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lucien se ve

e a teoria da personalidade
volume Э

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HORIZONTE UNIVERSITÁRIO

A FORMAÇAO DA CIÊNCIA ECONÓMICA


Henri Denis
PROBLEMAS d e h i s t ó r i a d a f i l o s o f i a
Théodore Oizerman
e n sa io so b r e o d esen v o lv im en to da concepção m o n ista
DA HISTÓRIA
PleKhanov
HISTÓRIA GERAL DO SOCIALISMO, I vol.
Jacques Droz e outros
HISTÓRIA GERAL DO SOCIALISMO, II vol.
Jacques Droz e outros
HISTÓRIA GERAL DO SOCIALISMO, Ш vol.
Jacques Droz e outros
POSIÇÕES .
Louis Althusser
• DO PORTUGAL DE ANTIGO REGIME AO PORTUGAL OITOCENTISTA
Albert Stfberí
. EPISTEMOLOGIA GENÉTICA E EQUILIBRAÇAO
В. inhelder, В. Garda e J. Vonéche
DA INDÚSTRIA PORTUGUESA — DO ANTIGO REGIME АО CAPITA­
LISMO — ANTOLOGIA
Joel Serrão e Gabriela Martins
O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO
Alexis Leontiev
DOUTRINADORES COOPERATIVISTAS PORTUGUESES
Fernando Ferreira da Costa
MARXISMO E TEORIA DA PERSONALIDADE. I vol.
Luden Séve
MARXISMO E TEORIA DA PERSONALIDADE. II VOl.
Luden Séve
MARXISMO E TEORIA DA PERSONALIDADE, III vol.
Luden Séve
Lucien Sève

MARXISMO E TEORIA
DA PER SO N ALID A DE
VOLUME Ш

LIVROS HORIZONTE
i- r °

Titulo original: Matxisme et Théorie de la Personnalité


Copyright by: Editions Sociales
Tradução: Emanuel Lourenço Godinho
Capo: Soares Rocha

Reservados todos os direitos de publicaç&o


total ou parcial para a língua portuguesa por
LI VROS H ORI Z ONT E , LDA.
Rua das Chagas, 17*1.° Dt.o — 1200 LISBOA
que reeerva a propriedade sobre esta tradução
CAPITULO IV

HIPÓTESES
PARA UM A TEORIA CIENTÍFICA
DA PERSONALIDADE
i
с

Г
(
(
(
(
«О tempo é о campo do desenvolvimento humano» (
К. Marx: Salaire, prix et profit. £d. Sociales,
1968, p. 107. (
«Será que tun dia o homem náo conseguirá, efectuar (
no tempo progressos análogos aos que tem efectuado
no espaço?» (
P. Janet: De Vangoisse à Vextase, Alean, 1926,
t. I, p. 233. C
Os capítulos precedentes propõem uma solução para о c
problema da delimitação do campo das ciencias na área do (
psiquismo humano, e» em particular, uma definição da psi­
cologia da personalidade, que nos surge como sendo urna (
ciencia essencialmente a constituir em novas bases. A o reflec- (
tirmos sobre estas questões a partir do materialismo dialéctico
e histórico, e da articulação que a ciencia do individuo (.
humano toma necessariamente com este, não pensamos ter- (
-nos entregue, em princípio, a uma intervenção arbitrária de
não especialista no terreno de uma ciência específica, mas sim (.
a uma investigação legítima de ordem antropológica e episte­ (
mológica geral, e, logo, de filosofia, na acepção marxista do
termo, investigação essa cujos resultados são única e simples­ (
mente propostos ao psicólogo a fim de que ele julgue sobre c
a sua eventual congruência com os resultados e os obstáculos
por si mesmo encontrados no seu terreno. Mas, neste último (.
capítulo, propomo-nos ir mais além: adiantar, a título de
hipóteses indicativas, um certo número de ideias relativas a v
conceitos fundamentais e a leis genéricas de desenvolvimento ¡V
que poderiam dar forma a esta ciência da personalidade
surgida mais atrás. Ora, basta anunciar um tal projecto para v
icvar a que surja uma questão prévia de imperiosa impor­ t4
tância: tal não equivalerá, para um filósofo marxista, a colo­
car-se em flagrante contradição com aquilo que foi lembrado
precisamente aqui, no capítulo i, no respeitante à absoluta
ilegitimidade da intervenção externa nos assuntos de uma
ciência particular?
I

OBSERVAÇÕES PRÉVIAS

E, com efeito, uma tal intervenção de não especialista no


terreno de uma ciência psicológica parece impossível por uma
razão decisiva, e que é a de que. toda a psicologia científica
se fundamenta na observação e na experimentação objectives,
ou, caso contrário, deixa de o ser. Nenhum ensinamento
.metodológico surge como sendo de tal forma evidente ao
longo de toda a sua história: a psicologia não entrou na via
da ciência senão a partir do instante, e na medida em que
rompeu com o velho dogma do espiritualismo metafísico, para
o qual só existia psicologia na intimidade do quarto e na
introspecção do filósofo. Aí reside, portanto, no que lhe res­
peita, ã regra fundamental: o axioma de objectiviaade. E foi
precisamente com o fim de atingir, numa medida sempre
crescente, essa objectividade que a psicologia foi, a pouco e
pouco, elaborando todo o seu vasto conjunto instrumental de
métodos especializados. Nestas condições, de que forma é
que um filósofo enquanto tal, não especialista por definição,
poderia-pretender fornecer fosse que tipo de contributo fosse
de concreto para a psicologia — a menos que ele continue
ainda a imaginar que a observação artesanal de si mesmo, ou
do vizinho, tenha hipóteses de apresentar, hoje em dia, algum
interesse para a ciência? É por isso que, se um filósofo anun­
cia que se propõe tratar concretamente do conteúdo de uma
ciência psicológica, isso desperta, compreensivelmente, a mais
aberta hostilidade, ou compaixão, por parte do psicólogo.
Que o filósofo possa, em certa medida, responder a questões
— nomeadamente epistemológicas— que lhe são colocadas
pelo psicólogo é algo que geralmente lhe é acordado. Mas
precisamente é o psicólogo, e só ele, quem possui competência
para colocar as questões concretas da psicologia, tal como

i
H ipóteses p a ra u m a teo ria cien tífica d a personalidade 419

apenas o astrónomo possui qualificações para colocar as


questões concretas da astronomia: onde é que o filósofo iría
buscar a ciência particular? Ele é, quanto muito, um homem
que pode dar alguns conselhos. Mas que não tenha a desgra­
çada lembrança de se consultar a si mesmo: iluminado e cegó,
instrutivo mas impotente, não pode ter permissão para se
debruçar, por sua conta, sobre os problemas que só concer­
nem ao psicólogo. E se tenta, apesar de tudo, pô-lo em prática,
não estará ai a prova de que é incapaz, por profissão, de se
ater ao axioma da objectividade, e volta invencivelmente a
cair no biscate introspectivo e na construção especulativa?
A dificuldade parece ser, efectivamente, irremediável. Mas
uma situação totalmente original se nos depara, presente­
mente: se o que ficou dito atrás se encontra bem fundamen­
tado, uma ciência psicológica nova, não, é certo, pelo lugar
que ocupa, mas sim pela delimitação que instaura e pelo tipo
de conteúdo que visa, encontra-se projectada a partir de uma
reflexão que podemos, caso se queira, qualificar de interdis-
cipíinar, na ocorrência, a partir da incidência do materialismo
histórico sobre a antropologia e a concepção do indivíduo;
esta nova ciência, por definição, ainda não constituiu, em si
mesma, a sua própria especialização. É essencial reparar em
que esta ciência psicológica projectada não se fundamenta,
de forma alguma, no voltar a pôr em causa o axioma de
objectividade, mas sim, bem pelo contrário, no seu aprofunda­
mento. O que significa, com efeito, em profundidade, a reivin­
dicação de uma psicologia auténticamente objectiva? Tal é
a questão que colocámos, e que nos levou, por meio de um
exame crítico dos próprios princípios de toda a concepção
do homem, a responder que ela não significa apenas a exigên­
cia de objectividade do ponto de vista do método, o que é
importante, mas também do ponto de vista do conteúdo, o
que é ainda mais vital. Tal como o afirma Marx: «A ’concep­
ção’ não pode ser concreta, quando o objecto da concepção
é ’abstracto’.» ’ Ora, exigir que a psicologia da personalidade
seja concreta, objectiva quanto ao seu conteúdo, equivale a
exigir que vá até ao âmago da essência do seu objecto, e, por­
tanto, que tome por objecto não só este ou aquele aspecto
do psiquismo, mas sim todo o conjunto da estrutura e do

i K, Marx: Critique de la philosophie de L’Etat de Hegel, Costes,


t. IV. p. 166,
420 Marxismo e teo ria d a personalidade

desenvolvimento d a s personalidades humanas reais, que se pro-


ponha como tarefa ajudarmos a auto-reconhecermo-nos teori*
camente e a intervir praticamente no crescimento dessas per­
sonalidades. não nestas ou naquelas condições artificiais ou
sob este ou aquele ângulo particular, mas sim no âmbito da
própria vida e de uma forma global. A este respeito, a velha
psicologia filosófica faltava claramente ao axioma de objecti-
vidade, visto que teorizava no seio do abstracto e longe de
toda a prática. Mas, inversamente, as teorizações psicológicas
actuais sobre a personalidade efectuam-se, com demasiada
frequência — Politzer demonstrara-o claramente e as suas
observações estão longe de terem alcançado a caducidade —,
a partir de práticas em si mesmas bem «teóricas» e pouco con­
cretas, na medida em que não apreendem a actividade pessoal
senão de uma forma fragmentária, marginal, quando não
artificial, porque deixam de lado as condições da vida real,
a começar pelo trabalho social. E é por isso que, nesta ma­
téria, nos parece que o enunciado primeiro do axioma de
objectividade poderia ser: a psicologia da personalidade é a
ciência da vida real dos indivíduos, ou, caso contrário, perma­
nece mergulhada na ilusão ideológica.
Ora, se é, de facto, assim, o material fundamental de toda
a investigação científica objectiva sobre a personalidade
humana é a biografia; e a relação prática de base com seme­
lhante material é o conjunto das investigações ordenadas
visando a modificação do crescimento «espontâneo» — espon­
tâneo, relativamente a essas intervenções— das personali­
dades humanas. Vemos, de imediato, que nem o conjunto
imponente do que constitui até aqui a psicologia experimental,
nem mesmo, na acepção patológica da expressão, a psicologia
clínica, constituem as únicas vias de acesso possíveis a um
saber psicológico verdadeiramente objectivo sobre a perso­
nalidade, e talvez mesmo nem sequer sejam a& mais fecundas.
Porque é que, por exemplo, não obstante as justas sugestões
de Politzer a este respeito, deveríamos persistir em encarar
como tratando-se de uma quantidade negligenciável o corpo
de observações e de experiências contido na expressão «ter
psicologia», e não ver nele senão aforismos dos mais super­
ficiais, até mesmo dos mais ideológicos, que, efectivamente,
aí abundam, mas sem levarmos em linha de conta que no seio
desta «psicologia popular», a_par, e adentro, do produto pobre,
frequentemente mistificado, de um velho empirismo rudi-
H ipóteses p a ra u m a te o ria cie n tífic a d a personalidade 421

mentar e de crenças parasitárias, há igualmente, há sobretudo


o capitai de conhecimentos concretos mal elaborados teorica­
mente, bem entendido, mas praticamente comprovados, que
os grandes movimentos sociais progressistas, e o movimento
operário em particular, acumularam ao longo das gerações
sobre o desenvolvimento dos indivíduos na vida real? O que
um partido operário experimentado, por exemplo, nos pode
sugerir a respeito de certos aspectos do crescimento das
personalidades humanas seria, por princípio, menos interes­
sante do que o que o último dos psicossociólogos nos pode
revelar sobre a dinâmica dos pequenos grupos, ou mesmo,
talvez, o primeiro dos psicanalistas sobre a estrutura do
inconsciente? Eis o que merece, em todo o caso, ser analisado.
Pela minha parte, considero que o grau de objectividade real
alcançado por certos princípios psicológicos da política dos
quadros do Partido Comunista Francês (relativos, por exem­
plo, à sintomatologia do mau quadro) vale largamente o de
inúmeros resultados da caracterología ou da psicologia social,
por mais recheados que estes possam estar de cientificidade
externa, até mesmo de formalização matemática.
Contudo, não nos deixemos equivocar. Quando dou um
tal exemplo de uma via de acesso possível à área em que se
situa o objecto autêntico da ciência da personalidade — exem­
plo típico pela sua extrema oposição às vias de acesso hoje
em dia usadas, em geral, pelos psicólogos, mas também
exemplo-limite — não está nos meus propósitos, por meio seja
lá de que tipo de demagogia obreirista for, sugerir que um
praticismo. militante desempenha aqui o papel de uma investi­
gação científica. N a realidade, tráta-se, na mesma diminuta
medida, de opor, em nome do concreto, uma qualquer psi­
cologia do pobre às teorias actualmente dominantes, como se
trata, no respeitante à economia política marxista, por exem­
plo sobre a questão dos salários e dos lucros, de opor a prática
espontânea-do movimento operário à ciência económica bur­
guesa. A psicologia dá personalidade não poderia passar à
maturidade senão a um certo nível de conceptualização, nunca
inferior mas sim superior àquele que, no seu conjunto, ela
alcançou até hoje. Não se trata, portanto, aqui, de forma
alguma, de uma apologia do primitivismo científico: talvez já
se tenham apercebido, no decurso desta exposição, que se tra­
taria precisamente do contrário. Da mesma forma, repito-o,
não se trata, na minha opinião, de um excesso de formalização
423 Marxismo e teo ria da personalidade

que sofre essencialmente a psicologia da personalidade, raas


sim de um defeito de conteúdo: se o seu discurso nos parece,
com tanta frequência, formal, tal advém de que nos fala pouco,
muito pouco mesmo, dos homens reais. Aquilo de que se trata,
por consequência, é o facto de que, sem neglicenciar nenhum
dos instrumentos de trabalho, nenhum das procedimentos de
uma ciência instruída, nunca se deve perder de vista, em tal
domínio, nem que seja no fulcro da mais avançada especiali­
zação, que o fim último é o de obter o domínio teórico e prático
das condições psicológicas de um pleno desenvolvimento das
personalidades. E se não perdermos tal facto de vista, aperce-
bemo-nos de que de .toda a hipotética psicologia da persona­
lidade, a partir do instante em que surge como pensável, a
que existe hoje em dia ainda não pôs em prática senão uma
diminuta parcela, que não é, de forma alguma, seguro que
seja a mais interessante, nem mesmo a melhor, ao abrigo de
contestações'fundamentais. E persuadimo-nos de que a explo­
ração de novas vias de acesso, não referenciadas nos documen­
tos oficiais, e menos ainda providas de especialistas, em
direcção à matéria-prima de uma ciência assim concebida e
definida* não só é teoricamente lícita, como também repre­
senta, sem dúvida alguma, a condição determinante da sua
passagem a maturidade.
A este respeito, a exploração da experiência psicológica
acumulada pelo movimento operário não passa de um exem­
plo do que poderia ser feito. Há, na realidade, muitos outros,
de que se impõe um recenseamento sistemático, a começar
pela enorme diversidade das práticas pedagógicas, no sentido
mais geral de semelhante adjectivo. Deste ponto de vista, não
será, efectivamente, flagrante e desarrazoado o contraste entre
os mui raros cumprimentos de chapéu dados, de longe em
longe, à obra considerável de um Makarenko, que permanece
entre nós quase totalmente por utilizar, do ponto de vista da
teoria fundamental da personalidade, e a inverosímil proli­
feração bibliográfica de segunda ou de terceira, ordem sobre
a psicanálise, que, a este nível, acaba por se transformar,
essencialmente, no álibi medíocre de uma fuga perante as
questões psicológicas decisivas do trabalho e das relações
sociais? Mais genericamente, podemos pensar que em toda
a parte em que haja uma prática social regular, e, com muito
mais razão, quando esta se encontra já capitalizada em cultura
empírica, visando de uma forma ou de outra a melhoria do
crescimento espontâneo das personalidades, há uma mina à
H ipóteses p ara u m a teo ria cie n tific a d a p erso n alid a d e 423

nossa inteira disposição de matéria-prima psicológica — e


em todo o lado em que haja peritos conscientes desta prática
há psicologia da generalidade em potência. Assim, acabamos
por verificar —*facto de uma importância primordial relativa­
mente à objecção de incompetência que nos ocupa aqui —
que o caso da psicologia do indivíduo humano normal, con­
siderado no conjunto da sua estrutura e do seu desenvolvi­
mento psíquicos, é, à partida, totalmente diferente daquele de
que se ocupa -a maioria das ciências, inclusive as ciências do
homem. Em astronomia ou em microfísica, e mesmo, no res­
peitante ao essencial, em economia política ou em linguística,
o não especialista não dispõe de nenhuma via de acesso real
à matéria da ciência, ou então não acede senão às jazidas
mais superficiais, cujos filões se encontram, de há longo
tempo, esgotados, e não apresentam qualquer interesse para
o avanço da ciência. Em psicologia da personalidade, no sen­
tido em que foi .definida mais atrás e no estado embrionário
em que ainda se encontra, não só o acesso à matéria-prima
actualmente útil não é privilégio do especialista, pelo menos
tal como é concebido e trabalha em geral hoje em dia, como
também eu coloco precisamente a questão de saber se todo
o segredo da obstinação desta ciência quanto à teoria funda­
mental não reside no facto de que, em larga medida, ela deli­
mita falsamente o seu objecto e se extravia do caminho
para a jazida central, por razões que se relacionam, em
última análise, com as condições de classe e com as ideo­
logias mistificadoras no seio das quais ela se edificou, e de
que mesmo um marxista não se consegue emancipar sem
algumas dificuldades.
A consequência deste estado de coisas, e o ponto a que
eu pretendia chegar, é o de que, se o não especialista de psi­
cologia — nem que seja, por exemplo, um filósofo — é, evi­
dentemente, incapaz de intervir concretamente no trabalho
psicológico tal como este constituiu, até aqui, a sua especia­
lização, ele não pode ver-se impedido, n a base do reexame
radical dos fundamentos da psicologia da personalidade, de
pôr em causa os limites dessa própria especialização, nem de
sugerir a constituição de novos tipos de pesquisa, votados,
bem entendido, a novas, .especializações, mas abertos à par­
tida a quem se encontre em posição de, por meio deles, avan­
çar de uma forma mais ou menos frutuosa. O próprio Piaget,
num livro integralmente consagrado à crítica das pretensões
424 Marxismo e teoria da personalidade

ilegítimas de filósofos como Bergso: , Sartre ou Merleau-


-Ponty a tratarem, enquanto tal, de problemas psicológicos,
não levanta dificuldades em concordar 'em que certos filó­
sofos tiveram, por vezes, «iniciativas felizes antecipando a
possibilidade de ciências ainda por constituir, facto este de
que é testemunho a história das ideias ulteriores aos seus
trabalhos» 2: é muito precisamente sob esta rubrica que pode
ser arquivada a ambição do presente ensaio. Por outras pala­
vras, um não especialista, no sentido actual deste termo
— por exemplo, um filósofo m arxista— na medida em que
alia um conhecimento da articulação do materialismo histórico
com a teoria do indivíduo e uma densa participação em
diversas práticas pedagógicas, não é, a priori, incapaz de
ter acesso à matéria de que pretende tratar, se se ocupa
da personalidade humana. Naturalmente, e nem que seja
no melhor dos casos, o valor experimental das hipóteses
assim adiantado permanece sempre por demonstrar na prá­
tica, e, sublinho este ponto essencial, é sempre aos homens
da profissão que compete, em. última instância, determiná-lo
de acordo com procedimentos científicos comprovados, quer
estes existam já, quer tenham de ser formulados. Da mesma
forma, este último capítulo não se propõe, rigorosamente,
senão submeter ao exame crítico de quem pretenda interes­
sar-se por ele um conjunto coerente de hipóteses relativas à
dimensão geral do conteúdo que poderia ter a ciência da
personalidade definida mais a trá s3. O carácter das páginas
que seguem é, portanto, bastante diferente do dos capí­
tulos precedentes, situados unicamente ao nível da articula­
ção entre materialismo histórico e psicologia, e operando,
por meio de uma construção crítica, a partir dos resultados
científicos obtidos na base do primeiro. Pelo contrário, as
hipóteses que seguem, se bem que logicamente ligadas às
teses gerais do último capítulo, delas não são, de forma alguma,
deduzidas — daí poderíamos, certamente, deduzir outras— ,
mas sim constituídas, ao mesmo tempo, através de conjectu-
ras teóricas e de práticas semiempíricas. O juízo que sobre

2 J. Piaget: Sâgesse et illitsions de la philosophic, p. 159.


л Em Apprenttssage et activités psyohologiques, J.-F. Le Ny escreve:
«A experimentação elementar nfto é, de forma alguma, no caso do
homem, o melhor melo para a busca da prova. O estabelecimento de
construções hipotéticas, que são, em seguida, verificadas nas suas con­
clusões, pode revelar-se preferível.» (P. 300.)
H ipóteses p ara u m a teo ria c ien tifica d a personalidade 425

elas vier a ser formulólo não poderia, simultaneamente, ser


alargado às ópticas de conjunto sobre a psicologia da perso­
nalidade, com as quais se encontram articuladas, sem que
constituam o seu corolário tínico e necessário.
O que me incita a dar aqui conta de tal é, portanto, pre­
cisamente o contrário da velha tentação filosófica, justa­
mente, criticada pelo psicólogo experimentalista; tratar-se-ia
efectivamente, bem pelo contrário, de fornecer ao psicó­
logo um meio complementar para a elaboração do seu tra­
balho crítico relativamente às hipóteses gerais adiantadas nos
capítulos precedentes. Porque seria demasiado cómodo defen­
der, por razões de princípio e unicamente ao nível das con­
siderações teóricas, que uma delimitação alterada pode for­
necer à ciência da personalidade a ocasião para sair dos seus
actuais impasses, para, logo de seguida, se esquivar pruden­
temente a toda a indicação que não seja de ordem progra­
mática, até mesmo inapreensível, sobre o que poderia ser o
conteúdo concreto desta ciência. Censurou-se frequentemente
a Politzer o facto de ter anunciado uma psicologia do «drama»
sem mesmo lhe ter dado um início de execução. A objecção,
mesmo se inúmeras respostas lhe podem ser dadas, tal como
o demonstraremos mais adiante, parece-me formalmente
aceitável. Equivale, portanto, pura e simplesmente, ao assu­
mir das suas responsabilidades, o submeter, a título de hipó­
teses indicativas, algumas ideias que permitam ajudar seja
quem for a concretizar o sentido das proposições teóricas
que são adiantadas e a elaborar a seu respeito um juízo, na
base de um mais claro conhecimento de causa. Quanto ao
resto,; o perigo que ameaça actualmente a psicologia da per­
sonalidade não parece ser* como já o dissemos, o pulular de
hipóteses irresponsáveis, mas sim a raridade de novas ópticas
que possam suscitar, em tal circunstância, um desenvolvi­
mento da pesquisa. Sem dúvida que já disse o suficiente para
prevenir certos mal-entendidos de leitura, e, talvez, para
poder restringir, nas páginas que seguem, excessivas pre­
cauções de escrita.

23
II
HIPÓTESES

1. Conceitos de base . A ctos, capacidades . O problema


DAS NECESSIDADES

Cada personalidade humana desenvolvida apresenta-se-


■-nos, de imediato, como sendo uma enorme acumulação de
actos, dos mais variados, ao longo do tempo. Logo, a partir
deste enunciado elementar, encontramos um conceito que
parece ser o único à altura de desempenhar o papel de con­
ceito primeiro no âmbito da teoria científica da persona­
lidade: o conceito de acto. Este conceito distingue-se profun­
damente de todos aqueles que são vulgarmente usados para
preencher o seu local próprio, tais como comportamento,
conduta, função, etc., cuja legitimidade, no domínio das
ciências do psiquismo, não está em causa, mas cujo emprego,
no seio da psicologia da personalidade, é quanto basta para
barrar, desde o primeiro instante, o caminho para a com­
preensão do problema de fundo destas questões. Com efeito,
falar, por exemplo, de condutas equivale, realmente, ao estu­
dar o psiquismo do homem como sendo uma actividade, mas
unicamente como sendo uma actividade concreta do sujeito,
abstracção feita do seu resultado objectivo para a sociedade,
e, através desta mediação decisiva, para o próprio indivíduo,
noutros termos, como sendo uma actividade que não realiza
socialmente nada -— ou, pelo menos, nada que interesse para
o seu conhecimento. Sem dúvida que uma tal abstracção é
legítima na medida em que se trate de estudar a conduta
enquanto actividade psíquica geral, porque, deste ponto de
vista, que a aprendizagem, ou a percepção visual da profun­
didade, ou a localização da lembrança no tempo se efectúe
concretamente no seio de um trabalho assalariado ou de uma
Hipóteses p ara u m a teo ria c ie n tífic a d a personalidade 437

actividad© d e .iazer Hão tem, praticamente, nenhuma impor­


tância. Mas quando se transpõe, sem lhe dedicarmos os
devidos cuidados, esta abstracção para o terreno da ciência
da personalidade • comete-se um erro teórico redibitório, já
analisado mais acima, no sentido em que se eliminam a priori,
sem em tal pensarmos, todas as relações sociais entre as con­
dutas, isto é, todas as estruturas reais da personalidade
desenvolvida, que advêm precisamente do facto de que estas
condutas são, simultaneamente, portadoras de uma activi­
dade social determinada, e determinante para o indivíduo.
Falar, logo à partida, de condutas equivale, portanto, a só
reter um segmento delimitado do circuito total dos actos —
circuito total este que ultrapassa muito largamente, as fron­
teiras da individualidade orgânica e psíquica, no sentido
usual do termo, e que efectúa um retomo a si mesmo através
da imensa rede de mediações das relações sociais. Ora, são
estas mediações, rejeitadas como indiferentes e não perti­
nentes por uma psicologia da conduta, que, na nossa opinião,
induzem no indivíduo as necessárias estruturas da sua acti­
vidade, e, dessa forma, da sua personalidade. A personali­
dade não é a origem produtiva de um conjunto de condutas
cujo resultado social seria indiferente, e cujo conhecimento
se encontraria esgotado pelo estudo dos mecanismos da sua
produção. A personalidade é um sistema complexo de actos,
e a especificidade de um acto está em produzir socialmente
algo. Pôr de lado o estudo deste algo, que é precisamente o
instante objectivo da rotação completa do acto, como se os
gestos do trabalho, por exemplo, devessem interessar o psi­
cólogo, mas o salário não é parte integrante dessas cegueiras
ideológicas, de que nos custa a entender, quando delas saímos,
como foi possível a uma. ciência permanecer durante tanto
tempo sua prisioneira.
Partir do conceito de acto, no sentido indicado, equivale,
portanto, a ultrapassar, logo à partida, uma psicologia mera­
mente formal das personalidades — sendo a forma o único
aspecto que, no melhor dos casos, poderia, por exemplo, ser
alcançado por uma caracterología — para nos instalarmos
no terreno ainda passavelmente virgem de uma psicologia
do conteúdo das personalidades, e das formas dialécticamente
ligadas a esse conteúdo, sem desconhecer, por outro lado, o
problema da sua articulação com as formas oriundas de
alhures, tipo nervoso congénito ou actividades infantis.
É levar a que passe para primeiro plano já não a oposição
428 Marxismo e te<v'a da personalidad®

entre aquele que gosta de digerir e aquele que gosta de rumi­


nar, ou entre o rancoroso e o esquecido, ou mesmo entre
esta e aquela compleições que se julga poderem ser-nos apre­
sentadas como fundamentais na báse de ópticas psícanalíti-
cas ou psiquiátricas, mas sim, tendo posto de parte toda e
qualquer tipología em prol de uma topologia, a análise con­
creta das estruturas e da lógica de desenvolvimento que
resultam do conjunto das actividades de ~um individuo, a
começar pelas suas actividades sociais de base, pelo seu tra­
balho. Trata-se, portanto, daquilo a que se pode chamar urna
psicologia concreta. Neste sentido, considerar-se-á talvez que
o conceito de acto não passa senão da retomada do conceito
de drama — que nunca pretendeu significar outra coisa que
não fosse acção concreta — em Politzer4, E é certo que a
proximidades das intenções é grande. Porque é precisamente
disso que se tratava, há já cerca de quarenta anos, na Revue
de psychologie concréte, quando Politzer aí escrevia: «É in­
contestável que haja no drama- matéria para uma ciência ori­
ginal. As das ciencias da Natureza que se ocupam do homem
estudam, com efeito, aquilo que resta uma vez despojado o
homem do seu carácter dramático. Mas a conexão entre todos
os acontecimentos propriamente humanos, as etapas da nossa
vida, os òbjectos das nossas intenções, o conjunto das coisas
extremamente específicas que se passam para nós entre a vida
e a morte, constituem um domínio claramente delimitado,
facilmente reconhecível, que não se confunde com o funcio­
namento dos órgãos, e é passível de ser estudado, porque não
há nenhuma razão para supor que esta realidade escape,
.por milagre, a toda a determinação.» 5 «A experiência de que
nos faía a psicologia é, com efeito, totalmente diferente da
experiência dramática. A nossa experiência dramática era a
vida, no sentido humano do termo; os seus personagens eram
homens agindo desta ou daquela maneira, as suas cênas,
mesmo as mais parciais, implicavam sempre o homem, na
sua totalidade. A experiência que nos oferece a psicologia é
constituída por processos que não possuem a forma das nos­
sas acções .quotidianas. [...] À forma como o drama se
encontra delimitado pela multiplicidade das personagens indi-*

* Cf. Critique des fohdements de ta psychologie, P. u. F., 1967,


р. II, n o ta 1.
s Ca crise de la psychologie "contemporaine, p. 38.
H ipóteses p a ra tu n a teo ria cientifi- ¿ da p ersonalidade 429

viduais e dos acontecimentos dramáticos, a psicologia substi­


tuiu as grandes manifestações da natureza espiritual: per-
cepção, memoria, vontade, inteligencia, ao estudo das quais
se consagra em seguida, tal como a física se consagra ao
estudo das grandes manifestações da natureza.» 6 «Afirmamos
que urna psicología que substitui as historias de pessoas por
histórias de coisas; que suprime o homem e, em seu lugar,
erige em actor os processos; que põe de parte a multiplici­
dade dramática dos indivíduos e os substitui pela multiplici­
dade impessoal dos fenómenos é uma psicologia abstractas 7
Esta notável análise crítica, mesmo que certas formula­
ções possam ser passíveis de discussão, conservou até aos
nossos dias toda a sua validade. T al não é, contudo, a opinião
de Louis Althusser, para quem Politzer teria cometido o erro
básico que consiste em desconhecer a necessidade de abs-
tracção em toda a ciência. «De que forma, dizia, segundo ele,
Politzer, pode a psicanálise pretender ser a ciência do con­
creto, que quer e pode ser, se persiste em abstracções que não
passam de um ’concreto’ alienado, no âmbito de uma psico­
logia abstracta e metafísica?» E a isto ele opõe o facto de
que «na verdade, nenhuma ciência pode dispensar a abstrac-
ção, mesmo quando não tem, na sua ’prática’ (que não é,
levemo-lo na devida conta, a prática teórica dessa ciência,
mas sim a prática da sua aplicação concreta) senão de se
haver com essas variações singulares e únicas que são os
’dramas’ individuais» 8. Volta a este assunto em Lire «Le
Capital»: «Politzer é o Feuerbach dos tempos modernos: a
sua Crítica dos Fundamentos da Psicologia é a crítica da psi­
cologia especulativa em nome de uma psicologia concreta. Os
temas de Politzer puderam ser tratados por Sartre como sendo
’filosofemas’: não abandonou a- sua inspiração; quando o
historicismo sartriano altera, a ’totalidade*, as abstracções do
marxismo dogmático numa teoria da subjectividade concreta,
’repete’, assim, noutros locais e a propósito de outros temas,
uma alteração que, de Feuerbach ao jovem Marx e a Po­
litzer, se limita a conservar, sob a aparência da crítica, uma
mesma problemática.» 9 «Os erros geniais da Crítica dos Fun-

e Obra citada, pp. 42-43 .


7 Ibidem, p. 51.
s l . Althusser; «Freud et La can». La Nouvelle Critiaue, n.oa 161-162,
Dezembro de 1964, p. 106.
9 Lire tfLe Capital», II; p. 100, nota 26.
430 M arxism o e teoria da personalidade

damentos da Psicologia, de Politzer, baseiam-se, em grande


parte, na função ideológica do conceito não criticado de
’concreto’: não foi um mero acaso ò facto de, após Politzer
ter tido ocasião de proclamar o advento da ’psicologia con-
creta\ nenhuma obra ter dado seguimento objectivo a esta
proclamação. Toda a virtude do termo ’concreto’ esgota­
va-se, com efeito, no âmbito do seu uso crítico, sem poder
fundamentar o mínimo dos conhecimentos, que não existe
senão adentro da ’abstracção’ dos conceitos. Podíamos já
observá-lo em Feuerbach, que tenta desesperadamente liber­
tar-se da ideologia ao invocar o ’concreto’, isto é, o conceito
ideológico da confusão entre o conhecer e o ser: a ideologia
não pode, evidentemente, ser um meio para nos libertarmos da
ideologia..Encontramos o mesmo equívoco e o mesmo jogo
de palavras em todos os intérpretes de Marx que se referem
às suas obras de juventude, invocando o humanismo ’real’,
o humanismo ’concreto’ ou o humanismo ’positivo’, como
sendo o fundamento teórico do seu pensamento.» 10
Ora, na ocorrência, é a crítica althusseriana de Politzer
que me parece basear-se aqui no equívoco e no jogo de pala­
vras. É, com efeito, perfeitamente evidente que se Politzer
entendia por psicologia concreta uma espécie de «ciência»
imediata do vivido, baseada na rejeição da abstracção dos
conceitos, estaríamos perante um caso-tipo de utopia ideoló­
gica. Mas supor que tal aconteça com Politzer equivale, no
fundo, a supor que entre Politzer e Bergson não há nenhuma
diferença substancial. Que Louis Althusser chegue ao ponto
de o sugerir, nem que seja ao falar de «paradoxal aproxima­
ção» u , fornece a exacta medida da profunda inverosimi-
lhança da sua crítica. Na realidade, não se trata, seja a que
grau for, da abstracção científica de todo o conceito o que
Politzer rejeita, e não pode haver sobre este ponto outro mal-
-entendido que não seja aquele em que mergulha a crítica
althusseriana. Politzer escreve, por exemplo, o mais clara­
mente deste mundo: «A psicologia concreta não representa
um novo romantismo; só é inimiga da abstracção que defi­
nimos, e unicamente dos conceitos mitológicos da psicologia
espiritualista.» 12 É abstracta, num sentido perfeitamente ina-*3

» Obra citada, I, p. 48, nota 18.


u Ibidem, IX. p. 100. notar 36.
i3 La crise de la psychologie contemporaine, p. 106. Sou eu que
sublinho.
i‘ 5teses p a ra u m a te o ria c ie n tífic a d a personalidade 4

ceitável, explica por várias vezes, aquela psicologia que subs­


titui a actividade pessoal por processos impessoais — o indi­
víduo pelo psiquismo— e que pretende explicar o primeiro
através do segundo. O que ele Teclama não é, e admitir o
contrário a despeito dos textos é injuriá-lo, a ideia tola de
uma ciência psicológica sem conceitos teóricos, mas sim uma
delimitação conceptual dos factos psicológicos, efectuada «no
âmbito do conjimto usual dos factos humanos, sem os esca­
motear para lhes substituir uma imagem transposta que imita
a natureza física e explica, em seguida, os factos por meio
de outros factos do mesmo género» ,3. «O objecto da psico­
logia é fornecido pelo conjunto dos factos humanos conside­
rados nas suas relações com o indivíduo humano, isto é, na
medida em que constituem a vida de um homem e a vida dos
homens.» 134 Por outras palavras ainda, o que Politzer reclama
é uma psicologia que seja um a ciência da biografia, do indi­
víduo, da personalidade: onde se encontra a ideologia antro­
pológica num tal projecto?
Tanto maís que Politzer teve o génio de entrever, já em
1928-1929, que esta ciência da personalidade não podia fun-
dar-se na base de uma psicologização, fosse de que tipo fosse,
da essência humana, mas que deveria sim basear-se no mate­
rialismo histórico e na economia política: encontramo-nos
nos antípodas do pretenso feuerbachianismo da psicologia
concreta. Existem, nomeadamente no artigo de Julho de 1929,
flagrantes afirmações a este respeito: «A psicologia de corpo
inteiro não é possível senão inserida no âmbito da economia.
E é por isso que ela pressupõe todos os conhecimentos adqui­
ridos pelo materialismo dialéctico e deve constantemente ir
buscar neles o seu ponto de apoio. É, portanto, efectivamente
o materialismo que representa a verdadeira base ideológica
da psicologia positiva».15 «O próprio determinismo psicoló­
gico, não é um determinismo soberano: não age e não pode
agir senão no âmbito e, por assim dizer, adentro das malhas
da rede do determinismo económico. O seu alcance e os seus
limites são determinados pelo alcance e pelos limites do
próprio indivíduo. A psicologia é importante na medida em
que os acontecimentos forem considerados no seio das suas

13 obra citada, p. 138.


í* Ibidem, p. 114.
is ibidem, p. 116.
432 T xismo е te o ria d a personalidade

relações com o indivíduo, para deixar totalmente de o ser


quando o que estiver em causa forem os próprios factos
humanos. Pode estar em causa uma psicologia do trabalho na
medida em que o trabalho for considerado em estreita rela­
ção com os indivíduos. A partir do instante em que deixar
■de se tratar da inserção dos indivíduos no trabalho, o tra­
balho deixa de ser um problema de ordem psicológica.» 16
«A psicologia não detém, portanto, de maneira nenhuma, o
’segredo’ dos factos humanos, pura e simplesmente porque
esse ’segredo’ não é de ordem psicológica.» 17 «Do ponto de
vista da orientação fundamental da psicologia e da sua res­
pectiva organização, é a significação da economia que é, ver­
dadeiramente, fundamental.» 18 Perante textos tão claramente
Opostos a tudo o que caracteriza o humanismo filosófico, é
impossível, a Politzer o culto especulativo do pseudoconcreto,
a não ser que se leia por meio de lentes deformadoras. De
facto, tais lentes são as do anti-humanismo teórico, para o
qual não poderia haver aí nenhum outro conceito que não
fosse o ideológico, nenhuma outra ciência do indivíduo con­
creto que não fosse a da mistificação. Estas lentes não se limi­
tam a deformar a letra e o espírito das indicações psicológicas
de Politzer, mas também, tal como já vimos, as de todo o
marxismo adulto.
A crítica de Louis Althusser, que conhece mal Politzer,
não deixaria de possuir alguns grãos de verdade caso. fosse
aqui aplicada a Gramsci. É certo que há igualmente em
Gramsci formulações extremamente interessantes do ponto
de vista da teoria da personalidade, e nomeadamente esta,
.frequentemente citada: «O homem é um processo, e mais pre­
cisamente, é o processo dos seus actos» 19— fórmula esta que
parece, de facto, ser directamente inspirada pela de Marx em
A Ideologia Alemã: «O Ser dos homens é o seu processo de
vida real.» 20 Mas esta fórmula não è profunda senão na
medida em que for acompanhada por uma ^consciência clara
das condições que permitem dar-lhe um efectivo desenvolvi­
mento científico. Ora, a este respeito, Gramsci sublinha bem
que o conceito de homem, neste âmbito, não deve ser tomado

1S Obra citada, p. 119.


17 Ibidem, p. 120.
13 Ibidem, p. 121.
is A. Gramsci: CEuvres choisies, Éd. Súdales, 1959, p. 50.
-o Obra citada, p. 60.
H ipóteses p ara u m a *eoria cien tifica d a p erso n alid ad e 433

na vulgar acepção especulativa: «Será o humano um ponto


de partida ou um ponto de chegada enquanto conceito e facto
unitário? Ou então esta tentativa não será mais um resíduo
’teológico’ e ’metafísico’, na medida em que ele for apre­
sentado enquanto ponto de partida ?»21 Ao que responde:
«Que a ’natureza humana’ seja o ’complexo das relações
sociais’ e a resposta mais satisfatória22, porque contém em
si a ideia do fluir futuro: o homem transforma-se, muda
continuamente com a mutação das relações sociais, e porque
nega o ’homem em geral’: de facto, as relações sociais são
expressas por grupos diversos de homens, dos quais cada um
pressupõe a existência dos outro$, cuja unidade é dialéctica
e não formal.» 23 Tal como é visível, Gramsci só retém da
V I Tese sobre Feurbach o aspecto histórico e dialéctico da
concepção da essência humana que nela vem expressa; mas
não parece dar a devida atenção ao aspecto materialista não
menos fundamnetal da exterioridade e da objectividade
sociais da essência humana relativamente aos indivíduos.
O que, na verdade, o leva a rejeitar o falso materialismo de
uma concepção biológica da essência humana em prol de uma
concepção histórica: «A natureza do homem é a ’história’.» 24
Mas tal não é ainda suficiente para distinguir radicalmente a
perspectiva antropológica do materialismo histórico daquela
que encontramos entre os historicistas não materialistas. Na
falta de uma clara afirmação das relações materialistas entre
a história das relações sociais e a história dos indivíduos,
arriscamo-nos a ficar, nesse caso, no seio de uma perigosa
ambiguidade, pelo nível de um humanismo historicizado,
«praxisado», mas não inteiramente liberto das ilusões espe­
culativas, até mesmo idealistas, Extremamente contestável
deste ponto de vista, surge, neste mesmo texto, a afirmação
segundo a qual «é necessário elaborar uma doutrina em que
todas essas relações (sociais) sejam activas e se encontrem
em movimento, estabelecendo com a maior clareza que
o ponto de apoio desta actividadé é a consciência do homem
considerado enquanto indivíduo, que conhece, quer, admira,
cria, na medida em que já conhece, quer, admira, cria, etc., e

2i Obra citada, p. 56.


C2 por detrás das expressões da tradução francesa é-se, bem
entendido, obrigado a reconhecer a VI Tese sobre Feuerbach.
23 Ibidem, p. 65.
2i Ibidem, p. 65.
434 Marxismo e teo ria f a p ersonalidade

se concebe, já não de uma forma isolada, mas sim enriquecida


pelas possibilidades que lhe são oferecidas pelos outros ho­
mens e pela sociedade das coisas de que não pode deixar
de ter um certo conhecimento» 2S26. Vemos claramente que não
se encontra aqui afastado todo o risco de confusão «huma-
. nista», isto é, de deslize para um idealismo historicizado2Ó.
E vemos igualmente melhor, por contraste, de que forma
a posição resolutamente materialista da questão do indivíduo
em Politzer denuncia como claramente falsa a crítica althus-
seriana. É por isso que, quando Louis Althusser escreve que
«não foi um mero. acaso» o facto de após Politzer não ter
havido nenhuma obra que desse seguimento à proclamação
da psicologia concreta, resolve em muito menor medida o
problema quanto o generaliza. É, de facto, verdade que a
psicologia do «drama» permaneceu no estado de mero pro-
jecto e que este género de impotência teórica nunca é um
«acaso». Mas isso não autoriza a que se confunda um pro-
jecto irrealizável, porque teoricamente inconsistente, com um
projecto irrealizado, porque teoricamente em avanço sobre
certas condições da sua realização prática. Ora, não é difícil
vislumbrar quais as condições para a realização prática de
uma psicologia concreta que faltavam a Politzer em 1928-
-1929. O que mais impressiona quando se relê, hoje em dia,
sob esta óptica, a «Crítica dos fundamentos da psicologia»
(1928) e a «Crise da psicologia contemporânea (artigos saídos
em 1929 na Revue de psychologie concrete) é a oposição
entre o vigor com que Politzer afirma* de forma sempre
crescente, o papel fundamental do materialismo e da eco­
nomia política marxistas e a ausência quase total de referências
precisas aos grandes textos marxistas, a partir dos quais pode

25 Obra citada, p. 63. Sou eu que sublinho.


26 Tal como o demonstra claramente S'. Ricci huma passagem da
introdução* que escreveu para a nova eoição dos Textos Escolhidos, de
Gramsci (Éd. Sociales, a sair em 1974) e onde analisa «o estilo»
tão peculiar do materialismo de Gramsci»; «O que ele pretende é. ao
longo de toda a sua obra, que o homem não venha a ser transformado
em objecto, nem pela alienação das relações de produção, nem, da
mesma forma, por uma interpretação, em si mesma alienada e alienante,
do materialismo histórico. O que o passa então a espreitar, e o que
pode, sobretudo, vir a espreitar os seus discípulos, é o erro em que caiu
Feuerbach: o materialismo a ir ficando para trás enquanto o idealismo
avança. Mas, na realidade, todo o esforço de Gramsci tende para a
constituição efectiva do avanço do materialismo, ou, se se preferir, da
sua subida — o materialismo das superstruturas.»
H ipóteses p a ra u m a teo ria cien tífica de p ersonalidade 436

ser pensada a articulação entre teoria do indivíduo e economia


política. Será necessário lembrar que não se trata, com efeito,
de um mero acaso, na medida em que, por exemplo, textos
como os Manuscritos de 1844, A Ideologia Alemã, ou os
Grundrisse, não começaram de facto a ser publicados, pela
primeira vez, senão a partir de 1932? Relativamente à fantás­
tica inovação da crítica e do projecto politzerianos em 1928,
é necessário esforçarmo-nos por tomar consciência do desco­
nhecimento que então reinava em relação àquilo que o mar­
xismo traz à reflexão sobre os fundamentos da psicologia,
e mesmo, em larguíssima medida, do desconhecimento do
marxismo puro e simples, logo, a solidão teórica pungente no
seio da qual esse jovem de 25 anos afrontava um problema de
uma vastidão imensa, que permanece por resolver quarenta
anos mais tarde, no âmbito de condições ideológicas que se
tornaram incomparavelmente mais favoráveis. Aliás, à medida
que Politzer vai tomando conhecimento dos clássicos do mar­
xismo, e toma consciência das condições reais de uma psico­
logia concreta, em particular do desvio que passa pela ciência
das relações sociais, à margem do qual ela se encontrará
votada a permanecer como uma simples utopia, compreende
simultaneamente, e vemo-lo bem no artigo de Julho de 1929
citado mais atrás, que a aquisição de uma sólida formação
marxista económica é a passagem, anterior à busca de uma
inexistente via directa, que permite o acesso à psicologia con­
creta: é precisamente a isso que, retomando a própria investi­
gação de Marx após 1844, se consagra largamente nos anos
seguintes. Mas o retorno à psicologia concreta a partir daí
deixa de poder estar em causa para Politzer, já que um outro
«mero acaso» quis que morresse aos 39 anos, em 1942,
fuzilado pelos soldados hitlerianos. Estes «meros» acasos»,
que não são acasos, não só não provam, portanto, a
inconsistência, do projecto formulado por Politzer em 1928-
-1929, como também sublinham o seu carácter genialmente
antecipador nas condições ideológicas anteriores à guerra.
Quando Politzer escreve em Julho de 1929: «Sabemos muito
bem que nos irão novamente opor, e com maior virulência
ainda, o argumento que já nos opuseram: crie lá então essa
psicologia concreta ou materialista de que fala. Já dissemos,
por várias vezes, que o mal não provém do que respeita às
pesquisas, de que uma boa parte se encontra no bom caminho,
436 Marxismo e teo ria d a personalidade

mas sim do que respeita à teoria onde não encontramos p á ti­


camente em lado nenhum o que lá deveria estar. A situação
é, portanto, tal que consideramos que, de momento, temos
sobretudo necessidade da crítica, cuja ideia arriscaria não de
se perder, mas sim de se tornar obscura, caso, mesmo antes
de ter podido ser claramente expressa, fosse abandonada em
prol de investigações de pormenor, para as quais, contudo,
também chegará a ocasião, e empreendidas no seio do espírito
desta psicologia de que falamos aqui» 27, verificamos de que
modo se encontrava já consciente das condições de desenvol­
vimento futuro da psicologia concreta ou materialista, segundo
a sua significativa equivalência, e de que modo refuta anteci­
padamente a crítica althusseriana, de uma forma que deveria
impedir, segundo parece claro, a sua idêntica reformulação
hoje em dia.
O que Politzer visava, sem dúvida que ainda um pouco às
cegas, tacteando no escuro, com a noção de drama, era, pura
e simplesmente, o que traduz, sob a. sua forma racional mais
simples, o conceito de acto. Por acto entenderemos todo o
comportamento de um indivíduo, seja a que nível for, consi­
derado 'não só. enquanto comportamento, isto é, em relação
com o psiquismo, mas também enquanto actividade concreta,
isto é, em relação com uma biografia; noutros termos,
enquanto produz (eventualmente) um certo número de resul­
tados, não só resultados para o usufruto do próprio indivíduo
e obtidos de uma forma directa, como também resultados
para o usufruto da sociedade, tendo em conta as suas condi­
ções concretas, resultados esses que retornam (eventualmente)
ao indivíduo por intermédio das mediações sociais objectivas
mais ou menos complexas. Os actos são os elementos perti­
nentes — e os únicos pertinentes— da delimitação teórica
da biografia. E conhecer concretamente uma personalidade
consiste, em primeiro lugar, em conhecer o conjunto dos actos
que compõem a sua biografia. Que o .conceito de acto possua
capacidade para desempenhar o papel de conceito de base
no âmbito da teoria da personalidade, tal se torna, de ime­
diato, patente no facto de que fornece directamente acesso a
determinadas contradições fundamentais da personalidade.
Com efeito, precisamente porque a especificidade de um acto,
diferentemente de um comportamento ou de uma conduta.

27 La crise de la psychologic contemporaine, p. 139.


H ipóteses p a ra u m a te o ria cien tífica da personalidade 43*7

consiste em criar algo cujo conhecimento interessa essencial­


mente à sua compreensão, todo o acto é, por um lado, o acto
de um indivíduo, um aspecto da sua biografia, uma expressão
de si; mas, por outro lado, é igualmente o acto de um mundo
social determinado, um aspecto das relações sociais, uma
expressão das condições históricas objectivas. E encontra-se
aí, nesta dualidade intrínseca, a possibilidade formal de um
sem-número de contradições, não só entre o indivíduo, no
sentido meramente biológico, enquanto elemento prévio a
toda a hominização, e a sociedade, mas sim também em
muito maior medida ainda, entre o indivíduo socialmente
desenvolvido e as condições sociáis do seu desenvolvimento,
contradições estas que são o reflexo, no plano psicológico,
das contradições da sociedade consigo mesma. É assim que a
oposição fundamental entre trabjalho concreto e trabalho
abstracto, de que M arx achava constituir, juntamente com a
análise da mais-valia, o que há de=melhor no livro i de O Ca­
pital 2S, não constitui apenas a base das contradições da
economia mercantil e ‘ específicamente do capitalismo, mas
também a base das contradições j das personalidades que se
formam e se desenvolvem no seu ¡seio. Seguir o processo que
leva ao advento deste tipo de contradição é, na minha opinião,
a tarefa primordial da teoria da personalidade.
Mas a oposição entre o acto enquanto momento de uma
biografia e o acto enquanto momento das relações sociais não
esgota as contradições que nele surgem desde o início. Com
efeito, se considerarmos o aspecto individual do acto, o acto
enquanto momento de uma biografia, este surge-nos como
sendo um processo circular, implicando uma série organica­
mente interligada de momentos característicos. À represen­
tação vectorial de uma psicologia dinâmica que não pode
captar verdadeiramente a actividade concreta, a partir do
instante em que admite o ponto de vista do simples compor­
tamento em detrimento do acto, uma teoria científica da per­
sonalidade que se articula com o materialismo histórico
substitui a análise da rotação dos actos. O momento da
concretização objectiva do acto pressupõe, com efeito, imedia­
tamente outros dois: o do resultado ou do produto no seio
do qual o acto se prolonga e desaparece, simultaneamente.

» Carta de Marx a Engels de 24 de Agosto de 1867. Lettres sur «Le


Capital», p. 174.
438 M arxismo e teo ria da* personalidade

e do qual nos ocup^emos mais adiante — e o das condições


subjectivas da sua produção e da sua reprodução, que se
manifestam adentro do próprio acto, por outras palavras, o
das capacidades do indivíduo. «O trabalho não objecíivo»,
escreve Marx na versão primitiva da Contribuição (e que não
se encontra ainda, portanto, materializado), «existindo tem­
poralmente, não pode existir senão sob a forma de capacidade,
de possibilidade, de faculdade, de capacidade de trabalho do
sujeito vivo.» 29 Este conceito de capacidades surge como
sendo o segundo conceito de base da teoria da personalidade.
Se eu retenho aqui a palavra «capacidade» para denotar este
conceito, tal é devido a que, no estado actual do vocabulário
psicológico, esta parece ser, precisamente porque é pouco
usada, a que pode, relativamente, prestar-se a menor número
de mal-entendidos, entre todos aqueles em que possamos pen­
sar. Em particular, o termo «aptidão», de que haveria motivos
para nos servirmos com esse sentido, é, com demasiada fre­
quência, considerado num sentido ao mesmo tempo inatista
è socialmente relativo para poder ser aqui retido. É assim
que Piéron escreve no seu tratado de Psicologia Diferencial:
«Se não usarmos o termo ’aptidão* no sentido preciso que este
deve ter, expomo-nos.a confusões que acarretam discussões
perfeitamente inúteis. Foi o que aconteceu a Pierre Naville,
que não distinguiu claramente a capacidade-potencialidade
actual que condiciona um êxito, a qual pode ser apreciada e
medida directamente, e a disposição natural que se procura
isolar ao dedicarmo-nos ao estudo das capacidades, é a esta
disposição que se adapta o termo ’aptidão’, segundo a sua
origem e o emprego que lhe é dado pelos autores competen­
tes [...]. A aptidão é a condição congénita de uma certa moda­
lidade de eficiência.»30 Apesar de algumas objecções que
possamos pensar em apresentar, considerando que há aqui um
estado de facto o mais adequado é aceitá-lo como tal: o termo
’aptidão’ permanece prisioneiro de um conjunto de acepções
inatistas de que o termo ’capacidade’ se encontra isento; é,
portanto, o segundo que convém, no sentido extremamente
lato e indiferenciado em que se trata de o usar aqui.
Chamo capacidades ao conjunto das «potencialidades
actuais», inatas ou adquiridas, para efectuar seja que acto

w Contribution, p. 250.-
no Л . Piéron: Psychologic differentiellc, P. U.F., 1049, p. 3i.
H ipóteses p ara u m a teoria cien tifica d a personalidade 439

for, e eja qual for o seu grau. Numa tal acepção, o termo
possui, portanto, um campo de aplicação consideravelmente
mais vasto do que no âmbito do seu uso corrente, em que
designa, regra geral, o poder de efectuar determinados actos
de um certo nível de complexidade psíquica, até mesmo de
uma reconhecida utilidade social. No uso que aqui faremos
dele trata-se, pelo contrário, da totalidade dos actos de um
indivíduo, nem que sejam dos mais elementares e dos menos
úteis socialmente. Entre os actos e as capacidades de um
indivíduo vemos, de imediato, que existem inúmeras relações
dialécticas, cuja análise constitui um capítulo essencial da
teoria da personalidade. A capacidade é a condição individual
para a concretização do acto, mas a imensa maioria das capa­
cidades são, em si mesmas, produzidas ou desenvolvidas no
indivíduo por meio de um conjunto de actos que constituem,
por seu turno, a sua própria condição. Estes dois aspectos das
relações dialécticas actos-capacidades não exprimem apenas
o facto da sua pertença a um mesmo ciclo da actividade, em
que surgem a título de instantes; levam igualmente ao encarar
da actividade total do indivíduo como sendo algo que se
desdobra necessariamente em dois sectores fundamentais, em
que ambos mantêm reciprocamente relações estritamente
definidas. Chamo sector I da actividade individual ao con­
junto dos actos que produzem, desenvolvem ou especificam
determinadas capacidades. Chamo sector II ao conjunto dos
actos que, colocando unicamente em acção as capacidades já
existentes, produzem tal ou tal resultado a que o exercício
dessas capacidades permite que cheguemos. É evidente que
esta divisão teórica não pode ser aplicada a uma biografia
concreta, a não ser na medida em que tenham sido previa­
mente resolvidos inúmeros problemas específicos, como, por
exemplo, certos problemas relativos à dupla pertença: nume­
rosas actividades são simultaneamente aprendizagem e exer­
cício de capacidade, e mesmo, num certo sentido, tal é válido
para toda a actividade, visto que para além da oposição entre
aquilo que há para aprender e aquilo que já se sabe é neces­
sário saber aprender e aprender a saber. Mas as dificuldades
concretas que podem surgir quando se trata dc classificar uma
determinada actividade no sector i ou no sector и não consti­
tuem uma objecção maior a essa distinção fundamental dos
sectores do que as dificuldades em determinar a pertença de
classe de um pequeno camponês que é igualmente um assa-
440 ‘ Marxismo e teo ria d a personalidad©

lariado agrícola, ou de um nr ... bro das profissões liberais


que se pode tornar, parcialmente, num assalariado, constituem
uma objecção contra a distinção fundamental das classes
sociais.
O que importa, em primeiro lugar, no âmbito da complexa
dialéctica dos actos e das capacidades, para quem se coloca
do ponto de vista das condições de desenvolvimento geral dos
indivíduos, são, evidentemente, os processos de desenvolvi­
mento multiforme das capacidades. Se é certo que «a função
progressiva mais importante da sociedade (é) a acumula­
ção)) 31, o desenvolvimento das forças produtivas, da mesma
forma — não no sentido de uma simples comparação, mas
sim por meio de uma relação justa-estrutural— , a junção
progressiva mais importante da personalidade é o desenvolvi-
mento das capacidades. De uma certa forma, podemos mesmo,
do estrito ponto de vista da teoria marxista, comparar as
capacidades de um indivíduo ao capital fixo de uma determi­
nada formação económica. É o que Marx sugere em páginas
extremamente importantes dos Grundrisse. Após ter demons­
trado que a diferença entre capital e capital em circulação,
por outras palavras, entre instalações, utensílios e máquinas,
por um lado, matérias-primas, combustíveis e salários, por
outro, «provém unicamente da participação da tecnologia
no acto de produção» 32 e corresponde «à necessidade, maior
o menor, de renovar frequentemente um determinado capi­
tal» 33, compara a diversidade dos ritmos de renovação destes
dois tipos de capital àquilo que se pode observar num corpo
vivo: «O organismo rejeita sob uma determinada forma o que
renova sob outra. O capital fixo pode comparar-se ao esque­
leto que não se renova ao mesmo tempo que os músculos e o
sangue. Existem assim, no organismo, diversos graus respei­
tantes à velocidade do consumo (autoconsumo), e logo, da
reprodução.» 34 «No corpo humano, tal cómo no capital, as
diversas partes não se trocam, aquando da reprodução, em
idênticos espaços de tempo; o sangue renova-se mais rapida­
mente do que os músculos, e os músculos do que os ossos,
que podemos comparar ao capital fixo.» 35 E, mais adiante.

P. Engels, Ánti-Duhring, p. 351.


*í Condements, II, p. 152.
•a Ibidem, p. 154.
s** Ibidevi, p. 174.
ibidem, p. 184.
H ipóteses p a ra tim a teo ria cien tifica d a pereonalldade 441

alargando a comp ição à individualidade psíquica, após ter


demonstrado que a economia do tempo de trabalho torna
possível o desenvolvimento das capacidades humanas, isto é,
o ((desenvolvimento de uma didposição individual e de uma
torça produtiva», acrescenta: ((Economizar tempo de trabalho
equivale a aumentar o tempo liyre, isto é, o tempo que serve
para o desenvolvimento integral; do indivíduo, facto este que
age posteriormente sobre a força de trabalho e a aumenta.
Do ponto de- vista da produção imediata, o tempo economi­
zado pode ser considerado como servindo para a produção
do capital fixo, um capital fixo feito homem.» 36 Vemos sur­
gir aqui, para retomar, num sentido bastante diferente, um
termo sobre o qual Bachelard sonhara ilusões, a possibilidade
de uma ritmo-análise materialista da personalidade. Vemos,
por exemplo, de que modo, para além das estruturas inertes,
e estranhas ao conteúdo da actividade real, que, entre outras,
visara as concepções tradicionais do carácter, se tom a possível
abordar científicamente o movimento de um fundo fixo da
personalidade activa, imediatamente articulável com os ritmos,
os progressos e as crises da biografia, submetido aos riscos
da depreciação social, às exigências temporalmente diversi­
ficadas da renovação, mas igualmente susceptível de uma
reprodução alargada; em resumo, um aspecto fundamental
da lógica concreta dos processos de vida individual torna-se
claro. Tratar-se-á em particular de estudar de perto os proble­
mas de proporcionalidade entre o sector i e o sector и da
actividade — todo o aumento das capacidades (sector i)
exigindo modificações definidas da actividade imediata (sec­
tor и), tanto no respeitante à difusão dos tempos de aprendi­
zagem como ao investimento das novas capacidades nos
correspondentes usos de actividade— , noutros termos, de
elaborar a teoria da reprodução simples e da reprodução alar­
gada da personalidade.
^Mas ao atingirmos este ponto da análisè depara-se-nos,
inevitavelmente, o problema do motor da reprodução,
simples ou alargada, da actividade pessoal, isto é, para come­
çar, o problema das necessidades. Logo desde o primeiro
capítulo que lembrámos porque é que o conceito de necessi­
dade, se bem que seja, sem dúvida alguma, um conceito

30 Obra citada, pp. 229-230.


20
442 Marxismo e te o ria da personalidade

científ; ,■ importante, não pode pretender desempenhar, por


si mesmo, o papel de conceito de base no seio da teoria da
personalidade desenvolvida. E, contudo, haveria mais do que
uma razão para pensarmos diferentemente, a tal respeito.
Com efeito, em primeiro lugar, as necessidades, na sua forma
biológica primária, hão são. tanto no caso do homem como
no do animal, o ponto de partida real da actividade? Dificil­
mente é visível de que forma se pode evitar apresentar, como
ponto de partida das actividades psicológicas, _a satisfação das
necessidades objectivas do organismo. Em segundo lugar, se
é incontestável que no caso do homem as necessidades adqui­
rem formas e conteúdos cada vez mais socializados, e, por
consequência, cada vez menos primários relativamente à acti­
vidade individual, de que, neste sentido, não constituem,
portanto, a base mas sim antes, em muito maior medida, o
produto, o seu carácter de derivação não impede que, do
ponto de vista mais limitado de cada áctividade concreta,
surjam ainda como sendo pontos de partida relativos: não é
verdade que toda a conduta corresponde a determinadas
necessidades, nem que seja a necessidades que, em si mesmas,
não podem ser explicadas senão a partir de condutas anterio­
res? Em suma, sendo pontos de partida absolutos no seu
aspecto biológico inicial, as necessidades conservariam através
das complexas interacções da individualidade desenvolvida
o papel relativo de motores. Em terceiro lugar, mesmo se
recusarmos os argumentos precedentes em nome de uma prio­
ridade fundamental da actividade sobre a necessidade, não
somos, de facto, levados, tal como o demonstra o exemplo
de certos investigadores marxistas, a defender que, no caso do
homem, a actividade, o trabalho, constituem precisamente a
primeira necessidade — não é verdade que Marx escrevia que.
no seio da sociedade comunista, o trabalho será para o
homem já não só um meio de sobrevivência como também
a ((primeira necessidade vital» 37— de forma que a própria
contestação da prioridade da necessidade nos leva de volta,
por meio de um desvio, à sua reafirm ação3a? É, portanto.

37 К Marx: Critique du programme de Gotha. Êd. Sociales, 1072, p. 32.


з* Cf., por exemplo, Laszlo Garai: «Les problèmes des besolns speci-
íiquem ent humains». Recherches Internationales, n.° 61 {consagrado
à psicologia), 1986.' O autor, no âmbito de tuna perspectiva marxista,
procura estabelecer que, no caso do homem, a actividade de trabalho
é «a necessidade fundamental e específica».
H ipóteses p ara u m a teo ria c ien tifica d a perso n alid ad e 443

impossível inventariar os conceitos de base da teoria d? perso­


nalidade sem procurarmos esclarecer o problema di neces­
sidades.
Ao primeiro argumento, segundo o qual as necessidades
objectivas do organismo, consideradas na sua forma primária,
se encontram no início de toda a actividade psicológica, nada
há a objectar — a não ser que, em todo o desenvolvimento
real, no decurso do qual, por consequência, surgem reali­
dades qualitativamente novas, aquilo que desempenhava à
partida o papel primordial, o papel de base, já não é justa­
mente aquilo que continua a desempenhar esse papel nas
fases superiores, já que a especificidade das transformações
essenciais consiste, nomeadamente, na deslocação das contra­
dições principais, ou seja, o motor do desenvolvimento. Não
o ver equivaleria a permanecer tributário de uma concepção
demasiado simplista do desenvolvimento, identificado com
o fluir de uma essência abstracta num tempo uniforme, tal
como o vemos, com frequência, na concepção de «pro­
gresso» 39 do século x v iii ou na concepção de «evolução» do
século xix. Isso não quer dizer que o conjunto das activi­
dades humanas, mesmo as mais complexas, não se baseie,
num certo sentido, na necessidade permanente de satisfazer
as necessidades orgânicas elementares, tal como se verifica,
por exemplo, sempre que alguns homens são levados de volta,
fruto das circunstâncias, a condições de vida mais ou menos
«naturais»: o primado das necessidades orgânicas, sob a sua
forma mais imediata, toma-se então vigorosamente patente
à atenção, não, devemos sublinhá-lo, a título de «ressurgên-
cia» de uma imaginária «natureza humana» que permane­
cesse letárgicamente adormecida sob a socialidade, mas sim
como uma espécie de emersão, a título excepcional, das con­
dições minimais de possibilidade de vida ou de sobrevivência
humanas. Mas é precisamente capital não confundir a impe­
riosa necessidade ressentida pela actividade humana, nem que
seja. ao seu nível de maior complexidade, de dar satisfação
a estas condições minimais, e a base explicativa real desta
actividade complexa, considerada em si mesma; porque a
forma como as necessidades primárias intervêm na persona-

69 cf. K. Marx: Contribution, p. 173: «De uma forma geral, não


convém considerar a Ideia de progresso sob a sua forma abstracta
habitual.»
444 Marxismo e teo ria d a personalidade

Hdade desenvolvida мп si mesma, igualmente, o menos pri­


mária possível, e se á partida podem desempenhar o papel
de base, tal sucede precisamente porque a hominização
social ainda não deu lugar a todos os seus efeitos. A este
respeito, nada é mais discutível científicamente do que a
tentação de abordar os problemas específicos da personali­
dade humana a partir dos «modelos» estabelecidos no terreno
da psicologia animal, sob o pretexto de que no domínio da
ciência do psiquismo os comportamentos _humanos podem
efectivamente, ser esclarecidos pelo estudo dos comportamen­
tos animais. A uma psicologia que se sinta inclinada a seme­
lhante tipo de extrapolações temos o direito de exigir que
reflieta com a maior atenção no facto evidente de que, se
existe uma ciência do psiquismo animal, não existe, em con­
trapartida, matéria para uma ciência da personalidade ani-
. mal — o que mascara de modo altamente nocivo a falsa sim­
plicidade .do termo psicologia animal. Caso não se aperceba
das implicações capitais desta dissemetria intrínseca entre
psicologia humana e «psicologia» animal, a psicologia expe­
rimental do comportamento, que considera o modelo animal
do primado das necessidades orgânicas sobre a estrutura da
actividade total como sendo uma primeira tentativa válida
de abordagem da personalidade humana, sem nisso ver
nenhum tipo de logro, recria artificialmente as condições de
aplicação ao homem desse modelo animal, efectuando uma
abstracção da actividade social real, e, deste modo, o círculo
da ilusão volta a fechar-se sobre si mésmo. Torna-se aqui
patente o carácter insubstituível de uma crítica teórica
externa, a qual, partindo dos princípios essenciais de uma
antropologia científica, articulada com o materialismo histó­
rico, pode revelar os efeitos desastrosos da confusão entre
condições de possibilidade e essência real, entre p o n to . de
partida e base concreta do todo desenvolvido.
E isso leva-nos directamente à discussão do segundo argu­
mento. Com efeito, que as necessidades específicamente
humanas sejam algo de totalmente diferente das necessidades
orgânicas imediatas será um facto que torne impossível defen­
der que, no âmbito do ciclo perpétuo das actividades e das
necessidades, o instante da necessidade conserva, num sen­
tido relativo, o papel de instante primeiro que se recusa con­
ceder, num sentido absoluto, à necessidade orgânica primária?
Ê certo que, se considerarmos como já existente a incessante
repetição cíclica das actividades de satisfação das necessida-
H ipóteses p ara u m a teo ria c ien tifica da perso n alid ad e 445
. (
des desenvolvidas e a constante ressurgência das necessida­
des que advêm, em parte, dessas mesmas actividades, torna-se
claro que cada instante pode ser considerado como sendo (
o ponto de partida relativo do que se lhe segue, e, a este res­
peito, o esquema necessidade-actividade-necessidade, N-A-N, '
não é menos legítimo do que o esquema inverso actividade- f
-necessidade-actividade, A-N-A, ambos se imbricando conti­
nuamente um no outro. Considerado neste sentido, o pro- (
blema de saber se as necessidades são, relativamente falando, ^
elementos primeiros ou não, isto é, de saber se um ponto de
uma circunferência é o seu «começo», revela-se, no fundo, (
destituído de significado. O único problema real está em com- f
preender de que modo o ciclo das actividades e das necessi­
dades se tom ou naquilo que é no iseio de uma personalidade (
desenvolvida, sendo a própria forina como as necessidades
nela se manifestam um aspecto do ciclo considerado no seu
conjunto. Ora, deste ponto de vista, trata-se de algo há longo (
tempo estabelecido o facto de o carácter das formas e das
normas das necessidades, encaradas a este nível, ser profun- ^
damente social. Mas esta ideia estabelecida é ainda extrema- (
mente insuficiente: relativamente a necessidade orgânica pri­
mária, a necessidade humana desenvolvida não se caracte- (
riza unicamente por uma socialização secundária, mas sim ¿
também por uma alteração geral dos seus caracteres primiti­
vos, por uma inversão de essência. A hominização social não (.
se traduz por meio de simples iempdelações ou adições a um ^
modelo de necessidade essencialmjente por transformar, mas
sim através da produção de uma estrutura de motivação radi- \
cálmente nova. Com demasiada frequência, limitamo-nos a (
sublinhar a extrema variedade e variabilidade socio-histórica
das necessidades humanas: tal corresponde ao ponto de vista v
geral de um naturalismo psicológico unicamente historicizado.
Na realidade, ainda não é aí que reside o mais importante.
O mais importante consiste em que, se a necessidade orgâ- i
nica elementar é necessitate, interna e homeoestática, a
necessidade humana desenvolvida caracteriza-se, pelo con­
trário, em maior ou menor medida, pela sua própria margem v
de tolerância no respeitante a uma insatisfação prolongada,
pela sua excentricidade posicionai e a sua reprodução alar- 4
gada sem nenhum tipo de limitação intrínseca. \
A margem de tolerância para com a insatisfação mani­
festa-se, por exemplo, nos comportamentos clássicos de
renúncia, mesmo durante toda uma vida, em dar satisfação
446 Marxismo e te o ria d a personalidade

a necessidades não obstante persistentes e, por v ^ s , essen­


ciais. A excentricidade posicionai exprime-se, nomeadamente,
na aptidão para tomar a cargo, nem que seja em detrimento
das suas próprias necessidades, e, .contudo, de forma extre­
mamente necessitante, as necessidades de outrem, quer este
seja um indivíduo ou um grupo social. Sem dúvida que é
possível, num tal caso, levar a prevalecer a opinião de que,
se um homem age ein função de necessidades que lhe são
objetivam ente externas, tal é devido ao facto de que as inte­
rioriza ao ponto de acabar por lhes ressentir a necessidade
pessoal, ou, por outras palavras, que, mesmo neste caso, a
necessidade conserva um enraizamento interno, o que é per­
feitamente incontestável. Mas, a menos que se jogue com as
palavras, somos, efectivamente, obrigados a convir em que
entre uma necessidade originariamente interna e uma neces­
sidade cujo carácter interno não é compreensível senão
enquanto resultado da interiorização de exigências cuja essên­
cia é externa, existe uma diferença qualitativa. É assim que
o conjunto dos esforços em que consiste a vida de um mili­
tante permaneceria incompreensível se nela não víssemos
senão um conjunto de sacrifícios, desconhecendo o facto de
que corresponde, em inúmeros aspectos, a uma necessidade
pessoal, e frequentemente das mais profundas; mas tal equi­
valeria a compreendê-la em muito menor medida ainda
quanto isso seria reduzi-la, dessa forma, a uma espécie de
vasto cálculo de interesses perfeitamente consciente. Na rea­
lidade, os esforços de uma vida militante real baseiam-se,
precisamente, na tomada de consciência do facto de que a
satisfação geral de necessidades pessoais passa pela exe­
cução prática de um certo número de transformações sociais,
execução prática essa cuja lógica objectiva subordina a si
mesma, de uma forma mais ou menos total, a limitada satis­
fação imediata das necessidades pessoais consideradas isola­
damente. A necessidade pessoal de militar não corresponde,
portanto, em maior medida, ao dar satisfação a uma simples
necessidade interna, do que o sacrifício de si corresponde a
uma simples exigência social externa, sendo sim, até um
certo ponto, a ultrapassagem da oposição entre necessidade
interna e exigência social externa, na base não de uma renún­
cia à primeira, mas sim da tomada de consciência da excen­
tricidade posicionai essencial da sua base, o que modifica
profundamente toda a actividade. A necessidade pessoal de
militar, cuja importância teórica é enorme para a psicologia
H ipóteses p ara u m a teo ria cien tifica d a perso n alid ad e 447

da personalidade, não passa, no fv '.o, senão da essência


geral concreta de toda a necessidade específicamente humana,
imbricando-se directamente, sob a forma de uma necessidade
particular, no âmbito e a par das outras necessidades parti­
culares. E é por isso que a vida militante, nas suas formas
mais sãs, surge como sendo o integral desenvolvimento de
si, prefiguração parcial da ultrapassagem genérica, no seio
da sociedade sem classes num estádio superior, das contradi­
ções que subentendem a personalidade no seio da sociedade
classista40. Quanto à reprodução alargada das necessidades,
esta manifesta-se de uma forma tão flagrante na extraordiná­
ria diversificação histórica das motivações da actividade
humana e do seu ilimitado refinamento, por exemplo, no
domínio das condições da fruição artística, que todo o desen­
volvimento a esse respeito seria aqui supérfluo.
Não será evidente que estes caracteres intrinsecamente
novos das necessidades específicamente humanas são total­
mente inexplicáveis a partir da noção primitiva de necessida­
des, considerada em si mesma? Consideremos, por exemplo,
o primeiro destes caracteres, a tolerância à insatisfação. Que
as necessidades, consideradas enquanto estímulos internos,
não dêem, por si sós, conta da passagem ao acto, mas que seja
igualmente necessário examinar aS suas relações com as con­
dições do meio no seio das quais este acto se cumpre e com
os resultados que pode vir aí a alcançar, por outras palavras,
com um conjunto de estímulos externos, que a complexidade
histórica destas relações entre estímulos internos e externos
confira às necessidades, mesmo às necessidades orgânicas
mais elementares e mesmo entre os animais, um carácter não
mecanicamente necessitante, uma aptidão para o reforço, a
inibição, a modulação, e que tudo isso seja, com muito mais
razão, válido para as necessidades humanas socializadas, eis
o que a psicologia da motivação já sabe há longo tempo.
Más para compreender a forma é a função das necessidades

w Cf. L’idéologie allemande, sobre a ultrapassagem da contradição


entre egoísmo e entrega, pp. 277-280, 460-461, 474.475, 481-482. Cí.
Igualmente, sobre o sentido profundo : da vida de mUVt&ncia entre os
proletários revolucionários, Ufanuscrtís de 1844, pp. 107-108, La situation
de la classe laborieuse en Angleterre, 28-29. 161-U>2, 172-173, 228, 267-268.
278, 281, 336-337, 369, Correspondance entre Marx et Engels, t. I, 324.
La Sainte Famille, 46-48, Vidéologie allemande, 96, 263, 320, 356, Travail
salarié et capital, 83-85, Fondements, t. í, 235-237, etc.
448 M arxismo e' teoria da perso n alid ad e

no .seio ud personalidade humana desenvolvida é necessário


ir ainda, de forma radical, muito mais- longe. Porque, no
caso do indivíduo humano, se não cometermos o erro prévio
de reduzir a inserção dos seus actos num sistema definido de
relações sociais à . simples concretização de condutos, no
âmbito de um meio ambiente complexo, o conjunto dos resul­
tados que são chamados a intervir na modulação da função
instigadora das necessidades já não é unicamente natural mas
também social, tal como o lembrámos mais atrás, por exem­
plo, a respeito da análise das relações entre trabalho e salário.
Noutros termos, as relações entre necessidades e resultados
da actividade, em vez de reflectirem, pura e simplesmente, as
leis do psiquismo, por exemplo, as da aprendizagem, encon­
tram-se essencialmente mediatizadas pelas leis da formação
social em que esta actividade se desenvolve, e, por conse-
quência, pela estrutura de conjunto da própria personalidade. .
Para precisar este ponto capital, chamemos produto psico*
cológico ao conjunto dos resultados de qualquer natureza,
aòs quais acaba por chegar um acto ou um grupo de actos.
Uma análise esquemática da composição deste produto no
seio de uma sociedade capitalista leva a que se tom e claro
que, l.V um acto pressupõe um certo dispêndio fisiológico e o
investimento de um certo tempo psicológico, e, a este título,
ele próprio produz directamente ou reproduz as correspon­
dentes necessidades; mas que, 2.°, fornece eventualmente
também a uma ou a várias necessidades preexistentes, de
uma forma mais ou menos total, uma satisfação directa por
intermédio da sua natureza ou do seu resultado de acto con­
creto; para mais, 3.°, na medida em que é igualmente um
acto abstracto, enquanto dispêndio de força de trabalho no
seio de uma actividade social assalariada, é para o indivíduo
um meio para a obtenção de um rendimento que, por seu
turno, mas de uma forma meramente mediata, permite a
satisfação directa de certas necessidades; 4Л sendo necessa­
riamente, por outro lado, o exercício de uma capacidade e
eventualmente uma fonte de progresso ou de especificação
desta capacidade, o acto é, ao mesmo tempo, gerador de um
produto no sector i da actividade; chamo progresso psico­
lógico a todo o aumento, assim criado, do fundo fixo das
capacidades. Ao que é necessário acrescentar que um acto
possui ainda um conjunto de funções e de efeitos superstru-
turais, cuja análise seria aqui prematura, mas cuja importân-
Hipóteses p a ra u m a te o ria cien tífica da p ersonalidade 449

cia pode ser determinante, e que convém, portanto, evitar


esquecer.
Vemos, de imediato, que, se certos pontos deste produto,
nomeadamente os pontos 1 e 2, se situam no terreno dos
resultados psíquicos directos da actividade e podem, por con­
sequência, ser regidos por certas leis psíquicas em que o pri­
mado da necessidade conserva ища determinada significação,
outros, pelo contrário, e singularmente o ponto 3, situam-se
no terreno daquilo a que chamámos mais atrás as relações
sociais entre as condutas, isto é, relações cujo produto para
o indivíduo já não possui um qarácter psíquico directo e
escapa à determinação pelo aspecto concreto da actividade,
logo, igualmente da necessidade correspondente; o salário,
por exemplo, não depende do trabalho concreto efectuado
pelo indivíduo, nem das necessidades concretas, fruto das
quais ele o efectúa. Apreendemos aqui, em toda a sua ver­
dade e energia, a alteração da relação entre necessidade e
produto, engendrada por relações ¡sociais em que a própria
actividade se desdobrarem actividade concreta e actividade
abstracta. Nesta base compreende-se que a estrutura do pro­
duto psicológico, quando se nos depara uma actividade
social real, não seja só relativa às necessidades e ao acto
concretos, mas também às condições sociais objectivas e,
simultaneamente, à estrutura de qonjunto da personalidade
— composição das capacidades, lugar da actividade abstracta,
configuração das superstruturas, etc. —, a qual, por seu
turno, através da mediação do produto, determina toda a
estrutura e o desenvolvimento das necessidades. O que ficou
dito atrás ё já suficiente para tornar evidente que a tolerân­
cia excepcional para com a insatisfação, que marca as neces­
sidades humanas desenvolvidas, nãcí pode ser reduzida a uma
complicação (mesmo que tivéssemos de a classificar de «ex­
trema»)' do modelo animal da necessidade por meio da socia­
lização das suas formas e das suas normas. Trata-se, na rea­
lidade, de uma verdadeira inversão de essência. O produto,
com os seus aspectos sociais abstractos, e determinados, pre­
cisamente, afora do indivíduo, desempenha um papel deci­
sivo na actividade pessoal, parque 0 que incita à acção não
é a necessidade em si mesma e considerada à parte, mas
sim as proporções e condições no seio das quais a actividade
correspondente se encontra em estàdo de a satisfazer, por
outras palavras, a relação entre os possíveis resultados do
450 Marxismo e teo ria d a personalidade

acto e as necessidades a satisfazer, no sentido desenvolvido


destas noções, em resumo, a relação entre produto e neces­
sidade. Formulo a hipótese de que a estrutura especifica-
p
mente humana desta relação —, variável ao mais alto grau,
N
de um acto a outro e de um indivíduo a outro, e, contudo,
profundamente característica de uma personalidade, fornece
o elemento central de uma teoria científica da motivação
articulada com o conjunto de uma concepção materialista
histórica do indivíduo concreto. Esta relação não é, aliás,
de forma alguma, uma simples construção teórica, mas sim
um processo biográfico constante, porque um acto não passa
senão de uma mediação prática entre uma necessidade e um
produto, e a avaliação intuitiva da — , no seu contexto,
surge como sendo um dos regulamentos mais simples e mais
universais da actividade, a respeito. do qual voltaremos a
falar. Tudo isto permite compFeender porque é que a tenta­
tiva para edificar uma teoria séria das formas superiores da
motivação humana antes de terem sido esclarecidos os pro­
blemas fundamentais da estrutura de conjunto da personali­
dade não tem qualquer hipótese de chegar a bom termo.
O apego inquebrantável, e, contudo, indefensável, a um pri­
mado da necessidade simples, por exemplo, no caso de Lin­
ton, quando não pode explicar a adopção de modelos cul­
turais por um indivíduo de outra forma que não seja através
de uma pretensa «necessidade de resposta afectiva», não
passa, num certo sentido, senão do reflexo epistemológico
da incapacidade para basear a análise na concepção da per­
sonalidade total, que subordina a si os seus elementos, isto
é, da incapacidade para compreender realmente a excentrici­
dade posicionai objectiva da essência humana e a estrutura
das motivações que de tal facto advêm.
Chegamos ao mesmo resultado se analisarmos um outro
carácter específico da necessidade humana desenvolvida: a
sua extraordinária aptidão para a reprodução alargada. Nas
concepções inais clássicas, que chegaram até aos nossos dias,
da necessidade e da motivação tudo se baseia no esquema
homeoestático: à tensão da necessidade ou do desejo corres­
ponde a actividade cujo resultado é a redução da tensão e,
por consequência, o retorno a um novo equilíbrio, isto é, ao
Hipóteses p a ra u m a teo ria cien tifica da personalidade 451

repouso. Nestas condições, é todo o desenvolvimento da acti­


vidade e o progresso da personalidade que se verifica ser
teoricamente inconcebível, a menos que se invente uma «neces­
sidade de auto-ultrapassagem» específica do «homem» — o
homem do humanismo especulativo— cuja tensão não seria
reduzida senão pelo progresso, o que equivale ao ocultar do
carácter de irresolução do problema, ao envolvê-lo no voca­
bulário da própria concepção que impede a sua resolução.
Ora uma reflexão não apriorística sobre a biografia mostra,
pelo contrário, de imediato, o carácter primordial do desen­
volvimento, de uma forma que, por intermédio de uma alte­
ração em si mesma coerente com todas as outras, se torna
claro ser o facto, não obstante frequente, da estagnação o que
exige maiores e mais longas explicações. O problema con­
siste, portanto, em compreender, directamente a partir da
actividade humana desenvolvida, e não substancializando
uma solução imaginária numa «necessidade» ou numa «moti­
vação» específicas, a lógica da reprodução simples e da repro­
dução alargada, não só. dos actos, mas também das próprias
necessidades. Ora, sobre este ponto, podemos basear-nos em
análises extraordinariamente penetrantes de Marx relativas
a uma realidade, cuja importância na vida humana real é
flagrante, mas pela qual a psicologia da personalidade exis­
tente não tem, até aqui, demonstrado qualquer tipo de preo­
cupação: o dinheiro. Nos Grundrisse, em particular, Marx
estuda o que os antigos denominavam auri sacra fames, a
infernal sede do ouro. Escreve: «Antes de ser transposta para
valor de troca, cada forma d a riqueza natural implica uma
relação essencial entre o indivíduo e o objecto: o indivíduo
objectiva-se na coisa, e a posse desta representa, por seu
turno, um certo desenvolvimento da sua individualidade (se
é rico em carneiros, o indivíduo torna-se pastor, se é rico
em cereais, torna-se agricultor, etc.). O dinheiro, em contra­
partida, torna-se sujeito da riqueza geral no termo do pro­
cesso da circulação: enquanto resultado social, representa
unicamente o que é geral, não implicando, portanto, nenhuma
relação individual com o seu proprietário; a sua posse não
desenvolve nenhuma qualidade essencial da sua individuali­
dade, porque esta posse incide sobre um objecto desprovido
de toda a individualidade; com efeito, esta relação social
existe enquanto objecto tangível e externo que se pode
452 M arxismo e teo ria d a personalidade

adquirir maquinalmente e perder da m„*ma forma. A sua


relação com o indivíduo é, portanto, meramente fortuita.
Em resumo, esta relação não se encontra ligada à pessoa,
mas sim a uma coisa inerte, e esta investe o indivíduo com
o domínio geral sobre a sociedade e o mundo dos prazeres,
dos trabalhos, etc. É como se a descoberta de uma pedra
me levasse à obtenção, independentemente da minha pessoa,
do domínio de todas as ciências. A posse do dinheiro põe-me
em relação com a riqueza (social), tal como a pedra filosofal
com todos os conhecimentos. O dinheiro não é, portanto,
um objecto do desejo de enriquecimento, mas sim o seu pró­
prio objecto. É essencialmente a auri sacra fames. A paixão
das riquezas é totalmente diferente da sede instintiva de
riquezas particulares, tais como fatos, armas, jóias, mulheres,
vinho; só é possível na medida em que a riqueza geral,
enquanto tal, se individualize num objecto particular, em
resumo, s e ' o dinheiro passar a existir sob a sua terceira
forma. O dinheiro não é, portanto, unicamente o objecto,
mas também ainda a origem da sede de enriquecer. O gosto
pela posse pode existir sem o dinheiro; a sede de enriquecer
é o produto de um desenvolvimento social determinado, não
sendo natural, mas sim histórica.» 41
E Marx mostra qual o efeito revolucionário do dinheiro
simultaneamente sobre o desenvolvimento das forças produti­
vas e sobre o desenvolvimento da individualidade: «Na sua
desvairada corrida para a forma geral da riqueza, o capital
leva o trabalho para além dos limites das suas necessidades
naturais e cria, dessa form a,. os elementos materiais para o
desenvolvimento de uma individualidade rica, tão universal
no âmbito da sua produção como no do seu consumo, e de
que o trabalho já não surge como trabalho, mas sim como
pleno desenvolvimento da actividade: sob a sua forma ime­
diata, a necessidade natural deixou de nele ter lugar, por­
que no lugar da necessidade natural surgiu a necessidade
historicamente produzida. É por isso que o capital é produ­
tivo, noutros termos, representa uma relação essencial para
o desenvolvimento das forças produtivas sociais. Mas deixa
de o ser a partir do instante em que o desenvolvimento des­
sas forças produtivas encontra no próprio capital uma bar­
reira ao seu progresso.» 412 «O indivíduo que cria algo de

41 Fondement3, J, pp. 162-163.


42 ibidem, pp. 273-274.
H ipóteses p a ra u m a te o ria cien tífica d a p ersonalidade 463

supérfluo porque já satisfez suas necessidades elementares


não corresponde ao mecanismo do desenvolvimento social.
A história mostra, bem pelo contrário, que um indivíduo (ou
uma classe de indivíduos) é forçado a trabalhar para além
da sua estrita necessidade vital porque o excesso de trabalho
se manifesta, no âmbito da sua faceta oposta, como sendo
não trabalho e superabundância de riquezas. A riqueza não
se desenvolve senão no seio destas contradições: virtual­
mente, o seu desenvolvimento cria a possibilidade da aboli­
ção dessas contradições.» 43
Tais análises, que nos revelam mais sobre a personali­
dade real do que toda uma biblioteca de literatura biotipo-
lógica, fornecem imensos temas para uma reflexão sobre a
origem profunda das motivações da actividade desenvolvida.
A sede de enriquecer, que no sentido ingénuo do termo é
uma «necessidade» humana excepcionalmente importante,
não é, a nenhum grau, uma necessidade originária mas sim
antes um efeito estrutural exercido a partir das relações sociais
sobre a produção e a reprodução da actividade e das neces­
sidades. N ão é uma nova necessidade, oriunda não se sabe
bem de onde, a «necessidade de enriquecer)), que leva o indi­
víduo a buscar o dinheiro, sendo sim, pelo contrário, o
dinheiro, isto é, uma relação social que confere à actividade
humana um poder abstracto, logo, intrinsecamente ilimitado,
de essência não psíquica, que está na origem da necessidade
de enriquecer, a qual é, aliás, menos uma necessidade que
vem juntar-se às outras do que uma forma mais geral no
seio da qual as necessidades preexistentes se vêm cristalizar:
à forma abstracta do trabalho acaba por vir aqui correspon­
der a forma abstracta da necessidade, e nem uma nem outra
advêm da fisiologia. Vemos muito claramente aqui que a
excentricidade posicionai, de índole social, não é apenas um
carácter das necessidades humanas, mas sim, muito mais fun­
damentalmente, o segredo de todos os seus outros caracteres,
lai como é o segredo da essência humana em geral. De um
ponto de vista mais elaborado, a reprodução alargada da acti­
vidad e e das necessidades humanas é .o resultado do facto
primordial de que a essência hum ana. real não consiste num
património biológico interno de traços psíquicos hereditá-

« Obra citada, p. 357, nota.


454 Marxismo e teo ria da personalidade

rios, possuindo, portanto, logo à partida, a forma psicológica


e a medida da individualidade, mas sim num património
social externo, susceptível de um crescimento histórico ilimi­
tado, e que ultrapassa, portanto, cada vez mais as possibili­
dades' de assimilação directa por parte do indivíduo isolado.
Daí resulta que, virtual e posicionalmente, o processo de assi­
milação individual do património humano é intrinsecamente
inesgotável, e mesmo tanto mais inesgotável quanto mais
avançado este está, visto que o seu avanço significa, em
suma, uma multiplicação das capacidades e • uma diversifi­
cação das necessidades, logo, um aumento de extensão das
frentes em que o indivíduo se encontra perante a imensidade
do património humano. Neste sentido, a tendência para a
reprodução alargada, para poder ser entendida, não pressu­
põe nenhuma necessidade particular, já que é a expressão
imediata-das relações gerais entre o homem individual e o
homem social, entre o indivíduo e a sua essência. Enquanto,
no caso dos animais, a interioridade das incitações de
base biológica implica o domínio de uma homeoestasia do
comportamento, sendo o património hereditário o que define
anteeípadamente os limites das capacidades individuais, a
exterioridade social e a ilimitada acumulação do património
humano, o modo de relações totalmente novas que daí advêm
entre ò indivíduo e a espécie repelem a homeoestasia da acti-
vidade e da motivação para o nível de ponto de partida onto­
genético, aliás, bem cedo recoberto pelos efeitos da matura­
ção e da simples aprendizagem, e, sobretudo, pouco a pouco
dissolvido pela passagem ao estádio da personalidade desen­
volvida.
No entanto, enquanto as formas monetárias não alcança­
rem um desenvolvimento universal e as relações sociais de
posse continuarem a ser essencialmente relações concretas,
a exterioridade social do património humano terá bastante
dificuldade em exercer os seus efeitos: a capacidade de apro­
priação por parte do indivíduo permanece estreitamente
demarcada, regra geral, pelos limites da actividade e das
necessidades concretas, e uma pseudo-homeostasia deste
modo de personalidade vem mascarar os efeitos virtualmente
revolucionários da excentricidade posicionai, de índole social,
das suas bases. Neste estádio, o homem parece, de facto, não
ser senão um animal social O papel do dinheiro, e, mais gene­
ricamente, das relações capitalistas, admiravelmente definido
Hipótesee p a ra u m a teo ria cien tifica da personalidade 455

pelas análises de Marx citadas mais atrás, consiste precisa­


mente em ter desintegrado essas relações de estreita subor­
dinação dos indivíduos relativamente às suas relações con­
cretas com as coisas e com os homens, logo, e ao mesmo
tempo, consigo próprios, e, em primeiro lugar, com as suas
necessidades imediatas. Assim, surge a possibilidade histó­
rica objectiva, não, isso é evidente, de indivíduos capazes
de assimilar a totalidade do património social, que os ultra­
passa enormemente e cada vez mais — uma tal possibilidade
encontra-se para sempre fora do alcance da humanidade—,
mas sim de homens emancipados de toda a limitação parti­
cular que não seja a forma da própria individualidade e os
limites do património social dessa época, e, nesse sentido,
integralmente desenvolvidos. Mas se o capitalismo cria as
condições históricas objectivas para esta realização integral
da essência humana por parte dos indivíduos, ele é, simulta­
neamente, o seu pior inimigo, na medida em que não asse­
gura o desenvolvimento de todas as forças produtivas e de
todas as riquezas sociais, bem como a dissolução de todos
os grilhões específicos que acorrentam os indivíduos, senão
através da alienação e da espoliação mais profundas da
grande maioria destes indivíduos, da sua subordinação radi­
cal ao processo social de criação das riquezas, ele próprio
submetido aos interesses de uma classe social cada vez mais
parasitária. Num tal sistema, a separação entre o trabalho
e a fruição é levada, em todos os sentidos, até ao seu ponto
mais extremo. Não podendo ser uma manifestação de si, o
trabalho surge essencialmente como meio para a simples
reprodução da força de trabalho, correntemente identificada
com a «satisfação das necessidades», e como esta reprodução
dificilmente consegue ser, no capitalismo, outra coisa que
não uma simples reprodução, até mesmo uma simples repro­
dução cada vez mais difícil, estabelece-se a ilusão de que as
necessidades Orgânicas mais elementares são, em geral, a
base absoluta de toda a actividade humana. Por outras pala-
p
vras, a — das mais diversas actividades, cujo produto abs-
N
tracto é bloqueado pelas relações capitalistas logo ao seu
nível mais básico, já não representa para os indivíduos uma
incitação suficiente para a correspondente actividade, e as
próprias necessidades subjacentes, longe de se desenvolverem.
450 . . •• Marxismo e te o r ia . da p ersonalidade

atrofiam-se. ' por isso que, sem jogar com as palavras, pode­
mos afirmai que o capitalismo é profundamente bestial, ao
manter enormes massas de indivíduos, no próprio umbral da
hominização integral de que ele cria as premissas, nas condi­
ções do animal, para quem não existe a riqueza inesgotável
do património social. Compreende-se que o complemento
ideológico mais natural do capitalismo seja uma forma vulgar
de materialismo biológico, ao qual as utopias espiritualistas
vêm acrescentar, por meio de uma inocente contradição, o
necessário toque de álibi e de protesto ilusório. Apenas o
marxismo fornece ao homem a sua verdadeira dimensão e
as suas perspectivas de desenvolvimento ilimitado ao levar
de volta a base biológica da necessidade a desempenhar o
seu papel efectivo de ponto de partida genético e de condição
de possibilidade e ao revelar, no âmbito da hominização,
isto é, do entrelaçamento da socialização e da personalização,
ao mesmo’ tempo aquilo que o capitalismo generaliza e
aquilo a que barra o avanço, bem como o que anuncia neces­
sariamente uma fase superior do desenvolvimento histórico,
isto é, do desenvolvimento dos indivíduos humanos.
H isto leva-nos a discutir o terceiro argumento adiantado
a favor do primado do conceito de necessidade ao criticar
a ilusão que vicia certas tentativas, operadas a partir do mar­
xismo, com o fim de substituir à concepção animalizada das
motivações específicamente humanas a ideia de que o trabalho
é precisamente a primeira necessidade humana. A uma pri­
meira análise, esta tese parece pôr, de facto, em evidência
a impotência de todas as concepções não marxistas para se
aperceberem da actividade humana a partir de algo que não
seja ela própria: neste sentido, qualificar o trabalho de pri­
meira necessidade equivale, pura e simplesmente, a afirmar
que «a essência humana não é a necessidade, mas sim o tra­
balho». Mas semelhante interpretação leva ao ressurgir ime­
diato do carácter perigosamente especulativo da tese. Demons­
trámos longamente, ao longo do capítulo и, que se Marx
define a essência humana não por meio do «trabalho», mas
sim por meio das relações sociais, não se trata aqui de uma
variante subalterna, mas sim de um ponto capital. Definir
o homem por meio do trabalho é defini-lo por meio de uma
generalidade abstracta, logo, desde o início, é afastarmo-nos
H ipótoses p a ra u m a te o ria cie n tífic a d a personalidade 467

ч materialismo dialéctico e histórico; ao mesmo tempo, tu,


equivale a desconhecer o facto de que a essência humana — as
relações sociais— não possui em si a forma psicológica,
descoberta esta cuja enorme importância para a teoria da
personalidade já tivemos ocasião de verificar. Através de um
jogo de palavras, a partir dessa altura praticamente inevitável,
o trabalho, por meio do qual se define o homem, e que é já,
em si mesmo, concebido no âmbito da forma da generalidade
abstracta, passa da acepção social (os processos sociais da
produção) para a acepção psicológica (a actividade laboriosa
individual). Deixámos, então, que se esfumassem, sob a
aparência de uma formulação eminentemente marxista, todos
os caracteres científicos mais essenciais da concepção mar­
xista do homem. Afirmar que o trabalho é a primeira necessi­
dade do homem corresponde, de uma forma extremamente
directa, a transformar o trabalho numa essência psicologizada
do homem abstracto: o espiritualismo do «homem criador»
não terá certamente nenhuma dificuldade em chamar a si
semelhante «materialismo histórico».
Quanto ao resto, se «ò trabalho» fosse «a primeira neces­
sidade» do «homem», seria necessário explicar porque é que,
com tamanha frequência, este surge, pelo contrário, como
sendo aquilo de que o indivíduo tem mais horror, a um ponto
tal que a condenação a trabalhos forçados foi sempre con­
siderada como a mais dura das penas, à excepção da pena de
morte. É que, no respeitante à tese que discutimos, não foi
só o conceito de trabalho que adquiriu a forma deplorável
de uma generalidade abstracta, mas também, da mesma
forma, o de necessidade. De que forma concreta de necessi­
dade se pretende falar quando se qualifica o trabalho de pri­
meira necessidade humana? A questão é tanto mais impres­
cindível quanto, num certo sentido, que parece, efectiva­
mente, ser o primitivo, o trabalho não é uma necessidade,
senão na medida em que provém directamente das cons­
trições sociais: «se tenho necessidade» de trabalhar é preci­
samente porque o trabalho permanece subordinado à forma
da necessidade, porque não é, em si mesmo, manifestação de
si, mas sim simples meio de ganhar a sua vida. Deste ponto
de vista, o ((trabalho que é para o homem a primeira neces­
sidade» não é, de forma alguma, a essência do ser humano,
mas sim o trabalho alienado. E é por isso que, de uma forma
30
460 Marxismo e teoria, da personalidade

tro da sua contradição abstracta com tempo Iivre — tal


como acontece no respeitante à economia burguesa. O tra­
balho não pode tornar-se num jogo, como o pretendia Fourier,
que teve o grande mérito de demonstrar que o fim último
exige que se eliminem não só a distribuição actual, mas tam­
bém o modo de produção, mesmo sob as suas formas mais
desenvolvidas. O tempo livre — tanto para o ócio como para
as actividades superiores — transformará muito naturalmente
aquele que dele usufrui num indivíduo diferente, e é este
homem transformado que se apresentará, posteriormente, no
seio do processo de produção imediato.» 49
Estes textos, de uma extrema profundidade de análise,
tomam perfeitamente claro todo o equívoco da fórmula: o
trabalho é a primeira necessidade humana. Porque, na reali­
dade, o conceito de trabalho pode adquirir duas significações
não só distintas como também opostas (o trabalho enquanto
meio alienado de ganhar a sua vida ou, pelo contrário,
enquanto livre manifestação de si) e o mesmo acontece com
o conceito de necessidade (a necessidade imediata, pobre,
simples servidão animal, que, no caso do homem desenvolvido,
longe de ser a base, é o subproduto da alienação, ou, pelo
contrário, a necessidade mediata, rica, isto é, a livre aspira­
ção do indivíduo largamente socializado). Na sociedade capi­
talista, o trabalho social alienado (e para a grande massa dos
indivíduos não há senão este) não só não é a primeira neces­
sidade (no sentido mais integral do termo) como constitui
igualmente a sua radical negação. Nestas condições, não é
o trabalho que é a minha primeira necessidade, sendo sim,
pelo contrário, a minha primeira necessidade que exige o tra­
balho: necessito de trabalhar como meio de «ganhar» a minha
vida (alienada) e, precisamente devido a tal facto, perco-a,
não encontrando «tempo para viver» senão fora do trabalho,
sob formas em si mesmas estioladas. Falsa na sua letra rela­
tivamente ao capitalismo, será que a fórmula é, pelo menos,
válida do ponto.de vista do comunismo? Sim, num certo sen­
tido, mas em relação ao qual devemos ser extremamente
cuidadosos para evitar convertê-lo, de imediato, num con­
tra-senso. No comunismo, como escreve Marx na sua Crítica
do Programa de Gotha, «quando tiverem desaparecido a escra­
vidão da subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho *

*9 оъга citada, p, 230;


H ipóteses p a ra u m a te o ria cien tífica da p erso n alid ad e 461

e, com ela, a oposição entre rabalho intelectual e o trabalho


manual», *<o trabalho não será só um meio de sobrevivên­
cia, como também se tornará ele próprio na primeira neces­
sidade vital» 50. Que este só seja chamado a transformar-se em
tal na sociedade comunista mostra perfeitamente de que
forma é mistificadora a tese segundo a qual haveria nele um
traço universal e eterno da essência hum ana51. Mas, para
além do mais, o trabalho só pode ser denominado no comu­
nismo como «a primeira necessiddade vital» no sentido
mediato, especificamente humano, do termo necessidade: o
«trabalho» emancipado das suas formas alienadas emanci­
pa-se, ao mesmo tempo, das formas alienadas da necessidade.
Isto significa que do próprio ponto de vista do comunismo
— o único em que é possível qualificar o «trabalho» de
primeira ((necessidade» — o trabalho já não é, precisamente,
uma necessidade, no sentido psicológico vulgar, e não ocupa
no conjunto da actividade humana um lugar homólogo ao
das necessidades no modelo animalizado do comportamento,
já que a personalidade desenvolvida é caracterizada por uma
estrutura totalmente diferente.
A este respeito, é importante reflectir devidamente na
significação da célebre fórmula segundo a qual o comunismo
dará «a cada um segundo as suas necessidades», e não a levar
a dizer mais, isto é, simultaneamente, menos e algo de total­
mente diferente daquilo que pode e pretende afirmar. Esta
fórmula exprime, de uma forma simples, o princípio geral
de repartição dos bens de consumo entre os indivíduos, no
seio do comunismo, mas não poderia pretender conter em si
toda a essência e o «sentido humano fundamental» do comu­
nismo. Parece que somos, por vezes, levados a assim pensar
devido a que, entre a definição clássica da fase primeira do
comunismo, isto é, do socialismo, através da dupla fórmula:
de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo
o seu trabalho — e a da fase superior ou comunismo, estri­
tamente falando: de cada um segundo as suas capacidades,
a cada um segundo as suas necessidades, a substituição da
repartição segundo as necessidades à repartição segundo o
trabalho prestado parece constituir toda a diferença existente.
Mas aí reside precisamente a prova de que estas fórmulas,

-'■o Critique du programme de Gotha, p. 25.


л Cf. Vidcologie allemande, p. 532.
458 M arxismo e teo ria da personalidade

eminentemente paradoxal relativamente à tese aqui discutida,


Marx identifica o comunismo com a abolição do trabalho u.
«Em todas as anteriores revoluções o modo de actividade
permanecia imutável e tratava-se unicamente de urna dife­
rente distribuição dessa actividade, de urna nova repartição
do trabalho por outras pessoas; a revolução comunista, pelo
contrário, é dirigida contra o modo de actividade anterior,
suprime o trabalho e leva à abolição do domínio de todas as
classes, ao abolir as próprias classes...»*45 É perfeitamente
claro que Marx não pretende falar aqui da abolição do tra­
balho em geral; o comunismo, como toda a forma de socie­
dade, baseia-se na incessante actividade de produção e de
reprodução pelos homens dos seus meios de subsistência, não
tendo nada a ver coni a instauração da preguiça generalizada.
O que Marx pretende dizer é que o comunismo põe fim à
era histórica do trabalho fragmentado, explorado, alienado,
reduzido a não passar senão de um meio de «ganhar a vida»
e que, precisamente devido a este facto, não sendo uma livre
manifestação de si, só mantém a vida na medida em que a
vai estiolando, em que a vai subordinando, de forma confran­
gedora, a uma divisão do trabalho e a uma exploração desu-
manizañtes. É tudo isso que o comunismo permite ultrapas­
sar 46 a o restaurar ao nível das modernas forças de produção
e das modernas formas de relações sociais a coincidência
entre a produção social das riquezas e a manifestação pes­
soal de si: neste sentido, o «trabalho» já não é o trabalho,
mas sim o livre espraiar da actividade humana. A revolução
comunista é uma revolução «que alterará, por um lado, o
poder do precedente modo de produção e de troca bem como
o poder da anterior estrutura social, e que desenvolverá, por
outro lado, o carácter universal do proletariado e a energia
que lhe é necessária para levar a bom termo esta apropriação,
uma revolução, finalmente, em que o proletariado se despo­
jará, além disso, de tudo o que ainda lhe resta da sua anterior
posição social. É unicamente neste estádio que a manifes-

w Cf. a este respeito L’idéologie allemande, pp. 68, 94. 96, 104. 232,
248; Fondementa, I, p. 273, II, pp. 114, 230; Critique du programme
de Gotha, pp. 25,-118; Le Capital, TU, 3, p. 198, etc.
45 LHdéologie allemande, p. 68.
45 Marx emprega o termo aufheben para designar este processo tíe
supressão-ultrapassagem do trabalho; cf. L’idéologie allemande, p. 232,
nota 3, p. 248, nota 3, etc.
Hipóteses p a ra Ja te o ria c ie n tífic a d a personalidade 459

tação de si coincide com a vida material, o qué corresponde


à transformação dos indivíduos em indivíduos integrais e ao
despojamento de todo o carácter originariamjente imposto
pela Natureza; a este estádio corresponde a transformação do
trabalho em manifestação de si e a metamorfose das relações
até então condicionadas em relação aos indivíduos enquanto
indivíduos» 47.
Marx retorna longamente a esta questão ncs Grundrisse,
por exemplo, ao criticar A. Smith. «Sem dúvidâ que ele tem
razão em afirmar que, nas suas formas históricas — escrava­
tura, servidão e trabalho assalariado— , o trabalho nunca
deixa de ser repugnante, porque é trabalho forcado, imposto
do exterior e perante o qual o não trabalho é ’liberdade e
felicidade’. Tal é duplamente verdade no respeitante ao tra­
balho de carácter antagónico, o qual não restaurou as con­
dições objectivas e subjectivas (que perdeu |ao deixar o
estado pastoril, etc.) que o transformam em trabálho atractivo,
no âmbito do qual o homem se auto-realiza; tal! não significa,
de forma nenhuma, que ele se torne num prazeç e num diver­
timento, tal como, qual uma costureirinha, o pensa ingenua­
mente Fourier. Um trabalho verdadeiramente i livre — por
exemplo, compor uma obra — não é fácil e éxige esforços
dos mais ingentes.» «Mas o que Smith continuará sempre a
ignorar é que a actividade da liberdade consiste precisamente
em ultrapassar esses obstáculos e que é preciso, por outro
lado, despojar os fins externos do seu carácter c(e mera neces­
sidade natural a fim de os colocar enquanto fins que o indiví­
duo fixa para si mesmo, de forma que se tornem' na realização
e objectivação do sujeito, noutros termos, ina liberdade
real, cuja actividade é o trabalho.» Assim,; «o trabalho
só pode emancipar-se se, l.°, o seu conteúdo| social estiver
assegurado; 2.°, se revestir um carácter científico e surgir
directamente como sendo tempo de trabalho gejal; por outras
palavras, se deixar de ser o esforço do homem, simples força
natural no estado bruto que suportou uma determinada
domesticação, para se tornar na actividade do sujeito que
regulamenta todas as forças da .natureza no seio do processo
de produção» 48. «É evidente, àlém do mais, que o tempo
de trabalho imediato não pode permanecer encerrado aden-*

*1 Obra citada, p. 104.


*8 Fondements, П, pp. 114-116.
462 Marxismo e teo ria d a personalidade

que Marx e Engels foram buscar ao socialismo pré-m an' a,


não podem ser entendidas à letra se não as considerarmos no
ámbito do espirito do socialismo científico. Um principio
verdadeiramente central do materialismo histórico é o de que
o modo de repartição das riquezas é sempre a expressão de
uma realidade mais profunda, a saber, o modo de produção;
e já neste sentido, acreditar que o comunismo poderia distin-
guir-se intrinsecamente do socialismo através do modo de
repartição, ao mesmo tempo que se basearia no mesmo modo
de produção (suposto como sendo definido, então, em ambos
os casos pela mesma fórmula: de cada um segundo as suas
capacidades), tal equivaleria a afastarmo-nos do marxismo.
È certo que a sociedade comunista instaura um modo de
repartição no qual se dá «a cada um segundo as suas neces­
sidades», o que é já em si urna perspectiva histórica gran­
diosa, porque, únicamente devido a esse facto, condições
extraordinárias de desenvolvimento são oferecidas a todos os
indivíduos, o que é já suficiente para distinguir enormemente
uma tal sociedade de todas as que a precederam. Mas, por
mais importante que seja este ponto, tal não impede que o
comunismo não se encontre ainda definido no âmbito da sua
essência mais profunda, se o caracterizam os como sociedade
da abundância e do livre consumo; porque uma sociedade
que se definisse unicamente desta forma deixaria, precisa­
mente’, o homem colocado perante a incessante, e em si mesma
absurda, reprodução da necessidade, nem que fosse alargada.
O comunismo não é uma su per- «sociedade de consumo».
A essência mais profunda do comunismo consiste no facto
de que este realiza, e aliás exige, o «livre e integral desenvol­
vimento de todo o indivíduo» 52, isto é, que é instrumento de
libertação de toda a contradição social antagonista, ao mesmo
tempo que dá lugar à reprodução alargada das forças pro­
dutivas e da cultura, à reprodução alargada das próprias
personalidades. Por outras palavras, mais ainda do que pela
repartição-«a cada um segundo as su as. necessidades», o
comunismo define-se pela sua forma específica, declaradamente
nova relativamente ao próprio socialismo, de exigir «a cada
um segundo as suas capacidades»: através da divisão comu-

v¿ Le Capital, I. 3, p. 32. Este membro da frase, omitido na edição


Roy, coloca-se no íim da 3.» alinea. Of. Cahiers de I’Jnstitut Maurice
Thorez, n.° 6, Outubro de* 1967, p. 97.
H ipóteses p ara um a teoria c ien tifica da p ersonalidade 463

nista do trabalho, no seio da qual «o indi’ 'duo integral»,


tendo recebido uma formação verdadeiramc^Le politécnica,
sabe «enfrentar as mais diversificadas exigências do trabalho
e só dá, por meio de funções alternadas, um livre desenvolvi­
mento à diversidade das suas capacidades naturais ou adquiri­
das» 53. Não obstante a identidade enganadora das fórmulas
clássicas, as capacidades que cada um é chamado a pôr em
prática no comunismo são, portanto, totalmente diferentes
das que têm lugar no socialismo, e, com muito mais razão, em
todas as sociedades anteriores, porque elas são nele postas
em prática, e, por consequência, produzidas, de uma forma
totalmente diferente. Mas, na mesma medida e pelas mesmas
razões, tal é igualmente válido no respeitante às necessidades:
o comunismo, considerado unicamente sob a óptica da repar­
tição, não se distingue apenas do socialismo pelo facto de
que dá «a cada um segundo as suas necessidades», mas tam­
bém pelo facto de que as necessidades a que dá satisfação
em cada um, sem outro limite que não sejam essas próprias
necessidades, se transformaram, em si mesmas, em necessi­
dades novas, de uma outra natureza, totalmente emancipadas
das condições e das contradições que as caracterizam no seio
do modelo psicológico habitual, e que o próprio socialismo,
tendo em conta os seus limites e desigualdades específicas,
ainda não suprime até ao seu âmago mais profundo. Assim
cai por terra, aliás, mas unicamente desta forma, a objecção
ideológica que é constantemente dirigida ao comunismo: de
que modo será possível, em tempo algum, vir a dar «a cada
um segundo as suas necessidades», se essas necessidades
possuem as características que podemos observar numa socie­
dade não comunista? Naturalmente que as necessidades a que
o comunismo dá satisfação são as necessidades do homem
do comunismo. Eis aqui, precisamente, porque é que o sentido
em que é permitido afirmar que no comunismo o trabalho
será para o homem a primeira necessidade não coincide, de
forma alguma, com o sentido em que é usualmente consi­
derado o termo «necessidade», principalmente quando esta
noção de primeira necessidade tem por função atribuir ao
trabalho, no seio da personalidade humana, um lugar homó­
logo ao das necessidades orgânicas no caso do animal: volta-

53 obra citada, I, 2, p. 166.


464 Marxismo e teo ria ú a p ersonalidade

mos nesse c a ^ , a cair inevitavelmente no naturalismo psicoló­


gico’ na concepção especulativa da essência humana. Na
realidade, se no comunismo o trabalho se torna na primeira
necessidade, tal corresponde a que, na mesma medida, a
necessidade se transforma no primeiro trabalho, no sentido
em que a produção do homem rico, isto é, no respeitante às
necessidades largamente desenvolvidas, é a produção da pri­
meira riqueza social Levar a equivaler, nem que seja unica­
mente de modo formal, o trabalho à necessidade, como sendo
esta a primeira coordenada, procurando exprimir, no âmbito
da linguagem originariamente homeoestática da necessidade,
o próprio facto da reprodução indefinidamente alargada da
actividade constitui, portanto, uma tentativa, votada, logo. à
partida, a uma funesta ambiguidade, e isto no melhor dos
casos, para pensar um conteúdo marxista através da concep
tuàlização pré-marxista por este ultrapassada; constitui o
índice de uma investigação de carácter ainda parcialmente
ideológico, cujo resultado final, segundo parece, não pode ser
senão o do abandono desta conceptualização residual. Eis
aqui porque é que, no fim de contas, e não obstante a sua
importância incontestável, não classificamos o . conceito de
necessidade entre os conceitos primeiros da teoria da perso­
nalidade. .

2. I nfra -estruturas e superstruturas . O emprego do


TEMPO
Os conceitos de base de que partimos são, portanto, no
âmbito da sua conexão dialéctica, em primeiro lugar, os de
acto e de capacidade: o acto pressupõe a capacidade (falando
de uma forma absoluta, do ponto de partida ontogenético, e
de uma forma relativa, em seguida), e, cada vez em maior
medida, a própria capacidade pressupõe o acto, o qual se
desdobra em manifestação e produção de capacidades (sec­
tor ii e sector i da actividade). Mas um acto não é apenas o
exercício de uma capacidade, quer se trate de uma capacidade
directa, quer de uma capacidade passível de adquirir novas
capacidades; é igualmente a passagem, a mediação prática
de uma necessidade a um produto, no sentido psicológico do

5J Cf. F o n d e m e n ts . II, pp. 224-231.


Hipóteses p ara u m a te o ria c ien tífica d a personalidade 465

tei~iO — e reciprocamente. O actó exprime, de início, , do


ponto de partida ontogenético, a necessidade de um produto;
em seguida, numa medida sempre drescente, produz a neces-
p
sidade. A relação entre o produto e a necessidade, —, que
N
corresponde em parte, mas só em piarte, à noção psicológica,
hoje em dia clássica, de motivação, e em que o produto
ocupa, enquanto numerador, a posição determinante do ponto
de vista da incitação ao acto, constitui um terceiro conceito
de base. Mas estes conceitos, se devem intervir a título de
elementos fundamentais na topología geral da personalidade
e na construção teórica de uma biografia singular, estão ainda
longe de nos fornecerem, por si sós, a estrutura de base que
buscamos; bem pelo contrário, ^urgem-nos mesmo como
incompreensíveis, em todo o rigor, se os considerarmos isola­
damente, como fomos forçados a apresentá-los até aqui, pelo
menos em parte. Assim, o acto n^o passa de um momento
da actividade de conjunto. A capacidade remete, de imediato,
para o sector n , cujas relações temporais com o sector i
! p
colocam a questão da estrutura geral da actividade. A — e
! N
cada um dos seus termos considerados à parte implicam, se
tal é possível, de uma forma ainda [mais essencial, a estrutura
da personalidade no seu conjunto, de que surgem como sendo
expressões parciais. Tudo nos leva,!por consequência, a colo­
car ó problema decisivo, aquele de ique depende, em primeira
instância, a constituição de uma ciencia da personalidade: o
problema da estrutura da actividadeide base, da infrarestrutura
da personalidade. .
Sublinhemos, em primeiro luga?, que a infrarestrutura dar
personalidade desenvolvida, tal çomo esta se mantfeSm,
nomeadamente no termo da infância, no instante da paságem
à idade adulta, e no seio da própria idade adulta^éT necessa­
riamente, a estrutura de uma actividade. É certo^que se pode,
sem duvida, falar de estruturas do in d iv id u a ls sejam, em si
mesmas, estranhas a esta actividade, até mesmo que se lhe
imponham enquanto condições forrpais; tal é o caso, segundo
parece, do tipo nervoso, no sentido pavloviano. Sem dúvida
que existem igualmente estruturas precoces que se constituem
na base das actividades específicamente infantis, e que cons­
tituem outros tantos materiais prévips, mas, ao mesmo tempo,
igual número de obstáculos à formação da personalidade
466 Marxismo e teo ria da personalidade

desenvolvida; tal é o caso, r nossa opinião, do carácter,


no sentido еш que Wallon lhe estudava o desenvolvimento na
criança, da estruturação do aparelho psíquico infantil, na base
da vantagem de um inventário daquilo que se pode considerar,
a este respeito, como estabelecido por parte da psica­
nálise. A presente investigação sobre a infra-estrutura da per­
sonalidade desenvolvida, ou seja, na realidade, da personali­
dade propriamente dita, não recusa a priori nenhum destes
dados, mas o seu objecto é totalmente diferente. Parte, e ai
reside a sua especificidade, de um dominio que até aqui nunca
foi cientificamente tratado, proporcionalmente à sua impor­
tância; o sistema dos actos, o conteúdo da biografia. Vai,
portanto, ao encontro dos trabalhos psicológicos que incidem
sobre os outros elementos de estruturação, simultaneamente
para incorporar em si os resultados que lhe respeitam e,
reciprocamente, para lhes fornecer sugestões sobre as razões
dos seus impasses, e talvez a via de acesso à sua ultrapassa­
gem. Mas implica igualmente a convicção de que é unica­
mente no seu terreno que o essencial do problema da persona­
lidade propriamente dita pode encontrar a sua solução, porque
é aí que se joga e se entrelaça o essencial da vida humana.
Mas conceber a infra-estrutura_da .personalidade como
sendo a -estrutura de uma actividade equivale necessaria­
mente, a concebê-la como sendo uma estrutura cuja substância
é o tempo, como sendo uma estrutura temporal, porque
apenas uma estrutura temporal pode ser. homogénea relati­
vamente à lógica interna da actividade de um indivíduo, da
sua reprodução e do seu desenvolvimento. As tipologías ou
as caracterologías, as teorias dos modelos culturais, a dinâ­
mica do campo ou a psicanálise possuem, não obstante as suas
profundas diferenças, o ponto comum que consiste no facto de
que as estruturas que encaram são estruturas não temporais.
Umas, se delas pretendermos deduzir a estrutura da própria
personalidade, implicam, bem feitas as contas, o erro bastante
ingénuo de crerem que a persistência através do tempo de
características psicológicas pessoais não poderia ser explicada
senão a partir de uma natureza em si mesma imutável, que
se pressuporá ser biológica, como se a identidade estrutural
através do tempo e o carácter não temporal da estrutura
fossem coisas idênticas. A este título, até os processos bioló­
gicos seriam inconcebíveis. Outras, de tendência mais gené­
tica, ascendem à ideia de uma formação, até mesmo de uma
H ipóteses p a ra u m a teoria c ien tifica d a p ersonalidade 467

evolução, das esti iras da personalidade, mas esta histori-


cização permanece externa e relaciona-se com estruturas não
históricas na sua essência, estruturas essas para as quais o
tempo é unicamente o local de um funcionamento sincrónico,
mas não o campo de um desenvolvimento dialéctico. É assim
que a personalidade de base na antropologia cultural, ou
mesmo a trindade do cdd», do eu e do super-eu, no âmbito
do segundo tópico freudiano, ao mesmo tempo que são apre­
sentadas como produzidas genericamente e como agindo de
forma funcional,- não deixam, poii isso, de ser igualmente^-.,
concebidas como não temporais em si mesmas. O que nós |
procuramos, pelo contrário, é a estrutura da própria activi- i
dade, noutros termos, a dialéctica do seu desenvolvimento
no tempo, que representa a unidaàe da sua estrutura de fun­
cionamento e da sua lei de movimento histórico. E, para \
mais, se esta estrutura dialéctica é, de facto, a que procuramos, \
ou seja, a da actividade real do .indivíduo concreto, ela é, f
necessariamente, uma realidade cóm a qual os homens têm
continuamente de se haver, ao longo da sua existência, logo,
uma realidade prática, cujos aspectos empíricos são perfeita­
mente visíveis, mesmo que a elaboração da sua teoria, a cons­
trução da sua topologia, nos reserve imensas dificuldades.
Formulo a hipótese de que está realidade absolutamente
fundamental, e, num certo sentido, bem conhecida desde
sempre, é o emprego do tempo.
O conceito de emprego do tempo satisfaz todas as condi­
ções epistemológicas que foram colocadas no capítulo ante­
rior, e unicamente na base das qtiais é possível uma ciência
do indivíduo singular. Como estrutura temporal concreta,
exprime, portanto, a lógica de uma actividade, de uma perso­
nalidade singulares, mas esta lógica é regida pela necessidade
de uma topologia geral do emprego do tempo, de que a tarefa
da teoria da personalidade é a de a estabelecer, fornecendo,
assim, à ciência empírica das personalidades singulares as
suas bases de princípio. De imediato, segundo nos parece,
torna-se clara a extrema riqueza da matéria a estudar sob
a rubrica do emprego do tempo, a multiplicidade e a impor­
tância das questões relativas à vida individual que se toma
possível abordar racionalmente partindo da ideia de que
o emprego do tempo é a infra-estrutura real da personalidade
desenvolvida. Mas, bem entendido, para que o emprego do
tempo possa ser um verdadeiro conceito científico é capita]
468 Marxismo e teo ria da personalidade

não confundir o emprego do tempo empírico, fenomenal, tal


como o podemos representar de uma forma imediata por
meio das categorias ideológicas do vivido, bem como o em­
prego do tempo ideal, superstrutural, tal como um indivíduo
pode propor-se, até mesmo esforçar-se por o seguir, com o
emprego do tempo real, essencial, isto é, o sistema das rela­
ções temporais efectivas entre as diversas categorias objectivas
de actividade de um indivíduo, porque aqui, muito mais do
que alhures, não podemos julgar um indivíduo na base da
ideia que ele tem de si mesmo; é, pelo contrário, partindo do
estudo científico do seu emprego do tempo real, eventual-
mente inconsciente ou, em todo o caso, irreflectido em larga
medida, que poderemos tentar aperceber-nos das formas em­
píricas da sua vida e da consciência que dela tem.
Vemos, portanto, que o coiocar na ordem do dia do
emprego do tempo real depende de um preâmbulo teórico
absoluto, que é a análise científica da actividade. Com efeito,
como já dissemos, o emprego do tempo real é o sistema das
relações temporais entre as diversas categorias objectivas de
actividade de um indivíduo. Mas como reconhecer essas
categorias objectivas ? É evidente que não conseguiremos
obter uma ciência do emprego do tempo e da personalidade,
caso nos limitemos a narrar a actividade de um indivíduo
designando as categorias de actividade através da sua forma
imediata na esfera do vivido. É precisamente aí que reside o
limite da «psicologia» literária, por exemplo, romanesca, no
respeitante às suas manifestações mais medíocres, e por oposi­
ção às obras verdadeiramente grandes, sobre cujo alcance
voltaremos a falar. Foi também aí que acabou por vir esbarrar
a tentativa politzeriana de uma psicologia «dramática»: de
que forma é possível passar, ao mesmo tempo que se perma­
nece no terreno da biografia concreta, para uma conceptuali-
zação, para uma delimitação teórica do drama? A esta questão
a resposta está em que a passagem não é, precisamente,
possível de uma forma directa e por meio de uma via rápida
e breve, tal como o imagina o humanismo ingenuamente
psicologia, mas antes fazendo o desvio por uma ciência da
actividade humana, no âmbito das suas determinações objec­
tivas fundamentais. Esta ciência, tal como Politzer o vislum­
brara em 1929, sem que as condições desta época lhe tenham
permitido tirar, de imediato, partido dessa compreensão, é a
economia política, no sentido marxista do termo, e, mais
H ipóteses p a ra u m a teoria cien tifica da p ersonalidade 469

genericamente, a ciência da história. É apenas na medida em


que a actividade individual, em vèz de ser encarada adentro
das suas formas vividas e considerada como sendo efeito
directo de uma essência humana falsamente concreta, isto é,
psicologizada, for, pelo contrário,1para além das aparências
imediatas, relacionada com o mundo social no seio do qual
ela tem lugar, e descoberta enquanto produto das estruturas
desse mundo social, que a delimitação derivada da actividade
individual pode ser empreendida com algumas hipóteses de
êxito. Encontra-se aqui, por mais complexo que tal possa
parecer, um princípio relativamente ao qual toda a «simpli­
ficação», todo o desleixo, toda aj falta de vigilância, consti­
tuiria terreno fértil para especijlações mal intencionadas:
bibliotecas inteiras de psicologia pseudo-social, que constituem
os cemitérios das produções «científicas» do humanismo
especulativo, encontram-se presentes para o testemunhar.
A este respeito, pode ser útil assinalar que, se o conceito
aqui adiantado de emprego do tempo parece passível de vir
a ser objecto de julgamento por parte de investigações em­
píricas ao nível das biografias reais, investigações essas a que
os trabalhos sociológicos sobre o orçamento-tempo fornecem
uma contribuição séria para uma possível visionação, a con­
fusão entre os dois conceitos não deixaria, por isso, de ser
menos desastrosa. Sabe-se que nestes últimos anos se desen­
volveram investigações comparativas sobre o orçamento-
- tempo dos trabalhadores em países capitalistas e em países
socialistas5S, investigações de que numerosos autores julgaram
poder extrair a conclusão de que nada se assemelhava mais
ao orçamentò-tempo de um operjário fabril numa sociedade
capitalista do que o orçamento-tempo de um operário fabril
numa sociedade socialista. Não ifaz aqui parte das nossas
intenções discutir do ponto de vista sociológico a concepção
do orçamento-tempo subjacente à este resultado, ainda que
a sua concordância com a tese intrinsecamente mistificadora
da unidade da «sociedade industrial», por detrás da diversi
dade dos sistemas sociais por intermédio dos quais esta des­
bravaria o seu caminho, não possa deixar de nos fornecer
matéria para reflexão. A única cóisa que nos interessa aqui

¡*5 Cf.r por exemplo, a< este icspelto G. Proudenski: «A análise dos
orçamentos de tempo e o seu mótodo»1, em Л Socioloyiu na U. R. S. S.,
Kd. do Progresso, Moscovo, 1966.
470 Marxismo e teoria da personalidad©

consiste em saber se o princípio de análise no qual se funda­


menta o estudo sociológico do orçamento-tempo, e que leva
a distinguir essencialmente quatro períodos: tempo de traba­
lho para a produção, tempo para as ocupações domésticas,
tempo para a satisfação das necessidades fisiológicas, tempo
para o descanso — pode ser admitido do ponto de vista da
psicologia da personalidade. A resposta é, com toda a evidên­
cia, negativa. Que possa ser lícito, do ponto de vista socioló­
gico, classificar, sob a mesma rubrica de tempo de trabalho
para a produção, tanto o trabalho alienado, fornecido por
um operário no âmbito da execução de um acto de venda da
sua força de trabalho enquanto mercadoria produtora de
mais-valia para um capitalista, como o trabalho socialmente
emancipado — o que não significa liberto de todo o constran­
gimento — pelo qual um operário de uma sociedade socialista
recebe uma parcela do produto social proporcional à quanti­
dade e à qualidade do trabalho fornecido — em prova do
que, na verdade, oito horas de trabalho social de um meta­
lúrgico de Gorki são sociológicamente equivalentes a oito
horas de trabalho social de um metalúrgico de Detroit — tal
representa, no seio da perspectiva psicológica longamente
definida, mais atrás, um puro e simples contra-senso. Porque,
mesmo antes de se ter elaborado a topologia do emprego do
tempo, é facilmente apreensível o facto de que um trabalho
alienado cuja ordem de grandeza, no respeitante ao produto
psicológico, é antecipadamente determinada pelo valor da
força de trabalho, isto é, pela forma-mercadoria da persona­
lidade, e um trabalho emancipado cuja ordem de grandeza,
no respeitante ao produto psicológico, se determina no seio
do próprio processo do trabalho, tanto individual como social­
mente, não podem possuir, à parte todas as hipotéticas
p
semelhanças, — análogos, nem desempenhar, no âmbito da
N '
produção das capacidades e da reprodução da personalidade
no seu conjunto, funções semelhantes. Os orçamentos-tempo
são quantitativamente passíveis de sobreposição, os empregos
do tempo são qualitativamente opostos: do ponto de vista
psicológico, os primeiros ficam-se por um emprego do tempo
apreendido em termos ainda empíricos, os segundos reflectem
a infra-estrutura real.
A questão crucial, para a teoria do emprego do tempo
é, portanto, em primeiro lugar, a da determinação das activi-
Hlpóteaes p ara u m a teo ria cien tífica d a personalidade 471

/ dades psicológicas que devemos considerar como objectiva-


x mente infra-estruturais. Formulo a hipótese de que são todas
as actividades psicologicamente produtivas, entendendo’ como
tal o conjunto das actividades que produzem e reproduzem a
personalidade, seja em que sector for. Assim definidas, as acti­
vidades psicológicas infra-estruturais deixam à sua margem,
por um lado, os simples funcionamentos biológicos, nem que
sejam dos mais essenciais (por exemplo, a respiração), que
não constituem propriamente actividades psicológicas, e por
outro, as actividades superstruturais, no sentido mais lato
do termo, isto é, todas as actividades que não são psicologi­
camente produtivas, mas sim de índole organizacional ou
simplesmente derivadas, seja a que nível for (por exemplo, a
reflexão sobre o emprego do tempo ideal). Esta hipótese é a
única que pode revelar-se coerente com o conjunto dos dados
precedentes: se a personalidade desenvolvida é, na sua essên­
cia, actividade, as actividades de base são precisamente as que
produzem e reproduzem a personalidade. É através da pro­
dução psicológica e não através da necessidade que se define
a infra-estrutura: vemos aqui, sem dúvida nenhuma, a que
ponto eram necessárias as longas análises críticas deste con­
ceito de necessidade. Encontrando-se circunscrito o campo das
actividades infra-estruturais, quais as categorias objectivas de
actividade que aí podemos reconhecer? Esta questão é tão
decisiva para a teoria da personalidade como a determinação
das classes sociais o pode ser para a ciência das formações
sociais. Mas o materialismo histórico fornece-nos, precisa­
mente, tal como o demonstrámos logo no capítulo n , ao
mesmo tempo que a teoria das relações sociais, a das formas
de individualidade, por outras palavras, das condições sociais
objectivas de actividade dos indivíduos, que lhes correspon­
dem. As infra-estruturas das personalidades reflectem, neces­
sariamente, na sua topologia, as infra-estruturas sociais: este
enunciado não passa, na realidade, senão da projecção da
VJ Tese sobre Feuerbach na concepção do indivíduo con­
creto. Não poderia, por consequência, estar em causa uma
topologia universal «da» personalidade humana. Ao nível
da proximidade em que se situam estas poucas hipóteses
extremamente esquemáticas, bastar-nos-á aqui sugerir em
geral a dimensão que parece possuir esta topologia numa
sociedade em que dominam, de uma forma quase universal.
472 Marxismo e teoria da personalidad©

as relações capelistas, tal como é o caso da França no


estádio do capitalismo monopolista de Estado.
O conjunto da actividade psicologicamente infra-estrutural
encontra-se nela dominada, no caso da esmagadora maioria
dos indivíduos (não em todos), pela oposição entre as activi­
dades do trabalho socialmente produtivo, por um lado, e as
actividades de relação directa consigo mesmo, por outro —
ocupando outras e diversas actividades uma posição complexa
entre estas duas categorias fundamentais! É de uma excep­
cional importância, a fim de evitar mal-entendidos dos mais
graves, não confundir a noção marxista clássica, que nem
sempre é bem entendida, de trabalho socialmente produtivo,
que acabamos de empregar aqui para designar uma cate­
goria fundamental de actividades psicológicas de base, com
a noção de actividade psicologicamente produtiva, adiantada
mais atrás a título de nova convenção linguística, a fim de
designar, no terreno da psicologia, o conjunto das actividades
infra-estruturais da personalidade. Num certo sentido, todas
as contradições essenciais da topologia da personalidade, no
seio do capitalismo, advêm precisamente desta distinção. No
capitalismo, Marx já o demonstrara energicamente56, «só é
produtivo o trabalho produtor de capital» 57. «Não é consi­
derado'produtivo senão o trabalhador que renda mais-valia
para. o capitalista, ou cujo trabalho seja fecundo para o
capital. Um mestre-escola, por exemplo, é um trabalhador
produtivo, não porque contribua para a formação do espírito
dos seus alunos, mas sim porque faz chegar dinheiro graúdo
ao seu patrão.» 58 «Um escritor é um trabalhador produtivo,
não porque seja instrumento criador de ideias, mas sim
porque contribui para enriquecer o livreiro editor e é, por­
tanto, um trabalhador assalariado contratado por um capita­
lista.» 59 Por outras palavras, a especificidade do capitalismo
está em que nele só tende a funcionar enquanto trabalho
socialmente produtivo o trabalho que adquire a forma
abstracta, e na exacta medida em que adquire essa forma
abstracta. O trabalho concreto, enquanto concreto, pode,
quando muito, dar lugar a uma troca directa ou a uma pres-*I.

Cf. nomeadamente Fondements, I, pp. 218-222. 251-258; O Capital,


I. 2. capitulo XVI: História das Doutrinas Económicas, Costes, todo o t. 2.
M Fondejnents. X, p. 252.
« Le Capital, l, 2, p. 184.
J* Histoire des doctrines économiques, t. 2, p. 13.
Hipóteses p ara uma, teo ria c ien tífica da personalidade 473

tação riproca de serviços, que não poderiam ser instrumento


criador de mais-valia, logo produtor de capital. Aí se encontra
precisamente uma das formas mais visíveis do carácter alie­
nado do trabalho social no âmbito das relações capitalistas,
visto que o carácter produtivo que o trabalho possui enquanto
actividade humana concreta não é .socialmente reconhecido
senão através do seu contrário, o trabalho na sua forma
abstracta desumanizada.
Assim, podemos designar, de uma forma abreviada, a
actividade pessoal de trabalho socialmente produtivo (no
sentido do capitalismo) como sendo a actividade abstracta
—■se bem que possua, naturalmente, também um aspecto con­
creto—, visto que é na exacta medida em que é abstracta
que esta é socialmente produtiva, facto que constitui igual­
mente o essencial do seu carácter psicologicamente produtivo:
é sobretudo através do poder de compra do salário que o
trabalho assalariado intervém na produção e na reprodução
da personalidade. E chamaremos actividade concreta a toda
a actividade pessoal que se relacione directamente com o
próprio indivíduo, como, por exemplo, os actos de satisfação
directa das necessidades pessoais, a aprendizagem de novas
capacidade estranhas ao exercício e às exigências do trabalho
social. Entre estes dois pólos da personalidade concreta e da
personalidade abstracta espraia-se, de uma forma geral, o
conjunto deversificado das actividades psicologicamente pro­
dutivas, mais ou menos intermediárias, actividades concretas
que tendem a ser assimiladas pela actividade abstracta, comó,
por exemplo, no caso de aprendizagens pessoais ou de ócios
em vias de assimilação pelos esforços para compensar a usura
moral do valor da força de trabalho, a sua desqualificação
social — actividades anteriormente abstractas que principiam,
em parte, a funcionar, pelo contrário, como satisfação pessoal
das necessidades, como biscates recreativos, etc. Mas mais do
que todas estas espécies de actividade, intermediárias, de certa
forma, por uma posição de contingência, é necessário tofnar
cm consideração as actividades intermediárias por essência
que são as relações interpessoais, e, antes do mais, as relações
domésticas. As actividades psicologicamente produtivas que
se desenvolvem no âmbito deste terreno das relações fami­
liares distinguem-se profundamente das actividades concretas
de relação imediata consigo mesmo no facto de que, levando
essencialmente à intervenção de uma relação com o outro, elas
474 M: -Teísmo е teoria da personalidade

implicam um desdobramento da actividade, como toda a troca


o implica: no seio da mais simples prestação de serviço, o
acto é, por um lado, o acto de um indivíduo, mas é igual­
mente, por outro lado, um acto para outrem, necessariamente
determinado, pelo menos em parte, pelas condições em que
a troca tem lugar, pelas relações objectivas existentes no seio
do casal, da família. Em resumo, encontramo-nos já a bra­
ços com uma lógica supra-individual d a actividade, com
todas as contradições específicas que tal facto comporta.
Contudo, trata-se aqui de uma lógica radicalmente diferente
da que encontramos no âmbito do estudo do trabalho social
propriamente dito, e que se baseia directamente nas relações
que são, em todos os aspectos, as decisivas: as relações sociais
de produção. Tal significa, em particular, que o fenómeno
mais fundamental, do ponto de vista da topologia especifica-
mente capitalista da personalidade — a transformação de uma
parte central do homem em mercadoria, da actividade e da
personalidade concretas em actividade e personalidade abs­
tractas— não se opera senão no terreno do trabalho social,
ou, em todo o caso, mediante uma derivação imediata a partir
desse terreno. No âmbito das trocas de actos no seio da vida
doméstica, no seio do casal, a lógica da troca não transforma,
por si mesma, a actividade psicológica em actividade abs­
tracta. Deste ponto de vista, a linha de demarcação essencial
passa, por um lado, por entre o trabalho social e a personali­
dade abstracta e, por outro, por entre todo o resto da acti­
vidade psicológica, que permanece como concreta, tanto no
respeitante às relações directas consigo mesmo como às trocas
interpessoais. Sem dúvida que seria altamente instrutivo,
aliás, estudar de perto os problemas do traçado desta linha
f de demarcação, bem como os efeitos derivados exercidos
j sobre as categorias intermediárias pelos dois grupos funda-
I mentais de actividade.
j No seio da concepção que nos propomos, o emprego do
tempo, infra-estrutura da personalidade, é, portanto, o sis-,
I tema temporal das relações entre as grandes categorias de
actividade, isto é, essencialmente a actividade pessoal con­
creta e a actividade social abstracta. É unicamente se nos
colocarmos deste ponto de vista global do emprego do tempo
I real que é possível compreender plenamente os problemas
j evocados mais atrás ao nível da análise dos elementos de base,
; e daí vermos surgir oütros, que o exame em separado dos
Hipóteses p ara u m a teoria cien tífica d a personalidade 475

conceitos iniciais ainaa não permite revelar. É assim que a


consideração do emprego do tempo real permite captar a
natureza e a importância de uma necessidade absolutamente
específica e inconcebível numa outra base: a necessidade de
tempo. Depara-se-nos aqui, de uma forma típica, uma dessas
necessidades totalmente criadas pelo desenvolvimento da per­
sonalidade e que consistem num efeito estrutural do emprego
do tempo, isto é, criadas, em última instância, pela posição
objectiva de um indivíduo num determinado sistema de rela­
ções sociais. A necessidade de tempo consiste no emergir da
contradição entre as necessidades e as condições de actividade,
cujo pano de fundo genérico é a oposição entre as limitações
da individualidade e o carácter inesgotável do património
social, a qual, no seio do capitalismo, surge sob a forma do
conflito multiforme entre a lógica de desenvolvimento da
personalidade concreta e as exigências da personalidade
abstracta, bem como entre os diversos aspectos da própria
personalidade abstracta. É assim que para milhões de homens,
e mais ainda de mulheres, uma necessidade crucial é a do
tempo para viver. Ora, se a considerarmos na base de uma
ingenuidade de princípio, uma tal iiecessidade é absolutamente
enigmática na medida em que para todos os seres humanos
o «tempo» é igualmente de vinte e quatro horas por dia.
Vemos aqui, de forma flagrante, porque é que não existe uma
solução possível para os problemas da teoria da personalidade
desenvolvida a não ser a partir do cume, a partir do todo
concreto que ela constitui, e não a partir da base, a partir de
elementos ((mais simples» extraídos das ciências do psiquismo
ou das coordenadas infantis. A necessidade do tempo para
viver não é compreensível senão na medida em que estivermos
em estado de nos apercebermos teoricamente da diferença
radical que existe entre o tempo a viver e o tempo para viver,
diferença esta que não é, de forma alguma, uma coordenada
psíquica mas sim um resultado social passível de afectar a
personalidade no seu âmago. Reclamar o tempo para viver,
equivale, na prática — essa prática do movimento operário
em cuja escola a ciência da per$onalidede tanto teria para
aprender— a efectuar a crítica da separação entre persona­
lidade abstracta e personalidade concreta que o capitalismo
acaba por vir, servindo-se de um bisturi invisível, operar na
nossa própria alma, a crítica de um modo de vida que exige
o sacrifício da vida pessoal concreta à vida social abstracta.
479 Marxismo e teo ria da personalidade

e da vida social abstracta ás exigencias da con.^'nte repro­


dução de todo o sistema.
A análise mais aprofundada dos efeitos desta necessidade
de tempo, que está fora de questão empreendermos aqui,
contribui para que se veja concretamente de que modo o
emprego do tempo subordina a si todos os seus elementos,
isto é, todos os elementos da infra-estrutura da personalidade.
Com efeito, se todo o acto representa um certo dispêndio
fisiológico, pressupõe igualmente um certo dispêndio de tempo
psicológico. Ora, o tempo psicológico total disponível durante
um dia, urna semana, um ano, é finito, de forma que a impor­
tancia do dispêndio de tempo exigido por um acto não é
apenas determinada pela grandeza absoluta desse tempo, como
também pela correspondente densidade do emprego do tempo.
Haveria aqui lugar para uma análise de tipo marginalista: a
utilidade ou a falta de utilidade marginal de um acto ou da
renuncia a um acto depende da actividade total. Verificamos
que a composição do produto psicológico de um acto, no
respeitante ao seu custo temporal, é essencialmente fruto,
unicamente sob esta relação, do lugar que ocupa no ámbito
p
de um emprego do tempo concreto, e que — real, logo, a
_ N
P
incitação efectiva a urna actividade, não é a — do acto con-
N
p ,
siderado isoladamente, mas sim uma — mediatizada pela
. N
estrutura de conjunto da actividade. Ai reside, segundo parece,
um aspecto das motivações, no caso do adolescente e do
adulto, que desempenha um papel de enorme importância
na vida real, e que, contudo, escapa por completo ás vulgares
concepções da personalidade.
Da mesma forma, as condições temporais da reprodução
simples e da reprodução alargada do sector i e do sector н
da actividade colocam problemas que só podem encontrar
solução caso os encaremos a partir do emprego do tempo
considerado no seu conjunto. Assim, por meio de uma neces­
sidade imediata, que os economistas conhecem bem, a fim de
lhe encontrar o homólogo no seio do problema dos ritmos
de crescimento, a aceleração da aprendizagem de novas capa­
cidades, supondo, por outro lado, através de uma extrema
simplificação, todas as condições como sendo constantes,
exige um aumento do tempo reservado ao sector i da activi-
Hipóteses p a ra u m a teoria cien tifica d a p ersonalidade 477

dade e, por consequência, uma c o n tração do tempo livre,


no respeitante ao sector n. Podemos entrever os inúmeros
efeitos em cadeia e as contradições derivadas que tal facto
pressupõe. Todos estes efeitos negâtivos se fazem sentir sobre
p
a — real das actividades suplementares de aprendizagem e
N
podem traduzir-se ao nível do vivido através das aversões ao
progresso, de que se adivinham as conclusões que daí serão
extraídas pela ideologia psicologista ou fisiologista. Existem
neste domínio imensos problemas destituídos de nível inte­
lectual, a respeito dos quais voltaremos em parte a falar -a-
propósito das leis de desenvolvimento da personalidade. Em
todo o caso, parece que será lícito concluir que o estudo do
emprego do tempo apresenta os caracteres requeridos para
uma abprdagem científica da infrq-estruturci. A economia do
tempo, nos dois sentidos do termo ’çconomia\ é, efectivamente,
a chave para a compreensão da personalidade desenvolvida.
Encontramo-nos aqui, isso é certo] flutuando em plena hipó­
tese teórica, do ponto de vista psicológico; mas, facto eminen­
temente notável, encontramo-nos ^o mesmo tempo no âmago
da ciência marxista da sociedade* isto é, do homem social.
Num certo sentido, tudo o que jjicou dito atrás não passa
de um comentário genérico desta análise dos Grundrisse:
«Quanto menos tempo é necessário à sociedade para criar
trigo, gado, etc., tanto mais tempo ganha para outras pro­
duções, quer sejam materiais ou espirituais. Da mesma forma,
no caso de um indivíduo, a universalidade do seu desenvolvi­
mento, da sua fruição de prazer ejda sua actividade depende
da economia do seu tempo. Em última análise, é a este facto
que se reduzem todas as economias. Além disso, a sociedade
deve repartir judiciosamente o sèu tempo a fim de obter
uma produção conforme às suas necessidades gerais; da
mesma forma, o indivíduo deve dividir adequadamente o seu
tempo a fim de poder adquirir o maior número de conheci­
mentos que lhe possam faltar ou de dar satisfação às mais
diversas exigências da sua actividade.» 60 Esta última frase,

со F o n d e m e n ts, 1, pp. 110-111.


418 M arxismo e teo ria d a personalidade

que não há nenhuma necessidade de forçar para aí podermos


ler qual o papel central do emprego do tempo pessoal,
demonstra a que nível de profundidade a psicologia da perso­
nalidade e a ciência das relações sociais se articulam, a que
ponto o marxismo é urna base fecunda para a elaboração
de urna ciencia do homem.
Mas o que nos interessa, ao fim e ao cabo, não é, pura e
simplesmente, identificar e descrever a infra-estrutura da per­
sonalidade, mas sim, sobretudo, demarcar as suas contradições
principais e, dessa forma, encontrar a via de acesso às suas
leis de desenvolvimento. Reunamos, portanto, os diversos
dados já encontrados durante a análise sobre a contradição
central da topologia da actividade no âmbito das condições
do capitalismo. Esta contradição pode resumir-se do seguinte
modo; a cisão entre personalidade -concreta e personalidade
abstracta opõe a actividade psicológica a si mesma e impõe-
-lhe uma forma de desenvolvimento que equivale a encerrá-la
adentro de limites praticamente intransponíveis; a partir desse
facto, todas as personalidades constituídas na base das rela­
ções capitalistas possuem uma topologia comum, mas a diver-
sidade das condições concretas por meio das quais esta se
manifesta e das formas de desenvolvimento contraditório que
apresenta é inesgotável. A personalidade concreta surge, de
início, como sendo um conjunto d e . actividades pessoais, até
mesmo interpessoais, não alienadas, desenvolvendo-se como
uma manifestação de si — mas, sem mesmo estar a examinar
aqui de que percurso histórico ela carrega os estigmas, a regra
geral da sociedade capitalista é a de que esta personalidade
concreta se encontra, simultaneamente, separada do trabalho
social e essencialmente subordinada aos seus produtos, ou
seja, à personalidade abstracta que a cerca, a invade, a
esmaga, a desagrega de uma forma mais ou menos profunda,
não só do exterior como também do seu próprio interior.
Peio contrário, a actividade abstracta apresenta-se, de ime­
diato, como sendo uma actividade alienada, submetida à
necessidade externa e, em maior ou menor medida, estranha
às aspirações da personalidade concreta, sendo, no entanto,
precisamente nela que o indivíduo se encontra em presença
das forças produtivas e das relações sociais desenvolvidas, dos
meios imensos, criados no decurso da história humana, que
Hipóteses p ara u m a teo ria c ien tífica da personalidade 479

permitem dominar a Natureza e organizar a sociedr'e, em


resumo, do património, da essência real da Humanit^de, no
respeitante à sua parte principal, isto é, que ela é a actividade
no seio da qual o indivíduo deveria poder apropriar-se efecti­
vamente da essência humana. Esta relação contraditória, que
encontramos sob as mais variadas formas adentro das bio­
grafias singulares produzidas na b^se do capitalismo, define o
beco sem saída do seu emprego do tempo. As condições do
desenvolvimento da personalidade concreta dependem aí
essencialmente da actividade social, logo, da personalidade
abstracta, mas esta, longe de dispor das condições sociais de
desenvolvimento que faltam, regra geral, à personalidade
concreta, não passa, por seu tump, do apêndice ou, em todo
o caso, do instrumento do capital: assim, os dois homens que
habitam cada indivíduo são cada um deles o instrumento da
alienação do outro; e viver nestas condições pressupõe sempre,
nesse caso, a renúncia a toda a razão de viver. Uma tal topo­
logia não exclui a possibilidade de existência de personalidades
de uma certa grandeza, mas tal grandeza é sempre a grandeza
de uma contradição antagonista.
Seguir o movimento intemo desta contradição no âmbito
das formas concretas e singulares que afecta em cada perso­
nalidade assim estruturada equivale a percorrer, no plano
teórico, os instantes da rotação do emprego do tempo, anali­
sar os problemas de equilíbrio do quotidiano, da semana, do
ano psicológicos, captar mesmo talvez o mecanismo das crises
parciais no seio das quais a contradição principal vem perio­
dicamente explodir, sem se resolver de uma forma funda- f
mental, em resumo, equivale já a colocarmos o problema /
das leis de desenvolvimento. Antes de chegarmos a esse ponto,/
interessa primordialmente assinalar as diferenças essenciais/
que surgem entre a infra-estrutura da personalidade tal como
a concebemos aqui e a infra-estrutura da sociedade, tal comc
esta é entendida no âmbito do marxismo, a fim de prevenii\
a eventual tentação de efectuarmos uma dedução, demasiado ]
simplista, do segundo domínio para o primeiro. A primeira j
destas diferenças, aquela em que, em suma, todas as outras
possuem a sua origem, consiste em que a infra-estrutura social,
o sistema das relações sociais é, em última análise, determi­
nado pelo carácter y pelo nível de desenvolvimento das forças (
‘130 Marxismo e te o ria da personalidade

produtivas. É certo que inúmeras determinações secundárias


ou estranhas contribuem para alterar esta relação essencial,
mas a infra-estrutura de uma formação social não deixa, por
isso, de derivar, decisivamente, de uma determinação interna
a esta formação. Ora, as coisas são diferentes no respeitante
à infra-estrutura da personalidade. Sem dúvida que, na base
de um primeiro aspecto, a infra-estrutura surge como sendo
a expressão das capacidades psicológicas, isto é, como sendo
o produto de uma determinação igualmente interna à perso­
nalidade; e a observação das biografias revela muito clara­
mente, com efeito, que quando se modifica, de forma subs­
tancial, aquilo que um homem sabe fazer, o seu emprego do
tempo e a sua personalidade são, devido a tal facto, afectados
até ao mais profundo de si mesmos. Mas a especificidade do
indivíduo está igualmente no facto de se encontrar, relativa­
mente à sociedade, numa posição justa-estrutural, ou seja,
é-lhe, regra geral, impossível transformar livremeníe o seu
emprego do tempo, tal como o reclamaria o crescimento das
suas capacidades; pelo contrário, as relações sociais existentes
impõem do exterior um emprego do tempo ou, em todo o
caso, uma lógica objectiva do emprego do tempo contra o
que-a vontade individual é, por si só, totalmente impotente.
Encontramos aqui, sob uma outra forma, a contradição entre
personalidade concreta e personalidade abstracta, que é igual­
mente a contradição entre emprego do tempo psicologicamente
postulado e emprego do tempo socialmente necessário. A ex­
centricidade posicionai da essência humana traduz-se, assim,
numa excentricidade posicionai da origem do emprego do
tempo, mas a exterioridade da origem não impede que o
emprego do tempo seja uma característica interna da perso­
nalidade. Esta dupla determinação contraditória, externa e
interna, constitui uma propriedade específica da individuali­
dade psicológica humana.
" " Um outro aspecto bastante importante das diferenças
entre.personalidade e formação social, na base da relação das
respectivas infra-estruturas, e a relativa contingência do em­
prego do tempo por oposição à imensa necessidade histórica
das relações sociais. No seio do desenvolvimento de uma
sociedade as relações sociais constituem-se e transformam-se
extremamente ao longo "do fluir das gerações e através de
Hipóteses- рэ-"’. iuDa teo ria c ie n tífic a da perso n alid ad e 481

enormes quantidades de actos prpdutivos, de trocas» de inter­


venções superstruturais, etc.» de forma que a resultante é, de
imediato, um produto estatístico no âmbito do qual a necessi­
dade dominante desbravou o seu caminho através de inume­
ráveis acasos. Na biografia de ц т indivíduo, pelo contrário»
as condições de eliminação estatística do papel dos acasos
estão muito longe de estarem préenchidas. É certo que, como
já vimos, o s ' limites da contingência no interior da qual
o indivíduo se move são, em s} mesmos, socialmente deter­
minados, mas, adentro desses limites, e principalmente daque­
les que são fixados pelo capitalijsmo, o lugar do acaso, logo,
de uma liberdade formal, não p de negligenciar. A contin­
gência social na determinação do emprego do tempo indivi­
dual parece-nos ser um dado i essencial para a teoria da
personalidade, bem como a crítica das ideologias, extraordi­
nariamente férteis, que a seu respeito têm lugar, com dema­
siada frequência como, por exemplo, a ideologia dos «dons».
Talvez a psicologia da criança; tivesse igualmente interesse
em investigar nesta direcção. S;e há algo que uma criança,
mesmo em idade escolar, se mostre pouco capaz de fazer é,
de facto, de organizar, por si; mesma, o seu emprego do
tempo de uma forma coerente;; pelo contrário, assim que o
emprego do tempo imposto do exterior se encontra suspenso,
seja por que motivo for e por;que período for, a sua acti-
Yidade tende para formas das mais anárquicas. Isto mostra
bem a que ponto o emprego do jtempo é uma realidade essen­
cial da personalidade desenvolvida, e, ao mesmo tempo, a
que ponto a origem da personalidade desenvolvida é perfei­
tamente externa à infância. Map isto contribui também para
que se compreenda através de que processo se constituem
as bases da personalidade desenvolvida no seio das relações
das crianças com os adultos. Sé as crianças não são, eviden­
temente, imagens psicológicas ¡directas dos seus pais, inú­
meros factos levam, em contrapartida, a pensar que estas
poderiam ser como que a sua ¡radiografia, e, mais ainda do
que a radiografia dos pais cònsiderados separadamente, a
do casal que constituíram, a da; família no seu conjunto — e,
por intermédio desta, das relações sociais. O emprego do
tempo real dos pais e da família não constituiria, na verdade,
um elemento capital desta modulação dialéctica da perso-
482 Marxismo n teoria da personalidade

nalidade nascente das crianças? A este respeito, a obra de


um Makarenko, nomeadamente, constitui uma demonstração
comprovativa.
Encontramos aqui um dos litígios de fundo entre a con­
cepção marxista e a concepção psicanalítica. À noção freu­
diana de complexo de Édipo objectou-se durante longo
tempo, tanto a partir do marxismo com a do culturalismo,
que não poderia existir nenhuma situação edipiana em si,
independentemente da estrutura sociológicamente variável
da família. Mas a esta objecção, que é clássica desde os
trabalhos de Malinowski, a interpretação estrutural contem­
porânea de Freud leva a dar como resposta que «o complexo
de Édipo não é redutível a uma situação real, à influência
efectivamente exercida sobre a criança pelo casal de pais.
Retira a sua eficácia do facto de que leva a intervir uma
instância interditora (proibição do incesto), a qual barra o
acesso à satisfação naturalmente procurada e une insepara­
velmente o desejo e a lei (ponto sobre o qual J. Lacan colocou
o acento tónico). Tal facto reduz o alcance da objecção pela
primeira vez levantada por Malinowski e retomada pela
escola dita culturalista segundo a qual, em certas civiliza­
ções em que o pai ss encontra despojado de toda a função
repressiva, não existiria complexo de Édipo, mas sim um
complexo nuclear característico de uma tal estrutura social:
de facto, nas civilizações em questão, os psicanalistas dedicam
todo o seu tempo a procurar descobrir em que personagens
reais, até mesmo em que instituição, se encama a instância
interditora, em que modalidades sociais se especifica a estru­
tura triangular constituída pela criança, pelo seu objecto
natural e pelo detentor da lei» 61. Uma tal resposta é, sem
dúvida, válida contra o empirismo sociológico e etnológico.
Mas não fornece uma resposta àquilo que constitui o fundo
da crítica marxista. Quando Freud escreve que «o super-eu
não se constitui à imagem dos pais, mas sim à imagem do
super-eu destes, deixa-se penetrar pelo mesmo conteúdo,

-«i J. L ap lan ch e 0 J.*B. P o n talls, Vocabulaire de la psychanalyse.


artago «Complexo de fidlpo», p~ 83.
I■ l'¡ . / ■
V /- - A- ' cA '• J '... (3

Hipóteses para um a teoria cientifica da personalidade -183

torna-se no representante da tradição, de todos os juízos


de valor que subsistem, assim, ao longo das gerações» 62, é
certo que se pode afirmar que não se deve, para entender
devidamente Freud, reduzir o super-eu dos pais às simples
formas psicológicas concretas das suas relações repressivas
para com os filhos, mas sim reconhecer aí a lei interditora
essencial de que eles são apenas os portadores empíricos.
Mas, dessa forma, não se faz mais do que pôr melhor em
evidência a redução das relações familiares, e sociais, ao seu
aspecto superstrutural, redução essa em que se baseia a
concepção freudiana, e, do mesmo modo, a antropologia
estrutural que a retoma, hoje em dia, incorporando-a no seu
âmbito. Uma concepção não empirista, estrutural, do su­
per-eu e da lei, não deixa, por isso, de ser ainda uma con­
cepção não materialista, impregnada de idealismo socioló­
gico, que pressupõe como pano de fundo a redução da socie­
dade à lei, isto é, a certas das suas superstruturas, institui­
ções ético-jurídicas, ideologias, formas de consciência social,
consideradas independentemente da sua infra-estrutura eco­
nómica, e o triângulo edipiario, as relações pais-filhos, o
super-eu, encontram-se todos, em si mesmos, directamente
relacionados com essa lei puramente superstrutural, inde­
pendentemente das infra-estruturas das personalidades e das
relações familiares aí consideradas. É, na nossa opinião, esta
ausência gritante das infra-estruturas sociais, familiares e
individuais, por outras palavras, do trabalho, que é masca­
rada em Freud por um biologismo das pulsões tipicamente
pseudomaterialista. Neste sentido, podemos interrogar-nos
sobre se a leitura não biologista e estrutural de Freud que
nos é hoje em dia proposta não passará de uma espécie
de transferência epistemológica, no âmbito da qual a psica­
nálise efectúa uma última tentativa para pensar aquilo que
pertence ao homem, dispensando os contributos fundamen­
tais do marxismo, ao mesmo tempo que pressente a sua
impossibilidade.
Em todo o caso, a dupla determinação contraditória,
externa e interna, e a contingência relativa do emprego do
tempo traduzem-se no facto* aí extremamente específico,
parece-nos, da pluralidade dos empregos do tempo parcial-

и Cf. artigo «Sur-moi», p. 413.


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484 Marxismo e teoria da perst .idade

mente coexistentes ao nivel da infra-estrutura da personalia


dade. Se este facto é, realmente, exacto, seria então necessá­
rio analisar os actos e as suas — de urna forma ainda mais
N
complexa do que até aquí tal tem sido feito. Com efeito,
cada acto, é pertença de um emprego do tempo determinado,
não por meio de urna simples posição temporal, mas sim
do que de mais íntimo há neie mesmo: as relações singulares
que manifesta entre certas capacidades, necessidades e pro-
dutos tomam-no intrinsecamente dependente do sistema
geral dessas relações que é, precisamente, um emprego do
tempo, e no seio do qual preenche uma função que não é,
de forma alguma, imutável. É por isso que a passagem de
um acto a outro pode, por vezes, traduzir não a divisão
das actividades no seio de um mesmo emprego do tempo,
mas sim a passagem de um emprego do tempo a outro. Não
se trata aqui de uma construção teórica arbitrária, note-se
bem,- mas sim de um facto de que cada indivíduo possui,
em maior ou menor medida, a experiência intuitiva. É, poF
exemplo, um dado de observação corrente o facto de que,
tendo de se escolher entre vários actos, todos eles importantes
e urgentes, mas cujo próprio entrelaçamento torna imediata­
mente sensíveis as contradições do emprego do tempo a que
pertencem, optemos por escolher efectuar um outro acto,
л . A . . p
que nao possui nem importancia nem urgencia, e cuja —
N
no seio deste emprego do tempo é muito mais débil, mas
que, na realidade, representa a passagem ¿ pelo menos opta­
tiva, para um emprego do tempo diferente, cuja ~ geral
N
seria bastante superior, caso isso fosse possível. Talvez que
o estudo destes fenómenos de pulsação cadenciada de em-
pregos do tempo fosse instrutivo quanto à consistência mais
profunda das personalidades, e a certos aspectos da sua pato-
P
logia. Assegurar o domínio de um emprego do tempo de —
N
geral tão elevada quanto as condições objectivas o permiti­
rem surge como sendo a função psicológica mais decisiva
de uma vida. Pelo contrário, as pulsações cadenciadas cró-
H ipóteses p a ra u m a teo ria cien tifica d a personalidade 485

nicas de emprego do tempo, a ambiguidade constante dos


actos, parecem características de uma personalidade que
sucumbe, pelo menos parcialmente, sob o peso da carga,
excessivamente contraditória para si, das circunstâncias.
E esta última observação leva ao surgir da questão que, do
nosso ponto de vista, domina toda a ciência da personalidade,
e que é a das perspectivas de desenvolvimento que lhe são
abertas: em que medida é que a solução das suas contradi­
ções fundamentais não depende da própria personalidade?
Se o emprego do tempo não é determinado pelas capacidades
; senão no interior dos limites que lhe são prescritos pelas
j relações sociais, a personalidade não estará, no fundo,
j perante a impossibilidade constitutiva de solucionar, por si
mesma e verdadeiramente, os seus próprios problemas?
E essa excentricidade posicionai das condições requeridas
para qúe o consiga não será a origem do dinamismo crítico
c revolucionário, no sentido mais lato do termo, de que os
indivíduos são capazes de dar provas para com a sociedade?
Voltamos a encontrar a proposição altamente notável de
A Ideologia Alemã: os proletários devem «derrubar o Estado
para tornarem real a sua personalidade»ó3. E encontramo-nos,
dessa forma, no próprio umbral do problema das leis gerais
de desenvolvimento da personalidade.
Assim, uma relação dialéctica entre os actos e as capa­
cidades, entre o sector n e o sector i da actividade psicologi­
camente produtiva; uma incessante mediação que vai das ^
necessidades aos produtos psicológicos e reciprocamente, j
adentro de ciclos determinados no mais profundo de si ¡
mesmos pela sua integração no sistema de conjunto da acti- /
vidade; posteriormente, recortando e subordinando a si as /
relações precedentes, uma oposição no seio de uma unidade I
viva, para além das actividades intermediárias, entre a per- /
sonalidade concreta, corijimta----das—actividades_pessoais^
directas^jiomeadámente de consumo, c a personalidade abs­
tracta, conjunto das actividades sociais produtivas, mas alie*

n .-M kb.____
б* L'idéologie allemande, p. 96.

O' ъ c b
486 Marxismo e teoria d a personalidade

. nadas — eis como nos surge, de urna forma extremamente


i esquemática, mas, segundo parece, fecunda, a topologia do
I emprego do tempo real, infra-estrutura da personalidade no
¡ seio das relações capitalistas. A topologia geral de activi-
! dade que procurávamos pode, portanto, com todo o rigor,
ser figurada graficamente, caso isso apresente algum inte­
resse, como sendo urna complexa imbricação de quatro
ciclos fundamentais:

A actividade concreta do sector i (quadrante к ) é o


conjunto das aprendizagens em que se constituem e desen­
volvem as capacidades que são postas em prática no ámbito
da actividade concreta. A actividade concreta do sector и
(quadrante и c) é o conjunto dos actos que põem em prática
as capacidades a fim de retomarem directamente ao individuo.
.Hipóteses p ara um a teoria cientifica da personal idade

A actividade abstracta do sector i (quadrante i a) é o


conjunto das aprendizagens em que se constituem e desen­
volvem as capacidades orientadas pela actividade social e
pelas relações sociais objectivas em que esta se inscreve.
A actividade abstracta do sector и (quadrante п a) é o con­
junto dos actos em que consiste directamente esse trabalho
social. Um tal esquema, convirá lembrá-lo, não pretende, de
forma alguma, representar a personalidade de um indivíduo-
-tipo. Corresponde a um esboço hipotético de topologia geral
das personalidades criadas no seio das formas de individua­
lidade capitalistas. Contudo, na base desta topologia geral,
c manifestamente possível elaborar o processo do emprego
4qq Marxismo e teoria da personalidade

do lempo real de uma personalidade singular. Mas, para aí


chegarmos, inúmeros problemas teóricos, metodológicos e
práticos teriam ainda de ser resolvidos. Quando muito, pode­
mos sugerir, de uma forma extremamente simplifícadora,
através de uma figuração meramente quantitativa da impor­
tância relativa dos quatro ciclos fundamentais, isto é, da per­
centagem do emprego do tempo total que representam, a
variedade das estruturas e das contradições das personali­
dades reais. (Esquemas apresentados acima.)
Estes quatro esquemas não são a ilustração de uma tipo-
logia a quatro termos: vimos mais atrás que a concepção aqui
defendida da psicologia da personalidade exclui o próprio
princípio de uma tipologia. Representam simplesmente quatro
exemplos hipotéticos, retidos pelo seu valor exemplificativo,
tanto em si mesmos como no seu desvio relativo. O primeiro
poderia corresponder ao emprego do tempo de uma criança
em idade escolar: domínio das actividades de aprendizagem
orientadas para o ciclo da personalidade concreta juntamente
com o aspecto, extremamente subordinado, de preparação
indirecta para o trabalho social, importância dos actos de
consumo concreto, ausência total de actividade abstracta,
juntamente com, quando muito, uma participação nas presta­
ções de serviços domésticos; a quase inexistência do que se
refere ao lado direito do esquema, isto é, no respeitante à
actividade abstracta, torna patente o facto de que a teoria
da personalidade desenvolvida não possui ainda, num tal
caso, muitas ocasiões para se manifestar no âmbito das suas
diligências específicas. O segundo esquema poderia ilustrar
o emprego do tempo de um estudante que não tivesse neces­
sidade de efectuar um trabalho social assalariado para pagar
os seus estudos: domínio das aprendizagens da futura activi­
dade abstracta, aprendizagens essas que possuem, além
disso, de forma secundária, um carácter de aprendizagem
concreta, importância das actividades de consumo concreto,
ausência quase total, também neste caso, de actividade abs­
tracta. O terceiro esquema poderia corresponder ao emprego
do tempo de um operário que não possuísse, fora do seu
trabalho na fábrica, senão actividades de prazer pessoal e
relativas a tarefas domésticas, com exclusão de actividades
militantes: domínio esmagador da actividade abstracta, sendo
a aquisição de novas capacidades correspondentes reduzida
a quase nada, importância limitada das actividades concre-
Hipóteses p a ra u m г teo ria cien tífica da personalidade 489

tas em geral, sobretudo no respeitante ao sector l, O último


esquema poderia ilustrar o emprego do tempo de uma pes­
soa idosa, reformada, que efectuasse alguns parcos trabalhos
sociais: domínio absoluto das actividades de consumo con­
creto, redução extrema dos outros sectores, particularmente
das aprendizagens abstractas.
Não é difícil apercebermo-nos; para além da sua simpli­
ficação, que é levada a um limite extremo, de que forma
estes esquemas levantam já problemas e sugerem investiga­
ções a respeito das estruturas e das contradições de persona­
lidades deste tipo. Vemos, por exemplo, de que modo a suces­
são dos quatro sectores de domínio, no sentido inverso ao
dos ponteiros de um relógio, pode contribuir para esclarecer
a questão, até aqui tão pouco estudada pela psicologia, das
etapas da vida e das leis de crescimento psicológico, sendo os
dois últimos esquemas claramente marcados, por oposição
aos dois prm eiros, pela extrema redução dos dois quadran­
tes inferiores (sector i). Um certo hábito de leitura leva a que
surja, por exemplo, no seio do terceiro, de uma forma
directa, o fenómeno da exploração capitalista inscrito no
próprio âmago da personalidade, sob a forma de um domínio
extremo do quadrante и a (actividade social produtiva) ao
qual não há nada de comparável que lhe possa corresponder
no respeitante к parte das actividades pessoais de consumo
concreto. Algumas representações bastante mais complexas,
baseadas num princípio de quantificação séria e num aper­
feiçoamento dos critérios qualitativos, poderiam permitir,
segundo parece, em estreita relação com a recolha de inú­
meros dados biográficos indispensáveis, o pôr em marcha
de um processo de investigação científica efectiva.
Por enquanto, tem-se tratado até aqui apenas de um r
esboço da problemática da infra-estrutura. Mas o estudo —
daquilo que se pode designar pelo termo genérico de supers-
truturas psicológicas parece-nos prometer vir a ser igualyrii
mente fecundo. Por superstruturas psicológicas entendemos !
aqui o conjunto das actividades que não contribuem directa- /
mente para a produção e a reprodução da personalidade, mas \J
que desempenham, relativamente a esses processos, um papel j
de regulador. Ao irmos, neste domínio, do mais imediato e do /
mais estritamente subjectivo àquilo que o é o menos possível,/
podemos identificar, em primeiro lugar, o conjunto multi7
forme dos regulamentos espontâneo'' de origem essencial-
32
490 Marxismo e te i da personalidade

mente interna. Este nivel é o dos sentimentos, no sentido que


confere a esta noção a análise de Pierre Janet, evocada mais
atrás, sobre as acções secundarias, como, por exemplo, as
reacções posteriores à acção primaria (reacções de triunfo
ou de desânimo). Haveria aqui lugar para examinar igual­
mente as suas relações com a concepção psicanalítica dos
regulamentos inconscientes. Mas trata-se' também, e talvez
em primeiro lugar, de regulamentos que não têm sido até aqui,
praticamente, objecto de nenhum estudo, sem dúvida porque
nenhuma teorização psicológica permitia que fossem racional­
mente apreendidos: pretendo falar desse dado universal, de
uma extrema fertilidade, que é o gosto imediatamente ressen­
tido por este ou aquele acto, e a ausência de gosto, o tédio,
até mesmo a extraordinária resistência passiva da preguiça,
opostos a outro tipo de actos. Formulo a hipótese de que
esta atracção e esta preguiça são a tradução imediata, no
âmbito do terreno do dinamismo da actividade, de avalia­
ções intuitivas, quase ideológicas, num certo sentido psico-
p p
lógico que o termo pode ter, da — geral» da — de emprego
N v
do tempo das actividades assim encaradas. Cada indivíduo
é literalmente habituado a esta avaliação intuitiva, que
funciona de uma forma tão contínua como, por exemplo,
a própria percepção, e de que um exemplo bastante
simples é a modulação, tão imperceptível e complexa,
respeitante à propensão para nos levantarmos da cama
e às disposições «afectivas» que advêm deste acto que é, de
todos, um dos mais importantes: sem desconhecer as deter­
minações propriamente neurofisíopsicológicas, nem o papel,
frequentemente restritivo em larga medida (das bases sociais
do emprego do tempo, não será claramente perceptível,
neste caso, a intervenção, de forma típica, de uma avaliação
imediata, que é, por vezes, em maior ou menor medida,
extensamente explicitada pela imaginação antecipadora, da
p
— geral do dia psicológico? O estudo desenvolvido desta
N
forma de regulamento psicológico permitiria, sem dúvida, ao
mesmo tempo que ele próprio seria fruto de um precioso
esclarecimento, compreender a natureza e a função daquilo
a que se poderia chamar o emprego do tempo optativo, pri­
meira forma superstrutufal do emprego do tempo — e a
análise das clivagens, tensões, contradições, entre emprego do
Hipóteses p a ra u m a teo ria cien tífica d a rso n alid ad e 491

tempo optativo e emprego do tempo real poderia ser, efecti­


vamente, um dos estudos psicológicos mais capazes de leva­
rem ao surgir do próprio fundo de uma personalidade singular.
Para além destes regulamentos espontâneos e eminente­
mente endógenos da actividade, é necessário considerar os
regulamentos voluntários por meio dos quais uma personali­
dade procura dominar o seu emprego do tempo, isto é,
segundo os casos e os sectores, a transformá-lo ou, pelo con­
trário, a preservá-lo. Estes regulamentos voluntários são, por
exemplo, as regras de conduta que um indivíduo se esforça
por seguir, a imagem de si que projecta, o emprego do tempo
deliberado que toma como norma — superstruturas às quais
correspondem, e que têm por base certas ideologias psicoló­
gicas mais ou menos elaboradas e objectivas. De uma forma
geral, estes regulamentos voluntários possuem, como carácter
distintivo, o não serem, pelo menos no respeitante ao essen­
cial, endógenos, mas sim exógenos: tanto ao nível das supers­
truturas como ao das infra-estruturas da personalidade, as
relações sociais desempenham um papel capital de determi­
nação funcional. Contudo, convém estarmos aqui particular­
mente atentos a fim de evitar conceber essa excentricidade
posicionai essencial das superstruturas voluntárias da perso­
nalidade de uma forma que nos levaria a recair no idealismo
sociológico, para o qual a sociedade é, acima de tudo, lei
compulsiva, e não, em primeiro lugar, relações de produção.
Este desconhecimento da base real da sociedade equivale a
mascarar as condições concretas entre as classes, as contradi­
ções da sociedade consigo mesma, por detrás de uma contra­
dição especulativa entre o indivíduo e a sociedade. Nestas
condições, é possível levar a que surjam, no caso do indivíduo
concreto da sociedade capitalista, « a . vontade», segundo a
terminologia psicologista vulgar, ou, melhor, as superstru­
turas voluntárias, como sendo o resultado de uma simples e
directa interiorização da lei, das instituições e dos valores da
sociedade correspondente, sem dizer um a só palavra que seja,
quer sobre as infra-estruturas psicológicas quer sobre as infra-
-estruturas sociais.
O que continuará a ser sempre incompreensível, no seio
de uma tal perspectiva, é a razão pela qual os indivíduos
interiorizam uma lei, em si mesma meramente fortuita, relati­
vamente às suas aspirações, externa e compulsiva, e mesmo
de que modo podem passar, em maior ou menor medida, da
4P? Marxismo e teo ria da personalidade

heteronomia à autonomia no âmbito da observância dessa


lei. O exemplo de Linton, que leva a postular uma «necessi­
dade de resposta afectiva» com o fim de escapar a esta intrans­
ponível dificuldade, revela claramente em que tipo de
impasses acabamos por nos encerrar, no terreno das ciências
do homem, se desconhecermos as infra-estruturas sociais. Na
realidade, note-se, os regulamentos voluntários da personali­
dade não são essencialmente constituídos na base da interiori-
zação directa das instituições e valores sociais, mas sim atra­
vés da sua assimilação no âmbito da base psicológica da
personalidade abstracta. De uma forma extremamente esque­
mática, os regulamentos espontâneos podem ser considerados
como sendo o instrumento superstrutural da personalidade
concreta; á este título, são intrinsecamente endógenos, tal
como a própria personalidade concreta. Os regulamentos
voluntários são o instrumento da personalidade abstracta;
são, portanto, igualmente endógenos na medida em que se
desenvolvem a partir de um a. base psicológica interna à
personalidade; mas, a um nível bastante mais profundo, são
exógenos ao mesmo título e segundo o mesmo processo de
conjunto que no caso da personalidade abstracta, isto é, na
base geral do carácter justa-estrutural da vida individual para
com as relações sociais, e da incorporação destas relações e
das suas contradições na personalidade através da actividade
social e do emprego do tempo correspondente. As contradi­
ções psicológicas superstruturais entre regulamentos espon­
tâneos e regulamentos voluntários, entre acto atraente e acto
desejado, não são contradições originárias, tal como o crê
a ideologia mistificadora da contradição metafísica entre
«natureza» e «cultura», «indivíduo» e «sociedade»; represen­
tam, para além da sua especificidade relativa, o reflexo das
contradições infra-estruturas entre personalidade concreta e
personalidade abstracta, entre manifestação de si e traba­
lho aienado, ou seja, também elas testemunham, em
última análise, contradições de classe. E coloca-se a questão
de saber se o fracasso, pelo menos parcial, não só de todas
as teorias clássicas da «vontade», como também das investi­
gações mais avisadas sobre a interiorização da lei, da con­
cepção psicanalítica do super-eu dos pais aos trabalhos de
Piaget sobre o juízo moral no caso da criança, não adviria
precisamente do facto de que todas elas, não obstante as suas
diferenças, das mais opostas, desconheceram o papel funda-
H ipóteses p ara u m a teo ria cien tífica d a p ersonalidade 403

mental que, a este respeito, desempenham as infra-estruturas


psicológicas e sociais, por outras palavras e mais uma vez,
o papel do trabalho.
Mas um outro problema fundamental das superstruturas
psicológicas é o do nível e do valor da consciência de si, e
do Mundo, que elas tornam possível: será que a sua funciona­
lidade psicológica condena esta consciência a nunca passar,
em última instância, senão de um processo de «racionali­
zação», no sentido psicanalítico, de «ideologização», num
sentido derivado do marxismo, ou seja, de uma interpretação
mistificada de uma realidade cuja verdadeira natureza per­
manece por compreender, aprisionando, assim, o homem
adentro da ilusão, da alienação e da dependência — ou, caso
contrário, será que permitem, e sob que condições, alcançar,
através da sua própria funcionalidade, uma consciência de si
já desmistificada, um verdadeiro conhecimento da realidade
objectiva, na medida em que este dependa de preâmbulos
psicoepistemológicos, uma liberdade, na medida em que esta
advenha de um desenvolvimento pessoal? Tentaremos res­
ponder mais adiante a esta questão de um enorme alcance.
Mas se, tal como Marx no-lo revelou, e mais tarde, de uma
forma totalmente diferente, Freud, a verdadeira consciência
é uma conquista extremamente difícil obtida sobre o seu
contrário, não podemos enfrentar com alguma hipótese de
êxito um tal problema senão a partir de uma teoria verda­
deiramente científica sobre a inconsciência. Ora, pode parecer
excepcionalmente ousado propor, hoje em dia, uma tal teoria
(nem que seja na base da extrema modéstia de uma mera
hipótese indicativa), que não se relaciona, de modo algum,
com a ciência freudiana do inconsciente, e que põe mesmo
em causa o seu monopólio de facto no âmbito desta matéria.
Contudo, não vemos, ao fim e ao cabo, porque é que o esforço
organizado da vanguarda do movimento operário para faci­
litar a passagem, incessantemente repetida em milhões de
homens, da inconsciência à consciência de classe, da mistifi­
cação,, fruto das ilusões espontâneas e das ideologias domi­
nantes, à tomada de consciência política, por exemplo, não
poderia constituir uma base prática tão válida, no âmbito da
sua ordem, como a clínica analítica, no respeitante ao elaborar
de uma tentativa de teorização da inconsciência, e em que é
que a delimitação de um conceito específico de inconsciente,
correspondendo a uma concepção materialista histórica da
494 Marxismo e teo ria d a personalidade

personalidade, poderia ser menos lícita do que a delimitação,


efectuada por Freud, referente a uma concepção da formação
infantil do aparelho psíquico.
A inconsciência que encontramos no terreno da teoria
da personalidade desenvolvida não se reduz, de forma alguma,
ao facto neurofisiopsicológico de que as condições da cons­
ciência estão bem longe de estarem amadurecidas aquando
do nascimento e que o seu desenvolvimento é, de qualquer
maneira, um processo longo e complexo: a simples ausência,
num determinado estádio do desenvolvimento, das formas e
do nível de consciência que surgirão num estádio ulterior não
poderia, a não ser na base de um inaceitável jogo de palavras,
ser identificada com a realidade positiva de uma inconsciência
constitucional, tal como não se poderia confundir uma gran­
deza ainda não enumerada com uma . grandeza não passível
de enumeração. Mas precisamente, para além desta limitação
unicamente relativa e negativa do campo de consciência, as
estruturas fundamentais da personalidade desenvolvida sur­
gem-nos como sendo dominadas por uma realidade geradora
de uma positiva inconsciência: a excentricidade posicionai,
de índole social, da essência humana. Esta excentricidade
posicionai, cuja consequência imediata consiste no facto de
que o circuito dos actos ultrapassa enormemente os limites
da individualidade orgânica e do campo directamente cognos-
cível pelo indivíduo, significa, em maior medida ainda, que
a opacidade das relações sociais é necessariamente geradora
de uma correspondente opacidade das relações constitutivas
da personalidade. Assim, demonstrámos mais atrás de que
modo àquilo que Marx analisou sob o nome de fetichismo
da mercadoria, e através do qual, no âmbito de uma eco­
nomia mercantil, principalmente quando passa a ser dominante
tal como acontece com o advento do capitalismo, as relações
entre os homens são ocultadas por detrás das relações entre
as coisas, corresponde um fetichismo das funções psíquicas e
da própria personalidade, e tal não sendo devido, de forma
alguma, a uma qualquer fantasmagoria totalmente subjectiva,
que uma simples tomada de consciência científica bastaria
para dissipar, mas sim como tratando-se de uma ilusão objec-
tiva inscrita no âmbito d a forma abstracta, logo, no âmbito
da própria realidade das relações sociais, e que não poderá
ser abolida senão concomitantemente com estas; tal como a
ilusão do movimento do -Sol do noso céu depende das con-
H ipóteses p a ra u m a teo ria c ie n tífic a da personalidade 495

dições Ouj^ctivas da percepção terrestre que dele possuímos,


e que não foi suprimida pela teoria de Copérnico. Todas as
ilusões do naturalismo psicológico vulgar, de que o hum a­
nismo abstracto representa a elaboração ao nível da ideologia
filosófica, possuem, assim, a sua origem em certas caracte­
rísticas objectivas da sociedade classista, e a sua fértil repro­
dução não possui, no fundo, outra natureza que não seja a
das ilusões religiosas, de que Marx tomava claras as relações
com o fetichismo da mercadoria. Esta falsa consciência de si
e do homem não opõe, por outro lado, apenas a defesa da
evidência à análise das verdadeiras relações, mas também,
sendo, ao mesmo tempo, uma ideologia justificadora das
condições sociais alienantes e das correspondentes formas de
emprego do tempo, manifesta, aquando das ocasiões e das
diligências tendentes a uma desmistificação, uma resistência
característica da suas funções superstruturais. A viragem
rapidamente passional que adopta, com frequência, a dis­
cussão crítica com os defensores dos «dons» é um bom
exemplo do profundo sentido biográfico destas resistências:
para inúmeros homens, a passagem a uma verdadeira cons­
ciência das condições da sua própria génese, ou das dos seus
parentes, poria directamente em causa as próprias bases da
sua vida.
Depara-se-nos, portanto, aqui uma real inconsciência
constitucional dos indivíduos para com as bases objectivas
e os processos produtivos da sua própria personalidade: tal
como a sociedade capitalista não nasce na base de uma
verdadeira consciência de si, também o homem do capita­
lismo não é, de imediato, transparente para si mesmo. No
entanto, entre essa inconsciência de essência histórica e o
inconsciente freudiano existem diferenças fundamentais.
Assim, a inconsciência de que falamos não remete electiva­
mente para a infância, nem possui as suas raízes em pulsões
internas, acompanhando, pelo contrário, a personalidade
desenvolvida enquanto tal, e resultando incessantemente das
características objectivas do circuito social dos seus actos.
Encontrando-se originariamente ligada não aos desejos, mas
sim ao trabalho, é igualmente, no sentido materialista his­
tórico do termo, uma questão essenciaímente prática: o que
transmite à inconsciência psicológica de um indivíduo a sua
extraordinária opacidade mental é-a impotência social que o
caracteriza enquanto indivíduo colocado face às relações
49В
M arxism o е teo ria d a personalidade

sociais, de que permanece como sendo a criatura, faça ele o


que fizer para de tal se libertar. E é por isso que urna tal
inconsciência se inscreve não numa concepção estrutural em
que o eterno triângulo edipiano não deixaria outra saída, a
quem nele se viesse a encontrar encerrado, que não fosse o
feliz desenlace de uma cura individual, mas sim no âmbito
de uma perspectiva histórica que instiga o homem à luta
colectiva e vem a resultar numa sociedade liberta do feti­
chismo e das opacidades das relações de classe, uma sociedade
em que, tal como o afirma Marx, as relações sociais entre
os homens são «simples e transparentes, tanto no âmbito da
produção como no da distribuição» 64. A inconsciência e a
falsa consciência que a encobrem não constituem o imutável
destino da Humanidade; e se é certo que nos devemos precaver
de acreditar em que a consciência vivida possa, em tempo
algum, vir a coincidir com o conhecimento científico, não
deixaríamos, por isso, de estar menos errados caso pensásse­
mos que a vida humana se encontra, para sempre, prisioneira
da ilusão ideológica. «Na época actual, escreve Marx em
A Ideologia Alemã, o domínio dos indivíduos pelas condições
objectivas, o esmagar da individualidade pela contingência,
adquiriram formas extremamente agudas e absolutamente
universais, o que colocou os indivíduos existentes perante
uma tarefa bastante precisa: substituir o domínio das con­
dições existentes e da contingência sobre os indivíduos pelo
domínio dos indivíduos sobre a contingência e as condições
existentes.» E acrescenta que, no seio da sociedade comunista,
em que esta inversão terá lugar, «a consciência que os indi­
víduos terão das suas relações recíprocas passará igualmente
a ter um carácter totalmente diferente» 6S.
Volta a falar sobre este tema nos Grundrisse: «O desen­
volvimento real dos indivíduos a partir desta base (o desenvol­
vimento universal das forças produtivas, das comunicações, da
ciência), em que, incessantemente, todas as barreiras viriam
a ser abolidas, transmite-lhes esta consciência: a de que
nenhum limite pode ser considerado como sagrado. A univer­
salidade do indivíduo deixou de se realizar no âmbito do
pensamento ou da imaginação; passa a ter uma existência

M. he C apital, I, 1, p. 90.
<u L 'idéologie a lle m a n d e , ppr 481-482.
Hipóteses p a ra u m a teo ria c ^ u tíf ic a d a p erso n alid ad e 497

viva no seio das suas relações teóricas e práticas. Encontra-se,


portanto, à altura de apreender a sua própria história
enquanto processo, e de conceber a natureza, com a qual
constitui, efectivamente, um só corpo, de uma formá científica
(o que lhe permite dominá-la na prática» 66. E é ainda o
mesmo tema que retoma em O Capital, a propósito do carác­
ter fetiche da mercadoria: «Regra geral, o reflexo religioso
do mundo real não poderá desaparecer senão quando as con­
dições do trabalho e da vida prática passarem a apresentar
ao homem relações transparentes e racionais com os seus
semelhantes e a natureza. A vida social, de que a produção
material e as relações por esta implicadas constituem a base,
não se libertará do nevoeiro místico que lhe vela o carácter
senão no dia em que nela passar a manifestar-se a obra de
homens livremente associados, agindo conscientemente e
enquanto senhores do seu próprio movimento social.»67
A transparência de si para si não é, portanto, èm última
instância, de ordem psicológica, individual, contemplativa,
mas sim social, colectiva, prática. E é, sem dúvida, por isso
que, no próprio seio da sociedade capitalista, a vida militante
revolucionária, se não possui nada de uma taumaturgia, é,
contudo, com bastante frequência, de índole desalienante:
participar na transformação consciente das relações sociais,
que são a essência humana real, equivale a estar-se em
melhores condições de captar o segredo da sua génese e,
por consequência, da génese de si mesmo, equivale, adentro
dos limites historicamente existentes, a ascender à liberdade.

3. L eis d e d e se n v o lv im e n to e p ro b lem as d a r e p r o ­
d u ç ão ALARGADA. A BIOGRAFIA
Em função de tudo o que ficou dito atrás, de que modo
se apresenta o problema das leis de desenvolvimento da per­
sonalidade? A uma tal questão, como é óbvio, não pode estar
aqui em causa dar outra resposta que não seja, o mais franca­
mente possível, ao nível da mera hipótese, e das considerações
mais genéricas. Dois pontos fundamentais parecem, pelo

«r* F o n d e m e n ts, II. p. 36.


«• Le C a p ita l , I, 1. p. 91.
498 Marxismo e teo ria da personalidade

menos, ter sido estabelecidos. Em primeiro lugar, a investi- N


sacão de leis gerais de desenvolvimento da personalidade
humana, no sentido de um determinismo abstracto regendo
a formação de u m . homem-tipo, revela-se tão destituída d e ^
significado como de hipóteses de êxito. As únicas leis gerais \
de desenvolvimento da personalidade que é possível conceber
são leis dialécticas, enunciando as formas gerais de determi­
nação que permitem compreender a necessidade concreta de
desenvolvimento no âmbito de uma personalidade singular;
tais íeis são, portanto, em si mesmas, historicamente relativas,
tal como a topologia da personalidade a que correspondem. __
E o seu uso científico essencial consiste em fornecer as bases
teóricas de elaboração da lei de actividade e de crescimento
específico de cada indivíduo, ou, por outras palavras, do
sistema singular, de necessidades de desenvolvimento que
caracteriza cada personalidade. A necessidade profunda que
existe irrecusavelmente, na prática, no seio de toda a vida
individual, e sem a consciência e o domínio da qual não
poderia estar em causa uma verdadeira liberdade, não é, de
forma alguma, uma necessidade abstractamente geral de que
esta vida .individual seria uma ilustração particular, mas sim
uma necessidade concretamente inseparável da personalidade
de que-exprime a lógica específica de desenvolvimento. Mas
Л esta lógica específica não pode ser entendida caso não lhe
I captemos as articulações fundamentais, que remetem, em si
mesmas, para uma topologia de conjunto da personalidade,
' para as formas de individualidade que as subtendem, logo,

Í em definitivo, para as relações sociais que constituem a sua


base real, tal como representam a base da necessidade geral
no âmbito da qual ela se inscreve.

O segundo ponto que parece ter sido estabelecido é o


da triplicidade dos domínios nos quais pode estar em causa
i a investigação destas leis: psicobiológico, psicossocial e psi*
j cológico, no sentido em que este termo corresponde à
( teoria da personalidade propriamente dita. O sistema singular
.de necessidades de desenvolvimento que caracteriza cada •
‘^personalidade resulta, precisamente, da imbricação complexa
e contraditória entre estas três ordens de determinação.
1.JD crescimento das capacidades, por exemplo, passa neces­
sariamente pelas determinações psicobiológicas, de que as
leis de aprendizagem são uma das expressões. Ao mesmo
tempo, é dominado pelas determinações psicossociais, que, no
H ipóteses p a ra um a teo ria cien tífica d a p ersonalidade 499

seio de uma sociedade capitalista, regem, uitre outras coisas,


o valor da força de trabalho. Mas isto não é tudo: necessi­
dades neurofisiopsicológicas e necessidades sociais encon­
tram-se contraditoriamente integradas numa personalidade que
possui, enquanto tal, a sua lógica específica de crescimento,
em que, por exemplo, a aquisição de novas e determinadas
capacidades se apresenta como sendo uma exigência interna
de emprego do tempo. De uma forma geral, é visível que o
indivíduo não dispõe do poder de se emancipar, por si mesmo,
da necessidade psicobiológica, nem da necessidade psicos­
social; uma e outra surgem como sendo condições objectives
da vida pessoal. Mas, precisamente devido a esta razão, não
constituem aquilo que se pode entender propriamente pela
denominação de leis. de desenvolvimento da personalidade,
enquanto realidade psicológica específica animada por uma
necessidade interna. Na base desta última relação parece
haver aí sérias razões para adiantar a hipótese de que a lei
mais geral de desenvolvimento das personalidades, no sentido.,
dialéctico desta noção' de lei geral, é a lei da necessária
correspondência entre o nível das capacidades e a estrutura
do emprego do tempo. As razões teóricas que levam a adian­
tar esta hipótese são evidentes: o crescimento das capacidades
tende inevitavelmente para a indução de uma transformação
das actividades que as põem em prática, e, por consequência,
de uma modificação do sistema das suas relações temporais,
noutros termos, do emprego do tempo. Não se trata aqui, de
forma alguma, de uma decalcagem fácil, no respeitante à
psicologia da personalidade, da lei histórica da necessária
correspondência entre o nível das forças produtivas e o
carácter das relações de produção, mas sim, e prestemos-lhe a
devida atenção, de uma conexão objectiva de essência: a
posição justa-estrutural da personalidade relativamente à
sociedade é a base efectiva desta homologia parcial das leis
fundamentais. Esta homologia parcial parece ser, por outro
lado, empiricamente corroborada pelas lições que se extraem
de inúmeras práticas psicopedagógicas de reflexão. O que w n
indivíduo sabe fazer parece, de facto, não ser apenas aquilo
que o caracteriza mais profundamente, como também aquilo
que fornece a chave para a compreensão do seu desenvolvi­
mento tendencial; caso ele deixe de aprender, a sua personali­
dade orienta-se para a estagnação; caso ele transforme subs­
tancialmente as suas capacidades, a sua própria personalidade /
500 Marxismo e teo ria d a p ersonalidade

sofre, devido a tal facto, um forte impulso sobre as suas mais


profundas estruturas. Contudo, tal como o sublinhámos mais
atrás, trata-se aqui apenas de uma lei tendencial: a n ecessária^
correspondência entre o emprego do tempo e as capacidades j
define as exigências psicológicas internas de desenvolvimento )
do indivíduo. Mas este levar a concordar o emprego do tempo j
com as capacidades, facto que, por seu turno, condiciona o '
seu ulterior desenvolvimento, não pode, em larga medida,
realizar-se senão através da mediação das relações sociais
existentes. É aqui que a lei psicológica interna da necessária r
correspondência entre capacidades e emprego do tempo
esbarra com a lei psicossocial de determinação dos processos
de vida pessoal por intermédio das formas sociais de indivi­
dualidade, isto é, por intermédio das relações sociais. Estas \
determinam de forma soberana, em última análise, a topologia 1
de conjunto das personalidades, e o emprego do tempo real I
entra eventualmente em conflito com as necessidades psicoló- |
gicas internas de desenvolvimento, o que acarreta inúmeras (
consequências: encòntramo-nos aqui no próprio âmago da \
dinâmica mais profunda das personalidades, dinâmica esta \
que é, simultaneamente, socialmente determinada e concre­
tamente individual.
Facilmente se entrevê quantos problemas biográficos não >
poderiam ser abordados à luz de uma tal conceptualização. j
Limitemo-nos aqui a fornecer algumas sugestões a respeito do j
problema mais importante de toda a psicologia da personali- I
dade, no âmbito da perspectiva do humanismo marxista: o da
reprodução alargada, ou seja, em suma, o do desenvolvimento |[
máximo de cada personalidade. Não é difícil compreender^jj,
que este desenvolvimento depende directamente das relações
temporais entre o sector r e o sector и da actividade— rela­
ções cuja dialéctica é das mais complexas. Por um lado, o
progresso, em valor absoluto, do sector x surge como sendo
uma fonte imediata de desenvolvimento das capacidades,
mas, por outro lado, sem mesmo estar aqui a falar do facto
de que a própria actividade do sector ir deve alcançar, nesse
caso, o nível correspondente aos dispêndios psicológicos impli­
cados pelo sector i, sob pena de um equilíbrio de tipo para­
sitário — por exemplo, infantil—, o qual coloca, por seu
turno, inúmeros problemas, o desenvolvimento absoluto do
sector i não possui sentido, nem os seus próprios resultados .
H ipóteses p a ra u m a teo ria cien tifica da personalidade 501

são reais, senão na medida em que se desenvolva um sector и


que ponha, efectivamente, em prática as novas capacidades.
Caso contrário, toda a personalidade se encontra marcada
pelo subemprego das capacidades, subemprego esse que,
por seu turno, exerce inevitavelmente certos efeitos negativos
sobre o desenvolvimento da personalidade em geral, e, em
particular, da zona corresponde do sector i. Vemos, por­
tanto, logo na base de uma análise das mais simplistas, que o
desenvolvimento do sector i, base de todo o progresso da
personalidade, implica critérios de proporcionalidade perfeita-
mente definidos relativamente ao sector u , logo, à economia
geral do emprego do tempo.
Por outras palavras, não seria possível cometer um erro
mais profundo, quando se aborda o vastíssimo problema do
desenvolvimento das capacidades psíquicas dos indivíduos,
do que o de pensar exclusivamente nos obstáculos relativa­
mente externos nos quais é possível esbarrar-se, obstáculos
psicobiológicos e obstáculos psicossociais, que são, em si
mesmos, externos à estrutura específica da personalidade. Por
obstáculos psicobiológicos devemos entender aqui não tanto
as limitações neurofisiológicas imediatas — visto que, por
exemplo, à parte um número restrito de casos patológicos, a
aptidão de um cérebro humano normal para a elaboração
de aptidões psíquicas surge como sendo praticamente inesgo­
tável, relativamente ao estádio actual de desenvolvimento do
património social— , mas sim certas limitações indirectas,
como, por exemplo, a incidência de um tipo nervoso ou de
particularidades caracteriais, no respeitante às condições indi­
viduais de aprendizagem; obstáculos esses que são, por outro
Jado, e com bastante frequência, muito mais sociais do que
naturais, no âmbito da sua causalidade profunda, não obstante
a sua consistência psicobiológica, e passíveis de serem objecto
em primeiro lugar, de transformações sociais correctivas. Por
obstáculos psicossociais devem entender-se todas as limitações
impostas directamente pelas condições sociais à aquisição de
novas capacidades, como* por exemplo, o conjunto das con­
dições económicas e sociais, das estruturas escolares e univer­
sitárias, que, num país capitalista, tornam objectivamente
difícil, até mesmo impossível, a uma criança, um adolescente
ou um adulto, o prosseguir frutuoso de um ciclo de estudos,
ou o melhorar da sua qualificação profissional. Estas duas
502 Marxismo e teo ria da personalidade

espécies de obstáculos podem vir a ter na vida de um indi­


viduo uma importância considerável. Contudo, surgem como
essencialmente contingentes, caso os encaremos do ponto de
vista da personalidade considerada em si mesma, visto que
não advêm das particularidades internas do seu emprego do
tempo, e não pertencem, necessariamente, à sua lógica espe­
cífica. É, na realidade, por isso que, por outro lado, a
refutação da ideologia burguesa dos «dons» permanece
essencialmente por completar, se. nos limitarmos a ficar pela
demonstração do carácter social dos obstáculos com os quais
esbarra o desenvolvimento psíquico do indivíduo como tra­
tando-se de condições exteriores, mesmo quando surgem
igualmente adentro de si, sob uma forma psicobiológica:
porque o que permanece, nesse caso, por explicar é o dina­
mismo interno do crescimento pessoal e as suas particulari­
dades, isto é, no seio de determinadas condições sociais, mas
independentemente delas na aparência, o essencial daquilo
que se pretende compreender, e daquilo a respeito do qual
seria necessário sermos capazes de agir.
Ora, se reflectirmos na base do conjunto das considerações
desenvolvidas mais atrás, esta questão crucial do dinamismo
interno do crescimento pessoal e das suas particularidades é,
antes do mais, a que chamarei a composição orgânica do
r emprego do tempo, isto é, a relação entre a parte do emprego
{ do tempo que advém do sector l e a que advém do sector n.
1 Um elevado índice de composição orgânica do emprego do
j tempo significa que o emprego do tempo comporta uma
! importante proporção de actividades de aprendizagens.
i O desenvolvimento da personalidade baseia-se na manutenção
permanente de um elevado índice de composição orgânica
do emprego do tempo. Abstracção feita das condições bioló­
gicas e sociais que podem influir sobre este índice de com­
posição orgânica, é evidente que, do ponto de vista da
dinâmica interna da personalidade, ele é essencialmente regido
p
pela — geral das actividades do sector i. Para levar ainda
N ■
mais longe a análise é, portanto, indispensável que voltemos
à noção crucial de produto psicológico, e, em particular, a
uma das componentes, na ocorrência fundamentais, deste
produto: a que designarei pelo tempo de progresso psicoló- \
gico. Chamo progresso psicológico a toda a aquisição ou \
.A iO '
Hipóteses par» m a teo ria cien tifica da personalidade 503

I especificação das capacidades, a todo o aumento do fundo


j fixo que estas constituem. O produto psicológico é a súmuia
dos resultados, de toda a .natureza, de uma actividade sobre
o conjunto da personalidade, sendo o progresso psicológico
o seu eventual resultado positivo unicamente sobre as capa­
cidades. Bem entendido, a parte do progresso, enquanto
elemento motivador de uma actividade no conjunto do seu
produto, é eminentemente variável, de modo que, pondo de
parte todas as igualdades, o produto psicológico de uma
actividade de sector I variará segundo o índice de progresso
que esta acarretar no respeitante ao fundo fixo das capaci­
dades: ao nível dos regulamentos mais imediatos, é, no âmbito
da nossa hipótese, aquilo que se traduz pelo facto de que,
num dado indivíduo, e em determinadas condições, uma
actividade de aprendizagem poderá surgir como atraente,
enquanto, no caso de um outro, ou no seio de outras con­
dições, esta poderá surgir como desagradável. Todo o pro­
blema consiste precisamente em esclarecer o mecanismo des­
tas variações, de tão grande importância, relativas ao pro­
gresso e ao produto psicológico adentro do sector i.
A reflexão sobre um dos fenómenos psicológicos mais
universais e mais evidentes, se bem que seja, contudo, obser-
vando-o mais de perto, também um dos mais enigmáticos,
pode fornecer-nos, a esse respeito, um contributo altamente
importante: trata-se daquilo a que se poderia chamar a baixa
tendencia!, do índice do progresso no caso de um indivíduo
desenvolvido, a qual se exprime na tendência, extremamente
generalizada, das personalidades para a estagnação e a ossifi-
cação ao longo dos anos — fenómeno este tanto mais
enigmático quanto, embora se encontre extremamente genera­
lizado, não possui de forma alguma, apesar disso, o carácter
universal de uma necessidade natural. Independentemente
das condiçõs exteriores, o índice de progresso pode baixar
porque baixa o rendimento de um mesmo volume de apren­
dizagens, ou porque baixa o volume de aprendizagens, tendo-
-se o seu produto psicológico degradado, ou ainda porque
aumenta o fundo fixo das capacidades. A fim de compreen­
dermos este último ponto, é necessário termos previamente
efectuado uma perfeita distinção, segundo me parece, entre
composição orgânica do emprego do tempo e composição
orgânica da personalidade. Por composição orgânica da per-
504 M arxism o e teo ria d a personalidade

sonalidade entendo a vastidão e o nívei das capacidades de


um indivíduo, o nível geral da sua qualificação relativamente
ao conjunto das actividades que executa. Ora, é evidente que,
se o aumento da composição orgânica da personalidade
depende directamente do indíce de composição orgânica do
emprego do tempo — isto é, por exemplo, que os progressos
da qualificação de um indivíduo num determinado ramo de
actividade dependem da parte relativa do seu emprego do
tempo que é consagrado às correspondentes aprendizagens —
em contrapartida, o aumento da composição orgânica da
personalidade, por outras palavras, do seu índice de progresso,
não permanece, de forma alguma, constante se a composição
orgânica do emprego do tempo permanecer constante. Se, por
exemplo, em dez horas de actividade psicológica duas horas
forem consagradas a actividades de aprendizagem, redução
feita do emprego do tempo fenomenal ao emprego do tempo
real, o efeito de progresso acarretado por essas horas será
proporcionalmente bastante inferior, pondo de parte todas
as igualdades, sobre a personalidade de um adulto, que já
possui numerosas capacidades desenvolvidas (logo, sobre uma
personalidade de índice de composição orgânica elevado) do
que sobre a personalidade de uma criança de fraca compo­
sição orgânica. Trata-se aqui de um facto capital aparente­
mente espontâneo e atestado pela mais constante observação
do desenvolvimento individual: um mesmo «volume» de
aprendizagens de novas capacidades em pouco alterará as
estruturas da personalidade de um homem que já possui
bastantes capacidades e conhecimentos análogos, enquanto
pode marcar uma viragem no desenvolvimento pessoal de
uma criança para quem elas são realmente novas.
Este fenómeno da baixa tendencial do índice de progresso
parece-nos possuir uma enorme importância, tanto em si
mesmo como através do seu alcance teórico geral. Em pri­
meiro lugar, permite desmascarar a espantosa ilusão biolo­
gista que se oculta por detrás da aparência anodina e
inatacável da noção de envelhecimento. É claro que não está
em causa ignorar -a realidade biológica dos processos de senes-
cência, de que, pelo contrário, é de facto certo que a sua
consistência nos irá surgindo, com uma nitidez sempre cres­
cente, à medida que se forem verificando progressos nas
investigações psicobiológica_s. Mas o erro biologista, tanto
H ipóteses p a ra u m a te o ria cien tífica d a p ersonalidade 505

aqui como alhures, tem lugar a partir do instante em que se


transforma a senescência biológica numa origem mais ou
menos imediata de senescência 4a personalidade, escamo­
teando, assim, por detrás de ища necessidade natural o
conjunto dos processos de essência social que se traduzem
pelo envelhecimento psicológico, o qual é, na realidade, um
envelhecimento tão pouco biológico quanto, na maioria dos
casos, este se pode observar massivamente em indivíduos
jovens de personalidade precocemente esclerosada, enquanto
noutros, apesar da sua já avançada idade, este é pouco
marcado, e em que a personalidade continua a ser susceptível
de espantosas retomadas de crescimento. Pelo contrário, as
análises precedentes contribuem para o deflagrar do profundo
sentido social do fenómeno, tomándo-o assim claro, e, por
consequência, da sua relatividade histórica: a longevidade
psicológica é igualmente, em larga medida, fruto do regime
social. Porque a baixa tendencial dò índice de progresso, fonte
de ossificação das relações constitutivas da personalidade, é,
em primeiro lugar, e logo desde a infância, induzida nos
indivíduos através das relações sociais que se opõem, tanto
do interior como do exterior, a uma composição orgânica
elevada do emprego do tempo, quer qualitativa quer quanti­
tativamente: é no que consiste, por exemplo, todo o problema
de uma verdadeira reforma democrática — e, para além disso,
r socialista— do ensino, da formação profissional, do acesso
à cultura, problema esse que é aqui colocado, entre muitos
outros. Mas, sejam quais forem as' cedências a que for cons-
\ frangida a aceder, a sociedade capitalista possui, por essência,
\ ; o facto de se opor à reprodução indefinidamente alargada das
I ! capacidades entre a grande massa dos indivíduos, porque um
!I dos seus traços mais fundamentais é o d e transformar a força
' Г ; de trabalho em mercadoria e de a págar pelo seu valor, noutros
I termos, em função das condições niinimais da sua produção e
! da sua reprodução: muito antes de a senescência biológica ter
I j entrado, indirectamente, em jogo já as relações capitalistas
4 í exerceram, a este resepito, uma incessante influência inibidora,
! para além de um certo ponto, sobre todas as actividades
humanas de desenvolvimento das capacidades, no âmbito do
sector, geralmente decisivo, da personalidade abstracta —
tendendo o produto destas actividades, para além deste ponto.

33
506 Marxismo e teo ria da personalidade

para o grau zero68. Com muito mais razão, o capitalismo


surge como sendo radicalmente incapaz de resolver os pro­
blemas, ainda muito mais difíceis, da baixa tendencial,
aparentemente espontánea, do índice de progresso: à medida
que o fundo fixo das capacidades de um individuo aumenta
parece ser, efectivamente, inevitável, na base de um mesmo
aumento absoluto das capacidades, que se produza sobre esse
fundo fixo, e, dessa forma, sobre toda a. personalidade, um
efeito de alteração cada vez mais fraco. Este facto é tão
verdadeiro no que respeita a um sector determinado da activi-
dade como à personalidade no seu conjunto, e traduz-se
tendencialmente, em ambos os casos, sob a forma fantástica
de uma resistência rapidamente crescente ao progresso, de
uma inércia psicológica, quase intransponível para além de
um certo limite, a qual alimenta ilusões ideológicas das mais
tenazes. Se a estrutura da personalidade depende, em última
análise, e do ponto de vista interno, do nível das suas capaci­
dades, não há, contudo, nada de misterioso no facto de que a
flexibilidade espontânea de uma personalidade de fraca com­
posição orgânica (criança, até mesmo adolescente) tenda a
transmutar-se em rigidez à medida que o aumento da compo­
sição orgânica da personalidade acarreta, pondo de parte
todas as igualdades, uma baixa do índice de progresso.
A esta ossificação tendencial da personalidade vem corren­
temente acrescentar-se então, no âmbito das condições do
capitalismo, mais um fenómeno que resume, simultaneamente,
todos os outros e constitui, por seu turno, o obstáculo mais
decisivo a novos progressos psicológicos, e que designarei
pelo termo dicotomia. Chamo dicotomia da personalidade ao
conjunto dos processos de separação e de compartimentação
entre os seus diversos sectores, e, principalmente, entre perso­
nalidade abstracta e personalidade concreta, dicotomia esta
fundamental que orienta, por seu turno, múltiplas outras
dicotomias derivadas, pulsações cadenciadas de empregos do
tempo mal sintetizados. Suponhamos que numa personalidade

и isso não exclui o fenómeno inverso, por meio do qual o capita­


lismo gratifica certas capacidades particulares, sem que possuam qualquer
medida comum com o seu valor real, contando que estas o sirvam, e
impele-as, através da atribuição de mais-valla, de poder social, de pres­
tígio cultural, a um desenvolvimento m onstruoso: h á nesse facto, em.
m ulto m enor medida, um a compensação do que u m corolário efectivo
à alienação geral das condições de crescimento das capacidades no seio
do capitalismo, m uito em particular no seu estádio final.
Hipóteses p a ra u m a teo ria cien tífica d a personalidade 607

desenvolvida, cujo índice de composição orgânica é, por con­


sequência, relativamente elevado em relação ao de uma perso­
nalidade infantil, as condições sociais, como acontece, com
bastante frequência, no seio do capitalismo, constrangem a
actividade abstracta a adquirir as formas mais alienadas,
reduzindo o trabalho social ao nível de uma desagradável
estopada e opondo-se, de muitas e variadas formas, à repro­
dução alargada da força de trabalho: o produto psicológico
da actividade abstracta, e em particular adentro do sector i a,
encontra-se, portanto, bloqueado por essas condições exter­
nas. Daí resulta que a aquisição de novas capacidades neste
sector perde, para o próprio indivíduo, todo o carácter atrac­
tivo, e, mediante uma determinação que toma, então, formas
psicológicas internas, susceptíveis de lhe mascararem as causas
sociais objectivas, a composição orgânica do emprego do
tempo irá apresentar uma tendência para baixar no conjunto
da actividade abstracta. O produto psicológico que esta
acarreta degrada-se do próprio ponto de vista da sua compo­
sição, visto que passa a comportar cada vez menos progressos,
o índice de progresso inflecte, a personalidade abstracta no
seu conjunto perde o seu dinamismo e esclerosa-se, aprofun­
dando-se a sua separação relativamente à personalidade con­
creta. Voltamos a encontrar aqui, no âmbito do terreno da
teoria da personalidade, toda a análise económica de Marx
sobre o trabalho alienado: aqui, o trabalho social deixa de
ser uma «manifestação de si» para ser rebaixado ao nível de
um simples meio desumanizado de «ganhar a vida». Todo o
restante dinamismo refugia-se, então, no outro sector, o
sector da personalidade concreta, no qual as contradições
gritantes da personalidade abstracta, e da personalidade pura
e simples, não só não encontram a sua solução, como, antes
pelo contrário, fogem à sua faltâ de resolução. Como este
sector é, para a grande maioria dos homens, no seio do
capitalismo, o de uma actividade individual separada das
modernas forças de produção, separada das decisivas relações
sociais entre os próprios homens, este dinamismo não vai
encontrar outra forma de se investir que não seja em activi­
dades limitadas, em derivações e compensações mesquinhas,
que não poderão, em si mesmas, senão limitar-se a assistir ao
decréscimo do seu próprio índice de composição orgânica: o
indivíduo nem sequer voltará a aprender novas formas de se
((manifestar» no âmbito da sua vida concreta, passando, sim,
608 M arxismo e teo ria da personalidade

a limitar-se r eproduzír no sector и as que já adquiriu. Não


é verdade que esta análise da dicotomia já se encontra sugerida
numa das páginas de maior profundidade de análise, do ponto
de vista psicológico, de A Ideologia Alemã, e em que Marx
sublinha
«a conexão existente entre os prazeres dos indivíduos
em cada época e as relações de ciasse, em si mesmas
engendradas pelas condições de produção e de trocas,
no âmbito das quais tem lugar a vida desses indivíduos,
a pobreza dos prazeres conhecidos até aqui, estranhos
ao conteúdo real da vida dos indivíduos e em contra­
dição com ele»?

Numa passagem, riscada no manuscrito, precisava:

«De uma forma geral, os prazeres de todas as castas


e classes que existiram até ao presente não podiam
deixar de ser senão pueris, esgotantes ou brutais porque
se encontravam sempre separados do conjunto da
actividade, do verdadeiro conteúdo da vida dos indi­
víduos, reduzindo-se, çm maior ou menor medida, a
fornecer uma aparência de conteúdo a uma actividade
que dele fora desprovida.» 69

No seio das condições de uma dicotomia declarada, e


seja qual for a sua idace biológica, um indivíduo deriva para
a estrutura senil da personalidade, ou seja, para uma estru­
tura em que predomina o quadrante n c, sem outra relação
que não seja abstracta com a importância relativa, social-
mente inevitável no caso de quem tem de ganhar a vida, do
quadrante и a: a actividade abstracta já não passa de um
meio para ganhar a vida concreta que, longe de ser ela própria
um fim em si, desempenha o papel de compensação ilusória
para a alienação da vida abstracta. Uma tal personalidade
encontra-se. portanto, alienada até aos seus mais profundos
recônditos pelas relações capitalistas, em maior ou menor
medida travestidas em (-coordenadas» psicológicas. A sua pro­
funda dicotomização, obstáculo intransponível a todo o

69 L'idéologie allemande>. p . 460.


H ipóteses p ara um a te o ria cien tífica d a personalidade 609

u лог progresso, limita-se a exprimir, em última instância


a separação primordial entre o indivíduo e as forças sociais
produtivas, facto que cinde a sua própria vida em duas partes
que só fortuitamente se interligam, e entre as quais, se assim
nos podemos exprimir, o espírito já não circula. Que se
venham juntar a este facto enormes fraquezas superstru-
turais, uma inconsciência genérica das relações sociais — e,
por consequência, humanas — reais, e passamos a possuir o
retrato sumário do indivíduo biográficamente alienado ao
ponto de ser uma vítima consentidora de uma forma de
sociedade que lhe destruiu literalmente a personalidade.
Talvez que esta curta introdução hipotética a um esclareci­
mento da vida mesquinha, adentro de uma das suas formas
características da sociedade burguesa, contribua para ajudar
a ler as páginas, extremamente ricas, dos Grundrisse, em que
Marx compara as formas de individualidade próprias dos
diversos tipos de relações sociais:
i

«No seio da economia burguesa e na época corres­


pondente, em vez do integral desenvolvimento da
interioridade humana, o que tem lugar é o seu total
despojamento; esta objectivação universal surge como
sendo total, e o derrube de todos os entraves unilaterais
como sendo um sacrifício do fim em si a um fim perfei­
tamente externo. É por isso que o juvenil mundo antigo
surge como um mundo superior. E é-o efectivamente,
no respeitante ao facto de que em todo o lado em que
procuremos uma figura completa, uma forma e con­
tornos perfeitamente definidos, encontramo-la. Ele
representa satisfação a uma escala limitada, enquanto
o mundo moderno deixa em nós um travo amargo
de insatisfação, ou, caso contrário, se representa
alguma satisfação, é a da trivialidade.» 70

Mas este esboço de análise de uma das formas dos


obstáculos que a reprodução alargada da personalidade
encontra no seu caminho não possui, em si mesmo, o seu
próprio fim; tem por função sugerir investigações a serem
empreendidas sobre as condições gerais para a eliminação

to Fondements, I, p. 460. Sou eu que sublinho.


510 Marxismo e teo ría d a personalidade

destes obstáculos. Porque a tarefa de maior alcance que a


psicologia da personalidade tem para cumprir, tal como nos
a entendemos, não é a de não sei que «classificação» dos
«tipos» a partir de critérios mais ou menos fenomenais e
estranhos à vida humana real, visando fornecer aos indiví­
duos a satisfação, perfeitamente especulativa, de eles próprios
se poderem situar no âmbito de uma. nomenclatura, até
mesmo, mais prosaicamente, a facilitar a sua inserção num
processo socioeducativo ou num sistema de divisão de tra­
balho preestabelecido; é, sim, a de descobrir as raízes comuns
e as formas psicológicas singulares do limite de desenvolvi­
mento das personalidades no seio de uma dada sociedade, e
de indicar, no que concerne ao que depende da psicologia, as
condições para a sua supressão. Como é possível que, numa
dada sociedade, a par de inúmeros indivíduos de desenvolvi­
mento atrofiado, que nem sequer possuem a ideia ou o desejo
de lutar contra as condições da sua própria atrofia, possam
existir outros, que, contudo, são seus semelhantes, cujo desen­
volvimento fornece uma elevada ideia das possibilidades do
homem, e que lutam, inclusive, contra as próprias condições
de atrofia dos primeiros? E o que será necessário fazer
para que os primeiros se elevem, numa medida sempre cres­
cente, ao nível dos segundos, isto é, para que o conjunto dos
indivíduos, no âmbito da incessantemente acrescida diversifi­
cação das pessoas, consiga alcançar o desenvolvimento máximo
que uma determinada etapa do desenvolvimento histórico
comporta? A esta questão, de uma enorme amplitude, a
reflexão sobre o fenómeno da baixa tendencial do índice de
progresso, aqui prosseguida de uma forma perfeitamente
hipotética, com absoluta consciência de tal facto, e a título
meramente indicativo, não estaria em condições de fornecer
alguns elementos parciais para uma resposta? Esquematica­
mente, como o vimos, a baixa tendencial do índice de pro­
gresso resulta de uma tripla determinação: biológica (degra­
dação da capacidade de aprendizagem), social (decréscimo e
até mesmo o anular da incitação social à aprendizagem, para
além de um certo ponto), e específicamente psicológica
(diminuição do índice de progresso «espontaneamente» acarre­
tado pelo aumento da composição orgânica da personalidade).
Se deixarmos de lado a primeira, que não tem, propriamente,
relação com os nossos propósitos, a segunda surge, de imediato,
como sendo uma condição decisiva, como que uma chave do
Hipóteses p a ra a teo ria cie n tífic a da p ersonalidade 511

problema. A excentricidade posicionai, de índole social, da


essência humana, pela primeira vez claramente formulada na
V I Tese sobre Feuerbacht traduz-se aqui pelo facto evidente
de que as perspectivas de desenvolvimento da personalidade
humana implicam necessariamente a transformação radical
das relações sociais: a passagem revolucionária do capitalismo" \
para o socialismo é, tanto para o indivíduo como para. a socie- \
dade, a condição perfeitamente evidente da emancipação. /
Com efeito, é devido ao facto de separar o indivíduo das
forças produtivas, de converter o próprio homem em merca­
doria, de basear o enriquecimento social no roubo do tempo
de trabalho e do tempo livre da esmagadora maioria dos
indivíduos que o capitalismo esclerosa e dicotomiza até ao
mais profundo do seu foro íntimo as personalidades. Ora, a
passagem para o socialismo, mesmo sendo efectuada no seio
das mais desfavoráveis condições históricas e agravada pelas
maiores desvantagens,, elimina o obstáculo mais decisivo nesta
matéria, o que não significa, bem entendido, que volatilize
instantaneamente as contradições herdadas das anteriores rela­
ções sociais. Ao pôr fim à separação efectiva entre o indivíduo
e as forças produtivas através da socialização dos meios de
produção, ao libertar o homem da forma-mercadoria, ao levar
a quantidade e a qualidade do trabalho fornecido a desem­
penhar um papel real e directo na determinação dos rendi­
mentos, o socialismo, se não elimina toda a oposição entre
trabalho concreto e trabalho abstracto e, por consequência,
entre personalidade concreta e personalidade abstracta, cria
as condições objectivas para que esta oposição deixe de apre­
sentar a forma de uma contradição autagonista: nem que fosse
só por isso, representa também para a personalidade humana
uma viragem de importância verdadeiramente histórica. Tal
como emancipa o crescimento das forças sociais produtivas
dos iinperativos do lucro capitalista, liberta igualmente, na
sua essência, o desenvolvimento das capacidades individuais
da limitação externa que representa, no âmbito do capitalismo,
a avaliação minimal da força de trabalho. Tanto no respeitante
à sua base económica como às medidas sociais, políticas e
culturais que normalmente comporta, representa o rastilho do
vastíssimo processo histórico que dissipará a dicotomização

ti Cí. Fondements, П , p p . 222 e 225.


Marxismo e teo ria da personalidade
512

dos indivíduos e levará a que coincidam, a nível superior,


o trabalho social e a manifestação de si. Neste sentido, como
tão frequentemente o referiram os mais diversos observadores
da realidade socialista, contanto que tenham sabido dar provas
de abertura e de largueza de vistas, este novo modo de relações
sociais abre a via de acesso à reconciliação do homem consigo
mesmo, ao integral desenvolvimento de cada personalidade;
entre a essência humana objectiva e a existência individual,
as relações justa-estruturais podem principiar aí a tomar-se,
enfim, concretamente recíprocas: o humanismo marxista pos­
sui aqui a mais profunda das suas confirmações experimen­
tais. É por isso que, aliás, a teoria da personalidade não pode­
ria entregar-se a nenhuma investigação empírica mais instru­
tiva para si do que a de estudar pormenorizadamente, longe
quer de toda a preocupação apologética quer de todo o
apriorismo depreciativo, as transformações reais das formas
de individualidade e das estruturas das personalidades singu­
lares induzidas nos indivíduos pelas sociedades socialistas ao
longo das suas várias fases, e tendo em conta as condições
históricas específicas de cada país.
Mas sem dúvida que um tal estudo não deixaria igual­
mente de tornar patente de que modo esta forma de sociedade,
etapa superior da emancipação humana, não deixa, por
isso, dê permanecer tributária, para além das sequelas, mais
ou menos duráveis, herdadas das anteriores formas sociais,
de necessidades históricas que não poderia, por muito pouco
que fosse, desconhecer sem que infligisse, dessa forma, tanto
a si mesma como aos indivíduos que nela se desenvolvem,
prejuízos dos mais graves. Em particular, se, tal como Marx
o repetiu insistentemente, o desenvolvimento das capacidades
dos indivíduous resulta, antes do mais, da apropriação das
forças produtivas à qual estes se entregam na base do trabalho
social, é evidente que um progresso substancial das capaci­
dades da grande maioria dos indivíduos, logo, a anulação dos
efeitos esclerosantes sobre as personalidades da baixa tenden-
cial do índice de progresso, pressupõe, em última análise, um
desenvolvimento universal destas forças e a sua reprodução
continuamente alargada. É o que Marx sublinhava já em
A Ideologia Alemã, quando demonstrava que a supressão da
alienação dos indivíduos dependia aí, em primeiro lugar,
desse desenvolvimento.
H ipóteses p a ra u m a te o ria c ien tifica d a p erso n alid a d e 613

«condição prática previí absolutamente indispensá­


vel, porque, sem ele, sena a penúria a tornar-se geral,
e, com a necessidade, seria também a luta pelo indis­
pensável à sobrevivência que voltaria a ter lugar e
recair-se, fatalmente, na mesma e velha porcaria» 4
Á
Esquecer esta verdade marxista cardinal, e imaginar, tal
como aconteceu na China, que uma revolução cultural volun-
tarista poderia -levar a um avanço massivo das consciências
para além das bases reais da vida, social, equivale a cometer
um erro teórico e político de primeira grandeza; e após tudo
o que ficou dito sobre a teoria d;a personalidade, articulada
com o materialismo histórico, parece permissive! acrescen­
tar-se que é igualmente um erro psicológico fundamental,
empiricamente verificável', aliás, píelos seus efeitos. Mas se o
aumento das forças produtivas, còm todas as transformações
das relações sociais que este tom a possível, é a condição
objectiva última para o aumento das capacidades individuais,
e das correlativas transformações dos empregos do tempo, daí
não resulta, de forma alguma, que as duas séries de proces­ /
sos, mediante a sua lógica interna, tenham de se desenrolar
ao mesmo ritmo. Regra geral* pejo contrário, o ritmo a que
amadurecem e exigem solução as contradições biográficas é,
bem entendido, muito mais rápido do que o do desenvolvi­
mento social no seu conjunto. Esquematizando ao extremo
e pondo de lado inúmeros outros aspectos da questão, parece
poder ver-se nesta ausência de acoplamento temporal, em si
mesma inevitável no âmbito do próprio socialismo, um risco
permanente de elevação máxima das capacidades individuais,
de baixa tendencial do seu índice de progresso, de esclerose
e de dicotomização das personalidades. Se bem que já não se
encontrando inscrita, como adentro do capitalismo, no próprio
âmago das relações de produção, o que representa um enorme
progresso histórico e liberta as contradições existentes do seu
carácter intrinsecamente antagonista, existe, com toda a evi­
dência, no seio do socialismo, a possibilidade de que a lei de
correspondência necessária e n tre;capacidades e emprego do
tempo se venha a encontrar contrariada, de uma forma mais
ou menos declarada, pela relatiya morosidade de evolução72

72 Vidéologie allemande, pp. 63 e 64.


514 Marxismo e teo ria d a personalidade

das formas objectivas de individualidade, de que a insufi­


ciente mobilidade do produto da actividade abstracta desvie
o dinamismo psicológico para as mesquinhas formas da vida
tão justamente denominada de privada.
A este respeito, e não obstante as suas dificuldades noutros
planos, o «período heroico» da passagem para o socialismo
surge como sendo mais fácil do que a sua complexa edifi­
cação ulterior: no respeitante às personalidades criadas no
■У âmbito do capitalismo e vítimas das suas contradições, este
período exaltante da passagem em que, temporariamente, a
história avança com extrema rapidez, até mesmo com maior
, . rajpidez do que a própria personalidade, oferece vastíssimas
'^p o ssib ilid ad es de aceleração dos progressos das capacidades
individuais, de reformulação das estruturas do produto psico-
lógico e do emprego do tempo, de reconciliação entre a vida
i abstracta e a vida concreta, de solução dos problemas de
índole relacional com a sociedade e relativos às relações inter­
pessoais. Mas quando as novas relações sociais se encontram
estabilizadas, as coisas apresentam-se de um modo totalmente
diferente, nomeadamente para as gerações que se forjaram
no seu seio. A vantagem psicológica da instauração do socia­
lismo encontra-se, nessa altura, directamente relacionada com
a execução prática efectiva e multiforme da superioridade
qualitativa que representam a colectivização, a desalienação
do trabalho e das relações sociais, a eliminação dos obstá­
culos de classe, no âmbito da via do progresso em todos os
domínios. É certo que a personalidade permanece sempre
determinada por uma essência humana posicionalmente ex­
cêntrica, por formas de individualidade sociais, por uma
lógica objectiva do emprego do tempo, de que não possui o
poder individual imediato de modificar, segundo os ritmos
e no sentido que lhe convém. Mas é parte integrante da essên­
cia do socialismo oferecer a cada um as mais vastas possibili­
dades de participar nos esforços colectivos empreendidos para
as modificar, logo, para levar a derivar o dinamismo psicoló­
gico, que as condições ainda não permitem, no sector i,
absorver para além de um certo ponto, precisamente em
direcçao às actividades sociais de transformação dessas con­
dições; por outras palavras, para abrir às contradições funda­
mentais das personalidades, que as relações socialistas ainda
não eliminaram, num determinado estádio do seu desenvolvi­
mento, o mais vasto campo, possível a fim de que estas possam
H ipóteses p a ra u m a te o ria cien tífica d a p ersonalidade 515

exteriorizarse socialmente, e encontrar uma. solução relativa


no âmbito das actividades militantes, no sentido mais lato
e diversificado do termo, no âmbito das actividades criadoras
que contribuem, cada uma à sua maneira, para elevar a socie­
dade a um plano evolutivo superior. De uma forma geral, as
contradições essenciais das personalidades, de que o desenvol­
vimento histórico ainda não eliminou as bases, ou bem que
se refugiam no interior de si mesmas, no seio da dicotomi-
zação e da vida privada, ou bem que são prosseguidas exter­
namente no âmbito da excentricidade posicionai consciente
da vida militante. Vemos aqui a importância efectivamente
vital que, do próprio ponto de vista da psicologia da persona­
lidade, apresenta a democracia socialista. Porque a democra­
cia socialista viva concretiza, precisamente, a eliminação de
todo o obstáculo de classe ao tomar em mãos dos seus pró­
prios problemas por parte dos indivíduos associados, permi­
tindo-lhes, por consequência, aceder, adentro dos limites histo­
ricamente existentes,- a um desenvolvimento multiforme das
suas capacidades —: inclusive a de governar o Estado, segundo
as palavras de Lenine— e, precisamente devido a tal facto,
a levar esses limites a recuar até ao integral desenvolvimento
da sua personalidade. Pelo contrário, uma sociedade socia­
lista que não facultasse o seu pleno desenvolvimento às corres­
pondentes formas de democracia, encerrando os indivíduos
adentro das contradições da sua personalidade, atirá-los-ia,
necessariamente, de novo para a dicotomização e os seus
paraísos artificiais, sejam eles quais forem, ou seja, que, para­
doxalmente, reactivaría, assim, algumas das contradições psi­
cológicas características do capitalismo, e, o que é pior, pri­
vadas da perspectiva da revolução socialista libertadora.
Vemos aqui, mais uma vez, de que modo a psicologia da per­
sonalidade assim entendida, longe de nos afastar da análise
política, a esta nos leva de volta. A vocação política mais pro­
funda do socialismo está em pôr democraticamente a sua
confiança nas massas; ora, também de tal facto depende intei­
ramente a solução dos problemas psicológicos do homem do
socialismo.
Contudo, mesmo se o socialismo, utilizando da melhor
forma possível as suas superiores virtualidades democráticas
e humanistas, liberta o produto psicológico das actividades de
aprendizagem de todo e qualquer limite que não seja o do
nível geral, atingido em cada época, pelo próprio desenvol-
516 Marxismo e teo ria da personalidade

vimento social, e, dessa forma, se encontra à altura de criar


homens superiormente desenvolvidos, a baixa tendencial «es­
pontánea» do índice de progresso parece de facto continuar,
contudo, a ter lugar para neíe se manifestar. Tanto no socia­
lismo como no capitalismo, a proporção em que um mesmo
volume de actividades de aprendizagens altera o fundo fixo
das capacidades, e mantém a flexibilidade das estruturas da
personalidade, não cessa de diminuir à medida que vai aumen­
tando a soma das capacidades já adquiridas. Neste sentido,
será necessário admitir que, seja em que sociedade for, cada
personalidade tende necessariamente para a esclerose, precisa­
mente devido aos seus progressos, e independentemente dos
efeitos de senescência biológica? Esta conclusão pessimista
seria irrecusável se o fenómeno de baixa tendencia! aqui con­
siderado fosse realmente espontâneo, tal como parece sê-lo,
isto é, independentemente das estruturas sociais e da sua trans­
formação histórica. Mas trata-se aqui de uma ilusão. Temos
.vindo a considerar o fundo fixo da personalidade como sendo
uma simples soma de capacidades idênticas; ora, este exige
igualmente ser analisado qualitativamente. Assim, para nos
atermos às observações mais elementares, não se podem evi­
dentemente, equiparar formas de capacidades tão diferentes
como o são a competência num determinado ramo da pro­
dução material e a aptidão para a investigação científica, a
cultura artística e a experiência da organização social, o talento
pedagógico e o treino desportivo. Na realidade, na medida
em que o património social humano, a partir do qual o indi­
víduo se desenvolve psiquicamente, é praticamente inesgotá­
vel ao longo de uma vida humana, o fundo fixo das capaci­
dades, por mais vasto e diverso que possa ser no seio de uma
personalidade, permanece sempre como qualitativamente
lacunar, em todo o indivíduo, a composição orgânica da per­
sonalidade é algo de intrinsecamente desigual. Nestas condi­
ções, que, no âmbito de um determinado sector perfeitamente
definido das capacidades, como, por exemplo, a competência
para uma determinada actividade profissional, tenda a ope­
rar-se espontaneamente uma baixa do índice de progresso à
medida que vai tendo lugar o desenvolvimento — o que é,
bem entendido, inevitável — e que, neste sentido, o dinamismo
psicológico tenda, ele próprio, a excluir-se a pouco e pouco
do domínio que tornou fecundo, tal facto não impede, de
forma alguma, as actividades de aprendizagens de se deslo-
Hipóteses p a ra u m a teo ría cien tifica d a p ersonalidade 517

сагеш para outros sectores de mais fraca composição orgâ­


nica, em que um elevado índice de progresso continua, por-
tanto, a ser sempre poss ’vel, contribuindo, assim, para manter
a flexibilidade geral da personalidade. Mas tal facto pressu­
põe que o indivíduo ter ha a possibilidade social de transfor­
mar as próprias bases со seu emprego do tempo em função
das exigências da sua rida pessoal. Ora, esta possibilidade
social não pode ser efectivamente facultada a cada um a não
ser na base de um desenvolvimento universal das forças pro­
dutivas, de uma extrema fluidez de todas as relações sociais,
do recurso concreto a vastíssimos meios que permitam a cada
indivíduo desenvolver-se em todos os sentidos; em resumo,
pressupõe, para além do próprio socialismo, as bases materiais
e culturais do comunismo propriamente dito. ^
Enquanto estas condições objectivas não se encontrarem
preenchidas a grande massa dos indivíduos permanece, por­
tanto, em maior ou menor medida, indissoluvelmente ligada,
e frequentemente para a vida inteira, a um certo número de
tarefas sociais, com exclusão de todas as outras, e necessa­
riamente votada, nestas condições, à baixa do índice de pro­
gresso. A baixa «espontánea» do índice de progresso não é,
portanto, na realidade, de forma alguma espontânea; é, sim,
o efeito da subordinaçio do crescimento psicológico a um
sistema fragmentador c e divisão do trabalho, que reflecte,
em si mesmo, os limitei do desenvolvimento das forças pro­
dutivas e das relações sociais. Não, bem entendido, que o
movimento histórico através do qual a divisão técnica do tra­
balho se desenvolve h cessantemente pareça estar predesti­
nado, futuramente, а ш afrouxamento de ritmo ou a um
retrocesso: não pode, peão contrário, estar em causa um pro­
gresso das forças produtivas e das capacidades humanas cor­
respondentes que não pressuponha e não acarrete uma diver­
sificação sempre crescer ¡te das actividades, mesmo se, sob um
outro aspecto, contribui para simplificar ou suprimir as suas
antigas formas. Neste sentido, levar o integral desenvolvi­
mento dos futuros indivíduos a depender de uma abolição
da divisão do trabalho em. geral equivaleria a declará-lo para
sempre impossível. Mas o comunismo, utilizando a fundo as
virtualidades da sociedade sem classes e suprimindo, na base
de um imenso desenvolvimento das forças produtivas, as
diferenças essenciais entre trabalho manual e trabalho inte­
lectual, trabalho citadino e trabalho campestre, libertará por
518 M«*vxismo e teo ria d a personalidade

completo os homens das condições que os prendiam irreme­


diavelmente a tarefas parcelares, e tornará possível uma poli­
valencia e uma mobilidade ordenadas dos indivíduos em
função das exigências internas do seu crescimento, no âmbito
do sistema diversificado das actividades sociais: aí reside a
solução para a contradição entre a necessidade da divisão
técnica do trabalho e-а do integral desenvolvimento dos indi­
víduos. Sem dúvida que esta ideia ainda não se encontra
expressa, com a necessária exactidão, em A Ideologia Alemã,
em que Marx e Engds falam da abolição da divisão do tra­
balho sem terem ainda analisado, com a devida atenção, os
diferentes aspectos deste vastíssimo fenómeno histórico*73. Mas
a partir de Miséria da Filosofia, e, com muito mais razão, nas
grandes obras da maturidade, O Capital e o Anti-Diihring7\
as coisas são já perfeitamente claras. A grande indústria
moderna, escreve Marx em O Capital,

«obriga à variação no trabalho, à fluidez das funções,


à. mobilidade universal do trabalhador; (ela) obriga a
v - sociedade, sob pena de morte, a substituir o indivíduo
^ fragmentário, porta-voz da dor de uma função pro-
N\ d u t i v a de especialização, pelo indivíduo integral que
^ saib a enfrentar as mais diversificadas exigências do
trabalho e que só dê, em funções alternadas, um livre
desenvolvimento à diversidade das suas capacidades
naturais ou adquiridas» 7S.

E Engels, no Anti-Dühring, sublinha que cada indivíduo


terá «a possibilidade de aperfeiçoar e de pôr em prática, nas
mais variadas direcções, o conjunto das suas faculdades físicas
e intelectuais», no seio de uma sociedade que forma

«produtores desenvolvidos em todos os sentidos, que


abrangerão as bases científicas do conjunto da produ­
ção industrial e de que cada um terá percorrido, na

73 L’idéologie allemande, pp. 62 e 63, 93 в 94.


v* Le Capital, I, 2, pp. 161 a 167; Anti-Diihring, Ш , 3, pp. 325 a 337.
73 ibidem, I, 2, p. 166. («...Das TelllndiVidttum, den. blossen Trüger
einer gesetochaítlichen DetaUfunktlon, duren das total entwlcklte tndivi-
duum. íü r welches verschledne gesellschaftlichen Funktionen einander
ablüsende Betatlgungswelsen sind.» M. Е. V/,, t. 23, р. 512.)
H ipóteses p a ra u m a te o ria cie n tific a da personalidade 519

prática, toda uma série de ramos de produção de uma


ponta à outra»76.

Esta diversidade simultânea e sucessiva, esta mobilidade


das actividades, baseadas numa formação politécnica de base
e continuamente prolongadas pelo uso enriquecido de um
tempo livre sempre crescente, são a chave do desenvolvi­
mento universal dos indivíduos. De resto, dos grandes homens
da Antiguidade aos grandes dirigentes do moderno movimento
operário, passando pelos indivíduos mais universalistas da
Renascença ou do século x v n i, a prova de que não há neste
facto apenas uma simples visão do espírito marxista foi já
dada por inúmeras vezes, no âmbito das próprias sociedades
de classes, na medida em que, a título mais ou menos excep­
cional, e de uma forma necessariamente parcial, elas prefi­
guraram algumas das condições sociais que o comunismo
tornará reais ao universalizá-las. Assim, o comunismo, sem o
qual não poderia haver nenhum tipo de desenvolvimento
verdadeiramente universal de cada indivíduo, mas que não
poderia, também ele, existir sem que houvesse indivíduos uni­
versalmente desenvolvidos, abre grandiosas perspectivas à
luta contra a lei de baixa tendencial do índice de progresso,
ao integral desenvolvimento das personalidades. Se é efecti­
vamente verdade, como o observava Engels, que «ao dividir-se
o trabalho, divide-se igualmente o homem» 77, que se fragmen­
tam as suas capacidades, que se dicotomiza a sua persona­
lidade, a forma comunista da organização da actividade social
permitirá, pelo contrário, não só um livre desenvolvimento
de cada grupo de capacidades considerado à parte, como
também uma interpenetração e uma recíproca valorização de
umas pelas outras — sentido prático e reflexão teórica, apti­
dões artísticas e responsabilidades sociais, etc. —, relançando
■incessantemente o índice de progresso, mediante a variação
do emprego do tempo, e contribuindo para manter o dina­
mismo geral da personalidade o mais elevado possível. Tais
homens, tendo escapado às alienações sociais, e, na mesma
medida, internas, emancipados das formas de consciência, e
de inconsciência, em que se reflectem todas as impotências

76 Anti-Dilhring, pp. 333 e 338.


77 Ibidem, p. 331.
520 Marxismo e teoria da 'rsonalldade

históricas, merecerão realmente serem chamados homens


livres.
Mas se é verdade, tal como o escrevia Marx em A Ideologia
Alemã, que, com todo o rigor, a sociedade comunista é
«a única em que o desenvolvimento original e livre dos
indivíduos não será uma frase oca» 78,
tal não significa, de forma alguma, que, enquanto esperam o
comunismo, os indivíduos não possam, adentro dos limites
e através das contradições existentes, conquistar, em propor­
ções extremamente variáveis, uma real liberdade. A extrema
diversidade das personalidades e do seu grau de emancipação,
no seio do capitalismo, fornece um flagrante testemunho desta
variabilidade. É um novo e vasto capítulo da ciência da perso­
nalidade que poderia aqui abrir-se, e a respeito do qual,
antes de terminar, arriscaremos algumas breves observações:
o das formas gerais da dialéctica do desenvolvimento pessoal
no âmbito da sociedade capitalista. Não se trata aqui de
regressar sub-repticamente a uma espécie de tipología, ou seja,
a uma concepção abstracta da essência, mas sim de esboçar
as principais possibilidades lógicas através das quais cada
*— biografía espraia a sua trajectória singular. Essas possibilidades <
! encontram-se, de facto, inscritas, de acordo com a nossa hipó-
I tese, no seio das formas gerais de individualidade, e das corres-
I pondentes contradições essenciais, que definem cada sistema
de relações sociais. No seio do capitalismo, elas são dominadas
pelas contradiçõs gerais entre actividade concreta e actividade
abstracta, entre lógica interna e necessidade social do emprego
do tempo. É certo que pode parecer, de início, que certos
indivíduos, principalmente no seio da classe dominante,
possuem a possibilidade de escapar a estas contradições, já que
a sua posição privilegiada adentro da divisão do trabalho e
das relações sociais lhes permitiria, no respeitante ao essencial,
que a sua actividade social coincidisse com a sua vida con­
creta, que as necessidades externas concordassem com a lógica
interna do seu emprego do tempo. Tais casos de equilíbrio e
de vida satisfeita, que podem exprimir-se em personalidades
notáveis, até mesmo de uma certa grandeza, poderiam levar
alguns observadores superficiais a crerem que o capitalismo

•3 L’idéologie allemande, p. 482. ‘


H ipóteses p a ra u m a te o ria c ien tifica d a perso n alid ad e 521

não é assim tão intrinsecamente desumano como o afirmam


os marxistas, ou que, em todo o caso, o indivíduo pode
elevar-se radicalmente acima das relações sociais, contraria­
mente àquilo que afirma o materialismo histórico; e não dei­
xam de servir de ilustração prática às ideologias humanistas
que desconhecem ou camuflam tanto essa necessidade como
essa desumanidade. Contudo, olhando melhor para tal fenó­
meno, o facto evidente de que um tal equilíbrio é sempre, no
seio do capitalismo, como no de toda a sociedade de classes,
/ o privilégio de um número extremamente diminuto, cujo
V corolário inevitável é o desequilíbrio, por vezes medonho, da
4 vida da esmagadora maioria, traduz-se, no próprio seio das
personalidades consideradas, através do carácter parasitário
do equilíbrio, e, em última análise, ilusório, da coincidência
entre actividade abstracta e actividade concreta. Estas perso­
nalidades não parecem ultrapassar as contradições do capita­
lismo senão na medida em que nele se encontram fortuita­
mente à vontade, com frequência ao ponto de nem sequer
possuírem consciência de tal. Aí reside, não obstante a sua
aparente grandeza, a sua fundamental mesquinhez; porque
a vida satisfeita, no seio do capitalismo, nunca pode estar
isenta de filistinismo.
A outra forma fundamental que revestem as contradições
de base do capitalismo, no âmbito da personalidade, é a dicoto-
mização e o refugiar-se na concha da vida privada. Depara-
-se-nos aqui o inverso da vida satisfeita, prisioneiro das mesmas
contradições, mas que, em vez de aí se encontrar à vontade,
fruto do privilégio, defronta o destino comum, que é o de
contra elas se vir desintegrar. Tanto num caso como no outro,
a personalidade não consegue apoiar-se nas suas contradições
de base nem extrair delas a energia do seu dinamismo; a um
nível ou a outro, encontra-se votada à baixa do índice de
progresso e à. esclerõse. A única possibilidade existente p a ra ' )
evitar, em certa medida, este duplo escolho no próprio seio /
do capitalismo, está em que o indivíduo, ao mesmo tempo que
passa, pela experiência profunda de contradições essenciais de
que não possui, de forma nenhuma, o poder de abolir,
encontre, no entanto, a força suficiente para resistir à dicoto-
mização. É evidente que uma tal força não pode ser encontrada
no âmbito da simples «vontade», isto é, no âmbito de uma
diligência meramente superestrutural, mas sim ao próprio
nível da infra-estrutura, adentro de um certo peso específico /
34
522 Marxismo e teo ria d a personalidade

de actividades não dicotomizadas no âmago mais profundo


. do emprego do tempo. As actividades que qualificámos mais
acima de intermediárias, em particular as relações interpes­
soais, que ultrapassam o indivíduo sem, contudo, serem em si
mesmas, e propriamente falando, sociais — o amor, a ami­
zade —, será que podem desempenhar esse papel? vSim e não.
Na exacta medida em que não representam relações sociais.
no sentido mais profundo que esta noção -tem no seio do
materialismo histórico, as relações interpessoais podem encon­
tra rle , em maior ou menor medida, unicamente fruto dos
esforços dos indivíduos, largamente emancipados das aliena­
ções que o modo de produção impõe à actividade social
abstracta, e este sector de uma actividade psicológica parcial­
mente desalienada, esté modo de relações humanas «reais»,
que parecem prefigurar uma sociedade em que todas as
relações possuiriam esta natureza, podem desencadear em
toda a personalidade uma reacção de recusa à dicotomia, e
comunicar-lhe um dinamismo que.não se deixa aprisionar,
nem adentro das formas alienadas da actividade social, nem
. adentro das formas mesquinhas da vida privada. Neste caso,
a lógica profunda das relações interpessoais impele-as para
a vida militante, no sentido extremamente lato em que consi­
deramos aqui este termo. Mas não é menos capital o facto
de que nunca devemos perder de vista as diferenças quali­
tativas que subsistem entre o casal ou o pequeno grupo das
relações interpessoais e as relações sociais propriamente ditas,
ou seja, em primeiro lugar, as relações de produção de que
o materialismo histórico estabeleceu a importância, que é,
em última instância, determinante. Deixando, por si mesmas
à actividade social abstracta, à sua miragem, o que facilita a
sua desalienação parcial mas que também limita estreitamente
o seu alcance imediato, as relações interpessoais correm o
risco contínuo de hão só não contribuírem para a luta contra
a dicotomização geral da personalidade como também de
nela se encerrarem a título de um sector privilegiado, em
maior ou menor medida ilusoriamente não dicotomizado, ou
seja, na realidade, de a consolidar, ao oferecerem-lhe a com­
pensação de uma pseudo-solução não decisiva, até mesmo o
álibi de uma outra forma do refugiar-se na concha da vida
privada. Aí reside a ambiguidade intrínseca de relações como
o amor e a amizade, pontos de sutura ou máscara da ruptura
entre personalidade concreta e personalidade abstracta, ambi-
H ipóteses p ara u m a te o ria cien tifica da personalidade 523

guidade essa que se reflecte nas dissertações do humanismo


filosófico sobre as relações entre o Eu e o Outro, as quais
possuem um sentido totalmente diferente consoante anunciam
uma passagem para o materialismo histórico, ou, pelo con­
trário, traem uma recaída no idealismo antropológico.
É por isso que, em definitivo, segundo nos parece, não
existe, no âmbito dos limites históricos existentes, nenhuma
solução profunda para o problema central da dicotomização
que não tenha de ir buscar as suas raízes à infra-estrutura
essencial da personalidade, ou seja, à actividade abstracta,
ao trabalho social, em que o indivíduo se encontra em con­
tacto mais ou menos directo com as forças produtivas e as
relações sociais decisivas. É certo que a especificidade do
capitalismo está em separar ao extremo trabalho concreto e
trabalho abstracto, e em subordinar socialmente o primeiro
ao segundo. Mas o trabalho abstracto não deixa, por isso, de
conservar o seu aspecto concreto, o qual, psicologicamente,
não se encontra fatalmente votado à subordinação pelo seu
r~ contrário. Formulo a-hipótese de que a condição infra-estru-
tural mais determinante da resistência à dicotomização está
P
em que, no âmbito de uma dada personalidade, a — geral do
N
aspecto concreto do trabalho social abstracto seja elevada.
É esta condição que se traduz, em suma, no amor pela pro­
fissão. O homem que ama a sua profissão encontra-se em
condições de não permitir que se lhe imponha passivamente a
baixa do índice de progresso no seio do sector da sua activi­
dade abstracta, por outras palavras, não obstante as condições
capitalistas, de continuar a desenvolver as suas capacidades
nesse sector, não para o produto abstracto, mas para si
mesmo, logo, de enriquecer a sua personalidade concreta a
/ partir da actividade desenvolvida face ao contacto com as
V forças e as relações de produção decisivas; e, reciprocamente,
\ dê colocar as disponibilidades de emprego do tempo e o
i dinamismo da personalidade concreta ao serviço do desen­
volvimento da actividade social. Mas como, regra geral, ao
mesmo tempo, as relações capitalistas recusam a essas capa­
cidades em pleno desenvolvimento as correspondentes possi-
bilidades de investimento no âmbito da actividade abstracta,
/ a personalidade no seu conjunto é objetivam ente levada,
/ com extrema energia, a tomar consciência da excentricidade
624 Marxismo e teoria d a personalidade

posicionai, de índole social, das suas bases79 e a fazer derivar o


seu dinamismo desperdiçado para a actiyidade de transfor­
mação dessas bases posicionalmente excéntricas, o que lhe
traz inesperadamente um meio capital de desenvolvimento
não dicotomizado no próprio seio de uma sociedade dicoto-
mizante. Vemos aqui muito claramente a profundidade dos
laços existentes entre o amor frustrado, da profissão e a
necessidade de urna vida militante, facto que o movimento
operário constatou empiricamente há já longo tempo: um mau
operário quase nunca dá um bom militante.
Compreende-se igualmente porque é que a vida militante,
entendido por tal a participação activa em toda a activi-
dade colectiva de transformação emancipadora das condições
sociais, até mesmo em toda a actividade social criadora que
contribui para elevar a sociedade a um plano superior, se
encontra tão afastada do sacrifício ascético de si em prol das
gerações futuras» como do calculismo egoísta perfeitamente
consciente: no seio das suas formas sãs, é precisamente a
ultrapassagem desta contradição, a única antecipação parcial
possível para o indivíduo da sociedade de classes daquilo
que será a vida desalienada no seio da sociedade sem classes
de amanhã. Foi o que Marx frequentemente sugeriu, como,
por exemplo, nos Grundrisse, em que fornece uma refutação
esmagadora da mistificação burguesa, que até aos nossos dias
não tem deixado de renascer continuamente, segundo a qual,
no seu próprio interesse, os proletários deveriam renunciar à
sua vida concreta, «poupar, praticando a abstinência» 80. Ora,
o proletário, demonstra Marx, «faça lá o que fizer, não eco­
nomizará para si, mas sim para o capital». Se durante os perío­
dos relativamente favoráveis os operários «economizassem»,
«encontrar-se-iam rebaixados ao nível do animal»;

«bem pelo contrário, a participação do operário em


fruições de carácter mais elevado, até mesmo de
ordem intelectual, a agitação em prol dos seus inte-
. resses próprios, a imprensa e as conferências, a educa-

73 Cf. Fondements, I, p. 426: «Se descobrir que os produtos do


trabalho são sua pertença, condenar a dissociação das suas condições
do realização e considerar que lhe impõem, uma situação intolerável, o
operário terá conquistado uma vasta consciência, que decorre, aliás, do
modo de produção que tem por base o capital.»
w Ibidem, I, p. 234.
H ipóteses 'чага u m a te o ria cientificai d a personalidade 525

ção dos seus filhos, o desenvolvimento dos seus gostos,


etc., em resumo, a única participação possível na
civilização — através da qual ele se distingue do
escravo— , tudo isso nãp é possível economicamente
se ele não aumentar a esífera das suas fruições quando
os negócios prosperam, ou seja, quando lhe dizem para
economizar» 81.

Assim, vida militante e desenvolvimento de si são termos


não antitéticos mas sim interdependentes. Ao despojar ao
extremo precisamente aqueles que estão na base de toda a
criação de riquezas, o capitalismo não só engendra os seus
próprios coveiros, como também cria homens psicologica­
mente superiores, plenamente capazes de apreciar a vida tanto
para si mesmos como para todos os outros, aptos a tomar
nas suas próprias mãos os destipos de toda a sociedade, a fim
de a elevar a um nível bastante superior: o processo psicoló- ^
gico de resistência da personalidade à dicotomização e à /
esclerose, que analisamos aquj, é o corolário do processo /
sociopolítico através do qual ia classe operária, arrastando /
consigo outras camadas de trabalhadores manuais e intelec- I
tuais, se transforma na herdeira do domínio nacional ao
mesmo tempo que se agudjza a decadência histórica da
classe dominante. Como já o referia, há mais de um século,
A Ideologia Alemã, v

«hoje em dia tem-se a impressão que é ainda no seio


(dos proletários) que a individualidade se desenvolve
ao máximo» 82.

Aí reside, aliás, a prova experimental mais directamente


tangível de que a sociedade sem classes, tal como afirma o
marxista e como, frequentemente, hesita em acreditar aquele
que o não é, transformará realmente os homens até aos seus
mais profundos recônditos, ao: fornecer, no sentido materia­
lista da expressão, que é o ún|co aceitável, esse «suplemento
espiritual» que os humanismos ¡filosóficos e as religiões sempre
se revelaram incapazes de insuflar, por si mesmos, nas mais

ei Obra citada, pp. 236 e 237.


sá Vidéologie allemande, p. 263*
526 M arxism ' ; teo ria d a personalidade

vastas camadas populacionais. Pretendere poder entrever


concretamente o que será o homem do comunismo? Que se
observe e que se medite, extrapolando-as, nas transformações
que se estão já a operar, sob os nossos olhos, no seio da
parte activa dos militantes do moderno movimento operário.
No entanto, os aspectos antecipadores da vida militante
não devem levar-nos a esquecer que esta não possui o poder
de abolir, por si mesma, as contradições sociais objectivas
às quais se opõe, mas de que permanece, simultaneamente,
tributária. Sendo um sector da personalidade, não dicotomi-
zado por excelência, ela é, necessariamente também, uma
componente entre tantas outras do emprego do tempo e, a
este título, corre sempre o risco de lhe agravar algumas
outras das suas contradições. Que venha a acabar por se
desligar da actividade social simultaneamente concreta e
abstracta em que normalmente se enraíza, e ei-la ameaçada
de descer ao nível de uma simples compensação para essas
contradições por resolver, até mesmo de acabar por ficar ela
própria subordinada a uma dicotomia geral não ultrapassada,
decompondo-se, então, numa execução de tarefas quase abs­
tractas ou numa variante das relações interpessoais, até
mesmo do simples refugiar-se na concha da vida privada.
A este respeito, uma patologia teórica da vida militante será,
sem quaisquer dúvidas, um dos contributos mais instrutivos
para a psicologia da personalidade. Contudo, mesmo através
das suas recaídas parciais, a vida militante surge como
sendo a portadora do futuro da personalidade humana. Das
três grandes possibilidades lógicas na base das quais nos
parece que cada personalidade traça a sua trajectória singular
no seio da sociedade capitalista — equilíbrio relativo e vida
satisfeita, dicotomização e refúgio na concha da vida privada,
excentricidade posicionai consciente e vida militante .— a
última é a única que não reduza a personalidade ao seu
estatuto estritamente justa-estrutural, mas sim que a abre, tão
largamente quanto tal é possível num determinado estádio
histórico, para o património social humano, transformando
as suas próprias, contradições num factor dinâmico de resis­
tência à baixa tendencial do índice de progresso, e que pode
dar à sua vida um sentido não alienado, caso a activi­
dade militante seja, de facto, objetivam ente emancipadora.
Ê certo que toda a sociedade conheceu, sob formas variáveis,
personalidades militantes, a par mesmo das figuras, que são
Hipóteses p a ra -uma te o ria c* -vtífica da p ersonalidade 527

clássicas na galeria de retratos do humanismo, do sábio, do


herói e do santo. Mas no seio das sociedades pré-capitalistas,
em que as contradições entre trabalho concreto e trabalho
abstracto estavam longe de ser tão universais e radicais como
no seio do capitalismo — e, com muito mais razão, no seio
do capitalismo monopolista de Estado, antecâmara do socia­
lismo—, não-podia ainda estar em causa uma prefiguração
do indivíduo integral, e sobretudo enquanto fenómeno de
/nassas. É a este duplo título que, pelo contrário, as formas
de vida militante criadas, na base do capitalismo desenvolvido,
pelo movimento operário moderno atestam uma grandiosa
mutação das formas sociais de individualidade, um salto quali­
tativo da essência humana: a possibilidade de que todos os
homens atinjam um desenvolvimento pessoal, unicamente
limitado pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas,
das relações sociais e da cultura, é talvez ainda embrionária
e longínqua, mas não podem haver dúvidas de que doravante
existe. Nada poderia-confirmar de uma forma mais profunda
o facto de que o nosso tempo é realmente, não obstante tantas
convulsões, fenómenos antagonistas, até mesmo retrocessos
parciais, o da passagem géral da humanidade para o socia­
lismo e o comunismo, o do verdadeiro fim da pré-história da
espécie humana, da sua completa emancipação da animali­
dade original, do nascimento tangível da sua liberdade.
Porque se a Humanidade nunca se propõe senão tarefas que
possa resolver, nunca se prepara igualmente para resolver
senão tarefas que já tenham sido propostas. Ao criar visivel­
mente, no próprio seio da pior alienação, homens, de forma
alguma excepcionais, já tão profundamente desalienados, о
movimento histórico revela ao poeta, de uma forma sensível,
o que uma ciência anti-humanista do homem continua a não
saber ver: que o Mundo está era vias de transformar as suas
bases. Tal como o afirma admiravelmente Marx nos Grun-
drisse:
«No plano das ideias, a dissolução de uma certa
forma de consciência basta para pôr termo à vida de
toda uma época. Na realidade, toda a limitação da
consciência corresponde a um determinado grau do
desenvolvimento das forças produtivas materiais, e,
portanto, da riqueza. A evolução não se efectúa uni­
camente a partir da antiga base, mas também é essa
mesma base que se alarga. Esta fase do desenvolvi-
528 M arxism o e te o ria d a personalidade

mento evoca a floração: a planta floresce nessa ba ,


murchando por ter florido e após ter florido. O ponto
mais alto do desenvolvimento desta base é, portanto,
aquele em que ela se encontra o mais elaborada pos­
sível, em que se concilia com a mais elevada evolução
das forças produtivas, e, portanto, igualmente com
o mais amplo desenvolvimento dos indivíduos. Assim
que este ponto é alcançaldo, toda a evolução ulterior
será declínio, e todo o novo desenvolvimento irá
efectuar-se numa nova base.» 83
i
Na nova base, hoje em dial em vias de um desenvolvi­
mento à escala mundial, florirá o homem desalienado, o
indivíduo integral.
*:

Estas considerações de índolt topológica geral não devem


levar-nos a esquecer que a tarefa última da psicologia da
personalidade é o domínio teórico e prático do processo de
desenvolvimento de cada indivíduo, considerado no âmbito
da sua singularidade. É por isso que parece oportuno apre­
sentar, para terminar, e no âmbito dessa mesma perspectiva,
algumas breves observações sobre a constituição de uma ver­
dadeira ciência da biografia. Que através da imensa e diversa
abundância de obras biográficas} escritas ao longo dos séculos,
e especialmente do nosso, haja pbras admiráveis, é certo que
não temos qualquer intenção dq o negar, bem como de dissi­
mular a dívida que têm para !com elas todos aqueles que
deitam mãos à tarefa de compreender as personalidades huma­
nas. Mas não corremos um grajide risco de que nos venham
a contradizer caso afirmemoç que, contudo, não existe
nenhuma que solucione, de uma forma convincente, o con­
junto extraordinariamente complexo dos problemas que se
colocam ao biógrafo, na falta de este se poder apoiar numa
teoria coerente e completa sobre o devir da personalidade,
e numa correspondente metodologia. Ora, se não nos encon­
tramos em estado de resolver o conjunto dos problemas qúe
se nos apresentam, será realmente possível resolver o pro-

83 Fondements, П, p. 34.
H ipóteses p a ra u m a te o ria c ie n tífic a d a perso n alid ad e 529

blema de conjunto da biografiare fazer m e n o r do que nos


limitarmos a desenvolver, de uma forma mais ou menos
profunda, alguns dos seus aspectos parciais? Seria então
estranho constatar quão poucqs esforços científicos têm
sido, até aqui, consagrados a esta questão da mais alta
importância, se a persistente imaturidade da teoria da perso­
nalidade não no-lo tornasse de fácil compreensão. Aquilo
que nos é hoje em dia apresentado como sendo uma inves­
tigação de índole biográfica nãq passa, com demasiada fre­
quência, senão da repetição de antigas tentativas de que
tanto o contributo como os limites e os impasses se tomaram
claramente patentes de há longo tempo a esta parte. Um
exemplo instrutivo de tal facto parece-nos ser, no âmbito da
sua própria salgalhada de modernidade aparente e de pro­
funda mediocridade, um ensaio, cuja publicação e mergulho
no esquecimento foram quase simultâneos, como acontece
hoje em dia com tantos livros, sobre O Génio AdolescenteB4.
Logo a partir do próprio subtítulo, ensaio de biografia estru­
tural, os autores permitem que sè espere bastante do seu tra­
balho; tratar-se-ia de «urdir os primeiros delineamentos de
uma futura ciência, de que é necessário descobrir as leis:
aquelas que regem a vida humana» *85. Observando a justo
título que, «à parte algumas excepções extremamente raras
e extremamente meritórias, a biografia, tal como é corrente-
mente praticada, é um exemplp literário, até mesmo uma
tarefa comercial, e não um estuido científico», afirmam que,
contudo, esta «deveria ser, devido à sua própria natureza,
parte integrante dessa antropologia que se tem vindo a ela­
borar actualmente através das ciências humanas, e, a exem­
plo destas últimas, que dessa forma conquistaram o seu
desenvolvimento e a sua presente autoridade, submeter-se
a regras extremamente estritas» 86.
Ora, na realidade, por detrás destas afirmações de com­
promisso, que é que acabamps por encontrar? Séries e
séries de anotações biográficas justapostas da forma mais
banalmente sensacionalista sobre vinte «génios adolescen-

8* Jacques Brosse e Yves Fauvel, Le génie adolescent, Stock, 1967.


85 Badanas do livro.
06 Ibidem, p. 10.
530 M arxismo e teo ria d a personalidade

tes»87, e rematadas por interpretações apressadas, exclusi­


vamente retiradas da psicanálise. A tese geral é tão simples
e medíocre que não temos nenhuma dificuldade em a resu­
mir, sem a trair:: o segredo do génio adolescente estaria na
•(influência dominante do pai =■ uma repressão extrema­
mente forte dos instintos, e muito em especial dos instintos
sexuais» 88. «O menor denominador comum a todos os perso­
nagens estudados neste livro» é o complexo de Édipo, que,
«de uma forma positiva ou negativa, determinou não só a
sua conduta sexual, como também toda a sua vida afectiva»89.
«Extremamente inibidos»90, todos os génios adolescentes
«são neuróticos, mas unicamente [...] neuróticos em potên­
cia» porque dispõem «de uma válvula de segurança, a facul­
dade criadora»; são, portanto, exemplos acabados «da eficá­
cia da sublimação» mas também dos «seus perigos, que
podem ser mortais» 9'. Porque, «tendo permanecido durante
toda a sua vida como psiquicamente precoces» 92, acabam por
vir a conhecer um «destino por vezes tão doloroso que lhes
acontece desesperar e desejar a morte. Esta está sempre
presente, sentem-na vir, apreendem-na, é a sua constante
obsessão» 93. Em resumo, o génio adolescente é fruto de uma
«tremenda carga libidinosa» que, para ser suficientemente
poderosa, «deve, originalmente, proyir de um conflito infantil
não resolvido e, portanto, sublimado» 94. Tal como é visível,
trata-se aqui, por detrás da etiqueta de «psicobiografia estru­
tural» 9S, de um simples retomar da ideia psicanalítica de subli­
mação, sob uma das suas formas mais banais, e sem que nada
de novo tenha sido descoberto pelos autores que possa con­
tribuir para ultrapassar as inúmeras objecções fundamentais
com as quais esta esbarra de há já várias dezenas de anos,
o que não a impede, por outro lado, de continuar a ser, até

87 Pascal, Leopardi. Chopin, Byron, Pouchkine, Toulouse-Lautrec,


Du Bellay, Kleist, Caravaggio, Th. de Viau, Cyrano de Bergerac, Jarry,
Mozart. Purcell. Raphael, Watteau, Rimbaud, Burn, Van Gogh, Modigliani.
88 Obra citada, p. 120.
89 ibidem, p. 380.
on Ibidem, p. 382.
91 Ibidem, pp. 384 e 388.
92 ibidem, p. 385.
93 Ibidem, p .’ 387.
9» Ibidem, p. 385.
9.*- Ibidem, p. 14.
Hipóteses p a ra u m a teo ria cie n tííic a da personalidade 531

aqui, um dos mais frequentes recursos dos biógrafos ^ ага


colmatar lacunas teóricas.
Ponhamos de parte as ingenuidades específicas destes dois
autores96, para nos atermos aos aspectos genéricos das suas
concepções. Mas como é possível não ver, de imediato, a
grosseira petição de princípio, o processo sofístico em que
se baseia toda a tese? É-nos dito que os génios adolescentes
são todos neuróticos, «imaturos psíquicos» em quem a pre­
cocidade não passa do inverso da «evolução acelerada (do)
ciclo total da sua vida» 97. Ora, estas asserções, que nos são
apresentadas nas ultimas páginas do livro como sendo con­
clusões científicas longamente elaboradas, são, na realidade,
pura e simplesmente o próprio postulado a partir do qual foi
previamente efectuada a delimitação da matéria estudada,
e a cuja justificação nem sequer consagram um só parágrafo
que seja. Os vinte génios adolescentes de que trata o livro
foram, com efeito, escolhidos, por convenção, entre artistas
célebres que morreram entre os 34 e 39 anos: nem estas idades-
-limite, nem a escolha de vinte nomes entre todos os artistas
célebres que correspondem igualmente ao critério precedente,
nem sequer o facto primordial de que a qualificação de
génio adolescente seja aqui, não se sabe bem porquê, reser­
vada a artistas que morreram jovens, são objecto da mínima
tentativa para uma sua legitimação científica. Tudo se
passa, portanto, como se, tendo deliberadamente recolhido,
no conjunto dos artistas precocemente geniais, uma amostra
exclusivamente composta por indivíduos mais ou menos passí­
veis de serem objecto de uma abordagem psicanalítica, e
cuja morte precoce não foi acidental, os nossos autores aca­
bassem por chegar, sem dificuldades, aos resultados prede­
terminados pela hipótese da sublimação. Mas que se queira
ter a bondade de recolher, de uma forma menos arbitrária,
a amostra, e verificar-se-á que toda a tese se desmorona, qual
úm castelo de cartas. Porque não é realmente difícil elaborar
contralistas de génios adolescentes, tão precoces como os
vinte de que nos falam aqui e que, não se encontrando nem

se Eles não só acreditam na hereditariedade psicológica como


também na astrologia, e não consideram deslocado, numa obra de
pretensões cientificas, afirmar que Pascal nasceu «sob o signo dos
Gémeos» ou Cliopin «sob o dos Peixes», ibidem, pp. 393 e 393.
97 ibidem, pp. 385 e 387.
532 M arxismo e teo ria d a p ersonalidade

neuróticos nem esgotados antes dos 40 anos, mas tendo


sim, pelo contrario, continuado a viver e a criar até aos
60, até mesmo 70, 80 anos, fornecem numa flagrante refuta­
ção de todas as teses, sem excepção, dos nossos autores.
É assim, por exemplo, que J.-S. Bach, que escreveu a sua
primeira cantata aos 19 anos, compusera já, antes dos 39,
obras-primas como os Concertos Brande burgueses, as Sonatas
e Partitas para Violino, ou a Paixão Segundo São João — com
a mesma idade, Hugo, que escreveu as suas Odes aos 20 anos,
compusera já inúmeras das suas mais belas compilações
poéticas, romances como Nossa Senhora de Paris e quase
todo o seu teatro —, e Chaplin, antes dos 39 anos, sem mesmo
falar das dezenas de curtas e médias metragens que rodara
antes dos 30, era já o autor de O Garoto de Chariot e de
A Quimera do Ouro. Goethe, aos 25 anos escrevera já Wer-
ther e Gôtz von Berlichingen, e Picasso, com a mesma idade,
pintou As Meninas de Avignon. Quanto a Marx, tinha 27
anos quando, redigiu as Teses sobre Feuerbach, e menos
de 30 quando escreveu o Manifesto. Eis aqui, portanto,
alguns exemplos irrecusáveis de génios adolescentes. Mas,
contrariamente ao que defendem os nossos autores como
tese geral, será bastante difícil pretender apresentá-los como
neuróticos, já que não atingiram o esgotamento antes dos
40 anos, a sua capacidade criativa desenvolveu-se e afir-
mou-se até mesmo após terem alcançado a velhice, não
passaram a vida obcecados pela ideia da morte, casaram-se
e tiveram filhos, em resumo, recusam abertamente incli-
nar-se perante os esquemas psicanalíticos preestabelecidos, e o
seu génio não pode apresentar-se como sendo a sublimação
de uma sexualidade infantil reprimida. Será que o que ficou
pretende significar que não haja também génios adolescentes
neuróticos? Evidentemente que não, como é óbvio. Mas os
factos apontados pretendem afirmar que a tese, banal, dos
nossos autores é, no melhor dos casos, precisamente o exem-
pio-tipo dessas generalizações abstractas e incorrectas, que
se ficam, portanto, pela mera superficialidade das coisas,
inclusive, relativamente aos casos em que elas não passam
da sua extrapolação abusiva.
E não é tudo. Porque se, por um lado, nada autoriza
a afirmar, tal como é feito em O Génio Adolescente, que
utodos os génios adolescentes são neuróticos», é perfeita-
mente evidente, por outro lado, que a afirmação recíproca
H ipóteses p a ra v \ teo ria c ie n tific a d a p ersonalidade 533

é igualmente falsa: todos os neuróticos não são génios ado­


lescentes. Por consequência, esta teoria da sublimação não
só não se apercebe das formas geniais estranhas à neurose,
como também não se apercebe das suas formas neuróticas e
deixa, portanto, por explicar o próprio fenómeno genial,
visto que, se a tomarmos a sério, acaba por se adaptar indi­
ferentemente aos adolescentes neuróticos, geniais ou não. De
que modo sería, aliás, possível a uma simples teoria psicoló­
gica, que ignora tudo sobre as relações sociais, esclarecer o
fenómeno abertamente histórico-social do génio? Que, por
exemplo, uma dada sociedade possa reconhecer como geniais
produções intelectuais marcadas pela neurose, será possível
não ver que tal facto pressupõe um conjunto de condições
socio-ideológicas, cujo exame crítico é o preâmbulo absoluto
de toda a abordagem efectivamente científica do génio?
Como todo o fenómeno específicamente humano, o génio é,
no fundo, uma relação, e uma relação social. Pelo contrário,
a especificidade dos esquemas biográficos unicamente extraí­
dos da psicanálise, e mais genericamente de toda a concepção
da personalidade baseada no desconhecimento do materia­
lismo histórico, é quase sempre um realismo psicológico
ingénuo do génio, uma naturalização, até mesmo uma biolo-
gização, das capacidades geniais consideradas como ineren­
tes ao indivíduo isolado: sem mesmo estar a empreender uma
pormenorizada crítica interna de semelhantes ópticas, reco­
nhece-se nelas, de imediato, a ilusão ideológica do humanismo
especulativo e da psicologia vulgar. Do mesmo modo, não
ficamos surpreendidos ao verificar que os nossos autores, ao
mesmo tempo que pretendem contribuir para a edificação
de uma ciência da biografia, logo, do indivíduo concreto,
abordam, de facto, o problema do génio adolescente sobre­
tudo no âmbito dos termos mistificadores da descrição de
uma personalidade-tipo — o génio adolescente em geral —
de que cada iim dos vinte indivíduos que são estudados não
passaria de uma especificação. Através de todas essas biogra­
fias, escrevem, julga-se ser possível discernir «como patentes
nas entrelinhas, os delineamentos de um tipo único, o génio
adolescente» 98, cujas estruturas seriam comuns a todos, sendo
«a sua dosagem e disposição» os únicos elementos constitu-

98 Le génie adolescent, p. 10.


534 Marxismo e teoria cia personalidade

tivos «das personalidades diferenciadas» e unicamente a


título secundário que haveria aí lugar para uma «reintrodu-
ção daquilo que os distingue individualmente» ,0<]. Assim, a
«ciência» teria por objecto o constituir de generalidades
abstractas, e a singularidade concreta do indivíduo, simples
variante do tipo geral, voltaria a cair no âmbito da contin­
gência empírica: longe de contribuir para a edificação de
uma ciência da biografia, ou seja, de uma ciência do indi­
vidual apreendido no concernente à sua essência concreta,
a tentativa de a basear inteira mente na psicanálise, tentativa,
de resto, das mais frequentes, e nem que fosse de qualidade
substancialmente superior à do exmeplo, extremamente
medíocre, aqui criticado, dela nos desvia irremediavelmente.
Não será curioso, a este respeito, verificar, por exemplo, que
Sartre, que na Crítica da Razão Dialéctica consura vigorosa­
mente ao «marxismo preguiçoso» o reduzir o indivíduo a um
«esqueleto de universalidade» e de ser incapaz de «engen­
drar o concreto singular Г...1 a pessoa a partir das contra­
dições 9erais das forcas produtivas e das relações de pro­
dução» 101, caia ele próprio, de uma forma perfeitamente
clara, nessa irregularidade lacunar na medida em aue procura
«engendrar o concreto individual» a partir de esquemas psi-
canalíticos genéricos, nem que estes seiam de índole existen­
cial? Em Enfance d’un chef. por exemplo, procura-se, em
suma, convencer-nos de que Luden Fleurier se tornou num
fascistazito aos 20 anos na base de um traumatismo sexual
que sofrera por volta dos 4 anos: abstracção por abs-
tracção, ainda preferiríamos, caso estes • fossem os dois
únicos termos da escolha, a de um «marxismo preguiçoso»,
que, pelo menos, situa a evolução ideológica e política dos
indivíduos no âmbito do seu terreno essencial. Ora, não se
trata aqui, neste texto de uma relativa juventude, de uma
simples inexperiência de manejo, em que os temas psicana-
líticos não possuiriam quaisquer responsabilidades no assunto.

S3 obra citada. r>. 14.


wo Ibidem, p. 376.
m j.-p. Sartre, Critique de la raison dialectique, pp. 42 a 45.
Hipóteses p ara u m a teoria cien tífica d a personalidade 53õ

e sobre o que se poderia discutir o problema de saber se


Sartre continua a dar provas disso, na mesma medida, no seu
Baudelaire102 ou, de um modo muito menos sensível, no
Saint Genêt ou no estudo sobre Flaubert; para além da diver­
sidade das formas de dele nos servirmos, é em si mesmo
que o tema psicanalítico, considerado enquanto base essen­
cial de uma ciência da biografia, é inaceitavelmente redutor:
ele postula, de imediato, a redução da essência da persona­
lidade desenvolvida a um «efeito fora de tempo» do psiquismo
infantil, e a redução da singularidade individual a uma
variante clínica do tipo, definido através de instintos incons­
cientes, de um triângulo edipiano e de uma estrutura do apa­
relho psíquico, que são concebidos como sendo inerentes
ao indivíduo considerado no âmbito da sua generalidade
abstracta.
Ё numa direcção inversa, segundo nos parece, que uma
verdadeira ciência da biografia tem possibilidades de vir a
constituir-se. A biografia exprime conceptualmente «a lógica
específica do objectó específico» ou, se assim não acontece,
deixa de o ser. As-generalidades teóricas de que necessita,
a título de mero preâmbulo, não podem, portanto, ser — nem
ser empregadas como se o fossem — um modelo da persona­
lidade, um esboço biográfico, um pano de fundo psicológico:
tais materiais não passam, na realidade, dos produtos de uma
representação ideológica do homem, longamente criticada
mais atrás, baseada na psicologização da essência humana.
As generalidades legítimas de que a ciência da biografia pode
partir são, em primeiro lugar, as que, pelo contrário, possuem
o seu fundamento afora da individualidade concreta enquanto
tal: conhecimentos psicobiológicos, por um lado, e psicos­
sociais, por outro, em particular as formas sociais de indivi­
dualidade, que são subentendidas por todas as relações tem­
porais da vida individual. Quanto às generalidades relativas
à personalidade propriamente dita, estas não têm por função
revelar-nos antecipadamente o que o indivíduo singular é em
geral, mas sim fornecer-nos um contributo teórico geral para
a elaboração do conceito do indivíduo singular: tais são,
segundo nos parece, as ópticas sobre a topologia temporal
da personalidade aqui sugeridas a título meramente hipoté-

102 Baudelaire parece dever bastante a Véchec de Baudelaire, do


Dr. Laforgue (Denoêl e Steele, 1931).
536 M arxism o e te o ria d a personalidad»

tico, e, mediante um atento inventário crítico, não podem


subsistir quaisquer dúvidas de que seja possível extrair inú­
meros materiais científicos desta natureza no âmbito do do­
mínio da psicologia da criança e da psicanálise. Partindo
daU a ciência da biografia, tal como a entendemos, tem
essencialmente por tarefa a captação das estruturas, das
contradições, da dialéctica da vida pessoal, através da qual
se constitui e transforma a personalidade-singular e se desen­
volve a actividade: desenvolvimento quantitativo e qualita­
tivo do fundo fixo das capaciades; infra-estruturas da acti-
p
vidade, — geral e emprego do tempo; superstruturas e
N
formas de consciência; necessidades internas de correspon­
dência entre capacidades e emprego do tempo, contradições
com as necessidades sociais externas e as formas de individua­
lidade; resultantes principais das contradições em cada etapa,
tendo em conta a conjuntura social no seio da qual se desen­
rola a vida estudada, crises periódicas de emprego do tempo,
eventuais transformações da lógica do desenvolvimento.
Nesta via, parece ser possível uma biografia científica.
Bem entendido, o simples enunciado sumário dos pontos de
vista a considerar em cada etapa leva a que se tome clara
a amplitude dos problemas a resolver, tanto no respeitante
à colecta das informações biográficas singulares como ao tra­
tamento geral dos dados recolhidos. Mas, ao mesmo tempo,
desenha-se uma base de princípio para os abordar, até
mesmo para os solucionar. É o caso, segundo parece, por
exemplo, de uma dificuldade de primordial importância, até
aqui por ultrapassar, mesmo nos melhores trabalhos biográ­
ficos: a escolha dos factos pertinentes de entre a massa ines­
gotável, pelo menos em princípio, de todos aqueles em que
é possível pensar. Na maior parte dos casos, esta escolha é
efectuada pelo biógrafo de uma forma unívoca e segundo
uma opção teórica subjectiva à escala de conjunto do seu
trabalho; é assim que se podem ler biografias inspiradas de
A a Z pela psicanálise, ou pela caracterologia, ou por um
sociologismo mais ou menos psicologizado — para nem
sequer falarmos das biografias «literárias», caracterizadas
por um puro e simples eclectismo ideológico. Ora, a pertinên­
cia de uma certa ordem de factos, relativamente a uma bio­
grafia^ não pode ser, a nenhum título, o resultado de uma
preferência subjectiva do .biógrafo, constituindo sim uma
Hlpóteees p a ra u m a teo ria cien tífica d a perso n alid ad e 537

propriedade objectiva característica da vida estudada num


dado estádio do seu desenvolvimento. Uma vez colocado o
problema desta forma, toma-se evidente que não só não há
nenhuma razão para que, ao longo de toda uma vida, sejam
as mesmas ordens de factos as únicas a manterem-se perti­
nentes, como também a especificidade de um desenvolvimento
biográfico real consiste, precisamente, na deslocação das
zonas de pertinência: se há uma idade em que o seio materno
é um elemento altamente pertinente, outras há em que o
salário, por exemplo., o é de um modo incomparavelmente
superior. Que esta evidência continue a ser praticamente
desconhecida mesmo no seio de biografias, aliás, notáveis,
sem dúvida que nada demonstra melhor de que forma nos
encontramos, neste domínio, bem longe da maturidade da
ciência. Como é possível, por exemplo, não nos espantar­
mos com a ingenuidade, tão frequente, desses princípios em
que, para «ter em conta as coordenadas sociais», o biógrafo
nos informa pormenorizadamente da situação económica,
política e cultural tal como esta se apresentava aquando do
nascimento do indivíduo estudado — como se, nos seus pri­
meiros anos, a criança pudesse ter, em geral, fosse lá que
tipo fosse de relações directas com esses elementos— , ao
mesmo tempo que esse mesmo biógrafo, aparentemente
quite com as «coordenadas sociais» de uma vez por todas,
e tendo-se referido à sociedade no concernente ao ano do nas­
cimento, em que esta não desempenha praticamente nenhum
papel, omite, na sequência, ocupar-se delas na altura em que
o indivíduo atinge a adolescência ou a idade adulta, ou seja,
num estádio em que esses elementos desempenham um papel
de primordial importância. Todo o problema está, precisa­
mente, em nos encontrarmos em condições de, para cada
período da vida estudada, saber captar os elementos consti­
tuintes reais i e as formas através das quais estes adquirem
essa dimensão; por exemplo, e para além das confrontações
ideológicas entre freudismo e marxismo, definir em que medida
é que aquilo que o primeiro visa por intermédio do conceito
de super~eu dos pais não deveria ser repensado na base
daquilo que o segundo nos pode revelar sobre as infra-estru-
luras sociais, familiares, e, dessa forma, pessoais, que deter­
minam as condições no âmbito das quais, na realidade, toda
a lei pode tornar-se, para uma personalidade infantil, num
elemento pertinente. Mais genericamente, é a articulação
35
538 Marxismo e teo ria d a p erso n alid a d e

entre as sucessivas fases do desenvolvimento que é preciso


elucidar, sem desconhecer a persistencia dos efeitos das pre­
cedentes sobre as seguintes, mas sabendo, ao mesmo tempo,
o que é ainda mais importante, dar-se conta do que as
seguintes possuem de específico, e da sua capacidade para
subordinarem a si, a partir da sua própria essência, todas
as anteriores coordenadas.
Mas, repitamo-lo para terminar, estas observações sobre
uma verdadeira ciência da biografia, como, mais generica­
mente, todas as sugestões teóricas apresentadas neste último
capítulo, não passam, em nossa intenção, senão de meras
hipóteses indicativas a respeito do possível conteúdo da psi­
cologia da personalidade que se trata de constituir. Possuir
a consciência da amplitude da aposta teórica, e prática, que é
atributo- desta constituição, equivale, simultaneamente, ao
renunciar a toda a pretensão dogmática no respeitante à
contribuição que procuramos fornecer-lhe. Em contrapartida,
aquilo que, para além das hipóteses, possui a consistência
de um fenómeno absolutamente fundamental é o facto de que
a teoria da personalidade humana não poderia vir a tomar-se
verdadeiramente científica, como tudo o exige hoje em dia,
sem reflectir sobre todos os aspectos e extrair todas as con­
sequências da sua irrecusável articulação com o materialismo
histórico, que é o fundamento de toda. a ciência do homem.
CONCLUSÕES

MORTE E TRANSFIGURAÇÃO
D A ANTROPOLOGIA
«Nada está dito. Chega-se sempre demasiado cedo,
desde que há homens, há Já mais de 7000 anos.
No que concerne aos hábitos e costumes, como a tudo
o resto, o pior foi já anulado. Nós desfrutamos da
vantagem de trabalhar na senda traçada pelos antigos,
os male hábeis de entr¿ os moaemos.»
Lautreamont, Poésies (Préface à un livre futur)
CEuvres completes. J. Corti, 1938, p. 326.

Se se tratou ate aquí bastante de psicologia, este.é, con­


tudo, como já vimos, e excepto no que respeita ao seu
último capítulo, não um livro de um psicólogo, mas sim de
um filósofo: o seu próprio sentido radica-se nesta diferença.
'-C o n tra o anterior uso especulativo impenitente da filosofia,
nem que seja, por vezes, da filosofia marxista, admite-se nele,
como sendo um princípio fundamental, e intangível, o facto
de que o saber concreto não pode ser engendrado em cada
ciência particular seja lá por que diligência filosófica for,
mas sim unicamente através de processos científicos especí­
ficos; e que um filósofo pretencja sugerir a constituição de
uma nova ciência, ou a nova orientação de uma ciência já
constituída, as indicações de conteúdo que ele possa, então,
i formular nunca poderiam beneficiar de um outro estatuto
i que não seja o de meras hipóteses, passíveis de serem
I objecto de julgamento por parte das abalizadas asserções
científicas já existentes ou a elaborar. Mas contra a tendên­
cia positivista, hoje em dia tãq difundida e enraizada no
seio das ciências do homem, tal como no seio das da Natu­
reza, defende-se nele a convicção de que o avanço das
ciências requer, mais do que punca, o contributo especí­
fico de uma filosofia radicalmente não especulativa, não só
a título de epistemología geral, mas também ao de base de
princípio da concepção do mundo, isto é, igualmente do
homem; essa filosofia, na nossa:opinião, não é outra senão
o materialismo dialéctico e histórico. Que Piaget, em nome
Г
г
с
512 M arxism o e teo ria personalidade
г
г da grande maioria dos psicólogos, afirme, não sem urna certa
ironia, a que ponto é incongruente a pretensão do bergso-
Г ' nismo, do existencialismo ou da fenomenología de construírem,
enquanto filosofias, uma teoria da memória, da emoção ou
с: da percepção, tal facto é incontestavelmente dos mais bem
с fundamentados, do ponto de vista do próprio marxismo. Mas
trata-se de uma fecundidade possuidora de uma natureza
totalmente diferente, irrecusável do ponto de vista da psico­
logia científica, que parece permissível creditar-se à dialéctica
г materialista, enquanto a mais profunda das soluções para os
к.
problemas da essência e do conceito, ao materialismo histó­
г rico, enquanto a resposta mais justa para a questão funda­
и mental: que é o homem? Procurámos demonstrar concreta­
mente de que forma esta fecundidade é real para a psicologia
da personalidade, e talvez mesmo para o conjunto das
3 ciências psicológicas. Falta-nos demonstrar reciprocamente de
(К. -у que forma, esta aptidão do materialismo dialéctico e histórico
о para tornar mais fecunda a reflexão sobre os problemas
Ч -‘Г fundamentais das ciências psicológicas confirma, por seu
tum o, o valor ímpar da resposta filosófica do marxismo à
questão: que é o homem? Considerando o lugar, hoje em
dia central, desta interrogação antropológica no seio das
pesquisas e dos debates filosóficos, uma tal demonstração
equivale a analisar, pelo menos resumidamente, o conjunto
da conjuntura actual da filosofia francesa, e isto na altura
em que julgamos poder discernir nela transformações de
enorme alcance a favor do marxismo.

O carácter. que mais ressalta, de imediato, na actual


conjuntura, relativamente à primeira metade do século, é a
decadência — talvez fosse mesmò necessário afirmar a ban­
carrota— ressentida pelas mais diversas formas do essencia-
lismo metafísico, ou seja, de uma grande parte da antro­
pologia filosófica tradicional. Que os indivíduos sejam
exemplos singulares do homem em geral, e que o homem em
geral possa ser definido por um conjunto de propriedades
universais e imutáveis, possuindo em sx mesmas a forma
psicológica, propriedades naturais ou sobrenaturais mas, em
todo o caso, não históricas, em resumo, por uma essência
humana abstracta, espontaneamente inerente ao indivíduo
M orte e tran sfig u ração d a an tropologia 543

isolado, trata-se aqui de ideias em que, bem entendido, muita


gente ainda acredita, e continuará, sem dúvida, a acreditar
por longo tempo, através das mais diversas ideologias — mas
o facto novo, capital, é que esta crença debate-se cada vez
mais com enormes dificuldades para se manter ao nível das
filosofias elaboradas, e minimamente coerentes. Aí reside,
nomeadamente, um dos aspectos primordiais da crise aguda
sentida pelas filosofias religiosas. Já o franco reconhecimento
da inserção da espécie humana no movimento da evolução
biológica, com as suas inevitáveis implicações filosóficas e
teológicas, abalara profundamente todo o edifício da clás­
sica concepção religiosa do homem, até chegar ao ponto de
pôr em causa, no âmbito da reflexão do P.e Theillard de
Chardin, por exemplo, a noção de pecado original. Mas
mesmo este passo em frente, que parecia a muita gente extre­
mamente ousado há apenas cerca de dez anos, se encontra
hoje em dia largamente ultrapassado: uma vez admitido pelo
essencialismo metafísico o princípio do seu necessário «aggior-
namento» relativamente ao estado e ao movimento reais dos
dados científicos, deixou de estar apenas em causa o reco­
nhecimento de facto da hominização biológica, estabelecido
há já um século e, bem feitas as contas,' passível de ser assi­
milado por um espiritualismo, para se tratar antes, em muito *
maior medida, de todo o volume de provas convergentes que
impõem, hoje em dia, o facto da hominização social: psico-^Л V"
logicamente imaturo, aquando do seu nascimento, o homem
não se toma homem senão à medida em que vai assimilando,
na prática, o património humano objectivado no seio do j ’ V
mundo social em vias de desenvolvimento histórico. Esta
dissolução teórica, doravante total, da velha noção de «natu­
reza humana», que vai delimitando a dissolução prática ace­
lerada das bases socioeconómicas e institucionais em que se
baseava até aqui a consciência religiosa -— e igualmente a j
forma correspondente da consciência laica tradicional —,
consuma a ruína do essencialismo metafísico enquanto cor­
rente de pensamento filosófico.
É, em larga medida, esta ruína do essencialismo me­
tafísico, e o vasto refluxo ideológico que a acompanha,
que explicam, na nossa opinião, o êxito das várias cor­
rentes do existencialismo nestes últimos decénios, em
particular, num país de fortes tradições laicas como é o
nosso, o existencialismo ateu de Sartre que, durante cerca
544т Marxismo е teo ria d a personalidade

de vinte anos, dominou um vasto sector da vida filosófica


francesa. Face às ideologias burguesas clássicas, e a um
ensino filosófico, com extrema frequência, claramente con­
servador, a filosofia sartriana, tal como nós próprios a rece­
bemos na época da libertação, podia surgir, de um modo
bastante vigoroso, como emancipadora. Ao negar toda a
essência humana preestabelecida e ao ridiculariar, a partir
desse princípio, o fetichismo dos valores burgueses, ao definir
o homem pela liberdade de situação e pelo projecto, ao assi­
milar a esta concepção geral do homem materiais científicos
em si mesmos consideráveis e sedutores, em particular de
índole psicanalítica, ao desbravar, nesta base, a via de
acesso a descrições concretas do vivido, por vezes, impres­
sionantes, tanto no píano literário como no plano fenomeno-
lõgico, ao pronunciar-se por um humanismo da responsabi­
lidade integral e um comprometimento militante, cujo acto
básico de fundação nunca foi, contudo, retomado senão a
‘ título de mera vantagem de inventário, Sartre parecia, efecti­
vamente, lançar as bases para a formulação da antropologia
)4ydos tempos modernos. É certo que ele encontrava, neste ter­
reno, uma outra filosofia declaradamente oposta ao essen-
cialismo metafísico, o marxismo, cuja concepção científica da
história e do socialismo é bastante difícil de recusar para
quem pretende realmente romper com a sociedade burguesa
e emancipar" o homem. Mas precisamente a força da posição
de Sartre — e num país como o nosso em que a influência
das ideias marxistas é tão profunda, bem como a sua sedução
para uma importante parcela dos intelectuais de esquerda —
consistiu em declarar, cada vez mais claramente e, por
vezes, com uma certa coragem, que admitia o marxismo sem
reservas, e só dele permanecia separado pelas insuficiências
dos próprios marxistas. O marxismo, escrevia em 1957, é
«a única antropologia possível, que deve ser simultanea­
mente histórica e estrutural»1, mas, infelizmente, os marxis­
tas de hoje em dia «perderam por completo o sentido do que
é um homem» i2, empobrecendo e desumanizando, assim, a
sua própria .concepção da história, e da dialéctica; «é por isso

i J.-P. Sartre, Critique de la raison dialectique, p. 107. A longa


introdução «Questions de méthode», foi inicialmente publicada em Les
Temjts-modernes, em Setembro e Outubro de 1957.
г ibidem, p. 68.
M orte e tran sfig u ra ç ã o d a an tropologia 546

que nós podemos, ao mesmo tempo, declarar-nos em pro­


fundo acordo com a filosofía marxista e manter, provisoria­
mente, a autonomia da ideologia existencial» 3. Há no próprio
âmago do marxismo contemporâneo «o lugar vago de uma
antropologia concreta»4: a função do existencialismo será
a de «reconquistar o homem no interior do marxismo» 5. Bem
entendido, uma tal tentativa terá o seu homólogo num
esforço prático visando o orientar a luta pelo socialismo de
uma outra forma que não seja a praticada pelo partido
comunista — e, na ocorrência, contra este.
O existencialismo poderia, nesse caso, ser a antropologia
do marxismo, e, mais genericamente, a sua «verdade», mesmo
contra os marxistas? Para que tal fosse o caso, seria, pelo
menos, absolutamente indispensável que, em primeiro lugar,
este partisse de uma autêntica compreensão do que há de
essencial no marxismo. Ora, esta compreensão é impossível.
seja qual for o talento de quem a isso se esforce; se- se pro­
curar apreender o marxismo por intermédio da conceptua-
lização do existencialismo, irremediavelmente marcada pela
sua ascendência anti-hegeliana e antimaterialista. O mater “'"f
riãlismo histórico, como já o demonstrámos mais atrás, com j
suficiente clareza para não termos necessidade de a isso vol- /
tarmos agora longamente, fundamenta-se não numa simples /
refutação do essencialismo metafísico, da ideia de natureza
humana e do sistema de valores por esta tradicionalmente -
caucionado, mas sim, de uma forma bem mais profunda, j
na descoberta do segredo da sua génese, enquanto ideologia
que reflecte relações de classe, isto é, ao mesmo tempo, na j
base da sua ultrapassagem científica, tanto do ponto de vista к
epistemológico como antropológico: Marx não destrói radi-j j
cálmente a crença numa ilusória essência humana abstracta,; i
inerente ao indivíduo isolado, á não ser na medida em que \
descobre a realidade da essência humana concreta no âmbito
do conjunto das relações sociais. Esta investigação teórica
corresponde não a uma simples ruptura subjectiva com ja
sociedade burguesa, mas sim à demonstração objectiva do -
seu carácter historicamente transitório; não à proclamação 1
subjectiva do «ideal» comunista, mas sim à concepção \

з Obra citada, p. 107.


« Ibidem, p. 69.
5 ibidem, p. 69.
546 Marxismo e teo ria d a personalidade

objectiva do movimento histórico real que engendra o comu­


nismo. Entre a descoberta da essência humana real e o fun­
damento científico da política comunista, assim comp a
adopção consciente do ponto de vista do proletariado, existe
um laço indissolúvel. Ora, todo o pensamento — epistemoló­
gico, antropológico, político — de Sartre, bem longe de poder
vir a fecundar o marxismo, permanece aquém dos seus prin­
cípios fundamentais.
Tal facto toma-se claro logo desde a diligência crítica
liminar do existencialismo em relação ao essencialismo meta­
físico. Em Lexistemialisme est un humanisme6, a noção de
essência humana é constantemente identificada com a de natu­
reza humana, sem que sejam sequer entrevistos a acepção
dialéctica da primeira, o seu conteúdo histórico objectivo,
em resumo, a descoberta capital consignada na V I Tese
sobre Feuerbach, Mas mesmo na Crítica da Razão Dialéctica,
a despeito do seu título, Sartre baseia toda a sua investigação
numa concepção pré-dialéctica da essência: é impossível,
escreve, «elaborar a definição de algo como uma essência
humana, ou seja, um conjunto fixo de determinações a par­
tir-das quais seria possível consignar um lugar definido aos
obfecfos estudados»7. Nestas condições, Sartre não pode real­
mente ultrapassar o essencialismo metafísico, mas sim unica­
mente opor-se-lhe no âmbito do seu próprio terreno, o da
filosofía especulativa. À ideia de que o homem em geral se
define por uma essência humana abstracta, opõe a simples
inexistência dessa essência abstracta, o que não nos liberta
da concepção do homem em geral, levando-nos sim, unica­
mente, a defini-lo através da ausência de essência preestabe­
lecida, noutros termos, por uma liberdade abstracta, ortoló­
gicamente constitutiva da realidade humana. Uma tal defi­
nição não é menos metafísica do que aquela a que se opõe;
continua a permanecer no terreno do humanismo especula­
tivo. É por isso que, em vez de acabar por chegar, de ime­
diato, como no caso de Marx, à ultrapassagem de toda a
especulação e ao estudo científico das relações sociais con­
cretas, fundamento real das existências individuais, a refu-*i

5 Nagel, 1946.
i C ritiQ ue de la ra iso n d ia le c tiq u e , p. 105. O sublinhado é meu.
Seis. Unhas mala abaixo а expressão «natureza hum ana» é usada como
equivalente a «essência hum an a'.
Mortx tran sfig u ra ç ã o d a antropologia 547

tação existencialista do essencialismo metafísico conserva,


no caso de Sartre, e no de toda a corrente de pensamento
correspondente8, as abstracções características da antropo­
logia filosófica, à mistura com definições mais ou menos
opostas: toda esta antropologia é construída, e isso vê-se
logo a uma primeira análise, à base de entidades abstractas:
o em-si, o para-si, o homem, o outro, a liberdade — e as
análises concretas não passam das partes justificativas da
construção filosófica. Em resumo, encontramo-nos aqui decla­
radamente aquém da alteração crucial de que deriva o mar­
xismo, base para toda a solução científica dos problemas da
antropologia, e de todos aqueles que esta determina.
Mas não é tudo. Não vendo claramente a excentricidade
posicionai, de índole social, da essência humana real, a impos­
sibilidade para os homens de modificarem intrinsecamente
esta essência de outro modo que não seja colectivamente,
através de um processo histórico objectivo que possui as
suas raízes ao nível da actividade produtiva material, Sartre
remete tudo isso, de uma forma ideológica e mistificadora,
para a escolha, para o projecto «livres» do «homem» — ou
seja, na realidade, do indivíduo em geral, concebido enquanto
suporte e origem últimos de todas as relações sociais. Tal
significa que o existencialismo psicologiza e subjectiviza
invencivelmente todas as coordenadas de base da antropolo­
gia. Em O Existencialismo é Um Humanismo afirma-se signi­
ficativamente que a especificidade dos existencialistas está
em considerarem que no caso do homem «a existência pre­
cede a essência ou, se preferirem, que ê necessário partir da
subfectividadey>9. Esta equivalência reveladora demonstra
que a possibilidade metodológica de expor uma antropologia
tomando por ponto de partida o indivíduo — possibilidade
esta que o marxismo, bem entendido, não contesta de modo
nenhum — é confundida com uma prioridade ontológica
essencial do indivíduo relativamente às relações sociais: «o
homem não é senão aquilo que faz de si mesmo» 10, o que
equivale, portanto, a afirmar que é o homem, enquanto indi­
víduo (abstracto), que é obrigatoriamente considerado como

8 As mesmos análises podem, por exemplo, aplicar-se ao ensaio


de M. Dufrenne, Роит Vhomme.
9 Vexistentialisme est un iiumanisme, p, 17.
» ibidem, p. 22.
548 M arxism o e orla d a p ersonalidade

fautor da história, e simultaneamente da sua própria história


individual. Encontramo-nos aquí nos antípodas do materia­
lismo histórico, e, desse modo, de uma concepção autentica-
mente científica do individuo, que nele se articule. Não pode­
mos, contudo, simular ignorar a flagrante necessidade que se
. impõe no próprio seio de cada biografía, a partir da posição
justa-estrutural do indivíduo para com as relações sociais.
Este problema fundamental da articulação interna «da liber­
dade» com a necessidade é um dos calvários do existen­
cialismo. Durante cerca de vinte anos, Sartre procurou
resolvê-lo na base-de uma interpretação existencialista da
psicanálise, ou seja, de facto reduzindo a tão complexa neces­
sidade biográfica de essência social às proporções de .uma
escolha psicanalítica «original», «escolha subjectiva através da
qual cada pessoa se cria enquanto pessoa» 11 e que seria
enigmaticamente efectuada a partir do próprio nascimento.
É evidente que uma tal concepção, em que o tema psicana-
lítico preenche abertamente a função de substituto para o
desconhecimento do papel determinante das relações sociais,
não é passível de articulação com o marxismo — o que
fornece, por outro lado, a exacta medida da profunda medio­
cridade dos incansáveis biscates freudo-marxistas, aquando
do Congresso Lépine da Filosofia.
Da mesma forma, à medida que aumentava o seu conhe­
cimento do materialismo histórico, Sartre tomava consciência
da fragilidade de uma tal solução. Em Crítica da Razão
Dialéctica encontramos a sua refutação inserida numa nota:
«A alienação fundamental não advém, tal como O Ser e o
Nada poderia levar erradamente a acreditar, de uma escolha
pré-natal: advém da relação unívoca de interioridade que une
o homem enquanto organismo prático ao seu meio am­
biente.» 12 Encontra-se aqui, sem quaisquer dúvidas, um
sintoma de progresso. Ou antes, encontrar-se-ia aí um certo
progresso caso o sentido justa-estrutural, caso a excentricidade
posicionai essencial desta «relação de interioridade» fossem
reconhecidos; mas, nesse caso, tal equivaleria à morte do
existencialismo.. Na realidade, toda a Crítica da Razão Dia­
léctica se orienta numa direcção perfeitamente oposta. A tese
fulcral do livro está em que «o único fundamento concreto

11 UEtre et le Néant, Gallimard, JL943, p. 662.


12 Critique de la raison dialectique, p. 286, nota.
M orte e transfiguração d a a n ' oología 649

da dialéctica histórica é a estrutura dialéctica da acção


individual))t3, que os únicos agentes dessa dialéctica histórica
«são os homens individuais enquanto executantes de livres
actividades» *14 — homens individuais a respeito dos quais se
esquece o facto de que eles próprios são previamente pro­
duto das relações sociais. A crer em Sartre, não seriam,
portanto, relações sociais concretamente definidas, as relações
de produção capitalistas, as responsáveis, em última instância,
pela alienação dos indivíduos, ao mesmo tempo que, por
outro lado, criam as condições objectivas para a sua eman­
cipação; seria, sim, o indivíduo — em geral— quem se
auto-alienaria ao objectivar-se segundo modalidades universais
no âmbito do «prático-inerte», ou seja, no âmbito das estru­
turas sociais — igualmente em geral—, e que poderia, por­
tanto, «ultrapassar» a sua alienação voltando a apreender o
seu livre projecto individual — e unicamente desse modo.
Longe de fundamentar a priori, como de tal se vangloria
Sartre 1S16, a crítica marxista do capitalismo, no seio da qual
a antropologia científica mergulha as suas raízes na economia
política, uma tal diligência remete-se para a crítica filosófica
abstracta da sociedade, falsamente concebida como inerte
por oposição ao indivíduo considerado como a origem de
toda a praxis'6. Assim, no seio da própria obra em que
Sartre desenvolveu o mais ingente esforço para pensar,
enquanto existencialista, o materialismo histórico, o homem
abstracto da antropologia filosófica permanece como sendo
anterior no respeitante às relações sociais.
Tal equivale a afirmar que, no seio de uma tal antro­
pologia, é o indivíduo isolado da sociedade capitalista que é
considerado, sem a devida crítica, como sendo o conceito-
-chave, é a liberdade formal concedida ao indivíduo pelas
relações capitalistas que é considerada enquanto liberdade

и Critique de la raison dialectique, p. 279.


14 Ibidem,, p. 377.
.15 ibidem, p. 163.
16 Sob pretexto de «determinar as condições formais da história»
(p. 743), ou seja, de alcançar os seu3 fundamentos mais genéricos, Sartre
coloca no mesmo plano a análise do trabalho dentro de uma fábrica
e a da bicha de espera do autocarro <pp. 308 e seguintes), a revolução
e o desafio de futebol (pp. 468 e seguintes). Tal equivale a anular a
descoberta decisiva das infra-estruturas, para as substituir por estruturas
meramente derivadas, psicologlzadas, quando não mesmo perfeitamente
fúteis.
560 Marxismo e te o ria d a personalidade

Histórica concreta: a ideologia burguesa encontra-se, um pouwO


por toda a parte, directamente subjacente a semelhante con­
cepção. Em suma, o existencialismo é a expressão ideológica
da revolta do indivíduo da sociedade burguesa contra essa
mesma- sociedade, e da sua consciência filosófica contra o
essencialismo metafísico que cauciona os valores burgueses
— aí reside o seu lado crítico, relativamente progressista, já
sensível em Kierkegaard —, mas é, ao mesmo tempo, a
expressão da impotência para ultrapassar radicalmente o
horizonte ideológico burguês, para tomar consciência dos
fundamentos objectivos reais da sociedade e da personalidade,
para se elevar, na teoria e na prática, ao ponto de vista da
revolução proletária — e aí reside o seu lado mistificador e
reaccionário, não obstante a vontade progressista, por vezes
evidente, dos seus adeptos. Esta ambiguidade é a chave para
a compreensão da audiência de que goza o existencialismo
no seio de importantes camadas de intelectuais oriundos da
.burguesia, entre os quais o próprio Sartre sempre se colocou
de forma bastante franca. O existencialismo corresponde
essencialmente ao instante subjectivo da tomada de cons­
ciência; intensamente vivida talvez, mas ainda superficial, de
que a sociedade burguesa é invivível mesmo para o próprio
indivíduo burguês, até mesmo ao desejo de a destruir para
que a vida individual se torne vivível. Mas encontra-se bem
longe ainda da descoberta científica do fundo dos problemas,
isto é, da propriedade capitalista dos meios da produção
material enquanto origem última da alienação da existência
individual — descoberta esta que é bastante mais difícil, regra
geral, para o intelectual artesanal do que para o operário
fabril, devido às suas respectivas posições no sistema das
relações de produção. Está bem longe ainda de uma clara
consciência das imperiosas condições objectivas para uma
verdadeira emancipação dos indivíduos — condições relativas
à prefiguração material da nova sociedade no seio da antiga,
à união das forças de classe capazes de levar vitoriosamente
a cabo a revolução, ao complexo processo económico, polí­
tico, cultural, da edificação de uma sociedade so cialista— ,
condições essas que implicam, ao mesmo tempo, a crítica
científica das formas e dos conteúdos individualistas burgueses
de certas aspirações «espontâneas» de socialismo, e que se
trata igualmente de revolucionar a fim de assegurar, na prá­
tica, ar ultrapassagem da sociedade burguesa. N a medida cm
I M orte e tran sfig u ração d a antropologia 561

que o existencialismo tende a encerrar o indivíduo adentro


desta falsa consciência, e, de explosões de violência impaciente
para reconciliações desiludidas com o estado de coisas exis­
tente, a mantê-lo adentro do ciclo de uma impotência funda­
mental 17, já não passa senão de um dos últimos avatares da
antropologia especulativa, a expressão ideológica da perpétua
recaída da revolta numa alienação que permanece imutável.
*

Mas a história das ideias nunca é simples. E se a crítica


do existencialismo a partir do marxismo foi, em certa medida,
acompanhada pela passagem directa do primeiro para o
segundo, num certo número de intelectuais — como foi o
nosso caso, há cerca de vinte anos — , a crítica recíproca do
marxismo pelo existencialismo mesclava incompreensões fun­
damentais, de natureza ideológica, com bastantes censuras
não destituídas de base para que não fosse também elar'T
actuante: que os marxistas dos anos 50 tivessem «esquecido í
o homem» não deixava de possuir uma certa aparência de j
verdade, quando o materialismo dialéctico e histórico, de- j
monstrando não se preocupar por aí além em aprofundar e J
aperfeiçoar as suas concepções antropológicas, se encontrava! v
com bastante frequência ausente do rápido progresso d e »
inúmeras ciências humanas, e quando ocorreram graves i
alterações da democracia socialista, abertamente reconhecidas j
pelos comunistas a partir de 1956, tais factos podiam lançar
sérias dúvidas sobre as virtudes desalienadas da via aberta
pela Revolução de Outubro. Contribuindo a enorme e multi­
forme pressão ideológica da burguesia para rebater, até mesmo /
para colocar, pura e simplesmente, na sombra a verdade da
crítica marxista, foi, em larga medida, através de uma outra
via que se operou em França, nos anos 60, a dissolução da
vasta influência do existencialismo: a do desenvolvimento de
um certo número de ciências humanas no âmbito do seu
positivismo. Contra a intransponível fixação do existencia-

17 «De demissão em demissão», escreve Sartre, «acabámos por só


nos apercebermos de uma coisa: da nossa radical impotência» (prefácio
|a Aden-Arable, de P. Nlzan, Maapéro, I960, p. 17). E ainda: «Experimentei
na prática, desde a minha Juventude até hoje em dia, a mats total
Impotência» {in M. Ohapsal, Les écrivains en versonne, Julliard, i960,
p. 220).
552 M arxismo e teoría d a p ersonalidade

lisrno à subjectividade vivida, considerada enquanto base real


da antropologia, a psicanálise, a linguística, a etnologia, pro­
clamaram, com uma energia sempre crescente, na base da
força irresistível dò saber científico, que, para além das ilusões
da consciência subjectiva dos indivíduos, a antropologia não
poderia encontrar outro fundamento que não fosse nas estru­
turas objectivas, impessoais e inconscientes-quQ subentendem
e informam toda a existência humana. Tal é a ideia central
oposta a Sartre por Lévi-Strauss no último capítulo de O Pen­
samento Selvagem: história e dialéctica 18* que marcou uma
data no desenvolvimento da conjuntura filosófica no nosso
país após a. segunda guerra mundial. «Quem começa por se
instalar nas pretensas evidências do eu nunca mais de lá
sai» ,9, escreve Lévi-Strauss, que aí se entrega directamente à
crítica dás teses da Crítica da Razão Dialéctica. «Entrin­
cheirado no individualismo e no empirismo, um Cogito — que
pretende ser- ingénuo e primitivo — perde-se nos impasses
da psicologia social. Porque é flagrante que as situações a
partir-das quais Sartre procura definir as condições formais da
realidade, social: greve, combate de boxe, desafio de futebol,
bicha de espera numa paragem de autocarro, não passam
todas senão de incidentes secundários da vida em sociedade;
não podem, portanto, servir para definir os seus fundamen­
tos.» 20 E Lévi-Strauss conclui, a este respeito: «Ao mesmo
tempo que rendemos homenagem à fenomenología sartriana,
não esperamos encontrar nela senão um ponto de partida,
nunca um ponto de chegada.» 21
Parece, efectivamente, que deveria deparar-se-nos aqui
uma real ultrapassagem da antropologia e do humanismo
filosóficos através da concepção rigorosa das ciências huma­
nas, e que essa ultrapassagem pode, de pleno direito, recla­
mar-se de Marx, tal como não deixa de o fazer Lévi-Strauss22.
«Às ciências exactas e naturais», escreve, «as ciências humanas
foram extrair a lição de que é necessário começar por recusar

18 La pensée sauvaye, Plon, 1062, pp. 324 c seguintes.


10 Ibidem, p.,329.
20 ibidem, p. 330.
21 Ibidem, p . 331.
—- Anthropologie strucíurale. Piou, 1958, p. 364: «Procuro reintegrar
na corrente marxista as aquisições- etnológicas destes últimos cinquenta
anos.» Cf. também pp. 110, 328, 369, 373, etc.
M ort t tran sfig u ração d a antropologia 563
г__.
as aparências, caso aspiremos à compreensão do mundo.» 23
Ê precisamente o que Marx não cessava de repetir: «Toda а
; ciência seria supérflua se a aparência e a essência das coisas
i coincidissem.» 2425 O anti-humanismo estruturalista, que con-
1, .sidera que a tarefa da ciência «não é a de constituir o homem,
/ mas sim a de o dissolver» ao construir os modelos infra-
-estruturais que-governam, sem que os indivíduos o saibam,
todas as modalidades da sua existência, seria, portanto, por
seu turno, a verdadeira antropologia científica que convém
ao marxismo, como se apressaram a sugeri-lo certos investiga­
dores ? Para quem se sentisse tentado a crê-lo é, então, grande
a surpresa ao verificar que essa corrente de pensamento des­
conhece, tal como o existencialismo, a descoberta marxista
fundamental consignada na V I Tese sobre Feuerbach, a signi­
ficação antropológica primordial da economia política, tal — ¡
como Marx e Engels a conceberam. Porque essa prática e
essa interpretação estruturais anti-humanistas de um certo j
número de ciências humanas, frequentemente elevadas, nem j
que seja a contragosto, ao nível de uma nova filosofia,
baseiam-se implícita ou explicitamente numa concepção geral
do homem que se distingue sobretudo por uma enorme
ausência: a do trabalho social e, por consequência, das rela­
ções de produção, ou seja, do essencial, no respeitante ao
contributo de Marx. i
Melhor: em todos esses autores, a começar por Lévb—
-Strauss, a economia política é condescendentemente consi­
derada como sendo uma especialidade estrita e subalterna.
Ao explicar por que é que a etnologia não teve qualquer inte­
resse em dela se ocupar, Lévi-Strauss pergunta: «Que relação
poderia existir entre a existência concreta dos agrupamentos
humanos, realmente passíveis de serem observados, e noções
tais como o valor, a utilidade e o lucro?»26 Noutro lado, afirma
tranquilamente que, «o objecto da ciência económica não é
universal, mas sim estreitamente circunscrito a uma pequena
parcela do desenvolvimento da Humanidade» 27, como se, em
tempo algum, tivesse existido uma só sociedade que fosse que

23 Critères . identifiques dans les disciplines sodales et humaines,


em «Le structurallsme», Aletheia, n.o 4, Maio de 1966, p. 211.
2* Le Capital, Ш , 3, p. 196.
25 La pensée sauvage, p. 326.
28 Anthropologie structurale, p. 328.
27 Aletheia, p. 201.
36
554 Marxismo e teo ria d a p ersonalidade

não se tivesse fundamentado na produção e na reprodução


dos meios de subsistência, e que não fosse, portanto, passível
de uma apreciação, em primeiro lugar, por parte de um estudo
económico. Na realidade, o que é aqui considerado como
sendo a economia política científica, como se O Capital não
tivesse sido escrito, são exclusivamente as suas formas tecno-
cráticas burguesas.-E é, de facto, por isso que Lévi-Strauss
pode propor-nos uma classificação geral das ciências do
homem em que encontramos, por um lado, «os estudos jurí­
dicos, as ciências económicas e políticas e certos ramos da
sociologia e da psicologia social», constituindo o grupo das
ciências sociaiSy e por outro, sob a denominação de ciências
humanas, «a pré-história, a arqueologia e a história, a antro­
pologia, a linguística, a filosofia, a lógica, a psicologia» 28.
As ciências sociais, tal como a economia política, colocariam
nomeadamente os problemas «sob a óptica da intervenção
prática» no quadro da sociedade existente com a qual estariam
sempre, em maior ou menor medida, em estreita conivência,
e não possuiriam nenhum tipo de alcance antropológico pro­
fundo; no pólo oposto, as ciências humanas, terreno de eleição
do método estrutural, adviriam da «investigação realmente
fundamental» e seriam as únicas claramente científicas
adentro do espírito que as informa. Com um tal sistema de
bipartição, é toda a revolução intelectual operada pelo mar­
xismo que se vê riscada do mapa com um simples traço de
p e n a 29. A economia política, rebaixada ao nível do pragma­
tismo, é de novo radicalmente separada da história e da
psicologia, bem como da filosofia, o homem volta a tornar-se
estranho às relações de produção, e as «ciências humanas»,
numa versão estruturalista que se limita a modernizar a velha
tradição do idealismo sociológico francês — a do comtismo,
por oposição ao marxismo —, podem, em paz e sossego, pro-

23 Aletheia, pp. 208 a 210.


29 Tal não é apenas válido para Lévi-Struass. É precisamente d
acordo com a mesma Inspiração que Michel Foucault, por exemplo,
escreve: «A economia não é uma ciência humana» (Les m ots et les choses.
GaUimard, 1966, p. 363). Para ele, podemos «supor» que, no plano
politico, o marxismo inaugurou, de facto, «um, campo epistemológico
totalmente novo», mas afirma que, em economías «Marx não representa
urna ruptura epistemológica» (Lea lettres françaises, 7 de Junho de
1967). Toda a ohra de Marx dá testemunho do contrário; é da revolução
por ele operada em economia política, e 710 ámbito da profunda signifi­
cação desta ciência, que deriva a revolução levada a cabo pelo marxismo
em todos os outros terrenos.' incluindo o político.
M orte e tran sfig u ração d a an tropologia 655

clamar que as 1еь universais do espírito humano orientam e


dirigem o mundo.
Porque tal é o sentido real desta inexpiável excomunhão
lançada sobre a economia política, no referente à sua vasta
acepção marxista. É, com efeito, necessário substituir as
infra-estruturas económicas, colocadas entre parêntesis, por
outras, que possamos tentar levar a que preencham por com­
pleto o papel de estruturas de base: trata-se, antes do mais,
como é sabido, das estruturas linguísticas que foram promo­
vidas a essa função pela antropologia estrutural30. Partindo
do contributo realmente importante das ciências linguísticas
para o estudo dos factos culturais, num sentido restrito que
semelhante adjectivo pode adquirir no correspondente às
actividades intelectuais, e mediante uma constante passagem
sub-reptícia ao sentido generalizado em que, por oposição à
naturcu, o termo cultural pretende designar tudo o que é
social, levam-se essas ciências, com bastante frequência a
contragosto, a afirmar muito mais e algo de totalmente dife­
rente do que elas podem afirmar: constrói-se, na sua base,
a disciplina-piloto para o conjunto das ciências humanas, e,
apresentando uma velha ideia filosófica como sendo a última
descoberta da moderna antropologia, apresenta-se a lingua­
gem como sendo a essência de tudo o que é humano. «A lin­
guagem, apresenta axiomáticamente Lévi-Strauss, é simulta­
neamente o facto cultural por excelência (que distingue o
homem do animal) e aquele por intermédio do qual todas as
formas da vida social se estabelecem e perpetuam.»31 N ão é,
contudo, evidente que, considerada em si mesma e separada
tanto do trabalho como das relações de produção, a linguagem
não poderia, de forma alguma, dar conta da vida social? É o
que Marx demonstrava em páginas que não basta ignorar
para as termos, desse modo, ultrapassado: «Podemos distin­
guir os homens dos animais através da consciência, da religião
e de tudo aquilo que se quiser. Eles próprios começam a
distinguir-se dos animais a partir do instante em que começam
a produzir os seus próprios meios de existência, passo em

30 Cf., entre cem outras decílarações análogas, a de J. Lacan, para


quem «a estrutura é a linguagem», o que autoriza a considerar a
linguística «no respeitante ao que pertence ao domínio buniano, como
sendo uma ciência-piloto». «Petit discours à 1'ORTF, Recherches, n.° 3-4,
1966, p. 7.
31 A n th ro p o lo g ie sir u c tu r a le , p. 392. Cf. A le th eia , p. 197.
^ббб M arxism o e teo ria <? oersonalldade

I frente que é a própria consequência da sua organização


corporal. Ao produzirem os seus próprios meios de existência,
os homens produzem indirectamente a sua própria vida ma­
terial.» 32 Este irrecusável primado da produção material
— em que, aliás, se fundamenta, em última análise, o da
. classe operária no âmbito do processo revolucionário — não
implica, de resto, de forma alguma, que se esteja a opor o
«trabalho» à «linguagem», mas sim que se relaciona tanto
como a outra, e a sua recíproca articulação móvel, com o
sistema das relações de produção, base geral objectiva de toda
a vida social. «A linguagem é tão velha como a consciência,
prossegue M arx-— a linguagem é a consciência real, prática,
que existe, assim, para outros homens, e que existe, portanto,
nesse caso, também para mim, unicamente e na medida em
que, tal como a consciência, a linguagem não surge senão com
a necessidade, a necessidade da troca com outros homens.» 33
A antropologia estrutural não se preocupa com tal facto: em
benefício de uma absolutização da linguística, efectúa certas
restrições ao materialismo histórico, e declara que instituições
sociais-e condutas individuais, tendo por contextura a lingua­
gem, seriam apenas ((modalidades temporais das leis univer­
sais em que consiste a actividade inconsciente do espírito» 34
É certo que este idealismo antropológico não nega que
as estruturas do espírito possuam, em si mesmas, bases mate­
riais; e Lévi-Strauss clama por inúmeras vezes a importância
que dedica ao «incontestável primado das infra-estruturas» 3S*.
Mas a que é que ele chama infra-estruturas? La pensêe
sauvage fornece-nos uma resposta bastante clara: «Verifica-se,
/portanto, num certo sentido, o primado da infra-estrutura:
a geografia, o clima, a sua repercussão no plano biológico,
colocam o pensamento indígena perante uma situação con­
traditória...» 34 Ora, mesmo se admitirmos que esses dados
geográficos desempenham, com efeito, um importante papel
de base nas sociedades em que as forças produtivas se encon­
tram muito pouco desenvolvidas, tal facto não autoriza, de
forma alguma, que substituam, sob o conceito geral de infra-es-

32 Uidéologie allemande, p. 46.


33 ibidem, p. 69.
3t Anthropologie structurale, p. 75.
35 isa pensée sauvage, p. 173. -
M Ibidem, p. 124, Sou eu que sublinho.
LMalUOTis' f^& SSitW SíS^ti

Morte e transfiguração da antropologia 5БТ

trutura, as forças e relações de produção que, à medida que


se vão desenvolvendo, transformam cada vez mais os dados
geográficos em resultados históricos, afirmando-se, assim,
como sendo a verdadeira base. Vemos claramente aqui o
perigo de certas generalizações antropológicas efectuadas,
sem a devida crítica, a partir de sectores limitados, até mesmo
inessenciais, do domínio humano.
A coberto do empréstimo, feito pelo marxismo, da palavra
infra-estrutura, mas precisamente nos antípodas do seu con­
teúdo científico, passa, então, a ser mui lhanamente a natureza
que é apresentada como base explicativa da sociedade que
foi previamente reduzida à cultura, ou seja, abstracção feita
da formação económica, das relações de classe, e de tudo o
que estas determinam, no âmbito do domínio em que se desen­
volveram: eis-nos, paradoxalmente, remetidos aos aspectos
caducos do pensamento do século x ix , até mesmo do sé­
culo x v iii. A história das sociedades, tal como a biografia dos
indivíduos, é levada a equivaler a configurações móveis de
estruturas do espírito, e as estruturas do espírito são, por seu
turno, relacionadas tanto com as estruturas do meio ambiente
natural, como com as estruturas do cérebro, e talvez mesmo,
de uma forma ainda mais elementar, com as estruturas físico-
-químicas de toda a matéria — o que confirma uma vez mais
que, no campo das ciências humanas, o biologismo, o natura­
lismo, são sempre os cúmplices do idealismo, e revela, com
toda a evidência, que o método estrutural, sejam quais forem
os seus méritos no seu domínio específico, leva a um impasse
se se pretender que substitua a dialéctica a fim de pensar as
conexões e os desenvolvimentos — , eis como se nos apresenta,
com demasiada frequência, esta pseudo-últrapassagem cientí­
fica do humanismo filosófico.
E é por isso que o tema da «morte do homem», ao qual
ele forneceu algum brilho37, surge, de imediato, como sendo
um exemplo clássico de artefacto epistemológico, de equívoco
teórico, engendrados no seio do desenvolvimento da ciência
moderna, fruto da negligência em procurar assimilar devida­
mente o marxismo. Impõe-se a relacionação com o equívoco
idealista de Poincaré, e de muitos outros físicos e filósofos.

37 Cf., por exemplo, M. Foucault, Les mota et les choses: «o homem


está em vias de desaparecimento», p. 397.
558 Marxismo e te o ria d a personalidade

que julgam dever concluir, na véspera da primeira guerra


mundial, partindo do facto de a matéria se revelar composta
por partículas desprovidas de certas propriedades, que eram
tidas como sendo as que, essencialmente, a caracterizavam,
que «a matéria desaparece», que «deixa de haver matéria))3B.
I Na realidade, tal como Lenine escrevia, já em 1-908, com uma
' admirável perspicácia, os electrões, por exemplo, «será que
existem afora da consciência humana, será que possuem ou
não uma realidade pbjectiva»? E como, evidentemente, a
resposta é afirmativa, «a questão é, assim, categoricamente
solucionada a favor do materialismo, porque a noção de
matéria não significa [...] , no campo da teoria do conheci­
mento, senão o seguinte: a realidade objectiva existe indepen­
dentemente da consciência humana que a reflecte». Que
significa, então, na realidade, o «desaparecimento da ma­
téria))? «Tal significa que o limite até onde conhecemos a
matéria desaparece e que o nosso conhecimento se aprofunda;
certas propriedades da matéria que anteriormente nos surgiam
como absolutas, imutáveis, primordiais (impenetrabilidade,
inércia, massa, etc.), desaparecem, passando, agora, a ser
reconhecidas como relativas, exclusivamente inerentes a certos
estados da matéria.» Em resumo, trata-se da ultrapassagem
de uma etapa no âmbito do incessante desenvolvimento do
conhecimento da matéria. A conclusão é que «a nova física
desviou-se para o idealismo principalmente porque os físicos
ignoravam a dialéctica», e isso numa época em que a filosofia
idealista e burguesa está a postos para poder «aproveitar-se
dos mínimos desvios do pensamento» 39.
Não é verdade que estas análises de Lenine constituem
um contributo esclarecedor para a compreensão do sentido
real desta «desaparição do homem», que ños foi apresentada
como sendo o fruto da mais moderna ciência? Cem anos
depois de Marx, um número incessantemente crescente de
ciências humanas descobrem, de acordo com os seus próprios
métodos, e, com demasiada frequência, ignorando ou enten­
dendo mal o marxismo, que, com efeito, as propriedades
tradicionais atribuídas ao «homem» não passam de ilusões.
A linguística, a psicanálise, a etnologia, já não são compa-


38 H. Poincaré, Le matérialisme actúel, Flammarion, 1913, p. 65.
39 Lenine, «Matérialisme et empirlocriticieme», CEuvres, Faris-
-Moscovo, t, 14, pp. 271-272 e 372.
M orte e tran sfig u ração d a an tropologia 559

tíveis com a crença numa humanidade inerente ao indivíduo


I isolado e directamente legível através de uma fenomenología
j da subjectividade. Será que tal significa que «b homem»
Í deixou de existir? O conjunto das relações sociais, produto
de toda a anterior história humana e base do desenivolvimento
dos indivíduos e das novas gerações, possui ou! não uma
existência objectiva, da qual só nos podemos abstrair em imagi­
nação? Sem dúvida nenhuma que sim. Nestas condições, a
essência humana, concreta, social, história, base real do
homem, existe sem margem para dúvidas. «Desaparição do
homem», tal significa, por consequência, que as propriedades
I que eram tradicionalmente atribuídas à essência humana — a
! universalidade abstracta, a inerência ao indivíduo isolado,
í a forma subjectiva e psicológica, a transparência imediata
! de si para si, etc. — surgem como sendo ilusórias, ou, pelo
! menos, relativas; outro tipo de propriedades, totalmente
i opostas, surge em seu lugar. O que desaparece não é, de
forma alguma, a essência humana, mas sim a forma ideológica
mistificada sob a qual esta era apresentada. Encarar a ultra­
passagem desta forma como correspondendo à desaparição
do seu conteúdo equivale a cometer um a falta de primeira
grandeza contra a dialéctica materialista do conhecimento.
Mas o anti-humanismo estruturalista não é apenas um erro
epistemológico, mas também um fenómeno ideológico de um
amplo sentido social e político. Se o humanismo existencia­
lista é uma ideologia da revolta individualista impotente
contra o absurdo da sociedade burguesa, do comprometimento
subjectivo em acções que se propõem baldadamente destruí-la
em nome do sentido que deve possuir a vida pessoal, o anti-
-humanismo estruturalista surge como sendo uma ideologia
do conformismo desiludido com a sociedade burguesa consi­
derada como sendo tão absurda como qualquer outra, da
distanciação «objectiva» relativamente à acção política pro­
gressista, cujo sentido se reduziria sempre, em maior ou menor
medida, a uma ilusão por detrás da qual os homens colocam
a si mesmos a máscara do contra-senso das estruturas que os
governam. A ambição teórica das ciências humanas, escreve
muito significativamente Lévi-Strauss, «implica que mante­
nhamos as nossas distâncias para com a acção». Aliás, «ao
longo de todos estes milénios, por aqui e por acolá, nunca
cessaram de surgir e desaparecer, qual um efémero pestanejar,
milhares e milhares de mundos humanos. De todos esses
660 M arxismo e teo ria d a p ersonalidade

mundos, onde é que está o bom» 40? Este cepticismo his­


tórico e antropológico dissolve com tanto maior facilidade о
homem quanto o observa do ponto de vista de Sirius, de onde
é sabido que já quase não se podem aperceber senão os mo­
tivos de um distinto conservadorismo, eventualmente referen­
ciado pelo encorajamento distanciado a exóticas revoluções.
Mas, nestas condições, a antropologia estruturalista não
consegue, de forma alguma, ultrapassar o humanismo existen­
cialista. É certo que o movimento do pensamento estrutura­
lista, considerado na sua relativa coesão, surge como sendo
o índice de uma alteração extremamente profunda na con­
juntura intelectual em França — e noutros países— num
sentido simultaneamente positivo e negativo. Por um lado,
apresenta-se como directamente oriundo do progresso das
ciências do homem, como sendo a crítica científica dá antro­
pologia filosófica, e, deste ponto de vista, constitui uma das
formas mais importantes do processo de depauperamento da
filosofia tradicional* anunciado há já um século por Engels41,
e durante longo tempo oculto pela máscara, entre outras
coisas, d a prorrogação que a imaturidade das ciências do
homem permitiu à antropologia especulativa. Vivemos hoje
em dia um importante episódio do suspiro final da filosofia,
no sentido pré-científico do termo, e o «cientismo» estrutu­
ralista é um sintoma perfeitamente claro dê tal facto. A este
respeito, toda a corrente de crítica espiritualista ou existen­
cialista do estruturalismo, de Ricoeur a Sartre, surge como
sendo uma tentativa retardatária para manter, contra a passa­
gem inevitável de toda a problemática do homem para o
terreno do pensamento científico, as prerrogativas de uma
filosofia da «liberdade», da «subjectividade» e do «sentido»,
que se encontram claramente condenadas. O marxismo não
pode tom ar sua uma tal crítica. Mas, ao mesmo tempo, na
sequência das condições sociais e gnosiológicas no seio das
quais tem lugar o seu desenvolvimento, e pondo de parte todas
as desigualdades, o movimento do pensamento estruturalista
reproduz,-relativamente às ciências do homem, o erro do
positivismo do século passado em matéria de relações entre

4° Aletheia, p p . 209 e 212.


«Ê com Hegel que termina,- de uma forma geral, a filosofía»,
Ludwig Feuerbach, p . 21.
M orto e trr • lguração d a an tropologia 561

filosofia e ciências da natureza, A investigação do pensamento 1


estruturalista é a mais declarada forma contemporânea do
positivismo, Ao processo de depauperamento da filosofia
especulativa atribui o sentido dè uma desqualificação de toda
a filosofia, quando este representa o surgir da filosofia cien- ,
tífica, do materialismo dialéctico e histórico. Mas a «lei de ¡
Engels» continua a ser válida: «aqueles que mais vituperam a j
filosofia são precisamente os escravos dos piores e mais banais j
refugos das piores doutrinas filosóficas» 42. Eis ao que Lévi-
^Strauss deveria prestar a devida atenção quando se vangloria
de se servir deliberadamente «de todo o tipo de materiais»
filosóficos, e de escolher as suas «considerações filosóficas»,
por aqui e por ali, tal cómo se escolhe ó estilo de um velador
para realçar o valor de um objecto precioso434. Este desdém
positivista pela filosofia tem por consequência o facto de que
uma antropologia, de intenção rigorosamente científica, diri­
gida contra as ilusões de um humanismo especulativo recai,
na realidade, aquém mesmo do existencialismo, nos erros mais /
velhos do naturalismo ê do essencialismo metafísico: porque
a última palavra da concepção estruturalista das ciências do ;
homem, segundo Lévi-Strauss, consiste em, colocando-se «à
margem de cada sociedade específica», procurar adoptar
«quer seja o ponto de vista de uma qualquer sociedade, quer i
seja o de um qualquer indivíduo inserido seja lá em que
sociedade fon>, quer seja ainda, «visando a apreensão de uma
realidade imanente ao homem», colocar-se «à margem de todo
o indivíduo e de toda a sociedade» ^.E ncontram o-nos por­
tanto aqui, de novo, em pleno essencialismo metafísico, em '
pleno reino da natureza humana abstracta, perante «uma j
humanidade dotada de faculdades constantes» que não parece
transformar-se ao longo da história senão na medida em que
se encontra «continuamente a braços com novos objectos» 4S.
Compreende-se assim que Sartre tenha denunciado esta antro­
pologia anti-histórica como sendo «o último obstáculo que a
burguesia ainda pode pretender opor a Marx» 46. E, deste
ponto de vista, as críticas espiritualistas e existencialistas do

D ia leo tiq u e d e la n a tu r e , p. 211.


43 C ahiers -роит V a n a lvse: 1967, n.o 8, p. 90.
44 A le th e ia , p. 208.
4s A n th r o p o lo g ie s tr u c tu r a le , p. 2ББ.
*6 V A r c , núm ero consagrado a J.-P. Sartre, 1966, p. 88.
562 M arxist . e teoria d a personalidade

estruturalismo, como sendo шла ideologia conservadora e


tecnocrática, inscrevem-se, pelo menos parcialmente, nas do
marxismo. *\ ,v- i
j * \j \ Х лл O ■O
] O actual movimento das ideias sobre o homem encontra-se,
¡ portanto, dominado por uma ampla cisão entre concepções
filosóficas de tipo especulativo que, numa medida sempre
j crescente, vão sendo ultrapassadas, mas que reflectem aspira-
; ções humanistas continuamente ressurgentes, em busca de
•/ uma sua teorização coerente — e um neopositivismo estru-
f turalista impulsionado pelo desenvolvimento de inúmeras
i ciências humanas, mas inibido por um anti-humanismo epis­
temológicamente infundado, e internamente habitado pelo
parasitismo da ideologia burguesa. Assim, toda a antropologia
não marxista contemporânea tende, por si mesma, a encer-
- rar-se no círculo rigorosamente vicioso de uma antinomia
especiosa: ou bem que se opta pelo esforço para nos aperce­
bermos do homem no âmbito da sua realidade concreta, mas
que acaba por se perder em abstracções filosóficas arbitrárias
sem conseguir chegar a descobrir, para além das ilusões da
subjectividade, as bases reais da vida social e pessoal — ou
bem que se opta pela investigação rigorosa da análise cien­
tífica, mas que é obtida na base dos despojos do seu objecto,
o homem, que se vê dissolvido adentro das estruturas, reduzido
à natureza, frustrado na obtenção do sentido da história e da
sua própria biografia. De que advém, então, esta antinomia
entre vida concreta dos homens e rigor teórico da ciência?
Do facto de que nem a primeira nem a segunda destas duas
abordagens antropológicas, literalmente opostas mas, a um
nível bastante mais profundo, perfeitamente análogas, sabe
identificar claramente a essência humana objectiva no seu
ponto decisivo, precisamente onde se objectiva a actividade
dos homens, e a partir do qual se hominiza fundamentalmente
o sujeito: no âmbito do sistema das forças e das relações da
produção m aterial Desconhecendo, fruto da impotência para
se livrar por completo da óptica burguesa, aquilo que o mar­
xismo, tendo-se colocado, logo de início, do ponto de vista do
proletariado, foi o único a poder descobrir — o papel deter­
minante do trabalho produtivo e das relações existentes nesse
trabalho—, a antropologia, não marxista não pode apreender
a unidade daquilo que se estuda, sob a fórma da objectividade
M orte e transfiguração d a antropologia 563

científica, e daquilo que se vive, no âmbito das variedades


da humanidade concreta; só lhe fica nas mãos, por um lado,
um homem sem essência, e, por outro, essências sem o homem,
peças de um puzzle sem união possível devido à ausência
da sua peça central. Assim, é unicamente na base da ultra­
passagem da oposição entre o humanismo especulativo e o
anti-humanismo positivista, e na base do marxismo, que
poderá ser ultrapassada a antinomia e permitido à antropo­
logia contemporânea o seu livre desenvolvimento.
Mas tal pressupõe que o marxismo saiba reconhecer-se a
si mesmo no dédalo das questões antropológicas, e que con­
siga vir a elaborar as suas próprias respostas ao ritmo a que
se realiza o aumento de complexidade dos problemas. Con­
vir-se-á de imediato, com toda a franqueza, que para atingir
semelhante fim, e não obstante os recentes progressos, os
marxistas têm ainda de superar certos atrasos. Contudo, após
mais de dez anos de reflexão crítica e de auto-crítica séria,
de debates livres e- de investigações aprofundadas, parece
pertinente afirmar-se que estes dispõem hoje em dia, em todo
o caso, do instrumento mais decisivo para um avanço real:
um conhecimento científico do próprio marxismo. É na base
deste conhecimento, fruto de um trabalho eminentemente
colectivo, tomado possível pelo Partido Comunista Francês,
que se baseia, entre outros, o presente ensaio. E é em nome
desse conhecimento científico, bem comum cuja conquista
representa o desenvolver de enormes esforços de todas as
espécies e cuja importância teórica é extrema não só para
o marxismo, como também, podemos afirmá-lo sem qualquer
tipo de jactância, para todo o pensamento francês, que surge
como tão necessária a firmeza no combate às suas deforma­
ções, seja qual for o seu sentido. É adentro desse espírito
que, ao longo de todo o livro, criticámos tima interpretação
filosófico-humanista cujo resultado vem a ser, na realidade,
em nome do marxismo criador, o de nos remeter, pelo menos
parcialmente, para aquém da revolução teórica operada por
Marx. Esta interpretação do marxismo, que não é um fenó­
meno específicamente francês mas sim internacional, é pro­
fundamente errónea. Traumatizada pelos erros cometidos, ela
parte de uma crítica errónea daquilo que realmente provocou
uma alteração depauperadora do pensamento marxista, ao
mesmo tempo que da prática comunista, e acaba por ser, de
facto, em tal ou tal aspecto do próprio marxismo que vai
604 M arxismo e teoria da P cmalidade

buscar a origem destas alterações. Uma tal diligência crítica


encontra-se, portanto, logo à partida, e por pouco que seja,
comprometida na via da revisão do marxismo. As correntes
do humanismo não marxista, em particular o existencialismo
e o personalismo cristão, não se limita a prestar atenção e a
estender a mão, o que é uma boa coisa, mas também vai buscar
bases teóricas de carácter essencial: assim entendido, o diálogo
e a troca transformam-se em convergência ecléctica de antro­
pologias declaradamente irreconciliáveis.
Em mais de. um caso, esta investigação ideológica não
é desprovida de um certo sentido político. Com efeito, a
especificidade do humanismo filosófico, por oposição ao
humanismo científico inaugurado pela V I Tese sobre Feuer­
bach, considerada no âmbito do seu rigoroso enunciado, con­
siste sempre em considerar, pelo menos parcialmente, como
base real e ponto de partida absoluto o indivíduo, que é, na
realidade, a um nível bem mais essencial, o produto de um
determinado sistema de relações sociais. Equivale, portanto,
ao criticar da sociedade existente e da prática política não
directamente em si mesmas, de uma forma científica, mas sim
ideologicamente, a partir de reivindicações externas apresen­
tadas em nome do «indivíduo», ou seja, de facto, por detrás
desta abstracção, a partir de pressupostos — em geral de
índole burguesa— não criticados. O individualismo burguês
é o segredo de toda a especulação humanista, bem como de
todo o utopismo socialista, tal como Marx o demonstrara admi­
ravelmente a respeito de Saint-Simon. Ao analisar as fór­
mulas saint-simonianas, segundo as quais o indivíduo possui
o direito de exigir da sociedade que esta lhe assegure o
mais livre desenvolvimento das suas disposições naturais,
escreve: «É da relação suposta entre estas pessoas metafísicas,
individualidade e . generalidade, e não da evolução real da
sociedade, que se deduz a reivindicação exposta mais atrás
e que o indivíduo apresenta à sociedade. Basta para tanto que
consideremos os indivíduos particulares como sendo repre­
sentantes, encarnações da individualidade, e a sociedade como
sendo à encarnação da generalidade, e a encenação está mon­
tada. Ao mesmo tempo, a frase de Saint-Simon relativa ao
livre desenvolvimento das disposições naturais encontra,
assim, a sua expressão exacta e descobrimos em que racio­
cínio é que se fundamenta. A sua expressão exacta é esse
absurdo segundo o qual os indivíduos que constituem a socie»
M orte e transfiguração d a antropologia 565

dade pretendem conservar a sua «individualidade», perma­


necer tal como são, ao mesmo tempo que exigem à sociedade
uma transformação que não pode emanar senão da sua
própria transformação.» 47 Vemos em que sentido é que a
reivindicação de uma sociedade e de uma política mais
humanas é eminentemente ambígua: precisamente na medida
em que coloca o problema do pleno desenvolvimento, do
pleno uso dos efeitos, que serão emancipadores para os indi­
víduos, comportados por determinadas estruturas sociais ou
por uma certa política, torna-se mistificadora e claramente
reaccionária, na medida em que o humano em nome do qual
coloca a reivindicação consiste no efeito remanescente exer­
cido sobre os indivíduos por estruturas ou por manipulações
que a nova sociedade, a nova política, possuem, precisamente,
por missão histórica eliminar e ultrapassar. «A organização
comunista, escreve Marx, age de uma dupla forma sobre os
desejos suscitados no indivíduo pelas condições actuais; uma
parte desses desejos, aqueles que existem em todas as circuns­
tâncias, e de que apenas a forma e a orientação variam con­
soante as condições sociais, não são igualmente alterados
nessa sociedade senão na medida em que são fornecidos os
meios para o seu normal desenvolvimento; por outro lado,
em contrapartida, aqueles que só possuem a sua origem numa
determinada estrutura social, num determinado modo de
produção e de troca, esses serão radicalmente privados da sua
base de existência. Quanto a saber que desejos não serão
senão alterados, e quais é que serão eliminados no seio da
organização comunista, só o poderemos julgar a partir da
prática, através da modificação dos desejos reais, e não por
comparação com outras estruturas históricas anteriores.» 4*
O desenvolvimento da antropologia marxista não pode con­
sistir na aceitação, sob o nome de teoria da subjeciividade
ou do indivíduo, de um traVestimento ideológico de reticências
burguesas pérante as exigências objectivas da luta de classes
e da edificação socialista, que são, ao mesmo tempo, as
exigências objectivas do processo de emancipação real dos
indivíduos no seu conjunto.
Mas por detrás do erro da interpretação filosófico-huma­
nista, seria grave não vermos a necessidade teoricamente

47 Uidéologie allemande, p. 525.


<8 ibidem, p. 289, n o ta .
566 Marxismo е teoria da personalidade

fundamentada e praticamente urgente de desenvolver a antro­


pologia marxista, e, em particular, a concepção do individuo.
Ao fim e ao cabo, talvez que o carácter mais nocivo desta
deformação especulativa resida, precisamente, no desacreditar
aos olhos de muita gente do próprio projecto de desenvolver,
na base do marxismo, a teoria do individuo — como se a
tarefa, em si mesma, fosse de natureza revisionista—, o que
vem a ter por resultado, na realidade, a consolidação, me­
diante um reforço recíproco de deformações simétricas, das
carencias antropológicas que se trata de ultrapassar. Carên­
cias tanto mais insidiosas e tenazes quanto podem, inicial­
mente, parecer não serem reais, e corresponder a urna real
supressão por Marx de toda a problemática do homem, espe­
cialmente do homem individual. Na verdade, o movimento
da antropologia marxista, como já o demonstrámos longa­
mente aqui é um movimento duplo. Partindo da crítica
radicai do homem, tal como este surge no seio da ideologia
burguesa e das mistificações do humanismo especulativo, re­
monta às relações sociais que, no âmbito da sua materialidade
objectiva, constituem os seus verdadeiros pressupostos. Mas,
para além da sua aparência de meras relações entre coisas,
que é o efeito da alienação capitalista, a crítica marxista
põe em evidência o facto de que se trata aqui, na realidade,
das relações no seio das quais os homens se produzem a si
mesmos, portanto, neste preciso sentido, de relações entre os
homens. E por isso que, mediante um segundo movimento,
o marxismo permite e exige, simultaneamente, a partir dessas
relações sociais objectivas e humanas essenciais, o retomo
científico aos homens concretos — não só ao carácter con­
creto da sua vida social, da sua história e das suas lutas de
classes, como também ainda ao carácter concreto da sua vida
individual que com aquele se articula nà base de uma posição
justa-estrutural. Mas este último aspecto do retorno ao con­
creto, sendo ele próprio derivado, e não tão directamente
necessário do ponto de vista das tarefas históricas que se
impunham a Marx e Engels, embora se encontre por toda a
sua obra claramente referenciado e seja, por inúmeras oca­
siões, objecto de indicações parciais, não foi aí desenvolvido
ao nível de uma teoria geral comparável, por pouco que fosse,
à teoria económica ou política: esta parte da antropologia
marxista, essencial de acordo com o seu espírito, encontra-se
aí, portanto, no respeitante á sua letra, em estado meramente
Morte e transfiguração da antropologia 567

embrionário. Este estado de coisas, no âmbito do contexto


de uma fidelidade, estreitamente entendida à letra, à obra
de Marx, favoreceu por longo tempo uma interpretação antian­
tropológica que representa uma traição ao seu espírito.
Porque ficarmo-nos pelo primeiro movimento desta antropo­
logia, ou seja, pela redução dos homens concretos às relações
sociais, consideradas no âmbito do seu carácter de relações
objectivas entre coisas, equivale a voltarmos a deixar-nos
enganar por ilusões ideológicas e pelas alienações que as
subentendem, quando toda a virtude do marxismo está em
delas nos libertar. Uma desdita deste tipo não é, contudo,
impossível mesmo no seio de uma sociedade socialista,
nomeadamente na medida em que certas insuficiências da
democracia nela oferecessem uma base objectiva a semelhan­
tes ilusões, como o deixar-se subjugar pelo aspecto estatal,
administrativo das relações sociais, facto este contra o qual
Lenine não cessava de pôr de sobreaviso, nos últimos anos
da sua vida, ao lembrar insistentemente que «a política é
feita por homens» 49. Neste sentido, se a deformação filosó­
fico-humanista do marxismo se encontra ligada a uma atitude
insuficientemente crítica face a aspirações burguesas, o desen­
volvimento da concepção auténticamente marxista do homem
e a democracia socialista são, pela sua parte, algo de profun­
damente inseparável.
Ora, se bem que o seu propósito se situe nos antípodas
do empobrecimento de que acaba de se falar, a interpretação
anti-humanista da obra de Marx, que se desenvolveu em
França paralelamente ao desenvolvimento do movimento do
pensamento estruturalista, alimenta a crença perfeitamente
errónea de que uma investigação antropológica seria, do
ponto de vista do marxismo, destituída de sentido. Tendo
tido o grande mérito de pôr em evidência o carácter, em todo
o rigor, não marxista de um pretenso enriquecimento huma­
nista do marxismo na base daquilo que Marx teve de ultra­
passar a partir da viragem teórica de 1845-1846, é ela própria
que deforma agora gravemente o sentido dessa viragem, e
corre continuamente o risco de dar o seu aval à confusão
entre o marxismo e um anti-humanismo estruturalista que
lhe contradiz o seu sentido essencial, até mesmo de caucio-

ií Lenine, «Conclusion sur le rapport politique du O. C. do p. C. (b)


U.», 28 de Março de 1922, CEuvres, t. 33, p. 321.
668 Marxismo e teoria d a personalidade

nar uma versão estrutural do marxismo na qual é permissí-


vel vermos a forma contemporânea de um ((marxismo da
sacra eloquência». Ao mesmo tempo, esta redução anti-hu-
manista do marxismo, como toda a interpretação unilateral,
funciona como incubadora de deformações compensadoras,
quando não favorece mesmo o seu contrário. Não será ins­
trutivo notar, por exemplo, que certos filósofos espiritualistas
declararam que ela é tanto mais «irrefutável»50 quanto che­
gava ná devida altura para proceder ao ressurgimento da
sua refutação do marxismo como sendo incapaz de dar satis­
fação às profundas exigências da reflexão filosófica e da
interrogação sobre o homem? No próprio seio do marxismo,
não deixou de suscitar uma tendência para a cristalização
das teses opostas, ou seja, para o encerrar geral do debate
adentro de um circulo vicioso.. Mas sobretudo, ao parecer
retirar toda a esperança de uma resposta específicamente
marxista aos problemas teóricos da vida individual, encoraja
directamente a busca de uma antropologia não maixista que
sirva de complemento a um materialismo histórico unica­
mente reduzido ao estatuto de ciência da história — em par­
ticular por parte da psicanálise, cujo interesse específico
não está em causa, mas de que demonstrámos, durante esta
exposição,, por que razões fundamentais ela não poderia for­
necer a base para uma teoria da personalidade humana arti­
culada com a concepção maixista da sociedade. Por todas
estas razões, a via de uma interpretação anti-humanista, no
sentido teórico, parece-nos dever ser abandonada tal como
a do retorno a um humanismo filosófico, em proveito de um
desenvolvimento científico rigoroso da concepção maixista
do homem, e, em particular, do indivíduo, tal como ressalta
da V I Tese sobre Feuerbach, desde que seja devidamente
entendida.
Este desenvolvimento da concepção científica do. indiví­
duo, para o qual este livro tem por única ambição fornecer
um contributo, possui uma importância tanto maior quanto,
se o materialismo histórico é o único que nos parece poder
fornecer a sua base geral, é igualmente necessário vermos
bem a amplitude dos efeitos retroactivos que este não deixará
de exercer sobre a justa compreensão e o desenvolvimento do

50 O termo é de J. Lacroix, «La volé royale en philosophies. Le


Monde, 6-7 de Novembro de 1966. ...
j mmi щта чг/'у-'гзаДДИМ** .

Morte e i iBfiffuraçSo da antropologia 569

próprio materialismo histórico, bem como de todo o mar­


xismo. Porque se o marxismo não tem sido até aqui, bem
feitas as contas, quase nunca entendido e desenvolvido no
âmbito da sua dimensão de antropologia e de humanismo
científicos, ou seja, no âmbito de um dos aspectos essenciais
da sua verdade — quer seja por se ter negado esta dimensão
no seio do marxismo adulto, quer seja por não se ter sabido
identificá-la senão sob a forma, ainda um pouco especulativa,
das obras de juventude—, tal é devido, em primeiro lugar,
ao facto de que a grande maioria das pedras-de-toque e das
indicações parciais às quais ela dá lugar de A Ideologia Alemã
a O Capital, e que, num certo sentido, saltam à vista, conti­
nuam, contudo, a ser de difícil reconhecimento como tal,
enquanto não for claramente definida a teoria do indivíduo
concreto que lhes fornece todo o seu pleno alcance antro­
pológico: demos, de passagem, inúmeros exemplos desta lei­
tura psicológica — num sentido muito preciso—, simultanea­
mente irrecusável e, com demasiada frequência, inédita, dos
grandes textos marxistas, a começar pela distinção funda­
mental entre trabalho concreto e trabalho abstracto. Ora,
obstáculo mais decisivo à constituição dessa teoria marxist
do indivíduo concreto, e à prática de uma correspondente
leitura dos clássicos, consiste numa atitude que para o mar­
xismo não é apenas um dos seus alicerces, mas também
aquela à qual toda a sua história o levou a ater-se com a
maior firmeza: o antipsicologismo, ou seja, a recusa do
empirismo e do idealismo, que tendem a reduzir, em última
análise, os pensamentos e as acções humanas, para além das
suas condições epistemológicas e sociais específicas, às deter­
minações do psiquismo individual. É perfeitamente evidente
que o marxismo, não em maior medida, aliás, que a maioria
das outras filosofias, não poderia aceitar a tese, ao fim e ao
cabo monstruosa, segundo a qual a edificação da ciência ou
o movimento da história teriam, afinal de contas, a sua origem
em estruturas caracteriais ou em instintos psíquicos incons­
cientes. Não está em causa «dar o seu quinhão» a este psi-
cologismo redutor, mas sim, pelo contrário, opor-lhe a mais
intransigente das críticas. Ora, se admitirmos que a psico­
logia, seja qual for a sua fonte de inspiração, deve tomar por
base teórica última determinadas coordenadas psíquicas
irredutíveis, directamente relacionadas com um homem con­
cebido enquanto indivíduo geral, toda a teoria psicológica do
37
670 Marxismo „ teoria d a personalidade

indivíduo é necessariamente redutora. E, nestas condições,


considerando a tentativa de uma leitura psicológica dos clás­
sicos do marxismo como sendo um erro de princípio, opor-
nos-emos, em nome da pureza do marxismo, a uma elabo­
ração da teoria do indivíduo concreto, que o materialismo
histórico exige e permite, e que é a única que poderá tornar
legíveis as indicações dos clássicos neste Sentido: a interpre­
tação antiantropológica do marxismo encerrou-se, desta forma,
a si mesma no círculo vicioso do seu empobrecimento.
E, contudo, será possível negar que todo o pensamento
e toda a acção humanos concretos pertencem, de pleno direito,
a uma biografia determinada? Como se poderá contestar!
por consequência, que não haja nenhuma que não advenha
da explicação psicológica? Se a redução psicológica é teori­
camente escandalosa, a recusa da validade universal da pers­
pectiva psicológica não o será igualmente? E será que basta
esconder o rosto perante a realidade da articulação de toda
a criação intelectual com uma dada biografía, como tal está
na jnoda no seio de uma certa corrente de interpretação
estrutural do fenómeno literário, para que ela deixe de exis­
tir — quando, pelo contrário, poderíamos pensar em nos
interrogarmos sobre sè a refutação teórica das realidades
biográficas não estaria, em si mesma, no caso de quem a
opera, carregada de uma significação biográfica? Parece,
portanto, estar completa a antinomia entre o necessário reco­
nhecimento da pertença universal dos actos humanos a uma
dada biografia e a não menos necessária recusa de todo o
psicologismo. Na realidade, a principal dificuldade não está
aqui em conceber, na sua generalidade, o modo de articulação
não redutor entre uma actividade intelectual e as condições
biográficas que a subentendem: a teoria marxista da ciência
e da ideologia forneceu já a solução de um problema análogo,
o da articulação entre actividade intelectual e formação social
Esta articulação não consiste nem numa relação de causa­
lidade mecânica, ou de isomorfismo, no âmbito da qual uma
realidade não passa senão da reprodução da outra, , nem
numa interacção meramente externa entre duas realidades
independentes, mas sim numa relação de determinação fun­
cional entre duas ordens de processos qualitativamente dis­
tintos mas que se interpenetram, desempenhando' o primeiro
um-papel infra-estruturaLrelativamente ao segundo. Entre as
condições funcionais específicas a estas duas ordens de pro-
M orte e t r a n s f i g u r a ç ã o da antropí la 571

cessos, as relações existentes podem variar desde a contra­


dição antagonista à concordância, de modo que a formação
social apresente uma tendência, segundo a sua essência e
as suas particularidades, para manter a consciência social no
âmbito da opacidade ideológica ou, pelo contrário, para
favorecer o seu acesso à transparência do saber. Sugerimos
mais atrás, a propósito das superstruturas da personalidade,
que uma dialéctica análoga permitia pensar as relações entre
biografia e consciência individual, sem, por consequência,
reduzir a segunda à primeira, e sem perder igualmente de
vista o papel infra-estrutural da biografia. Mas a dificuldade
que, de ordinário, aparece como insolúvel advém do facto
de que a actividade intelectual e o movimento da consciência
se encontram em relação de determinação funcional com
duas ordens de infra-estru turas: as infra-estruturas da socie­
dade e as da personalidade — duas ordens essas que, no .caso
de nos referirmos, por pouco que seja, a uma concepção natu­
ralista da personalidade (e não há nenhuma que o não seja,
desde que a sua base seja não marxista, como já o vimos),
são declaradamente independentes uma da outra, e parecem
obedecer a uma relação de incerteza: quando relacionamos
a actividade intelectual com a sua base social, deixamos de
estar em condições de nos apercebermos do papel infra-estru­
tural da personalidade, e reciprocamente. É precisamente
esta contradição insolúvel que vem a encontrarse ultrapas­
sada, a partir de uma teoria do indivíduo fundamentada antes
do mais, tal como o reclama o materialismo histórico, nas
estruturas temporais da actividade pessoal, no emprego do
tempo, visto que a própria biografia remete, então, no respei­
tante ao essencial, e sem perda da sua singularidade concreta,
para as relações sociais no seio das quais ela se constitui e
se transforma, e que, pelo seu lado, as relações sociais deter­
minam funcionalmente a consciência individual, antes do
mais por intermédio da biografia, sem perda da sua objecti-
vidade social. Nestas condições, uma leitura psicológica do
marxismo não só não psicologiza o materialismo histórico,
como também é o mais fecundo dos seus corolários.
E tal facto parece dever abrir imensas perspectivas à
investigação marxista. Com efeito, enquanto uma leitura psi­
cológica do materialismo histórico for, por princípio, sus­
peita de cair num contra-senso idealista, é todo um aspecto
essencial dos problemas antropológicos que vem a encon-
572 Marxismo e teoria d a personalidade

trar-se situado, relativamente ao marxismo, numa área estri-


tamente reservada, senão mesmo interdita. No âmbito do
vasto domínio da teoria do conhecimento, por exemplo,
autorizar-nos-emos, nesse caso, a explorar unicamente os pro^
cessos gnosiológicos considerados adentro da sua generali­
dade impessoal; no âmbito da estética e da ética, ser-se-á
levado a só reter as funções sociais, as dimensões políticas,
os fundamentos filosóficos. Assim limitado,.logo à partida!
o marxismo dificilmente pode evitar enveredar pela sua curva'
descendente, ou seja, em vez de dar conta, enriquecendo-se
desse modo, da totalidade das formas da vida humana, tende
a já não passar, em antropologia, senão de uma forma superior
de sociologismo doutrinal. Pelo contrário, ao ultrapassar toda
a oposição teórica de princípio entre o ponto de vista histó­
rico-social e o ponto de vista do indivíduo concreto, ou seja,
ao ultrapassar efectivamente o psicologismo, o desenvolvi­
mento da teoria científica da personalidade permite que o
marxismo se abra sem restrições a tudo o que possua consis­
tência científica no imenso domínio da consciência dos indi­
víduos., e, reciprocamente, que aí surja sob o seu verdadeiro
aspecto, logo que esteja em condições de lhe fornecer as
bases, em vez e no lugar das ideologias burguesas, para
o esclarecimento de uma concepção justa do homem. Assim,
coloca-se hoje em dia o problema, por exemplo, de avançar,
até muito mais além do que tem acontecido até aqui, no
sentido indicado por Lenine quando, enumerando os «domí­
nios que devem constituir a teoria do conhecimento e a dia­
léctica», a par da filosofia e das ciências singulares, cita sem
hesitar não só a fisiologia dos órgãos dos sentidos e a lin­
guagem, mas também a psicologia51. Ora, por psicologia não
deve entender-se aqui, como acontece usualmente, unica­
mente a ciência das condutas e das funções psíquicas — por
exemplo, a frutuosa psicologia da inteligência— como tam­
bém, e neste domínio está quase tudo por fazer, a ciência da
personalidade, base real, para além das operações mentais
consideradas à parte, do movimento de conjunto da cons­
ciência pessoal de si e do Mundo. O desenvolvimento deste
tipo de investigações marxistas, da epistemología à estética,
constitui, por excelência, o factor que pode apressar a ultra-

я Lenipe, «Cahiers philosophiques», CEuvres, t. 38, p. 336.


íío rte Q tran síig u raçâo da antropologia 673

passagem tanto das antropologias especulativas como das


estreitezas de visão positivistas. Quando Sartre, ao encarar
o futuro das relações entre existencialismo e marxismo,
escreve que «a partir do dia em que a investigação mapústa
considerar a dimensão humana (ou seja, o projecto existen-
ciai) como sendo o fundamento do saber antropológico, o
existencialismo deixará de ter razão de ser», e encontrar-
-se-á «absorvido, ultrapassado e integrado» no marxismo52,
exprime, em termos inaceitáveis, uma perspectiva perfeita­
mente real: a antropologia científica do marxismo nunca
fundamentará o saber num erróneo primado ontológico do
indivíduo, mas é, efectivamente, verdade que está em con­
dições de absorver, ultrapassando-as, todas as tentativas e
os conhecimentos exactos relativos ao que é pertença do
homem.
Quererá isto significar que, na nossa opinião, nada existe
de humano que não passe a ficar, doravante, sob a alçada
da ciência? De forma alguma. Uma tal situação não só seria
cómicamente presunçosa, no actual estado de coisas, como
também seria errónea no seu próprio princípio. Presunçosa,
em primeiro lugar, porque mesmo aqueles que depositam a
maior confiança nas possibilidades do futuro desenvolvimento
da ciência psicológica devem, efectivamente, enfrentar a rea­
lidade: por enquanto, se, com toda a evidência, no âmbito do
terreno psicobiológico e, sem dúvida que também parcial­
mente, no do terreno psicossociológico, os conhecimentos
estabelecidos como indiscutíveis avançam com extrema rapi­
dez, quando se trata, em contrapartida, daquilo que um
homem faz da sua viria, e daquilo que a sua vida fez dele,
verifica-se ser imenso o atraso do que a ciência sabe, a esse
respeito, relativamente àquilo que, pelo menos no respeitante
à sua melhor parte, a arte não tem cessado de nos revelar.
Que se pense, por exemplo, por um lado, na inumerável
riqueza do romance e da poesia dos séculos x ix e x x nesta
matéria e, por outro, naquilo que temos realmente de apelidar
de as. pobrezas da biotipologia e da caracterología, bem como
na própria unilateralidade do freudismo. Até agora, o que
ocupa o lugar de teoria da personalidade desenvolvida nem
sequer parece suspeitar, regra geral, da importância deter-

sa Critique de la raison dialectique, p. 111.


574 Marxismo e teoria da personalidade

minante da dicotomia e das formas alienadas da posição


excentracional, de índole social, das bases da personalidade,
que, no seio da França burguesa, dominam a vida de tantos in­
dividuos; mas tudo o que tem sido feito de interesse, no campo
do. romance, da poesia e do teatro, desde o inicio do
século x ix não fala, num certo sentido, senão disso, ou
seja, do próprio fundo dos problemas — por exemplo, sob a
forma do tema do homem duplo, de Musset a Aragon, do «Eu
é um outro» de Rimbaud ao «Entre centro e ausência» de
Henri Michaux. É por isso que neste capítulo, muito mais
do que em qualquer outro, a morgue cientista nada tem a
ver com o marxismo. Mas, na base do facto de que, por
exemplo, o romance biográfico e autobiográfico, o romance
de formação e de transformação representa toda uma ciência,
e que o homem concreto é, primordialmente, parte integrante
da sua ciência, tal poderá constituir uma razão suficiente
para abolir - toda a diferença essencial entre a arte e uma
ciência do homem, empregando devidamente o termo «ciên­
cia»?. Haveria aí, parece-me, e num sentido inverso, um
perigoso resvalar. Não existe conhecimento científico — o
que é algo de totalmente diferente, e mais exacto do que ver­
dadeiro — senão no âmbito da universalidade dos conceitos,
do rigor das leis, que fundamentam um poder não só de inven­
tar como também de transformar, de uma forma controlável
na prática; e isto não é da alçada da arte, facto este que
parece não verem aqueles que julgam poder servir-se dela
para levar a cabo a revolução, confundindo-a com a ciência,
de que subestimam os limites específicos, que são fundamento
dos poderes que esta nos fornece. É por isso que, tal como
escrevia Politzer, ao procurar transformar «o desejo de
conhecer o homem» no seu ((programa científico», «a psico­
logia concreta sistematiza a grande tradição concreta que
sempre alimentou a literatura, a arte dramática e a ciência
dos sábios, no sentido prático do termo. Só que a psicologia
concreta, ao mesmo tempo que possui, o mesmo objecto,
oferece, mais do que o teatro e a literatura: oferece a
ciência» 53.
Confrontada com a ciência do homem, a arte é, portanto,
visivelmente inferior — se bem que seja igualmente, sob outra

и Critique des fondements de la psychologic, p. 262.


Mor ■-» transfiguração d a antropologia 676

óptica, bastante superior. Que, num certo sentido, seja infe­


rior, o romance dos dois últimos séculos, por exemplo,
demonstra-o por si mesmo, tendo quase sempre tido necessi­
dade de ir buscar apoio para a sua criação — e aí reside, pre­
cisamente, regra geral, o seu lado mais fraco — na psicologia
«científica» existente na sua época: de Stendhal a Proust,
passando por Zola, todas as sucessivas idades da ideologia
psicológica se podem ler nas entrelinhas das maiores obras
literárias. A arte não é só pensamento, mas é também pen­
samento, e, dessa forma, pode mesmo ser, também ela,
vítima dos «piores e mais banais refugos das piores doutri­
nas filosóficas». Pelo contrário, o que há de mais precioso
na arte não será precisamente aquilo que ainda não é «cien­
tífico», aquilo que se adianta à ciência, com todos os riscos
e igualmente as possibilidades que tal facto comporta? Mas
na medida, variável, em que, contudo, tal como a ciência,
o que ela visa é efectivamente um conhecimento prospectivo,
é obrigada a admitir que, a respeito de cada ponto particular,
a ciência acaba sempre por a alcançar, e, substituindo então
a sua forma irrecusável de conhecimento à da arte, priva-a
dessa base de existência. JÉ, nomeadamente, dessa forma que
a mortalidade habita na arte — mesmo se, o que é algo de
totalmente diferente, a arte já desaparecida pode permanecer
para nós, enquanto desaparecida, como eminentemente pre­
sente. Tal como explicava Marx a respeito da mitologia,
a terra da fertilidade da arte grega: «Toda a mitologia é
fonte de domínio, domina as forças da Natureza no âmbito
da imaginação e através da imaginação e dá-lhes uma forma.
Desaparece, portanto, quando essas forças são verdadeira­
mente dominadas.» 54 E já Spinoza observara que «o espírito
é tanto mais capaz de ser fonte de ficção quanto menos com­
preende e maior número de coisas apreende, e quanto mais
compreende, tanto mais esse poder diminui»55. Aí reside,
sem dúvida, a origem da profunda cumplicidade existente
entre a arte e certas formas de inconsciência. Mas — e nisso
consiste a outra face das relações entre arte e ciência do
homem— essa inconsciência, no seio das obras verdadeira-
mente grandes, revela-se sempre, ao fim e ao cabo, como

s* Contribution, p. 174.
55 «Traité do la réforme de 1’entendement», CEuvres complètes, de
Spinoza, La Plôlade, GaUímard, 1964, p. 177.
576 Marxismo e teoria da personalidade

sendo a aurora de um nivel superior de consciencia. É por


isso que o fundar de uma verdadeira ciência da personali­
dade, se esta é, sem dúvida, levada a deslocar lentamente o
centro temático de criação daquilo que foi, por exemplo, о
romance de formação ou a poesia de meditação autobiográ­
fica, é certo que não ameaça tirar o pão da boca a uma arte
cuja preocupação é o homem, mas, antes pelo contrário,
promete oferecer-lhe um novo trampolim para o seu avanço.
Porque não seria racional pensar que o homem seja menos
inesgotável do que o átomo: em direcção ao que ainda não
é objecto previsível de ciência, haverá sempre terras desco­
nhecidas para uma ar:e da exploração. Da mesma forma, há
muito menos motivos para nos inquietarmos com os futuros
avanços da arte do que com um presente e intolerável
atraso da ciência. Foi equacionado um problema urgente,
cuja solução importa à nossa própria história, e para a eluci­
dação do -qual este livro lembrou certezas esquecidas e
correu o risco de propor hipóteses: o da constituição de uma
verdadeira ciência da vida individual.. É nisso que, para
transpor para aqui um conselho de Lenine, é necessário, sem
mais delongas, reflectirmos com o maior empenho.
POSFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO FRANCESA
O texto desta segunda edição é igual ao da primeira,
à parte umas quantas dezenas de correcções mínimas, incidindo
quase todas sobre gralhas tipográficas. Como afirmava em
1968, no prólogo, que a primeira edição era o fruto de quatro
redacções sucessivas, mas que entrevia nela, «desde já,
inúmeros factos que justificariam uma quinta» — pensava
nomeadamente em eliminar o que poderia aparecer aqui e
ali como sendo meras repetições — o leitor sentir-se-á com
todo o direito a interrogar-se sobre porque é que apresento,
não obstante, este texto, em certos aspectos imperfeito, em
vez dessa tal redacção melhorada.
A razão está em que para enveredarmos por um tão vasto
trabalho, e o leitor decerto concordará, seria conveniente que
causas de fundo se viessem juntar às causas de forma, que o
ponto de vista sob o qual se consideram os problemas se
tivesse modificado de uma forma, por pouco que fosse, signi­
ficativa. Ora, tal não é presentemente o caso. Em primeiro
lugar, a trajectória da minha reflexão sobre estes problemas,
no decurso destes últimos três anos, não me levou a pôr em
causa as grandes linhas do livro, bem pelo contrário. Em se­
gundo lugar, o acolhimento que este recebeu, após algumas
liesítáções liminares* foi, no seu conjunto, francamente favorá­
vel. Através de uma abundante correspondência e de um
grande número de artigos e de notas críticas vindas a lume, por
vezes bastante aprofundadas, ao longo de inúmeros contactos
coni os mais variados públicos por ocasião de conferências e de
congressos, tomou-se-me evidente que o seu projecto e a sua
orientação, no mínimo, suscitavam um interesse real nas mais
diversas categorias de leitores: estudantes de ciências humanas,
filósofos e pedagogos, economistas e sindicalistas, médicos e
psiquiatras, e num certo número de psicólogos — isto, tanto
578 Marxismo e teoria d a personalidade

no estrangeiro como em França. Em terceiro lugar, de entre


as críticas, relativamente pouco numerosas, o que lamento,
que foram dirigidas-às teses filosóficas mais essenciais do livro,
a maioria delas parece relacionar-se precisamente com pon­
tos de vista contra cujo carácter erróneo o livro foi escrito,
pontos de vista esses qúe não me parecem hoje mais convin­
centes do que ontem. Em contrapartida, a respeito de inúme­
ras questões psicológicas que seriam passíveis, com toda a
evidência, de ser objecto de debate, nomeadamente as prin­
cipais hipóteses indicativas desenvolvidas no último capítulo,
embora vários artigos de não psicólogos tenham fornecido
elementos de grande interesse para uma reflexão, uma verda­
deira discussão com especialistas em psicologia da personali­
dade não foi ainda encetada* e. por consequência, toda a
conclusão seria aqui prematura. Tais são as razões pelas quais
não me parece, de forma alguma, ter chegado ainda o mo­
mento, três anos volvidos apenas sobre a primeira edição, de
proceder a uma nova redacção de Marxismo e Teoria da Per-
. sonalidade.
O fim. deste posfácio é o de expor, o mais clara e leal­
mente possível, as razões que me levam a não considerar
convincentes as críticas formuladas contra as teses essenciais
do livro — teses essas que podem ser sumariamente divididas
em três grupos: em primeiro lugar, teses filosóficas, relativas
à exacta natureza da concepção marxista do homem, formu­
ladas no seio de uma conjuntura então marcada pela oposição
(desigual) entre uma interpretação humanista-especulativa e
uma interpretação «anti-humanista teórica» (capítulo 2); em
seguida, teses relativas à configuração de conjunto do campo
das ciências psicológicas, e nomeadamente sobre a posição
central de uma ciência da personalidade humana a constituir,
intrinsecamente irredutível tanto à ciência do comportamento
como à psicologia social e baseando-se directamente no
materialismo histórico (capítulo 3); finalmente, hipóteses
indicativas sobre o possível conteúdo dessa ciência, especial­
mente sobre os conceitos de base e sobre a dialéctica de
desenvolvimento dos processos biográficos (capítulo 4). Irei

i A extremamente longa e notavelmente objectlva anftltee do livro


aue íoi publicada no Bulletin de Psyciiologie (n.o 292, 1970*71, pp. 836-863),
assinada por D. Voutsinas. situa-se, evidentemente, num plano totalmente
diíerente.
posfácio d a segunda edição francesa 579

examinar sucessivamente as críticas que foram dirigidas, de


uma forma, aliás, bastante desigual, estes três grupos de teses
ou de hipóteses.
*

No plano da concepção marxista do homem pode afir­


mar-se que os três anos decorridos após a publicação deste
livro forneceram à orientação que este defendia confirmações
decisivas.
O sentido mais genérico da obra consiste em estabelecer
que o materialismo histórico, ao mesmo tempo que rompe
radicalmente e sem remissão com o humanismo especulativo
— ou seja, com a- abstracção de um «homem» existindo,
pouco ou muito, afora das relações sociais no âmbito das
quais, na realidade, se produz —, não recusa, de forma alguma,
nessa medida, o conceito de homem, contrariamente ao que
afirmava o anti-humanismo teórico, visto que, pelo contrário,
ele indica, pela primeira vez, qual o seu modo de tratamento
verdadeiramente científico. Ora, tio que respeita à reinterpre-
tação humanista especulativa do marxismo, a sua profunda e
rápida degenerescência ilustrou posteriormente, de forma per­
feitamente clara, de que modo, com efeito, ao retomar-se
aquém da ruptura fundadora do materialismo histórico com
toda a espécie de ideologia humanista, se sai irreparavelmente
do campo do marxismo: o humanismo do marxismo ou é
científico ou, caso contrário, deixa de poder reivindicar-se
deste último. Precavamo-nos, contudo, de julgar que, só
porque a derrocada do humanismo especulativo se encontra,
rigorosamente, consumada, essa forma abastardada do pen­
samento marxista deixou de procurar, empiricamente, armar-
-nos embustes. A experiência da luta ideológica demonstra
que nunca se põe termo, de uma vez por todas, à existência
de um erro só por lhe termos cortado uma vez a cabeça.
Assim, nas páginas 151 a - 156 da presente obra *, refuto um
equívoco, de leitura bastante elementar, sobre uma nota do
livro i de O Capital, que equivale a atribuir a Marx uma
ideia de Bentham sobre a «natureza humana». Este equívoco
provém de Fromm, que persuadiu Adam Schaff da sua vera-

* As páginas aaui referidas, нов dois posíáclos, b&o sempre аз


desta edição.
580 Mftrvlflnnn e teo ria d a personalidade

cidade, e a quem o foi recopiar Garaudy. Ei-lo que nos chega


novamente retomado, desta vez, por Kaiivoda (Marx e Freud,
Anthropos, 1971» p. 81, nota). Imaginemos a enorme quanti­
dade de contra-sensos marxistas que flutuam assim, livre­
mente, no seio da bibliografia existente, e que, se podem
mesmo vir a perturbar conhecedores, possuem todas as hipó­
teses de levarem a tropeçar, em primeiro' lugar, os princi­
piantes — e, conscientes de podermos vir a ser acusados de
repetitivos, retornemos agora e sempre, com todo o rigor, ao
essencial.
O essencial, na ocorrência, é tudo o que se relaciona com
a V I Tese sobre Feuerbach. E foi, muito naturalmente, sobre
este ponto que incidiu a única crítica filosófica precisa que
veio a ser formulada contra o livro. Num artigo intitulado
«A respeito da tradução francesa da V I Tese de Marx sobre
Feuerbach-» у Adam Schaff {VHomme et la société, n.° 19,
Janeiro-Março de 1971, pp. 157-167) afirma que todo o meu
livro se encontra viciado por um contra-senso a respeito da
fórmula-chave das menschliche Wesen, que por razões filo­
sóficas, não poderia significar «a essência humana» tal
só poderia ser expresso por das Wesen des Menschen), mas
sim «o ser humano». Á esta acusação, pude responder sem
quaisquer dificuldades (cf. «Mise au point», U Homme et la
société, n.° 20, Abril-Junho de 1971, pp. 264-267) que: l.° Seja
o que for que se possa pensar da tradução a dar ao termo
Wesen (essência? ser?) existe, em todo o caso, um sentido
que este não poderia ter: o de indivíduo. Ora, por mais
estranho que isso pareça, no seu livro O Marxismo e o Indi­
víduo, tal como o faço observar precisamente aqui, p. 152,
Adam Schaff enuncia assim a VI Tese: o indivíduo (das
menschliche Wesen!) é o conjunto das relações sociais; e esta
tradução aberrante, que substitui, na realidade, por um texto
imaginário o texto real de Marx, figura não: só uma vez mas
sim várias em Le Marxisme et Vindividu (pp. 74, 109, 119,
157, 159). A esta objecção precisa que lhe apresentei que
responde Adam Schaff? Nada. Uma querela de tradução do
termo Wesen leva, assim, a esquecer o que é bastante difícil
não considerar como uma traição ao texto da V I Tese. 2.° E que
se passa com esta querela de tradução ? No seio da lin­
guagem filosófica, como é sabido, não existe oposição entre
ser e essência, mas sim especificação. A essência não é
senão o ser considerado naquilo que este possui de essencial
posfáclo d a segunda edição francesa 681

por oposição ao ser considerado naquilo que este possui de


empírico, o que será, segundo os casos, expresso por exis­
tencia, fenómeno, aparência. Desde logo, todo o problema
está em saber se Marx, ao empregar na V I Tese a expressão
das menschliche Wesen, tem em vista «o ser essencial» ou
«o ser empírico» do homem, logo, no fundo, a essência
humana ou o individuo humano. Ora, é perfeitamente claro
que aquilo que ele tem em vista não é, justamente, o individuo
humano, visto que todo o sentido da V I Tese é o de afirmar
que das menschliche Wesen não é inerente ao individuo
isolado! Por conseguinte, mesmo se os argumentos filosóficos
de Adam Schaff possuíssem algum valor e se fosse necessário
traduzir Wesen por ser, haveria necessidade, sob pena de
contra-senso, de entender por tal «o ser essencial do homem»,
logo, retomar, de facto, à essência. 3.° Mas, além do mais, os
seus argumentos filosóficos não resistem à crítica. Quando,
segundo ele, haveria uma oposição de sentido entre das
menschliche Wesen e das Wesen des Menschen, pude for­
necer, no meu esclarecimento, dois textos de A Ideologia
Alemã em que Marx se entrega à mesma análise em termos
praticamente idênticos, palavra por palavra, mas em que,
num caso, escreve das Wesen des Menschen e, no outro,
das menschliche Wesen. O que demonstra que a asserção
filológica, em que se baseia toda a objecção de Adam Schaff,
é, na ocorrência, uma simples visão pessoal, e que a expressão
«a essência humana» constitui, de facto, a tradução perti­
nente para a fórmula-chave da V I Tese sobre Feuerbach.
Escrevia, a concluir esse esclarecimento: «O fundo da
questão está em que Adam Schaff, em nome da luta contra
a deformação dogmática do marxismo — luta necessária e
absolutamente justa, em princípio—*, mas equivocando-se
fundamentalmente sobre a natureza e a raiz desse defor­
mação, julga corrigi-la revendo a concepção marxista do
homem no sentido de um primado «humanista» do indivíduo,
o que pressupõe nomeadamente uma revisão marcada do
espírito e da letra da V I Tese sobre Feuerbach, pedra angular
do materialismo histórico e de todo o marxismo adulto —
diligência essa que, longe de ultrapassar o dogmatismo, acaba
por descer a um nível ainda inferior; longe de o corrigir,
alimenta-о. A descoberta, de enorme alcance, de Marx em
1845-1846, aquela que funda propriamente o marxismo
adulto, é a de que a forma individual da «humanidade)), do
382 Marxismo e teoria d a ^sonaU dade

«ser-homem», não é, de forma alguma, primária como espon­


taneamente surge perante si mesma, mas sim secundária,
sendo a sua base real constituída, afora dos indivíduos, pelo
conjunto objectivo e historicamente variável das relações
sociais. Aí reside uma verdadeira revolução copemicana, no
respeitante à questão milenária do humanismo, de um alcance
teórico é prático incalculável. Ora é tal fãcto que, na reali­
dade, Adam Schaff, entre outros, não chega a admitir plena­
mente. Para ele, e aí reside a tese central do seu livro Le
Marxisme et I'individu, é necessário considerar que o indi­
víduo é o verdadeiro ponto de partida (cf. pp. 63, 64, 96,
198, etc.): tese pré-marxista no seu princípio, por mais esforços
que se possam desenvolver para o evitar, que nos remete
teoricamente para os impasses do humanismo abstracto (por
exemplo; para uma psicologização existencialista do materia­
lismo histórico) e que encobre, na prática, uma crítica da
política, crítica essa empreendida do ponto de vista do indi­
víduo (que se verifica então ser sempre, pouco ou muito, o
indivíduo burguês), não sendo este mesmo «ponto de vista
do indivíduo» previamente criticado de uma forma radical,
tal como o exige o marxismo, a partir do estudo científico
da necessidade concreta do movimento histórico. Portanto daí,
surgé, em cadeia, toda uma série de outras revisões do mar­
xismo...» Tal é, de facto, na minha opinião, o segredo de
todas as solicitações «humanistas» do marxismo.
Por outro lado, por parte daquilo a que se chamava, há
três anos, o anti-humanismo teórico, quais foram as reacções
às objecções e às análises de Marxismo e Teoria da Persona­
lidade? Salvo erro ou omissão da minha parte, o silêncio.
E é sempre difícil interpretar o silêncio. Contudo, penso não
vir a ser acusado de precipitação se declarar considerar,
quanto a mim, que três anos de silêncio se assemelham bas­
tante a uma constatação de carência, e se daí extrair a con­
clusão de que parecem, de facto, ter sido refutadas as teses
características do anti-humanismo teórico e estabelecido o
estatuto científico da. concepção marxista do homem. Trata-se
de um ponto que merece ser referido, visto que, da mesma
forma, continuam a ler-se hoje em dia análises, que consi­
deram, como se nenhuma evolução tivesse tido lugar, o
anti-humanismo teórico como perfeitamente estabelecido.
Seja. como for, semelhante segurança não parece possuir reais
fundamentos.
Fosfácio da segunda edlçSo francesa 683

Contudo, se o anti-humanismo teórico, enquanto corrente


explícita do pensamento marxista francês durante alguns anos,
não pareceu estar em condições de forjar uma objecção rela­
tivamente às teses contrárias às suas aqtii expostas, não pode,
simultaneamente, impedir que se liberte algo como uma
espécie de anti-humanismo teórico latente que se exprime em
reticências mais ou menos difusas perante a noção de um
humanismo científico marxista, e muito especialmente — eis-
-nos de volta ao mesmo problema— perante o uso lato que
é feito nesta obra do conceito de essência humana: perturba­
dora conjunção de desconfianças entre aqueles que temem o
excesso de humanismo e aqueles que deploram a sua escassez.
Mas vejamos o fundo do problema. Fora já abordado de uma
forma perfeitamente esclarecedora, na sequência da publi­
cação do meu artigo «Marxismo e ciências do homem» (La
Nouvelle critique, n.° 2, nova fórmula. Março de 1967), por
um leitor que me perguntava, «tendo sido a ideia abstracta
de essência humana rejeitada em prol dos conceitos cientí­
ficos de relações sociais [...] , qual a utilidade que haverá
em reintroduzir a noção de essência, como se se pretendesse
ter razão na mesma, voltando a encerrar o seu aparelho
científico no saco sem fundo metafísico, já de si bastante
aviltado, da essência...»...? E eu fora, já nessa altura, levado
a responder o seguinte (cf. La Nouvelle critique, n.° 4, Maio
de 1967): «Nenhuma, naturalmente, se se tratar de ’reintro­
duzir’ a ’noção de essência’, ou seja, de retomar ao huma­
nismo especulativo [...]. Mas, uma vez afastada sem remissão
a concepção especulativa da essência humana, falta-nos com­
preender científicamente o que são os homens, não ao nível
das aparências, mas sim ao da essência real. Isto não tem
nada a ver com uma questão de ingénuo ponto de honra
’filosófico’: é toda a nossa concepção da história e da polí­
tica que está em causa. Em última análise, os homens são
sempre explicados através de qualquer coisa, consistindo todo
o problema em saber através de quê. Ora, eu afirmo que,
caso se desconheça, como o faz o anti-humanismo estrutura-
lista, a tese de Marx em v l Ideologia Alemã: ’Essa súmula de
forças de produção, de capitais, de formas de relações sociais,
que cada indivíduo e cada geração encontram como sendo
coordenadas já existentes, constitui a base concreta daquilo
que os filósofos apelidaram de ’substância* ou ’essência’
do ’homem’, caso se desconheça que nestas coordenadas
584 Marxismo e teo ria d a personalidade

sociais objectivas reside a ’realidade’ da essência humana,


como o afirma a V I Tese sobre Feuerbach, em resumo, se não
se consegue ver que o materialismo histórico não recusa, de
forma alguma, o problema da essência humana, mas sim que,
pelo contrário, o soluciona, os homens e as relações sociais
encontram-se, nesse caso, de novo abstractamente separados,
de tal forma que já não se compreendem-nem os primeiros
nem as segundas. Se as relações sociais não são entendidas
como sendo a essência real do homem (por outras palavras,
como sendo a base explicativa fundamental de tudo aquilo
que diz respeito ao homem), reciprocamente os homens não
serão, portanto, entendidos a partir das relações sociais como
sendo a sua essência, e recair-se-á, de uma forma ou de outra,
numa concepção idealista do homem, ou seja, aquém do mar­
xismo. É, por exemplo, o que acontece a Lévi-Strauss. Eis
aqui porque é que a noção de essência humana real é algo
de totalmente diferente de uma simples frioleira metafísica.»
Que essã reticência perante a noção marxista de essência
humana esteja tão difundida, tal não advém unicamente de
uma-incompreensão do próprio fundo do materialismo his­
tórico, mas também, e mais genericamente na minha opinião,
de uma insuficiência da cultura filosófica de base, por detrás
da familiaridade de convivência com as terminologias na
moda, e isso mesmo entre gente, aliás,, bastante instruída.
Tal facto é hoje em dia frequente entre cientistas, e constitui
precisamente o contrário de um acaso; é o resultado previ­
sível, incansavelmente profetizado e combatido ao mesmo
tempo pelos filósofos marxistas, da extrema decadência das
filosofias universitárias burguesas tradicionais, que tem sido
reforçada, sobretudo após 1958, por uma política deliberada,
levada a cabo pelo poder dos monopólios, tendente a privar as
novas gerações de uma formação filosófica digna desse nome,
política essa que chegou hoje em dia às vésperas do seu
«triunfo»: o fim da «disciplina de filosofia». Para muita gente
que «não se ocupa de filosofia», tal como outros «não se
ocupam de política», o termo «essência» possui, assim, uma di­
mensão medieval, metafísica, especulativa, não científica, para
resumir. No seu limite extremo trata-se quase de uma repulsa
afectiva, tal como se pode verificar nesta saída, que é
um espantoso documento ideológico, de um psicólogo, no
decurso de um debate sobre os problemas de V I Tese
de Marx sobre Feuerbach: -«Seja como for, o termo ’essên-
Posfácio d a segunda edição francesa 585

cia* desagrada-me soberanamente e soa-me como antimar­


xista!» (Cf. Raison présente, n.° 17, Janeiro-Março de 1971,
p. 79). O que se passa é que se desconhecem as trans-
formações fundamentais do conceito de essência no âmbito
da dialéctica hegeliana, e posteriormente marxista. No
seio do pensamento pré-dialéctico, a essência é, na reali­
dad e, pura e simplesmente a abstracção do objecto consi­
derado, ou esse mesmo objecto convertido em abstracção
— abstracção essa que se trata, a seguir, de apresentar como
sendo «inerente ao objecto isolado», misteriosamente presente
nos seus mais profundos recônditos. Neste sentido, o flogístico,
o calórico, o éter, por exemplo, eram excelentes «essências»
físico-químicas, de que é sabido o que a química e a física
tiveram de fazer para poderem progredir: desembaraçar-se.
Inúmeros cientistas por aí se ficaram, e com eles a multidão
dos não cientistas: a «essência» não passaria de uma velharia
filosófica com a qual o saber científico nada teria a fazer.
E contudo, se o nossó psicólogo de há pouco pretender, por
exemplo, dar a entender que, digamos, as semelhanças e as
dissemelhanças psicológicas entre gémeos, longe de poderem
ser explicadas, em última instância, pela «hereditariedade))
ou pela «educação», têm de ser relacionadas com a análise
concreta da situação dos gémeos, no âmbito da qual têm lugar,
na opinião dele, essas particularidades psicológicas no respei­
tante ao essencial, que é que ele faz que não seja limitar-se
a designar-nos as relações essenciais (na sua opinião) que
engendram o objecto estudado, ou seja a essência do fenó­
meno gémeo? Mas trata-se, então, de uma essência de tipo
dialéctico, já não de uma abstracção inerente ao objecto con­
siderado em si, mas sim de uma relação concreta no seio
da qual tem lugar, no respeitante ao essencial, o objecto con­
siderado; e o protótipo dessa essência dialéctica — a única
que está de acordo com as exigências da ciência moderna —
é precisamente a essência humana indicada pela primeria vez
por Marx na V I Tese sobre Feuerbach. Tal facto merece
realmente que sobre ele reflictamos um pouco.
No entanto, se todo o cientista, como acabamos de veri­
ficar, por pouco que se sirva de uщ conceito bem fundamen­
tado, se ocupa da essência mesmo çem o saber, perguntar-se-á,
talvez, se a ciência adquire algum conhecimento suplementar
por chamar filosoficamente «essência» ao que designava,
quanto a si, pelo seu conceito específico. A resposta é clara:
686 Marxismo e teo ria d a personalidade

absolutamente nada. É perfeitamente visível, por exemplo,


que, se eu qualifico a situação dos gémeos como sendo a
essência do fenómeno gémeos, não enriqueci por aí além,
dessa forma, o meu conhecimento sobre os gémeos. Mas a
pergunta é ingénua; porque, evidentemente, o poder e a
função da filosofia _■— e da marxista não mais do que qual­
quer outra— não consistem em substituir-se à ciência, em
encontrar uma «outra» via de acesso, não experimental, ao
conhecimento experimental. Em contrapartida, se possuo
fundamentos para identificar como sendo a essência real do
objecto considerado — por exemplo, o homem— determi­
nadas relações —-na ocorrência, as relações sociais—, tal
facto dá-me, não, isso é evidente, sejam lá que conhecimentos
concretos forem sobre o homem ou as relações sociais, mas
sim uma indicação estratégica de conhecimento — noutros
termos, uma indicação epistemológica— de uma incalculá­
vel importância, visto que tal facto significa que é no âmbito
da dialéctica, mediante a qual este objecto se produz no
seio destas relações, que. devo esperar vir a encontrar a chave
tanto para a compreensão das suas propriedades como do seu
desenvolvimento. Eis aqui porque é que, neste livro — livro
de reflexão filosófica sobre os problemas das ciências psico­
lógicas—, se qualificam, com tanta frequência, as relações
sociais de «essência humana»: trata-se de levar a entrever que
a economia política, no sentido marxista desta ciência, é a
chave para a psicologia da personalidade. Segundo as minhas
observações, repetidas dezenas e dezenas de vezes, a tendên­
cia para desleixarmos esta formulação marxista capital é
sempre o índice (nem que seja inconsciente) de um enfraque­
cimento do materialismo histórico; e após o que acaba de
ser dito parece-me que a razão de tal facto é evidente. Na
realidade, estou convencido, e hoje tanto como há três anos. de
que a inovação extraordinariamente profunda da concepção
marxista do homem (a forma psicológica, individual, do «ser-
-homem», longe de ser primária, é essencialmente derivada
de uma forma histórico-social objectiva do património hu­
mano-em que a individualidade não é identificável enquanto
tal), essa inovação ainda quase que não foi entendida, e
muito menos posta a funcionar positivamente, no campo das
ciências psicológicas, pelo menos em França. E é de facto
necessário afirmar que se trata de uma inovação terrivel­
mente incomodativa para-toda uma psicologia experimental
Posf&cio segunda edição francesa 687

massivamente informada por uma bibliografia anglo-saxó-


nica, no seio da qual temos de concordar que, até aqui, o
contributo do materialismo histórico tem sido soberana-
mente ignorado. Mas todo o problema está em saber efectiva­
mente que é que se pretende construir: uma ciência, no
sentido plena e radicalmente essencial deste, termo, ou seja,
no sentido que permitiu a Marx fundar a ciência da história —
ou a exploração experimental de todo o espaço que é defi­
nido por pressupostos ideológicos que não se vislumbram
no respeitante ao indivíduo psíquico? Aí, quer-me bem pare­
cer, situa-se a escolha fundamental que determina simulta­
neamente a orientação deste livro e, talvez, as razões pelas
quais ele se verificou não «legível» por alguns. Que me per­
mitam unicamente referir, ao pôr ponto final neste capítulo,
a notável convergência terminal de investigação entre uma
interpretação anti-humanista do marxismo que rejeita a
essência humana em nome daquilo que surge, ao fim e ao
cabo, como sendo uma concepção positivista da história, e
uma interpretação humanista especulativa que a rejeita em
nome do primado idealista do indivíduo: foi precisamente
contra estes dois erros, o que se verifica relendo A Ideologia
Alemã, que se edificou o materialismo histórico.*

*
Chego agora ao problema da configuração do campo das
ciências psicológicas e do estatuto de uma verdadeira ciência da
personalidade, problema esse que constitui o objecto do capí­
tulo 3. E creio, para começar, poder observar que o diagnós­
tico que nele é avançado sobre o estado actual da psicologia
da personalidade, pelo menos da de língua francesa, por mais
severo que possa ser, não foi contestado por ninguém, nem
mesmo por psicólogos profissionais. Melhor: vários especia­
listas indicaram-me que poderia, sobre este ou aquele ponto,
ter ido buscar o exemplo de autores ainda mais caracterís­
ticos e representativos dos erros que aí denuncio, o que lhes
agradeço bastante. Fiquei, contudo, surpreendido, neste domí­
nio, ao encontrar, por várias vezes, uma curiosa observação:
teria sido inútil criticar os trabalhos de Sheldon, que me
asseguraram já ninguém levar a sério. Explicar-nos-ão, nesse
caso, se é realmente assim, porque é que esse monumento eri­
gido à indigência do pensamento científico, que dá pelo
588 Marxism' teoria da personalidade

nome de Les Varietés du tempérament, continua hoje em dia


a deter um lugar de destaque na bibliografía científica sobre
psicologia da personalidade? Um exemplo: no Traite de psy­
chologic experimentales de Fraisse e Piaget (t. v P. U. F„
2.a edição, 1968), o capítulo x v i i intitulado «A estrutura da
personalidade», consagra-lhe cerca de cinco enormes páginas
num total de 70. O lügar de Sheldon é quase em toda a parte
igualmente importante, e, por vezes, ate muito mais, tal
como no capítulo sobre a personalidade do livro de P.
Fraisse: La psychologie experiméntale (P. U. F., 1967), que
declara, aliás, logo de início: «Fazemos nossa a definição de
Sheldon» (p. 102; em contrapartida, observa-se que J. C. Fil-
loux, no seu livro sobre La Personnalité, P. U. F., 1967, nem
sequer o menciona na sua bibliografia). Mas, ao fim e ao
cabo, se aquilo que me asseguraram é exacto, considerar-se-á,
então, dé urna forma certamente favorável a seguinte suges­
tão: suprimir, doravante, no nosso ensino superior sobre
psicologia da personalidade o estudo científicamente estéril
de Sheldon, e substituí-lo, em tempo igual, pela exposição da
conc.epção marxista da individualidade humana?
. Dito isto, o mais importante não está ainda em verificar
que as coisas não correm sobre rodas em matéria de psico­
logia- dá personalidade: está sim em compreender porque é
que isto acontece, e o que é que seria necessário fazer para
que passasse a ser diferente. Foi, sem dúvida, a este respeito
que as análises psicológicas do livro encontraram, no seu
conjunto, um mais vasto eco, até mesmo apoio, nomeada­
mente entre aqueles que estão habituados à atitude clínica.
Contudo, como seria de esperar, elevaram-se veementes
objecções por parte de certos psicólogos experimentalistas.
O mais importante artigo, a este respeito, foi o de J. F. Le Ny
em La Pensée («Une autre science psychologique?», n.° 147,
Outubro de 1969). A atitude de J. F. Le Ny é fácil de resumir:
ele não vê, de forma nenhuma, que possa haver, nesse domí­
nio, lugar, e matéria, para uma outra abordagem das estru­
turas da actividade individual humana que não seja a da
psicologia do comportamento. O ponto central do meu livro,
tê-lo-ão notado, é constituído pela análise das páginas 364-
-398 («relações naturais e relações sociais entre as condutas»)
em que lanço mãos à tarefa de demonstrar que, não sendo
o salário o preço do trabalho, mas sim o da força de trabalho,
«a correspondência entre x> trabalho e o salário não ê uma
Posíàcio da segunda ediçSo ' ’ancesa 689

relação natural, imediata, «psicológica» no sentido vulgar


do termo, e que, por consequência, não há qualquer esperança
de nos apercebermos dela nos termos e no âmbito da ciência
das condutas» (p. 265); ou, por outras palavras, que a
aparente correspondência entre trabalho e salário é «porta­
dora de uma relação real, de uma natureza totalmente dife­
rente» ligando o salário «não, de forma alguma, ao trabalho
concreto que- foi efectuado, mas sim à forma-valor da força
de trabalho que nele foi despendida». E daí extraía a seguinte
conclusão: «Encontramo-nos portanto, aqui, em presença, no
próprio âmago da vida psicológica, de uma relação «psico­
lógica» que é, de facto, não uma relação psicológica, mas
sim uma relação social», uma relação que denota todo um
mundo de estruturas da personalidade viva inteiramente espe­
cíficas (p. 267). Ora, eis precisamente aquilo que J. F.
Le Ny contesta de uma ponta à outra. Para ele, «se eu como
um bolo, de tal acto ’resulta’, ao mesmo tempo à minha
propriedade desse bolo, concomitantemente com um certo
tipo de microrrelação social com aqueles que me rodeiam;
do mesmo modo, o valor ’resulta’ efectivamente da troca,
ou seja, de um certo tipo áe conduta; a mais-valia, no que lhe
respeita, ’resulta* da apropriação, que é igualmente passível
de ser expressa em termos de condutas.». «Não ver na corres­
pondência errónea que pode ser estabelecida entre o traba­
lho e o salário senão a ilusão que nasce da ignorância da
mais-valia, equivale, no plano psicológico, a atermo-nos a
uma concepção que permanece subjecitva; parece-me muito
mais fecundo olhá-la igualmente sob a sua outra face que
é a de uma realidade psicológica objectiva, e, não tenho
qualquer receio em escrevê-lo, independente das relações
sociais. Essa realidade, que Sève, imprudentemente, desafía
a ’psicologia habitual’ a descobrir, é, pura e simplesmente,
a lei do efeito, também chamada lei do reforço, segundo a
qual todos os comportamentos de um certo tipo são determi­
nados pelo seu efeito, na base das anteriores aprendiza­
gens.» (P. 53.)
Penso que estas passagens características permitem ver
bem a amplitude do mal-entendido em que se baseia toda a
argumentação de J. F. Le Ny. Com efeito, que todas as rela­
ções entre condutas possam ser «expressas em termos de
conduta», isso é perfeitamente evidente. Do mesmo modo.
5B0 Marxismo e teoria d a p e rs o r' ’idade

toda a pronúncia, seja lá de que frase for, pode ser «expressa»


em termos de influxo nervoso ou de vibração acústica.
A vida psicológica não é materialmente constituída senão por
condutas e é por isso que, num certo sentido, é totalmente
passível de uma apreciação por parte da ciência das condu­
tas, ou do comportamento. Mas o que J. F. Le Ny não vê
é que, tal como há -numa frase que é pronunciada outros
aspectos qualitativos para além dos do influxo nervoso ou da
vibração acústica, as relações entre condutas não são apenas
as relações que o sentido psicológico vulgar do termo pode
subentender — por exemplo, as que são estudadas pela lei
do efeito, que é, efectivamente, como ele o afirma, indepen­
dente das relações sociais, e tal facto torna perfeitamente
claros a sua natureza e os seus limites: há igualmente aquilo
que eu julguei poder denominar as relações sociais entre as
condutas,- a fim de sublinhar que, em si mesmas, elas são,
pelo contrário, e — se o posso afirmar sem chocar um psi­
cólogo— no âmbito da sua essência, dependentes das rela­
ções sociais, pela razão pura e simples de que não passam,
na realidade, senão das próprias relações sociais objectivas,
interiorizadas enquanto relações da actividade psíquica indi­
vidual. Assim, por exemplo, quando J. F. Le Ny escreve
que o que rege a relação entre salário e trabalho é, «pura
e simplesmente, a lei do efeito», tem, num certo sentido, toda
a razão, porque é, de. facto, verdade que, do ponto de vista
das relações «naturais» entre as condutas, as flutuações do
salário, por exemplo, possuem efeitos precisos sobre as flu­
tuações do trabalho concreto <e aí reside todo um aspecto
das formas da exploração capitalista); mas como é possível
não ver de que modo esta afirmação é, num outro sentido,
perfeitaménte indefensável, visto que a lei do efeito, indepen­
dente das relações sociais, é totalmente incapaz de se aper­
ceber de que o salário possua por correspondente real,-no
seio da individualidade do assalariado capitalista — numa
sociedade socialista é totalmente diferente—, a forma-valor
da sua força de trabalho (e aí se encontra o próprio fundo
da exploração capitalista)? Esta forma-valor da força de tra­
balho, que teríamos poucas hipóteses de vir a encontrar, por
exemplo, num rato, nem que fosse numa caixa de Skinner,
sistema dinâmico inteiramente específico, delimitado no seio
da individualidade do trabalhador assalariado pelas relações
sociais capitalistas, e que desempenha, no âmbito da sua
Posfácio d a segunda ediç&o francesa 591

própria biografia, um enorme papel, não poderá ser expli­


cada, nem sequer abordada pelas «constantes psicológicas»,
tão caras a J. F. Le Ny (e que não ponho, nem por um ins­
tante, em dúvida, no âmbito da sua ordem: a do estudo do
comportamento), visto que não «resulta», de forma alguma,
dessas constantes psicológicas, mas sim de estruturas não psi­
cológicas e eminentemente transitórias? Não vendo senão, no
plano das condutas, o traço de uma realidade totalmente psi­
cológica, mas de essência social, a psicologia experimental
comporta-se um pouco como o espectador de um teatro de
sombras, que atribuísse a mera especulação filosófica a afir­
mação segundo a qual as personagens reais do drama pos­
suem, na realidade, uma terceira dimensão, impossível de levar
a que surja, enquanto tal, na sua tela. Desgraçadamente, há
muitas e boas razões para pensar que esta terceira dimensão
é precisamente a que é requerida para, finalmente, se vir a
fundar, para além da ciência do comportamento, a da perso­
nalidade humana.
Também no seu artigo de La Pensée, J. F. Le Ny possui
a lealdade de afirmar, e tal facto merece ser realçado, que
não está «seguro de ter entendido devidamente o sentido total
dessa expressão: ciência das relações sociais entre as condu­
tas» (p. 52). Penso que isso deve ser, com efeito, a verdade
pura e simples. Extremamente absorvida pelas obrigações da
sua própria investigação científica e animada por uma perti­
naz vontade de ruptura, em certos aspectos tão legítima e
necessária, com a «filosofia» no sentido universitário tradi­
cional do termo, tudo se passa como se a psicologia experi­
mental tivesse perdido um pouco o hábito de reflectir sobre
textos «filosóficos» de um teor totalmente diferente, como os
grandes textos de Marx. Ora, permito-me reafirmá-lo con­
victamente, quem não assimilou a fundo obras como A Ideo­
logia Alemã, os Grundrisse e O Capital poucas hipóteses tem
de vir a compreender verdadeiramente o que pressupõe o
fundar de uma ciência real da personalidade. Isto leva a
colocar uma questão: em vez de afirmarem, a propósito do
que eu julguei poder designar como sendo uma «inversão de
essência» entre o indivíduo animal e o indivíduo humano,
que «a psicologia científica, devemos confessá-lo, não sabe
muito bem o que podem ser tais coisas e pergunta a si mesma,
um tanto ou quanto estupefacta, o que essas expressões podem
significar» (n.° 147, p. 57), aqueles que pretendem trabalhar
692 Marxismo e teo ria da personalidade

para o progresso da psicologia da personalidade não deveriam


reflectir, pelo contrário, naquilo que é não uma frivolidade
«filosófica», mas sim antes a lição cardinal de toda a antro-*
pologia científica, e que A. Leroi-Gourhan, pela sua parte,
resume do seguinte modo: «Toda a evolução humana con­
corre para colocar afora do homem aquilo que, no resto do
mundo animal, corresponde à adaptação específica» {Le
geste et la parole, Albin Michel, t. и, p. 34). Porque é apro­
fundando este imenso processo de excentricidade posicionai,
de índole social, da essência, genialmente apercebido por Marx
no plano filosófico antes de a ciência experimental o confir­
mar inteiramente, processo esse que abalou, de uma ponta
à outra, as próprias bases do psiquismo humano, que nos
podemos aperceber de que forma, estranha a todos os esque­
mas herdados do estudo do comportamento animal, a dia­
léctica da personalidade humana se encontra, no mais pro­
fundo de si mesma, em estreita conexão com a da história.
Em todo o caso, aqueles que não julguem útil procurar
compreender esta alteração de essência não têm, igualmente,
quase nenhuma possibilidade de compreender a natureza real
dos problemas quq Marxismo e Teoria da Personalidade tenta
examinar, o que é, aliás, de muito menor gravidade. Antes
de pôr termo às observações relativas ao capítulo 3 gostaria
de voltar a falar, resumidamente, de dois aspectos, não obs­
tante lamentáveis, dessa incompreensão. Trata-se, em pri­
meiro lugar, da questão do «fisiologismo». J. F. Le Ny, e
sem dúvida que não é o único, parece julgar que haveria uma
«constante» presente em todo o meu pensamento (n.° 147,
p. 54): o «antifisiologismo teórico» (p. 56). Apresenta as
páginas 475 a 486 do livro, em que se procura levar a cabo
a demonstração do sentido em que existe um «fulcro racio­
nal» da noção de alma, como sendo páginas «que os-espí­
ritos científicos e materialistas não terão sem um certo mal-
-estar» (p. 56) e sugere mesmo, numa nota, que aí poderia
residir a razão pela qual Jean Lacroix teria feito uma crítica
favorável ao meu livro (Le Monde, 3 de Julho de 1969). Estas
representações materialistas não são novas para mim, desde
o meu artigo de 1964 «Os dons não existem», o qual alguns
tinham posto em causa, no seu tempo, com base numa ati­
tude, na minha opinião, «biologista», antes de a sua orien­
tação principal ter sido genericamente reconhecida como bem
fundamentada. Contudo, eu-escrevia nesse artigo, da forma
Poef&cio d a segunda ediçgo francesa 33

mais clara deste mundo, segundo me parece: «Num certo


sentido, é toda a vida do individuo, em todos os seus aspectos,
que se encontra marcada pelas coordenadas biológicas ini­
ciais. Tal é de urna evidencia absoluta.» (L’École et la nation,
Outubro de 1964, p. 567.) Pode reler-se à vontade Marxismo
e Teoría da Personalidade sem se encontrar ai, segundo creio,
uma só linha que seja que se afaste, nesta matéria, das mais
rigorosas posições materialistas. Mas aquilo que desde este
artigo de 1964, e com muito mais razões neste livro, sempre
defendi foi a ideia, na minha opinião capital, de que as coor­
denadas biológicas não são, de forma alguma, as bases expli­
cativas da personalidade desenvolvida, mas sim apenas os
seus suportes, possuindo a personalidade desenvolvida a sua
verdadeira base explicativa nas suas próprias contradições
internas, que reflectem as contradições das relações sociais:
é tal jacto que o «fisiologismo» dificilmente consegufe com­
preender, não tendo, sem dúvida, achado valer a pena estar
a perder o seu tempo a reflectir numa questão tão «filosó­
fica» como a das relações entre base e suporte — e que sus­
peita sempre de «derrogação ao materialismo», um pouco
como se censurasse ao materialismo histórico uma «derro­
gação ao materialismo» porque não vê na geografia a base
da história, mas unicamente o seu suporte. De um modo geral,
podemos interrogar-nos sobre se a psicologia experimental
desenvolveu uma reflexão suficientemente sistemática e fun­
damental sobre os limites de validade da aplicação ao
homem dos métodos e conceitos que convêm ao estudo do
comportamento animal. Não sendo assim, como é possível
compreender que muitos autores persistam em tratar as rela­
ções sociais como sendo o «meio ambiente» do indivíduo
humano, sem entrarem em linha de conta com o facto de
que a dialéctica indivíduo-meio ambiente .muda totalmente
de sentido quando o meio ambiente animal se transformou
ho centro (posicionalmente excêntrico) da Humanidade?
Ocupando-se sempre, em última instância, do homem como
sendo um animal, ou seja, rebaixando-o no plano da biologia
ao desconhecer o lugar, específicamente essencial no seu
caso, da história, o «fisiologismo» está atrasado em relação
a um materialismo: o materialismo histórico. Ouvi mesmo
ser-me objectado, um dia destes, quando demonstrava o valor
do excepcional contributo das análises de Marx sobre a
relação monetária para uma psicologia da personalidade.
594 Marxismo e teo ria d a personalidade

que tudo isso fora já posto em evidência a respeito dos ratos.


Se realmente a psicologia experimental não conseguisse aper­
ceber-se do abismo que separa a apropriação imediata de um
objecto por um rato numa caixa de experiências e a apro­
priação, mediatizada pelo dinheiro, de. um bem social por
um indivíduo humano, tal facto seria bastante mau para a
sua reputação.
Contudo, não terei, na verdade, brincado com o fogo ao
afirmar a existência de um fulcro racional da noção de alma?
Confessarei, francamente, que havia aí, ao nível dos termos,
uma certa provocação deliberada da minha parte, a este
respeito. Más o que interessa é o facto, e a definição que
proponho de «alma», à saber, a dinâmica das relações sociais
que animam uma personalidade, por mais válida, aliás, que
possa ser ou não ser, é uma definição tão exclusivamente
materialista- que, em três anos, nem um só espiritualista
— incluindo Jean Lacroix — pensou sequer em a aliciar para
o sentido por.si defendido, ao mesmo tempo que a leitura
do livro acabava, pelo contrário, de levar alguns cristãos a
unirem-se ao marxismo materialista e ateu. O que equivale
a afirmar que as razões pelas quais certos críticos não mar­
xistas não- julgaram conveniente maltratar o meu livro são
um pouco mais complexas do que parece sugeri-lo J. F. Le
Ny. Estas encontram-se, nomeadamente, relacionadas com o
enorme problema da defesa da filosofia contra a formidável
tentativa, prosseguida pelo poder dos monopólios, de pro­
vocar uma acefalia filosófica. Jean Lacroix, por exemplo,
achou qué o meu livro era inspirado pelo «espírito de inves­
tigação e de verdade»; e, tal como ele, nós, marxistas, pen­
samos que há matéria para uma aliança filosófica na urgente
defesa desse espírito «de investigação e de verdade», e que,
a fortiori, nenhum marxista, perdido nas brumas do positi­
vismo experimentalista, poderá vir a encontrar-se em pleno
campo do poder dos monopólios, em acesa luta contra toda
e qualquer filosofia. Que se tenha a bondade de reflectir
ainda sobre este ponto: o que poderia fazer o jogo do espiri­
tualismo da alma não é a tentativa de edificar a teoria mate­
rialista da'dinâmica da personalidade humana, mas sim, pelo
contrário, a redução «fisiologista», e, ao fim e ao cabo, o
que julgo ter demonstrado neste livro, burguesa, dos proble­
mas da personalidade humana, porque então, sim, com toda
a certeza, surgirá de todo o lado a aspiração a um «suple-
Fosfácio d a s e s r ‘a edição francesa 595

mento de alma». Basta ver de que modo a redução anti-hu-


manista teórica do marxismo foi apreciada por parte do per­
sonalismo para de tal nos apercebermos.
A segunda incompreensão a respeito da qual gostaria de
tecer algumas considerações é a que se refere à questão,
também ela crucial quando se trata do indivíduo concreto,
da possibilidade de uma ciência do singular. Também sobre
este ponto, as minhas teses não encontraram uma adesão
unânime. J. F. Le Ny escreve que a ideia de «uma ciência
do indivíduo singular» é, para si, «é sem dúvida para muitos
outros, impensável no sentido estrito do termo» e acrescenta:
«Peço que me mostrem, noutros domínios — porque em todo
o lado há singular—, exemplos de uma tal ciência; mas dei­
xemos isso, senão ainda acabaria rotulado de aristotelismo»
íp. 58). Devo dizer que um tal pedido é um tanto ou quanto
desconcertante, quando se pensa que, no total, o contributo
mais revolucionário e mais visível do marxismo-léninismo
consiste, precisamente, na elaboração teórica e prática de
uma ciência da política cuja «alma», se assim me otiso expri­
mir, é aquilo a que Lenine chama «a análise concreta das
situações concretas». Pergunta-se então o que será uma ciên­
cia do singular e pedem-se exeinplos? Pois que se estude a
política leninista. Evidentemente que até aqui a obra política
de Lenine nunca é citada nas bibliografias sobre psicología
da. personalidade. Sou daqueles que consideram que tal facto
é perfeitamente lamentável, porque hela pode, precisamente,
aprender-se a pensar a «impensável?) ciência do singular, o que
não corre seguramente o risco de acontecer ao ler-se, por
exemplo. Les variétés du tempérament, de Sheldon. J. F. Le
Ny parece de tal modo confundido pela noção de uma ciên­
cia do singular que acaba por imaginar que a «chave» para
a compreensão do meu livro estaria em que o seu ponto de
vista «é, exclusivamente, o da psicologia diferenciai» e que
isso esclareceria «todo (o meu) propósito» (p. 55), quando
se pode ler,, nomeadamente nas páginas 583-589 do meu livro,
uma (tcrítica radical» da própria ideia de psicologia diferen­
cial, tomando clara a sua total «inconsistência científica».
Na realidade, toda a minha investigação, seja qual for a
óptica, aliás, sob que a apreciem, situa-se para além do tra­
dicional dilema entre psicologia geral e psicologia diferencial,
que possui, sem dúvida, um certo sentido quando se estudam
comportamentos, mas que deixa de possuir todo e qualquer
59" Marxismo e teoria da personalidade

meira necessidade humana», eu punha em causa ñas páginas


442-464, a abandonou posteriormente, fruto das suas próprias
investigações, que, se bem que não coincidam com a con­
cepção aqui desenvolvida da necessidade, não deixam, apesar
disso, de se orientar numa direcção semelhante. É de desejar
que o conjunto dos cientistas franceses, justamente interes­
sado por estes problemas, venha a ser no futuro um pouco
mais bem informado sobre o desenvolvimento, extremamente
rico, dos trabalhos sobre psicologia da personalidade que têm
lugar nos países socialistas. E talvez que um dia se torne
evidente que, bem feitas as contas, não será mau, do próprio
ponto de vista da ciênciapsicológica, que o pensamento mar­
xista francês não se tenha atrasado demasiado em relação a
esse vasto e capital movimento de investigações.
Janeiro de 1972.
POSFÁCIO DA TERCEIRA EDIÇÃO FRANCESA
Esta terceira edição, conforme com a precedente àparte
algumas actualizações mínimas je certas correcções, surge em
condições bastante diferentes. Ñ a altura em que fora publi­
cada a segunda edição — princípios de 1972— o livro
suscitava ainda essencialmente reacções por parte de filósofos,
quer estes fossem favoráveis ou hostis à concepção dó homem
que ele desenvolve, de modo que, no seio do silêncio quase
geral dos psicólogos, o seu fim principal, dissipar as ilusões
ideológicas que impedem a psicologia da personalidade de se
constituir enquanto ciência real, desaparecia, em maior ou
menor medida, por detrás do debate — aliás, bastante impor­
tante em si mesmo — sobre os pressupostos filosóficos de uma
tal mutação. Hoje em dia, a situjação é já totalmente diferente.
Não que as discussões filosóficas sobre este conjunto de pro­
blemas tenham cessado desde há dois anos, mas sim porque,
tal como veremos, acabaram, numa larga medida, por ir
contribuir para o reforço da prientação da investigação no
terreno do materialismo dialéctico e histórico, que é a adop­
tada neste livro, quer seja porqtie, na sequência das respostas
que receberam, certo tipo de objecções emudeceram, quer
seja porque, no seio da discussãò das outras, se veio a registar
uma rectificação prometedora precisamente por parte daqueles
que as continuam a formular. Àssim, sem o considerar como
prematuramente encerrado, poqe dizer-se que o debate sobre
as teses filosóficas marxistas que estão na base deste livro
surge, doravante, de uma forma muito mais clara, relativa­
mente à sua aposta essencial, tal como na realidade é: uma
validação preliminar.
Ao mesmo tempo, o livro foj largamente lido entre aqueles
que trabalham nos mais divérsos domínios da psicologia
científica — psicologia geral* psicopedagogia, psicologia
696 Marxismo e te i da personalidade

sentido quando o objecto estudado é esse ser, contraditoria­


mente geral e singular, que se chama o individuo concreto.
Admito, bem entendido, que haja aqui matéria para discussão.
O que eu pretendia fazer notar é que, pura e simplesmente,
tanto a respeito deste ponto como de todos os outros, nada
poderia fundamentar-se de válido na base de incompreensões
preliminares.
*

Quanto ao capítulo 4, e às hipóteses que este avança, a


título meramente indicativo, sobre o possível conteúdo de
uma ciência da personalidade, é a este respeito que eu teria,
simultaneamente, mais e menos para dizer. Mais, porque é
a respeito destes problemas que as observações e as críticas,
daqueles que ao mesmo tempo compreenderam e apreciaram
o livro, foram das mais fecundas, e também porque, neste
domínio, foi sobre eles que mais reflect! nestes últimos três
anos. Mas precisamente devido à abundância do que haveria
para dizer, tal só poderá ser tarefa para um novo livro, directa­
mente consagrado a um certo número de problemas concre­
tos dé desenvolvimento da personalidade — por exemplo, os
problemas apaixonantes, e tão mal dominados até aqui, da
biografia intelectual. Quanto às relações entre essas con­
cepções e a psicanálise, dou conta do que penso, pela minha
parte, num capítulo do livro colectivo - Pour une critique
marxiste de la Téorie psychanalytique (Éd. Sociales, 1973).
Limitar-me-ei, portanto, aqui a um único ponto. Tal como
já o esperava, o carácter, evidentemente hipotético, das
ideias dimanadas neste último capítulo não deixou de ser
realçado por parte de certos experimentalistas, como tratan­
do-se de uma especie de enfermidade filosófica congénita; e
foi-lhes cortesmente desejada boa sorte num tom semelhante
àquele com que sé desejaria longa vida a um recém-nascido
de que se está intimamente seguro que não durará mais de
uma semana. Ora, em primeiríssimo lugar, gostaria de saber
como é que, em geral, seria possível levar a avançar uma
ciência tão retardatária como é a psicologia da personali­
dade de outro modo que não seja adiantando hipóteses, con­
tanto que estejam conformes com as exigências necessárias
à sua verificação ? Verifico que J. F. Le Ny, por exemplo, no
seu próprio estudo sobre «A psicologia e os comportamentos
polític-os» {La Pensée, n.° 146, Agosto de 1969), acha natural
posíácio da segunda edição france 597

escrever que «não se pode, enquanto esperamos, deixar о


campo livre às ideologias, sob a sua forma mais perniciosa,
e que é, por consequência, inevitável que nos aventuremos
em certo tipo de especulações», e que, a esse respeito, «com
a condição de se poderem adoptar critérios adequados de
verdade e de erro, nada pode sér melhor do que o seu debate,
antes de serem postas perante a prova dos factos» (p. 24).
Às mil maravilhas, ainda que, nà minha opinião, se trate mais
de prolongar, ao nível da hipótese, o desenvolver de cer­
tezas perfeitamente sólidas do que de «nos aventurarmos no
campo da especulação». Mas porque é que então, no caso de
Marxismo e Teoria da Personalidade, esta diligência, eviden­
temente necessária, é considerada como sendo o fruto de uma
«ideia bastante inexacta da ciência que vem sendo elaborada»
(n.° 147, p. 59), o «sonho de uma síntese que precederia o
estudo concreto» (p. 60), em resumo, a miragem .de uma
«via que não pode ser desbravada» (p. 59)? Sendo-se livre,
bem entendido, de não dar crédito às hipóteses aqui adian­
tadas — e na ausência das quais não tenho, aliás, quaisquer
dúvidas de que me teriam censurado o ser incapaz de dar
concretização a pontos de vista que são, lamentavelmente,
demasiado gerais — e, por exemplo, de não considerar opor­
tunas investigações sobre o emprego do tempo ventiladas à
luz da conceptualização aqui proposta. Contudo, segundo
parece, é um problema o saber de acordo com que critérios
certas hipóteses são tidas por experimentais e outras por espe­
culativas, quando as vias para a validação ou a invalidação
experimental são tão claras tanto no respeitante às segundas
como às primeiras.
Mas, em segundo lugar, não seria dar mostras de estrei­
teza de vistas o supor que investigações sobre psicologia da
personalidade, desenvolvidas na base da ciência marxista das
relações sociais, estariam votadas a permanecer como sendo
a inofensiva fantasia de alguns filósofos isolados? Se, com
efeito, se quiser ter a bondade de elevar o olhar para além
da bibliografia provisoriamente dominante, entre nós, nesta
mtéria, a fim de se olhar para o que está em vias de se desen­
volver, nomeadamente na maioria dos países socialistas, aper­
ceber-nos-emos de que o estado actual dos problemas poderia
revelar-se bem mais precário do que parece. Chegado a este
ponto, parece-me interessante indicar que o psicólogo hún­
garo Laszlo Garaí, cuja formulação sobre «o trabalho, pri-
600 Marxismo e teoria d a personalidade

social, psicanálise e psiquiatria, disciplinas de todos os tipos


que se ocupam de categorias como as de indivíduo ou de
necessidade — e encontrou, com frequência, um eco favorável
entre estudantes e jovens investigadores, pouco inclinados a
acreditar, segundo parece, que a ideia de uma enfermidade
constitutiva daquilo que é, hoje em dia, correntemente apre­
sentado como sendo a psicologia da personalidade seja uma
simples quimera filosófica, de modo que as ideias fulcrais e
as principais hipóteses aqui expostas começam a ser consi­
deradas como ponto de partida para investigações concretas.
Tal. facto observa-se em França, e mais ainda no estrangeiro
— o livro encontra-se actualmente traduzido ou em vias de
tradução em dezasseis países. É assim que, das duas Alema-
nhas — na R. D. A. o livro já vai na sua segunda edição —,
me chegam inúmeras indicações sobre trabalhos ou seminá­
rios que aí têm sido consagrados ou estão em preparação sobre
os problemas que ele levanta, por exemplo, do ponto de vista
psicopedagógico. Ura conceito como o de emprego do tempo,
que é perfeitameníe central no dispositivo teórico proposto,
constitui, sob diversas formas, o objectivo das primeiras tenta­
tivas de exploração experimental. Cinco anos após a sua
primeira publicação. Marxismo e Teoria da Personalidade,
para além das dificuldades previsíveis de aceitação por que
passou, está a ser portanto, em larga medida, apreendido tal
como foi concebido: uma contribuição filosófica, no sentido
marxista do termo, para o processo multiforme de constituição
de uma ciência.
E é por isso que não será certamente inútil, antes de
examinar, neste novo posfácio, os problemas filosóficos e
científicos surgidos desde a edição precedente, principiar por
resumir as teses e as hipóteses principais do livro, precisan­
do-lhes devidamente o significado. Porque, em mais de um
caso, e é perfeitamente compreensível, surgem mal-entendidos
sobre as ideias que constituem a sua espinha dorsal, nomea­
damente sobre as mais pessoais, como as de justa-estrutura,
emprego do tempo, excentricidade posicionai das necessidades
ou biografia, mal-entendidos esses que a passagem à investi­
gação concreta desvendará de uma forma muito mais segura
do que intermináveis discussões teóricas, e que suscitam outros
tantos impasses e falsos debates. É certo que no estrangeiro
o livro tem apresentado difíceis problemas de tradução que
foram solucionados, segundo _os países, de modo desigual-
POL .Ло d a terceira edlçSo francesa 601

mente feliz. É igualmente certo que mesmo em França a


compreensão exacta de um cpnceito inédito tem vindo a
esbarrar com inúmeros obstáculos. Ser-me-á permitido, con­
tudo, chamar a atenção para o ¿acto de que o resumo que irão
ler das teses e das hipóteses mestras da obra deve ser consi­
derado enquanto tal, e não comp podendo substituir-se, pouco
ou muito, às análises muito mais explícitas e circunstanciadas
feitas em seú lugar no livro, e 'às quais ele remete expressa­
mente?

As ideias fulcrais que são desenvolvidas por Marxismo e \


Teoria da Personalidade podem ser reagrupadas, de uma forma
esquemática, sob três rubricas: a concepção de conjunto do
homem, afora da qual a psicologia da personalidade não pocle
encontrar a via da ciência (A), a concepção da própria'persona­
lidade que daí resulta enquanto òbjecto de ciência, e do tipo de
ciência que corresponde a um tal objecto, a articulação entre
esse objecto específico — a personalidade desenvolvida —
e os outros objectos já constituídos no campo das ciências
psicológicas {B)\ finalmente, apjós estas abordagens externas
de uma psicologia da personalidade articulada com o mate-
rialismo histórico, um esboço, adiantado a título de mera
hipótese de investigação, dos conceitos e leis de desenvolvi­
mento susceptíveis de constituir o conteúdo de uma ciên^__^
cia (O.
A ’— A psicologia da personalidade acessível ao leitor
francês ainda não conseguiu constituir-se enquanto ciência,
porque não podemos considerar pomo ciência efectiva a justa­
posição de teorias parcelares tantas vezes bastante contestá­
veis, e, aliás, com uma grande frequência, estranhas umas às
outras nos seus pressupostos. Ésta situação, em si mesma
grave, considerando a importância teórica universal do pro­
blema da personalidade humana, não o é menos no respei­
tante à psicologia científica no sóu conjunto, de que a psicolo­
gia da personalidade deveria ser, em muitos aspectos, o
elemento terminal da abóbada.
Que a psicologia da personalidade se encontre ainda num
estado pré-científico, particularmente flagrante na bibliografia
predominantemente americana que pontifica, hoje em dia,
em França, tal facto não é, no fundo, seriamente contestado
por ninguém. Mas esta situação raramente conduz a um
39
602 Mi ... smo e teoria da personalidade

reexame crítico radical, na medida em que é usualmente


assimilada a um simples «atraso», que seria simultaneamente
devido à recente origem das investigações e à complexidade
do seu objecto. Esta ((explicação» não pode convencer senão
aqueles que estão antecipadamente decididos a com ela se
satisfazerem. A abundante bibliografia apresentada, por
exemplo, no Traité de psychologie experimentóle, publicado
sob a dirècção de P. Fraisse e J. Piaget, nò capítulo sobre a
personalidade1 inclui títulos datando não só de 1938 (Mur­
ray), 1935 (Lewin), 1934 (Wallon), ou 1932 (Piaget), m a s'
também de 1921. (Kretschemer), 1915 (Freud), 1908 (Hey-
mans), 1906 (Pearson), sem mesmo falar das referências
feitas a Paulhan (1894), James (1890), até mesmo Lavater
(1775), Assim, os trabalhos invocados remontam, numa
importante parcela, ao início dò século; o que prova que a
psicologia da personalidade é, pelo menos, tão velha como
inúmeros outros ramos da psicologia, promovidos à categoria
de ciência no mesmo período histórico, o qual bastou igual­
mente para que várias outras ciências humanas se constituís­
sem,. Longe de seguir a sua curva evolutiva, a psicologia da
personalidade entra em declínio de notoriedade pública ao
nível de" teorizações inconsistentes e já caducas. Equivale
precisamente ao contráriò de uma disciplina em pleno desen­
volvimento mas ainda demasiado jovem para ter já descoberto
as suas bases científicas.
Resta a «complexidade»: noção ingénua, para quem já
entendeu que o electrão é tão inesgotável como o átomo, e
que mascara por completo o verdadeiro problema. A perso­
nalidade humana não é um «objecto psicológico complexo»,
ou seja, a mesma coisa que um objecto psicológico simples
— por exemplo, a individualidade animal — mas muito mais
complicado; trata-se de um objecto-armadilha, de uma natu­
reza declaradamente inédita relativamente àqueles que a
psicologia incorporou em si, com êxito, no decurso do seu
desenvolvimento científico, um objecto intangível sem uma
prévia crítica teórica do conceito que o subtende, o conceito
de homem. Ora esta crítica teórica, no desconhecimento da
qual a psicologia- da personalidade não tem mais hipóteses
de se vir a constituir enquanto ciência do que as tinha a

1 ~P. U. F., 1068, t. V pp. 320,a 234.


Posíàclo d a terceira 7Ü0 francesa 603

química sem a crítica prévia do «ar deflogisticado», já foi


feita, mas num terreno totalmente diferente do da psicologia:
o da história, em toda a dimensão que Marx e Engels deram
a esta ciência.
.--"A"primeira tese em que o livro se baseia é, portanto,
precisamente aquela que funda o materialismo histórico, ou
seja, a V I Tese sobre Feuerbach: «A essência humana não
é uma abstracção inerente ao indivíduo considerado isolada­
mente. Na sua realidade, consiste no conjunto das relações
sociais.» O que se entende do seguinte modo: no seio da
Humanidade desenvolvida, o que faz essencialmente do
homem um homem não é uma coordenada natural existente
em cada indivíduo considerado isoladamente, mas sim um
produto da actividade humana — forças de produção, rela­
ções sociais de todos os tipos, património cultural — acumu­
lado no seio do mundo social ao longo da história. Aí se
_ encontra o resultado capital da hominização, ou seja, da
passagem da animalidade à humanidade: ao produzirem os
seus meios de subsistência, os homens põem em acção não
simples actos psíquicos que se completam e extinguem no
âmbito da sua execução, mas sim meios materiais de pro­
dução — nem que seja, de início, o sílex talhado— que
sobrevivem ao acto produtor, e ao próprio produtor, enquanto
matrizes externas de actividade (um simples machado biface
consiste em toda uma técnica de corte e num gesto utilitário
materializados), e que são, portanto, susceptíveis de acumu­
lação já não no interior do indivíduo, sob a forma de um
património biológico de. aptidões para determinado tipo de
comportamentos, mas sim afora, sob a forma de um patri­
mónio social de objectos e de relações criadas pela anterior
actividade. Ao mesmo tempo, o próprio suporte nervoso dos
comportamentos não é já, pura e simplesmente, o cérebro
enquanto órgão inicialmente existente, mas sim sistemas de
actos cerebrais constituídos no decurso da aprendizagem
social do indivíduo e que constituem, em segundo grau,
verdadeiros órgãos funcionais emancipados da fixação e da
transmissão hereditárias. O utensílio, com as relações sociais
que implica, toma o lugar do cromossoma enquanto forma
de armazenamento da experiência da espécie. Foi precisa­
mente esta acumulação externa dos resultados da actividade,
acumulação simultaneamente rápida e ilimitada, porque
liberta das lentidões da fixação genética e dos limites da
604 Marxismo e teoria <’ personalidade

/ inscrição no seio do organismo individual, que transformou


uma espécie animal, a humanidade, em algo de radicalmente
diferente de uma espécie animal. Bem entendido, tal como
no caso do animal, a actividade psíquica conserva no homem
a forma cíclica de uma relacionação e de uma interacção
entre o indivíduo e o mundo exterior, mas adentro desse
ciclo o pólo dominante sofreu uma deslocação: a uma activi­
dade animal que encontra na natureza do~ indivíduo as suas
determinações essenciais, limitando-se o meio-ambiente a
condicioná-la, substitui-se um tipo de actividade que vai
encontrar essencialmente a sua origem no património social
externo, imprimindo-lhe a individualidade natural unica­
mente a sua marca específica. É esta deslocação fundamental,
esta alteração radical que exprimimos pela fórmula: excentri­
cidade posicionai da essência humana. .
Mas afirmar que a essência humana é posicionalmente
excêntrica relativamente aos indivíduos, equivale a afirmar
que já não é uma realidade de. ordem individual. Donde
uma segunda tese m estrar á essência humana ndo possui a
afor ma humana»\_щ medida em que vulgarmente sé entende
por formarhúmana a forma de um sujeito, a forma psicológica.
A actividade social humana capitaliza-se num património de
objectos e de relações que, do ponto de vista que aqui nos
ocupa; representa psiquismo objectivado sob uma forma não
psíquica, e que não encontra a forma psíquica senão quando
os indivíduos dela se apropriam no decurso do seu desenvolvi­
mento. No âmbito da realidade material deste património
social não existem sentimentos mas sim regulamentos de acti­
vidade, não existe pensamento conceptual mas sim abstracções
tornadas mentalmente conscientes, e assim por diante. Assim,
a essência do psiquismo humano é socialmente objectivada,
enquanto a sua forma psíquica permanece inseparável da
individualidade, com as suas características biológicas; e
só existe originariamente no indivíduo. Ё precisamente este
divórcio entre a essência e a sua forma concreta originária
que constitui o segredo da passagem da humanidade para
uma órbita totalmente diferente da animalidade: tal como a
formação do valor sob a forma, ao mesmo tempo geral e
objectivada, do dinheiro, ao substituir a troca imediata de
duas mercadorias por uma troca mediatizada por um terceiro
termo emancipado de toda a limitação concreta, levou à
desintegração da estreiteza constitutiva da troca e arrastou
Poafâcio d a terceira edlçfio fran cesa 605

a produção mercantil na via de um desenvolvimento univer­


sal, assim a objectivação do psiquismo sob a forma de pro­
dutos sociais substitui a estreita reprodução imediata da indi­
vidualidade animal por uma reprodução mediatizada por uma
forma emancipada das limitações concretas do psiquismo
individual, e, desde logo, indefinidamente passível de se alar­
gar à medida que se forem verificando progressos históricos
da Humanidade.
Vê-se, então, claramente qual a armadilha em que cai
inevitavelmente toda a psicologia da personalidade que julga
poder alcançar directamente a essência do seu objecto — o
indivíduo humano concreto— sem passar previamente pela
ciência dessa essência enquanto tal, ou seja, pela ciência das
relações sociais. Para quem negligencia a relação de essência
entre esses dois domínios parece ser evidente que a personali­
dade humana não passa de uma forma mais complexa da
individualidade animal. Ora, esta última não exige nenhum
desvio teórico prévio para poder ser considerada como objecto
de ciência, pela claríssima razão de que não possui a sua
essência numa posição excêntrica, o que é algo de totalmente
diferente da simples interacção entre o animal e um meio
exterior que, não sendo, de forma alguma, a sua essência,
não nos interessa em si. No âmbito da animalidade, o indi­
víduo coincide essencialmeníe com a espécie e contém, por­
tanto, a sua essência em si mesmo. Não esconde, por conse-
quência, nenhum tipo de armadilha epistemológica e pode,
com todo o direito, ser considerado em si mesmo como
objecto de ciência. Que tal seja igualmente válido no respei­
tante à Humanidade é que já não passa de mera aparência.
É por isso que, por exemplo2, o capítulo do já citado Traité
de psychologie expérimentale intitulado «A estrutura da per­
sonalidade», considera inútil consagrar mais do que umas
quantas linhas às definições e observações prévias: «O termo
’personalidade’ tem sido definido de múltiplas formas e Allport
(1949) menciona cinquenta definições diferentes. No entanto,
essas diferenças não respeitam ao objecto específico do nosso
estudo, mas sim à sua conceptualização, e reflectem portanto,
as divergências dos pontos de vista teóricos dos autores. No
que respeita a este capítulo, em que teremos por tarefa expor

2 Exemplo que nSo é, de modo algum, tópico, mas, bem pelo con­
trário, largamente Intennutâvel.
606 Marxismo e teoria d a personalidade

os conhecimentos actuais sobre a estrutura da personalidade,


podemos limitar-nos a definir o objecto cuja estrutura iremos
estudar. A definição da sua natureza não pode ser senão o
fruto ,das investigações, não podendo, portanto, precedê-las.
Quanto a esse objecto, ele é, pura e simplesmente, o homem
concreto tal como o encontramos na rua, no trabalho ou
durante os seus lazeres. Entendemos, portanto, sob a denomi­
nação de personalidade, a totalidade psicológica que caracte­
riza um homem singular. A personalidade não é, pois, uma
abstracção, mas sim esse ser vivo que observamos do exterior j
ou que sentimos do interior e que difere de um indivíduo
para outro. A psicologia da personalidade deve, portanto, ter
sempre em conta as diferenças individuais e tem por fim defi­
nidas, com a maior exactidão, e explicá-las.» 3
Infelizmente, aquilo que se nos apresenta «pura e simples­
mente» como sendo «o homem concreto» tal como o ((encon­
tramos na rua» ou mesmo «no trabalho» é precisamente o
oposto daquilo que aparenta ser: trata-se de uma abstracção
pura e simples, porque toda a actividade constitutiva da sua
vida se encontra inserida em circuitos sociais que lhe impõem
a sua lógica, a qual não vai passear com ele para a rua, não
se encontra armazenada na sua banca de trabalho ou no seu
escritório, e cujo estudo prévio é, contudo, rigorosamente
indispensávle para quem pretende «explicar» a sua personali­
dade. Melhor: o próprio facto de haver uma personalidade, e
não simplesmente uma individualidade, como no caso do
animal, é, positivamente, inexplicável à margem do facto
/ / de que, acumulando-se afora dos indivíduos, o património
social, posicionalmente excêntrico, da Humanidade ultrapassa
t} enormemente, numa medida sempre crescente, aquilo que
à um indivíduo dele pode assimilar adentro, dos limites da sua
existência, de modo que os homens se encontram votados,
devido à sua posição, a uma infinita diversificação na sua
forma singular de se hominizarem. A personalidade não é
essencialmente uma «maior complexidade» da individualidade
biológica, sendo sim, de parte a parte, o efeito da biografia,
que é, éla própria, fundamentalmente determinada pelas
relações sociais e pela sua lógica. Procurar as «leis da perso-*

* Fjr. 167 e 168.


Fosfüclo d a terceira edição francesa 007

nalidade humana» tomando por objecto «o homem concreto»


considerado em si — a partir do instante em que é considerado
em si deixa, justamente e por completo, de ser concreto, no
sentido mais profundo do term o— tem tantas hipóteses de
vir a resultar científicamente como procurar explicar o valor
mercantil de um lingote de ouro «concreto» considerado em ,
si, ou seja, por meio da sua análise química. Donde urna / л - ;
terceira tese: a psicologia da personalidade ou bem que acar / h '.
bará por compreender que se encontra numa posição radical- /
mente secundária relativamente à ciência das relações sociais,
ou, caso contrário, deixará de existir. Aí se situa, com toda ! A (Z~
a evidência, o Rubicão que inúmeros psicólogos se recusam r ^
ainda a transpor. Isso pode compreender-se, se pensarmos na/
história da psicologia. Nos países capitalistas como a França,
a psicologia não pôde constituir-se enquanto ciência senão
à custa de uma dura luta de emancipação relativamente à
filosofia reinante, ou seja, na realidade, a todas as mais varie­
gadas formas de especulação idealista, e daí guardou em si
um sentimento de hostilidade para com toda e qualquer filo­
sofia, que, em mais de um caso, chega a atingir a fobia.
Desgraçadamente para ela, esta recusa de ouvir o que quer
que parta da filosofia, institucionaiiza-se precisamente quando v
a filosofia, no que esta possui de melhor, fundou uma ciência
capital, a ciência da história, a ciência das relações sociais
fundada por Marx e Engels, ou seja, no instante preciso em
que a psicologia pode, finalmente, encontrar na ((filosofia»
— num sentido intrinsecamente novo do termo — já não um
entrave, mas sim um ponto de apoio decisivo. É um pouco
como se um povo, longámente colonizado, e só tendo conse­
guido conquistar a sua independência à custa de uma luta
encarniçada, não quisesse voltar a ouvir falar de nenhuma
relação com a sua antiga metrópole capitalista precisamente
quando esta, libertada do capitalismo peia revolução, estaria,
finalmente, em condições de lhe fornecer uma ajuda desin­
teressada, estranha a todo o tipo de segundas intenções colo­
nialistas. Ser-nos-á permitido observar, a este respeito, que
fomentar, sem motivo, um anticolonialismo contra uns é
uma das principais artimanhas neocolonialistas de outros?
Relembremos, à guisa de corolário à nossa terceira tese, estas
linhas, sempre actuáis, de Engels: «Aqueles que mais vitu-
60Ô Marxismo e teoria da personalidade

регат a filosofia são precisamente os escravos dos piores


e mais banais refugos das piores doutrinas filosóficas.» 4
В — De tudo o que ficou dito atrás ressalta claramente,
segundo me parece, que, contrariamente ao que afirma o
autor do Tratado citado mais atrás, nada é mais necessário do
que principiar por esclarecer os problemas de «conceptuali -
zação» da personalidade, em vez de os remeter para o bru­
moso reino das «divergências de pontos, de vista teóricos»
entre psicólogos. Julgar que basta, a uma ciência, «ver» o
seu objecto («encontrá-lo na rua») a fim de saber o que este
é, e em cuja base há, portanto, lugar para procurar reunir
«conhecimentos», equivale realmente a fazer tábua rasa de
toda a história das ciências, que nos ensina de que modo, com
tanta frequência, estas passaram o seu tempo a «ver» coisas
que não existem, como o flogístico, o éter ou a raça, enquanto
não conseguiram compreender aquilo que deviam ver para
além dessas primitivas ilusões, ou seja, enquanto não «con-
ceptualizaram» o seu objecto. E a conceptualização da perso­
nalidade psicológica é tanto mais indispensável quanto, tanto
na maioria das línguas como em francês, o que o termo perso­
nalidade evoca, de imediato, situa-se num terreno totalmente
diferente, o da importância social («as personalidades pre­
sentes...»), da afirmação de si («possuir uma forte personali­
dade» )y ou dos dois ao mesmo tempo — enquanto no ter­
reno do vocabulário • psicológico reina a maior confusão
entre personalidade, individualidade, carácter, temperamento.
Do que é que se pretende, ao certo, elaborar a ciência, quando
nos propomos edificar uma psicologia da personalidade?
Enquanto esta questão primordial não tiver recebido uma
resposta clara, e coerente com tudo o que foi indicado no
ponto A , a psicologia da personalidade, permitimo-nos pro­
fetizá-lo, permanecerá no aflitivo estado em que ainda hoje
se encontra.
Ora, para compreender de que forma a psicologia cientí­
fica, e mais precisamente a psicologia experimental, concep-
tualiza implicitamente o que denomina por personalidade, é,
de facto, necessário poder ver a partir de que tipo de investi­
gação ela o encontra. O seu objecto específico, tal como ela
mesma o afirma, são os comportamentos. Sensação, aprendi-*

* Dialectique de la nature, Ed. Sociales, p. 21Г.


posíáclr a terceira edlçSo francesa €09

zagem, emoção, inteligência, linguagem, etc., tais são os


objectos que constituem o conteúdo de um tratado de psicolo­
gia experimental. Ao reter enquanto objecto de estudo, no
âmbito do ciclo total da actividade dos indivíduos concretos,
o instante do comportamento, efectuou-se antecipadamente
_talvez sem disso nos apercebermos — uma delimitação teó­
rica repleta de implicações de uma vasta amplitude. Suponha­
mos, a fim dé o pôr em evidência, que uma determinada psico­
logia decidiria, por exemplo, dedicar-se ao estudo não dos com­
portamentos humanos mas sim da vida de cada indivíduo, ou
seja, das relações singulares que se estabelecem e transformam
entre os seus conhecimentos, a sua profissão, os seus rendi­
mentos, os seus laços familiares, as suas relações com a
política, as suas ideias sobre a vida, etc. Passaria, então, a
ter por objecto ciclos concretos de actividade que, é certo,
passam necessariamente pelo instante do comportamento
psíquico, mas cujo conteúdo essencial é determinado numa
base totalmente diferente: a das relações sociais. Que os
conhecimentos de um indivíduo sejam desvalorizados pela
revolução científica e técnica, a sua profissão suprimida pela
reconversão económica, os seus rendimentos abalados pela
inflação, os seus laços familiares afectados pela crise moral
do capitalismo estrebuchante, as suas ideias sobre a vida
mistificadas pela idoelogia dominante, etc., tudo isso, que
afecta, de uma forma capital, a sua existência, a sua persona­
lidade, revestirá nele, bem entendido, a forma dos comporta­
mentos equivalentes — sensações, aprendizagens, emoções,
etc.—, mas não poderia com toda a evidência, ser explicado
por intermédio das leis dessa forma; esta surgirá unicamente
como sendo uma condição geral de possibilidade, um subs­
trato formal sem alcance determinante quanto ao conteúdo
concreto, essencial dessas actividades e dessa existência. Ao
decidir ocupar-se dos comportamentos, a psicologia experi­
mental efectúa uma investigação oposta. O que ela promove
ao nível de objecto essencial é a própria forma psíquica que
a actividade adquire no seio da generalidade dos indivíduos,
sendo, então, vida concreta, de que constitui a forma, redu­
zida ao nível de um qualquer conteúdo, e as relações sociais
que a regem ao de um simples conjunto de factores condi­
cionantes. Se estudo a emoção ou a inteligência enquanto
funções psíquicas, formas gerais de comportamento, pouco
me importa, evidentemente, saber que tipo de situações con-
ею Marxi' • е teo ria da personalidade

traditórias, que ocasiões singulares para urna tomada de cons­


ciência vêm a adquirir, na vida deste ou daquele individuo,
a forma de uma emoção ou de um acto inteligente; a única
coisa que me interessa é saber em que consistem esses
comportamentos considerados isoladamente, tendo em conta
as características formais das situações fornecidas, regra geral,
pela experiência, O que constitui objecto essencial, adentro
de uma das perspectivas adoptadas, toma-se, na outra, numa
simples forma não essencial, e reciprocamente. O mesmo
acontece no respeitante às relações entre a história, segundo
a acepção marxista, e uma concepção largamente difundida
da sociologia: a segunda não retém, por princípio, no seio do
desenvolvimento das sociedades singulares, senão estruturas
ou funções gerais que, para a primeira, não passam de simples
formas mais ou menos abstractas pelas quais passa o desen­
volvimento histórico da Humanidade, única realidade essencial.
Mas esta psicologia dos comportamentos e das funções
■não pode evitar, de quando em quando, pensar no homem,
que executa todas essas funções, detém todos esses comporta­
mentos. Evidentemente que o homem para o qual remetem
funções e comportamentos gerais não pode ser, em si mesmo,
senão um homem em geral, um indivíduo abstracto — e, desse
modo, .essa psicologia que se julga nos antípodas de toda a
filosofia, no terreno da mais pura ciência experimental, não
está longe de retomar, por contra própria, a diligência teó­
rica central de todo o humanismo especulativo, de toda a
concepção naturalista da essência humana. Ao mesmo tempo,
o indivíduo concreto deixa de ser alvo da atenção por si
mesmo — por si mesmo, já não evoca senão o indivíduo-tipo
da psicologia geral, que se apercebe de tonalidades, localiza
lembranças ou apreende intelectualmente umas quaisquer
relações — para só o passar a ser pelas suas diferenças, o que
equivale a afirmar que aquilo a que é aqui chamado psico­
logia da personalidade também já não é uma ciência por si
mesma, mas apenas o simples corolário diferencial da psico­
logia geral. É o que afirma abertamente o parágrafo intro-
dutivo citado mais atrás: a psicologia da personalidade ba­
seia-se nas diferenças individuais, «tem por fim defini-las,
com a maior exactidão, e explicá-las». Os conceitos refe­
renciais da psicologia diferencial são, portanto, necessaria­
mente, os mesmos que os da psicologia geral: os caracteres
ou factores que subentendem, as suas classificações tipoló-
Posfácio da terceira ediçà .ranceea 911

gicas remetem para as funções e os comportamentos. Encon­


tramo-nos aqui no terreno das sólidas verdades do tipo: o
homem em geral possui sempre uma emotividade, mas esta
é maior ou menor consoante os indivíduos. Em contrapar­
tida, não poderia estar em causa para ela ocupar-se de
tactos como o salário ou a prática política, pela óptima razão
de que a psicologia geral nunca encontrou nada de seme­
lhante no seu terreno, que é o das formas comportamentais
da actividade. Todo o conteúdo da existência concreta dos
indivíduos vem, portanto, a encontrar-se à margem do
campo dessa pretensa ciência da personalidade. A relação
entre o indivíduo e o conteúdo da sua existência surge como
sendo uma relação entre uma estrutura autónoma e um fluxo
de actividades contingentes que a atravessam, e que, não o
negamos, podem especificar, até mesmo modificar essa estru­
tura, mas que, em si mesmas, continuam a ser-lhe estranhas.
Assim concebida, uma tal estrutura remete inapelavelmente
para uma natureza — particularidades somáticas e tempera­
mentais inatas ou adquiridas, constituição precoce de um
carácter mais ou menos irreformável, etc.— e para tudo o
que lhe pode ser assimilado num mundo social reduzido às
proporções de um meio natural «mais complexo», ou seja,
a «constantes» como a linguagem ou a relação entre os
sexos, com exclusão de uma verdadeira história.
A dupla consequência de toda esta conceptualização mais
ou menos implícita consiste em que uma psicologia deste
tipo fracassa na tentativa de explicar realmente a persona­
lidade, e renuncia às perspectivas de a transformar. Que fra­
casse na tentativa de a explicar, tal facto é muito clara­
mente demonstrado pelo estado teórico de estagnação em
que vegeta, o qual, mesmo se supuséssemos como sendo a
priori válidos os seus esparsos materiais (e, aliás, frequente­
mente contraditórios entre si), é dominado pela ausência de
uma teoria de conjunto e de leis gerais — situação que vol­
tamos a encontrar, de uma forma, aliás, bastante significa­
tiva, no terreno daquilo a que chama a motivação, ou seja,
em suma, a questão do motor da actividade pessoal. De que
forma, com efeito, uma psicologia que logo à partida separa
a actividade humana da sua essência social posicionalmente
excêntrica, logo, das suas contradições motrizes essenciais,
para dela só reter as formas psíquicas pelas quais esta passa,
poderia aperceber-se do movimento do seu objecto? Não é
612 Marxismo e teoría d a p ^ ^ n a lid a d e

evidente, por exemplo, que a forma específica como um deter­


minado tipo de organização social coloca biográficamente
os indivíduos em relação com o imenso património social a
partir do qual sè desenvolvem, a forma como facilita e esti­
mula ou, pelo contrário, entrava e desencoraja as activida­
des de apropriação -multiforme desse património pelos indi­
víduos, .determina, até aos seus mais profundos recônditos,
o dinamismo das suas personalidades? E se se principiou por
colocar entre parêntesis, como sendo «não psicológicas»,
essas estruturas objectivas da biografia, haverá necessidade
de, posto isso, nos espantarmos por uma teoria de conjunto
da motivação permanecer por descobrir? Incapaz de encon­
trar, no seu terreno, os materiais essenciais a uma tal teoria,
e desconhecendo por completo o terreno do materialismo
histórico, em que os poderia ir frutuosamente procurar, a
tipología formal a que se reduz, na realidade, essa psicologia
da personalidade, chama a si, enquanto complementos obri­
gatórios, teorias — desde o biologismo das pulsões até à
teoria da interacção superficial com um «meio ambiente
social» genérico— que remetem todas, em maior ou menor
medida, para a «natureza», e que a nossa psicologia expe­
rimental, tão justamente severa para com a especulação filo­
sófica, não pode levar científicamente a sério senão fechando
os olhos perante a fragilidade confusionista das suas bases.
De uma forma bastante semelhante, uma sociologia que
coloca, de imediato, entre parêntesis o conteúdo concreto
da história, a dialéctica da luta de classes, para não reter
da vida das sociedades senão certas formas mais ou menos
gerais de organização òu de funcionamento, mascara-se ine­
vitavelmente com toda uma mitologia do «dinamismo social»,
quer vá buscar os seus materiais à geopolítica, a considera­
ções de ordem racial ou a um culturalismo vagamente psica-
nalítico. Pode-se, portanto, falar realmente de fracasso expli­
cativo desde formalismo psicológico relativamente à perso­
nalidade, fracasso esse que não é senão a outra face de uma
atitude conservadora, a qual é, aliás, com bastante frequência,
inconsciente. Porque despojar a personalidade humana da sua
dimensão intrinsecamente histórica, logo, das suas imensas
perspectivas de transformação e de desenvolvimento inte,
gral no seio de certas condições históricas em si mesmas modi­
ficadas, equivale a representá-la, fraudulentamente, como
sendo cativa por natureza dé estruturas ((eternas» que, na
Posíácio da terceira edição fran cesa 613

realidade, não passam, em parte, senão das estruturas nela


induzidas por uma sociedade alienante perfeitamente transi*
tória. Descrição e classificação dos «tipos» só podem, nesse
caso, possuir um sentido muito concreto: contribuírem para
a adaptação dos indivíduos a estruturas apresentadas como
intangíveis, em vez de contribuírem para a sua transformação.
A lógica da psicologia diferencial é, ao fim e ao cabo, a de
ir parar aos impasses da psicotécnica, contra a qual um livro
recente, que, contudo, não se inspira no marxismo, apre­
senta um edificante requisitório5.
Daí um segundo grupo de teses que, no prolongamento
das teses filosóficas resumidas mais atrás, constituem a base
da teoria da personalidade pela qual se bate este livro. E, em
primeiro lugar, uma tese apresentada na negativa: se não se
começar por reduzir arbitrariamente a personalidade humana
a certas das suas formas psíquicas, nem tão-pouco às forma­
ções infantis que a precedem, aquilo que merecia chamar-se
ciência da personalidade ainda não existe. O que hoje em dia
nos propõem sob esse nome não passa, na realidade, senão
de tipologías formais mais ou menos contestáveis, ou, num
outro plano, de teorias das estruturações que se operam no
âmbito das fases iniciais da biografia, ou seja, numa altura
em que a lógica de uma actividade, de índole social, posicio-
nalmente excêntrica, ainda não intervém senão de uma forma
indirecta ou limitada, e em que, por consequência, podem
bastar certos esquemas explicativos baseados na relação inter­
pessoal, nomeadamente familiar. Trata-se, portanto, neste
livro de algo de totalmente diferente de uma tentativa para
acrescentar um quinquagésimo primeiro sentido às cinquenta
acepções mencionadas por Allport, e segundo as quais pode
conceber-se um conceito de personalidade que é, na reali­
dade, semelhante, no concernente ao essencial, ao de indivi-
i dualidade. O que está em causa é, pelo contrário, a constitui­
ção de uma nova ciência, correspondente a um objecto espe­
cífico, ainda não reconhecido pela psicologia existente — e
que Politzer entrevia, tacteando ainda no escuro, um pouco
às cegas, quando reclamava a fundação de uma ciência do
«drama», isto é, da actividade humana concreta. Chamo a
• esse objecto personalidade, e entendo por tal o sistema total
Ír __________
, 5 Cf.Les Paychopitres, de M. de Montemolliu, F. U. F-, 1972.

i
614 Marxismo e teoria d a personalidade

da actividade de um determinado individuo, sistema esse que


se constitui e desenvolve ao longo de toda a sua vida, e cuja
evolução constitui o conteúdo essencial da sua biografia.
A personalidade não se reduz, de forma alguma, à individua­
lidade, ou ao conjunto das particularidades formais do psi­
quismo de um indivíduo, quer essas particularidades remetam
para condições biológicas em si mesmas independentes da
actividade pessoal e para certas estruturações infantis que
a precedem, ou que, pelo contrário, não possam explicar-se
* senão por intermédio da lógica específica dessa actividade.
'AT' personalidade é o conceito científico que corresponde à
unidade profunda destas duas simples fórmulas: o que um
homem faz da sua vida, o que a sua vida fez dele. Este con­
ceito encontra-se no prolongamento directo do uso que
Marx faz, por várias vezes, do termo (Persônlichkeit) no
âmbito do terreno económico e histórico, quer defina a força
de trabalho como sendo «o conjunto das faculdades físicas
e intelectuais existentes no corpo de um homem, na sua per­
sonalidade viva»6, quer caracterize a sociedade burguesa
como sendo uma sociedade em que «o capital é independente
e pessoal, enquanto o indivíduo que trabalha não possui
nem independência nem personalidade» 7, de modo que os
proletários devem «derrubar o Estado a fim de realizarem
a stia personalidade» 8. Por outras palavras, trata-se de edi­
ficar uma ciência da biografia profundamente homóloga à
ciência da história fundada por Marx e Engels, e que cons­
titui, aliás, a sua base, sendo a biografia para a personalidade
o que a história é para a sociedade. Será apenas necessário
sublinhar que caso não se entendam estes conceitos no sentido
muito preciso que acaba de ser referido, cometer-se-iam,
relativamente a Marxismo e teoria da personalidade, os mais
absolutos contra-sensos interpretativos, a começar pelo seu
título.
Mas se a personalidade, assim distinguida da individua­
lidade que encontramos tanto no animal como no homem,
remete para a actividade do indivíduo e, desse modo, para
as relações sociais que a subentendem, em que é que se rela­
ciona com a psicologia? Questão que é não só legítima como

в Le Capital, Éd. Sociales, I, 1. p. 170.


7 Manifeste du parti communiste, fid. Sociales, p. 50 .
*- L’idéologíe allemande, Ш. Sociales, p. 96.
P o síá c io d a te rc e ira edição fra n c e sa 6X5

também inevitável para quem está habituado a identificar


toda a psicologia possível com a psicologia existente, logo,
a admitir a ideia, na realidade extraordinariamente arbitrá­
ria. de aue o conteúdo mais essçnci^l da nossa vida deveria
permanecer indiferente a uma ciência cujo objecto, segundo
as suas afirmações, é «o homem concreto». Na verdade, não
é demasiado difícil compreender de que modo os aconteci­
mentos essenciais da biografia se relacionam com um estudo
psicológico, com a condição prévia de que se parta das teses
filosóficas expostas mais atrás a respeito da essência humana,
ou seja, de que se tenha presente no espírito a concepção
científica que revela, em última análise, a coincidência da
lógica das relações da actividade individual com a das rela­
ções sociais. A própria psicologia do comportamento estuda,
é certo, as relações naturais, isto é, que advêm da sua natu­
reza de condutas — por exemplò, aquelas que se estabelecem
no decurso de uma aprendizagem entre a actividade repetida
e os seus resultados imediatos para o indivíduo—, donde
o enunciado de leis de aprendizagem. A ciência da persona­
lidade que está aqui em causa tem por fim ocupar-se das rela­
ções entre as próprias actividades — e já não entre as condu­
tas, ou seja, unicamente entre as formas psíquicas destas acti­
vidades— e estas relações são já não naturais, mas sim
sociais, porque resultam do facto de que os actos do indivíduo
são constantemente mediatizados por processos do mundo
social que lhes impõem as suas leis — por exemplo, as rela­
ções que a economia capitalista estabelece, sob as aparências
do salariado, entre remuneração do trabalho e forma-valor
da força de trabalho, relação esta totalmente estranha às leis
psicológicas da aprendizagem e que, embora exerça os seus
efeitos na personalidade por intermédio dessas leis, lhe im­
prime uma lógica de crescimento (ou de estagnação) de uma
natureza totalmente diferente. As relações sociais entre
as actividades do indivíduo são, com toda a evidência,
relações psicológicas, no sentido em que constituem a base
da dinâmica mais profunda da sua personalidade, mas essa
dinâmica, longe de ser naturalmente inerente ao «psiquismo
humano», reflecte, em última análise, as relações caracterís­
ticas de uma dada sociedade. É por isso que, embora a psico­
logia do comportamento se báseie, em última instância, nos
dados da neurofisiologia, a psicologia da personalidade
encontra, no seu caso, as suaS bases últimas no âmbito da
ciência das relações sociais, e, em particular, no estudo — a
616 Marxismo e teoria d a personalidade

desenvolver — das formas histórico-sociais de individualidade,


matrizes objectivas de actividade dos indivíduos — desde a
relação monetária até às relações de classe— a partir das
quais terá de elaborar a representação dos processos de acti­
vidade constitutivos da vida pessoal.
Assim agindo, a psicologia da personalidade será uma
psicologia geral ou uma psicologia diferencial? Se se tiver
compreendido o que ficou dito, compreender-se-á igualmente
que esse dilema perde todo o seu sntido em relação a uma ciên­
cia deste tipo, ou seja, a uma ciência do singular. É certo que
a psicologia experimental, e, mais genericamente, as ciências
experimentais que se têm vindo a constituir desde há mais
de três séculos, a partir do modelo da física clássica, inteira­
mente fundamentadas na redução' do real a generalidades
abstractas, constituem todo um mundo de pensamento de tal
modo afastado da noção dialéctica de ciência do singular
que esta última passa frequentemente, aos seus olhos, por ser
uma monstruosidade epistemológica — indício suplementar
de que toda a ciência implica ópticas próprias — ou precon­
ceitos de visão — de índole filosófica, sendo específico daquela
que o nega o implicá-las sem saber, ou seja, da pior forma. Na
verdade, se se considerarem certas realidades negligenciando
as suas diferenças essenciais, e se se tiver unicamente por fim
conhecer-lhes as propriedades a fim de as utilizar tal como
são, e não de as transformar, basta, para elaborarmos uma
sua ciência, que raciocinemos na base de um «objecto geral»
simplificado, de que estas realidades singulares serão apenas
exemplos mais complexos sob este ou aquele aspecto. O con­
ceito científico remete aqui para uma generalidade abstracta,
ou seja, para um objecto-tipo, e, por definição, o objecto
singular enquanto tal vem a encontrar-se à margem da ciên­
cia. É assim que procede, fundamentalmente, a psicologia
experimental: para ela, a actividade dos indivíduos é ¿esen­
cialmente redutível a comportamentos gerais; tudo se passa,
portanto, como se a essência humana fosse inerente ao indi­
víduo considerado isoladamente — donde o naturalismo que
encontramos sempre, pelo menos, subjacente a esta psi­
cologia. Quanto ao indivíduo singular, este não pode ser
apreendido pela ciência senão na medida em que for rela­
cionado com uma certa generalidade, mediante o expediente
de uma classificação tipológica.
posfácio da terceira edição francesa 617

Mas, se a ciência da generalidade abstracta corresponde


a um aspecto limitado da realidade, ela fracassa, por defi­
nição, na tentativa para explicar essa essência abstracta que
parece habitar o concreto, e, muito mais obviamente, em
captar as suas diferenciações internas, as suas transforma­
ções qualitativas, o seu movimento. A fim de captar científi­
camente todo este conjunto é necessário ultrapassar o ponto
de vista limitado do objecto geral, que não passa, em si
mesmo, na medida em que exista, senão de um efeito de
relações bem mais essenciais, de processos geradores bem mais
profundos. É precisamente aí quê reside o ensinamento
capital que dimana da ciência da história fundada por Marx
e Engels, e sobre a qual não vemojs, decididamente, porquê
ó que a psicologia se absteria de reflectir: captar o necessário
desenvolvimento das formações sociais não equivale -a redu­
zi-las à abstracção de uma sociedade em geral — bem pelo
contrário, o marxismo faz justiça a esta mistificação ideoló­
gica que equivale ao eternizar das condições da sociedade
actual —, mas sim a pôr em evidência as relações e processos
fundamentais através dos quais cada sociedade singular se
torna naquilo que é. Não equivale aò construir de um modelo
substancial de sociedade, mas sim ao definir da topologia
da produção, reprodução e transformação das formações
sociais concretas, topologia esta que não é, em si mesma, uma
generalidade escamoteadora, mas sim algo que se modifica
ao longo da história. No âmbito de uma tal ciência, em que
o conceito remete não para uma coisa, más sim para uma
relação produtiva, o individual pode ser captado científica­
mente, ou seja, por inteiro, através de uma conceptualização,
mas adentro da sua singularidade,, visto que esta conceptua­
lização não equivale ao identificá-lo com um objecto geral
mas sim a fornecer os materiais racionais da sua lógica con­
creta, Tal é, com toda^ a evidência* a investigação científica
que convém a uma psicologia da personalidade, ou seja, as
próprias palavras o revelam, a uma ciência do individual:
elaborar não o modeo substancial dp homem em geral, pas­
sando apenas a ter de referenciar, negativa e superficial­
mente, relativamente .a ele, «diferenças individuais», ou a re­
meter o «caso singular» para uma apreciação clínica mais ou
menos intuitiva, mas sim a topologia da produção, reprodu­
ção e transformação da personalidade no seio de determi­
nadas condições histórico-sociais e, desse modo, tornar possí-
40
618 Marxismo e teo ria d a personalidade

vel a captação da lógica concreta de uma personalidade con­


creta, Urna tal ciência tem hipóteses de ser verdadeiramente
explicativa — ou seja, de se aperceber efectivamente da essên­
cia do seu objecto — e, num mesmo movimento, transforma-
dora e revolucionaria, isto é, apta, no âmbito da sua própria
concepção, a tornar patente a via para um integral desen­
volvimento superior das personalidades adentro de condições
sociais revolucionariamente alteradas.
Que esta psicologia seja uma ciencia manifestamente iné­
d i t a — ainda que, uma vez elaborado o seu projecto em toda
a sua amplitude, nos apercebamos melhor de quantos mate­
riais se encontram já a postos, por aqui e por ali, para a sua
execução prática — tal não implica, contudo, a recusa de
nenhum dos dados auténticamente científicos que puderam
ou poderão ser adquiridos de outro modo, mas assinala,, simul­
taneamente, problemas de articulação entre realidades dis­
tintas. O reconhecimento desta articulação, longe de ser uma
espécie de compromisso ideológico entre diferentes perspecti­
v a s teóricas, reflecte uma coordenada histórica e psicológica
fundamental: á passagem da animalidade à humanidade, conti­
nuamente reproduzida, de uma certa forma, no seio da homi-
nização psíquica de cada parcela de ser humano. Porque, se
é efectivamente-verdade que a personalidade humana é algo
de totalmente diferente da simples individualidade, não
deixa, por isso, de ser, no seio da sua própria forma, um seu
efeito, transformando-se aí a lógica das relações sociais em
lógica da biografia. Sendo uma produção histórica e ontogé­
nicamente mais tardia, engendrada pela excentricidade posi­
cionai, de índole social, dos circuitos da actividade humana,
a personalidade vem, portanto, enformar uma individualidade
preexistente¿ e, se a subordina a si de uma forma mais ou
menos completa e contraditória, a individualidade não deixa,
por isso, de permanecer como o suporte necessário da activi-
dade pessoal. Foi esta relação que eu designei pelo conceito
novo de justa-estrutura, vindo a personalidade engrenar-se,
de certo modo lateralmente, nas relações sociais que desem­
penham, relativamente a si, o papel de base, mas no âmbito
das quais, contudo, ela não encontra o próprio suporte da sua
existência, o qual reside na individualidade biológica. A fim
de não nos equivocarmos sobre a dialéctica de uma tal arti­
culação, importa primordialmente não confundir o suporte
de uma realidade — ou seja, a realidade prévia de que provém
posfácio d a terceira edição fraru. -a, 619

e que permanece como sendo a sua condição de possibili­


dade— e a sua base, ou seja, as relações específicas que a
determinam funcionalmente no âmbito da sua essência.
Ё assim que as condições geográficas são o suporte de toda
a vida social, mas que a sua base real reside no modo de
produção. O erro fundamental daquilo que é, hoje em dia,
apresentado como sendo a psicologia da personalidade está
em confundir, quase que sistematicamente, o suporte da indi­
vidualidade. Mas dissipar esta confusão e sublinhar o papel
determinante da base não obriga, de forma alguma, a que
se percam de vista as reacções secundárias exercidas pelo
suporte sobre a base — logo, o possível contributo de uma
tipología formal. O problema é ainda mais complexo quando
se trata de pensar as interacções entre a base da personali­
dade desenvolvida e as estruturações mais precoces de uma
actividade, nomeadamente infantil, ainda incompletamente
marcada na sua essência pela excentricidade posicionai, de
índole social. Mas,, seja qual for a forma como essas estru­
turações infantis possam vir a reflectir-se na personalidade
desenvolvida, podemos estar certos de que o seu movimento
essencial permanece determinado pela lógica objectiva da sua
actividade actual, tal como o movimento essencial de uma
formação social, seja qual for a forma como nela se vierem
a reflectir os modos de produção por que tiver passado, per­
manece determinado pelo seu actual modo de produção. E é
por isso que a teoria da personalidade desenvolvida surge
efectivamente como devendo constituir o centro do campo das
ciências psicológicas.
C — As teses resumidas até aqui convergem todas para
a constituição, considerada necessária, de uma nova ciência
que possa corresponder auténticamente à denominação de
psicologia da personalidade. Mas elas limitam-se a elaborar
dp exterior o conceito de uma tal ciência, a precisar a sua
localização no campo das ciências do homem. Visam, por­
tanto, a psicologia, mas unicamente a partir do terreno e
segundo a investigação do filósofo, no sentido marxista do
termo, ou seja, nomeadamente, na base dos ensinamentos
gnosiológicos da dialéctica materialista e dos ensinamentos
antropológicos do materialismo histórico. A estas teses de
filosofia das ciências. Marxismo e Teoria da Personalidade
acrescenta um certo número de hipóteses, formuladas a título
meramente indicativo, sobre o que poderiam ser os concei-
620 M arxism o e te o ria d a p erson .ade

tos constitutivos do conteúdo dessa ciência, bem como sobre


outros aspectos. Estas hipóteses indicativas, que, por defini-
ção, não são o produto de uma prática experimental, que
permanece por instaurar no respeitante ao essencial, foram
simultaneamente, elaboradas numa base empírica e a partir de
conjecturas teóricas.. Podem sugerir de uma forma mais con­
creta, àqueles que venham a adoptar integral ou parcial­
mente as teses precedentes, qual o tipo de conhecimentos que
essa psicologia da personalidade seria susceptível de fornecer,
e em que direcção seria possível procurá-los. É, aliás, o papei
que começam a desempenhar graças à iniciativa de diversos
investigadores. É perfeitamente evidente que é unicamente
na base de investigações e de validações experimentais que
elas poderiam vir a ser convertidas em reais hipóteses de
trabalho, ou, pelo contrário, abandonadas e substituídas por
outras.
Em toda a ciência, os conceitos de base preenchem uma
função teórica decisiva. Em virtude de tudo o que ficou dito,
facilmente se compreende que os conceitos de base da psi­
cologia da personalidade não poderiam ser iguais aos da
psicologia do comportamento, a começar pelo próprio con­
ceito de comportamento. Os comportamentos, poder-se-á
afirmar, são aquilo a que se reduz a actividade quando dela
abstraímos toda a sua parte, de índole social, posicionalmente
excêntrica. Assim, a actividade de um operário reduz-se a um
conjunto de comportamentos sensorio-motores, de aprendi­
zagens, de reacções emocionais, etc., se dela abstrairmos as
relações mediatizadas pelas estruturas da economia capita­
lista,. como aquelas que existem entre o seu trabalho e o seu
salário, estruturas essas que induzem na sua personalidade
as contradições características das sociedades onde reina a
exploração. A actividade pessoal não é, portanto, composta
por comportamentos, mas sim por actos, considerados no
âmbito do seu circuito total e adentro do conjunto dos seus
efeitos, tanto no seio do mundo social como no da própria
personalidade. Os actos são os elementos pertinentes — e,
segundo parece, os únicos pertinentes— da delimitação
teórica da biografia. E conhecer uma personalidade equivale,
em primeiro lugar, a conhecer o conjunto dos actos que com­
põem a sua biografía. O conceito de acto introduz-nos, de
imediato, nas contradições mais elementares da personalia
dade, e, para começar, na-seguinte: ele é, por um lado, o
tò А с
яy*$>
L ^
posfácio da terceira ediç&o francesa 621

acto de um indivíduo, uma expressão desse indivíduo, mas,


^or outro, é um acto ш determinado mundo soem , uma
expressão das condições históricas objectivas. Esta dualidade
5ntém em si a possibilidade formal de todos os tipos de opo­
sições no seio da actividade, facto que a psicologia da per­
sonalidade tem por tarefa primordial a missão de analisar, c
por outro lado, o acto põe em prática uma capacidade, seja
eia qual for e seja qual for a sua origem, mas, sob um outro U M ¿ ~
aspecto, pode ele próprio ser gerador de novas capacidades
ou de modifcações nas capacidades existentes. O conceito de
capacidade, pólo oposto do circuito da actividade, constitui,
portanto, um outro conceito de base, remetendo para o con­
junto das potencialidades inatas ou adquiridas para efectuar
seja que acto for. As relações dialécticas entre os actos e as
capacidades sugerem que a actividade total de um indivíduo
pode ser teoricamente desdobrada em dois sectores, o dos i
actos que produzem ou especificam capacidades e o dos actos 1 (7 ^ '
que se limitam a pôr em prática capacidades já existentes, £7-
sectores estes cujas relações podem constituir, por seu tumo,
um domínio da investigação tanto mais importante quanto
a função progressiva mais importante da persoanalidade
parece efectivamente ser o desenvolvimento das capacidades,
e que a hipótese de uma correspondência entre a natureza
das capacidades e a estrutura da actividade retém, de ime­
diato, a atenção.
Mesmo resumidas de uma forma tão esquemática, estas
considerações levam, com toda a evidência, a colocar o pro­
blema do motor da actividade. Ora, se tudo o que foi demons­
trado mais atrás é verdade, ou seja, se é necessário renunciar
à representação falaciosa de estruturas gerais da personali­
dade, naturalmente inerentes ao indivíduo enquanto tal, a
fim de adoptar a perspectiva de uma indução dessas estrutu­
ras na individualidade a partir das relações sociais em que
se desenrola a biografía, será possível satisfazermo-nos com
uma concepção da necessidade — ou com qualquer outro
termo mediante o qual se entenda poder traduzir, total ou
parcialmente, o dinamismo da actividade pessoal— como
sendo uma coordenação de tipo biológico e originariamente
interna, ou seja, no fundo, homeoestática (tendente a resta­
belecer o estado inicial), nem que fosse insistindo, bem enten­
dido, na sua flexibilidade, na sua aptidão para tomar a seu
cargo significações inconscientes, para se socializar no âmbito

/"V aJ '-
622 Marxismo e teo ria d a p e r s o n a l i a * ^
vái­
das suas formas e das suas normas, etc.? Isto parece ser, de
urna forma clara, bastante duvidoso. Se os principios* da
existencia individual podem, evidentemente, ser pensados em
tais termos, já que a mais ínfima parcela de ser humano
volta sémpre a partir da ontogénese biológica, será que o
desenvolvimento .da personalidade não exige que se inves­
tigue numa direcção oposta onde se . encontra o motor da
actividade desenvolvida? Porque é do exterior do individuo
do mundo social, que emanam as incitações fundamentais ¿
de onde afluem os materiais da hominização, e é, por conse­
quência, também ai que se determinam e transformam as
estruturas objectivas da «motivação» dos actos. Por exemplo,
tal como Marx o demonstrou admiravelmente, a generalizai
ção das relações, monetárias alterou radicalmente as neces­
sidades humanas na sua própria essência. Se reflectirmos
numa tal direcção, a reprodução alargada da personalidade
e das necessidades humanas,, longe de surgir, nesse caso,
como sendo uma especificidade enigmática da espécie, dê
encontro à qual vem esbarrar a psicologia do nosso tempo,
toma-se clara como sendo uma característica estrutural evi­
dente da história: a vastidão crescente do património social,
virtualmente oferecido à assimilação pessoal, que, por seu
turno, encontra como principal obstáculo contradições e limi­
tações inerentes, em si mesmas, a determinadas formas so­
ciais —-o que revela a natureza essencialmente histórica e a
relatividade das oposições, ideologicamente enraizadas, entre o
«génio» e o «medíocre», entre a personalidade desenvolvida
e a personalidade atrofiada. É evidente que uma tal concepção
posicionalmenle excêntrica do motor da actividade pessoal
não contradiz, de forma alguma, a sua manifesta interiors
zação, a qual exige ser estudada enquanto realidade psíquica,
relativamente autónoma, animada por contradições que se
tomaram internas, as quais, por seu tumo, se exprimem exte­
riormente no âmbito da actividade social da personalidade.
Mas o que proíbe é a «via rápida e breve», que consiste em
relacionar directamente a actividade com necessidades enten­
didas enquanto primeiro motor, ponto de partida real, quando,
na realidade, as necessidades de uma personalidade desen­
volvida consistem essencialmente em resultados, que expri­
mem uma dinâmica subentendida pelo conjunto das suas
estruturas, as quais reflectem, elas próprias, o conjunto das
estruturas sociais que sê deparam à biografia.
'ácio da terceira edição francesa 623

Assim, a tarefa decisiva para fundar uma verdadeira


j ciência da personalidade — as observações precedentes de-
¡ monstram-no bem — consiste em elaborar uma represen-
! tação racional das estruturas de base da actividade pessoal,
j ení formular a teoria da sua infra-estrutura. E é porque tem
fracassado até aqui na execução desta tarefa que a psicolo-
„ia da personalidade não se encontra ainda, hoje em dia, ple­
namente constituída como ciência. Mas esta infra-estrutura
por ela procurada, a psicologia não tem qualquer hipótese
j e a encontrar enquanto continuar a imaginá-la antecipada­
mente sob a forma de uma estrutura estática de tipo natural,
como um «temperamento», por exemplo, ou mesmo, no seio
(ia escola de Freud, sob a de um sistema de instâncias, de
certa forma passível de espacializaçâo, de um preâmbulo
tópico à actividade que, em princípio, deveria estruturar. Se
não se cometer o erro radical de confundir a personalidade
desenvolvida com tudo o que lhe serve de suporte ou que
a precede, se esta for. efectivamente concebida como sendo
o sistema total da actividade de um indivíduo, a sua infra-
estrutura não pode, manifestamente, ser senão a estrutura
de base dessa própria actividade, noutros termos, a sua pró­
pria organização no tempo, a sua estrutura temporal. A hipó­
tese central adiantada na última parte de Marxismo e Teoria
da Personalidade é, portanto, a seguinte: a infra-estrutura da
personalidade desenvolvida é constituída pelo seu emprego
do tempo. O problema consiste, então, em referenciar o
emprego do tempo real, para além das suas aparências empí­
ricas, e, com muito mais razão, as representações subjectivas
ou optativas que o próprio indivíduou dele elabora. E a análise
do emprego do tempo real, ou seja, das relações temporais
efectivas entre diversos tipos de actividade, pressupõe, por
seu turno, a teoria dessa diversificação. Um vasto campo de
acção encontra-se, assim, aberto à investigação. Adiantei a
hipótese de que importantes aspectos desta diversificação
poderiam ser constituídos, por um lado, pela dualidade entre
actividdades formativas de novas capacidades (sector i) e acti­
vidades que põem em prática capacidades já existentes
(sector ii), e, por outro lado, no seio das condições da socie­
dade capitalista (a infra-estrutura das personalidades é outra,
neste aspecto, numa sociedade socialista), pela oposição entre
actividade concreta, relacionandó-se imediatamente consigo
mesma, e actividade abstracta, isto é, submetida, directamente
Marxismo e teoria da personalidade posfâcio da terceira tção francesa 625
624

ou não, à redução do tempo de trabalho ao tempo abstracto, concreta dos indivíduos. Uma forma excepcionalmente inte­
em que se baseia todo o processo de exploração capitalista! ressante e importante dessa lógica, face à da aceitação satis­
O desenvolvimento da reflexão a partir destas simples hip¿ feita ou à de mesquinho refugiar-se na concha da vida ((pri­
teses é quanto basta, parece-me, para tornar patente a fecun­ vada», é a vida militante, que implica a tomada de cons-
didade do conceito de emprego do tempo, e a possibilidade ciênica, por parte do indivíduo, da excentricidade posicionai,
de definir, em semelhante direcção da pesquisa, uma verda­ de índole social, das bases da sua personalidade, e uma forma
deira lógica de base da actividade pessoal, e, posteriormente, de actividade que une profundamente a resolução das contra­
em relação com ela e com as suas contradiçõs, um conjunto dições pessoais à transformação das condições sociais objecti-
de actividades superstruturais, a começar pelos regulamentos vas, «essência real» de todos os homens — anunciando, por­
de emprego do tempo, e das correspondentes representações tanto, desse modo, no próprio seio de uma sociedade classista,
ideológicas — e, finalmente, de principiar a entrever leis de as formas superiores oa personalidade desalienada. ^
desenvolvimento
v+ v-kJ£>« *• r v b da Jpersonalidade,
r у 3 no sentido f dialéctico
w iv w v a w do
U U . / 'л i & / 0 Vque
j[W v significa,
O lg L U J L lV tl» então,
ts - U - i - C l l / » segundo
õ w g U U U U a concepção
U V U iltv p y d U proposta.
U jJ U õ L d ,

termo «lei», que precisámos mais atrás, ou seja, como expres-Uc/1^ estudar científicamente uma personalidade? Significa, em
são da lógica de desenvolvimnto de contradições concretas, j¿A primeiro lugar, descobrir e referenciar, na medida do possí-
específicas de uma determinada personalidade. vel, as particularidades biológicas e as estruturações inf a n '
Mas ao longo de uma tal reflexão importa nunca perder4 \jba' r'através das quais se efectuou, para começar, a individuação,
de vista a posição justa-estrutural da personalidade para com rA lT e de onde resultam formas mais ou menos duráveis de activi-
as relações sociais. Caso contrário, derivar-se-ia inápelável- v U/"' dade. Significa, sobretudo, apreender a dialéctica da vida
mente para uma concepção das suas leis de desenvolvimento pessoal no âmbito da qual se constitui e se transforma a per­
que se encontraria viciada pela base. Admitamos, por exem­ sonalidade desenvolvida: evolução do fundo fixo das capaci­
plo,- que a experiência acabasse por vir dar validade à hipó- fjf 1 dades, estruturas do emprego do tempo, superstruturas e
tese de uma lei de correspondência «necessária» entre o nível tfi' ' " formas de consciência, necessidades internas de desenvolvi­
ae desenvolvimento de
de ae udeterminadas
e i e r n u n a u a s ucapacidades
a p a u i u a u c s сe a.
a tucorres-
r re s * v / i у mento e contradições com as bases objectivas da vida pessoal,
pondente estrutura do emprego do tempo. Uma tal hipótese Л "7 resultantes dessas contradições em cada etapa, crises do
surge como sendo inteiramente plausível do duplo ponto de \lT emprego do tempo e transformações eventuais da lógica geral
vista do materialismo histórico e da dialéctica. Mas atenção: r de desenvolvimento — tudo isso, tendo em conta a articula­
qué certas modificações do emprego do tempo possam surgir ção entre dialéctica específica da actividade desenvolvida e
como necessárias do ponto de vista do desenvolvimento das formas oriundas do seu suporte orgânico, bem como do seu
capacidades não significa, de forma alguma, que elas vão,
necessariamente, prevalecer sobre certas condições sociais passado biográfico, episódios da alteração progressiva da acti­
objectivas, que não oferecem, necessariamente, a possibili­ vidade primitiva para uma actividade desenvolvida, do termo,
dade de tais modificações; no seio da sociedade capitalista, mais ou menos completo, desta alteração. Trata-se aqui, com
a redução da força de trabalho ao estatuto de mercadoria toda a evidência, de um programa teórico de trabalho, que
significa, pelo contrário, que, de uma forma geral, é antes pressupõe, como estando já adquiridos, inumeráveis conheci­
a impossibilidade desta correspondência necessária que se mentos gerais e informações relativas ao caso singular. Do
torna regra, de onde um fenómeno social massivo de limita­ mesmo modo, a convicção que anima, de uma ponta à outra,
ção de crescimento das personalidades. A psicologia da per­ o. presente livro é a de que a psicologia científica da perso­
sonalidade defronta-se, portanto, com um tipo específico de nalidade pertence ainda, no respeitante ao essencial, ao
contradições: as contradições entre necessidades internas de futuro. No âmbito de uma tal via parece, pelo menos, ser
desenvolvimento e condições sociais de possibilidade das possível uma verdadeira ciência da biografia, articulada com
correspondentes modificações da biografia, contradições essas o materialismo histórico e o socialismo científico, as práticas
que determinam, por seu turno, toda uma lógica de reacção transformadoras da personalidade e as lutas revolucionárias.
626 M arxism o e teor d a personalidade

A diligência teórica de conjunto do livro, como acabámos


de o ver, consiste, portanto, em estabelecer que a personali­
dade humana, enquanto objecto científico, não é directamente
acessível, tal como o supõem conjuntamente o humanismo
abstracto e o seu inseparável inimigo, o positivismo psicoló­
gico, mas sim apenas mediante um desvio capital pela ciência
das relações sociais e o seu fundamento teórico, o mate­
rialismo histórico. Nestas condições, as discussões às quais
o livro deu lugar podem ser esquematicamente classificadas
em dois grupos: as que incidem sobre a questão de saber se
o materialismo histórico, e mais genericamente o marxismo,
possuem realmente, em si mesmos, o sentido que aqui lhes atri­
buímos; e as que incidem sobre a questão de saber se a dili­
gência intelectual que deles extrai ensinamentos no terreno
da psicologia da personalidade é, em si mesma, convincente.
Se bem que as segundas se tenham tomado, nos últimos
tempos, mais importantes do que as primeiras, estas, que pode­
mos qualificar de filosóficas, com a condição de que se dê
a este termo a sua acepção marxista, conservam, para além
do seu'interesse específico, o valor de um preâmbulo essencial
das segundas, e é por élas que irei principiar.
Pondo de parte as objecçõs, de resto pouco numerosas,
que me foram feitas com base noutras posições teóricas que
não o marxismo9, verifico que Marxismo e Teoria da Perso­
nalidade foi essencialmente criticado, no decurso destes dois
últimos anos, no seio das duas frentes do humanismo filo­
sófico e do anti-humanismo teórico. No que respeita à
primeira, eu fora já levado, pouco tempo antes de redigir o
posfácio da segunda edição, a responder às objecções de Adam
Schaff10*, na opinião do qual a expressão centrai da VI, Tese
sobre Feuerbach, das menschliche Wesen, não poderia signi­
ficar *<a essência humana», designando, sim, na realidade, o

9 Assim, num longo e honesto apontamento crítico do livro, publi­


cado pela Rívista di Filosofia neo-scolastica (1971, fase, V-VI, pp. 708-711),
E. Botto censura-me por «aniquilar com demasiada ligeireza o essencia-
lismo metafísico ao assimilá-lo, arbitrariamente, ao biologismo naturalista».
A leitura das páginas 193-198, 276-288, por exemplo, parece-me poder
provar que tal censura não possui fundamento.
Of. L’homme et la société, n.o 19, Janeiro-Março de 1971,
pp. 167-167.
posfácio da terceira edição fran cesa 627

ser humano concreto, o indivíduo, atitude essa que equivale


a substituir a tese fundadora do materialismo histórico — a
essência humana é o conjunto das relações sociais — por
uma tese psicológico-humanista — o indivíduo é o conjunto
das suas relações sociais — que é, simultaneamente, contrária
ao próprio enunciado de Marx, muito menos profunda, e
inevitavelmente, geradora de idealismo histórico. As minhas
respostas n , Adam Schaff opôs posteriormente um novo artigo
de mais de vinte páginas que não me parece conter nenhum
argumento efectivamente novo que tenha relações com o pro­
blema preciso que está em causa, mas onde ele reclamava
da minha parte, ao concluir, «uma resposta e uma argumen­
tação concreta» ,2. Forneci essa «resposta concreta» *13* sob a
forma de numerosos textos de Marx, datados de 1843 a 1848,
em que a expressão das menschiiche. Wesen não só admite
a tradução «a essência humana», como também não permite
outra. Que se procure,, pois, por exemplo, traduzi-la por «o
indivíduo humano» na passagem dos Manuscritos de 1844
em que Marx fala de das menschiiche W.esen des Menschen
(a essência humana do homem M, ou nesta frase que encon­
tramos em vários textos do Verão de 1844: das menschiiche
Wesen ist das wahre Gemeinwesen der Menschen (a essência v
humana é a verdadeira comunidade dos hom ens15*), ou ainda
na passagem de A Sagrada Família em que Proudhon é
repreendido pela sua concepção idealista da igualdade die ihm
das menschiiche Wesen reprãsentiert (que, a seus olhos, repre­
senta a essência hum ana),ó.
Mas há ainda provas mais flagrantes, porque, numa passa­
gem de A Ideologia Alemã, é o próprio Marx quem nos diz
o que entendia, em todos os seus anteriores escritos, por das
menschiiche Wesen. Eis aqui essã passàgem: «Já nos Anais
Franco-Alemães, na Introdução à Crítica da Filosofia do Di-

u Cf. L’liomme et la société, n.° 20, Abril-Junho de 1971, pp. 264-


-267, resumo supra, pp. 757-780.
и ibidem, n.o 22, Outubro-Dezembro de 1971, pp. 26-51.
13 Ibidem, n.o 24-26, Abril-Setembro de 1972, pp. 97-107.
i* Manuscrita de 1844, Êd. Sociales, p. 66. Cf. MEW, Dletz,
Ergânzungsband, I, p. 518.
is Extractos dos Elementos de Economia Política de Mill, Inédito em
francês, cf. MEW, Ergãnzungsband, I, p. 451. Cf. igualmente MEW, t. 1,
p. 408.
is La sainte Famile, fid. Sociales, p. 53. Cf. MEW, t. 2, p. 43.
328 Marxismo e teoria cia personalia_

reito, de Hegel, e em A Questão Judaica, esta evolução (em


direcção a uma concepção materialista do mundo. — L. S.)
vinha indicada. Mas tal era feito com ajuda do vocabulário
filosófico tradicional, e os termos filosóficos tradicionais que
se tinham introduzido sub-repticiamente nessas obras, tais
como ’essência humana’, ’género’, etc., forneceram aos teóricos
alemães a ocasião por que ansiavam para se equivocarem sobre
o sentido da verdadeira evolução...» 17 Trata-se de facto aqui,
sem quaisquer dúvidas possíveis, da essência humana e não
do indivíduo humano, visto que Marx qualifica expressamente
esta noção de filosófica, no sentido tradicional do termo, por
outras palavras, de especulativa, o que se adequa perfeita­
mente com a noção de essência humana abstractamente
entendida, mas que seria destituído de significação se se tra­
tasse, pura e simplesmente, do indivíduo humano. Qual é,
então, a expressão de que se serve Marx nesta passagem?
È menschliches Wesen! A partir de todos estes textos, eu
concluía: aParece-me que será necessário rendermo-nos mesmo
à evidência: pela pena de Marx antes de 1848 (e até mesmo
em 1848, porque encontramos ainda exemplos disso no Mani­
festo l8) encontra-se frequentemente (não digo sempre), em
particular quando surgem os problemas que são abordados
na VI Tese, a expressão das menschliche Wesen empregada
em circunstâncias tais que a tradução por a essência humana
é não só justa, como também a única possível. Ao terminar o
seu artigo, Adam Schaff pede-me uma resposta e uma argu­
mentação concretas. Será que posso,^ por minha vez, pedir,
pondo de parte as considerações semânticas gerais e as cita­
ções estranhas ao caso, que Adam Schaff explique como é
que perante estes exemplos (e dezenas de outros que poderá
facilmente encontrar, por exemplo, nos Manuscritos de 1844)
pode continuar a defender a sua tese?» Este pedido tem per­
manecido até agora sem resposta ,s-a. .

и L’Idéologie allemande, Êd. Sociales, p. 269, Cí. MEW, t. 3, p. 218.


18 Cf. Manifeste du varti communiste, Êd. Sociales, edição bilingue,
pp. 98 é 99. *.
i8-a Numa aparte da sua argumentação, Adam Shaíf escrevia: «... hã
um a coisa que me espanta. Parque é que Lucien Sève, que vive, não
obstante, em França, não invoca o testemunho de Auguste Comu, que
é certamente a maior autoridade actual neste domínio? I... ] Tomando
em consideração a importância do problema para a teoria marxista,
“dirijo-me pessoalmene a ele, pedindo-lhe para ter a bondade de se pro­
nunciar sobre os temas abordados.» (L’homme et la société, n.o 22, p. 47.)
posíáclo da terceira edição francesa 629

Mas qual é então, perguntar-se-á sem dúvida, o fulcro


teórico real deste problema de tradução? Que me seja per­
mitido, a este respeito, reproduzir as conclusões da minha
segunda resposta a Adam Schafjf: «Contra o humanismo
especulativo, afirmo (juntamente cpm a negativa da V I Tese)
que o indivíduo não é, de forma: alguma, anterior relativa­
mente às eleições sociais, e que não poderia, portanto, ser
científicamente encarado como o ponto de partida; mas contra
a redução do marxismo a um antijhumanismo teórico, afirmo
(juntamente com a afirmativa da V I Tese) que a partir da
ciência das relações sociais é plenamente possível retornar à
compreensão dos indivíduos concretos, precisamente porque
as relações sociais, longe de lhes serem estranhas, constituem
a realidade da sua essência.
Onde se situa a oposição profimda entre a concepção de
Adam Schaff e a que eu defendo?:Não, de modo nenhum, na
questão da legitimidade e da importância de uma teoria mar­
xista do indivíduo concreto, porquç acredito nela tanto como
ele. Mas sim na questão de saber qual é o ponto de partida
marxista de uma tal teoria. Para mim, esse ponto de partida
é necessariamente a ciência das relações sociais, e, posterior­
mente, das formas histórico-sociais de individualidade, já que
toda a tentativa para um acesso dilecto ao indivíduo concreto
equivale, automaticamente, ao ressuscitar das ilusões segundo
as quais a essência humana seria inerente ao indivíduo consi­
derado isoladamente. Pelo contrário, Adam Schaff não hesita*1

Auguste Comm autorizo-me a reproduzir; a carta que me enviou, a este


respeito, em Janeiro de 1973, pedindo-me para indicar que se trata de
uma improvisação e que a sua resposta tjalvez exigisse uma reflexão mais
aprofundada: «Ê necessário», creio, reportarmo-nos, a este respeito, á
terminologia hegefliana que distingue das Sein, que é do domínio da cons­
ciência sensível, das Wesen, que é do dojminlo não da sensação mas Bim
da reflexão e que advém da Consciência 4® si (cf. carta de Bauer a Marx,
11 de Dezembro de 1839, citada no meu livro K. Marx et F. Engels, t. I,
p. 178, nota I, e as minhas observações)!, e a Ideia, na qual das Sein e
das Wesen se confundem e que é do âmbito do Espírito. Penso, posto isto,
que o termo das meschliche Wesen é um termo abstracto que exprime
o que há de essencial no homem, o que excluí, do mesmo modo, tanto o
que há de individual no homem (das Inãividuelle) como a sua natureza
concreta (das Sein), e também a ideia ¡geral do homem (die Idee des
Menschen), a qual inclui a totalidade do conceito de homem (Sein, Wesen
und Begriff), de forma que a tradução mais adequada para a expressão das
menschliche Wesen é a essência humand, o que exclui simultaneamente
a sua aplicação à individualidade humana e à natureza concreta do
homem.» Agradeço a Auguste Comu este 'instrutivo esclarecimento.
Marxismo e teo ria d a personalidade

em escrever: «Marx não tem medo do conceito de ’indivíduo


humano*, não o considera como sendo um termo pré-mar­
xista, pensando- sim, pelo contrário — e sublinha-o — qUe
o ponto de partida da sua análise são indivíduos sociais con­
cretos.» 19 Volta a afirmar, um pouco mais à frente, de uma
forma, aliás, totalmente contraditória, pelo menos para mim
(e relembrando a mistura das duas traduções contrárias da
V I Tese em Le marxisme et Vindividu): «Um marxista (tem)
o direito de tomar o indivíduo por ponto de partida (o próprio
Marx justifica esse direito); pode faze-lo com a condição de
considerar o indivíduo como sendo um produto das relações
sociais, como sendo *o conjunto das relações sociais*.— tal
como o define Marx, de um modo metafórico.» *20*Texto este
contraditório, porque se o indivíduo é, tal como penso, o
produto das relações sociais, não é, portanto, certamente o
ponto de partida, mas sim uma formação secundária; se, pelo
contrário (o que considero como sendo um contra-senso
radical em relação à V I Tese), o indivíduo é o conjunto das
relações sociais, ele é-lhes, pelo menos, logicamente contem­
porâneo e pode, portanto, ser encarado científicamente como
sendo um ponto de partida. Que se possam apresentar, numa
mesma frase, estas duas formulações intrinsecamente opostas
como sendo intermutáveis é algo que ultrapassa a minha
capacidade de compreensão. Mas deixemos isso. Será verdade,
em todo o caso, que o próprio Marx «justifica o direito de
tomar o indivíduo por ponto de partida»? N a minha opinião,
trata-se de um erro característico que nos leva a refluir para
o pré-marxismo.
Quanto a mim, Adam Schaff cai aqui na esparrela que,
nomeadamente, certos textos bastante interessantes de A Ideo­
logia Alemã estendem aos que não compreenderam no
seu devido rigor a V I Tese. «Os indivíduos partiram- sempre
de si mesmos, partem sempre de si mesmos», lê-se naquela
por várias vezes2’. Verdade biográfica evidente, que Marx
utiliza sempre (basta que nos reportemos ao contexto) de uma
forma materialista contra o idealismo, para o qual os homens
«partiriam» de representações abstractas ou de concepções
filosóficas. Mas esta verdade biográfica é para Marx um prin-

- i» L’homme et la société, n.<> 22, p. 41. Sou eu que sublinho.


20 Cf. supra, p. 42. ~ -
а Cf. supra, pp. 94, 108, 279, 481, etc.
posfáCw d a terceira edição francesa 631

cípio de análise científica tão pouco importante que, sempre


que a refere, opõe a este ponto de partida subjectivo o facto
de que as condições de vida dos indivíduos, as suas forças e
as suas relações, deles se destacam, tornando-se autónomas
e a si os subordinando por completo: «inversão do comporta­
mento individual no seu contrário, um comportamento mera­
mente objectivo» 22 cuja consequência é a de que, tanto para
compreender, teoricamente, como para libertar, na prática,
os indivíduos, é necessário, ao fim e ao cabo, partir não deles
próprios, mas sim das relações sociais objectivas. «As pre­
missas de que partimos não são bases arbitrárias, nem dogmas;
são, sim, as bases reais de que não podemos abstrair-nos senão
em imaginação. São os indivíduos reais, a sua acção e as suas
condições materiais de existência, tanto aquelas que encon­
traram já estabelecidas como as que nasceram da sua própria
acção.» 23 Este texto não só não afirma, como o pensa Adam
Schaff, que se deve «tomar o indivíduo por ponto de partida»,
como afirma antes o contrário, em primeiro lugar porque
fala não do indivíduo, o que nos levaria inevitavelmente ao
manipular de abstracções de forma psicológica, mas sim dos
indivíduos reais, o que nos leva, de imediato, à história; posto
isso, e em muito maior medida, porque os indivíduos não são
aqui considerados em si mesmos, mas sim, pelo contrário,
enquanto produtos das relações sociais: «o que os indivíduos
são depende, portanto, das condições materiais da sua pro­
dução» 24. É de facto por isso que em A Ideologia Alemã, e
com muito mais razão nas grandes obras marxistas da matu­
ridade, nunca encontramos análises de forma psicológica («o
homem é..., o indivíduo é...»), mas sim análises de forma
social que possuem a título secundário um alcance psicológico
frequentemente de uma vasta amplitude. Por oposição, quando
Adam Schaff julga poder escrever em Le marxisme et Гindi-
vidu que «o homem [...] é o artesão autónomo do seu destino,
o criador do seu próprio mundo e o seu próprio criador» 25
ou ainda que «o ponto de partida do socialismo — de todo
o socialismo» — é «o amor pelo homem»26, regrediu já

22 Cf. supra, p. 481.


23 Cf. supra, p. 45.
2* Cf. supra, p. 46.
25 a . Schaff, Le Marxisme et l'individu, A. Colín, 1Ü68. p. 183.
25 Cf. supra, p. 186.
632 Marxismo e teo ria da personalidade

aquém da revolução operada pela V I Tese sobre Feuerbach,


ou seja, afastar-se de certa maneira' do socialismo científico
era direcção ao socialismo «ético», utópico, fuerbachiano.
Com tudo o que tal facto implica.
Adam Schaff sublinha que o nosso debate não respeita
apenas a dois indivíduos; «o caso é internacional», escreve 77.
Estou de acordo. E precisamente o comunista Adam Schaff
não deveria olhar mais atentamente para o tipo de companhia
francesa e internacional em que o coloca essa «leitura» do
marxismo a partir de um primado do indivíduo? Será um
simples acaso o facto de a sua tradução da V I Tese ter tido,
entre nós, por principal adepto Roger Garaudy? Será dar
mostras de estreiteza dogmática de vistas o interrogarmo-nos
sobre certas reconhecidas convergências dessas interpretações
com as de um de Man, de um Gabriel Marcel, de um Mar-
cuse2728? E quando o autor da introdução a esse livro, após
ter criticado a estreiteza que, aliás, de toda uma interpretação
do marxismo na época de Estaline chega ao ponto de afirmar
que «o autêntico Marx é o Marx da maturidade, o teórico
da economia e da revolução» (como se não fosse também
precisamente esse aquele que é o autêntico humanista) e
acrescenta: «Embora, no. passado, Adam Schaff tenha defen­
dido semelhantes posições e se tenha dedicado à defesa da
obra da maturidade, coloca-se presentemente no mesmo plano
dos estudiosos ocidentais do marxismo a quem ele reconhece,
aliás, o mérito de terem sido os primeiros a compreender e a
recuperar Marx na sua real integridade» 29, não será permis-
sível pensar que há elogios envenenados e «amigos» de que
seria preferível vermo-nos livres? Estas observações são-me
ditadas não por nenhum tipo de intenções polémicas, que
Adam Schaff jugou ver na minha resposta precedente, -mas
sim, posso afirmá-lo, por intenções totalmente opostas. Tam­
bém nós, filósofos comunistas franceses, reflectimos bastante
sobre a natureza e a origem profundas dos depauperamentos
e deformações dogmáticas do marxismo que tiveram lugar
durante um certo período. A nossa convicção colectiva e
sólidamente adquirida, verificada na prática por inúmeras
experiências, é que o que está em causa, e que há, portanto.

27 L’Homme et la société, 22, p. 47.


28 Cf. Le Marxisme et Vindividu, pp. 28 e seguintes, p. 161, etc.
29 Cf. supra, p. 9.
posfàcio da terceira edição fran cesa 633

que tratar de rever, não é, de forma alguma, o marxismo cien­


tífico das obras de maturidade de M atx e de Engels, mas sim,
pelo contrário, a sua compreensão incompletamente rigorosa
e viva. É por isso que a paixão que possamos empenhar no
combate à crença de que é afastando-nos, por pouco que seja,
do marxismo científico da maturidadel que lhe poderíamos vir
a encontrar o subStantífíco âmago é a|lgo que nada tem a ver
com polémica: é militante, logo, fraternal para com aqueles
que se sentem animados pelo mesmo espírito.
Após ter precisado este ponto, qup me parece de primor­
dial importância, gostaria de pôr termo a um mal-entendido:
o facto de que o indivíduo, longe de i ser o ponto de partida
real para a explicação dos factos humdnos em geral, a começar
pelos factos históricos, seja, em última instância, produzido
pelas relações sociais, e que não possa, em troca, módificá-
-las notavelmente enquanto individúe, mas sim unicamente
enquanto membro de uma classe, participando numa acção
de carácter social, etc. — e o próprio indivíduo «genial»,
vendo bem, não constitui, de forma alguma, uma excepção
a esta regra —, tal facto nada tem a Ver com uma concepção
da personalidade entendida como realidade passiva e estática.
Pelo contrário. Marxismo e Teoria dp Personalidade funda­
menta-se inteiramente na convicção de que o materialismo
histórico permite — e apenas ele— pensar plenamente a
personalidade, para além de todo o naturalismo estagnado,
como sendo um sistema dinâmico de actividades animado por
uma lógica específica. Não obstante, tendo em conta a
extrema insistência com que tive de regressar, no estado
actual da psicologia da personalidade entre nós, a esta ideia
da produção da individualidade pelas relações sociais, certos
críticos reagiram à semelhança do filósofo soviético G. Mialo,
que, ao fim de uma longa análise, essencialmente favorável,
do livro30, acrescenta o seguinte:
«Na verdade, certos aspectos do aparelho categorial pro­
posto pelo autor, a título de instrumento para uma tal inves­
tigação, podem suscitar objecções, o qúe está relacionado, na
nossa opinião, com o acento tónico posto por Sève na
identidade da essência humana com o conjunto das relações
socioeconómicas. Parece que a acentjuação polémica desta

30 Voprossy filosolii, 1972, n.o 4.


41
634 Marxismo e teoria d a j,,.. tonalidade

tese e a insuficiente atenção para com a natureza dialéctica


da relação aqui existente oculta ao autor o perigo que alberga
em- si tima tal categorização: o perigo de uma espécie de
interpretação essencialista em que o indivíduo social aparece
como sendo uma essência posicionalmente excêntrica que
preenche a forma, neutra e passiva relativamente a ele, do
psiquismo individual. Por outro lado, é duvidoso que o termo
«justa-estrutura», proposto por Sève para descrever a especi­
ficidade da personalidade, satisfaça a exigência, que ele pró­
prio adianta, de apreender a contradição fundamental, porque
a dinâmica da tensão entre o individual e o social desaparece
no âmbito de uma tal descrição. Parece que é necessário ver
qual a causa desta hipertrofia do social no seio da excessiva
acentuação do fenómeno da interiorização e adentro da insu­
ficiente atenção prestada ao processo de objectivação que se
lhe encontra dialécticamente ligado, bem como no realçar do
aspecto social-colectivo da actividade produtiva dos homens,
sem que seja devidamente tomado em consideração o instante
pessoal-criador. Devido a este raciocínio ilusório, a polémica
do autor contra Sartre, que adiantou a tese da estrutura
dialéctica do acto individual enquanto fundamento único da
dialéctica do processo histórico, não surge como propriamente
convincente. Finalmente, será possível considerar como legíti­
mamente justificada a própria tentativa de fornecer uma defi­
nição categórica exaustiva da essência humana, permane­
cendo, ao mesmo tempo, no âmbito do quadro exclusivo do
indivíduo social? Será que tal facto não conduz ao descrever
do fenómeno humano como sendo algo de acabado e estático,
de modo que o próprio processo histórico parece não ser,
na realidade, um . movimento para a realização da essência
humana e da liberdade, mas sim uma reprodução perpétua do
social-colectivo no psíquico-individual? Se o processo his­
tórico é dirigido — e segundo Marx é-o dnteiramente— para
o «reino da liberdade», o fenómeno de nivelamento do psí­
quico-individual com o social-colectivo é precisamente a marca
de -uma profunda alteração da essência humana, da sua não
realização rio âmbito de um determinado quadro histórico,
no âmbito dos limites do «Teino da necessidade».
Reproduzi na íntegra a argumentação crítica de G. Mialo,.
porque me parece possuir um grande interesse, por um lado,
para dissipar certo tipo de mal-entendidos, e, por outro, para
situar muito precisamente o ponto em que residem certas linhas
posí&cio da terceira edição francesa 635

teóricas de divisão. Que o psíquico-individual, que a persona­


lidade sejam algo de totalmente diferente de uma espécie de
decalque do social-colectivo, das relações sociais, isso é perfei­
tamente evidente, e creio ter eu próprio longamente demons­
trado o seu porquê: em primeiro lugar, a singularidade de cada
biografia transforma cada indivíduo num ser específico; em
seguida, a individuação efectua-se no âmbito de formas
psicológicas que não existem, de modo algum, enquanto tal
no seio das relações sociais; finalmente, e em muito maior
medida, o sistema temporal de actividades que constitui, na
minha opinião, a base real da personalidade, bem como o
conjunto de superstruturas psicológicas que lhe correspon­
dem, formam uma totalidade orgânica dotada, com toda a
evidência, de um dinamismo e de uma lógica de desenvolvi­
mento específicos. Procurei precisamente tornar claro esse
dinamismo e essa lógica ao propor, a título de hipótese mera­
mente indicativa, a análise de um certo número de formas
de vida pessoal — por- exemplo, aquilo a que chamei a dicoto­
mia ou, pelo contrário, a vida militante— que constituem
respostas dinâmicas às contradições essenciais contidas num
certo tipo de biografia. A concepção da personalidade pro­
posta neste livro não me parece, portanto, menos oposta a
um determinismo sociológico do que a um idealismo da pessoa
humana, e, em todo o caso, para além de todos os mal-enten­
didos de que o livro seja, eventualmente, responsável, posso
assegurar a G. Mialo que a este respeito me considero de
acordo com ele.
Em contrapartida, quando ele apresenta as relações entre
a personalidade e as relações sociais como sendo a interacção
«dialéctica» de duas realidades aparentemente homogéneas,
«o individual e o capital», há entre nós, isso é evidente, um
desacordo de fundo. A posição do problema, que me parece
vir à tona no texto citado — Sève = determinação do indivi­
dúe) pelas relações sociais; Sartre = determinação das rela­
ções sociais pelo indivíduo; marxismo autêntico = reciproci­
dade dialéctica destas duas determinações— parece-me ser
declaradamente especiosa, própria para nos levar de volta a
esse humanismo filosófico que Marx teve de criticar radical­
mente e de ultrapassar para conceber o marxismo. Se é
realmente verdade, com efeito, que as relações sociais deter­
minam o indivíduo, nada é mais falsamente «dialéctico» do
que acrescentar: e reciprocamente, porque os dois termos não
636 Marxismo e teoria d a personalidade
f л .
I são, de forma alguma, homogéneos do ponto de vista teórico,
j O primeiro enunciado significa que a história é a chave da
j psicologia: isso representa a pedra angular do materialismo
j histórico. O «recíproco» não só não constitui o seu legítimo
complemento dialéctico, como representa antes a pedra
f angular do idealismo antropológico, para o qual a psicologia
seria o verdadeiro fundamento da história. G. Mialo parece-
-me confundir, na realidade, duas ideias aparentemente pró­
ximas e realmente opostas: a ideia materialista-histórica se­
gundo a qual, se as relações sociais determinam os homens,
estes, enquanto produtores, cidadãos, membros de sindicatos,
partidos, etc., reagem sobre essas relações e transformam-nas
em determinadas condições, e tal representa a luta de classes —
e a ideia, característica de todas as formas mistificadoras
do humanismo, segundo a qual o indivíduo psíquico seria,
nem que fosse adentro de certos limites, o «artesão da
história». Tal equivale a desconhecer a distinção fundamental
entre o histórico e o psicológico, perigosamente encoberta
pela máscara da unidade da palavra homem, e a absoluta
prioridade do primeiro sobre o segundo. A este respeito,
Althusser tem, creio, toda a razão31 — mesmo se não con­
seguiu ver, na minha opinião, que, apesar disso, tal facto
não suprimia, de forma alguma, o problema da unidade real
entre o indivíduo psicológico e o homem historicamente activo
enquanto membro da sua classe, do seu partido, etc.
Ao mesmo tempo, e tal facto é francamente digno de nota,
G. Mialo retoma, por sua conta, a ideia de que a história é a
«realização da essência humana», ideia esta que nos remete
para aquém da grande viragem teórica efectuada por Marx
em 1845-1846, e a partir da qual a essência humana cessou
definitivamente para ele de equivaler a uma virtualidade psí­
quica — o homem tal como deveria ser, conformemente à
sua essência— que a história teria por fim «realizar» — aí
reside justamente o humanismo, na acepção especulativa
do termo. A partir das Teses sobre Feuerbach, a essência
humana já não equivale a uma virtualidade psíquica mas sim
a uma realidade histórica, o conjunto das relações sociais, e
o integral desenvolvimento dos indivíduos, que a sociedade

- si cr. as suas observações sobre a Questão do «papel do indivíduo


na história». Lire “Le Capital", Maspero, 1865, t. II, pp. 62-63,
poafáclo da terceira edíçáo francesa 637

sem classes torna possível, não é, de forma alguma, concebido


como sendo a realização de uma prévia virtualidade humana
— seria justamente então que se teria da história humana
uma visão «acabada e estática» — mas sim como sendo a
supressão dos obstáculos à apropriação pelos indivíduos do
património social objectivo, a partir do qual estes se desen­
volvem em cada época. Do mesmo modo, a ideia de G. Mialo
segundo a qual a história realiza o «reino da liberdade», tal
como ele a apresenta, parece-me ser detentora de uma perigosa
ambiguidade. Porque quando Marx emprega essa expressão32
é precisamente para afirmar que a condição essencial desse
«reino da liberdade» para os indivíduos reside numa medida
de ordem social: «a redução da jornada de trabalho)). Con­
fundir, por pouco que seja, a ideia de Marx, para quem a
liberdade dos indivíduos depende absolutamente de transfor­
mações sociais que criem as estruturas objectivas dessa liber­
dade, com a ideia de uma liberdade que consista numa inde­
pendência crescente dos indivíduos para com as suas relações
sociais, tal equivaleria a sugerir que o materialismo histórico,
correcto para a sociedade classista, deveria ceder em parte
o lugar ao idealismo histórico, à medida que a Humanidade
se for aproximando do comunismo. Tal é, na minha opinião,
uma óptica radicalmente falsa, e cuja falsidade não seria mais
grave para a teoria do que para a política, tanto no socialismo
como no capitalismo.
Bem entendido, estou totalmente de acordo com G. Mialo
no respeitante a considerar que todo um modo de determi­
nação da personalidade no seio do capitalismo (a começar
pela redução do tempo de trabalho social ao tempo abstracto)
vem a encontrar-se profundamente modificado no seio do
socialismo — e o livro insiste bastante neste p onto33. Mas
esta diferença resulta, precisamente, da superioridade social
do socialismo, superioridade essa que afecta o desenvolvi­
mento das personalidades por intermédio da transformação
das bases objectivas da biografia. A análise atenta da deter­
minação social da personalidade não é, portanto, menos
necessária no seio do socialismo do que no do capitalismo,
e a solução dos problemas de desenvolvimento da personali-

32 Le Capital, Êd. Sociales. Ш , 3, p. 199.


33 Cf. supra, pp. 666 e seguintes.
638 Marxismo e teoria tía personalidad©

dade remete aí, na mesma medida, para tarefas de edificação


social. De onde a extrema importancia da democracia socia­
listai tal como penso tê-lo demonstrado, no respeitante aos
próprios problemas de que nos ocupamos — importância
essa que correria o risco de vir a ser subestimada se, em
beneficio do «instante pessoal-criador», as dificuldades objec-
tivas do desenvolvimento psíquico no seio do próprio socia­
lismo e a responsabilidade de as ultrapassar fossem remetidas
para os individuos. A este respeito, parece-me haver matéria
para reflexão numa passagem da intervenção de Werner
Rohr, psicólogo da R. D. A., no decurso de uma discussão em
torno de Marxismo e Teoria da Personalidade, e a respeito
da qual voltarei a falar. Após se ter referido ao seu interesse
pelas análises que efectuei sobre o fetichismo das capacidades
psíquicas que corresponde ao fetichismo da mercadoria
W. Rõhr acrescenta:
«Não seria correcto encarar este problema como sendo
característico do capitalismo e considerar, por consequência,
que-ele não nos diz respeito. As censuras que foram feitas
a Sève.de não possuir um conhecimento suficiente da literatura
psicológica soviética e de não abordar específicamente os
problemas de desenvolvimento da personalidade no âmbito
das condições do socialismo não podem servir de fundamento
a uma argumentação em cujos termos as análises de Sève não
possuiriam qualquer valor para o desenvolvimento da perso­
nalidade socialista e poderiam ser afastadas como não tendo
valor prático para nós. Penso que há igualmente muito a
extrair delas para o nosso próprio desenvolvimento, e gostaria
de dar, em abono de tal facto, o seguinte exemplo. Ele afirma
que aquilo a que se chama o período heróico do socialismo,
noutros termos,, o período de edificação das suas bases, é,
de um certo .ponto de vista, mais favorável para o desèrivol-
vimento da personalidade do qué o período da edificação
multilateral, sistemática, global do socialismo, e isso porque
a necessidade que sentem aqueles que nele participam de
desenvolverem a sua personalidade, necessidade essa que activa
o processo da revolução, pode, então, ser massivamente satis­
feita através de uma evolução social cujo ritmo é mais rápido
que o da evolução da própria personalidade. Assim, o processo
da revolução socialista satisfaz as necessidades de desenvolvi­
mento da personalidade que antes da revolução se encontra­
vam bloqueadas. Tal facto, podemos facilmente verificá-lo.
posfácio da < ?lra edição francesa 639

de uma forma empírica, se atentarmos em inúmeros quadros


existentes entre nós, que pertencem às gerações que têm
entre 40 e 60 anos. Numa dada idade da sua vida foram
confrontados com tarefas cuja resolução era criadora para
a personalidade. Se considerarmos inúmeras tarefas deste
modo, depressa se confirmará que, hoje em dia, confiá-las a
quadros igualmente jovens já nãò é necessário e, aliás, tam­
bém já não é possível. A rapidez do desenvolvimento social
no seio das primeiras fases do processo de transformação
socialista forneceu inúmeras possibilidades para satisfazer
esta ou aquela necessidade de desenvolver e de pôr em prática
a sua personalidade. Agora que está em marcha o desenvol­
vimento socialista multilateral, a necessidade que sentem
aqueles que nele patricipam de desenvolver e de pôr em
prática a sua personalidade é suscitada massiva e globalmente
por^¡íós próprios. O nosso avanço suscita-a necessariamente,
sem que estejamos ainda em condições de realizar, com a
mesma rapidez, as condições sociais praa lhe dar satisfação.
Sève pensa nesta falta de concordância entre o ritmo de de­
senvolvimento dos indivíduos e ó da sociedade, quando fala
do perigo de uma estagnação durável da personalidade, ou da
sua derivação para a vida privada, a mesquinhez doméstica
e outras manifestações análogas. Nós não podemos afirmar
que tal fenómeno de forma alguma nos poderia dizer res­
peito.» 34 Estas observações de W. Rõhr parecem-me confir­
mar não que aquilo a que G. Mialo chama o «instante
pessoal-criador» não existe, mas sim que se baseia inteira-
mente nas correspondentes relações sociais.
Se as ideias contidas neste livro têm, portanto, continuado
a ser discutidas a partir de uma preocupação humanista, com
todas as ambiguidades que semelhante termo pode encobrir,
têm-no sido também a partir do anti-humanismo teórico.
Assim, a publicação em La Nouvelle Critique35 de uma parte
do posfácio que escrevi para a segunda edição do livro valeu-
-me, entre outras, uma carta de um professor de filosofia que,
ao mesmo tempo que se declarava de acordo com vários
aspectos de Marxismo e Teoria da Personalidade, acrescentava
não compreender o porquê da minha «luta obstinada» contra

« Inform ation, Akademie der PüdagogiscUen W Lssenschaíten der


DDR, Jan eiro de 1973, pp. 66 e 67.
« N .O 51, Março de 1972,
040 Marxismo e -• )ria d a personalidade

o anti-humanismo teórico e escrevia: «Não é qualificando a


noção de essência humana de conceito científico que lhe
transforma seja o que for. Você próprio o reconhece ao afir­
mar que o termo ^essência’ nada traz de novo à ciência. Por­
quê, então, pretender, a todo o custo, reintroduzir essa noção
pré-científica na linguagem científica?» Ao comentar na
minha resposta a este correspondente36, a afirmação frequente
de Marx de que «toda a ciência seria supérflua se a aparência
e a essência das coisas se confundissem» 37 e ao demonstrar
que, pondo de parte toda a formulação filosófica, as relações
de produção desempenhavam efectivamente em O Capital a
função de uma essência, eu acrescentava: «De que essência
se trata aqui? De uma entidade abstracta? De uma realidade
.’numenal’? Evidentemente que não. Trata-se de relações de
produção materiais, concretas, históricas, tal como as pode
apreender objectivamente a ciência. Em que é que, então,
estas relações merecem ser qualificadas por Marx de essência,
e não de aparência, tal como o pretenderia o meu correspon­
dente? No facto dè que constituem a realidade profunda, cuja
representação imediata à superfície da vida social se limita
a fornecer uma imagem alienada, irreconhecível; no facto de
que, uma vez tomadas do domínio do conhecimento científico,
essas relações essenciais permitem compreender não só o movi­
mento necessário que traça o seu caminho através dos acasos
aparentes, como também os processos através dos quais elas
se manifestam à superfície da vida social enquanto aparências
mistificadoras. Aí reside justamente todo o sentido do mate­
rialismo histórico: fundar uma ciência da sociedade e da sua
história capaz de alcançar a captação das relações essenciais
geradoras dos movimentos necessários, a partir de uma crítica
radical das aparências ideológicas às quais elas dão lugar. [...]
Visivelmente prisioneiro da concepção filosófica tradicional
da essência, da problemática especulativa da essência (e
mesmo, mais precisamente no que lhe respeita, da proble­
mática kantiana: númeno/fenómeno), o meu correspondente
nega-a, no sentido lógico formal, sem a ultrapassar. Não vê
o contributo positivo e capital do marxismo como inseparável
da negação da problemática especulativa: a elaboração de

« Carta e resposta figuram no n.o 64 de La Nouvelle Critique,


Junho de 1972,
Cf., por exemplo, Le Capital, Ш, 3, p. 196 (MEW, t 25, p. 825).
Posíáclo da terceira edição fr „esa 641

urna problemática radicalmente nova, materialista-dialéctica


da essência, entendida já não, 4e forma alguma, como sendo
uma substância abstracta habitando misteriosamente o con­
creto, mas sim como uma relação fundamental e um movi­
mento necessário no seio do qual se produz o concreto, com
as suas formas imediatas de manifestação, frequentemente
paradoxais. Donde, no âmbito da questão da essência hu­
mana, que nos ocupa muito em especial, e que é precisa­
mente aquela de que nasceu a nova filosofia materialista
dialéctica, a incompreensão da tese mais fulcral de Marx a
este respeito: a V I Tese sobre Feuerbach...»
Mas para além da resposta a; esta tenaz objecção, devemos
interrogar-nos sobre qual o significado desta mesma tenaci­
dade. «Podemos interrogar-nos, 'escrevia ao terminar a minha
resposta a esse correspondente, porque é que a redução anti-
-humanista, antiessencialista do marxismo, se bem que tenha­
mos demonstrado mais de vinte vezes em que é que é inacei­
tável, continua a possuir prestígio, nomeadamente junto de
jovens filosóficos marxistas ou atraídos pelo marxismo. Mas,
bem feitas as contas, será assim tão surpreendente? A crise
do capitalismo encontra-se num estado tão adiantado de
desintegração e a sua ideologia filosófica tradicional tão gasta
que com demasiada facilidade se vê através dela. Inúmeros
jovens filosóficos insurgiram-se contra esta ideologia, e como
se toma cada vez mais patente, graças aos esforços e aos
êxitos do nosso movimento, que ¡o marxismo é a única crítica
radical e bem fundamental de toda a ideologia, eles tendem
a aderir ao marxismo mas principiando por ver nele unica­
mente a negação de toda a atitude especulativa. Esta adesão
ao aspecto crítico do marxismo:corresponde frequentemente,
do ponto de vista biográfico, a uma separação relativamente
à burguesia e à orientação para, a acção revolucionária, mas
considerada acima de tudo enquanto elemento de destruição
da sociedade burguesa. Não é verdade que encontramos aqui
a base sócio-histórica da audiênqia usufruída pelas interpreta­
ções redutoras, até mesmo negativistas, do marxismo? Porque
a adesão de corpo inteiro ao marxismo pressupõe muito mais:
a assimilação do conteúdo positivo da nova filosofia, assimi.
lação essa grandemente facilitad^ pela aliança prática com a
classe operária, enquanto coveiro do capitalismo mas também
enquanto herdeira do património nacional mediante a adop-
ção profundamente consciente dos fins positivos e das formas
;42 Marxismo e teoria da personalid

de luta e de organização do movimento operário revolucio­


nário, mediante a solidariedade com o socialismo já edificado.
Esta passagem, apesar de ser bem mais curta e fácil para o
jovem intelectual de hoje em dia do que para os das prece­
dentes gerações, não deixa, por isso, de permanecer como um
processo em relação ao qual ninguém pode pretender ser
parcimonioso. Coloco a questão: a audiência de um marxismo
mais ou menos reduzido teoricamente aos seus aspectos nega­
tivos e críticos não será, na altura em que a passagem para
o marxismo dos jovens intelectuais adquire entre nós um
carácter de massa, o resgate provisório — provisório, na
medida em que será combinado com o vigor da convicção —
das suas inevitáveis limitações burguesas? Se tal é de facto
assim, lutar por uma justa compreensão da teoria marxista
da essência equivale, ao mesmo tempo, a lutar por uma adesão
mais total dos jovens intelectuais ao proletariado revolucio-
.nário, ou seja, a uma revolução verdadeiramente essencial»
Para além destas quantas observações, trata-se certamente de
uma questão que merece que nela continuemos a reflectir.
Tanto mais que uma nova e importante ocasião de voltar
a falar da interpretação anti-humanista do marxismo, no sen­
tido teórico do termo, tomou a apresentar-se nestes últimos
meses, e de uma forma que respeita directamente ao autor
de Marxismo e Teoria da Personalidade. .Com efeito, emer­
gindo parcialmente de um silêncio público de quatro anos
sobre este livro, em que são suficiente e longamente expostas
as razões de um desacordo circunscrito mas declarado com
as suas próprias teses, Louis Althusser consagra-lhe várias
alusões e algumas linhas explícitas na sua Resposta a John
Lewis. Ei-las: «Não pode haver, para a filosofia marxista,
nenhuma Sujeito como um Centro absoluto, como uma Ori­
gem radical, como uma Causa única. E não podemos, para
nos vermos livres, do problema, contentar-nos. com uma cate­
goria como a de ’ex-Centricidade posicionai da Essência"
{L. Sève), porque se trata de um compromisso ilusório, que,
sob a falsa ’audácia’ de um termo perfeitamente conformista
na sua raiz {ex-centricidade posicionai), salvaguarda o cordão
umbilical entre a Essência e o Centro, e permanece, portanto,
prisioneira da filosofia idealista: como não existe Centro, toda
a íx-centricidade posicionai é supérflua ou enganadora» 33— 38

38 L. Althusser, Réponse à John Lewis, Maspero, 1973, p. 72.


Posíâcio da terceira edição fran cesa 643

em virtude do que a concepção do marxismo que eu


defendo sob o nome de humanismo cientifico é considerada
por Louis Althusser como sendo uma simples «variante» do
humanismo idealista que era antes representado por Ga­
raudy39. Se só houvesse isso na Resposta a John Lewis a
respeito do que aqui me ocupa, eu próprio me limitaria a
consagrar-lhe apenas umas quantas linhas. Porque a forma
como são aqui apresentadas as teses de Marxismo e Teoria
da Personalidade, e a sua assimilação às de Sartre ou de
Garaudy, a que estas linhas se reduzem, são, para aqueles
que leram o meu livro (e, muito mais obviamente, caso
tenham uma pequena ideia sobre o modo como se desenrolou,
desde os anos 60, a crítica às ideias de Garaudy) de uma
credibilidade extremamente próxima de zero. Chegaria mesmo
a esse ponto, sem quaisquer dúvidas, pura e simplesmente
a partir do instante em que a pseudocitação — única refe­
rência concreta que- Althusser chegou a fazer ao meu livro —
sobre «a ex-Centricidade posicionai da Essência» fosse
desembaraçada do hífen e das maiúsculas posições, o que
era, de facto, necessário acrescentar ao meu texto real a fim
de dar um mínimo de verosimilhança a esta amálgama. Facil­
mente se verificará que uma tal escrita, ressumando à légua
à sua abstracção especulativa, não figura, na realidade, nem
por uma vez que seja, no texto saído da minha pena. Ser-me-á
permitido acresecntar algo mais? Falsifica, de uma forma
grosseira, a substância de um livro total e notoriamente
elaborado em torno da ideia de que a essência humana não
passa senão do conjunto das relações sociais, e que não possui,
portanto, de modo algum, a forma psicológica, a forma de um
sujeito, pela simples razão de que «a psicologia não detém,
de forma alguma, o segredo dos factos humanos». Nisto,
vejo-me, não obstante, ser acusado de transformar a Essência
Humana num Sujeito e num Centro! Julgo que não se sur­
preenderão se confessar que, a tais afirmações, nada tenho a
responder.
Mas há, na realidade, relativamente à questão que nos
ocupa aqui, algo de diferente na Réponse John Lewis, algo
de novo — a única novidade, no terreno filosófico— e de
uma importância considerável, tal como o iremos ver. Esse

M Cf. supra, p. 67.


644 Marxismo e teoría d a personalidade

algo apresenta~se como sendo urna «outocrítica» a respeito


de «um ponto preciso e importante»: «Dei efectivamente a
entender, nos meus primeiros ensaios, escreve Althusser, que,
após a ’ruptura epistemológica’ de 1845 (após a descoberta
por intermédio da qual Marx funda a ciência da história),
categorias filosóficas como a de alienação e negação da nega­
ção (entre outras) desaparecem40. J. Lewis responde-me que
tal não corresponde к verdade. E tem razão.»41 Sim, tem
indiscutivelmente razão: estas categorias encontram-se inte­
gralmente presentes no marxismo adulto. Mas a autocrítica
de Althusser a respeito deste ponto «restrito», o reconheci­
mento, da sua parte, deste facto que negava até aqui, consi­
derando a sua importância central, abre, necessariamente,
um processo de reavaliação ilimitada, ou, pelo menos, extraor­
dinariamente alargada, daquilo que constitui hoje em dia
o «althusserianismo» filosófico. Não será excessivo ver nisso
um acontecimento de enorme alcance no âmbito do esforço
colectivo para um estudo mais aprofundado do marxismo,
que marcá toda a vida intelectual contemporânea em França,
e em relação ao qual é grande a atenção muito para além das
nossas "fronteiras. Na Rêponse à John Lewis, o próprio
Althusser empreende ã reavaliação das suas posições adentro
de um domínio essencial: a sua teoria da «ruptura epistemo­
lógica». Reconhecendo doravante a persistência de categorias
como a de alienação no seio do marxismo adulto, admite
logicamente que «não é possível empregar o termo ’ruptura’
no respeitante à filosofia» 42, Correcção capital esta, mas de
que é evidente que irá dar origem, em cadeia, a muitas outras,
como, por exemplo, em tudo o que se relaciona com as rela­
ções entre dialéctica hegeliana e dialéctica marxista. Não
vemos, com efeito, de que modo é que Althusser poderia,
futuramente, manter a sua posição negativa bem conhecida
sobre o «fulcro racional» da dialéctica hegeliana, posição
essa que determinava, por seu turno, vários aspectos da sua
teoria da «sobredeterminação dialéctica». Doravante, parece
estar em vias de voltar-se uma página neste domínio, o que*

to Cf. Роит Marx, Маврero, 1965, pp. 220 a 246, nomeadamente,


ti Réponse à John Lewis, p. 61.
*a Of. supra, p. 60. Eu tinha feito, precisamente aqui, algumas
obJecções a esta teoria (cf. supra, pp. 92-96, e pp. 137-138, nota), que
Althusser parece, portanto, admitir presentemente possuirem fundamento.
Fosíácio d a terceira ediç&o francesa 645

deveria facultar a elaboração colectiva de uma concepção


de conjunto da dialéctica marxista.
Mas limitemo-nos aqui ao terreno do anti-humanismo teó­
rico. No que respeita a esta questão» a Réponse à John Lewis
não só não lança as bases para o reexame crítico que muito
naturalmente seria de esperar, como também aí vemos Althus­
ser dar às suas bem conhecidas teses uma expressão mais
categórica do que nunca. Pela minha parte, afirmo que o
reconhecimento do facto de que a categoria de alienação se
encontra presente no marxismo adulto leva necessariamente
ao voltar a pôr em causa, de uma forma radical, a redução
do marxismo a um anti-humanismo teórico. E eis porquê:
1 — Não basta reconhecer em geral a presença de facto
da categoria de alienação no marxismo adulto, pois falta
ainda estudar muito concretamente qual a natureza dessa
presença e a significação dessa categoria. A este respeito,
não encontramos praticamente nada na Réponse à John
Lewis. Ё mesmo necessário acrescentar mais: Althusser adopta
aí sucessivamente, "a respeito destes pontos, três atitudes
distintas e parcialmente contraditórias. Primeira atitude:
«Quanto mais avançamos no tempo, tanto mais estas catego­
rias se começam a esbater» para «desaparecerem por completo
nos últimos textos de Marx e em Lenine.» 43 Tratar-se-ia,
portanto, unicamente da sobrevivência temporária de noções
ideológicas. Segunda atitude: «Para além da sua desaparição
tendencial na obra de Marx, considerada no seu conjunto,
é igualmente necessário darmo-nos conta de um fenómeno
estranho: o seu esbatimento em certas obras e a sua ulterior
reaparição.»44 Tratar-se-ia, portanto, de uma sobrevivência
intermitente de noções ambíguas. Terceira atitude: «A cate­
goria de alienação pode prestar, parece-me, serviços proviso-
rios, mas com uma dupla condição absoluta: a) de a ’separar’
de toda a filosofia da ’coisificação’ (ou do fetichismo, ou da
objectivação de si) que não passa de uma variante antropo­
lógica do idealismo; e b) de pensar a alienação na base do
conceito de exploração. Com esta dupla condição, a cate­
goria de alienação pode, num primeiro momento (porque
desaparece no seio do resultado obtido) contribuir para nos*

*3 Cf. supra, p. 64.


« Cf. supra, p. 58.
646 Marxismo e teorí da personalidade

desviar de uma concepção meramente contabilista, ou seja,


economista, da mais-valia...»45 Tratar-se-ia, portanto, no
caso da alienação, da sobrevivência, em parte justificada, de
uma noção útil sob certas condições. Na verdade, cora esta
terceira atitude, Althusser enveredou já sem o referir — sem
o ver? — pela via que conduz ao reconhecimento da validade
«sob certas condições» de um humanismo teórico marxista:
ou seja, a demonstração científica, contra todo' o economismo,
de que o sistema capitalista aliena homens. Mas não nos ante­
cipemos, e limitemo-nos a verificar, de momento, que, embora
Althusser já reconheça a presença frequente da categoria de
alienação no marxismo adulto, a sua concepção deste facto
não se encontra ainda inteiramente assente. Ora, convir-se-á
que a concepção de um facto tão importante deve, absolu­
tamente, ser estabelecida, caso, pelo menos, nos proponhamos
apresentar uma visão coerente do marxismo. Há, portanto,
aí um reexame em cadeia cuja necessidade se encontra o b je ti­
vamente inscrita na Réponse à John Lewis.
2 — Não podendo apresentar aqui senão o resultado d
um estudo que desenvolvi longamente alhures 40, afirmo, pela
minha parte — e o estudo atento do conjunto dos textos não
pode deixar, quaisquer dúvidas a este respeito — que a ter­
ceira atitude de Althusser é a mais próxima da realidade: o
dispositivo terminológico de Marx e Engels, que corresponde
àquilo a que se chama, um pouco esquematicamente, a cate­
goria de alienação {Verãusserung, Entãusserung, Entfrem-
dung, Fremdheit, fremde Macht, etc.), longe de constituir,
nas suas obras de maturidade, uma sobrevivência ideológica,
nelas se encontra massivamente presente até ao fim e preen­
che aí uma função teórica central, inteiramente expurgada dos
aspectos especulativos e pré-científicos que comportava ainda
nas suas obras de juventude. Para o Marx de O Capital, para
o Engels do Anti-Dühring ou de A Origem da Família, o que
é a alienação? É o imenso processo histórico que, contido
embrionariamente~em toda a produção mercantil"ê alcán-
"çanffer o seu ponto culminante no seio do capitalismo desen­
volvido, subtrai lios homens as suas condições objectivás de

СГ. supra, pp. 58 e 59. n o ta 32.


« Cf.L. Sève, “Analyses marxistes de l’aliénation: économie politique
et religion", na compilação dè conferências do C. E, R. M. Philosophie et
religionrttfL Sociales, 1974.
Posfácto da terceira edição ira m 647

produção, opondo-lhas como se fossem poderes estranhos que


os submetem e esmagam. O reconhecimento da função teó­
rica central preenchida por esta concepção radicalmente não
especulativa da alienação não é apenas imposto pela tomada
em consideração dos textos, mas á também necessária para a
compreensão integral das traves mestras do marxismo-leni­
nismo, levada a cabo de uma forma correcta: não só a teoria
da mais-valia, como doravante parece encará-la Althusser,
mas também a teoria da luta de classes, a teoria da religião,
a teoria do socialismo, etc.
3 — Reconhecendo a presença e, mesmo parcialmente, o
valor da categoria de alienação no marxismo adulto, Althus­
ser persiste em negar que o mesmo aconteça no respeitante
à negação da negação. Persiste em afirmar que esta última
categoria não figuraria em O Capital senão «uma só vez» e
acrescenta: «Não vejo, realmente, que é que podèria espe­
rar-se de positivo da categoria de negação da negação, que
contém em si uma.irremediável carga idealista.» 47 Considero,
pela minha parte, que esta posição de Althusser é contradita
por factos perfeitamente elementares e que é teoricamente
contraditória. Contradita pelos factos: quer seja expressa­
mente chamada pela sua denominação filosófica, ou quer seja
empregada de forma implícita48, a negação da negação figura
em toda a obra de maturidade de Marx, de Engels, de Lenine;
melhor, Lenine, após Engels, consagrou páginas, até mesmo
capítulos célebres, à exposição da sua significação científica,
mistificada por Hegel. O facto é tão evidente que seria
indigno de uma discussão científica continuar a insistir nele.
Teoricamente contraditória: com efeito, de que modo é pos-

« Cf. supra, p. 58, n ta 32.


« A afirmação de Althusser segundo a quel a negação da negação
não figuraria senão uma só vèz em O C ap ita l basela-se nesta Ideia descon­
certante de due uma categoria nãoi «existiria» onde funciona sem que
seja mencionada a sua denominação filosófica. Nesta base, uma parte
considerável da obra de Lenine passaria por conceptualmente Indigente l
por exemplo, não conhecendo nem os M anuscritos de 1S44 nem os
G ru n d risse , Lenine foi, isso é certo, pouco sensibilizado pela forma
fUosóílca da categoria de alienação que funciona, nomeadamente, em
O C apital. Mas que se queira ter a bondade de analisar, por exemplo,
à teoria da religião que ele desenvolve após Engels, ou inúmeros textos
que escreve, p assim , sobre a / u n ç ã o em an cip a d o ra do socialism o, e ver-se-á
que a concepção marxista de alienação/desallenação funciona inteira­
mente na sua obra, tal como na de Marx e EDgels. Do mesmo modo.
...l 8 Marxismo e teoria d a personalida

sível reconhecer a presença, até mesmo a pertinência, da


categoria de alienação no seio do marxismo adulto e contes­
tá-las, ao mesmo tempo, no concernente à categoria de nega­
ção da negação, quando o movimento histórico da alie-
nação!desaliénação é> precisamente, um processo caracterís­
tico de negação da negação! Marx expôs, por inúmeras vezes,
esta ideia» como, por exemplo, nas seguintes passagens dos
Grundrisse: «A forma mais adiantada desta alienação, em que
a relação do trabalho, da actividade produtiva para com as
suas próprias condições e o seu próprio produto surge como
sendo uma relação entre o capital e o trabalho assalariado,
é um estádio transitório necessário — contém, portanto, já
em si, sob uma forma invertida, de pólos trocados, a disso­
lução de todos os pressupostos limitados da produção, melhor,
cria e produz os pressupostos ilimitados da produção e, por
consequência, as mais amplas condições materiais para o
desenvolvimento completo e universal das forças produtivas
do indivíduo.» «As relações de dependência pessoal (de início,
perfeitamente naturais) são as primeiras formas sociais no
seio das quais a produção humana se desenvolve, mas uni­
camente adentro de limites estritos e em certos pontos iso­
lados. A independência pessoal fundamental na dependência
para com as coisas é a segunda grande forma, em que pela
primeira vez se constitui um sistema geral de metabolismo
social, de relações universais, de necessidades multiformes,
de capacidades universais. A terceira etapa, é a da livre indi­
vidualidade fundamentada no desenvolvimento e no domínio
da sua produção comum, social, que se tornou no seu poder

atermo-nos ao facto de que Marx só cita uma vez explícitamente a negação


da negação peia sua denominação em O C apital é uma atitude surpreen­
dentemente superficial. Que se reflicta pura e simplesmente no facto de
que todo o fenómeno cíclico, todo o processo de forma espiral, sendo um
movimento de partida de si para um posterior retorno parcial a si, é,
no âmbito da sua própria essência, negação da negação, e veriíicar-se-â
que, na realidade, não hã, em O C apital, p ra tic a m e n te n e n h u m c a p itu lo
no qual, da simples troca mercadorla-dinheiro-mercadoria ao retorno
periódico da crise, essa figura fundamental da dialéctica marxista que é
a negação da negação não esteja, na prática, em Jogo. Eu levantara Já, em
M arxism o e Teoria da P ersonalidade (cf. su p ra , p. 608. nota), e a propó­
sito de um ponto capital, a questão desta tendência do pensamento de
Althusser para uma espécie de nominalismo. Parece-me lamentável que
esta questão, tal como tantas outras, tenha permanecido até aqui por
responder. - -
Posfâcio da terceira edição francesa 649

social. A segunda cria as condições para a terceira.»49 Assim,


a alienação constitui perfeitamente uma negação: a da uni­
dade imediata, limitada, do produtor e das condições objecti-
vas de produção, unidade essa que deve ser negada (fase da
alienação capitalista) a fim de que se opere um duplo desen­
volvimento universal, o das forças produtivas e o do despo-
jamento do proletariado, que cria então as condições neces­
sárias para uma negação da negação (revolução socialista):
o restabelecimento, a um nível historicamente superior, da
unidade entre produtores e condições objectivas de produção,
sob a forma da apropriação social. Reconhecer a alienação,
mas não a negação da negação, é, portanto, tão impossível
como reconhecer, por exemplo, a luta de classes, mas não
a contradição dialéctica.
4 — Mas verificar que o marxismo adulto contém uma
teoria não especulativa da alienação/desalienação, logo, que
o processo, do desenvolvimento histórico da Humanidade
afecta, ao longo das sociedades classistas, a. forma de uma
imensa negação da negação, equivale a reconhecer que existe
um sentido humano da história, do estrito ponto de vista
do materialismo histórico. Para o marxismo, a história é fun­
damentalmente a história das formações soda/s, conceito este
que não remete-pará 'nenhuma "«essência humana» prévia ou
subjaceníé," mas sim para a “dialéctica das forças e relações
de produção, superstruturas, etc.; mas, sendo a história das
formações sociais, que são, em si mesmas, a essência real,
a base produtora e explicativa dos indivíduo s,^, simultanea-
mente', a história da formação dos homens — e a èsté título,'
para além de todo ò humanismo especulativo que o materia­
lismo histórico desqualificou sem remissão, o marxismo funda
teoricamente um humanismo científico, ou uma teoria das
condições históricas do desenvolvimento integral e universal
dos indivíduos. Que o desenvolvimento histórico seja igual­
mente, e de imediato, desenvolvimento do indivíduo, é o que
Marx — e Engels, e Lenine — nunca deixaram de afirmar
expressamente — inclusive nas obras em que Althusser pre-

. «» Traduzido segundo o texto original, G r u n d risse der K r itik der


p o litis c h e n O konom ie, Dietz
Verlas, 1963, pp. 414 e 76. A tradução de
Dangeville (F o n d e m e n ts de
la c ritiq u e de V économ ie p o litiq u e , Ed.
Anthropos, 1987, t. I, pp. 481 e 96), à qual tive de-me referir quando
redigi o meu livro, por não dispor então do texto alemão, é incorrecta ao
ponto de ser, em mais de uma passagem, científicamente, lnutllizável.
42
6Б0 Marxismo e teoria da personalidade

tende que bem se pode ((procurar debalde» 50 o mínimo indi­


cio que seja de alienação e de negação da negação. Marx
di-lo claramente numa frase capital da carta a Annenkov, em
que resume, em Dezembro de 1846, toda a substância de
A Ideologia Alemã: «A história social dos homens nunca é
senão a história do seu desenvolvimento individual, quer eles
tenham ou não consciência de tal facto.» 55 Retoma, da forma
mais explícita deste mundo, este tema em páginas célebres
do Manifesto: «No seio da sociedade burguesa, o capital é
independente e pessoal, enquanto o indivíduo que traba­
lha não possui nem independência nem personalidade. E é
a abolição destas relações sociais que a burguesia qualifica
de abolição da personalidade e da liberdade! E com razão.
Porque é certo que se trata de abolir a personalidade, a inde­
pendência, a liberdade burguesa. [....] A partir do instante
em que o trabalho já não puder ser convertido em capital,
em dinheiro, em renda imobiliária, em resumo, em poder
social susceptível de ser monopolizado, ou seja, a partir do
instante em que a propriedade individual já não puder trans­
formar-se em propriedade burguesa, vocês declararão que
o indivíduo foi suprimido. Confessam, portanto, que, quando
falam do indivíduo, não pretendem senão falar do burguês,
do proprietário burguês. E esse indivíduo, isso é certo, tem
de ser suprimido.» «Em vez da antiga-sociedade burguesa,
com as suas classes e os seus antagonismos de classe, surge
uma associação no seio da qual o livre desenvolvimento de
cada um é a condição para o livre desenvolvimento de
todos.» 52
Nos Grundrisse, Marx retorna frequentemente à ideia de
que no seio do capitalismo, «as forças produtivas e as rela­
ções sociais — duas diferentes facetas do desenvolvimento do
indivíduo social — surgem ao capital como tratando-se de

so Réponse à John Lewis, p . 52


n K. Marx-F Engels, C orrespondence, Êd, Sociales, t. I, p. 448.
и . M a n ife ste d u p a r ti c o m m v .n iste , Ed. Sociales, pp. 50-51 e 57.
Vemos, perante semelhantes textos, qual o resultado de tuna leitura tão
pouco sintomática que não reconhece a alienação precisamente onde se
demonstra que o indivíduo que trabalha se encontra p rivado de persona­
lid a d e pura e simplesmente porque (num manifesto que se dirige
à massa dos trabalhadores do século passado I) o term o filosófico “alienação"
não é pronunciado — e due, pelo mesmo motivo, não vê a negação da
negação quando se afirma (p^ 47) que «a burguesia produz os seus
próprios coveiros».
líácío d a terceira edição francesa в

um simples meio, e não passam, para ele, senão de um meio


para a produção, a partir da süa base acanhada», enquanto,
através de um modo de produção liberto desta forma
mesquinha e contraditória de apropriação, é «o livre desen­
volvimento das individualidades)), «o desenvolvimento do
indivíduo social, que surge como sendo a trave mestra em
que se baseia a produção e a riqueza». E, parecendo respon­
der àqueles que pretendem hoje em dia que, para o mate­
rialismo histórico, os homens nao preencheriam outra função
senão a de suportes das relações sociais, Marx acrescenta
algumas páginas mais adiante: «Ao mesmo tempo que se
desenvolve progressivamente, o sistema da economia burguesa
desenvolve a sua própria negação, que é o seu último pro­
duto. Defrontamo-nos ainda, nesta altura, com o processo
de produção imediato. Se considerarmos a sociedade bur­
guesa no seu conjunto, o qué surge constantemente como
sendo o último resultado do processo social de produção, é
a própria sociedade, ou seja, é o próprio homem no âmbito
das suas relações sociais. Tudo o que possui uma forma
fixa, como o produto, etc., surge enquanto simples instante,
instante que se dilui no seio desse movimento. O próprio
processo de produção imediato surge aqui enquanto simples
instante. Também as condições e os resultados objectivados
desse processo surgem, na mesma medida, enquanto instan­
tes do mesmo, e são unicamente os indivíduos que surgem
como sendo os seus sujeitos (Subjekte), mas estes, os indi­
víduos, apenas no âmbito das suas inter-relações, que igual­
mente reproduzem e renovam. É .o seu próprio processo de
incessante movimento, no seio do qual se renovam também
a si mesmos, sob a forma do mundo da riqueza por eles
criada.» 53 Este tema é constantemente retomado ao longo
de todo O Capital, inclusive no livro rv: «(O que economis­
tas como Sismondi não compreendem é) ... que o desenvol­
vimento das capacidades do género humano, se bem que
tenha, inicialmente, lugar a expensas da maioria dos indi­
víduos humanos e de classes inteiras de homens, acaba por
romper esse antagonismo e por coincidir com o desenvolvi­
mento do indivíduo singular, que o superior desenvolvi­
mento do indivíduo não se compra, portanto, senão por inter-

» Traduzido segundo o texto original, Grundrisse..., pp. 593-591 e


600. ICí. Fondements..., t. П, pp. 222-223 e 230.
652 7 Teísmo e teoría da personalidad©

médio de um processo histórico em que os indivíduos são


sacrificados.» 54 E é ainda e sempre este mesmo tema funda­
mental que reaparece na Crítica do Programa de Gotha, em
que a. «fase superior do comunismo» é descrita por Marx
como sendo uma sociedade em que «terão desaparecido a
- humilhante subordinação dos indivíduos à divisão do tra­
balho e, juntamente com ela, a oposição entre o trabalho
intelectual е o trabalho manual; (em que) 0 trabalho não só
já não será apenas um meio de sobrevivência, como também
se tornará ele próprio na primeira necessidade vital; (em
que), com o múltiplo desenvolvimento dos indivíduos, tam­
bém as forças produtivas terão aumentado e todas as fontes
da riqueza colectiva brotarão abundantemente» 5S. Ideia esta
de que se encontram impregnadas, por seu turno, inúmeras
páginas de Engels, do Anti-Dühring à Origem da Família,
inúmeros textos de Lenine, de O Que São os Amigos do Povo
a A Grande Iniciativa.
'Temos d e nos render à evidência: existe um humanismo
/ marxista, não um - «humanismo» de simples agitação ideoló-
I . gica, mas sim um humanismo teoricamente, fundamentado no
próprio materialismo histórico e no socialismo científico.
E visto que esta questão tem sido bastante baralhada, nos
mais diversos sentidos, no decurso deste último decénio,
sejamos perfeitamente claros: esse humanismo está para o
humanismo pré-marxista na mesma medida em que a filosofia
marxista está para a filosofia pré-maxxista, em que o materia­
lismo histórico está para a «filosofia da história», em que
o socialismo científico está para o socialismo utópico. A espe­
cificidade de todo o humanismo pré-marxista (e inúmeras
formas contemporâneas de humanismo representam os últi­
mos avatares do humanismo pré-marxista) consiste em ima­
ginar a história como sendo a realização de uma «essência
humana» meramente especulativa* «o homem» como sendo
o artesão da história — um «homem» concebido enquanto
• um Indivíduo abstracto e anterior, de uma forma ou de outra,
à própria história. Com semelhante humanismo, intrinseca­
mente idealista e metafísico sejam quais forem as roupagens
de que sé revista, Marx e Engels romperam sem remissão na

и Traduzido segundo o. texto original, MEW, t. 264, p. 111. (Cf.


H istoire des d o c trin e s eco n o m iq u es, Éd. Costes, t. 4, p. 10.)
55 C ritiq u e des p ro g ra m m e s de G o th a e t d ’E rfu rt, fid. Sociales, p. 32.
Fosíáclo d a terceira edição fran cesa 663

véspera das revoluções de 1848, e nenhuma compreensão


correcta do marxismo é possível caso se pretenda retomar,
por pouco que seja, aquém desta ruptura. Na medida em que
por humanismo não se entendçr senão o primado idealista
do «homem» abstracto em relação à história, não se deve
hesitar em afirmar, tal como Althusser o fez, que o mar­
xismo pressupõe um anti-humanismo teórico, ou seja uma
crítica teórica radical desse humanismo. A este respeito, não
há nenhum tipo de desacordo entre Althusser e eu, e afirmo
que não se encontrará em Marxismo e Teoria da Personalidade
um único vestígio que seja de um tal «humanismo» —-isto,
entre outras coisas, porque antes de o escrever, tal como
explico no prólogo, me servi do contributo dos importantes
trabalhos de Althusser sobre esjte ponto.
Mas, ao desenvolverem a suá nova concepção da história,
Marx e Engels encontraram, com toda a evidência, desta vez
numa base materialista e científica, a relação entre o indiví­
duo e a história. À luz da teoria da alienação, o desenvolvi
mento das formações sociais surge como sendo a base efectiva
do desenvolvimento' do indivíduo, do «homem no âmbito das
suas relações sociais», segundo a expressão de Marx, e o
período da alienação capitalista surge como contribuindo,
necessariamente, para preparar as condições históricas para
um superior desenvolvimento integral do indivíduo no seio
da sociedade sem classes. Em tàl consiste o humanismo cien­
tífico do marxismo, ou seja, num certo sentido, no oposto do
humanismo pré-marxista, radicalmente alterado pela inversão
materialista. Por outras palavras, o marxismo é simultanea­
mente negação do humanismo abstracto, especulativo, filosó­
fico, no velho sentido do termo,, e fundamento de um huma­
nismo novo, superior, que coincide com o socialismo cien­
tífico. Reduzir o marxismo, np respeitante a uma questão
tão crucial, unicamente à sua diligência teórica negativa,
unicamente ao instante do anti-humanismo teórico, equivale
a mutilá-lo. Irei mesmo mais longe: na minha opinião, uma
vez que se tenha entendido qual é o significado da viragem
capital dós anos 1845-1846, não podemos cometer erro mais
profundo sobre a significação 4o marxismo no seu conjunto
que o de não reconhecer, no sçio da ciência da história por
ele instaurada, a ciência da produção do próprio homem no
âmbito das suas relações sociais, que constituem a sua base.
E é por isso que reitero aqui a questão, já levantada há cinco
664 Marxismo e teoria personalidade

anos pelo meu livro, e que permaneceu até hoje sem resposta
por parte daqueles que reduzem o marxismo ao instante do
anti-humanismo teórico: considerando, bem entendido, que
o marxismo rejeita todo e qualquer humanismo abstracto,
ê ou não verdade que, segundo a fórmula da carta a Annen­
kov, a história social dos homens é, ao mesmo tempo, a his­
tória do seu desenvolvimento individual; e se é assim, de que
modo é possível designar este aspecto fundamental da teoria
marxista senão como sendo um humanismo científico? Não
creio, pela minha parte, que seja possível continuarmos a
reconhecer a presença da categoria de alienação no seio do
marxismo adulto e, ao mesmo tempo, furtarmo-nos a esta
questão56.
É certo que, considerando a carga idealista e, no fundo,
burguesa, que vem pesando, de há longa d ata, sobre o termo
humanismo, utilizá-lo para qualificar o marxismo — nem que
seja especificando-se através do adjectivo científico— não
.deixa de. apresentar algum perigo. Althusser teve toda a razão
em sublinhá-lo, e neste mesmo livro dou testemunho de tal
facto57. Todos nós, aqueles que tivemos de combater nos
anos 50 o deslizar «humanista» para o oportunismo de Henri
Lefebvre.e, posteriormente, nos anos 60, um outro deslizar
para o oportunismo em nóme do ((humanismo», o de Roger
Garaudy, sabemos, por experiencia, que esse perigo não é
imaginário. Mesmo hoje em dia, e oriundo' de diversos secto­
res, um «humanismo» de contornos flácidos é parte inte­
grante do dispositivo ideológico a partir do qual a ciência
marxista da história é denunciada como sendo «dogmática»
e a organização revolucionária da classe operária como

se Num livro, aliás, bastante bem documentado e honesto sobre


á obra de Louis Althusser (Fayarcl, 1974), Saül Karsz consegue executar
este pequeno truque de prestidigitação que consiste em consagrar todo um
capítulo à questão m a rxism o e h u m a n is m o sem dizer u m a só palavra
acerca deste aspecto do problema, o ú n ic o que se encontra realmente em
debate hoje em día, entre nós, nesta dominio da investigação marxista.
Na sua bibliografia, na rubrica «Trabalhos sobre Louis Althusser», o autor
dá-me a honra de me citar — mas a respeito de um artigo em que
Althusser só está em causa urna vez: na frase liminar em que esclareço
que não me irei debruçar sobre as suas posições, indo consagrar a minha
análise às de Godeller! Em contrapartida, omite citar M arxism o e T eoría da
P ersonalidade que trata notoriamente das ideias de Althusser em inúmeras
passagens... Não se irá longe com semelhantes processos.
st CJÍ. supra, p. 257-258.
Poefácio da terceira ediç&o francesa 655

«burocrática». E não é necessário ser-se adivinho para prever


que, à medida que a audiência do marxismo se for alargando
a novas camadas sociais ainda influenciadas pelo idealismo e
pelo reformismo, novas deformações «humanistas» do mar­
xismo irão exigir uma vigilância crítica da nossa parte. Mas,
se a crítica ideológica e política do humanismo permanece
actual, gostaríamos, de facto, de saber por que razão é que
o anti-humanismo, no que lhe respeita, poderia estar isento
de uma tal crítica. Com efeito, como é possível não o ver?
Hoje em dia há igualmente entre nós um anti-humanismo
teórico massivamente presente no seio da ideologia domi­
nante, e com o qual não seria menos funesto permitir que se
confundisse o marxismo. Trata-se, em particular, do anti-
-humanismo mais ou menos explícitamente estruturalista de
inúmeras correntes do pensamento no âmbito das ciências
humanas, tal como aquele que a obra de Lévi-Strauss ilustra,
em quem a recusa — justificada — do sujeito enquanto ponto
de partida para o conhecimento das estruturas vem a encon-
trar-se substituída — devido a não conseguir ver que as estru­
turas mais fundamentais são as das relações sociais entre os
homens — por uma exclusão arbitrária de todo o sentido da
história, posição esta que, fluindo em sentido inverso ao do
marxismo, vem a resultar na separação profunda entre as
ciências do homem e toda a crítica social, e, muito mais obvia­
mente, toda a luta revolucionária. O carácter declaradamente
burguês de um certo anti-humanismo universitário torna-se
perfeitamente patente justamente no facto de que torna
in-significante a luta de classes, pelo menos enquanto luta
que revela o carácter alienante do capitalismo para a grande
massa dos homens, e que tem por meta, ao fim e ao cabo,
uma sociedade socialista humanamente superior.
Porque — aí reside o âmago do problema — a teoria mar­
xista e a realidade prática da luta de classes são incompreen­
síveis fora da perspectiva do humanismo científico que as
unem às contradições induzidas pelas relações sociais na
biografia dos indivíduos, ou seja, ao facto de que para milhões
de homens a vida é, numa medida sempre crescente, tornada
invisível pelo sistema capitalista. Esta é uma ideia central
para o marxismo, e à frase profunda de A Ideologia Alemã
segundo a qual os proletários devem «derrubar o Estado
656 Marxismo e teoria d a personalidade

para realizarem a sua personalidade» 58 responde, num eco,


a de Lenine ao afirmar que a revolução não pode triunfar
senão «quando ’os de baixo’ não queiram mais e ’os de
cima’ não possam mais continuar a viver como antiga­
mente» 59. Afastar os homens vivos da ciência é, aliás, de há
já longa data, um processo característico do pensamento bur­
guês: era, há já um século e meio, a diligência teórica dos
seus economistas clássicos, cujo positivismo consistia em
limitar o objecto do seu estudo ao. estado de coisas existente,
encarado acriticamente como sendo natural e eterno. E não
poderíamos esquecer que relativamente a esta economia polí­
tica burguesmente conservadora, o mérito capital da crítica
humanista do «trabalho alienado». feita pelo jovem Marx foi
precisamente, não obstante os seus aspectos ainda especula­
tivos, o de desmascarar o sentido ideológico desse positi­
vismo, ao intimidar a ciência a comparecer perante o tribu­
nal da revolução. Como é possível não nos apercebermos de
que, hoje mais do que nunca, um anti-humanismo redutor
serve de álibi ideológico ao positivismo conservador no campo
das ciências humanas? A este respeito, deve lembrar-se que
a obrà althusseriana foi desde o início, entre outras coisas,
simultaneamente uma assimilação marxista de grande estilo
das novas aquisições das ciências humanas, que cristalizou
no início dos anos 60, em França, no movimento do pensa­
mento estruturalista, e uma contaminação do marxismo por
esse movimento das ideias não marxistas, contaminação essa
posteriormente reconhecida . pelo próprio Althusser, pelo
menos parcialmente 60. Coloco a questão: não seria oportuno
elaborar, de uma forma crítica verdadeiramente aprofundada,
ò balanço do que a assimilação fecunda mas insuficiente­
mente vigilante do estruturalismo acabou pòr deformar no
respeitante à interpretação althusseriana do marxismo? E a
redução do materialismo histórico ao seu instante anti-huma-
nista não merecerá, no âmbito desta perspectivação, uma
atenção particular?
Porque ela é, em três planos, um inaceitável presente,
oferecido-de bandeja, à ideologia burguesa. No plano filoso-

58 VIdéologie allemande, p. 96.


и Lenine, CEuvres. Paris-Moscovo, t. 31, p. 81.
50 Cf. o prefácio da 2.& edição de Lire “Le Capital".
Posfácio da terceira edição francesa 657

fico, permite que o marxismo surja como sendo uma con­


cepção unilateral das coisas, uma hipertrofia do ponto de
vista histórico-social baseado no «esquecimento do homem»,
em resumo, como sendo uma aberração simétrica de um
humanismo que perdeu a memória da história — e para além
destes dois «pontos de vista parceljares» apresentar-se-ão, então,
esta ou aquela miscelânia do velho idealismo historicizado
como sendo a «solução». É notório, a este respeito, que os
adversários do marxismo tenhan} passado a utilizar, daí em
diante, de uma forma sistemática, o álibi do anti-humanismo
teórico adentro da sua tentativa de limitar :estritamene o
alcance do marxismo, ou seja, de o reduzir ao papel de
«instante crítico», de que se sublinhará eventualmente com
fervor a fecundidade heurística, mas a fim de «constatar»
que é perfeitamente incapaz de dar resposta à exigência de
uma apreensão total do real. No plano cientifico, na altura
em que inúmeras ciências do homem entram numa fase de
crise teórica e são, cada vez mais, tentadas a procurar uma
solução para tal no campo do marxismo, a sua redução anti-
-humanista oblitera uma parte essencial daquilo que este tem
para lhes dizer e favorece o seu refluxo decepcionado para um
positivismo renitente relativamente a toda a teorização, ou
para a busca de pseudo-infra-estruturas em tal ou tal ciên­
cia particular em voga na altura, quando não mesmo para
um biologismo reaccionário cujas tentativas actuáis para um
retomo em força devem reter a nossa atenção. No plano
politico, finalmente, a campanha encarniçada que o grande
capital tem vindo a levar a cabo, servindo-se de todos os
meios ao seu alcance, com o fim de tentar desacreditar o
socialismo e a luta dos partidos comunistas precisamente em
nome das aspirações fundamentáis dos homens, dificilmente
pode receber por parte dos marjxistas a resposta mais ade­
quada se estes forem retidos pelo receio de, colccando-se no
terreno do humanismo, virem a pncontrar-se em contradição
com a teoria de que se reclamam. A questão não se coloca
aos comunistas. Além do mais, únicamente no respeitante à
resposta a dar às campanhas do adversário, mas também no
âmbito do debate com os seus aliados actuais ou potenciais.
É assim que, num artigo publicado por La Croix a propósito
658 Marxismo e teoria d a personalidade

de Réponse à John Lew is01, Marcel Merle, encarando a ideia


de que «a única interpretação correcta do marxismo» é, de
facto, a que interdita «que se aloje, seja onde for, uma visão
humanista», daí retira não só uma interrogação sobre a vali­
dade da «análise inicial de Marx», como também a conclu­
são de que os cristãos «não podem, em caso algum, comu-
- nicar» com um tal universo, para além da questão de saber,
em suma, se a política unitária dos comunistas não será
senão «uma farsa eleitoral». Por todas estas razões, é, na
minha opinião, não só justificado como igualmente oportuno
reafirmar o alcance fundamentalmente humanista do mar­
xismo, sem atenuar de nenhum modo a crítica indispensável
de todas as ilusões ideológicas que esta noção pode enco­
b rir— ou seja, tornar claro o que autoriza a caracterizar-se
o. marxismo como sendo um humanismo .científico.
*
' Por maior que seja a importância destas discussões filo­
sóficas sobre a concepção do homem estabelecida pelo mar­
xismo, repitamo-lo não obstante: o propósito central de Mar­
xismo e Teoría da Personalidade não é essa discussão filosó­
fica em si mesma, mas sim a contribuição que lhe será possí­
vel fornecer, nessa base, para o desenvolvimento original de
uma ciência: a psicologia da personalidade. Ora, deste ponto
de vista, tal como já o referi, o facto novo surgido após a
publicação da 2.* edição está em que, em França, e principal­
mente no estrangeiro, à medida que por lá foram surgindo
traduções, ò livro despertou a atenção dos mais diversos
especialistas como obra de intervenção a favor do desen­
volvimento da psicologia da personalidade. Foi.assim que fui
levado a participar em França em discussões ou reuniões
de estudo com psicopedagogos sobre a . questão dos dons,
com sindicalistas, com economistas, com militantes despor­
tivos, sobre o problema das necessidades, etc. No estrangeiro,
o livro deu ou está a dar actualmente lugar a inúmeros semi­
nários, como, por exemplo, na República Federal Alemã
ou na Argentina. Foi lido e discutido por psicólogos sovié­
ticos, búlgaros e alemães da R. D. A. Foi neste último

« Número de 3 de Dezembro de 1973.


Pof lo da terceira edição francesa 659 -

país que teve lugar, até hoje, a discussão mais importante


sobre as teses e hipóteses do livro, tendo-lhe a Academia das
Ciências Pedagógicas da R. D. A. consagradb um dia de
discussão sob a direcção do Prof. Doutor Gerhart Neu-
n er62. Considerando o interesse desses trabalhos, julgo útil
apresentar aqui uma breve análise dos mesmos, e em parti­
cular indicar os problemas e as principais objecções que aí
foram levantados, bem como as primeiras reflexões que me
inspiram.
Na sua breve alocução de encerramento, Gerhart Neuner
resume assim o espírito que animou a discussão: «Se tomá­
mos a obra de Sève por objecto de discussão tal aconteceu
por a considerarmos como excepcionalmente rica e estimu­
lante para o espírito. Compreendemos perfeitamente que a
obra foi escrita no contexto de uma luta de classes, de um
confronto ideológico, tal como estes se apresentam, muito
concretamente em França [...] Mas, por outro lado, este
livro coloca questões e contém indicações cujá importância
ultrapassa a França, e a situação que nela reina no terreno
das confrontações ideológicas. Foi por isso que discutimos
igualmente o hvro procurando o que ele tem para nos dizer
no respeitante à resolução das tarefas que se nos deparam
no âmbito da edificação da sociedade socialista desenvolvida,
no âmbito da formação de personalidades socialisms, que
tipo de indicações nos pode fornecer para o nosso trabalho
ideológico e pedagógico, para o alargamento das nossas
pesquisas em matéria de teoria da personalidade. Nesta
perspectiva, realçámos certos pontos fortes, como, por exem­
plo, a elaboração da conexão entre economia e desenvolvi­
mento da personalidade, mas também algumas fraquezas e
problemas não resolvidos.» E mais adiante: «O que Sève
adiantou sobre a necessidade de uma psicologia da persona­
lidade, de uma investigação, concretas, ’ricas de conteúdo’,
encontra, da nossa parte, a mais total concordância, a. nossa
simpatia, em perfeito uníssono com as nossas investigações e
as nossas disposições práticas de pesquisa. Contudo, verificá­
mos igualmente que precisamente onde Sève, na linha desse
princípio metodológico, propõe soluções, adianta enuncia-

ю As actas desta discussão de 3 de Maio de 1973 foram publicadas


em outubro de 1973. mima broebura com perto de 200 000 referências.
Information, do Presidium da Academia das Ciências Pedagógicas, Berlim.
660 Marxismo e teoria d a personalidade

dos sobre a personalidade e as suas leis de desenvolvimento,


vem a esbarrar nos limites dos seus conhecimentos e avança
mesmo afirmações discutíveis. Foram feitas certas observa­
ções críticas sobre o paralelismo que,- em parte, encontramos
nele entre as estruturas da sociedade, especialmente a econó­
mica, e as da personalidade. Foi igualmente discutido o con­
ceito de personalidade,.a questão das especificidades quali­
tativas da personalidade individual e da personalidade social,
a relação entre o biológico, o psíquico e o social, bem como
a representação das estruturas da personalidade-que encon­
tramos nele. Se Sève não propõe, a respeito destes problemas,
tal como ele próprio o faz notar de passagem, soluções que
sejam sempre convincentes, tal não quer dizer que as teses
de base por ele elaboradas não sejam válidas. Trata-se sim,
bem pelo contrário, partindo desse ponto de vista de prin­
cípio, e na base das teses marxisías-leninistas encaradas
enquanto conhecimentos existentes em matéria de persona­
lidade, de elaborar soluções convincentes para o problema
da personalidade, das suas estruturas e das suas leis de desen­
volvimento, para, a seguir,. as pôr em discussão.»63
U m a breve análise de duas intervenções pronunciadas no
decurso desta jornada de estudo permitirá que se apreenda
mais concretamente o sentido de um certo número de con­
clusões de Gerhart Neuner. O Prof. Doutor Adolf Kossa-
kowski consagra uma importante parte das .suas observações
à questão da concepção da psicologia da personalidade
e do próprio conceito de personalidade. Após ter apreciado,
de modo positivo, a busca de um conceito não subs-
tancialista, relacional, da personalidade, acrescenta: «Sève
tem razão, na minha opinião, em insurgir-se contra a atitude,
bastante difundida no seio da psicologia burguesa, que con­
siste em considerar a personalidade como endógena. Afirma,
a justo título, que o indivíduo humano não contém, como
o animal, a sua essência em si mesmo, que a essência da per­
sonalidade se situa afora do indivíduo (sob a forma de rela­
ções sociais pertencentes ao património social) e que o indi­
víduo se toma numa personalidade na medida em que se
for apropriando dessas relações sociais. Do mesmo modo,
é certamente justa a ideia de que os fundamentos materiais

63 Cf. sw pra, p p . 85 e 86.


Fosfácio da terceira e d i. fran cesa 661

do psiquismo, no caso do homem, não devem ser. unicamente


procurados no âmbito dos processos cerebrais, mas sim que
’as fronteiras reais do psiquismo ultrapassam enormemente
as fronteiras do organismo’.))64*É também necessário tomar
em consideração, enquanto suportes materiais cjo psiquismo,
as forças humanas essenciais que surgem (que se objectivam)
no seio do trabalho e, mais genericamente, no seio das rela­
ções sociais, como os meios de produção, os meips de relação
social, a linguagem e o pensamento que aí se materializa.
Tudo isso, como o afirma Sève, toma-se «¡propriamente
falando, no corpo inorgânico do homem» tó. Mas extrair daí
a conclusão de que a personalidade deveria ser entendida
como sendo um sistema vivo de relações sociais entre as con­
dutas não é teoricamente defensável e leva a confusões no
respeitante à determinação do objecto da psicologia da per­
sonalidade. Nem o próprio Sève se fica, aliás, por. esta con­
cepção de base quando, em diversas passagôns, sublinha
que a personalidade é- «o sistema total dia actividade de um
indivíduo» um «sistema individual complejo de activi­
dades» 67. Mas tal equivale a reconhecer que a personalidade
é um sistema individual de processos, de estados je de proprie­
dades que é essencialmente determinado pelas ijazões sociais
subjacentes (e que ele próprio é, igualmente, ¡uma parcela
dessas relações sociais) e que encontra a sua expressão no
seio das condutas concretas biológica e socialmente condi­
cionadas» 68. Abordando, adentro do mesmo espírito, a ques­
tão da determinação do objecto da psicologia da personali­
dade, A. Kossakowski cita, nomeadamente, a passagem do
meu livro em que afirmo que «sendo ciência de[ um ser cuja
essência é o conjunto das relações sociais, a psicologia da
personalidade não tem por objecto ocupar-se |de condutas
psíquicas — isso é assunto para a neurofisicjpsicologia —
mas sim das relações que as subentendem na vida concreta da
personalidade, relações essas que são, em tiltirba instância,
sociais, mas que se encontram sempre ligadas a condutas e
que surgem como se de condutas se tratasse» 69 e comenta:

M Marxismo в teoria da personalidade , p . 413.


es C f. supra, p . 41S.
« C f. supra , p . 431.
67 Cf. supra, p . 479.
68 Information-.., p . 33.
69 Marxismo e Teoria ãa Personalidade, p . 333.
662 Marxismo e teo ria d a pe: .aliciado

«Tal poderla ser o objecto de ciências sociais que se ocupas­


sem da personalidade, mas não da psicologia da personali­
dade. Na minha opinião, a psicologia da personalidade, na
base de uma exacta análise das relações sociais que deter­
minam a personalidade, tem justamente como tarefa a pro­
cura das leis da passagem, da transformação dessas relações
sociais era condutas concretas, melhor, em mecanismos psí­
quicos de regulação das actividades da personalidade,
enquanto actividades de um indivíduo histórico concreto. Mas
como esse processo de transformação é sempre, do mesmo
modo, um processo- neurofisiológico, a psicologia da perso­
nalidade deve ultrapassar a ruptura, que tem vindo a ser,
com frequência, praticada até aqui, inclusive no campo da
psicologia marxista, entre as duas abordagens, natural e
social, do desenvolvimento da personalidade, a fim de o repre­
sentar como sendo um processo de transformação das rela­
ções sociais em mecanismos de regulação psicológica das acti­
vidades individuais da personalidade,'através das regras bio­
lógicas de transformação. A este respeito, Sève tem razão
em afirmar que a função directiva remete para as estruturas
psíquicas individuais derivadas das estruturas sociais de base,
e não, inicialmente, das bases biológicas ou de uma qualquer
’personalidade de base’ abstracta de origem idealista, se
bem que esqueça o nunca se dever perder de vista a não
concordância, o que já foi discutido, entre estruturas sociais
de base e estruturas psíquicas do indivíduo.» 70
Por seu lado, o Prof. Doutor Friedhart Fix resume ele
próprio, do seguinte modo, a sua intervenção, feita simul­
taneamente «enquanto marxista e psicólogo experimental»:
«A incontestável e elevada importância do livro de Sève
para o ulterior desenvolvimento da teoria marxista da per­
sonalidade parece-me residir nos seguintes pontos: 1) Ele
demonstra que os componentes, os elementos. constitutivos
da ordem social e o seu suporte, as. relações de produção
dominantes, são os factores decisivos do desenvolvimento da
personalidade — mais: que são as grandezas decisivas para
a determinação da essência da personalidade, no âmbito da
perspectiva da V I Tese sobre Feuerbach. Só por isso, sou
já de opinião que Sève forneceu um importante contributo

- 70 Information..., pp. 34-35.


Posíâclo da terceira edição francesa 663

para o desenvolvimento de uma teoria marxista da persona­


lidade. 2) A interacção entre indivíduo e sociedade adquire,
através de Sève, uma dimensão mais vasta graças à intro­
dução do duplo carácter do trabalho no seio da análise da
personalidade. Considero este ponto como correspondendo
ao mais importante reconhecimento contemporâneo daquilo
que as ideias .marxistas clássicas representam para a teoria
da personalidade. Ele toma-se particularmente essencial
quando se trata de analisar a influência do sistema social
sobre o processo da consciência, o que é da maior actuali-
dade. 3) Considero a argumentjação contra o retomo em
força dos efeitos ideológicos da teoria dos dons como essen­
cial e justificada. A argumentação de Sève é a seguinte: é na
estabilidade relativa das relações!,de produção face às possi­
bilidades de desenvolvimento individual que vem enraizar-se
a estabilidade relativa da personalidade e das süas 'capaci­
dades estruturais. Não é aquilo que os testes de inteligência
nos revelam que é recusado conio duvidoso, mas sim antes
a cegueira de alguns dos que se servem deste método, rela­
tivamente às forças sociais de desenvolvimento da persona­
lidade que constitui o centro da crítica. No seio da sociedade
capitalista, o desenvolvimento das capacidades é confron­
tado com a repressão, ao mesmo tempo directamente vivida
e camuflada. Esta última é a mais perigosa. Manifesta-se
no seio da orientação das metas de vida a que aspiram largas
camadas sociais e na dos prazeres que são buscados por uma
camada parasitária de escalão social superior. No seio do
socialismo, a transformação do sistema das necessidades em
função de um desenvolvimento social constitui nesta medida,
tal como Sève o evidenciou, uma alternativa essencial.
4) Possuem falta de clareza os seguintes pontos, focados no
livro, que não deixam de ser essenciais para uma teoria mar­
xista da personalidade, e constituem mesmo aspectos funda­
mentais do problema no respeitante à psicologia da persona­
lidades: a) a dialéctica das forças biológicas e sociais, no
sentido estrito. Não se pôs termo a este problema apenas por
intermédio de uma crítica a Sheldon e do argumento segundo
o qual o valor da força de trabalho não reside na célula ner­
vosa. A diligência teórica de Sève apresenta aqui certas falhas
dialécticas; porque aquilo que o elemento não contém pode
ser contido pelo todo. O que representa uma reflexão perti­
nente no terreno social não o é no terreno biológico, b) As
664 Marxismo e teoria d a personalidade

razões marxistas para uma apreciação positiva de Freud e


da psicanálise continuam para mim a ser duvidosas. Entre os
psicólogos burgueses progressistas existem, na minha opinião,
pontos de vista sobre a influência dos factores sociais e das
instituições bem mais importantes do que os dos freudianos,
c) Possui falta de clareza o que. fornece um conteúdo bem
fundamentado ao paralelismo entre as categorias económicas
e psicológicas, pondo de parte o caso das leis,'tal como, por
exemplo, o paralelismo entre composição orgânica do capital
e composição orgânica do emprego do tempo. A analogia
poderia ser válida no caso da reprodução simples e alargada
da personalidade, sé bem que corra o risco de esbater a
analogia com o capital; o paralelismo com a mais-valia seria
ideologicamente insustentável. Mas o problema volta a ser
válido no respeitante à baixa tendencial do índice de pro­
gresso em paralelo com a taxa de lucro. Limitar-me-ei a
estes exemplos, d) A problemática específica da psicologia
da personalidade situa-se ao nível d a . elaboração pormenori­
zada. A este respeito, já disse o necessário mais a trá s71. Em
conclusão: o livro de Sève é o mais importante e o mais actual
prefácio ■'a uma teoria marxista da personalidade. Mas não
passa senão* precisamente, de um prefácio, de grande estilo
quanto à concepção — permanecendo em suspenso as ques­
tões específicas e a elaboração, em particular a de índole psi­
cológica. Não se trata de uma crítica a Sève. Ele escreveu
o seu livro enquanto filósofo, enquanto excelente conhecedor
dos problemas sectoriais da psicologia. Os psicólogos da
personalidade devem, e trata-se mesmo de uma obrigação,
apoderar-se das suas ideias essenciais, explorá-las e dar-lhes
metodicamente uma forma transposta.»72
Não é necessário insistirmos mais sobre o que foi dito
para que se tome claro o extremo interesse de todos estes
elementos de apreciação. Gostaria, pelo menos, de permi-'
tir-me sublinhar a importância da concordância que deles
sobressai sobre a maioria das orientações teóricas fundamen­
tais em matéria de teoria da personalidade, considerando a

71 F. Fix emite, por exemplo, algumas dúvidas sobre a unlvocaçâo


p
e a operativldade da noção de — Em contrapartida, como todos os seus
N
colegas, julga fecundo o conceito de emprego do tempo.
72 Cf. S u p ra , pp. 23 a 25.
Fosfàcio d a terceira edição francesa Q65

autoridade científica que adquiriram os psicopedagogos da


República Democrática Alemã e a flagrante validação prá­
tica que conferem ao seu julgamento os notórios sucessos do
sistema escolar que aí foi edificado. Não será altamente notá­
vel que tenham, assim, podido encontrar-se, no concernente
ao essencial, no âmbito das suas ideias directrizes, uma inves­
tigação psicopedagdgica estreitamente ligada à prática edu­
cativa de um país socialista, e uma investigação filosófica
acima de tudo fundamentada no esforço para pensar teori­
camente a personalidade a partir do materialismo histórico;
e este encontro fundamental entre investigações levadas a
cabo no seio de uma ignorância recíproca, mas à luz comum
do marxismo, não é verdade que atrai, com excepcional inten­
sidade, a. atenção dos psicólogos sobre a fecundidade ímpar
para a sua disciplina do materialismo dialéctico e histórico?
Gostaria, ao mesmo tempo, de exprimir o meu acordo com
um conjunto de apreciações limitativas, formuladas no
decurso dessa jornada de estudo da Academia das Ciências
Pedagógicas da R. D. A., quanto ao alcance do meu próprio
trabalho. Sim, é verdade que Marxismo e Teoria da Persona­
lidade é um livro de um filósofo, e nada mais, e é porque
possuía uma clara consciência de tal facto ao escrevê-lo que
as hipóteses desenvolvidas no último capítulo são expressa­
mente apresentadas como meramente indicativas, destinadas
sobretudo a «fornecer ao psicólogo um meio complementar
para a elaboração do seu trabalho crítico relativamente às
hipóteses gerais adiantadas nos capítulos precedentes))73
É, portanto, evidente para mim que toda a elaboração con­
creta no sentido da direcção indicada pelo livro, mesmo no
caso de dever conduzir à validação deste ou daquele con­
ceito adiantado a título indicativo, tal como o de emprego do
tempo, terá, necessariamente, de proceder à formulação de
uma representação científica das coisas que ultrapassará radi­
calmente estas hipóteses. Para mais, no próprio interior dos
seus limites genéricos, o livro não é, de forma alguma, isento
de estreitezas específicas. O que é dito aqui ou ali, de uma
forma teórica, sobre as condições socialistas de desenvolvi­
mento da personalidade teria ganho bastante se o fosse a
partir de um conhecimento mais concreto dessas condições.

73 Cf. зирта, p. 654.


43
666 Marxismo e teoria da personalidade

Do mesmo modo, o livro encontra-se, em mais de um ponto,


marcado por um conhecimento demasiado limitado da lite­
ratura psicológica dos países socialistas, inclusive dos tra­
balhos soviéticos74. Por outro lado, é também certo que o
livro leva a que a atenção incida principalmente sobre a
questão da infra-estrutura da personalidade, tendo em conta
a sua importância teórica decisiva, e que as questões relativas
às superstruturas e às formas de consciência estão longe
de nele serem proporcionalmente desenvolvidas. Estas cir­
cunstâncias contribuem, sem dúvida, para explicar aquilo que,
no seio de um certo número de objecções que me foram
feitas, me aparece como tendo origem num mal-entendido.
Também não afasto, em geral, a ideia de que esses mal-en­
tendidos podem igualmente advir de certas imprecisões da

7* Creio, contudo, ter tomado conhecimento pratlcamonte de toda


a bibliografia proveniente dos países, socialistas e disponível em língua
francesa sobre èsta questão. O que está, portanto, aqui em causa é a
situação material que'reina entre nós no campo da psicologia da perso­
nalidade, tal como em inúmeros outros domínios das ciências humanas,
e que 6 marcada pela censura de facto que a ideologia dominante se
encarniça em manter a respeito daquilo que se publica noe países socia­
listas. Resultado: no Traité de psychologie expérimental dirigido por
Fratese e Piaget, por exemplo, em 176 títulos que a blbUograíia do capitulo
sobre a * estrutura da personalidade comporta não existe um único
titulo soviético, nem mesmo um só título que seja de qualquer país
socialista 1 E depois disto ainda nos vêm gabar o espirito de livre investi­
gação e a troca de ideias além-fronteiras I Na verdade, nada marca melhor o
peso institucional do dominio burguês de facto no terreno de ciências
como a psicologia da personalidade, domínio esse que tem por resultado
manter o grande público, e os próprios investigadores franceses, mergu­
lhados numa Ignorância nâo só chocante, como também científicamente
das mais funestas em relação а trabalhos cuja importância mundial
náó cessa-de se afirmar. Tanto aqui como em inúmeros outros domínios,
se podemos tomar conhecimento, em língua francesa^ de alguns traba­
lhos de grandes psicólogos soviéticos (e considerando a-verdadeira sabo­
tagem do ensino da língua russa entre nós, quantos investigadores serão
capazes de os ler no- original?), tais como A, Léontlev, A. Louíía,
D. Elkonlne, P. Galpérlne, B. Teplov, L. Bojoyitch, D. Quznadzó, N. Men-
t/dhlskaía e alguns outros, devémo-lo acima de tudo á capacidade
independente de edição do Partido Comunista Francês, nomeadamente ao
esforço notável, e muito pouco conhecido ainda de uma publicação
como Recherches Internationales à la lumière du marxisme, que em dez
anos consagrou quatro números a estas questões (número sobre A Educação
em 1961, sobre O Homem em 1965, sobre A Psicologia em. 1966, sobre Ensinar
fcm. 1972), bem como ãos esforços das Edições do Progresso de Moscovo,
de que devemos lembrar a importantíssima compilação de 1976, Recherches
vsvchologiques en U. R. S. S. As Editions Sociales, por seu lado, publi­
carão nos tempos mais próximos dois volumes de Vygotski e Léontlev. Mas
tudo teso encontra-se, evidentemente, bastante longe de poder colmatar o
vazio organizado há já decénios, salvo raras excepções, para com a psicologia
soviôtica. por razões que não têm nãda. a ver com os interesses da ciência.
Fosfácio terceira edição francesa 667

expressão, até mesmo de um certo afastamentp entre esta ou


aquela análise em duas passagens fechadas d^ o b ra75. Con­
tudo, pondo de parte os mal-entendidos, sem ¡dúvida alguma
que há problemas reais que permanecem, em relação aos
quais não é possível pronunciarmo-nos seriamente senão no
termo de uma reflexão aprofundada, exigindo, jportanto, mais
tempo do que as poucas semanas que decorrefam desde que
tomei conhecimento dos trabalhos da Academia das Ciências
Pedagógicas da R. D. A. até à altura em qu!e escrevo este
posfácio. Limitar-me-ei, portanto, aqui a algúmas observa­
ções iniciais sobre os pontos mais importantes), antes de ter­
minar com algumas reflexões de carácter mais ■genérico sobre
os mesmos.
Gostaria, antes do mais, de voltar a falar do problema
do conceito de personalidade e da concepçáo da psicolo­
gia da personalidade formulada nomeadameáte' pelo Prof.
Doutor Kossakowski, porque se trata, com toda a evidência,
do problema mais central, e que determina a maioria dos
outros. Em primeiro lugar, é necessário dissipar o que me
parece tratar-se de um mal-entendido. A. Kogsakowski cita
várias das minhas formulações sobre a personalidade e o
objecto da psicologia da personalidade, que vai buscar à pri­
meira parte do capítulo 3, exclusivamente consagrado às rela­
ções entre psicologia da personalidade e ciências psicobioló-
gicas, considera-as insuficientes ou mesmo ¡incorrectas, e
acrescenta: «O próprio Sève não se fica, aliásj por esta con­
cepção de base...»; e cita, então, outras fo^nulações que
encontra na segunda parte do capítulo, consagrado às rela­
ções entre psicologia da personalidade, e ciências psicosso­
ciais. Aparentemente, a minha diligência teórica não surgiu
de uma forma suficientemente clara: na primeira parte do
capítulo, a minha intenção é pôr em evidência a especi­
ficidade da personalidade, e, logo, do objecto ¡da psicologia
dá personalidade, relativamente às ciências psicobiológicas,
e, deste modo, o traçado fronteiriço por mim dperado é, evi-

75 iniciada em Abril de 1966, a redacção do livní> foi totalmente


interrompida, por razões compreensíveis, de Maia a Jul¿o, e terminada,
em condições pouco favoráveis à concentração teórica, nosl meses seguintes.
Não me foi possivel, em seguida, expurgar, no ãmbitó de uma nova
redacção feita de seguida, da «ambiguidade» involuntária que adquiriram
durante a sua elaboração certas análises, bem como tíertas repetições,
que estas condições de escrita tornavam difícil de evitar.;
I
iI
668 M a rx is m o teoria cia p e r s o n a l i d a d e

dentemente, ainda unilateral, dando, portanto, lugar, caso


seja interpretado como uma definição exaustiva, a objecções
perfeitamente fundamentadas. Mas, logo no princípio da se­
gunda parte, refiro que: «Na medida em que a ciência da
personalidade é radicalmente distinta das ciências psicobio-
lógicas graças ao conceito de relações sociais entre as con­
dutas, temos todo o direito de nos interrogarmos sobre se
uma tal. definição não a reduz, ao mesmo tempo, ao estatuto
de uma ciência psicossocial.» (Aí reside precisamente, como
já vimos, o sentido da objecção de A. Kossakowski.)
E acrescento: «À fronteira entre ciência da personalidade [...]
e ciências biológicas será realmente possível juntar-se, do
outro lado do domínio assim sugerido, uma fronteira, esta­
belecida com igual solidez, entre ciência da personalidade
e ciências sociais?» 76 E, no final do estudo deste problema,
chego a certas formulações, desta feita já completas, que me
parecem responder, precisamente, à preocupação expressa
por A. Kossakowski — que partilho — de não deixar que se
perca a unidade do indivíduo concreto no âmbito da definição
da personalidade: «Radicalmente distinta das ciências psico-
biológicas devido ao facto de estudar não as relações natu­
rais, mas sim as relações sociais entre as condutas, a psicolo­
gia da personalidade distingue-se, de modo igualmente radi­
cal, das ciências psicossociais pelo facto de estudar o sistema
vivo das relações sociais entre as condutas sob a forma do
indivíduo concreto. Resumidamente, podemos, portanto, defi­
ni-la como sendo a ciência do indivíduo. Mas é da mais
alta importância entender correctamente o que se encontra
então subjacente a este conceito.» 7778Tal equivale a afirmar
que estou perfeitamente de acordo com A. Kossakowski
quando este explica: «Na minha opinião, a psicologia da
personalidade, na base de uma exacta análise das relações
sociais que determinam a personalidade, tem justamente
como tarefa a procura das leis da passagem, da. transforma­
ção dessas relações sociais em condutas concretas, melhor,
em mecanismos psíquicos de regulação das actividades da
personalidade, enquanto actividades de um indivíduo histó­
rico concreto.» 79 Não nos poderíamos exprimir melhor.

76 Cf. supra, pp. 428-429.


77 Cf. supra, pp. 520-521.-
78 Information, pp, 34-35.
Posfàcio da terceira edição ira за 669

Será que todo o problema se encontra, portanto, afas­


tado? Não creio. Com efeito, se as duas definições possuem
de facto o mesmo contorno, aquela que eu adianto parece-me
possuir a especificidade de se servir, situando-o numa posição
central, do conceito de relações sociais entre as condutas,
que é parte integrante, e de primordial importância, dos con­
ceitos inéditos adiantados em Marxismo e Teoria da Persona­
lidade. Não mê parece que a pertinência deste conceito tenha
sido contestada, e mesmo vários dos participantes na jornada
de estudo da Academia das Ciências Pedagógicas da R. D. A.
consideram-no como «um trampolim para a pesquisa de meca­
nismos concretos» (Prof.a Doutora Eva Schmidt-Kolmer) 79,
um conceito «de fundamental importância para o nosso
próprio pensamento» (Doutor Wemer R õ h r)80. Mas o que
foi discutido foi a questão de saber se, tal como afirmo
por várias vezes neste livro, as relações sociais entre as
condutas determinam efectivamente a essência específica
da personalidade desenvolvida, o objecto específico da psico­
logia da personalidade. A este respeito, e no actual estádio
da minha reflexão, inclinar-me-ia simultaneamente para a
reafirmação enérgica desta tese, e para considerar que no
livro, tal como este se apresenta, ela é, contudo, afectada por
uma certa hesitação das formulações, quando não do pensa­
mento. Para ir, de imediato, ao encontro daquilo que me
parece estar na origem desta hesitação, direi que se pode,
pelo menos no campo teórico em que se situa Marxismo e
Teoria da Personalidade, entender o conceito da personali­
dade em dois sentidos de extensão bastante diferente: por um
lado, pode entender-se por personalidade, em oposição à
simples individualidade que existe igualmente no caso do
animal, o conjunto das singularidades específicas que resul­
tam da excentricidade posicionai, de índole social, da biogra­
fia — e, no âmbito deste sentido limitado, as relações sociais
entre as condutas, consideradas nó seio da forma do indivíduo
concreto, parecem-se constituir integralmente a essência
da personalidade —-, mas, por outro lado, pode igualmente
entender-se por personalidade o sistema total da activi-
dade do indivíduo, incluindo nele o conjunto das singula-

79 Cf. supra, p. 67.


80 Cf. supra, p. 69.
44
670 Marxismo e teo ría d a personal] e

ridades que ela comporta, seja qual for a sua natureza — e,


neste segundo sentido, podemos, sem dúvida, afirmar que,
tal como eu continuo a fazê-lo, as relações sociais entre as
condutas constituem o fulcro da personalidade desenvolvida,
mas sem que, com toda a evidência, a tal a pudéssemos
reduzir. Entre estes dois empregos do conceito de persona­
lidade, um específico e 0 outro global. Marxismo e Teoria da
Personalidade não está isento de certas hesitações. Na maio­
ria das vezes, tendo em conta aquilo que constitui o principal
objectivo do livro, estabelecer os fundamentos para uma nova
abordagem da personalidade, o termo é entendido na sua
acepção específica, restritiva. Assim, numa passagem do
último capítulo, após ter reconhecido a existência de estru­
turas do indivíduo que não derivam da actividade social,
posicionalmente excêntrica (tipo nervoso no sentido pavio-
viano, carácter enquanto formação infantil, etc.), escrevia:
«A presente investigação sobre a infra-estrutura da persona­
lidade desenvolvida, ou seja, na realidade, da personalidade
propriamente dita, não recusa a priori nenhum destes dados,
mas o seu objecto é totalmente diferente.» 81 Alhures, numa
terminologia análoga, a teoria da personalidade desenvolvida
é qualificada de «parte decisiva da psicologia do indivíduo
concreto» 82. Mas, em algumas outras passagens, o termo «per­
sonalidade» tende a adquirir um sentido mais global, nomea­
damente para o fim do livro. Assim, após ter adiantado a
ideia de uma tripartição do campo das ciências psicológicas:
psicobiologia, psicossociologia, psicologia da personalidade,
escrevia: «Necessidades neurofisiopsicológicas e necessida­
des sociais encontram-se contraditoriamente integradas numa
personalidade que possui, enquanto tal, a sua lógica especí­
fica de crescimento...»83* anunciando deste modo uma con­
cepção global da ciência da biografia enquanto apreensão do
conjunto do indivíduo concreto. Há, portanto, aqui um pro­
blema real, que ajuda, sem dúvida, a compreender porque
é que, por exemplo, A. Kossakowski se declara em desacordo
comigo, visto que, pelo seu lado, ele emprega manifestamente
o termo «personalidade» num sentido global.

«1 Cf. supra, p. 608.


82 cf. зирга, p. 639.
83 OU supra, p. 660.
Posfâcio da terceira edição francesa 671

1— ■■ — • •,
A fim de precisar o meu pensamento, e o sentido- em que
entendo a terminologia em causa, direi o seguinte: o facto
elementar de em todas as línguas, salvo erro, se falar de
personalidade humana, mas unicamente de individualidade
animal, traduz o facto fundamental de que, no âmbito do pro­
cesso de individuação social humana, surge uma realidade
inteiramente específica, a saber, toda uma lógica posicional­
mente excêntrica da actividade que vem do exterior enformar
a individualidade prévia para a subordinar a si, de uma forma
mais ou menos total, tornando-se, assim, no elemento deci­
sivo que rege a biografia do indivíduo. Esta lógica posicional­
mente excêntrica, de essência social, mas que adquire a forma
psicológica da individualidade, é muito específicamente
jiquilo que confere ao homem concreto uma personalidade.
A passagem progressiva da individualidade biológica origi­
nária à personalidade efectua-se através de processos com­
plexos de investimentos, de sucessivas alterações, geradores de
estruturas susceptfveis de uma determinada duração biográ­
fica, nomeadamente sob a forma de materiais que voltam a ser
utilizados numa ulterior etapa, no âmbito do quadro da sua
lógica específica — daí certas contradições secundárias que
se repercutem nas contradições características da lógica da
etapa considerada. O surgir da personalidade não pode
efectuar-se plenamente senão quando a biografia do indivíduo
considerado se encontra engrenada nas relações sociais fun­
damentais, a começar pelas do trabalho social. Mas esta per­
sonalidade desenvolvida é normalmente precedida por for­
mações mais precoces, oriundas da inserção da bio^afia em
relações sociais derivadas, secundárias, etc., relativamente às
relações de produção, tal como as relações familiares, as
estruturas de linguagem, etc., formações essas a que podemos
já chamar personalidade (infantil, etc.) com a condição de
não se perder de vista o facto de que só a personalidade desen­
volvida exprime, de uma forma integral, a especificidade psi­
cológica dá Humanidade historicamente evoluída, o conceito
de personalidade é, portanto, efectivamente, na sua raiz, um
conceito específico, opondo-se ao de individualidade natu­
ral 84, e, neste sentido, a teoria da personalidade, bem como

8+ Bem como igualmente ao de individualidade no sentido social,


como, por exemplo, as formas de individualidade, matrizes sociais de acti­
vidade cujo estudo pertence não & psicologia da personalidade, mas sim
às ciências pslcoeociaia.
672 Marxismo e teoria d a personalidade

a ciência experimental que lhe corresponde, não passam senão


de uma parte da psicologia do indivíduo concreto — mas é
a sua parte central. Posto isto, no seio do indivíduo concreto,
a personalidade não se apresenta, bem entendido, à parte,
mas sim, pelo contrário, enquanto imediatamente ligada às
outras estruturações por ela integradas durante o seu per­
curso evolutivo numa totalidade imediatamente presente em__ ,
cada acto. Deste ponto de vista, o conceito específico de per­
sonalidade surge como sendo uma abstracção teórica, e deve
fundir-se num conceito global de personalidade, remetendo
para todos os aspectos do estudo psicológico do individuo, ,
concreto, com a condição capital de nunca se perder de vista j
a hierarquia dialéctica desses diversos aspectos.
Tendo precisado este ponto, toma-se, sem dúvida, possí­
vel compreender, de outro modo que não como sendo O anta­
gonismo de duas teses de princípio, a oposição que se mani­
festa, sobre o ponto preciso da extensão a dar ao conceito
de personalidade, entre as análises principais do meu livro
e as de vários eminentes psicopedagogos da R. D. A. Porque
para opsicopedagogo o problema fundam ental^ o da abor­
dagem teórica e prática de indivíduos concretos, logo, de
seres cuja personalidade é necessariamente apreendida sob o
ângulo da totalidade imediata de todos os aspectos da indi­
viduação. A este respeito, parece-me ser muito significativa
a seguinte observação do Prof. G. Neuner a respeito do
meu livro: «Quanto mais me inclino a considerar a persona­
lidade enquanto relação, tanto mais, contudo, sinto necessi­
dade, enquanto pedagogo, quando pretendo educar, de algo
de consistente. Necessito de poder orientar-me a partir de
alguma coisa, quando tenho de me ocupar concretamente
dessa personalidade.» 85 Reflectindo enquanto filósofo sobre
os problemas teóricos da personalidade, encontrava-me, pelo
contrário, perante um aspecto totalmente diverso do mesmo
problema: procurar isolar, no seio da totalidade imediata que
o indivíduo concreto constitui, as relações específicas essen­
ciais que o constituem enquanto personalidade, e isto num
contexto ideológico em que, opostamente ao que existe na
R. D. A., o papel de base do materialismo histórico neste pro­
blema era quase totalmente desconhecido. Donde, para
mim, a necessidade de utilizar o conceito de personalidade84

84 Information, p. 50.
Posfãclo d a terceira edição francesa ’3

no âmbito da sua oposição específica à individualidade,


encarada como objecto, sem segundas intenções, por aquilo
que se apresenta hoje em dia, na maioria das vezes, como
sendo a psicologia da personalidade. Uma comparação com
tribuirá para esclarecer por completo o meu pensamento: a
prática política marxista confronta-se concretamente com
totalidades que integram elementos extremamente diversos de
determinação numa unidade imediata, tal como a nação, mas,
a fim de pensar a estratégia e a táctica adptadas à luta de
classes que se desenvolve no seio de uma determinada nação,
ela tem necessidade de deslindar este amontoado de deter­
minações graças a uma teoria das relações em última instância
determinantes, e trata-se da teoria do modo de produção,
e posteriormente de todas as relações daí derivadas. O con­
ceito global de personalidade para o qual remete a prática
psicopedagógica parece-me ocupar adentro da psicologia do
indivíduo concreto uma posição homóloga da do conceito
de nação adentro da ciência histórica, ocupando o conceito
específico de personalidade enquanto sistema vivo de rela­
ções sociais entre as condutas, uma posição homóloga da de
modo de produção. Se tal é de facto assim, seria altamente
desejável poder exprimir estes dois conceitos distintos (sendo
um o fulcro do outro) por meio de dois termos igualmente
distintos. Infelizmente, a linguagem comum não nos oferece
praticamente nenhuma possibilidade para tal. Não será certa­
mente inútil reflectir na melhor forma de ultrapassar esta
dificuldade re a l86.
Esta longa explicação sobre a mais central das questões
permitir-me-á ser breve a respeito do problema, no fundo
subordinado, das relações entre o biológico, o psíquico e o
social, no âmbito da concepção da personalidade por mim
proposta. Com efeito, se considerarmos o conceito de perso­
nalidade no seu sentido global toma-se evidente que as deter­
minações biológicas nele se encontram implicadas, e, deste
ponto de vista, só posso estar de acordo com a ideia de que

se a noção de c iên cia da biografia parece-me apta a traduzir, por


distinção relativamente à de teoria da perso n a lid a d e, a ta re fa de um
conhecimento global do Indivíduo concreto. Infelizmente, o ser de que se
ocupa a ciência da biografia não pode praticamente ser designado senão
como sendo o in d iv id u o concreto — termo que não traduz a especificidade
da perso n a lid a d e h u m a n a — ou como a perso n a lid a d e — e voltamos a
cair na ambiguidade que se trata de evitar.
674 jlarxismo e teoria d a personalidade

é necessário «ultrapassar a ruptura entre às duas abordagens,


natural e social, da personalidade» 87, segundo a fórmula de
A. Kossakowski. Sem dúvida que o desenvolvimento de uma
real psicologia da personalidade irá mesmo desempenhar um
papel estimulante no respeitante à investigação biológica,
levando a que se tome patente, de um modo muito mais
claro do que tem acontecido até aqui, o género de processos
biológicos cuja tomada em consideração é efectivamente
pertinente para a ciência da biografia. Todo o problema está,
contudo, em compreender correctamente o modo como o
biológico se toma eficaz no seio dos processos de formação
e de evolução da personalidade. Forçoso é verificar que, a
este respeito, o preconceito biologista, ou seja, a profunda
incompreensão da excentricidade posicionai da essência
humana e dos seus efeitos, continua a estar largamente difun­
dido, apesar da crescente audiência à sua crítica feita pelo
marxismo — a única que é plenamente capaz de o refutar,
porque déle se apercebe. A mais profunda raiz do biologismo
no seio do capitalismo é a alienação, que tem por resultado
•o «constante criar da força de trabalho enquanto fonte de
riqueza subjectiva, separada dos seus meios específicos de
objectivação e realização, abstracta, reduzida unicamente à
existência corporal do trabalhador, em resumo, ao erigir do
trabalhador enquanto assalariado» 8S. Aí reside o fundo ideoló­
gico, consciente ou não, de todo o materialismo biologista e
«médico» burguês, o qual tende a reduzir o indivíduo ao seu
corpo e o pensamento a uma função do cérebro isolado do
património social humano, materialismo redutor que ressurge
incessantementé enquanto não se tiver assimilado até às suas
mais profundas raízes o materialismo histórico.
Nos próprios países socialistas acontece dele encontrarmos
igualmente alguns indícios; por aqui e por ali, objectaram-me,
por exemplo, que «a teoria materialista da. personalidade
é incompatível com as ópticas opostas sobre a impor­
tância decisiva dos factores genéricos ou exógenos, cuja
importância relativa pode variar em cada caso concreto».
Há aqui, na minha opinião, uma banalidade expressa num

w Cf. supra, p. 35.


№ K.Marx, O Capital, llvto I, Marx-Engels Werke, Dietz, t. 23* p. 516,
Traduzo- segundo o texto alemão* jà que esta frase foi omitida na
tradução Roy. Sou eu que sublinho.
Posíàclo da ter-v ' ;a edição francesa 676

tom grave que envolve um erro ainda mais grave. Que as


determinações biológicas marquem a personalidade, nomea-
damente ao afectarem o seu suporte orgânico (por exemplo,
a amnésia de fixação da pessoa idosa, ou, de um modo mais
indirecto, o enfraquecimento físico, que, empobrecendo o
emprego do tempo, tende a esclarecer toda a personalidade),
não vemos quem possa pensar em negá-lo. Em contrapartida,
que elas possam, seja de que modo for, intervir na lógica
específica daí relações sociais entre as condutas (por exem­
plo, na relação entre trabalho e salário), logo, na infra-estru-
tura da personalidade desenvolvida, não vemos quem poderia
pretendê-lo. A afirmação banal citada mais atrás significa,
portanto, pura e simplesmente, que se desconhece integral­
mente a infra-estrutura real da personalidade, que se confunde,
ao mesmo tempo, o suporte biológico e a base histórico-social
da biografia, o que é ingenuamente traduzido pela «teoria
dos dois factores», «biológico» e «social», ou seja, a'«teoria»
que põe no mesmo plano as condições de possibilidade e a
essência efectiva de uma determinada realidade. A «teoria dos
dois factores» em psicologia é o homólogo da «teoria his­
tórica» que se proporia dar conta do desenvolvimento de
uma formação social por intermédio de vários «factores»,
como o solo, o clima, etc. — e a economia. Perante um
eclectismo que barra o caminho a toda a teoria verdadeira- v
mente científica da personalidade, não considero, pela minha
parte, que seja de usar de indulgência, principalmente na
altura em que um biologismo abertamente reaccionário à
moda de Eysenck e de Lorenz procura socorrer a ideologia
burguesa em dificuldades. E parece-me de grande importância
que a Academia das Ciências Pedagógicas da R. D. A., ao
mesmo tempo que sublinha a inegável imbricação entre o
biológico, o psíquico e o social no âmbito de um indivíduo
humano concreto, traga o peso da sua autoridade para o seio
da luta sem tréguas contra o biologismo seja lá sob que
fórma for.
Algumas palavras sobre a questão do «paralelismo econó­
mico-psicológico». Perguntam-me «que é que fornece um
conteúdo bem fundamentado» a esse paralelo. Respondo que,
na minha opinião, apesar de certas aparências, não se trata
realmente de um «paralelismo)), ou seja, em suma, de uma
transposição mecânica. Estarão de acordo comigo se eu disser
que a respeito de inúmeros pontos essenciais o livro sublinha

4.
676- Marxismo e teo».* d a personalidade

energicamente as discordâncias fundamentais entre personali­


dade e formação económica89. Melhor: fundamenta-se, em
larga medida, na evidenciação da oposição existente entre as
suas duas configurações de conjunto: a personalidade, se
possui efectivamente por base as relações sociais, não deixa,
por isso, de ter por suporte uma individualidade biológica
que lhe é, em si mesma, perfeitamente independente, e que
impõe à personalidade uma forma psicológica sem corres­
pondente no mundo das relações sociais — daí o conceito de
justa-estrutura, que exprime directamente um não parale­
lism o— e, ao mesmo tempo, dado que a personalidade não
contém a sua essência em si mesma, a solução das suas contra­
dições internas depende essencialmente de condições sociais
externas — daí a importância psicológica capital da vida
militante—, o que determina uma outra oposição radical
entre personalidade e formação social. É no quadro deste
não paralelismo de conjunto que a teoria da personalidade
é levada, na minha opinião, a definir homologías funcionais,
o que é algo de totalmente diferente. O fundamento dessas
homologías surge-me como sendo duplo. Por um lado, ao
edificarem a ciência da história, Marx e Engels elaboraram
uma dialéctica materialista cujo alcance lógico objectivo é
universal; é, portanto, perfeitamente natural que a teoria da
personalidade seja levada a retomar, por sua conta, certas
figuras dialécticas de que a economia política marxista fornece
o exemplo. É o caso no respeitante a conceitos como corres­
pondência necessária, composição orgânica, baixa tendencial
do índice de progresso — não exprimindo, no fundo, estas
duas últimas noções, adentro da sua forma lógica mais gené­
rica, senão a dialéctica da objectivação de uma actividade no
âmbito dos seus produtos — em particular, no âmbito desses
produtos essenciais que são as suas condições de produção —
e da sua acção de retorno sobre esta actividade. Por outro
lado, se a V I Tese sobre Feuerbach é efectivamente exacta,
as estruturas de base da personalidade reflectem necessaria­
mente, sob formas psicologicamente transpostas, as estruturas
sociais objectivas: também aqui não se trata de paralelismo,
mas sim de conexão funcional. É, por exemplo, o caso no
respeitante à oposição entre personalidade concreta e perso-

89 Cf. por exemplo, supra, pp. 477*481, 626-633, 6Б1-6Б2, etc.


Posfácio da terceira edição francesa 677

nalidade abstracta, a qual reflecte o carácter duplo da merca­


doria e do trabadlo numa sociedade baseada na produção
mercantil. Mas, repito-o, para além dessas homologias, na
minha opinião racionalmente fundamentadas, toda a trans­
posição mecânica de uma ciência para outra, em nome de
uma superficial «epistemología do modelo», seria sinónimo
de ingenuidade científica.
Algumas observações ainda a respeito de uma questão
de viva actualidade ideológica e política, frequentemente
colocada por aqueles que, em França, quiseram ter a bondade
de examinar em pormenor as teses e hipóteses contidas neste
livro — a questão das necessidades. Lembrei resumidamente,
mais atrás, por que razões, do ponto de vista da teoria da
personalidade, a necessidade não poderia ser, não obstante
a sua evidente importância, considerada como um. conceito
primeiro: bem mais do que um dado natural, as necessidades
específicamente humanas são produtos históricos, resultados
da anterior actividade. A psicologia da personalidade não
poderia, portanto, partir delas. Ora, no terreno das lutas
sociais e políticas, no âmbito da perspectiva da execução prá­
tica do Programa Comum da Esquerda, assistimos frequente­
mente ao adiantar da ideia de que é urgente substituir a
satisfação das necessidades à lógica do lucro, ou, a noutros ter­
mos, partir das necessidades individuais e sociais das largas
massas. Dar-se-á então o caso de as análises de Marxismo e
Teoria da Personalidade contradizerem essas ideias essenciais?
De modo algum, tal como veremos — mas, caso sejam
exactas, podem contribuir para ajudar a precisar-lhes o sen­
tido e os limites. Com efeito, que é que se pretende dizer
quando se põe a urgente necessidade de instaurar um regime
que fundamente a sua acção nas necessidades das massas ao
estado de coisas actualmente existente em que a lei do lucro
exerce o seu universal domínio? Pretende dizer-se que importa
voltar a pôr em causa, principiar a alterar a relação funda­
mental que o capitalismo estabelece, e mantém em relação e
contra tudo e todos, entre trabalho morto e trabalho vivo,
subordinando, de uma forma draconiana, as exigências do
segundo à acumulação do primeiro, à apresentação valorativa
do capital como um absurdo «fim em si» — pretende afir­
mar-se que se trata de iniciar o processo revolucionário con­
ducente a tornar o trabalho vivo, a formação dos homens,
o integral desenvolvimento da sua personalidade — logo, a
Marxismo e teo ria da personalidad?

satisfação das suas necessidades—, no fim fundamental (e


simultaneamente na condição primeira para ulteriores pro­
gressos), não passando a acumulação dos resultados objecti-
vados do trabalho senão do meio para tal. Assim, o priori­
tário tomar em consideração das necessidades coincide
directamente com a teoría da personalidade defendida neste
livro, e que é integralmente ordenada em torno da busca das
condições objectivas para um superior desenvolvimento
integral dos indivíduos w. Neste sentido, partir das necessidades
não significa senão colocar a desalienação da actividade numa
posição central.
Mas precisamente, como podemos verificar, a prioridade
das necessidades relativamente ao lucro implica que a activi­
dade é efectivamente a coordenada de base relativamente à
n ecessidadeque não passa, a este respeito, senão de um
índice das suas exigências de desenvolvimento. E atenção:
um índice cujo valor objectivo não pode ser estabelecido sem
Uma confrontação crítica com essas exigências, tal como as
podemos conhecer -através de outras vias. Tomar a necessi­
dade por ponto de partida «absoluto», por outras palavras,
por expressão espontaneamente justa das exigências objecti­
vas de desenvolvimento da actividade, que não seria neces­
sário submeter à crítica, tal equivaleria a expormo-nos a
permanecer prisioneiros de graves ilusões ideológicas, e
nomeadamente de duas. Em primeiro lugar, a necessidade
que se apresenta como ponto de partida é, em geral, a que
aflora à consciência, a necessidade subjectiva. Ora, se é raro
que uma necessidade subjectivamente ressentida não seja,
pelo menos, o sintoma de uma exigência objectiva, não é
também menos raro que ela seja, de imediato, a sua expressão
adequada. Não passa frequentemente da tradução de uma
exigência ainda incompreendida no âmbito das formas misti­
ficadoras da ideologia dominante. Assim, a exigência objectiva
de que o trabalho social se efectúe em condições desalienadas,
longe de vir a resultar, por si mesma, na clara consciência
de que a França tem enorme necessidade de profundas trans­
formações. democráticas, pode manifestar-se entre trabalha-90

90 Of. a esto respeito as observações de P. Herzog sobre o alcance da


obra teórica de F. Boceara, em. Économie et politique, n.° 236, Março de 1974,
p. 38, e os Etudes sur le capitalisme monopoliste d'Etat, sa crise et son
issue, P. Boceara (Êd. Sociales, 19741,-3.» parte.
Fosfáclo da terceira edição francesa 679

dores, entre quadros, pela necessidade subjectiva de «se


sentirem mais úteis dentro da empresa» — dentro da empresa
tal como esta é no seio das relações capitalistas. Não só a
«satisfação» de urna tal necessidade considerada acr¡tica­
mente como uma exigência primeira, «natural», não virá a
ter por resultado a sua real satisfação, ou seja, uma desalie­
nação efectiva da actividade, como também se limitará a
reforçar (temporariamente) a sua alienação91. Neste sentido,
não seria perfeitamente correcto afirmar que o grande capitai
«se está nas tintas» para as «necessidades» dos trabalhadores:
num certo sentido, ele esforça-se ao máximo, pelo contrário,
para a s :satisfazer, mais precisamente para tentar opor a
satisfação das suas formas mats mistificadoras à tomada de
consciência objectiva das profundas exigências que estas
encobrem, por outras palavras, a colaboração de classes à
luta revolucionária. A crítica objectiva das necessidades
subjectivas ressentidas pelas massas, que o sindicato de classe
desenvolve quando intervém na formulação da reinvindicação,
o partido revolucionário quando elabora a palavra de ordem
para a íuta, é, portanto, de uma importância capital — e é
efectivamente a prova concreta de que a necessidade não
poderia ser considerada como uma coordenada verdadeira-
mente primeira. Mas não é tudo: uma outra ilusão primordial,
implicada no seio de um primado não crítico da necessidade,
está em que esta surge como sendo uma coordenada, logo,
pouco ou muito, como sendo uma realidade natural, essen­
cialmente imutável. Ora, tal representa, como é sabido, um
erro de todos os pontos de vista. A pretensa constância
natural das necessidades é, por excelência, uma ideia oriunda
da ideologia burguesa, pela boa razão de que permite esca­
motear os efeitos de uma exploração agravada do trabalho,
e de contestar, no âmbito do próprio princípio, as reinvindi-
cações dos trabalhadores. Não será igualmente um meio
bastante cómodo de procurar subtrair à crítica marxista o
fundo pequèno-burguês de todo um utopismo anarquista e
individualista, apresentado como exprimindo as necessidades

и E precisamente o principio da D. P. O. (Dlrecção Participativa por


Objectivos), método capitalista de organização do trabalho cujos mentores,
como o americano Herzberg, gabam sem vergonha os seus méritos ao
patronato ao explicarem: com um aumento de sal&rlo, estarão tranquilos
por três meses; com a D. P. O. estarão tranquilos por três anos.
680 Marxismo e teoria d a personalidade

imprescritíveis do ser humano? Assim, importante expressão


sintética das exigencias de desenvolvimento de um individuo
(ou de uma colectividade), e, a esse título, base significativa
de referência para toda a prática educativa ou emancipadora,
a necessidade específicamente humana, longe de remeter
para uma «natureza» perante a qual ela só se poderia limitar
a inclinar-se, reflecte, de uma forma mutável e aproximativa,
na maior parte dos casos através das ideologias existentes, as
exigências de uma lógica objectiva de actividade que cons­
titui a sua verdadeira base, logo, igualmente o verdadeiro
ponto de partida, e relativamente à qual é sempre necessá­
rio, bem feitas as contas, submetê-la à crítica. É por isso
que uma teoria das necessidades humanas, enquanto pro­
duto histórico-social, é uma exigência não só por parte da
teoria da personalidade, como também, simultaneamente, por
parte do conjunto das ciências humanas, por parte do con­
junto das práticas transformadoras da sociedade e da biografia
individual.
*

Que me seja permitido, ao terminar, exprimir a minha


gratidão para com. todos aqueles, filósofos, psicólogos ou
especialistas de outras disciplinas, em França ou no estran­
geiro, que se deram ao trabalho de ler atentamente esta longa
obra, de me permitirem usufruir das suas observações críticas,
de me encorajarem com a sua aprovação no respeitante ao
essencial. Nunca me deixei iludir sobre o facto de que, nem
que fosse no melhor dos casos, ela não poderia constituir
senão uma introdução, entre outras, para uma futura ciência
da personalidade. Esta ciência permanece em grande parte
por elaborar. E o contributo de um filósofo para essa elabora­
ção, mesmo sem esbarrar, logo de início, com dificuldades
demasiado grandes92, não poderia constituir, no respeitante

м Proponho-me voltar a falar posteriormente sobre os ргоЫетаз


do em prego d o te m p o - —conceito Ilusoriamente simples, de que poderíamos
ser tentados a servir-nos a um nível meramente empírico, som aprofundar
radicalmente a sua estrutura, o que lhe retirarla todo o alcance cienti­
fico— o sobre os problemas de su p e rs tr u tu r a s, ideologias, Jorm as pessoais
de co nsciência, em particular sobre a Ыодга/ia in te le c tu a l, noção rigoro­
samente Impensável na falta de uma concepção não redutora, não pelcolo-
glsta da. psicologia da personalidade, mas que, à luz de uma tal concepção,
surge como extraordinariamente fecunda.
г . JG3 fácÍo da terceira edição francesa er,
ao essencial, e à medida que vão tendo lugar os seus progressos,
senão um contributo indirecto. Mas o que não é, o que já
não é doravante possível, é o ignorar o fenómeno de que,
na base do materialismo dialéctico e histórico, se encontra
em gestação uma verdadeira ciência da personalidade; que,
para com esta ciência em gestação, cuja importância é incal­
culável, uma certa recusa de levar em linha de conta, por
parte da psicologia, o contributo do marxismo, da filosofia
marxista, surgirá, numa medida sempre crescente, como sendo
uma conduta de autodestruição. Por razões que ultrapassam
infinitamente as idas e vindas da conjuntura ideológica, o
desenvolvimento da psicologia da personalidade, e, mais
genericamente, do conhecimento científico do homem, encon­
tra-se profundamente ligado ao desenvolvimento das forças
democráticas e socialistas, da luta pela desalienação dos
homens, cuja teoria geral é o marxismo. É à luz do marxismo
que irá continuar a desenvolver-se a teoria da personalidade.
i
Dezembro de 1973 - Março de 1974.
ín d ic e d o v o lu m e I I I

CAPITULO IV
Рейв.
HIPÓTESES PARA UMA TEORIA CIENTÍFICA DA PERSO­
NALIDADE ........ ............... •....................................... 415
I —Observações prévias ....................................................... 418
. II —Hipóteses. ... ................... . ..t ................................. 426
'i A ’i- 1. C o n c e ito s d e base. A c to s. C apacidades. O p ro b lem a das ne-
c e s i d a d e s .............. 426
2. In fra -e s tru tu ra s e su p erestruturas. O em prego d o te m p o ... 464
. 3. L e is d e d e se n v o lv im e n to e problem as d a reprodução alar-
■ 8ada. A biografia ... ................................................... 497

CONCLUSÕES

MORTE E TRANSFIGURAÇÃO DA ANTROPOLOGIA ........ 539


POSFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO FRANCESA..................... 577
POSFÁCIO DA TERCEIRA EDIÇÃO FRANCESA..................... 599

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