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PRISÃO CAUTELAR: DRAMAS, PRINCÍPIOS E ALTERNATIVAS

CRUZ, Rogério Schietti Machado. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 246 p.
*Por J. P. Sepúlvela Pertence

Décadas se passaram desde que a doutrina brasileira do Direito Processual Penal experimentou o
salto de qualidade que representaram as Instituições, de Hélio Tornaghi, e os Elementos, de José Frederico
Marques.

É auspicioso − não obstante a espantosa sobrevivência do Código de Processo Penal de 1941, autoritário e
anacrônico −, verificar a floração na matéria − sob o impulso da retomada do processo de democratização do
País e o influxo do rol das garantias prodigalizadas pela Constituição −, de numerosos estudos de grande valor, a
grande maioria dos quais irmanados na preocupação − enquanto a reforma não vem −, da adequação da
legislação processual ordinária e de sua interpretação aos imperativos da Lei Fundamental.

Neles se insere, por mérito inquestionável, a obra doutrinária de Rogério Schietti Machado Cruz, na
qual − ao excelente Garantias Processuais nos Recursos Criminais, que lhe valeu o mestrado na Universidade
de São Paulo −, soma-se agora este Prisão Cautelar – drama, princípios e alternativas, que, gratificado pelo
convite, tenho a satisfação de apresentar.

Nesse novo trabalho, o autor mantém estrita fidelidade à “postura de cariz garantista”, que
declaradamente assumira na monografia anterior, por partilhar das ideias introduzidas com o Iluminismo, mercê
das quais a atividade punitiva do Estado vincula-se a valores superiores, como a igualdade e a fraternidade
entre os homens, restando a liberdade como bem jurídico a ser preservado, sujeita a sacrifício apenas em casos
expressamente previstos, e mediante a obediência a regras legitimadas pelas progressivas conquistas da
história jurídica dos povos, as quais têm como norte a dignidade da pessoa humana1: o estudo desvela a
constância, em cada tópico, da fé jurada na máxima de Montesquieu, que serve de epígrafe à Introdução: Todo
ato de autoridade de um homem em relação a outro que não derive da absoluta necessidade é tirânico.

Para quem continua a ver o Ministério Público sob o prisma de alguns implacáveis discípulos
anacrônicos de Fouquier- Tinville, esse compromisso de Rogerio Schietti com as garantias liberais do
processo penal pode figurar-se contraditório: trata-se afinal de um integrante convicto do Ministério Público
do Distrito Federal, prestes a findar uma vitoriosa gestão na Procuradoria-Geral de Justiça.

Assim não é, entretanto, para quem realce, nas funções institucionais do Ministério Público, a defesa da
ordem jurídica e do regime democrático e, portanto, o compromisso primacial com a efetividade da
Constituição, que, no Estado de Direito, assinala o autor, guarda verdadeira complementariedade funcional
com a lei processual penal: A Constituição Federal enuncia, sinaliza, programa; o Código de Processo Penal
realiza, cumpre, concretiza tal programa normativo.

A prisão cautelar é, sem dúvida, a instituição mais cruel e angustiante no paradoxo dramático de todo o
processo penal que, como repetidamente enfatizado, sendo em si mesmo um castigo, se instaura para decidir
afinal se é o caso de punir.

A obra de Rogerio Schietti − a partir da visão “garantista” que a perpassa −, nos primeiros capítulos,
expõe com clareza, documenta com pesquisa cuidadosa e analisa com acuidade os dramas ínsitos à prisão
cautelar e à realidade dos seus abusos, agravada pela potencialização − que sua prática evidencia −, dos
malefícios de toda prisão e da perversa seletividade social do sistema punitivo e, em especial, das prisões
processuais; o autor não cede, porém, no ponto, à sedução − à qual, hoje, têm-se deixado arrastar membros
do Ministério Público e magistrados −, de responder à crítica da discriminação social da repressão penal
mediante a decretação açodada de prisões temporárias ou preventivas dos suspeitos dos crimes de “colarinho
branco”, de todo insustentáveis: ao contrário, e com agudeza, na linha das observações de llluminati − das
quais já me tenho servido2 no Vale Supremo Tribunal − identifica, no barateamento da concessão a mancheias
de prisões temporárias ou preventivas, o ensaio, o sentido inequívoco de dissimular a impotência da máquina
judiciária para dar resposta, em tempo útil e razoável, às expectativas sociais de repressão eficaz, quer à
violência urbana, quer à corrupção de governos ímprobos, ou à criminalidade econômica.

O tratamento dogmático, que a obra versa, à luz dos princípios e garantias constitucionais, da
disciplina vigente da prisão cautelar − incluídas as modalidades dissimuladas de prisão cautelar compulsória,
por força da pronúncia e da sentença condenatória recorrível − no geral, são irretocáveis.

Não calo a observação de que o autor passa um pouco às pressas sobre a questão recorrente do
abuso do apelo à garantia da ordem pública ou da ordem econômica para fundar prisões preventivas que
traem o mal disfarçado intuito de emprestar-lhes o sentido − que ele próprio chama de penalização de um
instrumento eminentemente processual − de antecipar a aplicação da pena, para gáudio de um público que
− instigado pela mídia − está sedento de justiça sumária.

Valha a crítica pontual como contrapeso dos merecidos elogios ao conjunto da obra.

Ela os merece e se inscreve sem favor na série de estudos que tem marcado o desabrochar
auspicioso da doutrina contemporânea do processo penal brasileiro, dentre os quais ganham relevo os
dedicados à prisão cautelar3.
São primorosas a análise crítica da legislação processual ordinária e da sua aplicação desatenta às
garantias fundamentais e a reconstrução dogmática do instituto da prisão cautelar, a partir, como se
impunha, dos grandes princípios constitucionais incidentes.

São antológicas, por exemplo, as páginas atinentes à interferência na matéria do princípio da


proporcionalidade, visando possibilitar a convivência da presunção constitucional da não culpabilidade com
a prisão processual, desde que adequada, necessária e estritamente proporcionada.

A ênfase na submissão da prisão cautelar às três máximas da proporcionalidade −, em especial à da


estrita necessidade ou subsidiariedade −, prepara o caminho para os capítulos finais da obra, seguramente,
os mais originais e instigantes.

Nela o autor disseca com precisão a insuficiência do que chama a bipolaridade cautelar do sistema
brasileiro − reduzida à opção entre a violência e os efeitos deletérios da prisão processual de um lado, e a
ineficácia da liberdade provisória, de outro −, para evidenciar a necessidade da criação de medidas
cautelares alternativas à detenção.

Segue-se o estudo minudente das medidas cautelares diversas da prisão, objeto de proposição de
iniciativa do Poder Executivo (PL 4208/01), que tramita há cinco anos na Câmara dos Deputados: a análise é
precisa; as críticas pontuais ao projeto são agudas e pertinentes; férteis, as sugestões de acréscimos e
aprimoramentos.

As páginas finais da monografia são reservadas à sustentação − na trilha de González-Cuellar Serrano


−, da licitude da imposição pelo juiz penal de medidas cautelares atípicas, não previstas em lei, desde que,
menos gravosos que a prisão, sejam idôneas e eficazes.

O tema − do qual, curiosamente, não se tem ocupado no Brasil a doutrina processual penal − foi
objeto de rica discussão, no campo do processo civil, quando, na década final da vigência do Código de
1939, silente a respeito, construiu-se a doutrina do poder cautelar geral, inerente à efetividade da função
jurisdicional, que veio, então, a afirmar-se na jurisprudência.

Expressamente acolhidas nos arts. 798 e 799 do Código de Processo Civil em vigor, a admissibilidade
das cautelares atípicas pode ser transplantada por analogia para o processo penal, onde teria, como
demonstra o autor, papel relevante a desempenhar na tarefa imperativa de reduzir a prisão processual e
suas inevitáveis mazelas à dimensão de sua estrita necessidade.

Ter agitado o problema é um mérito a mais do trabalho.


Por tudo quanto apressadamente ficou dito − e muito mais a que o tempo não me permitiu dar o
relevo devido −, honra-me verdadeiramente prefaciar a nova obra de Rogerio Schietti Machado Cruz −
estudo sério, meditado, profícuo e, ademais, bem escrito.

*J. P. Sepúlveda Pertence é ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal.

NOTAS
1 CRUZ, Rogerio Schietti Machado. Garantias Processuais nos Recursos Criminais. São Paulo: Atlas, 2002, p.15.
2 Voto vencido no HC 80717, RTJ 189/625.
3 Cf., a partir do clássico Processo Penal Cautelar, de Romeu Pins de Campos Barros, Forense, 1982, vg., Antonio Magalhães
Gomes Filho: Presunção de Inocência e Prisão Cautelar, Saraiva 1991; Maria Lucia Karon: Prisão e Liberdade Processuais,
RBC Crime 2/83; João Gualberto Garcez Ramos: A Tutela de Urgência no Processo Penal Brasileiro, DeI Rey, 1998; Roberto
Delmanto Jr.: As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração, 2. ed., Renovar, 2001.

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