores também não são. Por isso, para Freire,
quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao
aprender. (2018, p.25), assim, o ato de ensinar e aprender efetiva-se

1445
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

em uma relação dialética e dialógica, de construção mutua de


saberes.
Diante da compreensão desta realidade que se apresenta no
cotidiano escolar, em especial no cotidiano de uma sala de aula de
turmas de alfabetização, compreendemos a potência dos textos
orais e escritos produzidos pelos estudantes e, acreditamos neste
movimento de interação dialógica, onde educadores e educandos
aprendem mutuamente.
“O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados.” Ora,
todo signo é ideológico. Os sistemas semióticos servem para
exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela. A palavra é
o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações
das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas
ideológicos constituídos, já que a “ideologia do cotidiano”, que se
exprime na vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam
as ideologias constituídas (BAKHTIN, 2006, p.9).
Desta forma, pode-se dizer, que a pedagogia Freiriana perpassa
pela compreensão de uma escola democrática, viva, plural e
colaborativa, que compreenda os seus estudantes como sujeitos de
direitos, éticos e estéticos, considerando suas vivências e saberes
como potencial de formação educacional. A partir deste
entendimento, a alfabetização deve contemplar todas as
potencialidades e saberes dos seus estudantes, em diálogo com os
seus contextos de vida.
Assim o processo de apropriação da leitura e da escrita, perpassa
pela construção social de palavras, enunciados e textos,
considerando a potencia dos estudantes e acreditando que através
de um ambiente alfabetizador, os estudantes podem se apropriar
da leitura e da escrita, construindo saberes e fomentando uma
conscientização social, ética e política.
É preciso fazer uma análise profunda e aguda da palavra como signo
social para compreender seu funcionamento como instrumento da
consciência. É devido a esse papel excepcional de instrumento da
consciência que a palavra funciona como elemento essencial que

1446
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for. A palavra


acompanha e comenta todo ato ideológico. Os processos de
compreensão de todos os fenômenos ideológicos (um quadro, uma
peça musical, um ritual ou um comportamento humano) não podem
operar sem a participação do discurso interior (BAKHTIN, 2006, p.
36).
A apropriação da língua, e a relação da leitura e da escrita com os
saberes sociais irão incentivar a reflexão. As aprendizagens
construídas neste processo de ler e escrever, produzirão sentidos
em suas vidas, uma vez que ao relacionar a sua realidade social e
material com os textos em um movimento dialético, os alunos
poderão ressignificar as suas aprendizagens, fazendo com que a
apropriação da linguagem fomente construção de sentidos e de
saberes socialmente produzidos.
Além disso, existe uma parte muito importante da comunicação
ideológica que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica
particular: trata-se da comunicação na vida cotidiana. Esse tipo de
comunicação é extraordinariamente rico e importante. Por um lado,
ela está diretamente vinculada aos processos de produção e, por
outro lado, diz respeito às esferas das diversas ideologias
especializadas e formalizadas. Por ora, notemos apenas que o
material privilegiado da comunicação na vida cotidiana é a palavra.
É justamente nesse domínio que a conversação e suas formas
discursivas se situam (BAKHTIN, 2002, p.35).
Assim, em dialogo com Paulo Freire pode-se dizer que o processo
de alfabetização escolar, quando acontece de forma ética, estética,
critica, e dialógica, possui um potencial libertador, como aponta
Freire (2011), na página 60.
A libertação é o fim da educação. A finalidade da educação é
libertar-se da realidade opressiva e da injustiça; tarefa permanente e
infindável. [...] A educação visa à libertação, à transformação
radical da realidade, para melhorá-la, para torná-la mais humana,
para permitir que os homens e as mulheres sejam reconhecidos
como sujeitos da sua história e não como objetos [...] A educação
deve permitir uma leitura crítica do mundo. O mundo que nos rodeia

1447
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

é um mundo inacabado e isso implica a denúncia da realidade


opressiva, da realidade injusta, inacabada e, consequentemente, a
crítica transformadora, portanto, o anúncio de outra realidade.
A partir das reflexões feitas nas práticas cotidianas, o processo de
alfabetização e compressão da realidade, acontecerá pela via dos
textos que os estudantes irão acessar e também produzir por meio
das aprendizagens coletivamente construídas. Desta forma, os
textos darão significados e sentidos às reflexões dos sujeitos, e esses
discursos corroboram em um processo de alteridade aos sujeitos,
proporcionando um aprendizado mutuo e dialógico. Assim, de
acordo com Freire (2008):
[...] muitos são os motivos que levam as crianças a produzir textos,
por exemplo: emitir e defender uma opinião, reivindicar um direito,
expressar emoções ou sentimentos, relatar experiências, narrar uma
aventura. Articulando-se situações cotidianas dos estudantes com as
atividades realizadas em sala de aula, oportuniza-se a
estes, o desenvolvimento da condição crítica para ler e
compreender o mundo e a alfabetização. Então, ‘é um processo que
envolve uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na
decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas
que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo’8
(FREIRE, 2008, p. 11).
Diante disso, a alfabetização, deve ser percebida por nós
educadores como possibilidade de emancipação, de percepção da
realidade social e material vivida. O ato de ler e de escrever, deve
ser concebido como possibilidade de leitura da realidade, de
interpretação do contexto em que estamos inseridos. A prática da
oralidade que permeia a alfabetização e os textos produzidos, deve
dialogar com as aprendizagens perquiridas nas escolas, nas
famílias, nas comunidades, nas igrejas e demais ambientes nos
quais os estudantes estão inseridos.
A leitura e a interpretação do mundo, tornam-se essenciais para a
transformação desta realidade que aflige, que massacra e que
usurpa as possibilidades de que nossos alunos tenham uma

1448
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

infância humana, plural, criativa e com aprendizagens


significativas.
Para Freire (2011), não podemos falar de emancipação, de
transformação social, sem falarmos de política e educação, pois
essas questões estão diretamente interligadas, e, a conscientização
perpassa pelo conhecimento e pelas reflexões que poderão ser
feitas a partir deste entendimento.
A conscientização é neste sentido, um teste de realidade. Quanto
mais conscientização, mais se desvela a realidade, mais se penetra
na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos
para analisá-la. Por esta mesma razão, a conscientização não
consiste em estar frente à realidade assumindo uma posição
falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da
práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética
constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar
o mundo que caracteriza os homens. Por isso mesmo, a
conscientização é um compromisso histórico. É também
consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os
homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o
mundo” (FREIRE, 1989).
Desta forma, não existe prática educativa dissociadas de
significados políticos. O processo de emancipação, envolve
questões de caráter social, político, cultural e humano. Com isso,
acreditamos que a alfabetização, proposta de forma reflexiva e
dialógica, poderá reverberar em conscientização, em novas
percepções da realidade.
Uma das tarefas mais importantes da prática educativa-crítica é
propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns
com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a
experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e
histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador,
realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.
(FREIRE,2000, p.46)

1449
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em uma sociedade capitalista, marcada pela luta de classes e por


inúmeras desigualdades sociais, as transformações no âmbito da
macropolítica parecem utópicas. Entretanto, as transformações que
acontecem dentro e fora das escolas no âmbito da micropolítica,
devem ser consideradas e valorizadas, pois parafraseando Paulo
Freire, a nossa esperança é do verbo esperançar.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 1993.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São
Paulo: Hucitec, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua
portuguesa. PCNs, 1997.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à
prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo,1963. “Conscientização e Alfabetização: uma nova
visão do Processo”. Estados unidos. Revista de cultura da
Universidade do Recife, nº 4
FREIRE, Paulo 1979ª. “Conscientização – Teoria e Prática da
Libertação – Uma Introdução ao Pensamento de Paulo Freire. São
Paulo: Cortez & Moraes.
FREIRE, Paulo 1979b. “Educação e mudança” 28 ed. São Paulo:
Paz e Terra
FREIRE, Paulo (2005). Pedagogia do oprimindo: Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra.

1450
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

FREIRE, Paulo (2011a). Educação como prática da liberdade. 14ª


edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra.
GONTIJO, Claudia Maria Mendes. Alfabetização: A criança e a
linguagem escrita. Autores associados. São Paulo, 2017.
GONTIJO, Claudia Maria Mendes. A escrita como recurso
mnemônico na fase inicial de alfabetização escolar: Uma análise
histórico-cultural. On-Line: Educação & Sociedade, 2002.
GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. Processo de alfabetização:
novas
contribuições. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GONTIJO, Claudia Maria Mendes, SCHWARTZ, Cleonara
Maria. Alfabetização teoria e prática. Curitiba, PR. Sol, 2009.

1451
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Processos escolares e sociais de ensino-aprendizagem da escrita,


cidadania e liberdade: como crianças e jovens compreendem
novas interpretações do mundo?

Cecilia M. A. Goulart
Universidade Federal Fluminense
goulartcecilia@uol.com.br

Por que a palavra produtividade tem aparecido tanto no cenário


político-social e merecido tanta atenção? O que significa
produtividade quando nos referimos ao espaço escolar? Por que
nos querem sujeitos produtivos? Produtivos para quem?
Produtivos para fazer o quê?
Concepções produtivistas de alfabetização e concepções
comprometidas com a condição cidadã dos sujeitos e com sua
liberdade de participar da vida da sociedade, de forma propositiva
e crítica, lados de uma mesma questão. O fato é que, ao
alfabetizarmos pessoas para que sejam mais produtivas ao sistema,
a conquista de nova leitura de mundo dificilmente se efetiva. Há
outro lado também dos que pensam que não saber ler e escrever
torna a pessoa inútil à família e à sociedade (cf . OSAKABE, 1985).
Modos de olhar a escola a apresentam, muitas vezes, como um
universo fechado, que desenraiza as pessoas de seus lugares
históricos no sentido da homogeneização social, igualando todos,
com base na imposição de um discurso. A escola está cercada de

1452
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

expectativas individuais e coletivas, além de responsabilidades e


encargos sociais.
O conceito de produtividade aqui trazido não se opõe à
improdutividade, não está associado àqueles e àquelas que não
produzem. O termo está associado a uma proposta de educação e
de escola que concebe a pessoa, a criança, pelo que pode fazer,
realizar, associado a valores materiais, a uma visão mecanicista do
ser humano.
Então, chegamos ao ponto almejado. À educação/alfabetização
produtiva contrapomos a educação criadora. E o que quer dizer
isso?
Pensar a educação/alfabetização em que todos tenham direitos e
deveres, inclusive o direito de sonhar e de trabalhar para discutir
realidades alternativas. A vida é essa que está aí. A vida é essa que
está aqui. Mas a vida também pode ser diferente dessas, se assim o
desejarmos.
Que horizontes a educação escolar abre para crianças e jovens que
lá entram? O que é feito com os conhecimentos que eles já têm,
conquistados em seus cotidianos desde que nascem? É possível
pensar que em algumas situações novos conhecimentos sejam
sentidos como grotescos? Que modos estranhos são esses de
considerar o já conhecido, tão familiar e curtido?
Observemos, primeiramente, um debate entre alunos
(representados por A, em que os números ao lado da letra
equivalem aos diferentes alunos participantes) e a
professora (representado por P), em aula de Física, no 2o ano do
Ensino Médio (GOULART, 2010). Na moldura abaixo, inserimos o
problema proposto pela professora e discutido durante a aula, com
base nos conteúdos que vinham sendo estudados.
O cobertor

1453
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Domingo passado Zeca resolveu fazer um churrasco e comprou


uma pedra de gelo para gelar as bebidas. Enquanto Zé, primo do
Zeca, arrumava as garrafas no isopor, Zeca enrolou a pedra de
gelo em um cobertor para que não derretesse. Diga, justificando,
se o procedimento de Zeca está fisicamente correto ou não.
Na sequência está uma pequena parte da longa conversa da turma
com a professora.
A1: eu acho que...
A2: Não. O cobertor vai estar a temperatura ambiente. Porque o
cobertor não vai
esquentar, só vai manter a temperatura...
A3:Não...
A2: ...então se botar o gelo lá, ele ia derreter, tanto dentro do casaco,
quanto fora do
casaco (baixando a voz).
A3 (falando alto): O cobertor impede que o gelo troque calor com
ambiente.
A4: ele impede a troca de calor do gelo com o ambiente.
A5: e vai demorar mais, mas...
A2: mas... o cobertor regula a temperatura.
A1: Genteee...
A1: quando tá frio, você usa o cobertor, ele aquece. Quando tá
quente, você usa o
cobertor, ele aquece (falando de forma cadenciada).
A1: quando tá... Se você colocar...
A6: é porque você que tá produzindo calor.
A7: é porque tu tá liberando e o cobertor tá deixando calor ali.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A8: é que nem a lã...


A8: professora, minha resposta tá péssima...
A2: o gelo não produz calor.
A8: a resposta... O meu problema é Português.
P: por que?
A8: porque eu tô ficando redundante, eu tô falando: energia,
energia, energia. Calor,
calor, calor. Ah, tá ficando ruim. Eu tô há meia hora aqui.
P (baixinho): energia, energia, energia. Calor, calor, calor.
A9: É Física, não é Português.
P: Mas, a gente precisa dele. (...)
A11: onde que ele deixou a pedra enrolada no cobertor?
(Retornando à questão que
inicia os turnos de fala.)
P: esperando o isopor ficar pronto.
A11: Sim. Mas, dependendo do local onde ele deixou... Porque se
ele deixar no Sol, o
cobertor vai aquecer e derreter o gelo. Mas, senão, não vai fazer
nada disso.
P: O cobertor aquece?
A11: Não. Mas, se tiver com a luz solar em cima dele, aquece.
P: Então, é melhor você colocar na sombra.
A11: Ah, ele vai ficar na sombra, só que não aquece, vai manter.
A11: Não! Você me deixa confusa.
A11: Porque toda a minha vida eu usei o cobertor para me aquecer.
Hoje em dia, eu

1455
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

não uso mais para me aquecer, eu uso para reter o calor. Isso não é
legal.

O segundo “caso” vem do relato da professora Marlene


Carvalho/UFRJ, que havia participado de pequena reunião em
junho de 2015, na UERJ, com a pesquisadora argentina Emilia
Ferreiro, de passagem pelo Rio de Janeiro. Emilia Ferreiro contou
que um menininho foi à missa com a mãe e na saída disse já saber
o que queria dizer o enunciado “Amém”.
- O que é? - perguntou a mãe.
- Quer dizer ENTER. - respondeu o garoto.

No primeiro caso, a dificuldade de A11 aceitar o modo com a Física


explica o valor do cobertor para manter a temperatura das bebidas
entra em conflito com a compreensão que tem do cobertor como a
manta que o aquece quando está frio. No segundo, o menino se vale
de um conhecimento prévio para compreender a força enunciativa
da palavra “Amém”. Duas situações que envolvem novos
conhecimentos.
Pessoas públicas relatam experiências infantis em que lutavam com
dificuldades de compreender, tanto o sentido de determinadas
palavras quanto formas de ver o mundo. Nelson Rodrigues (1997)
lembra que, quando criança, lia Émile Zola e não sabia o que era
nádega. O autor falava em nádega e ele, Nelson, ficava na dúvida
se nádega era na frente ou atrás.
Indo para o campo da literatura, sabemos que poeticamente
versões para coisas do mundo se põem em disputa, em visões
particulares. O fato é que as vidas encontram sentido estético na
extraposição exotópica ao outro, “vista do exterior, como um todo;
ela deve estar completamente englobada no horizonte de alguma
outra pessoa; (...)”, conforme nos indica Todorov (1997, p. 6).

1456
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Diferentes consciências se encontram na vida, nas salas de aula...


Como encontramos outras consciências, outras vozes? Como elas
nos perturbam, aturdem, povoam? Todas dão-nos a certeza de
nossa incompletude e de nossa interminável possibilidade de ser.
Diferenças geracionais seriam sentidas assim também? Pais e
filhos? Estariam diferentes linguagens sociais se contrapondo
grotescamente nas situações de enunciação?
Mas como transcender? Como a sociedade lida com as criaturas e a
possibilidade (importância?) de recriá-las culturalmente como
cidadãs formando um todo específico? Institucionalizando-se e
institucionalizando seus “associados”. Este não é o caso da escola
tão somente. As instituições sociais nos organizam e nos
encaminham modos de ser “sócios” que muitas vezes nos
enrijecem. Sanções existem para os não enquadrados, formais e
não-formais, como preconceitos de todos os tipos e outras formas
de rejeição.
Nessa humana caminhada criamos a arte, a ciência, a filosofia, além
de outras áreas de conhecimento, e nos recriamos como pessoas. É
nessa direção que podemos refletir sobre práticas escolares de
alfabetização comprometidas com a cidadania e com a liberdade.
É essa abertura para desenvolvermos a nossa curiosidade, a nossa
inventividade e a nossa vontade de enfrentar nossos desejos, que
pode nos impulsionar para lugares ainda não desbravados.
O processo de alfabetização vivenciado por meio de práticas
escolares em que os sujeitos aprendam em comunhão, aprendam
criando e criando-se, como nos instiga Bakhtin (2003) seria a saída?
Práticas como atos responsáveis vinculados a leituras e escritas do
mundo. Práticas humanistas, coletivas, participativas,
significativas, democráticas. Práticas sociais, práticas de vida.
Nesse sentido, o próprio conceito de analfabetismo é questionado.
Entendemos como Paulo Freire (2001) que “o analfabetismo não é

1457
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

uma ‘chaga’, nem uma ‘erva daninha’ a ser erradicada, nem tão
pouco uma enfermidade, mas uma das expressões concretas de
uma realidade social injusta.”
A visão tecnicista das pessoas opõe-se à visão humanista, com suas
formas de expressão, sua diversidade cultural, universalidade e
singularidade, compondo uma cena de vida palpitante, em que o
pragmático surge das/nas necessidades vitais, determinadas por
desejos, experiências, utopias, relacionadas a modos de pensar e
viver o mundo – não um modo somente, mas muitos - nascidos de
nossas capacidades de criar e inventar novas formas de viver,
aprender, ensinar.
A reflexão sobre o grotesco de nossas diferenças e das diferentes
interpretações talvez seja um instrumento de luta contra a
resignação e os preconceitos. Um início de conversa por um
caminho cheio de atalhos, aberturas para o encontro com outras
vozes na direção da ampla conquista da cidadania e da liberdade.

Referências:
GOULART, Cecilia. Processos escolares de ensino e aprendizagem,
argumentação e linguagens sociais. BAKHTINIANA, São Paulo, v.
1, n. 4, p. 50-62, 2o sem. 2010.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 9. ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2001.
OSAKABE, Akira. Considerações em torno do acesso ao mundo da
escrita. In: ZILBERMAN, Regina (org.) Leitura em crise na escola: as
alternativas do professor. 9ª. Ed., Porto Alegre: Mercado Aberto,
1985.
RODRIGUES, Nelson. Flor de obsessão: as 1000 melhores frases
de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro, 1997.

1458
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

TODOROV, Tzvetan. Prefácio à edição francesa. BAKHTIN,


M. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra.
São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Procurando pistas do grotesco

Natália de Abreu Nascimento


Universidade Federal Fluminense
abreunatalia11@gmail.com

Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra


concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de
nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se
simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor.
(Bakhtin)

Bakhtin, em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento,


realiza um trabalho essencial aos nossos tempos: busca na literatura
- mais especificamente em Rabelais e em seus diálogos -, e na
própria história, forças que foram esquecidas e renegadas por nós,
especialmente no Ocidente. Digo isso porque, pelo menos desde a
Modernidade, vivemos tempos marcados por categorizações e
rodeados por dicotomias: vê-se o mundo pelas lentes do bem ou
mal; certo ou errado; vida ou morte. E, ainda, as próprias
organizações sociais e econômicas têm como base esse mesmo
princípio, que parece adquirir, ainda, bases morais para determinar
aqueles que são aceitos em determinados ambientes e aqueles que
não são.
Brasil ultrapassa marco de 584 mil mortos por covid 19. Corrupção
na compra de vacinas. Gasolina a sete reais o litro. “Tem todo
mundo que comprar fuzil, pô”, diz o presidente. “Universidade

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

deveria ser para poucos”, diz Ministro da Educação. Cresce o


número de pessoas que não querem tomar vacina. Dezenove
milhões de pessoas passam fome no Brasil do fim do ano de dois
mil e vinte.
É nesse contexto que nos encontramos, aqui, no Brasil de 2021.
“Grotesco”, alguns diriam. No entanto, a simplificação do termo
“grotesco” também faz parte desse olhar para o mundo que tenta,
de certa maneira, unificar os sentidos e, ainda mais, tornar abstratas
situações que são extremamente concretas: a perda de alguém
amado, a retirada de conquistas sociais que surgiram a partir de
muita luta, a concentração de renda e a fome. Tudo isso,
concretamente sentido e vivido, tem suas bases em uma lógica
capitalista e individualista, que valoriza uma perspectiva do mérito
pessoal em detrimento do bem estar social.
Aprendo com Bakhtin, no entanto, que quando falamos do humano
e suas relações, é uma impossibilidade que haja somente valores
destrutivos e negativos, pois há sempre uma luta de sentidos e,
assim sendo, podemos procurar por valores positivos e
regeneradores.
Diferente da lógica dicotômica, Bakhtin chama a atenção para um
aspecto crucial do grotesco, aspecto esse que parece ter sido
deixado de lado por nós: a ambivalência. Aqui, não é preciso
encaixotar as coisas em um rótulo ou outro, como esferas
separadas, mas é possível ver, ao mesmo tempo, uma coisa e outra
coisa também, interpenetradas. Ao falar do baixo, por exemplo,
Bakhtin nos diz que não é preciso olhar para aquilo que é o nada,
considerado de maneira ruim, ou mesmo para o baixo no sentido
de destruição, mas é possível enxergá-lo como o baixo produtivo,
“no qual se realizam a concepção e o renascimento, e onde tudo
cresce profusamente.” (BAKHTIN, 2010, p. 19). Nos apresenta a
possibilidade de reunir, numa mesma imagem, pontos negativos e
positivos.

1461
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ao estudar a obra de Rabelais, Bakhtin traz à tona uma forma de


pensar que, embora muito presente no Renascimento, parece ter
sido deixada de lado. Contudo, não é possível dizer que as forças
grotescas se esgotaram, apenas que desacostumamos o olhar de
enxergá-las. Para ele, e para nós, o próprio riso é uma outra força
grotesca, capaz de destronar e inverter lógicas de dominação,
porque as forças do riso são forças indestrutíveis. Bakhtin chega a
renovar o sentido de olhar para o riso como algo que atribui
humanidade: o humano ri. Entretanto, não estamos falando do riso
de escárnio, mas do riso que regenera e cria ou, ainda, do riso que
todos riem - do rir com.
Além da ambivalência e do riso, gostaríamos de destacar mais uma
força do grotesco que Bakhtin nos convida a olhar: a festa popular.
Essa que, para além do seu aspecto “oficial, religioso e estatal,
possuía um segundo aspecto popular, carnavalesco, público, cujos
princípios organizadores eram o riso e o baixo material e corporal”
(BAKHTIN, 2010, p. 71). A festa popular, no contexto da Idade
Média, marcava uma certa interrupção provisória do sistema
oficial, suspendendo suas barreiras hierárquicas. Essa força
popular que, acompanhada da ambivalência, do riso e da festa,
trazem a possibilidade de formar seu próprio ninho não-oficial.
O Grotesco não é da lógica simplista do ruim, mas das forças que
degradam e renovam, pois nelas estão presentes o rebaixamento e
a ambivalência onde morte e vida, isto e aquilo coexistem no
destronamento das forças oficiais através da renovação. Essa força
não poderia ter ficado aprisionada na Idade Média e no
Renascimento, mas atravessa o tempo e olha para todas as
dimensões da vida como igualmente vivas. Nós, na vida, estamos
a todo tempo diante dessas forças, que se tensionam e se renovam
e, ao mesmo tempo, estamos também sempre diante da
possibilidade de criação de novas lógicas, em relação e na
linguagem. Sigamos juntos, por aí, à procura dessas forças
destronadoras.

1462
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.

1463
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

RAÍZES DIALÓGICAS NO ENSAIO: ARTE E


RESPONSABILIDADE

Hélcia Macedo de Carvalho Diniz e Silva


Universidade de Brasília- UnB
helciamacedo@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO
O jovem Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975), filósofo russo,
escreveu em 1919 o ensaio filosófico Arte e
Responsabilidade, corpus dessa pesquisa, cujo objetivo geral é
analisar as categorias que dão o título ao referido texto. Os objetivos
específicos consistem em apresentar o corpus, delimitar os conceitos
de arte e responsabilidade e investigar as heterogeneidades dos
argumentos bakhtinianos. A temática do pequeno texto em realce
alia-se a problemática da vida do ser humano. Muitas vezes não
está explícita a elaboração acerca desses temas da Filosofia,
principalmente por não ser esta a preocupação do autor. Contudo,
as possibilidades de análises acerca desses temas são possíveis.
Funda-se no modelo epistemológico que observa dados singulares
em ciências humanas, dando atenção para o fato de que está no
resíduo, no episódico, no singular, no detalhe, de modo silencioso,
o ponto de investigação que pode garantir rigor à pesquisa
científica. Classifica-se como explicativa, com procedimentos
técnicos como estudo bibliográfico e documental. Quanto à
natureza dos dados é qualitativa.

1464
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Com efeito, cada discurso está historicamente situado, com sua


ideologia e condição social. O discurso é dialógico e é um
movimento dialético, este diálogo ocorre entre o Eu e o Outro, em
contexto bem definido, preciso, socialmente organizado. São essas
as características que estão presentes no gênero de discurso ensaio,
cuja arquitetônica considera a esfera em que surge, autor,
participante, conteúdo temático, finalidade, o lugar do enunciador
e seus argumentas sobre um tema.
Busca-se saber se o ensaio compõe uma argumentação acerca da
ação humana e discute problemas que assaltam o indivíduo, tem
como característica argumentar uma sustentação, refutação e
negociação de tomadas de posição. Assim, estabelece-se a seguinte
questão: quais são os pontos do ensaio cuja argumentação entrelaça
diálogos acerca do ser humano?
Diante dessa delimitação, a materialidade linguística, aqui
analisada, configura-se no gênero de discurso ensaio, que se
configura em escritos mais densos e com fôlego para o argumento
sobre um tema específico.
Nessa perspectiva, o jovem Bakhtin aos vinte e quatro anos de
idade é um escritor que reflete sobre a vida ao afirmar que “O
indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável” (BAKHTIN,
2003, p. XXXIV). Ao justificar esta afirmação o filósofo afirma que
ao passo que cada um procede desse modo, ou seja, com
responsabilidade, todos os seus momentos tecem um fio condutor
que o põe como um sujeito ético.
Com este enredo sobre a responsabilidade que é viver, o filósofo
propõe uma reflexão sobre a realidade em que todo indivíduo está
submerso, a saber, a vivência, a ciência, a arte e a vida como fatores
essenciais para a formação da cultura humana. Tal formação não
prescinde do agir ético. A questão que se estabelece é a seguinte:
quais são os pontos que marcam o entrelaçamento entre o discurso

1465
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

filosófico e o linguístico, caracterizando o discurso do outro no


discurso de um.
Esse é um dos questionamentos que surgiu quando da primeira
leitura de Arte e responsabilidade, inquietação inicial que provocou
esta pesquisa, motivo que justifica esse trabalho, o qual visa
contribuir para a discussão sobre a ética na linguagem.
Até o momento, no estado da arte, trabalhos relevantes tratam esse
ensaio com sendo um artigo com abordagem e perspectiva distintas
das apresentadas aqui. Este é outro fator, não menos relevante, que
justifica o desenvolvimento desta pesquisa. Nos artigos A questão
espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia de Machado (2010)
e Entre ciência, arte e vida: a didática como ato responsivo de Corsino
(2013) encontra-se como corpus o ensaio em realce. Contudo, põe
foco no discurso sobre a responsabilidade no âmbito da pesquisa e
do fazer artístico.
Enquanto que nas pesquisas, Da Rússia czarista à web (BRAIT, 1996)
e Ético e estético: na vida, na arte e na pesquisa em Ciência
Humanas (SOBRAL, 2005), encontram-se preocupações com
abordagens mais históricas que filosóficas. São trabalhos cujas
leituras são essenciais para se entender o aspecto contextual do
referido ensaio. Não obstante, o objetivo desses autores segue em
outras direções, distintas da que está proposta aqui.
Nesse panorama, mesmo sendo apresentado como objeto de estudo
por autores consagrados no Brasil, percebe-se que esta investigação
não tem a pretensão de esgotar o tema, principalmente porque isso
não é possível. Assim, apresenta-se, aqui, mais uma contribuição
para o debate em questão, uma vez que a discussão está no âmbito
da Linguística com um viés filosófico, cuja temática está inserida
nas ciências humanas, abrangendo discussões mais amplas.
São pertinentes e urgentes as reflexões bakhtinianas acerca do
referido ensaio por ser um texto escrito no início do século XX
abordando questões fundamentais da existência humana. A partir
disso segue-se a hipótese de que o discurso de Bakhtin em Arte e

1466
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Responsabilidade apresenta heterogeneidades com vozes de outrem,


estas se entrelaçam com a Filosofia. Os indícios de entrelaçamentos
dos discursos são essenciais para se buscar explicações partindo
dos objetivos desta pesquisa.
Esta pesquisa, portanto, trata de questões de Linguística com um
olhar filosófico. É uma investigação que envolve aspectos do ser
humano perante da sua própria condição. Bakhtin, ao longo de seu
desenvolvimento intelectual se dedicou às questões de Literatura,
abordagens Linguísticas e, sobretudo, aos aspectos filosóficos da
linguagem. Entre os textos deste autor russo, considerado filósofo
da linguagem, encontram-se contribuições fundamentais para os
estudos da linguagem, uma vez que a partir dele pode-se perceber
que o uso da linguagem é interação verbal, as relações verbais entre
as pessoas são dialógicas e, entre outros aspectos, o sujeito está
situado histórico-social-idelogicamente quando usa a linguagem,
seja escrita seja falada. É bastante ampla a teoria bakhtiniana da
linguagem, por isso faz-se mister a presente delimitação, sem,
contudo, mutilar a ideia nem a teoria do referido pensador russo.
Não é demais dizer que estudos concernentes aos temas
filosóficos ética e estética, como que se busca empreender aqui
requerem do pesquisador uma postura crítica e comprometida com
a temática. Assim, o desenvolvimento que se segue busca o que está
literatura denominada de filosofia prática [1].
No prefácio à edição francesa Todorov (2003, p. XIII) apresenta
Bakhtin como “uma das figuras mais fascinantes e enigmáticas da
cultura europeia do século XX”. A fascinação é facilmente
compreensível: obra rica e original à qual nada pode comparado na
produção soviética em matéria de ciências humanas.
Registra-se, no início dessa análise, que o ensaio destaca a
necessidade de engajamento do artista com a vida e do homem
comum com a arte, especificamente no que concerne à busca da
unidade interna do sentido. Esta análise é feita trecho a trecho, um

1467
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

recorte que prestigia os blocos argumentativos do texto, sem perder


a noção do todo.
A arte e a responsabilidade são exteriores ao ser humano. Contudo,
devem ser cindidas e formar uma unidade do sentido internalizada
naquele que tem e exerce a disposição de buscar ações éticas, tanto
na estética como na realidade, confirmando, assim, a hipótese de
que o discurso de Bakhtin no ensaio em estudo apresenta
heterogeneidades constitutivas, mostrada marcada e não-marcada.
Em outras palavras, apresenta vozes alheias que são convidadas
pelo filósofo russo para compor a sua argumentação.
As não-coincidências do dizer no referido ensaio evidenciam-se
quando o filósofo aborda questões de estética (Arte) e ética
(Responsabilidade). O recorte feito nesta análise é inevitável, sem,
contudo, mutilar ou desfocar o cerne da questão. A ética permeia
as enunciações do ensaio bakhtiniano e a estética, no mesmo
sentido, aborda a questão do ato responsável, o ato como dar um
passo, aqui, significando o ato de uso da linguagem como algo
concreto no cotidiano das pessoas. Este tema é desenvolvido,
embora germinalmente, em PFAR, texto que contém a Filosofia
Bakhtiniana da Linguagem
Com efeito, o discurso de Bakhtin apresenta heterogeneidades com
vozes de outrem por muitas razões, recortamos apenas algumas, a
saber, nos argumentos bakhtinianos percebe-se que o discurso se
entrelaça com a Filosofia ao tratar de questões acerca do ser
humano, suas inquietações e necessidades. Essa abordagem é parte
original da Filosofia Bakhtiniana da Linguagem.
Desta pesquisa surgiram alguns questionamentos, os quais podem
servir para investigações futuras, a saber, arte e vida não
constituem uma unidade do sentido no indivíduo e em sua
singularidade, quais problemas estão aludidos nessa cisão do ser
humano? Quais são os dispositivos da inspiração do ser humano
no campo da arte que não cabem na vida? É possível que o homem
esteja na arte e na vida sem correr riscos de pender demais para um

1468
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

lado ou para o outro? Que religiosidade permeia o fio do discurso


bakhtiniano quando ele revela uma heterogeneidade mostrada
não-marcada ao se referir a “culpa mútua”?

Notas:
[1] Filosofia Prática: parte da filosofia dedicada ao estudo de
conceitos específicos do comportamento do ser humano, a saber,
valores morais, honestidade, equidade na argumentação e
princípios ideias que o ser humano pratica perante a sociedade
(ABBAGNANO, 2000).

1469
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Red Dot Campaing e Campanha Sinal Vermelho: a


interdiscursividade no combate à violência contra as mulheres

Bruna Panzarini
UMESP
brunapanzarini@hotmail.com

As perspectivas teóricas do discurso


A palavra discurso tem a ideia de curso, percurso, movimento. O
discurso é a língua no mundo, as maneiras de significar, as pessoas
falando e considerando a produção de sentidos enquanto parte de
suas vidas, seja enquanto sujeitos individuais, seja como membros
de uma sociedade. Dessa forma, o discurso é o lugar que se observa
a relação entre língua e ideologia. Os conceitos de linguagem e
discursos neste texto apontados possuem a raiz teórica propostos
por Mikhail Bakhtin.
O filósofo russo defende o posicionamento sobre as relações entre
os indivíduos e como é necessária a presença e a participação do
outro. “A alteridade define o ser humano, pois o outro é
imprescindível para a sua concepção: é impossível pensar no
homem fora das relações que o ligam ao outro” (BAKHTIN, 1997,
p.35).
Na perspectiva da Análise do Discurso, linha francesa, entende-se
todas as etapas do processo de comunicação como relacionáveis e
heterogêneas. Os emissores e receptores devem ser encarados
como elementos difusos, sem muita ordem sequencial de atuação,

1470
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

e ambos fazem parte do processo de significação. Já no processo de


decodificação não existe sujeito ativo e passivo, a significação nem
sempre ocorre como esperada e a língua é um código entre tantos
outros.
“De fato, o ouvinte que recebe e compreende a significação
(linguística) de um discurso adota simultaneamente, para com este
discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda
(total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar
etc., e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante
todo o processo de audição e de compreensão desde o início do
discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo
locutor. (BAKHTIN, p.290 1997)”
A interpretação dos discursos busca entender objetos simbólicos e
como esses são representados e intervém no sentido da linguagem.
Dessa forma, é importante pensar no discurso e na relação de
sujeitos e sentidos de maneira ampla e aberta, em que a língua, a
história e a ideologia devem ser consideradas.
Outra questão importante nos discursos baseado na língua, história
e ideologia é o que já foi dito, e a percepção de uma relação
interdiscursiva entre acontecimentos, palavras e sentidos. Sendo
assim, os discursos não estão sozinhos, para existirem precisam se
ligar a outros discursos e outros sentidos já ditos e internalizados
na linguagem, na cultura e nos indivíduos.
Nas relações de sentido não há discurso que não se relacione com
outros, não há um começo nem um final para o discurso. Um dizer
tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou
possíveis. A antecipação é o recurso em que todo sujeito tem a
possibilidade de se colocar como ouvinte de suas próprias palavras
e perceber o possível efeito que elas podem produzir.
A relação de força é o lugar que o sujeito ocupa e o peso que isso
dá ao discurso. Já as formações imaginárias são as imagens dos
sujeitos que resultam em projeções e consequentemente em
direcionamento do sujeito no discurso. Vale lembrar que a

1471
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ideologia é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos,


logo indissociável do discurso.
Para Fiorin (2018) em Bakhtin a questão do interdiscurso aparece
sob o nome de dialogismo. [...] o dialogismo é sempre entre
discursos. O interlocutor só existe enquanto discurso. [...] O que
delimita a fronteira é a alternância do sujeito falante. [...] A relação
dialógica é uma relação de sentido que se estabelece entre
enunciados na comunicação verbal.
Na interdiscursividade é importante perceber o momento e qual o
cunho ideológico dos discursos, quem são os sujeitos do discurso,
como é a alternância dos papéis, e o enunciado enquanto elemento
dialógico que remete relações interdiscursiva de fato.
Logo pautar os discursos através de interdiscursividade é
importante para compreender o papel e a imagem que cada autor
possui enquanto ator discursivo, e como isso pode influenciar os
interlocutores, o ato de enunciação e as relações entre indivíduos
na perspectiva histórica e ideológica.
Sendo assim, este artigo busca avaliar dois discursos de combate à
violência contra as mulheres: os vídeos das campanhas de
comunicação “Sinal Vermelho” e o da “Red Dot Campaing”, no
Brasil e na Índia, respectivamente. O vídeo da campanha brasileira
é referente a um ano da iniciativa, publicado em junho de 2021; já
o vídeo indiano é do início da campanha, publicado em maio de
2020. A análise buscará entender os discursos e suas aproximações,
a interdiscursividade entre eles e como as mulheres são
apresentadas nos discursos, como a violência é narrada e o
encorajamento para a denúncia é proposto.

A interdiscursividade das campanhas de violência contra a


mulher
No vídeo que propõe a iniciativa Red Dot da WEFT[1] são
apresentadas algumas narrativas de violência contra as mulheres

1472
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

para introduzir o problema aos interlocutores. Em sequência


aparecem mulheres visivelmente sofrendo com algum tipo de
agressão - o som é de choro, soluços, gemidos. Na primeira
sequência de imagens também existem sons de coisas caindo no
chão.
São três mulheres que foram agredidas e estão sofrendo pela
violência recebida. Na sequência 1 a mulher está sofrendo a
agressão e antes de ser silenciada é possível ouvir coisas caindo ao
chão; já na sequência 2 e 3 é possível perceber marcas de agressão.
Elas, antes de serem silenciadas, choram. O choro não é somente de
dor, mas percebe-se raiva, angústia e vergonha. O silêncio é
marcado pela ausência do som e pelo símbolo de silenciado dos
dispositivos móveis.
Na sequência 4 aparece uma tela preta, e em conjunto com a
narração os escritos “Denuncie Violência Doméstica. Seja a voz”.
Vale ressaltar que essa seria a tradução mais adequada ao
português, porém a palavra unmute quer dizer “não mudo”.
Nesse momento percebe-se a narrativa invertendo. Se nas
sequências 1,2 e 3 as mulheres foram silenciadas, ou traduzindo,
literalmente, estão “no mudo”, a sequência 4 propõe que não se
deixe a violência doméstica “no mudo”, e solicita que o interlocutor
seja a voz da denúncia.
Na sequência 5 aparece as maneiras de denunciar, o que chama
atenção pois é um contato de e-mail e WhatsApp, o que denota o
quanto a Iti Rawat e a WEFT trabalham de maneira autônoma com
relação à causa.
Na sequência 6 é a parte final da narrativa. Aparece a palma de uma
mão e o ponto vermelho, a campanha é assinada pela WEFT. Como
já dito anteriormente, o Red Dot faz alusão ao bindi, que é um
ornamento redondo que as mulheres indianas pintam no meio da
testa com a intenção de proteção, sobretudo em relação aos
maridos. O bindi é um símbolo cultural na Índia.

1473
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A relação entre o Red Dot e o bindi é interessante, pois um símbolo


de proteção está sendo utilizado em outra parte do corpo, porém
com a mesma relação de sentido, que seria a proteção de mulheres.
Entretanto no Red Dot o sentido de proteção vai além do apelo
cultural e sugere a denúncia enquanto forma de ação.
Na narrativa da campanha brasileira “Sinal Vermelho”, postada no
canal do Youtube da AMB[2], o vídeo analisado comemora um ano
da iniciativa. No início é dito que a violência doméstica não parou
na pandemia e entram três atrizes em momentos distintos
contando histórias de três mulheres agredidas e como o X vermelho
nas mãos salvou a vida delas. A marca final das três histórias é a
frase: essa história não é minha, mas poderia ser. Surgem diversos
relatos de mulheres sobre violência e como descobriram os direitos
A atriz Luiza Brunet conta as histórias de violência sofrida. Logo
percebe-se que a atriz é a fiadora da causa no discurso da
campanha. Luiza Brunet termina o relato na narrativa dizendo:
Essa história é minha. O vídeo é finalizado com a fala: Um X
vermelho salva vidas; a informação também, apoiem outras
mulheres a saírem de um relacionamento abusivo. Aparecem duas
mãos com dois Xs, um na palma e o outra no dorso da mão. Este
discurso simboliza a união, o acolhimento e a empatia entre
mulheres.
Se por um lado há a que pede ajuda, do outro lado há a que acolhe,
que segura, e as duas juntas pedem ajuda. Neste discurso é possível
perceber a ideia de força através das mãos dadas, simbolizando
uma corrente, e que os problemas de violência não são individuais
e muito menos devem passar despercebidos. Aqui nota-se o
discurso de união entre as mulheres.
Damos destaque à importância de atrelar estratégias discursivas a
uma campanha de combate à violência contra as mulheres. O fato
é que a interdiscursividade entre a campanha “Sinal Vermelho” e a
“Red Dot Campaing” vai muito além da inspiração que as
brasileiras tiveram na campanha indiana. Ambas as campanhas

1474
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dialogam com as mulheres de maneira bastante direta,


solicitando/encorajando a denúncia, não se calando para as
agressões e abusos e principalmente, percebe-se um discurso de
união para realizar as denúncias.
Na campanha indiana nota-se um esforço da ONG WEFT e de suas
parceiras para que a iniciativa ganhe notoriedade entre as mulheres
indianas, porém verifica-se pouco apoio do Estado, o que talvez
dificulte a atuação da iniciativa.
Já aqui no Brasil a “Campanha Sinal Vermelho” é realizada pelo
Estado através do Poder Judiciário, o que institucional e
politicamente gera a possibilidade de sucesso.
Tanto na narrativa indiana quanto na brasileira se percebe um
discurso pautado no objetivo de criar rede de apoio e amparo entre
mulheres, uma tentativa de união através da denúncia e do
acolhimento. Não adianta silenciar um problema e fingir que ele
não existe. É preciso expor, é preciso acreditar umas nas outras, é
preciso empoderar as mulheres vítimas de violência doméstica.

Referências
CAMPANHA SINAL VERMELHO. Disponível
em< https://www.instagram.com/campanhasinalvermelho/>
acessado em 15 de junho de 2021
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e
procedimentos. 13. ed. Campinas: Pontes, 2020.
RAWAT Iti. Responding to the Domestic Violence Crisis of
COVID-19 Disponível
em <https://www.femina.in/trending/actagainstabuse/women-
report-domestic-violence-cases-using-red-dot-171868.html>
Acessado em 15 junho 2021.

1475
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN MJKAILOVITCH, Mikhail. Estética da criação


verbal. Tradução de Maria Ensantina Galvão G Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido: Estudos discursivos. São
Paulo, 2 ed: Contexto, 2012.
FIORIN, José Luiz Interdiscursividade e intertextualidade.
BRAIT, Beth (Org). Bakhtin: outros conceitos chaves. 2 ed. Sao
Paulo: Contexto, 2018.

Notas:
Vídeo
[1]

completo https://www.youtube.com/watch?v=sfo3z1eEYrI
[2] https://www.youtube.com/user/AMBMagistrados

1476
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Reflexões sobre o diálogo e intercorporeidade para o trabalho


clínico com a linguagem

Marcus Vinicius Borges Oliveira


Universidade Federal da Bahia - UFBA
marcus.oliveira.fono@gmail.com

Introdução
Este Rodas Bakhtinianas de 2021 nos convoca a refletir sobre o
grotesco no nosso tempo. De início, acho que minha atuação como
Fonoaudiólogo que trabalha nas questões da linguagem na clínica
poderia se beneficiar muito das reflexões provocadas por esta
temática, seja nas fronteiras do normal ou patológico ou nas
questões que permeiam o campo da saúde mental e da luta
antimanicomial. No entanto, para fins deste texto, abordarei duas
questões que estão no meu horizonte atual de pesquisa; i) a
linguagem carnavalizada do autismo e ii) as questões ligadas ao
envelhecimento e ao preconceito relacionado ao idoso.
I
Começaremos pelo autismo, ou como tem sido chamado
atualmente, Transtorno do Espectro Autista (American Psychiatric
Association, 2014). O autismo tem sido tradicionalmente
apresentado na clínica como uma patologia que reduz o sujeito a
um conjunto de características pré-determinadas que, do ponto de
vista da linguagem, se expressam principalmente no discurso
marcado como repetitivo e fragmentado. Predominam abordagem
que equivalem a linguagem à sua forma e que se centralizam no

1477
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sujeito autista, prescindindo, portanto, dos parceiros que compõe


uma enunciação propriamente dita.
Ainda que o TEA tenha sido interpretado como uma patologia, um
transtorno, há quem entenda como uma forma de identidade
profundamente diferente. Neste sentido, se considerarmos que,
segundo Petrilli (2019):
Quando nasce, o sujeito entra em um mundo já constituído, um
mundo que pré-existe em relação ao meu ingresso; nasce em um
sistema cultural, em um sistema de valores que nada tem a ver com
a minha vontade, os meus interesses, os meus desejos, que encontro
já prontos, já “feitos”, e com os quais devemos nos confrontar; por
isso nasce em uma língua que não se escolheu, uma língua já
entoada, já acentuada, já falada por outros (PETRILLI, 2019, p.1).
O que podemos dizer daqueles que, por algum motivo cuja
etiologia ainda se desconhece, se relacionam de forma tão singular
com o “já constituído” e com as palavras “já habitadas” pelo outro?
Venho há muito refletindo sobre o que faz com os dizeres dos
autistas sejam des-autorizados por uma clínica da exclusão, que
entende suas falas como não pertencentes ao diálogo, desprovidas
de sentido, ou como falas em eco.
Não me parece que a abordagem individualista, que prescinde da
alteridade, tenha dado respostas profícuas para o entendimento do
autismo. A abordagem dialógica aponta para o outro como
constitutivo dos enunciados e dos acabamentos que demarcam
fronteiras diálogo. Lembremos que, para Voloshinov, a palavra é
um ato de duas faces:
Toda palavra serve de expressão ao “um” em relação ao “outro”. Na
palavra, eu dou uma forma a mim mesmo do ponto de vista do outro
e, por fim, da perspectiva da minha coletividade. A palavra é uma
ponte que liga o eu ao outro. Ela apoia uma das extremidades em
mim e outra no interlocutor. A palavra é o território comum entre o
falante e o interlocutor (VOLÓCHINOV, 2018,p.205).
Enfim, a separação estrita entre a palavra do autista e a dos não
autistas tem custado muito caro. A clínica que trabalha com

1478
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

linguagem, de orientação biomédica, parece lidar com as palavras


dos autistas como se fossem palavras mortas, fechadas, conclusas.
Desconfio justamente do contrário. São palavras cheias de vida,
com o maior grau de dialogicidade possível, de tal forma que não
conseguimos convencionalmente interpretar. É preciso um outro
olhar sobre a linguagem que considere que:
O eu é implicado dialogicamente na alteridade, assim como o
“corpo grotesco” (Bakhtin, 1965) é implicado no corpo do outro.
Diálogo e corpo estão estreitamente ligados entre eles. A relação
entre diálogo e corpo foi já teorizada por Bakhtin na monografia de
1929 sobre Dostoiévski, antes ainda da monografia de 1965 sobre
Rabelais. Não pode existir dialogicidade entre mentes
desencarnadas. O diálogo é diálogo entre vozes – vozes não
monológicas e íntegras, mas inteiramente dialógicas e divididas; a
voz, diz Bakhtin, 1929, é entoação ideológica no mundo encarnado
(PETRILLI, 2019, p.5).
II
Com relação ao envelhecimento, a tendência de normatização do
corpo idoso, de sua fala, do ideal de juventude são sinais de
conclusibilidade com que os mais velhos são tratados. Em comum
com os autistas têm a desvalorização de seu dizer - Quem aqui
nunca ouviu “isso é conversa de velho!”.
Recentemente aqui na UFBA, em parceria com a professora Dra.
Larissa Mazuchelli, montamos uma extensão chamada
Observatório do Idadismo. O idadismo (tradução do termo ageism)
é um fenômeno que promove a criação de estereótipos e
discriminação e surge a partir da propagação de discursos que
promovem viés com base na idade; o processo do envelhecimento
e as pessoas idosas são relacionados a imagens negativas
relacionadas à doenças, incapacidade e morte.
De acordo com o relatório da OMS sobre idadismo, que faz parte
da Campanha Global de Combate ao Idadismo lançada pela ONU
(2021) e da Década do Envelhecimento Saudável: 2021-

1479
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

2030, diversas publicações apontam o impacto do idadismo tanto


na esfera individual, que acarreta consequências graves e de longo
alcance na saúde, bem-estar e direitos humanos, quanto na esfera
coletiva. No que diz respeito a pandemia de COVID-19, um dos
maiores desafios da saúde pública dos últimos 100 anos devido a
sua rápida disseminação e ao alto número de novos casos que
impõem pressão sob os sistemas de saúde ao redor do mundo, os
idosos se constituíram como um dos principais alvos das
discussões políticas e das notícias durante a pandemia de COVID-
19. Do nosso governo, ouvimos coisas como “Morte de idosos por
covid-19 melhora contas da Previdência", além da defesa de uma
espécie de sacrifício dos idosos em prol de uma economia que os
exclui. Além disso, convivemos com um ministro que, no alto do
seu preconceito, não tem menor constrangimento de afirma que o
problema é que “todos querem viver 100 anos".
Frente a estes discursos idadistas, exigimos outros olhares que
possibilitem velhices outras. Neste sentido, a reflexão sobre o
grotesco em nossos tempos contribui, pois:
A mundialização da produção capitalista com a consequente
propagação da ideia de indivíduo como entidade separada e auto
suficiente envolveu o quase total desaparecimento de práticas
culturais e visões do mundo baseadas sobre o pressuposto da
intercorporeidade, da interdependência, da exposição e da abertura
do corpo. São, atualmente, quase totalmente extintas as formas de
percepção do corpo da cultura popular, das quais fala Bakhtin no
Dostoiévski (1963) e no Rabelais (1965), as formas do “realismo
grotesco”, segundo o qual o corpo e a vida corpórea não são de fato
o corpo e a fisiologia dos nossos tempos, não são nem inteiramente
individualizados nem separados do resto do mundo. Ao invés do
corpo como entidade biológica isolada e como esfera de pertença do
indivíduo, o realismo grotesco apresenta o corpo como não definido,
não limitado em si mesmo, mas em uma relação de simbiose com
os outros corpos e de transformação e renovação que ultrapassa os
limites da vida individual (PONZIO, 2020, p.226).

1480
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Este encontro nos convoca a pensar que outras velhices são


possíveis, pensar para além daquele envelhecimento
biologicamente marcado, individualizado, restrito. Neste mesmo
sentido, os autores Oliveira e Mazuchelli, baseados em na
filosofia bakhtiniana do ato ético, argumentam que se faz
necessário pensar em responsabilidade intergeracional. De acordo
com os autores:
A saída para a responsabilidade identitária, acreditamos, é a
responsabilidade da alteridade. Ainda que a responsabilidade, a
partir de Bakhtin, se fundamente na alteridade e no dialogismo, o
contexto da pandemia e o etarismo brasileiro escancarado nos leva
a adjetivá-la como estratégia de visibilizar a importância de um
grupo que está sendo constantemente apagado e silenciado. Por isso
defendemos a necessidade de falarmos de uma responsabilidade
intergeracionalporque ela não apenas reforça o caráter da
alteridade, como aponta para a diferença de gerações, também essa
relação necessária com nossa memória e com o futuro (OLIVEIRA
e MAZUCHELLI, no prelo).
Uma responsabilidade intergeracional não somente na medida do
“encontro de gerações”, mas no fato que cada um deve que lidar
com suas expectativas de futuridade, com as memórias de vida com
outros idosos, com as demais velhices espalhadas pelo mundo.
Sendo assim, ao evocarmos aqui a noção de geração, não estamos
de forma alguma reduzindo-a ao presente das relações em um
período estabelecido. Pelo contrário, reconhecer o caráter
constitutivo da intergeracionalidade é dar-se conta da presença de
outras temporalidades que se entrecruzam a todo momento,
permitindo que no espaço cronotrópico da memória a dimensão
temporal se apresente em toda sua tessitura (OLIVEIRA e
MAZUCHELLI, no prelo).
Por fim...
Nos dois temas tratados neste texto, refletir sobre o realismo
grotesco abre possibilidades para colaborar com o rompimento de

1481
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fronteiras de uma clínica da individualidade para uma outra clínica


que se articule com a palavra viva, ambivalente e carnavalizada.
Referências
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais: DSM-5 (5a ed.; M. I. C. Nascimento,
Trad.). Porto Alegre, RS: Artmed, 2014.
OLIVEIRA, M.V.B. MAZUCHELLI, L.P. Responsabilidade
intergeracional e pandemia Covid-19, Bakhtiniana, São Paulo, no
prelo.
PETRILLI, S. Dialogicità e intercorporeità della parola e della vita,
apresentação oral no V EEBA (Encontro de Estudos Bakhtinianos),
2019.
PONZIO, A. Livre Mente: Processos Cognitivos e Educação para a
Linguagem, São Carlos, SP: Pedro e João, 2020.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (1929). São
Paulo: Editora 34, 2018.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global report on
ageism. Geneva: 2021.

1482
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Reflexões sobre traços do grotesco em discursos religiosos


armamentistas no Brasil

Ilcilene Silva (PPGL/UERN)

Jailson José dos Santos (PPGL/UERN)

Jakelyne dos Santos Apolônio (PPGL/UERN)

Considerações iniciais

Pensar o grotesco em nosso tempo não é algo tão difícil se


considerarmos o sentido comum do termo. Nesse caso,
devemos olhar ao nosso redor, apurarmos os ouvidos para
observar que imagens, discursos, gestos e
comportamentos extravagantes provocam estranhame ntos
por sua constituição sígnica, seu conteúdo. Essas
reverberações serão percebidas/captadas em diversas
nuances, desde as mais asquerosas e toscas até as mais
sutis (se é que se pode ter um grotesco sutil) disfarçadas
por gracejos e risos perdidos. No e ntanto, capturar o
grotesco rabelaisiano e aproximar-se do sentido

1483
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

percebido, por exemplo, em Bakhtin (1987) parece -nos


algo que exige mais que um olhar e um ouvir ainda mais
aguçados. Assim, a complexidade desse grotesco não
permite que passe despercebido aos olhos, exige um olhar
enviesado que perscruta fora do olhar comum.
Quando começamos a dialogar sobre o grotesco em nosso
tempo partimos desse olhar direto para nossa realidade.
Dessa forma, podemos afirmar que encontramos o
grotesco em toda parte: na declaração de um músico
famoso favorável à pedofilia; na fala de um pastor
favorável ao armamento de seus fiéis; na imagem de uma
cantora gospel líder de ministério presa por assassinato de
seu próprio marido; de um político defensor da família
tradicional, mas acusado de matar uma criança (seu
enteado); de alguém que seja defensor da família
tradicional, mas adepto da bigamia; dentre tantos outros
exemplos. Nessa medida, vislumbram -se comportamentos
que se apresentam completamente opostos aos princípios
que estes sujeitos dizem defender em seus respectivos
campos ideológicos, por isso mesmo, vão se configurando
em imagens grotescas de nossa realidade na relação
prática/discurso. Logo, parece mais um circo de horrores
que chegou, levantou a tenda e pretende manter o show por
tempo indeterminado.
No entanto, se ajustarmos as lentes, podemos encontrar
em autores como Bakhtin (1987) elementos que nos
permitem perceber o processo de transformação
provocado por leituras que nos lançam a diversas
perguntas e que não nos permitem contentar com essa
concepção inicial de grotesco: É possível pensar o grotesco
separado do riso? O grotesco de nosso tempo pode ser
discutido na perspectiva bakhtiniana? De que modo
imagens grotescas de nosso tempo podem ser
ambivalentes? Sobre essas perguntas, não as pensamos

1484
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

exatamente como questões de pesquisa, mas como


questões que disparam reflexões a respeito do grotesco
rabelaisiano.

Encaminhamentos teóricos

Nossa primeira inquietação foi refletir sobre o grotesco


relacionado ao riso. Como rir com alguém que, sendo um
religioso/cristão, defende o armamento de fiéis? Como
enxergar algo crítico nessa figura grotesca que, diante de
fiéis, faz o uso do púlpito para defender o livre
armamento? Que essas situações são est ranhas não temos
dúvidas, mas nos faltam elementos para a localização no
sentido do grotesco tomado por Rabelais. Nosso caminhar
não foi interrompido, nos lançamos aos diálogos desses
discursos que supomos ser ambivalentes, pois congrega a
vida que pensamos ser o cerne do discurso religioso, mas
agrega a morte ao somar-se os discursos do armamento
civil.
Desse modo, no diálogo que flerta direta e
escancaradamente com o discurso da extrema direita, do
fascismo e do governo que se posiciona claramente como
amante da necropolítica, tais discursos mascaram (ou não)
a ereção de uma voz que quer se manter atrelada ao poder
instituído e que busca instaurar o medo de aprisionamento
e subjugamento. Nesse sentido, o discurso da morte pousa
ao lado do discurso da vida, vislumbrando que as mãos
desses sujeitos que carregam a Bíblia, acalentam o desejo
de carregar a arma.
A julgar pelo que Bakhtin (1987) avalia sobre o modo de
produção de linguagem rabelaisiana, a compreensão que

1485
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Rabelais dá à realidade só é possível se inscrevermos suas


reflexões nas categorias de natureza social, popular
(quando correlacionamos as diferenças de Rabelais em
comparação a outras produções literárias que o
antecedeu). Isso pode ser relevante na medida em que este
trabalho se imbui de refletir sobre alguns aspectos da
nossa contemporaneidade que estão relacionados ao
comportamento social, inscritos em aspectos de natureza
ideológica a exemplo da religião e da política. Dessa
maneira, estamos falando de aspectos relacionados à
superestrutura (ALTHUSSER, 1998) que nos permitem
compreender porque, na atual realidade brasileira,
estamos nos deparan do com discursos engendrados em
questões de natureza histórica, que já foram, em certa
medida, superadas pelo pensamento social pós -moderno.
Que dimensões da vida contemporânea nos permitem
afirmar que certas construções enunciativas não são mais
condizentes com parâmetros da vida cotidiana e social
calcadas na felicidade coletiva? Ou seja, os enunciados que
estão sendo produzidos no atual contexto social brasileiro
põem em cena polêmicas aparentemente categorizadas
como grotescas (BAKHTIN, 1987) por não se aplicarem ao
pensamento/modo de vida de nosso tempo.
Do ponto de vista da caracterização do grotesco, é
importante situar o fato de que, no contexto de Rabelais,
ou seja, na Idade Média, a cultura cômica se apresentava
distante das produções oficiais, e, ainda de acordo com
Bakhtin (1987), isso se deu pelas próprias características
da sociedade medieval, em função do seu caráter
conservador e de uma cultura oficial marcada pelo tom
sério, religioso característicos da sociedade feudal
(Bakhtin, 1987).

1486
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Contextualização e aspectos analíticos

Para efeito de análise do corpus neste breve texto, faz-se


necessário situar que o cronotopo do enunciado é o Brasil
contemporâneo, mais especificamente o período em que
coincide com a chegada de um governo de direita ao
poder. Estamos tratando do contexto político brasileiro
que tem sido marcado por um governo assumidamente de
direita, conservador, defensor de “valores tradicionais”,
incluindo a família e a pátria, dentre outras características
que se mostram no plano de uma tradição e culto ao
passado. O Brasil vive tempos de uma sociedade marcada
pela presença de uma cultura de massa dos tempos
líquidos (BAUMAN, 2001) que conflitua com a tentativa
de resgate da tradição e do conservadorismo. Discurso
esse retroalimentado por um governo que promove uma
concepção ultrapassada de sociedade. Suas formas de
agir/administrar e principalmente de discursar sobre a
contemporaneidade expressa o desejo de moldar valores
aos quais a sociedade deveria aderir.
Nesse sentido, alguns fatos precisam ser postos como
informação de caráter geral para contextualizar nossas
reflexões: i) a aprovação do Estatuto do Desarmamento no
Brasil (Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003); ii) a
consequente proibição do porte de armas por pessoas
civis; iii) há por parte do atual presidente do Brasil
denúncia de que pessoas estão sendo acusadas e
processadas em função de uma suposta falta de liberdade
de expressão em postagens nas redes sociais; iv) ameaças
frequentes aos ministros do Supremo Tribunal Federal,
normalmente feitas por pessoas pertencentes ao mesmo
grupo ideológico de defensores do governo e do
Presidente Jair Messias Bolsonaro.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Mencionamos esse conjunto de constatações fáticas e


tomamos uma postagem da rede social Facebook, datada do
mês de setembro de 2018. Na postagem, alguém que,
subentendemos ser evangélico, entra na defesa de que
Cristãos estão autorizados pela Bíblia Sagrada a utilizar
armas de fogo. Se propaga também que as armas são
instrumentos indispensáveis à defesa do cidadão, na
interpretação que ele (o sujeito autor da postagem) atribui
ao texto bíblico, afirmando que Jesus Cristo teria se
utilizado de armas e violência na defesa de seus
princípios.

Nessa perspectiva, ou seja, no engendramento de


linguagem que o post faz, há uma tentativa de convencer
as pessoas/interlocutores, sobretudo os pares cristãos, de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que, considerando que o próprio Jesus tenha utilizado


armas (espadas), os cristãos contemporâneos, como
seguidores de Cristo, também estariam autorizados a fazê -
lo. Obviamente, essa postura discursiva, arquitetada pelo
enunciado da postagem, entra em conflito com duas
perspectivas diferentes: o conjunto de leis vigentes no
Brasil que faz a devida prescrição sobre a proibição do uso
de armas por civis e, além disso o c onjunto de
ensinamentos cristão relacionados a estrita preservação da
vida, a solidariedade ao outro que, em tese, não permite
matar o semelhante (cristão/ser humano).
Nesse contexto, podemos afirmar que o grotesco está
relacionado basicamente a dois estr anhamentos de
natureza social, sendo o primeiro a prática vedada pela lei
brasileira que estabelece a proibição, e mais que isso, ao
fato da aprovação da lei ter carregado amplo debate
nacional arrastado por décadas. O que subentende
congregar o desejo da maioria da população que aderiu a
esse marco legal sobre armamento, procedendo a entrega
de armas em vários pontos de coleta definidos pelo
governo, ao longo de meses, anos. O segundo aspecto do
grotesco é de natureza cultural e se apresenta bem mais
forte nos discursos que apoiam ou se colocam contra o uso
de armas por civis, ligados aos princípios
cristãos/evangélicos.

Encaminhamentos finais

Nessa perspectiva, provoca estranhamento que sujeitos


que defendem os valores cristãos possam,
concomitantemente, defender o uso de armas, resultando
em posicionamentos bastante contraditórios. Assim, a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

discussão que corrobora a negação de armas por cristãos


está bem mais dispersa, mas podemos citar os
mandamentos bíblicos impostos aos cristãos, a exemplo do
que popularmente se propagou como “não matar”. Nesse
caso, a prática cristã como uma prática solidária e amorosa
resulta ser completamente contrária e, portanto, grotesca
no discurso convencionado para a vida de quem serve a
Cristo.
Precisamos dizer que, enunciados como o que se apresenta
na postagem acima, se inscreve/constitui em discursos
contraditórios para um grande contingente populacional.
E, no Brasil, esse posicionamento foi se acentuando e
acirrando um debate nacional que opôs de maneira
antagônica o referido discurso religioso ao discurso
político. Por outro lado, esse discurso acabou encontrando
ressonâncias em outras ocorrências discursivo -
enunciativas, institucionais/oficiais, do Estado brasileiro,
na medida em que o presidente da república tem
reiteradas vezes repetido que o uso da arma se constitui
em um instrumento de garantia de defesa do cidadão.
Nesse ínterim, o que quer que isso possa significar no
contexto social brasileiro (já que não fica claro e por isso
causa estranhamento), liga-se muito mais à violência do
que a qualquer outra dimensão da convivência social.
Por último, podemos dizer que, nesse conjunto de
contradições, se instaura uma arena de grande conflito,
definindo-se exatamente no estranhamento de discursos
enunciados por quem deveria preservar os valores
cristãos, cujo maior bem é a preservação harmônica da
vida.

Referências

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: notas


sobre aparelhos ideológicos de Estado. Introdução
crítica de J. A Guilhon Albuquerque. São Paulo: Graal,
2009.

BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução:
Yara Frateschi Vieira. São Paulo Hucitec, 1987.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar,


2001.

BRASIL. Estatuto do Desarmamento - Lei nº 10.826, de 22 de


dezembro de 2003. Disponível em: https://governo-
sp.jusbrasil.com.br/legislacao/124459 /estatuto-do-
desarmamento-lei-10826-03

JACQUES, Jacson. Fúria e Tradição: Jesus nunca falou


contra armas. 15 de setembro de 2018. Disponível em:

https://www.facebook.com/FuriaeTradicao/posts/3428538
36454658/

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Responsíveis e responsáveis: o ambiente digital como espaço de


embates ideológicos e a constituição do sujeito ético

Loraine Vidigal Lisboa


UFCAT
loraine_vidigal@yahoo.com.br

Temos vivido em um mundo de desenfreada ascensão tecnológica.


Inúmeros dispositivos eletrônicos fazem parte do nosso cotidiano,
alguns são tão imprescindíveis que se estendem ao nosso próprio
corpo. Tablets, smartphones, alexas, notebooks, smartwatches, smart
tvs, consoles, é impossível contabilizar quantos equipamentos temos
à nossa disposição e para o que serve cada um. No ambiente digital,
onde todos esses aparatos nos inserem, infinitas interações ocorrem
entre os sujeitos – de trabalho e estudo a namoros, compras e trocas
de conteúdo – o ambiente virtual digital, hoje, é o espaço da
interação comunicativo-discursiva e, por isso, de embates sócio-
histórico-ideológicos por excelência.
Apesar de incontáveis vantagens que a tecnologia nos trouxe ao
longo do tempo, outra realidade nos acomete: é nesses ambientes
de interação que têm ocorrido e sido incitadas grandes violências
na história moderna do homem contemporâneo: captação de dados
sem autorização dos usuários, interferência em eleições
democráticas, aliciamento e tráfico de pessoas, negacionismo
científico, linchamentos virtuais e escárnios públicos, narcisismo e
exibicionismo nas redes sociais, algoritmos e anúncios
desenvolvidos para controlarem nossos desejos de consumo. Todos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

esses acontecimentos refletem a vida real, não é possível mais


separar o real e o virtual.
Mesmo que alguns autores, tais como Pierre Lévy (2010; 1998),
acreditem que a cibercultura deveria inserir o ser humano em uma
infinitude de conhecimentos – propiciando a chamada inteligência
coletiva – se não houver seleção e filtro dessas informações e
discernimento de como agir sobre elas, tal ideia não passa de uma
utopia. Inseridos no ciberespaço, conceito também discutido por
Lévy (1998), a troca de dados entre usuários conectados via
dispositivos eletrônicos ligados em rede, infelizmente, nem sempre
visa ao bem comum. Nesse sentido, o próprio autor reconhece, em
entrevista dada ao jornal El País[1], em julho de 2021, que “Muitos
não querem ver, mas já éramos muito maus antes que a internet
existisse, pode acreditar” (LÉVY, 2021, online), pois
a partir do momento em que há linguagem, há mentira e há
manipulação. A natureza humana não se transformou, continua
sendo a mesma. Assim, no fundo, essas possibilidades tecnológicas
são como um espelho que nos faz nos refletirmos nele, e ver o
melhor que há em nós… e também o pior. (LÉVY, 2021, online)
Mas será que todas a tomadas de decisão dos sujeitos e tudo o que acontece
nas mídias digitais ocorrem de maneira organizada e consciente ou
estamos à mercê de algo maior que nos leva a determinadas atitudes na
rede? Para o filósofo Byung-Chun Han (2018),
Somos desprogramados por meio dessa nova mídia, sem que
possamos compreender inteiramente essa mudança radical de
paradigma. Arrastamo-nos atrás da mídia digital, que, aquém da
decisão consciente, transforma decisivamente nosso
comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso
pensamento, nossa vida em conjunto. Embriagamo-nos hoje em dia
da mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as
consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez
simultânea a ela constituem a crise atual. (HAN, 2018, p. 7-8)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nesse contexto de estranhamento e imediatismo que as interações


digitais nos colocam, é imprescindível trazer à tona o pensamento
de Bakhtin (2011), ao afirmar que “viver significa ocupar uma
posição axiológica em cada momento da vida” (BAKHTIN, 2011,
p.174). Nesse sentido, mesmo que pareça que estamos sendo
levados por uma onda, por uma força na virtualidade que nos
endereça a determinados caminhos, precisamos entender que nos
posicionamos axiologicamente em todo esse processo,
colaborando, ou não, para o modo como esse ambiente funciona.
Ainda em consonância com o pensamento bakhtiniano, a máxima
de que não há álibi para a existência (BAKHTIN, 2010, p. 154), nos
leva a pensar que as posições tomadas pelos sujeitos – assim como
suas consequências – são suas responsabilidades, são seus atos
responsáveis e responsíveis. Seja na rede virtual, seja na vida
presencial, nos responsabilizamos por nossos atos, inclusive em
espaços em que não é mais possível delimitar fronteiras, tal como
o ambiente virtual. Nesse sentido, o autor afirma que
ser na vida significa agir – eu não posso não agir, eu não posso não
ser participante da vida real. E essa obrigação decorre de eu ser
único e ocupar um lugar único: ocupo no existir singular um lugar
único, irrepetível, insubstituível e impenetrável da parte de um
outro. Sou insubstituível e esse fato me obriga a realizar minha
singularidade peculiar: tudo o que pode ser feito por mim não
poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca. (BAKHTIN, 2010,
p. 154)
Interagimos, enunciamos, pronunciamos nossas vontades e
desejos, corroboramos com determinados posicionamentos e
ideologias, pois
Na sociedade humana, nunca e em nenhum lugar o indivíduo entra
ideologicamente em contato com o mundo e com as coisas, como
um tipo isolado. Sua orientação ideológica em relação ao objeto
sempre está ligada com a orientação em relação à sociedade. É
justamente essa orientação dupla que encontra sua expressão
ideológica na avaliação. (VOLÓCHINOV, 2019, p. 216)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Assim, nos constituímos ética e esteticamente nas relações que se


dão entre o eu e o outro, e o outro comigo, em espaços e ambientes
diversos, presenciais, virtuais, em infindáveis diálogos que se dão
na vida cotidiana, no trabalho, nas relações em geral. Nesse fio
comunicativo-interativo, nos deixamos levar ou não, para o que há
de melhor ou pior em nós mesmos, responsabilizando-nos e
posicionando-nos nos embates ideológicos que toda essa interação
nos suscita, pois
As concepções de mundo, as crenças e mesmo os instáveis estados
de espírito ideológicos também não existem no interior, nas cabeças,
nas “almas” das pessoas. Eles tornam-se realidade ideológica
somente quando realizados nas palavras, nas ações, na roupa, nas
maneiras, nas organizações das pessoas e dos objetos, em uma
palavra, em algum material em forma de um signo determinado. Por
meio desse material, eles tornam-se parte da realidade que circunda
o homem. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 49)
Dessa maneira, o pensamento de Bakhtin e de seu Círculo
instaurou uma dimensão inalterável da responsabilidade ética da
existência humana, não somente a partir da individualidade e da
singularidade dos sujeitos, mas, especialmente sobre o ato ético
como um ato participativo do agir humano em sociedade. O
homem, enquanto sujeito, é responsável por tudo o que pensa, diz
e faz e deve sempre responder por isso. O agir humano exige uma
posição axiológica e ativa no mundo e dela não pode escapar.
Entendemos, portanto, que, independentemente do espaço, seja ele
digital e tecnológico, ou não, o homem, responsável por sua
existência, pelos seus atos, “escolhe” o que fazer, não podendo,
portanto, indicar nenhum álibi para sua existência.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo
Bezerra. 6.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, Mikhail. O homem ao espelho: apontamentos de 1940. São


Carlos/SP: Pedro e João Editores, 2019.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed.
Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética (a teoria do
romance). Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 6ª ed, São
Paulo: Hucitec, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec,
1999.
BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências
humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra;
notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34,
2017.
BAKHTIN, Mikhail.; DUVAKIN, V. Mikhail Bakhtin em diálogo:
Conversas em 1973 com Viktor Duvakin. Tradução de Daniela
Miotello Mondardo, a partir da edição italiana. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2008.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução
de Paulo Bezerra. 6.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010.
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Tradução
de Lucas Machado. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2018.
HAN, Byung-Chul. Hiperculturalidade: cultura e globalização.
Tradução de Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2019
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Tradução de Susana
Alexandria. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do


ciberespaço. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo:
Edições Loyola, 1998.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 3.
ed. São Paulo: Editora 34, 2010.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. 2ª. ed.
São Paulo: Editora 34, 2015.
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. (1928). O método formal nos
estudos literários: uma introdução crítica a uma poética sociológica.
Tradução de Ekaterina Américo e Sheila Camargo Grillo. São
Paulo: Contexto, 2012.
VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaevich. A palavra na vida e a palavra
na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização,
tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019.
VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaevich. (1929) Marxismo e Filosofia
da Linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo
e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2018.

Notas:
[1] Link para acesso: https://brasil.elpais.com/eps/2021-07-
01/pierre-levy-muitos-nao-acreditam-mas-ja-eramos-muito-maus-
antes-da-internet.html Acessado em 07 de setembro de 2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SE NÃO TIVER VOTO IMPRESSO, É SINAL DE QUE NÃO


VAI TER ELEIÇÃO: O GROTESCO NA PALAVRA PÚBLICA
DE BOLSONARO E NA RESPOSTA DE REGIS SOARES

Letícia da Silva Gonzaga Rolim


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
leticialetrasilva@hotmail.com

Marilene Gomes de Sousa Lima


Universidade Federal da Paraíba/ Doutoranda
marilenegomes95@hotmail.com

Desde janeiro de 2019 estamos presenciando o colapso do Brasil. Na


saúde, na educação, na economia, nas relações internacionais e em tantos
outros setores importantes para o desenvolvimento do país. Isso tudo é
fruto de um desgoverno pautado na ignorância, que se elegeu por meio de
mentiras, na base da violência mascarada e da falta de respeito à
humanidade. Ao que parece, todas as vezes que ele fala, evacua por sua
boca uma lama fétida.
Em uma das lives que faz semanalmente na rede social Facebook,
Bolsonaro atacou o sistema de votação brasileiro sem apresentar provas.
Com fundamentos baseados em mentiras, sugeriu em tom autoritário
acabar com o sistema de votação eletrônico. Sustenta a ideia afirmando
que nesse atual formato há fraudes e invasão de hackers para manipular o
resultado do processo. Em uma de suas falas, Bolsonaro disse:
Olha, eu acho que ele é o dono do mundo, o Barroso, só pode ser. O
homem da verdade absoluta, não pode ser contestado. Eu tô preocupado,
se Jesus Cristo baixar aqui na terra ele vai ser boy do ministro Barroso.
Ninguém aceita mais esse voto que tá aí! Como é que vai falar que esse

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

voto é preciso, é legal, é justo e não é fraudado? A única ‘republiqueta’


do mundo, eu acho que talvez a única, é a nossa que aceita essa porcaria
que aceita esse voto, desse voto... eletrônico, isso tem que ser mudado. E
digo mais, se o parlamento brasileiro, por maioria qualificar e três quinto
na câmara e no senado aprovar e promulgar, vai ter voto impresso em
2022 e ponto final. Num vou nem falar mais nada... Vai ter voto
impresso! Porque se não tiver voto impresso, é sinal de que não vai ter
eleição (29/07/2021)

Fonte: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/se-nao-tiver-voto-
impresso-nao-tera-eleicao-diz-bolsonaro-a-barroso/>
Suas afirmações são risíveis. Como assim vai ter voto impresso em 2022
e ponto final? Tanto nesta fala, como em outras, ele apresenta afirmações
sem nenhum fundamento. As provas que dizem ter sobre a suposta fraude
no sistema de votação são baseadas em indícios e fake news que têm
circulado pela internet. Se vemos o grotesco na figura presidencial
dizendo que se não tiver voto impresso é sinal de que também não terá
eleições, é desse grotesco que vemos também, por meio da cultura
popular, na base da força do riso, o embate de divisões de mundo. Do lugar
que parece querer encerrar um único sentido, fechado e sério, emergem
sentidos outros, contrários.
Em resposta a essa fala, o chargista Regis Soares, criou charges como
forma de protestar contra esses dizeres de Bolsonaro. Em meio as
produções de imagens carregadas de sentidos e humor, selecionamos 01
(uma) charge. A imagem foi retirada da conta pessoal do artista
no Instagram para dialogarmos com a categoria do realismo grotesco
proposta por Bakhtin proposta em seu livro Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Se por um
lado notamos na palavra séria de Bolsonaro em tom autoritário, por outro,
vemos por meio da ambivalência do grotesco a visão de mundo através do
riso em Regis Soares.
O grotesco, segundo Bakhtin (2010), é a valorização do baixo corporal
(partes íntimas, ventre e excrementos), e o rebaixamento (transferência de
tudo o que é elevado ou espiritual para o material). Outra peculiaridade do
grotesco é a abundância pela face divertida e festiva de suas imagens. O
riso por meio do grotesco é ambivalente, ou seja, possui um caráter
positivo e negativo, mata o velho e acolhe o novo. Além disso, é
importante destacar a visão carnavalesca do mundo como outro elemento

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

essencial para entendermos o grotesco. Sobre isso, Bakhtin (2010, p. 07)


aponta que, “o carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio
do riso. É a sua vida festiva” (grifos do autor). As festividades possuíam
um sentido importante e profundo, expressavam uma concepção de
mundo, é a própria vida representada.
Com a imagens e palavras do chargista de rua e com Bakhtin queremos
refletir sobre sobre o grotesco dos nossos tempos, na ambivalência, na
subversão do bom gosto e na quebra de padrões presentes em uma
narrativa oficial do presidente e na resposta que representa o povo, com a
linguagem grotesca que rir pelo sentido: Veja! esta é a possibilidade de
um voto impresso. Olha como ele é! Olha de onde ele sai! Está aí: tem o
comprovante impresso, mas olha só o que está escrito no papel que saiu!
BOLSONARO. A figura em papel remete ao excremento evacuado pelo
orifício anal, na linguagem da praça: é merda. Tanto o nome quanto a
possibilidade de um processo de votação proposto por Bolsonaro é
simbolizado pelo excremento. Vejamos a imagem:

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fonte: <https://instagram.com/regischarges?utm_medium=copy_link>
O diálogo estabelecido aqui pretende refletir como o estilo grotesco
apresenta-se nas Charges de Rua, de autoria do chargista, cartunista e
caricaturista paraibano Regis Soares, considerado uma artista de rua por
produzir seus textos e expor em painéis na calçada de seu ateliê, que fica
na cidade de João Pessoa-PB. Por meio deste trabalho, o chargista
apresenta sua contrapalavra, sua indignação, revolta e preocupação com
questões sociais de diversas naturezas.
Em suas produções chárgicas ele faz acusações de forma explícita e sem
nenhuma restrição à política de modo geral e seus representantes, bem
como expõe as polêmicas que são recorrentes no contexto social. É um
trabalho que conscientiza através do riso oriundo de imagens e palavras
grosseiras, mas também provoca reações contrárias à sua forma de ver o

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mundo. Nesse ritmo, Regis Soares vai relatando a vida com humor. Ele é
divertido, sarcástico, debochado e provocador, ou seja, é um crítico
armado de bom humor que usa o riso por meio do ridículo.
Nesta charge notamos uma ambivalência por meio do exagero das
imagens e da seriedade manifestada contra o voto impresso. Observamos
como o autor apresenta uma crítica severa e sua indignação à proposta
retrógrada do presidente do Brasil com relação ao sistema eleitoral que ele
impõe. Regis Soares faz isso através da representação cômica do
comprovante de voto impresso sendo evacuado pelo baixo corporal, um
fisiologismo grosseiro, referindo-se ao fato de que tudo que é excretado
pela bunda é merda. O artista se utiliza do corpo como material usado para
representar o grotesco dos nossos tempos.
Ao criar essa imagem, o chargista, por meio do riso, manifesta a voz de
um povo que luta contra um governo debochado, caluniador e
negacionista, uma parte de uma nação que levanta a voz frente ao
desgoverno instaurado por Bolsonaro. É nas imagens e palavras grotescas
que Regis Soares encontra uma forma de, por meio do riso, dizer sua
concepção do mundo. Como diz Bakhtin (2010, p.57), olhar o mundo por
meio do riso não significa olhá-lo sem seriedade, “somente o riso, com
efeito, pode ter acesso a certos aspectos extremamente importantes do
mundo”.
Por mais que se busque uma palavra com um tom sisudo para rebater estas
palavras de Bolsonaro, acreditamos que somente pela via do riso que se
utiliza do material do baixo corporal é possível exprimir o que significa
essa palavra autoritária e uma forma escapar dela É preciso fugir dessa
linguagem que se faz séria, que impõem medo Olha, se não tiver voto
impresso é sinal de que não vai ter eleições. Essa linguagem oficial quer
intimidar, mas é por meio de imagens como a apresentada acima que
subvertemos, é dela que surge a renovação e a “vitória sobre o medo” e é
sobre esse chão que uma parte significante do povo brasileiro quer pisar
para termos o Brasil de outros tempos.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateshchi Vieira. São Paulo: Haucitec, 2010.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sem dose e sem dó: o retorno das aulas presenciais dentro do


contexto pandêmico

Lygia Nascimento de Almeida


Unicamp
lygia.almeida@hotmail.com

Gisele Teresa Medeiros Tanaka


Profª Educação Infantil
giseletanaka@hotmail.com

A partir dos estudos e reflexões tecidos no GruBakh - Grupo de Estudos


Bakhtinianos - e respaldadas nos textos de Bakhtin: O autor e a
personagem na atividade estética, Para uma filosofia do Ato
Responsável e Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O
contexto de François Rabelais; vemos a apresentação do corpo como
objeto ideologicamente saturado, porém, inacabado quando submetido a
movimentos axiológicos da relação entre sujeitos, pois é o outro que me
confere com o excedente de visão - conhecimentos que desconheço sobre
mim. Então, buscamos tecer relações das vivências em nosso lugar de
docência neste contexto de Pandemia de Covid-19 com o grotesco dos
nossos tempos. No contexto escolar, em que uma professora leciona na
escola particular nos anos iniciais do Ensino Fundamental, no município
de Sorocaba e a outra leciona na rede municipal de Campinas, atuando na
Educação Infantil.
A primeira narrativa relata uma situação vivida pela professora Lygia no
retorno às aulas com seus alunos na forma presencial.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O retorno às aulas presenciais ainda em período de pandemia


Assim que entro na escola, escuto o barulho das crianças e cada vez que
me aproximo o barulho aumenta e quando chego no pátio vejo a multidão
de crianças!! Uma mistura de alegria e emoção toma o meu coração, poder
retornar estar ao lado das crianças é reconfortante, o início de um novo
trabalho com muita esperança! Como Paulo Freire que nunca perdeu a
esperança na educação, mesmo passando por períodos difíceis que o
levaram ao seu exílio.
Os estudos que realizamos no Grubakh me trazem uma perspectiva onde
a interação com o outro nos constitui e sinto que agora vamos aos poucos
descobrir e aprender novas formas de conviver, pois ainda não podemos
nos aproximar como gostaríamos, não nos é permitido o toque, o afago,
beijos e abraços, mas estamos juntos e nessa relação vamos construir
novos caminhos que nos levarão novas formas de interação.
De repente um pouco de angústia me toma, porque ainda estamos
passando por momentos difíceis, muitas mortes causadas pelo Covid-19 e
a pandemia que continua, passei por essa doença e sei o quanto ela é
devastadora e pode ser fatal. Ainda estamos apreensivos quanto à
pandemia que ainda não foi superada, mas temos uma forte aliada que é a
vacina desenvolvida pelos nossos pesquisadores e cientistas que nos
trouxeram esse benefício que é um grande alívio, porém ainda não estão
todos vacinados, infelizmente. Nesse momento me dei conta de que não
estou imunizada totalmente, pois só tomei a primeira dose.
Quando chego no pátio e olho aqueles olhares tão felizes e corpos
moventes e agitados por me ver, e eu também, por vê-los depois de um
longo período distante e de contato apenas remoto, algumas vozes e
olhares não consigo reconhecer de imediato, pois a máscaras não me
permitem.
Então, esqueço por alguns momentos do medo e terror que esse vírus me
causou e ainda me causa. E sou envolvida por outra energia, uma vontade
enorme de ensinar e aprender com as crianças, outro conceito de Paulo
Freire (1996) que trago na minha bagagem de retorno escolar, onde a
dobra do “aprender-ensinar” é um movimento duplo de quem aprende e
ensina, e ao aprender nos ensina a ensinar.
Vamos juntos para a sala e lá conversamos sobre as férias, o tempo que
passamos longe e novamente o assunto da Pandemia volta na minha

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cabeça... É como se fosse um pesadelo que nos rodeia, uma sombra que
não vai embora.
Neste retorno os sentimentos se misturam, angústia, alegria, tristeza e
olhos que dizem além do que querem dizer com palavras... até que deu a
hora do lanche, conversamos mais uma vez sobre as regras de
distanciamento, o uso de máscara e os protocolos para que todos fiquem
seguros e descemos lanchar.
Quando entro na sala dos professores revejo minhas amigas, conversamos
sobre nossas expectativas de retorno, dividimos nossos anseios,
partilhamos algumas dificuldades entre outros assuntos também
pandêmicos.
De repente uma das professoras me chama de lado, porque ela dá aula para
o irmãozinho menor da minha aluna e me diz que encontrou com a mãe
das crianças nas férias e conversando sobre a pandemia, a mãe relata que
seus filhos, também pegaram o vírus, porém não apresentaram sintomas.
O mais interessante nessa conversa é que as crianças foram o mês de junho
inteiro para escola... (pausa e suspiro entre nós... cara de espanto a minha).
Eu indignada exclamei pra minha amiga:
— Como assim? Quer dizer que ela enviou as crianças para escola mesmo
sabendo que estavam com covid?
— Sim, mas ela me disse que não apresentaram sintomas.
— (sem legenda)
Esse posicionamento da mãe, e sua atitude para com os outros reverbera
nos estudos realizados das categorias do eu-para-mim, do eu-para-o-outro
e do outro-para-mim em Bakhtin (1992-2011). O meu excedente de visão
me diz que essa mãe não mensura a gravidade do seu ato quando envia as
crianças para escola diagnosticada com o vírus, porque esse vírus tem um
alto poder de contágio e o que me afeta também afeta o outro.
Penso também na minha amiga que não consegue reagir a essa fala e
atitude da mãe talvez, por ser tomada pelo sentimento de indignação.
Fazendo uma aproximação com o grotesco no qual estamos estudando a
Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin (2013)
procura fazer um grande estudo do diálogo entre a linguagem popular e a
cultura em que estava inserida.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Desse modo, me permito fazer um paralelo trazendo o grotesco para essa


nova realidade escolar onde temos a esperança nas crianças que atendem
os protocolos de prevenção usando máscara e mantendo o distanciamento
entre a professora e amigos, sabendo a necessidade de que temos que nos
proteger porque ainda estamos vivendo a sombra de uma pandemia e por
outro lado, a atitude da mãe que ignora todo esse protocolo colocando
seus interesses acima de qualquer outra coisa. Os dois mundos estão
presentes.
Será que essa mãe não está ancorada no discurso do nosso atual
(des)governo, que desde o início ignora o vírus debochando dos
acontecimentos, minimizando o avanço do vírus e a tragédia que o mesmo
vem causando no mundo todo, diminuindo suas reais causas a ponto de
chamá-lo de uma simples “gripezinha”?
Em seguida temos a narrativa da Professora Gisele, trazendo mais um
pouco desse grotesco, como esperança, a partir do cotidiano escolar, em
contraste e no seio da mesma família em que há total aceitação das
instruções do discurso oficial, acentuado em tempos pandêmicos.

Sem o teu abraço...


O medo é gigante, a necessidade de controle tem que ser maior, pois é
necessário controlar tudo para garantir a segurança de todos e também não
perder o controle do medo. É nesse cenário que retornamos ao trabalho
presencial nas escolas, e quem é educador já sabe que o medo e controle
são coisas que não cabem quando estamos com as crianças.
Por mais que eu conversasse com o meu medo, tentando controlá-lo,
colocar limites, para ele não perceber que estava ganhando terreno, nada
surtia efeito, ele ficava cada vez maior. Sabe por quê? Tudo que eu falava
pra ele, tentando convencê-lo de que estava tudo bem, pois eu seguiria
todos os protocolos de segurança, ele me olhava com cara de zombação,
até mostrava a língua, pois tinha convicção de que todos os cuidados eram
inúteis diante ao descontrole da Pandemia.
Mesmo assim, a adulta da relação era eu, então o tranquei em casa e fui
pra escola. Era o primeiro dia do retorno, em que as crianças ficariam sem
a presença de um familiar. Eis que chega outra amiga, a tal da ansiedade.
A minha criança, que a mãe disse que não queria retornar, conta que nem
dormiu, estava muito ansiosa pra voltar pra escola!! O outro pequeno, era
a sua primeira vez na escola e a primeira vez sozinho, sem os pais, ele mal
conseguia ficar sentado, queria ver tudo, até falava sozinho. O mais

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tranquilo era o Tutu, mais velho, filho único, sem contato com crianças,
pois é a única criança da família e da rua onde mora, ele demonstrava ter
deixado a ansiedade em casa, pra aproveitar cada momento presente.
Depois de uma curta conversa, explicando como seria o brincar lá no
parque, pois os espaços estavam divididos e nós poderíamos ficar com a
turma da Borboleta, que tinha uma criança. Apresentei o livro Cozinhando
no Quintal, as lindas fotos de pratos, escolhemos alguns utensílios de
cozinha para levar ao parque, onde cada criança montaria a sua cozinha
pra fazer seus pratos favoritos com os ingredientes da natureza, presentes
no nosso quintal.
Fomos caminhando para o parque, quando avisto uma criança correndo
em direção à minha Maria, ela estava de braços abertos, pronta para um
abraço, dizia “Amiga, amiga”; enquanto penso que linda, a Maria abre os
braços e se prepara para receber a amiga. Olho para a professora que está
preparando o fogão e parece não ouvir. Eis que eu, logo atrás da Maria,
falo com a voz trêmula, “Não, não meninas. Não pode abraçar, por favor.”.
As duas narrativas nos possibilitam vivenciar o grotesco dos nossos
tempos de Pandemia de covid-19. Embora nossa atuação seja em redes e
municípios distintos, nossos relatos trazem experiências marcadas pelas
ações de nossas crianças no cotidiano, nos revelando o grotesco no uso
das máscaras, porém com alegria, mesmo diante de protocolos sanitários
que cerceariam suas expressões de liberdade, porém tomadas pelo não-
álibi elas têm o posicionamento de manter o uso das máscaras respeitando
o coletivo.
O outro é essencial para a nossa constituição como sujeito, pois nos
confere o acabamento, nos completando em nossa totalidade. Portanto, na
filosofia Bakhtiniana, na nossa relação com o corpo devemos considerar a
liberdade inseparável da responsabilidade ética, pois o conceito de não-
álibi nos confere o posicionamento axiológico, irrepetível do nosso lugar
único de sujeitos. Por mais duro que seja, mesmo com a voz trêmula, a
professora para garantir os protocolos de segurança à Covid-19 impede o
abraço das crianças. O mesmo respeito à liberdade do outro não são
assumidos pela mãe da primeira narrativa, colocando em risco a vida das
crianças da turma, da professora e da comunidade escolar.
As máscaras que nos impedem de deslumbrar o sorriso das crianças, são
elas que nos marcam e nos protegem contra esse vírus tão letal e nos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

projetam para Esperançar, divergente das máscaras sociais, das máscaras


de violação da liberdade e do direito do outro.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In:


Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
________. Para uma filosofia do Ato Responsável. Tradução de Valdemir
Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores,
2010
________. Estética da criação verbal. 5ª ed. São Paulo: Editroa WMF
Martins Fontes, 2011.
________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
_______. Educação como prática da liberdade. 40. ed. Rio de Janeiro/ São
Paulo, Paz e Terra, 2017.
TEIXEIRA, Marília. Considerações sobre o corpo em Mikhail
Bakhtin. Voluntas. Revista Internacional de Filosofia, capa, volume 10, n
1, 2019. Disponível
em: https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/view/36662/html. Acesso
em: 16 ago. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SEXUALIDADE NA EDUCAÇÃO: O DISCURSO GROTESCO


SOBRE A SEXUALIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
INTELECTUAL

Angélica Bittencourt Galiza


UEPA
angelicagaliza@yahoo.com.br

Ronielson Santos das Merces


UEPA
roniuepa2020@gmail.com

Este trabalho nos remete ampliar o debate sobre a sexualidade de pessoas


com deficiência intelectual em várias esferas da sociedade brasileira -
como as escolas, a família e espaços não formais de educação, no âmbito
do público e do privado – os quais compreendemos que sejam o ambiente
para se discutir quanto uma ação dialógica de resistência e privação da
sexualidade, percebendo nas narrativas como os alunos e as alunas com
deficiência intelectual têm descoberto e vivenciado a sua sexualidade.
Assim, o que defendemos é que esses sujeitos sejam vistos como seres
humanos que têm direitos sexuais comuns a pessoas sem deficiência, que
não podem ser repelidos, mas sim orientados em tratar e respeitar seu
corpo, bem como, o corpo do outro.
Defendemos que a sexualidade humana é uma das dimensões
fundamentais na vida humana. Não podemos ver uma pessoa ou uma
cultura sem que vejamos também a sua sexualidade (VIDAL, 2017). A
pessoa com DI, como todo ser humano, vivência as mesmas mudanças
corporais, sexuais, psíquicas, afetivas, dentre outras e tem seus desejos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sexuais, ainda que sejam diferentes. Todos têm a necessidade de expressar


os seus sentimentos (FERNANDES; OLIVEIRA, 2017).
A sexualidade é constituída pela subjetividade da pessoa com e sem
deficiência, que ocorre nos momentos de prazer, como abraços, toques,
carícias, beijos, trocas de olhares, sofrer por amor, manifestando os seus
impulsos e desejos sexuais no contato com o outro, superando a lógica da
sexualidade como perfeição do ato reprodutivo. A lógica da estruturação
física do sexo como ato sexual reprodutor resvala na sexualidade como
um fato objetivo da condição humana, ocasionado pela contextualização
histórica que entende que as pessoas sem deficiência atendem as
expectativas de reprodução sexual biológica.
Grande parte da literatura a respeito afirma que pessoa com deficiência é
vista como pessoa desprovida de seus desejos, impulsos e manifestações
sexuais, construindo-se socialmente imaginário que a pessoa com
deficiente é dicotômica: os seus comportamentos sexuais expressados não
correspondem a sua condição de deficiência, quer dizer, as mesmas não se
comportam de forma análoga a pessoas sem deficiência em suas
características sexuais.
Maia (2010) afirma que é comum ainda hoje as pessoas com deficiência
serem vistas como assexuadas ou desprovidas sexualmente, por causa da
noção errônea de que as pessoas com DI são incapazes de expressarem sua
sexualidade de modo adequado, saudável, prazeroso e afetivo aos padrões
impostos pela sociedade. Os comportamentos sexuais considerados
socialmente inadequados, resultantes estes da ausência de uma educação
sexual que, de fato, atenda as dificuldades de pessoas com DI, acontecem
mais por motivos psicológicos e sociais – autoestima, timidez, inabilidade
social, preconceito e socialização restritiva – do que orgânicos,
relacionados à deficiência ou as síndromes.
Denari (2002) propõe que façamos o papel de educadores reflexivos
acerca do tema da sexualidade das pessoas com DI, seja na escola ou
sociedade, para que possamos ampliar as redes de diálogos para entender
tal assunto polêmico, confuso e estigmatizados nas esferas públicas e
privadas, causando provocações polissêmicas do que vem ser entendido
como restrições, limitações e proibições impostas às pessoas com DI.
O trabalho de uma educação sexual voltada para as pessoas com DI na
escola é fundamental para o desenvolvimento e o comportamento sexual,
possibilitando novas posturas no que corresponde a novas estratégias
pedagógicas a serem adotadas, visando ao trabalho de educação sexual

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

efetivo e, concomitantemente, à formação dos pais para assumirem as


responsabilidades sociais que têm de dialogarem sobre a constituição
sexual.
Por isso, quanto ao grotesco, Sodré e Paiva (2002, p.40) esclarecem que
[...] o grotesco é aí, propriamente, a sensibilidade espontânea de
uma forma de vida. É algo que ameaça continuamente
qualquer representação (escrita, visual) ou comportamento
marcado pela excessiva idealização. Pelo ridículo ou pela
estranheza, pode fazer descer ao chão tudo aquilo que a ideia
eleva alto demais.
Pensar na relação do grotesco e a educação da pessoa com deficiência e
de outros grupos sociais discriminados é pensar que a
[...] a palavra “grotesco” presta-se a transformações metafóricas,
que vão ampliando o seu sentido ao longo dos séculos. De um
substantivo com uso restrito à avaliação estética de obras-de-arte,
torna-se adjetivo a serviço do gosto generalizado, capaz de
qualificar — a partir da tensão entre o centro e a margem ou a partir
de um equilíbrio precário das formas — figuras da vida social como
discursos, roupas e comportamentos (SODRÉ; PAIVA, 2002, p.30).
Nesse sentido, pretendemos, resgatar demarcações conceituais do
grotesco, sexualidade das pessoas com deficiência sobre as manifestações
e vivências sexuais do DI no contexto escolar, especialmente, quanto aos
espaços públicos e privados e quanto as ações dialógicas de resistência.
Dessa forma, objetivamos articular esses conceitos com abordagem
metodológica para compreender as manifestações sexuais e sociais,
sobretudo, os conflitos e tensões existentes na fronteira desses espaços –
do público, do privado e, também, da ação dialógica de resistência na
constituição da sexualidade da pessoa com DI.
No dizer de Ponzio (2016, p. 159), “Bakhtin chama de ‘ideologia
cotidiana’ o discurso interior e exterior que acompanha o comportamento
prático”, e que, do ponto de vista da tensão entre a ideologia cotidiana e a
oficial em uma sociedade na qual a contradição de classe não existe ou é
reduzido ao mínimo,
não existe nenhuma quebra entre ideologia cotidiana e ideologia
oficial, ao ponto de não existir uma distinção entre oficial e extra-
oficial no plano ideológico. [...] nas camadas mais altas [...]

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

apresenta-se em uma relação de adequação e, no máximo, de


identificação com a ideologia vigente nas instituições, impostas pela
classe dominante; nas camadas mais baixas a ideologia cotidiana vai
aos poucos se destacando da ideologia oficial até resultar em pleno
contraste com essa (PONZIO, 2016, p. 159).
Cabe ressaltar que a ideologia do cotidiano é, portanto, o elo entre a
infraestrutura econômica e os sistemas ideológicos constituídos, que
ocorre por meio da linguagem verbal, dos signos verbais, pois estes estão
presentes em todos os lugares na sociedade e neles se expressam todas as
mudanças que ocorrem na sociedade. Esse pensamento nos faz refletir que
os alunos com DI, independente de sua classe social, sofrem as mesmas
repressões e preconceitos vigentes na sociedade, considerando que o
princípio religioso é predominante, não importando a classe do indivíduo.
No que se refere à sexualidade da pessoa com DI, Assumpção e Sprovieri
(1987) nos esclarecem aspectos relacionados como a falta de autocrítica,
que, associada aos fortes mecanismos repressivos resultantes da
defasagem cognitiva, fazem com que a sexualidade seja vista como um
distúrbio de conduta na sociedade, cuja repressão acaba se tonando mais
forte do que com as demais pessoas. Nesse sentido, é preciso desconstruir
o pensamento que se propaga na sociedade de que as pessoas com DI são
desprovidas sexualmente ou tem a sua sexualidade exacerbada, pois toda
e qualquer manifestação sexual dessas pessoas é vista como um distúrbio.
Acreditamos que sejam julgamentos que ocorrem tanto na família, quanto
na escola, por serem frutos desse processo repressivo que se torna
historicamente estruturado na sociedade. Permitindo-nos fazer uma
reflexão crítica da visão cristã sobre a deficiência, que atribuiu o rótulo
ora de anjo, ora possuído de espírito demoníaco, que não controla os seus
impulsos sexuais (DENARI, 2006).
Concordamos com Lipp (1988), quando diz que o desenvolvimento físico
da pessoa com DI ocorre de forma natural, semelhante ao de outras
pessoais sem deficiência, e que fatores, como alterações hormonais e
maturação dos órgãos genitais, também não diferem da faixa etária de
quaisquer outras pessoas, como a puberdade, que é marcada por mudanças
físicas e psicológicas que interferem no comportamento dos jovens e
adultos. Assim, quanto maior a dificuldade de compreensão dessas
mudanças, maiores serão as dificuldades por parte destes adolescentes e
adultos, bem como de seus familiares ao lidarem com a sexualidade.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Denari (2006) aponta que tal discussão vem, em nossa sociedade, sempre
acompanhada de preconceitos, tabus e práticas repressivas, que partem
muitas vezes de alguns pais e responsáveis das pessoas com DI, que
acabam não percebendo as necessidades sexuais dos filhos e filhas, vendo-
as como imaturos ou como eternas crianças. Em geral, focam nas
expressões sexuais inadequadas e no medo da exploração sexual, no receio
de que pessoas mal-intencionadas se aproveitem da “ingenuidade” dos
seus filhos e filhas. Tal concepção sobre essa infantilização é reforçada
pelos estigmas decorrentes dos testes de Quociente de Inteligência (QI),
que alegam a idade mental de jovens com DI como a de crianças, por
exemplo, o que faz com que constantemente nos deparemos com jovens e
adultos trajando roupas infantis, sendo então estimulados a se comportar
como tal.
Nesse sentido, Glat (2007) diz que o medo de que a inocência dos filhos
e das filhas acabe pode levar muitos pais a não querer que eles recebam
educação sexual, mas a autora considera que o isolamento e a falta de
esclarecimento sobre a sexualidade levam o DI a comportamentos
considerados socialmente impróprios. Assim, ao mesmo tempo em que os
pais desejam que o filho e a filha possam agir de uma forma autônoma,
também, os impedem de realizar ações possíveis para sua idade e que
contribuem para as dificuldades de tal autonomia. São questões como
estas que impedem a sexualidade das pessoas com deficiência intelectual.
Assim, a problemática parece estar em impedir a sexualidade dos jovens
e adultos, reduzindo-a a algo proibitivo no âmbito privado – da casa –, no
âmbito público – da escola –, isto é, reconhecermos que há necessidade
também de rompimentos paradigmáticos no âmbito das relações humanas
como uma ação dialógica de resistência e discutir a proibição da
sexualidade da pessoa com deficiência para reconhecer esses sujeitos nos
diversos espaços que participam e atuam.

Referências
ASSUMPÇÃO, F. SPROVIERI, M. H. Sexualidade e deficiência mental.
São Paulo: Editora Moraes, 1987.
DENARI, Fatima Elizabeth. Sexualidade e deficiência mental: reflexões
sobre conceitos. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 8, n.
1, p. 9-14, 2002.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

_______, Fatima Elizabeth. A adolescência e deficiência mental:


desvelando aspectos de afetividade e sexualidade. In: MARTINS, Lúcia
de Araújo Ramos et al (Orgs). Inclusão: compartilhando saberes.
Petrópolis-RJ: Vozes, 2006, p. 191 – 205.
FERNANDES, A. P. C. S.; OLIVEIRA, I. A. Práticas Pedagógicas com
Jovens e Adultos com Deficiência Intelectual: Limites, Desafios e
Possibilidades. In: CAIADO, Kátia.R.M.; BAPTISTA, C. R.; JESUS, D.
M.de (Orgs.). Deficiência Mental e Deficiência Intelectual em Debate.
Uberlândia: Navegando Publicações, 2017, p. 287 – 302.
MAIA; RIBEIRO, P. R. M. Desfazendo mitos para minimizar o
preconceito sobre a sexualidade de pessoas com Deficiências. Revista
Brasileira de Educação Especial, Marília, v.16, n.2, p.159-176, Maio -
Ago. 2010.
GLAT, R; F, Rute C. F. Sexualidade e deficiência mental: Pesquisando,
refletindo e debatendo sobre o tema. 7. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
88 p.
LIPP, M. N. Sexo para Deficientes Mentais: sexo e excepcional
dependente e não dependente. 4. ed. São Paulo: Cortez,1988.
PONZIO, Augusto. No círculo com Mikhail Bakhtin. São Carlos: Pedro &
João editores, 2016.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do Grotesco. Rio de Janeiro:
Editora Mauad, 2002.
VIDAL, Haroldo. Crianças e sexualidade: saberes-fazeres produzidos
dentro e fora das escolas. Vitória, ES: Cousa, 2017.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SIGNO E SINAL NO ENSINO DA PALAVRA: o grotesco


pedindo espaço na aula de Língua Portuguesa do 2º ano do
Ensino Fundamental

Daniele Aparecida Russo


Universidade Estadual Paulista - UNESP
danirusso1@hotmail.com

“Um sinal puro não existe nem nas fases iniciais da aprendizagem de uma
língua” (Volochinov, 2017, p.179)

Em pesquisa de doutorado em Educação que


objetivou compreender como se dão as relações alteritárias formadoras do
pequeno leitor nos anos iniciais do Ensino Fundamental, observei
dezenove situações educativas. Para este texto, elegi uma observação de
aula de Língua Portuguesa. Ao observar a prática cotejando-a com os
fundamentos teóricos da filosofia da linguagem, a realidade investigada
em aulas em uma turma do 2º ano do Ensino Fundamental de uma escola
municipal do interior paulista, permitiu-me um olhar atento, do meu lugar
singular e irrepetível de pesquisadora, aos enunciados dos sujeitos
participantes da pesquisa, a fim de estabelecer relações de trocas com eles
ao mesmo tempo em que observei as relações presentes entre eles próprios
e os materiais envolvidos do processo de ensino e aprendizagem do ato de
ler. A importância de pesquisar e estudar as relações alteritárias ocorridas
no processo do ensino e da aprendizagem do ato de ler está na formação
da consciência por meio linguagem. A consciência ganha existência ao se
encarnar nos signos ideológicos, estes que se formam no processo de
interação social, nas trocas que acontecem no grupo social organizado.
Baseada na filosofia da linguagem, afirmo que o signo ideológico é o
formador da consciência quando inserido nas relações sociais.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Alfabetizar ultrapassa o objetivo de formar cidadãos, como muito ouvimos


nas falas oficiais do governo, refletidas e refratadas nas falas dos próprios
educadores. Mas ensina-se e alfabetiza-se a criança para que ela se
desenvolva, sobretudo, como ser humano. É, fundamentalmente pela
educação humanizadora que milito e o restante (inclusive ser cidadão) será
consequência. O objetivo do ensino da linguagem escrita precisa ser como
instrumento de humanização e não para formar o homem econômico para
cumprir determinadas tarefas na hierarquia social. Ao contrário, a
linguagem precisa ser considerada como instrumento histórico, cultural e
social de humanização, de formação da consciência. Isso se dá nas trocas
interpenetráveis dialogicamente entre o psiquismo e a ideologia. E a
palavra é a mediação mais apurada entre os signos ideológicos nas trocas
constituidoras da consciência.
Diante da importância da linguagem para o desenvolvimento humano,
vejamos como ela é trabalhada em sala de aula a partir de uma observação
de aula de Língua Portuguesa ocorrida em maio de 2019.
A consciência do sujeito falante, segundo Volochinov (2017, p.176-177),
não opera com a língua como um sistema de formas normativas e idênticas
– aspecto da forma que permanece o mesmo em todos os casos do seu uso
por mais variados que estes sejam – pois esse sistema é apenas uma
abstração. Ao contrário, o falante direciona-se a um enunciado concreto
dito por ele. Portanto, para ele, não se trata da aplicação de uma forma
normativa em uma situação real, porque o foco para ele não se encontra
na forma, mas no sentido dado por ele na situação concreta extraverbal.
Sendo assim, “para um falante, a forma linguística é importante não como
um sinal constante e invariável, mas como um signo sempre mutável e
flexível. ” (VOLOCHINOV, 2017, p.177).
Vejamos o estudo da palavra na aula observada:

A proposta pedagógica era o “Estudo da Palavra”, este estava escrito em


caixa alta na lousa – como todo o conteúdo escrito na lousa e nos cadernos.
Na lousa, inclusive, a professora traça linhas para aproximar-se das
páginas dos cadernos dos alunos na expectativa de que compreendam
quando é para pular linha, por exemplo, e façam uma “boa” cópia.
Para o estudo da palavra, a palavra escolhida foi “rendinha”[1]. Esta foi
desmembrada em letra inicial, letra final, vogais, consoantes e sílabas.
Abaixo, o registro apontava para a escrita de palavras com “nha, nhe, nhi,
nho, nhu. ” A professora veio até mim para justificar a ausência de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

palavras com a sílaba “nhi” porque ninguém soube, então, iriam pesquisar
posteriormente. (Aula de Língua Portuguesa, 19/05/19, 23 alunos, 1
professora).

Questionei-me imediatamente: “qual o sentido da palavra “rendinha”?


Quais os sentidos de desmembrá-la? A escolha da palavra é feita pela
professora, qual a real participação e envolvimento das crianças em tarefas
como essa? ”.
A principal tarefa da compreensão não se reduz ao momento de
reconhecimento da forma linguística usada, assim como se reconhece um
sinal no qual não se está habituado a ver, por exemplo. “(...) A tarefa da
compreensão não se reduz ao reconhecimento da forma usada, mas à sua
compreensão em um contexto concreto, à compreensão da sua
significação em um enunciado”. (VOLOCHINOV, 2017, p.178).
O processo de compreensão, portanto, não pode ser confundido com o
processo de reconhecimento, processo esse presente na aula observada.
Eles são diferentes porque somente um signo pode ser compreendido,
enquanto o sinal é reconhecido. O sinal é imóvel e unitário, como o
descreve Volochinov (2017, p.178) e não substitui, reflete ou refrata nada,
mas é “simplesmente um meio técnico através do qual se aponta para
algum objeto (definido e imóvel) ou para alguma ação (também definida
e imóvel!) ”. Nunca o sinal será relacionado a ideologia, pois ele é parte
dos objetos técnicos. Então desmembrar a palavra “rendinha” não é
ensinar a palavra como signo, mas é ensiná-la como sinalidade.
Neste caso, a professora organizou a aula baseada no ensino tradicional
com a abstração da língua. Aparentando, convencionalmente, uma aula
organizada e estruturada com objetivo de alfabetizar os alunos, ensinando
que as letras se estruturam em sílabas e estas, por sua vez, formam as
palavras que serão oralizadas em sílabas para o ensino e a aprendizagem
do ato de ler. Na contramão, há uma necessidade de um ensino organizado
com os enunciados vivos e concretos os quais convidam de fato os alunos
para entrar na aula com suas vidas imersas na dialogia, ouso chamar o
trabalho não convencional em sala de aula de grotesco. Pois ao levar a
linguagem viva nos signos, ultrapassa a organização do ensino tradicional
com a abstração da língua, desvirtuando o convencional.
O termo grotesco, segundo Bakhtin (1987), teve sua origem “em
movimento interno da própria existência”. Encontrada no século XV nas

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

termas de Tito, em Roma, denominada grottesca devido ao


substantivo grotta (gruta), uma pintura reunia representações de vegetais,
animais e humanas que se transformavam e se confundiam entre si.
Grotesco passou a exprimir a “transmutação de certas formas em outras,
no eterno inacabamento da existência”. Para Bakhtin “o motivo
ornamental romano era apenas um fragmento (um caco) do imenso
universo da imagem grotesca que existiu em todas as etapas da
Antiguidade e que continuou existindo na Idade Média e no
Renascimento”. (BAKHTIN, 1987, p.28-29).
Por grotesco quero referenciar a fascinação de Bakhtin com o corpo
grotesco na obra sobre Rabelais. Grotesco na visão da carnavalização
proposta por Bakhtin, permiti libertação das relações hierárquicas de
poder, rompimento de regras e tabus, sem privilégios, há possibilidade de
inversão e desobediência do que é oficial e alternativa de relativizar
verdades e poder. (GEGE, 2013, p.21).
Partir da discussão ainda que breve sobre esse conceito bakhtiniano,
voltamos a observação da aula de Língua Portuguesa. Uma forma
linguística não será compreendida enquanto ela for apenas um sinal para
aquele que a reconhece, a epígrafe deste texto explicita fundamentalmente
essa ideia. O sinal puro, isolado, não pode existir “nem nas fases iniciais
da aprendizagem de uma língua. Mesmo nesse caso, a forma é orientada
pelo contexto e se constitui em um signo, embora estejam presentes sua
natureza de sinal e o momento do seu reconhecimento. ”
(VOLOCHINOV, 2017, p.179).
A compreensão é constituída no sentido dado à palavra, ou seja, a sua
orientação em determinado contexto e em dada situação, orientação dentro
do processo de constituição e não o reconhecimento orientado na
existência imóvel. Portanto, a sinalização corresponde ao momento do
reconhecimento do sinal, este que existe, mas é eliminado dialeticamente
e consumido pela característica do signo, da linguagem concreta. Para o
leitor é a compreensão que proporciona o reconhecimento do sinal e não
o inverso.
A essência da metodologia de ensino escolhida pela professora priorizou
o sinal e o reduziu à apresentação aos alunos da forma linguística apenas,
palavra descolada da vida. A palavra retirada do contexto, anotada na
lousa ou no caderno, desmembrada em sílabas ou letras e decorada de
acordo com sua significação (como se encontra no dicionário), torna-se
uma palavra cadáver, pois prioriza-se a língua morta. Assim passa a ser
somente objetiva e estagnada enquanto no processo de sua compreensão,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ao contrário, passa a prevalecer o reconhecimento dela a partir do sentido


recebido pelo sujeito que fala, lê ou escreve. Portanto, para que haja ensino
e aprendizagem, “na metodologia de ensino prática e funcional, uma
forma deve ser assimilada não como idêntica a si nem no sistema abstrato
da língua, mas na estrutura de um enunciado concreto, como um signo
mutável e flexível. ” (VOLOCHINOV, 2017, p.180).
A palavra está sempre encharcada de tons axiológicos, de conteúdo
ideológico e cotidiano e é apenas essa palavra que pode ser compreendida
e responsiva. Palavra essa que poderia ter sido objeto de estudo na aula de
Língua Portuguesa observada, mas o que concluo é que quando as práticas
de ensino da linguagem escrita são demasiadamente escolarizadas e
desconexas da realidade concreta, onde a língua morta é o objeto de
ensino, as crianças não assumem posição responsiva e, consequentemente,
não aprendem.
Ouso concluir que enquanto o corpo clássico (ensino tradicional com a
língua morta, em que se priorizou o sinal) tem como características a
perfeição, imutabilidade e acabamento, o corpo grotesco (trabalho com
enunciados vivos e concretos, em que os alunos têm vozes – trabalho com
o signo) está em processo de devir e de inacabamento.
Referências:
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo/
Brasília: Hucitec/UnB, 1987.
GEGe, Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. Palavras e
contrapalavras: glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin.
São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (1929).
Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo:
Editora 34, 2017.
Notas:
[1] A justificativa dada pela professora sobre a escolha desta palavra é que
ela compõe a letra da música “O sapo cururu”, trabalhada em aulas
anteriores.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sobre o grotesco na voz de uma educadora em tempos de


pandemia

Zelia Inez Lazaro Rodrigues


UNESP Marília
zeliailr@gmail.com

Fomos transportados de forma desavisada a um festival de horrores e


desarmonia frente a crise mundial desencadeada pela pandemia da covid-
19. Como se esta não bastasse, em meio a tantas situações que exigiram
de todos e cada um de nós a busca incessante pela resiliência e esperança,
escavadas no mais profundo de nossos corpos e almas, eis que surge o
realismo grotesco das ações de nossos governantes, conturbando e
fragilizando de modo contundente a vida do povo brasileiro.
Perdoem-me o descontentamento que por ora em mim se apresenta, são
marcas profundas de um processo vivido, como disse Guimarães Rosa, em
Grande Sertão Veredas, “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim:
esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que
ela quer da gente é coragem”.
Ora, pois o que não nos faltou foi coragem, acordamos dentro das escolas
protegidos por nossos cotidianos fugazes e adormecemos com as escolas
fechadas mediante o processo emergencial de ensino se impondo a todos.
Uma solução necessária sanitariamente para salvar vidas, mas totalmente
desorganizada e como não poderia deixar de ser injusta, descortinando a
enormidade das desigualdades sociais presentes em nossos “Brasis”
dentro de um Brasil, extenso, diverso, multicultural, desunido. Em uma
expressão máxima de falta de alteridade, nas mãos de líderes, em todas as
esferas, presenciamos diariamente os discursos e decisões daqueles que
vestiram a máscara grotesca de bons governantes em prol da saúde e da
vida, enquanto na verdade só pensavam em si.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Destarte do que acontecia na idade média, conforme estudado por Bakhtin


na obra de Rabelais, essa situação dual, de oprimidos e opressores, se
perpetua em um momento em que estão em jogo inúmeras vidas, famílias,
sonhos e ideários, e são raras e quase inócuas as possibilidades do povo
de se rebelar, expressar. Surgem panelaços, abaixo assinados online,
reverberações nas redes sociais, entre outros movimentos, sem muita
efetividade frente às grandes manipulações presentes.
Não é vão dizer que nesse período todo, charges, imagens, fotos e trechos
de discursos carregados de signos, que se bem compreendidos e lidos pelo
público em geral, nos traziam a dimensão da arena de lutas de ideias e
posicionamentos do contexto. Sim, materiais que expressaram não uma
estética clássica, mas uma estética do realismo grotesco de olhares, trajes,
expressões. Conforme diferenciou Bakhtin “[...] uma diferença notável
entre perspectiva da estética clássica, [...] e as descritas por Rabelais, que
se assemelhavam às práticas da vida cotidiana em constante
inacabamento”. (GEGe, 2012, p. 76)
Ao mesmo tempo, no decorrer de nossas vidas cotidianas, na expressão
máxima de nossa humanidade e fragilidade, massificados pela veiculações
de notícias, reportagens, sensacionalismo, desinformação e medo,
adoecemos, nos abraçamos às nossas crenças religiosas, nos protegemos,
choramos e lutamos, algumas vezes sobrevivemos.
Da posição de professoras, além do enfrentamento pessoal de tantos
desafios, passamos no campo profissional a vivenciar transformações
prementes e diárias. As demandas que aconteciam com certa regularidade,
a serendipidade das descobertas nas interações com as crianças, toda
vivacidade e energia dos ambientes escolares se esvaem. São substituídas
por plataformas tecnológicas, documentos produzidos em diferentes
editores de texto e imagens. Somos apresentados a softwares, aplicativos
nunca dantes nem sonhados, e obrigados a atualizar nossas ferramentas
tecnológicas, desde internet de banda larga, a notebooks e smartphones. O
mais grotesco em toda essa situação? Sem auxílio de custo por parte dos
governos municipais, estaduais ou federais.
E foram tantas as armadilhas... nos mantermos firmes em nossas
crenças e concepções não se tornara tarefa fácil, tais como, “ […]
entender as enunciações como linguagem, garantir os aspectos
metodológicos propostos pela filosofia da linguagem, [...] não
separar a ideologia da realidade material do signo; [...] não dissociar

1521
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o signo das formas concretas da comunicação social; […] não


dissociar a comunicação e suas formas de sua base material
(infraestrutura)”. (GEGe, 2012, p.120).
Sofremos nesse momento de utilização da plataforma, uma cobrança
exacerbada de pais que exigiam modelos prontos e trabalhos com a
linguagem de acordo com o viés da decodificação de letras e palavras,
enxergando a educação infantil como momento preparatório para o ensino
fundamental. Resistimos, persistimos e em nossas escolhas mantivemos a
garantia dos direitos das crianças de serem ouvidas, se expressarem,
brincarem, enfim, mesmo que à distância pudessem acessar propostas
mais intencionais que garantissem as especificidades da educação infantil.
Nos entristece, entretanto, que muitas não foram alcançadas e que por
razões diversas sofreram em demasia carências e violências de toda ordem
nesses tempos de educação remota emergencial.
Outro fator preponderante, nosso falso senso de controle, pois na vida e
na escola planejamos sempre a longo prazo e de modo geral, o que
planejamos geralmente acontece, reavivado e implementado com o
protagonismo das crianças, o que nos dava a sensação de vivermos em
uma rede de segurança tangível. Com o advento da pandemia passamos a
viver um dia de cada vez, os planos dependiam de situações mais amplas,
em sua maioria baseadas em condições sanitárias, vivenciamos a
imprevisibilidade de mudanças das orientações e inovações. Jocosamente
nos impunham o dito popular trocar o pneu com o carro andando.
Atualmente com o advento da vacinação, da mesma forma desestruturada
e grotescamente utilizada como bandeira política, aos poucos as aulas
presenciais retornam. Será que com as segurança e qualidade necessárias?
Será que é a melhor opção? O retorno é pensado para o bem das crianças?
Muitas ainda são as incertezas, mas o povo que precisa trabalhar, comer,
vê nessa reabertura das escolas um lugar para acolher e alimentar seus
filhos. Qual a escolha menos aterrorizante?
Se o grotesco estudado por Bakhtin descortinou-se em realidade para as
classes menos favorecidas em nosso país, em personagens da vida real
com os quais convivemos diariamente, somos chamados como nunca a
responsividade do ato, em sua completude, tanto como educadores, em
nossas escolhas profissionais e metodológicas, quanto como cidadãos em
nossas escolhas cotidianas.
A partir do exposto anteriormente, concluímos que transformamos nossas
vidas pelo movimento e pelo diálogo. “ As ideias de Bakhtin sobre o
diálogo e a vida são caracterizadas pelo princípio do diálogo.”(GEGe,

1522
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

2019, p.29), vivemos porque participamos do diálogo circunscrito na


relação Eu - Outro, de forma dinâmica e por inteiro. Em tempos de
pandemia, frente a tantas situações dialógicas e dialéticas, sem esquecer,
contudo, as muitas situações ideológicas, que perpassaram nossa
existência, nos deparamos com uma profunda possibilidade de mudanças
e produção de sentidos e enunciados em nossas vidas. Para tanto, a
participação mesmo que simples e iniciante, dessa educadora, nesse
momento de diálogo das rodas Backtinianas.
Nessa tecitura do sentido dialógico, recorro à palavra que na teoria de
Bakhtin , [...] é a ponte, o elemento da mediação. É a palavra que carrega
de um para o outro o ponto de vista único de cada um, que vai constituir o
outro, me constituindo.” (GEGe, 2019, p.84). Nesse contexto da realidade
pandêmica, a partir das palavras do meio social nesses anos de 2020 e
2021, que por mim foram internalizadas e que devolvo por meio desse
texto e da minha resposta responsável e responsiva como professora de
EMEI, carregada de todas as palavras dos outros que antes a constituíram
e do caráter semiótico que para mim possuem, deixo meus sentimentos e
aprendizagens, faço ecoar minha voz e espero contribuir para abrir novos
horizontes.

Referências
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe/UFSCar. Palavras e
contrapalavras: Enfrentando questões da metodologia bakhtiniana. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe/UFSCar. Palavras e
contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin.
São Carlos: Pedro & João Editores, 2019.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio, 1980

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Temporalidades

Rosiane Gonçalves dos Santos Sandim


Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA
rsandim1@hotmail.com

Já faz tempo...muito tempo.


Tanto tempo que até mesmo o próprio tempo parece perder-se em suas
temporalidades.
Tanto tempo que o contínuo bailar dos ponteiros do tempo, em sua infinita
perseguição por breves encontros, como um jovem casal apaixonado que
com pouco se alegra, não era ainda compreendido por mim.
Um tempo em que as palavras pareciam ser apenas palavras, e não lâminas
afiadas sempre a postos para ferir frágeis corações.
O tempo em que alguém com cara de cu era apenas um macambuzio,
carrancudo e antipático. Simples assim....
Nesse tempo, em que as mulheres tinham o direito de não ter direitos, ela
era aquela que estava fora dos padrões, fora da curva, fora do tradicional....
fora do simples parir, lavar, passar e cozinhar.
Puta que pariu!!! Como pode uma mulher criada nos rigores da educação
limitante e coercitiva que era ofertada, preparada com toda a pompa e
ostentação para... parir, lavar, passar e cozinhar, ter a ousadia de pensar?
E ir além, aplicar uma única palavra nas mais diversas situações, pois para
ela, tudo era... uma merda! E isso, muito antes dessa amável palavra
transformar-se num criativo texto de humor.
Se a visão falhava… Não enxergo merda nenhuma!!!!
Se o humor não estava dos melhores...Vai a merda!!!
Se a saúde cambaleava…Tá uma merda!!!

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Aos arrogantes…Quem esse merda pensa que é?!?


Se a notícia era ruim…Mas que merda!!!
A arrumação da casa não estava em dia....Tá de ponta cabeça essa merda!!!
A novo endereço da amiga é distante…Onde fica essa merda?
Nos momentos tristes...Que merda!!!!
Na euforia…Puta merda!!!
Nas angústias…Puta merda!!!
Seu beltrano faliu...Tá na merda!!!
Merda era tudo, menos…merda, afinal de contas nem mesmo os menos
instruídos diziam ao ir ao banheiro…Vou ali fazer merda!!!
Não!!!
Nesse caso não!!!
Merda passava a ser carinhosamente chamada de...cocô, afinal de contas
sua funcionalidade verbal extrapolava os limites dos dejetos anais, e sua
utilidade era tamanha que merda não poderia ser comparada com....merda!
Agora não pensem os senhores que escrevo aqui sobre uma jovem,
vigorosa, atrevida e desbocada. Não!
Escrevo sobre uma velha senhora, de cabelos branquinhos, rosto
enrugado, carregando o peso dos anos sobre os ombros, de passos lentos,
que o tempo, sim, aquele mesmo tempo que quase se perdeu no tempo,
tratou de cansar.
Essa velha senhora, trazia o antagonismo dentro de si, pois enquanto sua
imagem denotava alguém sério, de palavreado experiente e sereno, sempre
disposta a dar bons conselhos, ao mesmo tempo, sua essência guardava a
petulância desregrada daqueles que não pensam duas vezes em mandar
qualquer um...a merda!
E do alto de seu pouco mais de metro e meio, essa pequena gigante,
analfabeta de pai e mãe, transformava a merda em tudo, sem intenção
nenhuma de escrever seu nome nos anais literários, pois sua inocente
eloquência verbal, lapidada pelas dificuldades da vida, era muito maior
que qualquer diploma.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Mas nem só de merda vive o homem, ou melhor, nem só de merda se faz


um vocabulário, afinal, existem situações que chamar alguém de merda é
praticamente um elogio.
As vezes era necessário pesar um pouco a mão em termos de vocabulário,
pois para algumas pessoas, chamar de merda não era o suficiente, haja
visto que não expressava com clareza o tipo de pessoa a qual se referia.
Entravam em cena algumas expressões que promoviam um trabalhoso
exercício de imaginação
Imaginemos alguém que seja chamado de cara de cu! Diga-se de
passagem, que normalmente conhecemos, mesmo que por foto ou em
algum livro, a "anatomia" externa do cu. Agora coloque isso no lugar do
rosto de alguém e já temos um cara de cu!
Muito provavelmente essa expressão era usada de forma bem abrangente,
pois qualquer um mal-educado, antipático, carrancudo, extremamente
sério ou arrogante, era forte candidato a ser, afetiva e carinhosamente,
chamado de cara de cu.
Mas a coisa poderia ser pior, pois existiam algumas variações, como por
exemplo, o cara de cu com cãibras, ou ainda o cara de cu cagado. Estas
expressões que não diferenciavam gênero, pois poderiam ser usadas tanto
para homens quanto para mulheres. Porém, existiam expressões usadas
exclusivamente para o público feminino, que era a "cara de rabo sujo".
Essas expressões vêm ao encontro das teorias bakhtinianas, ou seja, o
outro existe pela minha percepção, assim como eu existo pela percepção
do outro, uma vez que minha visão contempla o outro de uma forma que
ele por si só, jamais conseguiria contemplar.
Soma-se a isso, a manifestação do grotesco, tão bem detalhado no
romance Gargantua de Rabelais e estudado por Bakhtin. Neste romance,
o corpo se funde e se mistura, com uma simbologia muito mais relativa e
subjetiva do que propriamente objetiva. A merda não sai pela boca, mas
por meio do orifício bucal a merda ganha nova significação, adaptada ao
contexto e ao entendimento, do que se pode entender como popular.
Não existe, até onde se sabe, alguém cujo órgão excretor seja posicionado
no rosto. Porém, essa simbologia diz muito a respeito de quem se fala, pois
muito provavelmente, alguém que receba esse título, não é o mais
simpático dos cidadãos. Claro que a velha máxima sempre vale, e nada é
tão ruim que não possa piorar. Por isso, as variações simbólicas destas

1526
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

expressões também são validas, pois se uma pessoa com cara de cu já é


ruim, imaginemos como seria alguém com cara de cu com cãibras!
Voltando a falar naquela velha senhora, ela adorava e não existiam
situações as quais ela não adaptava seu criativo e belicoso vocabulário; e
se ainda estivesse entre nós batizaria esse ou aquele como “cara disso” ou
“cara daquilo”. Hoje, por exemplo, olhando as caras simpáticas de muitos
de nossos governantes corruptos, que desviaram verbas da saúde e
menosprezaram essa pandemia que nos assola, ela certamente os batizaria:
estes são os caras de cu chupando limão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
TEIXEIRA, Marilia Dalva. Considerações sobre o corpo em Mikhail
Bakhtin. Disponível
em: https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/view/36662/html. Acesso
em 06 de set. de 2021.
DUARTE, André Luis Bertelli. Cultura popular na idade média e no
renascimento: revisitando um clássico. Revista de História e Estudos
Culturais, 2008. Vol. 5, Ano V, Nº2, Uberlândia, MG.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

TEMPOS QUE INSPIRAM MUDANÇA: REFLEXÕES SOBRE


AULAS REMOTAS NO CRONOTOPO PANDÊMICO

Cíntia Daniele Oliveira do Nascimento


UFRN
cintia_danielee@hotmail.com

A língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a


realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra
na língua (BAKHTIN, 2011, p. 265).
O ano de 2021 marcou a humanidade de formas diversas. A chegada do
novo coronavírus mudou hábitos e deixou marcas profundas na vida das
pessoas. Como educadora, as consequências que a pandemia trouxe para
a escola pública fizeram-me refletir: eu deveria agir de forma ética e
responsável e repensar minha prática diante da nova realidade vivida pelo
mundo. Os tempos pandêmicos inspiraram mudanças. A escola pública
precisou se adaptar ao novo cronotopo: este conceito diz respeito à
interligação essencial das relações de espaço e tempo (BAKHTIN, 2018);
assim, ao longo da pandemia, percebe-se o surgimento de um
novo cronotopo.
Diante disso, o ensino remoto trouxe novas identidades à escola pública.
A mudança das aulas presenciais para as aulas remotas é uma das
características que marcam a identidade que a escola pública adquiriu
neste cronotopo pandêmico. As escolas ganharam novos espaços:
teleaulas e aulas remotas, por exemplo, passaram a fazer parte da rotina
dos alunos das escolas públicas. Assim, foi necessário pensar em
metodologias que trouxessem mais dinamicidade a essas aulas. Vale
destacar que essa nova realidade reforçou desafios já vividos pelos
professores. Um dos maiores desafios foi a adaptação ao uso das novas
tecnologias; infelizmente, a integração entre escolas e tecnologias é uma
dificuldade que antecede o cronotopo pandêmico.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A partir da concepção dialógica e filosófica da linguagem do Círculo de


Bakhtin, percebemos que a escola é uma instituição marcada pela presença
de diferentes sujeitos sociais e de múltiplos enunciados. Entende-se que
os enunciados nascem, vivem e morrem no processo da interação social
(BAKHTIN, 1976). Assim, à medida que as relações sociais mudam,
surgem novas formas de comunicação. Foi exatamente isto que aconteceu
no cronotopo pandêmico: as escolas, por meio das aulas remotas,
passaram a produzir novos enunciados.
Nesse contexto, apresentamos aqui a dinâmica de aulas adotada pela
Escola Municipal Professora Francisca de Oliveira, localizada no bairro
de Pajuçara, na Zona Norte de Natal/RN. Ao longo do primeiro semestre
do ano de 2021, os alunos tiveram aulas por meio de grupos
de WhatsApp e pelo Google Meet. As aulas remotas possibilitaram o
engajamento dos alunos, mesmo com as dificuldades impostas
pelo cronotopo pandêmico.
Em meio às mudanças trazidas pelo novo formato das aulas, foi idealizado
o projeto “Diálogos entre vida, linguagem e teatro”. Em caráter
interdisciplinar, as professoras de Língua Portuguesa e de Arte planejaram
aulas unindo o conteúdo programático das duas disciplinas. Como
justificativa para a realização do projeto, ancoramo-nos nas palavras de
Bakhtin, que diz: “arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-
se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade”
(BAKHTIN, 2011, p. XXXIV). É preciso trazer a cultura e a arte para a
escola, afinal, a escola é um espaço onde se encontram diversas práticas
de linguagem e culturas: “as demandas sociais devem ser refletidas e
refratadas criticamente nos/pelos currículos escolares” (ROJO, 2015, p.
135).
Assim, considerando a responsabilidade da escola de incluir diversas
linguagens e culturas, o objetivo do projeto desenvolvido foi explorar de
forma dinâmica as características do texto teatral, a partir da leitura e da
interpretação de exemplares do gênero e do diálogo com um ator em uma
das aulas, o qual compartilhou sua experiência em cursos de teatro, em
peças realizadas e respondeu perguntas feitas pelos alunos. Destacamos
aqui, com mais detalhes, algumas atividades desenvolvidas com as
turmas:
(1) Aula com a participação de um ator e cantor, Mateus Noronha.

1529
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Nessa aula, o ator falou a respeito das características do texto teatral a


partir das suas experiências e do roteiro da peça “Bye bye, Natal”. Foram
realizadas dinâmicas incentivando a leitura expressiva de trechos do
roteiro desta peça. Ao final, o ator respondeu perguntas feitas pelos alunos.
Esse momento possibilitou grande participação e interação com os
alunos. Cabe destacar, aqui, que a interação discursiva é uma
característica fundamental da língua (VOLÓCHINOV, 2017, p. 218-219).
(2) Apresentação da obra “O Santo e a porca”, de Ariano Suassuna.
Com o objetivo de sugerir a leitura de uma peça teatral, foi indicado o livro
“O Santo e a porca”. O livro foi disponibilizado para leitura nos grupos do
WhatsApp das turmas, e ao longo das aulas on-line foram apresentados
vídeos sobre a peça (um dos vídeos foi uma resenha, gênero também
trabalhado com as turmas de 7º ano ao longo das aulas). É importante
ressaltar que, mesmo com as aulas remotas, a leitura literária é uma
habilidade que deve ser incentivada durante as aulas de Língua
Portuguesa. Assim, a leitura da obra “O Santo e a Porca” permitiu que os
alunos conhecessem de forma mais detalhada o gênero trabalhado e
percebessem a presença de elementos da cultura nordestina e brasileira
nesse clássico.
(3) Atividade prática.
Essa atividade teve como objetivo despertar a criatividade dos alunos, por
meio da produção de vídeos e áudios com textos teatrais. Em atividade
anterior os alunos fizeram produção escrita de texto teatral e na atividade
prática deveriam dar vida ao texto produzido. Algumas aulas foram
destinadas para que os alunos apresentassem à turma os vídeos e áudios
produzidos. Por meio dessa atividade, os alunos tiveram a oportunidade
de desenvolver a escrita e explorar a criatividade, por meio da produção
de textos em diferentes formatos: vídeos e áudios. Trata-se de uma
atividade que desperta o interesse dessa geração que ama a tecnologia.
Como ressaltado no início deste trabalho, as escolas públicas ganharam
novas identidades diante do novo cronotopo. Assim, corroboramos com
Hall (2015), quando afirma que a identidade não é uma “coisa” acabada,
ela está em processo de andamento. A identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de
uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior.
A fim de superar os obstáculos trazidos pela pandemia, foi necessário
repensar a dinâmica das aulas das escolas públicas. Do mesmo modo que
é possível planejar aulas interdisciplinares no espaço físico das escolas,

1530
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

essa proposta também pode ser adaptada para o ensino remoto, afinal, “o
uso de mais de uma semiose na apresentação de um conteúdo pode
favorecer a aprendizagem” (RIBEIRO, 2018, p. 105).
Percebe-se, então, que o desenvolvimento de projetos como esse
fortalecem a parceria entre professores de diferentes disciplinas,
ressaltando a importância do ensino de forma interdisciplinar. Inclusive,
uma das características das pesquisas em ciências humanas na
contemporaneidade é propor discussões que abarquem os sujeitos, as
sociedades, as culturas, os espaços, sob um olhar interdisciplinar e plural.
Por fim, durante as aulas, os alunos conseguiram perceber que a
linguagem, a cultura e a arte estão presentes em suas vidas, por meio do
trabalho com os mais diversos gêneros discursivos. Assim, a escola
apresenta-se como um espaço que proporciona o diálogo e a interação,
mesmo diante de tempos difíceis e que inspiram mudanças.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Discurso na vida e discurso na arte: sobre a poética
sociológica. In: Freudism – a marxist critique. Tradução de FARACO, C.
e TEZZA, C. (UFPR) para fins didáticos. New York: Academic Press,
1976.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo
Bezerra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz
Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 12. ed. Rio de Janeiro: Lamparina,
2015.
RIBEIRO, A. E. Escrever, hoje: palavra, imagem e tecnologias digitais
na educação. 1. Ed. São Paulo: Parábola, 2018.
ROJO, R. H. R. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros
discursivos. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. São
Paulo: Editora 34, 2017.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

TRANSENUNCIAÇÃO

Francisco Leilson da Silva


UFRN
leleespan@gmail.com

Os gêneros discursivos promovem uma organização do sujeito, mediante


a execução de gêneros discursivos orais formais, então, um
redimensionamento no que se refere ao uso dos gêneros orais formais
públicos, dessa forma, promove outra percepção de uso e adequação da
fala. Portanto, essa prática docente implica na formação desse sujeito
(cidadão) que compreende o uso social da língua, sendo exatamente a
proposta da linguística aplicada:
A LA está, portanto, preocupada não apenas em “ensinar” língua(s),
mas acima de tudo, está preocupada em desenvolver um senso
linguístico que faça com que o aluno veja, sinta, interprete a
linguagem não como uma disciplinar escolar que dita normas do
bem falar e escrever, mas sim como algo que está intimamente
inserido na sua vida de cidadão, de ser humano. (CELANI, 2008, p.
22)
O ensino de LM deve ultrapassar regras e promover uma mudança na
perspectiva de vida do aluno, fazer com que a língua seja motivo de
promoção de saber e entendimento, por isso, o uso e o contexto social em
que a língua é empregada se torna preponderante, a necessidade da
vivência da comunidade linguística deve ser algo que seja alcançado por
esse ensino, portanto, a LM deve ser um caminho de promoção para que
o sujeito se defina como cidadão que um ser constituído uma vida
encarnada na realidade corpórea.
Teixeira (2019), com base na teoria dialógica, aponta-nos algumas
características desse corpo: situado, único e singular. O contexto corpóreo
está marcado pela realidade histórico social, o corpo torna-se um
invólucro que compõe a realidade enunciativa, sendo uma parte também
da enunciação. A partir desse aspecto, denominamos essa realidade de
“Transenunciação”[1], pois a realidade é transfigurada nos corpos através
dos discursos emanados dessas situações cotidianas.

1532
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O contexto biológico já firmou que a genética indica um ser único, o corpo


físico, como afirma Flores e Neckel (2017), que é lugar do sujeito, por
conseguinte é único em suas construções dialógicas que se organizam em
enunciados e se materializa, na transenunciação, pois quando se pensa em
um léxico, existe um desencadeamento de constituições. Assim, o copro
se torna um grafema que tem sua função de enunciado e significação O
ser tem fala, representação, corpo e um enunciado transenuciado em sua
existência, pois sua realidade do corpo também é um enunciado dialógico
em tudo que representa, desde seu peso e altura, roupas, até suas produções
com e sem verbo.
A singularidade de suas produções do corpo biológico também é marcada
na realidade social do sujeito, pois não existe ninguém igual a ninguém
em concepções, posicionamentos axiológicos e produção enunciativa. O
mundo diverso e singular desemboca em tudo que esse sujeito representa
e apresenta em suas vivências, pois o mesmo tecido, adereço, joias não
constituem a mesma mensagem, a mesma representatividade nos
diferentes corpos.
A matéria discursiva do corpo enuncia cada realidade, pois, quando
pensamos em alguns grupos sociais, religiosos, até mesmo escolares, esses
corpos devem ter um formato, características práticas que o define. As
cores que definem os partidos políticos é um elemento direto da
trasenunciação do controle dos corpos ideologizados, pois, para marcar
esses sujeitos, é necessário deixá-los idênticos. Assim, a padronização dos
sujeitos seres é algo objetifica os seres, entretanto estabelecem corpos que
se anunciam.
O corpo é um documento que aponta formas da realização da
transenunciação que envolve a oralidade, que, por muitos anos, ficou
esquecida a relação corpo e voz na sala de sala, entretanto, aponta essa
modalidade como uma fecunda área de pesquisa. Os corpos se posicionam
discursiva nos mais diferentes gêneros orais: de imprensa (depoimento,
entrevista, notícia, debate,), de divulgação científica (debate exposição,
seminário,) e os literários (textos, canção, dramáticos), ao partir dessa
divisão, o docente articula sua prática.
O professor de LM deve refletir sobre a organização desse corpo e fala
para promover um repensar de sua utilização nos momentos em sala de
aula, assim definindo que esse uso da modalidade oral “vai desde uma
realização informal à mais formal nos mais variados contextos de usos”
(MARCUSCHI, 2010, p.25). Dessa forma, entende-se a fala e o corpo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

como forma de produção textual, logo se faz o uso da língua na sua forma
corpórea e sonora.

REFERÊNCIAS
FLORES, G. G. B.; NECKEL, N. R. M. Corpo-imagem na mídia:
reconhecimento ou estranhamento. Seminário Internacional Fazendo
Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,
CELANI, M. A. A. A relevância da linguística aplicada na formulação de
uma política educacional brasileira. In: FORTKAMP, M. B. M.;
TOMITCH, L. M. B. (org.). Aspectos da linguística aplicada: estudos em
homenagem ao professor Hilário Inácio Bohn. Florianópolis: Insular,
2000.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de
retextualização. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2010.
TEIXEIRA, M. D. Considerações sobre o corpo em Mikhail
Bakhtin. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, v. 10, n. 1, p. 46,
2019. Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/
voluntas/article/view/36662>. Acesso em: 22 Aug. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Transgrediência ecológica: atravessando por orifícios (in)visíveis

Guilherme Lisboa Morgan


Centro Universitário Fundação Hermínio Ometto
guilhermelisboamorgan@alunos.fho.edu.br

Discursos ecoam das e nas multidões em uma espécie de prece, pedindo


pela volta do normal ou ainda de um novo normal. Covid-19, para alguns
uma pandemia indiferente, para outros uma fase marcada por exaustões,
perdas e lutos, tem os que acham que é uma invenção exagerada, para este
escrito, um marco histórico, que vem tirar a sujeira sociopolítico-
econômica-ecológica varrida para debaixo do tapete por um governo que
a palavra e a contra palavra se findam na negação.
Nesta esteira errante de um desgoverno e seus projetos, é possível
encontrar facilmente terrenos produtores de uma não-ecologia, que partem
de estratégias de controle e permanência de um regime hierárquico,
neoliberal, fascista, estratificado e moldante, o qual favorece o capitalismo
e seus beneficiários, o homem-cis-hétero-branco-burguês. No entanto,
torna-se para esta forma de governar, cômodo disseminar a ideia e modos
viventes de corpos autossuficientes, acabados e fechados, propagando
adjetivos de desviante, problemático dentre outros, para quem fugir desta
normativa, interferindo e limitando diretamente na construção de vida,
sentido e experiências das pessoas e suas subjetividades.
Esta óptica e engrenagem social começa a tomar forma quando Descartes
anuncia a sua máxima valorização pela razão, a qual possibilitou agregar
para a lógica das relações uma perspectiva de dominação sobre aqueles
que não possuem o mesmo tipo de racionalidade, outros seres vivos por
exemplo, ou aqueles que vivenciam a racionalidade de forma
desviante/inferior, título este atribuído por uma comunidade
fundamentada em um certo tipo de saber (FOUCAULT, 2004). Como
exemplo, pode-se citar aqueles chamados de loucos, indígenas, mulheres,
nordestinos, trabalhadores, população LGBTQIAP+, em síntese os corpos
minorizados.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Paralelamente ao legado da razão se deu a emancipação e o


desenvolvimento do capitalismo e do catolicismo, consequentemente dos
dispositivos normativos de controle e poder, os quais encontraram um
terreno fértil de propagação e afirmação na ideia de corpo racional, não-
místico, não pertencente de um todo, uma vez que “a noção de universo
orgânico vivo e espiritual foi substituída pela noção de mundo como uma
máquina, e a máquina do mundo tornou-se a metáfora dominante da era
moderna” (CAPRA, 1996, p. 37).
Em contrapartida, Bakhtin (2010), presenteia a humanidade ao parir em
meio seus estudos a noção de Corpo Grotesco, que vem justamente como
um fluxo contrário a este Eu castrado e controlado pelo regime, abrindo
novos horizontes às corporeidades no limiar das potências criativas, dos
atravessamentos inúmeros, das possibilidades múltiplas, híbridas,
metamórficas, fragmentadas, construída constantemente.
Em oposição aos cânones modernos, o corpo grotesco não está
separado do mundo, não está isolado, acabado nem perfeito, mas
ultrapassa-se a si mesmo, franqueia seus próprios limites. Coloca-
se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior,
isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para
o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e
excrescência, tais como boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo,
barriga e nariz. É em atos tais como o coito, a gravidez, o parto, a
agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais,
que o corpo revela sua essência como princípio em crescimento que
ultrapassa seus próprios limites. É um corpo eternamente
incompleto, eternamente criado e criador, um elo na cadeia da
evolução da espécie ou, mais exatamente, dois elos observados no
ponto onde se unem, onde entram um no outro (BAKHTIN, 2010,
p. 23).
Como novos possíveis frente a ordem verticalizada, séria e moldante,
Bakhtin (2010), propõe a carnavalização, em outros termos, a
desestabilização dos lugares sociais, políticos, econômicos, institucionais
atribuindo ao corpo grotesco, aquele que ri dos discursos oficiais o posto
suprassumo de poder.
O carnaval (repetimos, na sua acepção mais ampla) liberava a
consciência do domínio da concepção oficial, permitia lançar um
olhar novo sobre o mundo; um olhar destituído de medo, de piedade,
perfeitamente crítico, mas ao mesmo tempo positivo e não niilista,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pois descobria o princípio material e generoso do mundo, o devir, a


mudança, a força invencível e o triunfo eterno do novo, a
imortalidade do povo. (...) é isso que nos entendemos como
carnavalização do mundo, isto é, a liberação total da seriedade
gótica, a fim de abrir caminho a uma seriedade nova, livre e lúcida
(Bakhtin, 2010, p. 239).
Quando se coloca o mundo de ponta cabeça, pelo ato de carnavalizar, o
Eu antes funcional e autossuficiente percebe sua incompletude-inacabada
a qual só ganha acabamentos e sentidos necessariamente na relação com
o Outro que não seja o Eu, não importando que tipo de alteridade seja,
colocando assim, os existentes em um nivelamento igualitário.
Com um mesmo teor transgrediente e subversivo das relações, Capra
(1996) apresenta uma superação e re-significação das hierarquizações
estratificadas, a partir do que chamou de ecologia profunda, que “vê o
mundo não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de
fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são
independentes” (CAPRA, 1996, p. 26), no entanto, esta visão de mundo
“reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres
humanos apenas como um fio particular na teia da vida” (CAPRA, 1996,
p. 26).
A ideia de teia horizontal das relações vivas, ganha interlocuções através
de tons imanentes, com o conceito de Guattari (2012) sobre a ecologia,
que contempla e entrelaça ético-estético-politicamente as esferas
ambientais, sociais e mentais, as quais denominou de as três ecologias ou
ecosofia, conceito este que desprende “dos paradigmas pseudocientífico”
(GUATTARI, 2012, p. 27), consolidando-se a partir das
desterritorializações suaves que fazem com que os agenciamentos
evoluam processualmente, permitindo a criação de novas alternativas
desejantes para a existência.
Para uma experimentação factível de tal movimento ecológico, seria uma
movimentação interessante aproximar-se da poiética do Corpo Grotesco
re-visitando e se voltando a noção de orifícios , já que é por meio deles
que o Eu se conecta com o Outro e com o mundo, em relação com Guattari
(2012), respectivamente com o social e o ambiente. O mental por sua vez,
pode-se dizer que seria a prática em si do corpo grotesco, com ênfase nas
suas características plástico-criativas constantes.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Todas essas excrescências e orifícios caracterizam-se pelo fato de


que são o lugar onde se ultrapassam as fronteiras entre dois corpos
e entre o mundo, onde se efetuam as trocas e as orientações
recíprocas (BAKHTIN, 2010, p. 277).
Os orifícios metaforicamente ganham uma imagem invisível de teias e
fluxos os quais partem e ao mesmo tempo chegam, expelem e absorvem
atravessamentos múltiplos, sendo por meio destas conexões horizontais
constantes que todos os possuintes de matéria se equivalem e constituem,
rompendo com a ideia disseminada de que uma parcela da população
(homem-hétero-cis-branco-burguês) ou uma espécie (Homo sapiens) têm
o aval para dominar e docilizar os demais.
O anus do Eu se liga com a narina da vaca, que se conecta com o ostíolo
da planta, esta se finda com os poros das rochas, que atravessa o orifício
da uretra do Eu e de um Outro. Este um possível exemplo de conexão,
longe de ser a única, uma vez que ela não se caracteriza por uma cadeia
fixa, ordenada e determinada, mas sim se expande ao infinito de
possibilidades de conjuntos n-1, devires, agenciamentos e cruzamentos.
Contudo, esta forma de conceber a ecologia se opõem radicalmente com
a ecologia capitalística que Boff (2012) escancara e problematiza
criticamente, esta que segundo o autor se pauta e defende preceitos de
funcionalidade e desenvolvimento, atribuindo ao meio-ambiente e seus
personagens uma categoria de recursos para a majestade superior, o ser
humano.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail Mjkhailovitch. A Cultura popular na idade média e
no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec,
2010.
BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é – o que não é. Petrópolis:
Vozes, 2012.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos
sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23. ed. São Paulo: Graal,
2004.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F.
Bittencourt. 21. ed. Campinas: Papirus, 2012.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Tudo que nós tem é nós: contrapalavras na arte e na vida

João Paulo Francisco de Souza


UNESP/Vice-líder do grupo de pesquisa LEePES
joaopaulo.unesp@gmail.com

Quelselise Rodrigues Xavier


UNESP
qr.xavier@unesp.br

Raquel dos Santos Candido da Silva


UNESP - Campus de Marília
raquel.candido@unesp.br

Introdução

Pensar a questão da cultura nos tempos atuais por meio das


contrapalavras de Leandro Roque de Oliveira, rapper brasileiro
mais conhecido como Emicida, nos possibilitará pensar e refletir
sobre alguns temas instigantes que movimentam o cotidiano de
nossas vidas, o nosso modo de viver histórico, social e
culturalmente diante do grotesco de nossos tempos.
Segundo Emicida (2021), algumas das reflexões, propostas e conversas
que atravessam seu último álbum musical, lançado também em 2020, são:
“como podemos mudar a engrenagem da qual somos partes? E como
pensar em propostas que, a todo momento, considerem a batalha de quem
está nas periferias?”. Ainda segundo o próprio compositor, o álbum

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

intitulado AmarElo traz quatro grandes pilares: paz, clareza, compaixão e


coragem.
Mas, será que é “apenas” esse o nosso problema que envolve aqui as
nossas reflexões? Investigar brevemente “o seu valor como concepção do
mundo e o seu valor estético”, a partir de alguns conceitos de Mikhail
Bakhtin (2010) podem nos guiar por esse caminho onde as vozes, os
ambientes e os horizontes encontram-se com a cultura popular, em
especial com a cultura periférica do hip hop em Emicida.
Para melhor compreendermos esse problema, buscaremos voltar nosso
olhar para o lugar onde a cultura popular periférica se estabelece - no hip
hop - e com o álbum AmarElo, de Emicida, recuperando como foi
constituído, ética e esteticamente, com potência, amorosidade e resistência
como poderemos verificar nos próximos tópicos desse nosso trabalho.

Vozes: o hip-hop e a cultura popular


O Hip-Hop enquanto movimento cultural engloba dentro de si expressões
corporais, artísticas e musicais, que impulsionam ações transformadoras
quando possibilita a mobilização social daqueles e por aqueles que muitas
vezes tiveram a sua condição enquanto sujeito histórico negligenciada.
Sua manifestação está envolta na intencionalidade de partilhar cultura,
arte, saberes e conhecimentos, mas também permeia a criticidade para
compreender o mundo e impulsionar a sua transformação rumo à uma
sociedade livre de desigualdades, racismo, preconceitos e violências.
Quando investigamos a sua historicidade, o hip-hop pode ser demarcado,
tendo como ponto de partida, o cotidiano vivenciado pela população afro-
americana, jamaicana e latinamericana, que vivenciavam a dura violência
social, institucional e policial presente nas periferias norte-americanas na
Nova York do início dos anos 70. De lá, não demorou para que o hip-
hop fosse levado e ressignificado nas periferias de diversos países do
mundo, que compartilham das mesmas dificuldades e reconhecem a
importância do contexto histórico e social a qual a cultura está atrelada.
Como uma cultura das ruas e para as ruas, o hip-hop é essencialmente uma
manifestação artística de atitude. Ele ressalta a valorização da identidade
cultural periférica, que está presente na expressão artística de seus quatro
elementos fundamentais, que congregam música, poesia, grafite e dança.
A música é o elemento que reunia inicialmente e que ainda reúne os
diversos sujeitos que vivenciam o cotidiano periférico, por isso, no

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

contexto de sua criação, os disc jockeys eram valorizados como os


responsáveis por conduzir a festa, eles criavam batidas rítmicas chamadas
“loop” (que são pequenos trechos da música em repetições contínuas) em
dois turntables (pick ups ou toca discos), que atualmente é referido
como sampling. Mesmo nos dias de hoje, os DJ (disc jockeys) são
essenciais na condução de qualquer festividade que se fundamente na
cultura do hip-hop, pois a música continua sendo o ato responsável que
reúne pessoas diversas em torno de uma mesma manifestação, no desejo
de dialogar, partilhar e construir num clima típico de festa, compreendido
segundo Bakhtin (2010) pela relação que estabelece “com os fins
superiores da existência humana”, que envolvem “a ressurreição e a
renovação” de modo que se alcance plenitude e pureza, sem a necessidade
de quaisquer distorções nas festas populares e públicas. Para o autor, essa
forma de manifestação se reveste como uma segunda vida do povo,
penetrando no reino da universalidade, liberdade, igualdade e abundância.
Assim, enquanto um momento de valorização de palavras e
contrapalavras, na construção do hip-hop as batidas rítmicas trazidas pelo
DJ logo foram acompanhadas pelo rap (abreviatura de rhythm and
poetry ou ritmo e poesia em tradução do inglês). A poesia era trazida na
tentativa de expressar experiências, ideias e ações por meio das palavras,
que eram empregadas usando uma técnica vocal diferente, trazidas pelas
comunidades jamaicanas que valorizam o dizer, se trata de um canto
falado que acompanha os loops dos DJs. Em conjunto com as batidas e
com o canto falado, a expressão corporal envolta nessa cultura manifestou
nos sujeitos inseridos nesse contexto diferentes formas de danças
improvisadas, como o breakdance, o popping e o locking. Nesse cenário
envolto por música, canto e dança, se manifestou uma quarta expressão
desse fenômeno: o grafite. As pinturas, cores e formas diversas, são
trazidas como uma intervenção no ambiente físico, pois surgem onde a
prática dos outros elementos estão muito presentes. O grafite, em suas
pinturas e estilos diversos, mas únicos e singulares, embelezam e trazem
a voz, as ideias e os anseios de cunho social, econômico e político, ao
espelharem uma interferência viva no espaço dos muros e construções das
cidades. Esse movimento contínuo de alargamento da liberdade
constituído no cotidiano da cultura hip-hop revela projetos de dizer que
provocam uma tensão constante na totalidade de sentidos que se renovam
a cada encontro dos grafiteiros com os interlocutores dessa manifestação
estética.
Essa inter-relação intrínseca está presente entre seus elementos, que se
desdobram em muitas e diversas manifestações culturais envoltos na

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cultura do hip-hop, que tem como base esses quatro pilares. Seria
impossível pensar o hip-hop sem levar em consideração as vozes dos
diferentes sujeitos que vivenciam essa cultura e o cotidiano desigual e
violento vivido nas periferias, que estão envoltos de um contexto de
produção e reprodução da vida mais alargado. A construção coletiva
presente na arte, na musicalidade e nas palavras expressas por esta cultura
popular, valoriza a identidade periférica no intuito de dar voz para pessoas
que foram subalternizadas nos processos econômicos e sociais, que estão
buscando, diante das desigualdades e atrocidades envolvidas nos
processos produtivos e reprodutivos do capital, resgatarem a sua
autonomia, a sua cultura e a sua liberdade na condução de suas vidas, o
que nos leva a compreender que enquanto manifestação de uma cultura
popular, o hip-hop carrega em seu bojo um horizonte de libertação e
emancipação, fundamentado não apenas na não aceitação das violências e
desigualdades sociais e estruturais, mas, sobretudo, na capacidade de
seguir (re)existindo em comunhão e reivindicando o espaço público,
político e social.
Portanto, o hip-hop envolve o diálogo e a interação dinâmica entre
indivíduos e sociedade, permite a sujeitos historicamente afastados dos
processos do conhecimento se afirmarem e se reconhecerem como sujeitos
políticos contemporâneos, que atuam em suas realidades e reivindicam o
sentido de suas experiências, para isso, são desenvolvidas práticas
específicas as quais podem ser atribuídas inúmeros significados para
aqueles que estão inseridos nesse acontecimento. Estes sujeitos, advindos
das camadas populares e historicamente marginalizadas, estão dispostos a
assumirem o seu próprio descentramento, conduzindo esse processo com
sabedoria, diálogo e autonomia. A interferência material e imaterial nos
locais onde o hip-hop se faz presente, delineiam o caráter imediato e a
longo prazo das ações humanas, conscientes e planejadas; que são
traduzida por meio da palavra, do corpo e da mente, no intuito de expressar
a identidade cultural que carrega diferentes visões de mundo, englobando
as diferenças e similitudes presente na tradição dos diversos povos que
estão inseridos nos atuais contextos de resistência e luta.

Ambientes: O contexto do hip hop e a realidade de nosso tempo


O hip-hop brasileiro, consolidado como fenômeno urbano nas décadas de
1980 e 1990, foi analisado no estudo de Delphino (2020) como
um corpus do pensamento político e social brasileiro, através das letras de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

músicas manifestadas pelos artistas participantes da pesquisa, como uma


crítica ao sistema vigente por apresentarem dados relevantes às reflexões
sociais e políticas brasileiras. A voz do rap e do hip-hop carrega e
escancara, pela sua arte, toda segregação racial e a discriminação social
que a população periférica das grandes metrópoles brasileiras continuam
a sofrer até nos dias atuais e, principalmente, nos tempos pandêmicos da
Covid-19.
Considerando o contexto desigual das relações étnicas-raciais,
o rapper Emicida é um dos artistas que dão “o tom” dessa conversa, já que
o artista representa muito bem todo o repertório social no qual o negro no
Brasil está inserido. Ainda refletindo com Delphino (2020) que analisou o
cantor em seus estudos e trouxe excelentes considerações acerca do
cenário periférico que o Emicida traz consigo em suas letras e canções
expondo a sua realidade histórica, política e social, essa análise também
dialoga com as questões pertinentes às “partes de baixo”, como bem define
Florestan Fernandes em seus escritos. A visão dos oprimidos, que no
Brasil é representada e fortalecida pelos diferentes sujeitos oriundos das
camadas populares e historicamente massacradas, é a cada dia fortalecida
na coletividade de sujeitos que vivem, interferem e se enxergam
pertencentes a um mesmo local, esses buscam por meio de suas expressões
culturais e artísticas, ocupar e ressignificar os espaços diversos, através de
lutas diárias que tem como objetivo fundamental causar uma ruptura na
ordem atual das coisas, na finalidade de re-construir um futuro próspero e
igualitário. Tradicionalmente reconhecido como o ritmo musical preferido
de jovens entre 12 e 15 anos no Brasil, o rap é marcado pelo discurso
crítico e pela centralidade que a posição periférica ocupa na musicalidade
dos indivíduos que vivem essa realidade, o que desperta o olhar atento dos
ouvintes de suas letras e leva à reflexões importantes no que diz respeito
ao estado das coisas e como podemos mudá-las ou transformá-las
(DELPHINO, 2020, p. 33).
O movimento hip-hop foi analisado por Lourenço (2010) que, na sua
pesquisa, buscou privilegiar as narrativas dos sujeitos da periferia do
ponto de vista cultural e político, o que reforça o status sólido de uma arte
que visa expressar os anseios das camadas populares como um grito que
abrange uma sociedade marginalizada, carente de políticas públicas
básicas como saúde, educação, emprego e lazer. Apesar das origens norte-
americanas, o hip-hop no Brasil adquiriu identidade própria já que por
aqui, os anseios sociais são distintos (LOURENÇO, 2010).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Construído sob pilares revolucionários, o movimento se tornou no país um


instrumento de educação política e também, para o exercício da cidadania,
sendo considerado como um movimento social. Entretanto, o movimento
também foi alvo de preconceito no Brasil por ser considerado “som de
preto e favelado” já que suas origens por aqui emergiram das comunidades
negras e invadiram os centros urbanos, em plena vigência de uma ditadura
militar. Ao tentarem reprimir as batidas e escritas do rap, os órgãos
governamentais acabaram por contribuir para a curiosidade dos jovens que
se sentiam representados pelas letras das músicas e pelo estilo dos cantores
que atuavam nessas músicas e assim, sem querer, contribuíram para
fortalecer a cultura hip-hop no Brasil.
Quando nos debruçamos sobre os problemas sociais no qual nasceu e
cresceu a periferia em nosso país, não há como ignorar os pilares sociais
e racistas pelos quais a sociedade brasileira tem se formado. Fernandes
(1964), se atentou em seus estudos para os problemas sociais e estruturais
do Brasil, destacando a vigência das relações raciais que aqui se
estabelecem. O autor explica enfaticamente a raíz de toda segregação
social na qual o povo negro no Brasil tem figurado, atribuíndo ao
momento de implementação da lei de Abolição do regime escravocrata
como um processo político mal sucedido e responsável por afastar da
comunidade negra toda a oportunidade de trabalho e de dignidade de um
povo que, na qualidade de ex-cativos, deveriam se ajustar ao país em que
foram deixados à própria sorte, reforçando a evolução urbana para a época
como um dos fatores decisivos para o “desajustamento” do negro na nova
sociedade brasileira. Percebemos contudo que não é só na música que as
origens negras no Brasil são segregados e desrespeitadas em suas
manifestações culturais, a religiosidade e a culinária, por exemplo,
também são alvo de preconceito já que por desconhecerem seus
fundamentos, observamos discursos enviesados que ignoram o fato de que
as tradições africanas pertencem ao universo cultural brasileiro e que
devem ser consideradas tradições culturais e não relegadas à
marginalização.
Tais fatores refletidos pelo sociólogo colaboram para que possamos
entender o contexto no qual a voz da periferia vem, há anos, expressando
indignação e resiliência diante de todo o esquecimento e descaso por parte
do Estado e da sociedade estruturada pelo capitalismo. A luta por respeito
e pela centralidade na condução dos processos de produção e reprodução
da vida, pelas minorias, é um dos principais motivos pelos quais

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o rap firmou raízes no Brasil e ganhou diversos interlocutores ao longo


dos anos.
Na atualidade, dialogar sobre o rap e o hip-hop constitui um aprendizado
interessante para os envolvidos. Um ritmo musical que carrega consigo a
pluralidade e diversidade das vozes da periferia e contrasta com a
realidade de muitas pessoas que ouvem suas letras e seus versos, desperta
indignação, identidade e pertencimento à aquilo que é narrado, além da
consciência de que vivemos um cotidiano desigual, violento e excludente,
que é amparado pelo preconceito, pela força do capital e pelo desprezo do
poder público. Como vimos, a cultura hip-hop não é composta apenas
pelos b-boys e pelos rappers. O grafite e a vestimenta também são
importantes manifestações dessa forma de expressão artística. Hoje, o hip-
hop se insere no contexto das diferentes visões e realidades do nosso país,
e conta com novas vertentes e manifestações, que estão sempre atreladas
às questões políticas e sociais, principalmente da população negra e
periférica. É uma cultura em constante movimento, uma troca de saberes
na qual cada estilo é valorizado pela sua capacidade subversiva que
atravessa gerações no nosso país.
O compositor Emicida, com toda sua história de vida e capacidade criativa
presente em suas criações artísticas, é um dos atuais representantes da
cultura hip-hop, suas músicas compõem e permeiam o cotidiano vivido
por jovens e adultos, suas letras trazem a troca de palavras que reivindicam
demandas atuais das comunidades periféricas, mas também falam de
amor, amizade e esperança em dias melhores, sobre lutas cotidianas e até
pessoais. O artista tem se consolidado no cenário musical ao imprimir a
ideia de resistência e de que toda luta vale a pena, pois podemos caminhar
para a construção de uma sociedade justa e igualitária para todos, todas e
todes. Ao contrário de uma cultura útil à ordem e a conservação do
existente, o rap espelha a sagacidade e a vontade de não desistir do que se
quer alcançar na vida, pois, quando estamos carregados de bons
sentimentos, a sua expressão permite que a luta se torne mais leve, o que
contradiz flagrantemente o momento de ódio que se estabeleceu em nosso
país, diante da escalada autoritária e bolsonarista, que não só tem tirado
do povo brasileiro os direitos conquistados a duras penas; mas nos alertam
para o obscurantismo que foi instaurado na sociedade das fake news, do
desrespeito aos seres e a natureza, diante da influência não menos grave
da condução da pandemia no Brasil, que levou mais de 580 mil vidas até
o momento em que esse texto é escrito. Sobreviver neste contexto tem
exigido de todos nós o resgate das forças que nos fazem acordar todos os

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dias, sem perder a ternura e a amorosidade que tanto nos conforta e ajuda
a enfrentar o grotesco que se instaura a cada dia.

Horizontes: esperançar, renascimento, renovação e resistência nas (contra)


palavras do rapper Emicida
Após o golpe de 2016, no qual a presidenta Dilma Rousseff foi impedida
de continuar governando o Brasil, é “natural” lermos estampadas as
seguintes manchetes no jornal El pais: “Perdi o emprego, mas não a fé:
me ajudem!” (28 ago 2021); “Pandemia faz condições trabalhistas das
mulheres recuarem uma década na América Latina” (10 fev 2021); “O
desafio econômico de sobreviver à pandemia na América Latica” (18 ago
2020); “América Latina viverá a recessão “mais abrupta da história”,
alerta Cepal” (31 jul 2020); “No farol, William pede dinheiro e um
emprego: “Você se importa de receber meu currículo?” (28 jul 2018);
“Uma em cada duas mulheres trabalhadoras tem um emprego sem garantia
de direitos” (8 mar 2017); “Abismo social separa negros e brancos no
Brasil desde o parto” (21 nov 2019).
Na canção intitulada A ordem natural das coisas, o autor enuncia os
seguintes versos:

A merendeira desce, o ônibus sai


Dona Maria já se foi, só depois é que o sol nasce
De madruga que as aranha desce no breu
E amantes ofegantes vão pro mundo de Morfeu

E o sol só vem depois


O sol só vem depois
É o astro rei, ok, mas vem depois
O sol só vem depois

Anunciado no latir dos cães, no cantar dos galos


Na calma das mães, que quer o rebento cem por cento
E diz: “leva o documento, Sam”

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Na São Paulo das manhã que tem lá seus Vietnã


Na vela que o vento apaga, afaga quando passa
A brasa dorme fria e só quem dança é a fumaça
Orvalho é o pranto dessa planta no sereno
A lua já tá no Japão, como esse mundo é pequeno
Farelos de um sonho bobinho que a luz contorna
Dar um tapa no quartinho, esse ano sai a reforma
O som das criança indo pra escola convence
O feijão germina no algodão, a vida sempre vence
Nuvens curiosas, como são
Se vestem de cabelo crespo, ancião
Caminham lento, lá pra cima, o firmamento
Pois no fundo ela se finge de neblina
Pra ver o amor dos dois mundos

Conforme ressaltamos acima, o golpe de 2016 e a má gestão da pandemia


de Covid-19 - somados a anos de violência social alimentada por décadas
de descaso do Estado como evidenciado pelo sociólogo Florestan
Fernandes - agravaram as condições de vida do povo brasileiro,
principalmente de trabalhadores, da população pobre e negra, além das
mulheres negras e população LGBTQI+, que tiveram seus direitos sociais
e trabalhistas retirados ou minimizados chegando ao ponto do atual
governo nacional oferecer um auxílio emergencial de apenas 150 reais
como alternativa a mais um agravamento que foi a crise da pandemia, que
por ser mal conduzida, ampliou o número de desempregados e de pessoas
em situação de fome e de rua em nosso país.
Emicida narra o cotidiano de muitas dessas vidas, como no caso da
merendeira; muitas Donas Marias acordam antes do sol nascer e logo se
amontoam em ônibus lotados nos mais variados territórios brasileiros.
Ainda na madrugada, “no latir dos cães, no cantar dos galos”, esses
trabalhadores e essas trabalhadoras enfrentam diversas violências
institucionais em meio a sonhos e utopias de suas vidas: “Dar um tapa no

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

quartinho, esse ano sai a reforma” que o autor descreve com boniteza
como “farelos de um sonho bobinho que a luz contorna”. E é nesse
ambiente, da noite que ainda não se foi que a mãe também enuncia ao filho
“leve o documento, Sam” ao ganhar as ruas paulistas, nas quais o citado
abismo social entre brancos e negros, desde o berço, descortinam espaços
para preconceito, violência e discriminação, seja por parte da segurança
pública ou por instituições como temos visto em supermercados,
estacionamentos e shopping centers, que enquadram “o preto, o pobre, o
estudante. uma mulher sozinha e os humilhados do parque” como diria
também o compositor Belchior que granha um participação que vence o
tempo em seu álbum AmarElo e na canção homônima que dialoga com a
composição Sujeito de Sorte.
Porém, nessas “manhãs que tem lá seu Vietnã”, Emicida busca superar
todo esse grotesco dos nossos dias, da situação opressora que se coloca
em nossa realidade, contra o discurso monológico de um discurso oficial,
de um grotesco que é superado por meio de uma reivindicação da periferia,
que também é estética, contra os abusos e violências institucionais e
sistemáticos. Nas palavras de seus raps, Emicida nos coloca na escuta do
povo brasileiro e recupera - ética e esteticamente - a cada verso o seu modo
de ser, de viver, de sentir, de olhar, de se comportar que constitui pela
cultura popular, como avesso aos discursos oficiais institucionalizados e
ao grotesco pensamento bolsonarista.
Seja por meio da “reforma do quartinho”, do “som das crianças indo pra
escola” entre outras imagens que remetem à esperança, ao sol que vem
depois; junto à muita labuta e resistência de sujeitos oprimidos, que
Emicida constrói esteticamente esse “novo homem” e essa “nova mulher”
enunciados por ele “pra ver o amor” desses dois mundos. Diante da
“neblina” de nossos tempos, suas palavras nos transportam para a ética da
vida, sem o álibi, sem ingenuidade, mas com criticidade e com o ato
responsável, na qual os oprimidos, em comunhão, podem buscar a sua
liberdade, como diz Paulo Freire.
Na canção que abre o álbum AmarElo, temos os seguintes versos festivos,
esperançosos, bem como contestador e assertivo:
(...)
Cale o cansaço, refaça o laço
Ofereça um abraço quente

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A música é só uma semente


Um sorriso ainda é a única língua que todos entende
Cale o cansaço, refaça o laço
Ofereça um abraço quente
A música é só uma semente
Um sorriso ainda é a única língua que todos entende

Tipo um girassol, meu olho busca o sol


Mano, crer que o ódio é solução
É ser sommelier de anzol
Barco a deriva sem farol
Nem sinal de aurora boreal
A voz corta a noite igual um rouxinol
(...)
Quer mil volta descarga de tanta luta
Adaga que rasga com força bruta
Deus, por que a vida é tão amarga?
Na terra que é casa da cana-de-açúcar
E essa sobrecarga fruto gueto
Que apaga e assusta seu suspeito
Recarga que é igual a Jesus
No caminho da luz, todo mundo é preto

E tudo, tudo, tudo, tudo que nós tem é nós


Tudo, tudo, tudo que nós tem é
(...)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O olhar estético de Emicida transborda lucidez da realidade de seu tempo.


A relação entre a forma artística enunciada junto aos sentidos produzidos
com ética expressa uma forma criativa e libertária em todos os momentos
composicionais do seu álbum AmarElo. Seu estilo aproxima o leitor que
se coloca na escuta de suas canções numa relação direta com as atividades
humanas do trabalhador, da dona de casa, do estudante, da população
oprimida. O autor, assim, também se coloca na escuta do outro e como
enuncia na música É tudo pra ontem, interpretada junto com Gilberto Gil,
músico e ex-ministro da cultura do governo Lula, revela: “viver é partir,
voltar e repartir”; pois como disse Emicida em entrevista ao jornal El País:
“minha leitura do país não vale porra nenhuma se eu não souber conversar
com alguém desesperado”.
Emicida, enuncia mais adiante como vimos acima que “um sorriso ainda
é a única língua que todos entendem” e afirma de forma bem contundente
e direta “ofereça um abraço quente”. Diante de seu questionamento “Deus,
por que a vida é tão amarga?”, o rapper pega os elementos do pequeno
tempo e lança ao grande tempo, potencializando seus significados. Esses
enunciados concretos não dissociam a ética da estética, unindo
subjetividade, ética e evento. Nesses versos não estão apagados o
sofrimento de uma população menos favorecida e oprimida pelo sistema
capitalista que impõe restrições, opressões e limites; pelo contrário, estão
acentuados a responsabilidade que o autor - como um interlocutor imerso
na cultura do hip-hop - tem com seu povo, com o outro, ao longo de todo
seu diálogo e nos sentidos que nos apresenta ética e esteticamente. A
perspectiva revelada no verso “tudo que nós tem é nós”, repetida com
intensidade na sua palavra, aponta para esse horizonte, para um futuro no
qual a responsabilidade da comunhão é que poderá nos conduzir ao sol tal
qual o girassol revelado em seus versos. Refazer esses laços poderá
libertar - em cada dia, em cada encontro - os oprimidos, que no diálogo,
na singularidade e na solidariedade, mesmo diante de todo o grotesco e as
“sobrecargas frutos do gueto”, indicarão o caminho do esperançar, da
resistência, do renascimento e da renovação, pois “tudo que nós tem é
nós”.

Referências
BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o
contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos, Pedro


& João Editores, 2010.
Crítica: Emicida usa afeto para seu grito de protesto em
AmarElo, Metrópoles. Disponível em:
https://www.metropoles.com/entretenimento/musica/critica-emicida-usa-
afeto-para-seu-grito-de-protesto-em-amarelo Acesso em 2 set 2021.
DAMASCENO, Rafaela. História do Hip-Hop no Brasil. Disponível
em https://www.letras.mus.br/blog/historia-hip-hop-no-brasil/. Acesso
em 06 set 2021.
DELPHINO, Gabriel. O rap como pensamento político brasileiro.
Coleção digital. PUC-RIO, 2020. pp. 31-52. Disponível
em https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/49696/49696.PDF Acesso em
05 set 2021.
EMICIDA: “Minha leitura do país não vale porra nenhuma se eu não
souber conversar com alguém desesperado”, El País. Disponível
em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/20/cultura/1574206386_369
686.html. Acesso em 1 set 2021.
EMICIDA. Página oficial do artista. Disponível
em: http://www.emicida.com.br/noticia/13-AmarElo-Prisma-
Documentario-de-Emicida-propoe-reflexoes-sobre-autocuidado-e-vida-
em-sociedade?lang=ptbr. Acesso em 5 set 2021
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes.
3. ed. São Paulo: Ática, 1978, v. 1.
LOURENÇO, Mariane L. Arte, cultura e política: o movimento hip-hop e
a constituição de narradores urbanos. Periódicos eletrônicos em
psicologia. Versão On-line ISSN 1870-350X, Psicol. Am. Lat. nº.19
México. 2010. Disponível
em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-
350X2010000100014. Acesso em 04 set 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Um banco em Odessa: Uma (in)certa conversa em Prymorskyi


Boulevard

Sara Rodrigues Vieira de Paula


Universidade Federal de Juiz de Fora/doutoranda
saravpaula@gmail.com

Jader Janer Moreira Lopes


Universidade Federal de Juiz de Fora
jjanergeo@gmail.com

A
1971. Estavam aqueles dois homens sentados em um banco em
um boulevard próximo à prefeitura daquela cidade. Não se conheciam. Se
encontraram ali por acaso. Esses encontros promovidos pelo espaço. Se
encontraram porque era o único lugar livre naquela manhã iluminada que
prometia um dia quente. Ambos estavam com uma boa quantidade de
papel em mãos, manuscritos talvez, pois também portavam com eles um
lápis. O olhar perdido para as árvores e construções do entorno era
acompanhado pelo silêncio. A quietude foi quebrada por uma pergunta:
- Fala russo?
- Não... Português e outras línguas.
- Também não falo português. Mas quanto a isso não há problema, pois na
condição de alguém que escreve sobre nós e conosco, o texto do outro
permite que narradores de diferentes línguas possam conversar. Essa é
uma das belezas das escrituras e das autorias, não? Essas vozes são nossas
e de tantos outros e de alguém que as possibilita serem discorridas em
palavras. Forças das enunciações e da relação que cada autor estabelece
com seus heróis. Sou Mikhail Bakhtin, nascido em Oriol, uma cidade russa
às margens do Rio Oka. Оченьприятно (Otchenpriatno) [muito prazer].

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

- Muito prazer, sou Milton Santos, nascido em Brotas de Macaúbas, um


município do Brasil, localizado na Chapada da Diamantina no estado da
Bahia. Essa é minha vida de primeiro nascimento. Mas tive muitos
outros... em outros espaços. Aliás, o espaço geográfico é a minha paixão.
- Temos muitas paixões na vida. Por elas, amamos e sofremos. Temos
alegrias e dores. A conversa começava a tomar rumo. Esses rumos que
vão sobrepondo e mesclando vozes. E como toda conversa, na gentileza e
no cuidado zeloso de esperar as frases serem finalizadas, ela foi se
tornando intensa e amalgamada. Assim se criam intimidades entre as
palavras. Quando elas saltam para além de nossas bocas e corpos e se
misturam nos dos outros.
- Sim, essa paixão me forçou a dor de deixar meu país.
- Qualquer dor por mais que se pareça individual é sempre uma expressão
de um tempo... sei também o que é isso.
- E de um espaço... importante contemplar.
- Sim, de um espaço e um tempo. E qual é sua dor?
- A minha se chama exílio. Tiraram meu corpo do meu território para se
livrarem do signo. O meu foi deslocado, mas muitos outros por lá ficaram,
muitos sem vida, outros encarcerados.
- Não dá para ter um corpo livre se os signos (n)os aprisionam. Isso diria
um conhecido meu nascido na Bielorrússia, mas que viveu muitos anos
em Gomel e Moscou. Como eu, apreciava a estética para compreender a
vida. O teatro era uma das suas paixões. Fez dele uma grande teoria.
- Sábia pessoa...
- O que faz nessa cidade?
- Vim apreciar sua paisagem. Veja essas construções, quantas histórias se
erguem em geografias nessas residências, ruas, estátuas, cores... mas...
confesso também que foi culpa do Mar Negro, sempre tive paixão pelo
seu nome e também Serguei Eisenstein tem sua parcela, como esquecer a
imagem do carrinho de bebês e aquelas escadarias. Ainda hoje sinto a
angústia daquele movimento. Uma imagem cria a emoção e o afeto pelo
espaço, não é?
- Creio que sim, fiz alguns ensaios sobre isso, até dei um nome...
Cronotopia. É quando a vivência, palavra importante para esse outro
bielorrusso, se transforma em texto. Cronotopia é a possibilidade da
vivência em escritura. É nossa condição humana de segurar os contextos.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

- É isso, gosto desses termos, dos seus encontros... Existe algo que sempre
carrego comigo, uma certeza: de que nosso valor depende do lugar em que
estamos... o valor de ninguém é absoluto, estável... isso para mim é uma
verdade, para o bem e também para o mal... porque, eu acredito, tudo
atravessa os espaços, os lugares, todas as determinações... e é por isso,
pela totalidade do espaço, que precisamos tentar entendê-lo como um
todo... não olhar os fragmentos, as parcialidades... nada é isolado... nada
nem ninguém...
- Sim! Há encanto e dureza em suas palavras, entendo seu corpo exilado.
Em meu país também temos e tivemos muitos. Veja as estátuas aqui dessa
cidade... Seus corpos petrificados têm uma beleza a ser contemplada.
Parecem até congeladas pelos olhares da Medusa e nós? O que fazemos?
Damos continuidade ao iniciado por ela, cada olhar dirigido, as enrijece
mais. Inalterável em seu tempo e há tempos. Nosso corpo não é assim, é
um grotesco, um mutável, tem cheiro, tem cor, tem carne e sangue que
pulsa em vida e que pode ser ameaça, outro tipo de contemplação. Há
muitas formas de contemplar o corpo do outro.
- Esse corpo que é espaço me interessa... é no espaço que a vida acontece,
que a vida de todos acontece... Acredito nesse espaço de todos, em que
estão todos os seres humanos, ainda que diferentes, diversos, múltiplos e
infinitos, de onde vem, quanto dinheiro têm, quanto poder, formação, nada
disso importa... ou, pelo menos, não deveria importar, todos estão
presentes, juntos, por inteiro, com todas as suas dimensões, seus corpos,
suas personalidades... do corpo não fugimos, não é mesmo? Não importa
aonde se vá, nosso corpo é quem nos leva e, claro, vai conosco... é nossa
forma, como nos vêem... como também nos vemos.
- Sim! Esse corpo que é visto pelo outro, que o complementa nesse espaço
e nesse tempo... O corpo como axiologia, que atrai ou expulsa. Esse é o
corpo em vida, que incomoda, mas que acolhe e abraça, não tem a rigidez
do mármore, nem sua frieza. Por ser um corpo vivo, tem nele a condição
de morte e de exílio. O corpo que não é mudo, mas de linguagem e falante,
que por sua voz tem que ser forçado a sair de uma fronteira ou ser
encarcerado dentro dela.
Quem passava por ali não entendia como duas pessoas falando línguas
completamente diferentes poderiam estar conversando. Estariam se
entendendo? Talvez por isso, davam até opinião na conversa. A verdade é
que, nesse momento, já não se sabia quem falava o que, mas sobre o que
se falava.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

- Nossa personalidade também... assim como o corpo, nossa personalidade


é o que somos... o que dá conta das nossas diversas consciências... como
vemos e entendemos as coisas... o mundo, os lugares, os outros, nós
mesmos... eu acredito que cada um tem várias consciências... tem que ver,
me parece, com nossas relações com os outros, como vamos construindo
nossa vida... porque, ao fim e ao cabo, estamos juntos, não é mesmo?
Estamos juntos nesta existência... todos nós... e o que permite nossa vida,
nossos encontros? Sim... O espaço...
- Mas isso que falei das consciências... é um processo com certeza
formador... mas ele não é soberano... há quem seja capaz de ter uma
consciência forte. Ainda que as consciências que temos sejam, claro,
processos que vão além de nós, como indivíduos... há os que conseguem
subverter as determinações, as imposições... os limites, você entende?
Personalidades fortes que conseguem ampliar o processo de tomar
consciência... em direção a uma vida mais livre, mais plena... mais inteira
mesmo... e, ainda que tenham o mesmo corpo, não são sobrepujados pelo
que os outros esperam daquele corpo... ultrapassam tudo isso...
transformam suas vidas, recriam a própria existência... sim, eu acredito no
poder de consciências como essas, elas estão por aí...
- Concordo... herdamos o passado... mas no momento mesmo em que
passamos a existir... nossa existência por si só já contêm o futuro... tudo
está em aberto... habitamos esse presente eterno... sim... é verdade... mas
o presente nada mais é que essa fusão entre o que fomos e o que podemos
ser... uma fusão dinâmica, em constante movimento... é verdade... mas é
o que somos... frutos de algo que já está dado, que não podemos mais
tocar, já foi vivido... mas, nosso ser, nesse existir em ato, carrega toda a
abertura pro futuro... tudo que ainda não existe pode ainda existir... eu
realmente acredito nisso... Então, ainda que não seja possível se libertar
do passado, não é? É possível se libertar para o futuro... a liberdade é
essa... a da esperança...
- Sim... e viver nessa nesga que é o presente nos transforma em dois...
como se fôssemos duplos... o passado nos trouxe até +aqui... e isso é o que
somos, mas oscilamos... como um pêndulo... entre nossa existência e a
nossa possibilidade... a partir de quem somos, quem podemos ser? Ah...
quem queremos ser? Até onde ousamos nos tornar quem desejamos ser?
Transformar nossa existência, construir outra vida... qual é o tamanho da
nossa consciência... da nossa força? E da nossa coragem e da nossa
esperança?

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

- Ah, meu caro... Eu acredito nas possibilidades, o mundo, para mim, é


isso... um feixe de possibilidades... um universo de potência a se realizar...
e todos estamos aqui, sem exceção, existindo todos juntos, no espaço... em
comunhão... quero continuar acreditando nisso.
- Como este banco... neste boulevard... cada um que passa carrega em si a
possibilidade de estar conosco ou somente passar... mas só isso já nos
muda, não? Contemplar e ser contemplado...
Por um instante os dois pararam de conversar, nesse momento perceberam
que havia outras pessoas com eles, próximas, em sua volta, dialogando na
mesma pujança, era pura vivacidade... muitos corpos linguageiros, com
muitos sotaques diferentes.
- Ainda há espaço no banco, alguém deseja se sentar?
E a conversa se ampliou. Já não era um banco, mas uma grande roda
num boulevard, na cidade de Odessa, Ucrânia.

Referências
Este diálogo imaginário foi livremente inspirado nas vozes de Mikhail
Bakhtin e de Milton Santos, nossos autores-personagens. No entanto –
ainda que os leitores e as leitoras possam encontrar, ao longo do texto,
ideias oriundas de várias de suas obras –, decidimos citar, no espaço
formal destinado às referências bibliográficas, uma obra de cada autor,
pois acreditamos que representam a essência do pensamento materializado
nesta conversa.
BAKHTIN, M. M. A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec,
1987.
SANTOS, M. A. Por uma Geografia cidadã: Por uma Epistemologia da
Existência. Boletim Gaúcho de Geografia: Associação dos Geógrafos
Brasileiros, Porto Alegre, n. 21, p. 7-14, ago. 1996. Disponível
em: https://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38613. Acesso em: 3 ago. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Um dedo de boa prosa com o mestre caiçara Aorélio Domingues,


no contexto de uma pandemia

Solano Rodrigo dos Santos


FE-Unicamp / Estudante do MP em Educação Escolar
solano.artesmidias@gmail.com

Um tanto da entrevista com um mestre (e amigo) caiçara: como a tradição


abraça o novo?
Duas horas e quarenta oito minutos de uma boa “proseada”, eis a duração
da vivência dialética, etnomusicológica, ética e emotiva mais marcante
que tive em forma de interação online durante a (ainda presente) pandemia
da Covid-19, ao escutar e debater as encantadoras histórias de vida,
música e resistência do mestre Aorélio Domingues e seu grupo, os amigos
da Associação Mandicuéra, expoentes da cultura popular caiçara do litoral
do Paraná, na noite de 24 de julho de 2020, por meio da plataforma Google
Meet.
Fixados na Ilha dos Valadares, já era sabido por mim, desde a época da
graduação, que durante 50 dias após a Páscoa, no período de Pentecostes,
o respectivo mestre e seus companheiros visitam as casas de centenas de
famílias caiçaras, devotas do catolicismo, em meio às diversas
comunidades litorâneas, de Paranaguá (PR) a Cananeia (SP), com a
tradicional folia que celebra a Divino Espírito Santo.
Também era notório que o registro e o compartilhamento de alguns
momentos, desse e de outros eventos realizados por tal coletivo, eram
comuns no Facebook, embora de modo mais enxuto, ou mesmo singelo,
como forma de anunciar ou reportar novidades, sem contato (re)cria-las.
Entretanto, aqui me dou ao luxo de traçar um recorte peculiar sobre os
primeiros sinais das atuais e rápidas mudanças em relação à cultura
popular caiçara, um “dedo” daquela maravilhosa prosa, em especial
quando lhe foi perguntado como ocorreu tal processo, já que a

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

impossibilidade da procissão fez surgir as lives dirigidas ao Rito do


Divino, em especial por ser evidente as mudanças para transmissões e
gravações mais complexas.
Em resposta, Aorélio afirmou enxergar nessa nova situação uma
necessidade de “recontextualização”, que segundo ele, não é uma palavra
(re)corrente em nossa língua, e que dois dias antes havia utilizado em
outra live, relacionada ao debate sobre a Lei Aldir Blanc, causando
estranhamento nos organizadores.
Nesse episódio, ele reforçou sua posição ao dizer que estamos em um
panorama totalmente modificado, necessitando manter alguns hábitos e
tradições, porém tentando ajustar-se a uma nova e estranha realidade,
como também apontou que a adaptação já é algo natural ao caiçara, que é
oriundo e cresce dentro de uma cultura tradicional, mas uma vez que seus
filhos procuram estudar nos grandes centros, e ao retornarem, dá-se uma
transformação de mão dupla.
Só que nessa situação, a manutenção e/ou troca de valores é gradual,
negociada, alterando aos poucos os modos de vida, o que Aorélio cita
como “contextualização”.
Aqui me permito ousar e pensar como a experiência de cada ser humano,
em sua efêmera e rica existência, pode determinar, ou melhor, desenvolver
as direções que a cultura humana pode se lançar a partir de cada sujeito, e
se faz inevitável lembrar do seguinte pressuposto bakhtiniano:
“Somente o valor de um homem mortal fornece a escala de medidas
das séries espacial e temporal: o espaço se condensa como o
horizonte possível de um ser humano mortal, como seu ambiente
possível; o tempo assume espessura e peso de ordem valorativa,
enquanto flui na vida de um ser humano mortal, com a determinação
seja do conteúdo temporal, seja do peso formal, o fluir significativo
do ritmo” (BAKHTIN, 2010, p. 125-126)
A partir dessa escrita, podemos entender e traçar como uma tradição se
faz ao longo de um tempo, a partir das vozes que a preenchem, o ambiente
que a recebe e a alimenta, e sobretudo tentar vislumbrar por quais
horizontes quem a faz/vive poderá sonhar/alcançar, sem que a
ideia/sentido do “fluir significativo do ritmo” é algo se transborda de
significados quando falamos da música produzida por um povo.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Já a contingência do artista e seu público se ajustarem bruscamente a um


novo e estranho meio, é uma guinada maior e mais desgastante, inclusive
por ter que enfrentar um “cenário político horrível e tenebroso” (isso em
relação à governança do momento, na esfera federal, que demonstra
notório menosprezo à arte e à cultura). Assim delineia essa conjuntura
como “recontextualização”.

A mulherada no comando do “pixilhão”: a presença feminina a


transformar/exbranger os horizontes da tradição.
O único item prévio que lhes trouxe alento, era a experiência do grupo na
realização de alguns videoclipes, e ter como principal trunfo a formação e
vivência Mariana Zanetti, sua esposa, na produção audiovisual.
Contudo, o que mais incentivou a adequar a romaria ao formato online foi
o fato de jurar (se) manter no Divino, há 25 anos, sendo uma forma de ser
grato à missão que escolheu e à bênção que recebe, pois mesmo não tendo
carteira de trabalho assinada, se mantém ativo, com dignidade, sabendo
que nenhum emprego permitiria a ele se afastar durante essa sabatina
religiosa.
Além disso, outra grande preocupação seria deixar de fazer o rito para/com
os outros, tendo a atenção de gravar e disponibilizar a gravação da
“Alvorada’, ou a entrada do 1º dia de cerimônia, na manhã de Páscoa, e
também o “Encerro”, a conclusão de todo o ciclo, em seu 50º dia.
No entanto, o grande sinal da dedicação e carinho do Mandicuéra aos seus
seguidores, está no fato de produzirem cerca de 300 vídeos, cada um
direcionado a uma família devota do território caiçara, com versos
personalizado que trazem as histórias e nomes das pessoas de cada casa.
Nesse instante, eu peço a confirmação se a “mão” por trás de tamanho
empenho, e dos vídeos de divulgação, é de Mariana Zanetti, sua esposa, o
que é comprovado, para logo em seguida comentar que a grande dádiva
ao próprio Aorélio, à associação em si, e à tradição caiçara é a presença
dela e das filhas, em especial à gêmeas Luma e Malu, adolescentes que
vem se mostrando promissoras cantoras e instrumentistas da música
caiçara.
Menciono também o fato de sua família ser constituída por mulheres que
vem se destacando dentro do movimento, o que faz com as Zanetti
Domingues tragam a possibilidade de inspirar/incentivar o protagonismo
feminino à essa cultura, que ainda possui amarras patriarcais.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Um tanto comovido, ele corrobora tal fala, e enfatiza que fica contente em
saber que o seu lar é essencialmente feminista, e que isso poderá se refletir
dentro da tradição no decorrer do tempo, porém confessa que
pesquisadores o procuram para alcançar outras figuras proeminentes no
fandango, e ao informar que também existem mestras, não ocorre o
interesse científico de relatá-las como personagens importantes para a
identidade caiçara.
Veríamos aqui um flagrante caso dos velhos e confessos cacoetes de uma
ciência dura e ortodoxa, sendo machista, patriarcal e misógina, ainda que
discurse ao contrário, mesmo que no terreno das humanas e das artes?
Nesse ponto, se faz inevitável cogitar que a heterociência não é só uma
opção que poderá ajudar a melhor compreender essa situação,
especialmente se levarmos em conta o viés do necessário estudo de gênero
em prol da mesma, por ajudar a rever e até demolir antigos (e antiquados
conceitos), conforme defende o professor Augusto Ponzio:
“A questão vital de hoje em dia não é uma questão de “alternativas”:
se de construir um outro mundo, ou melhor, um altrimenti do
Mundo é uma questão de alteridade: alteridade em respeito aos
gêneros, às identidades, aos papéis sociais, ao ser este ou ao ser
aquele” (in: SERODIO, 2018, p.67).
Ligando tal raciocínio à realidade do panorama caiçara, não há como
deixar de lembrar a satisfação do meu amigo Aorélio ao descrever o bom
domínio da viola por parte das gêmeas, inclusive porque substituíram
precocemente participantes adultos e experientes, visto que eles tiveram
se isolar devido à quarentena, sem contar que começam a ensinar as primas
e amigas da mesma idade, e suas vozes se evidenciam por acompanhar as
notas altas, algo que os meninos deixam de ter antes da pré-adolescência,
ainda poucos tocam os instrumentos.
Ao fim desse trecho, ambos concordam e ressaltam que a essa dinâmica
quanto à questão de gênero é um ponto de elemento de evolução
imprescindível para a cultura da região e de todo universo caiçara.
Outra vez, ao matutar/narrar (ou seria metanarrar?) esses fatos, sobrevém
a seguinte contribuição de Bakhtin:
Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entre
no horizonte social do grupo e desencadeie uma reação semiótico-
ideológica, é indispensável que ele esteja ligado às condições sócio-

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

econômicas essenciais do referido grupo, que concerne de alguma


maneira às bases de sua existência material (BAKHTIN, 2006, p.
36)

Considerações finais, ou como a cultura caiçara nos traz uma lição de


resistência, sabedoria e alteridade:
Contudo, para quem conhece tanto ele quanto o grupo, é notório que essa
missão não se estabelece apenas por ordens de âmbito (intra)pessoal, indo
além, pois é visível o cuidado de levar isso ao(s) outro(s), como forma de
sustentar vínculos interpessoais, topológicos e temporais, atravessando o
espaço e o tempo como forma de preservar uma tradição presente no Brasil
desde a sua colonização, sendo uma herança mais antiga ainda se
pensarmos em Portugal.
E conforme estudamos, é a marca de uma época em que a presença de
música e de músicos tentava compensar a falta de liturgia e sacerdotes em
meios às comunidades, respectivamente, por estarmos em um país, porém,
se pensarmos na situação atual, a realidade não se faz muito diferente, uma
vez que mazelas sociais e a própria pandemia exigem essa aproximação
engajada e consciente entre pessoas.
A fim de viabilizar isso, o grupo Mandicuéra adotou estratégias
demandaram alta capacidade de adaptação, reforçando a ideia de que a
cultura popular se preserva mediante adequação e/ou interação entre seus
participantes e em relação a elementos externos, confirmando sua
dinâmica, e fazendo ver não é nada estanque, como algumas pessoas ainda
ousam pensar, colocando-a na “prateleira empoeirada do folclore”.
Tanto que diante desse fato, fez com que os integrantes de tal associação
buscassem soluções dentro das tecnologias, se apropriando de ferramentas
que permitissem a transmissão dos ritos à distância, mantendo o rigor
diário do ritual, ainda que em casa.
Segundo seu líder, Aorélio, isso obriga a quem está acostumado a viver
em um contexto de cultura tradicional, a se reconstruir, passando a
expressar e/ou acompanhar tais manifestações por mecanismos outros, em
um cenário de drástica “recontextualização”, tornando mediáticos
abruptamente, onde antes o contato era primordial.
Para justificar a ressignificação da palavra, ele também emprestou o
neologismo “esbrangente” (ou exbrangente), criado por um mestre
popular de Minas Gerais (que talvez tenha influenciado o violeiro Roberto

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Côrrea, já que gravou um CD homônimo), indicando que a palavra se faz


a partir da intenção ou possibilidade expandir a abrangência de alguém,
ou de um fenômeno, para além do seu campo normal de ação (nessa
explanação, associou isso ao próprio advento das lives).
Reforçando essa ideia, ele igualmente elencou as mudanças e respectivas
ajustes às mesmas, como forma de manter seus símbolos e sua identidade,
ainda espalhando e espelhando esse desejo por entre seus pares, apesar do
uso de dispositivos pouco ou nunca antes utilizados, seja pelo próprio
grupo, seja pelos admiradores que os acompanham.
Com isso, ele, sua esposa Mariana, suas filhas e seus amigos/parceiros de
Mandicuéra, se desdobram em alcançar as condições técnicas para
manifestar sua arte e compartilhar seus saberes por meio da internet, com
esmero e rapidez, sem fazer perder os valores simbólicos e/ou poéticos.
Desse modo, o aplauso e/ou a louvação são substituídos por “likes”,
curtidas e comentários. A plateia e/ou os devotos por visualizações.
A feitura disso é tão eficiente, que consolida a ideia de resistência e
dinamismo como elementos essenciais para a permanência de uma cultura,
em todas as suas relações comportamentais (ethos) e expressivas
(esthesis).
Assim, não só questões de ordem técnica viabilizam a propagação de seus
trabalhos, como ainda estabelecem diálogos estéticos para além do
fandango, e renovações éticas, conforme se dá na valorização do papel das
mulheres em meio ao movimento, tanto que há um protagonismo feminino
no grupo, prestes a influenciar outros e formar uma geração com esse
espírito.
Espírito que o sagrado se entrelaça com o profano, e podendo revelar a
força-beleza do grotesco bakhtiniano. Amanhece !!

Referências
BAKTHIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2010.
BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec,
2006.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

PONZIO. A. É o diálogo que faz a história. In: SERODIO, L.A.


Narrativas, corpos e risos anunciando uma ciência outra. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2018.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Um olhar sobre o destronamento

NANCI MOREIRA BRANCO


Secretaria Estadual de Educação - SEE/SP
nancimbranco@hotmail.com

Trouxe essa charge de Laerte[1] e um pouco do que ela nos provoca.


Diante de um gênero discursivo tão complexo em sua construção de
sentidos, não busco a interpretação verdadeira e única, mas as ideias que
ela nos permite conceber. Assim, deixo aqui minha provocação[2].
A charge é um gênero que se constitui no diálogo com o contemporâneo
e em relação ao já-dito. É uma contrapalavra e nela estão presentes
discursos que lhe deram origem, aos quais ela responde, e, também, os
discursos que ela suscitará em seu interlocutor. Assim, desvendar seus
sentidos é compreender as diferentes vozes que a constituem nessa arena
– lugar do embate, da ideologia, dos sentidos.
A cartunista nos apresenta alguns elementos instigantes, verbais e não-
verbais. O quadro revela um contraste muito bem marcado e, ao mesmo

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tempo, um encontro: de um lado, a “alta cultura”, o “milorde” (nobre,


bem-nascido) e, de outro, a “sobrevivência básica”, o casal maltrapilho e
com traços que lembram o homem primitivo. Sendo a charge uma
subdivisão da caricatura, apresenta uma linguagem gráfica que
potencializa características e sublinha a fisionomia a fim de registrar
determinados comportamentos – traços de “homens da caverna” para
insinuar o selvagem –, evidenciando as nuances que a caricatura projetou
ao longo do tempo: a fisionomia humana com características grotescas e
humorísticas (MIANI, 2012).
Há, nessa construção discursiva, relações de poder em processo de
alternância. A “alta cultura” é mecanismo de manutenção de poder, o que
vemos na fala e na postura do nobre. O fogo está brando e ele talvez ainda
não se sinta ameaçado; o tratamento ainda é cordial. Na fala, há um tom
de naturalidade, mas também de ironia ao enunciar “milorde” – que é um
tratamento empregado aos ”nobres”, ou seja, aos que estão afastados do
povo e não escutam sua voz. Essa relação de distância e não-escuta é
quebrada e, por isso, há interesse do nobre em “conversar”.
O cenário é de caos, mas o “milorde” ainda mantém sua postura de
privilegiado; sua peruca ainda está intacta. A alienação e a teimosia das
elites, representadas nessa figura, não permitem ver a dor e a destruição
nem quando são atingidas. Esse caos do cenário revela uma visão de ruína,
de decadência, de demolição, mas também, em alguns pontos, pode-se
vislumbrar um processo de (re)construção, o que pode ser notado pela
presença de algumas ferramentas ao fundo. Há uma vida em movimento,
o escombro revirado, a torneira pingando, o mexer do ensopado.
“Milorde”, sendo ali cozido, é a metáfora da inversão de poder social: a
“sobrevivência básica” se sobrepõe à “alta cultura” - o povo “faminto” se
prepara para devorar o opressor. Não há pressa. Há um ritual, um
cozimento lento. É a reviravolta da subalternização - a alternância de
poder. A ilustre figura abastada virou a comida(!). Os esfaimados têm a
faca nas mãos; têm, portanto, o poder de decidir. Embora o “milorde”
ainda tente ludibriá-los com sua fala bonita, eles estão no comando. É um
verdadeiro destronamento do tirano. Como cantam os Racionais, em seu
Negro Drama: “eu era carne, agora sou a própria navalha” - a que fere e
derruba o opressor.
Isso nos remete, ainda, ao aspecto libertador do Movimento
Antropofágico. Simbolicamente, não se trata de digerir a alta cultura e o
que ela representa, mas de devorar o inimigo, atuar de forma crítica em
relação ao processo brutal de domínio que levou essas pessoas à miséria.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.


Filosoficamente”, diz o primeiro aforismo do Manifesto antropófago.
Quando Laerte publicou essa charge, em sua rede social, alguns
exclamaram: “Comam os ricos!”, “Eat os ricos!”, “Antropofagia nos
ricos!” Então uma pessoa, de perfil “conservador” e bandeiras do Brasil e
de Israel (?), escreveu: “... e quando acabarem os ricos...”. No que foi
imediatamente contestada: “Aí é só festa!”; “Eat os filhos dos ricos”;
“depois dos ricos, comemos outra coisa...”. Contrapalavras em
movimento. Carnavalização. Os que antes se banqueteavam à custa da
miséria do povo agora são, quem diria, o próprio “banquete” servido aos
famintos. Destronamento.
Na cena carnavalesca, os reis, os poderosos, estão sendo destronados no
seu aspecto grotesco, rebaixados à condição de comida para
famintos. Rebaixar é aproximar da terra, corporificar o que está voltado
para o alto (“alta cultura”; “classe alta”). “O rebaixamento é típico de todas
as formas da alegria popular e do realismo grotesco […]. A orientação
para baixo é própria das lutas, das brigas e golpes: esses reviram, lançam
por terra, espezinham. Enterram. Ao mesmo tempo, são criadores:
ressecam e ceifam” (BAKHTIN, 2010, p.325).
É essa a essência do grotesco: a sua força libertadora e ao mesmo tempo
regeneradora, que lhe confere tom alegre e jocoso. É “a expressão da
plenitude contraditória, ambivalente, da vida: a negação e a destruição
(morte do antigo) consideradas como uma fase indispensável, inseparável
da afirmação, do nascimento de algo novo e melhor” - o que permite a
renovação da vida. (BAKHTIN, 2010, p.54)
Como observado nas respostas à charge, no Twitter, essa cena permite
muitos olhares. Há os que se sensibilizam com o opressor e há os que
vislumbram a perspectiva de derrubar os poderosos de seus
tronos. Entender o nosso lugar na luta de classes é essencial para a nossa
sobrevivência. É a cena de nosso país. Enquanto houver oprimidos
dispostos a lutar para a manutenção dos privilégios dos opressores, estes
se mantêm no poder.
– “Ain! Mas se acabarem os ricos, o que será dos pobres que dependem
do trabalho que eles oferecem?”
Eu conto... ou vocês contam?

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago. In: Revista de
Antropofagia, São Paulo, Ano I, n° 1, maio de 1928.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de Francois Rabelais. 7ª Ed. Trad. Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
MIANI, R. A. Charge: uma prática discursiva e ideológica. In: 9ªArte.
1(1), 37-48. São Paulo, (2012, jan./jun.).

Notas

[1] Essa charge foi publicada pela autora em sua página pessoal do
Twitter, @LaerteCoutinho1, às 9h43am, em 19/05/2021.
[2] Agradeço imensamente às amigas e aos amigos, companheiras(os) de
leituras, pelo diálogo: Pedro Guilherme, Inez Helena, Gegelianos: Colussi,
Miotello, Fabrício, Nathan, Bárbara, Marisol.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

UM PONTO DE VISTA

Angélica Duarte da Silva Araujo


Universidade Federal Fluminense
angelicaduarteas@gmail.com

A leveza para mim, está associada à precisão e à


determinação, nunca ao que é vago e aleatório.[1]
Na linha de front estamos. Todo o material bélico já foi preparado, durante
longas horas organizamos tudo. Durante nossa caminhada até o local da
batalha, encontramos uma vidraça, que parecia ter sido dilacerada por um
golpe, aproveitamos o vidro e o estilhaçamos em mil pedaços e passamos
cuidadosamente pela ala[2] para fortalecer as partes frágeis. O sangue
jorra pelas minhas mãos, mesmo que calejadas, elas ainda não são tão
fortes perante a proeminência do vidro. Não tenho tempo para sentir dor,
meu sangue está quente. É isso que queremos que este material faça com
o adversário, o corte tão profundamente que ele não tenha mais a
possibilidade de continuar onde está.
A distância é meticulosamente estabelecida. Posiciono-me no alto de um
monte, onde posso ter uma melhor visão dos acontecimentos. Do alto vejo
o adversário na trincheira desenho seus movimentos mentalmente, já
tenho muita vivência e prevejo o que ele pretende fazer. Da posição que
estou, o vento noroeste indica que o momento é propício para dar início.
É chegada a hora. O embate é iminente.
Estico a ala, o vento está forte, tenho dificuldades para manter a minha
posição, faço força. O sol está a pino[3], o que dificulta mais meus
movimentos. Quando olho em sua direção fico cego por alguns segundos.
É uma batalha contra o tempo, um momento de cegueira pode custar a
minha existência no embate.
Em uma fração de segundos, invado o campo adversário e o bombardeio
com meus movimentos rápidos, uma enorme peleja se estabelece, meu
adversário luta para não ser vencido, mas eu estou engajado na vitória

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

como se estivesse empunhando uma espada, dou-lhe o primeiro corte que


o faz bambear. Antes que ele perceba, empenho toda a minha velocidade
e o pego desprevenido vindo de outra direção. Dessa vez o golpe é fatal.
Lentamente vai caindo ao chão todos os seus esforços.
Do lado de cá da trincheira, comemoração, do lado de lá correria.

OUTRO PONTO DE VISTA


Estamos no alto da laje da casa de um amigo. Já preparamos a linha, a pipa
e o carretel. Enquanto caminhávamos para a laje, encontramos um
material valioso, uma vidraça quebrada que transformamos em cerol[4].
O cerol é um material perigoso, tem que saber manusear, colocamos na
linha com o intuito de cortar, mas ela pode nos cortar enquanto o passamos
pela linha.
Nos posicionamos no lugar mais alto da comunidade. Daqui conseguimos
ver quase todo mundo que está soltando pipa. Eu já sou muito experiente,
faço isso quase todos os dias nessa época de pandemia. O vento hoje está
muito bom
Essa é a melhor hora.
Estico a linha, o vento está forte, é difícil manter a pipa na posição que eu
quero. O sol está forte, atrapalha a visão da pipa adversária, mas eu uso o
sol ao meu favor, me posiciono de acordo com o horário dele e assim quem
quiser me ‘cortar’ vai dar de cara com o sol.
É tudo muito rápido. Mas é intenso, movimentos rápidos, e precisos, a
linha não pode embolar no pé, puxo a linha com toda velocidade que
consigo, a pipa fica pesada quando está no alto, sinto que pegou em algo,
mas não foi o suficiente. Volto rapidamente e o pego desprevenido. A pipa
desce lentamente, plainando em correntes de ar enquanto é perseguida por
diversas pessoas. O legal de soltar pipa é que em um minuto a pipa deixa
de ser sua e passa a ser de outro. E a qualquer momento a pipa de outro
pode ser sua.
De cima da laje, comemoro. ‘Voou’!!! Sem perceber já tem outro tentando
me cortar.

IMAGEM [5]

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Na busca por encontrar as imagens do grotesco no nosso cotidiano, me


deparo com as diferentes possibilidades da leitura de uma fotografia,
dependendo do seu ponto de vista. Entendendo o mundo a partir dos
estudos bakhtinianos, compreendemos um mundo ambivalente, sendo
assim, não há como se separar o aspecto positivo do negativo, sempre
haverá a ambivalência nas imagens. Assim como o vocabulário de praça
pública, a fotografia também é um Jano de duplo rosto[6].
A fotografia pode ser tomada como leve em si ou ela pode ter nos seus
próprios temas a leveza, ou ela pode ser vista levemente como o Roland
Barthes viu em seu livro Câmara clara. A leveza do que ele chama
de punctum. Essa fotografia apresenta, uma dupla tonalidade que reúne
os louvores e as injúrias, esforça-se por apreender o próprio instante da
mudança, a própria passagem do antigo para o novo, da morte ao
nascimento[7].
Busco nesse pequeno ensaio, construir textos imagéticos, que criem uma
imagem dupla, prenhe de outra imagem, em um corpo textual que
contenha outros corpos, em suas divergências, distanciamentos e
aproximações. A ambivalência que vemos nos textos, que são ao mesmo
tempo uma coisa e outra, para Bakhtin é ali que encontramos o sentido do
cômico, na ambivalência.

Um ato estético só pode ser respondido com um ato estético. Duas


narrativas que tratam um mesmo momento em diferentes perspectivas em
diálogo com a fotografia. A fotografia em si já é uma leveza, já traz um
gesto leve, uma brincadeira de criança. A leveza é como um limiar, um
não-lugar, um sentido que está próximo, mas não é o mesmo sentido.
A leveza não pode atenuar o sentido. A pipa que flutua no ar como uma
pluma, dependurada por uma linha fina, plaina no céu com a leveza de um
pássaro que plaina no ar. A batalha do cerol é uma guerra. O que as linhas
escondem é uma guerra que é leve o suficiente para cortar como uma
navalha. Frente a frente, guerra e diversão. O mesmo e o diferente no
mesmo lugar.
É o repouso leve, tênue, sobre a prata e a luz. Fotográfica, foto designa de
luz, gráfica de escrita. Qual escritura seria mais leve que a escrita com a
luz?

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução: Yara Frateschi
Vieir. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.
BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, Valentin. A palavra própria e a
palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2019.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel
Latud & Yara Viara. São Paulo: Ed. Hucitec, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. O homem ao espelho. Apontamentos dos anos 1940.
Tradutoras: Marisol Barenco de Mello, Maria Letícia Miranda. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2019.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Trad.
Valdemir Miotello & Carlos Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores,
2010.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo
Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2013.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Tradução: Júlia Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
CALVINO, Italo. Seis Propostas Para o Próximo Milénio. Tradução: Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GRUPO ATOS- UFF. Constelar: aprendendo o exercício de uma
heterociência. Revista Aleph, 25, 223-245, 2016.
KUBRUALY, Cláudio A. O Que é Fotografia. São Paulo: Nova Cultural,
1986.

Notas:
[1] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para mudar o mundo, P. 30.
[2] Ala, sinônimo de linha.
[3] A expressão “Sol a Pino” significa que o Sol está no zênite, ou seja, no
ponto mais alto do céu.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[4] O cerol é um composto de vidro moído e cola usado em linhas de pipas


para cortar linhas de outros praticantes.
[5] Foto: Fábio Teixeira, disponível em:
https://www.vice.com/pt_br/article/jpenpk/mar-de-pipas-no-brt
[6] CPIMR PAGINA 142
[7] CPIMR PAGINA 143

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Um pouquinho do vivido...só quem estava lá sabe a intensidade


que foi...

Marissol Prezotto
FE-UNICAMP; IBFE; ECC
marissol.prezotto@gmail.com

Para iniciar uma breve reflexão, retomei um registro feito para compor o
portfólio de registro dos alunos do 5º ano do qual sou uma das professoras
titulares. Assim, volto para as palavras e faço pequenas adaptações aqui
para que você, leitor, possa compreender e refletir junto e para além do
que lerá.

Na semana de 23 a 27-08, tivemos a ausência de uma das professoras


especialistas por motivos de saúde.
Houve um sentimento de frustração, mas muito aprendizado no percurso,
pois as crianças achavam que a aula deveria ser reposta, descontado da
mensalidade, ter aula vaga, ter aula de educação física com as professoras
da sala…
No dia a dia fomos refletindo e percebendo que em todo profissional há
um ser humano que tem imprevistos que nem sempre estão sob o controle
da pessoa ou dos outros que estão próximos. Além disso, vimos que os
trabalhadores têm alguns direitos preservados por lei, o que não
impossibilitava a reflexão e o encaminhamento.
Em uma roda/assembleia retomamos o que havia sido feito na aula que a
professora tinha se ausentado. Jogamos STOP e concluímos uma atividade
de matemática com mais tempo de discussão. Além disso, as professoras
se colocaram que perante todos os protocolos de biossegurança do
COVID-19, não era qualquer atividade que pudesse ser feita e sem
planejar ficaria difícil acontecer porque sua formação não era na área.
Também relembraram que estavam todos os dias realizando atividades

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

fora da sala de aula e, desde o início da semana, já tinham uma recreação


agendada e relacionada ao Projeto Quem sou eu?
Relembramos da Assembleia experienciada ao longo dos anos e o
encaminhamento a ser feito e as hierarquias dentro da escola para que tudo
pudesse encaminhar da melhor forma possível.
Assim, as crianças foram se colocando e fomos retomando o que um
representante faz, como é escolhido e a importância de participar das
assembleias de classe e de curso.
O diálogo foi intenso e nós, crianças e professoras, fomos refletindo sobre
a importância deste espaço e de re.visitar o que cada um desejava com o
coletivo que ali estava aliado aos valores da Escola, construindo um olhar
respeitoso para o todo e pensando em possibilidades.
No registro muito próximo a este, H. e E., eleitos representantes pela
classe através do voto secreto para dialogarem com a coordenação de
curso gravaram um áudio deste momento e anexamos no registro.
Finalizando o momento, orientei que as crianças parassem e pensassem o
que aquele momento representava para si. Quem sou eu após este
momento de diálogo e reflexão?
Minutos de silêncio e reflexão individual. Novo convite: quem gostaria de
partilhar para compor um registro em lousa e assim contribuir e ampliar a
reflexão de cada um e do grupo.

IMAGEM
Neste espaçotempo da escrita na lousa, eu e a outra professora ficamos tão
encantadas com o posicionamento das crianças e suas reflexões. Os links
estabelecidos, a revisitação do posicionamento anterior das crianças a este
momento de encontro de pessoas que estavam buscando juntas
compreender o que cada um e o grupo estava sentindo. Não havia o certo
e o errado. Havia diálogo para compreender os diferentes pontos de vista
e uma necessidade, minha talvez, de recuperar o que fizemos para que não
houvesse somente um olhar sobre o vivido nesta volta às aulas no
presencial com a maior parte da turma.
Neste emaranhado de palavras e sentimentos, solicitei que as crianças
conversassem com seus pais retomando todo o caminho vivido - desde
a não aula e os encaminhamentos e atividades feitas e pensassem em

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

proposições para estes momentos que poderão ser vividos em outras


situações futuras.
Na segunda-feira (31-08) retomamos em classe as proposições e vimos
que nem todos fizeram a partilha com a família. Elencamos aqui: jogos
como Stop, Forca, Bingo, Xadrez e outros que aprimorem habilidades;
elaboração de jogos como super trunfo; momentos de desenho; jogos de
mímica; grupos de arte, de leitura, de matemática; de acordo com a
ausência do professor, fazer uma atividade relacionada à área; pesquisa de
temas de interesse; bate-papo em pequenos grupos; contação de causos e
mini-assembleias
Vimos neste momento que não é fácil propor atividades com
especificações e isso exige planejamento e compromisso de todos para que
aconteça.
Neste ponto do trabalho, marquei para os alunos falarem com a
coordenação de curso e encaminhei um registro igual a este para ser
partilhado com o grupo de alunos no projeto de classe.
Outros materiais de registro foram partilhados com a coordenação de
curso que fez devolutiva em todos, exceto neste. Como me ausentei da
sala de aula para entrevistas trimestrais com os alunos e suas famílias,
ainda não soube com exatidão dos encaminhamentos dados pelos alunos
e pela coordenação. Soube que os alunos foram para o encontro e que
depois a coordenação da escola foi até a sala para devolutiva ao grupo.
Não sei do que foi tratado, pois retorno a sala em breve. Só sei que eu
aguardarei até o próximo dia letivo (08-09) e, caso não haja manifestação,
encaminharei para publicação como parte do portfólio do projeto na
plataforma do Classroom.

Retomando a narrativa e o vivido no último encontro com o GRUBAKH


(Grupo de Estudos Bakhtinianos) do GEPEC (FE-UNICAMP) pude me
distanciar e re.memorar dialogando com Bakhtin. As palavras ampliam e
evidenciam cenas do cotidiano e, ao colocar uma lupa na intenção da não
partilha, não publicação do registro, penso como Sobral e Giacomelli
(2020) quando colocam que:
Se um sujeito dotado de poder e autoritário pode impedir a expressão
verbal de uma dada pessoa, nem por isso pode ele impedir a presença da
voz dessa pessoa: o simples fato de fazer calar uma voz é reconhecimento

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de sua existência. O simples ato de afirmar que “a vida é bela” é entendido


em termos dialógicos como negação de alguma voz que disso discorda.
Há variadas maneiras de reagir ao silenciamento, todas elas, desse ponto
de vista, dialógicas, ainda que variem as circunstâncias de cada situação.
Todas essas maneiras são dialógicas porque “endereçadas” (dirigidas) por
um sujeito a outros sujeitos (que influenciam o modo como o outro se
dirige a elas), considerando as posições relativas de cada sujeito: quem
pode silenciar quem em que situação, quem pode falar, quem deve calar
etc. Não que Bakhtin sugira que calar o outro seja correto. Importa que
diálogo para ele não é sempre entendimento perfeito; pode ser, por
exemplo, uma grande divergência sustentada. Enfim, mesmo que não haja
diálogo em algum contexto, a linguagem é para ele dialógica.
Na intensidade das palavras que também pertencem “ao próprio tempo,
que dá a morte e a vida no mesmo ato” (BAKHTIN, 1999), vou
esmiuçando e me dando conta que o grotesco está tão presente no
cotidiano da escola, pois o acontecimento vivido não foi banal e que a
visão dos sujeitos têm uma visão ideológica pautada por valores
diferentes, mesmo estando no mesmo espaço de trabalho.
É no ínterim da reflexão e do diálogo com os alunos, com a outra
professora, comigo mesma e com a coordenação da escola que busco
enunciar a importância do espaço democrático e responsável
para evidenciar a realidade que vivemos de desrespeito, de diminuição, de
assujeitamento, até chegar ao homicídio, feminicídio, genocídio como
exemplo do cargo máximo do país. Temas e assuntos tão imbricados e
presentes no cotidiano, inclusive no espaço escolar que ‘sofre/sofreu’
tantas interferências sem ouvir quem estava realmente ali, no chão da
escola. Neste caso narrado, o direito dos alunos de terem um professor
substituto, do professor de sala não ter que assumir mais uma
responsabilidade para a qual não tem formação e tantos outros que o
professor tem tido que lidar com maior intensidade em tempos de ensino
pandêmico.
Vale destacar que quando se respeita as diferentes visões de mundo nos
espaços de conversa/trabalho da/na escola, da/na sala de aula, da vida e
registra-se para que não se perca a sagacidade desta experiência,
evidenciando a importância da não distância do mundo da vida que está
presente diariamente na escola, na sala de aula, na vida de todos os sujeitos
ali presentes. Quando ocorre esse diálogo fazemos um recorte do tempo e
da sua incompletude porque mesmo escrevendo, não se pode traduzir o

1577
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

todo. Não tem como sentir os gestos de amor e respeito quando os sujeitos
são questionados em suas próprias palavras para que todos possam ter uma
melhor compreensão do caos instaurado na ausência da professora
especialista, pois a professora da sala também tinha se organizado para
realizar uma atividade enquanto seus alunos estivessem em outra aula.
Cada vez mais vejo como se faz necessário revelar a atualidade cotidiana
para que esta se torne histórica, autêntica e repleta de sentidos e
significados para os que viveram a situação e para os que leem o registro
como possibilidade de reflexões outras.
É nesta esperança de narrar e compartilhar que podemos lançar novos
olhares sobre o acontecido, iluminando as tragédias ou risos possíveis para
que uma nova escola/novas práticas possam ser experienciadas, reveladas,
partilhadas...e seus sujeitos consigam se ver como realmente são no
cotidiano deste espaço de trabalho/estudo e da vida.
É neste recorte do pouquinho do vivido que pretendo me debruçar para
escutar o que está além do que está posto e partilhado e, assim, reafirmo
que só quem estava lá/aqui sabe a intensidade que foi...

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. tradução de Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1999.
BRAIT, Beth. (org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo:
Contexto, 2009.
TIHANOV, Galin. A importância do grotesco. Revista Bakhtinianas.
Jul/Dez, 2012. 166-180.
SOBRAL, Adail & GIACOMELLI, Karina. (2020). Por Uma Proposta
de Educação Dialógica Alteritária. Línguas&Letras. 21. 10.5935/1981-
4755.20200001.

1578
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Um presente, quase, contínuo

Luis Carlos dos Santos Patricio


Sem vínculos
luiscarlos.patricio@gmail.com

Luz Miguel Pereira


FAETERJ - Três Rios
luizmiguelp@gmail.com

Um breve instante foi


Um presente que eu ganhei, mas ainda não abri
Seguindo em frente então
Sem memória, e sem futuro
(Lúcio Maria, 2007)

Seguimos em busca de outros signos que nos alimentem de possibilidades


semânticas desaprisionantes. Sim, seguimos. Até porque seria mentira, se
afirmássemos de maneira diferente. Ora, que insistência essa sua fala
negando as minhas meias certezas. Se ainda tenho alguma memória, digo-
lhe, de forma intempestiva, que, apesar da busca pela polissemia sígnica,
insisto na manutenção monológica em situações que me convêm,
sobretudo, quando os sentidos escravizados por uma vontade deseducada
entram em profusões em busca de saciedades díspares.
Miguel - Viestes? Pensei que ia deixar-me falando sozinho, dizes, para
que chegastes? Bebes? Fumas? Comes? Ah, já sei, és o leitor, ha, ha, ha...
Patrício - Continuo sozinho, embora esteja acompanhado.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Miguel - Que dissestes? Falas com autoridade de quem conhece o assunto,


é claro que sabemos que tudo isso é uma farsa.
Contaminamo-nos do presente, sem evocações ao passado, pobres de
experiências expressivas, sem legados e com as lembranças fragmentadas
e deletadas. “Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência
não é mais privada, mas de toda a humanidade” (BENJAMIN, 2008, p.
115).
Rogamos por um conceito de tempo pensado a partir da ausência de
linearidade, um não tempo, sem memórias e sem esperanças. Ausências
de alusões para justificar os fluxos dos signos oriundos sobre as reflexões
de Jano bifronte. Um tempo que zele pela unidade entre o mundo da
cultura e o mundo da vida, aproximando-se de uma fração ordinária
indefinida numa proposta de vivência na perspectiva de uma poética, de
fixos que se amolecem diante dos movimentos dos instantes.
...o instante já é um pirilampo que acende e apaga. O presente é o
instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca
minimamente no chão. E a parte da rola que ainda não tocou, tocara
num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu
viva e tremeluzente com os instantes, acendo-me e me apago,
acendo e apago, acendo e apago (LISPECTOR, 1990, p. 20).
Almejamos encontrar esse tempo de pirilampos, no entanto, perdemos o
mapa e desconhecemos a cartografia de sua cronotopia. Assim, apenas
antevemos, no apagamento de sua luz, portanto, no escuro, a intuição de
uma possibilidade de insistir explorando espaços e tempos, assumindo,
grotesca e despoetizada, a aventura de se perder numa linguagem que
possibilite o pirilimpear a existência.
Patrício - Será que isso justifica esse isolamento fragmentado de
frágeis relações em que o gozo efêmero está a 1000 nas cabeças ávidas
por vida, por sexo, por emoções que suplantem as anteriores e sempre
suplantem, para que, no alvorecer do meio-dia do dia seguinte, estabeleça-
se uma relação do tipo concreto pensado, em que o ser representa, antes
de mais nada, o nada. Sim, pois com todas as emoções suplantadas na noite
anterior, restou apenas aquele cotidiano fatídico no qual, para alguns, está
o segredo da felicidade e, para outros ...
Miguel - Ei, espera aí, você não tem o direito de invadir minha
privacidade! Ela é tímida eu sei, mas nem por isso você pode chegar assim
me chamando de visionário, de louco... Essa loucura provavelmente foi

1580
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

devido à identificação dos agentes que deliberaram que eu só podia


estudar em salas com meninos.
Chegamos de forma precipitada e com base no instante, cujo presente
ainda não abri, à seguinte conclusão: ao nos perdermos, nós nos achamos
invariavelmente. À medida que os acontecimentos produzidos pelas
nossas percepções semânticas se descortinam diante do campo visual
sensorial, nossas acuidades se diferenciam. O efeito paralaxe descortina
o repertório de vivências e, por conseguinte, pode ocorrer que, numa
situação, ao estarmos num determinado lugar olhando para a paisagem,
percebemos signos distintos, portanto, podemos nos encontrar em
situações instantâneas com percepções diferentes.
Pedimos permissão para dialogar com as palavras alheias e provocados
por entendimentos contraditórios, fruímos, com aproximações
pretensiosas, uma relação que nos conecta com contexto cronotópico.
No cronotopo artístico literário ocorre a fusão dos indícios espaciais
e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo
condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o
próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do
enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço,
e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse
cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo
artístico. (BAKHTIN, 2014, p. 211)
Parece-nos que estamos rastreando o tempo dos pirilampos e, à medida
em que nos perdemos nos labirintos da linguagem, sem pretérito e sem
futuro, antevemos, num lapso temporal, uma pichação. “Sem devir e sem
via-a-ser”.
Miguel - E eu? O que estou fazendo mesmo? Ah! sim, estou escondido
de mim mesmo. Mas tudo isso começou quando...
Patrício - Após a travessia da infância para a
adolescência, não quis abandonar a bendita ou maldita chupeta, ainda
lembro sua
cor, rosa, rosa desbotado, com um bico inesquecível, era tão
consistente, tão macio...
O esquecimento do futuro impossibilitou-nos de aceitar a oferta do
presente de Ariadne. E cá estamos presentificados por letras, palavras,
diálogos, sentidos, solidões e signos imersos metaforicamente, numa taça

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que bebemos sem nos preocupar absolutamente com nada. Embriagados


de significados instantâneos, de alegres metáforas e, principalmente, do
vômito provocado pela incessante ressaca pela ingestão de vocábulos e
orações subordinadas...
A opção pelo tempo dionisíaco nos é inspirada pelas enunciações
bacantes, cujas referências se conectam distanciadas de um logos temporal
e espacial. Encontramos, nas volúpias de consagrações dos instantes, os
fluxos de plurais que conseguiram se esgueirar das embriaguezes que
deram azo ao presente de se enunciar...
Miguel - Onde está o nexo?
Patrício - Perdi!
Miguel - Perdi, é verdade, mas a verdade é que os espermatozoides estão
soltos nos esgotos, nas vielas, nas veredas e em todos os desvios
e insistem em aparecer nos momentos mais exaustivos.
Patrício - Não que a exaustão seja uma coisa definida por si própria, pois
tudo, todos têm sua exaustão.
Miguel - Peculiar como as formas.
No limiar na inter-relacionalidade, evidenciamos nossos
fugazes devaneios. “O rei está nu, mas eu desperto porque tudo cala frente
ao fato de que o rei é mais bonito nu” (CAETANO VELOSO, 1988).
Atentos às satisfações instantâneas, insistimos, embora com certa lentidão,
no princípio contraditório que se revela quando caminhamos juntos, às
vezes nos perdendo, outras vezes nos achando e, ademais, sem certezas
temporais.
Miguel - Quando houve o desencontro de percepções, alvitrei a
necessidade de diferenciar a indolência do bem-estar. Foi quando me
deparei com a urgente necessidade de não ser de todo ridículo. E foi
assim que, após atribulações diversas, cheguei à vírgula em que me
encontro. Especulações abstratas de estéticas ultrapassadas e vencidas
pelo modernismo caótico. Diante das óbvias evidências, provisoriamente
suporto, com certa desconfiança, as afirmações de concretudes que escuto
no decorrer dos dias.
Patrício – Não consigo dividir a visão da lua cheia surgindo atrás do morro
com ninguém! A noite estava agradavelmente fria, uma atmosfera
londrina pairada sobre a favela e mais uma noite se passou. Os dias

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

continuam passando, as horas, os minutos, enfim, os satélites captam


mensagens e, na calçada, a vizinha vendia hot dog com salsicha.
Para dizer que não falamos das flores, as forças dominantes existentes em
todos os aspectos na sociedade insistem na persistência da manutenção de
uma presentificarão, exemplificando o contexto de publicidade de
duradoura juventude e na oferta de compra e venda do futuro.
É de grande alívio compreender que “a palavra está em todo ato de
compreensão e em todo ato de interpretação” (VOLÓCHINOV, 2017, p.
101) e que não basta a palavra, mas sua enunciação.
Cada enunciação da vida cotidiana, compreende, além da parte
verbal não expressa, também uma parte extra verbal não expressa,
mas subentendida – situação e auditório – sem cuja compreensão
não é possível entender a própria enunciação. Essa enunciação
enquanto unidade significante, elabora e assume uma forma fixa
precisamente no processo constituído por uma interação verbal
particular, gerada num tipo particular de intercâmbio comunicativo
social. (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 159.)
Embora estejamos provocando com algumas reflexões sobre a
presentificacão da vida, entendemos que, ao projetarmos um futuro que
aprisiona o presente, nossos enunciados vão se oxidando e, no processo de
rotina, esquecemos a busca por pirilampos e, aprisionados
voluntariamente no labirinto, uma das possibilidades do instante é o quase
inevitável acontecimento do encontro com o Minotauro.
A propósito, nossa opção por esta escrita foi pensada a partir de uma
arquitetônica hibridizada de gêneros textuais, contextualizada numa das
propostas da arena dialógica “O grotesco dos nossos tempos: vozes”. Os
diálogos foram adaptados a partir da peça “A mão” (PEREIRA, 2021), no
prelo.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e estética: a teoria do
romance. São Paulo: Hucitec, 2014.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza In: BENJAMIN,
Walter Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras escolhidas vol. 1).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.


(Coleção Grandes autores nacionais)
MAIA, Lúcio. Arrudeia. Álbum Homem binário. Trama, 2007.
PEREIRA, Luiz M. Texto teatral A Mão. 2021. No prelo
VELOSO, Caetano. Estrangeiro. Álbum Estrangeiro. Philips, 1989
VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaievich. A construção do enunciado e
outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.
VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaievich. Marxismo e Filosofia da
Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da
linguagem, São Paulo: Editora 34, 2017.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Um texto em construção: a vida em tempos escatológicos

Reginaldo Lima de Moura Muniz


Prefeitura Municipal de Saquerema
reginaldolmuniz@gmail.com

A linguagem familiar de praça pública caracteriza-se


pelo uso frequente de grosserias, ou seja, de expressões
e palavras injuriosas, às vezes bastantes longas e
complicadas. Bakhtin, 2013, p.15.
I-
“Chamo sentidos às respostas as perguntas. Aquilo que não responde a
nenhuma pergunta não tem sentido para nós” em Estética da Criação
Verbal página 381 por Bakhtin.

II -
Assim, chamado a conversa, provocado pelo VIII Círculo - Rodas de
Conversa Bakhtiniana 2021, coloco-me, aqui, em reposta. O tema do
Rodas deste ano versa sobre a questão da escatologia e tem como título: O
grotesco dos nossos tempos: vozes, ambientes e horizontes. Então,
disponho-me com um conjunto de palavras, trechos e citações que recolhi
ao longo dos anos de estudo de Bakhtin, para participar das arenas
dialógicas. Não que eu tenha algo importante para dizer, penso que, depois
que encontrei com Bakhtin, só falo em resposta. Tenho praticado o
exercício da escuta. Desse modo, posso responder com a minha vida de
maneira responsiva, sem álibis. Tal como na vida, minhas escrituras são
textos que respondem o que minha voz não alcança nos espaços-tempos
que vivemos. Por isso, escrevo, para fazer circular uma palavra outra; em

1585
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

outros espaços-tempos que meu corpo não puder estar, em presença estará
a minha voz em palavra.

III -
“Sabemos que os excrementos desempenharam sempre um grande papel
no ritual da “festa dos tolos”. No ofício solene celebrado pelo bispo para
rir, usava-se na própria igreja excremento em lugar de incenso. Depois de
ofício religioso, o clero tomava lugar em charretes carregadas de
excrementos; os padres percorriam as ruas e lançavam-nos sobre o povo
que os acompanhava” em A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento por Bakhtin página 126.

IV -

A imagem grotesca não se assemelha ao trecho apresentado acima por


Bakhtin. Aqui, a figura como texto diz sobre um discurso escatológico que
não considera a palavra do outro, que se omite a uma necessidade, uma
não-resposta, que também é uma resposta. Não creio que “caguei” possa
ser considerada uma resposta dialógica. Temos uma imagem que
apresenta uma perspectiva não sofisticada do grotesco bakhtiniano.

1586
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

V-
“O objeto das ciências humanas é um ser expressivo e falante. Esse ser
nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável sem seu sentido e
significado” em Estética da Criação Verbal página 394 por Bakhtin.

VI -
No texto “Metodologia das ciências humanas”, que está no livro Estética
da Criação Verbal, Bakhtin discute sobre este ser expressivo, falante e
inesgotável de sentidos e significado. Ao escolher este tipo de projeto
discursivo, lembrei-me dessa provocação que Bakhtin nos faz. Então
pensei: - por que não trazer em trechos as partes que me tocaram a
conversar nesse Rodas de 2021?” Assim, as divisões das palavras, trechos
e reflexões estão isoladas, a fim de criar partes discursivas que podem ser
conversadas e refletidas, em parte ou no seu todo textual. Creio, não tenho
certeza, que esse método me possibilita criar outros diálogos e integrar
outras partes no texto em construção; – sim, isto é um texto em construção.
Ora, nos números pares teremos palavras, trechos e reflexões de Bakhtin;
nos números ímpares, minhas respostas, que estão, já neste momento,
impregnadas das palavras outras do círculo bakhtiniano. Imagem, para nós
que estudamos Bakhtin, também é texto.

VII -
“Por isso os principais acontecimentos que afetam o corpo grotesco, os
atos do drama corporal - o comer, o beber, as necessidades naturais (e
outras excreções: transpirações, humor nasal, etc.), a cópula, a gravidez, o
parto, o crescimento, a velhice, das doenças, a morte, a mutilação, o
desmembramento, a absorção por um outro corpo - efetuam-se nos limites
do corpo e do mundo ou nas do corpo antigo e do novo; em todos esses
acontecimentos do drama corporal, o começo e o fim da vida são
indissoluvelmente imbricados” em A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento por Bakhtin página 277 por Bakhtin.

VIII -

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O tempo grotesco e escatológico flerta com a desumanidade. Passamos a


normalizar a morte, que agora não tem mais sentido de perda, mas sim de
número. Então, estamos sentados em cima de vidas, que não são diferentes
das nossas; são vidas. Não há nada mais grotesco e escatológico do que
dormir sobre os ossos, dos nossos outros. Quando foi que perdemos a
humanidade? - Não sei, não tenho certeza. Digo perdemos, porque isso é
sobre nós, e conosco. Estamos participando desse funeral a céu aberto e,
de certa forma, extasiados, sem ação. Então, nossos corpos, que são corpos
políticos, estão a serviço de um desgoverno, um tempo em que a pior parte
da escatologia nos cerca. Os corpos que vejo no nosso espaço-tempo são
corpos sem vida, atolados na lama que nos assola cotidianamente. Mas
esses corpos de que Bakhtin trata são corpos abertos, corpos em
movimento. Aqui, a imagem não corresponde a uma retratação de um
grotesco sofisticado bakhtiniano.

IX -
“O modo grotesco de representação do corpo e da vida corporal dominou
durante milhares de anos na literatura escrita e oral. Considerado no ponto
de vista da sua difusão afetiva, predomina ainda no momento presente: as
formas grotescas do corpo predominam na arte não apenas dos povos não
europeu, mas mesmo no folclore, europeu (sobretudo cômico); além disso,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

as imagens grotescas do corpo predominam na linguagem não-oficial dos


povos, sobretudo quando as imagens corporais se ligam às injúrias e ao
riso; de maneira geral, a temática das injúrias e do riso é quase
exclusivamente grotesco e corporal; o corpo que figura em todas as
expressões da linguagem não-oficial é o corpo fecundante-fecundado,
parindo-parido, devorador-devorado, bebendo, excretando, doente,
moribundo; existe em todas as línguas um número astronômico de
expressões consagradas e certas partes do corpo: órgãos genitais, traseiro,
ventre, boca e nariz, enquanto aquelas em que figuram as outras partes:
braços, pernas, rostos, olhos, etc., são extremamente raras” em A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento por Bakhtin página 279 por
Bakhtin.

X-
No mais, espero encontrar todas e todos nesse espaço-tempo dialógico,
que sempre foi lugar de conversas abertas, amorosas e com sentidos e
significados que são de aberturas e não cabe qualquer tentativa de
explicação. O Rodas de Conversa Bakhtiniana é o evento necessário para
terminar o ano fatídico e trazer horizontes, mesmo que sejam de forma
virtual. Não tarda, logo nos reuniremos novamente, com conversa boa,
rodas de leituras, cheiração de livros e café, num ato comensal que não
termina. Ali, ao término de cada encontro, são colocadas novas intenções
e muitas relações são estabelecidas, a partir dos encontros que a vida
proporciona. Em tempo, penso que devemos colocar nossos corpos
políticos na rua; em qualquer rua.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra.
6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução: Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.
https://domtotal.com/charges/

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Uma conversa com as marcas do tempo!

OTO JOÃO PETRY


UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL
otodez@yahoo.com.br

[...] É preciso, porém, que tenhamos na resistência que nos preserva


vivos, na compreensão do futuro como problema e na vocação para
o ser mais como expressão da natureza humana em processo de
estar sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não para a
nossa resignação em face das ofensas que nos destroem o ser. Não
é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos
afirmamos. (FREIRE, 1996, p. 87, grifos do autor)
Hoje, véspera de 7 de setembro de 2021, uma tarde chuvosa e com alguns
trovões, veio à lembrança minha infância. Lá, numa pequena comunidade
rural do interior de São Miguel do Oeste (SC), quando chovia e ocorriam
trovões éramos abrigados pelos pais ou irmãos mais velhos na nossa casa.
Ela era de madeira com janelas de vidro por onde víamos as chuvas
torrenciais, os raios que cobriam o sítio com suas variadas formas, ora do
solo para a nuvem e outras vezes da nuvem para o solo; ouvíamos os
trovões, avistávamos o balançar das árvores. Deslocamento de massas de
ar, tempestades, chuvas torrenciais, ventanias, quando ocorriam de dia e
amenas, eram boa companhia, mas noite adentro, os trovões, as rajadas de
vento fortes, eram assustadores.
Nos muitos dias de chuva que as vezes se sucediam, na casa encontrava-
se abrigo, proteção, segurança, descanso. A casa era o lugar da morada.
Lá se reunia a família, os vizinhos, os amigos, os parentes e se passavam
horas conversando, contando causos. Os cheiros e sabores das comidas
caseiras, dos doces e chás compunham, sobremaneira o lugar dos

1591
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

encontros. Naquele tempo, eram rodas de conversa e de trocas. Rodas em


que circulava muita amorosidade, noções do cuidado e do cuidar-se,
muitas lembranças. A casa era, portanto, o lugar, o espaço, dos encontros.
Nos encontros, nas histórias contadas encontrávamos nossas próprias
ancestralidades. A casa era parada e passagem dos moradores dos fundos
do interior quando para a cidade íam. A casa era parada e de encontro dos
primos e primas da cidade em épocas das férias escolares.
A casa, simples, ladeada por um imenso pomar, perto de um riacho,
encostadinha da nascente de água, cercada de alguns cinamomos a fazer-
lhes companhia ao longo dos tempos. A casa na cor adquirida com o passar
do tempo era uma, agora com pintura externa de amarelo com janelas
pintadas de marrom, e interior de azul, é outra. A casa de lampião a
querosene era uma, com energia elétrica é outra. A casa cheia de gentes
era uma! Agora é outra...

Em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo


familiar, de amigos e conhecidos, de colegas, em que homens e
mulheres crescem e vivem, sempre existem enunciados investidos
de autoridade que dão o tom, como as obras de arte, ciência,
jornalismo político, nas quais as pessoas se baseiam, as quais elas
citam, imitam, seguem. Em cada época e em todos os campos da
vida e da atividade, existem determinadas tradições, expressas e
conservadas em vestes verbalizadas: em obras, enunciados,
sentenças, etc. Sempre existem essas ou aquelas ideias
determinantes dos “senhores do pensamento” de uma época
verbalmente expressas, algumas tarefas fundamentais, lemas, etc.
(BAKHTIN, 2011, p. 294)
Como pôde acontecer? Faz tão pouco tempo e escapa-nos algo tão
precioso - o lugar do aconchego, o lugar do convívio fraterno. É verdade
também, o lugar dos estranhamentos. O lugar do bem querer, o lugar do
abrigo e conforto. O lugar dos costumes e tradições familiares. O lugar do
descanso, o lugar do encontro e dos encontros. Deixamos de tê-la, a casa,
a minha casa, a tua casa, a nossa casa, a casa das tias e tios, a casa das
vizinhas e dos vizinhos, a casa das primas e dos primos, a casa dos avós,
a casa dos pais, a casa das amigas e dos amigos. A casa das irmãs e dos
irmãos. A casa das netas e dos netos. A casa das partilhas, a casa para os
encontros das rezas. A casa dos festejos de aniversários. A casa das gentes,
nas suas alegrias e tristezas, a casa dos sonhos e das paixões. A casa do

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

passado misturada no presente e se esvaindo nas incertezas do futuro em


tempo atual.
Como nos ensina Leonardo Boff, em Saber cuidar: ética do humano-
compaixão pela terra,
A sociedade contemporânea, chamada sociedade do conhecimento
e da comunicação, está criando, contraditoriamente, cada vez mais
incomunicação e solidão entre as pessoas. A internet pode conectar-
nos com milhões de pessoas sem precisarmos encontrar alguém.
Pode-se comprar, pagar as contas, trabalhar, pedir comida, assistir a
um filme sem falar com ninguém. Para viajar, conhecer países,
visitar pinacotecas não precisamos sair de casa. Tudo vem à nossa
casa via on line. (BOFF, 1999, p. 11)
E assim, a “sociedade do conhecimento”, essa figura abstrata e
equidistante, tomou-nos a casa, com seus cheiros, cores e sabores,
transformando-a e integrando-a nas dinâmicas e complexas formas de
produção, acúmulo e concentração da riqueza em escala global. O espaço
da casa em sua cronotopia singular e irrepetível foi convertida em novo e
pulsante espaço de produção de mais-valia.
A relação com a realidade concreta, com seus cheiros, cores, frios,
calores, pesos, resistências e contradições é mediada pela imagem
virtual que é somente imagem. O pé não sente mais o macio da
grama verde. A mão não pega mais um punhado de terra escura. O
mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano,
caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do
toque, do tato e do contato humano. (BOFF, 1999, p. 11)
De lugar do aconchego e dos encontros, a casa transmutada em uma outra
casa. A casa, agora, espaço-tempo, em sua forma intermitente. A noite é
prolongamento do dia. O amanhecer e anoitecer em movimento uníssono.
Na casa, tão próximos e tão distantes. Juntos e isolados. A casa, escola.
A casa trabalho. A casa restaurante. A casa, dormitório. A casa parque de
diversões. A casa academia. A casa cinema. A casa bate- bola. A casa
acampamento. A casa auditório. A casa escritório. A casa lavanderia. A
casa invadida. A casa que não me e nos pertence mais. Eu quero a minha
casa de volta!
E como assinalado na epígrafe inicial, destaco que o exercício da rebeldia
nos constitui gente desperta. Por isso me reinscrevo de modo ativo e
rebelde nos tempos-espaços da casa. É do aqui e agora, em novos

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

encontros de gentes e vozes que constituirão outras gentes e vozes, para


alterar os tempos sombrios e num círculo de conversas abrir caminhos
para novas relações de convivência. Além do mais, “O que vai tecendo a
vida toda de qualquer humano são as relações de reciprocidade que cada
humano tem com a palavra de outro humano. [...] As relações de
alteridade, desse encontro quase infinito de palavras, é que vão fiando os
fios de nossa existência, dada sempre nas vivências com os outros”.
(MIOTELLO, 2013, p. 8)

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: Ética do humano – compaixão pela terra.
6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
FREIRE. Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MIOTELLO, Valdemir. Um ser expressivo e falante. Refletindo com
Bakhtin e construindo uma leitura de vozes. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2013.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São
Paulo: Editora 34, 2018.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

VIOLÊNCIA DOS CORPOS NO AMBIENTE ESCOLAR E A


POTÊNCIA DAS VOZES INFANTIS: HORIZONTES PARA
UMA EDUCAÇÃO TRANSFORMADORA

Thatiane Maria Almeida S. Mendes


UFRN
thatianeasmendes@gmail.com

Gabrielle Leite dos Santos


UFRN
gabriellegabi@gmail.com

Na entrada, um salão principal fechado e sufocante, janelas altas demais


para ver o céu ou qualquer outra paisagem. Ao lado da porta da frente, um
cartaz emblemático que enunciava “NA ESCOLA, SE APRENDE:
PORTUGUÊS, MATEMÁTICA, HISTÓRIA; EM CASA SE
APRENDE: EDUCAÇÃO, RESPEITO, VALORES” já nos sinalizava
parte dos discursos com os quais nos confrontaríamos ali. Um quadro de
professores em desfalque; aulas suspensas semana sim, outra não, pela
indisponibilidade de alimento; horários vagos; uma quadra descoberta e
quente como único espaço de convivência e lazer. Indiferente a tudo isso,
a alegria e a potência de diversas vozes infantis misturadas ao fundo. Um
ambiente que reflete o desinvestimento e, talvez, a descrença com a
política educacional; um local que se comunica com um cenário nacional
urbano e se relaciona com a realidade de diversas escolas públicas no país.
Ali também o lugar de esperança que a escola é e representa, sua potência
transformadora vivenciada no contato, nas vozes, nas trocas. O contraste
conflitante entre esses dois sentidos possíveis e em disputa do que seja e
para que serve a escola. Esse foi o cenário encontrado na experiência de

1595
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

estágio em Psicologia aqui rememorado, na produção de sentidos


múltiplos e in(ter)disciplinares com a Linguística Aplicada, e é esse
contraste que buscamos enfatizar, num olhar atento e na escuta amorosa
das vozes das crianças para vislumbrar horizontes possíveis para uma
educação antirracista, feminista e anticapitalista, como resistência ao
grotesco dos nossos tempos.
A negociação de sentidos aqui ensaiada tem como pressuposto teórico-
metodológico a concepção dialógica de linguagem, em especial a
categoria do signo ideológico, que nos aponta para a língua como um
indicador sensível de percepção dos sentidos e ideologias que estruturam
a sociedade, que constituem a nossa consciência individual, que reverbera
em nossos discursos sobre o mundo e sobre nós mesmos, de modo
refletido e refratado (VOLOCHINOV, 2017; BAKHTIN, 2016), e, a partir
da perspectiva do materialismo histórico-dialético, nos chama atenção
para o papel fundamental da linguagem na manutenção da ordem das
coisas ou no seu confronto e na revolução social. Como explicita
Volochinov (2017, p. 113): “[...] em todo signo ideológico cruzam-se
ênfases multidirecionadas. O signo transforma-se no palco da luta de
classes”.
Antes de tudo, é necessário contextualizar. Essa era uma escola estadual,
localizada em um bairro periférico da cidade de Natal-RN, que atendia
cerca de 100 alunos do fundamental I, com idades entre 6 e 15 anos. No
meu primeiro dia, direcionado a ouvir as demandas do campo, fui
chamada para a sala da coordenação (a única com ar condicionado), e ouvi
por 2h seguidas sobre como os alunos eram violentos, rebeldes, não
tomavam jeito, não importava o que se fizesse. Eram desajustados, se
comportavam como animais, e lá estava mais uma vez o mais
problemático deles, na terceira suspensão nesta semana: “Sei que saindo
daqui, vai pra rua, mas não pode ficar aqui, atrapalha”. Para onde mais ele
iria quando a escola, que deveria ser seu espaço de segurança e
acolhimento, o coloca para fora?
Observando a dinâmica da escola nas primeiras duas semanas para
conhecer a rotina e compreender as demandas explicitadas, pude perceber
que a violência partia de todos os lugares, menos das crianças. Sofri ao ver
Maria, uma aluna de 5 anos, chorar e espernear até querer vomitar
enquanto o diretor apertava seus braços com força, deixando hematomas.
Chorei ao ouvir uma professora implicada e atenciosa, contando com dor
sobre a situação de uma aluna que já tinha sido espancada e tido seus
cabelos queimados pela própria mãe. Fiquei sem palavras com o relato das

1596
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

crianças, de 5 e 6 anos, sobre como sua colega de turma Lia tinha sido
literalmente arrancada da cadeira “como um animal”, nas palavras deles,
e levada para fora da sala de aula por estar dormindo. É fácil culpabilizar
o indivíduo em situações desse tipo. É sempre mais simples pedir que a
psicologia diagnostique o aluno-problema, encaminhe para o psiquiatra,
para que volte medicado. E qual o diagnóstico deveríamos dar para uma
sociedade que aceita milhares de famílias em situação de vulnerabilidade,
sem saber se terão o que comer ou onde dormir? Qual remédio tem sido
receitado no sentido de proteger essas famílias da violência de um Estado
que só se faz presente para cobrar, encarcerar e punir?
Sabemos que os processos de aprendizagem e transmissão de
conhecimento estão presentes nas mais diversas sociedades e tempos,
orientando as relações entre humano/natureza. Contudo, no âmbito da
sociedade capitalista, a escola se configura como um dos agentes
fundamentais para sua reprodução e manutenção, seja na transmissão de
conhecimentos necessários à reprodução do capital e sua ideologia
dominante, seja na produção de consensos e na domesticação dos corpos
que servirão de mão de obra para o sistema (Mészáros, 2008). Em seu livro
“Ensinando a Transgredir”, bell hooks (2017) nos conta sobre sua
experiência enquanto criança em uma escola do fundamental frequentada
apenas por negros. Em suas palavras: “Para os negros, o lecionar - educar
- era fundamentalmente político, pois tinha raizes na luta antirracista” (p.
10); sendo assim, suas professoras se preocupavam em ensinar que estudar
era um dos modos fundamentais de resistir às estratégias de colonização
branca, aproximando-se da realidade das crianças, buscando mecanismos
para emancipá-las em seu processo educativo. Mais tarde, com o fim da
política de segregação e sua inserção numa escola de brancos, relata: “de
repente, o conhecimento passou a se resumir à pura informação”(hooks,
2017, p. 12), contando que já não se sentia estimulada a ir à escola. Os
dizeres presentes no cartaz estampado na entrada, ainda no começo do
estágio, diziam respeito à perspectiva de que a escola deveria atuar apenas
nesta transmissão de informações, estando desconectada do compromisso
de formação das alunas/alunos, alheia à função social e emancipadora que
abriga o ambiente escolar.
Um dos momentos mais desafiadores do estágio aconteceu enquanto
realizávamos uma de nossas primeiras atividades junto com as crianças do
primeiro ano, cuja faixa etária girava em torno dos 6 e 7 anos, em média -
grupo com o qual trabalhamos mais de perto no percurso do estágio.
Estávamos trabalhando as emoções e pedimos para que cada uma das

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

crianças desenhassem o seu próprio rosto, com qualquer emoção que


quisessem. Levamos lápis de cor e giz de cera de várias cores que
contemplassem os mais diversos tons de pele, numa escola em que a
maioria das crianças eram negras. Apesar disso, as crianças se
desenhavam loiras, de olhos azuis, com expressões tristes ou de medo. Ao
serem questionadas em relação a isso, traziam em sua narrativa o fato de
não serem negras, mas brancas ou morenas. Essa experiência me lembrou
de Clóvis Moura (1994), quando falando sobre o racismo no Brasil diz
que, a partir de um processo de alienação, os segmentos não brancos da
sociedade acabam interiorizando os valores brancos das classes
dominantes, fazendo com que “essas populações queiram fugir do seu ser,
da sua concretude étnica, refugiando-se numa identidade simbólica
deformada” (Ibid., p.157).
Em um outro momento do nosso processo de trabalho sobre o
conhecimento de si e do outro e da afirmação dos diversos modos de ser,
perguntamos às crianças, dentre outras questões, em que cada uma/um se
considerava boa/bom, algo que avaliavam que faziam muito bem.
Enquanto os meninos respondiam sempre futebol, jogos de videogame,
corridas e as mais diversas brincadeiras em que ocupavam com
propriedade s ruas e o espaço urbano de suas vizinhanças mesmo tão
pequenos, as meninas (em especial as meninas negras) se orgulhavam em
dizer como eram boas nas tarefas domésticas: passar o pano, ajudar a mãe
com a louça e com o cuidado dos irmãos mais novos, fazer o café, ou arroz
e feijão para o almoço.
Ambas as experiências nos mostram como o fato de estarmos
inseridas/dos num sistema em que o patriarcado ainda funciona como
pensamento estruturante para a manutenção do capitalismo, o racismo é
uma voz hegemônica e o lucro é o princípio de tudo, nos molda desde a
infância a partir de concepções racistas, classistas e sexistas. A partir
disso, cabe-nos questionar: como, diante de uma realidade tão complexa e
marcada por desigualdades, injustiças e vulnerabilidades, o compromisso
da escola, especialmente a pública, deve ser ensinar apenas português e
matemática? Essa ideia apenas reforça o quanto a educação, a despeito de
sua potência emancipadora, vem sendo compreendida por alguns como
mercadoria e utilizada como produtora de indivíduos cada vez mais
conformados e subordinados, prontos para se tornarem mão de obra servil
para o capital. É preciso que o ambiente escolar ofereça a crianças já tão
atravessadas por tantas vulnerabilidades sociais um local de acolhimento
de suas dores e sentidos, de segurança para serem e se reinventarem, para
compreenderem os processos que as constituem, as desigualdades que as

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

atravessam na busca por um saber de si e do mundo que seja cada vez mais
emancipatório, como nos diz Paulo Freire (1979, p. 17): “A educação é
mais autêntica quanto mais desenvolve esse ímpeto ontológico de criar. A
educação deve ser desinibidora e não restritiva.”
Desse modo, fica explícita a necessidade de que a escola se configure
como um local de questionamento, de disputa de narrativas em busca da
transformação social, para que estas crianças possam se haver com outros
modos de ser e existir. Se a busca por mudança no sistema educacional
não estiver atrelada a uma busca por mudança da sociedade como um todo,
incorremos no risco de nos satisfazer apenas com ajustes ou com pequenas
correções de uma ordem já pré-estabelecida (Mészáros, 2008). Sendo a
escola em questão de Tempo Integral, as crianças passavam a maior parte
da semana tendo um contato maior com a equipe de educadores do que
com suas próprias famílias e lares, colocando em relevo o papel da escola
como agente formativo, que deve ser capaz de oferecer espaços de escuta
e acolhimento, numa busca incansável e esperançosa pela superação das
vulnerabilidades, já que não pode haver educação sem esperança, como
nos ensina Paulo Freire (1979).
Pensando na invisibilidade que vivenciavam tanto socialmente, quanto no
contexto escolar, em busca da afirmação de suas identidades e a partir de
uma provocação vinda das próprias crianças, decidimos gravar um curta
metragem, envolvendo todas/os as/os alunas/os que quisessem participar.
Elaboramos perguntas simples, relacionadas ao trabalho que
desenvolvemos junto com elas/eles, a escola, o bairro. Nossa intenção era
que, conversando sobre o que pensavam, pudessem ir construindo e
expondo seus sentidos diante das câmeras. No dia do encerramento,
encontramos um jeito de expor o documentário no telão, no pátio da
escola, que trazia agora diversos papéis impressos com falas de Paulo
Freire e não mais aquele cartaz do início. Tanto o processo quanto o
resultado foram bastante surpreendentes. A exibição permitiu que as
crianças se enxergassem, se ouvissem, se percebessem, e estas pareciam
muito felizes e orgulhosas de si. O momento também permitiu que a
equipe da escola, em especial a coordenação, pudesse olhar para aquelas
crianças a partir de um outro enquadramento dialógico: como indivíduos
cooperativos, criativos e amorosos.
É necessário destacar que toda a mudança de perspectiva construída em
conjunto no decorrer do estágio só foi possível graças à amorosidade sem
tamanho das crianças, sua inventividade e energia, toda a potência de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

criação e de envolvimento que cabiam em seus corpos, no afeto que


emanavam para com os outros e pela colaboração tão potente e abertura
das professoras aliadas. Por fim, fazendo referência à lei nº 13.935/2019,
que prevê inserção de profissionais da Psicologia nas escolas da rede
básica de ensino, ainda em processo de implementação no País, é
necessário destacar que os profissionais de psicologia, a partir dos espaços
de escuta, diálogo e intervenção nas escolas públicas, devem atuar na
busca pela transformação da realidade social. Opondo-se aos espaços de
escuta individualizante e aos diagnósticos compulsórios, cabe aos
profissionais de psicologia, em sua atuação, trabalhar em conjunto com a
equipe de educadores, crianças e famílias na busca por uma educação para
a emancipação, tendo como horizonte a superação das vulnerabilidades
sociais e o compromisso ético-político com a transformação social que nos
orienta.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34,
2016.
CORDEIRO, Fernanda A. Direito à cidade sob a perspectiva de gênero.
In: Anais do Encontro Internacional e Nacional de Políticas Sociais. v1.
n1. 2018.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de
liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo:
Boitempo, 2008.
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora
Anita, 1994.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979.
VOLOCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da
linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

1600
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

VOLATILIDADE DO INSTAGRAM EM TEMPOS


PANDÊMICOS

GIANKA SALUSTIANO BEZERRIL DE BASTOS GOMES


UFRN
gianka.bezerril@gmail.com

Hadassa Freire Gomes Rodrigues


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
hadassafreire60@gmail.com

Priscila Adriana Nascimento Silva


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
priscilaadriana153@gmail.com

Pandemia e volatilidade
Considerando que em aproximadamente em dezembro de 2019
houve rumores de que uma possível pandemia poderia se estender
pelo mundo em pouco tempo, e que essa futura pandemia
começava a se desenvolver na China, conforme Freitas, Napimoga
e Donalísio (2020, p. 1), “Desde o início do atual surto de
coronavírus (SARS-CoV-2), causador da Covid-19, houve uma
grande preocupação diante de uma doença que se espalhou
rapidamente em várias regiões do mundo, com diferentes
impactos”. De acordo com a Organização Mundial da Saúde
(OMS), em 18 de março de 2020, os casos confirmados da Covid-19
já haviam ultrapassado 214 mil em todo o mundo e não existiam

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

planos estratégicos prontos para serem aplicados a uma pandemia


que se alastrava tão rapidamente.
Assim, velozmente o vírus se estendeu pelo mundo, de forma que
as instituições, governos e profissionais da área não estavam
preparados para o enfrentamento da situação. Isso prova o
fenômeno da globalização que provoca a diminuição da distância
espacial, da distância temporal e o processo de desaparecimento
das fronteiras. Deste modo, podemos perceber que o mundo está
em constante movimento e o espaço mundial tem se tornado o
espaço local e o local, cada vez mais, espaço de interação mundial.
De tal modo, compreendemos que esse movimento simultâneo e
globalizado dissemina rapidamente informações como também
pela ‘’glocalidade’’, disseminou rapidamente o vírus Covid-19.
Portanto, assim como a globalização, a pandemia alcançou vários
países e continentes levando simultaneamente a um período de
estagnação social, econômica e até mesmo política. Com isso,
gerou-se o protocolo mundial de distanciamento social e
isolamento domiciliar que confinou o mundo dentro de casa. No
entanto, hoje sabemos que, não sair de casa não significa
ociosidade, pelo contrário, utilizando um simples smartphone, os
usuários podem visitar os sites que gostarem, podem conhecer a
vida de outras pessoas ou celebridades, acompanhar conteúdos
diversos e gratuitos por meio dessa rede de transmissão e
compartilhamento. Com o desenvolvimento das tecnologias de
informação, com destaque irrestrito para o advento da internet, as
pessoas passaram a receber e enviar informações em larga escala
para todos os locais do mundo de forma imediata, mas também de
forma volátil, inconstante, rápida.
A volatilidade, portanto, nas publicações, é um elemento que está
cada vez mais presente nas relações sociais virtuais, isto é, a
capacidade de se deformar, de se adequar, de mudar de forma com
muita facilidade. O que implica dizer que, por mais autenticidade,
alteridade e planejamento que uma publicação tenha, ela vai ter

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

poucas horas de alcance máximo na plataforma, pois a cada hora


milhões de pessoas estão postando conteúdos, desta forma
o post tende a circular mais rápido, consequentemente o público
tende a acompanhar essa volatilidade e ser induzido pelo conteúdo
dos hiperlinks, das hastags sobre o assunto ou área que tem mais
interesse em ficar informado.
Sobre essa volatilidade, Bauman (2001, p. 8) afirma que “A
extraordinária mobilidade dos fluidos é o que associa à ideia de
‘’leveza’’[...] Associamos ‘’leveza’’ ou ‘’ausência de peso à
mobilidade e à inconstância”. Ou seja, essa volatilidade, essa
tendência de rapidez e leveza é que tem atingido às redes sociais e
chegado até aos usuários de forma intensa pelos meios de
comunicação. Assim, as informações estão cada vez mais rápidas e
com isso são criadas e consideradas como ‘’passado’’ com muita
rapidez.Escreva aqui seu texto para o VIII Círculo. Você pode
copiar e colar do seu editor de texto, mas provavelmente terá que
fazer alguns ajustes. Abaixo, algumas diretrizes para a formatação
do seu texto. Separe um tempo para ler com atenção. Depois
substitua tudo o que está neste editor pelo seu texto.

A volatilidade do instagran: análise inicial


Assim, analisando de forma inicial a rede social instagram, criada
em outubro de 2010 por Kevin Systrom e Mike Krieger e, logo
depois, em 2012, comprada pelo Facebook, percebemos a extrema
volatilidade que a rede social gera. A rápida análise em diversos
perfis criados na rede de interação nos permite afirmar que, a todo
momento, há conteúdos sendo criados e outros sendo esquecidos,
ou simplesmente ‘’descendo no feed’’ como a comunidade afirma.
Dessa forma, tomamos como base, para essa análise inicial sobre o
tema, os perfis @editoraparabola e @universocientista. O primeiro
perfil com aproximadamente 24 mil seguidores e o outro com quase

1603
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

18 mil, respectivamente, daí o considerarmos relevantes para a


comunidade a que se destinam, como também para análise.
Assim sendo, percebemos que ambos os perfis são direcionados a
estudantes cientistas. O @editoraparabola especificamente ao
público interessado nos estudos da linguística, haja vista que
consiste em uma editora renomada nesse meio e apresenta
conteúdos destinados ao público cientista, como também realiza
vendas de livros e objetos de papelaria que interessam a alunos de
Letras. Já o @universcientista consiste em uma página de humor
para estudantes e pesquisadores de várias áreas do conhecimento,
não estando circunscrita a uma área específica, mas englobando
outras áreas e pesquisadores de nível superior, especificamente.
Nessas duas páginas, percebemos um entrelaçamento de um
público que em uma é mais específico e em outra é mais aberto e
sugestivo. No perfil da editora parábola @editoraparabola temos no
mínimo cinco tipos de posts: a) Os ‘’#EnsinoPandêmico’’ que traz
comentários de professores relativos ao ensino de linguagens em
meio ao contexto pandêmico; b) os ‘’ser professor de Português é...’’
que traz por publicação um costume que todo professor de
Português possivelmente possui; c) outro tipo de publicação são as
propagandas de box com livros de linguística e material voltado
para estudantes de letras e professores; d) ‘’cursar letras é...’’
trazendo os pontos positivos, geralmente com frases motivacionais
para estudantes de letras; e) por último, apresenta também frases
de autores renomados na Língua Portuguesa, tanto da literatura
quanto da linguística.
Dessa forma, quando analisamos as postagens, podemos classificá-
las como previamente definidas para serem disponibilizadas ao
público em uma ordem não repetível para não deixar os seguidores
saturados de informações, cores e tipos de publicações iguais. O
perfil mescla as postagens de forma a atrair um público engajado
que interaja nas publicações que são realizadas cotidianamente no
perfil. Muito embora, saibamos que mesmo tendendo a não

1604
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

repetibilidade, dificilmente isso ocorre, tendo em vista que a


estrutura composicional é previsível sob certo aspecto. Talvez isto
se explique porque no mudo virtual, a satisfação não dura muito
tempo, e o “volume de objetivos sedutores nunca poderá ser
exaurido”, como salienta Bauman (2001, p. 85).
Em um período de 4 dias analisamos 7 posts realizados no perfil.
Iniciamos, no dia 12/07/2020, visualizando uma imagem do autor
Guimarães Rosa com uma frase de sua autoria.

Imagem 1: E para finalizar o domingão…

Fonte: Disponível em:.. Acesso em 07 Set 2021. Acesso em 07 Set


2021.
No dia 13/07/2020 uma imagem propaganda de um livro da editora
disponível para compra no site, ou seja, um espaço para conhecer
o livro e poder adquiri-lo também. Ainda nesse dia, outro tipo de
post foi realizado ‘’#EnsinoPandêmico’’ com uma dica da
professora Vera Menezes (UFMG) sobre como lidar com o ensino
nesse contexto pandêmico vivido.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

No dia 14/07/2020, outro tipo de post foi realizado, a propaganda


de um box (Imagem 2) da editora para linguistas ou estudantes de
letras. O box de livros vem com vários brindes de papelaria e
personalizados para profissionais ou estudantes da área de Letras,
o que chama mais a atenção do público específico.

Imagem 2: Mimos+ descontão = tudo que você queria

Já no dia 16/07/2020 foram realizados 3 posts, o primeiro ‘’Cursar


letras é...’’; #EnsinoPandêmico’’ e “ser professor de português é...”.
Dessa forma, percebemos que o perfil possui uma programação de
publicações que não deixam os seguidores se dispersarem da
página, mas há uma constância de publicações, o que implica
afirmar a volatilidades desses conteúdos, então, aproximadamente
1(um) dia apenas sem realizar nenhum tipo de post é suficiente
para sumir do feed dos seguidores e deixar de engajar o público.
Entende-se, portanto, a dificuldade de fixação de conteúdo,
precisando, para atrair o público, a página estar em atualização
diária. Ou seja, na corrida pelo consumidor, as postagens precisam
ser velozes, mesmo que esse consumidor quase nunca consiga
permanecer na corrida durante muito tempo, não há linha de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

chegada, tudo é visto, lido, apreciado, mas destituído com a


chegada da próxima postagem, o propósito é estar na corrida, é o
desejo pelo novo, é a compulsão pela próxima postagem, são
momentos de realização voláteis.
Já o perfil @universocientista traz posts direcionados a estudantes
de graduação ou de pós-graduação a fim de provocar humor. As
publicações da página trazem memes famosos nas redes sociais e os
utilizam para enfatizar a dificuldade de produção de artigos, de
teses de doutorado, de projetos de mestrado, engajando não apenas
o público da área de linguística, como também de diversas áreas do
conhecimento. Dessa forma, a página apresenta, majoritariamente,
apenas um tipo de publicação, que segue o modelo abaixo
apresentado:

Imagem 3: Essa pessoa só pode ser 1 coisa sua: seu inimigo

Fonte: Disponível em:


<https://www.instagram.com/p/CC_6nBeHwnvrNe22J4QAjbGGl
F8cq_2doED39Q0/> Acesso em: 25 Jul 2020.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Esse post é um vídeo com legenda, na parte superior, que atrai a


atenção do seguidor interessado no tema logo na primeira
impressão. Assim, a página possui uma média de publicação de 2
a 3 posts por dia, pelo observado em quatro (4) dias, o que faz com
que o perfil seja bastante engajado, como também, continue com o
processo de volatilidade em alta. Deixamos claro que estamos
apresentando as análises fruto de um estudo ainda preliminar,
resultado de um projeto acerca dos gêneros digitais iniciado em
2020.

Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar,
2001.

FREITAS, A.R.R. NAPIMOGA, M. DONALÍSIO, M.R. Análise da


gravidade da pandemia de Covid-19. Epidemiol. Serv. Saude, Brasília,
29(2):e2020119, 2020.

Webgrafia:
. Acesso em 07 Set 2021.
. Acesso em 07 Set 2021.
<https://www.instagram.com/p/CC_6nBeHwnvrNe22J4QAjbGGlF8cq_
2doED39Q0/>. Acesso em: 25 Jul 2020.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Voz popular, ambiente carnavalizado e horizontes


emancipatórios no samba O dia em que o morro descer e não for
carnaval: o grotesco carnavalesco dos nossos tempos.

Gustavo Sampaio Rego


Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/Professor de Educação
Infantil
vertalp@hotmail.com

Não tem órgão oficial, nem governo, nem liga


Nem autoridade que compre essa briga
Ninguém sabe a força desse pessoal
Melhor é o poder devolver pra esse povo a alegria
Paulo César Pinheiro e Wilson das Neves

No exercício de circular a palavra, encontro a palavra de Wilson da


Neves e Paulo César Pinheiro no samba O dia em que o morro descer
e não for carnaval e dela faço aproximações ao grotesco em Bakhtin
com os elementos da voz popular, ambiente carnavalizado e
horizontes emancipatórios.
Ao refletir com estes autores o grotesco dos nossos tempos, recorri
ao samba por encontrar nele os elementos dos quais nos fala
Bakhtin quando, ao examinar a cultura popular da Idade Média e
do Renascimento na obra de François Rabelais, delineia o realismo
grotesco e a visão carnavalesca de mundo.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Embora os tempos da obra rabelaisiana examinada por Bakhtin e o


tempo e o espaço da obra examinada aqui sejam distintos - a
transição da Idade Média para o Renascimento e o tempo
contemporâneo -, de certo modo, o samba, que é indissociável do
carnaval brasileiro, parece trazer em suas representações os
elementos análogos a esses dois espaços-tempos, como na relação
da unicidade dialética entre opressores e oprimidos, entre o oficial
e o não oficial, entre o riso popular e a seriedade.
Bakhtin falou da carnavalização como categoria mais geral de
certas cosmovisões que em todos os povos unificava tanto o céu
quanto a terra, tanto o alto quanto o baixo corporal. Entretanto, com
o surgimento moderno da sociedade de classes e a imposição da
vida ascética pela classe dominante, da visão de mundo
racionalista que ganhou força no Renascimento europeu, operou-
se uma forma de separação dessas dimensões tanto o ponto de vista
das representações quanto do ponto de vista político, ou seja
socioideológico.
Para Bakhtin, “a função do grotesco é liberar o homem das formas
de necessidade inumana em que baseiam as ideias dominantes
sobre o mundo” (BAKHTIN, 2008:43). O grotesco derruba essa
necessidade e descobre seu caráter relativo e limitado. Nele,
encontram-se unificadas em suas representações, tanto a cultura
popular quanto a visão carnavalesca do mundo cuja lógica é o
drama cômico que engloba ao mesmo tempo a morte do mundo antigo e o
nascimento do novo (Idem:128).
Bakhtin, como estudioso dos gêneros linguísticos, concebe a partir
da obra de Rabelais o realismo grotesco como: sistema de imagens da
cultura cômica popular onde o cósmico, o social e o corporal estão ligados
indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. Onde o princípio
material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica,
formando um conjunto alegre e benfazejo. Tem como marca
o rebaixamento, ou seja, a transferência ao plano material e corporal, o da
terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

espiritual, ideal e abstrato, e vê o riso popular ambivalente como


aquele que organiza todas as formas do realismo. Bakhtin nos afirma
que:
“o riso da festa popular engloba um elemento de vitória não somente
sobre o terror que inspiram os horrores do além, as coisas sagradas
e a morte, mas também sobre o temor inspirado por todas as formas
de poder, pelos soberanos terrestres, a aristocracia social terrestre,
tudo o que oprime e limita”(Bakhtin, 2008, p.79-80).
Desta forma, Bakhtin nos possibilita olhar para o fenômeno da
carnavalização, em seu sentido amplo, como processo festivo,
alegre e licencioso que confronta, através do riso ambivalente e
universal, o poder oficial, sério, proibitivo, restritivo.
Ainda que desnaturalizado, empobrecido, tornado um espetáculo
socioideologicamente situado, impregnado de sentido utilitário na
ordem capitalista (pois, apesar da sua força popular, foi preciso
adequar-se às imposições do poder dominante, conquistar, o
respeito e admiração de intelectuais, o interesse de empresários e
sofresse o empobrecimento com sua comercialização) a
carnavalização baseada no gênero do samba foi capaz de penetrar
profundamente em todas as classes sociais. Do pobre ao rico, o
samba enquanto gênero musical, poético, com origens populares
sabidas na africanidade sincrética brasileira, a despeito de toda
proibição e restrição impingida historicamente pelo poder oficial
escravagista, ganhou força estabelecendo-se como gênero próprio
da maior festividade nacional.
Apesar de sua degradação, o carnaval através do samba constituiu-
se em um ambiente no qual a voz do povo, a voz do morro, ou seja,
a voz da classe popular pode ser escutada, ressoa livremente nas
ruas. E, diferentemente dos ambientes hierarquizados da vida, nela
o povo, na voz do poeta, pode, com o riso ambivalente, falar de sua
dor, de seu prazer, da consciência das relações desiguais e
descortinar horizontes que clamam pela morte do antigo e
prenunciam o nascimento do novo permitindo entrar

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

temporariamente num universo utópico de liberdade e justiça


social.
O samba de Wilson das Neves e César Pinheiro assume o tom
profético de uma insurgência armada do morro contra o poder
dominante ao enunciar/anunciar/ameaçar:
O dia em que o morro descer e não for carnaval
Ninguém vai ficar pra assistir o desfile final
Na entrada, rajada de fogos pra quem nunca viu
Vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil
É a guerra civil
O dia em que o morro descer e não for carnaval
Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
E cada uma ala da escola será uma quadrilha
A evolução já vai ser de guerrilha
E a alegoria, um tremendo arsenal
O tema do enredo vai ser a cidade partida
No dia em que o couro comer na avenida
Se o morro descer e não for carnaval

O júbilo da escola de samba na avenida une-se em cada verso aos


elementos de guerra civil revolucionária, de tal modo que temos
lado a lado: a ala como quadrilha, o uso de fogos como uso de
armas bélicas, a alegoria como arsenal, o enredo como a cidade
partida, a evolução como guerrilha e a dança como carnificina (No
dia em que o couro comer na avenida). Cria uma imagem ambivalente
em que o riso carnavalesco, alegre e livre é aproximada à revolução
popular que prenuncia, com a morte ou a aniquilação do poder
instituído, a renovação dos tempos. Este riso popular universal

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

carnavalizado, constante no samba, impede que o sério se fixe e se isole


da integridade inacabada da existência cotidiana (BAKHTIN, 2008:105).
Assim, o carnaval, enquanto festividade oposta à toda festividade
oficial, municiada do riso ambivalente, eleva a multidão - o povo -
a uma vitória efêmera sobre o regime dominante, desfaz no plano
simbólico, ético e estético a estrutura hierárquica e instaura um
ambiente de igualdade.
Se com Bakhtin tomamos a lógica única do todo carnavalesco
como o drama cômico que engloba ao mesmo tempo a morte do mundo
antigo e o nascimento do novo (Idem:128), na voz do poeta, o nó
grotesco une as imagens do desfile de carnaval na avenida aos da
guerrilha. Imagens separadas pelo esforço da classe dominante na
manutenção do status quo, já que aqueles que têm acesso às armas,
tradicionalmente, são os exércitos e não a população. E, aliás,
monopolizam o uso da força justamente como antídoto contra
insurgências populares, apelando para o medo e a intimidação. Se
não chega a destroná-lo, atesta a consciência do seu desejo: Se o
morro descer e não for carnaval.
Aí, tal como em Bakhtin ao olhar para a carnavalização em
Rabelais, a catástrofe social e histórica prenuncia, anuncia ou
ameaça, o momento em que a ordem será destruída, as diferenças
sociais apagadas, os inferiores perderão todo o respeito pelos superiores
(Ibidem:206). No grotesco popular, a loucura é uma alegre paródia do
espírito oficial, da gravidade unilateral, da verdade oficial (Ibidem:35). A
percepção carnavalesca do mundo contrasta com tudo que é
estático, imutável e acabado.
Se em Rabelais, de acordo com Bakhtin, a linguagem alegre,
ousada, licenciosa e franca da praça pública teria sido usada para
‘atacar’ as ‘trevas góticas’, a linguagem do samba, parece ser usada
pelo sambista para ameaçar o status quo. Não tanto pela letra
quanto por seu gênero musical, o samba, (melodia e ritmo) que nela
lhe confere uma atmosfera alegre, ousada, licenciosa e franca, mas
pelo riso ambivalente grotesco através da criação da imagem de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

rebaixamento do poder político e econômico pela via da


insurgência popular carnavalesca.
A classe dominante, ontem aristocrática e colonialista e hoje
capitalista, tem medo da vida que não esvazia a vida em nome do
lucro e da manutenção do status quo. Morre de medo de uma
insurgência e, graças à arte e às lutas populares é sempre lembrada
desta possibilidade.
O grotesco dos nossos tempos parece encontrar no samba e na
cultura popular um potente espaço enunciativo, plurilinguístico,
capaz de ressoar a voz popular e, ao destronar o poder com a
verdade não oficial, apontar para horizontes emancipatórios.

Referências:
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Hucitec, 2008.
NEVES, Wilson das; PINHEIRO, Paulo César. O dia em que o morro
descer e não for carnaval. O Som Sagrado de Wilson das Neves, 1996.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Vozes - O que aprendemos com o grotesco?

Patricia Kerschr P. Bento


Universidade Federal Rural do Rio de janeiro
patriciakerschr@hotmail.com

A criança começa a ver-se pela primeira vez como que pelos olhos da mãe
e começa a falar de si mesma nos tons volutivo-emocionais
dela...(BAKHTIN 2017, p. 46). Dessa forma, o autor nos convida a
refletir sobre a chegada da criança ao mundo, um mundo em
erupção, em pleno acontecimento. Pelo olhar, pelas palavras, pelo
o tom da voz, o calor do abraço e do pulsar do coração, a mãe e os
adultos mais próximos começam a delinear esse novo sujeito,
sujeito único irreptível que chega ao mundo.
O presente texto busca dialogar com o tempo presente, fala de
abraços, de encontros, em especial, com vozes e horizontes dentro
da escola. Apresenta um cenário escolar bastante diferenciado, pois
novas frases de ordem invadem nosso vocabulário: distanciamento
social; uso de máscara obrigatório; álcool 70% passou a fazer parte
do material escolar de primeira necessidade. Compartilhar
material, nem pensar! Brinquedos e brincadeiras? Como, se não
pode chegar perto do amigo ou da amiga. Então vamos para aulas
online, é mais seguro, cada um na sua casa. O que não podemos é
perder tempo, perder conteúdos fundamentais para a vida escolar
da criança. Professores, alunos, instituições... todos reaprendendo
o seu ofício.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Novamente, introduzimos novos vocábulos, ou melhor, palavras


ganham um novo sentido: Professora eu caí; Estou sem sinal.... e
para que a comunicação aconteça novas regras são construídas: não
pode usar filtros, importante pontuar que, aqui não se trata de filtro
solar e sim aquelas carinhas que na tela do computador se usa para
chamar a atenção dos amigos e amigas como focinhos, orelhas...
Para falar, é só levantar o dedinho “virtual”, este também está lá, a
plataforma dispõe de vários instrumentos, rapidamente tivemos
que aprender.
Curioso partilhar que, muitas vezes, quando o aluno interrompe a
aula e pede para falar, o comentário não é sobre a aula, o conteúdo
estudado e sim para mandar um recado para a amiga (o):
“Professora deixa eu falar com a Luísa...estou morrendo de
saudade dela, olha a minha boneca”... Então, mais um combinado:
os 5 min. final da aula será reservado para o grupo conversar, trocar
ideias, matar a saudade.
Assim, nossa casa vira escola, sala de aula, escritório, comércio,
fábrica... Passamos a fazer uso de novas ferramentas, equipamentos
de trabalho como: Plataforma de e-learning; videoconferência,
lives, google meeting; zoom, classroom e o que mais for preciso
para que sobrevivamos, para ganharmos a guerra. Como propõe
Boaventura (2020), estamos lutando com um cidadão que só têm
direitos e não deveres, um cidadão invisível e todo poderoso, que
irrompe, que nos cega, que nos enclausura. Enfim, como uma
pedagogia viral, esse cidadão vem nos ensinar algo, mas o que?
Essa lição cada um do seu jeito vai descobrir, ou não.
Buscando em Bakhtin inspirações e acreditando que no atual
cronotopo precisamos mesmo mergulhar na humanidade do
humano para arrancar de dentro de nós a/as resposta/as, pedi ajuda
ás crianças pois, acredito estar na hora de aprendermos algumas
lições com elas. Sem o calor do abraço, com a voz abafada e o
sorriso escondido por máscaras, mergulhei nas palavras das

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

crianças, palavras ditas, grafadas, palavras estas que ressoam o que


transborda o coração.
Explico: Apresento abaixo textos elaborados por crianças de 7 a 12
anos de idade, alunos e alunas de uma escola particular, localizada
na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A proposta era refletir sobre lições
que pudemos adquirir com a pandemia ocasionada pela COVID-
19. Diante de um cenário apavorante onde a doença avança no
Brasil e o número de mortes cresce diariamente, a ideia era pensar
e escrever sobre algo de bom que a nova realidade nos
proporcionou. Vamos às respostas:

“Dormir com mamãe”. Paulo[1] - 6 anos (1º ano).


“Eu consegui dar mais valor a assistir filmes com a minha família
e a minha saúde”. Bento – 9 anos (4º ano).
“Ficar em casa com a família”. Mathias - 6 anos (1º ano).
“Não ficamos em correria porque não precisa sair muito”. Maria
Elisa – 7 anos ( 2º ano).
“Ficar com a família”. Talia - 9 anos (3º ano).
“Boa quantidade de diminuição de gás carbônico e melhora da
natureza”. Guilherme – 12 anos (5º ano).
“Eu estava jogando bola com o meu pai”. Lauro – 7 anos (2º ano).
“Uma coisa boa que aconteceu na pandemia foi que a natureza
ficou menos poluída e isso ajudou os animais”. Gil - 8 anos (3º ano).
“Eu tive mais educação e tive mais cuidado que não tive antes”.
Luísa - 7 anos (2º ano).
“Ficar mais tempo com a minha família”. Mariana - 6 anos (1º ano).
“Eu brinquei mais com a minha mãe”. Aline - 7 anos (2º ano).
“Agora em casa eu posso ficar mais com a minha família e brincar
com ela”. Luíz - 7 anos (2º ano).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

“Meus pais pararam de trabalhar mais e brincam mais comigo”.


Aline P. - 7 anos (2º ano).
“As águas ficaram mais cristalinas na Argentina, graças ao lock
down, e nós damos mais valor a aos encontros com a família”.
Heitor - 10 anos (5º ano).
“Nessa pandemia muita coisa ruim acontece, mais também teve
suas coisas boas como: Eu fiquei muito mais com a minha família,
viajei para Miguel Pereira com a minha amiga, fui para Paraty,
viajei para Goiana e estudei muito mais. Meu pai – Antes da
pandemia meu pai trabalhava muito, chegava muito tarde, mas na
pandemia meu pai ficou online e eu fiquei muito mais tempo com
ele.”. Laura F. - 9 anos (4º ano).

Impressionante perceber nos textos o valor que as crianças dão a


presença dos pais no seu dia a dia. Brincar, dormir, assistir filmes,
ficar mais tempo com a família parece que foi e está sendo o grande
barato deste tempo pandêmico. Outro fato importante que chama
a atenção e a preocupação das crianças com a natureza, em especial,
com os animais.
Assumir uma perspectiva bakhtiniana de pesquisa em Ciências
Humanas traz consequências. Aprendi com Bakhtin (2017, p. 395)
que, nas ciências humanas, precisamos considerar que elas tratam
da relação de pessoas: uma que quer saber sobre outra que fala
sobre o que quer falar. O pesquisador lida com sujeitos expressivos,
falantes. Quem pergunta, o faz diretamente àquele que pretende
conhecer e assim, conhecemos um pouco mais sobre as crianças.
Pôr em cena a dimensão estética, conjugada à ética e à
epistemologia, traduz a tripla dimensão da cultura – arte, vida e
conhecimento, e vai marcar os atos como irrepetíveis e de total
responsabilidade do sujeito. E essa unidade indissolúvel - cuja
síntese está em cada sujeito que a incorpora responsavelmente, sem
delegar a outrem o que lhe compete fazer. A aventura
heterocientífica nos impõe outras formas de dizer, de dissertar, de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

narrar, de modo que possamos abarcar, de modo plural, as


experiências mundanas. E que experiência!
Recente estudo realizado no Texas[2], atenta para que adultos
tomem vacinas e se protejam mais para não transmitirem a COVID-
19 para as crianças, pois desde o início da pandemia o número de
internações entre os pequenos vem aumentando, chegando a 300
por dia no mês de agosto. Embora o número de mortes seja de 1%,
o que mais preocupa atualmente é que a disseminação da variante
Delta pode trazer sérias consequências como a síndrome
inflamatória multissistêmica, podendo causar danos no coração, no
sistema digestivo, respiratório e nervoso.
Segundo os especialistas a variante Delta se dissemina com mais
facilidade em relação às outras variantes. Com a reabertura das
escolas esse vírus pode contaminar muitas crianças, o contato com
os adultos aumenta esse risco. Quando contaminada, a criança já
chega ao hospital precisando de um atendimento intensivo, ou seja,
apoio respiratório. O estudo lembra que crianças até 12 ainda não
são prioridade para a vacinação e que os adolescentes, boa parte,
ainda não foi vacinada.
Vivenciando o grotesco dos nossos tempos, internalizando vozes,
experienciando ambientes e almejando inspiradores horizontes,
clamamos por tempos melhores, pois diante de tantos sentimentos:
solidão, medo, coragem, ansiedade, certezas e incertezas, mergulho
mais uma vez nas reflexões de Bakhtin (GEGE, 2009, p. 11), “sou o
único em toda existência a ser eu-para-mim”. Quando me permito
me relacionar melhor com o tempo, com o espaço, com as crianças
e comigo mesma. Olhar, ouvir, tocar, sentir, abraçar. Bakhtin utiliza
o exemplo do abraço para falar da experiência da alma. O que é um
abraço em tempos de distanciamento social? “Só podemos abraçar o
outro para nos sentirmos abraçados” (2009, p.12).
A alma possibilita experienciar-me, posso ser meu objeto de
análise. Ninguém pode se arrepiar ou se emocionar por mim. Cada

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

um tem seu próprio horizonte. Algo como se eu mergulhasse em


mim mesma. Como a física explica que dois corpos não podem
ocupar o mesmo espaço, a alma também não pode ocupar dois
corpos. Podem-se partilhar momentos intensos com o outro, mas é
preciso voltar para si próprio para essa experiência fazer sentido.
Há um diálogo entre Benjamin e Bakhtin em relação ao conceito de
experiência. O primeiro nos fala da experiência empobrecida
(BENJAMIN, 1987, p.114), aquela que, com a correria da vida
cotidiana, vai ficando para trás, esvaziando-se e, com isso, a
vivência não vira experiência, e assim jamais se tornará sabedoria
de um povo, para o povo. “Que moribundos dizem hoje palavras
tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de
geração em geração”.
Em consonância com Benjamin, Bakhtin nos traz a pequena e a
grande experiência (Bakhtin 2019). A pequena experiência é rasa e
superficial. É aquela em que apenas um pensa por todos. Ela
petrifica, aprisiona, coisifica, adormece a tudo e a todos. Entretanto,
a grande experiência não aceita ficar na superfície, ela é profunda.
Considera o ser na sua incompletude e, por isso, liberta, convida a
ir além. Tem como essência o dialogismo. A vida é dialógica por
natureza, (GEGE, 2009, p.29), e, assim, o homem participa da vida
por inteiro: olhos, lábios, mãos, corpo e alma.
Que o tempo da/na escola possa ser um grande tempo. Que ela
possa libertar, despertar e encorajar nossas crianças a construírem
suas histórias. Que suas culturas sejam reconhecidas, respeitadas e
fortalecidas. Que o tempo da escola não seja um tempo pequeno,
homogêneo e vazio, e sim um tempo preenchido de “agoras”.
(BENJAMIN, 1987, p. 229)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Referências:
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6ª. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2017a.
BAKHTIN, M. M. O homem ao espelho. Apontamentos dos anos
1940. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre
literatura e história da cultura. In: BENJAMIN, W. Obras
Escolhidas. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Vol. 1. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
GEGe – Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. Palavras e
contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de
Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.
BARRIA, Cecília. Trágico e hediondo: O relato de pediatra sobre
internação recorde de crianças por covid nos EUA. Disponível em:
https: WWW.uol.com.br/vivabem/noticiasbbc/2021/09/03/tragico-
e-hediondo-o-relato-de-pediatra-sobre-internacao-recorde-de-
crianças-por-covid-nos-eua.htm. Acesso em: 02/09/2021. BBC
SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus.
Coimbra: Almedina, 2020.

Notas:

[1] Ainda que se tratando de uma pesquisa científica, pontuo que


utilizo neste texto nomes fictícios.
[2] WWW.uol.com.br/vivabem/noticiasbbc/2021/09/03/tragico-e-
hediondo-o-relato-de-pediatra-sobre-internação-recorde-de-
crianças-por-covid-nos-eua.htm

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

VOZES DA PESQUISA: SÃO POSSÍVEIS AUTORIAS NA


PESQUISA COM CRIANÇAS?

Ana Alice Kulina Simon Esteves Sampaio


UFRRJ/AEDB
ana.esteves@aedb.br

Bato à porta da pedra.


- Sou eu, deixa-me entrar.
Quero penetrar no teu interior,
olhar ao redor,
prender-te como a respiração.

- Sai - diz a pedra.


Sou hermeticamente fechada.
Mesmo quebradas em pedaços
vamos ficar hermeticamente fechadas.
Mesmo trituradas em grãos
não vamos deixar ninguém entrar.

Bato à porta da pedra.


- Sou eu, deixa-me entrar.
Venho por curiosidade pura.
A vida é a única ocasião para ela.
Pretendo passear pelo teu palácio,
e depois visitar a folha e a gota dӇgua.
Não tenho muito tempo para tanto.
Minha mortalidade deveria te comover.

- Sou de pedra - diz a pedra -


e sou obrigada a manter a seriedade.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sai daqui.
Não tenho os músculos do riso.

Bato à porta da pedra.


- Sou eu, deixa-me entrar.
Ouvi dizer que em ti há grandes salas vazias,
nunca vistas, inutilmente lindas,
surdas, sem eco de passos de quem quer que seja.
Reconhece, tu mesma não sabes muito sobre isto.

- Salas grandes e vazias - diz a pedra -


mas nelas lugar não há.
Lindas, talvez, mas além do gosto
de teus pobres sentidos.
Podes me conhecer, mas me provar nunca.
Com toda a minha superfície me volto para ti,
mas com todo o meu interior te dou as costas.

Bato à porta da pedra.


- Sou eu, deixa-me entrar.
Não busco em ti um refúgio para a eternidade.
Não sou infeliz.
Não estou desabrigada.
Meu mundo é digno de retorno.
Vou entrar e sair com as mãos vazias.
E como prova de que realmente estive presente,
não vou mostrar nada além de palavras
às quais ninguém dará fé.

- Não vais entrar - diz a pedra -


Falta a ti o sentido da participação.
Nenhum sentido substitui o sentido da participação.
Mesmo a visão elevada até à clarividência
não serve para nada sem o sentido da participação.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Não vais entrar, tens apenas uma noção deste sentido,


apenas o seu germe, sua imagem.

Bato à porta da pedra.


- Sou eu, deixa-me entrar.
Não posso esperar dois mil séculos
para entrar debaixo do teu teto.

Se não crês em mim - diz a pedra -


Dirige-te à folha, ela te dirá o mesmo que eu,
e à gota d”água, que te dirá o mesmo que a folha.
Por fim pergunta aos fios de teu próprio cabelo.
Um riso se alarga em mim, um riso, um riso enorme,
que eu não sei rir.

Bato à porta da pedra.


- Sou eu, deixa-me entrar.
- Não tenho porta - diz a pedra.
(Conversa com a pedra – Wislawa Szymborska[1])

Viver na atualidade (estamos no segundo semestre de 2021), em


tempos de pandemia, em que a calamidade da morte, da fome e da
miséria absoluta aflige a população mais vulnerável (em especial
crianças e mulheres nas regiões periféricas espalhadas pelo
mundo), nos instiga a discutir, escrever, bradar a quem possa ouvir,
sobre o que acontece e sempre que possível, agir, consciente de que
não temos álibi para não o fazer, como Carvalho e Motta (2013,
p.25) nos instigam ao revelarem:
Somos inteiramente responsáveis por nossa vida e pela vida de
outros homens. A nós não caberia nenhum perdão, nenhum álibi.
Podemos sempre perdoar ou desculpar os outros, e isto será
sempre necessário fazer, mas a nós não cabe nenhuma desculpa

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

para o nosso não agir. É o que nos prescreve Bakhtin em sua


filosofia para um ato responsável.
Somos responsáveis por nossa vida e pela vida de outros homens.
Como sujeitos adultos nas relações com sujeitos de menos idade,
precisamos nos posicionar e defender que crianças, ao participarem
das pesquisas que realizamos, tem direito a autoria.
São múltiplas as linguagens existentes para compreender o que
desejamos, entendemos que conversar com o outro é a melhor
maneira de compreender os sentidos que ele atribui aos seus
enunciados. E se outros são crianças? Da mesma forma. Assim se
olha para a vida para olhar a arte. Esse olhar para a vida cotidiana
é o que nos interessa (...), pois nos traz a compreensão de que o
enunciado não deve ser considerado apenas em sua estrutura
linguística, mas em sua historicidade. Se busco compreender o que
as crianças enunciam (...) é preciso fazê-lo a partir das enunciações
delas, pois, como sujeitos e, permanecendo sujeitos, não podem tornar-se
mudos, ou seja, como pesquisadora, não posso enunciar pelas
crianças.
Apoiamo-nos assim em Bakhtin (2010), para quem a especifidade
das ciências humanas precisa considerar a relação entre o
pesquisador e os sujeitos expressivos, falantes. Na pesquisa,
precisamos nos dirigir ao outro; não nos cabe enquanto
pesquisadoras perguntar a nós mesmas ou a terceiros, na presença
de um objeto mudo, coisa morta; a fala se dirige especificamente
àquele que pretendemos conhecer.
Em um encontro histórico[2] entre Paulo Freire e Seymour Papert,
ocorrido em 1995, Freire diz “Homens e mulheres já estavam
mudando o mundo quando a linguagem chegou. Aprendemos
antes de ensinar”. (...) “Há um momento em que a criança percebe
que o mundo é muito maior e não pode ser tocado ou sentido, aí
ela começa a perguntar”.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Assim, compartilhamos a defesa da conversa como estratégia


metodológica possível em pesquisas com pessoas de menos idade
e acreditamos em sua possibilidade de permitir aos que dela
participam a elaboração de compreensões sobre os fenômenos que
pretendemos conhecer sob a perspectiva do outro. Sobre esse
aspecto, buscamos em Lopes (2018, p. 104-105) a compreensão, já
que:
A linguagem não pode ser considerada apenas do ponto de vista
do falante sem a relação necessária com outros participantes da
comunicação discursiva. Se não se leva em conta o papel do outro,
pensa-se no ouvinte que apenas compreende passivamente o
falante. A compreensão é ativa e a posição do outro é responsiva.
Nos confrontamos, a todo momento também com as questões éticas
que se colocam diante de uma pesquisa com crianças. Faz sentido
o anonimato? Há riscos para os sujeitos envolvidos? E como fica se
no futuro eu discordar do que foi feito? Defendemos o respeito à
autoria das crianças e adultos, com o respeito ao menos ao seu
nome próprio, desde que isso não os coloque em risco ou os
exponha diante de temas delicados.
Acreditamos ainda na possibilidade plena de decisão do sujeito em
participar da pesquisa. E mais do que tudo, como Lopes (2018, 48)
indica:
É preciso (...) compreendê-la como sujeito de pesquisa que tem
autoria e a importância de seus conhecimentos sobre a realidade
que vivencia como relevante ponto epistemológico em termos da
construção de metodologias de pesquisa e conhecimentos
científicos.
Quantas são as vozes ouvidas durante a pesquisa? Quem são as
pessoas a quem se dirigem palavras e silêncios? É possível
compartilhar autoria na produção de pesquisa com crianças? Essas
são algumas questões presentes para pesquisadores que buscam o
reconhecimento da autoria das crianças nas pesquisas realizadas
com, e não sobre elas, nos últimos anos. As respostas só podem ser

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

obtidas no enfrentamento do cotidiano e com as pessoas que o


vivem, pois como Szymborska (2011 p. 33-35) no diálogo com a
pedra, tão alteritariamente apontou:
- Não vais entrar - diz a pedra - Falta a ti o sentido da participação.
Nenhum sentido substitui o sentido da participação. Mesmo a vi-
são elevada até à clarividência não serve para nada sem o sentido
da participação. Não vais entrar, tens apenas uma noção deste sen-
tido, apenas o seu germe, sua imagem.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010.
CARVALHO, Carlos Roberto; MOTTA, Flavia Miller Naethe.
Escrever responsável sob as condições do deserto: o compromisso
com o outro e a contemporaneidade. In: Revista Teias. n.32.
maio/ago de 2013.
LOPES, Ana Lúcia Adriana Costa e. Um novato lá na sala, tem que
pegar ele também, tia. Escreve tudo agarrado! A escuta das enunciações
sobre o aprender nas conversas com crianças. Niterói, RJ: UFF, 2018.
Tese (Doutorado), Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2018.
SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.

Notas:
[1] Wislawa Szymborska, nasceu em 1923 em Bnin, na Polônia, e
morreu em 2012. Em 1931, mudou-se com a família para a Cracóvia,
onde estudou literatura e sociologia. Ao longo da vida, publicou
doze pequenas coletâneas de poemas. Venceu o prêmio Nobel de
literatura em 1996.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[2] Disponível em: https://youtu.be/41bUEyS0sFg (acesso em 05 de


setembro de 2021)

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

VOZES JUVENIS: ENCONTROS DE LEITURA ENQUANTO


ESPAÇO DE ESCUTA AMOROSA E DE CONSTRUÇÃO DA
AUTORIA

Julianne Pereira dos Santos


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
juliannepsantos@yahoo.com.br

A concepção de que a leitura é um processo de constituição dos


sujeitos, à medida em que constroem sentidos para o texto, está
devidamente consolidada nos estudos da linguagem. Geraldi
(2009) aponta que a leitura, compreendida como interlocução entre
sujeitos, é indissociável desse processo constitutivo e que as
possibilidades de interação promovidas nesse âmbito são
múltiplas. As possibilidades cotidianas de leitura também são
plurais, algumas até inevitáveis, e, contrariando o senso comum de
que a maior parte das pessoas não gosta de ler e de que o contato e
o acesso à leitura têm diminuído, o surgimento e o interesse por
tipos e espaços diferentes de leitura é cada vez maior.
Não é de hoje – mas ainda persiste atualmente – a existência de
rodas de leitura e clubes do livro, grupos que se encontram em
determinados espaços para ler e discutir textos e/ou livros de
diversas naturezas, em uma tentativa de ampliar ainda mais as
possibilidades de interação motivadas pela leitura, compartilhar
reflexões, apreender diferentes sentidos do texto. Essas
comunidades de leitura são um espaço dialógico de trocas e
vivências, em que os participantes ouvem e são ouvidos,
descobrem novas perspectivas, sociabilizam experiências.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Essa interação, propiciada em encontros de leitura dessa natureza,


foi o mote, além do estímulo à leitura por si só, para a elaboração
de um projeto de pesquisa intitulado “Encontros literários: a
formação do leitor e escritor jovem”, desenvolvido por mim,
enquanto professora de Língua Portuguesa, junto a outro docente
de língua materna e de Língua Espanhola, na Escola Agrícola de
Jundiaí - UFRN, em 2017.
A intenção do projeto era, inicialmente, dividir impressões de
leitura com os alunos participantes. Intentávamos que eles
levassem os textos de autores com os quais se identificassem; nós,
docentes, também levaríamos alguns e compartilharíamos relatos
e reflexões que os textos suscitassem. Nosso objetivo visava à
formação leitora crítica desses estudantes, como também
promover-lhes um maior conhecimento acerca da literatura
brasileira, espanhola e hispano-americana, colocando-os em
contato com outras realidades e referências de mundo, que
pudessem torná-los mais conscientes da diversidade humana,
cultural, social e ideológica existentes. A escola é um dos espaços
ideais para essa tomada de consciência, para o desenvolvimento da
criticidade e isso pode e deve acontecer, como propusemos, por
meio da efetivação do direito à leitura e à literatura, o que também
era nosso intuito.
Os encontros se iniciaram no primeiro semestre de 2018, às quintas-
feiras, às 12h, e, inicialmente, obedecia ao nosso planejamento:
discutíamos textos de autores consagrados, refletindo, a partir
deles, sobre diversas temáticas. Decorridos alguns encontros,
certos participantes decidiram veicular textos de sua autoria para
serem lidos e discutidos, alguns sob anonimato, outros firmados
(com a própria assinatura ou pseudônimo). Isso passou a ser cada
vez mais comum e natural e observamos que era uma demanda
necessária que ainda não tínhamos atentado: a autoria e o direito a
se expressar. Vimos então que era preciso ir além. Era preciso ouvir
o que esses jovens tinham a dizer, a maneira como eles refletem,
saber as suas formas de comunicar o mundo e com ele. Eles já

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

haviam percebido antes de nós que aquele era um ambiente


acolhedor, de escuta acolhedora e amorosa, então, nossa proposta
se ampliou para acolher essa demanda e democratizar tal espaço.
O contato com esses escritos autorais nos despertou diversas
questões sobre o perfil desse leitor e escritor jovem. Quem são esses
escritores? O que escrevem esses jovens? Como escrevem? Por que
escrevem? Por que fazem determinadas escolhas em seus textos?
Essas inquietações, despertadas por esses estudantes, foram o
ponto de partida para essa investigação que vem ocorrendo.
Em 2020, devido ao cenário pandêmico, infelizmente não pudemos
realizar os encontros como havíamos planejado, mas, mesmo com
todos os percalços inerentes ao período de quarentena e a
atividades virtuais, como o acesso à internet de qualidade,
conseguimos nos reunir duas vezes. Os encontros foram
divulgados na página do Instagram do projeto e contaram com
uma boa participação, expandindo-se até mesmo para pessoas de
fora da Escola Agrícola de Jundiaí. Em 2021, agora mais habituados
ao modelo remoto, foi possível voltar a realizar os encontros
semanalmente, por meio do Google Meet, e os momentos
continuam a acontecer de maneira bem espontânea, com a partilha
de angústias – especialmente relacionadas ao momento atual que
vivemos – e de reflexões de diferentes naturezas.
A partir dos escritos dos participantes, das interações ocorridas
durante os encontros e das reflexões construídas pelos estudantes
a partir do contato com os textos dos colegas, investigamos como
os encontros literários têm sido um espaço de construção da
autoria, em um exercício de compreensão responsiva ativa próprio
das relações dialógicas. Acreditamos, inclusive, que muitos dos
textos produzidos e compartilhados nesses momentos são fruto das
discussões e reflexões construídas nos encontros anteriores, como
uma resposta que foi sendo gestada até nascer em forma de texto,
afinal

1631
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico)


do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa
posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou
parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.
[...]. (BAKHTIN, 2016, p. 25).
Suspeitamos, assim, que o maior contato com a leitura e com as
trocas possibilitadas a partir dos textos compartilhados nos
encontros, serve de estímulo para a produção de novos textos
escritos, fazendo da prática da escrita um hábito entre os alunos
participantes do projeto.
Esses textos compartilhados nos encontros, que conversam e
respondem a outros enunciados, são, como todo enunciado,
orientados para o outro, é o outro que lhe dá acabamento. Essa
relação do enunciado com os outros participantes da comunicação
discursiva e esse direcionamento ao outro nos faz olhar para os
encontros de leitura como esse espaço de contribuição para a
construção da autoria. Suspeitamos também que, por pensarem
nesse acabamento feito pelo outro, é que muitos escritores
escolhem não assinar seus textos ou assinar com pseudônimo.
Importante ressaltar ainda que a faixa etária dos participantes do
encontro varia entre 14 e 20 anos, o que nos impulsiona a refletir
sobre a autoria do jovem, engendrada na noção de cultura(s)
juvenil(is). Enxergar o jovem como um sujeito-autor que está
sendo, não como que ainda virá a ser (DAYRELL, 2003), e observar
a diversidade de culturas juvenis para além do que conhecemos
comumente também nos impulsiona.
Além da construção da autoria observada nos textos, os jovens
estudantes também realizam esse exercício de construção autoral à
medida que refletem, interpretam, interagem e se posicionam nos
encontros, construindo-se, dessa maneira, como sujeitos, em um
processo dialógico, o que nos mostra que, de diferentes maneiras,
os encontros de leitura têm sido um ambiente que dá espaço para
a voz desses sujeitos, onde a subjetividade de cada um é acolhida e
estimulada.

1632
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

À medida que observamos e nos propomos a pensar essa natureza


social da linguagem, que falante e ouvinte são participantes
conscientes e de igual importância no intercâmbio comunicativo e
que “a essência efetiva da linguagem está representada pelo fato
social da interação verbal” (VOLOCHINOV, 2013, p. 158),
percebemos que os encontros de leitura, enquanto práticas
discursivas, e os textos produzidos pelos jovens autores
participantes, enunciados concretos e únicos, são ideais para
analisar como a língua integra a vida e a vida entra na língua.
Pensar nessas vozes juvenis e analisar as suas produções como
expressões de sujeitos-autores é legitimá-los como agentes de
linguagem e não como meros objetos de pesquisa. Desse modo,
compreendemos esse jovem como um sujeito único, criador e
criativo, construído por e nas práticas sociais, capaz de produzir
enunciados que expressam a sua singularidade, os seus
posicionamentos acerca do mundo e a cultura juvenil da qual faz
parte.
Ao voltar o olhar para as produções, interações e reflexões
realizadas por estudantes do ensino médio a fim de analisar o seu
processo de construção da autoria, compreendemos a leitura e a
escrita como formas de entender e de (re)significar o mundo. Usar
a escrita como forma de expressão, de desabafo, de construção da
identidade tem sido uma prática comum há tempos; observar essa
utilização realizada por adolescentes nos parece uma maneira
relevante de levar em consideração a importância desses
momentos para esses jovens, como parte de sua formação como
leitores e escritores, mas, sobretudo, como parte da sua formação
como sujeitos de linguagem, sociais, complexos e críticos. Essa
dinâmica mostra-se relevante especialmente agora, em que lidar
com o grotesco dos nossos tempos não tem sido fácil; partilhar as
dores, emoções e descobertas, por meio do diálogo e da escrita,
parece um momento de importância e de transformação para os

1633
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

participantes – inclusive para mim enquanto mediadora dos


encontros.
A partir do que já observamos durante esse tempo de realização
dos encontros, dos textos enviados, da convivência com os alunos
participantes e do retorno que eles dão nas nossas conversas,
assumimos que os encontros de leitura funcionam como um espaço
de estímulo para que a autoria dos participantes seja tanto
construída quanto reconstruída. Em relação à assinatura dos
textos, suspeitamos que a motivação para assinar com o próprio
nome, com pseudônimo ou manter o anonimato pode acontecer
por diferentes razões: criar expectativa nos leitores; aumentar o
mistério; o medo e a insegurança causados pela exposição, o
orgulho do próprio texto, entre outros.
Para finalizar, deixo, a título de exemplificação, um dos textos
compartilhados em um dos encontros de 2018, que contribui para
perceber como os encontros têm sido um espaço de entretenimento,
escuta amorosa e construção autoral para os participantes.
O que é, o que é?
O que é, o que é
Que caí em pé e corre deitado?
Seria a chuva digo eu?
Ou apenas um louco que tropeça e rola ladeira abaixo?
O que é, o que é
Que mia e bebe leitinho
Seria um gatinho?
Ou apenas um louco querendo ser felino?
O que é, o que é
Que se esquivando faz zum zum?
Seria uma mosca ou abelha?

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ou apenas um louco em uma velha lambreta?


O que é, o que é
Aquilo ali no chão?
Uma lata vazia de refrigerante levada pelo vento?
Ou apenas um louco rolando no chão?
O que é, o que é
Este pequeno texto bizarro?
Uma genial tentativa de fazer poesia?
Ou produto de um louco desvairado?
O que é, o que é
Vocês que devem dizer!
Pois às quintas rola muita loucura
Neste nosso encontro de leitura
(Texto anônimo)

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra. São
Paulo: Editora 34, 2016.
BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2005.
CASADO ALVES, M. P. O enunciado concreto como unidade de
análise: a perspectiva metodológica bakhtiniana. In: Estudos
dialógicos da linguagem e pesquisa em Linguística Aplicada. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2016.
CASADO ALVES, M. P; ROJO, R. H. R. Comunidades de leitores:
cultura juvenil e os atos de descolecionar. In: Bakhtiniana: Revista de
Estudos do Discurso, São Paulo, vol. 15 n. 2, abr./jun. 2020.

1635
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Disponível em:
< https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-
45732020000200145&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt#B13>. Acesso em 04
set 2021.
DAYRELL, J. O jovem como sujeito social. In: Revista Brasileira de
Educação, Campinas, Anped, n. 24, p. 40-52, 2003. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413
-24782003000300004& lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 04 set
2021.
DE PAULA, L. Círculo de Bakhtin: uma análise dialógica de
discurso. In: Rev. Est. Ling. v. 21. n. 1. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/relin/article/vie
w/5099/4555>. Acesso em 31 de agosto de 2021.
GERALDI, J. W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e
divulgação. 2. ed. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009.
MELO, R. F. de. O leitor de comunidades de literatura seriada: uma
construção identitária sem fronteiras?. Dissertação de mestrado.
UFRN. Natal, 2017.
MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma Linguística Aplicada
indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
_____ (org.). Linguística aplicada na modernidade recente. São Paulo:
Parábola Editorial, 2013.
VOLÓCHINOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios.
Tradução João Wanderley Geraldi. São Carlos/SP: Pedro e João
editores, 2013.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São
Paulo: Editora 34, 2017.

1636
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

VOZES MELOPOÉTICAS EM TETÊ E O LÍRIO SELVAGEM:


UMA LEITURA DIALÓGICA

Maria Leda Pinto


UEMS
marialedapinto25@gmail.com

Alan Silus
UNIGRAN | UFMS - CPTL
alan.silus@ufms.br

“... e aí eu falei: “Olha eu vou chamar meus irmãos”. [...] E aí eu nunca


me esqueço, que foi na Rua 23 de maio que o Celito falou “Porquê não
Tetê e o Lírio Selvagem”. Aí todo mundo gostou, apresentamos para a
gravadora e eles adoraram!” (ESPÍNDOLA, 2018).

Não há como pensar a História da Música em Mato Grosso do Sul,


sem pensar a contribuição musical da família Espindola e de
maneira especial de Tetê Espindola que foi uma das primeiras
vozes femininas a alçar voo aos grandes centros, a obter um notório
sucesso e a projetar Mato Grosso do Sul no cenário nacional, pois
como afirma Bakhtin (2002, p. 418) “ao elucidar as épocas passadas,
somos muito frequentemente obrigados a “crer em cada época
conforme a sua própria palavra”. Neste texto, apresentamos aos
amigos participantes do Rodas, um pouco da vida e da carreira
dessa cantora e compositora de voz tão singular com destaque para
a análise da poética amorosa da canção Voos Claros que compõe
Long Play (LP) Tetê e o Lírio Selvagem.
A história de Tetê e o Lírio Selvagem tem seu início muito antes
do aparecimento do grupo no cenário brasileiro no final dos anos

1637
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

1970. O pontapé para a união dos irmãos se dá com a ida de


Humberto Espíndola e Aline Figueiredo para Cuiabá onde são
contratados pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT,
que ascendia pela sua inovação e incentivo à educação e à cultura.
Com a efervescência da Universidade em Cuiabá, em janeiro de
1974 é criado o Museu de Arte e Cultura Popular – MACP que, na
visão de Figueiredo (1990, p. 23) “fundamentou propostas em torno
do conceito de museu-ação, organismo vivo e em constante
interação com a comunidade e que viabilizou o potencial criativo
da região”.
No mesmo ano de fundação do MACP, as irmãs Alzira e Tetê que
estavam em Cuiabá unem-se a Marta Catunda e fundam o grupo
Arco da Lua no qual interpretavam canções compostas por Tetê e
pelo amigo Carlos Rennó (que contribuía apenas com as letras, não
fazendo parte do grupo), Alzira tocava violão de doze, Tetê tocava
sua inseparável craviola e Marta na flauta doce.
No fim da década de 1970, as irmãs resolvem se mudar para os
grandes centros culturais do país para tentar alavancar a carreira.
Na passagem entre Rio de Janeiro e São Paulo, Alzira fixa-se em
Campinas e Tetê na capital carioca. Ainda com relação ao Arco da
Lua, Marta em sua Tese de Doutorado defendida em 2013,
argumenta que:
Com a ida de Tetê e Alzira para São Paulo, o Arco da Lua continuou
sem mim, passando a incluir Carlos Rennó, então casado com a
Alzira Espíndola. Eram horas sem fim na mesma canção,
afinando uma sintonia musical que alimentou toda a nossa
adolescência com música e natureza. (CATUNDA, 2016, p. 25).
Com a sua estada no Rio de Janeiro, Tetê conheceu Cláudio Leal
Ferreira que ficou fascinado com a potência vocal que se
apresentara a ele. O músico e arranjador tratou logo de apresentar
a cantora a outro compositor que se destacava pelo seu
vanguardismo, surgia uma das mais célebres amizades de Tetê:
Arrigo Barnabé.

1638
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Por intermédio de Leal e Arrigo, Tetê é apresentada ao maestro


Luiz Roberto de Oliveira que encantado com a inigualável voz, a
encaminha a Phillips, gravadora dirigida por Marcos Mainardi que
lhe faz o convite à gravação de um disco. Como a influência de
Geraldo era expressiva, Tetê propõe a Mainardi que seus irmãos
venham para a capital paulista gravar esse LP junto com ela.
Acertadas as tratativas, os irmãos Geraldo e Celito vêm de Mato
Grosso (ainda indiviso) e Alzira de Campinas para gravarem as
faixas do projeto. (ESPÍNDOLA, 2018).
De acordo com a proposta do contrato, o LP deveria se chamar
“Tetê + o nome do grupo dos irmãos”, mas como a gravadora
Phillips estava guinando a carreira da cantora Lady Zu, proibiram
que o grupo utilizasse como nome Tetê e LuzAzul por fazer alusão
fonética a essa artista que embalava as discotecas dos anos 1970.
Com isso, após repensarem o nome do grupo, por intermédio de
Celito — conforme expresso na epígrafe que abre este
texto — define-se então que o LP passaria a se chamar Tetê e o
Lírio Selvagem. (ESPÍNDOLA, 2018), conforme explicita a cantora
E assim aconteceu. O Geraldo e Celito embarcaram para São Paulo
e Alzira E veio de Campinas para que pudéssemos gravar o LP [...].
Mas a história de LuzAzul não podia rolar mais. A gravadora não
queria que o grupo tivesse esse nome [...]. Daí resolvemos colocar
Tetê e o Lírio Selvagem. (ESPÍNDOLA, 2018).
Espíndola (2018) menciona que, depois de escolhido o repertório
do disco, o produtor Luiz Carlos Maluly recomendou que o grupo
colocasse nos arranjos instrumentos elétricos, já que pela influência
do grupo LuzAzul, os jovens cantores apresentaram apenas
arranjos acústicos para o futuro LP. Findadas as gravações, o show
de lançamento aconteceu no Teatro Rute Escobar em São Paulo
acompanhado de bons músicos da época como o pianista Nelson
Ayres.

1639
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Neste momento, vamos analisar uma das canções do LP Tetê e o


Lírio Selvagem intitulada Voos Claros composta por Antonio
Marcos Silva e Geraldo Espíndola com base nos estudos do Círculo
de Bakhtin pois conforme o autor, “toda a obra, do começo ao fim,
saiu do próprio centro de vida da época, na qual o autor era um
participante ativo ou um testemunha interessada” (BAKHTIN,
2002, p. 83).
Na canção Voos Claros, temos a composição de três parágrafos
melódicos cujo locutor dirige seu discurso a um outro, também não
identificado como na letra anterior, pois “a orientação dialógica
entre discursos alheios (de todos os graus de orientação e
qualidades do discurso alheio) cria possibilidades novas e
essenciais do discurso literário”. (BAKHTIN, 2018, p. 47).
VOOS CLAROS

Te soltei nos anéis dos meus olhos nus


Pra que me pudesses entrar
Pra que visses por dentro amor
Que eu trago espalhado em mim
Pra que possas saber que vi
Pelo menos mais esta vez
Te abrigar nos meus braços
Te saber não distante
Te querer mais que antes

Vem voar entre as cores da solidão


Faz nascer teu afeto em mim
E se deixe em meu coração

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

E passei tua nave no ar


Por todo meu corpo feliz
Por conter entre o sangue
O fruto da espera tua
O fruto da espera tua

Vou voar entre as praias do teu amor


(Vem voar entre as cores da solidão)
Vou nascer como o sol à terra
(Faz nascer teu afeto em mim)
Será vida que não se enterra
(E se deixe em meu coração)
E meu corpo calado de paz
(E passei tua nave no ar)
No teu beijo infinito
(Por todo meu corpo feliz)
E capaz de me transformar
(Por conter entre o sangue)
Em tuas lágrimas azuis
(O fruto da espera tua)
Em tuas lágrimas azuis
(O fruto da espera tua)
(ESPÍNDOLA, 1978).

1641
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A canção, dividida em três estrofes, evidencia duas vozes presentes


em que podemos definir uma na primeira e outra na segunda
estrofe da letra. A voz que inicia, age por meio de uma ação (soltar)
para justificar as consequências dessa: poder entrar, ver (por
dentro) o amor, saber que viu e por fim essa voz realiza novas
ações, remontando ao desejo pela presença da segunda: abrigá-la
nos braços, sabê-la não distante e querê-la mais que antes, em uma
demonstração romântica do seu afeto e interesse por esse outro.
Em resposta, a segunda voz, apresenta o que (possivelmente) seja
necessário fazer para que os desejos apontados na estrofe 1 se
concretizem, possibilitando uma construção de sentido a que
corresponde esse chamado afetivo (ou de amor). A resposta da
segunda voz denota uma cena na qual advogamos que “no existir
estético pode‐se viver [...], e tudo isso que se coloca fora de mim se
correlaciona com essas pessoas”. (BAKHTIN, 2010, p. 62).
Na terceira estrofe da letra, podemos inferir a união das duas vozes,
o momento em que elas se encontram e se justapõem. Essa junção
fica evidenciada com o uso dos parênteses que, em muitos textos
da musicologia representam uma outra voz, quebrando assim, uma
estrutura de linguagem apreendida pela linguística.
É possível afirmar que a letra da canção evidencia também uma
representação do diálogo amoroso, que se mostra no
entrelaçamento de tudo que foi expresso nas estrofes anteriores e
que estão em concordância afetiva. Todos esses sentimentos
ganham força em romantismo quando acompanhados da
musicalidade. É, portanto, uma letra de música poetizada pelo
contexto social de uma época histórica em que, embora tenha
presença pelos sons agitados das discotecas, mostra-nos que o
romantismo não está fora de lugar.
Dessa forma, música e palavra têm suas funções sociais. Esta, como
signo ideológico, promove nos leitores sentidos e significados de
compreensão das manifestações culturais humanas
(VOLÓCHINOV, 2019). Aquela, tem, por sua vez, uma função

1642
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

social estética, lúdica e por vezes terapêutica, que por meio dos
signos ideológicos reafirma e mantém as culturas e promove novas
formas e instrumentos culturais.
Por fim, compreendemos que “a canção, entendida de maneira
genérica como composição musical acompanhada de um texto
poético destinado ao canto, certamente estará mutilada se
isolarmos um dos componentes definidores de seu todo”. (BRAIT,
2020, p. 167). As relações músico-literárias consolidam hoje um
campo de estudo muito promissor no âmbito das artes em geral.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara F. Vieira.
5. Ed. São Paulo: HUCITEC, 2002. (Coleção Linguagem e Cultura).
BAKHTIN, Mikhail. Para uma Filosofia do Ato Responsável. Trad.
Carlos Alberto Faraco e Valdemir Miotello. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do Romance II: as formas do tempo e do
cronotopo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018.
BRAIT, Beth. Literatura e Outras Linguagens. São Paulo: Contexto,
2020.
CATUNDA, Marta. A B C de Encontros Sonoros: entre cotidianos da
Educação Ambiental. São Paulo (SP): Edições Hipótese, 2016.
ESPÍNDOLA, Tetê. A História de Tetê e o Lírio Selvagem. Entrevista
concedida a Alan Silus. São Paulo, 9 abr. 2018. Disponível em: .
ESPÍNDOLA, Tetê. Tetê e o Lírio Selvagem. São Paulo: Phillips, 1978.
1 LP (34 min). Estéreo.
FIGUEIREDO, Aline. Arte aqui é Mato. Cuiabá: UFMT, 1990.

1643
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

VOLÓCHINOV, Valentin. A Palavra na Vida e a Palavra na


Poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Trad. Sheila Grillo e
Ekaterina Vólkova-Américo. São Paulo: Editora 34, 2019.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

VOZES QUE ECOAM OS SABERES COM AS CULTURAS


INDÍGENAS: quando as aulas podem ser um espaço-tempo
para problematizar e recriar formas de ver, dizer e celebrar as
diferenças

Denise Wildner Theves


UFRGS/Docente
denisetheves@gmail.com

Introdução
As atividades foram desenvolvidas junto a turmas de alunos do
quinto ano do Ensino Fundamental, no componente curricular de
Estudos Geográficos e Históricos, em uma escola comunitária
localizada no Bairro Centro, em Lajeado, no Rio Grande do Sul.
Além disso, junto aos alunos que participaram da disciplina
Identidades e Diversidades Étnico-Raciais, do Curso de Pedagogia
do Centro Universitário Ritter dos Reis, em Porto Alegre. O
propósito que alicerçou o projeto foi o reconhecimento e a
valorização das culturas indígenas inseridas na perspectiva da
interculturalidade e o desenvolvimento de propostas de ensino que
buscassem descontruir estereótipos e preconceitos sobre os povos
indígenas.
Com este objetivo, vivenciar momentos de aprendizagem em
espaços externos ao ambiente escolar/universitário apresentou-se
como uma experiência com diferentes sentidos e repleta de
momentos que podem ser considerados únicos. As denominações
são variadas: saídas de campo, aulas passeio, viagens de estudos,
estudos do meio, entre outros; contudo, todos possibilitam
construir conhecimentos de maneira singular e dinâmica.

1645
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Quando essa vivência trouxer possibilidades de interagir com um


grupo constituído por outra cultura, o inimaginável pode
acontecer! Eis que permanecer um dia em uma aldeia indígena
Guarany Mbyá possibilitou essa experiência vivenciada de
maneira única e, por isso, potente para o desenvolvimento de um
pensamento que vê e sente o Outro a partir da alteridade.
No retorno para a escola/universidade, a sistematização e a
expressão das aprendizagens advindas dessa experiência foram
realizadas com o uso de diferentes linguagens e com elas, surgiram
oportunidades para a criação de propostas didáticas alicerçadas na
interculturalidade.

Pontos de partida, caminhos e chegadas: os contextos do trabalho


e os temas de estudo
Inicialmente foi proposta a contextualização da chegada dos
primeiros seres humanos ao continente que seria denominado de
América e as hipóteses que supõe a chegada dos primeiros
habitantes às terras do atual Rio Grande do Sul, através de
diferentes ondas migratórias.
Com essas abordagens, tornou-se possível estabelecer relações
entre a ocupação do território do atual Rio Grande do Sul e o
desenvolvimento de diferentes modos de viver e a criação de
culturas. Afinal, todo agrupamento humano tem culturas que
resultam da história de relações que se dão entre os próprios
homens e entre estes e o meio ambiente; uma história que foi (e
continua sendo) drasticamente alterada pela realidade da
colonização. (ISA, 2015a).
O processo de povoamento dessas terras, desencadeado pelos
colonizadores europeus, propôs agrupamentos e divisões desses
grupos de habitantes em tribos, famílias e troncos linguísticos.
Assim, referir-se aos indígenas[1] habitantes do território rio-
grandense, até os dias de hoje, pressupõe considerar sua família
linguística.

1646
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Por outro lado, cabe reafirmar que os atuais povos indígenas


brasileiros[2] são os grupos descendentes dos primeiros habitantes
do continente americano que aqui viviam antes da chegada dos
colonizadores europeus. A indicação de indígenas, advinda da
denominação “índios”, é fruto de um equívoco histórico dos
colonizadores que, tendo chegado às Américas, julgaram estar na
Índia. (ISA, 2015a).
Os indígenas habitantes do Rio Grande do Sul, na atualidade,
fazem parte dos grupos Guarani, Kaingang e Charrua. Nosso
estudo concentrou-se no grupo Guarani[3], que possui três
subdivisões: os Mbyá, os Nhandeva e os Kaiowá. Esses subgrupos
apresentam variações na linguística, no modo de viver, assim como
na organização social, econômica e religiosa. A língua falada é o
Guarani, que provém do tronco linguístico tupi, da família tupi-
guarani. De acordo com Medeiros e Gomes (2014), estes indígenas
estão organizados em aldeias na zona rural e em várias cidades do
Rio Grande do Sul, sendo cinco delas na região metropolitana de
Porto Alegre.
Como atividade integrante da Semana com a cultura Guarani-
Mbyá, proposta pela comunidade indígena e pelo Museu da
UFRGS (POA/RS), tornou-se possível participar de um dia de
vivências e aprendizagens na aldeia Tekoá Pindó Mirim (Terra
Indígena Parque de Itapuã), no município de Viamão (RS). A
atividade foi oportunizada como forma de interação cultural na
forma de diálogos e trocas entre os envolvidos. Desse modo, essa
vivência buscou oportunizar conhecimentos sobre os valores dessa
cultura Guarani-Mbyá.

Vivência “É uma palavra muito difícil de descrever. Não é algo


para fazer em um dia e esquecer no outro[4]”
Após a participação no dia com a comunidade indígena, os
momentos vivenciados na aldeia foram o assunto das aulas e a

1647
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

partir dele foram criadas e propostas atividades utilizando


diferentes linguagens. Além disso, a proposta ressaltou o quanto
esse momento de experimentar a vida no contexto dessa cultura
pode contribuir para desconstruir estereótipos e preconceitos em
relação aos diferentes modos de vida dos indígenas.
A participação na Semana com a cultura Guarani-Mbyá, vem sendo
realizada desde 2014 e a cada ano tem sido reafirmada a
importância da participação na mesma através dos relatos e
expressões dos alunos que evidenciam a potência dessa vivência.
As propostas vividas, criadas e experimentadas com os alunos
apontam as possibilidades de reinventar os modos de ensinar e
aprender na busca por conhecer, e de acolher o Outro na interação
pedagógica. Afinal, só posso descobrir quem sou com o Outro, num
movimento dialético entre identidade e alteridade. Kaercher e
Tonini (2015, p. 68) provocam:
[...] que a escola ajudasse, não apenas a constatar o óbvio (há uma
multiplicidade de entes diferentes de mim), mas que essas
diferenças não fossem mais vistas como ameaça ou anomalia. Esse
esforço de alteridade pode (e deve) ser papel da escola e de nós,
professores.
Acredita-se que a prática pedagógica implica outras maneiras de se
relacionar com a realidade, com os outros e consigo mesmo. É,
portanto, nosso olhar e sentir colocado sobre o mundo, sobre as
coisas, sobre as culturas e sobre as diferenças que convém
interrogar e recriar.
Nesse sentido, faz-se urgente e necessário a escola ampliar as
possibilidades de trabalho a partir de diferentes culturas, afinal, o
“currículo é um espaço de constituição de identidades, lugar onde
se produz memória, modos de ser e de conviver.” (PEREIRA, 2012,
p.7).
As atividades desenvolvidas, a partir desse dia de vivências, deram
sentido aos conhecimentos desenvolvidos e novos saberes foram se
constituindo com a interação dos alunos com o contexto cultural

1648
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dos Guarani-Mbyá, constituindo o espaço pedagógico alicerçado


na interculturalidade.

Vozes que ecoam saberes e movimentam a outridade


Os alunos e os indígenas ensinam que ver e pensar o Outro, o “não
eu”, exige novas posturas, na busca pela construção de novas
memórias, (re)criando nossos modos de ver, sentir e apreender o
mundo. Neste sentido, faz-se urgente e necessário a escola e abrir-
se aos diferentes modos de vida para constituir-se em um lugar que
leve em conta nossa ancestralidade, ampliando as premissas do
senso comum e dos saberes preestabelecidos a partir de modelos
carregados de julgamentos.
As propostas didáticas e as reações dos alunos evidenciaram que
os conteúdos, o currículo, as aulas são pautados por uma postura
epistemológica, por atitudes éticas e políticas. Assim, as aulas são
um espaço-tempo em potencial para problematizar e recriar formas
de ver, dizer e celebrar as diferenças e as culturas.
Referências

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Instituto Socioambiental.


Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/
quem-sao/povos-indigenas. Acesso em: 27 ago. 2015a.
__________. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-
brasil-atual/ quem-sao/povos-indigenas. Acesso em: 27 ago. 2015b.
_______. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/
guarani-mbya/1289. Acesso em: 27 ago. 2015c.
MEDEIROS, Juliana S.; GOMES, Luana Barth. Povos Indígenas:
diversidade na escola. In: GIORDANI, Ana C. C... [et al] (orgs.);
MEINERZ, Carla B. Curso de aperfeiçoamento produção de

1649
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

material didático para diversidade. 3 ed. ver. e ampl. Porto Alegre:


Evangraf, 2014.
PEREIRA, Nilton Mullet. Diversidade e diferença: problemas
teóricos e pedagógicos. In: KAERCHER, Nestor; TONINI, Ivaine
Maria (orgs.). Curso de Aperfeiçoamento Produção de Material
Didático para Diversidade. 2. ed. Porto Alegre: Evangraf, UFRGS.
2012. p. 1-12.
KAERCHER, Nestor André, TONINI, Ivaine Maria. A diferença
como possibilidade de discutir a desigualdade e combater
preconceitos: a geografia que faz a diferença. In:
CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos et al (Orgs.). Movimentos no
ensinar geografia: rompendo rotações. Porto Alegre: Evangraf,
2015. p.55-71.
THEVES, Denise Wildner. Diário da Pesquisa: as crianças e a
Geografia escolar. Lajeado: [s.l.], 2016.

Notas:
[1]A expressão genérica povos indígenas refere-se a grupos
humanos espalhados por todo o mundo, e que são bastante
diferentes entre si. É apenas o uso corrente da linguagem que faz
com que, em nosso país e em outros, fale-se em povos indígenas.
(ISA, 2015b).
[2]Atualmente encontramos no Brasil povos indígenas falantes de
mais de 150 línguas diferentes. Esses povos somam, segundo o
Censo IBGE 2010, aproximadamente 897 mil indígenas. Sendo que,
aproximadamente 324 mil vivem em cidades e 572 mil vivem em
áreas rurais, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da
população total do país. (ISA, 2015a).
[3]A população Guarani no Brasil esteve estimada, em 2008, em
aproximadamente 51 mil pessoas entre os Kaiowá (31.000),
Ñandeva (13.000) e Mbya (7.000), distribuídas em vários estados do
Brasil, inclusive no Rio Grande do Sul.(ISA, 2015c)

1650
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

[4]Definição de vivência elaborada por uma criança. (THEVES,


Diário de Pesquisa, 2016).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

VOZES SOCIAIS SOBRE TECNOLOGIAS DIGITAIS NO


ENSINO DE LÍNGUAS

Albanyra dos Santos Souza


UFRN
albanyra.souza@hotmail.com

Ao materializar-se, as relações lógicas e concreto-semânticas


tornam-se dialógicas e passam a outro campo da existência,
tornam-se discurso e ganham autor, ou seja, criador do enunciado
cuja posição ele expressa. Na relação entre os enunciados, o
enfoque dialógico é possível a qualquer parte significante desses
enunciados, inclusive entre palavras isoladas, desde que
interpretadas “[...] como signo da posição semântica de um outro,
como representante de um enunciado de um outro, ou seja, se
ouvimos nela a voz do outro” (BAKHTIN, 2018, p. 210). Dessa
forma, nosso interesse está centrado na relação que se estabelece
entre os enunciados sobre a tecnologia no ensino de línguas em
confronto/encontro com os enunciados sobre leitura e escrita em
contextos digitais, buscando perceber como se chocam
dialogicamente as posições semântico-valorativas. Para tanto,
foram considerados nove estudos como objetos de análise, Araújo
(2018), Bomfim e Gonçalves (2014), Cani (2020), Côrreia e Dias
(2016), Galli (2012), Machado e Remenche (2019), Ribeiro (2016),
Santos (2018), e Zart e Fraga (2013).
As vozes dos pesquisadores significam, antes de tudo, o encontro
de posicionamentos axiológicos em processo de dialogia,
personificados na linguagem. Esses encontros podem ser
percebidos entre diferentes passagens nos artigos. Ribeiro (2016)
coloca que a tecnologia na sala de aula proporciona ganho de tempo
e ampliação de espaço. Nesse processo de dialogia, Galli, (2012), ao

1652
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

tratar sobre a leitura na internet, afirma que as práticas discursivas


assumidas pelos alunos se sobrepõem mutuamente, num processo
que envolve tanto a (des)territorialização da informação quanto do
próprio sujeito-leitor, ou seja, pensar a (des)territorialização da
informação é também pensar na ampliação de espaços
possibilitados pelas tecnologias, uma vez que a informação
(des)territorializada ocupa diferentes lugares no ciberespaço, e
assim se amplia os espaços de busca e informação.
Ainda em dialogia com o ganhar tempo, Galli (2012) ressalta que a
prática da leitura na internet é qualificada como dinâmica e pressupõe um
leitor que busca rapidez e conteúdos mais sintéticos. Aqui, a
dinamicidade da leitura na internert implica rapidez ao navegar e
a necessidade de ler conteúdos cada vez mais práticos. Vale
salientar que estamos diante de dois centros de valores que não
necessariamente defendem algo que seja totalmente positivo para
o ensino, pois se a internet possibilita ganho de tempo, e esse ganho
se dá em função da pressa pela leitura, ou mesmo pela síntese da
informação, as consequências podem ser a dificuldade de
concentração do aluno diante das múltiplas possibilidades de
acesso, bem como o entrave no ato de transformar a informação em
conhecimento. Para construir conhecimento, não basta o aluno ter
condições de acesso à informação em larga escala, ao contrário, no
crescente oceano de dados acessíveis na internet, exige-se
estratégias referenciais que permitam identificar quais fontes são
confiáveis e, acima de tudo, o aluno necessita de pensamento
lógico, raciocínio e juízo crítico para, só assim, transformar
informação em conhecimento.
Para que esse ganho de tempo seja realmente positivo para o
ensino, conforme argumentam Côrrea e Dias (2016), as instituições
educacionais necessitam de projetos de integração das TDIC através
de ações que agreguem trabalho em equipe, pesquisa, seleção e filtragem de
informação. Nessa direção, Ribeiro (2016), também coloca que cabe
ao professor o preparo da sua aula, a seleção do material pré-programado,

1653
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

uma boa explicação e um debate proveitoso em sala. Ou seja, para que as


tecnologias digitais sejam, de fato, instrumentos de aprendizagem
é preciso um trabalho sistematizado de ações escolares que
considerem, especialmente, a incorporação de novas práticas
tecnológicas aliadas às consideradas “convencionais”, como a
presença docente na preparação, aplicação e orientação do uso
correto das ferramentas tecnológicas para o processo de
aprendizagem.
Nessa relação de vozes, Araújo (2018), salienta que a tecnologia em
si mesma não transforma a prática pedagógica do professor com a sua
simples inclusão no contexto escolar, ao contrário, para que a mudança
aconteça é preciso que o professor criticamente se familiarize com as
TDIC como um componente pedagógico e curricular. Vale ressaltar
ainda a posição de aprendiz do professor na era digital, ressaltada
pelo autor quando afirma que o professor se encontra em uma posição
de aprendiz e não como um sujeito que domina o conhecimento
completamente. Isso significa criar condições para uma integração
efetiva das tecnologias digitais na prática educativa. Os
profissionais da educação, enquanto aprendizes, necessitam de
atitude crítica, habilidades e destrezas para que seja possível
valorizar e avaliar a pertinência do uso da tecnologia na sala de
aula. Diante de tudo isso, são infinitas as possibilidades de
sistematização do uso pedagógico das tecnologias digitais nos
contextos de ensino.
A inclusão dessas tecnologias de modo sistematizado, significa
criar condições para formas de leituras plurais. Nesse sentido,
Santos (2018), considera o aluno como produtor ativo de
significados e que pode usar as práticas de letramento digital para
aumentar suas possibilidades de participação social, o que implica um
sujeito aprendiz cada vez mais autônomo e responsável pelo
próprio conhecimento. Além disso, os sentidos atribuídos ao uso
da tecnologia, nesse contexto, permitem aos alunos relacionarem e
integrarem novas experiências aos esquemas conceituais que já
possuem.

1654
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Porém, essa autonomia na construção do próprio conhecimento


não deve ser confundida com liberdade de acesso e de uso da
tecnologia. Conforme, destacado por Côrrea e Dias, o aluno se inicia
no mundo tecnológico sozinho e aprende por conta própria. Ou seja,
muitos alunos se familiarizam rapidamente e cotidianamente com
as ferramentas tecnológicas, fazem uso dessa tecnologia para
entretenimento e, assim, dispõe de uma certa liberdade de acesso e
de escolha por sites, aplicativos ou redes sociais. Um impasse se
instaura, na verdade, quando essa tecnologia possui fins
educacionais, como é o caso das redes sociais, tal como o autor
afirma perceber uma relação contraditória dos alunos com as redes sociais
digitais, ora são vistas tanto como elemento de descontração e dispersão,
ora como ferramenta de socialização. Esse discurso apenas confirma o
que já foi ressaltado, a necessidade de sistematização das práticas
educativas em função do uso pedagógico das tecnologias digitais.
Se temos as redes sociais ora como instrumentos de distração, ora
como com ferramenta pedagógica, então precisamos não
desconstruir as práticas já desenvolvidas fora da escola, mas
aproveitar essas aprendizagens para a construção de experiências
novas que privilegiem as aprendizagens curriculares.
É nesse sentido que Machado e Remenche (2019) propõem a leitura
do Livro Literário Infantil de Aplicativo, enquanto uma produção
literária específica da virtualidade. Os autores destacam que a
leitura do livro de aplicativo é uma combinação de áudio, imagem em
movimento, enlaces hipertextuais, jogos e até ferramentas de participação
em redes sociais na internet. O que seria apenas entretenimento, jogar
e interagir nas redes sociais, por exemplo, com o livro de aplicativo
passa a ser aprendizagem dinâmica e sistematizada. Conforme os
autores ressaltam, a principal finalidade do “enriquecimento”
(integração dos recursos) em livros digitais é favorecer a
interatividade, ou seja, estamos diante de uma possibilidade de
aprendizagem que vai além do texto verbal, parte das experiências

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

já construídas pelo aluno fora da escola sem desconsiderá-las e


ainda promove a interatividade.
Os autores ainda concluem que os elementos de gamificação nas
narrativas do LLIA contribuem para deixar os enredos mais emocionantes,
pois possibilitam maior integração dos conteúdos com o imaginário do
leitor, oportunizando que este leia em seu próprio ritmo, e esse ritmo de
leitura, vale ressaltar, é motivado pelos recursos de gamificação,
pois o roteiro da história contempla níveis progressivos, desafios,
missões, recompensa e a retroalimentação. Essa postura apenas
completa o que Cani (2020) pontua ao afirmar que a materialização
das TDIC em um currículo educativo implica a oportunidade de construir
saberes tecnológicos e pedagógicos, tão necessários no contexto atual
de ensino, além de despertar esse aluno para uma aprendizagem
mais integradora e interativa.
É importante destacar que nesse processo de aprendizagem com as
tecnologias digitais, além de interativa a aprendizagem passa a ser
colaborativa. Com a tecnologia wiki, por exemplo, conforme
enfatizam Bonfim e Gonçalves (2014), a tecnologia wiki abre novos
caminhos para a produção (hiper)textual colaborativa, pois a ferramenta
é utilizada para a produção de hipertextos, bem como para a
reescrita desse texto. Nesse sentido, os autores apontam para o
potencial da prática pedagógica e destacam as contribuições tanto
para o professor quanto para o aluno. Os estudiosos ressaltam
que a ferramenta oferece ao professor a possibilita de acompanhar todo o
processo de (re)escrita de (hiper)textos dos alunos auxiliando e avaliando
as dificuldades, e ainda, oferece aos alunos a oportunidade de alterar seu
próprio texto (ou do grupo) quantas vezes achar necessário, com rapidez
de acesso e de edição, uma vez que o texto se encontra na grande
rede.
Assim, para concluir essa dialogia de vozes, ainda falando sobre
leitura e escrita, Zart e Fraga (2013) colocam que escrita e leitura
trocam seus papéis, porque quem participa da estruturação do hipertexto,
fazendo escolhas e criando significados, é um leitor, ou seja, o leitor

1656
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

passa a autor e o autor passa a leitor, em uma troca de papeis que


mobiliza conhecimentos, experiências e estratégias para as
situações concretas de uso da língua.
Nessa interação que se estabelece entre as vozes sociais, dá-se o
encontro de posições axiológicas de diferentes sujeitos sociais que
pesquisam e buscam entender a realidade educacional frente às
tecnologias digitais. Nessa relação dialógica, os sujeitos revelam o
seu lugar de fala, ora são professores/pesquisadores nos espaços
escolares ou acadêmico tratando teoricamente sobre as tecnologias
ante a posição que ocupa, ora são professores/pesquisadores
contextualizando a teoria nos diversos espaços de atuação.
Embora os posicionamentos não se direcionem a uma
conclusibilidade, precisamos concordar que eles nos revelam que
os modo ler e escrever hoje foram fortemente modificados pelas
tecnologias digitais e, de fato, elas foram responsáveis por uma
grande parcela dessas mudanças que, claro, se iniciaram nos mais
diversos contextos sociais e, não diferentemente, chegam às
instituições educacionais também como uma possibilidade didática
e pedagógica.
No cruzamento de vozes, as tecnologias digitais no ensino de
línguas proporcionam maior qualidade de ensino e aprendizagem,
consideradas ganho de tempo, de aula, ampliação de espaços de
ensino, a (des)territorialização da informação. As práticas de
leitura na internet consideram a dinamicidade e a rapidez pela
busca do conteúdo, o que nos revela, porém, a imprescindibilidade
do trabalho sistematizado e orientado do professor a partir de
projetos que integrem os conteúdos escolares e as tecnologias
digitais. Está claro que a tecnologia em si mesma não promove
ensino e aprendizagem, é preciso, antes de tudo, que o professor se
familiarize com os recursos e transforme esse conhecimento em
projetos integrados, multidisciplinares, multimodais e
multisemióticos. A partir de uma postura mais crítica diante das
tecnologias digitais, as práticas de escrita, por exemplo, podem ser

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mais interativas e colaborativas, tornando o texto do aluno mais


acessível ao professor e aos outros leitores.
A impressão que temos é que, provavelmente, muito em breve, as
tecnologias digitais se integrarão às práticas de leitura e escrita de
forma tão presente e transparente que não perceberemos a sua
presença entre nós. Embora muito distante de uma democratização
de acesso ou mesmo de uma aprendizagem ampla em relação ao
digital, vislumbramos essa integração nos estudos quando
observamos os marcadores de temporalidade, por exemplo, eles
sinalizam o quanto que os muitos recursos tecnológicos vão se
tornando parte e indispensáveis na nossa vida em sociedade.

Referências
ARAÚJO, Marcos de Souza. Ensino-aprendizagem com tecnologias
digitais na formação inicial de professores de inglês. Trabalhos em
Linguística Aplicada. n. 57, v. 3, de 2018.
BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2018.
BONFIN, Luciene da Silva Santos; GONÇALVES, Adair Vieira.
Escrita digital colaborativa a partir da tecnologia wiki. Revista
Brasileira de Linguística Aplicada. v. 17, n. 3 de 2014.
CANI, Josiane Brunetti. Proficiência digital de professores:
competências necessárias para ensinar no século XXI. Linguagem e
Ensino. v.23, n.2 de 2020.
CÔRREA, Hêrcules Toledo; DIAS, Daniela Rodrigues.
Multiletramentos e usos das tecnologias digitais da informação e
comunicação com alunos de cursos técnicos. Trabalhos em Linguística
Aplicada. n. 55, v. 2, 2016.
GALLI, F. C. S. Discursos sobre a leitura na contemporaneidade:
entre o texto-papel e o texto-tela. Trabalhos de Linguística Aplicada. v.
51, n. 1 de 2012.

1658
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

MACHADO, Paulo Henrique; REMENCHE, Maria de Lourdes


Rossi. Elementos de gamificação presentes em Livros Literários
Infantis digitais interativo em formato de Aplicativo (LLIA):
análise de práticas multiletradas na formação de leitores.
Linguagem e Ensino, v. 24, n. 4, de 2019.
RIBEIRO, Ana Elisa. Tecnologia digital e ensino: breve histórico e
seis elementos para a ação. Revista Linguagem & Ensino (Online), v.
19, p. 91-111, 2016.
SANTOS, Lucas Moreira, et al. Teaching English as an additional
language for social participation: digital technology in an
immersion programme. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v.
18, n.1. 2018.
ZART, L. H. M.; FRAGA, D. M. Ferramentas tecnológicas para
investigação de autoria. Revista Brasileira de Linguística Aplicada.
Belo Horizonte. V. 13, n. 1, 2013. p.67-83.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Sandman

Mônica Menezes Santos13


m152819@dac.unicamp

Sandman ou homem de areia em inglês, João Pestana para os


portugueses, diz respeito a uma lenda que faz parte do folclore
europeu.Nesta lenda,as crianças que se comportarem bem
recebem, à noite, a visita do ser mítico que, com sua algibeira, joga
um pó mágico nos olhos dos pequenos para que estes tenham uma
boa-noite de sono. Este também é o nome do personagem de Neil
Gaiman, conhecido como Sonho ou Lord Morpheus.
Neil Gaiman inaugura com Sandman, uma história escrita por
ele e desenhada por vários quadrinistas famosos, um marco no
status dos quadrinhos para o público adulto. História que mistura
várias mitologias, incluindo a bíblica, criando com todas essas
mitologias uma outra, em uma polifonia de vozes equipolentes,
tanto no texto verbal como no texto imagético.
Sandman, uma criatura antropomórfica, no mundo criado por
Neil Gaiman, irmão mais novo da Morte, usa – assim como na
mitologia europeia – uma algibeira com o pó de seu reino, o Sonhar
– onde ninguém sai sem sua permissão – e um elmo. Em posse
desses artefatos que –se não me falha a memória, afinal faz muito
tempo que li esse quadrinho ou como é considerado por muitos,
uma Graphic Novel – utiliza para fazer viagens a outros reinos, como
o da Morte, ou para descer à Terra.

13Auxiliar de Desenvolvimento Educacional no Município de Indaiatuba/SP–


participante do Grupo de Estudos Bakhtinianos – GRUBAKH, e Mestranda no
Programa de Mestrado Profissional em Educação Escolar da FE/UNICAMP

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

São 08h20, desço para servir as crianças do primeiro período, as


do maternal II. À tarde recebemos as crianças menores, do maternal
I.Às 08h30 as crianças do maternal II A estão sentadas tomando seu
café da manhã. São seis ao todo. Às 08h45,o maternal II B toma o
café da manhã, são sete crianças nesta sala. Converso com as
auxiliares daquela sala. Florzinha fala alguma coisa, mas não a
entendo bem.
– Ela tá te mostrando as unhas, Mônicaaa!!! – me diz a auxiliar
da sala.
– Entendiiii! Desculpa, Florzinha, tô meio desligada hoje! Mas
suas unhas estão lindas de azul! Você tá muito linda!
– Sim! – me responde com um sorrisão. Também solto um
sorriso, mas ela não vê, estou com a máscara de proteção PFF2 –
ainda estamos na pandemia, por isso as salas de vinte oito
comportam agora no máximo quinze crianças.
– Gosto de você!
– Olha, Mônica! Ela gosta de você! – diz minha colega auxiliar.
– Obrigada, Florzinha! Também gosto muito de você! Já tinha
ganhado meu dia naquele momento. Mas a pequena me surpreende:
– Você é linda! E faz um coraçãozinho com as mãozinhas e suas
unhas azuis. Retribuo o gesto e digo a ela: – Obrigada, Florzinha!
Ganhei meu dia!
– Sim! Ela me responde e sorri mais uma vez.
A turma do maternal II B sai, me preparo para receber a próxima
turma para servir o café da manhã. Enquanto isso, no meio da
alegria que estava, me lembro do que tinha dito a mim mesmapela
manhã,na frente do espelho, ajeitando os óculos de proteção e
colocando a máscara PFF2, antes de sair do apartamento para ir ao
trabalho:
– Putz,tô a cara do Sandman!

Mr. Sandman!

Mr. Sandman, bring me a dream

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Make himthecutestthatI'veeverseen

Give himtwolips like roses andclover

Thentellhimthathislonesomenights are over

The Chordette

Quando fui apresentada por um amigo a história em quadrinhos


escritos por Neil Gaiman e ilustrada por renomados ilustradores,
não imaginava que o personagem principal Sandman ou Lord
Morpheus, iriam voltar à minha vida de uma forma, digamos assim
e pelo menos para mim, surpreendente.
Ao me levantar às cinco da manhã e, já naquele momento me
sentir cansada e melancólicadepois da pequena rotina do levantar,
tomar café, banho, me deparar com minha imagem no espelho e
falar: “Putz, tô a cara do Sandman!”.
Rememorar o vivido: uma fala diante do espelho nas primeiras
horas do dia que poderia não me dizer nada, recebe um outro
colorido, um outro ilustrador, neste caso, uma ilustradora, bem como
na obra de Neil Gaimanem que cada artista, por meio de seus
traços, dá uma visão da história.
Assim, a fala da pequena Florzinha ao me dizer que gostava de
mim, me dá esse colorir de vida, tinge com cores radiantes o que
parecia ser um dia cinza. Porém, ao dizer que eu era linda, a criança
me faz ressignificar esse linda, pois ao usar esse adjetivo e não outro
em seu lugar – parafraseando um enunciado famoso de Foucault –
me faz relembrar a minha própria imagem e meu texto verbal, na
modalidade oral, diante do espelho.
Texto este atrelado a uma imagem ambivalente: de
estranhamente, vou ao trabalho na educação infantil com
Equipamentos de Proteção Individual – os EPIs, composto por máscara
ou também chamada respirador, a PFF2 (Peça Facial Filtrante)e
óculos de proteção. E justamente por esse estranhamento primeiro,
me leva a comparação a personagem de Gaiman, o Sandman, que

1662
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

também usa equipamentos, uma espécie de EPIs, para viajar aos


outros reinos, como o de sua irmã mais velha, a Morte.
Sandman usa um elmo, máscara e a areia do seu reino, o Sonhar.
Ele joga essa areia, que fica em uma algibeira, nos olhos dos
incautos e não só nas crianças, como na mitologia europeia. Os
atingidos por esta areia que entrarem em seu reino, não poderão
sair sem a sua permissão. Porém, diferente da mitologia,
LordMopheus de Gaiman não trará só bons sonhos, mas também
pesadelos. E todos, tantos os bons sonhos como os ruins, vivem em
seu reino.
De meu lado de ser humano e não um ser antropomórfico, vou
trabalhar em uma creche e não em um ambiente hospitalar, mas
diante da pandemia causada pela COVID-19, uso os EPIs descritos
acima. Sandman joga a areia do Sonhar nos olhos e eu quero me
proteger das partículas de aerossóis que são expelidas pela
respiração;tenho medo de que essas partículas atinjam meus olhos
e boca, forma de transmissão do coronavírus, ou as partículas que
saem de mim atinjam as crianças e minhas colegas de trabalho.
As pessoas que convivo no trabalho, tanto as crianças como os
adultos, podem me trazer boas situações como ruins. Como no dia
que fui auxiliar em uma turma do maternal I e as auxiliares daquela
sala usavama máscara no queixo, o que me fez ficar próxima da
porta e sairna primeira chance que tive e o mais rápido possível.
Bem como a personagem de Neil Gaiman, para descer à Terra
ou a outros reinos, eu uso meus equipamentospara sair de casa, ir a
outros reinos, no caso a creche. Enquanto ele vai de elmo, vou de
óculos e máscara de proteção. Ele lança a areia do Sonhar, eu coloco
álcool em gel 70% nas mãos dos incautos que vejo pela frente. Ele
tinha um dos mais belos habitantes do Sonhar – pelo menos para
mim! – o Verde do Violinista (um sonho bom), ou em língua inglesa
Fiddler’s Green. E eu o Desenhista...
A narrativa que segue é de vinte de agosto de dois mil e vinte e
um.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Estava acompanhando uma atividade ao ar livre do maternal II


C, quando um pequeno me chamou para mostrar seu desenho. As
crianças estavam desenhando com canetinhas coloridas no azulejo
da creche – uma parte de azulejos brancos destinada para
atividades de pintura tanto com tinta lavável ou canetinhas.
– Que lindo!!! Me fala do seu desenho!!! Ele não me respondeu,
baixou a cabeça, parecia tímido. As auxiliares da sala me contaram
que ele era muito esperto e comunicativo. Provavelmente estava
tímido com minha presença. Depois de ajudar a higienizar as
canetinhas, fui acompanhar algumas crianças que brincavam de
amarelinha. Sem me dar conta, o pequeno veio em minha direção e
me deu um abraço. Em um primeiro momento não tive reação,
depois retribui o gesto.
Assim como a Florzinha, o pequeno pareceu não se incomodar
com o fato de estar de jaleco branco, óculos e máscara de proteção,
além da touca descartável que usamos para servir as refeições –
acabo passando o dia com essa touca, por ter sido advertida
diversas vezes por esquecê-la e ser de uso obrigatório para servir
as refeições das crianças. Em alguns momentos, tenho a sensação
de que as crianças conseguem ver meu rosto por trás da
máscara.Pois em tantos momentos, por mais difíceis que me
parecem ser – é muitas vezes o são – as crianças me dão sua escuta
e ato responsivo, não só pela modalidade verbal da linguagem, mas
em seus singelos gestos.
Desta forma, as crianças vão me constituindo em atos
ambivalentes, entre o riso e o choro. O medo da morte e a vida
vivida no cotidiano com as crianças. Entre máscaras e o uso do
álcool gel 70%. Morte e vida, alto corporal e o baixo corporal, em
um único movimento. Alegria de ser chamada de linda e, o
destronar ao me lembrar que me vi parecida com o Sandman por
estar usando a PFF2 e os óculos de proteção. Porém, nesse
movimento de alto e baixo, dentro do corpo cínico de nosso tempo
grotesco, as crianças me dão um excedente de visão valioso: um
corpo grotesco mais próximo daquele descrito por Bakhtin em sua
tese de doutoramento – ao tratar da cultura popular na idade média

1664
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

e no renascimento, através da literatura, mais especificamente no


contexto de François Rabelais – em que os pequenos, às vezes, me
parecem forçar uma tosse falsa para nos destronar de nosso lugar,
pois como auxiliares de desenvolvimento educacional, somos em
nossa posição sujeito, a instituição. Mediamos a relação entre a
população e a instituição.Por outro lado, nessa posição, penso ser
meu ato responsável tentar encontrar brechas dentro da cultura
oficial para responder a escuta responsiva que as crianças me
oferecem.
Assim, espero que o Sandman, por vezes melancólico, faça como
sua irmã mais velha, a Morte. Ela que vem jovial levar as pessoas
de uma forma tão amorosa para seu reino, mostrando que a morte
pode ser eufórica, ambivalente: o renascer pela morte. Morte que
pode trazer o novo, o grotesco em sua ambivalência.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos:


Pedro & João Editores, 2010.
______. O autor e personagem na atividade estética. In: Estética da
Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
______. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto
de François Rabelais. São Paulo: Editora da Universidade de Brasília,
1987.
GAIMAN, Neil. Sandman. Barueri: Panini Books, V. I, 2011.
SERODIO, Liana Arrais. Narrativas como atos éticos-estético-
cognitivo de resistência dialógica hetero-formativa. In: SERODIO,
Liana Arrais et al (Orgs.). Narrativas, corpos e risos anunciando uma
ciência outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018.

1665
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A Pata e a Coruja
Um jeito de enfrentar dias futuros ou uma reinvenção do
grotesco

Liana Arrais Serodio14

Três de junho de 3512


— Dona Coruja – disse a Dona Pata, que muito mais passeia nos
corredores e pátios de tratamento e alimentação dos outros bichos
e que justamente por isso acaba sabendo dos hábitos e tradições
mais animalescas dos animais – você pode me passar o contato com os
bichos e bichas das jaulas mais movimentadas?
A Coruja avisou que não poderia responder naquela hora, mas que
responderia mais tarde. Devia estar corujando os filhotes de seus
filhotes, pois demorou mais de uma semana para responder. Todo
mundo sabe do cuidado das corujas com seus filhotes.
— Nada mais gostoso de fazer – pensou a Pata com suas patas porque
pisou em uma pedrinha mais pontuda ao mesmo tempo em que
lembrava no corpo como é bom ter seus patinhos sob as asas,
quando pequeninos.
Simpatia e pouca paciência são qualidades que a Pata vive tentando
equilibrar, e apesar dela não deixar ninguém que não é muito
próximo esperando por resposta, há, ela sabe que há, muitas
possibilidades para alguém não responder e algumas bem trágicas
em se tratando de animais enjaulados em tempos da praga mortal
que se esparrama pelos cercados. De qualquer modo, poderia ser
simplesmente não querer responder. Será que tinha acontecido
algo mais grave?
Essas mesmas qualidades – ela considerava que defeitos são
também qualidades, pois para ela “qualidade” é tudo que diz o
valor da atitude de alguém – a fizeram deixar o tempo passar um

14 Universidade Estadual de Campinas. E-mail: laserodio@gmail.com

1666
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

pouco, pois nem era tão próxima da Coruja para se considerar


importante caso ela tivesse passando por problemas. Além do mais,
nem tinha assumido a responsabilidade com os tais contatos. Era
mais para pesquisar se poderia ajudar a bicharada enjaulada com
essas possíveis informações, afinal, ela tinha liberdade para passear
pelos pátios e corredores quase sem ser vista.
Porém a resposta demorou mais do que ela esperava e ficou
parecendo, pelos rumores que ouvia, que sua pesquisa teria, afinal,
mais valor.

Vinte e dois de junho de 3512


Chega a resposta da Dona Coruja, que estava muito ocupada
naqueles dias e no fim acabou se esquecendo de lhe avisar para
voltar ou de mandar os contatos. Mas tinha interesse em saber
detalhes do que a Pata precisava, e clamou pela sua generosidade,
se ela podia explicar melhor o que queria.
Dona Pata nadava bem. Passeava com relativa dignidade e
invisibilidade de Pata entre os outros bichos, os soltos e os
enjaulados. Encontrava comida boa e variada em torno das jaulas e
debaixo das mesas da cozinha, não era bem sucedida por certos
padrões, mas sim, para os seus. Mas generosidade, ela não sabia o
que seria em termos de valor para a Coruja. Ela sempre ficava
embasbacada com “generosidade”, “sensibilidade”, “tolerância”,
porque são qualidades que dependem de dois, um sozinho não
pode saber o que alguém quer dizer com esses valores.
“Disponibilidade” é diferente: só depende de um.
Outro problema para a Pata foi atender ao pedido por explicar
melhor. Afinal, era um pedido bem explícito de compartilhar o
contato dos bichos das jaulas movimentadas. Todos naquele
ambiente sabiam quais eram, mais ainda Dona Coruja, com sua
sabedoria.
Mas, vá lá, pensou a Pata:
— Quem sabe se a ideia de movimento, para a Dona Coruja era como a
ideia de generosidade para mim. Pode ser, afinal, ela voa e eu não!

1667
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Acho que foi nesse calo que a tal pedrinha cutucou a Pata aquele
dia. Então, como era tarde foi dormir: ela sabia que os neurônios,
depois do sono, funcionam melhor.
Tudo isso e mais pensou a Pata, mas no momento que recebeu a
mensagem da Coruja realmente não podia responder-explicar!
Estava saindo para uma viagem, para ouvir outros bichos em um
cercado distante, e estava se segurando para não desistir até da
viagem pois havia perdido um grande amigo. Mas para que a
Coruja não pensasse que foi retaliação, avisou onde estaria,
sabendo que seria compreendida.
Mas talvez não soubesse.
A resposta da Coruja foi ambivalente.
— Me chama quando tiver tempo – disse ela.
A Pata embrulhou as emoções nas malas e foi.

Seis de julho de 3512


Descobriu na viagem um contato precioso.
E quando voltou viu que outros já tinham se apresentado.
Descobriu também que os contatos da Dona Coruja poderiam ser
ainda, muito preciosos para toda a bicharada. Além de ter ficado
devendo uma resposta.
Ia se empenhar em explicar bem, fosse o que fosse “bem” aos
grandes olhos da Coruja. Foi quando percebeu que, por haver
demorado, acabou, mesmo, soando “retaliação”.
Retomou do jeito que podia e que lembrava tudo o que aconteceu,
fazendo um esforço por “explicar”.
— O que será que Dona Coruja queria saber? Eu só pedi os contatos que
ela teria. Eu esperava que bastaria ela compartilhar comigo!
Dona Pata pode se achar passeadeira invisível, mas ela está
enganada.
Tantos os enjaulados no chão, aves voadeiras ou não, encontravam
no seu grasnido, sons que ela mesma não reparava. Não sempre,
de qualquer modo.
— Olá Dona Coruja, eis todas as informações que talvez possam ser
relevantes para que a senhora troque comigo, pelos seus contatos!

1668
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

E assim foi! Para alívio da Pata.


Contatos passados em detalhes, sugestões anotadas.
— Obrigada, Dona Coruja, até outra era.
— Dona Pata, um minutinho, por favor! Apesar de não fazer parte dos
motivos que a trouxeram em busca dos contatos que compartilhei, queria
sugerir a indicação de outro contato meu...
Sim, a Pata ouviu e viu o valor da indicação e guardou para não
perder e poder indicar em uma era em que não fosse os bichos
enjaulados em movimento, o motivo do pedido.
— Que atenciosa, Dona Coruja!...
Moral: enquanto se fizer um favor como moeda de troca, sempre
se manterão as jaulas, ninguém desejará a liberdade.

Escrita-evento grotesca: uma fábula para tempos interessantes?


Fiz uma “fábula”, respondendo ao que reconheci como um ato
identitário, no sentido de preso à armadilha mortal da identidade
(PONZIO, 2013), em que o sujeito representa seu papel social,
amparado no discurso oficial e não consegue se posicionar com sua
assinatura, alteritária-dialogicamente. Isso não quer dizer que não
conversam e que não há diálogo, mas que ao reproduzir um papel
que considera teoricamente superior, portanto não o questiona,
sobra pouco espaço para ver-se com os outros papeis ou aceitar
quando surge alguém que o faça. Desse modo, as condutas
programáticas que seguem um programa invadem as relações
interindividuais como se fossem entre idênticos [subordinados
igualmente à ordem explicativa, perpetuando a identidade correta
segundo uma teoria e sua representação social, mesmo quando a
própria função representativa muda: em decorrência da tecnologia,
por exemplo. Só isto, o conflito ideológico decorrente dos lugares
ambíguos as diferentes funções, já seria condição para o grotesco
(BAKHTIN, 2013), mas ainda não cheguei onde quero.
Boaventura Santos (2019) chama atenção por dizer que as forças de
esquerda têm uma formação para enfrentar os três modos de

1669
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dominação: colonialismo, capitalismo e hetero-patriarcado. Assim


os movimentos sociais que legitimamente lutam pela conquista ou
manutenção dos direitos sociais adentram as relações
interpessoais, as relações familiares e escolares, que sofrem
mudanças forçadas para direção oposta às suas premissas, pois
“muitas vezes, os movimentos anticapitalistas, feministas e
antirracistas têm combatido uma destas formas de opressão – e
fechado os olhos às outras” (SANTOS, 2019). Este “fechar os olhos”
ocorre “também (...) por terem sido treinadas no mundo
eurocêntrico para desconhecer ou descartar as articulações entre os
três modos de dominação.” “Descolonizar o saber científico e
popular e o poder, tanto social como cultural e político” é uma das
soluções (Idem). Este evento, o VIII Círculo — Rodas de Conversa
Bakhtinianas oferece oportunidade de descolonização do saber
científico, oferecendo condições para a reunião de centenas de
pessoas inscritas para a escuta responsiva do outro trazendo
consigo o seu texto para a comunhão! O grotesco de nossos dias.
A fábula que fiz como resposta grotesca, veio também para sentir
como de que maneira uma posição ética-estética outra pode ser
mais produtiva esteticamente, em relação às narrativas
pedagógicas, que são materialidade comum no meu trabalho de
pesquisa e formação do/a professor/a e outros/as profissionais do
ensino. Ou seja, pela diferença de posição estética, possibilita um
passo além, uma transgrediência.
Tomo materialidade como “algo objetivo, pré-existente e resistente
em relação à consciência” (PETRILLI, 2013, p. 311), algo que me
possibilita uma exotopia para o mundo da vida ao qual só tenho
acesso participando ativamente como meu horizonte ideológico
tem fundamento na filosofia da linguagem bakhtiniana; e tendo a
escrita, como evento (SERODIO; PRADO, 2017) e não um “ser-
dado” (BAKHTIN, 2010), não tenho álibi: sei que preciso de outro
ponto de apoio fora de mim para a produtividade estética
(BAKHTIN, 2003) daquele eu incomodado com uma realidade à
qual já não poderia responder diretamente. [Ou seja, ao escrever
colocando as personagens em relação, elas se realizam como

1670
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

indivíduos conscientes e em equipolência, dando a ver, a mim, seus


mundos da vida singulares, onde não aceitam o papel a elas dado.]
Os “tempos interessantes” (ŽIŽEK, 2012, p. 291-363) que vivemos
criam desafios histórico-sociais “parentes” dos tempos da Idade
Média constituída culturalmente em meio aos valores
ambivalentes, aos espaços festivos nas feiras e na praça pública e
na carnavalização e destronamento dos valores oficiais, etc. Hoje
temos que lidar com um rei-bufão, que frauda o papel libertador
do bufão medieval! Na cultura popular carnavalesca
contemporânea, há “burla ritual da divindade” (BAKHTIN, 2013,
p.11), mas o sagrado é superior e perdoa a blasfêmia. Na cultura
popular medieval, as blasfêmias não precisavam de perdão, eram
ambivalentes: as blasfêmias degradavam, mortificavam,
regeneravam e renovavam (BAKHTIN, 2013, p.15).
O que Bakhtin (2018) denuncia como um mau convencionalismo nas
relações humanas, Rabelais (2009) responde com dois gigantes,
Pantagruel e Gargântua, que comendo, mijando e sendo paridos e
alimentados e acolhidos ao mesmo tempo, foi o que me fez escrever
a burlesca fábula, obviamente em ínfimas, microscópicas
dimensões.

Esse mau convencionalismo que impregnara a vida humana é


constituído, antes de tudo, pela ordem feudal e pela ideologia
feudal, com a sua depreciação de todo o espaço-tempo. A hipocrisia
e a mentira impregnaram todas as relações humanas. As sadias
funções "naturais" da natureza humana realizavam-se, por assim
dizer, por via contrabandeada e selvagem, porque a ideologia não
as consagrava. Isso introduzia a falsidade e a duplicidade em toda
a vida humana. Todas as formas — instituições — ideológicas
tornavam-se hipócritas e falsas, ao passo que a vida real, carente de
compreensão ideológica, tornava-se grosseiramente animalesca.
(BAKHTIN, 2018, p. 113).

Esta fábula pode possibilitar, se eu for mais ou menos bem


sucedida, uma leitura do drama de seres viventes constituídos de

1671
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

linguagens, entre o discurso oficial que medra nas instituições, a


despeito do discurso anti-discurso oficial e o discurso do cotidiano
de um sujeito único, que se mostra muito mais impregnado pelo
discurso oficial em nossa contemporaneidade do que no período
medieval, que não pensava com a linguagem escrita, devido à
linguagem escrita ter tomado a linguagem oral (PONZIO, 2020).
Precisei de uma construção estética outra, que denunciasse a forma
animalesca dos indivíduos, como pergunta “às avessas”, brincando
com a busca de sentidos para respostas a perguntas que não fiz. Ou
fiz, não é? Afinal, não é preciso o ponto de interrogação para que,
no diálogo, uma afirmação se torne questão.
Enquanto escrevia, uma fábula do real, ao escolher as palavras que
mais verdadeiramente refletissem e refratassem meu desagravo e
minha busca de desabafar a raiva, foi se dando uma compreensão
daquilo que se não chegasse ao outro, ou mesmo ao mundo, soaria
omissão. Ou mentira em outra situação. Assim, mesmo querendo
desabafar, não pude generalizar e não pude não deixar de me ver
com os olhos dos outros.

Mas a verdade, contraposta à mentira, fica quase desprovida de


qualquer expressão verbointencional direta de sua palavra: esta só
soa na acentuação paródico-desmascarante da mentira. A verdade
se restabelece pela redução da mentira ao absurdo, mas ela mesma
não procura palavras, teme embaralhar-se na palavra, atolar-se
num patético verbal. (BAKHTIN, 2015, p. 93).

Todo esse movimento me fez pensar nas narrativas pedagógicas,


como voz grotesca, livre e libertária do cotidiano escolar, grotesco
ele mesmo como modo de (vi)ver o cotidiano.
Até que ponto o que narramos tateia o discurso oficial
politicamente correto para contar os acontecimentos que tanto
valorizamos? Medviédev (2012, p.155) cita o “tato discursivo”
como “os retardamentos, os desvios, os duplos sentidos, os
caminhos tortuosos do discurso.” Quantas das narrativas
pedagógicas ficam criando retardamentos, desvios, duplos

1672
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sentidos e caminhos tortuosos e sequer chegam perto de trazer


duas (ao menos) vozes, duas consciências, duas visões do vivido?
Muitas. Porém também já são muitas aquelas que sem suspeitar,
como herança do discurso do cotidiano prático, já trazem
entonações ambivalentes e equipolentes e não indiferentes.
Alterar a posição estética de autora de narrativa para autora de
fábula faz passar pelo jocoso, irônico, satírico e patético sentindo o
descritivo, argumentativo, informativo, denotativo ao mesmo
tempo. Me faz passar da representação geral de uma personagem
(a Pata ou a Dona Pata, a Coruja ou Dona Coruja, os animais
enjaulados, os voadores, etc.) para a singularidade de cada uma das
personagens. E possibilita outras perspectivas axiológicas.
Bem, como dizemos, eu e algumas colegas do grupo, em qualquer
texto estamos sempre pesquisando. Daí, e por um tempo, por mais que
o tom fique sério, é oscilante e aberto. Uma boa lição talvez seja
sempre assumir o riso nos lábios, como diz Miotello (2018), para
favorecer o grotesco.
Portanto, eu, autora-criadora da fábula, vi a experiência como uma
forma ideológica de dizer o que não se pode dizer de peito aberto,
na vida, no acontecimento que se vive, pois criaria além de mal-
estar, também mágoa, ressentimento. O riso é mais criativo.
Senti a ambivalência, o grotesco ao escrever a fábula, por meio da
escrita-evento ao tomar consciência da consciência ideológica e da
posição esteticamente singular em relação aos outros. Foi uma
forma de refletir e refratar a realidade bruta.

A vida, como totalidade de ações, acontecimentos e vivências


determinadas, converte-se em enredo, fábula, tema, motivo,
somente refratada pelo prisma do meio ideológico, somente
encarnada em uma ideologia concreta. Se ela ainda não foi refletida
ideologicamente, a realidade bruta, como se diz, não pode fazer
parte dos conteúdos da literatura. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 60).

1673
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Ser patética foi uma solução estética, social. Porém por origem e por
gênero do discurso (BAKHTIN, 2016) não poderia ser fábula,
forjada no passado em que a autoria individual nem era cogitada
como valor. O valor estava em contá-las: “Para mim, a memória é
a memória do futuro, para o outro, a do passado.” (BAKHTIN,
2003, p. 114). Assim, no meio do percurso o eu-outro percebe que
não poderia continuar patético. As personagens se
despersonalizaram de seu papel representativo, passaram pela
relação direta na vivência e foram para o grande tempo. Não
podiam ser só o que se mostraram ser na vida nem o papel de uma
identidade sem alteridade. A atribuição da qualidade patética à
autora-criadora, narradora da narrativa, da ideia do patético que
Bakhtin (2014; 2015) traz, só me serve como réplica ou já com a
consciência de que não é pura.
Em que dimensão a consciência linguística pode in(ter)ferir na
expressão verbointencional que, por grotesca se espalha da e na
cultura? Lembrando que é admitida pelo oficial atuando nele,
inclusive?
Não sei se terei a resposta um dia, mas vou tentar responder outra
questão: como saber dizer o que não se pode dizer?
“Quem não sabe fazer nada pode virar artista, músico...” dizem Os
saltimbancos na adaptação de Chico Buarque dos Músicos de Bremen.
Não é o caso de não saber fazer nada, não chega a isso, mas fazer
com o que se sabe algo relevante para não se sentir “engasgada”
como o outro pato, o da canção de Vinícius, aquele “com dor no
papo”. Antes o outro, o pato do João Gilberto, que “cantava
alegremente” “quando o marreco sorridente pediu para entrar
também no samba” que animou o cisne, que chamou o ganso para
o Tico-tico no fubá. Sim sim, seria o ideal. Ideal no sentido popular
de ideal, do desejado, esperançado, pois já até levou ao ato. O
quarteto ficará bem na beira da lagoa, mas e a pesquisadora-

1674
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

colaboradora da UNICAMP15? Como ficará depois dessa


pataquada...!?
Referências

BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Introdução


Augusto Ponzio. Posfácio Carlos Alberto Faraco. Tradução
Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. . São Carlos: João &
Pedro Editores, [1920-24] 2010.
BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da
forma na criação literária. In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de
literatura e de estética. São Paulo: Hucitec, [1923-24], 2014, p. 13-57.
Tradução Autora Fornoni et al.
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética.
In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo:
Martins Fontes, [1924-29] 2003. p. 01-192). Tradução Paulo Bezerra.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução de
Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, [1930] 2015.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: as formas do tempo e do
cronotopo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, [1937-
1939] 2018.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail.
Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, [1952-53]
2003. p. 261-306. Tradução Paulo Bezerra.

15 Do GEPEC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada) e do


NOZSOUTRES – Círculo de Estudos Narrativos, supervisionada por Guilherme
Prado, mantendo ativo o GRUBAKH, um subgrupo que estuda a filosofia da
linguagem bakhtiniana. Contribui com Programa de Mestrado Profissional em
Educação Escolar e com a leitura e devolutiva (exame) em bancas de mestrado e
doutorado de outros grupos de pesquisa e também insiste em ser professora e
orientadora de pesquisas. Em busca de compreensão das narrativas pedagógicas
e metodologias narrativas de pesquisa pelos conhecimentos das relações da escola.

1675
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

MIOTELLO, Valdemir. Falando do riso... rindo da fala. In:


SERODIO, Liana et al (Orgs.) Narrativas, corpos e risos anunciando
uma ciência outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018, p. 31-36.
PETRILLI, Susan. Em outro lugar e de outro modo. Filosofia da
linguagem, crítica literária e teoria da tradução em, em torno e a
partir de Bakhtin. Tradução de Valdemir Miotello. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2013.
PONZIO, Augusto; PETRILLI, Susan. Semioetica. Roma, Itália:
Meltermi, 2003.
PONZIO, Augusto. No círculo com Mikhail Bakhtin. São Carlos:
Pedro & João, 2013.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Descolonizar o poder e o saber. In:
Outras palavras. Disponível em : https://outraspalavras.net/crise-
civilizatoria/descolonizar-o-saber-e-o-poder/.
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Tradução de Davi
Jardim Júnior. Belo Horizonte: Itatiaia, 2009.
SERODIO, Liana Arrais; PRADO, Guilherme do Val Toledo.
Escrita-evento na radicalidade da pesquisa narrativa. Educação em
Revista [online]. 2017, v. 33 [Acessado 8 Setembro 2021] , 150044.
Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-4698150044>. Epub
13 Jul 2017. ISSN 1982-6621. https://doi.org/10.1590/0102-
4698150044.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem.
Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo.
São Paulo: Editora 34 [1929] 2017.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem vindo a tempos interessantes. In ŽIŽEK, Slavoj.
Viver no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012, p.291-363.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO EM NOSSAS VOZES.


MAS QUE VOZES?

SORAYA CRISTINA MORAES


Vozes...
O que são?
Para que servem?
Para expressar?
Para pedir?
Para mandar?
Para brigar?
Para persuadir?
Para excluir?
E se não as podemos usar?
Se não as conhecemos?
Se nunca nos apresentaram?
Como faremos?
Um mundo sem voz, como será?
Você já parou para pensar?
Você quer por meio da alteridade, em meu lugar se colocar?
Querer falar e não poder fazer?
Entender o que ao redor se passa e não poder participar?
Sentir dor e não poder explicar?
Como será?
Sofrer pressão, violência, bullying, vergonha, abusos, preconceitos, até
apanhar e não saber se defender e nem poder denunciar, como será?
Sentir medo e não saber falar?
Vozes...
Se eu tivesse uma, como seria?
Fina, grossa, rouca, suave, aguda ...
Com quem e sobre o que eu falaria?
Penso no que acontece quando os lábios se mexem.
Tento imitar, mexer os meus, mas por que não é igual?
Por que, por mais que eu me esforce, não sou visto como “normal”?

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Não sou como Aristóteles pensava.


Não, eu não sou um animal.
Sou humano, penso, sinto, sofro e suporto...
Suporto muitas coisas, trancado, fechado em meu mundo único e
individual.
Mundo silencioso, onde transborda a necessidade de viver.
Quero falar, quero gritar, quero xingar, quero cantar, quero estudar, mas
não sei como começar.
E por falar em estudar, na escola eu até vou, mas por lá só faço imitar.
Não escuto com os ouvidos, mas sinto com o coração.
Não entendo os seus lábios, mas percebo sua emoção.
E você pergunta pelo implante.
O implante é coclear, ele mágica alguma por mim fará e por ele eu nem
posso pagar.
A Libras?
A Libras é para usar, mas não sei, não conheço, ninguém veio me ensinar.
Tem a Lei, tenho direitos.
Mas porque para mim Ela não vale, porque por aqui elas não chegam?
E agora, o que faço?
O ministro falou: “criança com deficiência só serve para atrapalhar”. Mas
será?
Para que nos separar?
Isso é nos segregar?
Me sento, vou chorar e ver o tempo por mim passar?
Não!
Basta!
Eu existo e vou me comunicar!
Sou surdo, sou do Norte, sou da Amazônia, sou do Pará.
Essa Libras eu não conheço, mas sou forte, sou guerreiro.
Uma língua vou criar, meus sinais vou inventar e as barreiras vou
quebrar.
Língua de Sinais Emergentes, você já ouviu falar?
É essa que vou usar.
E eu vou...
Bem... caboco, pode ter certeza, que não sei como, mas vou me expressar.

1678
Veredas do (querer) dizer

Bakhtin e o grotesco

João Nilson P. de Alencar


CA-CED-NEPALP/UFSC

(...) o homem (...) não é apenas a existência mas também o futuro. (...) Enquanto
no seu nascimento, o homem recebe as sementes de todas as vidas possíveis.16

Mikhail Bakhtin discute a problemática do corpo grotesco a


partir da exploração dos elementos escatológicos17 que
constituíram a imagem popular na Idade Média, em uma espécie
de “uroboro”18, isto é, movimento de começo e fim ininterrupto,
aqui representado na famosa figura da cobra que morde sua
própria cauda.
De alguma forma, o escritor russo intenta desenhar o percurso
desse corpo grotesco não apenas no imaginário popular, mas
igualmente visualizar o movimento desse corpo. Em última
instância, esse corpo é o corpo da linguagem. Esse texto objetiva
abordar alguns casos na cultura brasileira em que esse traçado, o
delineamento da palavra, se personifica. Portanto, tem importância

16 Pico dela Mirandola, Oratio de hominis dignitate (Sobre a dignidade do


homem), citado por BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento. 7ª. Ed. SP : Hucitec, 2010, p. 319.

17 Na literatura brasileira, recordemos o pouco discutido Namoros com a


Medicina, de Mário de Andrade, especialmente a seção “A medicina dos excretos”
(pp.63-101). SP : Martins ; BH : Itatiaia, 1980. Mas essa tradição dos temas
escatológicos aparece também em Rubem Fonseca, mais recentemente com a
publicação de: Secreções, excreções e desatinos (2001).

18 “(...) o começo e o fim da vida são indissoluvelmente imbricados”. Id. Ibid.,


p.277.
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

relevante o fato do elemento subentendido e, em muitos casos, não-


dito.
A esse respeito, Valentin Volóchinov afirma o papel das
“avaliações subentendidas”, destacando o movimento da “escolha
da palavra” :
Na literatura, é especialmente importante o papel das avaliações
subentendidas. É possível dizer que uma obra poética é um condensador
poderoso das avaliações sociais não ditas: cada palavra está repleta delas.
Justamente essas avaliações sociais organizam a forma literária como sua
expressão imediata.19

Nesses fluxos, fluidos, na relação do alto e do baixo, Bakhtin nos


mostra como esses elementos corporais “falam”. Para o crítico
russo, essa “fala” tem a ver com uma escuta, iniciada, ou sempre
dirigida inicialmente, para o “auditório interior” de cada um20. O
que dirá do auditório exterior – feito de percalços, enganos,
algumas sombras, não-ditos e muitos subentendidos.
No caso particular, gostaria de me deter em algumas produções
artísticas brasileiras. Ocupa um lugar muito especial nessa relação
do dizer dois contos de João Guimarães Rosa: “A terceira margem
do rio” e “Meu tio o Iauaretê”, ambos de 1962 e uma novela de
Chico Buarque, Fazenda Modelo, lançada em 1974. Entre os dois
escritores, a composição de Caetano Veloso, “A terceira margem do
rio”21, de 1991, contida no disco: “Circuladô” .

19 VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia. SP : Editora


34, 2019, p.131.

20VOLÓCHINOV, Valentin. “A construção da enunciação” in A construção da


enunciação e outros ensaios. São Carlos & João Editores, 2013, p.159.

21 “Oco de pau que diz:/Eu sou madeira, beira/Boa, dá vau, tristriz/Risca


certeira/Meio a meio o rio ri/Silencioso sério/Nosso pai/não diz, diz:/Risca
terceira/Água da palavra/Água parada pura/Água da palavra/Água de rosa
dura/Proa da palavra/Duro silêncio, nosso pai/Margem da palavra/Entre as
escuras duas/Margens da palavra/Clareira, luz madura/Rosa da palavra/Puro
silêncio, nosso pai/Meio a meio o rio ri/Por entre as árvores da vida/O rio riu,

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A leitura de Bakhtin do passado de Rabelais em A cultura popular


traz essa força imensa de restituir a
na Idade Média e no Renascimento
figura da “ambivalência” para o debate do século XX e XXI e
reforçar que “o corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele
jamais está pronto nem acabado: está sempre em estado de
construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo”
(BAKHTIN, 2010, p.277). Sendo assim, Bakhtin nos presenteia,
antes mesmo dos pós-estruturalistas, com uma metáfora do
processo de leitura/construção ativa que surpreende pela
atualidade, a que Roland Barthes chamará de leitura/escritura22,
trazendo ao primeiro plano a figura do leitor como um co-autor da
produção artística.
Voltando a Bakhtin, e à seleção de textos da literatura brasileira,
podemos nos perguntar, então: qual o percurso da palavra? O que
esse exagero (espécie de “radiografia” do percurso em Bakhtin) nos
tem a dizer? Como se manifesta nas produções brasileiras?
A partir do conto “A terceira margem do rio”, poderia afirmar
que a imagem da ambiguidade bakhtiniana encontra no

ri/Por sob a risca da canoa/O rio viu, vi/O que niguém jamais olvida/Ouvi ouvi
ouvi/A voz das águas/Asa da palavra/Asa parada agora/Casa da palavra/Onde o
silêncio mora/Brasa da palavra/A hora clara, nosso pai/Hora da palavra/Quando
não se diz nada/Fora da palavra/Quando mais dentro aflora/Tora da palavra/Rio,
pau enorme, nosso pai/Asa da palavra/Asa parada agora/Casa da palavra/Onde o
silêncio mora/Brasa da palavra/A hora clara, nosso pai/Hora da palavra/Quando
não se diz nada/Fora da palavra/Quando mais dentro aflora/Tora da palavra/Rio,
pau enorme, nosso pai/Meio a meio o rio ri/Por entre as árvores da vida/O rio riu,
ri/Por sob a risca da canoa/O rio viu, vi/O que ninguém jamais olvida/Ouvi ouvi
ouvi/A voz das águas/Asa da palavra/Asa parada agora/Casa da palavra/Onde o
silêncio mora/Brasa da palavra/A hora clara, nosso pai/Hora da palavra/Quando
não se diz nada/Fora da palavra/Quando mais dentro aflora/Tora da palavra/Rio,
pau enorme, nosso pai”.

22 Roland Barthes desenvolve esse conceito em praticamente toda sua produção.


Mas relembremos a clássica noção de texto x obra, em “A morte do autor” e “Da
obra ao texto” in Rumor da Língua, SP : Brasiliense, 1988.

1681
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

movimento do corpo do pai (fruto de seu desejo, ainda que


inexplicável) a personificação desse percurso do desejo. Assim, o
pai inexplicavelmente decide viver no meio, na “terceira” margem,
esse lugar do entre, em que a hierarquia familiar é abalada
(recordemos que o filho decide ocupar o seu lugar, quando o
progenitor está velho. No entanto, desiste da empreitada ao receber
do pai uma resposta afirmativa). O pai é a representação potente
do silêncio das palavras: um pai que parece flutuar (sem amarras –
permanece ali – no silêncio profundo da aparente
incomunicabilidade). Já o filho tenta ocupar esse lugar (como diz
Bakhtin, o grotesco é portador igualmente de uma topografia).
Nesse tempo/espaço, a palavra parece congelar. O fato de o pai
nada dizer parece sugerir, mais que a desistência do desejo, o
desejo de silenciar. Como se a palavra permanecesse imobilizada
no corpo, qual a canoa.

Caetano Veloso “recria” o conto, tocando, já de início, nesse nada


dizer:
“Silencioso sério/Nosso pai não diz, diz:/Risca terceira/Água da
palavra/ Água parada pura/Água da palavra/Água de rosa
dura/Proa da palavra/Duro silêncio, nosso pai(...)”. A letra, prenhe
de figuras, encontra o “oco de pau”, o vazio , também existencial, do
pai; o vazio (silêncio) das palavras, como também, através das
sonoridades (assonâncias, aliterações e rimas), a sugestão da imagem
dessa espécie de “suspensão paterna”. O grotesco assume aqui a
fluidez da palavra, entrecortada pelos desenhos dos versos (a
disposição das palavras forma um rio... que flui... e que se repete...).
Em último caso, a repetição (diferida) viria com o filho ocupando esse
posto, inalterado e quase desassistido.

O drama de renegar a tradição (“paterna”, no caso do conto)


remete ao debate de outra tradição: No caso da novela Fazenda
Modelo, encontramos a alegoria em estado puro: através do gado,
somos convidados a olharmo-nos no espelho: o espelho da
“modernidade” do anos 70, que prometia o aumento dos lucros, a
excelência na produção, a instalação de uma ordem hierárquica

1682
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

decisiva para alcançar esses objetivos. Esse corpo metamorfoseado


em animal (boi) oscila entre o dizer e o silenciar, como forma de
resistência e, em alguns casos, como omissão e indignação. Aqui a
questão paterna está presente e constitui-se, de alguma forma,
como o cerne da questão. Juvenal, o bom empregado, exemplar,
cumpridor de todos os deveres, tenta fazer a iniciação ao jovem
Lubino, incentivando-o a entrar no mundo adulto, ou seja, de
reprodutor e trabalhador exemplar, lugar ocupado por Abá, o
grande touro reprodutor da Fazenda. Nesse movimento de
convencimento, Juvenal altera-se e temos aí o “raio-x” da palavra,
como em Bakhtin. Como dizer? Como iniciar o jovem touro a
querer “desejar” e “dizer”? Essa, sim, a grande iniciação: poder
dizer livremente, o que não é permitido (lembremos que o livro foi
escrito em pleno período da ditadura militar – estamos nos anos
70). Vejamos o trecho mais detidamente:

Daí Juvenal começou a dizer que invejava os touros. Invejava Abá


em particular, o campeão de todos os machos de todos os tempos das
fazendas. Lubino ouvia incrédulo, pois não era mesmo para crer a
maneira como Juvenal falava de Abá. Juvenal invejava Abá da boca
para fora. Lubino percebia que lá na garganta Juvenal tinha um nó
que odiava Abá, estrangularia Abá. O único rancor de Juvenal.
Porque passando a garganta, lá no meio do intestino grosso,
novamente Juvenal invejava Abá, admirava e lambia Abá. Mas isso
Juvenal não queria admitir. Nem iria vomitar ali para o menino ver.
Então ele confeccionava cada palavra cuidadosamente nos fundilhos.
Bombeava-a devagarinho pelos canais tortuosos. Na traquéia a
palavra ganhava aspereza, arredondando-se em seguida no céu da
boca. E acabava a viagem babada na ponta da língua, um catarro
agridoce. Uma palavra rasurada, interceptada, inconsistente de tão
baldeada. Foi assim que Juvenal articulou a palavra orgasmo. E falou
dos orgasmos de Abá, das delícias do orgasmo, o sublime do
orgasmo, o privilégio abençoado do orgasmo, dum jeito que Lubino

1683
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ficou olhando a cara dele, que era uma cara de boi que não tinha nada
a ver com o que estava falando.23

A passagem é muito interessante porque se assemelha à análise


bakhtiniana do alto e do baixo no corpo grotesco – envolvendo um
corpo interno/externo, criando outro novo. E, claro, há uma razão
para tudo isso: “O motivo dominante é a fecundidade, a força mais
poderosa e sólida” (BAKHTIN, 2010, p.272). Também no romance de
Chico Buarque, esse é o motivo mais poderoso e sólido:
transformar todo o “gado” em “corpos dóceis” (lembrando a
definição foucaultiana) a fim de que a reprodução (assistida, claro)
renda muitos lucros aos donos da Fazenda. Juvenal inveja Abá –
uma inveja (lá no meio do intestino), estrangulada por um “nó” na
garganta. A gradação “invejava, admirava, lambia” prepara o leitor
para o desfecho da descrição. Há um duplo movimento aqui: da
“boca para fora” até os “fundilhos”, onde ele tenta esconder esse
sentimento. No entanto, é ali nos fundilhos onde cada palavra
começa a ser confeccionada. Daí temos o retorno do movimento –
agora de baixo para cima: a palavra vai sendo bombeada por canais
tortuosos, chega à traqueia (ainda com aspereza) e arredonda-se no
“céu da boa” . Portanto, a ambiguidade da expressão leva o leitor
ao mais alto dos lugares, até chegar, babada, “na ponta da língua”.
Ou seja, o ato do pensamento transformado em palavra é aqui
comparado ao gesto de ruminação e “vômito”, transformando-se
em um “catarro agridoce”. O escritor brasileiro joga com as
palavras e expressões – a palavra que chega é “rasurada,
interceptada, inconsistente” – Juvenal pronuncia a palavra
interditada (pelo regime, pelo inconsciente, se assim se quiser)
“orgasmo”. Ainda nesse trecho, assistimos à elevação , ou como
um trocadilho, à “sublimação” do orgasmo, uma vez que Juvenal
repete : “E falou dos orgasmos de Abá, das delícias do orgasmo, o

23 BUARQUE, Chico. Fazenda Modelo – Novela pecuária. SP: Civilização


Brasileira, 1985, p. 98.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sublime do orgasmo, o privilégio abençoado do orgasmo”. E toda


a descrição seguinte, a partir desse “ato falho”, dirige-se à parte
meramente biológica, vindo, com ela, os pensamentos
condenatórios pelos prazeres do que foram uma vida livre, longe
da esterilização e manipulação dos corpos, bem como do desejo
desses corpos. Merece destaque ainda o fato de que Lubino
percebe a inconsistência entre a “cara de boi” e o que ele dizia,
portanto, a expressão, a palavra, não condizem com a posição
“mascarada” do capataz da fazenda, discussão que atravessa o
século XX, com a crise da representação. Essa também é a do corpo
grotesco do século XX e, ainda mais, a do XXI.

Esse grotesco encontra espaço na política de morte implantada na


Fazenda – afinal, haveria que alimentar o Matadouro (BUARQUE,
1985, p.93). Dessa forma, chegamos ao último exemplo de
fragmentação do corpo, do corpo da linguagem. Em “Meu tio o
Iauaretê”, encontramos um narrador assombrado com o mundo,
com o mundo-bicho/bicho-mundo, transfigurados nas palavras. O
experimentalismo de Guimarães Rosa encontra o universo do
interior profundo (as entranhas de um Brasil perdido, esquecido...).
A essa estranheza do narrador-personagem corresponde, em graus
cada vez mais fortes, a uma dicção que é entrecortada todo o tempo.
Mas especialmente porque busca “mimetizar” os sons da natureza,
daí as onomatopeias frequentes e eloquentes. Processo semelhante
ocorre com Fabiano, personagem de Vidas Secas, do Graciliano
Ramos. Mas aí já é outra história. Voltemos para o conto. Esse
narrador possui:

Dos Caraós, e já sem a mãe, passa a viver à beira das fazendas,


que se expandem, devorando o sertão. Tem fama de covarde,
por não querer ser assassino a soldo; e de preguiçoso, por
detestar o trabalho na lavoura e na pecuária, razão de ser da
expansão das grandes fazendas. O que sabe fazer é caçar onça,
o jaguar. Por isto, o fazendeiro para quem trabalha o enviou
para aquele fim-de-mundo, onde o viajante o encontra.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Desprezado, posto à margem da civilização que não o aceita,


rejeitado pelos posseiros e pelos bandidos foragidos que por ali
habitam, o caboclo busca reatar o laço perdido com o mundo
materno que algo de bom lhe dera: uma identidade, no traço
tupi.24

O narrador nesse conto de Guimarães parece gaguejar o tempo


todo. Faltam-lhe as palavras “exatas”, ao mesmo tempo que
assistimos a uma espécie de mimetização do rosnado da onça. Esse
balbucio, tão presente no debate contemporâneo, ganha corpo na
narrativa e já não temos para onde fugir: tudo é fala e silêncio;
balbucio e sugestões; sons e lapsos: “Acôo, acuação – com os
cachorros: ela então esbraveja, mopoama, mopoca, peteca, mata
cachorro de todo lado, eh, ela pode mexer de ca maneira. Ã-hã...
Esperando deitada, então, é o jeito mais perigoso: quer matar ou
morrer de todo...”25
O traço em comum dos três trabalhos mencionados revela
homens à margem, silenciamentos, falas entrecortadas, um mundo
que oscila entre o movimento (ambíguo) do alto e do baixo, no
grotesco de nossos dias – corpo fraturado pela linguagem, corpo-
linguagem. Ou, como conclui Bakhtin, uma “sensação viva que
cada ser humano tem, de fazer parte do povo imortal, criador da
história”26. História que é posta em xeque todos os dias, vivida,
contada e recontada como reinvenção de nós.

24 AGUIAR, Flávio Wolf. “UM POUCO ALÉM DO INFERNO -


CONTRIBUIÇÃO À ANALISE DE “MEU TIO, O IAUARETÊ”, DE
GUIMARÃES ROSA. Nonada: Letras em Revista, vol. 2, núm. 29, 2017, p4.
Laureate International Universities : Porto Alegre, Brasil.

25 ROSA, João Guimarães. “Meu tio o iauaretê”. In O conto brasileiro


contemporâneo. SP : Cultrix, 1977, p.31.

26 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento.


Op. Cit. p. 322.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

1687
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O Ministério da Educação na praça pública no Brasil


atual

Marina Célia Mendonça (UNESP)

A sociedade brasileira tem vivido uma polarização que se


manifesta em diferentes esferas de atividade, influenciada pela
esfera política. Em meio a discursos de afirmação de identidades e
de defesa de direitos, em apoio a grupos em vulnerabilidade social
(afrodescendentes, indígenas, mulheres, comunidade LGBTQIA+,
crianças e adolescentes, entre outros), a sociedade brasileira é
colocada, na contramão do discurso inclusivo e democrático, na
linha de fogo de discursos de ódio, fake news, negacionismo,
apologia das armas.
Esse cenário foi agravado pela pandemia da Covid 19, que
levou a humanidade a níveis extremos de insegurança sanitária e
crise econômica e política. O Brasil, nesse contexto, sob um governo
negacionista, tem experienciado uma guerra cotidiana em torno de
“tratamento precoce”, aquisição e política de distribuição/aplicação
de vacinas, isolamento social, uso de máscaras... Contra o discurso
do consenso científico, infla e explode no espaço público o discurso
antivacina, antimáscara, anti-isolamento social, caminhando
paralelamente a um discurso das “narrativas”, em que a verdade é
sempre relativa, espaço propício para a produção e propagação de
fake news. É assim que as ações do governo federal no Brasil e da
América Latina têm sido analisadas como parte de uma
“necropolítica” (GUDYNAS, 2021), tal como entendida por
Mbembe (2016). Junto a esse contexto ampliado pela pandemia da
Covid 19 e pelos mais de 580.000 mortos no Brasil, encontra-se, com
a mesma orientação autoritária, o discurso em prol do armamento
da população, o discurso intolerante, antiurnas eletrônicas, anti-
TSE, antijornalismo profissional, antidemocrático, golpista.
Podemos considerar que essa agonística é uma forma da
manifestação da guerra cultural no Brasil. Conforme Rocha (2021),

1688
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

a guerra cultural tem uma face própria por aqui, em que pesa a
influência das ideias de Olavo de Carvalho, a partir de 1990, sobre
uma juventude com afinidade aos pensamentos de direita e
extrema-direita que ganhou espaço de ativismo nas ruas e redes
sociais, especialmente a partir das Manifestações de Junho de 2013.
Assim, nesta última década, cresceu no Brasil um conjunto de
ideias que preza o revisionismo da memória da ditadura militar e
a narrativa conspiratória que tem como ameaça permanente o
oponente abstrato “comunismo”, em que os agentes inimigos são
estereotipadamente identificados como “esquerdistas”, “petistas”,
“petralhas”, “socialistas”, “vermelhos”. Enfim, àqueles que não
concordam com seus posicionamentos políticos e ideológicos resta
a “pecha” de “inimigos do povo”, bem ao modo populista, fascista
e autoritário de fazer política. Assim, podemos dizer que essa
guerra cultural tem as redes sociais como palco de lutas e de
construção e propagação de “narrativas” em torno desse inimigo a
se combater. A política ganha assim uma conformação específica e
carnavalesca nesse novo modo de habitar a “praça pública”.
Bakhtin (1997), colocando a obra de Dostoiévski no contexto
da cultura, trata do diálogo que o autor estabelece com a sátira
menipeia e com o carnaval, discutindo como, por um lado, esse
gênero literário ganha novos contornos na narrativa do autor e, por
outro, como esse conjunto de práticas “invade” a literatura e
assume o protagonismo na construção artística das personagens e
relações dialógicas presentes na obra. Entre os elementos que
Bakhtin aponta na carnavalização, em “Peculiaridades do gênero,
do enredo e da composição das obras de Dostoiévski”, destacamos
aqui aspectos que me parecem centrais para entender o discurso
político brasileiro contemporâneo:
1. “O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre
atores e espectadores. No carnaval, todos são participantes
ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se
contempla e [...] nem se representa o carnaval mas vive-se
nele”. (BAKHTIN, 1997, p. 122). Destaco aqui, da prática

1689
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

política do governo Bolsonaro, a forma de “publicizar” as


ações oficiais: nas redes sociais, em “suposto” diálogo aberto
com seus espectadores/eleitores; no “cercadinho do
Alvorada”, um local no Palácio da Alvorada onde o
presidente tira fotos e conversa com seus apoiadores; em live
semanal em que o presidente informalmente conversa com
seus seguidores e destaca ações e percalços do governo. Este
estilo de quem está “próximo do povo”, para além de um
populismo renovado, coloca a política em “praça pública”,
sem oficialismos, e supostamente inclui os espectadores no
diálogo familiar e franco, e na ação da governança.
2. “A excentricidade é uma categoria específica da cosmovisão
carnavalesca, organicamente relacionada com a categoria do
contato familiar; ela permite que se revelem e se expressem
[...] os aspectos ocultos da natureza humana”. (BAKHTIN,
1997, p. 123). Na “praça pública”, o governo Bolsonaro
enuncia o “indizível” na esfera política, em que o eu para o
outro ganha contornos, por um lado, de espontâneo, verdadeiro,
sincero e, por outro, para os que esperam do governo o
discurso “oficial”, não ético, racista, homofóbico, preconceituoso,
grosseiro. Assim, na “praça pública” da política brasileira, o
oficial vira a casaca e se transveste no tom de intolerância que
caracteriza o discurso fascista.
3. “O carnaval aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina
o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande
com o insignificante, o sábio com o tolo, etc.” (BAKHTIN,
1997, p. 123). As polêmicas travadas na “praça pública” da
política brasileira são inúmeras e, como vimos, têm relação
com a contexto da guerra cultural vivido pela sociedade.
Nesse aspecto, é preciso destacar que, ao invés de abrir para a
ambivalência e permitir que venham à tona as “vozes do
submundo” (como faz Dostoiévski), vozes dos vulneráveis
socialmente, esse movimento é autoritário e orientado para o
silenciamento do discurso oponente. (MENDONÇA, 2020).

1690
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

4. “[...] a quarta categoria carnavalesca: a profanação. Esta é


formada pelos sacrilégios carnavalescos [...], pelas indecências
carnavalescas [...] e pelas paródias carnavalescas dos textos
sagrados e sentenças bíblicas, etc.” (BAKHTIN, 1997, p. 123).
Essa categoria carnavalesca se associa às anteriores na
construção de um discurso “excêntrico”, “indizível”,
“moralmente inaceitável” por parte do discurso oficial, que já
não se porta e não soa como tal no diálogo da “praça
pública”.

Partirei dessas considerações de Bakhtin sobre a


carnavalização, bem como do estudo que o autor faz desse
processo na obra de Rabelais (BAKHTIN, 1987), para discutir
episódios do discurso do governo Bolsonaro, especificamente
discursos relacionados a ministros da educação desse governo.
Em setembro de 2020, foi lançada a Política Nacional de
Educação Especial (PNEE), na gestão do ministro Milton Ribeiro.
Houve numerosas críticas das comunidades acadêmica e docente
a essa política, sendo considerada um retrocesso em relação ao
processo de inclusão dos deficientes iniciado em 2008 com a
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva, proposta pelo governo petista. Vale destacar que a
PNEE e outras políticas educacionais produzidas pelo governo
Bolsonaro têm uma característica em comum: apresentam-se em
polêmica com modelos educacionais anteriores (que foram
relativamente estáveis na produção de práticas docentes por cerca
de quatro décadas no país), em caráter agonístico, incorporando o
tom da guerra cultural experienciada pelos brasileiros
(MENDONÇA, 2020).
Destaco aqui, para reflexão acerca do tom carnavalesco
presente nessa praça pública em que se dão essas polêmicas,
declaração do referido ministro em entrevista à TV Brasil em
09/08/2021, de que uma parte está disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=OigXZDk9zn4). O ministro,

1691
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

convidado a falar da PNEE e da polêmica que ela gerou no social,


taxa seu “inimigo” – aquele que propôs a política anterior – de
adepto do “inclusivismo” e com razões “ideológicas” (não seria
técnico, sendo esse caráter reservado a seu governo, que lidaria
com “evidências científicas”). Assim, descaracteriza a proposta
anterior, produzindo uma espécie de “destronamento” –
conforme Bakhtin (1997), atitude típica da carnavalização. Ao
mesmo tempo, realiza uma espécie de “profanação” ao dizer que
o deficiente “atrapalha” os colegas em sala de aula, isso
considerando que nas últimas décadas o processo de inclusão
construiu um consenso ético de que a inserção do deficiente no
espaço escolar seria positiva não somente para quem é incluído,
mas também para quem inclui e aprende com o outro, aprende
com as diferenças.

é a questão da criança com deficiência... que é ah uma das


questões que passa pelo nosso ministério... ela foi tratada... e eu
acho que também eh... por razões mais ideológicas do que
técnicas ela foi rejeitada por um grupo que... fez um pouco mais
de barulho e o assunto foi eh... levado ao STF... o assunto está lá
para análise porque se julgou que a nossa lei era uma lei
excludente... uma lei que não olhava com carinho para os
deficientes e suas famílias [...] Agora como fazer... eu acho que...
foi feito no passado... no passado primeiro não se falava em
atenção ao deficiente... simples assim.. “Eles fiquem aí e nós
vamos viver a nossa vida aqui”... aí depois esse foi um programa
que caiu para o outro extremo... o inclusivismo... que que é o
inclusivismo... a criança com deficiência ela era colocada dentro
de uma sala de alunos sem deficiência... ela não aprendia... ela
atrapalhava... entre aspas... essa palavra falo com muito
cuidado... ela atrapalhava o aprendizado dos outros porque a
professora... ela não tinha equipe... não tinha conhecimento para
poder dar a ela atenção especial...

Na praça pública em que o discurso do MEC se digladia


com seu outro, o carnaval se acentua na voz de um ministro

1692
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

anterior, que carrega o tom e chega à grosseria pouco esperada no


discurso oficial: Abraham Weintraub. Retomo aqui dois tweets em
que ele ataca, nas redes sociais, a memória de Paulo Freire, em
claro movimento de profanação e destronamento, com uso de
linguagem chula (“vampirão”/ “feio pra carai”). No primeiro tweet,
disponível em https://www.brasil247.com/brasil/legado-de-paulo-
freire-assombra-weintraub-que-faz-ataques-ao-educar-nas-redes-
vampirao, usa-se a imagem do educador, que é largamente
reconhecido por seu trabalho em educação no Brasil e no mundo,
associando-a um vampiro no processo do destronamento e
profanação: “Paulo Freire faz 99 anos. Não morreu! Vive nas
catacumbas das escolas se alimentando do futuro de nossas
crianças. É tão ruim que até os países comunistas pararam de
usar. Só no Brasil se usa e os resultados são mérévilhésis...
Parabéns VAMPIRÃO! Feio pra carai...” (a apresentação da foto
em preto e branco acentua a caráter vampiresco da imagem).
Já na segunda, disponível em
https://educacao.uol.com.br/noticias/2020/05/07/weintraub-
ameaca-tirar-mural-de-paulo-freire-do-mec-fracasso-da-
educacao.htm, o destronamento se apresenta no texto verbal
(literalmente, o ministro se pergunta sobre “retirar o mural de
Paulo Freire em frente ao MEC”, mural que representa o trono,
mérito e reconhecimento do educador no país) e também se realiza
pela associação do educador a um grupo que é desclassificado na
postagem (“Paulo Freire representa o fracasso da educação
esquerdista (FHC+PT)”). Por outro lado, o tweet insere, abaixo do
texto verbal, a imagem o imperador D. Pedro II acompanhada de
uma suposta fala desse sujeito: “Se não fosse imperador, desejaria
ser professor. Não conheço missão maior e mais nobre”. Assim, D.
Pedro II é apresentado como alternativa frente à explicitação da
expectativa/desejo “Um dia o Brasil terá outro patrono da
educação!”. A barba longa e branca da imagem do imperador
remete ao estereótipo de homem sábio e respeitável. Assim, as

1693
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

postagens aliam a linguagem verbal e visual na produção de


sentido nesse processo de destronamento.
Nos três exemplos de discurso carnavalizado, o discurso
oficial se apresenta com outra roupagem, expondo a excentricidade
do indizível, do rancor que não se consegue calar, do ódio ao
outro-comunista, outro-esquerdista. A guerra cultural parece ser o
motor que move esses discursos, em orientação ideológica
autoritária.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 2ª. Ed. Revista. Trad.


Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São
Paulo: Hucitec; Brasília:
Unb, 1987.
GUDYNAS, Eduardo. Necropolítica: a política da morte em tempos de
pandemia. Revista Ihu on-line. São Leopoldo (RS): Unisinos, 2021.
Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/608461-
necropolitica-a-politica-da-morte-em-tempos-de-pandemia-artigo-de-
eduardo-gudynas. Acesso em: 05 set. 2021.
LEGADO de Paulo Freire assombra Weintraub, que faz ataques ao
educador nas redes: "vampirão". Brasil 247, 19 set. 2020. Disponível em:
https://www.brasil247.com/brasil/legado-de-paulo-freire-assombra-
weintraub-que-faz-ataques-ao-educar-nas-redes-vampirao. Acesso em:
29 ago. 2021.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios. UFRJ, n. 32, 2016.
MENDONÇA, Marina Célia. Discursos sobre a literacia familiar em
contexto brasileiro: considerações sobre cronotopo e política
educacional. In: CRISTOVÃO, A., BUBNOVA, Tatiana; RICHARTZ,
Terezinha (Orgs.). Corpo, tempo e espaço. Franca, SP: Unifran, 2020.
MINISTRO da Educação diz que crianças com deficiências 'atrapalham'
o aprendizado dos demais. Poder360. 16 ago. 2021. Disponível em

1694
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

https://www.youtube.com/watch?v=OigXZDk9zn4. Acesso em: 29 ago.


2021
ROCHA, J. C. de C. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil
pós-político. Goiânia: Editora & Livraria Caminhos, 2021. 464p.
WEINTRAUB ameaça tirar mural de Paulo Freire do MEC: 'Fracasso da
educação'. Uol, 07 maio 2020. Disponível em:
https://educacao.uol.com.br/noticias/2020/05/07/weintraub-ameaca-tirar-
mural-de-paulo-freire-do-mec-fracasso-da-educacao.htm. Acesso em: 29
ago. 2021.

1695
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A obra Os invisíveis, de Tino Freitas e Odilon Morais:


elementos para pensar o grotesco dos nossos tempos

Lilane Maria de Moura Chagas27


Gabriéla dos Santos28

A peste que nos assola é, sobretudo, a do vírus do ódio e da indiferença


aos pobres. O flagelo que nos açoita é a morte como projeto político, o
caos e o obscurantismo visando restaurar um regime político de terror.
Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar
neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de
pestes e de guerras.
(A Peste, Albert Camus, 2019)

Para início de conversa


A epígrafe selecionada para iniciar nosso texto
expressa o sentimento do tempo pandêmico no contexto
histórico atual. Provoca-nos a olhar para as diversas esferas
sociais no movimento das singularidades, particularidades e
universalidades, e tentar compreender as contradições do real
nos dias de hoje. E entendê-lo é um desafio e, ao mesmo
tempo, uma tarefa histórica pensar coletivamente caminhos,
alternativas, explicações no tempo presente visando a
formação humana das novas gerações, nessa direção de
pensar objetivamente possibilidades de intervenção e
transformação consciente da realidade.

27 Profa. Dra. do Departamento de Metodologia de Ensino, da Universidade


Federal de Santa Catarina (MEN/CED/UFSC). Pesquisadora do Núcleo de Estudos
e Pesquisa em Alfabetização e Língua Portuguesa (Nepalp/UFSC), do Grupo de
Pesquisa em Literatura Infantil e Juvenil e práticas de mediação literária
(Literalise/UFSC) e do Grupo de Estudos e Pesquisas Infância, Literatura e
Educação (GEPILEd/UFSC). E-mail: lilanemoura@gmail.com
28 Estudante do Curso de Graduação em Pedagogia da Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC). E-mail: gabrieladossantos00@gmail.com

1696
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Considerando a difícil conjuntura do país,


caracterizada pela complexificação das relações sociais,
objetivada no aumento da exploração da força de trabalho,
dos níveis de violência, nas formas de intolerância e de
desumanização, no genocídio dos povos originários, no
racismo e xenofobia, acentuando a escravidão, na exploração
das mulheres, no aumento da miséria, fome, desemprego,
tornando uma grande parte da população mais pobre e
vulnerável, entre outras questões e temas urgentes, aceitamos
a provocação do VIII Círculo – Rodas de Conversas Bakhtinianas,
que nos convoca para o debate sobre “O grotesco dos nossos
tempos: vozes, ambiente e horizontes”, tema carregado de
múltiplos sentidos, significados e de variadas possibilidades
de reflexão.
Nesse sentido, este texto é desenvolvido com o intuito
de mobilizar, mediante a leitura da obra Os invisíveis29, de
Tino Freitas (2021), com ilustrações de Odilon Moraes30,
alguns elementos e compreensões da categoria do grotesco,
analisando o diálogo entre a linguagem verbal e não-verbal
no contexto da obra e fora dela, onde as representações das
relações sociais provocam reflexões ao leitor sobre a
complexidade da sociabilidade capitalista, as contradições
expressam-se no contexto de relações produtivas
desumanizadoras e individualistas. Assim, procuramos dar
visibilidade aos elementos que nos provocam a dizer sobre as
vozes silenciadas que expressam as desigualdades sociais, e

29 Parte deste texto constitui a pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)

em desenvolvimento intitulada Tino Freitas e os temas polêmicos na literatura infantil:


existem temas inadequados para tratar com as crianças? de Gabriéla dos Santos, sob a
orientação da Profa. Dra. Lilane Maria de Moura Chagas.
30 Livro ilustrado lançado em agosto de 2021 pela editora Companhia da Letrinhas,

uma parceria entre os autores Tino Freitas e Odilon Moraes.

1697
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sobre os tempos em que nos coloca distanciados uns dos


outros e nos possibilita também um olhar para a formação da
criança no seu contexto de infância.
Desse modo, a obra Os Invisíveis foi lida por nós com
um olhar de captura do movimento da vida cotidiana em seu
processo de heterogeneidade e universalidade, permitindo
acesso às reflexões para além das determinações da esfera da
vida em que se ressalta os conflitos e as contradições
subjacentes às questões degradantes, humilhantes e
destrutivas dos efeitos do capital. Ressaltamos que a
publicação do livro em 2021 ganha uma significativa e
especial atualidade e, na seção seguinte, objetivamos
apresentar alguns elementos, considerando tanto o texto
verbal como o texto visual31.
Salientamos que a obra apresenta uma narrativa
circular, retratando a infância e a fase adulta. Essa forma de
apresentação de texto e imagem permite que o ciclo se repita
diversas vezes, tantas vezes quanto os leitores desejarem
repetir a leitura. Este foi um grande ponto de ligação entre a
obra escolhida e o evento, uma narrativa circular que se
apresenta como uma voz ao VIII Círculo, nas rodas de conversas
bakhtinianas, permitindo a problematização das preocupações
sociais mais amplas.

Palavra e imagem: um grande encontro, outra dança

31O detalhamento do diálogo entre os textos verbal e visual e os paratextos da


obra estão na pesquisa em andamento já mencionada.

1698
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Para contextualizar a obra escolhida, começaremos


apresentando o autor Tino Freitas32, que é brasileiro, contador
de histórias, escritor, jornalista e mediador de leitura.
Atualmente, conta com 26 títulos publicados no Brasil 33,
sendo três deles traduzidos para outros idiomas. Uma das
principais características de suas obras são as críticas sociais,
presentes, muitas vezes, de forma discreta, já outras de forma
bem explícita, como é o caso do livro Os Invisíveis. Odilon
Moraes34, o ilustrador da obra, é arquiteto de formação. Além
de ilustrar livros de diversos escritores, também escreveu
alguns dos livros que ilustrou e ganhou também diversos
prêmios35.
Nessa nova versão36, palavra e imagem conversam no
movimento de outra coreografia, onde o texto dá espaço para
que as imagens também se comuniquem – e elas falam por si
só – trazendo diferentes interpretações, bailares em outro
ritmo no decorrer do experienciar da obra.
Nas redes sociais, encontra-se uma postagem no
Instagram que define poeticamente os traços do ilustrador

32 A biografia de Tino Freitas está disponível no site da editora Companhia das


Letras: http://old.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=11130. Acesso
em: 5 set. 2021.
33 Alguns de seus livros já receberam importantes prêmios nacionais, como o Selo

Altamente Recomendável para Crianças da Fundação Nacional do Livro Infantil


e Juvenil (FNLIJ) e o Prêmio Jabuti.
34 A biografia de Odilon Moraes disponível no site da editora Companhia das

Letras: https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00762.
Acesso em: 5 set. 2021.
35 Ganhou o prêmio Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, bem como o

Prêmio Jabuti.
36 Vale ressaltar que a obra Os Invisíveis teve uma edição anterior da Casa da

Palavra, com ilustrações de Renato Moriconi distintas da edição da Companhia


das Letrinhas com a ilustração de Odilon Moraes. As duas edições estão
analisadas na pesquisa em andamento já citada neste texto – rodapé 3.

1699
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

nessa edição: “[...] os traços de Odilon lembram rabiscos, uma


coreografia de linhas finas cheia de corpos sem rostos. E como
é difícil (e belo ao mesmo tempo) enxergar nessas páginas o
que muitas vezes é ignorado no nosso cotidiano”
(@letra_emendada, setembro, 2021)37. A coreografia do
traçado visual e escrito de Tino e Odilon, em Os invisíveis, dão
existência às vozes do grotesco bakhtiniano presente no Brasil
atual.
Nessa obra, é a criança que vê as situações de pobreza,
de desamparo social, da massa de trabalhadores na rua e no
movimento do trabalho. Vê as amarguras e dores da e na
realidade materializada nas situações fora da fronteira de sua
casa. O diálogo entre as narrativas visual e a escrita aponta
para uma história realista, em que todos os elementos e fatos
podem ser considerados verossímeis, sem prescindir de
elementos do sonho e da fantasia.
O livro nos convida a não somente olhar para os
diferentes tipos de invisibilidade social representados nos
que estão nas ruas, nas praças, mas também a perceber
invisibilidades singulares daqueles que, por muitas vezes,
fazem parte do entorno das nossas vidas (as crianças e os
idosos), revelando as singularidades e algumas características
da vida contemporânea da classe média em que a criança está
inserida. Na voz do narrador, destaca-se a situação em que o
menino em “silêncio” fala da falta de atenção dos pais que
estão ali na cena, envolvidos com seus aparelhos eletrônicos.
Diz o narrador: “Às vezes, ele tinha a impressão de que
também era invisível” (FREITAS, 2021).

Os Invisíveis. [Santa Cruz do Sul]. 04 de set.2021. Instagram: @letra_emendada.


37

Acesso: 06 de setembro de 2021.

1700
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

As narrativas visual e escrita apresentam o


protagonista na marcação de tempo das histórias tradicionais:
“Era uma vez um menino com um superpoder”. Ali, perpassa
uma narrativa de faz de conta, semelhante às histórias
contadas para as crianças ou quando elas estão na atividade
de brincadeira (faz de conta que eu era...pai, mãe...). Além
disso, lembra-nos a síntese poética que abre a canção João e
Maria, de Chico Buarque (“Agora eu era herói [...]”), em que
se pode ler fios de fantasia, brincadeira de criança, desejo de
ser herói. O “Era uma vez” é uma expressão em que o leitor
tem a possibilidade de parar o tempo: “[...] Um tempo que
não cabe na história temporal, datada cronologicamente,
como o do ontem ou do amanhã. No tempo e espaço
cotidianos eu fui, sou e serei [...]” (MACHADO, 2004, p. 22).
Em Os Invisíveis, o menino, na brincadeira “Agora eu
era herói”, apresenta-se com seu superpoder e com ele
consegue ver o que os seus familiares adultos, ao seu redor,
não veem. Conta o narrador: “Em sua família só ele via os
invisíveis” (FREITAS, 2021). A criança vê o que de fato não
está oculto na sociabilidade capitalista, nesse caso, o imenso
grupo de pessoas que se encontra numa situação
desfavorecida na sociedade: mendigos, vigilantes,
vendedores ambulantes, garis, pedintes, porteiros, dentre
outros. Nessa sociabilidade, as oportunidades não são as
mesmas para as classes sociais.
Bakhtin (2011, p. 47-48) aponta-nos que “[...] o corpo
não é algo que se baste a si mesmo, necessita do outro, do seu
reconhecimento e de sua atividade formadora”. Diante disso,
na obra Os Invisíveis, o autor e o ilustrador deixam clara a
ideia de que a existência humana só é dada por esse “Outro”.
Sendo assim, as invisibilidades retratadas na obra tratam

1701
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dessa negação da existência de muitos Outros, assim como


sobre a dor de alguém que tem sua visibilidade negada, sua
existência negada, pois há outros que não são capazes de
perceber para além de si mesmos.
Falando um pouco sobre a estética do livro, a forma
como as ilustrações foram feitas permitem que o próprio
leitor enxergue, ou não, quem são os invisíveis. Podemos
afirmar, parafraseando Bakhtin (2002), que houve uma
experiência de união transgressiva entre escritor e ilustrador.
O fato de serem ilustrações totalmente feitas com caneta BIC
de cor preta, em uma folha de fundo levemente amarelado,
traz à tona essa ideia de que, para enxergar os invisíveis, é
preciso perceber a existência deles na composição das
ilustrações e ver além delas. Se os invisíveis fossem retratados
com formas, desenhos, ou até outras cores, o leitor enxergaria
com os olhos dos autores e não o que cada um como leitor
pode conseguir realmente ver e interpretar sobre o conjunto
da obra. Desse modo, percebemos nessa obra a natureza
literária polissêmica, que instiga a interação produtiva entre
o leitor e a narrativa literária verbal e visual, constituindo-se
como um livro que não encerra a discussão da temática por
seu autor e ilustrador, mas que oferece um modo mais
abrangente de conceber e interpretar o mundo.
Na narrativa, o tempo passa... “E o menino envelheceu
esquecendo que um dia teve um superpoder” (FREITAS,
2021). O ser menino tornou-se essencialmente diferente.
Nessa perspectiva, questiona-se: Como poderíamos
recuperar a capacidade de ver os outros em um sistema cuja
organização de produzir e reproduzir a vida sob a égide do
capital tende a ocultar? Um sistema que acaba ocultando o
que ele próprio gera, já que a pobreza e a desigualdade são
inerentes ao seu processo de existir. A destruição do mais

1702
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

humano do ser humano é necessária nessa sociabilidade para


tornar a valorização do lucro em sua meta fundamental.
Os invisíveis existem! Estão presentes. São uma
realidade social. São sujeitos históricos, humanidade. Então,
como fazer para intervir e, se possível, transformar essa
situação que os autores (escritor e ilustrador) ressaltam de
forma tão bela e instigante?
O final do livro é uma proposta de leitura da obra em
aberto.

Considerações finais
[...] jamais alguém será livre enquanto houver flagelos.
(A Peste, Albert Camus, 2019)

Finalizamos com o recorte da epígrafe que abriu nosso


texto e, por meio dela, retratar o tempo grotesco dos nossos
dias, bem como pela obra Os Invisíveis. O intuito foi o de nos
unir à voz coletiva que vai em direção e em defesa de uma
formação humana que contraria a mera reprodução posta nos
liames da sociabilidade do capital.
O grotesco torna-se, para Bakhtin (2002), um ponto de
vista a partir do qual uma concepção diferente do humano
surge, um humanismo que não é mais ligado a uma crença no
indivíduo e sustentado pelo lucro da mercadoria.
O livro apresenta a função humanizadora da literatura
e apresenta a ambivalência da categoria do “grotesco” –
miséria social vista pela beleza da arte –, a qual é concebida
como a atividade humana que pode realizar o ato generoso
de criar para o outro o sentido de sua totalidade. A arte
precisa estar no movimento arte-vida-arte.

1703
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A narrativa visual e escrita da obra Os invisíveis nos


põe em diálogo com as vozes múltiplas dos (in)visíveis no
grotesco de nossos tempos e instiga o leitor de todas as idades
ao desafio de olhar a realidade objetiva e se colocar de
diferentes formas na luta pela superação da crise civilizatória.
Desse modo, visamos, por meio deste texto, pôr nossa palavra
a circular, nutrindo-nos da amorosidade de um coletivo que
visa construir “novos horizontes de futuros nos juntando ao
movimento, entre muitos outros movimentos, de resistência
e proposição de ações para um outro Brasil”.

Referências

BAKHTIN. M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6.ed. São


Paulo: Martins Fontes, 2011
BAKHTIN. M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Tradução de Yara F. Vieira. 5. ed. São
Paulo: HUCITEC. 2002.
CAMUS, A. A Peste. 25. ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.
FREITAS, T. Os invisíveis. Ilustrações de Odilon Moraes. São Paulo:
Companhia das Letrinhas. 2021.
MACHADO, R. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar
histórias. Ilustrações de Luiz Monforte. São Paulo: Difusão Cultural do
Livro, 2004.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Responsabilidade e moral no discurso da imprensa: o


caso da suástica marcada a canivete

Aline Saddi Chaves


Marcelo Eduardo da Silva

Apresento uma breve reflexão sobre o capítulo


desenvolvido na obra “Diálogos sobre discurso: arte(s), mídias e
práticas sociais”38, em co-autoria com Marcelo Eduardo da Silva,
intitulado “Polifonia e ponto de vista na notícia: uma abordagem
dialógica do discurso da imprensa” (SILVA & CHAVES, 2021).
O “grotesco dos nossos tempos”, em referência ao tema
desta Roda de Conversa Bakhtiniana, irrompe no âmbito de uma
série de notícias publicadas durante a campanha presidencial de
2018, tendo como objeto um fato que derivou para um
acontecimento discursivo: a agressão sofrida por uma jovem
durante uma manifestação em Porto Alegre. A vítima alegava
haver sofrido cortes na barriga, desferidos a canivete, que
adquiriram a forma da cruz gamada, símbolo do regime de Hitler.
A imagem é reproduzida a seguir:

38 A obra foi publicada em 2021 pela Pedro & João Editores, e organizada por Alan
Silus, Aline Saddi Chaves e Maria Leda Pinto. Trata-se de uma publicação
vinculada ao Núcleo de Estudos Bakhtinianos (NEBA/CNPq/UEMS).

1705
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 1 - Imagem publicada na imprensa mostrando as marcas na


barriga da jovem

Fonte: https://oglobo.globo.com/politica/jovem-que-disse-ter-sido-
marcada-com-suastica-vai-ser-indiciada-por-falsa-comunicacao-de-
crime-diz-delegado-1-23181117

Ocorre que, quinze dias após a denúncia da jovem junto à


delegacia de polícia, as investigações concluíram que os
ferimentos poderiam ter sido provocados ou consentidos pela
própria “vítima”. Diante da repercussão deste episódio nas
mídias, trabalhamos com a hipótese de sua associação à
conjuntura de polarização política e ideológica da época,
resultando em um clima de ódio que também chegou às páginas
dos jornais, materializado no símbolo histórico/signo ideológico
(VOLÓCHINOV, 2017) do nazismo.
Para descrever a metodologia empregada pelo discurso da
imprensa para construir o acontecimento, gerindo as vozes de
modo a criar um efeito de verdade, objetividade e imparcialidade,
em consonância com os valores constitutivos da deontologia
jornalística, reconstituímos a cronologia do acontecimento em
dois “momentos discursivos” (MOIRAND, 2004): (i) a denúncia

1706
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de agressão por parte da jovem; (ii) a apuração do fato após a


investigação policial, que concluiu, por meio de laudo técnico, a
falsidade da denúncia. O corpus é composto por quatro notícias
publicadas nas versões digitais dos jornais O Estado de S. Paulo e
El País, registrados a seguir:

Tabela 1 - Cronologia das publicações analisadas. Fonte: Silva & Chaves,


2021
Momento discursivo 1: denúncia de agressão a jovem marcada com símbolo
da suástica
Referências Data e Veículo Notícia
das hora da (Título e subtítulo)
notícias publicação
1 10/10/2018 O Polícia diz que jovem marcada com suástica
M1/OESP 22h03 Estado foi vítima de homofobia
de S. Vítima de 19 anos relata agressão feita por
Paulo três homens por usar uma bandeira do arco-
íris com os dizeres “Ele Não”
2 12/10/2018 El País Polícia investiga denúncia de agressão com
M1/EP 14h30 canivete a jovem com camisa “ele não”
Vítima, de 19 anos, também levava uma
bandeira LGBT na mochila e foi atacada por
três homens
Momento discursivo 2: conclusão de falsa comunicação de crime após laudo
técnico
3 24/10/2018 O Jovem marcada com suástica no RS será
M2/OESP 10h49 Estado indiciada por falsa comunicação de crime
de S. Para Polícia Civil, há indícios de autolesão ou
Paulo de que as marcas tenham sido feitas de forma
consentida
4 24/10/2018 El País Polícia indiciará jovem marcada com
M2/EP 17h13 suástica por suspeita de falso testemunho
Investigação diz que cortes são automutilação
ou foram provocados com consentimento da
vítima. Defesa insiste que houve ataque e diz
que laudo confirma que a jovem não reagiu à
agressão

1707
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Para analisar as notícias, mobilizamos as categorias de


dialogismo e polifonia, no quadro do pensamento e obra do Círculo
de Bakhtin (BAKHTIN, 2005; VOLÓCHINOV, 2017), além das
formas da heterogeneidade discursiva, propostas por Authier-
Revuz (1998) e, ainda, a teoria do ponto de vista, tal como
trabalhada por Rabatel (2016).

Do fato ao acontecimento: memória e dialogicidade

Como explica Moirand (2018), os acontecimentos


noticiados na imprensa podem ser institucionalizados (a Copa do
Mundo de futebol); inesperados (o 11 de Setembro); físicos
(pandemia); ou humanos e sociais (crise financeira). O episódio da
suástica nazista configurou-se, à primeira vista, como um fato
jornalístico típico de um fait divers, o que o relacionaria a um
episódio de violência, comumente retratado nas páginas dos
jornais, em seções dedicadas a assuntos de segurança, cidades,
entre outros. No entanto, nos jornais que publicaram as notícias
analisadas, o fato foi tratado como um assunto de política. No El
País, as notícias estavam localizadas na seção “Eleições Brasil 2018”;
n’O Estado de S. Paulo, na seção “Política”. Assim, no que se refere
à cena genérica (MAINGUENEAU, 2012) das notícias, é possível
detectar indícios de um ponto de vista (RABATEL, 2016).
Os indícios de ponto de vista também aparecem na
associação deste fato a outros episódios de violência no contexto
das eleições presidenciais de 2018, tal como anunciado na manchete
do El País (M1/EP), com nossos grifos: “O clima de ódio que tem
marcado o período eleitoral fez mais uma vítima, desta vez em
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, de acordo com informações da
polícia”. O enunciado em questão remete, pela estrutura de
hiperlink, a outra notícia, publicada no mesmo veículo, intitulada
“Morte, ameaças e intimidação: o discurso de Bolsonaro inflama
radicais” (EP, 10/10/2018).

1708
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em meio à confirmação da falsidade da denúncia,


estabelecida por laudo técnico da polícia, o jornal retoma, em
M2/EP, o tema dos episódios de agressão por motivações
políticas, recorrendo a duas fontes: o Open Knowledge Brasil e a
Agência Brasil. Esta modalização em discurso segundo estabelece
uma comparação em números dos casos de agressão no período,
de acordo com a posição ideológica dos agressores:

Muitos crimes e agressões com motivações políticas vêm sendo


denunciados desde o primeiro turno das eleições. Em 10 dias, pelo menos
duas pessoas foram assassinadas e outras 70 sofreram agressões por
conta de seus posicionamentos políticos, de acordo com levantamento do
Open Knowledge Brasil e da Agência Pública. Os dados mostram que em
seis dos casos as vítimas foram apoiadores de Bolsonaro; as demais foram
agredidas por pessoas favoráveis a ele. (EP, 24/10/2018, grifos do autor)

Essa família de acontecimentos inscreve, no fio do texto,


uma memória de curto prazo, relacionada aos episódios ocorridos
durante a campanha eleitoral de 2018, em termos como
“agressão”, “clima de ódio”, “morte”, “ameaça”, “medo”. A longo
prazo, o acontecimento estabelece uma memória interdiscursiva
que relaciona os dizeres à história. Nessa perspectiva, o símbolo
da suástica nazista, signo transfigurado na pele da jovem de Porto
Alegre e desencadeador da polêmica, constitui o lugar de
inscrição de uma memória histórica e discursiva. Histórica,
porque remete ao regime político chefiado por Adolf Hitler, que
dizimou milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Discursiva, porque esse acontecimento histórico continua a ecoar
seus sentidos, passados mais de oitenta anos do ocorrido. A
simples evocação do tema é suficiente para fazer despertar uma
série de designações: suástica remete a nazismo, Holocausto,
Shoá, judeus, Hitler, dentre várias outras unidades lexicais
portadoras de um sentido histórico.
A construção do ponto de vista enunciativo sobre o
acontecimento histórico do nazismo também é objeto de uma

1709
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

polifonia de vozes, a exemplo dos trechos destacados a seguir,


com nossos grifos:

[Enunciador]: Uma jovem de 19 anos diz ter sido atacada por três
homens e teve a barriga marcada com traços semelhantes aos de uma
suástica - símbolo do nazismo. (M1/OESP)
[Enunciador]: Os homens, então, agrediram-na com socos e um deles
usou um canivete para marcar a lateral de sua barriga com um símbolo
parecido a uma suástica. (M1/EP)
[Jornalista entrevistada]: “Ela foi agredida, humilhada no meio da rua
(...) Dois homens seguraram seus braços, enquanto o terceiro cravava
uma suástica na sua costela”, relatou a jornalista Ady Ferrer [...].
(M1/EP)
[Enunciador]: Jovem marcada com suástica no RS será indiciada por falsa
comunicação de crime. (M2/OESP)
[Delegado]: Responsável pelo caso, o delegado Paulo César Jardim,
considerado especialista em investigações de células neonazistas no
Rio Grande do Sul, disse não reconhecer uma suástica no ferimento no
corpo da vítima. “Eu não vi uma suástica. Ali, o que tem é um símbolo
antigo, milenar, budista, que foi historicamente corrompido”, disse.
(M1/OESP)
[Delegado]: Jardim não acredita que o crime tenha sido cometido por
indivíduos vinculados a grupos neonazistas, já que a suástica foi feita
ao contrário. (M1/EP)
[Laudo da Polícia]: O laudo técnico da Polícia Civil concluiu que “pode
se afirmar com convicção que as lesões produzidas na vítima não são
compatíveis com as que seriam esperadas, na hipótese de ter havido
efetiva resistência da parte dela à ação de um agente agressor”.
(M2/OESP)

Essa representação polêmica das vozes convocadas mostra


a que ponto a história é constitutiva dos sentidos. À exceção de
uma notícia (“símbolo do nazismo”, em M1/OESP), não há
menção nos textos ao acontecimento histórico do nazismo. Mas,
nas quatro notícias, persiste a imagem da suástica, caracterizada
pelo desenho de uma cruz gamada, símbolo histórico/signo
ideológico (VOLÓCHINOV, 2017) de uma página não esquecida
da História.

1710
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Considerações finais

Em nossa análise sobre o tratamento midiático conferido a


uma notícia envolta em um clima de ódio, no contexto político, e
do grotesco na representação de um tema/imagem que ainda
assombra a humanidade, tivemos como objetivo refletir sobre
responsabilidade e moral na linguagem jornalística, cientes das
contradições que permeiam esta prática profissional regulada por
normas técnicas e éticas, e ao mesmo tempo impedida de praticar a
virtude, nos dizeres de Bourdieu (1996).
Os desdobramentos imprevistos pelo episódio analisado,
no curto período de quinze dias – entre o anúncio da agressão e a
revelação de falsa comunicação de crime – também são um
indício de que a polifonia jornalística contribui para instalar a
“superdramatização” (CHARAUDEAU, 2010) dos acontecimentos
no espaço público.

Referências

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não coincidências


do dizer. Vários tradutores, revisão técnica de Eni Puccinelli Orlandi.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1998.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. de
Paulo Bezerra. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005 [1929].
BOURDIEU, Pierre. Journalisme et éthique. Actes du colloque fondateur
du centre de recherche de l’École Supérieure de Journalisme (Lille). Les
cahiers du journalisme, Juin 1996.
CHARAUDEAU, Patrick. Une éthique du discours médiatique est-elle
possible?. Communication [En ligne], Vol. 27/2 | 2010, mis en ligne le 14
août 2012. Disponível em:
<http://journals.openedition.org/communication/3066>. Acesso em: 20
ago. 2019.

1711
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. Tradução e


organização de textos de Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de Souza-e-
Silva. 2. ed. 1. reimp. São Paulo: Parábola, 2012.
MOIRAND, Sophie. Entre discours et mémoire: le dialogisme à l’épreuve
de la presse ordinaire. Tranel n. 44, «Interdiscours et intertextualité dans
les médias», Université de Neuchâtel (Suisse), 2006. p. 39-55.
MOIRAND, Sophie. A midiatização dos acontecimentos: uma análise do
discurso entre língua, memória e comunicação. In: NAVARRO, Pedro;
BARONAS, Roberto Leiser (Orgs.). Sujeito, texto e imagem em discurso.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2018.
PAVEAU, Marie-Anne. Linguagem e moral. Uma ética das virtudes
discursivas. Trad. Ivone Benedetti. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2015.
RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e
interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração teoria e
análise. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi, João
Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016.
SILVA, Marcelo Eduardo; CHAVES, Aline Saddi. “Polifonia e ponto de
vista na notícia: uma abordagem dialógica do discurso da imprensa”. In:
SILUS, A.; CHAVES, A. S.; PINTO, M. L. Diálogos sobre discurso: arte(s),
mídias e práticas sociais. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021, p. 125-
186.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo;
ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.

1712
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco e o elogio do riso: das mulheres

Roselete Fagundes de Aviz - NEPALP

Não esqueçamos de que a urina (como matéria fecal)


é a alegre matéria que rebaixa e alivia,
transforma o medo em riso.39

O convite é para uma conversa. Uma conversa em


fragmentos.40 Uma conversa sobre o conhecimento. Sobre as
diferentes formas de conhecimento. Uma conversa sobre o grotesco
em Bakhtin. O grotesco e o corpo. O grotesco e o riso. O grotesco e
o riso das mulheres. O grotesco e o riso na educação escolar. E como
poderemos aprender conversando? Conversar: da união de duas
raízes latinas: cum, que quer dizer com, e versare – “dar voltas com”
o outro. Nesse sentido, cada fragmento nos indicará uma cena. Nas
cenas escolhidas, estão mulheres que falam e escrevem. Mulheres e
suas artes, um diálogo entre o grotesco e o contemporâneo.
Estas mulheres que praticam a arte da voz e da palavra
enunciam o impacto de contextos fundamentalistas, especialmente
sobre meninas e mulheres, retratos de violência e opressões. Assim
como as situações no livro de Rabelais, as quais fazem alusões a
certos acontecimentos da vida política e da corte, as mulheres que
encenam neste texto riem, riem muito, fazem ou trazem
personagem que parodiam comportamentos religiosos-políticos
dos nossos tempos. Mas, de que riso o presente texto fala?

39 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rebelais. 4ª ed. São Paulo-Brasília: Hucitec, 1999, p.293.

40 No sentido de Roland Barthes, artista dos fragmentos: (...) implica um gozo


imediato: é um fantasma de discurso, uma abertura de desejo. BARTHES, Roland.
Fragmentos de um Discurso Amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.

1713
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

não é como aquele que se produz quando o pensamento sério descansa;


tampouco como o componente que se defende da seriedade do
pensamento; nem sequer como aquele que luta contra o pensamento
sério. O riso que me interessa aqui é aquele que é um componente
dialógico do pensamento sério. E um elemento essencial da
formação do pensamento sério. De um pensamento que,
simultaneamente, crê e não crê, que, ao mesmo tempo, se respeita e
zomba de si mesmo. De um pensamento tenso, aberto, dinâmico,
paradoxal, que não se fixa em nenhum conteúdo e que não pretende
nenhuma culminância. De um pensamento móvel, leve, que sabe
também que não deve se tomar, a si mesmo, demasiadamente a sério, sob
pena de se solidificar e se deter, por coincidir excessivamente consigo
mesmo. De um pensamento que sabe levar dignamente, no mais alto de
si, como uma coroa, um chapéu de guizos (LARROSA, 2003, p.170).

Bakhtin (1999) considera que a cultura do riso é a resposta à


cultura do medo. E, se pudermos pensar um pouquinho sobre os
espaços da educação escolar, perguntamos: por que não se ri?
Porque, assim como os fundamentalismos religiosos, a educação
escolar aposta no medo para poder dominar. Por essa razão, é
moralista e dogmática e, muitas vezes, a sala de aula se parece com
as igrejas (LARROSA, 2003), não suporta a cultura do riso por ser
ela criativa, barulhenta e subversiva, questões tão bem
problematizadas por Bakhtin ao afirmar que o riso demole o medo
e a piedade de um objeto, deixando o espaço livre para uma
investigação isenta (BAKHTIN, 1999).
Esse pode ser um dos propósitos de trazermos para este
texto o riso das mulheres. As mulheres escolhidas para esta
conversa riem para combater o medo do riso e da alegria.
Concatenam corpo e alegria. Não a alegria como um “jogo do
contente”, mas a alegria como em Paulo Freire e em bell hooks,
estritamente ligada à ação. A alegria como um ato político. Alegria
que nos afeta desde Spinoza. É essa a alegria que as mulheres
convidadas para a conversa com o grotesco em Bakhtin querem
encenar. Nestes tempos de regimes totalitários. Nestes tempos de
horror à alegria.

1714
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Fragmento 1- As concepções grotescas do corpo, a imagem da boca


de onde saem inúmeras diabruras nas artes do espetáculo. A
epígrafe da cena abaixo faz referência à boca que se abre e faz sair
dela interessantes personagens grotescos, em uma representação
artístico-teatral que passará aos olhos de um público. Cenas que,
aos modos de Rabelais, exageram nos detalhes, mostram uma
profusão de conteúdos bizarros de um contexto fundamentalista
específico, embora o cenário e a caracterização teatral sejam
apresentados com poucos recursos, à maneira da comédia standup.
Nessa perspectiva, a boca é que está em evidência ao se abrir em
torrentes de palavras que caracterizam, em seu aspecto grotesco e
cômico, cenas de uma religião fundamentalista. Ao transformar um
sofrimento em anedota, a artista que se apresentará na referida
cena mostra como o riso pode desempenhar um papel essencial
para descomprimir, despertar para as opressões e manter acesa a
esperança. A comediante Dawn Smith compõe a cena escolhida
para este fragmento.

Cena 1: Imagem grotesca do corpo: concepção grotesca e princípio


cômico: Dawn Smith41

Como outra fonte da concepção grotesca do corpo,


é preciso mencionar a cena
onde se representavam os mistérios
e, sobretudo, é claro, as diabruras.42

41 Dawn Smith foi criada na Califórnia e hoje trabalha com roteiros e comédia standup,
além de produzir a série de comédia "Paid For By". O trecho foi transcrito de uma
palestra em um evento TEDx, cujo título era: Why I Left an Evangelical Cult (Por que
deixei um culto evangélico), em 2018. Disponível em:
https://somosamadas.wordpress.com/type/video/.

42 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rebelais. 4ª ed. São Paulo-Brasília: Hucitec, 1999, p.305.

1715
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Clique:
https://www.ted.com/talks/dawn_smith_why_i_left_an_evangelical_cult?language=pt-br

Fragmento 2 - Em Rabelais, compreendemos que não se separa a


imagem grotesca do princípio cômico. Nesse sentido, podemos
perceber as imagens do corpo, da satisfação das necessidades
naturais e do caminho que elas apontam à liberdade. Elas
representam o grotesco, conforme a epígrafe escolhida para esta
conversa. Porém, mais do que isso, podem transformar o medo em
riso. Assim sendo, a escrita de Maya Angelou é a cena escolhida
para este fragmento.

Cena 2: Imagens do corpo grotesco: a transformação do medo em


riso: Maya Angelou
O corpo toma uma escala cósmica, enquanto o
cosmos
se corporifica. Os elementos cósmicos
se transformam em alegres elementos corporais

1716
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

do corpo crescente, procriador e vencedor.43

[...] Minha cabeça estava erguida e meus olhos estavam abertos, mas eu
não vi nada. Na metade do corredor, a igreja explodiu com: “Vocês
estavam lá quando crucificaram meu Senhor?”, e eu tropecei em um pé
esticado vindo do banco das crianças. Cambaleei e tentei dizer alguma
coisa, ou talvez gritar, mas um caqui verde, ou talvez tenha sido um
limão, que estava entre as pernas começou a se espremer. Eu senti o
azedo na língua e senti no fundo da boca. E antes de chegar à porta, o
ardor estava queimando pelas minhas pernas, até as minhas meias de
domingo. Tentei segurar tudo de volta para impedir que escorresse tão
rápido, mas quando cheguei à varanda da igreja, eu soube que teria que
parar de segurar. Senão acabaria subindo de volta para a minha cabeça,
e minha pobre cabeça explodiria como uma melancia largada no chão, e
todo o cérebro e cuspe e língua e olhos se espalhariam por todo o lado.
Assim, corri pelo pátio e soltei. Corri, mijando e chorando, não na direção
do banheiro nos fundos, mas para a nossa casa. Eu levaria uma surra por
isso, sem dúvida, e as crianças malvadas teriam uma coisa nova como
desculpa para pegar no meu pé. De toda forma, eu ri, em parte por causa
da doce libertação; ainda assim, a maior alegria veio não só de estar livre
da igreja boba, mas de saber que eu não morreria de cabeça
estourada.44

Fragmento 3 - A partir de Rabelais, podemos buscar o grotesco como


estratégia e prática literária para representar o grotesco dos nossos
tempos. E uma das estratégias para buscá-lo é a sátira. A partir desse
pensamento, podemos evocar imagens literárias. Imagens que satirizam
convenções morais impostas por sistemas de opressões, como os
religiosos. Nessa perspectiva, para representar o corpo grotesco,
buscamos na literatura cenas de fatos extraídos da Bíblia. Se os
fundamentalismos religiosos contemporâneos fazem interpretações restritas
de textos bíblicos, no sentido de oprimir mulheres, a literatura
contemporânea, como em Rabelais, mostra como fatos bíblicos podem

43 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rebelais. 4ª ed. São Paulo-Brasília: Hucitec, 1999, p. 297.

44 ANGELOU, Maya. Eu sei por que os pássaros cantam na gaiola. Bauru- SP:
Astral, 1997/2018, p.13 (grifos meus).

1717
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

funcionar como sátiras para pensar em comportamentos religiosos-


políticos na contemporaneidade. Nesse aspecto, Toni Morrison não
somente subverte os códigos do discurso dominante para mostrar
imagens que refletiam a realidade da vida das mulheres negras, como,
no exercício da linguagem que é a escrita de ficção, subverte os sentidos
dados pelo protestantismo a textos bíblicos, compondo outras narrativas,
como se pode ver em Amada, cujo título é tirado do próprio texto bíblico
que a autora utiliza como referência. Em Amada (1987/2011), primeiro
romance da autora que objetiva representar o passado da escravatura,
ela utiliza, de forma irônica, um fragmento bíblico do livro de Romanos
para construir sua metáfora, o qual vem apresentado na abertura da
obra: “Chamarei meu povo ao que não era meu povo; e amada à que não
era amada” (Romanos 9 : 25).45 No entanto, a escritora propõe um
sentido novo ao referido texto, compondo a narrativa com a figura de
mulheres que afrontam valores convencionais. Nessa ótica, é da escrita
de Amada, de Toni Morrison, a cena escolhida para este fragmento, no
qual percebemos como o texto religioso cristão por excelência pôde ser
transformado em objeto de riso e de escárnio satírico.

Cena 3: Imagem grotesca do corpo: o grotesco e a sátira como


estratégias e práticas literárias: Toni Morrison

O Primeiro livro é com efeito o mais cômico de todos.


Nos livros seguintes, esse tema se enfraquece
para ceder o primeiro plano ao tema histórico, social e político.
No entanto, a vitória sobre o temor cósmico e o escatologismo
permanece até o fim como um dos temas maiores.46

[...] Depois de se situar em uma imensa pedra chata, Baby Suggs baixava
a cabeça e rezava em silêncio. A congregação observava das árvores.
Sabiam que ela estava pronta quando baixava seu bastão. Então, ela
gritava: “Que venham as crianças!”, e elas corriam das árvores para Baby

45 Referente ao livro bíblico que contém as explicações do apóstolo Paulo sobre


quem poderia ser considerado povo de Deus.

46 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rebelais. 4ª ed. São Paulo-Brasília: Hucitec, 1999, p. 298.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Suggs. “Que suas mães escutem o seu riso”, ela dizia, e o bosque vibrava.
Os adultos olhavam e não podiam deixar de sorrir.
Então “Que venham os homens adultos”, ela gritava. Eles avançavam um
a um do meio das árvores ressonantes. “Que suas esposas e seus filhos
vejam vocês dançarem”, ela dizia a eles, e o chão tremia vivo debaixo de
seus pés. Por fim, ela chamava a si as mulheres. “Chorem”, dizia a elas.
“Pelos vivos e pelos mortos. Só chorem.” E, sem cobrir os olhos, as
mulheres se soltavam. Começava assim: crianças rindo, homens
dançando, mulheres chorando e depois se misturavam. As mulheres
paravam de chorar e dançavam, as mulheres riam, as crianças choravam
até, exaustas e acabadas, todos e cada um caírem na Clareira, molhados
e sem fôlego. No silêncio que se seguia Baby Suggs, sagrada, oferecia a
eles o seu grande imenso coração.
Não lhes dizia para limpar suas vidas ou ir e não pecar mais. Não lhes
dizia que eram abençoadas na terra, seus mansos herdeiros ou seus
puros à glória destinados.
Dizia-lhes que a única graça que podiam ter era a graça que conseguissem
imaginar. Que, se não vissem isso, não a teriam. [...] 47

(In)desfecho

Ao tomar como ponto de partida o riso contra o medo, no


sentido do significado da representação do carnaval em Bakhtin,
isto é, uma vitória simbólica sobre o medo, a piedade e a paranoia,
uma vez que alimentava o princípio da esperança, em uma época
que apresentava inclinação para o desespero apocalíptico
(BAKHTIN, 1999), queremos enfatizar o elogio do riso das
mulheres a partir do grotesco e do riso em suas artes. O fio que guia
o riso se dá pela busca do grotesco como estratégia e práticas da
voz e da palavra. Nestes tempos em que mulheres ainda são
aterrorizadas, a exemplo do Talibã e sua guerra contra as mulheres,
pensar sobre o grotesco dos nossos tempos, a partir dessa
problemática, é preciso.

47 MORRISON, Toni. Amada. São Paulo: Cia das Letras, 2011. p. 133-134 (grifos
meus)

1719
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O riso de mulheres, partindo das artes encenadas nesta


conversa consiste no exorcismo cômico do medo. De uma maneira
muito leve, elas querem dizer coisas muito sérias (Bakhtin lembra-
nos, quanto mais ria, mais profundo Rabelais ficava). Ao
construírem suas narrativas, essas artistas fizeram um trajeto de
significações que libertou de possíveis medos. Essas mulheres
artistas mostram que alguns contextos de fundamentalismos
religiosos são risíveis, principalmente nas estratégias que utilizam
para oprimir mulheres, mas, também, desvelam o horror das
opressões impostos por tais contextos. Quando tomamos
consciência de que, pela literatura, como elogio do riso podemos
enfrentar o medo, não nos sentimos mais sozinhas. Porém, também
somos conclamadas a estarmos em alerta constante,
principalmente com o triunfo da misoginia.
O convite, então, é para olharmos para bem perto a fim de
pensarmos nessa problemática. Margareth Atwood, em seu aclamado O
Conto da Aia (1985/2017), possível de ser lido como uma crítica a
qualquer religiosidade fundamentalista que oprima as mulheres, mostra
que fundamentalismos e política estão entrelaçados sempre. Atwood
demonstra esse aspecto quando, segundo Molly Hines (2008), “compõe
uma sátira profundamente crítica e direta aos grupos cristãos
fundamentalistas da Nova Direita dos anos 1980, que pediam o retorno
das mulheres ao lar como uma reação ao movimento feminista” (HINES,
2008, p. 02).
Atwood satiriza o fundamentalismo cristão nos Estados Unidos ao
desvelar a perversidade de um mundo que retém e abusa da legalidade,
por meio de crenças religiosas. Essa escritora, importante marco literário,
revelou o cristianismo fundamentalista com base no puritanismo e na
sua relação direta com a política, para pensar no ressurgimento dessa
relação na contemporaneidade.
Atwood evidenciou em seu romance como poderia funcionar
um sistema de opressão de mulheres baseado na Bíblia, ao mesmo
tempo em que restringia o acesso das mulheres à leitura do mesmo livro.
Nesse aspecto, Hines (1998) mostra como interpretações restritas de
textos fundamentais são um ponto de definição para os fundamentalismos
religiosos contemporâneos. Apesar das grandes diferenças entre vários
fundamentalismos, esses movimentos são basicamente políticos, que

1720
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

buscam, de várias maneiras, em circunstâncias amplamente diferentes,


atrelar os poderes modernos do Estado e da mídia ao serviço de seu
evangelho. Nele, certos textos são apresentados como a única forma
válida de religião, cultura étnica e verdade, e, ao afirmar sua versão da
verdade, sua interpretação dos “textos sagrados”, como única verdade,
os fundamentalistas limitam as escolhas das pessoas sob seu controle.
Por meio de uma seleção cuidadosa, os fundamentalistas usam “textos
sagrados” para oprimir mulheres, não somente dentro das instituições
religiosas, como também para formar leis e normas sociais.
Nesse sentido, estudiosos(as) e críticos(as) como Molly Hines
veem o romance O Conto da Aia de Margaret não apenas como uma
sátira de uma tendência social de sua época, mas como uma profecia
social, uma vez que a autora previu a ascensão contemporânea dos
fundamentalismos religiosos (HINES, 1998). Logo, é possível observar que,
de algum modo, as mulheres artistas convidadas para essa conversa, por
meio de suas produções, apontam pelo riso o absurdo da teleologia
patriarcal ocidental, que vê a biologia da mulher como destino. São
mulheres que mostram, em suas artes, como o racismo, o sexismo, a
hegemonia cultural do império do patriarcado são pontos fortes das
concepções as quais, sempre se apresentaram como opressoras de
mulheres, removendo suas vidas e memórias para espaços de
subordinação.
Sendo assim, Down Smith, Maya Angelou, Toni Morrison,
Margaret Atwood, dentre outras, são imprescindíveis quando são lidas
ao lado de histórias contemporâneas de opressão de mulheres em razão
de fundamentalismos religiosos. A partir dessa percepção, não podemos
esquecer do alerta que nos faz Margaret Atwood: “ao observar os sinais
de instabilidade social que levam aos fundamentalismos, as sociedades
devem evitar ativamente a opressão antes que ela comece” (HINES,
1998, p. 33). Assim sendo, autoras como as que dialogaram neste texto,
com suas artes, de algum modo, alertam as mulheres sobre não
cooperarem com organizações fundamentalistas, mas sim, rirem-se
delas, porque não há nada mais aterrorizante para os regimes totalitários
do que o riso e a alegria (de uma mulher).
Se, no princípio de nossa reflexão, dizíamos que nos espaços da
educação escolar se ri pouco ou não se ri, as vozes das mulheres que se
apresentaram nesta conversa convidam a considerar o papel da

1721
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

educação (literária e artística) na problemática dos fundamentalismos


religiosos, levando em conta o riso. A partir desse pensamento, obras de
humor, e especialmente as de humor fantástico, são recomendadas por
duas razões: a primeira, porque o senso de humor é uma grande cura
para o fanatismo (OZ; 2004, p.35). A segunda, porque são, por natureza,
opostas aos textos funcionais, com mensagem didática, elementar e
unívoca. Além de que, a educação literária celebra a alteridade. O
grotesco e o elogio do riso (das mulheres) apostam em uma educação
escolar pelo riso contra a educação pelo medo, porque o riso (das
mulheres) tem um poder dessacralizante. Faz-nos ver, como em
Rabelais, uma outra humanidade. E acreditar que aquilo de que
conseguimos rir pode ser destruído.

REFERÊNCIAS

ANGELOU, Maya. Eu sei por que o pássaro canta na gaiola. Tradução de Regiane
Winarski. Bauru, SP: Astral Cultural, 2018.
ATWOOD, Margaret Eleonor. O Conto da Aia. Tradução de Ana Deiró. Rio de
Janeiro: Rocco, 1985/2017.
BAKHTIN, Mikhail M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
Hucitec: Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso. Trad. Márcia Valéria
Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 19997.
HINES, Molly. Religious Fundamentalisms and the Systematic Oppression of
Women: Margaret Atwood´s “The Handmaid´s Tale”. Tennessee, USA: VDM -
Verlag Dr. Müller, 2008.
Hooks, bell. Ensinando a transgredir: a Educação como prática da liberdade. São
Paulo: Martins Fontes, 2013.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. 4ª ed.,
tradução de Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
MORRISON, Toni. Amada. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo Cia das
Letras, 2011.
OZ, Amós. Contra o Fanatismo. Tradução de Denise Cabral. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2004.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. 3. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010.

1722
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A potencialidade transgressora do verso Faz escuro mas eu canto


do poeta Thiago de Mello na 34ª Bienal de Arte de São Paulo

Rosangela Ferreira Borges

A 34ª Bienal de Arte Contemporânea de São Paulo com mais de 90


artistas de 39 países e 1100 obras expostas no Pavilhão de Ciccilo
Matarazzo, mais conhecido como Pavilhão da Bienal, no Parque do
Ibirapuera em São Paulo, aberta ao público de 4 de setembro a 5 de
dezembro de 2021, tem como título “Faz escuro mas eu canto”, um
dos últimos versos do poema “Madrugada camponesa”48, escrito
entre os anos de 1962 e 1963 pelo poeta amazonense Thiago de
Mello:

Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.

Não vale mais a canção


feita de medo e arremedo
para enganar solidão.
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre,
agora vale a alegria
que se constrói dia a dia
feita de canto e de pão.

Breve há de ser (sinto no ar)


tempo de trigo maduro.
Vai ser tempo de ceifar.
Já se levantam prodígios,
chuva azul no milharal,
estala em flor o feijão,
um leite novo minando
no meu longe seringal.

48O poema “Madrugada Camponesa” foi publicado mais tarde, em 1968, no livro
intitulado “Faz Escuro Mas Eu Canto”, de autoria de Thiago de Mello. Disponível
em: https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/de-thiago-de-mello-para-os-
comunistas-faz-escuro-mas-eu-canto/ . Acesso em: 07 set. 2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Já é quase tempo de amor.


Colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana,
minha alma no seu pendão.
Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto [grifo meu]
porque a manhã vai chegar.

Thiago de Mello, batizado Amadeu Thiago de Mello, nasceu em 30


de março de 1926 no município de Barreirinha, interior do Estado
do Amazonas. Nos anos de 1950 colaborou com veículos de
comunicação de oposição ao governo de Getúlio Vargas, passando
depois pela diplomacia do Itamarati na Bolívia e no Chile. Retorna
ao Brasil em 1965 e em 1968 é perseguido pelo regime militar e
parte novamente ao Chile - não mais pela diplomacia - e permanece
em exílio por 10 anos. Entre as suas principais obras constam: “A
Canção do Amor Armado” (1966), “Faz Escuro Mas Eu Canto”
(1968) e “Poesia Comprometida Com a Minha e a Tua Vida” (1975),
obra agraciada, no mesmo ano da publicação do livro, com o
Prêmio de Poesia da Associação Paulista de Críticos de Arte. Ainda
durante o regime militar, Thiago de Mello ficou conhecido
internacionalmente pelo seu engajamento na luta pelos Direitos
Humanos.49
O verso “Faz escuro mas eu canto”, que pelos idos de 1968
respondeu pela denominação do título do livro de poemas
publicado por Thiago de Mello - considerado pelo próprio poeta
como a sua obra mais querida -, depois em 1978 foi denominação
de show musical com a participação do poeta, e mais recentemente,
no ano de 2017 foi lema do 14º Congresso do PCdoB realizado em
Brasília, desta feita, o mesmo verso é escolhido como título pela
equipe curatorial, depois de tantos outros trazidos à baila durante

4934ª Bienal de Artes de São Paulo, 2021. Disponível em:


https://vidaecultura.manaus.am.gov.br/historia-page.php . Acesso em: 07 set.
2021.

1725
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o ano de 2020, para a mostra principal da 34ª Bienal de São Paulo


de 2021, como revela na carta “Um verso, muitos poemas” (2020),
de Paulo Miyada, curador-adjunto da 34ª Bienal, sobre uma
mensagem de e-mail recebida de Carla Zaccagnini, componente da
equipe curatorial da Exposição, que em texto de e-mail enviado à
equipe faz uma bela reflexão sobre o caminhar percorrido até chegar
a um título definitivo para a exposição de artes da Bienal de 2021:

Pensamos muitos nomes para essa Bienal, de eclipse a tocaia. Pensamos


chamá-la de a esfera do interesse, o todo mais amplo, concatenação sem
fim, só se aprende a nadar na água. Pensamos chamar essa Bienal de
Luzia, um nome de gente. O nome da gente mais antiga já encontrada na
América do Sul. Um nome póstumo, dado a seus ossos. Luzia viveu 24
anos, dizem, e descansou sob a terra onze mil. Seus ossos viram a luz em
1975 e arderam em chamas em 2018, no Museu Nacional. Luzia. O
passado interrompido, dito imperfeito, de um verbo que tanto significa
dar luz como brilhar por conta própria. Um nome de mulher. Um nome
de santa, da santa a quem atearam fogo e foi imune às chamas. O nome
da santa a quem arrancaram os olhos para que não visse mais a luz, nem
a luz de seu nome. Nasceram-lhe novos olhos e lhe dizem santa da visão.
Decidimos chamá-la Faz escuro mas eu canto, como o verso de Thiago de
Mello publicado em 1965 [...]. Porque no escuro também há cantos.
Porque as vozes que cantam se ouvem sem luz. Porque acreditamos na
importância do canto, nessa forma de dizer as coisas que cabe no verso,
no poder do refrão sobre a memória e do ritmo sobre o sangue, no
impulso de aplaudir em pé. Na força do coro. Faz escuro, então
cantemos.50

A escolha do título Faz escuro mas eu canto para mostra principal da


34ª Bienal não encerra as inúmeras possibilidades de reflexão
discursiva que uma exposição artística desta dimensão
proporciona. De maneira alguma! Mais do que um tema de uma
exposição, o enunciado poético Faz escuro mas eu canto carrega uma
potencialidade transgressiva de uma prática cultural constituída

5034ª Bienal de Artes de São Paulo, 2021. Disponível em:


http://34.bienal.org.br/post/7876 . Acesso em: 07 set. 2021.

1726
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

no poema “Madrugada camponesa”, de Thiago de Mello, e


atravessa dialogicamente uma memória de passado que fora
gestada em meados da década de 60 do século XX e aporta em 2021
para constituir uma memória de futuro através de expressões
artísticas constituídas em 1100 obras, por mais de 90 artistas na 34ª
Bienal de Arte Contemporânea de São Paulo.
Vislumbramos o enunciado poético Faz escuro mas eu canto como
um lugar que possibilita a indagação transgressora como um
caminho de ruptura estética atravessada de criatividade e de
invenções humanas hostil às concepções oficiais conservadoras,
impostas dogmaticamente pelo poder autoritário estabelecido.

Que reverberações esse enunciado poético pode ter neste país e além
dele, em um mundo fraturado? Em setembro, quando a mostra principal
da Bienal abrir, quão sombrio estará o horizonte? É impossível prever –
um dia desses, as cinzas da floresta em chamas deixaram escuro o céu da
tarde paulistana [...].51

Como no realismo grotesco apresentado na obra de Mikhail


Bakhtin (2008, p. 277) em que o corpo grotesco está sempre em
movimento, em construção, em criação, por isso nunca pronto e
nunca acabado, o enunciado poético Faz escuro mas eu canto
possibilita, quando colocado em 2021 como título da Bienal, num
movimento antropofágico, uma força que absorve o mundo e
também é absorvida por este mesmo mundo:

Por meio desse verso, reconhecemos a urgência dos problemas que desafiam a
vida no mundo atual, enquanto reivindicamos a necessidade da arte como um
campo de resistência, ruptura e transformação. Desde que encontramos esse
verso, o breu que nos cerca foi se adensando: dos incêndios na Amazônia que
escureceram o dia aos lutos e reclusões gerados pela pandemia, além das crises
políticas, sociais, ambientais e econômicas que estavam em curso e ora se
aprofundam. Ao longo desses meses de trabalho, rodeados por colapsos de toda
ordem, nos perguntamos uma e outra vez quais formas de arte e de presença no

5134ª Bienal de Artes de São Paulo, 2021. Disponível em:


http://34.bienal.org.br/post/7876 . Acesso em: 07 set. 2021.

1727
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

mundo são agora possíveis e necessárias. Em tempos escuros, quais são os cantos
que não podemos seguir sem ouvir, e sem cantar?52

O grotesco enquanto elemento construtivo de uma dimensão


topográfica que enuncia e anuncia para a comunidade o fim de um
ciclo monológico, alienante e o início de outro ciclo, dialógico,
democraticamente libertário: “Faz escuro mas eu canto/ porque a
manhã vai chegar”, nos ensina o Poeta!

Referências

BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto


de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1993.

BIENAL de Artes de São Paulo. Disponível em: http://34.bienal.org.br/post/7876.


Acesso em: 07 set. 2021.

PREFEITURA de Manaus. Disponível em


https://vidaecultura.manaus.am.gov.br/historia-page.php. Acesso em: 07 set.
2021.

RUFO, A. D. O Corpo e o Outro: Constituição da Alteridade em uma Perspectiva


Bakhtiniana de O Silmarillion de J. R. R. Tolkien em Cotejo com o Racismo. 2020.
174 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação em
Linguística, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2020.

VERMELHO. Disponível em: https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/de-


thiago-de-mello-para-os-comunistas-faz-escuro-mas-eu-canto/. Acesso em

5234ª Bienal de Artes de São Paulo, 2021. Disponível em:


http://34.bienal.org.br/post/7876 . Acesso em: 07 set. 2021.

1728
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO E A RESISTÊNCIA INDÍGENA

Laissa Karen Guimarães Moura

Imagem 1 – Cenas da resistência indígena no Brasil


Fonte: autoral

A colagem intitulada de “Cenas da resistência indígena no Brasil”


foi construída na tentativa de pontuar episódios da história
indígena.
A primeira imagem, no canto esquerdo acima, é uma tela pintada
à óleo por Oscar Pereira da Silva (1867-1939) na comemoração do
centenário da independência do Brasil, em 1922. A imagem retrata
uma visão romantizada da chegada de Pedro Álvares Cabral ao
Brasil. A obra foi realizada no início do século XX e revela o
pensamento que persistiu por séculos no imaginário brasileiro, de
que a invasão portuguesa foi uma colonização pacífica. Pode-se
encontrar na tela até certo heroísmo branco, ideia que, também, se
fez e faz presente no imaginário brasileiro.

1729
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A segunda imagem, acima à direita, e as imagem localizadas na


parte de baixo da colagem, as quais estão sobrepostas as demais,
são cenas da resistência indígena em diferentes momentos. A
resistência indígena existe porque cenas como a da notícia posta
sobre a colagem ainda – há séculos – compõem o cotidiano das
comunidades originárias.
A primeira imagem à direita registra os protestos contra o marco
temporal, em julho de 2021. A imagem abaixo sobreposta a demais,
é um recorte da fotografia tirada em Altamira (PA), em 1989, no
momento em que a indígena Tuíra Kayapó passa o facão no rosto
do então presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz. O evento
ocorreu durante o debate sobre a construção da usina de Belo
Monte. E à direta abaixo, a imagem remonta ao governo Temer,
momento no qual as questões de demarcação de terras indígenas
foram postas em xeque.
Com o início da invasão portuguesa nos territórios indígenas a
partir de 1500, gradativamente a cultura indígena foi sendo
violentamente apagada pela imposição de outras culturas e pela
violência do colonizador. Nesse sentido, foi-se construindo a
imagem desse outro que, logo nomeado de indígena, recebeu a
insígnia de selvagem e sem alma. Na visão do homem branco, a
vida e a resistência indígena são ataques ao desejo de conquistar e
se apropriar de terras a fim de explorá-la. Na perspectiva do
indígena, a terra é sua morada, os povos originários mantêm uma
relação simbiótica com tudo que existe ao seu redor. A imposição
da cultura, o genocídio indígena, a destruição das florestas
impactam sobre a existência dos povos originários.
A invasão europeia promoveu o genocídio indígena, a escravidão
e a imposição de outra cultura e outra crença. A questão fundiária
brasileira tem início nessa ocupação violenta das terras indígenas
que atravessa séculos e parece ainda não ter solução.
Passados mais de 500 anos desde a chegada dos portugueses em
terras brasileiras, a resistência indígena persiste diante de tantas
ameaças. De um lado, a luta pela sobrevivência e, de outro, a luta
pelo lucro. Empresas se interessam pelos territórios ocupados por

1730
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

comunidades originárias. Com o discurso de levar


desenvolvimento socioeconômico, as empresas que disputam o
território desconsideram as formas de vivência de quem reside
naqueles espaços por várias gerações.
A violência contra os povos originários não está se repetindo, é que,
na verdade, nunca cessou. Por diversas vezes, as imagens da
colagem são a materialização das formas de resistências diante do
discurso vendido e veiculado de que o indígena representa atraso
e selvageria. Existe uma dinâmica incessante entre reescrever sua
história resistindo a selvageria do homem branco. O grotesco
presente no signo da resistência indígena é prenhe da ambivalência
e de incompletude. A exacerbação da violência que tem seu foco na
negação dos direitos dos povos originários reconstituem a lógica
colonial refletida e refratada nos debates e nas políticas públicas
relacionadas aos povos indígenas.
Atualmente, o Marco Temporal é o dispositivo usado pelos
representantes do agronegócio para ameaçar os indígenas
brasileiros. É que o Marco desconsidera as terras indígenas que não
eram reconhecidas até a promulgação da Constituição Federal, em
1988, ou que puderam ocupar suas terras somente após essa data.
A discussão está para a votação no STF e decidirá o futuro dos
demais territórios indígenas. O conflito veio à tona após o governo
de Santa Catarina mover uma ação de reintegração de posse contra
o povo Xokleng.
De um lado, ruralistas com interesses nos territórios, do outro
indígenas que vivem na e da terra. Apesar das diversas ameaças
que parte dos povos indígenas enfrentam em 500 anos, bem como
as invasões, as imposições de regras e trabalhos, o genocídio, a
intervenção na natureza que afeta as etnias dos povos originários,
os povos indígenas seguem sendo resistência.
Atualmente, acampando em Brasília, a resistência indígena mostra-
se forte e unificada, um retrato grotesco de nossos tempos. O
grotesco que mata, que oprime, que rejeita, que ameaça, que

1731
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

reprime, invade, se infiltra e vende a ideia de que a resistência é


que é subversora da ordem.
Nesse sentido, cada imagem que compõe a colagem mostra
momentos da resistência indígena contra a violação dos seus
direitos. Cada imagem, também, evidencia episódios da luta e da
existência indígena marcadas pelas reivindicações do seu direito
ser e de viver como desejam. A luta indígena e sua resistência se
fazem presentes e necessárias ao passo que as violências se impõem
e avançam.
A resistência só existe porque a opressão, o silenciamento, a
agressão, a opressão e repressão existem e esses processos de
apagamento alheio são rebatidos e enfrentados com resistência! E,
enquanto os discursos e ações repressoras avançarem, a resistência
também estará inacabada, incompleta, resistindo e existindo.

Referências:

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto


de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília:
Editora da universidade de Brasília, 1993.
https://www.museudeimagens.com.br/india-tuira/ , acesso em: 01/09/2021
https://www.google.com/amp/s/sul21.com.br/noticias/geral/2021/08/marco-
temporal-indigenas-decidem-seguir-em-mobilizacao-em-brasilia-ate-quinta-
2/%3famp=1 , acesso em: 01/09/2021
http://nodeoito.com/povos-indigenas-massacre/ acesso em 01/09/2021
https://jornalistaslivres.org/resistencia-indigena-contra-os-novos-bandeirantes/
acesso em: 01/09/2021
https://www.google.com/amp/s/noticias.r7.com/brasil/entenda-o-que-e-marco-
temporal-que-sera-julgado-pelo-stf-25082021%3famp acesso em 02/09/2021
https://www.google.com/amp/s/g1.globo.com/google/amp/rr/roraima/noticia/20
21/05/11/video-mostra-momento-do-conflito-armado-na-terra-indigena-
yanomami-em-roraima.ghtml acesso em: 02/09/2021

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A Perversão do Grotesco e a Esperança

Ruy Braz

Maíra disse: “As crianças são como passarinhos: quando


começam a aparecer é porque as coisas estão melhorando.”
Esse enunciado se deu quando eu me assustei com um
menino que andava de bicicleta na rua.
Ele estava distraído, a rua onde pedalava não é
movimentada. Estava margeando a calçada, ia fazer a volta, mas,
ao direcionar a bicicleta, adentrou demais a rua de paralelepípedo,
sem me ver com antecedência indo a seu encontro. Assustou-se de
lá. Assustei-me de cá.
Eu ia ficar nervoso - sou assim, infelizmente,
vergonhosamente, no trânsito. Porém, ver o menino brincando na
rua em tempos de recolhimento me deu um ar de desanuvio. E,
quando ouvi a frase, sorri. E me emocionei.
Voltei pensando para casa. “E se for verdade? Será?
Tomara!”
Os últimos meses prepararam uma série de pequenos
golpes sobre minha cabeça. Quis acreditar na esperança. Quis
nutrir a esperança de que tudo irá melhorar, de que a infância
voltará a pulsar e pulular, voltará a movimentar o mundo,
renovando-o.
Não tenho certeza, concluí. Os indícios e as divulgações
científicas não apontam para isso. O histórico recente, também não.
Então, comecei a pensar em como a pressão governamental
- obviamente cumprindo a tarefa de viabilizar o Capitalismo vivo -
tem ditado os riscos que corro e faço correr em meu dia a dia.
Lembrei de Bakhtin e sua turma, lembrei da provocação do Rodas
deste ano, conversei com Vanessa - amiga e colega de pesquisa e de
trabalho - e entendi: o grotesco trocou de lugar.

1733
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O Grotesco invertido
No estudo sobre a obra de Rabelais (BAKHTIN, 2013; 2018),
Bakhtin apresenta a cultura popular como uma força de resistência
à cultura oficial e, consequentemente, ao poder instituído. Em sua
época, Rabelais deu visibilidade ao grotesco e ao burlesco como
imagens de sua obra literária justamente para ridicularizar o poder
instituído, como faziam os bufões e os bobos nas praças públicas e
nas cortes.
Assim, o grotesco era uma das armas de desmascaramento
ou de exteriorização do que a massa oprimida gostaria de
manifestar ou mesmo desfazer. O poder do grotesco, manifesto em
desregramento, surge como metáfora do poder instituído. As
formas e as ações que os personagens grotescos imprimem nos
enredos fictícios acabam, assim, por ridicularizar as ordens, os
desmandos e as peculiaridades que o poder instituído autoriza-se
a imprimir no mundo da vida.
O riso que surge do grotesco é, então, uma maneira de
humilhar os poderosos e corrigir (BERGSON, 1983), ao menos
externamente, as suas atitudes de indiferença, de exploração e até
de crueldade.
Entretanto, falando especificamente do Brasil, ainda que se
possam colher exemplos espalhados pelo mundo, o governo que
ora nos “governa” inverte a lógica tradicional desta exposição
grotesca. Nosso atual presidente da república associa a sua própria
figura a ações e imagens tão bizarras que transforma a si mesmo
em um ícone grotesco.
Quando os bufões e os bobos eram os únicos autorizados a
rirem - consequentemente tornando-as ridículas - das
extravagâncias dos poderosos, a seriedade era uma característica
associada ao poder (BAKHTIN, 2013). A austeridade e a
imponência eram componentes emblemáticos das figuras diretas e
das representações iconográficas dos homens que detinham poder.
Ao longo dos anos, após uma série de transformações
sociais, as figuras de poder no Ocidente foram tornando-se, na

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

maioria dos casos, menos sisudas e suntuosas. Nos governos


democráticos, a diminuição do afastamento entre o político que
concorre a um cargo eletivo e sua população votante é uma
tendência para ganhar votos.
Ao transformar a si mesmo em grotesco, nosso atual
presidente, até certo ponto, segue essa tendência, pois associa
manifestações de “simplicidade” de hábitos à sua proximidade
com o povo. Porém, ainda que este movimento seja em parte, por
assim dizer, espontâneo, pois pode expressar hábitos de vida que
de fato agradam o presidente, há fortes indícios que esta inversão
do ridículo seja planejada e intencionalmente reforçada. A
mudança da imagem do rídiculo, portanto, não é somente uma
inversão, mas uma perversão.

O Grotesco pervertido
A imagem cultivada por nosso atual presidente durante as
décadas de vida pública, e sobretudo a partir de sua candidatura à
presidência, é, na polissemia da palavra, forjada. Em um sentido,
essa imagem foi trabalhada - impressa e reimpressa, trocada de
lado, martelada - ao longo dos anos de acordo com os interesses
momentâneos e a partir das respostas da população às
manifestações em gestos e em palavras. Em outro sentido, essa
imagem pretende ser o que não é.
Como a maioria dos que concorrem a cargos públicos em
nosso país, o atual presidente finge interesse na vida da população,
interesse em melhorá-la. Para isso, forja uma aproximação com os
mais pobres e uma empatia com suas necessidades.
Neste caminho, porém, suas propostas de ações de
respostas contra as injustiças que pretensamente quer combater são
sempre violentas. A aniquilação do contraditório é o único caminho
que o atual presidente parece conhecer, o único que manifesta.
Nesta apologia à violência, ele anula o outro.
Sem perceber, o atual presidente entra em contradição em
seu discurso, pois anular o outro é necessariamente anular o

1735
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

semelhante, uma vez que em algum tempo, em algum espaço, em


alguma opinião, o semelhante sempre se torna o outro. Esta
apologia à aniquilação da alteridade, que por sinal é uma das
características dos movimentos fascistas, pretende homogeneizar a
expressividade humana.
Nesta tentativa de forjar uma imagem popular, o atual
presidente assume uma máscara disforme, tornando-se na
verdade, popularesco. Além disso, em muitos episódios, ele
assume estereótipos e discursos de preconceito como se estivesse
do lado daqueles que direta ou indiretamente oprime ou deixa
oprimir.
Aparecer com diferentes camisetas de clubes de futebol não
é valorizar os times. Convidar um ator cômico para emular a si
mesmo criticando jornalistas diante de uma plateia fanática não é
ser brincalhão. Colocar cocar na cabeça e “imitar” índio não é
defender o que a maioria deles quer. Comer sozinho, alimentos
baratos e despreocupadamente não é ser “do povo”. Todas essas
imagens, porém, e tantas outras, encontram-se no limiar do
ridículo. São imagens que, de tão grotescas ou burlescas, chegam a
dirimir o processo criativo da classe de roteiristas e atores de
comédia: não há graça quando a piada já está pronta, quando a
gague já aconteceu.
Esta retirada do objeto de trabalho do humorista é
exatamente a perversão do grotesco que o atual presidente
promove. Ao assumir a imagem popularesca, ele anula a
carnavalização que o grotesco faz brotar. Em outras palavras, ele
anula a anulação da assimetria e da hierarquia presentes na
sociedade que a carnavalização, o riso, o burlesco e o grotesco
causam.
Deixemos claro, porém, que ele não o faz por extinguir
definitivamente esta hierarquia, mas por camuflar-se
sorrateiramente entre os que odeia para manter-se em posição de
ataque, pronto para dar o bote, pronto para covardemente causar a
morte sem ser percebido - e esta metáfora, acaba por tornar-se
realidade diante do contexto pandêmico que vivemos. Tudo que

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

faz promove destruição e não criação, ignora as diferenças,


impossibilita o dialogar. Simular o outro não é considerá-lo digno.
E quem tem a real empatia possível não promove a animosidade.
O grotesco invertido do atual presidente é a perversão da
inversão social que a carnavalização promove.

O Esperançar
Andar de bicicleta, contudo, é um ato de amor. Brincar,
correr, pular, sorrir após ouvir atentamente uma história cômica,
tudo isso são atos de amor. E somente a contemplação do amor é
capaz de criar (BAKHTIN, 2010). É assim na agricultura, na
educação, na obra artística, etc.
Cuidar, igualmente, é um ato de amor. Na pandemia, então,
estar em isolamento social quando possível, manter
distanciamento, usar máscara e tomar todas as medidas higiênicas
cabíveis, tudo isso são atos de amor.
Quais são, entretanto, as intersecções desses dois exemplos?
Quando, no contexto pandêmico, o brincar e o cuidar podem ser
ambos, ao mesmo tempo, no mesmo lugar e com os mesmos
sujeitos envolvidos, atos de amor?
Talvez no limiar. É isso que quero crer. Quando o cuidar
está se tornando menos necessário e o brincar está podendo
acontecer, ambos coadunam.
Sim, sei que muitas vezes é difícil perceber o limiar,
sobretudo quando estamos nele. Mas há indícios.
Se ainda não é tempo de nos abraçarmos, talvez já saibamos
como proceder para nos vermos e conversarmos pessoalmente. Se
ainda não é tempo de “aglomerar”, talvez já saibamos onde
podemos nos encontrar com poucos riscos. Se ainda não é tempo
de brincarmos juntos, talvez já possamos sair de bicicleta em ruas
pouco movimentadas, empinar pipas, nadar em rios vazios,
caminhar em trilhas isoladas...
Sei que, neste contexto, há muito de vago e inseguro no que
acho e no que quero. E é importante ressaltar que sou também

1737
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cuidadoso: ainda pratico as medidas de prevenção contra a


pandemia. Mas o que quero dizer antes do fim é que sou
esperançoso (FREIRE, 1997). Não deixo de nos cuidar, de cuidar de
quem posso, de valorizar o cuidado, mas também não deixo de ter
vontade de tempos melhores, assim como não deixo de me
movimentar em direção a tempos melhores.
Saio de casa para trabalhar com Educação. Não poderia ser
diferente: em minhas ações, em minhas falas, em meus escritos,
tudo pulsa contra o estado atual das coisas. Mas creio: as crianças
são um indício. Elas indicam como nós, as pessoas adultas, as
recebemos no mundo. Ao mesmo tempo, indicam como o mundo
está. Elas agem responsivamente a como o mundo se expressa.
Como passarinhos que cantam ao nascer do dia, talvez as
crianças sejam um indício do movimento no mundo.
Talvez, logo a pandemia se disperse - apesar da
necropolítica que vivemos - porque a vida em movimento renova.
Ou talvez porque, dizendo diferente, na corrente infinita dos
enunciados, palavras e contrapalavras sempre se alternam no
diálogo perpétuo que é a vida humana.
Talvez, então, em breve, não precisemos dizer, pois não será
mais necessário:
FORA, BOLSONARO!

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec Editora, 2013.
______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João
Editores, 2010.
______. Teoria do Romance II: as formas do tempo e do cronotopo. São Paulo:
Editora 34, 2018.
BERGSON, H. O Riso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do
Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O GROTESCO NA VOZ DE UMA CRIANÇA SURDA, “SEM


LÍNGUA”!

Ednalva Gutierrez Rodrigues


Universidade Federal do Espírito Santo- Vitória/ES
nalvaguti@hotmail.com
Ericler Oliveira Gutierrez Ouedraogo
Universidade Federal do Espírito Santo- Vitória/ES
kekagutierrez@hotmail.com

A discussão da educação de surdos, historicamente, se


concentrou em pressupostos biologizantes, focados no corpo,
considerado deficiente ou anormal. Nesse período, denominado
oralista, as práticas pedagógicas se concentravam no ensino da fala
oral e da leitura labial, em direção à aprendizagem da língua
majoritária oral. De acordo com Lacerda (1998), nesse período, a
maioria dos surdos tinha parcos domínios da leitura e da escrita,
em língua portuguesa. No âmbito das políticas públicas, um
importante avanço foi a promulgação da Lei nº 10.436/2002 que
garante ao surdo o direito legítimo ao uso e difusão da língua de
sinais em todos os espaços. Nesse cenário, surge a proposta do
bilinguismo que considera o direito da criança surda de se
apropriar da língua de sinais como língua constitutiva da
subjetividade, desde a mais tenra idade e a aprendizagem da língua
portuguesa, na modalidade escrita, configurando a necessidade de
o estudante surdo estar imerso no uso dessas duas línguas em todo
o processo educacional.
A pesquisa, intitulada Material bilíngue na alfabetização de
crianças surdas, se insere nesse contexto. Iniciada em 2015, no
âmbito do Grupo de Pesquisa em Alfabetização e Educação de
Surdos (Gpaes), teve como escopo investigar a escolarização das

1739
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

crianças surdas capixabas em uma perspectiva enunciativo-


discursiva. Por meio da realização de atividades discursivas,
apresentaremos nossas reflexões a respeito da participação de
quatro crianças surdas, da professora bilíngue e do professor surdo
nessas atividades, a partir da concepção histórico-cultural e da
concepção bakhtiniana de linguagem, privilegiando a produção
textual como uma das dimensões essenciais no processo de
alfabetização, como prática cultural. Destacamos, também, a
importância da língua de sinais como mediadora de todo o
processo, sem desconsiderar as línguas que cercam criança surda.

1. ALFABETIZAÇÃO COMO OPÇÃO POLÍTICA53

Rodrigues (2009), ao investigar como as crianças surdas se


apropriavam da língua portuguesa escrita, confirmou que a grande
maioria de propostas metodológicas e materiais utilizados na
alfabetização de crianças surdas ainda estavam fortemente
influenciadas por métodos em que o foco era no ensino das
unidades menores da língua, ou seja, no ensino de palavras e letras.
A autora, ao propor atividades em que as crianças surdas eram
convidadas a se relacionar com a linguagem escrita, por meio de
textos, observou que, mesmo sem fazer a relação entre sons e letras,
elas elegeram outras rotas priorizando a memória e a produção de
sentido, sempre com a mediação qualificada em língua de sinais,
confirmando que esse processo não se resume à aprendizagem do
sistema linguístico, mas se apresenta “[...] como uma prática social
e cultural em que se desenvolvem a formação da consciência crítica,
as capacidades de produção de textos orais e escritos, de leitura
[...]” (GONTIJO, 2008, p. 198). Nesse cenário, estamos assumindo
as possibilidades enunciativo-discursivas da criança surda, em
língua de sinais.

53 Em Freire, (2008, p. 34) a politicidade na alfabetização não está ligada à filiação


político partidária, mas tem a ver “[...] com concepções, maneiras de ler o mundo,
anseios, utopias”.

1740
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A maioria das crianças surdas que chega à escola são filhas


de pais ouvintes que não conhecem a língua de sinais utilizada pela
comunidade surda brasileira. Nesse contexto, a família organiza
um ambiente linguístico possível, onde sinais são criados para
significar o mundo que os cerca, até que a língua de sinas padrão
comece a penetrar em suas vidas e modificar essa realidade. Esses
sinais, considerados por muitos como marginais, são potentes para
significar o entorno dessa criança surda, inserindo-a em um mundo
cultural significativo, contribuindo para a constituição de sua
subjetividade. Bakhtin (1992) afirma que o discurso acontece entre
sujeitos organizados socialmente.
A grande questão que se impõe é considerar toda e qualquer
manifestação dessas crianças como espaços de dizer o que se quer
dizer a alguém, refletindo e refratando suas realidades vivenciadas
nos encontros cotidianos com a família, vizinhos, igreja, enfim,
lugares de encontro onde esses gestos que, aparentemente, nada
significam para falantes de uma língua padrão são signos
linguísticos constituídos entre a criança surda e seus familiares,
independentemente de sua materialidade ou, como diz Bakhtin
(1992, p. 21) da sua “[...] encarnação material, seja como som, como
massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra
coisa qualquer”. São considerados como um fenômeno social e
ideológico, já que possuem significado naquele pequeno espaço de
circulação. Ao sair do núcleo familiar essa criança terá
oportunidade de ampliar a sua experiência linguística, em direção
à língua usada pela comunidade surda.
Ora, num projeto que concebe a alfabetização como uma
prática cultural que promove a emancipação dos sujeitos, valorizar
todas as línguas que circulam na escola e fora dela, significa
valorizar as experiências coletivas de todos os grupos sociais. São
essas histórias, “[...] verdades ou mentiras, coisas boas ou más,
importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc.”
(BAKHTIN, 1999, p. 95) manifestadas pelas crianças surdas,
independentemente do seu domínio da língua padrão, a princípio

1741
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

como enunciações tímidas e consideradas imperfeitas, que criarão


as condições linguísticas em direção ao aprendizado da língua
padrão e a uma inserção cada vez mais potente na cultura e na
apropriação de novas formas de viver e se posicionar.
Gontijo (2008, p. 7), baseada nos pressupostos bakhtinianos
da linguagem, nos afirma que a alfabetização é “[…] o processo de
inserção no mundo da linguagem escrita”. A autora amplia o
conceito de alfabetização ao defender que, o mundo da linguagem
escrita não está restrito ao ensino e aprendizagem do código da
língua, mas implica, fundamentalmente, em reconhecer no
estudante, um sujeito que participa do mundo com suas palavras e
opiniões; que lê e escreve a partir da sua realidade; que se posiciona
e resiste ao monologismo; que conta e reconta as próprias
histórias/textos, objeto da necessária análise linguística, mas,
também da necessária reflexão social.
Numa perspectiva bilíngue, essas reflexões ganham força, na
medida em que a alfabetização da criança surda pressupõe, não
apenas o reconhecimento que ela produz textos em (língua de)
sinais, mas que será a partir dessa produção que o ensino do
português como segunda língua e de outros conhecimentos, será
possível.
Para ampliar essa discussão, apresentamos um estudo de
caso em uma escola referência em educação bilíngue da Secretaria
Municipal de Educação de Vitória, ES, com a participação da
professora bilíngue, do professor surdo e de quatro crianças
surdas54: dois meninos, Marcos e Paulo e duas meninas, Debora e
Ester. Das quatro crianças, Marcos era o único filho de pais surdos.
Paulo, Débora e Ester, filhos de pais ouvintes, estavam se
apropriando da língua de sinais padrão, na escola. As quatro
crianças cursavam as séries iniciais do Ensino fundamental. Foi
realizada uma sequência de atividades em três dias consecutivos

54 Os alunos são representados com nomes fictícios.

1742
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que teve como objetivo geral criar um ambiente discursivo, onde as


crianças pudessem, a partir de suas experiências, dialogar sobre o
tema Sistema solar.

2. DISCUSSÃO

De acordo com Quadros (2006), cerca de 95% das crianças


surdas nascem em famílias de pessoas ouvintes. De modo geral,
elas aprendem a língua de sinais tardiamente, quando chegam nas
escolas. Das quatro crianças que participaram da pesquisa, três
eram filhas de pais ouvintes e estavam aprendendo a libras,
principalmente com o professor surdo. Nos primeiros contatos que
fizemos, ficou evidente a desconfiança da produção linguística
daquelas crianças por não falarem a língua de sinais que circula
entre os surdos adultos, considerada padrão. Em uma avaliação
mais pessimista, das três crianças, Paulo era considerado “sem
língua”. Como ouvir a voz de uma criança surda, considerada sem
língua? Voltaremos a esse assunto.
A roda de conversa com o tema Dia e noite, nos traz alguns
elementos sobre a discursividade de Paulo e Marcos (Figura 1).

Figura 1: Power point com o tema Dia e noite

Fonte: elaboração da autora

A partir da figura1, as crianças conversaram sobre o sistema


solar, relatando experiências e demonstrando o que já sabiam sobre
o tema. A fluência linguística de Marcos, filho de pais surdos, é
evidente. Ele domina o discurso, a tal ponto, que a participação das
outras crianças na roda de conversa, precisou ser mediada em todo

1743
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

o tempo. Ora, se a língua se manifesta entre sujeitos que a


dominam, aprendida em um ambiente linguístico,
preferencialmente com seus pais, não deve causar surpresa que
uma criança surda, filha de pais surdos, que aprendeu a língua de
sinais como primeira língua, domine formas elaboradas de
expressar suas vontades e opiniões. Isso, porém, não pode
comprometer a participação ativa das outras crianças, que ainda
estão se apropriando da língua de sinais, sob pena de que sejam
destituídas da sua condição de sujeitos falantes.
Paulo havia participado da conversa, só com olhares
esporádicos. Distraía-se brincando com as mãos. Quando inicio
uma conversa com ele, a resposta vem em forma de alguns sinais,
já aprendidos e alguns gestos. Há uma reação de risos entre as
outras crianças, numa evidência clara de que Paulo era visto com
poucas ou nenhuma possibilidade enunciativa. De fato, visto
dentro de um sistema fechado de normas linguísticas, os sinais
estavam errados, mas não era essa a nossa perspectiva. A aposta
em um material visual e na criação de um espaço discursivo, em
que ele pudesse se enunciar por meio de gestos e alguns sinais foi
fundamental para revelar que ele também poderia falar. A
concepção a respeito de Paulo era de negação: a criança surda, filha
de pais ouvintes que não sabe Libras, a língua oficial, logo, não tem
língua.
Bakhtin (2010), para compreender toda a riqueza popular e o
papel do riso da Idade Média e do Renascimento, vale-se dos
elementos usados por Rabelais, como as festas e os ritos populares,
com todas as suas manifestações culturais constituídas na própria
cultura medieval e ressalta o aspecto não formal do carnaval,
caracterizado pela manifestação do grotesco e do riso popular
como possibilidades de enxergar com um novo olhar aspectos
relevantes da vida cotidiana. O riso, em oposição ao sério, à religião
oficial, se tornava uma importante forma de expressar concepções
de mundo e posições. Em oposição ao mundo oficial, havia o
grotesco.

1744
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Na escola, em oposição à lógica de uma única língua de


sinais, oficial, havia Paulo, uma criança que responde ao ser
provocada e que mobiliza todos os recursos linguísticos e
extralinguísticos, à sua disposição, para produzir sentido. Essa é a
língua de sinais da criança surda, filha de pais ouvintes. E será
assim, até que seja oferecido a ela um ambiente linguístico em que
os sinais caseiros darão lugar aos sinais formais. Desmistificar a
concepção da criança surda, sem língua e reconhecer a legitimidade
dessa criança, filha de pais ouvintes como sujeitos enunciativos,
falantes de uma língua que provoca réplicas de quem a
compreende, mesmo que seja com um número reduzido de
pessoas, como, por exemplo, a família, é urgente, pois
independentemente do estágio em que estejam em relação à
apropriação da língua de sinais, precisam ter garantido o direito às
trocas dialógicas, em língua (s) de sinais.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia de


linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São
Paulo: Hucitec, 1992.
______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.
GERALDI, João. Wanderley. A aula como acontecimento. São
Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. A escrita infantil. São Paulo:
Cortez, 2008.
QUADROS, R. M.; SCHMIEDT, M. L. P. Ideias para ensinar
português para alunos surdos. Brasília: MEC/SEESP, 2006.
RODRIGUES, Ednalva Gutierrez. A apropriação da linguagem
escrita pelas crianças surdas. 2009. 127 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009.

1745
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

1746
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Representação grotesca em:


os sentidos atribuídos ao objeto livro

Andreia dos Santos Oliveira55


Eixo temático: O grotesco de nossos tempos: vozes, ambientes e
horizontes

Em uma pesquisa de doutorado que objetivou compreender o que


revelam as vozes de crianças sobre suas vivências literárias e o
papel do Outro na contribuição para a sua formação como leitores
literários, quer seja em ambientes escolares quer seja fora deles,
realizada em 2019 com seis crianças do quinto ano de uma escola
pública de Porto Velho, Rondônia, cuja construção dos dados
ocorreu por meio do diálogo formativo, solicitei em determinada
ocasião que as crianças representassem o valor axiológico que os
livros tinham em suas vidas. A produção do enunciado não verbal
deveria surgir do seguinte enunciado verbal: Para mim um livro é ...
Todas as seis crianças atenderam ao solicitado e dos seis desenhos,
um se destacou por se diferenciar totalmente dos demais: o
enunciado produzido por Nikolai. Cinco crianças desenharam
imagens representativas de livros já lidos com os enunciados
verbais: Para mim um livro é aventura, mágia, suspense, viagem, todos
esses discursos corriqueiros sobre o objeto livro e o ato de ler, vistos
em propagandas televisivas, nos discursos pedagógicos e até
mesmo nos mercadológicos a respeito do livro e isso comprova a
tese de que nossos enunciados trazem elementos de outros
enunciados e nisso se constitui o sujeito social por meio da

55Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista, campus Marília.


Professora do Instituto Federal de Rondônia. E-mail: andreia.oliveira@ifro.edu.br

1747
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

linguagem, pois “Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias


de outros enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 297).
Entretanto, Nikolai transgride esse discurso comum e faz um
desenho que me chamou a atenção por destoar dos demais e como
enunciado verbal criou uma metáfora: Para mim o livro é dança.

Imagem 01: Desenho produzido por Nikolai para representar os


sentidos dos livros para ele

Fonte: dados da autora

O desenho apresentado acima se opunha ao equilíbrio


demonstrado nos desenhos das demais crianças e seu enunciado
verbal não era costumeiramente visto em discursos oficiais sobre o
ato de ler, por isso o classifiquei como uma imagem grotesca. Silva
(2011, p. 2) afirma que: “[...] o grotesco se torna crítico na medida
em que desafia. Assim o faz com o ridículo e o cômico no espaço
popular, conforme já percebera Bakhtin. É algo que ameaça
representações escritas ou visuais ou a idealização” .
No desenho elaborado por Nikolai temos um homem de rosto
desfigurado, fato este que me faz dialogar com o enunciado e
questioná-lo: quem seria esse homem? Por que não podemos
visualizar o seu rosto? Teria sido este um ato intencional da

1748
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

criança? Metade do corpo foi pintado de preto e justamente essa


parte carrega uma sombrinha de frevo, elemento que remete à
festividade, à dança típica de Recife e logo atrás há uma placa de
trânsito indicando uma interdição: Stop (Pare). Em diálogo com o
enunciado mais uma vez elaborei questionamentos: Por que a
criança inseriu essa placa? O que deve ser interditado? Acredito
que o grotesco está presente exatamente nesses elementos descritos
ou na junção deles, a cor preta contrastanto com o colorido da
sombrinha de frevo e a placa interditiva, visto que “[...]o termo
grotesco encontra justamente sua gênese associada a esse sentido
de algo recôndito e, em consequência, perturbador” (FIORE;
CONTANI, 2014, p. 40).
Dias (2017) esclarece que palavra grotesco é derivada do
substantivo grotta que significa gruta. No século XV esse vocábulo
era usado para designar pinturas e decorações ornamentais
descobertas em paredes subterrâneas das termas do imperador
Tito, em Roma e consideradas estranhas: “São são obras de arte que
distorcem a ordem do mundo normal, expondo figuras
surpreendentes em que formas vegetais, animais e humanas são
misturadas com excepcional independência artística” (DIAS, 2017,
p. 80). Ao meu ver, o enunciado produzido por Nikolai tem essa
característica, em um primeiro momento me causou estranheza em
meio às demais produções, justamente por distanciar-se do
convencional e em um segundo momento busquei compreendê-la
a partir das vivências daquela criança com a leitura.
Nos enunciados produzidos por Nikolai durante os doze encontros
da pesquisa ficou evidenciado que o livro era importante para as
pessoas de sua casa, especialmente para o pai leitor, entretanto os
livros lidos pelo seu genitor eram outros e os seus projetos de
leitura também eram diferentes. O menino pertencia a uma família
religiosa e apesar de seu pai ter muitos livros, todos eram
religiosos. Em um dos diálogos com Nikolai, ele classificou o gibi
Turma da Mônica Jovem, de Maurício de Souza como diabólico. Esses
enunciados do menino denotam o quanto os seus signos

1749
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

individuais estão inter-relacionados com os signos ideológicos


familiares. A crença do menino que o levou a caracterizar a obra de
Maurício de Souza como diabólica, portanto inadequada à leitura,
hoje crença própria, um dia já foi crença alheia. Esse fato denota
que “[...] o sistema de meu psiquismo, pertence desde o princípio,
a um sistema ideológico e é regido pelas suas leis”. As convicções
de Nikolai não eram resultantes de seu organismo biológico “[...]
mas por todo o conjunto das condições cotidianas e sociais”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 130) e essas condições são determinantes
para a constituição do indivíduo, acrescenta Volóchinov (2017).
Petit (2009, p. 174) também já havia discorrido sobre a diferença das
preferências de distintos leitores. Segundo ela, “[...] o que faz a
felicidade de um entediará ou angustiará o outro, tamanha é a
diferença entre os leitores: de idade, sexo, geração, contextos sociais e
culturais nos quais eles vivem, a história própria de cada um e a qual eles
devem enfrentar”.
Durante toda a pesquisa constatei que o valor atribuído por Nikolai
aos livros literários estava em processo de transformação, em luta,
embate, pois os valores familiares entraram em conflito com os
novos apresentados na pesquisa. Esse processo é constante, diz
Bakhtin (2011a, p. 298) “[...] porque a nossa própria ideia [...]nasce
e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos
outros”. Para essa conclusão respaldo-me mais uma vez em
Volochínov (2013, p. 65) e sua defesa de que os pontos e vista
pessoais são extraídos daqueles que me educaram e com os quais
estudei “E se eu refuto as opiniões do grupo social a que até agora
pertencia, é somente porque a ideologia de outro grupo social
começou a dominar a minha consciência”.
Por todas essas vivências de Nikolai, afirmo que o desenho
produzido por ele pode representar todos esses embates. O menino
vivia em um mundo onde as leituras realizadas por ele e sua família
eram de livros religiosos e de repente se vê participando de um
grupo, rodeado por livros literários. Ele gostou da experiência, leu
vários livros, posicionou-se de forma ativa e responsiva diante das
leituras, construiu sentidos, mas vez ou outra em seus enunciados

1750
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ressoavam o caráter de proibição de alguns temas de livros. Talvez


o desenho represente isso, a alegria do menino ao deparar-se com
tantas possilibidades de leitura e ao mesmo tempo o conflito por
estar lendo livros diferentes daqueles indicados pela figura
paterna.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6.


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
DIAS, Luiz Antonio Xavier. O grotesco em Shrek 2 (2004): um olhar
semiótico. In: Revista da Faculdade de Comunicação, Artes e
Letras/UFGD), v. 6, n. 10, 2017. Disponível em:
https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/arredia/article/view/5941. Acesso em:
07 nov. 2021.
FIORE, Adriano Alves; CONTANI, Miguel Luiz. Elementos
argumentativos da carnavalização bakhtiniana na iconografia do heavy
metal. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, v. 9, p. 35-52, 2014.
PETIT, Michèlle. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. Tradução
Arthur Bueno e Camila Boldrini. São Paulo: Editora 34, 2009.
SILVA, Fabio. Luiz. Carneiro. Mourilhe. Considerações sobre o Conceito
de Grotesco nos Quadrinhos. In: XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, Recife, PE – 2 a 6 de setembro de 2011. Intercom – Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.
VOLOCHÍNOV, Valentin. A construção do enunciado e outros ensaios.
Tradução João Wanderley Geradi e Valdemir Miotello. São Carlos: Pedro
&João editores, 2013.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução:
Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

1751
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A potência do vazio: o acontecimento do “não saber”


como parte do processo nas atividades de
análise de textos

Ana Beatriz Ferreira Dias

Ao pensar sobre a temática que nos (re)une, agora nesta


oitava edição do Círculo – Rodas de Conversa Bakhtiniana, não
posso deixar de observar, já de antemão, que o presente texto é, por
si, também um exercício do grotesco, de acordo com a leitura que
fazemos de Bakhtin (2010). Exageramos e observamos certa
realidade com um determinado excesso. Ao olhar para as
dificuldades que experimentamos como professores e
pesquisadores durante a análise de textos, direcionamos, com
ênfase e abundância, para um momento da compreensão em que
“não sabemos” para onde ir. Não há respostas. Há um espaço que
não formula, ainda, respostas possíveis, dentro da provisoriedade
da vida. Um espaço que podemos considerar como “vazio”. Esse
exercício de pensar tal fenômeno da nossa prática é, por seu turno,
pensado a partir de gesto de grotesco, na medida em que
enfatizamos com excesso este vazio, como se perdurasse.
Além disso, tocamos o grotesco quando aqui partimos da
ambivalência do vazio. Propomos, assim, que o vácuo de não
oferecer respostas, durante principalmente o início de um trabalho
voltado para a análise de textos no âmbito das práticas recorrente
nos campos da Linguística e da Língua Portuguesa, é uma
realidade ambivalente.
Sua dimensão de entrega ao não saber, a um certo fim das
certezas, coloca o pesquisador (seja ele docente, seja ele estudante,
quando se trata do ambiente escolar e universitária) em contato
com a possibilidade de enveredar para a trilha do abandono, do fim
de atividade, da desistência em ali permanecer. Por outro lado, esse
mesmo vazio é que levará ao nascimento do novo, de uma

1752
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

compreensão, de uma leitura de mundo por meio da análise do


texto. Esta é sua potência: o vazio como um espaço que, invisível,
está gestando a novidade. Ou seja, o significado tradicional e
hegemônico do “não saber” torna-se, ao invés, um saber outro.
Para dar continuidade a essa compreensão de vazio, que não é
oco, mas sim preenchido por movimentos de potência, discutimos,
a seguir, outros elementos do processo de análise/compreensão de
textos enquanto processos pedagógicos centrais no fazer
acadêmico e escolar.
Durante o trabalho com o texto em contextos de sala de aula,
sobretudo quando a atividade requer práticas de análise de textos,
frequentemente nos deparamos um certo caos, um momento
significativo de crise dos estudantes que, frente ao saber, titubeiam
no começo das compreensões. Nessas ocasiões, muitos nos
convidam a olhar para este momento, direcionando-nos
enunciados do tipo: como, então, eu compreendo meu objeto de
estudo? O que observo frente a tantas possibilidades? Quais são os
recursos linguísticos mais significativos que foram mobilizados no
texto? Como faço para iniciar a análise?
Uma série de estudos estendem suas mãos para segurar as
nossas e as dos alunos nessas circunstâncias. Encontramos vozes
que, fundamentadas nos estudos de língua(gem), auxiliando-nos
por meio da indicação de valiosos recursos para que atentemos, por
exemplo, para os processos semânticos, sintáticos, fonológicos e
discursivos em ação em textos. Eles são uma resposta possível para
qualquer pesquisador que está às voltas com as materialidades
sígnicas.
Queremos, porém, voltar à situação de incerteza para ver e
segurar essa crise que antecede o diálogo com outros estudiosos.
Enquanto professores que tanto realizam análise de discurso
quanto conduzem os estudantes em práticas de compreensão de
textos é inevitável estarmos nesse terreno instável por um
determinado intervalo de tempo. Não conseguimos evitar as

1753
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dúvidas, as instabilidades que surgem nas mais variadas etapas de


análise de um texto.
Como muito bem observa Ponzio (2010, p. 15), a
necessidade de garantias em nossa cultura é tão grande que a
tranquilidade e segurança são buscadas de maneira que se “se
chega ao ponto de querer assegurar e de querer assegura-se, ainda
que de forma ilusória”. Quando se trata da “palavra”, torna-se
impossível conquistar qualquer segurança, continua o pesquisador
na área de estudos bakhtinianos. Para o pesquisador, a palavra é
uma alteridade, ou seja, a palavra “indica resistência, uma
autonomia da consciência e da vontade” (Ibid.).
Tendo esse processo em vista, pergunta lançada neste texto
é se percebemos a existência de um certo caos no nosso fazer
profissional e se conseguimos sustentá-lo por um certo tempo.
Ainda que esse lugar seja de passagem, pois atravessamos uma
espécie de vazio à medida que andamos na análise, o terreno
movediço existe e constitui verdadeiramente parte de nosso
trabalho. Vivemos em uma sociedade que predominantemente
supervaloriza o produto enquanto a parte concreta, e até mais
importante, de um processo. Comemoramos o artigo publicado, a
tese defendida, o relatório entregue. Ficamos animados com nossos
estudantes, quanto as perguntas de pesquisa foram respondidas, as
análises coerentemente tecidas, o trabalho apresentado e escrito.
Notamos, com certa facilidade, o ponto de “conclusão”, o
acabamento provisório, de uma tarefa que recebeu nossa atenção e
esforço.
Com isso tudo, podemos afirmar que celebramos os
nascimentos, mas falamos muito pouco sobre os momentos
incertos de uma gestação. Sabemos que, no processo de criação,
existe algo não manifesto em termos de materialidades, porém não
a tomamos como uma das vivências necessárias para a produção
intelectual.
Allan Kaplan (2005), ao abordar as transformações dos
sujeitos e de suas relações nas situações de desenvolvimento social
e de intervenções junto a realidade, chama a atenção para a

1754
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

presença da sensação de caos, que parece relevante para as


questões que levantamos. Fundamentando sua reflexão na
oscilação entre ordem e caos, o pesquisador afirma que é necessário
que o sujeito permita que o processo em que está envolvido
“mergulhe no caos” para que emerja uma nova ordem. Na
familiaridade com esses estados, podemos “nos sentir à vontade
com a noção de vazio”, e isso nada tem a ver com a busca
barulhenta para afastar o vazio por leituras incessantes: “não
significa se abarrotar de opiniões, informações e soluções de
especialistas, mas sim se esvaziar, para permitir que o processo do
próprio organismo evolua com integridade e justeza”, afirma o
autor (2005, p. 23).
A partir dessa perspectiva de Kaplan, entendemos que há,
no trabalho com o texto em contextos de pesquisas e análises
linguísticas, um ponto muito específico, determinado e fugaz, em
que predomina o caos do ponto de vista do “eu-para-mim”, no qual
se suspendem, por um tempo (até talvez instantes) leituras teóricas.
Reitero: não se trata de uma etapa interminável. É um porto de
passagem que parece fundamental para escutar as vozes do texto
que se pretende compreender e de as vozes de outros estudos com
que queremos ou precisamos conversar para melhor empreender a
análise. É uma oportunidade para, esvaziando-se, estar mais
presente com o texto que efetivamente estamos em diálogo.
Olhar e reconhecer a existência desse “vazio” como parte do
processo da análise de textos parece ser uma maneira de entrar
naquilo que Bakhtin denomina de “reino da liberdade” (2019, p.
57):

Do reino da objetividade, das coisas, da prontidão unívoca, da


necessidade, onde opera o conhecimento reificante, entrando no reino
da liberdade, do não determinado, do inesperado e da novidade
absoluta, das possibilidades infinitas e da não coincidência consigo
mesmo

1755
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

E este reino da liberdade não acessamos, de modo


automático ao nascermos biologicamente. A nosso ver, é necessário
aquele outro nascimento de que fala Bakhtin (2009), em “O
Freudismo”: um nascimento social.
Referências

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara
Frateschi Vieira. 7 ed. Editora Hucitec, São Paulo, 2010.
BAKTHIN, M. O Freudismo: um esboço crítico. Tradução de Paulo
Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2009.
KAPLAN, A. O processo social e o profissional de
desenvolvimento. Artistas do invisível. Tradução de Ana Paula
Pacheco Chaves Giorgi. São Paulo: Instituto Fonte para o
Desenvolvimento Social e Editora Fundação Peirópolis, 2005.
PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2010.

1756
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

NO GROTESCO DOS NOSSOS TEMPOS: A ESCRITA E


AS VOZES QUE ME CONSTITUEM ENQUANTO
ESCRITORA.

Ana Lucia Gomes de Souza

Na escrita não há outra razão que não seja o amor e o


desamor pelas palavras, a paixão e o desassossego
pelas palavras, a atração e a repulsão pelas palavras.
(SKLIAR, 2014. p. 101)

Sobre o grotesco dos nossos tempos, escolhi o tema “vozes”


para descrever aspectos da relação que tenho mantido com a
escrita. Inicialmente narrarei minha experiência de escrever
livremente textos informais, descomprometidos e despretensiosos.
Em seguida, compartilho a vivência da escrita de textos científicos,
quando reconheço que é preciso seguir alguns critérios concebidos
pela academia. Conto as estratégias que utilizo para dinamizar esse
processo.
A escrita sempre foi o meu refúgio para todos os momentos.
Durante a pandemia - período que nos obrigou a um isolamento
social, a escrita se tornou uma companheira necessária. A dor que
assolou inúmeras famílias me afetou profundamente. Foi
inevitável não se compadecer e sofrer junto. Todavia, existia uma
tese de doutorado em andamento e uma luta para que essa
produção se tornasse de agradável leitura, apesar das
circunstâncias.
A escrita acadêmica e científica tende a ser um grande
desafio quando a pensamos sob a égide do rigor científico. No
entanto, desejo compartilhar que tenho encontrado caminhos
possíveis, na perspectiva da heterociência, que me lançam a uma
trilha, digamos, mais leve e ao mesmo tempo produtiva. Esse
formato que compartilharei aqui é o que me aproxima mais do

1757
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

auditório presumível aos meus textos – professores, educadores,


meus pares de profissão.
A pesquisa na perspectiva da heterociência aspira eliminar
a possibilidade de se ter uma única visão dos acontecimentos. Tem
também o objetivo de reconhecer novos formatos de produção
científica, possíveis de alargar o texto científico, sem, contudo
descaracterizá-lo. Defende novas possibilidades estéticas de
produção, utilizando a Arte como elemento importante e
integrador da produção acadêmica (MOTTA; CARVALHO, 2017).
Assim, escrever, ganha outro sentido, quando compreendo
que é possível tornar o percurso de escrita suave sem que me afaste
da proposta científica que deve conter. O caminho que escolhi para
trilhar foi de inicialmente, antes mesmo do texto nascer, imaginar
e recuperar a essência da minha escrita. Explico a seguir.
Escrevo desde menina. Sempre gostei de escrever
livremente. São textos descomprometidos, desprovidos de
intenções ideológicas. Nunca ao menos os tornei públicos. Apenas
escrevi para mim mesma. São escritos sobre a vida ... a minha vida.
Narrativas simples, autorais, canções, versos ou prosas sobre o
cotidiano. Mas, que dão prazer em cria-los. Porque fazem emergir
o que penso e desejo de alguma forma mostrar, nem que seja
apenas para mim.
Eis, que como pesquisadora de ciências humanas é preciso
pensar em outra perspectiva de escrita que atenda às exigências
acadêmicas. Tenho tentado agregar as essas novas produções a
essência do prazer de escrever sem compromisso e pulveriza-la na
escrita acadêmica com intencionalidade científica. Não é fácil, mas
tem sido assim.
Acredito que mesmo cientificamente os textos trazem nossa
autoria. É certo que carregamos, naturalmente, outras vozes
teóricas conosco. Mas, há de ter nossa marca, nosso estilo, nosso
jeito de fazer, nossa autoria. Há de se poder enunciar com mais
leveza, sem se perder do gênero científico.
A estratégia encontrada, no meu caso, foi responder uma
pergunta inicial enquanto produzo: Por que escrevo? Vou

1758
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

respondendo mentalmente enquanto o texto se desenrola. A


motivação que me acompanha é pensar em quem me lê e porque o
faz. Coadunando essas duas grandes questões, assim estabeleço:
Escrevo porque há um desassossego, como diz Skliar (2014). Esse
desassossego que me instiga a encontrar a paz. Ainda que
passageira. Até que venha o novo movimento de desassossegar.
Trago comigo o amor pelas e nas palavras, mesmo num
texto acadêmico. Busco por elas e elas me acham e me seguem. Sou
atraída por palavras que povoam meus pensamentos em busca de
repouso em algum constructo. Esse é o movimento que realizo para
escrever. Desassossegar.
Skliar (2014) também fala sobre o sentido da escrita: “Talvez
o único sentido, a única razão da escrita seja escrever. Sem ter
razões para fazê-lo, nem de antemão, nem a posteriori. Nem razões
maiúsculas nem razões minúsculas [...]”. Não para isso, nem para
aquilo. O sentido da escrita está em nós. No que pretendemos que
o outro conheça de nós. Portanto, escrita é entrega. Escrever e
entregar-se ao outro despretensiosamente. Até porque nem sempre
saberemos quem é esse outro. E ainda assim a ele entregamos nossa
produção, nossas palavras criteriosamente escolhidas e pensadas.
Esse “outro-para-mim” que constantemente se encontra
comigo na vida, na arte, no fazer, em interação. Porque entendo,
em Bakhtin (2017) que nosso enunciado se constitui a partir do
outro. O outro que me ouve, que me lê e me compreende. Portanto,
uma relação dialógica ecoa durante a leitura de um texto, ainda que
não a percebamos.
Percebo claramente que o meu caminho tem sido
construído através do sentido que emprego ao escrever. Cada
enunciado que responsivamente faço sobre uma descoberta, um
conceito, um estudo ou um resultado de pesquisa realizado tem
significado para mim. Almejo contribuir com a ciência,
empregando sentido aos estudos que realizo e imaginando sendo
alcançados pelo meu leitor. Encontrando esse sentido, a produção
vem.

1759
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em Bakhtin (2011) compreendo que nosso ponto de vista,


presente nas relações dialógicas, precisa ser examinado nas
grandes questões (científicas, filosóficas, políticas.) assim como na
fala cotidiana. São fenômenos e, portanto, podem ser analisados à
luz das relações dialógicas que os constituem. É ele que me orienta
a olhar para o meu outro, interagir com ele e escrever
responsivamente.
No meu ofício de escrever, tal qual Bartolomeu de Queirós
(2017), aguardo as palavras chegarem. É uma espera silenciosa e
solitária. Há um projeto de dizer em curso. Minha missão é
aguardar pacientemente o momento de desvelar o que me
atravessa. O que me atravessa é a experiência de escrever com o
outro e para o outro. Esse outro que não conheço – o meu leitor e
que em breve saberá de mim. Ele nem se dá conta, mas segue
comigo em meus escritos. Ele me acompanha, me ouve e responde
minhas indagações. Eu o escuto e preparo tudo pensando nele.
Assim penso enquanto escrevo e organizo uma nota de rodapé
aqui, um parágrafo explicativo acolá. Para ele, esse meu
desconhecido, vou dando pistas dos caminhos que escolhi para a
escrita. Eu o conduzo, ele aceita e vem. Faço-lhe perguntas
publicamente a cada início ou fim de capítulo e acredite, eu o ouço
responde-las. Introduzo ou finalizo um assunto pensando em
maneiras de ser clara e objetiva aos seus olhos. Desejo que entenda
minhas afirmações, justificativas, opiniões e os conceitos que tento
esclarecer. E o texto segue.
Machado de Assis56 é o autor que me inspira a escrever
dialogiacamente e heterocientificamente. Nele busco a inspiração
necessária do reconhecimento do outro presentificado em meus
escritos. Longe de querer comparar-me ao meu admirado, ou de
me considerar fazendo algo semelhante as suas obras, esclareço que
é ele quem me ilumina a dialogar com meu leitor. Pois, Machado

56 Joaquim Maria Machado de Assis foi um escritor brasileiro que viveu entre
1839-1908

1760
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

de Assis faz isso de uma forma única, sábia, poética e irreptível.


Enquanto o leio, me sinto no seu texto, com ele. Pela forma que me
orienta a reler o que não ficou claro. A voltar no capítulo anterior
caso o tenha pulado. Ao recuperar uma informação dita num
capítulo já distante. Ele é um escritor atento à leitura alheia,
orientando-nos desde o prólogo. Suas obras são encantadoras e
imortificadas.
Enquanto “bebo da fonte” machadiana escolho um estilo
próprio para me aproximar do meu leitor e tornar meus textos
compreensíveis e dialógicos. É uma escolha estética que faz todo
sentido para mim. Tem sido assim, utilizo sempre a primeira
pessoa, me dirigindo a alguém que imagino estar comigo, a quem
me mostro sem reservas.
Tal atitude está em conformidade com o que acredito: a
escrita sem clausuras. Mesmo um artigo científico ou uma tese,
como no meu caso, pode também ser um ato dialógico e sustentar
um caráter menos rígido. Caminho na perspectiva de um rigor
flexível e por isso me permito escorregar dos métodos cristalizados.
(GUEDES E RIBEIRO, 2019).
Dirijo palavras ao meu outro: “Venha comigo, meu leitor,
avançaremos para o próximo capítulo”. “Amigo leitor, em breve,
no capítulo a seguir, abordaremos melhor essa questão”. Eu o
tenho como meu interlocutor e a ele encaminho minha fala e meus
estudos. Eu o escuto responder. É o encontro de palavras.
Ponzio (2018) que nos diz que o encontro das palavras está
presumido em qualquer comunicação. A palavra quando dirigida
ao outro, seja falada ou escrita, o interpela em sua alteridade. O
encontro de palavras, segundo o autor, não está dentro da
interrogação ou da relação de pergunta e resposta, mas sim, “Fora
do querer dizer do que se diz e do querer ouvir aquilo que deva ser
a resposta, e fora do querer entender o que necessita de resposta.”
(p.10).
A tese, ou um artigo científico é também um encontro de
palavras, entre o meu dizer e a escuta de meu interlocutor, que

1761
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

dialoga comigo. Em meu “arranjo criador” , me dirijo ao outro,


ainda que racionalmente ele não esteja ali. Mas, que acredito estar
presentificado, me acompanhando e inspirando. No grotesco dos
nossos tempos, afetada pelo que me interpela, essa é a maneira que
encontro para prosseguir escrevendo dialogiacamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. 3ª. Ed.


São Paulo: Pedro e João, 2017.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.
GUEDES, Adrianne Ogêda, RIBEIRO, Tiago. (orgs). Pesquisa,
alteridade, experiência: metodologias minúsculas. Rio de Janeiro:
Ayvu, 2019.
MOTTA, F. N. M.; CARVALHO, C. R. de. Em busca de uma
heterociência: ética, estética e epistemologia numa perspectiva
bakhtiniana das ciências humanas. (Projeto de Pesquisa).
Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos
Contemporâneos e Demandas Populares. Instituto
Multidisciplinar de Nova Iguaçu. Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro, 2017.
QUEIRÓS, Bartolomeu C. de. Para ler em silêncio. 1ª Ed. São Paulo.
Ed. Moderna, 2007.
PONZIO, Augusto. Encontros de palavras: o outro no discurso. 2ª
Ed. São Carlos. Pedro & João Editores, 2018.

1762
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco nas manchetes de grandes jornais


do Sudeste do Brasil durante a pandemia do
coronavírus

Monique Brito & Inez Helena Muniz Garcia


Universidade Federal Fluminense/ UFF/ RJ.

Para começar esta reflexão iniciamos por recuperar o sentido do


grotesco; qual é a sua definição? Buscamo-la no dicionário
Michaelis online. 1. ART. PLÁST. Diz-se de ou cada um dos
ornamentos que representam animais, seres humanos, plantas,
objetos ou elementos fantásticos, geralmente em cercaduras ou
frisos, comuns na arte do Império Romano e que ressurgiram no
neoclassicismo; grutesco. 2. ART. PLÁST. Diz-se de ou criação
artística que apresenta tais ornamentos. 3. POR EXT. Diz-se de ou
algo que apresenta caráter caricato ou se presta ao riso. 4. GRÁF.
Diz-se de ou tipo de traço uniforme, de uma só espessura e sem
serifas; etrusco, lineal (https://michaelis.uol.com.br/).
Consta que a palavra começou a ser usada em fins do século XV e
é proveniente da palavra italiana grotta, que traduzida para o
português seria gruta, caverna. Ela está associada a um tipo de
decoração ornamental encontrada em grutas na Itália, num estilo
que se caracterizava por figuras com características distorcidas,
monstruosas, animais antropomorfizados, sobre uma decoração
geométrica (FILHO, 2019).
A palavra grotesco adquiriu depois no italiano e também em
outros idiomas, inclusive no português, o sentido de
feio, bizarro ou ridículo - mas já sem relação com as
pinturas/decorações ornamentais.

1763
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Com o passar dos séculos, o grotesco foi ganhando diferentes


representações na arte. No campo da pintura destacaram-se muitas
obras dos pintores Hieronymus Bosch, Pieter Bruegel, Francisco de
Goya, Pablo Picasso (cujas obras cubistas são frequentemente
relacionadas a formas bizarras) e, mais recentemente,
Francis Bacon, com seus seres disformes. Em dramaturgia
podemos citar elementos dos textos do dramaturgo Alfred Jarry.
Na literatura, pode-se considerar dentro desse gênero do grotesco
alguns escritos dadaístas e surrealistas, cujas obras transgrediam os
padrões normais de escrita.
Muitos filósofos discorreram em seus trabalhos sobre a estética, seja
ela a tradicional (Platão, Kant, Nietzsche), ou a não convencional,
entre eles podemos citar Mikhail Bakhtin (BAKHTIN, 2010a, 2010b,
2011).
O uso de signos é fundamental para o desenvolvimento humano e
para a formação da consciência. As palavras e as imagens são
linguagens que desenvolvem o pensamento; arte e leitura são
qualidades e meios necessários para a comunicação e a interação
humanas (VIGOTSKI, 2007). A linguagem é fundamental para a
comunicação e participação dos indivíduos enquanto sujeitos
históricos.
Em 2020, o mundo conheceu a primeira pandemia do século XXI, a
da Covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2 (OPAS, 2021). De lá
pra cá, ela vem produzindo repercussões de ordem epidemiológica
e impactos sociais, econômicos, políticos, culturais e históricos sem
precedentes na história das epidemias. Nesse período o Brasil sofre
anos de retrocesso com um governo pró-fascista ineficiente e
indiferente às necessidades primárias da população. Com isso,
temos sido inundados por uma avalanche de notícias diárias
perturbadoras e informações catastróficas, por vezes grotescas, que
dizem respeito a essa doença devastadora.
O objetivo desse relato é construir um diálogo breve sobre o
grotesco de algumas manchetes de jornais de grande circulação do
Sudeste do Brasil durante a pandemia, à luz de Bakhtin. Para esse

1764
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

filósofo, a ação ética não pode desprezar o tempo e o lugar em que


se vive.
As manchetes foram pesquisadas nos sites dos jornais Folha de S.
Paulo, O Estado de S. Paulo, Valor Econômico e O Globo durante o
período de março de 2020 a abril de 2021.
Para a coleta de dados foi escolhido um dia arbitrário do final de
cada um dos meses. Algumas das manchetes selecionadas estão no
Quadro 1.

Quadro 1. Manchetes de jornais de grande circulação do Sudeste


do Brasil no período de março de 2020 a abril de 2021.
Data Jornal Manchete
27/03/2020 Folha de S. Explode número de internações
Paulo por problemas respiratórios.
24/04/2020 O Globo País registra 407 mortes pela
Covid em um dia.
Folha de S. Brasil bate recorde de mortes por
Paulo coronavírus.
25/05/2020 O Globo A mais de 2 horas de um leito de
UTI.
Teich: divergência sobre
cloroquina
motivou saída.
O Estado de Mais de mil mortes por dia e 1 a
S. Paulo cada 7 novos casos no mundo.
São Paulo registra mais de 5 mil
mortos.
Folha de S. Sem ministro, país passa dos mil
Paulo mortos diários.
Pela 1ª vez, país supera mil mortes
por Covid-19 em 24h.
22/06/2020 O Estado de Covid-19 afasta 1,4 milhão do
S. Paulo mercado de trabalho no País.
30/07/2020 O Globo Com transmissão mais rápida,
Brasil passa dos 90 mil óbitos.

1765
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Folha de S. Brasil ultrapassa 90 mil mortos


Paulo pelo coronavírus; infectados
somam 2,5 milhões.
Covid-19 mata mais de 200
grávidas e puérperas no Brasil.
25/08/2020 O Globo Pesquisadores de Hong Kong
confirmam 1º caso de reinfecção
por Covid-19.
20/09/2020 O Globo Fome volta a ser grave problema
social no Brasil.
Educação pode perder R$ 1,5 bi
ainda neste ano.
Folha de S. Pantanal queima e caminha para
Paulo pior registro da história.
19/10/2020 Folha de S. Para senador, Pantanal vive uma
Paulo situação de guerra.
30/11/2020 Folha de S. São Paulo pode voltar hoje para
Paulo quarentena mais rígida.
O Globo Idoso com suspeita de Covid-19
morre no Rio à espera de vaga.
21/12/2020 O Estado de Gestão Bolsonaro completa 2 anos
S. Paulo sem cumprir promessas.
Nova cepa do vírus faz países
isolarem o Reino Unido.
Nicette Bruno – O adeus a uma
dama do teatro.
Folha de S. Auxílio é a única renda para 36%
Paulo que o receberam.
Governo não tem plano real
contra Covid-19, diz TCU.
Defesa quer zerar imposto para
vender armas na região.
21/01/2021 O Globo Criticado por atraso de vacina,
Bolsonaro pressiona auxiliares.
Fura-filas e apadrinhamento
político marcam imunização.
O Estado de Butantan não tem mais insumo
S. Paulo para produzir vacina.

1766
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Folha de S. Falta de resposta à imprensa se


Paulo torna padrão do Planalto.
Valor Não há vacina para todos em
Econômico 2021.
19/02/2021 O Globo Sem novas doses, cidades de todo
o país começam a suspender
vacinação.
Deputado bolsonarista é preso
após ataques a ministros do STF.
Gilmar Mendes rebate ironia de
Villas Bôas.
O Estado de Capitais começam a paralisar
S. Paulo vacinação e cobram o governo.

Valor Restrições em calamidade podem


Econômico ser permanentes.
25/03/2021 O Globo 300 mil mortes – novo ápice da
crise faz câmara elevar pressão
sobre Bolsonaro.
Ignorar a ciência acelerou óbitos,
dizem especialistas.
O Estado de 301.087 mortos – país tem média
S. Paulo de 2 óbitos a cada 3 minutos.
Retrato de um sistema de colapso.
Folha de S. Em só 75 dias, Brasil vai de 200
Paulo mil para 300 mil mortos por
Covid-19.
Grupo toma vacina escondido em
MG, afirma revista.
Ministro pede ajuda de médico
anticloroquina.
Valor País ultrapassa a marca de 300 mil
Econômico mortos.
22/04/2021 O Globo Brasil ‘estaciona’ em pico de 2.800
mortos ao dia, em média.
Atrasada, vacinação de grupos
prioritários só deve acabar em

1767
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

setembro.
Pandemia emocional – O que você
sente tem nome: definhar.
O Estado de Médico olavista ganha espaço na
S. Paulo Saúde e busca nova cloroquina.

Folha de S. Queiroga atrasa fim da vacinação


Paulo de prioritários.
Registrada 1ª morte por reinfecção
de Covid com variantes
brasileiras.
Valor Trabalho infantil pode se agravar
Econômico no pós-pandemia.

As manchetes tiveram como temas principais os problemas e a


negligência com a saúde. Já em 24/04/2020, o jornal Folha de S.
Paulo anunciava “Brasil bate recorde de mortes por coronavírus”.
Nos meses seguintes, o presidente empregava todas as suas fichas
a favor de fármacos sem eficácia clínica comprovada no tratamento
da doença viral – a cloroquina, a hidroxicloroquina, a ivermectina
e a azitromicina – e incentivava as pessoas e os prescritores a
aderirem ao esquema medicamentoso perigosíssimo. O grotesco
fincava seus pés no país.
Em maio de 2020 vivemos uma crise sem Ministro da Saúde. Em
25/05/2020, a Folha de S. Paulo destacava “Sem ministro, país passa
dos mil mortos diários. Pela 1ª vez, país supera mil mortes por
Covid-19 em 24h”. Nesse ínterim, o presidente desincentivava o
uso de máscaras. Um pouco mais a frente as manchetes mostram
que as pessoas não respeitavam a fila de vacinação e que houve
falta de vacinas. São o trágico e o grotesco, juntos.
Em 20/09/2020, o jornal O Globo trazia denúncias de problemas
sociais contundentes “Fome volta a ser grave problema social no
Brasil” e “Educação pode perder R$ 1,5 bi ainda neste ano”. As
medidas econômicas e políticas erguidas para o enfrentamento da
crise estrutural aumentaram a desigualdade e o desemprego para
níveis alarmantes. A fome volta e fica mais uma vez evidente o

1768
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

menosprezo com a educação e fatos contundentes sobre o país,


como, por exemplo, o descaso dos órgãos competentes com a fome,
com o desmatamento na Amazônia e com as queimadas no
Pantanal. Entendemos, como Bakhtin, que aquele que pratica um
ato de compreensão passa a ser participante do diálogo
(BAKHTIN, 2011). Somos todos participantes.
Compreender é participar de um diálogo com o texto. A
compreensão não se dá sem que entremos numa situação de
comunicação. Isso quer dizer que a leitura é social, mas também
individual. Na medida em que o leitor se coloca como participante
do diálogo que se estabelece em torno de um determinado texto, a
compreensão não surge da sua subjetividade. Ela é tributária de
outras compreensões. Ao mesmo tempo, como o leitor participa
desse diálogo mobilizando aquilo que leu e dando a todo esse
material uma resposta ativa, sua leitura é singular (FIORIN, 2016).
Em sua obra História da Feiura, o escritor Umberto Eco discorreu
sobre a complexidade na conceituação do feio. Ele traz sinônimos
dessa palavra e entre elas encontramos o vocábulo grotesco: " ...
aquilo que é repelente, horrendo, asqueroso, desagradável,
grotesco, abominável, vomitante, odioso, indecente, imundo, sujo,
obsceno, repugnante, assustador, abjeto, monstruoso, horrível,
horripilante, nojento, terrível, terrificante, tremendo, monstruoso,
revoltante, fétido, apavorante, ignóbil, desgracioso, desprezível,
pesado, indecente, deformado, disforme, desfigurado" (ECO,
2007).
Os manchetes trazidas são catastróficas, alarmantes e por que não
dizer, grotescas, tendo o grotesco como sinônimo de abominável,
monstruoso, apavorante, revoltante, indecente? O grotesco
também está na linguagem. Segundo Bakhtin (2010), as
características próprias do estilo grotesco são a ênfase pela
hipérbole, o uso do exagero, da profusão, do excesso, do cômico,
da ambivalência, da sátira, o que pode gerar muitas vezes a
construção de uma caricatura levada aos limites do fantástico, do
impossível, do monstruoso. Para estas manchetes jornalísticas, nem

1769
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

são necessários os exageros. As próprias notícias são grotescas.


Morte, fome, guerra, falta, são palavras recorrentes nos textos.
A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo
discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo.
Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o
discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar
de participar, com ele, de uma interação viva e tensa (BAKHTIN,
2010).
Para o filósofo russo, a imagem grotesca é algo que pode ser
representado por uma ambivalência, uma possibilidade de
transformação. É assustador e também bem-humorado. Desta
forma, na imagem grotesca, a morte é associada à vida. Não há
grotesco se não há sátira. (FREIRE, GONÇALVES, GUEDES, 2014).

Com essas breves reflexões encerramos o texto e iniciamos o


debate. Essas manchetes constituem pontos importantes para
entender o que se passou enquanto estamos mergulhados ainda no
fato histórico. Post factum poderemos e deveremos recuperar essas
e outras questões, a fim de fortalecer um caminho científico e
filosófico que construa pontes com a efemeridade da razão
contemporânea.

Referências

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Vieira,
Y. F. 7ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010a.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. Editora Hucitec;
1ª edição, 2010b.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradutor Paulo Bezerra.
WMF Martins Fontes; 6ª edição, 2011.
ECO, U. História da feiura. 2ª ed., Editora Record, 2007.
FILHO, F. C. C. A estética do grotesco como meio para
potencializar a expressividade no corpo cênico. Dissertação

1770
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

(Mestrado em Artes Cênicas) - Instituto de Artes, Universidade de


Brasília. Brasília, 125 p., 2019.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. Editora
Contexto; 2ª ed., 2016.
LOPES, J.L.; GONÇALVES, J. B.; GUEDES, I. L. O nojo e o grotesco
na propaganda social: uma leitura bakhtiniana do vídeo Tentacle.
Contemporanea. v. 1, n. 23, p.1-15, 2014.
MICHAELIS DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA
PORTUGUESA. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/.
Acesso em 07 set. 2021.
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE (OPAS). Folha
informativa sobre COVID-19. Disponível em:
https://www.paho.org/pt/covid19. Acesso em: 05 set 2021.
VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento
dos processos psicológicos superiores. Tradução de Neto, J.,
Barreto, L. y Afeche, S. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

1771
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O grotesco rei mal coroado

Kátia Vanessa Tarantini Silvestri57

A política não é uma atividade predada, ela deve ser


instaurada pelos atores políticos em tensão com a lógica policial.
Todavia, a instauração política não responde necessariamente ao
desejo da multidão, muitas vezes a resposta é contrária, oposta ao
ensejo que a exigiu. Assim se articula a Biopolítica. Compreender o
cenário atual político brasileiro mediante o pressuposto
bakhtiniano do grotesco como uma modalidade expressiva
popular foi o objetivo do texto. Dessa forma, se faz uso dos
elementos carnavalescos do gênero grotesco como metodologia de
coleta de dados. O referencial teórico que fundamentam a
discussão é especificamente Bakhtin (2006, 2010), Ao menos dois
enunciados – música e enunciações - dialogam na construção do
objeto de estudo cujo principal resultado é a compreensão que a
tensão discursiva está viva, o ativismo da multidão presente, a
utopia atuante e, que apesar de um rei mal coroado, o comum que
move a multidão se põe em marcha.
Palavras-chaves: impeachment; confronto carnavalizado; grotesco
atuado; grotesco representado.

Ato 1
Escatologia

57 Doutora e mestre em Linguística. Filósofa. Psicanalista. Psicopedagoga.


Docente na Fundação Hermínio Ometto|FHO. Orientadora de TCC de MBA da
USP em Gestão Escolar no Instituto de Pesquisa e Educação Continuada em
Economia e Gestão de Empresas |PECEGE.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

sf. 1Estudo sobre os excrementos. 2 Doutrina acerca do destino final do


mundo58

“Um rei mal coroado,


Não queria
O amor em seu reinado
Pois sabia que
Não ia ser amado”
(Canção da Despedida)

Adeus. A multidão despede-se de um rei mal coroado.

Figura 1: Mais de 1 milhão de brasileiros saem às ruas contra o desastre Bolsonaro


Fonte: Brasil 247

É... não há ainda um impeachment consolidado. Termo esse


que se apresenta pela primeira vem em Londres em 1376 quando
um lorde chamado Latimer perde o cargo e é condenado à prisão
por ter feito empréstimos abusivos em nome da Coroa. O
impeachment é um processo instaurado com base em denúncia de
crime de responsabilidade contra uma alta autoridade do poder
executivo, judiciário ou legislativo. O processo foi inscrito em 1787

58 BECHARA, E. Termo escatologia. In: Dicionário da Língua portuguesa –


Evanildo Bechara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 590.

1773
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

na Constituição dos Estados Unidos depois de sua primeira


aparição em Londres de 1300 e, ainda hoje, é realidade da política
brasileira. Até o momento há por volta de 68 pedidos originais, 46
duplicados, 7 aditamentos, 6 arquivados, 500 organizações e 1507
pessoas que assinaram o pedido de impeachment contra Jair
Bolsonaro. Todos esses pedidos registrados respondem a
possibilidade democrática dada pela lei 1079/50, a lei do
impeachment, que garante a todo cidadão solicitar impeachment. A
câmara não tem, todavia, a obrigação de colocar o pedido em
votação, tanto que o pedido mais antigo em análise de impeachment
do atual presidente corre há mais de 800 dias (Pública, 2021).
Um rei mal coroado, coroado pelo medo? Pela ignorância
política? Pela tentativa vã de trazer o que parecia aos olhos de
muitos um outsider? Ou ainda: foi a facada? Um antipetismo? O
poder expressar preconceitos seguindo o exemplo do candidato a
presidente? Uma mistura de antipolítica, redes sociais e segurança
pública, desfocaram a criticidade, abafaram a alegria, suspenderam
o riso da população e elegeram um rei mal coroado (Moura e
Corbellini, 2019).
Uma possível hipótese é que equivocadamente parte da
população acreditou estar colocando o mundo de cabeça para baixo
ao eleger Bolsonaro. Com 55,21% de votos válidos, será que foi as
piadas? O informal como no caso de não haver debate televisivo na
corrida presidencial, o uso das redes sociais como o WhatsApp? O
linguajar vulgar? Entre 2015 e 2016 já proclamava: “vou ser
candidato a presidente gostem ou não gostem” (BBC News, 2018).
Todavia, o carnavalizar significa,

o carnaval (repetimos, na sua acepção mais ampla) liberava a


consciência do domínio da concepção oficial, permitia lançar um
olhar novo sobre o mundo; um olhar destituído de medo, de
piedade, perfeitamente crítico, mas ao mesmo tempo positivo e
não niilista, pois descobria o princípio material e generoso do
mundo, o devir, a mudança, a força invencível e o triunfo eterno
do novo, a imortalidade do povo. (...) é isso que nos entendemos

1774
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

como carnavalização do mundo, isto é, a liberação total da


seriedade gótica, a fim de abrir caminho a uma seriedade nova,
livre e lúcida (Bakhtin, 2010, p. 239).

Eis que o grotesco, hipótese aqui levantada, visto em


Bolsonaro por parte da população não se associa à modalidade
expressiva carnavalesca e crítica bakhtiniana, dada a taxonomia
dessa categoria estética (Sodré e Paiva, 2002), mas à modalidade
expressiva chocante e escatológica, já que seus dejetos mentais,
seus estrumes verbais foram despejados sobre o Brasil e no mundo
em diversos momentos.
Estrume verbal 1: "eu chego como eu quiser, onde eu quiser,
eu cuido da minha vida” (21 jan. 2021 – fala dirigida a uma repórter.
Fonte: TV Vanguarda (afiliada Globo, repórter insultada Laurene
Santos)
Estrume verbal 2: “cala a boca” (21 jan. 2021 – fala dirigida
a uma repórter. Fonte: TV Vanguarda (afiliada Globo, repórter
insultada Laurene Santos).
Estrume verbal 3: “O erro da ditadura foi torturar e não
matar” (2008 e 2016 – fala em entrevista programa Pânico, da Rádio
Jovem Pan. Fonte Carta Capital, 29 out. 2018)
Estrume verbal 4: “Através do voto você não vai mudar
nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar,
infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui
dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando
uns 30 mil, começando com om o FHC, não deixar para fora não,
matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é
guerra morre inocente” (1999 - fala no programa Câmera Aberta.
Fonte Carta Capital, 29 out. 2018).
Estrume verbal 5: “Somos um país cristão. Não existe essa
historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o
Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias.
As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem” (2017 -

1775
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

discurso, gravado em vídeo e publicado no YouTube, foi feito


durante um evento na Paraíba. Fonte Carta Capital, 29 out. 2018).
Estrume verbal 6: “Não estupro porque é feia", "deviam
ganhar menos", "queria dar o furo" (18 fev. 2020 – fala à saída do
Palácio do Alvorada. Fonte Diário de Notícias, 19 fev. 2020).
Estrume verbal 7: “Pais de maricas” (10 nov. 2020.
Entrevista. Fonte BBC News Brasil, 11 nov. 2020).
Estrume verbal 8: “Quem é de direta toma Cloroquina.
Quem é de esquerda toma Tubaína” (19 mar. 2020. Entrevista vídeo
Youtube. Fonte BBC News Brasil, 11 nov. 2020).
Estrume verbal 9: "Chega de frescura, de mimimi" (4 mar.
2021. Fonte DW.com -Brasil, 5 mar. 2021).
Estrume verbal 10: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o
quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre” (28 abr. 2020. Fonte
DW.com - Brasil, 5 mar. 2021).
Estrume verbal 11: “Bolsonaro diz que Amazônia ‘não pega
fogo” (14 nov. 2021 – fala abertura do Fórum Invest in Brazil, em
Dubai. Fonte G1, 15 nov. 2021).
Um disgusto (desarmonia do gosto) é o exemplo de um rei
mal coroado, pois desarranja a ordem natural das coisas, no caso a
postura de um presidenciável e, depois, de um presidente bárbaro
por realizar uma provocação superficial, sensacionalista. Espanta
pelo chocar, mas ao invés de realmente por o mundo de cabeça para
baixo, simplesmente reforça os preconceitos, as intolerâncias, as
diferenças de forma indiferente. Não é responsável, não é ético, de
forma que só sobra dessa atuação o resíduo da animalidade, de
uma ignorância vomitada sobre uma nação. Um rei mal coroado
expressa o grotesco no âmbito literário, a saber, chocante, sem a
ambivalência, sem a criatividade, sem a ética (sem o ato
responsivo). Diferentemente em Bakhtin (2010), o grotesco é um
realismo grotesco, um grotesco popular que não reconduz a ordem
normal das coisas, mas inverte e desloca as relações de poder,
realmente inverte o mundo, libera o riso comum, a alegria
inalienável. E esse grotesco se vê nas ações transgredientes da
multidão.

1776
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Enquanto um rei mal coroado propagada o medo pela piada


cruel, pelas falas repletas de injúrias, pelo grito se vê uma sociedade
do espetáculo cuja arma de dominação é o medo.
Mais precisamente, que nem tudo o que é risível está prenhe
de potencialidade e transformação concreta: nem tudo é risível é
subversivo. O risível da postura do presidente é o riso da fraqueza
alheia, daquela a honra súbita daquele que ri, pois este acreditaria
em sua superioridade em relação ao outro e, por isso, seria o riso
pertencente aos homens que não são nobres nem elevados, mas
bestiais, daí a face grotesca (não bakhtiniana) do presidente.
Por outro lado, a carnavalização como uma modalidade
expressiva do grotesco, faz com que

a alienação desaparecia provisoriamente; o homem tornava


a si mesmo e sentia-se um ser humano entre seus
semelhantes. O autêntico humanismo que caracterizava
essas relações não era em absoluto fruto da imaginação ou
do pensamento abstrato, mas a experimentava-se
concretamente nesse contato vivo, material e sensível
(Bakhtin, 2010, p. 09).

Carnavalizar é criar uma dualidade no mundo. Essa


dualidade é alicerce de ações que desestabilizam tentativas de
homogeneização e padronização. A prática de inverter e relativizar,
isto é, carnavalizar é o litígio cotidiano que abre portas para
relações dialógicas diferentes dos habituais praticadas pela
campanha presidencial.
Ao buscar criar diferença não indiferente, liberdade da
palavra, igualdade sem deformação, transformação sem nunca
abandonar a irredutibilidade do outro as ações carnavalescas
apresentam-se como ressignificação da vida.
Por isso escatologia aqui em seus dois sentidos. Adeus a um
rei mal coroado, há uma tensão presente. E breve análise sobre os
dejetos da postura de um rei mal coroado.

1777
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A prática de governo de Bolsonaro é a do racismo de Estado


dentro do contexto biopolítico. O racismo de Estado tem duas faces,
uma que segrega, separa, torna ainda mais distante as pessoas
dentro de uma mesma população e, por isso, negativa. Outra face,
que se tinge de afirmativa é em nome da segurança da população,
estabelece o desprezível, aquele que é matável - necropolítica.
O desgoverno de Bolsonaro usou amplamente do racismo
de Estado. Mas como dito, a tensão sempre está presente nas
relações sociais.

Figura 2: Manifestações contra Bolsonaro e pela democracia


marcaram o domingo
Fonte: Contee 30

A utopia está viva. E as palavras ainda repercutem, “pois


toda enunciação (...) é uma resposta a alguma coisa” (Bakhtin, 2006,
p. 101). O sentido ideológico da palavra ou vivencial se atualiza.

O rei velho e cansado já morria


Perdido em seu reinado
(Canção da Despedida)

1778
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O que se vê é a ambivalência entre o velho e novo:

(...) é a morte prenhe, a morte que dá à luz. (...) Combina-se ali


corpo descomposto e disforme da velhice e o corpo ainda
embrionário da nova vida. A vida se revela em seu processo
ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada
perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude
(Bakhtin, 2010, p. 22-3).

Adeus velho Bolsonaro: o velho regime, o velho hábito, o


velho patriarcado, o velho machismo, o velho ódio morre, mas essa
morte está gravida de utopia. Sua morte apresenta-se pelas
manifestações, pelo “Fora Bolsonaro”, pelos pedidos de
impeachment. As manifestações da multidão evidenciam a
transgrediência, a utopia de relações outras, não fundadas na
opressão, no medo e ausência de democracia. A política não é
natural, antes ela é um desvio só possível por um corpo grotesco,
por uma carnavalização da vida.

Referências

BAKHTIN, M. A Cultura popular na idade média e no


renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec,
2010.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem – problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
6aed. São Paulo: Hucitec, 2006.
MOURA, M.; CORBELLINI, J. A eleição disruptiva: Por que
Bolsonaro venceu. 2º ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.
PUBLICA, agência de jornalismo investigativo. Os pedidos de
impeachment de Bolsonaro. Disponível em:
https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/. Acesso em 12 jun.
2021.

1779
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SODRÉ, M. e PAIVA, R. O império do grotesco. Rio de Janeiro:


MAUAD, 2004.
VANDRÉ, G. AZEVEDO, G. Canção da Despedida. 1968. Álbum
O grande Encontro, 1996.

1780
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A recusa do corpo deficiente em espaços públicos:


cassação da voz

Lidia Ferreira

No início do mês de agosto, o Ministro da Educação, Milton


Ribeiro, foi entrevistado no programa Sem Censura, veiculado pela
TV Brasil. Dentre tantos despropósitos característicos do governo
genocida a que estamos, brasileiras e brasileiros, submetidos, o
ministro verbalizou alguns que viralizaram, e dão conta, com
clareza, da violência que preside a concepção de educação posta em
prática por este governo.
Gostaria de refletir a respeito de uma fala específica do ministro
nesse programa, em que ele trata do direito à educação de pessoas
com deficiência. A exposição do ministro:

No passado, primeiro, não se falava em atenção ao deficiente.


Simples assim. Eles fiquem aí e nós vamos viver a nossa vida aqui.
Aí depois esse foi um programa que caiu para um outro extremo,
o inclusivismo. O que é o inclusivismo? A criança com deficiência
era colocada dentro de uma sala de alunos sem deficiência. Ela
não aprendia. Ela atrapalhava – entre aspas, essa palavra falo com
muito cuidado – ela atrapalhava o aprendizado dos outros
porque a professora não tinha equipe, não tinha conhecimento
para dar a ela atenção especial. E assim foi. Eu ouvi a pretensão
dessa secretaria e faço alguma coisa diferente para a escola
pública. Eu monto sala com recursos e deixo a opção de matrícula
da criança com deficiência à família e aos pais. Tiro do governo e
deixo com os pais. (CARDIM, 2021)

A pergunta da jornalista, que fazia a mediação da entrevista,


versava sobre a educação das pessoas com deficiência, mais
especificamente, as crianças. Ao que tudo indica, a pergunta tem
como motivação a pendenga instaurada pelo Decreto 10502/2020,
publicado pela Presidência da República, em 30/09/2020, que

1781
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

institui nova política de educação especial no país: vários grupos se


posicionaram contrariamente a mudanças propostas pelo decreto,
considerando que este retomava uma política segregadora na
educação com a implantação de escolas e classes especiais para
pessoas com deficiência. Em dezembro de 2020, o Supremo
Tribunal Federal (STF), atendendo a uma ação de
inconstitucionalidade apresentada pelo Partido Socialista
Brasileiro (PSB), concedeu liminar suspendendo a eficácia do
decreto, que, agora, aguarda decisão definitiva do Tribunal.
Inclusive, nos dias 23 e 24/08/2021, aconteceu uma Audiência
Pública no STF, quando foram ouvidas pessoas que se colocavam
contra e a favor do decreto.
Dias depois da entrevista na TV Brasil, diante da repercussão desta
declaração, depois de participar de um evento público, o ministro
é questionado pelos jornalistas e esclarece – ou tenta esclarecer:

Quando eu falei atrapalham, deixa eu explicar pra vocês. Nós


temos, hoje, 1,3 milhão de crianças com deficiência que
estudam nas escolas públicas. Desse total, 12% têm um grau
de deficiência que é impossível a convivência. O que o nosso
governo fez: ao invés de simplesmente jogá-los dentro de uma
sala de aula, pelo 'inclusivismo', nós estamos criando salas
especiais para que essas crianças possam receber o tratamento
que merecem e precisam. (CESÁRIO, 2021)

A primeira manifestação do ministro traz um sem número de


assuntos que poderíamos tratar a respeito da educação de pessoas
com deficiência e sua concepção de educação. Mas me aterei ao que
destaquei nos dois momentos em que ele é instado a tratar do
assunto. Ela não aprendia. Ela atrapalhava o aprendizado dos outros.
12% têm um grau de deficiência que é impossível a convivência.
Na visão do ministro, a escola, espaço público de efetivação de um
direito fundamental, não é lugar de todos. Os portadores de
deficiência não aprendem, atrapalham o aprendizado dos outros;
alguns, inclusive, são de difícil convivência e precisam de espaços

1782
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

específicos para receberem tratamento. Os vocábulos selecionados


pelo ministro não são um acaso ou uma escolha infeliz, antes, são o
retrato mais fiel de um governo que segrega aqueles corpos que não
atendem a um determinado ideal. Esses corpos carregam
justamente aquilo que se pretende aniquilar: a possibilidade de
todos serem livremente, de serem fora da normativização.
Ao interditarem corpos deficientes, interditam sua palavra
também. Interditam a constituição do sujeito, coisificam porque
creem apenas na existência a partir de corpos modelares: corpos
‘que não são normais, mas padrões social e historicamente
impostos como o normal’ (SOBRAL; GIACOMELLI, 2020, pág. 16).
Ao apartar esses corpos do convívio social mais amplo, impedem
que corpos normais59 sejam reconhecidos como legítimos corpos
humanos: deslegitimam sua palavra, seu corpo, sua subjetividade.
O corpo idealizado como normal é refratário às relações humanas,
é objetificado, não constitui relação dialógica: é impermeável,
imutável, perfeito; autoritário, se impõe. Está concluído. Nada
concede, também nada recebe. Invisibiliza a diferença. Está morto.
Não participará da grande festa da renovação. Por isso, corpo
deficiente é o outro a ser apagado porque lembra ao corpo perfeito
que somos seres em devir.
Existem outras possibilidades de ser no mundo humano - do
húmus, essencial para a vida humana neste planeta, matéria
orgânica dinâmica, que se renova constantemente e nutre a terra do
planeta permitindo a renovação daquilo que já foi. O corpo
humano é o corpo grotesco: ‘está em constante processo de evolução

59 59 A grande maioria das pessoas tem um corpo que se enquadra no que aqui

caracterizamos como normal, ou comum, não moldado repressivamente de


acordo com o que desejam as estéticas, aéticas, normativizantes. Corpo normal é
o corpo típico da realidade da maioria das pessoas que não dispõe de vontade nem
de outros recursos para se dedicar especificamente ao corpo em termos de adaptá-
lo ao que essas estéticas consideram “normal”. (SOBRAL; GIACOMELLI,
2020)

1783
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

e renovação’ (TEIXEIRA, 2019). Corpo que gera e regenera, vivo, em


constante mutação, trocas, doações.

O corpo deficiente é um corpo vivo que ensina e que aprende

A fala do ministro suscitou muitas manifestações contrárias ao


pensamento que ele representa e defende a respeito da vida.
Entidades da sociedade civil organizada, parlamentares,
associações de mães, pais e pessoas com deficiência, e todos aqueles
que consideraram as declarações do ministro equivocada,
preconceituosa, eugenista, violenta, se posicionaram nos veículos
possíveis. As redes sociais foram importante lócus dessas
manifestações e do engajamento de pessoas que, no mínimo, se
solidarizaram diante do ataque que as falas do ministro
representou.
As falas do ministro revelam uma compreensão rigorosamente
equivocada do que sejam pessoas com deficiência: é sempre o olhar
da falta. Sua fala, dentre outras coisas, revela, também, sua própria
limitação no que concerne ao que seja o corpo do sujeito humano,
deficiente ou não.
A presença do corpo deficiente no espaço público pode ser
compreendida como a presença de corpos normais, comuns,
diversos, no cotidiano. Um corpo em devir: inconcluso, aberto,
permeável, contraditório, incoerente, que se degrada, que renasce,
se renova e renova o outro. É um corpo humano, demasiadamente
humano. Húmus sobre a terra/Terra. E, porque apostamos no
discurso pluriversal, tratamos, agora, de outro discurso a respeito
da pessoa com deficiência; na verdade, de uma percepção outra que
concebe a vida de outro modo.
Para isso, trago Andréa Werner, mãe de Theo, um adolescente
autista, não oralizado, sobre quem podemos ter notícias e
acompanhar seu desenvolvimento por meio das redes sociais de
Andréa. Ela é hoje um nome importante na luta pelo
reconhecimento do corpo deficiente como um corpo normal: que se
expressa, se comunica, sente desejos, tem necessidades, ensina,

1784
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

aprende, se relaciona. O corpo deficiente é um ser expressivo e


falante.
Trago também Theo, esse sujeito constituído por um corpo normal,
autista, que na interação com aqueles que compreendem esse ser
em sua integridade, avança pela vida. Vai à escola, tem vida
pública, no Carnaval de 2020 participou de um baile de carnaval
inclusivo, com muitas pessoas com e sem deficiência. Theo não está
sendo preparado para a vida: ele está vivendo a única vida que tem,
cada evento irrepetível dessa vida com a intensidade de sua
singularidade, como todos os seres humanos.
A relação de Andréa com Theo alargou sua experiência: ‘graças à
existência dele, compreendi a diversidade humana, rompi bolhas,
me politizei.’. As relações de ambos os constituem, um é o outro do
outro. A relação de Theo e Andréa tem alterado outras pessoas,
sujeitos em devir, em processo de transformação, que
compreendem que os corpos são possibilidades estéticas e que as
diferenças não são um mal. Uma seguidora de Andréa no Twitter
fala: ‘comecei a acompanhar vocês, após meu sobrinho ser
diagnosticado com autismo. Encontrei em você e Theo uma certeza
que tudo ficaria bem’. A seguidora não fala de um sentimento de
esperança de que tudo dará certo, mas se refere a como a
experiência e as vivências de Theo e Andréa dão notícias de que há
uma vida a ser vivida.
Perguntada em uma entrevista sobre por que é fundamental que as
crianças com deficiência frequentem a escola regular, Andréa
responde:

Nunca teremos uma sociedade mais inclusiva, que abrace a


diversidade, se não convivermos com pessoas com deficiência
desde cedo. Se desde o berçário pudermos conviver com uma
criança autista, outra sem braço, uma criança cega, tenho
certeza absoluta de que a realidade será outra. O diagnóstico
de um filho ou filha com deficiência seria recebido pelas mães
de outra maneira. Quando recebi o diagnóstico do Theo, foi
um sofrimento enorme. Sentia que estava sendo castigada pelo

1785
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

universo. Hoje sei que parte desse sentimento é impossível


extirpar. É a preocupação da mãe com o futuro do filho, não
tem jeito. Você pensa: “Não quero morrer antes dele”.
Qualquer mãe sofre. Mas é possível acabarmos com o
capacitismo, ou seja, o preconceito com a deficiência. E eu
tinha muito preconceito porque desconhecia a deficiência
como parte da diversidade humana. (PICCOLO, 2021)

A compreensão de que a deficiência é parte da diversidade humana


liga-se à exterioridade, ao movimento, ao dinamismo, à
inconclusibilidade do corpo, do sujeito imperfeito porque vivo e
em intensa relação com o outro. A diferença é parte da condição
humana, sem a qual a espécie perece. Corpos diversos não são
corpos divergentes, ao contrário. Divergentes são corpos artificiais
ou simulacros de corpos, sobre os quais ‘a normatividade se impõe
e cria não só uma indústria de cuidados, mas obsessões, neuroses,
depressões e todo outro tipo de perturbações em muitos que não
conseguem produzir para si o corpo modelar que acham que
devem ter’ (SOBRAL; GIACOMELLI, 2020, págs. 16-17)
Ao falar sobre barreiras na vida de pessoas com deficiência, Andrea
afirma que

As principais barreiras são as barreiras que a própria


sociedade coloca. A pessoa cadeirante não consegue entrar em
um prédio com escadas não porque ela é cadeirante, mas
porque não tem elevador. A deficiência muitas vezes está no
meio, não na pessoa. As pessoas com deficiência podem e
devem ter acesso a todos os lugares. E ouvi-las para a
construção dessa sociedade é o mais importante. (PICCOLO,
2021)

Transitar é parte do direito dos corpos livres, de corpos que têm


sua existência respeitada e garantida. A circulação do corpo é
também garantia da circulação da palavra de todos, de que todos
serão ouvidos. O corpo invisibilizado carece do outro, ente
fundante do eu e da expressividade desse sujeito. Um meio que

1786
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

repele, segrega, renega o diálogo, rejeita e invisibiliza o corpo,


portanto, o sujeito. Desconsidera que diversas são as formas de
existir, de ser normal. Assim, a sociedade deve considerar todos os
corpos ao planejar espaços públicos – e privados! –, pois só assim
garantirá o desenvolvimento pleno de todos, e não apenas das
pessoas com deficiência.
Os corpos deficientes são corpos normais, comuns. Quando se cria
espaços especiais para pessoas com deficiência, restringe-se as
possibilidades de todos serem plenamente: os sujeitos têm suas
possibilidades de constituição reprimidas. Ampliar as
possibilidades de constituição dos sujeitos é dever ético, é apontar
para um horizonte de possibilidades, de sentidos possíveis a serem
realizados nesse corpo único na precariedade da vida.
Para concluir, duas postagens em que Andréa partilha a
experiência que tiveram quando Theo tomou a vacina contra a
COVID-19, dando notícias da boniteza que foi a experiência:

1787
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Viva o SUS

BIBLIOGRAFIA

CARDIM, Maria Eduarda. Há crianças com "grau de deficiência


que é impossível a convivência", diz ministro. Correio
Braziliense. 19 de agosto de 2021. Educação.
https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/2021/08/4944
752-ha-criancas-com-grau-de-deficiencia-que-e-impossivel-a-
convivencia-diz-ministro.html
Acesso 23/08/2021
CESÁRIO, Lúciano. Ministro da Educação: crianças com
deficiência “atrapalham" outros estudantes. O Povo. 17 de agosto
de 2021. Política.
https://www.opovo.com.br/noticias/politica/2021/08/17/ministro-
da-educacao-criancas-com-deficiencia-atrapalham-outros-
estudantes.html Acesso 23/08/2021.
PICCOLO, Lívia. “Minha história mostra que a escola especial
não é a solução”. Itaú Social. 23 de agosto de 2021. Dez perguntas.
https://www.itausocial.org.br/noticias/minha-historia-mostra-
que-a-escola-especial-nao-e-a-solucao/ Acesso em 25/05/2021

1788
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

SOBRA, Adail; GIACOMELLI, Karina. Corpo, palavra, sujeitos:


quando a constituição do eu pelo outro é cruel. In: CRISTÓVÃO,
A.; BUBNOVA, T.; RICHARTZ, T. (Orgs) Corpo, tempo e espaço.
Franca, SP: Unifran, 2020.
TEIXEIRA, M. D. Considerações sobre o corpo em Mikhail Bakhtin.
Voluntas, Santa Maria, v. 10, n. 1, p. 46-52, jan./abr. 2019.

1789
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

TEXTOS DA ARENA

1790
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O corpo grotesco bakhtiniano, a pandemia,


Crime e Castigo de Dostoiévski e o Humano hoje

Augusto Ponzio

Inicio considerando que as referências às obras de Bakhtin às


quais me referirei nessa minha conversa consistem, além da sua
obra sobre Rabelais, na coletânea de suas obras e daquelas do
círculo bakhtiniano, Opere 1919-1930 (2012), organizada por mim
em colaboração com Luciano Ponzio, com o texto russo na frente;
2008 Em Diálogo. Conversas de 1973 com Viktor Duvákin, “O símbolo
e o encontro com o outro na obra de Bakhtin”, Pedro & João, 2008,
2a ed. 2012; Para uma filosofia do ato responsável, 1920-24, Pedro &
João Editores, 2010; Palavra própria e palavra outra na sintaxe da
enunciação, Pedro & João Editores, 2011; e à nova edição deste ano,
2021, do meu livro A revolução bakhtiniana (2008), Contexto.

É importante fazer referência à biografia de Bakhtin, para


compreender a sua obra e em particular a sua concepção de
“grotesco”, ligada à sua monografia sobre Rabelais (1965).

Desde a sua mudança para Nevel em 1918 e, portanto, desde a


formação de seu “círculo filosófico” depois denominado “escola de
filosofia de Nevel”, o trabalho de estudo e de pesquisa de Bakhtin
se trança com aquele de alguns de seus colaboradores e amigos
daquele grupo que será indicado como “círculo de Bakhtin”, até o
ponto de não poder ser claramente distinto desse, quase na
confirmação da sua tese do caráter “semi-alheio” da “palavra
própria” e a despeito dos críticos que se obstinam a estabelecer
propriedades e paternidades.

1791
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Em Nevel, em 1919, entrou em relação com Valentin N.


Volóchinov (1895-1936), com o filósofo Matvei I. Kagan (1889-
1937), com o filósofo e crítico literário Lev V. Pumpianski (1891-
1940), e com a pianista Maria V. Iudina (1899-1970), com os quais
estabeleceu uma relação estreita de colaboração e de amizade. A
esses se juntou logo Pavel N. Medviédev (1892-1938), que Bakhtin
conheceu em Vítebsk, para onde se mudou em 1920. Em 1921
esposou Elena Aleksandrovna Okolovich, que permaneceu junto a
ele até 1971, ano da morte dela. Adoeceu de osteomielite crônica,
que o tornou gravemente inválido por toda a vida, mudou-se para
Leningrado (São Petersburgo), onde foi formado o conhecido
“grupo”, ou “círculo de Bakhtin”, constituído, entre outros e além
de Volóchinov e Medviédev, pelo biólogo Ivanov I. Kanaev (1893-
1984), pelo músico Ivan I. Sollertinski (1902-1944), pelo escritor
Konstantin K. Vaginov (1899-1949), pelo poeta Boris M. Zubakin
(1894-1938), e pelo estudioso da Índia Michail I. Tubianski.

Em 1928 Bakhtin foi preso por causa da sua participação no


círculo religioso-filosófico “Voskresenie”, dirigido por Alexander
A. Meyer, e depois do julgamento do processo, em 1930, foi
mandado ao exílio em Kostanai no Kazaquistão.
Em 1929 é lançado o seu primeiro livro, a monografia sobre
Dostoiévski. Depois desse livro Bakhtin não pôde publicar mais
nada até 1963, ano da segunda edição desse mesmo livro. Mas – e
isso é verdadeiramente notável – Bakhtin continuou a escrever, a
escrever muitíssimo, realizando também um trabalho de
aprofundamento e ampliação da sua obra de 1929, tendo como
resultado a sua segunda edição de 1963.
Nunca encontramos nesses escritos uma crítica direta em
relação ao regime que o obriga ao isolamento. O pensamento de
Bakhtin, ainda que fortemente contextualizado na
contemporaneidade, não permanece fechado nos limites da
contemporaneidade. Ele é sempre “transgrediente”, para usar uma
expressão sua, localizado sim, mas capaz de extralocalização.
Como ele diz do texto literário, também o seu texto – toda a sua

1792
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

obra – enquanto filosófico (“Fui e sou um filósofo”, ele declara nas


suas conversas de 1974 com Victor Duvákin) está situado em um
“tempo grande”, e não no tempo pequeno da contemporaneidade.
No período do stalinismo, Bakhtin foi banido da cultura
oficial. Preso durante os primeiros expurgos stalinistas por
“participação em organização anti-soviética”, isto é, como
dissemos, em atividades do círculo religioso-filosófico
“Voskresenie”, foi confinado em Kostanai, entre a Sibéria e o
Kazaquistão, depois em Saransk, na Mordovia de 1936. Em
Kostanai no Kazaquistão, Bakhtin conta, o clima era terrível. A ele
foi dado o trabalho de contador na cooperativa distrital de
consumo de Kostanai. Em 1938 sofreu a amputação de uma perna,
por causa de sua doença, a osteomielite.
Deve ser dito que a orientação de Bakhtin é fundamentalmente
religiosa, não porque ligada a uma fé particular, ou porque entre os
temas de suas conferências juvenis encontramos também aquela de
“Deus e o socialismo”. O pensamento bakhtiniano é
constitutivamente religioso enquanto dialógico, polilógico, se
“religião” vem de “religo”, ligar, colocar em relação: uma
dialogicidade não abstrata, mas estreitamente envolvida com a
corporeidade, enquanto feita não meramente de ideias (como
aquela de Platão), mas de vozes, uma dialogicidade que é também
intercorporeidade, como mostrará no seu livro de 1965 sobre
Rabelais (no qual trabalha nos anos do exílio), onde contrapõe o
“corpo grotesco” da cultura carnavalizada popular ao corpo
ilusoriamente individualizado e isolado da ideologia dominante na
contemporaneidade.
Em Saransk ensinou na escola, de 1945 a 1969. Em 1946
defendeu, junto ao Instituto de literatura mundial Górki de
Moscou, a tese com o título Rable v istorii realizma (Rabelais na história
do realismo), mas não obteve a livre docência. Foi concedido a ele
residir em Moscou somente em 1971. No mesmo ano da sua morte
(1975) foi publicada uma ampla coletânea dos seus escritos, seguida
de uma segunda, também ampla, em 1979.

1793
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Devido à repressão stalinista, em vida Mikhail Bakhtin (1895-


1975) publicou somente em 1919 um breve, mas importante artigo,
poderíamos dizer o seu “manifesto”, intitulado “Arte e
responsabilidade”; em 1929 a monografia Problemas da obra de
Dostoiévski; em 1929 e em 1930 as introduções aos volumes XI e XIII
das Obras escolhidas de Tolstói; depois, em 1963, Problemas da poética
de Dostoiévski; e em 1965 a obra Cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais, reelaboração da
dissertação Rabelais na história do realismo, apresentada em 1941 ao
Instituto Górki de Moscou e defendida, como já disse, em 1946 (o
capítulo sobre Rabelais e Gógol, omitido em Bakhtin (1965), foi
publicado em versão ampliada em Kontekst 1972, e depois na
coletânea de 1975. A isso devem ser acrescidas as publicações
(parciais) entre a segunda metade dos anos 1960 e a primeira
metade dos anos 1970 de textos escritos nos anos 1920-40, e a
“Resposta a uma pergunta da revista Novi mir” (1970).

Pensem que a única publicação entre 1929 e 1963, isto é, entre


a primeira e a segunda edição da sua monografia sobre Dostoiévski
foi “Experiências extraídas do estudo das necessidades das
empresas coletivas”, na revista Sovetskaja torgovlja [O comércio
soviético], 3, 1934, prestando contas do seu trabalho de contador na
cooperativa distrital de Kostanai no Kazaquistão, onde estava
confinado!
Deve também ser acrescentado o ensaio de 1926, “O vitalismo
contemporâneo”, que apareceu com o nome do biólogo Ivan I.
Kanaev em uma revista russa de biologia: temos a explícita
declaração, por parte do próprio Kanaev, feita a Sergei G.
Bocharóv, um dos organizadores das obras de Bakhtin, da
“pertença” a Bakhtin desse ensaio.
O uso do adjetivo “bakhtiniano” – círculo bakhtiniano, obras
bakhtinianas –, mesmo como a expressão “círculo de Bakhtin” vai-
se afirmando quando Bakhtin, depois de várias décadas de
esquecimento, retorna a ser notado, ainda em vida, e os seus
escritos começam a serem conhecidos em nível internacional. O

1794
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

desaparecimento, nos anos 1930, de Volóchinov (por tuberculose)


e de Medviédev (preso em Leningrado, é fuzilado em 17 de julho
de 1938) contribuiu certamente para a dependência da própria
reedição das suas obras nos anos 1970 pela notoriedade de Bakhtin,
enquanto “obras bakhtinianas”, e enquanto aqueles autores faziam
parte do “círculo de Bakhtin”.
Mas deve ser dito que se a expressão “círculo de Bakhtin” tem
um sentido efetivo, é porque entre Bakhtin e os seus amigos e
colaboradores a palavra “circulava” como palavra semi-alheia. E
quando, a partir da repressão stalinista se desfaz o “círculo”,
morrem Medviédev e Volóchinov, e Bakhtin é confinado primeiro
no Kazaquistão e depois na Mordóvia, as vozes desses autores, em
um diálogo ininterrupto, continuam a se fazer ouvir na obstinada
continuidade da sua pesquisa até 1975, ano da sua morte. A escuta
das vozes, de Volóchinov e de Medviédev, como também de
Pumpianski, de Kagan, de Iudina, de Boris M. Zubakin, do músico
Ivan I. Sollertinski, do poeta Kostantin Vaginov, por quanto
autônomas, independentes, singulares, sui generis elas ressoem,
acontecem no texto do autor Bakhtin, a partir desse, no contexto do
“círculo de Bakhtin”, como vozes do ininterrupto diálogo
bakhtiniano, mesmo quando sejam outros autores (os críticos de
Bakhtin) a reportá-las e a evidenciar a sua originalidade e a sua
diferença específica. Nesse sentido “bakhtiniano” é o texto no qual
esses se apresentam inevitavelmente hoje, texto polifônico, no qual
as vozes, compreendida aquela do autor Bakhtin, interagem entre
si, ressonando em uma mesma voz.

Separar essas vozes e considerá-las separadamente uma da


outra significa fazer a mesma coisa que foi feita em relação às vozes
da polifonia de Dostoiévski: Bakhtin, na segunda edição da
monografia sobre Dostoiévski (1963) fala, nesse sentido, de
“dostoievskismo”. Se fizermos essa mesma operação em relação à
polifonia do “círculo bakhtiniano”, com o nobre propósito de
restituir cada obra ao seu “verdadeiro autor”, se separam e

1795
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

circunscrevem as vozes, atribuindo a elas uma falsa identidade,


porque separadas da sua efetiva e constitutiva alteridade.

No livro intitulado A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais, publicado em 1965,
retorna a análise da relação entre “ideologia oficial” e ideologia não
oficial”, teorizada já seja no Freudismo, seja em Marxismo e filosofia
da linguagem, os dois livros de Volóchinov, de 1927 e de 1929,
respectivamente (em tradução italiana com texto russo a frente em
Bachtin e il suo Circolo, 2014).
Tal análise se aprofunda em relação ao mundo medieval, à
“Idade Média bakhtiniana”, como volta a evidenciar nela o
contraste entre ‘duas culturas’, a cultura popular e a cultura oficial.
Sobretudo na cultura popular cômica, tal contraste e tal passagem
encontram as próprias bases. É interessante que Bakhtin intitule
originariamente o seu trabalho sobre Rabelais Rable v Istorii realizma
[Rabelais na história do realismo]: a visão da cultura popular é a visão
realista, em contraposição àquela idealizada, ilusória, distorcida da
cultura oficial.
O interesse de Bakhtin está diretamente dirigido à “grande
linha fundamental do contraste de duas Culturas”, a cultura
popular e a cultura oficial. Hoje tal contraste, ou mesmo simples
diferença, não existe mais, dada a homologação que a ideologia
dominante envolve, e da qual é uma expressão bastante evidente o
consumismo, e também aquilo que Italo Calvino, em suas Lezioni
americane [Seis propostas para o próximo milênio] de 1978 chama a
peste da linguagem: um tipo de epidemia que torna o falar, e por
consequência o pensar, achatado, privado de expressividade, de
inovação, originalidade, manifestação das “próprias ideias”, dos
próprios interesses, desejos, projetos; uma pestilência cujos únicos
anticorpos, diz Italo Calvino, podem ser oferecidos pela escritura
literária.
No Rabelais de Bakhtin, o sistema das imagens rabelaisianas é
apresentado como lugar de coleta e unificação dos conteúdos e das
formas dos ritos e dos espetáculos do tipo cômico difundidos por

1796
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

todos os países da Europa medieval e do Renascimento, mas


particularmente ricas nos países românicos e sobretudo na França.
Bakhtin examina a cultura cômica medieval como ideologia
deliberadamente não oficial, externa às ideologias oficiais, como
visão de mundo dissidente, ainda mais, como um “segundo
mundo” e uma “segunda Vida”, edificados junto àqueles oficiais.
Se não tomamos em consideração esse tipo de dualidade do
mundo, diz Bakhtin, não é possível compreender nem a consciência
cultural da Idade Média, nem a civilização do Renascimento.
O termo Idade Média indica o preconceito segundo o qual o
humanismo e o Renascimento consistem em um tipo de superação
da era que estaria no meio, entre a cultura grega e latina e aquela,
justamente, “humanística-renascimental”. A respeito disso é
particularmente interessante quando Bakhtin observa, a proposto
da conhecida obra de Konrad Burdach, Reforma, Renascimento,
Humanismo:

Naturalmente, Burdach tem razão quando se recusa a explicar a origem


do Renascimento sobre a base de fontes eruditas e livrescas, de
pesquisas ideológicas individuais, de “esforços intelectuais”. Tem
razão quando afirma que o Renascimento foi preparado no curso de
toda a Idade Média (e em particular a partir do século XII). E tem razão,
por fim, ao sustentar que a palavra ‘renascimento’ não designava de
fato um ‘renascimento das ciências e das artes da antiguidade, mas
sustentava uma configuração semântica vastíssima e plurívoca,
enraizada nos estratos mais profundos do pensamento próprio do
espetáculo ritual, da imaginação poética e da ideação intelectual da
humanidade. Mas Burdach não tomou em consideração nem
compreendeu a esfera na qual era predominante a ideia imagem do
renascimento, isto é, a cultura cômica popular da Idade Média. O desejo
de renovação e de um novo nascimento, a “sede de uma nova
juventude” impregnaram a percepção carnavalesca do mundo e
encontraram múltiplas realizações nas formas concretas e sensíveis da
cultura popular (espetáculos, ritos e formas verbais). Nisso consistia a
segunda vida festiva da Idade Média (Bachtin, L’opera di Rabelais Torino,
Einaudi, 1965, p. 66, cursivos do autor).

1797
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A cultura popular medieval encontra a sua expressão nos ritos


e nos espetáculos carnavalescos, os quais não só se afastam
totalmente dos ritos religiosos e se libertam com sua comicidade
dos ritos “sérios”, do dogmatismo e do misticismo religioso, mas
são frequentemente uma verdadeira e própria paródia deles. No
carnaval medieval se expressa a ideologia inovadora,
transformadora, orientada em direção ao futuro, seja como triunfo
de um tipo de liberação provisória da verdade dominante e do
regime existente, seja como abolição provisória de todas as relações
hierárquicas, dos privilégios. Bakhtin “lê” a oposição entre a festa
oficial e a festa não oficial nos signos, verbais e não verbais, que a
caracterizam: roupas, insígnias, disposição espacial, vocabulário,
gesto etc.
A festa oficial se serve dos diversos sistemas sígnicos, do
vestuário à posição espacial, para reafirmar e relevar as distinções
hierárquicas e as distâncias sociais, enquanto todas as formas de
comunicação do carnaval objetivam à subversão da ordem
constituída, à eliminação das hierarquias, à realização de relações
de igualdade. A esse respeito, Bakhtin observa que as formas de
espetáculo carnavalesco, ainda que se aproximem ao espetáculo
teatral, distinguem-se desse justamente porque naquele não
subsiste a distinção entre “atores” e “espectadores”, como não
subsiste nenhuma delimitação espacial do palco no qual se
desenvolve o espetáculo. As formas de comunicação das quais a
festa popular medieval se vale são adequadas à sua visão de
mundo, ao seu sentido de relatividade, do devir, da transformação,
da provisoriedade, da igualdade, da liberdade, da atitude refratária
em relação a tudo que se apresenta como definitivo, já realizado,
eterno, absoluto.
Por isso as formas específicas de comunicação da visão
carnavalesca do mundo têm, em contraste com as formas da
comunicação oficial medieval, uma tendência decididamente
desalienante, até mesmo na forma da utopia. Utopia que, porém,
não permanece a nível da simples imaginação, mas encontra,
mesmo que de maneira provisória, modos de realização efetiva.

1798
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Bakhtin não se limita somente a identificar as diferenças entre


a cultura cômica medieval e as formas da ideologia oficial da
própria Idade Média, mas busca determinar as características
específicas dessas formas culturais não oficiais, considerando-as
também em relação à cultura burguesa. Assim ele analisa o realismo
grotesco do sistema das imagens da cultura cômica popular da
Idade Média, considerando-o seja em relação ao realismo do
Renascimento, seja a respeito do realismo moderno. Como também
mostra o contraste existente entre a paródia popular medieval e a
paródia literária formal da época moderna.
Particularmente interessante é o papel que, sobre a visão
carnavalesca encontrada não só na Idade Média, mas também em
culturas diversas e distantes entre si, desenvolve o corpo grotesco.
O corpo grotesco, o corpo do realismo grotesco é um corpo não
delimitado, não fechado, nem separado ou completo; ele é visto em
um processo de construção e de criação que o liga a outros corpos
e ao mundo.
A própria filosofia humanista, particularmente com Pico della
Mirandola, Pomponazzi, Telesio, Bruno, Campanella, Paracelso
etc. se ressente, afirma Bakhtin, da concepção do corpo grotesco.
A linguagem popular do corpo grotesco é rica de termos e de
expressões que evidenciam a ligação do corpo com os outros corpos
e entre o corpo e o mundo: não só entre os corpos humanos, mas
também com o mundo animal e vegetal, com toda a natureza. A
linguagem do corpo grotesco, observa Bakhtin, se refere sempre
não a um corpo individual e isolado, mas ao corpo em suas relações
com outros corpos.
A linguagem do corpo grotesco e o carnavalesco se encontram
em todos os povos e em todas as épocas.
Junto a essa visão do corpo, mais recentemente foi-se
formando uma outra visão desse, que considera o corpo como
plenamente realizado, já dado, rigorosamente delimitado, isolado,
estável, individual.

1799
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

O corpo do novo cânone é um corpo único e isolado, não tem


mais nenhum traço de interconexão e de interrelação com os outros
corpos: basta a si mesmo e fala só por si mesmo; tudo aquilo que
lhe sucede diz respeito somente a ele, isto é, somente esse corpo
individual e fechado em si mesmo.
Em relação à ideologia oficial funcional à manutenção da
ordem constituída, das hierarquias sociais e do poder dominante, a
concepção do “corpo grotesco” apresenta também uma maior
potencialidade crítica, uma maior disposição em direção ao debate,
à pesquisa, à desmistificação, ao conhecimento científico. Isso é
evidenciado por Bakhtin, identificando uma relação de conexão
entre a cultura cômica popular da Idade Média e a nova ciência
experimental do Renascimento.
A mundialização da produção capitalista, com a consequente
inserção controlada dos corpos no aparato de produção e com a
propagação da ideia de indivíduo como entidade separada e
autossuficiente envolveu o quase total desaparecimento de práticas
culturas e visões de mundo baseadas sobre o pressuposto da
intercorporeidade, da interdependência, da exposição e da abertura
do corpo. São, atualmente, quase totalmente extintas as formas de
percepção do corpo da cultura popular, das quais fala Bakhtin no
Dostoievski (1963) e no Rabelais (1965), as formas do “realismo
grotesco” que apresenta o corpo como não definido, não confinado em
si mesmo, mas em uma relação de simbiose com os outros corpos e de
transformação e renovação que ultrapassa os limites da vida
individual.
E todavia as tecnologias da separação dos corpos humanos e dos
interesses e da vida de sujeitos individuais e coletivos, funcional à
produção e à sempre maior conexão, até o limite da identificação, de
produção e comunicação, característica da atual forma de produção,
não conseguem eliminar os signos do compromisso de cada instante
de nossa vida individual com toda a vida do nosso planeta. O
reconhecimento desse compromisso é tanto mais urgente quando
mais as razões da produção e da comunicação funcional a essa nos
impõem condições ecológicas nas quais a comunicação entre o nosso
corpo e o ambiente é tornada sempre mais difícil e mais distorcida.

1800
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Portanto, poderíamos imediatamente indicar o corpo de cada


um, na sua constitutiva intercorporeidade, como o termo central de
uma discussão da ilusória autonomia identitária. Trata‐se do corpo na
sua singularidade, irrepetibilidade, infuncionalidade, que tem na
morte, como fim inconcludente, a expressão da sua excedência em
relação a qualquer projeto, história, a qualquer escolha “autêntica”: o
corpo vivo que sabe antes de ser sabido, que sente antes de ser sentido,
que vive antes de ser vivido. Esse corpo é, sem solução de
continuidade, ligado com os outros corpos, implicado, envolvido na
vida total do ecossistema do planeta Terra, em um emaranhamento
que nenhuma tecnologia poderia, por si, conseguir e encontrar uma
saída.
O corpo vivo, mais do que aquele vivido, é refratário às
“tecnologias do eu” e à “tecnologia política do indivíduo”. O corpo
é outro em relação ao sujeito, à consciência, à memória domesticada,
selecionada, filtrada, acomodada; outro em relação à narração que
o sujeito individual ou coletivo construiu e com o qual delineou a
sua identidade, a sua imagem a ser exibida, o seu si do qual
interessar-se, a sua fisionomia com a qual se faz reconhecer, a sua
parte a recitar.
Se, nesse ponto, consideramos o itinerário inteiro de Bakhtin a
partir do artigo-manifesto “Para uma filosofia do ato responsável”,
passando pelas suas duas monografias, sobre Dostoiévski e sobre
Rabelais, podemos então dizer:
Bakhtin parte de uma refundação da filosofia, e encontra que
as exigências estabelecidas nos seus prolegômenos a uma filosofia
do ato responsável têm a sua efetiva possibilidade de realização na
relação com o “herói”, portanto na escritura literária, na medida em
que essa é mais ou menos capaz, de acordo com os gêneros e
subgêneros literários, de sair da dimensão da identidade e da
diferença-indiferença, e delinear, de um ponto de vista
participativo e não-indiferente, uma arquitetônica da alteridade.
Um itinerário esse que passa também através da pesquisa no
interior do círculo bakhtiniano (como resulta dos escritos
publicados em Bachtin, Kanaev, Medvedev, Vološinov, 1995, e em

1801
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Bachtin e il suo Circolo, 2014) e que, sobre a base do interesse inicial


por uma filosofia do ato responsável, chega, coerentemente, ao
interesse pela filosofia da escritura literária, onde da escritura
literária é genitivo subjetivo: não uma visão filosófica à qual
submeter tal escritura, mas a visão filosófica que essa, a arte verbal,
torna possível.
Mas o inteiro discurso que Bakhtin desenvolve na sua obra não
se deixa fechar entre os limites de ordem teórica, ainda que
criticamente fundados. A filosofia do ato responsável é
apresentada por Bakhtin como “filosofia moral”. E devemos
recordar que no escrito “programático” de 1919, Bakhtin escrevia:

Daquilo que vivi e compreendi na arte devo responder com toda


a minha vida, para que tudo aquilo que tenha sido vivido e
compreendido não permaneça, nessa, inativo (em Bachtin e il suo
Circolo, 2014, p. 29).

E o que daquilo que é vivido da arte, da arte verbal, não deve


ser esquecido, não deve permanecer inativo na vida? A resposta é
evidente, mesmo se não é fácil aceitá-la: a assunção do outro como
herói, a necessidade que também na vida de uma relação com o
outro, como aquela entre autor e herói e, portanto, entre leitor e
herói: o outro como “meu herói”, como o pode ser, graças a
Dostoiévski, mesmo o Raskolnikóv di Crime e Castigo ou o
Stavrogin de Os demônios.
Escreve Bakhtin em Para uma filosofia do ato responsável nas
páginas que precedem a análise da poesia de Púchkin (em Bachtin
e il suo Circolo, 2014, pp. 145-147):

Nesse sentido [a relação de antecipação do autor com seu herói


é um interesse desinteressado] pode-se falar de um amor
estético objetivo – mas sem atribuir a esta expressão um
significado psicológico passivo – entendendo-a como o
princípio da visão estética. A diversidade de valor do existir
enquanto humano (isto é, correlato com um ser humano) pode
apresentar-se somente à contemplação amorosa; somente o

1802
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

amor está em condição de afirmar e consolidar, sem perder e


sem desperdiçar, esta diversidade e multiplicidade, sem deixar
atrás apenas um esqueleto nu de linhas e momentos de sentido
fundamentais. Somente um amor desinteressado segundo o
princípio “não o amo porque é bonito, mas é bonito porque o
amo”, somente uma atenção amorosamente interessada, pode
desenvolver uma força muito intensa para abraçar e manter a
diversidade concreta do existir, sem empobrecê-lo e sem
esquematizá-lo.

O “humano” hoje, como se apresenta? A identidade é a


categoria dominante da razão ocidental. Essa se rege e se afirma na
base da indiferença em relação ao outro, ao diverso, ao não
pertencente. Se consideramos as nossas relações enquanto seres
humanos, todos podemos ser incluídos no grande todo do gênero
humano (e, todavia, mesmo em relação a isso, há sempre ‘outros’ que
são excluídos enquanto ‘desumanos’ – o que justifica tomadas de
posição, remédios e intervenções, aí compreendidas as conhecidas
‘guerras humanitárias’), mas, ao mesmo tempo, somos distintos em
outros todos, aqueles de gênero, de idade, de nação, de comunidade,
da língua, da religião, da etnia etc.
Mas é verdade justamente que aquilo que nos caracteriza como
vivos é a pertença a um todo, a um coletivo, a um grupo? Em relação
à unidade, à comunidade, à pertença, à identidade, as quais, apesar
da incomparabilidade e unicidade de cada um, nos tornam
intercambiáveis e nos unem em um mesmo conjunto, para Levinas há
um outro modo de ver as coisas. No lugar da pluralidade (o plural é
sempre o representar-se do mesmo) deve ser reconhecida a
multiplicidade e, com essa, a diversidade; ao invés da referência ao
indivíduo – que, como tal, entra sempre em um conjunto – o
reconhecimento da singularidade, da unicidade de cada um, da
irrepetibilidade, insubstituibilidade, não comunalidade, isto é, o
próprio ser fora do gênero, sui generis.
Mas, cuidado: a singularidade, a insubstituibilidade, a unicidade,
não é uma propriedade do sujeito em si mesmo (como considerava

1803
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Max Stirner in L’unico e la sua proprietà), mas a consequência de uma


responsabilidade não delegável de cada um em relação ao outro na
sua alteridade de outro. Por isso, ao invés de proximidade identitária,
de proximidade como vizinhança, Levinas fala de uma proximidade
sem seguro, sem limites, proximidade entre diversos, entre distantes.
A proximidade ao outro é responsabilidade pelo outro. Proximidade
significa a minha responsabilidade não delegável. É esta a minha
unicidade, o meu ser único, o único para o outro: o meu ser suporte
da carga pesada da alteridade.
A alteridade na exposição face a face, isto é, fora dos escafandros
identitários, dos coletes e de todas as pertenças, não é alteridade
relativa dos papéis, das funções, das tarefas, das diversas formas de
exercício do poder, das representações, dos álibis, não é alteridade
relativa, mas alteridade absoluta. “Se interpretamos a nossa vida toda
como representação”, diz Bakhtin em ‘Para uma filosofia do ato
responsável’, “nos tornamos impostores”.
A “paz preventiva” (é uma expressão de Emmanuel Levinas
(1906-1995), o outro junto a Mikhail Bakhtin, mestres de signos e
construtores de paz do século XX, e também ele, como Bakhtin, leitor
atento de Dostoiévski), a liberação do mundo da guerra, que não é
obtido fazendo guerra à guerra através da “guerra preventiva”, é o
reconhecimento da inevitável proximidade ao outro como inevitável
responsabilidade pelo outro.
Thomas Sebeok, com a sua concepção da semiótica como
semiótica global, mostrou tanto a identificação entre semiose e vida –
não há signos a não ser no mundo vivo, e não há vida sem signos – e
entre vida humana e ecossistema total. O bakhtiniano “corpo
grotesco” encontra sua validação não só por parte da semiótica global,
mas também por parte da biossemiótica, da virologia. A difusão
planetária do Covid-19 é sua prova terrível atual.
Da não-indiferença pelo outro à diferença e à relativa indiferença:
esse é o percurso através do qual a identidade se constitui e se delineia.
Por consequência, aquilo que nos diz respeito é progressivamente
reduzido àquilo que diz respeito aos interesses da identidade, e tal
redução encontra a própria justificação na condição da

1804
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

responsabilidade limitada garantida por álibis. Mas, quanto mais nos


liberamos da condição de “responsabilidade pelo outro”, tanto mais
aumenta, até a exasperação, “o medo do outro”. Hoje o medo do outro
é ao paroxismo. Se aproveitam disso a indústria bélica, a produção de
armas, e também armas individuais para a “defesa pessoal”.
Eis, portanto, a premonição por parte de Dostoiévski, em Crime e
castigo, a obra na qual o autor consegue fazer “enamorar” o leitor que,
portanto, lê até o fim a história de Raskolnikóv, um assassino (amar
o amável é fácil – se diz mais ou menos no “Evangelho de São João”
–, amar o odioso é certamente a coisa mais difícil para quem segue
o mandamento “ama o teu próximo”.

Raskolnikóv ficou no hospital todo o final da quaresma e a


semana da Paixão. Quando já estava restabelecido, recordou os
seus sonhos dos momentos em que estivera com febre e
delirando. Sonhou, durante a sua doença, que o mundo todo
estava condenado a ser vítima de uma terrível, inaudita e nunca
vista praga que, originária das profundidades da Ásia, cairia
sobre a Europa. Todos teriam que perecer, exceto uns tantos,
muito poucos, escolhidos. Surgira uma ova triquina, ser
microscópio que se introduzia no corpo das pessoas. Mas esses
parasitas eram espíritos dotados de inteligência e de vontade.
As pessoas que os apanhavam tornavam-se imediatamente
loucas. Mas que, nunca, nunca se consideraram os homens tão
inteligentes e perseverantes na verdade como se consideravam
estes que eram atacados pela moléstia. Nunca foram
considerados mais infalíveis nos seus dogmas, nas suas
conclusões científicas, nas suas convicções e crenças morais.
Aldeias inteiras, cidades e povos inteiros foram contagiados e
enlouqueceram. Todos estavam alarmados e não se entendiam
uns aos outros; todos pensavam ser os únicos senhores da
verdade, e só sofriam ao verem a dos outros e davam socos no
peito, choravam e ficavam de braços caídos. Não sabiam a quem
nem como julgar; não podiam por-se de acordo sobre o que fosse
bom e o que fosse mau. Não sabiam a quem inculpar nem a
quem justificar. Os homens agrediam-se mutuamente,

1805
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

impelidos por um ódio insensato. Armavam-se contra os outros


em exércitos inteiros: mas os exércitos, uma vez em marcha,
começavam de repente a destroçarem-se a si mesmos, as fileiras
desfaziam-se, os guerreiros lançavam-se uns contra os outros,
mordiam-se e devoravam-se entre si. Nas cidades passava-se o
dia inteiro tocando a rebate; todos eram chamados; mas quem
os chamava e para que os chamavam ninguém sabia e todos
andavam assustados. Abandonaram os ofícios mais
comezinhos, porque cada qual preconizava a sua ideia, os seus
métodos, e não podiam chegar a um acordo; a agricultura
também foi abandonada. Em alguns sítios, homens reuniam-se
em grupos, faziam certas combinações e juravam não se
zangarem... Mas começavam imediatamente a fazer outra coisa
completamente diferente da que acabaram de combinar,
punham-se a inculpar-se mutuamente, brigavam e degolavam-
se. Houve incêndios, fome. Tudo e todos se perderam. E essa tal
peste crescia e cada vez avançava mais. Somente alguns homens
conseguiram salvar-se em todo o mundo, homens puros e
escolhidos, destinados a dar início a uma nova linhagem
humana e a uma nova vida, a renovar e a purificar a terra, mas
ninguém via esses seres em parte alguma, ninguém ouvia a sua
palavra e a sua voz.

Tradução de Marisol Barenco

Referências bibliográficas

Bachtin, Mikhail
2008 Em Diálogo. Conversas de 1973 com Viktor Duvakin, intr. di A.
Ponzio, “O símbolo e o encontro com o outro na obra de
Bakhtin”, São Carlos, Pedro & João, 2a ed. 2012
2014 Opere 1919-1930, a cura di Augusto Ponzio in collab. con
Luciano Ponzio, testo russo a fronte. collana “Il pensiero
Occidentale” diretta da Giovanni Reale, Milano, Bompiani.

1806
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

2010 Para uma filosofia do ato responsável, 1920-24, intr. Augusto


Ponzio, “A concepção bakhtiniana do ato como um passo”,
São Carlos, Pedro & João Editores.
2011 Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação, introd. di
A. Ponzio, “Problemas da sintaxe para uma linguística da
escuta”, São Carlos, Pedro & João Editores
Petrilli, Susan
2013 Em outro lugar e de outro modo. Filosofia da linguagem, crítica
literária e teoria da tradução em, em torno e a partir de
Bakhtin, São Carlos, Pedro & João Editores.
Petrilli, Susan; Ponzio, Augusto, Sebeok, Thomas
2011 Thomas Sebeok e os Signos de Vida, São Carlos, Pedro e João
Editores.
Ponzio, Augusto
2010a Encontros de palavras. O outro no discurso, São Carlos, Pedro &
João Editores.
2010b Procurando uma palavra outra, São Carlos, Pedro & João
Editores.
2012a Dialogando sobre diálogo na perspectiva bakhtiniana, São Carlos,
Pedro & João Editores, 2a ed. 2016.
2012b Linguística Chomskyana e ideologia social, Curitiba, Editora UFPR
(Universidade Federal do Paraná, Brasil).
2013 No Círculo com Mikhail Bakhtin, São Carlos, Pedro & João
Editores
2015 Tra semiotica e letteratura, Introduzione a Michail Bachtin, Milano,
Bompiani 2003.
2021 (2008) A revolução bakhtiniana. São Paulo, Contexto.

1807
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

A PAISAGEM CULTURAL DA PANDEMIA


CENÁRIOS E GROTESCO

Pampa Olga Arán


Centro de Estudios Avanzados
Facultad de Ciencias Sociales, Universidad Nacional de
Córdoba
aranpampa@gmail.com

Tradução Nathan Bastos de Souza

Atravessamos e seguimos atravessando uma peste mundial


como não recorda nem sequer a memória das pessoas que, como
eu, tem uma longa vida. E essa situação repercutiu intensamente
no espaço público como território da liberdade regulada do
coletivo na qual o corpo adquire diferentes modos de encenação e
de contato com os outros corpos. É o que costumamos chamar de
“meio ambiente”, espaço que não integram somente os elementos
naturais e sociais que tornam a vida possível, mas também o
conjunto de fatores ou decisões que “mediam” a relação entre os
seres humanos e seu entorno, assim como as formas em que são
vividos e representados culturalmente.
Meu objetivo, neste encontro, é refletir sobre o cenário que
enquadra as atitudes responsivas com as quais a comunidade
vivenciou e representou o corpo e a temporalidade durante o
primeiro ano da pandemia (2020) e como essas condutas permitem
reconhecer fragmentariamente, distâncias e aproximações a certas
características do grotesco carnavalizado descrito por Bakhtin no
magnífico livro “A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento. O contexto de François Rabelais”, escrita e
defendida inicialmente como tese nos anos 40 e publicada vários
anos mais tarde, em 1965. Bakhtin condensa nessa obra uma das
linhas da poética sócio-histórica do romance, aquela dos gêneros
cômico-sérios (da sátira menipeia e outros até chegar ao realismo

1808
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

grotesco). E Rabelais foi quem recolheu essa tradição em um


momento de transição histórica, tomando suas fontes na cultura
popular medieval que, como corpo coletivo unido pela celebração
da festividade do carnaval, ria, invertia os valores estabelecidos e
convertia a corporalidade no lugar da desmesura e do gozo. Esse
contexto, que eu prefiro chamar de “cronotopia cultural” como
explicarei mais adiante, é o da ficção de Rabelais, o qual se vê
encarnado em suas personagens que constituem a exemplaridade
do realismo grotesco que descreverei sucintamente, tomando os
termos da visão bakhtiniana.
Como já disse, Bakhtin sustenta que a única forma de
interpretar a significação da obra rabelaisiana se dá através do
rastreamento de suas fontes populares, na longa evolução daquilo
que denomina cultura popular e em especial da cultura
considerada cômica, que alimenta o riso comunitário da feira e da
praça medievais. Entendo essa ideia bakhtiniana porque vivo em
uma cidade argentina, Córdoba, na qual, tanto a Igreja católica teve
sempre um papel dominante na alta burguesia e na cultura oficial,
quanto os setores populares possuem notáveis características de
humor local e espontâneo para o chiste, a burla e até o uso oportuno
do insulto grosseiro que é moeda corrente nos espaços públicos
(BAREI, 1993). E ao mesmo tempo se fez do baile popular com a
música do quarteto, um espaço ritual de festa coletiva plebeia na
qual se dança com todo o corpo em atitudes eróticas (GANDOLFI,
2019).
Bakhtin tipifica as maiores manifestações em que se exercita
o humor popular, o que resgata fundamentalmente nas celebrações
do carnaval medieval com suas formas de expressão rituais e
espetaculares sem maior intenção artística, que consistiam
basicamente em profanar e parodiar os símbolos da cultura
religiosa e oficial da época. O longo período do carnaval sustentava
a utopia de uma liberdade sem fronteiras para o povo que o vivia
como outra vida, como “segunda vida”, na qual reinava a
igualdade e a abundância. Era, mais que a vida como um

1809
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

espetáculo, o espetáculo mesmo da vida em uma forma idealizada,


na qual a morte engendra formas novas como o universo.
Contudo, se o espaço do carnaval era as ruas, as praças e as
feiras cotidianas, o tempo festivo o transformava em um cronotopo
singular que, diferente das festas oficiais que serviam para celebrar
o passado imutável e irreversível, celebrava o dinamismo do
porvir, o futuro incompleto, o paradoxo do negativo marcado com
o signo do positivo e invertido valorativamente: baixo e alto, corpo
e espírito, servo e senhor, vida e morte, berço e sepultura. Cabe
reconhecer que com essa descrição do cronotopo carnavalesco,
Bakhtin dava forma a várias de suas ideias mais originais,
centradas sempre antropologicamente nas transformações
culturais e espaciais da linguagem, o protagonismo humano e sua
representação na história do romance europeu.
Em minha compreensão, enquanto as festividades do
carnaval constituíam uma cronotopia cultural, o romance de Rabelais
a registra como cronotopo literário, manifestação artística “de formas
identitárias que proveem as culturas em processos acumulativos de
modo que, nelas, se lê a silhueta da imagem sócio-histórica do
homem, nunca homogênea” (ARÁN, 2016, p. 135).
O carnaval medieval não era vivido individualmente, mas
como um todo e o riso era também um patrimônio compartilhado.
O espaço público se convertia em território da liberdade no qual o
corpo humano em sua materialidade biológica, em seus traços
primários e instintivos, adquiria diferentes modos de
representação e de contato com os outros corpos, o que se levava a
sentir-se parte do cosmos e entrar no fluxo da vida incessante, com
base na interpretação bakhtiniana segundo a qual a natureza e a
cultura cruzam suas fronteiras de modo constante. E aqui aponto
algo importante que mostra a refinada reflexão de Bakhtin porque,
enquanto a matéria de que está feito o mundo encarna no corporal
humano, o homem, como consciência, ou seja, pessoa, “(…) a
matéria adquire um caráter histórico” 1994, p.330, itálico no original)”,
que também está aberta, incompleta e em constante construção.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Compreendido isso, todo esse fluxo vital da festa popular,


é o que Rabelais estetiza em personagens e imagens da série do
Gargântua e que Bakhtin define como: “(…) uma concepção
estética da vida prática que caracteriza a essa cultura e a diferencia
claramente das culturas dos séculos posteriores (a partir do
classicismo). Daremos a essa concepção o nome convencional de
realismo grotesco.” (Bajtín, 1994, p. 23, itálico no original). E esse
realismo grotesco renascentista, que se caracteriza por uma
violência hiperbólica escatológica, expressa em uma linguagem
grosseira e em uma ambivalência contraditória, entranha “um
realismo histórico superior” (p. 27) que consiste em “um poderoso
sentimento da história e suas contingências” (p. 29). Bakhtin
interpreta assim a dimensão ideológica do fato artístico produzido
por Rabelais, escritor ao que admira não apenas pelo elogio do gozo
da vida corporal, mas porque foi capaz de reunir o natural e o
cultural humano, propondo uma nova forma do humanismo. No
cronotopo literário da cultura popular carnavalizada, Bakhtin lê
certa aparente suspensão do tempo como algum eco do paraíso
terreno que, contudo, prepara o parto do futuro, certa promessa de
ressureição do corpo coletivo que lentamente se encarregará do
sentido da história.

Não é apenas o corpo biológico o que se repete nas novas


gerações, mas o corpo histórico e progressivo da humanidade,
que constitui o centro desse sistema. À guisa de conclusão
podemos dizer que, a partir da concepção grotesca do corpo,
nasceu e foi tomando forma um sentimento histórico novo,
concreto e realista, que não é de modo algum a ideia abstrata
dos tempos futuros, mas a sensação viva que tem cada ser
humano de formar parte do povo imortal, criador da história
(BAJTÍN, 1994, p. 331).

Tenho interesse, todavia, recordar a evolução do corpo


grotesco na literatura posterior, porque apesar de suas variações,
sempre se associa à representação do corpo humano, à forma de

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

concebê-lo em sua beleza, em seus limites e em seus


transbordamentos. E isso é necessário levar em conta porque há um
grotesco que não desaparece ainda que o cânone da cultura oficial
mude e que, mesmo debilitado e degradado, mantém certas
imagens e símbolos, seja nas bufonarias das festas estudantis, nos
chistes ou memes das redes atuais, nas situações de comicidade
erótica, que o romance e, especialmente, algumas séries de
programas televisionados costumam registrar.
Cabe a pergunta, agora, sobre a possibilidade de ler
brevemente, a partir de Bakhtin, algumas manifestações de formas e
sentidos do grotesco carnavalizado no âmbito do coletivo na pandemia.
Resgato assim a noção de ambiente como cenário em que o coletivo
humano desenvolve e compartilha sua existência, um espaço-
tempo que constroi e habita, onde projeta materialmente seu ethos
coletivo tramado sobre um conjunto de discursos (políticos,
sanitários, midiáticos, religiosos) que compõem certas
representações. E proponho para essa leitura a noção de cronotopia
cultural60 como categoria descritiva condensadora, para analisar a
produção de fenômenos sociais espaço-temporalizados, resultantes
da intervenção do homem como sujeito coletivo em um locus
concreto61.
Ao desenvolver a categoria de cronotopo literário para
explicar especificamente o sentido de certas constantes narrativas e
discursivas na evolução do romance europeu em relação com a
percepção artística do protagonismo da temporalidade humana na
cultura, Bakhtin alude ao “cronotopo histórico real” (1989, p. 238),
ideia de grande fecundidade heurística que eu adotei como
cronotopia cultural, que entendo como um processo cultural de
produção do sentido. De modo que prefiro reservar o termo

60 Adoto aqui alguns conceitos expressos em meu trabalho “Cronotopías

culturales” (ARÁN, 2016).


61 Deixo de lado as festas oficiais e religiosas, que considero programadas, para

referir-me a eventos espontâneos, produto de acontecimentos ou situações, em


geral, inesperadas e tipifico suas características (ARÁN, 2016).

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

cronotopo (literário) para a versão artística da cronotopia histórica


propriamente dita.
Por isso acredito que atualmente estamos diante de uma
cronotopia cultural cujo relato dominante é a pandemia, uma peste que
parece originária do Oriente e se expande primeiro pela Europa,
semelhante ao que Boccaccio descreve em seu Decamerão, sem que
em nosso tempo lhe seja atribuída a cólera divina, mas a diferentes
fatores culturais fundamentalmente derivados de transformações
vertiginosas que começam a ser operadas desde meados do século
XX: tecnológicas, éticas, políticas, ambientais, ao amparo do
desenvolvimento do capitalismo tardio (Mandel/Jameson) ou
multinacional, gerando novas subjetividades, novas sociedades nas
quais as formas de controle seguem existindo, mas não têm as
características das sociedades disciplinares descritas por Foucault.
E estimo que vale fazer essa distinção porque precisamente,
a pandemia gerou um novo ambiente: medidas sanitárias biopolíticas
que reduziram a liberdade do uso do espaço e incidiram fortemente
sobre o corpo individual em seu funcionamento com o corpo do
outro e com o corpo coletivo. O Estado em seu conjunto e as
autoridades sanitárias transformaram o espaço público em um
panóptico e o corpo em um signo de extrema periculosidade. E
precisamente, os orifícios do corpo, especialmente a boca e o nariz,
assim como as mãos e braços foram entendidos como os potenciais
transmissores do vírus, o qual multiplicou as vendas de produtos
sanitários e desinfetantes.
Essa situação, que se manteve durante todo o ano de 2020
em meu país, consistiu, segundo decreto nacional (DNU 297/2020),
“no isolamento social preventivo e obrigatório”, fechamento de
escolas e universidades, de repartições públicas, comércios não
indispensáveis, lugares de recriação, cancelamento de viagens,
fechamento de fronteiras externas e criação de inumeráveis
fronteiras internas territoriais e inclusive familiares. As medidas
preventivas, que se foram estendendo por vários meses, quiçá
exageradas, se consideraram necessárias dado o desconhecimento

1813
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

que havia inicialmente da origem do vírus, sua forma de


propagação, a ausência de vacinas, o temor ao colapso do sistema
hospitalar. Se multiplicaram, então, as hipóteses conspirativas: da
possível existência de armas biológicas à guerra geopolítica,
gerando, em vastos setores da população, o temor irracional para
com o outro, o desconhecido, mas também com o vizinho, o
familiar, o amigo.
E esse medo esteve alimentado também por toda uma
cultura hipermidiatizada de perspectiva apocalíptica que o cinema
e as séries de TV vêm imaginando há décadas. A propagação veloz
do vírus e as taxas de mortalidade pareciam cumprir as piores
profecias e o medo à morte pareceu superar o valor da vida
biológica que se queria defender. E o maior culpado, outra vez, foi
o corpo, sua liberdade, seu desejo e suas necessidades, paixões,
transbordamentos. A primeira consequência foi que no começo da
pandemia, a praça e os lugares públicos se tornaram espaços vazios
com controles policiais. Impôs-se, então, o uso obrigatório de
máscaras, que cobrissem boca e nariz, para transitar em espaços
públicos, todos nos mostrávamos (e seguimos ainda)
“mascarados”.
E bem, vale a pena aqui inserir alguma reflexão sobre o
corpo do grotesco que refere Bakhtin, no qual, precisamente era o
contato corporal, a celebração do coito, do comer, beber e defecar o
que fazia sentir o homem em contato com a fecundidade incessante
da vida do universo. Era um corpo que transbordava de prazer em
um tempo festivo que havia suspenso a lei teológica, ainda que
fosse momentâneo. E dentro dos festejos do carnaval, a mascarada
ocupava um lugar muito especial, que Bakhtin descreve nestes
termos:

(...) A máscaras expressa a alegria das sucessões e reencarnações,


a alegre relatividade e a negação da identidade e do sentido único,
a negação da estúpida autoidentificação e coincidência consigo
mesmo; a máscara é uma expressão das transferências, das
metamorfoses, da violação das fronteiras naturais, da

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

ridicularização, dos sobrenomes; a máscara encarna o princípio


do jogo da vida, estabelece uma relação entre a realidade e a
imagem individual. (...) O grotesco se manifesta em sua
verdadeira essência através das máscaras (1994, p. 41-42).

Nossas máscaras pandêmicas, longe de ser iconoclastas e


libertadoras, evocam a assepsia da sala de cirurgia e o medo ao
outro corpo.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 1 e 2. Fotografias que mostram o uso das


máscaras durante a pandemia de COVID-19, em diferentes
espaços culturais.
Fonte da imagem 1: fotografia de Colin Gray, disponível
em https://www.bbc.com/news/uk-england-suffolk-52486753.
Acesso em 2/12/2021.
Fonte da imagem 2: fotografia de Yunghi Kim, disponível
em https://www.rollingstone.com/culture/culture-pictures/nyc-
subway-covid-19-yunghi-kim-photos-968771/. Acesso em
2/12/2021.

Contudo, as dinâmicas culturais da vida social começam a


reagir constituindo diferentes cenários pandêmicos, que
ressignificam os contatos corporais e a necessidade de afirmar a
vida como gozo, como necessidade ou como trânsito em uma
temporalidade em suspenso e em interrogação latente. Cenários
que foram caracterizados eufemisticamente como nova normalidade.

1816
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Desses cenários cronotopizados selecionamos três


variedades para mostrar algumas imagens:

1. As festas, permitidas mas sem contato corporal, cada um em sua


varanda dançando e outras, de outro modo, clandestinas, junto ao
rio no melhor dos casos, sem respeitar nenhum protocolo, ainda
que houvesse outros lugares fechados que às vezes eram
denunciados e sofriam intervenções pela polícia.

Imagem 3. Homenagem ao cantor argentino Sergio Denis,


com a partipação de um Dj e as pessoas, dançando em seus
edifícios (Cidade de Córdoba, Argentina). Disponível em:
https://viapais.com.ar/cordoba/1767316-homenajearon-a-sergio-
denis-desde-los-balcones-de-nueva-cordoba/. Acesso em
1/12/2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 4. As chamadas “Festas clandestinas” onde


participavam jovens, sem cuidados nem respeitando o
distanciamento social (Cidade de Calamuchita, Córdoba,
Argentina). Disponível em
https://www.lanacion.com.ar/sociedad/descontrol-cordoba-
cientos-jovenes-ingresaron-balneario-calamuchita-nid2564360/.
Acesso em 1/12/2021.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

2. Os protestos de rua, em um caso pedindo o término da


quarentena que já durava vários meses e em outro caso, mostrando
a necessidade de abertura dos bares e lugares de venda de comidas.

Imagem 5. Protestos contra as medidas tomadas pelo


Governo Nacional, nas chamadas “marchas anti-quarentena”
(Cidade de Córdoba, Argentina). Disponível em
https://lmdiario.com.ar/contenido/240757/banderazo-del-17-a-
comenzo-la-marcha-contra-la-cuarentena-y-la-impunidad. Acesso
em 1/12/2021.

Imagem 6. Marchas de empregados gastronómicos,


exigindo a abertura de restaurantes e bares. Disponível em:
http://www.lavozdesanjusto.com.ar/secciones/entrevista/gastrono
micos-protestaron-por-restricciones-horarias-para-funcionar-en-
cordoba-94738. Acesso em 1/12/2021.

1819
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

3. Os coletivos de luto que foram uma oportunidade de mostrar o


transbordamento, o excesso de emoções, a mistura do sagrado e do
profano, o endeusamento do ídolo popular do futebol no cortejo
fúnebre de Maradona, que por outro lado havia sido oficialmente
velado na Casa do Governo (a Casa Rosada como dizemos aqui).
Ali, se misturam o mais grotesco da dor que quer expressar
misturando o hino nacional com música do quarteto, choro e
diversão, luto e gozo de modo ambivalente.

Imagens
7, 8, 9 e
10. Cenas
do
funeral de
Diego Armando
Maradona, velado
na Casa do
Governo da

Argentina,
acontecimento
onde se
manifestou a dor
popular e
também alguns

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

incidentes. Fotografias disponíveis em


https://www.clarin.com/fotogalerias/fotos-multitudinario-
conmovedor-funeral-diego-maradona_5_NXd88rS97.html. Acesso
em 1/12/2021.
Ademais, o cortejo fúnebre foi acompanhado da canção
emblemática do cantor cordobês Rodrigo, La mano de Dios,
misturada ao hino nacional, cena que pode ser vista em
https://www.youtube.com/watch?v=oqqTxbhoaI0&ab_channel=YuyoGo
nzalo.

Também o riso vem em auxílio da tragédia coletiva e


começaram a se multiplicar formas imaginativas tragicômicas, toda
uma cultura carnavalizada e marcada racialmente que é
aproveitada como produto comercial.

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Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

Imagem 11. Meme que viralizou no preciso instante em que se


desatava a pandemia de COVID-19. Nesse vídeo-meme, se
recupera uma dança funerária tradicional de Ghana, em que se
reúnem o dolo e o humor. Disponível em:
https://eloutput.com/noticias/redes-sociales/meme-africanos-
bailando-ataud/. Acesso em 1/12/2021.

E para concluir. Hoje estamos no final de 2021 e, em alguma


medida, o cenário mudou, a vacinação massiva permitiu
flexibilizar os controles no uso do espaço comum e os esforços estão
colocados para restabelecer as condições produtivas de uma
economia maltratada. Contudo, a cronotopia cultural da pandemia
não acabou e tampouco aventamos a possibilidade de que a
profunda crise nos permita sair dela sentindo que somos parte “do
grande corpo imortal, criador da história”, que era, em definitiva,
o grande corpo do grotesco no abraço fecundo. O cenário mundial
não permite alimentar grandes esperanças sobre o destino histórico
da cultura, que Bakhtin profetizou com o otimismo quase religioso
de um pensador da modernidade. Mas, outras vozes saberão

1822
Rodas de Conversa Bakhtiniana 2021

abordar tal profunda questão que não foi objetivo dessa conversa
que tive o gosto de compartilhar com vocês.

Referências

ARAN, Pampa (2016). “Cronotopías culturales. Apuntes para una


categoría sociosemiótica de investigación”. En: ARÁN, Pampa. La herencia
de Bajtín. Reflexiones y migraciones. Córdoba: Edicea, pp. 145-160.
BAJTÍN, Mijaíl (1994). La cultura popular en la Edad Media y en el
Renacimiento. El contexto de Franҫois Rabelais. Trad. Julio Forcat y César
Monroy. Madrid: Alianza editorial, 1994.
BAJTÍN, Mijaíl (1989). “Las formas del tiempo y del cronotopo en la
novela. Ensayos sobre Poética histórica [1936-1937]”. En: BAJTÍN, MIJAÍL.
Teoría y estética de la novela. Madrid: Taurus, 237-410.
BAREI, Silvia (1993). El sentido de la fiesta en la cultura popular. Córdoba:
Alción Editora.
GANDOLFI, Fernanda (2019). “Reseña: ¡Bailaló! Género, raza y erotismo
en el Cuarteto Cordobés”. En: Encuentros Latinoamericanos, Vol. 3. Nro. 2,
pp. 343-348.

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