Você está na página 1de 75

A criança

em foco
Os recentes estudos sobre
o universo infantil buscam
compreendê-lo como
construção histórica e social

Manuel Alan Willian Régine Jens


sarmento Prout Corsaro Sirota Qvortrup
A criança Reconstruir e Três décadas Os vários A criança
protagonista compreender a de pesquisas rituais de como sujeito
dos espaços infância in loco socialização social

Gilles Loris Jorge Tullia Matthew


Brougère Malaguzzi Larrosa Musatti Lipman
Brinquedo a arte na Literatura Aprendendo Por uma
e culturas experiência na prática sobre infância
infantis educativa pedagógica interações filosófica
sumário editorial
Presidente: Edimilson Cardial
Diretoria: Carolina Martinez
Marcio Cardial
Rita Martinez

Protagonismo
Rubem Barros
Miriam Cordeiro 6 Novas perspectivas para o estudo da infância
por Teresa Cristina Rego
Pesquisadores se esforçam para entender a infância a partir da ideia de que ela é
uma construção histórica e social e não apenas um conceito ligado à imaturidade
biológica

infantil
ISSN 1415-5486
www.revistaeducacao.com.br
14 Manuel Jacinto Sarmento
http://twitter.com/revistaeducacao A emergência da Sociologia da Infância em Portugal
por Ana Cristina Coll Delgado
Escutar o ponto de vista das crianças é reconhecer a competência, a
N o v a s v i s õ e s s o b r e a
participação e o protagonismo delas nas cidades, em decisões políticas,
pesquisas, ciência, educação e espaços sociais
28 Alan Prout
Novas formas de compreender a infância
Diretor editorial: Rubem Barros por Angela Meyer Borba e Jader Janer Moreira Lopes
Editora: Juliana Holanda
julianaholanda@editorasegmento.com.br Hoje se reconhece a complexidade do fenômeno, dado o seu caráter híbrido,
Subeditora: Camila Ploennes a heterogeneidade da vida social, as redes e mediações de elementos que

E
camilaploennes@editorasegmento.com.br
Estagiária de conteúdo web: Deborah Ouchana entram nessa composição, sem separar pessoas e coisas, natureza e cultura
deborah@editorasegmento.com.br
42 William Arnold Corsaro ste fascículo é dedicado à apresentação a francesa Régine Sirota e o dinamarquês Jens
Consultoria editorial e coordenação: Teresa Cristina Rego
Diagramação: Cleber Estevam O futuro da infância é o presente de alguns dos principais pesquisadores Qvortrup. Os outros cinco tratam de autores di-
Pesquisa iconográfica: Ana Teixeira por Fernanda Müller e Ana Maria Almeida Carvalho
Imagem de capa: Casa Paulistana
Há mais de 30 anos, o sociólogo defende que compreender as crianças contemporâneos que estudam temas versos, que têm em comum a preocupação em es-
Fotografia: Gustavo Morita
Colaboradores: Adriana Alves Silva, Ana Cristina Coll depende da realização de pesquisas com elas e contribui para a reflexão relacionados à cultura das crianças e tudar temas relacionados direta ou indiretamente
Delgado, Ana Lúcia Goulart de Faria, Ana Maria Almeida sobre práticas pedagógicas
Carvalho, Anete Abramovicz, Angela Meyer Borba, Fer-
nanda Müller, Flávia Schilling, Jader Janer Moreira Lopes,
à infância. O volume tem o propósito ao universo infantil e à educação das crianças, a
Maria Clotilde Rossetti Ferreira, Maria Letícia Barros Pedroso 56 Régine Sirota de difundir – para um público amplo, saber: o francês Gilles Brougère, o italiano Loris
Nascimento, Tatiana Noronha de Souza, Tizuko Morchida
Novo ator no campo social
Kishimoto e Walter Omar Kohan (texto); Luiz Roberto Malta
e Maria Stella Valli (revisão) por Anete Abramowicz ligado direta ou indiretamente à educação, espe- Malaguzzi, o espanhol Jorge Larrosa, a italiana Tu-
Processamento de imagem: Paulo Cesar Salgado
Produção gráfica: Sidney Luiz dos Santos
A criança era uma espécie de fantasma para a sociologia, mesmo presente cialmente entre aqueles que não necessariamente lia Musatti e o norte-americano Matthew Lipman
Estagiária de produção gráfica: Isabela Elias nas políticas públicas. A sociologia da infância quer ver a criança não só como
um vir a ser, um devir, mas como um componente estrutural da sociedade circulam nos meios acadêmicos – aquilo que de (recentemente falecido).
PUBLICIDADE
Gerente: Daisy Fernandes melhor vem sendo produzido nas universidades e Os ensaios reunidos neste número, por sua
daisy@editorasegmento.com.br 70 Jens Qvortrup
Executiva de Negócios: Márcia Augusta de Paula A infância como fenômeno social centros de pesquisa de diversas regiões do mundo. vez, foram elaborados por alguns dos principais
por Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento
Escritórios Regionais O conjunto de contribuições dos pensadores especialistas nacionais (a maior parte docentes de
Brasília – Edgar Gorayeb Crianças são sujeitos sociais, que produzem mudanças nos sistemas em
Tel.: (61) 4141-6518
que vivem. As forças políticas e socioeconômicas influenciam essas vidas ao aqui reunidos expressa o vigor e o desafio de um destacadas universidades do país) nos estudos da
edgar@editorasegmento.com.br
Paraná – Marisa Oliveira mesmo tempo que as crianças influenciam o cenário social, político e cultural grupo disposto a estudar a infância sob um nova infância e que se dispuseram a escrever textos den-
Tel.: (41) 3027-8490 – parana@editorasegmento.com.br
Rio de Janeiro – Edson Barbosa
Tel.: (21) 4103-3868 / 8881-4514 84 Gilles Brougère ótica: dando à criança um protagonismo inédito. sos e, ao mesmo tempo, acessíveis a leitores de
edson.barbosa@editorasegmento.com.br O brinquedo e a produção cultural infantil Embora originários de diferentes áreas do saber diversos perfis.
por Tizuko Morchida Kishimoto
Web
Gerente Fabiano Haussman Vidal É preciso buscar formas complexas de educação, que coloquem no e lançando mão de diversos recursos e temas de Em várias etapas da elaboração deste número
Assistente Jonatas Moraes Brito mesmo espaço as formas lúdicas e educativas, mas que se tenha contei com a ajuda competente e generosa da co-
Estagiário: Luiz Guilherme Ribeiro
clareza sobre os atributos de cada uma pesquisas, todos partem do pressuposto de que a
MARKETING criança é um ator ativo do seu processo de socia- lega Maria Letícia Barros P. Nascimento, a quem
Diretora: Carolina Martinez
Coordenadora: Ana Carolina Madrid
98 Loris Malaguzzi
lização e, por essa razão, buscam, entre outras es- agradeço de modo especial. Sem seu auxílio este
Analista: Priscilla Rodrigues Por uma nova cultura da infância
Assistente: Claudia Lino por Ana Lúcia Goulart de Faria e Adriana Alves Silva tratégias, não somente valorizar a fala das crianças, volume não teria chegado ao resultado satisfatório
Estagiário: Felipe Ramos
Baseada na inovadora concepção de pedagogia da escuta, das relações a que chegou.
Eventos: Ana Lúcia Souza
e das diferenças, a educação infantil pode ser um espaço agradável mas principalmente, compreender sua perspectiva
OPERAÇÕES
Diretora de Operações: Miriam Cordeiro
para crianças, famílias e professoras/es sobre o mundo. De acordo com os defensores dessa Como o leitor poderá verificar, o conjunto de
Circulação e Assinaturas
abordagem, isto é revolucionário na medida em artigos oferece uma boa oportunidade para o co-
Surpervisora: Beatriz Zagoto 112 JORGE LARROSA
Vendas: Cláudia Santos Pedagogia profana que, geralmente, os estudos sobre a infância são nhecimento das perspectivas adotadas por um
Financeiro por Flávia Schilling
Planejamento e RH: Melissa Ramos
A criança é um presente inatual, intempestivo, que nos questiona pautados por aquilo que os adultos falam sobre e grupo de pesquisadores que têm ajudado a renovar
Contas a Pagar: Simone Melo
Faturamento: Weslley Patrik e carrega consigo o imprevisível. Ao colocar lado a lado a figura da pelas crianças. o debate nas ciências sociais e humanas de nosso
criança e da educação, deparamos com a“descontinuidade” tempo. Além de um bom roteiro que oferece o ca-
Novas visões sobre a Criança é uma publicação especial da O número permite que o leitor conheça traços
Editora Segmento. Esta publicação não se responsabiliza por
ideias e conceitos emitidos em artigos ou matérias assinadas, 122 Tullia Musatti da biografia e dos trabalhos de dez autores, cuja minho das pedras para que o leitor conheça essas
que expressam apenas o pensamento dos autores, não repre- Uma infância melhor produções, espero que essas proposições – ainda
sentando necessariamente a opinião da revista. A publicação por Tatiana Noronha de Souza e Maria Clotilde Rossetti Ferreira obra está em permanente construção e reformu-
se reserva o direito, por motivo de espaço e clareza, de resumir
cartas e artigos. A educação infantil deve oferecer um ambiente que possibilite lação. Deste conjunto nove ainda estão vivos e em gestação – sejam capazes de fertilizar novas
experiências significativas. Para que os adultos facilitem a interação
Editora Segmento
entre as crianças, eles precisam saber como as crianças aprendem na ativa. Os cinco primeiros textos examinam a investigações e instigar a adoção de práticas educa-
Rua Cunha Gago, 412 – 1o andar
CEP: 05421-001 – São Paulo (SP)
obra de pesquisadores que estão mais próximos da cionais mais sensíveis e respeitosas às necessidades
136 Matthew Lipman e aos direitos das crianças.
Central de atendimento ao assinante
De 2a a 6a feira, das 8h30 às 18h A filosofia na formação das crianças chamada Sociologia da Infância. São eles: o por-
Tel.: (11) 3039-5666 / Fax: (11) 3039-5643 por Walter Omar Kohan
e-mail: assinatura@editorasegmento.com.br Por meio da filosofia, é possível ajudar as crianças a pensar de forma tuguês Manuel Jacinto Sarmento, o britânico Alan Teresa Cristina Rego é professora da
acesse: www.editorasegmento.com.br
crítica, criativa e cuidadosa sobre si mesmas e o mundo que as rodeia Prout, o norte-americano William Arnold Corsaro, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

4 especial revista educação especial revista educação 5


introdução

Novas perspectivas
relações que possam existir entre
o objeto ou o acontecimento e
nossa expectativa, em outras pa-

para o estudo da
lavras, nosso desejo, nossa hipó-
tese ou mesmo nossos simples
hábitos mentais [...]. A grande

infância
dificuldade da observação pura
como instrumento de conheci-
mento é que em geral utilizamos
um quadro de referências sem
sabê-lo, uma vez que seu em-
prego é impensado, instintivo e
indispensável [...]. Caso se trate
de observação, a formulação
que damos dos fatos em geral
Pesquisadores se esforçam para entender corresponde a nossas relações
a infância a partir da ideia de que ela é mais subjetivas com a realidade,
uma construção histórica e social, e não às noções práticas que usamos
um conceito ligado à imaturidade biológica para nós mesmos na vida diária.
Por isso, é muito difícil observar
por Teresa Cristina Rego
a criança sem atribuir-lhe algo de
nossos sentimentos ou de nossas
intenções. Um movimento não
é um movimento, mas o que a
[...] o observador tem de tomar o cuidado de não nosso ver ele exprime. E, a me-
atribuir aos gestos da criança a plena significação que nos que se tenha muita prática,
poderiam ter no adulto. Por maior que seja sua aparente é a suposta significação que re-
identidade, ele não deve lhes dar outro valor senão aquele gistramos, omitindo em maior
que o comportamento atual do sujeito pode justificar. ou menor medida a indicação
do próprio gesto. Todo esforço
Henri Wallon A Evolução Psicológica da Criança de conhecimento e de interpre-
tação científica sempre consistiu

E
em substituir o que é referência
m uma das pas- de modo também muito proce- instintiva ou egocêntrica por um
sagens de A Evo- dente, Wallon pergunta: “Para a outro quadro cujos termos sejam
lução Psicológica criança, só é possível viver sua objetivamente definidos [...] Por-
da Criança, pu- infância, conhecê-la compete ao tanto, é de primeira importância
blicado original- adulto. Contudo, o que irá pre- definir claramente, para todo ob-
mente em 1941 dominar nesse conhecimento, jeto de observação, qual é o qua-
Rodrigo Bivar, Pirata, óleo sobre tela, 2008. Reprodução

pelo médico, psi- o ponto de vista do adulto ou dro de referências que corres-
cólogo e pesquisador francês da criança?”. É interessante ponde à finalidade do estudo”.
Henri Wallon, encontramos al- acompanhar sua resposta para Os trabalhos apresentados
gumas ponderações provocati- a questão: “Rigorosamente fa-
vas e extremamente pertinentes lando, não existe observação
Pintura do artista brasileiro
para o pesquisador contempo- que seja um decalque exato e Rodrigo Bivar. É muito
râneo, dentre elas a que foi es- completo da realidade. [...] Não difícil observar a criança
colhida para ser utilizada como há observação sem escolha ou sem atribuir-lhe algo de
nossos sentimentos ou de
epígrafe deste texto de apre- sem alguma relação, implícita ou nossas intenções
sentação. Em outra passagem, não. A escolha é dirigida pelas

6 especial revista educação especial revista educação 7


introdução

neste fascículo traduzem, de é uma fala que faça sentido. E do


certo modo, o esforço de um ponto de vista da macropolítica, A infância não é um
fenômeno ligado à
grupo de pesquisadores que as crianças não têm nenhuma imaturidade biológica,
orientam suas ações e inves- representação política e não não é mais um elemento
tigações na perspectiva apon- podem se representar, ou seja, natural ou universal dos
grupos humanos,
tada por Wallon (mesmo que como disse Qvortrup, não são
é histórico e social
não o saibam). Por essa razão, porta-vozes de si próprias”.
quando organizei este volume O artigo que abre a publicação
com o propósito de apresentar, é consagrado ao português Ma- nessa composição, sem dicoto-
por exemplo, as proposições dos nuel Jacinto Sarmento, professor mizar pessoas e coisas, natureza
pesquisadores da hoje chamada titular do Instituto de Estudos da e cultura, redes sólidas, frágeis,
Sociologia da Infância, imedia- Criança (IEC) e da Universidade parciais, perecíveis, que se en-
tamente lembrei-me das coloca- do Minho em Portugal. Seus contram e desencontram. Nessa
ções pertinentes feitas por Henri trabalhos são apresentados por composição, a mobilidade e o
Wallon há décadas. Ana Cristina Coll Delgado, pro- fluxo que configuram o mundo
fessora da Faculdade de Educa- contemporâneo devem ser con-
Objeto de análise ção da Universidade Federal de siderados: fluxos de pessoas,
Como explica Anete Abra- Pelotas (RS). Além de enaltecer mercadorias, imagens, valores,
mowicz, em um dos textos pre- o importante papel divulgador os quais atravessam fronteiras,
sentes nesta revista, a Sociologia das ideias inovadoras dos estu- fincam-se em diferentes territó-
da Infância, movimento surgido diosos da Sociologia da Infância rios, criam lugares para a infân-
na Europa e em alguns países junto a pesquisadores brasilei- cia, lugares não estáveis, mas em
de língua inglesa a partir de ros e portugueses, Ana Cristina constante processo, como traje-
Ana Teixeira. Reprodução
1980, busca a compreensão da destaca as contribuições decor- tórias que se constituem”.
perspectiva da criança sobre o rentes de suas investidas com o
mundo, já que, geralmente, “do propósito de estudar a infância Perspectiva comparativa
ponto de vista da micropolítica, numa perspectiva interdiscipli- Os instigantes trabalhos
do espaço local onde se relacio- nar, bem como os frutos de seu do sociólogo norte-americano
nam e vivem as crianças, elas engajamento e luta no interior participam. Se pensarmos que a cia, no Institute of Education de tribuições mais recentes, fruto William Arnold Corsaro, docente
não dizem por elas mesmas, ou da própria Sociologia: “Encon- curiosidade, o abrir-se para ex- uma das principais universida- de uma nova fase de pesquisa, da Universidade de Indiana,
seja, são os pais, as professoras, tramos na trajetória profissional perimentar o mundo, o desejo des do Reino Unido, University potencialmente instigantes para Bloomington, apresentados no
as escolas, os médicos que falam de Manuel Sarmento um movi- de viver e conhecer são atitudes of Warwick. Seus trabalhos estão alargar os horizontes da Sociolo- terceiro texto deste fascículo,
sobre a criança, e às vezes, falam mento contra-hegemônico de importantes na construção de relacionados ao estudo social gia da Infância e sinalizar novas são explorados pelas professoras
pelas crianças. Este fato indica resistência frente às desigualda- projetos de investigação, po- da infância, a participação das necessidades de pesquisa, rela- Fernanda Müller, da Faculdade
que na ordem discursiva existem des geracionais, de classe, de gê- demos inferir que as crianças crianças, as relações das crianças cionadas especialmente ao ca- de Educação da Universidade de
as falas que são consideradas nero e de etnia que enfrentam as também são pesquisadoras e, com as tecnologias, o cotidiano ráter interdisciplinar, ao diálogo Brasília (UnB), e por Ana Maria
infantil e as relações entre edu- entre diferentes áreas do saber: Almeida Carvalho, professora do
cação e saúde. O artigo, elabo- “Prout reconhece a necessidade Instituto de Psicologia da Uni-
rado por Ângela Meyer Borba e de se aprofundar, de se intensifi-
a francesa régine sirota mostra que para entender as crianças Jader Janer Moreira Lopes, pro- car esse encontro, de se ampliar
versidade de São Paulo (USP). No
ensaio, as autoras apresentam
é preciso analisar como a infância é vista pela própria sociedade fessores da Faculdade de Edu- cada vez mais o diálogo entre o suas pesquisas sobre as crianças
cação da Universidade Federal que se tem de base comum e de na sociedade contemporânea em
e as falas que não são levadas crianças em todos os continentes portanto, são competentes para Fluminense, examina o quanto diferenças. Tal situação torna-se perspectiva comparativa, com
em conta, como é o caso da fala do mundo.”(...) a criação de outras relações so- a obra de Prout foi seminal na necessária à medida que reco- base em métodos etnográficos,
das crianças e a dos loucos, por Com Manuel Jacinto Sar- ciais no mundo e nas instituições construção de um novo para- nhecemos a complexidade da e principalmente esclarecem as
exemplo. Em geral, quando as mento compreendemos que que frequentam”. digma para os estudos sobre a infância, advinda de seu caráter razões de Corsaro ser conside-
crianças falam, dizemos que ‘é as crianças produzem saberes O segundo texto analisa a infância, causando significativo híbrido, da heterogeneidade da rado um dos principais respon-
coisa de criança’, que não é algo e conhecimentos sobre as ex- obra de Alan Prout, professor de impacto no cenário científico. O vida social, das redes e media- sáveis pelo desenvolvimento da
sério, ou verdadeiro, ou que não periências cotidianas das quais Sociologia e Estudos da Infân- artigo explora também suas con- ções de elementos que entram Sociologia da Infância:“Ao ques-

8 especial revista educação especial revista educação 9


introdução

bro de comitê internacional de lua historicamente. Quarto, as ricos e metodológicos que sus- apresentar o pesquisador, discu-
http://www.sxc.hu Reprodução
inúmeras revistas. O texto traça crianças devem ser consideradas tentam as formulações e con- tir suas ideias e pesquisas sobre
um panorama do programa de como atores em sentido pleno e ceitos vigentes nesse campo de as relações entre o brinquedo e
pesquisa de Régine Sirota tradu- não simplesmente como seres estudo. Ao analisar as princi- as culturas da infância e suas im-
zido em seu esforço em desen- em devir. Quinto, as crianças pais teses elaboradas pelo au- plicações na educação.
volver investigações sobre temas são ao mesmo tempo produtos tor, Letícia conclui que elas:
ainda pouco explorados (como o e atores dos processos sociais. “trazem os elementos neces- Importância do brincar
estudo das festas de aniversário Trata-se de inverter a proposição sários para a compreensão das O foco de suas pesquisas
das crianças entendidas como clássica, não de discutir sobre o crianças como sujeitos sociais, incide sobre temas como o brin-
um processo de socialização e que produzem a escola, a famí- capazes de produzir mudanças quedo, a cultura infantil de massa,
civilidade) e em sua dedicação lia ou o Estado, mas de indagar nos sistemas nos quais estão as relações entre o jogo (abor-
para constituir o campo da So- sobre o que a criança cria na in- inseridas, ou seja, as forças po- dagens sociológicas e pedagógi-
ciologia da Infância. Com tal
propósito Anete apresenta uma
síntese de alguns traços impor-
tantes reunidos por Sirota que
Com Manuel sarmento compreendemos que as crianças produzem
ajudam a definir as característi- saberes e conhecimentos sobre suas experiências cotidianas
cas da Sociologia da Infância de
língua inglesa e francesa: “Pri- tersecção de suas instâncias de líticas, sociais e econômicas in- cas), a educação pré-escolar com-
meiro, a infância é uma constru- socialização. Isto quer dizer que fluenciam suas vidas ao mesmo parada e a educação informal.
ção social. Ou seja, para enten- a criança é ativa em seu processo tempo que as crianças influen- O sétimo texto aborda as
der as crianças é preciso analisar de socialização. E, por último, ciam o cenário social, político e instigantes ideias do revolu-
de que maneira a infância é vista a infância é uma variável da cultural”. cionário educador italiano Loris
pela sociedade em questão. A in- análise sociológica que se deve O sexto artigo é de autoria Malaguzzi, um autêntico repre-
fância não é um fenômeno ligado considerar em sentido pleno, ar- de Tizuko Morchida Kishimoto, sentante da força criativa das
à imaturidade biológica, não é ticulando-a a variáveis clássicas professora da Faculdade de Edu- experiências pedagógicas das
mais um elemento natural ou como a classe social, o gênero, ou cação de São Paulo. Ele trata da escolas de Reggio Emilia para a
universal dos grupos humanos, é o pertencimento étnico”. obra do pioneiro pesquisador primeira infância. O artigo, es-
tionar concepções As crianças gia da Infância e para histórico e social. Essa desnatu- francês Gilles Brougère, estu- crito pela professora Ana Lúcia
clássicas sobre os também são a reflexão sobre cami- ralização da definição, sem negar Metodologias dioso que apresenta uma refle- Goulart de Faria da Faculdade
pesquisadoras
processos de socia- e, portanto, são nhos alternativos para a imaturidade biológica, enfatiza O quinto texto, elaborado xão muito interessante sobre o de Educação da Unicamp e por
lização, substituindo competentes práticas pedagógicas a variabilidade dos modos de por Maria Letícia Barros Pe- tema do brinquedo e da produ- Adriana Alves Silva, doutoranda
a visão da criança para a criação de e políticas públicas de construção da infância em todas droso Nascimento, professora ção cultural e também discute na mesma instituição, apresenta,
outras relações
como receptora pas- sociais no mundo Educação Infantil” . as dimensões históricas e rein- da Faculdade de Educação da a atual necessidade de encon- de modo envolvente e apaixo-
siva pela da criança e nas instituições Anete Abramo- troduz o objeto infância como Universidade de São Paulo trar alternativas pedagógicas que nado, traços presentes na traje-
coconstrutora de que frequentam wicz, professora da um objeto ordinário de análise (Feusp), analisa a profícua obra coloquem no mesmo espaço as tória do pesquisador, marcado
sua inserção na so- Universidade Federal sociológica. Segundo, a infância do dinamarquês Jens Qvortrup, formas lúdicas e educativas, com pelas diversas relações afetivas
ciedade e na cultura; de São Carlos, apre- é considerada não simplesmente professor emérito da Faculdade a devida clareza sobre as carac- e políticas com diferentes atores
ao sustentar que a compreensão senta os trabalhos da francesa como um momento precursor, de Ciências Sociais da Universi- terísticas de cada uma. Nas pala- sociais do complexo campo da
sobre a infância deve ser cons- Régine Sirota, nome de desta- mas como um componente da dade Norueguesa de Ciência e Tec- vras de Tizuko: “Compreender o educação (inclusive relatam sua
truída com a criança, e não so- que da Sociologia da Infância cultura e da sociedade. Terceiro, nologia (NTNU), em Trondheim, significado do brincar na produ- amizade com Paulo Freire) e, prin-
mente a respeito dela; ao identi- Francesa, que é docente e pes- a infância se situa como uma das Noruega, considerado um dos ção cultural infantil e nas inter- cipalmente, as bases e princípios
ficar processos sociais complexos quisadora na Universidade Paris idades da vida que necessitam fundadores e principais teóri- faces entre o brincar e o educar em que se assentam a pedagogia
e dignos de estudo no mundo da Descartes. Atualmente, além de de exploração específica, como a cos da Sociologia da Infância. O será o desafio enfrentado neste malaguzziana. Na avaliação das
criança, superando assim o foco diretora do Departamento de juventude ou a velhice, já que é artigo possibilita entender não artigo com o apoio de Gilles autoras, em sua trajetória: “ele
no desenvolvimento individual Ciências da Educação e membro uma forma estrutural que jamais somente os traços da trajetória Brougère, renomado pesquisa- manteve um profícuo diálogo
em termos de seus desenlaces efetivo do Centre de Recherche desaparece, não obstante seus profissional e do programa de dor francês que utiliza as Ciên- com a política em suas mais di-
no futuro, Corsaro contribui sur Les Liens Sociaux (CERLIS), membros mudem constante- pesquisa de Qvortrup, como cias da Educação para esclarecer versas facetas, buscando a parti-
para a consolidação da Sociolo- em Paris, ela é também mem- mente e, portanto, a forma evo- também os pressupostos teó- tais questões. O texto propõe cipação popular; enfrentando os

10 especial revista educação especial revista educação 11


introdução

desafios do trabalho coletivo, em rado por Tatiana Noronha de tais como as políticas e avaliação vos, identificar os pressupostos, Seguramente, depois que ele se
especial incentivando a impor- Souza, professora da Universi- de sistemas de educação infantil. consequências, ou inferências meteu em nossas vidas, já nada
tância da pesquisa, do estudo, da dade Estadual Paulista Julio de Verificamos em suas pesquisas que se seguem do que elas pen- foi da mesma maneira. O mundo
exigência rigorosa e constante na Mesquita Filho (Jaboticabal), e que trata da criança em sua cul- sam. São bastante elucidativas as se tornou, em certo sentido, mais

As cem linguagens da criança, Ed. Artmed, 1999. Reprodução


formação de professores e profes- Maria Clotilde Rossetti Ferreira, tura, e não uma criança“pinçada” reflexões realizadas por Walter infantil e, em outro sentido, mais
soras; e principalmente inovando professora da Universidade de descontextualizada do seu meio. sobre os esforços de Lipman: filosófico. E tudo por tentar levar
na consciência coletiva das cem São Paulo (Ribeirão Preto). Ele Trata-se de uma criança em rela- “Nas últimas páginas da sua adiante um contrassenso. Como
linguagens das crianças através analisa traços da vida e obra da ção ao ambiente em que se en- autobiografia, Matthew Lipman uma criança irreverente...”.
de um projeto estético que revo- prestigiada italiana Tullia Mu- contra, que nele se desenvolve, e pergunta se sua empreitada teve Foi um bom desafio orga-
lucionou toda uma experiência satti, que é pesquisadora no Ins- a preocupação com a qualidade êxito. Ele não tem dúvida em nizar esta revista. É com prazer
histórica em educação”(...) tituto de Psicologia do Conselho das experiências que lhe são pro- responder afirmativamente. Sus- que apresento todo este rico
Nacional de Pesquisa (CNR), postas passa a ser de fundamen- tenta que, uma vez instalada nos material ao público leitor, com a
Experiência italiana em Roma, orientadora de teses tal importância. currículos do Ensino Fundamen- esperança de que ele permita a
A partir da década de 1970, é de doutorado em Psicologia da
intensificado o trabalho de con- Interação, Comunicação e Socia-
tinuidade da participação das Malaguzzi foi um autêntico
representante da força criativa
lização, na Universidade La Sa- o americano matthew lipman perturbou o mundo da filosofia e da
famílias na administração das pienza, em Roma, e professora
escolas de Reggio Emilia como
das experiências pedagógicas
das escolas de Reggio Emilia nos cursos de mestrado voltados educação: foi um infante no tão adulto mundo da academia filosófica
um valor imprescindível, tendo para a primeira infância para coordenadores pedagógicos
como base o protagonismo das de instituições de educação in- Sua trajetória nos mostra um tal, a filosofia ali permanecerá por educadores e pesquisadores co-
crianças e a formação exigente fantil, na Universidade de Milão grande engajamento na me- muito tempo; porque, embora nhecer não só a pluralidade de
e constante das professoras. e na de Florença. Além de realizar lhoria da qualidade de vida das possam surgir outros programas tendências, como também algu-
Dessa forma tornavam-se pos- o dispositivo pedagógico, sobre estudos sobre temas relevantes crianças, e indica que devemos de filosofia diferentes do seu, mas das principais mudanças de
síveis os estudos e as pesquisas a diferença, mostram um autor relacionados à qualidade de olhar para questões mais amplas, outras perspectivas filosóficas rumos que marcam os estudos
acerca da experiência local, que inquieto, que busca, como ele vida das crianças nas instituições além daquelas que ocorrem den- além da sua, ele considera que relacionados à infância nas úl-
ficou conhecida em toda a Itália, próprio diz, contradizer-se. Ou educativas (dentre eles: intera- tro das instituições. Será somente nenhuma disciplina pode fazer o timas décadas. Quem sabe isso
consolidando uma pedagogia melhor, dizer-se de outras ma- ções, organização dos espaços, a atuação em todas as dimensões que a filosofia faz: ajudar as crian- nos ajude a ampliar nossos olha-
da escuta, das relações e das di- neiras, a partir de outras pergun- avaliação de instituições, sis- e o olhar para a criança em sua ças a pensar de forma crítica, cria- res para as crianças, sempre tão
ferenças que estava sendo cons- tas que emergem, pois vivendo temas educacionais e políticas completude, que poderão levar tiva e cuidadosa sobre si mesmas encantadoras e surpreendentes.
truída no norte italiano. se aprende e o que se aprende é para a infância), é uma profis- à melhoria da qualidade de vida e o mundo que as rodeia. Este é o
O oitavo texto, elaborado pela fazer maiores perguntas. sional engajada, que atua poli- da infância”. legado de Matthew Lipman e da Referência
professora Flávia Schilling, da Neste pequeno texto introdu- ticamente em diversos espaços, sua fundação, sólida e aberta ao bibliográfica
Faculdade de Educação da USP, tório, apresentaremos sua pro- em defesa da educação infantil e A criança filósofa mesmo tempo, e que excede am- Wallon, H. A Evolução Psicológica da Criança.
Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins
apresenta uma introdução ao posta de um método, o ensaio, realiza consultorias em sistemas Encerra o volume o inspirado plamente a forma específica que Fontes, [1941] 2007.

pensamento do autor espanhol como um lugar possível para de creches e pré-escolas de vá- artigo escrito por Walter Omar ele desenhou e pela qual lutou in-
Jorge Larrosa Bondia, professor pensar o presente. A seguir, con- rias cidades italianas. Num texto Kohan, professor de filosofia cansavelmente para ver a filosofia Teresa Cristina Rego é professora
livre-docente da Faculdade de Educação
titular de Teoria e História da Edu- tinuando seu caminho, traremos generoso em informações e rico da educação na Universidade do praticada nas escolas. da USP e coeditora da Revista Educação
cação na Universidade de Barce- uma apresentação dos disposi- em detalhes, as autoras avaliam Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Como uma criança, Matthew e Pesquisa (Feusp). É mestre e doutora
lona. Seus textos, ainda pouco tivos pedagógicos, das linhas de a relevância e originalidade dos sobre o rico legado de Matthew Lipman perturbou o mundo da em Educação pela USP e pós-doutora
pela Universidad Autónoma de Madrid.
conhecidos entre aqueles que força que se reiteram nas práticas trabalhos de Tullia: Lipman. O filósofo e educador filosofia e da educação. Fez o É pesquisadora do CNPq e autora, entre
estudam a primeira infância, cos- educacionais. Concluiremos com “Podemos, então, observar norte-americano, recém-falecido, que não se esperava dele. Foi um outros, de Vygotsky: uma Perspectiva
Histórico Cultural da Educação (Vozes,
tumam ter grande receptividade algumas reflexões sobre a litera- que Tullia iniciou seu trabalho ficou conhecido em várias partes infante no tão adulto mundo da 22ª ed., 2011), Memórias de Escola:
em seu pais de origem, no Brasil e tura e o pensamento, a liberdade de pesquisadora com questões do mundo por ter idealizado um academia filosófica. Por sobre Cultura Escolar e Constituição de
Singularidades (Vozes, 2003) e coautora
na América Latina de modo geral. e o riso. Este texto terminará com pontuais da Educação Infantil, programa de filosofia para crian- todas as coisas, foi um educador de Psicologia, Educação e as Temáticas da
Eis a proposta do artigo de acordo um convite à leitura dos traba- tais como desenvolvimento e in- ças. Seu propósito era auxiliar as sério e comprometido que, para Vida Contemporânea (Moderna, 2008).
Pela editora Segmento coordenou as
com Flávia: “Seu trabalho com a lhos e ensaios de Jorge Larrosa e teração de crianças e formação crianças a pensar, a estabelecer além de seu programa, educou coleções Pedagogia Contemporânea
literatura como lugar do pensa- da literatura”. de professores e encaminhou relações, fazer críticas, esclarecer na filosofia e na infância, abriu (2009), História da Pedagogia (2010),
Educadores Brasileiros (2009 e 2010) e,
mento, da experiência na prática O penúltimo texto que com- suas pesquisas para questões conceitos, discutir as razões, ex- um mundo nelas para os que ti- em conjunto com Julio Groppa Aquino,
pedagógica, suas leituras sobre põe esta publicação foi elabo- globais do atendimento infantil, plorar pontos de vista alternati- vemos a alegria de conhecê-lo. a Série Biblioteca do Professor (2008).

12 especial revista educação especial revista educação 13


Manuel Jacinto Sarmento

A emergência
da Sociologia
da Infância em
Portugal
Escutar o ponto de vista das crianças significa reconhecer
a competência, a participação e o protagonismo delas nas
cidades, nas decisões políticas, nas pesquisas, na ciência,
na educação e em diferentes espaços sociais
por Ana Cristina Coll Delgado

P
rofessor da Universidade do do Minho. Criou e foi diretor do Programa de Dou-
Minho, Manuel Jacinto Sar- toramento em Estudos da Criança e do Mestrado
mento nasceu em 12 de janeiro em Sociologia da Infância e atualmente dirige o
de 1955, em Braga, Portugal. É Departamento de Ciências Sociais da Educação
doutor por essa instituição deste da Universidade do Minho. Manuel Sarmento é
1997, quando defendeu sua tese orientador de diversas teses de doutoramento, dis-
na área de Educação da Criança, sertações de mestrado, estágios de pós-doutora-
especialização em Estudos So- mento e doutoramento, de estudantes brasileiros
cioeducativos. Licenciou-se em Estudos Portugue- e portugueses. Ele tem inúmeras publicações de
ses pela Faculdade de Letras da Universidade do livros e artigos científicos em Portugal, Brasil, Espa-
Porto e concluiu Mestrado em Educação, com es- nha, França, Reino Unido, Itália, Uruguai e Japão,
pecialização em Administração Escolar, pela Uni- nas áreas de Sociologia da Infância, Sociologia da
Sabe-se que
versidade do Minho, em 1993. Educação e Organização e Administração Escolar.
http://www.sxc.hu Reprodução

crianças sempre
Ele é coordenador de doze projetos de investi- É membro da direção da Associação Internacional existiram, mas
gação, financiados por entidades como Fundação de Sociólogos de Língua Francesa (AISLF), da As- a infância como
uma construção
para a Ciência e a Tecnologia, Fundação Van Leer, sociação Internacional de Sociologia (ISA) e do Co- social é uma
Instituto de Inovação Educacional, Ministério do mitê de Pesquisa em Sociologia da Infância da ISA ideia moderna
Trabalho e da Solidariedade Social e Universidade e da Associação Portuguesa de Sociologia (APS).

14 especial revista educação especial revista educação 15


Manuel Jacinto Sarmento

Além do profundo conhecimento artístico-cul- tuto de Estudos da Criança – atualmente Ins-


tural e sensibilidade estética, Manuel Sarmento tituto de Educação – compartilha as traduções
é igualmente um homem engajado nas lutas po- de algumas obras com estudantes brasileiros
líticas do seu tempo, algo vivido desde o regime de mestrado, doutorado ou pós-doutorado em
fascista de Salazar, o que marcou sua opção de es- Sociologia da Infância e Estudos da Criança.
tudos universitários e experiências de vida. O pro- A socióloga francesa Régine Sirota (ver artigo
fessor desperta nos seus orientandos sensibilidade sobre ela neste fascículo), no texto L’Enfance au
pelas culturas da infância e seus traços distintivos Regard des Sciences Sociales, também reconhece

disposição para COMPARTILHAR saberes E COMPROMETIMENTO


COM O COLETIVO são marcas da personalidade de sarmento
quando comparadas àquelas dos adultos, pela es- que um dos raros campos que publica e traduz
cuta dos pontos de vista das crianças e pelo reco- nas línguas francesa e inglesa é o lusófono; que,
nhecimento e expressão de seu protagonismo nas portanto, conjuga referências de três espaços
pesquisas e nos diversos segmentos da sociedade. linguísticos.
Um traço forte que marca a personalidade de O Instituto de Estudos da Criança surgiu como
Manuel Sarmento é sua disposição para compar- o espaço onde se desenvolveu a Sociologia da In-
tilhar o conhecimento e o comprometimento com fância, em Portugal, a partir dos trabalhos de Ma-
o coletivo, para além dos projetos individuais que nuel Sarmento e colegas do seu grupo de pesquisa.
marcam uma sociedade cada vez mais O Projeto de Investigação sobre a Infância em
individualizada. Essa qualidade ca- Portugal (PiiP), coordenado por ele e Ma-
racteriza sua potência para organi- nuel Pinto, ao longo de quatro anos
zar grupos de estudantes, profes- contribuiu para um conhecimento
soras, professores, pesquisadoras e mais aprofundado e rigoroso da
pesquisadores de diferentes áreas, situação das crianças em Portu-
desde a graduação até o pós-dou- gal, o que instaurou um intenso
torado. Seria impossível destacar debate acerca da infância e uma
num texto o potencial humano e abertura para novos olhares sobre
sensível desse educador. Enfim, o as crianças, influenciados pela So-
encontro com esse pensador da ciologia da Infância. Outro marco
infância certamente produz mar-
Manuel Jacinto na consolidação da Sociologia da
Sarmento dirige
cas nos percursos investigativos de Infância em Portugal foi a realiza-
o Departamento de
seus orientandos, principalmente Ciências Sociais ção do Congresso Internacional
no que se refere às formas de olhar, da Educação da sobre os Mundos Culturais e So-
perceber e escutar as crianças. Universidade do ciais da Infância, promovido pelo
Minho (Portugal), Instituto de Estudos da Criança e
Atuação marcante onde se tornou doutor realizado em janeiro de 2000, em
A colonização do Pode-se afirmar que a en- na área de Educação Braga. Este foi um primeiro en-
imaginário infantil trada da Sociologia da Infância da Criança, em 1997. contro entre estudiosos da infân-
pelo mercado Deve-se a entrada
é um dado no Brasil tem suas origens no cia de referência mundial, como
da Sociologia da
da sociedade intenso e generoso trabalho de Manuel Sarmento, Ana Nunes de
contemporânea Infância no Brasil ao
divulgação realizado por Manuel Almeida, Jens Qvortrup, Régine
Ana Teixeira. Reprodução

que, para Manuel seu intenso trabalho


Sarmento, não Sarmento junto a pesquisadores Sirota, Cléopatre Montandon,
de divulgação junto
podemos ignorar brasileiros. Como essa literatura a pesquisadores David Buckingham, Manuela Fer-
é basicamente produzida em lín- brasileiros. reira, Natália Fernandes, Catarina
gua inglesa ou francesa, o Insti- Tomás, entre outros.

16 especial revista educação especial revista educação 17


Manuel Jacinto Sarmento

A infância na modernidade
e na segunda modernidade
Manuel Sarmento cita recorrentemente em
suas entrevistas e palestras o poema “O Lugar
Comum” (ver box), de Maria Velho da Costa, além
de comentá-lo em “Culturas da Infância nas En-
cruzilhadas da Segunda Modernidade”, artigo
publicado em 2004. Ele faz isso por causa das
reflexões que provoca acerca da medição que
tomou conta do mundo das crianças desde a
modernidade, inscrevendo-se como prescrição
e interdição.

O Lugar Comum,
de Maria Velho da Costa
Há um lugar, um pequeno lugar, tão pequeno
como uma casinha de vidro na floresta em cima
do alfinete, disse a criança. É lá que eu guardei a
minha pena da cara de todos.

Esta criança vai deixar de sorrir,


disse o Medidor de Crianças. (...)

Há um lugar, um pequeno lugar tão pequeno


como o ovo azul do bicho da seda, disse a
criança. É lá que eu guardei o meu amigo.

Esta criança vai deixar de falar, disse o Medidor


de Crianças. (...)

Há um lugar, um pequeno lugar tão pequeno


como a pedra de açúcar que a mosca leva para
os seus filhinhos partirem e fazerem espelhos,
disse a criança. É lá que eu guardei a minha mãe.
Gustavo Morita. Reprodução

Esta criança morreu, disse o Medidor de Crianças.

Há um lugar, um pequeno lugar tão pequeno


como a bolha de sumo dentro do gomo da
tangerina, disse a criança. É lá que eu me guardei
e comi-o e passou para o dentro do dentro do
mais pequeno dos buracos do meu coração. Neste artigo, Sarmento explica que a moder- pelo princípio da negatividade da infân- se criou um conjunto de representações
As crianças
Esta criança acabou, disse o Medidor de nidade configurou a norma social da infância, que cia, ou seja, por um conjunto de inter- aprendem sociais, dispositivos de socialização e
com as outras
Crianças. É preciso fazer outra. podemos compreender como uma administração dições e prescrições que negam ações, controle, é uma ideia moderna.
crianças, nos
simbólica da infância expressa pela criação de re- capacidades ou poderes às crianças: elas espaços de Nas palavras de Manuel Sarmento,
(publicado em Desescrita.
gras, pela fundação de instituições e formulação não votam, não podem ser eleitas, não partilha comuns na modernidade institucionalizou-se e
Porto: Afrontamento,1973)
de princípios e orientações. Essa norma é definida sabem e, por isso, têm de estudar; elas expandiu-se a escola pública e de mas-
não se casam, não pagam impostos, não sas, com as regras e prescrições que se
trabalham, não tomam decisões relevantes e não encarregaram da educação das crianças desde as
são puníveis por crimes. creches e pré-escolas. Ela igualmente produziu a
A MODERNIDADE CONFIGUROU A NORMA SOCIAL DA infância, QUE PODEMOS Sabe-se que crianças sempre existiram, mas a formação de um conjunto de saberes específicos
COMPREENDER COMO ADMINISTRAÇão SIMBóLICA EXPRESSA POR REGRAS infância como uma construção social, para a qual sobre a infância, como a Medicina, a Psicologia, a

18 especial revista educação especial revista educação 19


Manuel Jacinto Sarmento

Pedagogia, o Serviço Social. Esses saberes passa- outros pesquisadores estrangeiros, por muitos anos
ram a definir o que é normal nos padrões de desen- silenciou a presença das crianças enquanto atores A observação é
uma ferramenta
volvimento intelectual, fisiológico e até moral, bem sociais dignos de estudo. Assim, a Sociologia, ou importante
como definiram o que é anormal ou patológico. considerava as crianças no seu ofício de alunas no para que
As rupturas introduzidas pela segunda mo- contexto escolar, ou as diluía no estudo da família. adultos possam
colocar-se no
dernidade, configuradora “da sociedade de risco”, Sendo assim, a infância não era considerada como
lugar das crianças
expressão que Sarmento utiliza em “As Culturas categoria social digna de estudo. Diversas questões e compreender
da Infância nas Encruzilhadas da Segunda Mo- conceituais da Sociologia da Infância são debatidas melhor seus
dernidade” e que é inspirada no sociólogo alemão nos estudos e publicações que Manuel Sarmento pontos de vista
Ulrick Beck, têm alterado profundamente a con- tem organizado ao longo de sua trajetória profis-

Gustavo Morita. Reprodução


dição social da infância. Nesse período denomi- sional. Alguns desses conceitos serão brevemente
nado segunda modernidade por alguns sociólo- apresentados nos próximos itens.
gos, desenvolveu-se a administração simbólica da
infância em meio a contradições e ambivalências: As culturas infantis
os procedimentos de controle são mais refinados Para começar, é importante ressaltar que cul-
e a afirmação dos Direitos da Criança cresceu. Mas turas da infância, para Manuel Sarmento, são os
apesar dos avanços nos direitos da criança, na esco- modos sistematizados de significação do mundo e
larização, nas condições sanitárias, nos dispositivos de ação intencional realizados pelas crianças, e que
de proteção e na esperança de vida, não se tornou são diferentes dos modos adultos de significação e
mais fácil a vida das crianças, pelo contrário, na ação no mundo.
perspectiva de Manuel Sarmento, são mais com- Sua compreensão das crianças enquanto atores
plexas suas condições de existência. Como explica sociais e produtoras de culturas marca uma rup-
o autor, aprofundaram-se as desigualdades sociais tura com as concepções modernas de socialização,
entre as crianças: elas são o grupo geracional mais baseadas na adaptação ou interiorização de regras,
penalizado pela pobreza, pelas doenças, guerras, hábitos e valores do mundo adulto. Por conta disso,
insegurança urbana, pelas rupturas financeiras glo- as crianças não são compreendidas como sujeitos
bais, desastres ambientais e violência. passivos que somente apreendem os programas

na perspectiva de sarmento, APESAR DOS AVANÇOS NOS DIREITOS DA


cRIANÇA, as condições de existência na Infância continuam complexas
Portanto, não é maior a autonomia atribuída às culturais de governo dos seus comportamentos,
crianças e o imaginário infantil tem sido influen- pois elas também resistem à inculcação de normas
ciado e constituído pelo mercado de produtos cul- e de valores. As crianças produzem culturas em
turais para a infância. Nesse sentido, a colonização interação constante com seus pares e os adultos, ou
do imaginário infantil pelo mercado é um dado da seja, elas utilizam formas especificamente infantis
sociedade contemporânea que, para Manuel Sar- de representação e simbolização do mundo, mas
mento, não podemos ignorar em nossos estudos, não o fazem sem uma conexão com outras formas
pesquisas e, acrescento, nas pedagogias da infância. culturais presentes nele.
Na obra coletiva produzida com Manuel Pinto,
Conceitos em debate As Crianças: Contextos e Identidades (1997), Sar-
A infância, até os anos de 1980, não era um mento argumenta que considerar as crianças como
tema de estudo importante no campo da Sociolo- atores sociais implica reconhecer sua capacidade
gia, como foi na Psicologia, na Psicanálise, na Me- de produção simbólica e a constituição das suas
dicina e na Pedagogia. A Sociologia, com exceção representações e crenças em sistemas organiza-
de alguns estudos, como o de Florestan Fernandes dos, isto é, em culturas. Como essas culturas fa-
e o de José de Souza Martins, aqui no Brasil, e de zem parte dos mundos de vida das crianças e esses

20 especial revista educação especial revista educação 21


Manuel Jacinto Sarmento

Escutar o sentidos sobre o que fazem


ponto de vista e seria desajustado compre-
das crianças
significa ender as culturas da infância
reconhecer sua desligadas das interações
competência, com o mundo dos adultos.
sua participação
e seu O conceito de culturas
protagonismo da infância tem implicações
em diferentes na educação, no trabalho
espaços sociais
pedagógico e na docência.
Significa que as culturas
da infância também fazem
parte dos currículos e que as crianças são capazes
de transformar as práticas pedagógicas com os
adultos. Implica o reconhecimento da alteridade
da infância, pois sendo produtoras culturais, as
crianças interpretam, simbolizam e comunicam
suas percepções do mundo, interagem com outras
crianças e com adultos.
Retomando, as culturas da infância exprimem
a cultura social à qual pertencem as crianças, mas,
embora interagindo com adultos, elas produzem
significações de maneira distinta das culturas
adultas, utilizando formas específicas de inteligi-
bilidade, de representação e de simbolização do
mundo. Deste modo, Manuel Sarmento identifica,
em “As Culturas da Infância nas Encruzilhadas da
Segunda Modernidade”, quatro traços das cul-
turas da infância que marcam uma diferença dos
adultos: a interatividade, a ludicidade, a fantasia
do real e a reiteração.
Interatividade ocorre quando as crianças
aprendem com as outras crianças, nos espaços de
partilha comuns. A partilha de tempos, ações, re-
presentações e emoções é necessária para um en-
tendimento mais perfeito do mundo e faz parte do
processo de crescimento das crianças.
Reprodução

A ludicidade é uma das atividades sociais mais


significativas das crianças e um traço fundamen-

mundos se caracterizam pela heterogeneidade, é de apreensão do mundo que é específico das crian-
preciso ter em conta que há uma pluralidade de ças e diferente dos adultos, e se é possível falar em a ludicidade é traço das culturas infantis, mas o brincar
sistemas de valores, de crenças e representações uma autonomia das culturas infantis.
sociais das crianças. É por isso que ao invés de falar não é exclusivo das crianças; também é de homens e mulheres
de uma cultura da infância, Manuel Sarmento e Interações
Manuel Pinto defendem que existe uma plurali- Como as crianças não produzem culturas no conta, as brincadeiras e interpretações que fazem tal das culturas infantis. Entretanto, o brincar não
dade de sistemas simbólicos, sendo preferível falar vazio social, assim como não têm uma completa parte da sua realidade, são um produto das intera- é exclusivo das crianças, sendo também próprio
em “culturas das crianças”,“ou culturas infantis”. autonomia no processo de socialização, Manuel ções com os adultos e com outras crianças. Logo, de homens e mulheres. Para Sarmento, contraria-
Ambos questionam se as culturas das crianças Sarmento e Manuel Pinto esclarecem que as res- é preciso considerar as condições sociais nas quais mente ao entendimento dos adultos, entre brincar
têm um sistema de construção de conhecimento e postas e reações das crianças, os jogos de faz de vivem, com quem interagem e como produzem e fazer coisas sérias, não há distinção, sendo o brin-

22 especial revista educação especial revista educação 23


Manuel Jacinto Sarmento

car muito do que as crianças fazem de mais sério. resistência. Compreender as culturas das crianças
O brincar e o brinquedo são fatores fundamentais requer que se possa pensar nelas como atores ca-
na recriação do mundo e na produção das fantasias pazes de transformação. O produzir e compartilhar
infantis. As brincadeiras são também reflexões e significados acontece em meio a conflitos de inte-
interpretações das crianças sobre situações vividas resses entre adultos e crianças que estão sempre
no cotidiano. A presença constante da ludicidade é em busca de hegemonia para seus significados.
uma peculiaridade das crianças e demarca a alteri- Logo, outro conceito importante para o autor é o
dade entre elas e os adultos. Mas isso não significa de geração.
que nas brincadeiras as crianças sejam meras imi-
tadoras da realidade do mundo adulto, ou recep- Geração
toras passivas dos produtos e programas pensados O conceito de geração é central na Sociologia da
para elas. Infância. Tal como o conceito de gênero, assumiu
Quanto à fantasia do real, Manuel Sarmento um papel relevante nos estudos da sexualidade. A
explica que o “mundo do faz de conta” faz parte geração é um conceito relacional, através do qual
da construção da visão de mundo da criança se produzem as posições assumidas pelas crianças
e da sua atribuição dos significados às coisas. e adultos. Manuel Sarmento sugere que se consi-
Essa transposição imaginária de situações, pes- derem nas investigações as relações intergeracio-
soas, objetos ou acontecimentos está na base da nais (entre diferentes gerações, como as crianças e
constituição da especificidade dos mundos da adultos) e intrageracionais (as subgerações dentro
criança, e é um elemento central da capacidade da geração infância, por exemplo, as crianças do
de resistência que as crianças possuem diante berçário e as crianças do pré-escolar).
das situações mais dolorosas da existência. É por A infância é uma categoria geracional e é ne-
isso que “fazer de conta” é processual e permite cessário articular os elementos de homogenei-
continuar o jogo da vida em condições aceitáveis dade – características comuns a todas as crianças
para a criança. – com os elementos de heterogeneidade – o que
distingue as crianças em diferentes contextos.
Significados Assim, o conceito de geração na configuração
Reiteração ou a “não literalidade” tem o seu sociológica da infância permite distinguir o que
complemento na “não linearidade temporal”. A pertence ao âmbito da análise da estrutura social
criança funde os tempos presente, passado e fu- e o que pertence ao âmbito da análise da ação so-
turo, numa recursividade temporal e numa reitera- cial e simbólica das crianças. No prosseguimento
ção de oportunidades que é muito própria da sua dessas reflexões sobre geração, a infância não é
capacidade de transposição no espaço-tempo e de uma idade de transição, mas uma condição social
fusão do real com o imaginário. O tempo da criança que corresponde a uma faixa etária com carac-
é um tempo recursivo, continuamente reinvestido terísticas distintas, em cada período histórico,
de novas possibilidades, um tempo sem medida, das outras faixas etárias. As crianças são atores
capaz de ser sempre reiniciado e repetido, portanto sociais competentes, munidos de características
o “conta outra vez” das crianças terá sempre novos próprias que se exprimem na alteridade gera-
significados para elas. cional (diferença face às outras gerações). Nesse
Cabe ainda destacar que, para Manuel Sar- sentido, Manuel Sarmento sustenta que é a partir
mento, é no vaivém entre as culturas geradas, con- da ordem da diferença e não das noções de tama-
duzidas e dirigidas pelos adultos para as crianças e nho, de incompletude ou de
entre as culturas construídas nas interações entre Considerar imperfeição, que a Sociologia
as crianças
as crianças que se constituem os mundos culturais como atores
da Infância pode analisar em
da infância. sociais implica que momento se estabelece
Enfim, como atores sociais e competentes nas reconhecer sua a distinção entre crianças
capacidade
relações sociais que vivem no mundo, as crianças e adultos.
de produção
Reprodução

não se limitam a aprender e cumprir as normas simbólica O autor alerta para a pers-
impostas pelos adultos, pois assumem papéis de pectiva diacrônica da geração,

24 especial revista educação especial revista educação 25


Manuel Jacinto Sarmento

pois as crianças de hoje são diferentes das de outras poral das crianças; verificar se a atividade laboral versos países têm contribuído com o movimento Obras de Manuel Jacinto Sarmento
épocas, o que significa pensar nas crianças de hoje interfere no percurso escolar da criança; analisar político de resistência da Sociologia da Infância, ou SARMENTO, Manuel Jacinto. Lógicas da Acção: Estudo Organizacional da Escola
Primária. Braga: Ed. Centro de Estudos da Criança, Universidade do Minho, 1997.
com um distanciamento das nossas experiências as relações que se estabelecem entre os diferentes seja, um movimento que luta pela desocultação da ______. “O Estudo de Caso Etnográfico em Educação”. In: ZAGO, Nadir et al.
do passado. A observação é uma ferramenta im- tempos da criança e o tempo de trabalho. Por úl- infância e das crianças na produção científica, nos Itinerários de Pesquisa. Perspectivas qualitativas em Sociologia da Educação. Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.
portante para que adultos possam colocar-se no timo, a relação entre o trabalho infantil e a estrutura discursos, nas instituições, nas políticas e nos dife- ______; FERREIRA, Manuela. “Subjectividade e Bem-Estar das Crianças: (In)
visibilidade e Voz”. Revista Electrónica de Pesquisa. Universidade Federal de São
lugar das crianças e compreender melhor seus social e os efeitos da reprodução ou da mudança rentes lugares ocupados pelas crianças. Carlos, vol.2, nº 2, 2008 (Disponível em <http://www.reveduc.ufscar.br>. Acesso
em 19/07/2012).
pontos de vista. social também requer análises mais elaboradas. Com Manuel Jacinto Sarmento compreende- ______. “Administração da Infância e da Educação: As Lógicas (políticas) de
Manuel Sarmento analisa que o importante mos que as crianças produzem saberes e conheci- Acção na Era da Justificação Múltipla”. Anais do II Congresso Luso-Brasileiro de
Política e Administração da Educação. Braga, Portugal: Instituto de Estudos da
O trabalho infantil é que nossas pesquisas sejam capazes realmente mentos sobre as experiências cotidianas das quais Criança, Universidade do Minho, 2001 (texto digitado).
______. “A Globalização e a Infância: Impactos na Condição Social e na
Comumente relacionamos a ideia de trabalho de dar importância à palavra das crianças e dos participam. Se pensarmos que a curiosidade, o Escolaridade”. In: GARCIA, Regina Leite. (org.) Em defesa da Educação Infantil. Rio
de Janeiro: DP&A, 2001.
ao mundo dos adultos, como se as crianças estives- jovens trabalhadores, quanto à descrição de seus abrir-se para experimentar o mundo, o desejo
______; BANDEIRA, A.; DORES, R. “Trabalho e Lazer no Quotidiano das
sem fora das relações de trabalho. Mesmo quando universos de vida, que são também seus univer- de viver e conhecer são atitudes importantes na Crianças Exploradas”. In: GARCIA, Regina Leite. (org.) Crianças essas Conhecidas
tão Desconhecidas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
afirmamos que lugar de criança é na escola, esta- sos de trabalho. construção de projetos de investigação, podemos ______. “O Que Cabe na Mão... Proposições para uma Política Integrada da
mos desconsiderando que a escola é também um O mérito dessas reflexões é que elas introdu- inferir que as crianças também são pesquisadoras Infância”. In: Rodrigues, D. (org.) Perspectivas sobre a Inclusão da Educação à
Sociedade. Porto: Porto Editora, 2003.
universo de trabalho das crianças. zem a concepção de trabalho articulado com a e, portanto, são competentes para a criação de ou- ______; VASCONCELOS, Vera Maria Ramos . (orgs.). Infância (In) visível.
Araraquara, SP: Junqueira & Marin, 2007.
Os sociólogos da infância compreendem que criança considerada como ator social e participante tras relações sociais no mundo e nas instituições ______. “Conhecer a Infância: ‘Os Desenhos das Crianças como Produções
as crianças participam do mundo do trabalho, da na sociedade, o que impõe desafios teóricos e me- que frequentam. Simbólicas’”. In: FILHO MARTINS, Altino. & PRADO, Patrícia. Das Pesquisas com
Crianças à Complexidade da Infância. Campinas: Autores Associados, 2011.
produção e do consumo. Ainda que as crianças todológicos no campo das investigações da infân- Em consonância com Alan Prout, Manuel Sar-
apresentem características e especificidades, que cia, como a consideração das crianças que traba- mento também compreende que a Sociologia da
Referências bibliográficas
Infância só poderá desenvolver-se quando for ca- Actas Do Congresso Internacional Os mundos sociais e culturais da infância.
paz de articular o seu programa com a renovação Junho, 2000. Volumes I, II & III. Universidade do Minho. Instituto de Estudos da
Criança. Braga. Portugal.

AO DIZER QUE LUGAR DE CRIANÇA é NA ESCOLA, não consideramos da própria sociologia em geral, com a recusa das DELGADO, Ana Cristina Coll; MULLER, Fernanda. “Infâncias, Tempos e
Espaços: Um Diálogo com Manuel Jacinto Sarmento”. Currículo sem Fronteiras, v.
concepções dogmáticas e fechadas, e com abertura
QUE se trata de UM UNIVERSO DE TRABALHO DELAS à complexidade e à análise não dicotômica das re-
6, p. 15-24, 2006.
MAYALL, Berry. Une Histoire de la Sociologie de l’Enfance de l’Angleterre. Séminaire
Sociologie de l’Enfance dirigé par Régine Sirota, Paris: 30 avril 2009, à la Sorbonne
lações entre a infância como categoria social e as PINTO, Manuel & SARMENTO, Manuel Jacinto (orgs.). Saberes Sobre as Crianças.
Braga: Ed. Centro de Estudos da Criança, Universidade do Minho, 1999.
as distinguem dos outros grupos geracionais, a lham como protagonistas nas transformações das crianças como atores das dimensões estruturais e
______ (orgs.). As Crianças: Contextos e Identidades. Braga, Ed. Centro de
maioria delas exerce um tipo de trabalho. Porém, relações de trabalho. dimensões culturais. Ele também partilha da de- Estudos da Criança, Universidade do Minho, 1997.

muitas das atividades laborais realizadas pelas Como o trabalho infantil exprime as expe- fesa de um diálogo interdisciplinar no interior da ______. “As Crianças e a Infância: Definindo Conceitos, Delimitando o Campo”.
In: PINTO, M.; SARMENTO, M. (coords.) As Crianças: Contextos e Identidades.
crianças colocam em risco sua sobrevivência física riências de variados grupos de crianças, a única Sociologia da Infância com as diferentes áreas do Braga: Centro de Estudos da Criança da Universidade do Minho, 1997.
PROUT, Alan. Reconsiderar a Nova Sociologia da Infância. Braga: Universidade do
e emocional. compreensão focalizada em torno das questões de conhecimento e, aqui complemento, com as Peda- Minho, 2004. (texto digitado).
Considerando as proposições de Manuel Sar- exploração e do abuso das crianças das camadas gogias da Infância e Formação de Professoras/es da SARMENTO, Manuel Jacinto, BANDEIRA, Alexandra & DORES, Raquel. Trabalho
Domiciliário Infantil. Um Estudo de Caso no Vale do Ave. Lisboa: Ministério do
mento, é mais adequado tratar de “trabalhos in- populares impede a análise de outras realidades. Educação Básica. Trabalho e da Solidariedade, 2000.

fantis” no plural, o que inclui o trabalho escolar, Um exemplo significativo é que dificilmente en- A disciplina da Sociologia da Infância tem um SARMENTO, Manuel Jacinto. “As Culturas da Infância nas Encruzilhadas da
Segunda Modernidade”. In: SARMENTO, Manuel Jacinto; CERISARA, Ana
o trabalho doméstico, o agrícola, o realizado nas contramos pesquisas sobre o trabalho exercido pe- desafio a enfrentar, além da superação dos dualis- Beatriz. Crianças e Miúdos: Perspectivas Sociopedagógicas da Infância e Educação.
Porto, Portugal: Asa Editores, 2004.
empresas, o trabalho de rua, o trabalho realizado las crianças das camadas altas e médias, com agen- mos que constituíram a Sociologia moderna e do SARMENTO, Manuel Jacinto. “O Ofício de Criança”. Actas do II Congresso
Internacional ‘Os Mundos Sociais e Culturais da Infância’. Braga, Universidade
na mídia, entre outros. Na publicação coletiva in- das ocupadas por variadas atividades, ou sobre o desafio de investigar a infância em uma perspectiva do Minho, 2000.

titulada Trabalho Domiciliário Infantil. Um Estudo de trabalho infantil realizado na mídia, na televisão, interdisciplinar: trata-se de assumir que escutar o SARMENTO, Manuel Jacinto. “Gerações e Alteridade: Interrogações a partir da
Sociologia da Infância”. Dossiê Sociologia da Infância: Pesquisas com Crianças.
Caso no Vale do Ave (2000), Manuel Sarmento e seus na música e no cinema. ponto de vista das crianças significa reconhecer Educação e Sociedade. Campinas. v. 26, n. 91, maio/ago. 2005.
SARMENTO, Manuel Jacinto & Cerisara, Ana Beatriz. Crianças e Miúdos.
colegas preferem considerar a palavra trabalho a competência, a participação e o protagonismo Perspectivas Sociopedagógicas da Infância e Educação. Porto: Edições Asa,
como uma atividade social, destacando que a re- Um movimento político de delas nas cidades, nas decisões políticas, nas pes- 2004.
SARMENTO, Manuel Jacinto. “Imaginário e Culturas da Infância”. Cadernos de
lação entre trabalho e infância envolve não apenas resistência na Sociologia da Infância quisas, na ciência, na educação e em diferentes Educação, FAE, Pelotas, nº 21, jul./dez. 2003.

o trabalho que é realizado pela criança ligado a um Encontramos na trajetória profissional de Ma- espaços sociais. Essas são questões marcantes na SARMENTO, Manuel Jacinto. “Sociologia da Infância: Correntes e
Confluências”. In: SARMENTO, Manuel Jacinto e GOUVÊA, Maria Cristina
empregador, mas também o trabalho doméstico. nuel Sarmento um movimento contra-hegemônico obra de Manuel Jacinto Sarmento, mas, infeliz- Soares de (Org.). Estudos da Infância: Educação e Práticas Sociais. Petrópolis:
Vozes, 2008.
Na referida publicação, os autores propõem um de resistência frente às desigualdades geracionais, mente, ainda incompreendidas em uma sociedade
conjunto de indicadores sobre os abusos e a ex- de classe, de gênero e de etnia que enfrentam as adultocentrada. Ana Cristina Coll Delgado é professora da graduação
e pós-graduação da Faculdade de Educação da UFPEL
ploração ligados ao trabalho infantil: considerar a crianças em todos os continentes do mundo. Seu A seguir, apresento algumas obras que foram (RS) e coordena o grupo de pesquisa Crianças, infâncias
relação entre a atividade e o desenvolvimento psi- pensamento transgressor e crítico, sua participação consultadas para a organização do artigo, e outras e culturas (CIC). Organizou com Maria Carmen Barbosa
o livro: A Infância no Ensino Fundamental de Nove Anos
cológico de cada criança; analisar como o trabalho em grupos de estudantes, de professores e pro- que fornecem importantes reflexões teóricas e me- (Penso, 2012). É autora de outros capítulos de livros e
infantil afeta a motricidade e o crescimento cor- fessoras, de pesquisadores e pesquisadoras de di- todológicas sobre a Sociologia da Infância. artigos sobre estudos da infância e pesquisas com crianças.

26 especial revista educação especial revista educação 27


ALAN PROUT

A
As pesquisas lan Prout é professor de Escrito em coautoria com Allison James, Construc-
de Alan Prout Sociologia e Estudos da ting and Reconstructing Childhood foi decisivo para
direcionam-se
para o estudo Infância, desde 2005, no uma nova forma de compreender a infância e para
social da infância, Institute of Education a emergência da Sociologia da Infância, como um
a participação de uma das principais novo campo de estudos. Esta foi uma obra semi-
das crianças e
as relações das universidades do Reino nal na construção de um novo paradigma para os
crianças com Unido, University of Wa- estudos sobre a infância, causando grande impacto
as tecnologias, rwick. Suas pesquisas no cenário científico. Pesquisadores e grupos de
entre outros
direcionam-se para o estudo social da infância, a pesquisas, que já vinham estudando a infância a
participação das crianças, as relações das crianças partir de um novo enfoque, passaram a confluir
com as tecnologias, o cotidiano infantil e as rela- seus trabalhos em torno de um diálogo na dire-
ções entre educação e saúde. Pesquisou e ensi- ção da sistematização e do aprofundamento das
nou em várias universidades do Reino Unido, in- concepções e perspectivas relacionadas à infância
cluindo Cambridge, Keele e Stirling. Foi também e às crianças. Nesse contexto, surgiram novos pro-
professor visitante na Universidade de Roskilde, gramas e centros de pesquisa e os que já existiam
na Dinamarca. ganharam maior visibilidade. Proliferaram con-
Com origem disciplinar no campo da An- gressos e seminários sobre o tema, foi criada uma
tropologia Médica, de 1986 a 1995, seus estudos revista científica e foi publicado um conjunto im-
vinculavam-se ao campo da educação em saúde, portante de textos sobre a infância. Essa eferves-
centrando seu olhar na família. Em 2005, voltou- cência contribuiu para que a infância saísse da in-
-se para as crianças, dirigindo, durante cinco anos, visibilidade, ganhando crescente reconhecimento

Novas formas
um amplo programa de pesquisa internacional, o como área legítima de estudo nas pesquisas em
Economic and Social Research Council’s Research Sociologia e campos afins, como a Geografia Hu-
Programme Children 5-16, que focalizava crian- mana, Antropologia Social, entre outras. A infância
ças de 5 a 16 anos, como atores sociais em uma ultrapassou os limites da Psicologia, para ganhar

de compreender a
variedade de contextos. Em 2006, coordenou um outros olhares e perspectivas. Assim, alargou-se a

AS PESQUISAS de prout VOLTAM-SE PARA A APRENDIZAGEM DAS CRIANÇAS

infância
COM TECNOLOGIAS, ESPECIALMENTE POR MEIO DE JOGOS ELETRôNICOS
programa de pesquisa sobre cultura de consumo, compreensão sobre as crianças, que ganham o sta-
estudando as representações do consumidor e os tus de atores sociais e deixam para trás a imagem
estilos de consumo em gestão de serviços públicos. de seres que estão se preparando para exercer sua
Em seguida, em 2011, suas pesquisas voltaram-se cidadania no futuro. Defende-se que a infância,
para a aprendizagem das crianças com tecnologias, como parte da sociedade, ao mesmo tempo que a
no contexto de suas casas, especialmente através produz é por esta produzida.
dos jogos eletrônicos. Seus livros mais conheci- Diante da crítica à imposição de uma concep-
Hoje se reconhece a complexidade do fenômeno, dado o seu caráter híbrido, dos são Constructing and Reconstructing Childhood ção ocidentalizada de infância, construída princi-
(Construindo e reconstruindo a infância, 1990), palmente pelos saberes, testes, mapas, descrições
a heterogeneidade da vida social, as redes e mediações de elementos que Theorizing Childhood (Teorizando a Infância, 1998), e estudos longitudinais psicológicos, Alan Prout e
entram nessa composição, sem separar pessoas e coisas, natureza e cultura Hearing the Voices of Children (Ouvindo vozes das Allison James propõem, em seu livro, uma recons-
Reprodução

crianças, 2003) e The Future of Childhood (O futuro trução da infância em torno de seis proposições:
por Angela Meyer Borba e Jader Janer Moreira Lopes da infância, 2005). A primeira – a infância é uma construção social

28 especial revista educação especial revista educação 29


ALAN PROUT

vés dos significados e sentidos que atribuem às proposições como um esboço do novo paradigma,
situações em que vivem e através dos conheci- sinalizando para a necessidade e o desafio de in-
mentos e valores produzidos coletivamente nas tegrá-las, desenvolvê-las e elaborá-las do ponto
suas interações sociais. Suas práticas, formas de de vista teórico e empírico. Para chegar a esses
expressão, significados, valores, conhecimentos e princípios-chave, investiram em uma dura crítica a
artefatos, partilhados nas interações entre pares, alguns dos principais conceitos responsáveis pelo
constituem culturas próprias e modos específicos lugar de passividade e invisibilidade que durante
de organização das sociedades infantis. tanto tempo as crianças ocuparam no campo cien-

prout e james esforçam-se por romper com a visão da infância


como realidade biológica já dada ou preparação para a vida adulta
Na proposição seguinte – as crianças são e tífico. Esforçaram-se por romper com a visão da
devem ser estudadas como atores na construção de infância como uma realidade biológica já dada ou
sua vida social e da vida daqueles que as rodeiam –, como um período da vida de preparação para a
as crianças são atores sociais competentes, seres vida adulta. Para eles, a “imaturidade das crianças
presentes, que agem de forma própria e intencio- é um fato biológico, mas a forma como a imatu-
nal nos tempos e espaços em que se encontram, ridade é compreendida e significada é um fenô-
através das interações que estabelecem meno da cultura”1* e, como tal, varia em
com seus pares, com os adultos diferentes tempos e lugares. É nesse
e com a sociedade na qual estão sentido que justificam a ideia de
inseridas. As crianças são sujeitos reconstrução da infância. Nesse
que contribuem para a reprodu- empreendimento, os autores
ção, mas também para a produção buscam desconstruir as ideias de
da cultura e da sociedade em que criança passiva, incompleta, in-
estão inseridas. competente, colocando em relevo
Os métodos etnográficos são a criança agente, produtora de cul-
particularmente úteis para o estudo tura, potente, participante ativa da
da infância é a quinta proposição. Allan Prout produção do mundo adulto e da
é professor de
Segundo Prout e James, esses mé- sociedade em que vive.
Sociologia e
todos permitem uma maior pene- Em primeiro lugar, colocaram

Reprodução
Estudos da Infância
tração no mundo da infância, con- em questão o conceito de desenvol-
do Instituto de
ferindo participação e voz mais Educação da vimento que dominou os principais
direta às crianças e contribuindo Universidade de modelos teóricos da psicologia do
para revelar sua atividade social Warwick (Inglaterra) desenvolvimento, evidenciando
– não identifica a infância com um pe- As crianças não é um fenômeno único e universal, específica e seus próprios pontos desde 2005. O que a construção científica da ra-
ríodo de imaturidade biológica, ou seja, são e devem ao contrário, sofre variações nos dife- de vista. atual foco de cionalidade, natureza e universali-
como uma fase inicial no percurso ma- ser estudadas rentes contextos históricos e culturais E por fim, a última proposição, suas pesquisas é dade da infância desconsidera os
como atores na
turacional para a vida adulta; tampouco nos quais se constitui. fala por si só: A infância é um fenô- a aprendizagem fatores históricos e culturais que
construção de
a identifica com a noção de universali- sua vida social e Na terceira proposição, as relações meno no qual se encontra a “dupla das crianças com afetam a criança, reduzindo-a às
da vida daqueles tecnologias por
dade. Constitui um componente cultu- sociais das crianças e suas culturas me- hermenêutica” das ciências sociais suas dimensões biológicas e ao
que as rodeiam meio de jogos
ral e estrutural específico de um grande recem ser estudadas em si mesmas, de evidenciada por Giddens, ou seja, desenvolvimento individual. A
eletrônicos. Também
número de sociedades. modo independente das perspectivas do proclamar um novo paradigma no tem trabalhos no
abordagem desenvolvimentista
Já a ideia de que a infância é uma va- adulto, vê-se uma mudança do olhar estudo sociológico da infância é se campo da educação
riável de análise social que não pode ser compreen- adultocêntrico que constrói a infância de fora, do engajar num processo de “recons- em saúde e sobre
dida, senão na sua relação com outras variáveis como exterior, para um outro olhar situado no universo trução” da criança e da sociedade. cultura de consumo. 1*As traduções dos trechos das obras não
o gênero, classe social, etnia, entende que a infância próprio das crianças, buscando percebê-las atra- Os autores apresentam essas publicadas no Brasil são de nossa autoria.

30 especial revista educação especial revista educação 31


ALAN PROUT

fundamenta-se na ideia de crescimento natural


em direção à racionalidade alcançada pelo pensa-
mento adulto, ponto de chegada do percurso de
aprendizagem iniciado na infância. Esta é vista,
então, como um estágio biologicamente determi-
nado e incompleto do desenvolvimento, situado
no início da escada que leva ao estágio completo,
que seria o da racionalidade adulta. O desenvol-
vimento seria governado por princípios univer-
sais responsáveis pela evolução progressiva do
pensamento humano, ou seja, pela substituição
gradativa de ideias menos sofisticadas por ideias
mais sofisticadas. Nesse modelo explicativo, as ati-
vidades infantis – sua linguagem, suas interações
sociais e brincadeiras – seriam marcas simbólicas
do processo de progressão do desenvolvimento.

Olhar indireto
Em segundo lugar, a ideia de socialização do
pensamento sociológico tradicional também foi
posta em xeque, questionando-se a visão que está
na sua base, a da verticalidade das relações entre
adultos e crianças ou, de forma mais geral, en-
tre as instituições e as crianças. Nas teorias tradi-
cionais de socialização, a sociedade é vista como
um sistema formalmente estabelecido que inculca
suas regras na consciência das crianças. Os pro-
cessos de socialização são compreendidos de uma
forma unilateral, centrados no mundo adulto, en-
tendendo-se que, para se socializarem, as crian-
ças devem se adaptar e internalizar as normas, os
conhecimentos e os valores da sociedade. Seriam
as forças externas representadas pelas ações dos
adultos que, moldando e instruindo as crianças,
permitiriam que elas, sujeitos ainda imaturos para
a vida social, se tornassem membros da sociedade.
Nesse modelo, fica de fora a discussão sobre os
modos pelos quais as crianças participam dos seus
próprios processos de socialização e se tornam su-
jeitos do conhecimento. As crianças são olhadas
indiretamente, através dos adultos e das institui-
ções, com uma visão embaçada, deturpada e par-
cial, que não permite enxergá-las por completo.
Reprodução

Esses dois conceitos, de desenvolvimento e de


socialização, na visão de Allan Prout e Allison Ja-
As crianças são olhadas indiretamente, mes, articularam-se na produção do apagamento
através dos adultos e das instituições, com ou da marginalização da infância, impedindo a
para os autores, os conceitos de desenvolvimento e socialização uma visão embaçada, deturpada e parcial,
compreensão da criança em si mesma, como ser
que não permite enxergá-las por completo
impediram a compreensão da criança em si mesma, como ser presente presente, capaz de interpretar o mundo em que

32 especial revista educação especial revista educação 33


ALAN PROUT

vive e, através de suas ações, afetar o seu entorno


e as pessoas com quem convive. As ideias de vir a
ser, tábula rasa, incompetência, imaturidade, inexpe-
riência, incompletude, que ajudaram a configurar
essa forma de compreender a infância, consti-
tuem metáforas que nos levam a ver a criança pelo
que lhe falta em relação ao adulto, a apreender a
criança da falta, da negação.

Modelos diversos
Em Theorizing Childhood, Prout, Jenks e James
mapeiam as novas possibilidades de compreender
a infância, confrontando-as com as verdades dog-
máticas que ajudaram a construir esse conceito
na modernidade. Apontam a existência de dois
períodos fundamentais dos estudos da infância:
o pré-sociológico e o sociológico. Na fase pré-
-sociológica, os autores identificam que os dife-
rentes modelos explicativos construídos pela psi-
cologia do desenvolvimento, psicanálise, filosofia
e senso comum compartilham uma imagem de
criança excluída de seu contexto histórico e cul-
tural. Essa imagem da criança pré-sociológica foi
disseminada no campo da ciência, em diferentes
disciplinas que abordaram, direta ou indireta-
mente, a infância, mas também no senso comum,
impregnando, ainda hoje, as relações e práticas
entre adultos e crianças na vida cotidiana.
Reprodução

Os cinco modelos explicativos identificados


pelos autores são: o da criança má (the evil child),

tos; e, finalmente, os autores apontam A cognição não senvolvimento, rompendo, assim, com
o modelo da criança inconsciente (the pode ser separada
A imagem da criança pré-sociológica, excluída de seu contexto das condições e
uncounscious child), baseado princi- práticas culturais
as ideias de sujeito passivo, receptáculo
de informações, conhecimentos e práti-
histórico e cultural, foi disseminada na ciência e no senso comum palmente no pensamento freudiano. nas quais as cas, por outro lado aludiu a uma repre-
Neste modelo, a infância é vista como crianças se sentação única e universal da criança e
desenvolvem. O
que encontra seus fundamentos na doutrina do investimento futuro; o da criança imanente (the im- o período em que se formam as bases pensamento está do percurso sequencial da racionalidade
pecado original e reveste as crianças com as ideias manent child), que tem em John Locke o princi- da vida adulta e – a partir da aborda- na interação, na emergente. Ficaram excluídas desse
de corrupção e de maldade, como parte da essên- pal representante dessa forma de pensamento e gem de elementos da personalidade atividade mediada modelo explicativo as determinações
cia infantil. A criança, vista como ser demoníaco, compreende a criança como uma tábula rasa, a (id, ego e superego), estágios de desen- socioculturais e outras vias diferencia-
pode, a qualquer momento, mobilizar as forças do ser moldada pela ação do adulto, através de uma volvimento e complexos – encontram- das de percursos de desenvolvimento.
mal, que devem ser controladas através da imposi- educação sensível às disposições infantis, de modo -se na criança as explicações para os comporta- O pensamento de Vigotski não é mencionado
ção de limites e do direcionamento dos seus com- a formar a criança na direção da racionalidade e da mentos adultos. nesse momento, mas apenas em 2005 no livro em
portamentos; o da criança inocente (the innocent sua integração à sociedade; o da criança natural- Na discussão que fazem sobre as teorias que que Allan Prout fará uma revisão crítica dos Novos
child), que surge em oposição ao anterior, tendo mente desenvolvida (the naturally developing child), ajudaram a construir o modelo da criança natu- Estudos Sociais da Infância: The Future of Childhood.
Rousseau como um dos seus principais precurso- baseado em duas posições principais: as crianças ralmente desenvolvida, os autores destacam o Nesse trabalho, ele faz considerações sobre algu-
res, compreendendo as crianças como essencial- são um fenômeno natural e o desenvolvimento modelo piagetiano. Se por um lado a criança pia- mas perspectivas críticas na psicologia da criança,
mente puras, angelicais, incorruptíveis, a partir de é um processo natural de maturação, indepen- getiana, sujeito epistêmico, foi sublinhada como que têm na sua base a noção de que as crianças são
uma visão romântica e centrada na criança como dente das condições concretas de vida dos sujei- ativa, inteligente, construtora do seu próprio de- constituídas pelos seus diferentes contextos sociais.

34 especial revista educação especial revista educação 35


ALAN PROUT

Insere, nessas abordagens, o modelo ecológico de no sentido de que as crianças constituem um


desenvolvimento de Urie Broffenbrenner e a pers- componente de qualquer sociedade, formando
pectiva histórico-cultural de Vigotski. Baseando-se um grupo, um corpo de atores sociais, de ci-
nas concepções do materialismo histórico e dialé- dadãos que possuem direitos e necessidades,
tico, Prout aponta que Vigotski enfatizou o papel em relação ao qual a sociedade se organiza e
da vida social e cultural no desenvolvimento da se estrutura.
criança, impondo-se alguns desafios importan- Os escritos de Prout sistematizados nes-
tes: integrar as dimensões biológicas e sociais sas décadas trouxeram grande impacto nos
no estudo do desenvolvimento; e reconstruir a estudos da infância e influenciaram trabalhos
origem e o curso do comportamento humano em diversas regiões do mundo. Apesar de sua
e da consciência, a partir da compreensão de grande contribuição e importância, seus li-
que todo fenômeno tem uma história e que vros e textos tiveram poucas traduções para o
essa história é marcada por mudanças qualita- Brasil, o que não o impediu de ser um autor
tivas e quantitativas. Assim, Vigotski busca com- muito referenciado em dissertações e teses,
preender como se constroem as formas culturais relatórios de pesquisas, artigos, apresenta-
do comportamento humano, investigando ções/debates em congressos, encontros e ou-
as mudanças qualitativas que ocorrem ao tros eventos de natureza similar.
longo do desenvolvimento e, dessa forma, As proposições expressas acima se configu-
traz a cultura para o foco da constituição do raram como obrigatórias, estando presentes em
sujeito. Prout destaca que o pensador bielo- grande parte dos textos desenvolvidos no campo
-russo tentou ultrapassar o dualismo dos da infância, o que ajudou a propagar suas ideias
fatores biológicos e sociais através da noção não só no meio acadêmico brasileiro, mas tam-
de ação mediada, entendendo que a criança bém entre as instituições que acolhem crianças
internaliza os significados da cultura através pequenas, nos cursos de formação de profes-

Reprodução
da participação em atividades comuns com sores, nos programas de pós-graduações, nos
outras pessoas, apropriando-se da linguagem, diferentes grupos de pesquisas etc.
valores, conhecimentos, artefatos, modos de agir E assim, pesquisadores em diversas
e pensar próprios da cultura em que se insere. localidades do Brasil mergulharam em
As ferramentas da cultura formam o pensamento espaços de crianças e, apesar de foca-
dos sujeitos. Desse modo, a cognição não pode lizarem questões diferenciadas e temas
ser separada das condições e práticas culturais nas diversos, muitos deles apresentavam algo
quais as crianças se desenvolvem. Na verdade, em comum: desdobrar suas pesquisas tendo
o pensamento está na interação, na atividade como referência os estatutos estabelecidos
mediada, e não no indivíduo isolado. nas obras de Prout.

Fase sociológica Novas obras, novas considerações


Ao referir-se a Vigotski, Allan Prout destaca sua e natureza, compreendendo a infância como um Prout propõe Decorridos anos desse debate inicial, Alan
contribuição para a compreensão do papel da so- fenômeno da cultura e da história e, portanto, va- que retomemos Prout irá trazer outras reflexões aos estudos da
ciedade e da cultura no desenvolvimento humano, riável no tempo de no espaço; a da“criança tribal”, o olhar para Infância. Em The Future of Childhood, ainda
as crianças a
mais especificamente, na constituição da criança, que reconhece os mundos sociais das crianças partir de uma inédito no Brasil, faz uma revisão sobre os
mas sinaliza que levou tempo para que seu pen- como lugares de construção de significados e de perspectiva conhecimentos sistematizados em anos ante-
samento fosse reconhecido no mundo ocidental. culturas próprias, buscando compreender as crian- interdisciplinar riores e propõe que retomemos o olhar para as
Diferenciando-se da fase pré-sociológica dos ças como sujeitos socialmente capazes, participan- crianças a partir de uma perspectiva interdisci-
estudos da infância, Prout pontua que, nos anos tes ativos do seu próprio processo de socialização plinar, em uma conjugação entre as diferentes
1980, inicia-se a fase sociológica, momento em e da sociedade em que vivem; “criança integrante
que as teorias sociológicas despertaram suas pre- de um grupo minoritário”, revelando as relações
ocupações com a infância. São quatro as aborda- desiguais de poder dos adultos sobre as crianças e
gens identificadas: a da“criança socialmente cons- o consequente apagamento dos interesses e inten- a partir de 1980, há quatro olhares sobre a criança: socialmente
truída”, que se opõe às ideias de universalidade ções das crianças; e o da “criança socioestrutural”, construída, tribal, integrante de grupo minoritário e socioestrutural
36 especial revista educação especial revista educação 37
ALAN PROUT

ciências, inclusive as biológicas e naturais. Suas clusão do excluído” nessa construção, criando um
novas contribuições aportam-se em uma crítica à espaço próprio que possa superar o dualismo que
Escultura do Sociologia da Infância que negava qualquer con- marcou os estudos e trazer novos rumos, sem se
artista brasileiro dição não social, negligenciando possíveis contri- situar somente no meio como extremo, em sínte-
Flávio Cerqueira.
buições de outros campos do conhecimento. ses compostas pelas oposições, mas direcionar-se
A infância não
deveria ser para as distinções e dicotomias, que, como faces
vista nem como Fronteiras de uma mesma moeda, produzem matérias, prá-
natural nem Para o autor, a emergência da Sociologia da In- ticas, fenômenos que nos levam a assumir a infân-
como cultural,
mas como uma fância acontece nas décadas de 1980 e 1990, tendo cia como um acontecimento complexo, denso e
multiplicidade de como referências três fontes teóricas. Estreita-se ini- não reduzível a uma única margem. Prout assume
naturezas-culturas cialmente com estudos dos idos de 1960, da Socio- que, nessa dimensão, suas concepções se aproxi-
logia Interacionista, cujo forte referencial vincula-se mam das noções de ator-rede, de Latour (1993),
ao conceito de socialização, remetendo as crianças e de rizoma, de Deleuze e Guattari (1988), e que
a uma condição de passividade; nos anos seguintes é o terceiro excluído que constrói a infância, foco
estreita-se com a Sociologia Estrutural, que coloca para o qual deveríamos direcionar o olhar nesse
a infância como uma dimensão eminentemente novo momento.
social, além das contribuições do Construtivismo Para essa nova fase, alguns itens, algumas
Social, que irá enfatizar a condição histórica da in- palavras-chave podem ajudar a destrancar portas
fância e sua construção como um discurso, relativa ainda não atravessadas. Apesar de admitir que o
no tempo e, por que não dizer, no espaço. campo da Sociologia da Infância seja, significa-
Prout aponta que um dos grandes problemas mente, interdisciplinar, pois recebe contribuições
é que se cria um lugar para a infância marcado de muitas outras áreas de conhecimento, Prout
pelas dicotomias que afligem os diferentes saberes reconhece a necessidade de se aprofundar, de se
e a própria Sociologia moderna. Essas oposições, intensificar esse encontro, de se ampliar cada vez
apesar de terem propiciado (e continuam propi- mais o diálogo entre o que se tem de base comum
ciando) a produção de muitos estudos, são mar- e de diferenças. Tal situação torna-se necessária

um dos grandes problemas é que se cria um lugar para a infância


marcado pelas dicotomias que afligem os diferentes saberes
cadas por desencontros entre estrutura e agência à medida que reconhecemos a complexidade da
(tradução de agency, indicada para designar não infância, advinda de seu caráter híbrido, da hete-
apenas a capacidade de ação da criança, mas tam- rogeneidade da vida social, das redes e mediações
bém seus efeitos), natureza e cultura, ser e devir. de elementos que entram nessa composição, sem
Afirma a necessidade de ir além dessas fronteiras dicotomizar pessoas e coisas, natureza e cultura,
que se opõem como margens situadas em dife- redes sólidas, frágeis, parciais, perecíveis, que se
rentes cantos, que negam comunicações entre si, encontram e desencontram. Nessa composição,
Flavio Cerqueira, Monólogo, escultura, 2011. Reprodução

eliminam pontos de encontro, mediações entre as a mobilidade e o fluxo que configuram o mundo
oposições e que, ao se portarem dessa forma, eli- contemporâneo devem ser considerados: fluxos de
minam aspectos fundamentais que formariam as pessoas, mercadorias, imagens, valores, os quais
infâncias contemporâneas. atravessam fronteiras, fincam-se em diferentes
Para Allan Prout, uma nova agenda da Sociolo- territórios, criam lugares para a infância, lugares
gia da Infância pressupõe voltar-se para o“terceiro não estáveis, mas em constante processo, como
excluído” dessas dicotomias, que não constituiria trajetórias que se constituem. E, aqui, aponta-
um caminho do meio. Dialogando com o pensa- -se um outro item: a análise relacional, a geração
mento do autor italiano Norberto Bobbio (1996) e como trajetória de vida, também compreendida não
seu conceito de “terceiro incluído”, propõe a “in- como algo acabado, estático e fixo, passível de ser

38 especial revista educação especial revista educação 39


ALAN PROUT

cartografado e mapeado em sua fixidez, mas como As relações entre natureza e cultura nos estu- dicotomias clássicas na tradição de pensar a infân- ______.“Childhood Bodies: From Social Construction to Translation”. In: GABE,
J., WILLIAMS, S., CALNAB, M. Theorising Medicine, Health and Society. Sage:
inacabamento, como constante produção no en- dos da infância e a ênfase que se dá em um e outro cia, inventando cotidianamente crianças e adultos. London: Sage, 1999.
______.“Sexuality, Identity and Community: Reflections on the MESMAC
contro com as redes já expressas. Assume que a elemento é um tema que será retomado em pu- Project”, In: PARKER, R., AGGLETON, P.. Culture, Society and Sexuality . London:
“infância não deveria ser vista nem como natural blicação mais recente, intitulada Culture-Nature Obras de Allan Prout Routlege, 1999.
______.“Preface to Second Edition”, In: Constructing and Reconstructing Child-
nem como cultural, mas como uma multiplicidade and the Construction of Childhood (2008). Nesse A relação a seguir, dos livros e capítulos de li- hood: Contemporary Issues in the Sociology of Childhood. London and Philadelphia:
Falmer Press, 1997.
de naturezas-culturas, uma variedade de híbridos texto, o autor faz um percurso entre os diferentes vros publicados por Allan Prout, revela sua ampla ______.“The Changing Study of Childhood and New Directions for Child Re-
search in the UK”. In: VERHELLEN, E. Understanding Childrens Rights. Belgiun:
complexos constituídos a partir de materiais hete- campos de conhecimentos que concorreram para e variada produção acadêmica. Além dos livros, o Children”s Rights Centre, University of Ghent, 1997.
rogêneos e através do tempo. Ela é cultural, bioló- estabelecer seu estatuto na forma de conceber as autor publicou um grande número de artigos em ______.“Objective or Subjective Indicators of Children”s Wellbeing: whose
Perspective Counts? Or the Distal, the Proximal and circuits of Knowledge”,
gica, social, individual, histórica, tecnológica, espa- crianças. Demonstra como os estudos de Darwin, revistas científicas internacionalmente reconhe- In: BEN-ARIEH, A., WINTERSBERGER, H. Monitoring and Measuring the State
of children Beyond Survival. Eurosocial Report 26: European Centre for Social
cial, material, discursiva... e ainda mais. A infância associados a outras áreas nos anos que se suce- cidas, como Childhood: A Global Journal of Child Welfare Policy and Research, 89- 100, Vienna, 1997.

não deve ser vista como um fenômeno unitário, deram, acabaram por compor um quadro em que Research, Children and Society, Sociology of Health ______; CHRISTENSEN, P. “Hierarchies, Boundaries and Symbols: Medicine
Used and the Cultural Performance of Childhood Sickness”. In: PROUT et al.
mas como um conjunto múltiplo de construções ora o peso caiu sobre o biológico, ora sobre o so- and Illness, entre outras. Children, Medicine and Culture. NY: Haworth Press, 1996.
______; JAMES, A. “Strategies and Structures: Towards a New Perspective on
que emergem da conexão e desconexão, fusão e cial. Prout sinaliza que privilegiar uma ou outra Um dos poucos textos traduzidos e publicados Children”s Experiences of Family Life”. In: OBRIEN, M.; BRANNEN, J. Children
in Families. London: Falmer Press,1996.
separação desses materiais heterogêneos”. dimensão reduz as possibilidades de compreensão no Brasil é: “Reconsiderando a nova Sociologia da
______; DEVERELL, K. “Sexuality, Identity and Community: Reflections on
Infância” (Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, p.729- the MESMAC Project”. In: AGGLETON, P.; DAVIES, P.; HART, G. Aids: Safety,
Sexuality and Risk. London: Taylor and Francis, 1995.
750, set./dez. 2010. Disponível em www.scielo. ______; JAMES, A. “Hierarchy, Boundary and Agency: Towards A Theorecti-

“a infância não deveria ser vista nem como natural nem como br/pdf/cp/v40n141/v40n141a04.pdf). Nele, Prout cal Perspective On Childhood”. In: AMBERT, A. Sociological Studies of Children.
Greenwich: JAI Press, 1995.
apresenta um apanhado geral do seu livro O Fu-
cultural, mas como uma multiplicidade de naturezas-culturas”
______., Deverell, K “Issues of HIV Prevention for MWHSWM from the MES-
MAC Project”. In: AGGLETON, P et al. AIDS: Foundations for the Future. London:
turo da Infância. Publicado em 2010, é um material RoutlegeFalmer, 1994.

interessante para quem deseja ter uma visão geral ______. “Illumination/Collaboration/Facilitation/Negotiation:Evaluating
the MESMAC Project”. In: AGGLETON, P et al. Does It Work: Perspectives in the
Em um dos poucos artigos publicados no Bra- da sociedade humana, uma vez que cultura e natu- das novas propostas que ele apresenta. Evaluation of HIV/Aids Health Promotion, 77- 91, London: HEA, 1992.
______.“Children and Childhood in the Sociology of Medicine”. In: TRAKAS,
sil, que, de certa forma, sintetiza as ideias de The reza formam um híbrido, trabalhando uma sobre a D.J., SANZ, E.J. Studying childhood and Medicine Use: A Multidisciplinary Ap-
Future of Childhood, Prout finaliza afirmando que outra, não como causa e efeito, mas de um modo Livros proach. COMAC Workshop on Medicines and Childhood. Athens: ZHTA Medical
Publications, 1992.
PROUT, A. et al. Children, Young People and Social Inclusion. Bristol: Policy
considerar “a linguagem do hibridismo, da rede, mais recíproco, sistêmico e complexo. Ele defende Press, 2006. ______; James. “A New Paradigm for the Sociology of Childhood? Provenance,
Promise and Problems”. In: ________; JAMES, A. Constructing And Reconstruct-
da mobilidade e da reunião” é “um bom caminho que a superação do dualismo natureza-cultura só ______.The Future of Childhood: Towards the Interdisciplinary Study of Children.
London: RoutlegeFalmer, 2005.
ing Childhood: Contemporary Issues in the Sociology of Childhood. London: Routlege-
Falmer, 1990.
a seguir”, pois é “parte da ‘passagem da moder- será alcançada por meio do diálogo interdisciplinar. ______. The Body, Childhood and Society. London : Macmillan, 2000. ______.”Children, Work and Health Work”. In: ROSS, J.; BERGUM, V. Through
nidade’ que (...) a Sociologia da Infância precisa Mas, independentemente de para onde cami- ______. Children, Medicines and Culture. Binghamton, NY: Haworth Press, 1996. the Looking Glass: Childhood and Health Promotion, 67- 74. Ottawa: Canadian
Public Health Association, 1990.
fazer agora”. nha o debate e das grandes contribuições que essa ______; HALLETT, C. Hearing the Voices of Children: Social Policy for a New
Century. London: Routlege Falmer Press, 2003. ______ “Re-Presenting Childhood: Time and Transition in the Study of Child-
hood”. In: JAMES, A.; PROUT, A.; JAMES, A. Constructing and Reconstructing
perspectiva de Prout nos aponta, não podemos ______; JAMES, A, JENKS, C. Theorizing Childhood. Cambridge: Polity Press, 1998. Childhood: Contemporary Issues in the Sociology of Childhood. London: Routlege-

Biológico e social deixar de assumir que os estudos sistematizados, ______; JAMES, A. Constructing and Reconstructing Childhood: Contemporary
Issues in the Sociology of Childhood. London: RoutlegeFalmer, 1990.
Falmer, 1990.
______.“Never Learn Nothing: a Case Study of Pupil Learning in Parenthood
No livro, reverbera-se a condição não única da no início dos anos 1980, e as obras que deles advie- ______; DEVERELL, K. Building Community - Working with Diversity . London:
classes”, In: CAMPBELL, G. et al. Health Education, Youth and Community. Lon-
don: Falmer Press, 1987.
Health Education Authority, 1995.
infância, mas também como da infância como um ram trouxeram novos olhares e desdobramentos ______; Prendergast S “Smile When He Hands You the Book..!: Sexuality and
Gender in the School Curriculum”. In: BOOTH, T.; COULBY, D. Producing and
múltiplo na multiplicidade do mundo, um devir, nas diversas instituições que trabalham com crian-
um constante “tornar-se” (“being in becoming”), ças e permitiram reconfigurar projetos e propostas
Capítulos de livros Reducing Disaffection in Schools. London: Milton Keynes, The Open University
Press, 1987.
PROUT, A. “Participation, Policy and Changing Conditions of ______, Prendergast, S. “Using birth films in School: A case Study of Student”s
pois“tanto crianças quanto adultos são ao mesmo educativas, possibilitando às crianças expressarem Childhood”. In: LINGARD, B., NIXON, J. and RANSON, S. (eds.). Learning Resources”. In: CAMPBELL, G. et al. Health Education, Youth and Com-
Transforming Learning in Schools and Communities: The Remaking of munity. London: Falmer Press, 1986.
tempo seres e devires, dado o inacabamento do seus desejos e se transformarem em trabalhos diá- Education for a Cosmopolitan Society. London: Continuum Press, 2008.
______.“Teenagers and Motherhood: Who”s Being Naive?” In: CAMPBELL,
desenvolvimento de ambos. Além disso, a ênfase rios envolvendo adultos e crianças como protago- ______. “Culture-nature and the Construction of Childhood”.
In: DROTNER, K. and LIVINGSTONE, S. The International Handbook of
G. Health Education and Youth. London: Falmer Press,, 1984.

na criança como ser pode reforçar o mito da sua nistas do processo. Children, Media And Culture. Los Angeles, London: Sage, 2008.
______. “Conclusion: Social Inclusion, The Welfare State And Angela Meyer Borba é doutora em Educação pela
autonomia e independência, deixando-a de fora Cabe a nós continuarmos o debate, lembrando Understanding Children´s Participation”. In: TISDALL, K., DAVIS, J.,
HILL, M.; PROUT, A. Children, Young People and Social Inclusion. Bristol: Universidade Federal Fluminense (UFF), professora associada
da rede de interdependências que a constitui”. que a idade de um espaço não é harmônica com Policy Press, 2006. da Faculdade de Educação da UFF, atuando principalmente na
Essas apreciações aparecem também em outras sua idade cronológica, como assinalou Milton ______.“Reflections on Childhood, Diversity, Pathways and Context “. área da Sociologia da Infância e da Educação Infantil. Escreveu,
In: COOPER C. et al. Hills of Gold: Rethinking Diversity and Contexts as entre outras obras, “Une Cour de l´École au Brésil: Lieu de
obras, como em Childhood Bodies: Construction, Santos em A Natureza do Espaço, de 1999; que o Resources for Children”s Developmental Pathways. New Jersey: Lawrence
Erlbaum, 2005. l´Imaginaire Enfantin” (Autrement, 2009) e “A Participação Social
Agency and Hybridity, de 2000, na qual aponta- tempo histórico se manifesta espacialmente de ______. “Anthropological and Sociological Perspectives on Children and
das Crianças nos Grupos de Brincadeiras: Elementos para a
Childhood”. In: GREENE, S, HOGAN, D. Researching Childhood. London: Compreensão das Culturas da Infância (Educação em Foco, 2009).
-se como as aproximações entre infância e corpo forma desigual, configurando diferentes paisagens Sage, 2005.
são tópicos que despertaram grande interesse geográficas e, portanto, diferenciados processos e ______.“Participation, Policy and the Changing conditions of Childhood”. Jader Janer Moreira Lopes é doutor em Educação pela
In: HALLETT, C., PROUT, A. Hearing the Voices of Children: Social Policy for Universidade Federal Fluminense (UFF) e fez pós-doutorado
nos estudos sociológicos, mas cujas apreciações produções sociais, o que proporciona experiências a New Century. London: Falmer Press, 2003.
na Siegen Universität, Alemanha. É professor do Programa
separaram natureza e cultura, biológico e social, únicas de infância, talvez irrepetíveis (mesmo nas ______. CHRISTENSEN, P. “Children, Place, Space and Genereation”.
In: MAYALL, B, ZEIHER, H. Childhood in Generational Perspective. London:
de Pós-graduação em Educação da UFF. Escreveu, entre
outras obras, O Ser e Estar no Mundo: a Criança e sua
afirmando a necessidade de confluir corpo e socie- suas aproximações globais). Vivências que possibi- Institute of Education, 2003.
Experiência Espacial (Rovelle, 2009) e “Geografia da Infância:
______. “Childhood Bodies, Construction, Agency and Hybridity”,
dade, como caminho de interpretação. litam juntar diferentes gerações, unindo oposições, In: The Body, Childhood and Society. London: Macmillan, 2001. Territorialidades Infantis” (Currículo sem Fronteiras, 2006).

40 especial revista educação especial revista educação 41


William Arnold Corsaro

Em 1975 ingressou no corpo docente da

O futuro da
Universidade de Indiana, Bloomington, onde
é atualmente titular da cadeira Robert H.
Shaffer Class de 1967, no Departamento de
Sociologia. Ministra cursos sobre Sociologia

infância é o
da Infância, crianças na sociedade contempo-
rânea em perspectiva comparativa e métodos
etnográficos. Em mais de trinta anos de car-

presente
reira, Bill, como costuma ser chamado, de-
senvolveu pesquisas em centros do programa
Head Start, em pré-escolas e escolas de ensino
fundamental em Indianapolis e Bloomington,
Estados Unidos, Bolonha e Módena, Itália, e
Trondheim, Noruega.
Em suas duas visitas ao Brasil, em 2007 e
2011, ministrou palestras, conheceu grupos de
pesquisa e interagiu com colegas e alunos de
Psicologia, Pedagogia, Antropologia e Sociolo-
Há mais de trinta anos, gia de diversas universidades. O livro Teoria e
o sociólogo defende que Prática na Pesquisa com Crianças: Diálogos com
compreender as crianças depende William Corsaro, de 2009, organizado por Fer-
de pesquisas com elas nanda Müller e Ana Carvalho, concretizou a
por Fernanda Müller e Ana Maria Almeida Carvalho primeira aproximação de Corsaro ao contexto
acadêmico brasileiro.

D
Caminho alternativo
e ascendência italiana por parte de pai, Bill é, sem dúvida, um dos principais res-
William Arnold Corsaro cresceu em India- ponsáveis pelo desenvolvimento da Socio-
napolis, Indiana, Estados Unidos. Embora logia da Infância. Ao questionar concepções
tenha trabalhado desde cedo, ajudando o clássicas sobre os processos de socialização,
pai em sua banca de frutas e hortaliças no substituindo a visão da criança como receptora
mercado central da cidade, e depois em vá- passiva pela da criança coconstrutora de sua
rios empregos de tempo parcial até a ado- inserção na sociedade e na cultura; ao susten-
lescência, teve uma infância feliz. Primeiro tar que a compreensão sobre a infância deve
de sua família a frequentar a universidade, obteve seu bacha- ser construída com a criança, e não somente a
relado em Sociologia na Universidade de Indiana, em 1970. respeito dela; ao identificar processos sociais
Mais tarde foi para a Universidade da Carolina do Norte, onde complexos e dignos de
despertou seu interesse pelo estudo de crianças pequenas e Corsaro estudo no mundo da
de suas interações com pares, particularmente sobre como se questiona criança, superando as-
concepções
apropriavam da linguagem. Seu maior desafio era superar as sim o foco no desenvol-
clássicas sobre
teorias comportamentalistas sobre a aquisição da linguagem. os processos vimento individual em
Em entrevista a Fernanda Müller, em 2007, Corsaro afirma que, de socialização, termos de seus desen-
por influência de Piaget e Vigotski, “quis ir além da aquisição substituindo a laces no futuro, Corsaro
visão da criança
da linguagem e estudar o desenvolvimento social e cultural das como receptora contribui para a conso-
Gustavo Morita. Reprodução

crianças de um modo mais geral”. Doutorado em 1974, realizou passiva pela lidação da Sociologia da
a seguir um estudo pós-doutoral em uma pré-escola em Berke- da criança Infância e para a reflexão
ley, Califórnia. Foi quando descobriu que crianças pequenas coconstrutora sobre caminhos alterna-
de sua inserção
têm suas próprias culturas de pares, e ganhou das crianças que na sociedade tivos para práticas peda-
observava o apelido de Big Bill. gógicas e políticas pú-

42 especial revista educação especial revista educação 43


William Arnold Corsaro

blicas de Educação Infantil. A cultura das


O modo de ver a criança e crianças é pública
e coletiva e se
o caminho para sua com- expressa em
preensão é o pilar do seu ações: é um
trabalho, de onde decor- conjunto estável
de atividades,
rem suas contribuições me- rotinas, artefatos,
todológicas, conceituais e valores e
educacionais. interesses
Desde o início dos anos
2000, Bill tem publicado so-
bre processos de transição de crianças e condu-
zido pesquisas que focalizam a participação delas
na sociedade civil em diversos países. Pretende se
aposentar no final de 2012, quando passará a viver
em Mesa, Arizona, onde mora um de seus irmãos.
Sua única filha, Veronica, de 24 anos, formou-se
pela Escola de Direito da Universidade de Indiana

Ana Teixeira. Reprodução


em maio deste ano.

Como pesquisar com a criança?


A resposta de Bill é sua proposta de adap-
tação do método etnográfico ao universo da
criança, ou seja, a sua proposta para a entrada e
a aceitação do pesquisador no grupo de crian- riências de entrada e aceitação entre crianças tou. Ouvi claramente a frase Lui è quenas, em que foi pioneiro na Sociolo-
ças. Tal como ele a descreve em muitos de seus norte-americanas e italianas: foi mais fácil e morto, e sabia que significava ‘ele gia: “Estou em uma posição singular
trabalhos, sua estratégia de entrada no campo é rápida a aceitação entre as crianças italianas morreu’ (...). Naquele momento para dar voz às crianças e a suas
“reativa”: aproxima-se do lugar onde as crian- porque seu domínio limitado do idioma fazia lembrei e usei uma frase parti- culturas devido ao sucesso que
ças brincam, senta-se perto delas e espera que com que ele se tornasse “esquisito, engraçado e cular que aprendera nas minhas obtive em penetrar em seus
elas reajam à sua presença. Quando isso ocorre fascinante. Eu não era apenas um adulto atípico, primeiras aulas de italiano: ‘Che mundos”. Para Bill, é a criança
(em geral sem muita demora), limita-se a res- mas também um adulto incompetente – não peccato!’ (‘Que pena!’). Olharam que pode nos mostrar seu
ponder às iniciativas das crianças, sem tentar apenas uma criança grande, mas também uma para mim maravilhados, e Fe- mundo; e, uma vez aceito pelo
dirigir suas atividades ou fazer propostas, atu- espécie de criança grande e boba”, reconhece lice disse: ‘Bill! Bill! Ha ragione! grupo, ele procura entendê-lo a
ando apenas como mais um parceiro da brinca- em um dos capítulos de Teoria e Prática na Pes- Bravo, Bill’ (‘Bill! Bill! Tem razão! partir da perspectiva da criança,
deira. Com essa estratégia, escreve ele, as crian-
William Arnold
quisa com Crianças: Diálogos com William Cor- Parabéns, Bill!’). ‘Bravo, Bill!’, re- por meio de observações con-
Corsaro é
ças rapidamente o definem como um “adulto saro. E um adulto a quem elas podiam corrigir, petiu Roberto. (...) (Eu) não era textualizadas em seu ambiente
professor titular
atípico” e o incluem no grupo. Bill observa que ensinar e elogiar, como neste incidente relatado mais um adulto tentando apren- do Departamento habitual, registradas em notas
der a cultura das crianças. Estava de Sociologia da de campo, fotografias, vídeos,
dentro dela (...). Participava!”. Universidade de e depois analisadas no que ele
uma vez aceito pelo grupo, CORSARO procura entendê-lo a partir É assim, como um parceiro,
que Bill penetra na cultura de
Indiana (EUA), onde
trabalha desde 1975.
chama de abordagem micro, ou
sociopsicológica. Com essa me-
da perspectiva da criança, por observações contextualizadas pares e começa a investigar suas Ministra cursos sobre todologia, Corsaro descobre as
características e o processo de sua crianças na sociedade “culturas de pares”e, analisando
professoras, pais, mães e outros adultos “típi- no mesmo texto: “Estava sentado no chão com construção. No prefácio a We’re contemporânea e sua natureza e o processo de sua
cos” não costumam se aproximar das áreas de conduz pesquisas
dois meninos, Felice e Roberto, brincando de Friends, right? Inside Kids’ Culture construção, propõe o conceito
sobre a participação
brinquedo e quando o fazem é para perguntar, corrida de carrinhos. Felice estava falando de (Nós somos amigos, certo? Por de “reprodução interpretativa”.
social delas em
aconselhar, dirigir a brincadeira, apartar brigas um corredor italiano enquanto brincávamos, dentro da cultura das crianças), Esses dois conceitos já estão
diversos países. Esteve
ou regular disputas. mas tão rápido que eu apenas conseguia en- de 2003, ele atribui a essa con- no Brasil duas vezes presentes em seus primeiros
Um aspecto interessante desse processo é tender parte do que dizia. Em dado momento, dição a possibilidade de realizar para realizar palestras. estudos , progressivamente am-
apontado por Corsaro ao comparar suas expe- contudo, o carrinho bateu na parede e capo- uma etnografia de crianças pe- pliados e aprofundados à me-

44 especial revista educação especial revista educação 45


William Arnold Corsaro

Alguns conceitos desenvolvidos ao longo do produção e mudança cultural, interpretativa en-


percurso de pesquisa de Corsaro serão abordados globa os aspectos inovadores e criativos da partici-
a seguir. pação da criança na sociedade.
Corsaro aponta que a infância é, na perspec-
Cultura de pares e tiva das crianças, um período temporário; mas é
reprodução interpretativa também uma forma estrutural: é uma categoria ou
A abordagem interpretativa de Corsaro se con- uma parte da sociedade, assim como classe social e
trapõe às concepções funcionalistas sobre a cul- grupos etários, uma estrutura permanente, mesmo
tura, que consistem em compreender cultura como que seus membros se renovem e sua natureza e
valores e normas internalizados que orientam o concepção variem historicamente.
comportamento; essa abordagem caracteriza a O conceito de reprodução interpretativa implica
maioria dos estudos tradicionais sobre cultura de pensar que crianças contribuem para a preservação
pares, que focalizam os resultados (positivos e ne- ou reprodução social e para a mudança social. A
gativos) de experiências coletivas sobre o desen- reprodução interpretativa envolve dois elementos-
volvimento individual. Para Corsaro, socialização -chave: linguagem e rotinas culturais. Como as-
não é apenas uma questão de adaptação e interna- pecto central para a participação das crianças em
lização, mas também um processo de apropriação, suas culturas, a linguagem se configura de duas
reinvenção e reprodução. Nesta perspectiva so- formas: primeiro, como um sistema simbólico que
bre socialização é fundamental o reconhecimento codifica a estrutura cultural, social e local; segundo,
do coletivo: o modo como as crianças negociam, como um instrumento para criar e manter realida-
compartilham e produzem cultura com os adultos des psicológicas e sociais. A participação em rotinas
e com seus pares. Embora admita que estudos so- culturais integra as noções de cultura de pares e
bre o desenvolvimento são importantes, ele insiste reprodução interpretativa. Neste sentido, o foco de
que estudar as crianças e suas culturas de pares observação e análise de Corsaro volta-se para as

http://www.sxc.hu Reprodução
é válido por si mesmo: “As crianças merecem ser rotinas, e não para os indivíduos ou para a interna-

aspectos das culturas de pares se desenvolvem como resultado


das tentativas das crianças para dar sentido ao mundo adulto
estudadas como crianças”. A cultura das crianças lização individual de conhecimentos e habilidades.
não é algo que está em suas cabeças, é pública e É por meio da produção coletiva e da participação
dida que, ao longo de mais de trinta Para Corsaro, no ao longo de um ano. Corsaro realizou coletiva e se expressa em ações: define-se como em rotinas que o pertencimento da criança é for-
anos de pesquisa com crianças, Corsaro centro da teia etnografias de culturas de crianças em conjunto estável de atividades, rotinas, artefatos, talecido, tanto em relação a suas culturas de pares
orbital está a
pratica a etnografia longitudinal, cujos pré-escolas particulares em Berkeley, valores e interesses que as crianças produzem e quanto ao mundo adulto. Por um lado, a partici-
família de origem,
objetivos principais são o estabeleci- mediadora da Califórnia, e em Bloomington; em compartilham em interação com pares – entendi- pação de adultos e crianças em rotinas é geradora
mento do estatuto de membro e a ado- entrada na programas de Head Start para crian- dos como o grupo de crianças que passam algum potencial de confusão, ambiguidades e incertezas
ção do ponto de vista “dos de dentro” cultura desde o ças desprivilegiadas (em sua maioria, tempo juntas regularmente. para a criança, uma consequência do poder do
nascimento
– ainda que dificultados, no seu caso, afro-americanas) em Indianapolis e Todavia, para Corsaro não basta enfatizar a im- adulto e da imaturidade cognitiva e emocional da
pelas diferenças óbvias entre adultos Bloomington e em pré-escolas públicas portância de processos coletivos e se afastar da no- criança. Por outro, as rotinas culturais servem como
e crianças em maturidade cognitiva e em Bolonha e Módena. Muitos desses ção individualista de que o desenvolvimento con- bases que possibilitam aos atores sociais lidar com
comunicativa, poder e tamanho físico. Além da grupos de crianças foram acompanhados na tran- siste na internalização, pela criança, de habilidades as ambiguidades e os imprevistos enquanto per-
extensão temporal de seus estudos, outro aspecto sição da pré-escola para o ensino fundamental; e conhecimentos adultos, o que está implicado no manecem em um cotidiano confortável. Um pres-
relevante de sua metodologia é a análise compa- entrevistas formais e informais foram realizadas termo “socialização”. Em substituição a este termo, suposto importante da abordagem interpretativa
rativa, viabilizada pela diversidade de contextos com pais e professoras das crianças a respeito de ele propõe a noção de “reprodução interpretativa”: de Corsaro é que aspectos das culturas de pares
culturais em que são realizados. A maioria das suas experiências educacionais e de suas culturas enquanto o termo reprodução significa que crian- surgem e se desenvolvem como resultado das ten-
raras etnografias de crianças pequenas foi condu- de pares. No decorrer desses estudos foi proposto ças não estão somente internalizando a sociedade tativas das crianças para dar sentido ao mundo
zida em geral em um único contexto e no máximo o conceito de “eventos preparatórios”. e a cultura, e sim contribuindo ativamente para a adulto e resistir a ele.

46 especial revista educação especial revista educação 47


William Arnold Corsaro

Nesta perspectiva, as atividades das crianças Um dos aspectos- cimentos e práticas da in-
com seus pares e sua produção coletiva de uma chave para fância são transformados
uma transição
série de culturas são tão importantes quanto suas tranquila da gradualmente. Ações co-
interações com adultos, e afetam as rotinas na fa- pré-escola letivas repetidas nas cul-
mília e em outros contextos culturais. Portanto, ar- para o ensino turas de pares contribuem
fundamental é ter
gumenta Corsaro, a documentação e a compreen- tido na pré-escola para um melhor entendi-
são de culturas locais, produzidas e compartilhadas experiências mento das crianças sobre
na interação face a face, devem ser tópicos centrais de qualidade e os aspectos da cultura dos
significado
na Sociologia da Infância. adultos dos quais elas se
apropriam, e, através do
Teia de experiências tempo, estas repetições
Para representar graficamente a noção de re- podem até provocar mudanças em certos aspec-
produção interpretativa, Corsaro propõe o modelo tos da cultura dos adultos.
de teia orbital que, a seu ver, captura as caracterís- Convém notar que “pares” não significa neces-
ticas produtivas-reprodutivas desse conceito. A re- sariamente pares de idade: embora na maioria das
produção interpretativa é representada como uma pré-escolas e em outros centros de atendimento
espiral, na qual as crianças produzem e participam institucional à infância as crianças sejam agrupadas
em uma série de culturas de pares que se articu- por idade, um grupo multietário – por exemplo,
lam. Corsaro considera que a teia é uma metáfora crianças da vizinhança brincando juntas na rua
útil para a conceituação do processo de reprodução em cidades pequenas ou em bairros de periferia –
interpretativa devido a várias de suas característi- também é um grupo de pares: é a natureza social
cas: os raios da teia representam os diversos locais desses grupos que os define como tais. No prefá-
ou campos que constituem as instituições sociais cio a We’re Friends, Right?, ele afirma: “As crianças
(familiares, educacionais, culturais, econômicas, são profundamente sociais. Em meus muitos anos
religiosas, políticas, ocupacionais, comunitárias). de observação em pré-escolas, raramente vi uma
Esses campos institucionais existem como estrutu- criança pegar um objeto, um livro ou mesmo um
ras estáveis, mas sempre em transformação, sobre doce e se afastar para brincar ou comer sozinha.
as quais as crianças tecem suas experiências. No Ao invés disso, a satisfação emocional de comparti-
Reprodução

centro da teia está a família de origem, mediadora lhar e fazer junto é intensa, especialmente quando
da entrada na cultura desde o nascimento. Crianças as crianças fazem as coisas por si mesmas, juntas
produzem suas culturas de pares, e essas produ- e sem ajuda ou orientação de adultos. As crian-
ções são articuladas na teia das experiências que crianças atravessam durante a vida: articulam-se à cionais etc.); e lembra ainda que, como qualquer ças querem ter controle e compartilhar esse senti-
tecem com os outros durante toda a vida. teia de experiências tecidas coletivamente por elas metáfora, o modelo tende a reificar um processo mento de controle com outras crianças. Ao fazê-lo,
As espirais da teia representam diferentes e persistem como partes de suas histórias de vida complexo e dinâmico; sua contribuição principal ensinam, umas às outras, como ser social”.
culturas de pares, criadas por cada geração de como membros de uma determinada cultura. é captar a ideia de que as crianças estão perma-
crianças em uma dada sociedade: pré-escola, pré- Corsaro salienta que o mais importante é a es- nentemente participando de duas culturas, a sua Levadas a sério
-adolescência, adolescência e fase adulta. Embora trutura geral do modelo de teia: tal como no caso e a dos adultos, e que estas estão intimamente Corsaro enfatiza a importância de análises
entrelaçadas. A compreensão da complexidade comparativas para identificar diferenças macrocul-
desse processo requer a consideração de que as turais, mas também para identificar aspectos recor-
as crianças estão permanentemente participando de duas culturas, crianças são parte de um grupo social situado
na estrutura social mais ampla (nível macro), e a
rentes nos diferentes contextos estudados. Aponta,
como temas centrais que aparecem em seus es-
a sua e a dos adultos, e estas estão intimamente entrelaçadas análise das atividades coletivas das crianças em tudos e na literatura, a busca, pelas crianças, de
seus grupos de pares e com os adultos (nível mi- controle sobre suas vidas e de compartilhamento
aspectos da cultura de pares possam ser transmiti- das teias de aranha, haverá variações entre cultu- cro). É por meio dessa análise micro que Corsaro desse controle com seus pares. Isso se expressa, por
dos pelas crianças aos parceiros mais jovens, essas ras, subgrupos culturais e momentos históricos identifica que crianças refinam e expandem seus exemplo, nas tentativas de desafiar a autoridade
culturas não são estruturas preexistentes encon- diferentes quanto ao número de raios (campos lugares na cultura através do tempo e da expe- adulta e desenvolver uma identidade de grupo;
tradas pelas crianças: é nesse sentido que dife- institucionais) e o número e natureza das espirais riência. Na interação com pares nos grupos de no estabelecimento de amizades e na proteção do
rem dos campos institucionais sobre os quais são (composição etária dos grupos de crianças, tipos brinquedo, crianças produzem a primeira de uma espaço interacional; em conflitos e diferenciações
tecidas. Culturas de pares não são estágios que as de encontros, relações entre os campos institu- série de culturas de pares nas quais os conhe- que vão se estabelecendo entre os gêneros e em

48 especial revista educação especial revista educação 49


William Arnold Corsaro

termos de status no grupo. Aponta ainda evi- essas histórias das crianças porque são importan- campo. Acompanhou um grupo de 21 crianças de vou que em algumas situações crianças testavam e
dências de que rotinas de aproximação-evitação tes por si mesmas” – é a conclusão de seu prefácio 5 anos em seus últimos seis meses na pré-escola, avaliavam as suas habilidades de leitura e escrita,
Corsaro e brincadeiras de dramatização de papéis (faz de em We´re Friends, Right?. Essa perspectiva desafia a buscando compreender eventos de preparação que ou seja, suas rotinas de pares eram complementa-
apresenta conta) são elementos universais das culturas de Sociologia a levar a criança a sério e a apreciar sua facilitariam sua transição para o ensino fundamen- das com atividades centradas nas habilidades que
uma pares em crianças, ainda que mais estudos sobre contribuição à reprodução e à mudança social. tal. Destas 21 crianças, 17 ingressaram na mesma lhes seriam exigidas no ensino fundamental.
abordagem
pioneira em brincadeiras em outros grupos culturais sejam escola de ensino fundamental, onde permanece- Corsaro e Molinari apontam quatro aspectos-
relação à necessários para sustentar essa proposição. Transições e os eventos preparatórios ram por cinco anos, com duas novas professoras. -chave que contribuíram para uma transição tran-
socialização As noções de reprodução interpretativa e cul- A etnografia longitudinal conduzida por Cor- Como metodologia de investigação, registrou ho- quila quando as crianças passaram da pré-escola
de crianças
ao focalizar turas de pares reconhecem e afirmam a agência saro em Módena foi fundamental para o desen- ras de observação participante, tanto na pré-escola para o ensino fundamental: 1. na pré-escola as
os processos e a competência social das crianças pequenas, e volvimento de conceitos importantes de sua obra, Giuseppe Verdi como na escola de ensino funda- crianças tiveram experiências de qualidade, que
sociais que o grupo de pares como um fenômeno social com entre eles o de transições iniciais na vida das crian- mental (anos iniciais) Giacomo Puccini, e realizou promoveram o desenvolvimento de habilidades
constituem
o mundo
características e funções próprias. A importância ças. Com a colaboração de Luisa Molinari, Cor- entrevistas com um grupo de oito crianças, seus cognitivas, sociais e de alfabetização; 2. a manuten-
da criança das culturas de pares não está na assimilação da saro coletou de 1996 a 2002 um rico conjunto de pais, mães e professoras, desde a pré-escola até o ção, nos cinco anos de ensino fundamental, de um
pequena cultura adulta para fins futuros: “Quero contar dados por meio de permanência prolongada no 5º ano do ensino fundamental, e novamente no 7º mesmo grupo de crianças com duas professoras; 3.
ano do ensino fundamental. a cooperação entre as professoras da pré-escola e
Corsaro apresenta uma perspectiva teórica as professoras do ensino fundamental; 4. a efetiva
interpretativa que entende transição como um participação dos pais na pré-escola os preparou
processo coletivo que sempre ocorre em contex- para apoiar os filhos nessa transição.
tos sociais ou institucionais: transições, a seu ver,
são sempre produzidas coletivamente e compar- Obras de William Corsaro
tilhadas com pares. Ele acredita que a etnografia Corsaro é autor/coautor de quatro livros e coe-
longitudinal lhe permitiu acompanhar as crian- ditor de três; tem mais de 40 capítulos em livros e
ças em suas transições e observar continuidades mais de 50 artigos publicados em periódicos cien-
e descontinuidades desse processo, interpretando tíficos. Dois aspectos chamam a atenção no con-
mudanças na vida das crianças e identificando se junto de suas publicações: a transdisciplinaridade
as suas percepções e representações sociais sobre que se revela no número significativo de trabalhos
essas mudanças eram baseadas em eventos prepa- com parceiros das áreas de Psicologia e Educação,
ratórios, formais ou informais. e de publicações em periódicos dedicados a essas
Eventos preparatórios formais são planejados áreas; e o potencial de impacto internacional de
pelos adultos para demarcar a conclusão de uma seus trabalhos, muitos dos quais foram publicados

a etnografia longitudinal permitiu acompanhar as crianças em


suas transições e observar continuidades e descontinuidades
fase do processo educativo e o início de outra. – ou traduzidos e republicados – em outros idiomas
Como exemplos de eventos preparatórios formais, (italiano, português, francês, alemão, dinamarquês,
Corsaro relata visitas realizadas à escola de ensino romeno, esloveno).
fundamental, onde os alunos do 5º ano foram res- Corsaro é parte do corpo editorial ou parece-
http://www.sxc.hu Reprodução

ponsáveis por receber as crianças da pré-escola e rista convidado de numerosas revistas científicas
apresentar os espaços, instalações e atividades rea- norte-americanas, inglesas e italianas. Entre 1970
lizadas. Eventos preparatórios formais também fo- e 2007 recebeu 26 prêmios por seu desempenho
ram observados quando as professoras, nos meses como professor e pesquisador. Seu livro mais
finais da pré-escola, passaram a solicitar deveres recente, The Palgrave Handbook on Child Studies
de casa, desenvolver mais atividades voltadas à al- (Manual Palgrave de estudos sobre a criança), coe-
fabetização e exigir atenção adicional das crianças. ditado em 2009 com Jens Qvortrup e Michael-Se-
Eventos preparatórios informais são identificados bastian Honig, foi selecionado como título aca-
nos próprios grupos de brincadeira. Corsaro obser- dêmico de destaque por Choice: Current Reviews

50 especial revista educação especial revista educação 51


William Arnold Corsaro

for Academic Libraries. A segunda edição de The ção, “O Estudo Sociológico da Infância”, partindo do “We’re Friends, Right?” Inside Kids’ Culture ros) mostra tanto o vínculo coletivo construído
Sociology of Childhood (Sociologia da infância), de reconhecimento da virtual inexistência de estudos (Somos amigos, certo? Por dentro da cultura pelas crianças na pré-escola e no decorrer do
2005, atualmente em terceira edição, foi traduzida sociológicos sobre a criança pequena até a década de infantil). Washington, D.C.: Joseph Henry Ensino Fundamental quanto a experiência de
em italiano, dinamarquês, romeno e português. 1990, o autor revê teorias tradicionais de socialização Press, 2003. colaboração entre os autores ao longo de anos
e propõe como alternativa a noção de reprodução Segundo o autor, ele busca, neste livro, “cap- de pesquisa conjunta. Buscando analisar como
Livros interpretativa. Na segunda parte, “Crianças, Infância turar as vidas das crianças à medida que criam as crianças são preparadas para a transição da
Friendship and Peer Culture in the Early Years e Famílias no Contexto Histórico e Cultural”, critica e participam da primeira de uma série de cul- pré-escola para o primeiro ano do Ensino Fun-
(Amizade e cultura de pares nos primeiros anos). a Sociologia e a Psicologia pela falta de contextua- turas de pares. Ao fazê-lo, quero trazer as vo- damental, os autores observaram as culturas de
St Louis: Ablex Publishing, 1985. lização histórico-cultural em seus trabalhos, e revê zes das crianças para os debates adultos sobre a pares produzidas pelas crianças e suas formas
Este livro é baseado no estudo pós-doutoral concepções históricas sobre a infância. Nos três infância”. Com esse objetivo, descreve e analisa de apropriação das informações dos adultos.
realizado em 1975 em uma pré-escola em Berke- primeiros capítulos da terceira parte, “Culturas In- comparativamente episódios interacionais em Além de um período prolongado de observação
ley, Califórnia. Apresenta uma abordagem pioneira fantis” retoma seus trabalhos articulando as noções grupos de crianças americanas de classe mé- participante, tanto na pré-escola quanto no pri-
em relação à socialização de crianças ao focalizar de cultura de pares e reprodução interpretativa e dia/média alta e de classe baixa, e de crianças
os processos sociais que constituem o mundo da explora temas centrais das culturas de pares na fase italianas de classe média. Nas culturas de pares
criança pequena. O livro descreve e analisa em ní- pré-escolar: amizade, compartilhamento, participa- dos três grupos encontra alguns pontos comuns,
vel microetnográfico episódios videogravados de ção, autonomia e controle, conflito e diferenciação; como o desejo de ter controle sobre suas vidas
interação de pares, buscando a compreensão da no quarto capítulo, recorre à literatura para discutir e de compartilhar esse sentimento de controle
criação e da utilização, pelas crianças, de concei- culturas de pares na pré-adolescência. Na última com seus pares. Aponta também
tos sociais como status, papéis, regras e amizade, parte do livro,“Crianças, Problemas Sociais e o Fu- diferenças entre os três grupos
e propõe o conceito de cultura de pares para de- turo da Infância”, analisa a problemática da infância quanto a estilos de interação, ma- Na última parte do
neiras de estabelecer amizades e livro, “Crianças,
estratégias de enfrentamento e Problemas
Sociais e o Futuro
corsaro é um grande crítico dO INDIVIDUALISMO E dA CULTURA solução de conflitos. No capítulo da Infância”,
final, faz um apelo por apoio e Corsaro analisa
“FUTURISTA” PREDOMINANTES NO TRATAMENTO DA INFâNCIA NOS EUA compartilhamento, pelos adultos, a problemática
da infância nas
da cultura de pares. Aponta dife- sociedades
signar o conjunto de fatos sociais criados no grupo nas sociedades contemporâneas, apontando o risco renças na visão e no tratamento contemporâneas
de crianças. Aborda ainda algumas implicações de de culpabilização das crianças, especialmente das da infância na Itália e nos Estados
seus resultados para a Educação Infantil. Neste li- mais desprivilegiadas, pelas dificuldades que en- Unidos, criticando o individua-
vro, pela primeira vez um sociólogo interpreta as frentam e a tendência decorrente de ver a criança lismo e a cultura “futurista” predominantes neste
crianças a partir da perspectiva delas mesmas. como um problema social; revê uma ampla varie- último e a segregação entre o mundo adulto e o
dade de problemas que afetam a vida das crianças, mundo da criança, e defendendo uma Educação
The Sociology of Childhood. 1ª ed. Thousand com ênfase na pobreza e suas consequências em Infantil com pouca escolarização e muita liber-
Oaks: Pine Forge Press, 1997. (2ª ed., 2005; termos de nutrição, saúde, educação e exposição dade para brincar, menos segregação por idades
a riscos; aponta as mudanças na estrutura familiar, e mais participação comunitária.

http://www.sxc.hu Reprodução
3ª ed., 2011). Foi publicado no Brasil como
Sociologia da Infância (Porto Alegre: Artmed, 2011), particularmente a incidência de divórcios, materni-
com base na 2ª edição. dade adolescente e vitimização de crianças dentro I Compagni: Understanding Children’s
Em termos de estilo e objetivos este livro difere e fora do lar. Finalmente, apresenta propostas sobre Transition from Preschool to Elementary
dos demais, nos quais Corsaro relata, com riqueza modos de investir na infância, quer em nível macro, School (Os companheiros: compreendendo
de observações, os resultados de seus estudos e sua com ações políticas e econômicas, quer de forma a transição das crianças da pré-escola
leitura a partir de uma abordagem interpretativa. mais modesta, no nível da família, de ações comu- para o Ensino Fundamental). New York:
Neste, embora mantendo a prática de se reportar nitárias, de redução da segregação entre as gerações Teacher College Press, 2005 (em coautoria
sempre que possível aos dados de seus próprios e e de proteção de crianças e adolescentes contra ris- com Luisa Molinari).
de outros estudos, há um recurso maior à literatura cos de abuso e violência. Conclui com uma aparente Este livro apresenta um estudo
– ainda que de forma seletiva, privilegiando traba- obviedade, da qual decorre uma conclusão não tão longitudinal sobre os processos
lhos que mantêm alguma afinidade com seu enfo- óbvia e pouco praticada:“Nossas crianças são nosso de transição de crianças da pré-
que e apontando em que aspectos divergem deste. futuro. E se existe uma conclusão, uma moral, um -escola para o Ensino Funda-
O livro desenvolve argumentos e reflexões que já se insight que eu gostaria que fosse extraído deste livro, mental, em Módena. O título
encontram em trabalhos anteriores. Na primeira se- é: o futuro da infância é o presente”. – I Compagni (os companhei-

52 especial revista educação especial revista educação 53


William Arnold Corsaro

meiro ano do ensino fundamental, os autores Reprodução interpretativa e cultura de pares


se valeram de entrevistas, conduzidas durante “Interpretative Reproduction in Children’s Peer Por meio de suas negociações com
adultos e da produção criativa de
seis anos com crianças, pais, mães e professoras, Cultures” (Reprodução interpretativa na cultura
uma série de culturas de pares,
que capturaram elementos individuais, interpes- de pares das crianças). Social Psychology Quarterly, as crianças se tornam parte da

http://www.sxc.hu Reprodução
soais e coletivos que fazem parte de processos de v. 55, n.2, pp. 160-177, Special issue: Theoretical cultura adulta, contribuindo para
transição e de seus eventos preparatórios. Foram advances in Social Psychology, 1992. sua reprodução e ampliação
documentadas não só a transição da pré-escola Este artigo propõe uma abordagem interpre-
para o ensino fundamental, como também dos tativa à socialização da criança que viria suprir a
anos iniciais para os anos finais do ensino fun- escassez de teorização sobre crianças pequenas no
damental. Na primeira parte do livro, os autores campo da Sociologia. Concebe a socialização como
apresentam e justificam a escolha pela cidade de um processo coletivo que ocorre no âmbito social,
Módena e pelas escolas. Na segunda, exploram e não individual como nas concepções tradicionais
elementos das rotinas, atividades e eventos na sobre o desenvolvimento. A abordagem interpre-
pré-escola para mostrar como estes fazem parte tativa sustenta que, por meio de sua participação
de um processo de preparação para a transição em rotinas culturais, as crianças se apropriam cria-
para o ensino fundamental. A terceira parte trata tivamente de informações do mundo adulto para
da transição para o ensino fundamental, das cul- produzir culturas de pares singulares e diferencia-
turas de pares produzidas na escola e da adap- das. Por meio de suas negociações com adultos e
tação das crianças às novas demandas escolares. da produção criativa de uma série de culturas de
A quarta parte apresenta as conclusões e contri- pares, as crianças se tornam parte da cultura adulta,
buições teóricas para estudos sobre transições contribuindo para sua reprodução e ampliação. Políticas e práticas Referências bibliográficas
das crianças, bem como suas implicações para “Educação Infantil na Itália e nos EUA: Corsaro, W. Friendship and Peer Culture in the Early Years. St Louis:
Ablex Publishing, 1985.
práticas pedagógicas e políticas públicas na Itália Transições Diferentes Abordagens e Oportunidades para as ______. “Interpretive Reproduction in Children’s Peer Cultures”. Social Psychology
e nos Estados Unidos. “Priming Events and Italian Children’s Crianças”. In: Müller, F.; Carvalho, A.M.A. (orgs.) Quarterly, v. 55, n.2, pp. 160-177, Special issue: Theoretical advances in Social Psychology,
1992.
Transitions from Preschool to Elementary Teoria e Prática na Pesquisa com Crianças: Diálogos com ______. The Sociology of Childhood. Thousand Oaks, California: Pine Forge Press, 1997.

Artigos School: Representations and Actions” (Eventos William Corsaro. São Paulo: Cortez Editora, 2009, pp. ______. We’re friends, right? Inside kids’ culture. Washington:
Joseph Henry Press, 2003.
Método preparatórios e transições de crianças italianas 139-162. ______. “Entrada no Campo, Aceitação e Natureza da Participação nos Estudos
Etnográficos com Crianças Pequenas”. Educação & Sociedade, v .26, n. 91,
“Entrada no Campo, Aceitação e Natureza da pré-escola ao Ensino Fundamental). Social Neste capítulo Corsaro apresenta algumas p. 443-464, 2005.
da Participação no Estudo Etnográfico com Psychology Quarterly, 63, 1, pp. 16-33, 2000 (em experiências de Educação Infantil na Itália e nos ______. “Educação Infantil na Itália e nos EUA: Diferentes Abordagens e
Oportunidades para as Crianças”. In: Müller, F.; Carvalho, A.M.A. (orgs.)
Crianças Pequenas”. Educação & Sociedade, v. 26, coautoria com Luisa Molinari). Estados Unidos e reflexões sobre as implicações Teoria e Prática na Pesquisa com Crianças: Diálogos com William Corsaro.
São Paulo: Cortez, 2009.
n.1, pp. 443-464, 2005 (adaptação do capítulo 1 de Este artigo apresenta um estudo etnográfico para a educação das crianças nesses dois paí- ______. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.
We´re Friends, Right?). sobre a transição de crianças da pré-escola para o ses, que concebem a infância e a educação de ______; Molinari, L. I Compagni: Understanding Children’s Transition from
Preschool to Elementary School. New York: Teachers College Press, 2005.
Corsaro aborda aqui os desafios da pes- ensino fundamental nos Estados Unidos e na Itália. forma distinta. Ainda que reconheça o caráter ______. “Priming Events and Italian Children’s Transitions from Preschool to
quisa etnográfica com crianças pequenas que Explora a ideia de eventos preparatórios segundo a assistencialista do Programa Head Start, admite Elementary School: Representations and Actions”. Social Psychology Quarterly,
v. 63, n. 1, pp. 16-33, 2000.
decorrem da assimetria de poder entre adultos abordagem interpretativa sobre socialização. Expõe que as crianças pobres e pertencentes a grupos Müller, F. “Entrevista com William Corsaro”. Educação & Sociedade, v. 28, n. 98,
pp. 271-278, 2007.
e crianças, relatando suas pesquisas compara- exemplos de diferentes tipos de eventos preparató- minoritários se beneficiavam dele. Contudo, a
______ ; CARVALHO, A.M.A. (orgs.) Teoria e Prática na Pesquisa com Crianças: Diálogos
tivas com crianças italianas e americanas. Seu rios na pré-escola e mostra como atividades cole- maioria das famílias americanas é obrigada a com William Corsaro. São Paulo: Cortez Editora, 2009.

foco é sobre os procedimentos de entrada no tivas afetam as representações das crianças sobre a prover os meios para a educação dos filhos pe- Qvortrup, J., Corsaro, W.A; Honig, M-S. The Palgrave Handbook of Childhood
Studies. London: Palgrave Macmillan, 2009.
campo, aceitação pelas crianças como partici- futura transição para o primeiro ano. Dados sobre quenos no setor privado, apontado como de
pante do grupo e procedimentos de registro. representações dos pais antes e depois da transição baixa qualidade. Em Módena, por outro lado, Ana Maria Almeida Carvalho é doutora em Psicologia pela
A seguir discute como, com o tempo, passou a são apresentados e comparados com as represen- 100% das crianças frequentam pré-escolas, a Universidade de São Paulo. É professora aposentada do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
abrir seus procedimentos de coleta à contribui- tações das crianças. Os autores concluem que as maioria ofertada na esfera pública. Com base Co-organizou, entre outras obras, Brincadeira e Cultura:
ção das próprias crianças, ou seja, a pesquisar experiências das crianças com os eventos prepa- em sua longa etnografia, Corsaro reconhece a Viajando pelo Brasil que Brinca (Casa do Psicólogo, 2003) e
“Infância e Educação Infantil” (Psicologia USP, 2009).
com elas, e não sobre elas. Ao final, aborda uma ratórios na pré-escola foram importantes para a qualidade do atendimento à criança nesta cidade
etnografia longitudinal em períodos de transição sua adaptação ao ensino fundamental. O trabalho e região da Itália (Emilia-Romagna), e escreve Fernanda Müller é doutora em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professora
na vida das crianças, utilizando seu estudo em pretende contribuir para a pesquisa comparativa nas três seções desse capítulo sobre a história da da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília
Módena, onde acompanhou as crianças desde sobre a educação das crianças pequenas e para o pré-escola na Itália, sua estrutura e organização (UnB). Organizou a coletânea Infância em Perspectiva:
Políticas, Pesquisas e Instituições (Cortez, 2010) e publicou
a pré-escola e ao longo dos primeiros anos do desenvolvimento da teoria sobre transições de vida e alguns exemplos da vida nas pré-escolas de recentemente “Infância e Cidade: Porto Alegre através das
ensino fundamental. e rituais de passagem. Bolonha e Módena. Lentes das Crianças” (Educação & Realidade, 2012).

54 especial revista educação especial revista educação 55


RÉGINE SIROTA

Novo ator

Reprodução
no campo
social
A criança era uma espécie de
fantasma para a Sociologia, mesmo
estando presente em todos os projetos
das políticas públicas. A Sociologia
da Infância, ao contrário, quer ver
a criança não só como um vir a ser,
um devir, mas como um componente
estrutural da nossa sociedade
por Anete Abramowicz

E
m busca de compreensão da perspectiva da
criança sobre o mundo, surgiu um movimento
na Europa e em alguns países de língua inglesa
chamado de Sociologia da Infância. A Sociolo-
gia da Infância procurou criar uma nova pai-
sagem científica a partir da década de 1980 e
que teve um caráter renovador, em especial no
campo teórico francês. Os sociólogos anglo-
-saxões e de língua inglesa já haviam constituído o campo teó-
rico da Sociologia da Infância há quase dez anos, pois segundo
um dos protagonistas desta sociologia, o dinamarquês Jens
Qvortrup (ver artigo sobre ele neste fascículo),
“as crianças são, entre as minorias, as menos Sirota se
protegidas, porque elas não são seus próprios dedicou a
porta-vozes”. O que ele quis dizer com esta estudar as festas
de aniversário
frase é que do ponto de vista da micropolítica, das crianças
do espaço local onde se relacionam e vivem as como um ritual
crianças, elas não dizem por elas mesmas, ou de socialização
seja, são os pais, as professoras, as escolas, os

56 especial revista educação especial revista educação 57


RÉGINE SIROTA

Do ponto de vista ganizou ainda um terceiro número para a mesma Centre de Recherche sur Les Liens Sociaux (CER-
da micropolítica, revista com mesma temática, lançado em 1999. LIS), em Paris. É membro do comitê internacional
as crianças
não dizem por Dez anos antes, no campo teórico da Sociologia da de inúmeras revistas.
elas mesmas. Educação produziu o artigo: “Analyse Sociologique
São os pais, as d’une Situation Didactique à l’Aide d’une Nouvelle O foco na escola
professoras,
as escolas, os Grille d’Observation” (Análise sociológica de uma Como especialista em Sociologia da Educação,
médicos que situação didática com ajuda de uma nova grade de Régine procurava compreender a forma de funcio-
falam sobre a observação), publicado em um dos mais antigos namento do sistema escolar, particularmente em
criança, e às
vezes, falam periódicos de Educação da França, a Revue Fran- relação ao fracasso escolar. Ao estudar a sala de
pelas crianças çaise de Pédagogie: Recherche en Éducation (Revista aula, que era considerada como uma “caixa-preta”
Francesa de Pedagogia: pesquisa em Educação). para os sociólogos, ela buscava entender de que
Portanto, podemos considerar o ano de 1998 maneira a escola produz e reproduz as desigual-
como o marco zero da Sociologia da Infância fran- dades sociais existentes na realidade social. Traba-
cesa, e Régine Sirota a percursora deste campo na lhou sob a perspectiva teórica de Pierre Bourdieu
França e também na Europa. Neste primeiro dos- (sociólogo francês, um dos mais importantes do
siê sobre a Sociologia da Infância publicado nesse pós-guerra, analisou especialmente os mecanis-
periódico que era consagrado aos temas perten- mos de reprodução das hierarquias sociais); e tam-
centes à Sociologia da Educação, Régine Sirota bém de Passeron e Baudelot Establet, cuja obra A
realizara e tornara pública sua passagem teórica de Reprodução teve um impacto muito importante no
uma socióloga, doutora em Ciências da Educação, Brasil, especialmente no campo da Sociologia da
professora e pesquisadora que trabalhava na área Educação, na qual reforçou uma concepção que
da Sociologia da Educação, para a pesquisadora ficou conhecida como reprodutivista da educação;
que ficará internacionalmente conhecida e do interacionismo de Erving Goffman, cien-
como a precursora da Sociologia da tista social que trabalhou com as institui-
Infância Francesa. ções, em especial com as “instituições
Em entrevista dada em junho totais”, expressão criada por ele.
de 2005 a Marie Raynal, editora O livro de Régine Sirota escrito
da revista Diversité: Ville École In- nessa perspectiva é A Escola Pri-

Reprodução
tégration, Sirota afirmou: “Num mária no Cotidiano, publicado em
primeiro momento, eu coordenei 1988 na França. Resulta de uma
dois números da revista Educação pesquisa na qual ela observou sete
e Sociedade sobre a Sociologia da classes primárias, entrevistou as
Infância, que são os dois primeiros Régine Sirota professoras e procurou mostrar a
números que tratam diretamente relação entre a origem social da
a escola primária no cotidiano procurou mostrar a relação entre desse assunto na França e eu ten-
é professora da
Universidade Paris criança, o capital cultural e o su-
a origem social da criança, o capital cultural e o sucesso escolar tei, no editorial, traçar o histórico Descartes (França) cesso escolar. Nesta perspectiva
desse interesse pela Sociologia e considerada ela buscou compreender de que
médicos que falam sobre a criança e, às vezes, fa- Em 1998 a revista internacional de sociologia da Infância, enquanto Cléopâtre precursora da maneira a pertinência social da
lam pelas crianças. Este fato indica que na ordem da educação, Éducation et Sociétés (Educação e So- Montandon fazia, no mesmo nú- Sociologia da criança influencia as práticas na
Infância em seu
discursiva existem as falas que são consideradas ciedades), lançou seu segundo número escrito em mero, um balanço da literatura escola no exercício que ela deno-
país e na Europa.
e as falas que não são levadas em conta, como francês. No editorial deste número estava escrito: anglo-saxônica sobre o assunto”. minou de“métier do aluno”. Partiu,
Orientadora
é o caso da fala das crianças e a dos loucos, por “Este segundo número aborda um tema que é A parisiense Régine Sirota que portanto “do postulado de que as
de mestrados
exemplo. Em geral, quando as crianças falam, di- ainda largamente prospectivo: a Sociologia da In- nasceu em 17 de fevereiro de 1951 e doutorados, práticas escolares de uma criança
zemos que“é coisa de criança”, que não é algo sé- fância”. E o editorialista continuava: “há menos de é professora, pesquisadora e orien- também realiza em situação pedagógica são uma
rio, ou verdadeiro, ou que não é uma fala que faça dez anos, Anne van Haecht definia a infância como tadora de mestrado e doutorado pesquisas sobre as metáfora do conjunto de suas prá-
sentido. E do ponto de vista da macropolítica, as uma terra desconhecida do sociólogo”. na Universidade Paris Descartes, festas de aniversário ticas sociais”. Neste estudo ela fez
crianças não têm nenhuma representação política Régine Sirota tomou para si a responsabilidade em Paris. Atualmente, é diretora das crianças na uma distinção entre os meninos e
e não podem se representar, ou seja, como disse de organizar esse que foi o primeiro número sobre do Departamento de Ciências da literatura infantil. as meninas, especialmente descre-
Qvortrup, não são porta-vozes de si próprias. esse campo que ganhava visibilidade pública e or- Educação e membro efetivo do vendo os comportamentos dife-

58 especial revista educação especial revista educação 59


RÉGINE SIROTA

rentes das meninas em rela- Sirota estudou


ção aos meninos. Perrenoud, a sala de aula
buscando
ao comentar este livro na entender de
Revue Française de Pédagogie que maneira a
número 88, de 1989, afirmou escola produz
e reproduz as
que ele é importante “de iní- desigualdades
cio para se convencer de que sociais
a participação dos alunos existentes na
realidade social
na classe não é somente um
affaire de boa vontade, como
se lê frequentemente nos bo-
letins escolares, mas ela está sob a dependência de
um habitus de classe e de atitudes familiares em
relação à escolaridade”.

Do saber à didática
Em 1992 Régine Sirota publicou: Du Laboratoire
à la Classe, le Parcours du Savoir  (Do laboratório à
classe, o percurso do saber). Esta obra foi influen-
ciada pela área da didática cujo conceito utilizado
foi o de transposição didática de Yves Chevallard.
O objetivo do trabalho foi analisar de que maneira
um conhecimento produzido cientificamente em
um laboratório, por exemplo, de biologia, se trans-
formava em saber didático, saber que deveria ser
ensinado para crianças e jovens em uma escola
pública. O livro descreve, então, as transformações
pelas quais passa um saber quando sai da esfera
daquilo que é considerado como científico, produ-
zido a partir das normas e do método científico, e
é transposto como uma disciplina que deve ser en-
sinada para alunos em uma escola, na sala de aula.
Em 1998, publicou o dossiê sobre Sociologia
da Infância e em 2006 organizou Éléments pour une

Reprodução
Sociologie de l’Enfance (Elementos para uma Socio-
logia da Infância), período em que já se encontrava

(ver artigo neste fascículo), Éric Plaisance, Cléopâtre Língua Francesa (AISLF) e da Associação Interna-
o livro do laboratório à classe analisa de que maneira um Montandon, Gilles Brougére, entre outros e há neste cional de Sociologia (AIS).
livro um artigo de pesquisadoras brasileiras, uma Portanto, podemos dizer que é a partir da década
conhecimento científico se transformava em saber didático delas que poderíamos considerar como precursora de 1990 que se realizou um verdadeiro crescimento
deste campo no Brasil que é a Fulvia Rosemberg, na produção estrangeira, mais do que isto, iniciou-se,
completamente imersa no campo da Sociologia da Sociologia da Infância. Pequeno objeto insólito ou que escreve em conjunto com Rosangela Freitas o como disse Manuel Jacinto Sarmento, professor titu-
Infância. Este livro contém 27 artigos escritos pelos campo constituído: a sociologia da infância é ela artigo: Voix Dissonantes sur l’Élimination du Travail lar do Instituto de Estudos da Criança (IEC), da Uni-
principais sociólogos da infância, principalmente ainda um campo em gestação?). Podemos destacar Infantile au Brésil (Vozes dissonantes sobre a elimi- versidade do Minho em Portugal “um olhar caleidos-
europeus, precedidos de uma apresentação de Si- a presença neste livro de alguns autores, pesquisa- nação do trabalho infantil no Brasil). cópico sobre a Sociologia no sentido de identificar a
rota intitulada: Pour une Sociologie de l’Enfance. Petit dores que fazem parte do campo da Sociologia da Nesta ocasião, em 2006, Régine Sirota já era co- presença da infância no desenvolvimento do pensa-
Objet Insolite ou Champ Constitué, la Sociologie de Infância, que vem se constituindo desde a década ordenadora do grupo de trabalho de Sociologia da mento sociológico e descortinar as razões da sua gri-
l’Enfance Est-Elle encore dans les Choux? (Por uma de 1980: Claude Javeau, Manuel Jacinto Sarmento Infância no âmbito da Associação dos Sociólogos de tante ausência nas correntes clássicas da Sociologia”.

60 especial revista educação especial revista educação 61


RÉGINE SIROTA

A constituição da Sociologia da Infância A criança era uma espécie de fantasma , mesmo


Em uma entrevista dada à revista Diversité, que estivesse presente em todos os projetos das
em 2005, Regine dizia “O que me interessava era políticas públicas, e obviamente no coração da es-
compreender, de um ponto de vista concreto, mais cola, mas sempre e curiosamente invisível. A ques-
preciso e microssociológico, como ocorria a inte- tão para a Sociologia da Infância é ver a criança,
ração entre professores e alunos no cotidiano da não só como um vir a ser, um devir, e a infância não
sala de aula, como as coisas aconteciam, como se só como uma fase da vida, mas a infância – para
construía isto que os sociólogos ainda não haviam esta sociologia – é um componente estrutural, tal
investigado na França. Eu acabei, assim, por me como a classe social e o gênero, por exemplo. Isto
interessar pelos alunos. Ninguém se interessava significa dizer que em todas as sociedades e em
verdadeiramente por isso, sobretudo ao nível da tempos históricos distintos há um lugar na estru-
escola primária. Os pesquisadores se interessavam, tura social denominada infância, o qual diferentes
essencialmente, pelos professores. Pensava-se que gerações de crianças ocupam. A infância, em uma
eles eram os mestres da situação, o pivô, em todos das vertentes da Sociologia da Infância da qual Si-
os sentidos do termo, eles eram os que ensinavam. rota faz parte, é entendida como singular, no sen-
Este raciocínio estava muito bem construído no tido de que é uma estrutura social que atravessa as

um problema para a sociologia da infância foi compreender a criança


não só como aluno, MAS SEGUNDO seus PROCESSOS DE SOCIALIZAÇão
plano teórico, em torno da noção de habitus, para sociedades, todas elas. Nesta corrente, o que seria
explicar o comportamento dos alunos, mas nós co- plural são as crianças, as várias gerações delas, que
nhecíamos poucas coisas, no plano empírico, no “habitam”nesta infância, singular pois é estrutural,
que concerne à socialização real dos alunos”. mas diferente em todas as épocas históricas. Si-
A criança nunca foi um objeto importante para rota afirma: “É preciso, portanto, se interessar pela
Sociologia até a década de 1980, ou porque os so- maneira por meio da qual essa forma estrutural (a
ciólogos, na maioria homens, não viam o prota- infância) é organizada e como ela pode variar. As
gonismo das crianças e se ocupavam de questões diferentes sociologias se ocupam disso de maneira
mais estruturais, conforme certa perspectiva he- muito parcial”.
gemônica da época, como as relações de traba-
lho, as desigualdades sociais; ou quando eles se Inversão teórica
ocupavam da escola e da educação por meio da Nesta direção o problema para a Sociologia
Sociologia da Educação, os temas de certa forma da Infância foi, entre outros, o de compreender a
permaneciam os mesmos, a desigualdade social na criança não só como aluno, mas também segundo
escola, as relações de trabalho etc. O surgimento seus processos de socialização, em que ela é tanto
da Sociologia da Infância fez ver que havia uma objeto de socialização, quanto ator ativo de seu
sociologia sem atores, já que a Sociologia da Edu- processo de socialização. Neste aspecto A História
cação se preocupava com a construção do sistema Social da Criança e da Família, de Philippe Ariès,
“É preciso, escolar, com a maneira pela qual ele operava na escrito em 1960, foi pioneiro e considerado como
Gustavo Morita. Reprodução

portanto, se construção das desigualdades, e não com a mobi- um marco inicial dos estudos sociais da infância e
interessar pela lidade social, as formas de resistir e a socialização da criança. A pequena inversão teórica produzida
maneira pela
qual essa forma das crianças, por exemplo. A Sociologia da Infância pela Sociologia da Infância de que a criança deve
estrutural (a fez um esforço de não só descobrir e cartografar ser entendida e pesquisada não só como objeto
infância) é o “métier do aluno”, mas também procurou reali- de socialização, como prescrevia a sociologia de
organizada e
como ela pode zar uma tentativa de “encarnar”, dar textura a este Émile Durkheim (considerado um dos fundadores
variar” aluno e, principalmente, entender e diagramar o da sociologia moderna), mas sim como ator ativo
“métier da criança”. do seu processo de socialização, deu um protago-

62 especial revista educação especial revista educação 63


RÉGINE SIROTA

tir delas próprias. Do ponto


A Sociologia da de vista epistemológico, a
Infância alargou Sociologia da Infância não
as possibilidades
teóricas de utiliza expressamente uma
pensar a criança teoria, um autor, mas se
para além de aproveita, segundo Sirota,
paradigmas
teóricos de um “movimento da so-
hegemônicos, ciologia interacionista, do
como a Psicologia, movimento da fenomeno-
por exemplo
logia, e dos approches cons-
trucionistas que fornecem
os paradigmas teóricos desta nova construção do
objeto. Há uma leitura crítica do conceito de socia-
lização e de suas definições funcionalistas que leva
a reconsiderar a criança como ator social”, além da
leitura crítica da ideia de reprodução social.

Poder falar
Os conceitos fundamentais da Sociologia da In-
fância francesa que foram construídos e nos quais
operamos são: protagonismo infantil, processos
de socialização, autoria social, cultura da infância,
geração, etnografia. A fala da criança foi uma in-
versão nos processos de subalternização, e pode
ser considerado como um movimento político. Já
sabemos que são os adultos que falam das/sobre
e pelas crianças e que isto faz parte de uma das
linhas do processo que chamamos de socialização.
É o adulto que fala na hierárquica ordem discursiva.
É importante destacar que não há algo na fala das
crianças que seja excepcional ou diferente (apesar
de eventualmente poder haver), mas a criança, ao
falar, produz uma inversão hierárquica discursiva
que faz falar aquelas cujas falas não são levadas em
conta, não são consideradas. A criança falar não é
Reprodução

pouca coisa. Há atualmente toda uma sociologia


que poderia ser chamada de estudos subalternos,

nismo inédito à criança que impactou a Sociologia perspectiva estrutural-funcional. A Sociologia da


em geral e também a Sociologia da Educação. Educação, especialmente, permaneceu durante um
a fala da criança foi uma inversão nos processos de
longo período presa à definição durkheimiana de subalternização e pode ser considerada um movimento político
Novos temas imposição dos valores adultos sobre as crianças le-
Este campo teórico aparece, portanto, a par- vando estas a permanecerem no silêncio,“mudas”, como objetos passivos deste processo e de qual- que faz um esforço de construir a história a partir
tir da inflexão da concepção de socialização, que ou seja, em uma posição marginalizada e passiva quer outro. A partir desta primeira inflexão, outras destes coletivos excluídos, ou minoritários (não no
vinha sendo pensada até aquele momento se- diante do mundo adulto. Esta inflexão permitiu foram realizadas, e, desta forma, isso permitiu o sentido numérico, mas no sentido de suas falas não
gundo os aportes durkheimianos. Os sociólogos pensar a criança como sujeito e ator social do seu surgimento de novas temáticas, bem como a elabo- serem consideradas, como se não pudessem falar).
se voltavam para o estudo das influências desta processo de socialização, e também construtores ração de novas metodologias que buscaram enten- A intelectual diaspórica indiana Gayatri Chakra-
socialização na vida das crianças a partir de uma de sua infância, como atores plenos, e não apenas der as crianças como produtoras de culturas, a par- vorty Spivak em seu livro que é ao mesmo tempo

64 especial revista educação especial revista educação 65


RÉGINE SIROTA

relação a uma tradição importante de pesquisa na gica na França. “Na França, esta recusa se inscreve
Sociologia e também na Educação, na França. A em uma tradição jacobina que se nega a avançar na
Sociologia da Infância faz “fugir” dois campos ao existência mesmo de minorias e, mais amplamente,
mesmo tempo. O primeiro se opôs e fez frente à àquelas mediações organizadas”, diz Dubet. Dos
predominância que se verifica até hoje da Psicolo- anos 1960 até 1980 a Sociologia da Educação fran-
gia do Desenvolvimento e do Comportamento nas cesa tratou essencialmente das questões de desi-
pesquisas relativas à primeira infância. A Psicologia gualdade social. Durante esses anos os paradigmas
tem uma força prescritiva no campo da infância, eram constituídos pelos problemas que diziam res-
e da criança. Podemos dizer que a Sociologia da peito à maneira pela qual a escola reproduzia, por
Infância, fazendo parte deste movimento chamado diversos mecanismos, a desigualdade social. Esta

O que a sociologia da infância francesa pretendeu foi desescolarizar


a criança, ou seja, pensar a criança além do métier do aluno
de reconceitualização da pequena infância, faz questão dominou a sociologia francesa na medida
críticas muito severas à Psicologia do Desenvol- em que a mobilidade social francesa poderia ser
vimento e do comportamento, e ao mesmo tempo feita de maneira honrosa pela escola. Este pensa-
combate pressupostos que foram tomados durante mento social se deu independentemente dos ato-
muito tempo como valendo por si mesmos. Há res sociais, se esforçando por pensar a partir das
inúmeros exemplos disto, especialmente nas mi- “leis” do sistema. O que a Sociologia da Infância
nuciosas descrições das etapas de desenvolvimento francesa pretendeu foi desescolarizar a criança, ou
da criança, ou na teoria do apego e, também, na seja, pensar a criança para além do métier do aluno,

Ana Teixeira. Reprodução


aliança, por vezes entre a Educação e a Psicologia, como a criança encarna o métier da infância para
com postulados universais, com suas etapas uni- além do aluno, na realidade é quase um retorno
versais, de desenvolvimento e/ou comportamento. à Sociologia, não mais uma sociologia da escola-
Em Piaget, por exemplo,“a criança não poderia ser rização, mas a uma sociologia da socialização. É
apreendida a não ser nos termos do desenvolvi- importante entender que na França desescolarizar
mento”, segundo Quentel. A psicologia genética é a criança francesa é uma tarefa árdua, pois a França
adultocêntrica, na medida em que ela se reporta à é um país “em que o lugar da escola está no cora-
título e pergunta“pode o subalterno fa- O que a criança Como fazer ecoar as vozes que não res- infância a partir do adulto. A Sociologia da Infância ção de sua identidade política e de seu imaginário
lar?”. Isto é central: quem pode falar? vê quando olha soam, ou como diz Walter Benjamin, as fez uma forte crítica às bases pela quais se sustenta nacional; trazer e pensar a criança para além da
uma cidade?
Como conseguir falar? Mesmo quando A resposta vidas que não deixam rastros? a Psicologia do Desenvolvimento. escola é verdadeiramente inovador. Porque a escola
parece, aparentemente, que são todos é simples: A Sociologia da Infância tomou a é o fundamento da República e da nação moderna,
que falam, há os que não podem falar, é preciso criança em sua infância como o lugar Particularidades pois ela portou a maioria das esperanças de justiça
perguntar a ela e
como é o caso das mulheres iranianas, depois, de fato, de suas pesquisas, criou um campo no Portanto, a Sociologia da Infância fez dois mo- e mobilidade social, por ter sido a escola libertadora
africanas, das crianças pequenas, “dos escutar o que ela qual os sociólogos e outros pesquisado- vimentos ao mesmo tempo, a crítica à Psicologia que por vezes encarnou a cultura, o progresso, a es-
deficientes”, das loucas etc. Judith But- tem a dizer res que aderiram a esta vertente fizeram do Desenvolvimento/comportamento e à Socio- perança de salvação dos mais fracos, já que muitos
tler, filósofa que estuda as relações de um esforço para compreender e consti- logia da Educação. São duas áreas que ela fratura debates escolares franceses se revestem de uma
gênero e de sexualidade, chama as vidas tuir a(s) criança(s) em relação aos seus para poder se constituir. Em relação à Sociologia aparência ‘teológica’”, conta Dubet. A questão para
desses grupos de vidas precárias e pergunta: quais pares, entendendo esta relação como a cultura da da Educação, a Sociologia da Infância opera uma Sirota é como se adquire um métier, como é este
vidas podem ser choradas? Segundo ela, há vidas infância; aos seus rituais; à infância, com a socie- grande mudança. É preciso ter claro que a escola métier, e como um sujeito encarna este métier.
que não podem ser choradas, como se não tivessem dade em geral. A Sociologia da Infância alargou é central na construção da sociedade francesa. O No artigo:“A Emergência de uma Sociologia da
a dignidade de serem choradas. Judith mostra que as possibilidades teóricas de pensar a criança para ideário republicano é uma conquista muito forte na Infância: Evolução do Objeto, Evolução do Olhar”
há uma distribuição profundamente desigual da além de paradigmas teóricos hegemônicos, como a França e desta forma há uma recusa de ver qualquer publicado no periódico Éducation et Sociétés, Sirota
precariedade da vida. Como conseguir romper com Psicologia, por exemplo. lógica cultural e/ou religiosa colocada no espaço elenca os pontos comuns entre a Sociologia da
a grade ostensiva e poderosa daqueles que falam e Quando surgiu, a Sociologia da Infância trouxe público. Por isto a recusa da burca e de qualquer Infância de língua inglesa e de língua francesa,
cujas falas são consideradas, e todas as outras não? várias novidades e teve caráter muito inovador em concepção multicultural como proposta pedagó- que podemos sintetizar assim: primeiro, a infância

66 especial revista educação especial revista educação 67


RÉGINE SIROTA

é uma construção social. Ou seja, para entender realizado como as festas de aniversário para antropologia como a etnografia, além de todo o das representações do aniversário da criança em
as crianças é preciso analisar de que maneira a entendê-las como um processo de socialização repertório da sociologia que implica a análise dos determinados romances e publicações infantoju-
infância é vista pela sociedade em questão. A in- e de civilidade. Evidente que é muito difícil o processos de socialização. venis nos permitirá pôr à prova e acompanhar a
fância não é um fenômeno ligado à imaturidade reconhecimento deste tipo de pesquisa, como passagem de um ritual tradicional a um ritual ‘in-
biológica, não é mais um elemento natural ou uni- afirma Sirota: “Eu trabalho, por exemplo, com Representações dividualizado’ conforme a evolução dessa sequ-
versal dos grupos humanos, é histórico e social. o aniversário como ritual de socialização. É im- Para Régine Sirota é festejando o aniversário ência (desse momento) e de seu enredamento (de
Essa desnaturalização da definição, sem negar a possível conseguir financiamento para este en- com sua família, seus amigos e sua classe que a sua representação)”.
imaturidade biológica, enfatiza a variabilidade dos quadre. Quando refletimos sobre a infância ba- criança constrói sua identidade social. Ao mesmo
modos de construção da infância em todas as di- nal, ordinária ou feliz, há poucos trabalhos. Os tempo em que a criança na sua festa de aniversá- Livros
mensões históricas e reintroduz o objeto infância trabalhos sobre jogos, como aqueles produzidos rio é o motor e ator desta atividade, ela ativamente SIROTA, R., EIDELMAN, J., HABIB, M.C. Balade en Bibliothèque pour
Lecteurs en Herbe: Étude sur la Fréquentation et les Usages de la Bibliothèque
como um objeto ordinário de análise sociológica. por Gilles Brougère, são muito recentes. O con- constrói seu circulo de amigos, faz escolhas da- des Enfants du Centre G. Pompidou. Paris: Bibliothèque Publique
d’Information, Centre Georges Pompidou, 1985.
Segundo, a infância é considerada não simples- texto comum da vida das crianças, de uma vida quilo que está colocado para o universo infan- ______. L’École Primaire au Quotidien. Paris, PUF, 1988.
mente como um momento precursor, mas como majoritariamente urbana não é frequentemente til, e afirma um pertencimento social familiar e ______. A escola Primária no Cotidiano. Porto Alegre: Artes Medicas, 1994.

um componente da cultura e da sociedade. Ter- levado em conta. A criança é – de qualquer ma- social. A análise deste rito, por excelência social, ______; GROSBOIS, M.; RICCO, G. Le Parcours du Savoir. Du Laboratoire
à la Classe. Etude de la Transposition Didactique du Concept de Respiration.
ceiro, a infância se situa como uma das idades neira – invisível”. é um dos métiers das crianças e coloca em jogo Paris: ADAPT, 1992.
______ ; HENRIOT-VAN ZANTEN, A.; PLAISANCE, E. (éds.), Les
da vida que necessitam de exploração específica, Para análise deste ritual ela cruzou seus sta- a complexidade das relações sociais, do paren- Transformations du Système Éducatif. Paris: L’Harmattan, 1993.

como a juventude ou a velhice, já que é uma forma tus de mãe e de socióloga pesquisadora. Ela re- tesco, da civilidade infantil – quem convidar, de ______ (éd.). Autour du Comparatisme en Éducation. Paris : PUF, 2001.
______ (éd.). Eléments pour une Sociologie de l’Enfance. Rennes : PUR, 2006.
estrutural que jamais desaparece, não obstante lata o estranhamento de seus filhos e dos amigos que maneira, por exemplo? –, da lógica afetiva
______. L’école primaire au quotidien. Thèse de III cycle, sous la direction
seus membros mudem constantemente e, por- dos seus filhos quando ela comparecia em todas imbricada com a social e econômica. Para Sirota de V.Isambert-Jamati, Université René Descartes/Paris V, 1984, 276 p.,
annexes. (Jury, J.C. Chamborédon, P. de Gaudemar, V.Isambert-Jamati,
“o aniversário funciona não somente como um G. Snyders).

rito de passagem, mas como um rito de integra-


Para régine sirota, é festejando o aniversário com sua família, seus ção social, onde se joga e se rejoga a identidade Coordenação de números
da criança e a construção social de uma cultura temáticos em revistas
amigos e sua classe que a criança constrói sua identidade social infantil”. Maelle Cristien afirma, em relação às “Sociologie de l’Enfance, 1 et 2”, números 2 e 3 da revista Education et
Sociétés, dezembro 1998, maio 1999.
pesquisas sobre a festa de aniversário realizadas “La Recherche dans les Sciences de l’Éducation telle qu’Elle se Fait”,
número especial do Bulletin de L’Association des Enseignants et Chercheurs
tanto, a forma evolua historicamente. Quarto, as as festas de aniversário para os quais seus filhos por Sirota: “a festa de aniversário é, em conclusão, en Sciences de l’Éducation, n° 20/21, Avril, 1998.
crianças devem ser consideradas como atores em eram convidados, não para celebrar o aniversá- uma celebração que se situa na intersecção de dois “Le Praticien Réflexif: la Diffusion d’un Modèle de Formation”,
Recherche et formation, n° 36, 2001.
sentido pleno e não simplesmente como seres em rio, mas para analisar, como pesquisadora, o que eixos. O rito tradicional, onde o comportamento “Entrer à l’Université, le Tutorat Méthodologique”, Recherche et
devir. Quinto, as crianças são ao mesmo tempo lá acontecia. Seus estudos dissecam a mecânica e valores são transmitidos de maneira geracional, Formation, n° 43, 2003.

produtos e atores dos processos sociais. Trata-se social de funcionamento para se desfrutar de um vertical; e o rito contemporâneo, o eixo horizontal,
de inverter a proposição clássica, não de discutir aniversário, desde a escolha do tipo de bolo e o que confronta diferentes esferas de influências e Referências bibliográficas
ABRAMOWICZ, A. “A Pesquisa com Crianças em Infâncias e a
sobre o que produzem a escola, a família ou o sabor, as escolhas do presente que se dará ou que contribui para dar uma nova dimensão, mais me- Sociologia da Infância”. In: FARIA, A. L. G de, FINCO, D. (orgs.)
Sociologia da Infância no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2011
Estado, mas de indagar sobre o que a criança cria se quer receber, a escolha da decoração da festa, diática, mais social ao acontecimento”. (Coleção Polêmicas de Nosso Tempo, 102).
na intersecção de suas instâncias de socialização. a distribuição e a opção por um tipo de convite, Este tipo de pesquisa realizado a partir da BUTLER, J. Vie Précaire. Les Pouvoirs du Deliu et la Violence après le 11
Septembre 2001. Paris: Éditions Amsterdam, 2005
Isto quer dizer que a criança é ativa em seu pro- onde se realizará o aniversário se em casa e/ou na perspectiva etnográfica mostra, portanto, a ma- DUBET, F. Faits d´école. Paris: Éditions de l´École des Hautes Études
cesso de socialização. E, por último, a infância é escola, até a quem convidar etc. A festa de ani- neira como esta festa funciona: tanto como um em Sciences Sociales, 2008.
______.“Éducation et Sociétés” . Revue Internationale de Sociologie de
uma variável da análise sociológica que se deve versário é considerada um ritual de passagem, e rito de passagem quanto como um rito de inte- L´Éducation. Sociologie de l´Enfance. Paris, Bruxelles: De Boeck & Larcier,
INRP, 1998, vol. 2.
considerar em sentido pleno, articulando-a a va- é celebrada no Ocidente como uma celebração do gração social, onde se joga e se rejoga com a iden-
SARMENTO, M. Lógicas de Acção nas Escolas. Lisboa: Instituto de
riáveis clássicas como a classe social, o gênero, ou indivíduo. A elaboração para a celebração da pri- tidade da criança e a construção social de uma Inovação Educacional, 2000.

o pertencimento étnico. meira vela marca o calendário familiar e será en- cultura infantil. SIROTA, R. (direc.) Éléments pour une Sociologie de l’Enfance. Paris : Presses
Universitaires de Rennes (PUR), 2006.
tendido com um ritual de integração social. Assim, Atualmente Régine Sirota pesquisa as festas SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora

Os rituais da infância: para analisar as festas de aniversário Sirota faz uso de aniversário na literatura infantil. Esta perspec-
UFMG, 2010.

a festa de aniversário de todo o repertório e instrumental teórico cons- tiva na qual ela dá continuidade aos seus estudos
Anete Abramowicz é socióloga, doutora em
Além do esforço para constituir o campo da truído pela Sociologia da Infância: protagonismo e pesquisa sobre a festa de aniversário, consi- Educação, professora da Universidade Federal de
Sociologia da Infância, Régine Sirota se dedi- infantil, autoria social, cultura da infância, socia- derará a literatura infantil como uma espécie de São Carlos. Realizou pós-doutorado na Universidade
Paris Descartes, em 2009/2010 sob a supervisão de
cou, desde 1999, a estudar as festas de aniver- lização e identidade social, além dos conceitos de manual de civilidade infantil. Para ela: “Se consi- Régine Sirota. Bolsista Produtividade do CNPq. É
sário das crianças, como um ritual de socia- civilidade (Norbert Elias), de doação (conforme derarmos a literatura infantil como tratado mo- autora e coautora de livros, entre outros: Afirmando
Diferenças: Montando o Quebra-Cabeça da Diversidade na
lização. Pela primeira vez, uma pesquisadora Marcel Mauss analisou o dom e o contradom). derno de civilidade e reflexo da evolução das nor- Escola (Papirus, 2005), A Reconfiguração da Escola: entre
levará a sério a análise de um ritual largamente Também faz uso da metodologia consagrada da matividades contemporâneas, a transformação a Negação e a Afirmação de Direitos (Papirus, 2009).

68 especial revista educação especial revista educação 69


Jens Qvortrup

A infância como
fenômeno
Qvortrup deu-se
conta de que
grande parte
das pesquisas
considerava
as crianças
como filhos ou
como alunos,
estabelecendo

social
como categorias
de análise a
família ou a
educação e
não a infância

Crianças são sujeitos sociais, capazes de produzir


mudanças nos sistemas em que vivem. As forças políticas e
socioeconômicas influenciam suas vidas ao mesmo tempo que
as crianças influenciam o cenário social, político e cultural
por Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento

N
ascido em Morsø, cidade e foi responsável por dois projetos internacionais
portuária no norte da Dina- comparativos. Um deles, sobre padrões familiares,
marca, em 1943, Jens Qvor- envolvia 14 países e outro, sobre divórcio, foi de-
trup viveu em Copenhague, senvolvido em dez países. Voltou ao SUC, agora
onde trabalhou, entre 1966 e University of Southern Denmark, em 1983, reas-
1972, com formação de pro- sumiu o cargo de professor associado e retomou Eloá Carvalho, Zona de Contato, 2010, acrílica sobre tela. Reprodução

fessores. Estudou na Uni- os estudos comparativos acerca da ex-União So-


versidade de Copenhague viética e do Leste Europeu.
e lá fez o mestrado em Sociologia, terminado Em 1987, começou a trabalhar com a área da
em 1971. Dois anos depois, iniciou sua carreira Sociologia da Infância, na mesma universidade
acadêmica como professor assistente no Univer- e, do ponto de vista da pesquisa, desencadeou e
sity Centre of Southern Jutland (SUC), na Dina- dirigiu o estudo “Infância como fenômeno social”
marca. Em 1976 tornou-se professor associado, (Childhood as a Social Phenomenon), desenvolvido
na mesma Universidade. Trabalhava com estudos em 16 países, sob o patrocínio do Centro Europeu
sociais comparativos, com foco na ex-União So- de Políticas e Pesquisa em Bem-Estar Social (Euro-
viética e no Leste Europeu. pean Centre for Social Welfare Policy and Research),
Em 1980 mudou-se para Viena, onde ocupou de Viena, até 1992. Entre 1987 e 1997 obteve re-
o cargo de secretário científico no Vienna Centre, cursos do Conselho Dinamarquês de Ciências So-

70 especial revista educação especial revista educação 71


Jens Qvortrup

ciais (Danish Social Science Council) para estudos gia e Ciência Política da NTNU, oferecendo, entre vidado a trabalhar com as condições de vida na organizados em temas, sistematizados pelos pes-
teóricos de Sociologia da Infância. 2002 e 2003, a série de seminários internacionais ex-União Soviética e na Europa Oriental, na coor- quisadores e publicados no livro Childhood Mat-
Foi o fundador e o presidente do grupo temá- “Infância – Cultura, Agência e Sociedade”. denação de dois projetos, um sobre família e outro ters: Social Theory, Practice and Politics (Questões
tico Sociologia da Infância, cujos trabalhos foram De 2003 a 2008, coordenou, com Anne Trine sobre divórcio – deu-se conta de que as crianças sociais da infância: teoria social, prática e políti-
iniciados formalmente no XII Congresso Mundial Kjørholt, o projeto “A Criança Moderna e o Mer- ficavam encobertas pelas famílias. Verificou então cas), organizado por ele, em 1994. A introdução
da Associação Internacional de Sociologia (ISA), cado de Trabalho Flexível: Institucionalização e que a atenção da maioria dos sociólogos estava desse livro traz também importantes elementos
em 1990. Presidiu de 1988 a 1998 o Grupo Temá- Individualização das Crianças à luz das Mudan- voltada principalmente para as instâncias encar- para compreender a Sociologia da Infância.
tico, que se tornou Comitê de Pesquisa – Research ças no Estado de Bem-Estar Social”. Entre 2005 e regadas de socializar a criança e que grande parte
Committee (RC 53) – em 1998. 2007, também com Anne Trine Kjørholt, dirigiu o das pesquisas considerava as crianças como filhos A infância como grupo social
Entre 1990 e 1996, acumulou essa tarefa com projeto de pesquisa “Crianças como Novos Cida- ou como alunos, estabelecendo como categorias Tendo como contexto os encontros e seminá-
o cargo de codiretor do Programa de Infância, do dãos e o ‘Melhor Interesse da Criança’ : um Desa- de análise a família ou a educação e não a infância. rios promovidos durante a pesquisa, entre 1987 e
Centro Europeu de Políticas e Pesquisa em Bem- fio para as Democracias Modernas”. Em contato com pesquisadores da Grã-Breta- 1990, Qvortrup relata que foram debatidos temas
-Estar Social, além de desenvolver, entre 1990 e Foi coeditor do periódico Childhood, entre 1998 nha, da Itália, dos Estados Unidos e da Alemanha, como crianças em situação de risco, custódia fa-
1993, pesquisa sobre Sociologia da Infância, com e 2007, e editor do periódico escandinavo Barn, construiu uma rede de estudos que culminou no miliar, políticas de cuidado e atenção, assistên-
patrocínio do Conselho Nórdico de Ministérios. entre 1999 e 2002. Foi ainda membro do conselho projeto internacional de pesquisa comparativa cia às crianças e às famílias, mas que, de maneira
Foi representante do Ministério dos Assuntos So- editorial de Children and Society (Londres), de “Infância como Fenômeno Social”, cujo foco era geral, numa abordagem fundamentada em para-
ciais, na Dinamarca, e da Comissão das Comuni- Sociological Studies of Children and Youth (Con- mapear a posição das crianças nas socie- digmas utilizados principalmente pela psicologia
dades Europeias. necticut), de Childhoods Today: an Online Journal dades industrializadas. O projeto, pa- ou pela pedagogia, predominavam estudos
trocinado pelo Centro Europeu de sobre a criança vista como um projeto
Políticas e Pesquisa de Bem-Estar de adulto e/ou sobre a infância como
em relatório de 1991, qvortrup apresentou a infância como um grupo Social, foi realizado em 17 países: estágio preparatório, como tempo
social e as perspectivas geracionais para o estudo das crianças Alemanha, Canadá, Dinamarca,
Escócia, Estados Unidos, Finlân-
de passagem. Essa constatação o
faz considerar que a utilização de
dia, Grécia, Inglaterra e País de pressupostos psicológicos ou pe-
Em 1993 foi professor visitante na Univer- for Childhood Studies (Universidade de Sheffield, Gales, Irlanda, Israel, Itália, ex-Iu- dagógicos para o entendimento
sidade La Sapienza, em Roma, Itália. Em 1994, Reino Unido), dentre outros periódicos. goslávia, Noruega, Suécia, Suíça da infância oculta as crianças no
obteve o título de doutor em Sociologia, na Uni- Veio três vezes ao Brasil: a primeira, nos anos e ex-Tchecoslováquia. Ao longo presente, como sujeitos de mu-
versidade de Copenhague, com a tese Explora- 1990, pela Fundação Bernard van Leer; a segunda, da pesquisa, a partir de seminá- Jens Qvortrup danças históricas e sociais.
ções em Sociologia da Infância. Entre 1997 e 1999, em 2006, convidado para participar do Congresso rios organizados para reunir os é professor emérito Sua familiaridade com a ca-
acumulou as aulas de Sociologia com o cargo de Infância: Violência, Políticas Públicas e Institui- pesquisadores e discutir os dados da Faculdade de tegoria classe social, a partir dos
diretor de Estudos Sociais e de Saúde na SUC, ções, promovido pelo Mackenzie, de São Paulo; obtidos, foi lançada uma série de Ciências Sociais estudos marxistas, combinada à
sendo que, em 1997, ocupou o cargo de Diretor a terceira, em 2010, convidado pela Faculdade de Relatórios Nacionais, nos quais da Universidade crítica à abordagem individua-
de Pesquisa, em período parcial, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e pela As- os fundamentos da Sociologia da Norueguesa de lista da criança, que a idealiza
Ciência e Tecnologia,
Ciências Sociais da Universidade Norueguesa de sociação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação Infância foram sendo construídos. numa perspectiva universal e a-
mas começou a
Ciência e Tecnologia (NTNU), em Trondheim, No- em Educação (ANPEd), com recursos da Funda- Na Introdução à Série de Re- -histórica, o motivam a consi-
carreira acadêmica
ruega, e, em 1998, trabalhou como consultor no ção de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp). latórios Nacionais, de 1991, Jens como docente na derar que a infância, que muda
Centro Norueguês de Pesquisa sobre a Infância Aposentou-se em 2010 e é, desde então, pro- Qvortrup apresenta as aborda- Dinamarca, seu país histórica e culturalmente, difere
(Norwegian Centre for Child Research – NOSEB), fessor emérito da NTNU. Permanece publicando gens teóricas, metodológicas e de origem. Em 1987, radicalmente da noção de criança
na mesma universidade. De 1997 a 2002 foi di- textos em livros e periódicos e participando de comparativas do projeto. É nessa deu início ao trabalho individual, e a eleger a concep-
retor de pesquisa do Conselho Dinamarquês de Congressos e Encontros da área da Sociologia e publicação que define novos pa- em Sociologia da ção de infância como construção
Ciências Sociais, desenvolvendo o programa de da Demografia. radigmas nos estudos da infância: Infância quando social ou como forma estrutural
pesquisa “Infância e Sociedade de Bem-Estar”. a infância como um grupo social e dirigiu o estudo como referência da pesquisa. Em
Em 1999, mudou-se para Trondheim e assu- A Sociologia da Infância as perspectivas geracionais para o Infância como entrevista às pesquisadoras Bruna
fenômeno social,
miu como professor adjunto e diretor do NOSEB. Considerado um dos principais teóricos e estudo das crianças. Em seguida, Breda e Lisandra Ogg, do Grupo
realizado em 17
Em paralelo, desenvolveu o estudo “O Bem-Estar mesmo um dos fundadores da área da Sociologia em 1993, publica o volume que de Estudos e Pesquisa sobre So-
países. Esteve três
das Crianças”, parte do projeto COST (European da Infância, Jens Qvortrup estabeleceu importan- contém suas nove teses, texto que ciologia da Infância e Educação
vezes no Brasil a
Cooperation in Science and Technology) A19, com tes conceitos no campo. Pode-se dizer que seu fundamenta e organiza sua teoria. convite de fundações Infantil (GEPSI), em 2010, Jens
An-Magritt Jensen. Entre 2002 e 2010 foi profes- interesse pelos estudos da infância tem origem em Os relatórios e análises resultantes e universidades. Qvortrup reconhece: “posso dizer
sor de Sociologia do Departamento de Sociolo- Marx e no conceito de classe social, pois – con- da pesquisa foram posteriormente que, embora tenha trabalhado

72 especial revista educação especial revista educação 73


Jens Qvortrup

com diferentes temas e questões, percebo uma


continuidade em relação à perspectiva estrutu-
ral. Significa que nessa perspectiva estrutural, em
termos concretos, migrei de uma perspectiva de
classe para uma perspectiva geracional”.
De fato, ao caracterizar as crianças como um
grupo populacional, numa perspectiva estrutural,
Qvortrup propõe utilizar a categoria geração para
evidenciar as crianças como unidade de observação.
Conceber a infância como construção social ou
categoria estrutural promove a ideia de que ela
“é uma estrutura permanente em qualquer socie-
dade, mesmo que seus participantes sejam regu-
larmente repostos”, diz ele no texto da Introdução
à Série de Relatórios Nacionais.

Sujeitos
A concepção de infância como categoria na
estrutura social vai colocar em xeque o caráter
natural e universal tradicionalmente atribuído à
infância na estrutura da sociedade e, além disso,
vai possibilitar a investigação da desigualdade na
distribuição de poder, de recursos e de direitos
entre adultos e crianças, presente nas relações
sociais, políticas e econômicas, no cenário do sé-
culo XX, ou, como afirma Qvortrup, num cenário
onde predominam o privilegiamento do trabalho,
a abolição do trabalho infantil e o aumento da
participação das mulheres no mercado; a escola-
rização em massa; a ampliação do atendimento da
primeira infância em creches; o interesse científico
sobre a passagem das crianças para a idade adulta.
Destaque-se que a infância, nessa linha, é vista
como construção social.
São três as asserções principais da perspectiva
estrutural da infância, de acordo com Qvortrup:
a infância é uma categoria na estrutura social que
manifesta variações históricas e interculturais e não
exatamente uma fase da
vida; crianças e adultos são
A concepção de
afetados pelas mudanças
infância como nas sociedades; a natureza
categoria na da contribuição das crian-
estrutura social ças é diferente em distintas
vai colocar em
xeque o caráter culturas, embora em qual-
natural e universal quer uma delas as crianças
tradicionalmente contribuam ativamente na
atribuído à infância
Reprodução

na estrutura da sociedade. Nesse sentido, a


sociedade infância é formada por su-

74 especial revista educação especial revista educação 75


Jens Qvortrup

jeitos ativos e competentes, ainda que diferentes Segundo ele, as relações geracionais determi-
dos adultos. As crianças são membros da socie- nam lugares apropriados ao desenvolvimento e à
dade, agem socialmente nas famílias, nas escolas, socialização das crianças. Diz que, nesses espaços, Para Qvortrup, relacionadas
nas creches e em outros espaços, fazem parte do nem sempre estas são reconhecidas em seus direi- a uma lógica pautada na
mundo, o incorporam e, ao mesmo tempo, o in- tos, tampouco têm voz, mas são sempre represen- proteção, as práticas sociais dos
adultos sobre as crianças vêm
fluenciam e criam significados a partir dele. tadas pelos adultos – professores, pais e mães etc. acompanhadas de controle
Para Qvortrup, utilizar as crianças como uni- Relacionada a uma lógica pautada na proteção,
dade de observação principal define a categoria as práticas sociais dos adultos sobre as crianças
geracional infância na estrutura social, o que “im- vêm acompanhadas de controle e, de acordo com
plica que, ao procurar as principais características Qvortrup, de uma atitude paternalista, que ele
da infância como construção social, as diferenças define, em sua nona tese, como “uma estranha
entre as crianças serão menos consideradas do combinação de amor, sentimentalismo, senso de
que aquilo que é comum entre as crianças”, pon- superioridade em relação à compreensão equivo-
dera no texto de 1991. De acordo com ele, além cada das capacidades infantis e marginalização”.
dessa implicação metodológica, ao tomar a infân- As teses desenvolvidas pelo sociólogo são
cia como unidade de observação, a Sociologia da ainda hoje bastante atuais e provocativas. Vamos
Infância dá às crianças um lugar no quadro mais apresentá-las brevemente. A primeira,“A infância
amplo das ciências sociais. é uma forma particular e distinta em qualquer es-

o que particulariza a infância como categoria estrutural permite


estudá-la naquilo que lhe é comum, mesmo em sociedades diferentes
Observe-se que a criação da Sociologia da In- trutura social de sociedade”, possibilita ao autor
fância vai focalizar as crianças enquanto crianças, estabelecer a aproximação e a similaridade entre
ou seja, menciona “a próxima geração significando infância e classe social como formas estruturais,
próxima geração de crianças”, como afirma o soci- “no sentido da definição das características pelas
ólogo em sua argumentação, pois pensar a infân- quais os membros, por assim dizer, da infância es-
cia do ponto de vista antecipatório retira sua im- tão organizados e pela posição da infância assina-
portância sociológica e econômica se comparada lada por outros grupos sociais, mais dominantes”.
aos adultos, o que reitera o senso comum. Não A perspectiva estrutural rompe com estudos in-
se pode, porém, esquecer que questões políticas, dividualistas, muitas vezes definidos pelo desen-
econômicas, sociais, geográficas, históricas etc. volvimento da criança, apontando a possibilidade
atingem tanto crianças quanto adultos, subme- de estudos sobre o desenvolvimento da infância,
tidos à mesma ordem de problemas, argumenta questão discutida com maior aprofundamento
Qvortrup, propondo o estudo das relações entre no artigo “A Infância enquanto Categoria Estru- Egon Schiele, Mãe e Duas Crianças, 1917, óleo sobre tela. Reprodução

sujeitos contemporâneos e não mais entre seres tural”, publicado na revista Educação e Pesquisa,
maduros e em devir. em 2010. O que particulariza a infância como ca-
tegoria estrutural permite estudá-la naquilo que
As teses sobre a infância lhe é comum, mesmo que em épocas distintas ou
como fenômeno social em sociedades diferentes. Sobre isso, Qvortrup
É no texto “Nove Teses sobre a Infância como argumenta que “enquanto categoria estrutural, a
Fenômeno Social”, publicado num dos volumes infância não pode nunca se transformar em algo
dos relatórios, em 1993, cuja tradução em portu- diferente e menos ainda em idade adulta”, re-
guês foi publicada em 2011, que Jens Qvortrup, forçando que existem características que fazem
depois de criticar a indiferença estrutural em rela- reconhecer e identificar a infância.
ção às crianças, apresenta as teses que fundamen- A segunda tese, “A infância não é uma fase de
tam os estudos sociológicos da infância. transição, mas uma categoria social permanente,

76 especial revista educação especial revista educação 77


Jens Qvortrup

do ponto de vista sociológico”, refuta a infância sociais, argumentando que as crianças são criati-
como tempo de passagem, defendendo que “ela vas nas relações que estabelecem com os mundos
continua a existir – como uma classe social, por sociais adultos, o que equivale a dizer que elas
exemplo – como forma estrutural, independen- não são meras reprodutoras das normas sociais,
temente de quantas crianças entram e quantas como consideravam os sociólogos clássicos, nota-
saem dela”. A segunda tese retoma e reafirma a damente Émile Durkheim e Talcott Parsons, mas
primeira. que as reinventam nas relações com seus pares
Na terceira tese, “A ideia de criança, em si e com os adultos, nos cotidianos de suas vidas.
mesma, é problemática, enquanto a infância é Agência e estrutura são complementares no es-
uma categoria variável histórica e intercultural”, tudo da infância.
Qvortrup defende que não há somente uma con-
cepção de infância, mas muitas, e que “as mudan- Invisibilidade
ças de concepção são objeto de interesse socioló- Na sexta tese, “A infância é, em princípio, ex-
gico, porque presumivelmente refletem mudanças posta (econômica e institucionalmente) às mes-
de atitude em relação às crianças”. mas forças sociais que os adultos, embora de
modo particular”, discute “que, frequentemente,
Valores as crianças são atingidas indiretamente ou de
“A infância é uma parte integrante da socie- forma mediada, o que torna mais difícil a cons-
dade e de sua divisão de trabalho”, sua quarta tatação dessa influência; e, com muita frequên-
tese, apresenta o trabalho escolar como aquele cia, a legislação é elaborada sem levar as crianças
que cabe às crianças na divisão social do trabalho, em consideração, embora haja poucas dúvidas de
ou seja, reconhece a escola como o campo de tra- que os eventos sociais causem efeitos constan-
balho das crianças. Qvortrup recupera o estudo tes”. Jens Qvortrup argumenta que o impacto de
Pricing the Priceless Child. The Changing Social problemas de ordem social ou econômica na vida
Value of Children (Dando preço à criança sem das crianças não tem sido verificado. A crescente
preço. A mudança do valor social das crianças), institucionalização das crianças como decorrência
de Viviana Zelizer, socióloga argentina, publicado da “progressão em direção ao pleno emprego de
em 1985, que reconhece uma tendência histórica homens e mulheres” efetivamente tem mudado
de crescente sentimentalização e sacralização das suas vidas, mas há poucos estudos que reconhe-
crianças, que vai se configurar a partir de sua“inu- cem essa relação. No artigo “Infância e Política”,
tilidade” produtiva, na divisão social do trabalho e publicado em Cadernos de Pesquisa, em 2010, o so-
argumenta que, ao contrário, as crianças sempre ciólogo retoma essa discussão a partir da política
foram úteis e que a natureza de suas contribuições ou, mais especificamente, de “uma distinção entre
para a sociedade é que foi alterada. É no texto políticas que pretendem ter impacto nas crianças
From Useful to Useful: The Historical Continuity ou na infância e políticas que não têm esse obje-
in Children’s Constructive Participation (Do útil tivo, mas que podem ter grandes consequências
ao útil: a continuidade histórica da participação para elas”, reafirmando a tese.
construtiva das crianças), de 1995, que avança na “A dependência convencionada das crianças
questão presente nessa tese. Desenvolve ainda tem consequências para sua invisibilidade em
significativa argumentação no artigo “O Traba- descrições históricas e sociais, assim como para
lho Escolar Infantil Tem Valor? A Colonização das a sua autorização às provisões de bem-estar”, sua
Crianças pelo Trabalho Escolar”, traduzido e pu- sétima tese, apresenta aspectos da invisibilidade

Reprodução
blicado em 2001, em livro organizado por Lucia das crianças e discute, ainda que brevemente, a
Rabello de Castro (Crianças e Jovens na Construção importância de conhecer seus pontos de vista.
da Cultura).
Qvortrup afirma
Em sua quinta tese,“As crianças são coconstru-
que as crianças são
toras da infância e da sociedade”, Jens Qvortrup
refere-se à ideia de agência, conceito dos estudos
coconstrutoras da
infância e da sociedade a dependência convencionada das crianças tem consequências
da infância que reconhece as crianças como atores para sua invisibilidade em descrições históricas e sociais
78 especial revista educação especial revista educação 79
Jens Qvortrup

dência intergeracional continuada), apresentado outras palavras, que a infância é usada como um
no Seminário Internacional Children on the Way termo estrutural: a infância é percebida como uma
from Marginality towards Citizenship. Childhood forma estrutural ou categoria a ser comparada
Policies: Conceptual and Practical Issues (Crianças com outras formas estruturais ou categorias na
no percurso da marginalidade em direção à cida- sociedade”, afirma no texto de 1994. Diz ainda, no
dania. Políticas da Infância: questões conceituais mesmo texto, que referir “crianças” não significa
e práticas), em 1995 e publicado em 1996 na re- o plural da palavra “criança”, mas qualifica um
vista Eurosocial Report, e outro, “A Volta do Papel grupo pertencente à categoria “infância”.
das Crianças no Contrato Geracional”, apresen- A defesa de uma infância, contudo, a partir do
tado” na 33ª Reunião da ANPEd, em 2010, e publi- que as crianças têm em comum, como categoria
cado pela Revista Brasileira de Educação em 2011. geracional, tem sido questionada por antropólo-

relações de oposição e complementaridade entre crianças e adultos


indicam a prioriZAÇão da categoria geracional no estudo da infância
Sobre a nona tese,“A infância é uma categoria gos da infância, particularmente Allison James, da
minoritária clássica, objeto de tendências tanto Universidade de Sheffield, e Alan Prout (ver artigo
marginalizadoras quanto paternalizadoras”, já re- neste fascículo), da Universidade de Warwick, am-
ferida, o sociólogo recupera a aproximação entre bas na Inglaterra, que defendem que não existe
classe e geração, apresentando “a criança como uma infância, mas várias, cada uma com seus
grupo minoritário, definido em relação ao grupo pontos de referência particulares. Essas infâncias
dominante, que possui status social mais alto e não podem ser plenamente compartilhadas por
maiores privilégios, isto é, nesse caso, os adultos; outras infâncias.
e, indo além, como um grupo que, por suas ca- A tensão está colocada principalmente no
racterísticas físicas ou culturais, é singularizado à aspecto metodológico da pesquisa da infân-
parte da sociedade, com um tratamento diferen- cia, embora revele diferentes posições políticas
cial e desigual”. e epistemológicas dos pesquisadores envolvidos.
As nove teses trazem os elementos necessários Qvortrup entende que para produzir conheci-

Reprodução
para a compreensão das crianças como sujeitos mento sobre a infância, a primeira categoria a ser
sociais, capazes de produzir mudanças nos siste- destacada é a geracional: essa é a categoria, se-
mas nos quais estão inseridas, ou seja, as forças gundo ele, que dá sentido a uma Sociologia da
políticas, sociais e econômicas influenciam suas Infância. Como apresentado anteriormente, as
Nesta tese está indicada a tensão entre “A infância é trup, a sociedade deveria assumir sua vidas ao mesmo tempo que as crianças influen- relações de oposição e complementaridade entre
proteção e participação, que Qvortrup uma categoria responsabilidade sobre as crianças por- ciam o cenário social, político e cultural. infância e idade adulta, à semelhança das relações
minoritária
traz como objeto de discussão no capí- clássica, objeto de que, primeiro, as crianças seriam provi- entre classe dominante e classe explorada, indi-
tulo “Varieties of Childhood” (Varieda- tendências tanto das de acordo com um padrão básico; Perspectivas geracionais cam uma priorização da categoria geracional nos
des de infância), de 2005, quando ar- marginalizadoras segundo, elas contribuem socialmente para o estudo das crianças estudos da infância. Isso posto, outras categorias
quanto
gumenta que a proteção, ou seja, uma paternalizadoras” e poderiam reivindicar recursos; por úl- Segundo Jens Qvortrup, caracterizar a infân- sociológicas podem ser definidas: a própria classe
crescente atenção às crianças, tem sido timo, a sociedade tem significativo inte- cia significa distinguir um conjunto de traços que social, gênero, etnia, por exemplo, para determi-
gradativamente transformada em con- resse nas crianças, se não como crian- crianças têm em comum, numa região definida, nado estudo. Diz ele, em 1994, que “Como forma
trole (institucional) das crianças. ças, como projeto futuro. A partir dessa tese, Jens num mesmo momento, sob as mesmas estrutu- estrutural, a infância é inter-relacionada a outras
A oitava tese, “Não os pais, mas a ideologia da Qvortrup discute, em textos posteriores, o papel ras econômicas e políticas, e, por exemplo, veri- categorias estruturais como classe social, gênero e
família constitui uma barreira contra os interesses das crianças no contrato geracional, destacando as ficar as relações estabelecidas com outros grupos grupos etários”.
e o bem-estar das crianças”, discute a infância sob relações – e a interdependência – entre a infância e geracionais – adultos ou velhos –, em princípio Em “A tentação da diversidade”, de 2006, pu-
uma perspectiva pública e estabelece uma crítica as outras categorias geracionais. Destacam-se dois influenciados pelos mesmos parâmetros sociais, blicado em português em 2010, Qvortrup afirma
acerca de a responsabilidade sobre as crianças per- textos sobre a questão: o primeiro,“The Continued o que permite ao pesquisador comparar infâncias que “Infância como categoria pressupõe uma plu-
manecer no âmbito do privado. Segundo Qvor- Intergenerational Interdependence”(A interdepen- de diferentes países ou culturas.“Isso significa, em ralidade de infâncias, que são agrupadas sob a

80 especial revista educação especial revista educação 81


Jens Qvortrup

categoria. Em outras palavras, a infância como ca- O debate acadêmico, as tensões e divergências
tegoria não se dissolve porque existe uma plura- que suas pesquisas e ideias provocam só confir- JENS QVORTRUP CONSTRUIU UM OUTRO MODO DE ESTUDAR A INFância,
lidade de infâncias; ao contrário, confirma-se por mam sua importância na estruturação do campo
meio destas”. Assim, o que justifica uma Socio- da Sociologia da Infância.
acrescentando uma nova perspectiva aos estudos sociológicos
logia da Infância é o reconhecimento da infância O sociólogo norte-americano William Corsaro
como categoria geracional. (ver artigo neste fascículo), em texto de 2005, afirma Artigos ______. “Childhood as a Structural Form”. In: QVORTRUP, J.;
CORSARO, W.; HONIG, M-S. (eds.) The Palgrave Handbook of
QVORTRUP, Jens. “Placing Children in the Division of Labour”. Childhood Studies. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2009.
Um outro entendimento, sustentado pelo que Giddens (1984), Bourdieu (1977) e Qvortrup In: CLOSE, Paul; COLLINS, Rosemary (eds.) Family and Economy in ______. “The Development of Childhood”. In: QVORTRUP,
construcionismo social ou pelas tendências pós- (1991) “têm oferecido perspectivas da prática so- Modern Society. Basingstoke, Hampshire: Macmillan, 1985. J.; ROSIER, K. B.: KINNEY, D. A. (eds.). Sociological Studies of
______. “Introduction to Sociology of Childhood”. International Journal Children and Youth, vol. 12 – Structural, historical, and comparative
-modernas de pesquisa social, propõe que sejam cial que, apesar de privilegiarem as forças cons- of Sociology, v. 17, n. 3, pp. 3-37, 1987 perspective. Bingley: Emerald, 2009.
estudadas as infâncias, configuradas pela diver- trangedoras da estrutura social e da reprodução ______. “Comparative Research and its Problems”. In: BOH, Katja; ______. “Users and Interested Parties: A Concluding Essay On
BAK, Maren & CLASON, Cristine (eds). Changing Patterns of European Children’s Institutionalization”. In: KJØRHOLT, Anne-Trine;
sidade, ou seja, pelo uso das categorias clássicas social, admitem um certo grau de agência hu- Family Life: a Comparative Analysis of 14 European Countries. London & QVORTRUP, J. The Modern Child and the Flexible Labour Market: Early
Childhood Education and Care. London: Palgrave Macmillan, 2012.
da sociologia – classe, gênero e etnia – para o es- mana”. E continua: “Destes teóricos é Qvortrup, New York: Routledge, 1989.

tudo da infância. Nessa tendência, pode-se colo- no seu argumento de que a infância é uma forma ______. “A Voice for Children in Statistical and Social Accounting: A
Plea for Children’s Righs to be Heard”. In: JAMES, Allison; PROUT,
car o foco nas crianças, ou em grupos específicos social e as crianças são coconstrutoras ativas dos Alan (eds.). Constructing and Reconstructing Childhood: Contemporary Artigos traduzidos
de crianças, ou, como argumenta Allison James, seus mundos sociais, que melhor conceitualiza as
Issues in the Sociological Study of Childhood. London: Falmer Press, 1990.
para o português
______. “Childhood as a Social Phenomenon: Introduction to a Series
QVORTRUP, Jens. “A Volta do Papel das Crianças no Contrato
em artigo de 2007, estudar as vidas cotidianas das crianças e a infância no âmbito da prática social e of National Reports”. Eurosocial Report 36. Vienna: European Centre
Geracional”. Revista Brasileira de Educação, vol.16, n. 47 , p. 323-332,
for Social Welfare Policy and Research, 1991.
crianças por meio de documentação empírica, da agência”. 2011.
______. “Nine Theses about ‘Childhood as a Social Phenomenon’”. In:
seria “dar voz às vozes das crianças como atores A Sociologia da Infância, que Qvortrup cons- QVORTRUP, J. (ed.) Childhood as a Social Phenomenon: Lessons from
______. “Nove Teses sobre a ‘Infância como um Fenômeno Social’”.
Pro-Posições, vol. 22, n.1, p. 199-211, 2011.
an International Project. Eurosocial Report 47. Vienna: European Centre
sociais. Seria evitar algumas das armadilhas e pro- truiu com base nas pesquisas que desenvolveu for Social Welfare Policy and Research, 1993. ______. “A Infância enquanto Categoria Estrutural”. Educação e
blemas de representação”, pois seriam realizados ou coordenou, tem sido referência para sociólo- ______. “Children at Risk or Childhood at Risk - A Plea for a Politics
Pesquisa, vol. 36, n.2, p. 631-644, 2010.
of Childhood”. In: HEILILÖ, Pia-Liisa; LAURONEN, Erja; BARDY, ______. “A Tentação da Diversidade - e seus Riscos”. Educação e
estudos qualitativos do ponto de vista das crianças. gos de língua inglesa, francesa e portuguesa. Suas Marjatta (eds.). Politics of Childhood and Children at Risk, Provision, Sociedade, vol. 31, n. 113, p. 1121-1136, 2010.
A tensão, e a posição de Jens Qvortrup, é tema ideias, proposições teóricas e encaminhamentos Protection, Participation. Eurosocial Report 45. Vienna: European
______. “Infância e Política”. Cadernos de Pesquisa, vol. 40, n.141, p.
Centre for Social Welfare Policy and Research, 1993.
777-792, 2010.
dos artigos“The Little ‘S’ and the Prospects for Ge- metodológicos estão publicados principalmente ______. “From Useful to Useful: The Historical Continuity in
______. “Bem-Estar Infantil em uma Era de Globalização”. In SAETA,
Children’s Constructive Participation”. In AMBERT, Ann-Marie (ed.)
B.R.P.; SOUZA NETO, J.C.; NASCIMENTO, M.L.B.P. (orgs.) Infância:
Sociological Studies of Children. Greenwich, Connecticut: JAI Press.
Violência, Instituições e Políticas Públicas. São Paulo: Expressão e Arte,
(1995).
v. 2, p.43-61, 2008.

a dedicação à diversidade da infância implicará necessariamente ______. “Childhood in Europe: a New Field of Social Research”. In:
CHISHOLM, Lynne et al. (eds.). Growing up in Europe: Contemporary
______. Macro-Análise da Infância. In: CHRISTENSEN, P.; JAMES, A.
(orgs). Investigação com Crianças: Perspectivas e Práticas. Porto: Escola

considerar uma série de marcadores de identidade Horizons in Childhood and Youth Studies (International Studies on
Childhood and Adolescence; 2). Berlin/New York: De Gruyter, 1995.
Superior de Educação Paula Frassinetti, p. 73-96, 2005.
______. “O Trabalho Escolar Infantil Tem Valor? A Colonização das
______. “Childhood and Societal Macrostructrures”. “Childhood Crianças pelo Trabalho Escolar”. In: CASTRO, L. R. de (org.). Crianças
Exclusion by Default”. Working Paper 9. Child and Youth Culture. e Jovens na Construção da Cultura. Rio de Janeiro: Nau, Faperj, 2001.
nerational Childhood Studies” (O pequeno ‘s’ e as em língua inglesa, em sete livros que organizou, Odense University. The University of Southern Denmark, 1999.
______. “Crescer na Europa: Horizontes Atuais sobre os Estudos
______. “La Infancia y las Macroestructuras Sociales”. In: Derecho a
perspectivas para os estudos geracionais da infân- parte deles com outros sociólogos. São muitos os tener Derecho. Infancia, Derecho y Políticas Sociales en América Latina y el
sobre Infância e Juventude”, 1999. Disponível em < http://cedic.iec.
uminho.pt/Textos_de_Trabalho/textos/jensqvortrup.pdf> Acesso em
cia), de 2005, além de ser indicada na introdução artigos publicados em inglês, em alemão e em Caribe (tomo 4). Montevideo: Oficina Regional de Unicef para América 12/07/2012.
Latina y el Caribe – Instituto Interamericano del Niño - Fundación
de Childhood Matters (Assuntos da Infância), de dinamarquês. Há nove artigos publicados em por- Ayrton Senna, 1999.

1994. Diz ele, em 2005: “Há muito temo que es- tuguês. Produção que relacionaremos a seguir. ______. “Macroanalysis of Childhood”. In: CHRISTENSEN, Pia;
JAMES, Allison (eds.). Research with Children: Perspectives and Practices.
Referências bibliográficas
tudos comparativos sobre a infância, em geral, e London/New York: Falmer Press, 2000. BOURDIEU, P. Outline of a theory of practice. New York: Cambridge
University Press, 1977.
sobre as relações geracionais, em particular, sejam Livros ______. “Generation – An Important Category in Sociological
Childhood Research”. In: ACTAS do Congresso Internacional Os mundos CORSARO, W. “Collective Action and Agency in Young Children’s
vítimas ao se consolidar uma diversidade de pers- QVORTRUP, Jens; BARDY, Marjatta; SGRITTA, Giovanni; Sociais e Culturais da Infância. Braga: Instituto de Estudos da Criança; Peer Cultures”. In: QVORTRUP, J. (ed.). Studies in Modern Childhood:
WINTERSBERGER, Helmut (eds.). Childhood Matters: Social Theory, Universidade do Minho, v.2, 2000. Society, Agency, Culture. Basingstoke, Hampshire/New York:
pectivas de infância(s)”. Nessa linha, do ponto de Practice and Politics. Aldershot: Avebury, 1994. Palgrave Macmillan, 2005, p. 231-247. (Ação Coletiva e Agência nas
______. “Childhood – A Proper Sociological Issue?” International
vista metodológico, a “dedicação à ‘diversidade ______; MOURITSEN, Flemming (eds.) Childhood and Children’s
Conference Social Transformations at the Turn of the Millenium: Sociological
Culturas de Pares Infantis. Versão em português disponibilizada pelo
autor na UFRGS, 2007).
Culture. Odense: Odense University Press, 2003.
da infância’ implicará necessariamente considerar ______ (ed.). Studies in Modern Childhood: Society, Agency, Culture.
Theory and Current Empirical Research. Montreal: International
Sociological Association/ Research Council Conference; 2000. GIDDENS, A. The Constitution of Society. Oxford, UK: Polity Press,
uma série de marcadores de identidade, em prin- Basingstoke, Hampshire/New York: Palgrave Macmillan, 2005
______. “School-Work, Paid Work and the Changing Obligations of
1984.
______;WINTERSBERGER, Helmut: ALANEN, Leena: OLK, Thomas JAMES, A. “Giving Voice to Children’s Voices: Practices and
cípio, infinitos”, argumenta, acrescentando que o (eds.). Childhood, Generational Order and the Welfare State: Exploring
Childhood”. In: MIZEN, Phillip; POLE, Christofer & BOLTON, Angela
(eds.) Hidden Hands: International Perspectives on Children’s Work and Problems, Pitfalls and Potentials”. American Anthropologist, Flushing,
que há de comum entre as crianças é o fato de que Children’s Social and Economic Welfare. Odense: University Press of
Southern Denmark, 2007.
Labour (Future of Childhood). London: Routledge, p. 91-107, 2001. v. 109, n. 2, p. 261-72, 2007.
ZELIZER, Viviana Pricing the Priceless Child. The Changing Social Value
não são adultos. ______; CORSARO, William; HONIG, Michael-Sebastian (eds.).
______. “Sociology of Childhood: Conceptual Liberation of Children”.
of Children. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1985.
In MOURITSEN, Flemming (eds.). Childhood and Children’s Culture.
The Palgrave Handbook of Childhood Studies. Hampshire: Palgrave
Macmillan, 2009 Odense: Odense University Press, 2003.

Estudos da infância ______; ROSIER, Katherine Brown; KINNEY, David A. (eds.). ______.“The Little ‘S’ and the Prospects for Generational Childhood
Maria Letícia B. P. Nascimento é professora da
Sociological Studies of Children and Youth, vol. 12 – Structural, historical, Studies”. International Conference Childhoods. Oslo: University of Oslo,
Jens Qvortrup construiu um outro modo de and comparative perspective. Bingley, UK: Emerald, 2009. 2005. graduação da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo (Feusp). É pedagoga, mestre e doutora em
estudar a infância, acrescentando uma nova pers- ______; KJØRHOLT, Anne-Trine (eds.). The Modern Child and the ______. “Diversity’s Temptation – and Hazards”. 2nd International
Educação pela USP. Coordena o Grupo de Estudos sobre
Flexible Labour Market. Early Childhood Education and Care. London: Conference: Re-presenting Childhood and Youth. Sheffield: Centre for the
pectiva aos estudos sociológicos, de modo geral. Palgrave Macmillan, 2012. Study of Childhood and Youth, University of Sheffield, 2008. Sociologia da Infância e Educação Infantil (GEPSI).

82 especial revista educação especial revista educação 83


Gilles Brougère

O brinquedo
e a produção
cultural
infantil
é preciso buscar formas complexas de
educação que coloquem no mesmo espaço
as formas lúdicas e educativas, mas que se
tenha clareza sobre os atributos de cada uma
por Tizuko Morchida Kishimoto
Reprodução

O
O sentido
polissêmico
brinquedo é um dos te- nada pelo brinquedo tem essa potencialidade de políticas públicas de educação infantil do jogo gera com o apoio de Gilles Brougère, reno-
concepções e
mas importantes da con- penetrar e integrar campos das Ciências da Edu- no Brasil a partir de 2009. De outro lado, práticas em que a mado pesquisador francês que utiliza
temporaneidade capaz cação, embora esse processo não seja tranquilo. o sentido polissêmico do jogo gera con- inserção do lúdico as Ciências da Educação para esclarecer
de quebrar fronteiras De um lado, o brinquedo é visto como direito cepções e práticas em que a inserção do é naturalizada ou tais questões. O texto propõe apresen-
polemizada ao
de diferentes áreas do da criança, evidenciando-se nos paradigmas para lúdico é naturalizada ou polemizada ao contrapor o brincar tar o pesquisador, discutir suas ideias e
conhecimento. A esse a educação da infância apontados em Qualidade na contrapor o brincar ao aprender, com ao aprender pesquisas sobre as relações entre o brin-
respeito, Boaventura de Educação da Primeira Infância, de Gunilla Dahberg, significado diferente para o que se con- quedo e as culturas da infância e suas
Souza Santos, em Um Peter Moss e Alan Pence, e em Repenser l’Éducation sidera sério e não sério, trazendo impli- implicações na educação.
Discurso sobre as Ciências, propõe a “analogia lú- des Jeunes Enfants (Repensando a educação das cações para a educação.
dica” como um dos “conceitos quentes” capaz de crianças pequenas), obra coordenada por Gilles Compreender o significado do brincar na produ- Um pesquisador do lúdico
derreter “as fronteiras em que a ciência moderna Brougère e Michel Vandenbroeck, além de se des- ção cultural infantil e nas interfaces entre o brincar Gilles Brougère nasceu em Saint-Etienne
encerrou a realidade”. A ação lúdica proporcio- tacar como um dos eixos da prática pedagógica nas e o educar será o desafio enfrentado neste artigo (Loire), França, em 22 de maio de 1955. Graduou-se

84 especial revista educação especial revista educação 85


Gilles Brougère

em filosofia, em 1976, e em história, em 1977, na (1994); Jogo e Educação (1998); Brinquedos e Com- braços. Ao dispor de uma imagem de bebê com que podem ser tiradas e colocadas, pode levar a
Universidade Paris 1 e especializou-se em Ciên- panhia (2004); “A Criança e a Cultura Lúdica” e “O volume, o brinquedo adquire a faceta simbólica de criança à manipulação. Não se garante que os pi-
cias da Educação. No doutorado, sob a orientação Lúdico e a Educação: Novas Perspectivas” (2002). usos culturais da maternagem, de ser mãe e cuidar nos sejam inseridos nos buracos de cores corres-
de Robert Jaulin, pesquisou o brinquedo e a pro- do bebê. Por tais características, o brinquedo para pondentes (faceta educativa) porque há incerteza
dução da infância por meio da análise do brin- O brinquedo e as culturas da infância Brougère é o“objeto extremo”, que inclui a função no ato lúdico, visto que ela pode rolar os pinos,
quedo industrial no campo da Antropologia (Paris Em Brinquedo e Cultura, Brougère lança mão de fazer algo com o objeto e também a função colocá-los em buracos de cores não correspon-
7). Sua tese de professor titular, sob a direção de de duas perspectivas para conceber o brinquedo simbólica, de ingresso no imaginário. dentes, de acordo somente com suas decisões,
Eric Plaisance (Paris 5), tratou das relações entre no mundo das culturas da infância. Na primeira, O autor entende que o brinquedo não é espe- que são aleatórias, e sem foco na correspondência
o jogo e a educação, especialmente na pedago- foca o brinquedo como um objeto industrial ou lho da sociedade nem da representação humana de cores.
gia pré-escolar depois do romantismo, tema que artesanal destinado às crianças, de um objeto da da criança, mas um produto da época e da moda,
pode ser visto em sua obra clássica Jogo e Edu- cultura material, de interesse de fabricantes, de que está ligada ao consumo. A boneca representa O brinquedo e a cultura lúdica
cação, publicada no Brasil em 1998. Participou, a adultos e de crianças, que juntos produzem a cul- um dado contexto social, com suas roupas e ou- A Sociologia da Infância, ao ver a criança como
partir de 1994, do GREC (Grupo de Pesquisa sobre tura da infância (o brinquedo); e na segunda, o tras características, porém não a essência humana. ator social, com agência – perspectiva divulgada
Recursos Educativos e Culturais), na Universidade brinquedo é o suporte da brincadeira, que produz Por ser produzida pelo adulto, ela pode ser “es- por William Corsaro em “A Reprodução Interpre-
Paris 13, do qual foi diretor de 1998 a 2008, quando a cultura lúdica. pelho de um mundo para a criança [...], espelho tativa no Brincar ao Faz de Conta das Crianças” –,
de uma infância ideal”, diz Brougère. O telefone constrói a base para a definição da cultura lúdica,
de brinquedo humanizado pode ter essa que só se manifesta quando as crianças são ato-
brougère ajudou a fundar uma organização que estimula pesquisas característica de reprodução da rea-
lidade selecionada, adaptada ou
res e produtores de cultura. No entanto,
como nenhum ato livre pode ser feito
para ampliar o conhecimento sobre brinquedos de melhor qualidade modificada da criança no formato sem influências culturais, Brougère,
antropomórfico, com nariz, olhos em “Culture de Masse et Culture
da fusão das universidades Paris 13 e 8, que gerou O brinquedo e a cultura material ou um sorriso. O urso, de sím- Enfantine” (“Cultura de massa e
um novo centro de pesquisa interinstitucional, do Mesmo sendo produto industrial ou artesanal, bolo da selvageria animal, assume cultura infantil”), propõe a corre-
qual é um dos diretores, o Experice (Centro de o brinquedo não pode ser concebido apenas como o sentido cultural de protetor da lação entre as culturas de massa,
Pesquisa Interuniversitário, Experiência, Recursos ação dos fabricantes. Sua produção depende de criança, com a maciez da pelúcia produzidas por adultos, e a cul-
Culturais e Educação). uma corrente de atores e operações que incluem e as formas suaves e carinhosas tura infantil, expressa pelas crian-
O foco de suas pesquisas incide sobre temas sua fabricação, distribuição, propaganda e compra do focinho. O brinquedo para o ças. Essa interdependência se
como o brinquedo, a cultura infantil de massa, as até chegar à brincadeira. A origem social do brin- bebê tem características materiais gilles brougère deve à necessidade que a criança
relações entre o jogo (abordagens sociológicas e quedo pode ser compreendida, de forma simpli- pensadas para o universo infantil, é especialista tem de referências do mundo da
pedagógicas), a educação pré-escolar comparada ficada, como uma corrente formada por três ato- como cores suaves, maciez, for- em Ciências da cultura, veiculadas pela cultura de
e a educação informal. Brougère foi um dos pio- res: fabricantes, pais e filhos como demonstra em mas redondas, sem arestas, sem Educação. Em seu massa, para expressão da cultura
neiros e cofundadores do ITRA (International Toy Brinquedo e Companhia. Os fabricantes são produ- substâncias tóxicas, itens ligados doutorado, estudou lúdica, como mostram as crianças
Research Association), uma organização criada tores, os pais e adultos adquirem os produtos e as à segurança e à funcionalidade o brinquedo e a quando brincam com carrinhos de
produção da infância
em 1993, por iniciativa de Brian Sutton-Smith, crianças mostram o que se pode fazer com o brin- do objeto. corrida no formato de uma Ferrari
por meio da análise
destinada a estimular e encorajar pesquisas para quedo. Os idealizadores de brinquedos utilizam a Há brinquedos como os de vermelha, para apostar corridas e
do brinquedo
ampliar o conhecimento sobre brinquedos de me- experiência de já terem sido crianças, a memória construção, que não têm imagens industrial no campo representar os pilotos que partici-
lhor qualidade. de seu tempo de infância, além dos interesses dos sociais em seu volume; mas, em da Antropologia, pam da Fórmula 1.
Brougère desenvolve investigações colabora- pais e o que as crianças de hoje fazem durante a geral, eles carregam imagens da na Universidade Na ausência dessa cultura a
tivas com vários países, entre eles o Brasil, tendo cultura lúdica para moldar novos produtos. sociedade e seus usos dependem Paris 7. As relações criança pode permanecer em fun-
participado do projeto de cooperação internacio- A cultura material do brinquedo requer a dis- das crianças. Há uma modalidade entre jogo, cultura ções motoras, puxando o carri-
nal Brasil-França (Capes/Cofecub) sobre os usos tinção de duas facetas: uma função que delimita de brinquedo associada à educa- infantil de massa, nho, empurrando-o com as mãos
dos brinquedos, em 1996 e 1999, coordenado por o que o objeto pode fazer; e um valor simbólico, a ção: a do brinquedo pedagógico, educação pré-escolar ou com os pés. Para brincar de
ele do lado francês e por Tizuko Morchida Kishi- significação que a sociedade veicula por meio de que em sua concepção carrega a e educação informal corrida da Fórmula 1, ela precisa
são o foco de suas
moto do lado brasileiro. Em universidades bra- imagens sociais. imagem de objeto para aprender. dominar elementos dessa cultura,
pesquisas. Hoje,
sileiras de São Paulo, Brasília e Santa Catarina, A boneca-bebê atende à faceta funcional por Brougère (2004) mostra como dispor do “banco de imagens” que
realiza investigações
orientou pelo menos três doutorados, ministrou seus aspectos materiais, como forma, textura, produtores investem nesse objeto, traduz a realidade em que vive e
com outros países
inúmeras conferências, foi objeto de atenção da tamanho, cor e mecanismo, permitindo que a com faceta lúdica e pretensa fa- sobre os usos lhe dá condições de compreender
mídia em entrevistas e possibilitou a publicação criança interaja com o objeto, acariciando-o, abra- ceta educativa. Um trem com bu- dos brinquedos. o significado desse evento social
de suas obras em português: Brinquedo e Cultura çando-o, mexendo os olhos, as perninhas e os racos e pinos coloridos, com rodas que é diferente de qualquer ato

86 especial revista educação especial revista educação 87


Gilles Brougère

dade de prática lúdica, que


A cultura material pode ocorrer na escola, no
do brinquedo
requer a distinção
bairro, no quarteirão, na fa-
de duas facetas: mília, na brinquedoteca ou
uma função que em um clube. Pode-se di-
delimita o que
zer que, no Brasil, Florestan
o objeto pode
fazer; e um valor Fernandes (1979) foi pio-
simbólico neiro ao investigar a cultura
lúdica, por ele denominada
“trocinhas”, com crianças
do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, em mea-
dos do século XX, refletindo e apresentando os va-
lores, as habilidades, preferências de brincadeiras
e preconceitos de gênero dos brincantes da época.
A comunidade de prática gera engajamento
mútuo, empreendimento comum e repertório
partilhado, próprio do grupo, parte colhida fora
e parte produzida pelo grupo. O que caracteriza
a comunidade de prática lúdica e seu repertório
é a importância da participação e do pertenci-
mento ao grupo. “Pertencer ao grupo é participar,
fazer com, jogar com, falar de seus jogos e de seus
brinquedos, eventualmente modificar, fabricar,
destruir”, diz Brougère. Esta cultura é fortemente
marcada por uma cultura de gênero, que varia em
função da idade e de numerosos fatores sociais
ou culturais, evidenciando que “as culturas lúdi-
cas têm sexo”. A comunidade de prática é o lu-
gar de construção e reconstrução de identidades
dos membros do grupo e de identidade sexual, de
meninos e meninas, que deixam traços de seus
terrenos de jogos e dos brinquedos, aproveitando
Ana Teixeira. Reprodução

as marcas deixadas por outras comunidades de


práticas, que são retomadas, transformadas e ne-
gociadas no grupo.
Brinquedos como bonecas ou carrinhos geram
brincadeiras cujo conteúdo depende do imagi-

motor. Essa é a tarefa da socialização que integra ao brincar. A cultura lúdica como domínio de re-
a criança no contexto de seus pares e dos adultos,
garante o domínio de seus códigos e a comunica-
ferências do mundo da cultura para interpretar
ações do cotidiano ou como um estado de espírito
as crianças brincam juntas e constituem uma comunidade de prática
ção com outros membros da sociedade. Portanto, com que se brinca pode ser pesquisada no texto de lúdica na escola, no bairro, no quarteirão, na família, no clube
o brinquedo como suporte de brincadeira requer Brougère, de 1998,“A Criança e a Cultura Lúdica”.
a impregnação cultural e a socialização da criança A produção da cultura lúdica pode ser feita cas, um conceito de Etienne Wenger analisado em nário das crianças, mas para Brougère nem sem-
no mundo em que vive, sem os quais ela não tem de várias formas, entre as quais com brinquedos, texto que mostra as relações entre a cultura de pre o brinquedo é apenas suporte de brincadeira,
as ferramentas para expressar a cultura lúdica com que têm a função primordial de produzi-la sob o massa e a cultura infantil. No artigo “Formes Lu- ele pode ser algo mais parecido com um jogo de
seus pares. Para potencializar as brincadeiras não formato de estruturas, esquemas e temas que pos- diques et Formes Éducatives” (Formas lúdicas e regras. No artigo “Et si Superman n’Était qu’un
bastam brinquedos, é preciso acessórios com- sibilitam às crianças jogarem juntas. O locus desta formas educativas), Brougère mostra como crian- Jeu?” (“E se Super-Homem fosse só um jogo?”),
plementares que dão complexidade e qualidade cultura encontra-se nas comunidades de práti- ças brincam juntas e constituem essa comuni- Brougère classifica alguns produtos da cultura da

88 especial revista educação especial revista educação 89


Gilles Brougère

infância como um jogo, contendo estrutura com formam em filmes, videogame, jogos de regra, de
regras e com significações próprias. O Super- construção (como Lego), brinquedos e represen- Há uma
modalidade
-Homem é visto como um jogo que contém uma tação em roupas, alimentos e embalagens. de brinquedo
estrutura e a história de transformação de Clark Não importa a origem, todos participam desta associada à
Kent no personagem que luta pelo bem. Veiculado ciranda dos jogos, estimulados pelo avanço dos educação: a
do brinquedo
pela revista em quadrinhos desde 1940 e acom- novos meios tecnológicos e midiáticos. Estes
pedagógico, que
em sua concepção
carrega a imagem
de objeto para
o super-homem circula em quadrinhos, filmes, jogos, mantendo aprender
sempre a mesma estrutura; é uma história fixa em novas narrativas
panhado por uma velha história, o arquétipo da meios produzem novas culturas para a infância,
cultura popular de massa, o Super-Homem circula incorporando as brincadeiras do passado, preser-
nos quadrinhos, filmes, jogos de vídeos, brinque- vando seus princípios e mudando as formas de
dos, roupas e representações de vários tipos, man- circulação e expressão, como relata o historiador
tendo sempre a mesma estrutura, uma história dos brinquedos, Michel Manson.
fixa, recriada incessantemente em novas narra- No artigo “De Tolkien a Yu-Gi-Oh’”, Brougère
tivas infantis. Por tais razões, brinquedos como mostra esse hibridismo entre passado e presente
o Super-Homem são vistos como jogos com re- ao discutir a presença do universo da ficção me-
gras, que são repetidos pelas crianças e mantêm dieval, que mistura o maravilhoso e a história
a mesma estrutura, tendo seu conteúdo recriado, antiga, em obras como O Hobbit, O Senhor dos
mas se tornando “diferente e sempre o mesmo”, Anéis e O Silmarillion, escritas por J. R. R. Tolkien,
segundo Brougère. que são reproduzidas nos produtos da cultura de
massa. A literatura carregada de tradição mítica,
A circulação do brinquedo misto de imaginação, ficções medievais, de velhas
na cultura de massa tradições legendárias encontra-se na base dos
A diversidade de produtos da cultura de massa produtos como Magic, Pokémon, Dongeons, Disney,
destinada às crianças inclui filmes, séries televisi- Harry Potter, Yu-Gi-Oh entre outros.
vas, brinquedos, jogos de vídeos, jogos de cartas, Power Rangers, um seriado televisivo de ori-
livros, desenhos animados, sites na internet entre gem japonesa que representa a luta entre o bem e
outros. O Pokémon nasceu na forma de video- o mal baseado no princípio da colaboração típico
game, mas circula em três formatos: jogo de vídeo, desse país, divulgado pela cultura de massa, teve

Reprodução
série televisiva e jogo de cartas, sustentados pela impacto na cultura lúdica. O interesse despertado
cultura lúdica transitando em diversos meios da pelo seriado entre as crianças que reproduziam as
cultura de massa, conforme informações da obra lutas nas culturas lúdicas leva à criação dos per-
La Ronde des Jeux et Jouets (A ciranda dos jogos sonagens na forma de brinquedos e evidencia a
e brinquedos). É nessa perspectiva que Brougère natureza indissociável da lógica do marketing e alimentos, nas embalagens e em outros materiais Enquanto a embalagem carrega um jogo, uma
nota a reciclagem contínua na produção de no- da lógica da cultura, assim como dos impactos (tatuagem, figurinha e derivados, autocolantes, imagem e recortes, o alimento divertido introduz
vos objetos, brinquedos, roupas e alimentos que da cultura de massa sobre a cultura lúdica e vice- selos, CD-ROM). O artigo “Fun Food et Culture o prazer na alimentação e constrói a identidade
se apoia na cultura criada por adultos e crianças -versa. A circulação mundial desse tipo de cultura Matérielle Enfantine” (Alimento divertido e cul- do consumidor, de pertencimento a um grupo de
juntos. Há inúmeros produtos da cultura de massa de massa exigiu adaptações locais, como nos Esta- tura material infantil) inclui biscoitos estampa- pares, consumidores de alimentos e da cultura in-
divulgados para a infância pela TV, como os Mes- dos Unidos, em que se situam os personagens no dos com personagens enraizados no universo fantil de um mesmo tipo.
tres do Universo, Power Rangers, Yu-Gi-Oh, que contexto das lutas étnicas, mais coerentes com a familiar e cotidiano, às vezes segmentado por gê- Outra forma de circulação das práticas lúdicas
possibilitam a circulação em outros meios. Muitas cultura do país. Para Brougère, o sucesso de Power nero e ovinhos de chocolate com brinquedos em pode ser vista na análise do Halloween, tratado
vezes essa cultura provém de livros, como a série Rangers se deve à lógica da luta entre o bem e o seu interior. As embalagens tornam-se suportes por Brougère em capítulo do livro de Julie Dela-
Harry Potter, escrita pela novelista inglesa Joanne K. mal, a transformação no super-herói e a recriação dessa cultura de divertimento e de alimentação. lande, Des Enfants entre Eux (Crianças entre elas),
Rowling, mas que tem conteúdos míticos que se de ações do personagem em contexto imaginário. Os produtos divertidos incluem categorias como que divulga a cultura lúdica que circula em vá-
assemelham aos contos de Tolkien, que se trans- A circulação da imagem do lúdico avança nos forma, cor, ação, jogo, gosto e acondicionamento. rios países, mas com características próprias. Na

90 especial revista educação especial revista educação 91


Gilles Brougère

França, o Halloween restringe-se à expressão da


morte, enquanto nos Estados Unidos é carnaval
com diversidade de temas, representando uma ca-
racterística da cultura infantil contemporânea e de
uma complexa superposição de cultura produzida
para e pelas crianças.

Jogo e educação
Em Jogo e Educação (1998), Brougère percorre
a história do pensamento pedagógico analisando
o significado do termo jogo, apontando a dife-
rença entre a palavra e a coisa. Utiliza referências
do filósofo Ludwig Wittgenstein e do psicólogo
Jacques Henriot, que tratam de analogias lúdi-
cas para marcar a diversidade de coisas chamadas
por jogo e caminha pelas concepções das anti-
gas Roma e Grécia, penetrando na Idade Média
e chegando ao Romantismo e à Modernidade
para evidenciar a polissemia de significações que
o termo abrange. Nesse percurso, mostra que no
romantismo houve uma ruptura com a ideia tradi-
cional de jogo como recreação. Passou-se, então,
a associá-lo à criança, focalizando a espontanei-
dade e a naturalidade do brincar infantil. Nessa
caminhada, os conceitos de futilidade e incerteza
como características do jogo dão base para ques-
tionar sua relação com a atividade pedagógica,
que é séria e demanda finalidades, mediação e

Ana Teixeira. Reprodução


intencionalidade do adulto.
O que Brougère mostra é a inexistência da rela-
ção jogo-educação antes do romantismo, quando
o jogo era visto como uma ação fútil, em que pre-
dominavam práticas recreativas e artifícios peda-
gógicos relacionados à visão de criança e de edu- Brinquedos
como bonecas escapa a essa ideia do para- utilizado para descobrir aspectos do psiquismo do seu tempo, desconsiderando os atributos es-
cação dessas épocas. Sustentada pelas concepções
ou carrinhos
e práticas de Jean-Jacques Rousseau, Jean-Paul geram lelismo quando relaciona o humano, predominando o uso instrumental, ex- pecíficos do jogo ou do brincar (considerados
Richter, Frederico Froebel e pelos contos de Ernst brincadeiras pensamento infantil ao dos ceto o brinquedo/objeto transicional, que auxilia a sinônimos nesse estudo), que serão tratados no
Theodor Amadeus Hoffman, a visão romântica se cujo conteúdo primitivos. compreensão da personalidade da criança. próximo segmento.
depende do
instaura: a da criança boa, pura, além da valori- imaginário Outra teoria, de teor bioló- Diante desses dados, Brougère conclui que a
zação da natureza, do maravilhoso e do criativo, das crianças gico, é a do pré-exercício para psicologia infantil sofreu influências da biologia e Jogo ou brincadeira: alguns atributos
dando mais espaço para que o jogo espontâneo a aquisição de habilidades. do pensamento romântico na construção de uma Na obra Jouer/Apprendre (Jogar/Aprender),
seja valorizado do ponto de vista educativo. Observar animais que brin- ciência dos jogos que ocultou sua dimensão so- Brougère situa o jogo e a educação em campos
Na modernidade, o pesquisador discute o pa- cam e inferir sobre o jogo infantil é considerar que cial e, assim, mostra como pedagogos, biólogos distintos: o jogo ou brincar, na esfera do lazer e
pel da psicologia como ciência do jogo infantil, ambos são da mesma natureza, sem considerar e psicólogos estabeleceram concepções próprias da educação informal; e o aprender, na educação
que usa novos discursos e métodos. A teoria da que o ser humano é simbólico, vive na sociedade
recapitulação utiliza a embriologia e a etologia, e na cultura. Claparède segue a mesma rota insti-
mas assenta-se na velha ideia platônica da me- tuindo uma pedagogia naturalista a partir de uma
táfora das idades da vida, o paralelo entre a vida psicologia do jogo, de cunho espontâneo, como a psicologia infantil teve influências da biologia e do romantismo na
da humanidade e a dos indivíduos. Piaget não base para a educação. Na psicanálise, o jogo é construção de uma ciência dos jogos que ocultou a dimensão social
92 especial revista educação especial revista educação 93
Gilles Brougère

cas são resumidas em cinco atributos ou critérios que o adulto interfira, ou interfira apenas indire-
do brincar, ou do jogo, que servem para distinguir tamente, na organização do espaço e do tempo. O

Reprodução
a atividade lúdica de outras e aparecem em muitos que acontece, segundo ele, nas escolas infantis do
textos do autor: 1. formato de pensamento de se- Japão, que buscam a comunicação e a socialização
gundo grau, similar ao faz de conta; 2. decisão do das crianças.
brincante de entrar na brincadeira e de o brincar A segunda incluiria a maioria das instituições
ser uma sucessão de decisões ou que jogar é deci- pré-escolares nas quais predomina a forma edu-
dir; 3. regra que se impõe do exterior ao jogador, cativa, e o jogo tem lugar no recreio ou num es-
que pode ser negociada ou construída na medida paço marginal. Essa modalidade foi encontrada
do jogo; 4. frivolidade ou a minimização das con- por vários pesquisadores em escolas infantis na
sequências da atividade; 5. incerteza. cidade de São Paulo e em outras regiões do país.
Tais atributos servem para analisar as implica- A terceira dependeria da construção de pro-
ções da brincadeira no campo da educação, acres- posta educativa decorrente da associação entre
cidos recentemente de termos como“formas lúdi- as formas lúdicas e educativas, ambas com espa-
cas” e “formas educativas”, que tornam mais clara ços delimitados. Essa perspectiva encontra-se em
essa preocupação – e que se encontram no artigo abordagens de projetos que surgem das brinca-
“Formes Ludiques et Formes Éducatives”(Formas deiras das crianças ou do High-Scope, um modelo
lúdicas e formas educativas). curricular para creche/pré-escola que dispõe em
sua estrutura organizacional de um tempo/espaço
Formas lúdicas e educativas para brincar e de outro para mediações do adulto.
As formas lúdicas não se restringem às si- Pode manifestar-se também em outros momentos
tuações de interpretação da realidade, como no das práticas pedagógicas mais informais, como
imaginário, mas deixam seus traços em institui- no recontar de histórias pelas crianças, quando
ções, objetos, rotinas e signos. Nem sempre há a estrutura dos contos de fadas possibilita recriar
consenso sobre o que representam as formas lú- novas narrativas com a inserção das experiências
dicas: instituições pré-escolares chamam de jogo das crianças, o mesmo ocorrendo com a recriação
inúmeras situações conforme seus interlocutores de brincadeiras por meio das estruturas das par-
e momentos. lendas e músicas.
Conceber as formas lúdicas e educativas como Outra diferença entre as formas lúdica e edu-

por não ter consequência na vida do brincante, a ação lúdica


torna-se frívola; por depender de sua decisão, vira ato incerto
“A infância é
uma categoria
formal. No primeiro, foca-se o lazer, minoritária diano, como simular ser motorista. Tem iguais empobrece o processo educativo porque a cativa encontra-se nos brinquedos de guerra.
o divertimento e aprendizagens in- clássica, objeto de a ver com o desempenho do jogador, educação, por ser ato com finalidade, não pode Quando brincam de guerra, as crianças se utilizam
cidentais; no segundo, a educação tendências tanto de uma reprodução interpretativa. Essa carregar o atributo da incerteza. É preciso distin- de tais brinquedos ou apenas “dois dedos” como
marginalizadoras
sistemática visando à aprendiza- quanto forma lúdica é configurada pela sequên- guir o lúdico do não lúdico e encontrar tempos e menciona Brougère para entrar no imaginário, em
gem. Uma das críticas recorrentes do paternalizadoras” cia de decisões do brincante quando tem espaços para ambos. Ao analisar as propostas de atos sem consequência. Na forma educativa, os
pesquisador sobre os discursos e as agência (que também é embebida pela educação infantil, Brougère nota que o brincar, brinquedos de guerra tendem a ser interditados
práticas pré-escolares que não dis- cultura na qual vive a criança), acom- enquanto especificidade do pré-escolar, possibi- porque a guerra é vista como ato com consequên-
tinguem as analogias entre o lúdico e a educação panhada por regras, que provêm do exterior, mas lita o encontro entre as formas educativas e lú- cia e tais objetos não são oferecidos como opção
encontra-se no livro Jeu et Cultures Préscolaires que podem ser negociadas ou construídas con- dicas, com uma complexidade de concepções e ao imaginário.
(Jogo e culturas pré-escolares). forme o jogo avança e que orientam as ações lú- práticas que aparecem de modo diferente em pelo Polêmicas em torno do “jogo sério”, associado
Outro tema persistente nas publicações desse dicas. Por não terem consequências na vida do menos três modalidades distintas. à aprendizagem, e o “não sério”, ao brincar, são
pesquisador é a análise dos atributos do brincar, brincante, as ações lúdicas tornam-se frívolas e, A primeira é representada por um contexto discutidas pelo pesquisador que admite que se
de uma forma lúdica – um pensamento de se- por dependerem das decisões da criança, viram em que, na totalidade de uma jornada, as crian- aprenda, quando se brinca em contextos livres, em
gundo grau – que se aplica às situações do coti- atos incertos e de difícil previsão. Tais característi- ças brinquem segundo sua própria iniciativa, sem ambientes de educação informal e nas comuni-

94 especial revista educação especial revista educação 95


Gilles Brougère

dades de práticas lúdicas. Em conferência recente Os que pensam que o jogo tem um valor edu- outras mídias no fornecimento
publicada em Playtime sob o título “Le Jeu Peut-il cativo, próprio, acreditam que basta o enquadra- de imagens para a cultura lúdica. Enquanto
Être Serieux?” (O jogo pode ser sério?), ele uti- mento lúdico para que ocorra a aprendizagem e joga, a
O advento das novas tecnolo-
intenção da
liza estudos do pesquisador dos jogos eletrônicos referendam a postura ingênua sobre a vocação gias não representa a morte da criança não é
James Paul Gee sobre videogames para mostrar educativa natural do jogo, que, na visão de Brou- infância, que cresce na era dos aprender, mas
que a criança aprende jogando. Enquanto joga, a gère, foi inventada pelos românticos, introduzida ter o prazer
meios eletrônicos, como men-
de jogar e
intenção da criança não é aprender, mas ter o pra- nas ciências positivas pelos biólogos, retomada ciona David Buckingham (2000). ganhar
zer de jogar e ganhar. Durante o processo lúdico, pela psicologia funcionalista e seus sucessores, Resta o desafio para as escolas
nas repetições de partidas e aprimoramento de ocultando dimensões sociais. e seus professores de abertura
suas ações em estratégias cada vez mais comple- para o novo, para que se coloque a criança dentro
xas ocorrem aprendizagens. A criança em seu tempo de seu tempo, partilhando de uma comunidade
Apesar de assumir a relação entre o jogo e Percorrer ideias de Gilles Brougère sobre de prática lúdica na qual o brinquedo faça parte
a aprendizagem nos contextos informais e nas o brinquedo nas culturas da infância evidencia da cultura da infância, mas também mediada pelo
comunidades de prática, Brougère alerta para a duas questões que merecem atenção. A primeira adulto e acompanhada de visão crítica.
frivolidade e a incerteza das formas lúdicas que diz respeito às associações inadequadas entre o
podem tornar a educação superficial. Acres- brincar e o aprender, como a naturalização do Referências bibliográficas
centa, ainda, que no contexto lúdico, a criança ato educativo pelo brincar espontâneo, que pode Bateson, G. Vers une Écologie de l’esprit. Paris: Éditions du Seuil, 1977.
expressa sua intenção e não o que lhe é requerido gerar educação de baixa qualidade. Ao anunciar Brasil. MEC/SEF. Resolução nº 05, de 17 dez. 2009. Fixa as Diretrizes
Curriculares Nacionais de Educação Infantil. Diário Oficial da
na atividade. Fato constatado pelo pesquisador que a forma lúdica possibilita a emergência de União, Brasília, seção 1, p. 18, 18 dez. 2009. Disponível em: <http://
portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_
brasileiro Cristiano Muniz, que em seu douto- um potencial educativo específico, mas profunda- download&gid=2298&Itemid=>. Acesso em: 10/05/2012.
rado orientado por Brougère observou como as mente aleatório, o autor sugere a busca de formas Brougère, G. Brinquedo e Cultura. São Paulo: Cortez, 1994.

crianças durante o jogo livre do Monopólio, em complexas de educação que coloquem no mesmo ______. Jeu et Éducation. Paris: L’Harmattan, 1995.

uma ludoteca francesa, não usavam conteúdos espaço as formas lúdicas e educativas, mas que se ______. Jogo e Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
______. “A criança e a Cultura Lúdica”. Revista da Faculdade de Educação da
aritméticos mais complexos, distanciando-se de tenha clareza sobre os atributos de cada uma. USP. São Paulo, v. 24, n. 2, jul.-dez. p. 103-116, 1998.
outros momentos em que o pesquisador, pela A segunda trata do desafio dos tempos atuais ______.“A Criança e a Cultura Lúdica”. In: Kishimoto, T. M. (Org.). O
Brincar e Suas teorias. São Paulo: Pioneira, 1998.
mediação, assegurava a aprendizagem de tais para rever o papel das culturas de massa na cultura ______. “O Lúdico e a Educação: Novas Perspectivas”. Linhas Críticas, v. 8,
conceitos. Essa especificidade também foi obser- infantil. A circulação dos brinquedos na cultura n. 14, p. 5-20, 2002.
______. Jouets et Compagnie. Paris: Stock, 2003.
vada por mim, em 2011, em uma escola de En- de massa pela propaganda e o consumo fazem
______. Brinquedos e Companhia. São Paulo: Cortez, 2004.
sino Fundamental, em São Paulo, quando crian- parte do mundo atual. Não se pode eliminá-los. ______. “De Tolkien a ‘Yu-Gi-Oh’”. Communication, n. 77, p. 167-182, 2005.
______. Jouer/Apprendre. Paris: Economica-Antropos, 2005.
______. “Et si Superman n’Était qu’un Jeu?” In: Brougère, G. (dir.). La

Reprodução
o autor sugere que se busque colocar as formas lúdicas e educativas
Ronde des Jeux et Jouets. Paris: Autrement, 2008.
______. (dir.). La Ronde des Jeux et Jouets. Paris: Autrement, 2008.

no mesmo espaço, mas com clareza sobre os atributos de cada uma ______. “Halloween, son Commerce Français et la Tentative
d’Appropriation Enfantine”. In: Delalande, J. (dir.). Des Enfants entre
Eux. Paris: Autrement, 2009.
______. “Fun Food et Culture Matérielle Enfantine”. Colóquio Inter- Dahlberg, G.; Moss, P.; Pence, A. R. Beyond Quality in Early Childhood
nacional “Alimentation, Cultures Enfantines et Éducation”. Education and Care. Londres: Routledge-Falmer, 2002.
ças de 6 anos manifestaram situações de jogo e É preciso integrá-los na vida da criança, de forma Angoulême, 1º-2 abr. 2010. Disponível em: <http://www.univ-paris13.
fr/experice/images/stories/MEMBRES/PUBLICATIONS/funfood_ Fernandes, F. Folclore e Mudança Social na Cidade de São Paulo.
não jogo em uma atividade de contagem, com o crítica, para o domínio desses novos códigos. A TV, colloque_04_2010.pdf>. Acesso em: 3/05/2012. Petrópolis: Vozes, 1979.

uso de ovinhos e uma parlenda. Algumas usaram o videogame, os jogos midiáticos e os brinquedos ______. “Cultures Préscolaires, Discours et Pratiques du Jeu”. In: Rayna, Kishimoto, T. M. et al. “Jogo e Letramento: Crianças de 6 anos no
S.; Brougère, G. (dir.) Jeu et Cultures Préscolaires. Lyon: INRP, 2010. Ensino Fundamental”. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 1, p. 191-211,
a parlenda, com a mediação do adulto, para con- circulam pelo mundo, e conhecê-los faz parte da ______. “Formes Ludiques et Formes Éducatives”. In: Bédard, J.;
jan.-abr. 2011.

tar ovinhos respeitando a sequência numérica, cultura infantil. Sem o domínio desses novos có- Brougère, J. (dir.). Jeu et Apprentissage: Quelles Relations? Sherbrooke:
Editions du CRP, 2010.
Kline, Stephen. Out of the Garden: Toys, TV, and Children’s Culture in the
Age of Marketing. Londres/Nova York: Verso, 1995.
evidenciando a aprendizagem (não jogo); outras digos, as crianças não dispõem de imagens sociais ______. “Culture de Masse et Culture Enfantine”. In: Arleo, A.; Delal- Manson, M. Jouets de Toujours. Paris: Fayard, 2001.
ande, J. (dir.). Cultures Enfantines: Universalité et Diversité. Rennes: PUR,
manipularam independentemente os ovinhos de e culturais para partilhar nas comunidades de prá- 2010. Rayna, S.; Brougère, G. Traditions et Innovations dans l’Éducation
Préscolaire. Paris: INRP/Crésas, 2000.
forma aleatória e cantaram de modo prazeroso, ticas lúdicas de seu tempo. ______. “Le Jeu Peut-il Être Sérieux? Revisiter Jouer/Apprendre em Temps
de Serious Game – Le XVIIIème Congrès de l’Association australienne Santos, B. S. Um Discurso sobre as Ciências. São Paulo: Cortez, 2003.
sem correlacionar conceitos matemáticos às suas Stephen Kline em Out of the Garden (Fora do d’études françaises. Playtime, Austrália, 30 set./2 out. 2010.
Sutton-Smith, b. The Folks Stories of Children. Philadelphia: University
ações (jogo). Nos casos citados, é a mediação jardim) denuncia a alienação da escola infantil às ______.; Vandenbroeck, M. (dir.). Repenser l’Éducation des Jeunes Enfants. of Pennsylvania Press, 1983.
Bruxelles: P.I.E. Peter Lang, 2007.
do adulto que diferencia os quadros lúdicos e mudanças na sociedade ao ignorar a tendência de Bruner, J. Atos de Significação. Porto Alegre: Artmed, 1997. Tizuko Morchida Kishimoto é pós-doutora em
educativos. Ao distinguir “aqui é jogo” ou “aqui incorporar, em suas práticas, conteúdos do mundo Buckingham, D. After the Death of Childhood: Growing up in the Age of Educação pela Universidade Paris 13, e livre-docente da
Electronic Media. Cambridge: Polity Press, 2000. Faculdade de Educação da USP. Escreveu, entre outras
é não jogo”, Gregory Bateson (1977) possibilita do consumo e das tecnologias. Brougère segue obras, Jogos Infantis (Vozes, 2012) e Jogo, Brinquedo,
Corsaro, W. A. “A Reprodução Interpretativa no Brincar ao Faz de
a formulação analógica: “aqui é aprendizagem”. na mesma direção, apontando o papel da TV e de Conta das Crianças”. Educação, Sociedade e Cultura, n. 17, p. 113-134, 2002. Brincadeira e Educação (Cortez, 2011).

96 especial revista educação especial revista educação 97


Loris Malaguzzi

Por uma nova


cultura da
infância
Baseada na inovadora concepção de pedagogia da escuta,
das relações e das diferenças, a educação infantil pode ser um
espaço agradável, de prazer e, principalmente, um direito para as
crianças, para suas famílias e professoras/es
por Ana Lúcia Goulart de Faria e Adriana Alves Silva

L
oris Malaguzzi nasceu em 23 de rio e uma ideia incrível, o estopim para uma nova
fevereiro de 1920, em Correggio, história inacreditável, de construção popular e par-
uma pequena cidade da Emilia ticipação coletiva de uma outra educação possível.
Romagna, região no centro-norte Após sete anos ensinando nessa escola, Loris
da Itália. Mais tarde foi morar em Malaguzzi decidiu sair e buscar outros caminhos.
Reggio Emilia, cidade para qual Embora essa experiência lhe tenha sido gratifi-
seu pai, um chefe de estação ferro- cante, ela acabou limitada pela estrutura do Es-
viária, foi transferido. tado, que passou após um tempo a administrar as
Loris estudou pedagogia na Università di Ur- escolas, mesmo as que nasceram a partir da mo- Malaguzzi
deu destaque,
bino e depois psicologia no Centro Nacional de bilização comunitária. E o fez reproduzindo uma desde o início
Pesquisa (CNR) de Roma. Na década de 1940 co- trágica lógica que, de forma estúpida e intolerá- de seu trabalho,
meçou a lecionar, mas sua experiência com a cria- vel, era ao mesmo tempo indiferente para com as à confiança e
ao respeito à
ção de uma pedagogia e o trabalho de uma vida crianças e guiada por conhecimentos prontos e
produção das
para e com as crianças pequenas inicia-se seis “pré-embalados”.
Ana Teixeira. Reprodução

culturas infantis
dias após o final da Segunda Guerra. Isso se deu Malaguzzi buscou outros caminhos. Foi para
em Villa Cella, pequeno vilarejo da Reggio Emilia, Roma estudar psicologia no Centro Nacional de
onde um grupo de pais e mães resolveu construir Pesquisa (CNR). Depois, ao retornar a Reggio
uma escola. Tratava-se de um evento extraordiná- Emilia, retomou seu trabalho como professor nas

98 especial revista educação especial revista educação 99


Loris Malaguzzi

pequenas escolas autogestionadas pelos pais. Um munitária de uma sociedade que se renovava e participação de outros países como o Brasil, que já bambini e alle bambine di questo fine secolo? Per prima
trabalho repleto de desafios, pois ao mesmo tempo buscava um empoderamento na conquista de di- esteve presente em várias edições do encontro na- cosa, quello che posso dire lo dico in funzione della mia
que se sentiam encorajados pela presença dos pais, reitos sociais, não mais filantrópicos, assistenciais cional, em 2012 escolheram a Toscana como sede. lunga esperienza in questo mondo che dobbiamo fare
também havia muito medo e a certeza da necessi- e discriminadores. Este processo foi decisivo, pois Realizada em março, tivemos a participação brasi- sempre più bello. Ed è basandomi su questa esperienza
dade de aprenderem junto com as crianças, envol- a escola foi duramente atacada e, devido à fragi- leira em uma conferência, proferida pela professora che torno a dire: non lasciate morire la voce dei bambini
vendo as famílias. lidade das condições materiais, um descaso ini- Ligia Maria Leão de Aquino da Universidade Esta- e delle bambine che stanno crescendo.
A partir dessas experiências, as raízes foram se cial do Estado, pegou fogo. Esse incêndio, porém, dual do Rio de Janeiro (Uerj), intitulada: “Política Paulo Freire, aprile, 1990.
expandindo, sobretudo das experiências coletivas, possibilitou que se construísse uma estrutura mais Nacional e os Desafios da Qualidade nos Serviços
com a conjuntura política favorecendo as possibili- sólida, que fincou as raízes da determinação cívica Educativos para a Primeira Infância no Brasil”. Pedagogia fantástica
dades de transgressões e invenções. Foram anos de para a consciência pública do reconhecimento dos Ainda em 1990, foi realizado em Reggio Emilia A partir da década de 1970, é intensificado o
construção de uma pedagogia do processo, em dis- direitos cidadãos. um grande e importante congresso internacional, trabalho de continuidade da participação das fa-
puta com cristalizadas convenções históricas, que Os primeiros desafios foram enormes, especial- com 1.700 participantes de todo o mundo, entre eles mílias na administração das escolas de Reggio
ao fim Malaguzzi construiu com muita luta novas mente de reconhecimento e valorização. Malaguzzi, Paulo Freire, admirado e estimado por Loris Mala- Emilia como um valor imprescindível, tendo como
concepções de criança, de infância, de pedagogia. em entrevistas, narra esse momento de muita ex- guzzi. No livro Biografia Pedagógica (2004), Alfredo base o protagonismo das crianças e a formação
pectativa e tensão, visto que não podiam errar. Na H. Planillo destaca a presença do nosso grande exigente e constante das professoras. Dessa forma
Construção e consciência verdade, tinham de descobrir rapidamente a iden- educador brasileiro transcrevendo a carta por ele tornavam-se possíveis os estudos e as pesquisas
coletiva dos direitos das crianças tidade cultural com a qual adquiririam confiança e deixada para Loris Malaguzzi. Nela, Paulo acerca da experiência local, que ficou conhecida em
Loris Malaguzzi foi professor, secretário de respeito perante a comunidade. Freire compartilha o desejo de não toda a Itália, consolidando uma pedagogia
Educação, um transgressor e inventor de pedago- E nesse percurso ficou evidente que o êxito deixarmos morrer a voz de criança da escuta, das relações e das diferenças
gias, em parceria com os governos comunistas e fe- dessa empreitada se deu justamente pela confiança que permanece em nós e convida- que estava sendo construída no norte
ministas que predominaram no norte da Itália nos e o respeito à produção das culturas infantis, pela -nos a procurar experiências em italiano.
anos 1960. Era um“criancista”que iria revolucionar competência do trabalho docente, e pelos profis- que possamos fazer coletivamente Um pouco antes, por volta de
de vez o conceito de infância como “pré-pessoa”, sionais em formação estudando e pesquisando, o um mundo sempre mais belo. 1965, as escolas de Reggio Emilia
ou apenas como um “vir a ser adulto”. que se refletiu nas produções das crianças. tinham conquistado amigos fabu-
Em sua trajetória manteve um profícuo diálogo Esta visibilidade da produção das crianças para Bom amigo Malaguzzi, losos, entre eles, Gianni Rodari.
com a política em suas mais diversas facetas, bus- além do espaço institucional da escola da infância, Menino eterno, pede-me, antes Poeta, escritor de histórias infantis
cando a participação popular; enfrentando os desa- a disponibilidade das professoras de estarem em de eu retornar ao Brasil, que escreva traduzidas em muitos idiomas, ele
fios do trabalho coletivo, em especial incentivando constante formação, e a opção política de compar- algumas palavras dedicadas às me- Loris Malaguzzi esteve em um evento de formação
a importância da pesquisa, do estudo, da exigência tilhamento social foram diretrizes essenciais que ninas e aos meninos italianos. Não (1920-1994) estudou na região e depois dedicou a ela
sei se saberia dizer algo de novo a um pedagogia na e suas crianças seu mais famoso e
tal pedido. O que poderia dizer ainda Universidade de genial livro, Gramática da Fantasia,
Urbino e psicologia
a primeira escola pública em reggio emilia marcou o declínio do aos meninos e às meninas deste fi-
nal de século? Primeira coisa, aquilo no Centro Nacional
publicado em 1973.
Loris Malaguzzi tinha profunda
domínio da igreja católica sobre a educação pré-escolar na itália que posso dizer em função de minha
de Pesquisa de
Roma. Na década
admiração por Rodari, uma refe-
longa experiência neste mundo, é que rência fundamental para a peda-
de 1940, foi
rigorosa e constante na formação de professores e posteriormente desencadearam outras fantásticas devemos fazê-lo sempre mais bonito. professor em Reggio gogia fantástica que ele idealizou
professoras; e principalmente inovando na cons- iniciativas, como a criação da revista 0 a 6, atual É baseando-me em minha experiên- Emilia, centro- em Reggio Emilia. Estudioso exi-
ciência coletiva das cem linguagens das crianças Bambini, e do Gruppo Nazionale Nidi Infanzia, cia que torno a dizer, não deixemos norte da Itália, gente, voraz e muito curioso, Lo-
através de um projeto estético que revolucionou ambos em funcionamento e plena atividade, re- morrer a voz dos meninos e das me- desempenhando ris, em suas entrevistas e interven-
toda uma experiência histórica em educação. percutindo intensamente no cenário italiano e eu- ninas que estão crescendo. importante papel de ções, demonstra um refinamento
Um ano importante após a experiência de Villa ropeu da pedagogia da primeira infância. Paulo Freire, abril, 1990. educador no pós- intelectual, que abrange diversas
Cella foi 1963, com a criação da primeira escola Nessa perspectiva de construção coletiva de guerra. Nos anos áreas do conhecimento, centrado
municipal para as crianças, o estopim fundamental direitos, o grupo Nazionale Nidi e Infanzia, que Buon amico Malaguzzi, 60, fundou a primeira nas questões da educação e atento
escola pública de
para a rede de educação infantil construída poste- nasce em 1980 por iniciativa de Loris Malaguzzi, Bambino permanente mi do- para todas as possibilidades peda-
educação infantil
riormente. Isso marcou o início do declínio secu- constitui-se como uma associação que promove manda che prima di ripartire per il gógicas ligadas ao trabalho com as
daquela região, onde
lar da Igreja Católica na educação pré-escolar das encontros e discussões sobre a educação infantil, Brasile, io scriva alcune parole dedi- crianças pequenas.
também ocupou o
crianças pequenas na Itália. na Itália e fora dela, especialmente para a formação cate alle bambine e ai bambini ita- cargo de secretário Mas é Rodari que lhe oferece
Esta primeira escola municipal inaugurava um política e pedagógica de profissionais (educadoras, liani. Non saprei come dire di più ad de Educação. a oportunidade de explorar a fan-
processo histórico de participação coletiva e co- pesquisadores etc. da educação infantil). Com a uma domanda così. Che posso dire ai tasia, como fundamento criativo,

100 especial revista educação especial revista educação 101


Loris Malaguzzi

aceitando o desafio proposto


por ele na introdução da Gra- Imagens de
livros de Gianni
mática da Fantasia, empres- Rodari, poeta
tado do poeta alemão Novalis e escritor de
(1772-1801), que escreveu: “Se histórias infantis
por quem Loris
tivéssemos também uma Fan-
Malaguzzi
tasia, como a Lógica, teríamos tinha profunda
descoberto a arte de inventar”. admiração
Inventar e inovar, do ponto
de vista criativo, também um
novo e uma nova profissional Outro aspecto funda-
docente de criança pequena, mental de sua trajetória é
pois no centro desta pedago- que, desde o início da sua
gia fantástica está a pesquisa carreira, ele sempre bus-
e a formação constante das e cou uma relação estreita
dos profissionais da educação com a pedagogia “cientí-
infantil. Em muitos docu- fica”, sendo rigoroso tanto
mentos e publicações acerca metodológica quanto teo-
da pedagogia malaguzziana, ricamente com a educação
esses docentes destacam a da primeira infância. Por
forte e intensa presença hu- outro lado, ele percebe a
mana de Loris Malaguzzi, nas importância de encontrar
diversas relações afetivas e uma interlocução necessá-
políticas com diferentes atores ria entre a razão e a fanta-
sociais do complexo campo da sia, entre a ciência e a ima-
educação. ginação. Foi no dia a dia da
escola da infância que as
Posso entrar com a girafa? teorias foram construídas
sem separar o pensar do
A girafa tem o coração longe fazer e a experiência do sa-
dos pensamentos ber. Isso fica claro em uma
Se apaixonou ontem e ainda das grandes frases de Ma-
não sabe... laguzzi sobre as crianças:
Não sendo uma girafa, “a inteligência se adquire
Não tendo o coração longe dos usando-a”.

Reprodução
pensamentos, Usar a inteligência e a
Não estando apaixonado, imaginação. E inventar, isto
sei perfeitamente fascinava Loris Malaguzzi.
que força de amor envolve Presença afetiva e política é o que sentimos perspectiva de indissociabilidade entre a política Girafas apaixonadas, um lobo chamado Volpino,
as coisas, as palavras, os fatos, as obrigações ao ler o poema “Posso entrar com a girafa?”. Es- (são redes municipais de creches e pré-escolas), fugitivo de um museu, vestido de Napoleão, que ao
e as inteligências crito por Loris Malaguzzi, numa jornada pedagó- a pesquisa, formação e as pedagogias (compar- tentar roubar galinhas é aprisionado na luz da Lua,
que tomaram vocês nestes dias fabricando jornadas gica em San Miniato, na região Toscana da Itália tilhando experiências nestes encontros e promo- são personagens e situações criadas por ele para
de grande deleite e cultura e publicado após sua morte na revista Bambini, vendo reflexões, diálogos), em jornadas de deleite integrar uma pedagogia fantástica para a pequena
em torno de uma empreitada que honra San Miniato, o poema documenta de forma intensa e poética e cultura, com paixão. infância em uma cidade no norte da Itália.
a infância, as nossas creches e as cultura infantis. esse evento formativo voltado para educadoras.
Agora a girafa percebeu que está apaixonada Observamos, nele, o movimento entre a razão e a
Recolocando o coração perto dos pensamentos. emoção do professor, educador e gestor da educa-
E está com vocês. E está comigo. ção infantil, buscando integrar e potencializar um
suas teorias sobre a infância foram construídas no dia a dia da
coletivo em favor das culturas infantis, sempre na escola, sem separar o pensar do fazer e a experiência do saber
102 especial revista educação especial revista educação 103
Loris Malaguzzi

balho com as crianças, trazendo as experiências de confiança na inteligência das crianças e a cons-
Reggio Emilia e também de Modena, onde Mala- ciência sobre o pluralismo das famílias, crianças
guzzi atuou como consultor. e professoras, que se materializava no trabalho
Essa pedagogia fantástica, inventiva, que a conjunto que estava sendo realizado.
partir dos anos 1960 coloca as crianças peque- Outra importante contribuição de Loris Mala-
nas no centro dos debates políticos, recebeu in- guzzi à pedagogia da pequena infância foram as
fluências de diversos campos do saber: da filo- corajosas (e muito atuais, especialmente no con-
sofia, da psicologia, da arquitetura, da história, texto brasileiro) críticas aos currículos prontos e
da arte e da política. Em suas entrevistas, Loris preparatórios e às avaliações que não respeitam
Malaguzzi (1999) cita uma longa lista de impor- o tempo das crianças, baseando-se em falsas e
tantes pensadores que o influenciavam, entre eles perversas temporalidades; segundo ele, traições à
Jerome Bruner (1998), que pôde, após a morte de natureza humana.

sua pedagogia fantástica recebeu diversas influências e colocou as


crianças pequenas no centro dos debates políticos a partir de 1960
Loris, demonstrar sua admiração pela pedago- A materialidade fantástica do trabalho rea-
gia da infância em Reggio Emilia, cidade onde lizado a partir desses princípios viabilizou-se,
continua mantendo relações e amizade. No en- sobretudo pela inovadora concepção de que é
tanto, destaca que a Itália esteve durante vinte possível uma pedagogia da escuta e das relações.
anos sob o regime fascista, que, no início, tinha Baseada nela, a educação infantil pode ser um

Reprodução
como referência as irmãs Agazzi e Maria Mon- espaço agradável, de prazer e, principalmente,
tessori para a educação infantil, mas que depois, um direito para as crianças, para suas famílias e
segundo Malaguzzi, Montessori e suas progres- professoras/es.
sistas contribuições para a educação das crian-
ças pequenas foram descartadas do programa Publicações em português
educacional fascista. Em 1993, Loris Malaguzzi redigiu a “Carta
Após as primeiras referências, nos anos 1970 dos Três Direitos” (publicada integralmente no
outras fontes influenciaram a construção dessa artigo de Ana Lúcia Goulart de Faria no livro
pedagogia, sempre em processo. Malaguzzi, Pedagogia(s) da Infância: Dialogando com o Pas-
transgressor e inventivo, buscava evitar a para- sado: Construindo o Futuro, 2007), síntese que se
lisia dos teóricos políticos de esquerda que es- refere a direitos diversos, que se complementam:
tavam há mais de uma década debatendo sobre os das crianças, dos pais e das professoras. Ele en-
o relacionamento entre conteúdo e método na fatiza, nesse precioso documento, que é por meio
educação. Aqui cabe salientar que Loris Malaguzzi, da gestão social que se dá a participação ativa,
assim como Gianni Rodari que tanto o inspirou, cultural e política dos três atores constitutivos da
eram filiados ao Partido Comunista Italiano, mas, creche e da pré-escola.
segundo Alfredo Hoyuellos Planillo (2004), ambos Cabe salientar que embora Malaguzzi não te-
tinham visões autônomas. Ambos criticavam um nha muitas publicações de sua autoria, além de
Malaguzzi marxismo que não considerava a infância como Volpino (literatura infantil) e artigos na revista
Essas amizades e inspirações consti- era movido Esperienza per uma Nuova Scuola dell’ importante, cometendo uma violência ideológica, Bambini, tem-se acesso ao seu pensamento, às
tuíram decisivamente a pedagogia ma- por sua plena Infanzia (Experiência para uma nova uma vez que concentrava e iniciava seus estudos e suas contribuições e repercussões de seu trabalho
confiança na
laguzziana, a qual se expandiu por meio inteligência escola da infância, 1971) e La Gestione análises no homem trabalhador, desconsiderando através de vasta “documentação” em diversas pu-
de encontros nacionais para professo- das crianças Sociale nella Scuola dell’Infanzia (A ges- todo o resto. blicações sobre e para a educação infantil. Muitas
res e professoras, a partir dos anos 1970, tão social na pré-escola, 1971) foram os Homem de esquerda, mas intelectual livre, já estão disponíveis ao público brasileiro, traduzi-
iniciando uma profícua sistematização primeiros materiais que inauguravam a Malaguzzi não via sentido nesse debate da forma das em português, parte das quais sugerimos no
e publicação da experiência em Reggio Emilia. inovação metodológica da documentação do tra- e do conteúdo, pois o que o movia era a plena final deste artigo.

104 especial revista educação especial revista educação 105


Loris Malaguzzi


Ao contrário, as cem existem
(Loris Malaguzzi)
A criança
é feita de cem.
A criança tem cem mãos
cem pensamentos
cem modos de pensar
de jogar e de falar.
Cem, sempre cem
modos de escutar
de maravilhar e de amar.
Cem alegrias
para cantar e compreender.
Cem mundos
para descobrir.
Cem mundos
para inventar.
Cem mundos Um dos
aspectos mais
para sonhar.
geniais da
A criança tem pedagogia de
cem linguagens Malaguzzi e
(e depois cem, cem, cem) Reggio Emilia
é a ênfase na
mas roubaram-lhe noventa e nove. documentação.
A escola e a cultura Por meio dela
lhe separam a cabeça do corpo. foi possível
pesquisar
Dizem-lhe: tanto a

Ana Teixeira. Reprodução


de pensar sem as mãos produção
de fazer sem a cabeça infantil como
o trabalho das
de escutar e de não falar professoras
de compreender sem alegrias
de amar e de maravilhar-se
só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe: Arte e a documentação
de descobrir um mundo que já existe O projeto da pedagogia malaguzziana foi ino- a documentação do trabalho em reggio emilia permite pesquisar
e de cem roubaram-lhe noventa e nove.
Dizem-lhe:
vador e revolucionário, sobretudo pela importância a produção das culturas infantis e as práticas das professoras
estética da sua fundamentação e pela criação dos
que o jogo e o trabalho ateliês, com a inserção das atelieristas (profissio-
a realidade e a fantasia nais das Artes) para trabalharem em cooperação mentes, numa alegria intensa e libertadora, que dagogia das relações que extrapola as instituições
a ciência e a imaginação com as professoras das crianças, nas creches e pré- potencializasse a infinita imaginação criativa que de educação infantil.
o céu e a terra -escolas de Reggio Emilia. O objetivo era colocar as crianças, com sua curiosidade inesgotável, podem Em 1989 é criado, a partir de uma ideia de
a razão e o sonho “lentes poéticas” para ver o cotidiano e inventar produzir. Também foi idealizado para atender outras Loris Malaguzzi, o Centro de Documentação e
são coisas formas de expressão e comunicação com as crian- demandas do trabalho, como a comunicação com as Pesquisa Educativa, uma instituição que buscará
que não estão juntas. ças, conforme relatou Vea Vecchi, uma das primei- famílias, e aí reside um dos aspectos mais geniais da recolher, organizar e promover a documentação
Dizem-lhe enfim: ras atelieristas de Reggio Emilia no livro As Cem pedagogia fantástica de Malaguzzi e Reggio Emilia: a dos inúmeros projetos realizados nas creches e
que as cem não existem. Linguagens (1999). ênfase na documentação. Por meio dela foi possível escolas da infância de Reggio Emilia. Segundo
A criança diz: Inicialmente, os ateliês buscavam possibilitar pesquisar tanto a produção das culturas infantis Alfredo Planillo (2004) trata-se de um espaço,
Ao contrário, as cem existem. um espaço nas escolas, onde as crianças pudessem como o trabalho das professoras e assim dar visibi- um “arquivo vivo” para educadoras e educadores
estar ativas para “criar o caos”, com as mãos e as lidade às crianças construindo as bases de uma pe- reconstruírem percursos e processos de proje-

106 especial revista educação especial revista educação 107


Loris Malaguzzi

creches e pré-escolas. Trata-se de um belíssimo


material compartilhado em mostras itinerantes que
rodam o mundo e influenciam diversas experiên-
cias educativas em outros países, como nos Estados
Unidos, onde um grupo de pesquisadores mantém
um diálogo cooperativo com Reggio Emilia, cujo
relato em livro acaba de ser publicado no Brasil: O
Papel do Ateliê na Educação Infantil: A Inspiração de
Reggio Emilia (2012).

Práticas inovadoras
Essa publicação reflete de maneira expressiva o
pensamento de Loris Malaguzzi, que permanece e
ressoa em tempos e espaços múltiplos, especialmente
sobre a arte e a documentação, apresentando uma
experiência educativa inspirada em Reggio Emilia, a
partir da observação, da formação, do diálogo in-
tercultural, e posterior invenção no seu contexto
cultural, considerando a relação de um grupo de
pesquisadores/as e educadores/as estadunidenses
e italianos/as.
O livro relata, através de profissionais (pesqui-
sadores/as e educadores/as) protagonistas dessa
história, tanto nos Estados Unidos como na Itália,
como se construíram através dos ateliês em cre-
ches, escolas e outros centros educativos que tra-
balham com e para a pequena infância, inovadoras
práticas pedagógicas. Abordando diversos campos
do conhecimento, essas inovações descartam um
http://www.sxc.hu Reprodução

conteúdo a priori ou imobilizado em forma de dis-


ciplinas, tais como a Arte, Ciências, Matemática,
Física, entre outras, tendo como referência a docu-
mentação como instrumento e fim de pesquisa e
conhecimento sobre as crianças.
A arte não é
tos realizados, trocarem experiências, reduzida a um sua síntese na poesia de Loris Mala-
conteúdo a ser
desencadear novas pesquisas e in-
ensinado, é, ao
guzzi, mas que, segundo Carla Rinaldi a proposta educativa de malaguzzi contempla o diálogo entre duas
ventar novos projetos. Outro objetivo – primeira coordenadora pedagógica a
do Centro, cada vez mais intenso e
contrário, uma
metodologia de trabalhar com Loris Malaguzzi e atual professoras para cada turma e a inserção do profissional de artes
potencializado pela demanda, foi aco- trabalho, orgânico presidente do Centro Internacional
às práticas
lher as muitas delegações de todas as pedagógicas Loris Malaguzzi e da Fundazione Re- de atuação docente, muitas linguagens se tornam Ou seja, a arte não é reduzida a um conteúdo
partes do mundo que buscam Reg- que estão em ggio Children –, surge como uma te- disponíveis às crianças: desenho, pintura, escul- a ser ensinado, tampouco a documentação é um
gio Emilia e sua experiência educativa movimento oria na década de 1970. Carla Rinaldi tura, poesia – além de possibilitar o diálogo com registro acumulativo, demonstrativo de um tra-
para a primeira infância, oferecendo salienta o quanto foram fundamentais, diferentes disciplinas e estabelecer relações com balho realizado ou do desenvolvimento cognitivo
encontros, seminários e cursos e tam- na construção dessa teoria, duas ino- diversos mundos culturais: das profissionais do- adquirido, apreendido pelas crianças, mesmo que
bém promovendo mostras dos projetos realiza- vações: a presença de duas professoras para cada centes e das crianças e suas famílias. possa ser um instrumento que também apresente
dos com, sobre e pelas crianças. turma, que possibilitam diálogo, troca de sabe- A importância dos ateliês, da documentação e dados sobre estes aspectos. É, ao contrário e so-
Um aspecto fundamental dessa proposta edu- res e pontos de vista diversos; e a inserção do/da materialização do trabalho das crianças foi e con- bretudo, uma metodologia de trabalho, orgânico
cativa é a dimensão das cem linguagens, que tem atelierista, profissional de artes. Com este tripé tinua sendo uma arca de tesouro, para além das às práticas pedagógicas que estão em movimento,

108 especial revista educação especial revista educação 109


Loris Malaguzzi

práticas construídas a partir das experiências vivi- A sua nostalgia de futuro ao defender o direito se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no FUSARI, Andrea. “As Crianças e os Direitos de Cidadania. A Cidade como
Comunidade Educadora”. Educação e Sociedade, nº 78, p. 257-264, 2002.
das nos projetos com as crianças, suas famílias e das crianças pequenas a uma educação infantil qual vivemos todos os dias, que formamos estando GALARDINI. Anna Lia. “Entrevista: Formação Continuada e Reflexiva”.
Pátio - Educação Infantil, nº 31, 2012.
todos os profissionais das creches, escolas da in- de qualidade, com as suas famílias participando e juntos. Existem duas maneiras de não sofrer: a pri- GANDINI, Lella; EDWARDS, Carolyn. (orgs.). Bambini: A Abordagem
fância envolvidas. sendo respeitadas, com professoras e profissionais meira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar Italiana à Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002.
MANTOVANI, Susanna; PERANI, Rita. “Uma Profissão a ser Inventada: o
Não se trata, portanto, de uma pedagogia de re- da educação e das artes, em um espaço de alegria o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de Educador da 1ª infância”. Pro-posições, nº 28, p. 75-98, 1998.
sultados e sim de processos, baseada na indisso- libertadora, é revolucionária, pois não separa o deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige MANTOVANI, Susanna. (entrevista). Pátio – Educação Infantil, nº 1, 2000.

ciabilidade do pensar e fazer, possibilitando que corpo da mente, o pensar do fazer, contagiando atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber MUNARI, Bruno. Das Coisas Nascem as Coisas. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
as crianças inventivas e criativas, na relação com as escolas de Reggio Emilia e de outras cidades reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não MUSATTI, Tullia. “Trocas em uma Situação de Brincadeiras de Faz de
Conta”. In: STAMBAK, Mira; BARRIÈRE, Michèle; BONICA, Laura;
as professoras e professores que oferecem as con- do mundo. é inferno, e preservá-lo e abrir espaços”. MAISONNET, Renée; MUSATTI, Tullia; RAYNA, Sylvie; VERBA, Mina.
Os Bebês entre Eles: Descobrir, Brincar, Inventar Juntos. Campinas: Autores
dições, possam ser protagonistas ativas das suas Loris Malaguzzi alimentava esta nostalgia de Associados, 2011, p. 89-132.
histórias e participantes da construção da realidade futuro, com uma criatividade no presente, com um Referências bibliográficas RIZZOLI, Maria Cristina. “Leitura com Letras e sem Letras na Educação
Infantil do Norte da Itália”. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; MELLO,
social em cumplicidade com as e os docentes. compromisso histórico daquele que viveu os hor- BRUNER, Jerome. “Per onorare e celebrare l’anniversario della sua Suely Amaral (orgs.). Linguagens infantis - outras Formas de Leitura.
morte”. In: MANTOVANI, S. (Org.) Nostalgia del Futuro: Liberare Speranza Campinas: Autores Associados, 2005, p.5-22.
rores de um século repleto de tragédias, com um per uma Nova Cultura dell’Infanzia. Bergamo: Junior, 1998.
RUSSO, Danilo. “De como ser Professor sem Dar Aulas na Escola da
Nostalgia do futuro: por otimismo da vontade, parafraseando outro italiano CALVINO, Italo. Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
Infância”. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; MELLO, Suely Amaral (orgs.).
Territórios da Infância - Linguagens, Tempos e Relações para uma Pedagogia Para
uma nova cultura da infância genial que certamente também o inspirou, Anto- EDWARDS, Carolyn. “La Partecipazione Democratica di una Comunità
As Crianças Pequenas. Araraquara: Junqueira e Marin, 2007, p.57-84.
di Apprendimento: la Filosofia dell’Educazione come Relazione sul TONUCCI, Francesco. Com olhos de criança. Porto Alegre: ArtMed, 1997.
Em janeiro de 1994, Loris Malaguzzi sofreu um nio Gramsci: “contra o pessimismo da razão, o oti- Pensiero di Loris Malaguzzi”. In: MANTOVANI, S. (Org.) Nostalgia del TONUCCI, Francesco. Quando as Crianças Dizem Chega. Porto Alegre:
Futuro: Liberare Speranza per uma Nova Cultura dell’Infanzia. Bergamo:
ataque cardíaco, morrendo enquanto trabalhava. mismo da vontade”. Junior, 1998.
ArtMed, 2005.
TONUCCI, Francesco. “A Verdadeira Democracia Começa aos Três Anos”.
Ele tinha vários projetos e sempre muitos sonhos e Vontade de inventar outras paisagens e ima- FARIA, Ana. Lúcia. G. “Loris Malaguzzi e os Direitos das Crianças Pátio - Educação Infantil, nº 8, p.16-20, 2005.
Pequenas”. In: Oliveira-Formosinho, Júlia; Kishimoto, M. Tizuko e
utopias. Estava muito envolvido tanto com o Cen- gens da infância roubada como foi a da sua gera- Pinazza, A. Mônica (Orgs.) TONUCCI, Francesco. A Solidão da Criança. Campinas: Autores Associados, 2008.

tro de Documentação, que hoje leva o seu nome, ção, marcada pela Segunda Guerra Mundial, retra- Pedagogia(s) da Infância: Dialogando com o Passado: Construindo o Futuro. Bibliografia sobre a Educação Infantil na Reggio Emilia
Porto Alegre: Artmed, 2007.
BASSI, Lanfranco. “Entrevista: Reggio Emilia - As Crianças não Separam
quanto com a rede de cooperação internacional, tada por Rossellini, em Alemanha Ano Zero (1947). HOYUELLOS PLANILLO, Alfredo. Loris Malaguzzi: Biografia Pedagogica. as Experiências e o Saber”. Pátio - Educação Infantil, nº 12, p.16-19, 2007.
denominada Reggio Children. No aniversário de Nesse filme, como epílogo da guerra vemos o voo Bergamo: Junior, 2004. BASSI, Lanfranco e GIACOPINI, Bruna Elena. “Reggio Emilia, uma
MALAGUZZI, Loris. Volpino, Ultimo Ladro di Galline. Bergamo: Experiência Inspiradora”. Revista Criança MEC, nº 43, p. 5-8, 2007.
um ano de sua morte, foi realizado um grande con- suicida do pequeno Edmund, desolado, que opta Junior, 1995. DIREZIONE SCUOLE DELL’ INFANZIA, ASILI NIDI. “O Modelo de
gresso, onde diversos e importantes pesquisadores por esse fim como uma única saída. Mas na expe- ______. “Entrevista: O ateliê de Loris Malaguzzi”. In: GANDINI, L; HILL, Reggio Emilia: Estreita Integração entre Creche Pública e Família em
uma Cultura Compartilhada dos Serviços e do Trabalho”. In: BONDIOLI,
L; CADWELL, L.; SCHWALL, C. (orgs.) O Papel do Ateliê na Educação
e pesquisadoras, italianos e estrangeiros que o co- riência histórica de Reggio Emilia, o adulto Mala- Infantil: a Inspiração de Reggio Emilia. Porto Alegre: Penso, 2012. Anna.; MANTOVANI, Susanna. (orgs.). Manual de Educação Infantil de 0 a 3
anos. Porto Alegre: ArtMed, 1998, p.323-328.
nheceram, debateram sua importante contribui- guzzi reencontra a criança do passado, no presente ______. “Entrevista a Lella Gandini. História, Ideias e Filosofia Básica”.
In: EDWARDS, Carolyn.; GANDINI, Lella.; FORMAN, George. (Org.) As EDWARDS, Carolyn.; GANDINI, Lella.; FORMAN, George. (orgs.). As
Cem Linguagens da Criança - A Abordagem de Reggio Emilia na Educação da
ção para a pedagogia da pequena infância. Desse fantástico de uma infância respeitada e valorizada Cem Linguagens da Criança. Porto Alegre: Artmed, 1999.
Primeira Infância. Porto Alegre: Artmed, 1999.
MANTOVANI, Susanna. (org.) Nostalgia del Futuro: Liberare Speranza Per
importante evento organizado pela professora com as suas cem linguagens, não só descobrindo Uma Nova Cultura dell’Infanzia. Bergamo: Junior, 1998. GIACOPINI, Elena. “Entre o Encontro de Objetos e a Busca de Sujeitos”.
REMIDA (Centro de Reciclagem Criativa da Reggia Emilia)”. Criança, nº
Susanna Mantovani da Università degli Studi di um mundo que já existe, mas inventando outros RINALDI, Carla. “A escola inteira como ateliê” (Reflexões de Carla 44, MEC: Brasília, 2007.
Rinaldi org. por Lella Gandini) In: GANDINI, L; HILL, L; CADWELL, L.;
MELLO, Suely Amaral. “Concepção de Criança e Democracia na Escola da
Milano Bicocca foi posteriormente publicado o li- mundos possíveis e uma nova cultura da infância SCHWALL, C. (orgs.) O Papel do Ateliê na Educação Infantil: a Inspiração de
Infância: a Experiência de Reggio Emilia”. Cadernos da FFC – Unesp-Marília,
Reggio Emilia. Porto Alegre: Penso, 2012.
v. 9, nº 2, p.83-94, 2000.
vro Nostalgia del Futuro: Liberare Speranza per uma que resgata uma humanidade perdida. RODARI, Gianni. Grammatica della Fantasia: Introduzione all’Arte di
RABITTI, Giordana. À Procura da Dimensão Perdida: Uma Escola de Infância
Nova Cultura dell’Infanzia. Só tivemos, até hoje,“ensaios de humanidade”, Inventare Storie. Trieste: Einaudi Ragazzi, 2010.(Edição brasileira:
Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus Editorial, 1982.
de Reggio Emilia. Porto Alegre: Artmed, 1999.

Francesco Tonucci, escritor, artista e importante disse o geógrafo Milton Santos, já falecido, no do- TONUCCI, Francesco. “Loris: la Creatività Istituzionale”. In:
REGGIO EMILIA. As Cem Linguagens das Crianças: Uma Viagem
Extraordinária ao Mundo da Infância. Catálogo da exposição das creches,
MANTOVANI, S. (org.) Nostalgia del Futuro: Liberare Speranza Per Uma
defensor do direito das crianças, com suas belas e cumentário O Mundo Global Visto do Lado de Cá, de Nova Cultura dell’Infanzia. Bergamo: Junior, 1998.
pré-escolas e escolas da infância do município de Reggio Emilia-
Itália. São Paulo, Escola Eugenio Montale, 15 a 25/7/2002.
RINALDI, Carlina. “Reggio Emilia: a Imagem da Criança e o Ambiente
em que Ela Vive Como Princípio Fundamental”. In: EDWARDS, Carolyn.;
Referências filmográficas GANDINI, Lella. (orgs.) Bambini: a Abordagem Italiana à Educação Infantil.

trata-se de uma pedagogia de processos, que possibilita às crianças,


Porto Alegre: Artmed, 2002, p.75-80.
Alemanha Ano Zero (Dir. Roberto Rossellini, Itália, 1947. 78 min.)
Um encontro com Milton Santos: o mundo global visto do lado de cá. (Dir. Silvio
criativas e inventivas, serem as protagonistas de suas histórias Tendler, Brasil, 2002. 89 min.)
Bibliografia sobre Educação Infantil traduzida
Ana Lúcia Goulart de Faria é professora doutora na
Faculdade de Educação da Unicamp, coordenadora
BARTOLOMEIS, Francesco. A Nova Escola Infantil – as Crianças dos 3 aos 6. do GEPEDISC Culturas Infantis - Grupo de Estudos e
Lisboa: Ed. Livros Horizonte, 1982. Pesquisa em Educação e Diferenciação Sócio-Cultural,
instigantes charges assinadas como Frato, esteve Silvio Tendler (2002). Para ele, a história humana
BECCHI, Engli.; BONDIOLI, Anna. (orgs.). Avaliando a Pré-Escola. Uma membro do corpo docente da Università degli Studi
presente nesse congresso e destacou em sua inter- até aqui produziu muita barbárie. Porém, expe- Trajetória de Formação de Professoras. Campinas: Autores Associados, 2003. di Milano Bicocca, Itália. E-mail: cripeq@unicamp.br.
venção a criatividade institucional como o grande riências como esta de Loris Malaguzzi, de Reggio BECCHI, Engli. “Ser Menina Ontem e Hoje: Notas para uma Pré-história
do Feminino”. Pro-posições, nº 42, p.41-52, 2003.
Adriana Alves Silva é doutoranda do Gepedisc
legado de Loris Malaguzzi. Para Tonucci, a maior Emilia e desta pedagogia da maravilha, nos conta- BONDIOLI, Anna. (org.) O Projeto Pedagógico da Creche e a sua Avaliação. Culturas Infantis - Grupo de Pesquisa em Educação
Campinas: Autores Associados, 2004.
contribuição de Loris para a Pedagogia da Infância giam com sua nostalgia de futuro, remetendo-nos e Diferenciação Sociocultural, da Faculdade de
BONDIOLI, Anna. “A Criança, o Adulto e o Jogo”. In: SOUZA Gizele de. Educação da Unicamp, ex-professora de Educação
na Itália e no mundo é a luta cotidiana para con- – como epilogo deste nosso texto – aos “conselhos (org.). A Criança em Perspectiva – Olhares do Mundo sobre o Tempo Infância.
Infantil da Rede Municipal de Campinas. De
São Paulo: Cortez, 2007.
quistar e contagiar as instituições para, pelas e com pedagógicos”, cheios de razão e emoção, do via- CATARSI, Enzo. (entrevista) “Livros e Desenvolvimento Linguístico das
Janeiro a dezembro de 2012 realiza o estágio de
doutorado sanduiche CNPq/Capes na Università
as crianças, colocando a infância no centro, como jante Marco Polo em As Cidades Invisíveis, de Italo Crianças Pequenas”. Pátio - Educação Infantil, nº 8, p.21-24, 2005.
degli Studi Milano Bicocca, na Itália.
FARIA, Ana Lúcia Goulart de. (org.). Grandes Políticas para os Pequenos.
um direito e possibilidades para todos. Calvino: “O inferno dos vivos não é algo que será; Cadernos Cedes. Campinas: Papirus, nº 37, p.68-100, 1995. E-mail: silvadida07@gmail.com.

110 especial revista educação especial revista educação 111


JORGE LARROSA

N
o romance Grande Sertão:

Reprodução
Veredas, Guimarães Rosa es-
creveu: “Vivendo, se aprende;
mas o que se aprende, mais, é
só a fazer outras maiores per-
guntas”. Esta frase, do grande
escritor mineiro, pode ser-

Pedagogia
vir como uma introdução ao
pensamento do autor sobre o qual falaremos

profana
aqui, o espanhol Jorge Larrosa.
Jorge Larrosa Bondia é professor titular de Teoria
e História da Educação na Universidade de Bar-
celona. É doutor em Pedagogia e realizou estu-
dos de pós-doutorado no Instituto de Educação
da Universidade de Londres e no Centro Michel
Foucault da Sorbonne, em Paris. Foi professor
convidado em várias universidades europeias e
latino-americanas. Faz parte da Unidade de Estu-
dos Biográficos da Universidade de Barcelona, que
A criança é um presente inatual, intempestivo, que trata do resgate, preservação e estudo dos escritos
irrompe no mundo, nos questiona e carrega consigo o autobiográficos.
Seus textos encontraram, não apenas na Espa-
imprevisível. Ao colocar lado a lado a figura da criança e nha, mas também na América Latina e no Brasil,
da educação, nos deparamos com a “descontinuidade” grande recepção, por sua capacidade de instigar,
por Flávia Schilling provocar, abrir as fronteiras. Seu trabalho com a
literatura como lugar do pensamento, da experiência
na prática pedagógica, suas leituras sobre o dispo-
sitivo pedagógico, sobre a diferença, mostram um
autor inquieto, que busca, como ele próprio diz,
contradizer-se. Ou melhor, dizer-se de outras ma-
neiras, a partir de outras perguntas que emergem,
pois vivendo se aprende e o que se aprende é fazer
maiores perguntas.
Neste pequeno texto introdutório, apresentaremos
sua proposta de um método, o ensaio, como um lugar
possível para pensar o pre-
sente. A seguir, continuando
seu caminho, traremos uma
“Não temos como apresentação dos dispositi-
herança mais vos pedagógicos, das linhas
do que vento e
de força que se reiteram nas
fumaça.” Tornado,
filme do artista práticas educacionais. Con-
belga Francis Alÿs cluiremos com algumas re-
que se insere em flexões sobre a literatura e o
tempestades de
areia e tornados, pensamento, a liberdade e
registrando-os o riso. Este texto terminará
e investindo com um convite à leitura dos
numa tarefa
aparentemente trabalhos e ensaios de Jorge
inútil e perigosa Larrosa e da literatura.

112 especial revista educação especial revista educação 113


JORGE LARROSA

Gustavo Morita. Reprodução

o autor propõe o ensaio como um lugar onde a subjetividade ensaia a


si mesma, experimenta a si mesma em relação à própria exterioridade
mental de uma escrita que ainda pretende ser tentar pensar em movimento. Talvez construir fic-
uma escrita pensante, pensativa, que ainda se ções de futuro, para estranhar o que temos hoje.
produz como uma escrita que dá o que pensar; Ver as ficções do passado, seus frágeis apoios, sua
e o modo experimental, por último, da vida, aleatoriedade, como se fossem vistas pela primeira
de uma forma de vida que não renuncia a uma vez. Larrosa, em seu texto, conclui que pensar o
constante reflexão sobre si mesma, a uma per- presente é o mais difícil.
manente metamorfose”.
É um ensaio que supõe uma incessante pro- A segunda operação: ensaiar em primeira pessoa
blematização e reproblematização de si e do lu- Qual é o “eu” do ensaio? Será o “eu” que nos
gar que ocupamos. Veremos com mais vagar classifica (na fila, na série), aquele que espelha a
suas características. coação da identidade no mundo moderno? Aquele
que emerge como resposta das burocracias do ID
A primeira operação: quando nos inquirem “quem é você?” A
ensaiar no presente proposta é um ensaio em que o“eu”apa-
Para Michel Montaigne, citado reça não como tema, mas como pers-
por Larrosa no mesmo ensaio, pectiva, olhar, ponto de vista. De
“Não temos como herança mais do que lugar você fala? Haverá uma
que vento e fumaça” em relação a “certa” relação com a primeira
este tempo que nos indaga. A ques- pessoa. Uma “certa” relação com
tão do ensaio é o que nos acontece o nós. A proposta é colocar-se em
agora, quem somos agora, o que jogo a si mesmo nesse questiona-
podemos pensar e o que podemos mento. Novamente temos, aqui,
dizer e o que podemos experimen- JORGE LARROSA em sua proposta, ressonâncias da
tar agora, neste exato momento da é professor titular tentativa de Michel Foucault de
história, prossegue Larrosa. de Teoria e História emancipar, da figura do autor, o
Como, porém, criar uma dis- da Educação na ensaio; desmistificar a relação su-
“Além de tância entre nós e nós mesmos: Universidade de jeito/verdade: verdade científica,
me ver, devo Barcelona. É doutor
O método: saber me condiz com a perspectiva foucaultiana converter o presente não em um jogos de verdadeiro-falso. Propõe,
em Pedagogia e
o ensaio, o ensaiar-se expressar, da centralidade da luta, de batalhas tema, mas em um problema?
realizou estudos
nesse lugar sempre precário de
Os textos de Jorge Larrosa implicam colocar sendo travadas em torno dos regimes Como afastar-se do ruído, sa- uma narrativa a partir de um lugar
para fora ‘o de pós-doutorado
o exercício de um método: o ensaio. Para que sou’” de verdade e poder. Condiz, também, bendo dele, conforme observa o no Instituto de do “eu”, buscas por des-sujeição,
descrever esse lugar possível de experi- com sua visão da escrita como um exer- filósofo italiano Giorgio Agamben Educação da questionando as regras do jogo
ência, utilizaremos seu texto: “A Opera- cício radical. em O Que É o Contemporâneo e Universidade de dentro do próprio jogo.
ção Ensaio: Sobre o Ensaiar-se no Pensa- Há, nesse exercício do ensaio, uma Outros Ensaios. Londres e no Centro A proposta é: o ensaio como
mento, na Escrita e na Vida”, publicado na revista prática de liberdade, de expansão das possibili- Alguns gestos são propostos: Michel Foucault um lugar no qual a subjetividade
Educação & Realidade, de Porto Alegre, em 2004. dades. O lugar de proveniência desse gesto é o da vinculação e do distanciamento; da Sorbonne, em ensaia a si mesma, experimenta a
O ensaio não é um exercício intelectual ou um arquivo, é a posição que o sujeito ocupa nesse da imanência e do estranhamento. Paris. Faz parte si mesma em relação à sua pró-
jogo retórico. Supõe que, quando ensaiamos, arquivo. Para Larrosa, seria possível “dizer, tal- Que as coisas do presente apare- da Unidade de pria exterioridade, àquilo que lhe
çam como vistas pela primeira vez. Estudos Biográficos é estranho. Mais do que posição
nos modificamos. vez, que o ensaio é uma determinada operação
da Universidade
A proposta é ensaiar no presente, em primeira no pensamento, na escrita e na vida, que se realiza Assim, seria possível questionar a do sujeito ou o-posição, pensar a
de Barcelona,
pessoa, ensaiar a distância, escrevendo. de diferentes modos em diferentes épocas, em continuidade, o “sempre foi assim” exposição do sujeito. Essa liberdade
que resgata e
Esse movimento do ensaio é uma “opera- diferentes contextos e por diferentes pessoas. e “assim sempre será”. Estar den- estuda escritos de ensaiar-se no ensaio e pensar
ção”: termo guerreiro (uma operação de guerra), Poder-se-ia dizer, talvez, que o ensaio é o modo tro, olhar fixo para o que perturba, autobiográficos. em primeira pessoa é o mais difícil,
termo médico (uma operação cirúrgica), o que experimental do pensamento, o modo experi- tentar um recuo, um deslocamento, segundo Larrosa.

114 especial revista educação especial revista educação 115


JORGE LARROSA

A terceira operação: ensaiar a distância rede heterogênea tem por objetivo gerir, controlar
Como sustentar o olhar fixo no presente, nesse os gestos e pensamentos dos homens, produz, ao
jogo complexo do distanciamento e da proximi- mesmo tempo, os sujeitos que serão governados.
dade? Fala-se na distância crítica, na distância “O dispositivo é, antes de tudo, uma máquina que
reflexiva, na distância mediadora. Propõe-se uma produz subjetivações e somente enquanto tal é
renúncia à segurança da teoria, à segurança da também uma máquina de governo.”
prática. À segurança do método. À segurança dos A relação entre governo e produção de sujei-
fatos. Propõe-se uma atitude crítica como crítica tos, na educação, é trabalhada por Jorge Larrosa
imanente, reflexiva (que se dobra sobre si), sem no texto “Tecnologias do Eu e Educação” (2002).
transcendentes. Ainda no mesmo ensaio, lemos : Nele, ele descreve os dispositivos pedagógicos
“Pensar a crítica, ou a meditação, ou o pensamento como constitutivos da subjetividade, descreve os
como exercício de liberdade, mais afirmativo do mecanismos através dos quais o ser humano se
que negativo, mais criativo do que militante, mais observa, se decifra, se interpreta, se julga, se narra,
de exposição do que oposição. Por isso para nós, se domina.
velhos leitores de Foucault, a crítica já é, talvez para A estrutura básica da reflexão é o ver-se: há um
sempre, um problema; e se tornou, para nós, o mais mandato para conhecer-se a si mesmo, observar-
difícil.” -se, decifrar-se (e narrar essa verdade sobre si para
Ensaiar a crítica: novamente, o mais difícil, se- os demais). Mais do “quem é você”, o mandato se
gundo Larrosa. traduz em “o que é você?”. A partir do autoconhe-

larrosa descreve dispositivos pedagógicos como constitutivos da

http://www.sxc.hu Reprodução
subjetividade e explica os mecanismos do homem para se interpretar
A quarta operação: ensaiar escrevendo cimento e da auto-observação constante, de um
Pois a mão insiste em percorrer os caminhos balanço sobre “o que somos”, é possível que se co-
aprendidos, ela vai, automaticamente. A literatura mece o trabalho pedagógico de mudança, adminis-
ajuda a encontrar o “entre”, aponta possibilidades. tração de conduta, autoadministração. Larrosa nos diz
O que usamos, qual é o arquivo, como sigo escre- A segunda grande estrutura é dada pela lingua- supõe um código, uma norma já conhe- que “a criança O desafio que está lançado é o do
vendo? É possível imaginar vizinhanças inéditas, gem, pelo expressar-se: além de me ver, devo saber cida a que é preciso adequar-se. Para é um presente trabalho da crítica, da liberdade, do pen-
inatual,
encontros inesperados: esses são bons caminhos. me expressar, colocar para fora “o que sou”. Nova- Larrosa, nos dispositivos pedagógicos intempestivo, samento, do ensaio. Ensaiar-se, na vida e
Porém, e novamente, a pergunta central é: qual é o mente, a competência expressiva será administrada de construção e mediação da experiência uma figura do no pensamento.
lugar que posso ocupar nessa ordem do discurso? e modificada, se for o caso. de si, essa dimensão é a dominante. É a acontecimento.
Irrompe no
A escrita é, para Larrosa, mais uma vez, o Baseado na estrutura da memória está o narrar- dimensão do poder, que traz à luz, fala e mundo e nos Dar a palavra
mais difícil. -se. Partindo dos modos como me vejo, consigo ou obriga a falar, julga. O objetivo é domi- questiona, Em Habitantes de Babel: Políticas e
não expressar-me, constituo narrativas sobre mim, nar-se, adequar-se, adaptar-se, mudar. carrega consigo Poéticas da Diferença, Larrosa e Skliar
o imprevisível”
Conhecer para mudar: enquanto identidade. Aqui se trata de construir Porém, é só isso o que acontece na nos chamam a atenção para a atualidade
os dispositivos pedagógicos uma unidade em torno do “eu”, numa sequência educação? Não há nada além desses do mito de Babel, com sua torre, com sua
Giorgio Agamben, no livro O Que É o Contem- temporal linear, com um sentido. Construo minha dispositivos que aparentemente nos for- história da destruição de uma construção
porâneo e Outros Ensaios (2009), apresenta um ca- autobiografia a partir de uma narrativa em torno da matam inexoravelmente? Olhar para os que ameaçava o poder de Deus, que nos
pítulo sobre o “dispositivo”. O que é um disposi- minha identidade. As práticas pedagógicas traba- dispositivos, como se arranjam e rearranjam nas jogou na confusão e que conforma o nosso pre-
tivo? Dirá que o dispositivo é composto por três lharão com esses materiais na produção das “his- situações pedagógicas que nos cercam é o primeiro sente e nossa condição. Pois se tratava, em Babel,
características: é uma rede composta por elemen- tórias de vida”, nas autoavaliações, novamente em passo para que se possa pensar em outras possibili- de constituir uma unidade de todos, de uma tota-
tos heterogêneos, linguísticos e não linguísticos um movimento de administração e normalização. dades, novas formas de subjetividade. A discussão lidade que impedisse a confusão da língua. Todos
que incluem discursos, leis, edifícios, regulamen- O quarto movimento é o da moral, que implica sobre o estatuto da experiência – na educação – falariam a mesma língua e, assim, se entenderiam.
tos; tem sempre uma função estratégica e se ins- o julgar-se: a partir do imperativo de ver-se, ex- alcança aqui sua maior dimensão. Pois se trata de Essa perda deve ser lamentada?
creve em relações de poder; resulta do cruzamento pressar-se, narrar-se, há a necessidade de julgar-se ver-se de outro modo, dizer-se de outra maneira, A nostalgia da totalidade e do perfeito con-
entre relações de poder e relações de saber. Se essa e corrigir aquilo que não era “certo”. O julgamento julgar-se diferentemente, viver-se de outro modo. senso, do entendimento permeiam, até hoje, nos-

116 especial revista educação especial revista educação 117


JORGE LARROSA

sas buscas. Como lidar com a Unidade e a Diversi-


dade? As questões da igualdade e da diferença, da
identidade e do outro, da unidade e da pluralidade
são centrais para nós.
Os autores dirão que Babel é um sintoma, um
sintoma disperso e confuso de um mundo dis-
perso e confuso e que o livro é um convite para
nos pensarmos babelicamente, como habitantes
de Babel. Nesse sintoma, surgem as políticas de
identificação e governo das diferenças. Ressurgem,
fortemente, as comunidades, os grupos homogê-
neos, uma determinada visão de uma sociedade
tolerante, uma vez que cada diferença está devi-
damente classificada e ordenada. Nesse livro, nos
propõem pensar babelicamente, opor-se a esse
governo das identidades, pensar em linguagens e
pluralidades intraduzíveis. Se isso nos coloca numa

Ana Teixeira. Reprodução


posição de exilados (de uma língua única, de uma
pátria) nos permite, como nunca, uma posição de
liberdade. Permite, também, escutar mais atenta-
mente, uma enorme quantidade de falas que antes
eram desconhecidas.
Experiências
tempo diferente. É aí que encontramos o são possíveis Nesse ler em público, sempre a partir
sentido de “dar a palavra”: é dar a possi- a partir do
para larrosa, a visita à literatura de formação permite perceber encontro com
bilidade de dizer outra coisa daquilo que textos literários
do olhar fixo no presente, há o surpreen-
dente, aquilo que me desloca do óbvio
como nos tornamos, o que somos e como poderíamos ser diferentes já é dito. É assim que se possibilita que a ou do que considero fixo e claro. O riso se
criança tome a palavra. É o que faz a edu- faz presente, assim como se fazem pre-
Em “Dar a Palavra. Notas para uma Dialógica da criança e a educação com o porvir, pois esse cação, introduzir os novos na linguagem, sentes a simpatia, o horror, o desgosto.
da Transmissão”, artigo desse mesmo livro, Larrosa não se pode antecipar, não se pode prescrever. A dar a palavra, fazer falar para que cada um possa Experiências são possíveis a partir do encontro
nos conta que hesitou em colocar no título não uma grande categoria que faz essa mediação é a do“tal- tomar a palavra, pronunciar sua própria palavra. com textos literários. Ver-se mulher como Emma
“dialógica da transmissão”, mas uma “diabólica da vez”: algo que pode ser, aberto ao acontecimento, Bovary, de Gustave Flaubert, em sua busca pelo pra-
transmissão”, marcando assim, o que há de não à possibilidade. A pergunta central é“quem sabe”? A literatura como lugar do pensamento zer, pela beleza, pelo brilho. Descobrir, na “Loteria
angelical na transmissão educativa. Usar o termo Pergunta com multiplicidade de sentidos, ligada ao Uma possibilidade da crítica e da liberdade é a da Babilônia”, de Jorge Luis Borges, o melhor retrato
“diabólica da transmissão” lhe permitiria uma rup- tempo, ao porvir e ao desejo inquieto e constante retomada da literatura como lugar do pensamento, do tempo presente, com seu cassino global, a vida
tura, um lapso, um aparecimento do outro e de de uma busca de saber. que possa permitir esse exercício de proximidade determinada pelo acaso do sorteio dirigido, quem
sua diferença. Sua primeira nota, no artigo, será Descreve, em sua quinta nota, a relação entre e distanciamento, de ex-posição do sujeito, de sabe, pela “Companhia”. Perceber que o autor, o es-
sobre a infância e o acontecimento, não vista como o porvir – o talvez – e a fecundidade. Dirá que a experiência. critor, nos prepara para a compreensão do hoje, com
o “novo”, o futuro, com o progresso. Ele nos dirá “educação tem a ver com o talvez de uma vida Larrosa marca a importância da revisitação da seus núcleos de poder descentrados. Ele nos ensina
que a criança é um presente inatual, intempestivo, que nunca poderemos possuir, com o talvez de um literatura de formação, dos romances de formação. que, para ver, é necessária uma certa distância, estar
uma figura do acontecimento. Irrompe no mundo tempo no qual nunca poderemos permanecer, com Essa visita nos permitiria perceber como nos torna- fora do país e de seus prezados costumes, exercitar
e nos questiona, carrega consigo o imprevisível. Ao o talvez de uma palavra que não compreendere- mos o que somos e como poderíamos ser de outras o olhar do estrangeiro. Qual é a reação das alunas,
colocar lado a lado a figura da criança e da educa- mos, com o talvez de um pensamento que nunca formas. São presentes em seus textos Peter Handke, dos alunos? Um certo mal-estar, uma perplexidade
ção, sugere a palavra “descontinuidade”: sugere poderemos pensar, como talvez de um homem que Jean-Jacques Rousseau, Samuel Beckett, Jorge Luis frente à dança das palavras, frente às metáforas. Um
um pensamento sobre a educação como liberta- não será um de nós”. Borges, Júlio Cortázar e tantos outros. Ele nos diz, estranhamento fantástico que se torna, logo, uma
dora da historicidade humana, que permita pensar Esse é um convite ao desprendimento e nesse em Pedagogia Profana, sobre a lição ou sobre o en- compreensão intensa e modificada do nosso mundo.
o acontecimento como liberdade. Nessa complexa gesto o“dar”da educação tem a ver com a fecundi- sinar e aprender na amizade e na liberdade, que há Posso continuar contando um trabalho que faço
relação, mostra as diferenças entre usar o termo dade. Pois se dá à luz um ser com um destino di- ocasiões em que a aventura da palavra se dá em um com os meus alunos com trechos do livro de Lewis
“futuro” e “porvir”: opta por trabalhar o encontro ferente do nosso, uma vida diferente da nossa, um ato de ler em público. Carroll As Aventuras de Alice através do Espelho e o

118 especial revista educação especial revista educação 119


JORGE LARROSA

Há lições de liberdade nos textos, que implicam sibilidades de experiência. Leia muito, leia tudo!
tomar novamente a palavra. Para tomar a palavra Leia, com atenção, Jorge Larrosa, com suas danças,
– de novo – há que deixar-se perder nos textos, piruetas e mascaradas.
inquietar-se, deixar-se tomar por eles. Essa palavra
que se toma pode ser surpreendente, é imprevista Referências bibliográficas
e imprevisível. Ler e escrever, o centro da questão. AGAMBEN, Giorgio. O Que É o Contemporâneo e Outros Ensaios. Chapecó,
SC: Argos, 2009.
Essa é uma pedagogia “profana”. BORGES, Jorge Luis. “A Biblioteca de Babel”. In: _______. Ficções. Lisboa:
Edições Livros do Brasil, s/d.
Por que “profana”? Agamben, em seu livro O
CARROLL, Lewis. Alice através do Espelho e o Que Ela Encontrou lá. Rio de
Que É o Contemporâneo e Outros Ensaios, nos en- Janeiro: Alfaguara, 2012.

sina que o termo provém da esfera do direito e da DUSSEL, I.; CARUSO, M. A Invenção da Sala de Aula. Uma Genealogia das
Formas de Ensinar. São Paulo: Moderna, 2003.
religião. Assim, “consagrar” designava a saída das LARROSA, Jorge. “Tecnologias do Eu e Educação”. In: SILVA, Tomás
Tadeu da. O Sujeito da Educação.Estudos Foucaultianos. Petrópolis: Vozes,
coisas da esfera do humano. Portanto, “profanar” 2002.

significa restituir as coisas ao livre uso dos homens, ______. Pedagogia Profana. Danças, Piruetas e Mascaradas. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
deixar que as coisas retornem à esfera do humano. ______. “Saber y Educación”. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 1,
A operação por meio da qual se separa aquilo que p. 33-55, 1997.
Reprodução

______. “Notas sobre a Experiência e o Saber da Experiência”. Revista


era da esfera do humano e se dedica aos deuses é o Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 200 (Disponível em <http://www.
anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_
sacrifício: esse é o dispositivo usado. A profanação BONDIA.pdf>. Acesso em 03/10/2012).
seria o contradispositivo que restitui à esfera do ______. “A Operação Ensaio: sobre o Ensaiar-se no Pensamento, na Escrita
Talvez o riso, humano aquilo que o sacrifício tinha separado.
e na Vida”. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 29, n.1, jan/jun. 2004.
Que Ela Encontrou lá. Uso esse texto para com sua crementa, que institui uma mudança. A ______. “Dar a Palavra. Notas para uma Dialógica da Transmissão”. In:
força, possa Pedagogia profana! É aquela que restitui as coisas LARROSA, J.; SKLIAR, C. (orgs.) Habitantes de Babel. Belo Horizonte:
discutir com eles alguns conceitos de au- autoridade é aquele que autoriza, deixa Autêntica, 2001.
ser pensado à esfera do humano, que liberta seu uso novamente
toridade, poder. Gosto muito do encontro falar, autoriza aquele sentido como vá- ______; SKLIAR, C. Habitantes de Babel. Políticas e Poéticas da diferença. Belo
e devolvido à entre os humanos. Supõe um gesto de liberdade, Horizonte: Autêntica, 2001.
da Alice com o Humpty Dumpty. Ele é o esfera das salas lido e legítimo, segundo eles. ______; ______. “Babilônios Somos. A Modo de Apresentação”. In _______
de aula. Larrosa um gesto de experimentação, de abertura. Quem
guardião das palavras. O dono do sentido Com os meus alunos, brinco ainda (orgs.) Habitantes de Babel. Políticas e Poéticas da diferença. Belo Horizonte,
Autêntica, 2001.
faz um elogio sabe? Claro que a literatura, o mergulho na leitura e
das palavras. Ele nos diz que a palavra “gló- mais com a palavra: tento, como Humpty LARROSA, J. “Experiência e Alteridade em Educação”. Reflexão e
do riso porque a escrita é o caminho. Mas há outros. Talvez o riso, Ação, Santa Cruz do Sul, v.19, n. 2, p. 4-27, jul./dez. 2011 (Disponível
ria” significa “argumento arrasador”, o que na pedagogia Dumpty, desvesti-la, deixá-la o mais nua em <http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/
se ri pouco
com sua força, possa ser pensado e devolvido à es- view/2444/1898>. Acesso em 03/10/2012.
é questionado por Alice.Vejamos o diálogo: possível. Ser autor: de uma ideia, de uma
fera das salas de aula. Larrosa faz um elogio do riso ______. “Algunas Notas sobre la Experiencia y sus Lenguajes”. Reflexão e
música, de uma história; ser autor de um Ação, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 4-27, jul./dez. 2011. (Conferencia
porque na pedagogia se ri pouco. Ele imagina que, dictada en el Ministerio de Educación, Ciencia y tecnología de
Quando uso uma palavra – disse Humpty determinado modo de fazer algo. Ser au- Argentina, 2003 [mimeo]).
possivelmente, o riso esteja proibido na pedagogia,
Dumpty em tom escarninho – ela significa tor de nossa própria história; ser autor. E ______. Entre las Lenguas. Lenguaje y Educación Después de Babel. Barcelona:
porque nesta se moraliza incessantemente e, tam- Laertes, 2003.
exatamente aquilo que eu quero que signifique... nem ter idade. Autor + idade = autoridade. Para poder ser ______. La Experiencia de la Lectura. Estudios sobre Literatura y Formación. 3ª
bém, porque o discurso pedagógico é percorrido por
mais nem menos. autor é preciso ter certa idade. Estar no tempo, além ed. ampliada. México: Fondo de Cultura Económica, 2004.
um “incurável otimismo”. A aula? Teria um caráter
A questão – ponderou Alice – é saber se o senhor pode de estar em determinado lugar. Se saber vivendo. Ter ______. “Notas sobre a Narrativa e a Identidade”. In: Abrahão, Maria
“sagrado”, pois a vida é grave e séria. Comentará Helena Menna Barreto. A Aventura (Auto) Biográfica: Teoria & Empiria. Porto
fazer as palavras dizerem coisas diferentes. idade, entre outras coisas, para saber o que outros Alegre: EDIPUCRS, 2004.
dos momentos em que a sala de aula se parece com
A questão – replicou Humpty Dumpty – é saber quem é autores criaram antes de nós. Supõe uma determi-
o tribunal, com as igrejas, com os museus. Propõe
que manda. É só isso. nada relação com os saberes anteriores. É, mais do Entrevista
que apenas uma escola completamente secularizada
qualquer outra coisa, uma possibilidade aberta. Jorge Larrosa. Buenos Aires, 2007, 28 min. Disponível em <http://www.
e não moralista permitirá o riso acontecer. O riso youtube.com/watch?feature=fvwrel&v=0ewaQ6_kfds&NR=1>. Acesso em
Este é, talvez, um problema principal que temos: Assim, abre-se uma porta para entrar com ou- 03/10/2012.
poderia ser visto como tendo duas funções: uma
quem é que manda? Como se manda? Quem nos tros autores, com outros textos. Porém, o encon-
seria a de isolar, distanciar-se ou relativizar as más- Palestra
dá o mando? Como mantenho o mando? Como tro com Lewis Carroll, Alice e Humpty Dumpty é
caras retóricas que configuram o uso da linguagem.
conquisto o mando? inesquecível. Fórum Indigestio, 2010. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?feat
ure=endscreen&NR=1&v=i-_QwqsrQEQ>. Acesso em 03/10/2012.
A outra função seria afrouxar os laços que amarram
No livro Invenção da Sala de Aula, Inês Dussel Em seu livro Pedagogia Profana: Danças, Pirue-
uma subjetividade dotada de uma identidade muito
e Marcelo Caruso nos dizem que a palavra auto- tas e Mascaradas (2006), Larrosa nos convida a nos
compacta: aqui o riso aparece como autoironia,
ridade vem do latim auctor, aquele que causa ou enfiarmos na leitura, “en-fiar-se” no texto, para, a Flávia Schilling é doutora em Sociologia pela Faculdade
mostrando uma distância entre o sujeito e si mesmo. de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
faz crescer, aquele que é fundador, aquele que in- partir daí, tecer novos fios, produzir novas tramas.
Quem sabe profanar, devolver as coisas à es- de São Paulo e livre-docente pela Faculdade de Educação.
É professora associada da Faculdade de Educação da
fera do humano, passe pelo riso, aquele que des- Universidade de São Paulo. Escreveu, entre outras obras,
trói as certezas? Educação e Direitos Humanos: Outras Palavras, Outras Práticas
há lições de liberdade nos textos, que implicam tomar novamente Resta o convite: mergulhe na literatura, não (Cortez, 2011) e “Educação em Direitos Humanos: Reflexões
sobre o Poder, a Violência e a Autoridade na Escola”
a palavra. para tomar a palavra, há que deixar-se tomar por eles tema o encontro com outros mundos e outras pos- (Universitas Psychologica, 2008). E-mail: oak1@uol.com.br

120 especial revista educação especial revista educação 121


Tullia Musatti

Uma infância
melhor
A educação infantil deve oferecer um ambiente
que possibilite a vivência de experiências
significativas. Para tanto é preciso saber como
as crianças aprendem, para que os adultos
http://www.sxc.hu Reprodução

intervenham no ambiente, facilitando sua


interação e o compartilhamento de significados
por Tatiana Noronha de Souza e Maria Clotilde Rossetti Ferreira

F
Tullia Musatti
mostra-nos que
ilha de um dirigente de uma em- se interessar por pesquisas que investigavam pro- Milão e na de Florença. Além das publi- nosso olhar
Engajada no desenvolvimento de
presa, e de uma professora, Tullia cessos cognitivos nas crianças em idade pré-esco- cações de pesquisa, realiza consultorias deve estar diferentes instâncias que envolvem
Musatti passou sua infância em lar. Atualmente é diretora de pesquisa, responsável em sistemas de creches e pré-escolas de voltado para o a qualidade de vida da infância, Tullia
Roma. Viveu por oito anos na cidade pelo Departamento de Pesquisa de Ciências Cog- várias cidades italianas. desenvolvimento mostra-se comprometida com o de-
da criança
de Milão, e retornou a Roma aos 18 nitivas e Tecnologias. Atua politicamente em diversos es- completa, senvolvimento de várias dimensões
anos, para estudar filosofia na Uni- Tullia construiu sua carreira na articulação te- paços, em defesa da educação infantil. considerando do atendimento infantil, interações,
versidade La Sapienza, em 1969. oria e prática (ensino, pesquisa e extensão). Além Já foi presidente da associação Grupo sua relação organização dos espaços, avaliação de
com o contexto
Em 1971 passou a dar aulas de de atuar como pesquisadora no CNR, orienta teses Nacional de Creches, que, entre os seus sociocultural ao instituições, sistemas educacionais e
filosofia, história, pedagogia e psicologia em uma de doutorado em Psicologia da Interação, Comuni- participantes, inclui educadores e pro- qual pertence políticas para a infância. Mostra-nos
escola secundária e, no mesmo ano, iniciou o tra- cação e Socialização, na Universidade La Sapienza fessores, coordenadores pedagógicos, que a criança deve ser vista de maneira
balho como pesquisadora em tempo integral junto em Roma, e dá aulas nos cursos de mestrado vol- pesquisadores, etc. Essa associação pro- contextualizada, e que nosso olhar
ao Instituto de Psicologia do Conselho Nacional de tados para coordenadores pedagógicos de insti- move o estudo e investigação sobre a qualidade de deve estar voltado para o desenvolvimento da
Pesquisa (CNR), em Roma. Nesse centro, passou a tuições de educação infantil, na Universidade de vida das crianças nas instituições educativas. criança completa, considerando sua relação

122 especial revista educação especial revista educação 123


Tullia Musatti

com o contexto sociocultural ao qual pertence. a ideia da necessidade de uma socialização pri- profundidade, mas os processos aí envolvidos di- dade, por conhecer as características das crianças
Em 1976, foi professora visitante junto ao Cen- mária junto à família, para depois frequentar ferem daqueles dos adultos. O conhecimento e e seus interesses.
tro de Pesquisa de Educação Especializada e de espaços de educação coletiva. Além disso, que reconhecimento desses processos poderiam aju- Os resultados das investigações também mos-
Adaptação Escolar em Paris-Cresas, instituição a qualidade dessas interações depende, espe- dar a melhorar a qualidade da relação dos adultos tram que as crianças pequenas são capazes de se
profundamente comprometida politicamente com cialmente, da organização do ambiente (físico com as crianças, assim como a promoção de seu concentrar nas atividades por longos períodos, ao
o desenvolvimento da educação infantil daquele e relacional) oferecido a elas. Dessa forma, ela desenvolvimento. contrário do que alegam muitos adultos. Em suas
país. Nesse local, Tullia estudou os processos lógi- destaca o papel do adulto na organização do Tullia também verificou que o que muda cons- observações demonstrou que as crianças exploram
cos na primeira infância. Ao retornar a Roma, ini- ambiente físico e social. tantemente no desenvolvimento das crianças pe- de diferentes modos os materiais e perseguem a
cia uma pesquisa na primeira creche municipal da Tullia, junto aos pesquisadores do Cresas quenas é a relação entre a maneira como uma ação resolução de desafios específicos, realizando ativi-
cidade, em parceria com pesquisadoras do Cresas, (França) foi uma das pioneiras em estudos sobre é realizada e os resultados a que pretende chegar; dades complexas, além de resolver diferentes pro-
assim, a consolidação das descobertas das crianças blemas, utilizando os mesmos objetos.
é realizada passo a passo e ocorre pela aquisição Desse modo, para Tullia, o adulto deve exami-
a criança está engajada desde o início na tentativa de organizar o das capacidades de representação pelas crianças, nar cuidadosamente o que sugere para a criança
pela relação dos novos elementos, aos elementos e pensar quais atividades a proposta pedagógica
mundo que a rodeia, ao buscar identificar semelhanças e diferenças já compreendidos. em curso vai permitir desenvolver. Neste caso, é
Para ela, esses resultados requerem novas me- fundamental que não se proponha a apreensão de
quando também passa a se interessar pelas condi- interações de bebês (18-19 meses e 32 meses), por todologias de análise de interação de crianças uma única noção por parte da criança, mas vários
ções de aprendizagem das crianças e se compro- meio de videogravação e análises microgenéticas. pequenas, que devem ser cuidadosa- caminhos e possibilidades para apreensão
meter com mudanças políticas nesse contexto. Com relação à interação dos bebês com o am- mente estudadas, por apresentarem de diferentes experiências e exploração,
Ao investigar as condições de aprendizagem biente físico, verificou que, nos primeiros mo- importantes implicações para a por meio da seleção de elementos fí-
das crianças, passou a discutir a finalidade da Edu- mentos, utilizam os objetos de acordo com suas educação. Nesse sentido, é funda- sicos e sociais.
cação Infantil, como a de oferecer um ambiente que propriedades funcionais, sem lançar mão de ati- mental organizar um cenário para Com relação à interação com
possibilite a vivência de experiências significati- vidades de sequência lógica e exploração física. a realização das observações que parceiros de mesma idade, Tullia
vas. Isso leva à necessidade de compreensão sobre Com o tempo, Tullia observou o aumento da com- convidem as crianças a identificar apresenta outras contribuições
como as crianças aprendem, para que os adultos plexidade das ações, que também são desenvol- desafios e colocar em ação estraté- importantes com crianças abaixo
possam intervir no ambiente a fim de possibilitar vidas num tempo mais longo, até a simulação de gias para resolvê-los. de 26 meses. Nesse sentido, as ins-
sua interação e partilha de significados. Essa parti- tarefas da vida cotidiana, como fazer compras, As pesquisas de Tullia apresen- tituições de Educação Infantil tor-
lha alia-se à ideia de aprender a estar junto, com- preparar comida etc. Destaca que essas atividades tam duas importantes caracterís- Tullia Musatti nam-se locais privilegiados para as
partindo sua produção cultural, e seus diferentes aumentam de complexidade em uma dinâmica de ticas dos objetos, especialmente estudou filosofia vivências de experiências diferen-
saberes. Para isso é necessário considerar a criança troca com coetâneos, em função da tentativa de relevantes para orientar as ativi- na Universidade tes daquelas que as crianças vivem
na sua família, a experiência que a criança vive na comunicar algo em uma situação de faz de conta, dades das crianças pequenas: tipo La Sapienza, em casa. Esse encontro com outras
creche e a administração desses dois contextos que por exemplo. e número de objetos e parceiros em Roma, onde crianças de mesma idade tem par-
influenciam no modo com a criança lida com os Para ela, as crianças possuem ainda em idade disponíveis. Esses elementos e as atualmente orienta ticular relevância para a reflexão
teses de doutorado
ambientes. Em síntese, Tullia nos mostra a necessá- precoce “consciência do caráter imaginário de relações que despertam vão orien- sobre a finalidade do atendimento
em Psicologia
ria articulação entre o estudo dos processos lógicos suas ações significantes sobre os objetos, como de- tar o que ela chama de construção educativo nos primeiros anos de
da Interação,
e simbólicos com as condições de aprendizagem monstram suas expressões e ações específicas”. Ao cognitiva das crianças. Ela alega Comunicação e vida, e para a pesquisa científica
oferecidas às crianças. observar crianças por volta dos 2 anos, demonstrou que os objetos parecem ser me- Socialização. Dá nessa faixa etária. Assim, a análise
As pesquisas realizadas por ela promoveram que é possível verificar, na ação significante, subs- diadores do conhecimento, pois aulas em programas das trocas sociais é fundamental
o incentivo para análise das trocas entre crian- tituições de um objeto por outro, por referência es- podem permitir o aparecimento de mestrado para para subsidiar a organização de
ças, assim como as formas de promover melhores pacial ou expressão verbal, considerados por Piaget de diferentes “mecanismos de pen- coordenadores condições mais favoráveis para o
condições para o desenvolvimento do faz de conta como símbolos do objeto ausente. samento” sobre diversos temas e pedagógicos desenvolvimento das brincadeiras.
em creches. Essas pesquisas mostram que as crianças, já nos diferentes níveis de complexidade. de escolas de As pesquisas realizadas com
primeiros anos de vida, estão profundamente en- Além disso, junto à importância educação infantil bebês reforçam que as trocas so-
nas Universidades
A capacidade interativa dos gajadas na tentativa de organizar o mundo que as da seleção dos objetos, destaca a ciais acontecem precocemente, in-
de Milão e Florença.
bebês e as implicações educativas rodeia, por meio da identificação e verificação de presença de um adulto familia- tegram os processos de estrutura-
Começou a estudar a
No campo das interações, os estudos desen- relações de semelhança e diferença entre objetos, rizado com o grupo de crianças, ção e aquisição do conhecimento,
cognição em crianças
volvidos por Tullia mostram a capacidade de e as consequências de suas ações no ambiente e pois ele pode ajudar a manter o pequenas na década e que fazem parte da dinâmica do
crianças bem pequenas interagirem, negocia- sobre os objetos. Ela enfatiza que o desenvolvi- clima positivo, podendo realizar de 1970. desenvolvimento da identidade e
rem e superarem conflitos, o que enfraqueceu mento nesse período ainda não é estudado em intervenções de melhor quali- afetividade. Contudo, essas trocas

124 especial revista educação especial revista educação 125


Tullia Musatti

por oferecer diferentes possibilidades de compar- estratégias que utilizam para resolver problemas.
tilhamento de ações, apesar das dificuldades de Tullia destaca também que, para compreender
compreensão. os processos sociais que envolvem as trocas sociais
Essas pesquisas também demonstram que as entre crianças, é fundamental examinar as dinâmi-
crianças podem brincar juntas, perseguindo dife- cas socioafetivas. Isso levaria, inclusive, à supera-
rentes projetos de ação, que desenvolvem diferen- ção da visão tradicional da natureza instintiva da
tes domínios (lógico e simbólico, por exemplo); que agressividade infantil, especialmente voltada aos
possuem consciência das ações que desejam exe- parceiros de mesma idade. Estudos evidenciam a
cutar e que gostariam que o parceiro fizesse, para natureza intrinsecamente social dos conflitos, e
o bom desenvolvimento da brincadeira. Para tanto que por essa razão são gerados por diversos moti-
utilizam artifícios expressivos – gestos, mímicas, vos, em função dos diferentes níveis de compreen-
onomatopeias, expressões verbais – que permitem são das normas de comportamento pelas crianças.
enriquecer a sua conduta, com o intuito de con- Neste caso, cabe ao adulto o importante papel de
tar com a participação dos colegas; que a criança propiciar momentos de negociação e apreensão de
também é capaz de captar a mensagem do colega, regras sociais.
imitando-o, demonstrando que apreendeu algo da Assim, é necessário promover diferentes
brincadeira e se coloca como companheira para o formas de encontro das crianças, considerando os

as pesquisas sobre interações entre crianças pequenas mostram a


necessidade de conhecer e observar os espaços de convívio coletivo
desenrolar da história. diferentes momentos do desenvolvimento. Colo-
Mesmo com tantos desafios comunicativos, cam-se, então, diferentes desafios para o educador,
Tullia mostra em suas pesquisas que crianças não como organizar os espaços para as crianças que
http://www.sxc.hu Reprodução

renunciam ao prazer de brincar juntas e que o não caminham, e para aquelas que iniciaram a ca-
compartilhamento da mesma brincadeira de faz minhar e começaram a desenvolver a linguagem.
de conta, por várias crianças, aumenta o prazer de Essas mudanças exigem uma reestruturação de sua
brincar e favorece a apreensão das crianças dos sig- proposta educacional.
nificados e ações realizados. Suas pesquisas sobre interações mostram a ne-
Essas observações foram realizadas em situa- cessidade de conhecer e observar os espaços de
Para Musatti ções nas quais as crianças dispunham de objetos convívio coletivo. Contudo, a autora alega que
são observadas quando os adultos or- as crianças de faz de conta a partir de um conflito com um significado determinado, conhecidos e ainda é um campo de pesquisa ainda muito pouco
possuem ainda
ganizam o espaço, os materiais e as re- em idade precoce (por exemplo, a disputa por um objeto). utilizados com frequência. Esse interesse por obje- explorado, o que leva a uma pouca estruturação
lações que ali se estabelecem, de forma “consciência do Esse conflito acaba sendo esquecido, tos, nessa faixa etária, não impede as trocas sociais, ambiental e social, dos processos interativos de
a promover essas trocas. Neste caso, a caráter imaginário em função do forte conteúdo lúdico, aliás, verifica-se que grande parte das trocas so- crianças pequenas, em espaços educativos.
de suas ações
autora novamente apresenta um olhar intrínseco à atividade imaginativa. Ve- ciais são iniciadas por meio da manipulação sim- Nesse sentido a organização espaçotemporal
significantes
que integra os comportamentos intera- sobre os rificam-se, também, as tentativas das ples de objetos, que podem se tornar objetos de do contexto influencia de forma determinante
tivos e o contexto, no desenvolvimento objetos, como crianças de ajustarem suas ações uma faz de conta. Tullia aponta que o vínculo funcional o processo de socialização das crianças. Assim,
demonstram entre os objetos e as diferentes ações que podemos esse tema ganha especial destaque, quando tra-
da criança. em relação à outra, de assumirem pa-
suas expressões
Em Os Bebês entre Eles, Tullia apre- e ações péis alternados (troca de papéis). Elas realizar com eles dará forma ao conteúdo da brin- tamos da qualidade das mediações – físicas e so-
senta uma pesquisa na qual demons- específicas” apresentam formas particulares de co- cadeira e à dinâmica das trocas entre as crianças. ciais – realizadas pelas educadoras, no que tange
tra que crianças bem pequenas repro- municação que exigem o olhar atento O olhar atento nos permite verificar as princi- à promoção de interações infantis carregadas de
duzem com frequência episódios da do adulto (gestos, sorrisos, mímicas pais dificuldades encontradas pelas crianças nas sentidos culturais, construídos e compartilhados
vida diária, por meio das brincadeiras de faz de etc.) e mantêm longa troca com o adulto, mos- situações de faz de conta que são constantemente pelas crianças.
conta com a criação de outras situações imaginá- trando prazer em repetir as atividades. Neste úl- superadas. As observações realizadas nesse período Para tanto, nos últimos anos Tullia vem traba-
rias. Sua pesquisa apresenta, por exemplo, como timo caso, destaca-se que a participação do adulto permitem a identificação das crescentes capaci- lhando com questões ligadas à formação de co-
uma criança procura compartilhar uma atividade pode permitir o prolongamento das atividades, dades relacionais das crianças e a diversidade de ordenadores pedagógicos e educadores, além da

126 especial revista educação especial revista educação 127


Tullia Musatti

avaliação qualitativa do atendimento oferecido pe-


las instituições de educação infantil, como espaço
de produção das culturas infantis. A seguir, desta-
caremos uma experiência desenvolvida por ela, na
direção da melhoria da qualidade das experiências
infantis, dentro das instituições educativas.

A melhoria da qualidade das


experiências das crianças em
instituições de educação infantil
Sendo Tullia uma defensora da articulação teo-
ria e prática, seus trabalhos voltados à formação de
educadores visam compreender a prática educativa
para intervir. Neste caso, é necessário que o profes-
sor passe a compreender e analisar o que se passa
com as crianças, para que possa intervir de forma
a permitir o desenvolvimento de suas potenciali-
dades. Veja que esse trabalho cumpre uma dupla
função, pois a busca de compreensão da prática
educativa, junto à observação da criança, favorece
tanto a formação do educador quando a melhoria
das experiências vividas pelas crianças.
Ao considerar a creche como local de organi-
zação de experiências das crianças, a dimensão da

http://www.sxc.hu Reprodução
organização do espaço torna-se fundamental, pois
será a maneira como está arranjado que terá um
significado cultural do grupo. Assim, para ofere-
cer um espaço rico em significados culturais para
as crianças, Tullia propõe um trabalho
de análise das experiências oferecidas às
As pesquisas
crianças, no dia a dia. realizadas com
A qualidade dessas experiências não bebês reforçam A seguir, destacaremos, brevemente,
é medida pelo número e diversidade de que as trocas
sociais
dois tipos de documentação propostos a qualidade das experiências das crianças na creche está relacionada
atividades realizadas, ou pelas trocas por Tullia: os registros realizados pelas
sociais ocorridas, mas pelo significado
acontecem
precocemente educadoras, como forma de organizar
ao significado que atividades e trocas sociais passam a ter para elas
desses eventos para o grupo de crianças, e promover as experiências infantis
dentro da creche ou pré-escola. A aná- de qualidade, e uma proposta de au- mentos, apresentou uma proposta de pesquisa educadores a refletirem sobre o desenvolvimento
lise dessas experiências oferece pistas importantes toavaliação da instituição de educação infantil, para ajudá-las a compreender a comunicação entre das crianças e pensar em diferentes estratégias de
às educadoras sobre suas práticas, além das possi- por todos aqueles que estão envolvidos em seu as crianças pequenas. Nessa proposta, as educado- favorecer essa comunicação.
bilidades de realização de inovações. funcionamento. ras tinham de observar e fazer registros em fichas, Na mesma direção de compreender para intervir,
Para analisar as experiências ofertadas às crian- que depois eram discutidas coletivamente. Depois Tullia tem feito um trabalho de analisar as experiên-
ças, ela propõe um processo de documentação e Documentar e analisar de discutidas as observações, verificaram que, nos cias que as crianças têm em sua vida cotidiana, dentro
reflexão que permita o acompanhamento de todo as experiências das crianças grandes grupos, a atenção estava voltada para o da instituição de educação infantil. Para ela, a qua-
o percurso das atividades, que se torne um compo- Em 2003, ano em que visitou o Brasil, Tullia deu adulto. A partir dessa constatação, as crianças fo- lidade dessas experiências vividas pelas crianças
nente sempre presente no trabalho educativo. Será uma entrevista a Lívia Fraga Vieira, em que tratou ram divididas em pequenos grupos para serem ob- não está relacionada à quantidade de atividades
essa documentação rica e rigorosa que vai consti- dessa questão. Ela contou que, quando iniciou seu servadas. Isso foi necessário porque a linguagem realizadas durante o dia, ou às trocas sociais que
tuir a base essencial para discussão e coconstrução trabalho de formação de educadores, encontrou verbal nessa fase é mais difícil de ser observada, realizam com adultos e outras crianças, mas ao sig-
de significados compartilhados em torno dos obje- profissionais que diziam que as crianças falavam o que leva à necessidade de observar outros tipos nificado que esses eventos – atividades e trocas
tivos educativos. pouco na creche. Preocupada com esses depoi- de linguagem. Essa estratégia de trabalho levou os sociais – passam a ter para a vida da criança.

128 especial revista educação especial revista educação 129


Tullia Musatti

coloca em ação três tipos de


É necessário documento: 1. o diário das
promover educadoras – documento em
diferentes formas
de encontro que se registram o desen-
das crianças, volvimento da jornada coti-
considerando diana, os eventos, as ativida-
os diferentes
momentos do des que se realizam durante
desenvolvimento a semana; 2. o relatório de
observação – realizado pela
coordenadora pedagógica,
que observa as salas das educadoras e escreve um
relatório; e 3. o relatório de processo – comparação
e avaliação do conteúdo do diário das educadoras e
do relatório de observação, produzido pela coorde-
nadora. A produção e discussão desses documen-
tos são realizadas pelos profissionais envolvidos no
trabalho educativo.
Cada documento é redigido em diferentes mo-
mentos de observação. Além disso, é proposto um
roteiro de observação baseado em dimensões da
vida cotidiana da instituição: a. transição entre a
família e a instituição; b. dinâmicas sociais; c. ativi-
dades das crianças; d. os momentos de cuidado; e.
o uso do espaço; f. o uso do tempo.

Avaliação do atendimento infantil


Tullia desenvolveu um trabalho de Monito-
ramento da Qualidade dos Serviços, voltado às
Reprodução

crianças pequenas, junto à Prefeitura de Roma.


Esse trabalho surgiu da necessidade de instituir um
programa permanente de monitoramento da qua-
lidade das instituições privadas conveniadas. Esse
HTPC – Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo. monitoramento constou do acompanhamento sis-
em algumas cidades italianas a formação continuada conta com uma Tullia destaca que o modelo formativo que re- temático da evolução do atendimento dessas ins-
estreita relação entre universidades e sistemas de ensino, algo raro tira o professor da instituição é algo superado, e
defende aquele realizado dentro da instituição,
tituições, para que, anualmente, o convênio possa
ser renovado.
junto ao grupo que trabalha com as crianças, com O sistema de monitoramento da qualidade
Vale destacar que, em algumas cidades italianas, atendimento. Isso porque a formação continuada objetivo de compreender o que o professor faz e o proposto pela pesquisadora configura-se como
especialmente do norte do país, a formação conti- envolve uma reflexão constante sobre o trabalho que deverá ser levado às crianças. Ressalta-se neste um sistema de avaliação participativa, pois previa a
nuada é muito difundida e realizada em colabora- voltado às crianças, especialmente quando conta caso que essa formação envolve planejamento e participação de todos os atores que, através de di-
ção com pesquisadores especialistas, professores com o confronto entre colegas e especialistas. Con- análise contínua, por meio da troca entre as expe- versos papéis, estão envolvidos no funcionamento
universitários, articulados à coordenação pedagó- tudo, destacamos que algumas conquistas políticas riências dos diferentes professores. da instituição. São eles 1. coordenadores pedagógi-
gica. Neste caso, observa-se uma estreita relação de relativas à formação continuada já foram garan- Ao planejar uma formação de educadores, o cos internos das instituições privadas conveniadas;
colaboração entre as universidades e os sistemas de tidas, tal como a jornada de trabalho de 36 horas olhar deveria estar voltado não ao que o adulto 2. coordenadores territoriais são coordenadores de
ensino, raros na maioria dos países. semanais, com cerca de seis horas destinadas ao ensina à criança, mas como a criança aprende a creches públicas que também realizam a função
Esse trabalho envolve análise de tema, busca de planejamento e registros das atividades, realizadas agir, interagir e se comunicar. É procurar compre- de coordenar as creches particulares de uma
novas informações e métodos de pesquisa cientí- fora do horário de atendimento das crianças. Essas ender a realidade com olhos de criança e entender determinada região da cidade, ao redor da creche
fica, visando a melhoria da formação profissional horas de trabalho formativo, sem atendimento à como elas realizam suas experiências. Para isso, que coordena; 3. coordenadores centrais da pre-
e, consequentemente, a melhoria da qualidade do criança, equivalem ao que no Brasil chamamos de Tullia propõe um percurso de documentação e feitura, equivalentes às nossas equipes de supervi-

130 especial revista educação especial revista educação 131


Tullia Musatti

são das Secretarias Municipais


de Educação; 4. educadoras; O ideal é
procurar
5. famílias usuárias. Este mo- compreender
nitoramento valoriza o papel a realidade
fundamental do coordenador com olhos
de criança
pedagógico, que garante e pro- e entender
move a qualidade da instituição como elas
da qual é responsável. realizam suas
experiências
Esse trabalho tinha como
principal instrumento a cons-
trução de um documento, denominado Dossiê do
Serviço, articulado em duas partes: uma seção que
apresentava um quadro sintético sobre a natureza,
história e funcionamento da instituição e uma
apresentação da finalidade e dos objetivos que esta
se propõe a atingir; e quatro seções – em cada uma
é analisada uma dimensão particular que compõe
a qualidade do atendimento, como a organização
dos espaços e atividades. Para a finalização do do-
cumento, foi utilizada uma Grade de Avaliação
Conjunta, com o objetivo de apresentar uma sín-
tese e uma verificação da avaliação realizada a res-
peito das diversas dimensões, visando uma refor-
mulação do projeto do serviço, para o ano seguinte.
Destacamos que essa proposta não só funcionaria
para renovação de convênio, mas para o monitora-
mento da rede direta, contribuindo, inclusive, para
a formação profissional dos profissionais da rede.
Uma particularidade dessa proposta é a ava-
liação do atendimento infantil ser realizada com

Reprodução
base nos objetivos institucionais estabelecidos e na
legislação vigente, e não em um modelo externo de
bom funcionamento.
Para o início do trabalho promoveu-se um es- finalidade do atendimento. Desse modo, o sistema
tudo sobre os procedimentos para a construção do
Dossiê, para então iniciar as atividades ligadas à
prevê manter distintos, de modo explícito, o mo-
mento da descrição dos fenômenos observados
TULLIA PROPõe uma avaliação democrática do atendimento infantil, que
descrição e avaliação de quatro dimensões funda- no momento da avaliação. Esta última é realizada envolve diferentes instâncias de participação do processo educativo
mentais da qualidade do serviço: com base na construção de juízos argumentados,
1. a estrutura na qual se desenvolve o atendi- elaborados pela coordenadora pedagógica, e sua O fechamento do Dossiê constou de um encon- “Pontos para uma Avaliação Participativa dos Co-
mento – localização, organização dos ambientes, e correspondência com os aspectos descritos como tro para a realização da avaliação, utilizando outro ordenadores e Educadores” são um instrumento
a disposição dos móveis e materiais; 2. a organiza- finalidade do atendimento. instrumento, chamado de Pontos para a Avaliação para guiar a discussão com as educadoras, levando
ção do atendimento – a organização das seções e Concomitantemente, as educadoras foram orien- Participativa dos Coordenadores e Educadoras So- em conta os diversos pontos de vista, e também
dos grupos de crianças; 3. o trabalho da equipe – o tadas a redigirem o Diário das Educadoras, apresen- bre a Experiência das Crianças. Nesse encontro, as para redigir um resumo da reunião.
colegiado e o suporte profissional aos trabalhado- tado no tópico anterior. A análise desses diários era coordenadoras relatam às educadoras os resulta- As instituições participantes apontaram como
res; 4. a relação entre a instituição, os usuários e a realizada de forma integrada ao Relatório de Ob- dos da análise integrada dos diários e dos relatórios de fundamental importância o uso do Diário das
comunidade – apresentação do serviço à comu- servação construído pela coordenadora pedagógica. de observação. Ao mesmo tempo, realiza-se uma Educadoras e do Relatório de Observação dos
nidade e a relação com os pais. Nesta descrição e Para essa análise, os coordenadores utilizaram um avaliação da qualidade da experiência dos usuários Coordenadores como instrumentos que forne-
avaliação, são verificados os resultados das ações instrumento denominado de Pontos para a Análise (pais), através da aplicação de um questionário, re- cem dados relevantes para a discussão de metas
das instituições, e se estes resultados atingem a Integrada dos Relatórios Observativos e dos Diários. lativo aos diversos aspectos do atendimento. Os de formação profissional. Verificou-se também

132 especial revista educação especial revista educação 133


Tullia Musatti

transformações sociais. Dessa forma, estudou os Obras de Tullia Musatti


Centros para Pais e Crianças menores de 3 anos,
Obras traduzidas para a língua portuguesa
na cidade de Roma, que acolhem crianças e pais Musatti, Tullia et. al. Os Bebês entre Eles: Descobrir, Brincar, Inventar Juntos..
para momentos de socialização. Constituem-se em Campinas: Autores Associados, 2011 (Coleção Formação de Professores).
______. “Modalidades e Problemas do Processo de Socialização entre Crianças
espaços de encontro de pais, que compartilham na Creche”. In: Bondioli, Anna; Mantovani, Susanna Manual de Educação
Infantil de 0-3 anos. Porto Alegre: Artmed, 1998.
suas diferentes experiências, além de promover um
______. “Conhecendo e Aprendendo em um Contexto Educacional: Um Estudo
momento de encontro e brincadeira com a criança, Realizado nas Creches de Pistoia”. In: Gandini, Lella; Edwards, Carolyn.
Bambini: a Abordagem Italiana à Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002.
diferente daquele que realiza em casa.
______. “Entre as Crianças Pequenas o Significado da Outra da Mesma Idade”.
Com relação às crianças estrangeiras, Tullia pro- In: Faria Ana Lúcia Goulart de. O Coletivo Infantil em Creches e Pré-Escolas:
Falares e Saberes. São Paulo: Cortez, 2007
põe uma discussão sobre as escolhas educativas ar-
______. “Programas Educacionais para a Pequena Infância na Itália”. Revista
ticuladas à integração cultural, as dificuldades en- Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 24, p. 66-77, 2003. Disponível em <www.
scielo.br/pdf/rbedu/n24/n24a06.pdf>. Acesso em 07/09/2012.
frentadas pelas crianças e famílias nas instituições,
______. “Vida na Creche: Espaço de Produção Cultural”. Entrevista concedida a
e o estudo das experiências das mães imigrantes. Lívia Maria Fraga Vieira. Presença Pedagógica, vol. 9, n. 50, 2003.

Trata-se de um tema extremamente delicado para


a sociedade italiana, dividida quanto às formas de Seleção de produções em língua italiana
tratamento aos imigrantes. Nesse sentido, mais Musatti, Tullia. “Il Significato del Servizio Nido nella Società che Cambia”.
In: Terzi, Nice (org.). Prospettive di Qualità al Nido: il Ruolo del Coordinatore
uma vez a pesquisadora busca o enfrentamento Educativo. Roma: Edizioni Junior, 2006.

de questões sociais e políticas fundamentais para a ______. “La Cultura nella Prospettiva dei più Piccoli”. In: Le Culture
Dell’Infanzia: Trasformazioni, Confronti, Prospettive. Atti del XV Convegno
infância em seu país. Nazionale Servizi Educativi per l’ Infanzia. Roma: Edizioni Junior, 2006.

Diante desse relato, verificamos que, embora ______; Picchio, Mariacristina. Un Luogo per Bambini e Genitori nella Città:
Trasformazioni Sociali e Innovazione nei Servizi per l’Infanzia e le Famiglie. Bologna:
intensamente envolvida com a pesquisa sobre ava- Il Mulino, 2005.
______. “Scelte Metodologiche: il Percorso di Monitoraggio della Qualità
liação do sistema de educação infantil, Tullia tem e lo Strumento del Dossie del Servizio”. In: Benvenuti, Pierangela et al. Il
Monitoraggio della Qualità dei Servizi per l’Infanzia e l’Adolescenza. Indicatori e
um olhar para a criança inteira, ou seja, não se li- Strumenti. Roma: Edizioni Junior, 2001.
mita aos espaços educacionais formais. Nesse sen- ______; Favaro, Graziella; Mantovani Susanna. Nello Stesso Nido: Famiglie e
Bambini Stranieri nei Servizi Educativi. Milão: Franco Angeli, 2000.
tido, tem um olhar ampliado que a leva a conside-

http://www.sxc.hu Reprodução
______; Di Giandomenico, Isabella; Picchio, Mariacristina. “Analizzare
rar os espaços destinados à criança e suas famílias, la Qualità dell’esperienza Quotidiana dei Bambini nei Servizi Educativi
per L’infanzia: la Documentazione Scritta”. In: Guida Metodologica ERATO:
como forma de apoio ao seu desenvolvimento. Accogliere la Diversità nei Servizi Educativi per L’infanzia (0-6 Anni). Bernand van
Leer Foundation. Disponível em: <www.istc.cnr.it/sites/default/files/u101/
Podemos, então, observar que Tullia iniciou seu guida_erato_0.pdf>. Acesso em 08/09/2012.
trabalho de pesquisadora com questões pontuais
da educação infantil, tais como desenvolvimento e Seleção de publicações em língua estrangeira
interação de crianças e formação de professores, e Musatti, Tullia; Picchio, Mariacristina Early Education in Italy: Research and
Será somente a Practice. Nova York: Springer, 2010. Disponível em <http://www.eyeonkids.ca/
atuação em todas encaminhou suas pesquisas para questões globais docs/files/ecec_in_italy.pdf>. Acesso em 08/09/2012.

a melhoria da formação dos coorde- as dimensões e práticas já desenvolvidas e a reconstru- do atendimento infantil, tais como as políticas e ______. “Early Peer Relations: the Perspectives of Piaget and Vygotsky”. In:

nadores e educadores, quanto à ca- o olhar para a ção dos sentidos para incorporação de avaliação de sistemas de educação infantil.Verifica-
Mueller, E.; Cooper C. (Eds.) Process and Outcome in Peer Relationships. New
York: Academic Press, 1986.
criança em sua
pacidade de formular juízos de valor, completude que novas práticas educativas e de organi- mos em suas pesquisas que trata da criança em sua ______. “Early Education Settings in Italy: The Social Context and Educational
Prospects”. Prospects, vol. xxxiv, n. 4, 2004.
argumentados de forma contundente, poderão levar zação dos sistemas. Verifica-se, então, cultura, e não uma criança“pinçada”descontextua- ______. “Meaning between Peers: The Meaning of the Peer”. Cognition and
articulados à documentação coletada, à melhoria da uma postura democrática que se revela lizada do seu meio. Trata-se de uma criança em re- Instruction, II, p. 241-250.
qualidade de vida
além da consciência de que apenas da infância na construção do conhecimento sobre lação ao ambiente em que se encontra, que nele se ______; Baudelot, O: “Politiques Municipales d’Aujourd’hui: les Coordonna-
teurs de la Petite Enfance, une Comparaison France-Italie”. Politiques d’Educa-
um percurso compartilhado de moni- o atendimento à infância. desenvolve, e que a preocupação com a qualidade tion et de Formation, n. 6, p. 71-84, 2002.

toramento da qualidade pode ajudar a, das experiências que lhe são propostas passa a ser
efetivamente, refletir sobre o andamento do aten- Em busca de novos desafios de fundamental importância. Tatiana Noronha de Souza é professora da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
dimento infantil e planejar intervenções para a Além das pesquisas sobre interação, formação Sua trajetória nos mostra um grande engaja- Filho (Jaboticabal) e membro do Cindedi (Centro
promoção da qualidade. de professores e avaliação institucional, Tullia atua mento na melhoria da qualidade de vida das crian- de Investigação sobre Desenvolvimento Humano
e Educação Infantil) da Faculdade de Filosofia,
Verifica-se, então, uma proposta de avaliação em campos desafiadores, tais como os diferentes ças, e indica que devemos olhar para questões mais Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP.
democrática, que envolve diferentes instâncias espaços públicos voltados para famílias e para o amplas, além daquelas que ocorrem dentro das
Maria Clotilde Rossetti Ferreira é professora Emérita
de participação do processo educativo. Tullia trabalho com crianças estrangeiras nas instituições. instituições. Será somente a atuação em todas as do Departamento de Psicologia da Universidade
distancia-se de propostas que adotam mode- Com relação aos espaços para as famílias, ela dimensões e o olhar para a criança em sua comple- de São Paulo (Ribeirão Preto) e membro do Cindedi
(Centro de Investigação sobre Desenvolvimento
los e critérios de qualidade externos, que pouco discute a necessidade de inovações nos serviços tude que poderão levar à melhoria da qualidade de Humano e Educação Infantil) da Faculdade de
contribuem para a reflexão sobre o sentido das voltados às crianças e suas famílias, em função das vida da infância. Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP.

134 especial revista educação especial revista educação 135


Matthew Lipman

A filosofia na
formação das
crianças
Para Lipman, nenhuma disciplina pode fazer o que a filosofia
faz: ajudar as crianças a pensar de forma crítica, criativa
e cuidadosa sobre si mesmas e o mundo que as rodeia
por Walter Omar Kohan

R
ecentemente, em dezembro de tas imprescindíveis para habitar de forma íntegra
2010, morreu Matthew Lipman, uma democracia.
o idealizador do ensino de fi- Lipman era uma pessoa muito sensível à prática
losofia para crianças. Tinha 87 e desenvolveu durante mais de quarenta anos um
anos. Lipman era uma pessoa programa para que sua ideia fosse algo mais do que
tranquila, generosa e introver- apenas uma ideia. Escreveu romances filosóficos
tida. Com a sua saúde já bas- para crianças e materiais de apoio para os profes-
tante debilitada nos últimos sores que constituem um dispositivo didático com-
anos, trabalhava muito menos do que desejava, pleto, desde o Ensino Infantil até o Ensino Médio,
mas o suficiente para publicar sua autobiografia, para que as crianças pudessem entrar no mundo
A Life Teaching Thinking (Uma vida ensinando a da filosofia como seus ativos praticantes. Ou seja,
pensar, 2008), e para conceder uma entrevista a ele não procurou ensinar filosofia às crianças, mas
David Kennedy a propósito da morte de sua co- reconstruir a sua história para que as crianças pu- John Dewey,
laborada Ann Sharp. Lipman dedicou sua vida a dessem estabelecer um diálogo com os problemas, grande
reunir o que para muitos seria um contrassenso: temas e conceitos dessa disciplina. Em outras pa- influência no
pensamento
a filosofia e as crianças. Mais ainda, considerava lavras, sua tentativa era que as crianças fizessem o de Matthew
Reprodução

que sem aquela a educação da infância careceria que os filósofos fazem e não que aprendessem a Lipman
da espinha dorsal que lhe outorgaria as ferramen- repetir o que eles pensam.

136 especial revista educação especial revista educação 137


Matthew Lipman

A seguir apresentaremos alguns aspectos nharia, mas não pôde pagar os custos da faculdade. lhava. Vê então o surgimento do interesse mais Pela sua sensibilidade prática, quer fazer algo
biográficos e doutrinais desse notável filósofo e Eram tempos da Segunda Guerra: aos 20 anos, profundo pela educação e pela infância, que ele menor, concreto, que tenha uma incidência pal-
educador de nosso tempo. Antes de mostrar mais após apresentar-se à Força Aérea como voluntá- próprio não associa ao nascimento de seus filhos, pável. Ganha forma a necessidade de escrever
detalhadamente o programa de Lipman, destaca- rio, e ser barrado por causa de problemas de visão, mas à leitura de um artigo de Hannah Arendt uma história, que tanto crianças como adultos
rei algumas passagens significativas de sua vida, entrou no exército. Então, como militar, conseguiu “Reflexões sobre Little Rock”, de 1959. Lipman pudessem ler. Era preciso inventar um gênero li-
tomadas de sua autobiografia. Num segundo mo- o que sua condição econômica não lhe havia per- considera esse texto tremendamente conserva- terário, uma escrita filosófica dialógica, em parte
mento, tratarei dos elementos principais de sua mitido: estudou dois semestres na Universidade dor, uma vez que defende o controle familiar e inspirada nos diálogos platônicos mas que re-
tentativa e finalmente tirarei algumas conclusões Stanford, na Califórnia e, uma vez terminada a não social da educação e desconsidera os direitos criasse um contexto mais próximo ao modelo de
sobre o valor e sentido de sua obra para o Brasil e, guerra, mais dois semestres em uma das duas uni- sociais dos negros em favor de interesses nacio- sociedade democrática para cuja geração Lipman
de uma forma mais geral para os países de Amé- versidades norte-americanas criadas na Europa, nais. Começa a pensar em sua própria educação desejava contribuir. Assim, em 1967, escreve A
rica Latina. a de Shrivenham, próxima de Londres. Por esta e na necessidade de uma mudança profunda de Descoberta de Ari dos Telles (Ari), onde crianças
ocasião, já havia lido uma antologia com textos de vida. Organiza uma exitosa exposição de Arte em debatem questões de lógica, educação, estética
Uma vida dedicada à filosofia Dewey e a Ética, de Spinoza. O primeiro curso de Nova York. Os diferentes desafios que deve supe- no contexto de uma instituição escolar. Lipman
e à educação das crianças filosofia, aos 22 anos, o levou a visitar a casa de rar, o mundo diferente no qual deve submergir e se sente um criador, um inovador, inclusive em
Filho de imigrantes do leste europeu, Matthew Hume na Escócia e a sentir mais nitidamente que a maneira íntegra como sai dele o fazem sentir- relação a Dewey. Para Lipman, Dewey poderia
Lipman nasceu em Vineland, Nova Jersey, em agosto esse também era seu lugar. O fim da guerra lhe -se mais confiante em si mesmo. ter criado um currículo que pusesse em prática
de 1922, passou os dois primeiros anos na Filadélfia deu algumas medalhas e a possibilidade de estudar A educação se torna, definitivamente, sua concepção de educação como investigação,
e em seguida viveu sua infância em Woodbirne, uma durante quatro anos, nos quais Lipman se douto- “a” questão de sua vida. A leitura da tomando como modelo a investigação
pequena cidade de 2 mil habitantes composta em raria no lugar em que tanto havia desejado estar: a experiência escolar de Summerhill científica. Mas não foi tão ousado. As-
sua maioria por agricultores russos imigrantes na Universidade de Columbia em Nova York. Durante não o impressiona profunda- sim, Lipman reconhece sua influ-
passagem do século XIX ao XX. A avó paterna russa esses anos, conheceu pessoalmente o principal mente, mas é afetado por uma ência mas também marca uma
de Lipman, Baba, levou a família para os Estados inspirador, John Dewey, quando este já se havia visita a uma exposição de produ- distância. Por um lado, Dewey
Unidos, depois de haver passado pela Sibéria e pela aposentado da vida acadêmica. O orientador de ções artísticas de crianças dessa confiava mais na ciência do que
Alemanha. Na Alemanha nasceu o pai de Lipman, sua tese foi Meyer Schapiro e uma bolsa Fullbright escola. Começa a especular sobre na filosofia para o papel demo-
Wolf, que, à diferença da maioria de seus irmãos lhe permitiu permanecer dois anos em Paris e re- a capacidade das crianças não cratizante que ambos outorga-
agricultores, era maquinista e também inventor, e escrever a tese, após uma frustrante defesa que o apenas para sentir, mas também vam à educação. Por outro lado,
patenteou diversos inventos, em geral, para a in- fez sentir na pele pela primeira vez as misérias da para pensar. As revoltas nas uni- Dewey ficou apenas no âmbito
dústria. Nas frequentes visitas à oficina do pai, Li- vida acadêmica. Nessa viagem conheceu Wenona versidades em 1968, que Lipman Matthew Lipman da defesa teórica de suas ideias
pman alimentou o gosto pelos assuntos práticos Moore, com quem passou a compartilhar inquie- vê negativamente, como um sin- (1922-2010) dedicou e embora tenha desenvolvido ex-
toma de irracionalidade, o fazem a vida ao ensino de periências práticas no seu Labo-
pensar em uma necessária e ur- filosofia para crianças ratório de Chicago não chegou a
e à produção literária
durante o doutorado na universidade de columbia, lipman pode gente reforma, teórica e prática,
do sistema educacional em todos infantil e adulta.
realizar um dispositivo didático
que permitisse pôr em prática es-
conhecer pessoalmente john dewey, seu principal inspirador os níveis. Embora estivesse de
Filho de imigrantes
do leste europeu,
sas ideias.
acordo com algumas reivindica- A sua primeira novela, A Desco-
foi criado em uma
que afirma ter conservado para o resto da vida. Sua tações filosóficas e políticas e com a qual se casaria ções desse movimento, como uma pequena cidade berta de Ari dos Telles (Ari), era para
mãe, Sophie Kenin, de família lituana, nasceu na em 1952, em Paris. O casamento durou 22 anos. maior participação estudantil na dos EUA. Em Lipman uma verdadeira introdu-
Filadélfia e deixou o trabalho de costureira em uma Wenona, negra, se tornaria militante do Partido gestão das universidades, Lipman tempos de Segunda ção à filosofia, tanto para crianças
fábrica de roupas quando nasceram os filhos, com Democrata, pelo qual foi senadora pelo estado de considerava que significava não Guerra, entrou no como para professores. Cada capí-
os quais falava em inglês e não em iídiche, a língua Nova Jersey durante trinta anos, a partir de 1970. uma transformação das institui- exército, o que lhe tulo era dedicado a uma matéria:
em que se comunicava com os pais. De volta aos Estados Unidos, Lipman foi pro- ções, mas sua destruição. De todo permitiu estudar educação, religião, ou arte, cada um
Dos primeiros anos de vida, Lipman recorda os fessor da Faculdade de Farmácia na Universidade modo, sente que é necessário um filosofia. Doutor deles contendo uma diferente dis-
frequentes sonhos de voar quando ainda não havia de Columbia. Nesses anos 1950 conheceu Justus remédio educacional de base, se pela Universidade cussão filosófica num campo da“fi-
de Columbia (NY),
completado 2 anos, o tédio na escola, à exceção de Buchler, a sua maior influência filosófica ao lado vê a si mesmo em uma posição losofia de...”. Não era um livro so-
colocou em prática
algumas aulas de literatura, e a falta de sentido das de Dewey. Também nessa década nasceram seus como a de Platão nos primeiros bre filosofia, mas filosofia aplicada,
diversas experiências
aulas de hebraico na escola judia, que de toda ma- dois filhos: Karen em 1959 e Will em 1960. Nessa livros de A República, como um le- um exercício filosófico tal e como
em escolas, inclusive
neira lhe permitiram passar o rito do bar mitzvah. mesma época, Lipman se muda para a pequena gislador, que considera a educa- na formação de Lipman queria ver recriado na vida
Viu pela primeira vez a palavra “filosofia” aos 19 cidade de Montclair, no estado de Nova Jersey, ção o meio mais importante para professores. educacional de seus jovens leitores.
anos. Um teste sugeriu que deveria estudar enge- muito próxima a Nova York, onde ainda traba- transformar uma sociedade. Em 1969 imprime uma primeira

138 especial revista educação especial revista educação 139


Matthew Lipman

versão de Ari e em 1970 coordena, com dois assis- Philosophy for Children e começa a “disseminação”
tentes, uma primeira experiência em uma escola em outros países, em boa parte, graças ao trabalho
pública de Montclair. A experiência, duas sessões de Ann Sharp. Com o correr do tempo o programa
por semana de quarenta minutos, durante nove se- passa a ser traduzido e aplicado em mais de trinta
manas – dezoito sessões no total –, tem resultados países dos cinco continentes. Centros de Filosofia
alentadores em termos do desenvolvimento lógico para Crianças são criados no mundo inteiro, inclu-
dos alunos, que Lipman avalia mediante um teste e sive no Brasil, no final de 1984, quando Catherine
a assessoria de um especialista. Eis o mote primeiro Young Silva, nascida nos Estados Unidos e resi-
e principal que sempre acompanhou a tentativa de dente no Brasil, se propõe a divulgar a proposta
Lipman: melhorar a capacidade lógica das crianças. no país. Nesses anos se realizam várias viagens de
“Lógica” deve ser entendida aqui no sentido bem Lipman e Ann Sharp, que oferecem conferências e
amplo de forma de pensar, estrutura de raciocínio e cursos em diversas universidades brasileiras.
argumentação, algo que inclui o pensar, o julgar, o Lipman destaca aventuras impensadas, como
dizer e o próprio agir. na Nigéria e no México; o encontro com perso-

pessoas das mais diversas áreas se interessam pela filosofia para


crianças; o programa foi aplicado em mais de 30 países, como o brasil
Nesse início dos anos 1970, Lipman se transfere nalidades contrastantes, como Paulo Freire e Tariq
da Universidade de Columbia para a de Montclair Aziz, depois ministro de Saddam Hussein; con-
State, onde encontra melhores condições insti- quistas imprevistas, como a nomeação de Professor
tucionais para lançar seu projeto. Conhece Ann Honorário na Universidade, o pedido para guar-
Sharp, com quem passa a trabalhar em equipe, dar seus arquivos na Biblioteca de Filósofos Vivos

Reprodução
buscando o reconhecimento da academia filosófica da Universidade de Southern Illinois, Campus de
e os recursos para desenvolver sua ideia e levá-la às Carbondale, junto aos de Dewey e de outros prag-
escolas. Em 1975, ciente da necessidade de formar matistas; os desencontros e encontros com organi- A função do
outras pessoas para expandir o projeto, realiza o zações como a American Philosophical Association ferentes subprogramas, cada um para professor, para tura das histórias e que essa agenda de
Lipman, é ser
primeiro trabalho de formação de professores. Os (APA) e a Unesco. Narra também alguns golpes uma faixa etária específica e composto questões, produto de seu interesse, nor-
filosoficamente
resultados exigem uma reformulação e mostram a pessoais duros: a morte de seu filho Will, por um por uma novela para o estudante e um reatraído e teie a reflexão conjunta. As atividades
necessidade de colocar muita energia nesta dire- linfoma aos 24 anos, a própria doença e o avanço manual de instruções para o professor. pedagogicamente dos manuais não oferecem respostas às
ção. Ao mesmo tempo, Lipman e sua equipe dese- progressivo do Parkinson, a surpreendente morte As novelas são escritas de forma dia- forte para questões colocadas pelas crianças e são
propiciar o
nham um manual para Ari, que possa ser utilizado da segunda esposa, Teri, trinta anos mais jovem, lógica e suas personagens são crianças encontro entre fornecidas como uma ajuda para facilitar
por professoras de educação básica sem formação mística cristã, por um inexplicável erro na adminis- com a idade de seus leitores. Elas são as crianças e o a discussão filosófica que surja a partir
filosófica e começa a escrever outras histórias que tração de medicamentos. intelectualmente inquietas, pensativas, pensar filosófico delas na sala de aula. A grande maioria
irão complementando o programa. O programa se Mais recentemente, já em 2010, morre Ann interessadas em se engajar em uma in- das perguntas dos manuais não solicita
desenvolve primeiro com algumas novelas que an- Margaret Sharp, a grande parceira de trabalho e vestigação coletiva cooperativa sobre informações ou uma resposta que as es-
tecedem e preparam para Ari e depois com outras ideias. Antes de terminar esse mesmo ano, em que as questões que as preocupam. O cenário pre- gote, uma vez que são respostas incertas e contro-
que aplicam seus ensinamentos a outros campos. se foi sua companheira filosófica, Matthew Lip- dominante é uma escola e as discussões atingem versas e procuram auxiliar as crianças a esclarecer
Começam os seminários intensivos de formação, man morre na residência comunitária Green Hill âmbitos e problemas tão diversos quanto estéti- conceitos, discutir as razões, explorar pontos de
primeiro em Rutgers, e depois em Mendham. Al- em West Orange, Nova Jersey, talvez um pouco cos, metafísicos, epistemológicos, éticos, políticos vista alternativos, identificar os pressupostos, con-
gumas intervenções na mídia e um filme produ- mais sozinho do que a sua entrega aos outros pa- e religiosos. sequências, ou inferências que se seguem do que
zido pela BBC dão grande divulgação ao programa, recia merecer. Cada novela contém um número importante elas pensam. A partir dessas atividades, as crian-
primeiro nos Estados Unidos e depois no exterior. de ideias principais que, no manual de instruções ças irão praticando e desenvolvendo as diversas
Seminários regulares intensivos de imersão na prá- Filosofia para crianças? para o professor, são acompanhadas de atividades, habilidades de pensamento crítico, criativo e ético
tica e na teoria da proposta são organizados quatro Durante trinta anos Lipman e sua equipe de- exercícios e planos de discussão para que seu tra- que o programa pretende ajudá-las a incorporar.
vezes por ano com participantes do mundo inteiro. senvolveram um completo programa para levar a tamento possa ser mais bem elaborado. Espera-se A função do professor, para Lipman, é ser filoso-
Pessoas das mais diversas áreas se interessam pela filosofia à educação básica. Ele é formado de di- que as crianças levantem questões a partir da lei- ficamente reatraído e pedagogicamente forte para

140 especial revista educação especial revista educação 141


Matthew Lipman

às crianças as ferramentas
Para Lipman, a cognitivas e sociais que uma
filosofia ensina
as crianças a
sociedade exige. De modo
pensar, o que, que, embora o meio seja a fi-
segundo ele, losofia, a pretensão última de
significa ajudá-
Lipman é a formação política
las a passar
de um pensar dos cidadãos. Para isso, a fi-
simples a um losofia aparece como a me-
pensar complexo lhor alternativa por que ela
desenvolveria de forma mais
completa e consistente o pensar das crianças. Num
contexto adequado, a filosofia ajudaria a formar os
cidadãos democráticos necessários para formar uma
sociedade efetivamente democrática.
Contudo, por que a filosofia? Segundo Lipman,
porque, se as disciplinas escolares ajudam os es-
tudantes a reconstruir sua experiência de forma
parcial, a filosofia o faz de forma conjunta e siste-
mática. Ela seria a única disciplina a ajudar a pensar
em e através das outras disciplinas, colocando em
questão seus pressupostos e implicações, suas con-
cepções de verdade e realidade, sua forma de pro-
duzir e justificar conhecimento. Ao mesmo tempo,
a filosofia ofereceria as disciplinas cognitivas (de
raciocínio, formação de conceitos, investigação e
tradução) que as outras disciplinas precisam colo-
car em prática.
Em função disso, seu programa oferece uma re-
construção da história da filosofia ocidental para
que as crianças possam considerar seus problemas
e conceitos de forma clara e limpa. Ele recria o di-
álogo que os filósofos têm sobre as questões que
eles consideram significativas sem a erudição com
que eles costumam fazê-lo. Por exemplo, se o pro-
blema é a liberdade, uma das personagens defende
uma postura existencialista; outra, uma postura
Reprodução

materialista; uma terceira, uma postura kantiana;


e assim por diante. A pretensão de Lipman é de que

propiciar o encontro entre as crianças e o pensar série de problemas filosóficos. Lipman considera
filosófico, ou seja, ele deve ser firme para que o
diálogo flua entre as crianças, sem tomar partido
que esses problemas – como verdade, bondade,
amizade, beleza, justiça, liberdade, e outros – são os
embora o meio seja a filosofia, a pretensão última de lipman é a
por uma ou outra posição, apenas cuidando que a problemas eternos de filosofia, e eles voltam uma e formação política dos cidadãos, para uma sociedade democrática
investigação siga seu próprio caminho. outra vez, sob uma roupagem diferente, nas nove-
las filosóficas e manuais. A ideia central é que eles fica? A ideia está inspirada em Charles S. Peirce, ou- essas sejam colocadas e discutidas, conectadas à ex-
Investigação filosófica ajudem uma turma a constituir o que para Lipman tro filósofo pragmatista que influenciou fortemente periência de vida dessas crianças, sem que nenhuma
Cada um dos conjuntos de novela e manual é o paradigma central de sua proposta: a comuni- Lipman. Peirce postulava uma comunidade de in- delas seja apresentada como a mais importante ou
tem uma espinha dorsal composta de uma reunião dade de investigação filosófica. vestigação para os cientistas que inspirou Lipman na melhor. Os problemas da filosofia aparecem assim
de habilidades cognitivas que se aplicam a uma O que é uma comunidade de investigação filosó- sua busca de um espaço educacional que fornecesse reconstruídos na sua essência, sem aquele linguajar

142 especial revista educação especial revista educação 143


Matthew Lipman

técnico que os afastaria irremediavelmente do uni- seja, se alguém joga um jogo seguindo as regras do
verso das crianças. beisebol, então está jogando beisebol. Pode jogar
Assim, para Lipman a filosofia, como experiên- bem ou mal, pode perder todas as partidas, mas
cia de pensamento dialógico numa comunidade de está jogando beisebol. Para Lipman, seria o mesmo
investigação, ensina as crianças a pensar, o que, se- caso com a filosofia. Alguém faz filosofia se pratica
gundo ele, significa ajudá-las a passar de um pen- suas regras. Alguns podem praticá-la mais brilhan-
sar simples a um pensar complexo. Isso acontece temente do que outros; os filósofos profissionais
quando elas pensam, a uma só vez, de forma crítica, “treinam” muito e podem ser mais hábeis nesse
criativa e ética. A dimensão crítica do pensar revela jogo do que as crianças – e do que muitos adultos
seu caráter inquisitivo e deliberativo, é o pensar que estrangeiros a esse mundo –, assim como os jo-
busca problematizar o que se pensa; encontrar os gadores profissionais de um esporte jogam muito
fundamentos do pensar e sua consistência e siste- melhor esse esporte do que os amadores. Mas isto

a filosofia, como experiência de pensamento dialógico em uma


comunidade de investigação, ensina à criança um pensar complexo
maticidade. A dimensão criativa expressa o modo não é suficiente para dizer que os jogadores menos
expressivo e inovador do pensar. É aquela que abre destros não estariam jogando o mesmo esporte. As
o pensar a outras formas de pensar, a outras alter- crianças, então, praticam filosofia, embora sejam
nativas, a novos mundos. Por último, a dimensão menos profissionais no modo de fazê-lo do que os
ética leva em consideração o outro no pensar. Ex- acadêmicos. Para Lipman, essas regras estão defini-
plora a dimensão valorativa e afetiva do pensa- das pelos parâmetros lógicos e metacognitivos que
mento. Se a dimensão crítica busca formar crianças orientam o diálogo; joga filosofia quem pensa de
que pensem por si mesmas e a dimensão criativa maneira complexa, de forma crítica, criativa e ética.
para além do mesmo já pensado, a dimensão ética A analogia pode ser questionada, e o ponto
pretende formar crianças que pensem com outras. central parece ser que, se de qualquer esporte é
Dessa forma, desenvolvendo um pensar que possível achar as regras oficiais e claras, não é tão

Reprodução
Lipman chama de alta ordem ou complexo, a fi- fácil determinar quais são as regras da filosofia.
losofia contribui de maneira decisiva na educação A própria concepção de filosofia de Lipman está
das crianças e cumpre sua missão de dar sentido e longe de ser a única possível. Em qualquer caso, As crianças,
significação a sua experiência educativa. Só pessoas será sempre preciso determinar certo conceito de fância, mas também para infantilizar a para Lipman, alguns países, ela é mais exercitada por
praticam
que pensam bem podem julgar de forma adequada filosofia para depois defender, questionar ou pro- filosofia. O movimento foi crescendo e filosofia, setores ligados a instituições religiosas e
e tomar as decisões que a realidade exige delas. As- blematizar se as crianças estão dentro dele ou não. incorporando pessoas e grupos que, em embora dogmáticas; em outros, é política oficial
sim, a prática da investigação coletiva gera os hábi- De modo interessante, isso pode também ser feito alguns casos, tentavam reproduzir fiel- sejam menos de Estado; em outros contextos, é objeto
profissionais
tos sociais necessários para que esse pensamento com as crianças e, nesse caso, o resultado poderia mente a proposta de Lipman; em outros, de pesquisa em instituições acadêmicas;
no modo de
se projete da vida individual à vida social e comum. ser já um testemunho da capacidade das crianças a adequavam a sua realidade; ou, ainda, a fazê-lo do que em outros sistemas, ganha força na rede
para se moverem muito bem no pensamento fi- mudavam significativamente, aceitando os acadêmicos privada de ensino; por último, ela tam-
O valor e o legado de uma criação losófico e, às vezes, até mais confortavelmente do apenas a ideia inicial de Lipman, mas a bém tem praticantes em alguns movi-
As crianças podem fazer filosofia? Para Lipman, que muitos adultos. reformulando completamente. Enfim, mentos de educação popular e informal.
a resposta a esta pergunta é afirmativa e ele en- Lipman foi um criador. Revolucionou as rela- acontece com filosofia para crianças o que acontece Num país tão complexo e diverso como o Brasil,
contra numerosas razões práticas e teóricas para ções entre filosofia, educação e infância: ele as tirou com qualquer movimento nascente: linhas, estra- acontece um pouco disso tudo.
ela. Porém, muitos filósofos e educadores contes- da modorra. Sua obra teve impactos significativos tégias, interpretações diferentes. Por se tratar de Nas últimas páginas da sua autobiografia, Mat-
tam essa capacidade. Respondendo a eles, Lipman em crianças e educadores do mundo inteiro. Seu uma proposta de implantação prática e por Lipman thew Lipman pergunta se sua empreitada teve
tem proposto uma analogia entre a filosofia e um legado ainda está nascendo. Como toda criação, não ter exigido qualquer tipo de registro filosó- êxito. Ele não tem dúvida em responder afirma-
esporte (beisebol). Como saber se alguém está ou ela escapou do criador. Assim, mais do que um fico ou ideológico para participar da tentativa, ela é tivamente. Sustenta que, uma vez instalada nos
não jogando beisebol? Lipman responde: em fun- programa de filosofia para crianças, ele iniciou um atualmente praticada de maneiras muito diversas, currículos do Ensino Fundamental, a filosofia ali
ção de respeito mostrado pelas regras do jogo. Ou movimento não apenas para filosofar com a in- tanto que não é fácil encontrar sua unidade. Em permanecerá por muito tempo; porque, embora

144 especial revista educação especial revista educação 145


Matthew Lipman

possam surgir outros programas de filosofia dife- LORIERI, Marcos. “Investigação Filosófica com Crianças e Jovens.
Perspectivas a partir da Experiência Brasileira com a Proposta de Matthew
rentes do seu, outras perspectivas filosóficas além Lipman”. In: KOHAN, Walter Omar, LEAL, Bernardina (orgs.). Filosofia para
Crianças em Debate. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 230-243.
da sua, ele considera que nenhuma disciplina pode
fazer o que a filosofia faz: ajudar as crianças a pen-
O programa filosofia para crianças
sar de forma crítica, criativa e cuidadosa sobre si
de Matthew Lipman e colaboradores
mesmas e o mundo que as rodeia. Este é o legado LIPMAN, Matthew. Kio and Guss. 2ª ed. Montclair: IAPC, 1986. Tradução de
Sylvia Judith Hamburger Mandel: Issao e Guga. São Paulo: Centro Brasileiro
de Matthew Lipman e da sua fundação, sólida e de Filosofia para Crianças, 1987. 2 v. Novela filosófica para crianças de 7 e 8
anos. Edição revisada e editada em um volume em 1995.
aberta ao mesmo tempo, e que excede amplamente
______. Pixie. Montclair: IAPC, 1981. Tradução de Sylvia Judith Hamburger
a forma específica que ele desenhou e pela qual Mandel: Pimpa. São Paulo: Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças, 1985.
2 v. Novela filosófica para crianças de 9 e 10 anos. Edição revisada e editada
lutou incansavelmente para ver a filosofia praticada em um volume em 1996.

nas escolas. ______. Harry Stottlemeier´s Discovery. 2ª Ed. Montclair: IAPC, 1982. Tradução
de Ana Luiza Fernandes Falcone e Maria Elice de B. Prestes: A Descoberta de
Como uma criança, Matthew Lipman pertur- Ari dos Telles. São Paulo: Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças, 1987. 2
v. Novela filosófica para alunos de 11 e 12 anos. Edição revisada e editada em
bou o mundo da filosofia e da educação. Fez o que um volume em 1997.

não se esperava dele. Foi um infante no mundo tão ______. Lisa. 2ª ed.. Montclair: IAPC, 1983. Tradução de Ana Luiza Fernandes
Falcone. Luísa. São Paulo: Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças, 1995.
adulto da academia filosófica. Por sobre todas as Novela filosófica para alunos de 13 e 14 anos.

coisas, foi um educador sério e comprometido que, ______. Suki. Montclair: IAPC, 1978. Novela filosófica para alunos de 15 a 17
anos.
para além de seu programa, educou na filosofia ______. Mark. Montclair: IAPC, 1980. Novela filosófica para alunos de 15 a
17 anos.
e na infância, abriu um mundo nelas para os que
______. Elfie. Montclair: IAPC, 1988. Novela filosófica para alunos de 6 e 7 anos.
tivemos a alegria de conhecê-lo. Seguramente, de- ______. Nous. Montclair: IAPC, 1996. Novela filosófica para alunos de 9 e 10
pois que ele se meteu em nossas vidas, já nada foi anos.

da mesma maneira. O mundo se tornou, em certo ______. Deciding What to Do. Montclair: IAPC, 1996. Manual do Professor que
acompanha a novela filosófica Nous.
sentido, mais infantil e, em outro sentido, mais filo- ______; SHARP, Ann Margaret. Wondering at the World. Montclair: IAPC,
1986. Tradução de Ana Luiza Fernandes Falcone e Sylvia Judith Hamburger
sófico. E tudo por tentar levar adiante um contras- Mandel: Maravilhando-se com o mundo. São Paulo: Centro Brasileiro de
Filosofia para Crianças, 1987. 2 v. Manual do professor que orienta o trabalho
senso. Como uma criança irreverente... com Issao e Guga. Edição revisada e editada em um volume em 1995.
______; SHARP, Ann Margaret. Looking for Meaning. 2ª ed. Montclair: IAPC,

Referências bibliográficas
1984. Tradução: Ana Luiza Fernandes Falcone e Sylvia Judith Hamburger
Mandel: Em busca do significado. São Paulo: Centro Brasileiro de Filosofia para
Crianças, 1985. 2 v. Manual do professor que orienta o trabalho com Pimpa.
KENNEDY, David. “Ann Sharp’s Contribution: A Conversation with Mat- Edição revista e editada em um volume em 1996.
thew Lipman”. Childhood & Philosophy, vol. 6, n. 11, 2010. Disponível em
<www.periodicos.proped.pro.br/index.php?journal=childhood>. Acesso em ______; Ethical Inquiry. 2ª ed. Montclair: IAPC, 1983. Tradução: Investigação
02/09/2012. Ética. São Paulo, Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças, 1995. Manual
KOHAN, Walter Omar. Filosofia para Crianças. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, do professor que orienta o trabalho com a novela Luisa.
2010. ______. Getting our Thoughts Together. Montclair: IAPC, 1988. Instructional
______. Infância. Entre Educação e Filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. Manual that accompanies Elfie.

______; OLARIETA, Fabiana Beatriz (orgs.) A Escola Pública Aposta no Pensamento. ______. Writing: how and why. Montclair: IAPC, 1980. Instructional Manual
Belo Horizonte: Autêntica, 2012. that accompanies Suki.

LIPMAN, Matthew. A Life Teaching Thinking, Montclair: IAPC, 2008. ______. Social Inquiry. 2ª ed. Montclair: IAPC, 1986, Instructional Manual that

______. “Alguns Pressupostos Educacionais de Filosofia Para Crianças ”. In: accompanies Mark.
KOHAN, Walter Omar, LEAL, Bernardina (orgs.). Filosofia para Crianças em ______; SHARP, Ann Margaret, OSCANYAN, Fred. Philosophical Inquiry. 2ª ed.
Debate. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 19-20. Montclair: IAPC, 1984. Tradução de Ana Cecília da Silva Telles Americano e
______. “Alguns Pressupostos Filosóficos de Filosofia para Crianças”. In: KOHAN, AnaLuiza Fernandes Falcone: A investigação Filosófica. 2ª Ed. São Paulo: Centro
Walter Omar, LEAL, Bernardina (orgs.). Filosofia para Crianças em Debate. Brasileiro de Filosofia para Crianças, 1988. 2 v. Manual do professor que
Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 73-76. orienta o trabalho com a novela A descoberta de Ari dos Telles. Edição revisada e
editada em um volume em 1998.
______. “Philosophical Discussions Plans and Exercices”. Analytic Teaching, LORIERI, Marcos Antônio e BARREIRA, Neyde. Pensando em Voz Alta.
La Crosse, v. 16, n.2, p. 3-14, 1996. [Tradução no Brasil: “ Planos de discussão São Paulo: Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças, 1990. Programa
e exercícios filosóficos”. In: KOHAN, Walter Omar, WAKSMAN, Vera (orgs.) de Português e Ética Ambiental para Quarta e Quinta Séries do Ensino
Filosofia para Crianças na Prática Escolar. Petrópolis: Vozes, 1999c, p. 113-141. Fundamental. Caderno de texto e exercícios adaptado do material de
______. The Contributions of Philosophy to Deliberative Democracy. In: EVANS, Pimpa (M. Lipman) e manual de orientação para o professor enfocando o
David, KUÇURADI. Teaching Philosophy on the Eve of the Twenty-First Century. desenvolvimento de habilidades de raciocínio em português e ciências
Ancara, Turquía: International Federation of Philosophical Societes, 1998, p. REED, Ronald. Rebeca. Forth Worth: Analytic Teaching Press, 1989.
6-29. Tradução de Ana Luiza Fernandes Falcone, Sylvia Judith Hamburger
Mandel e Melanie Wyffels. São Paulo: Centro Brasileiro de Filosofia para
______. Natasha. Vygotskiyan Dialogues. Nova York: Teachers Colleage Press, 1996
Crianças, 1996. História filosófica para crianças de 5 e 6 anos. Manual do
[Tradução no Brasil: Natasha. Diálogos Vygotskyanos. Porto Alegre: Artes Médicas,
professor de Isabel Cristina Santana.
1997].
SHARP, Ann Margaret. The Doll Hospital. Upper Montclair: IAPC, 1997.
______. Thinking in Education. Cambridge: University Press, 1991 [Tradução no
Brasil: Pensar na Educação. Petrópolis: Vozes, 1995].
______. “Response to Professor Kitchener”. Metaphilosophy, v. 24, n. 4, p. 432-433,
1990.
Walter Omar Kohan é professor titular de filosofia
da educação na Universidade do Estado do Rio
______. Philosophy Goes to School. Filadélfia: Temple University Press, 1988
[Tradução no Brasil: A Filosofia Vai à Escola. São Paulo: Summus, 1990].
de Janeiro (Uerj), e investigador do CNPq e da
Faperj. Escreveu Sócrates e a Educação (Autêntica,
______; SHARP, Ann Margaret, OSCANYAN, Fred. S. Philosophy in the Classroom.
2ª ed. Philadelphia: Temple University Press, 1980 [Tradução no Brasil: A Filosofia
2011) e Filosofía y Educación. La Infancia y la Política
na Sala de Aula. São Paulo: Nova Alexandria, 1994]. como Pretextos (Fundarte, 2011), entre outros livros.

146 especial revista educação

Você também pode gostar