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RESIDÊNCIA

AGRÁRIA DA UnB

Residência Agrária: experiências de


agroecologia e cultura no campo

Caderno 5

Universidade de Brasília / Faculdade UnB Planaltina


Escola Nacional Florestan Fernandes
Grupo de Pesquisa Modos de Produção e Antagonismos Sociais


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Residência agrária da UnB [recurso eletrônico]: residência agrária: experiências de agroecologia e cultura no campo./ Organização
Beatriz Casado Baides et al.--1.ed.— São Paulo : Outras Expressões, 2016.
e-PUB.
Caderno 5.
R433 Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br.
ISBN 978-85-9482-012-9
1. Agroecologia. 2 Residência agrária. I. Baides, Beatriz
Casado (org.). II. Título.
1,7 mb ; e-PUB : grafs., tabs.
Indexado e GeoDados – http://www.geodados.uem.br. ISBN Outras
Expressões: 978-85-9482-009-9

CDD 320.98
Bibliotecária: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

1ª edição: novembro de 2016

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sumário

Prefácio
Mônica Castagna Molina
Apresentação
Beatriz Casado Baides, Eliete Ávila Wolff, Luís Antônio Pasquetti

Parte 1 – Desafios para a implantação de sistemas agroecológicos e comercialização da produção camponesa
Jardim de cheiro – autonomia e valorização dos usos etnobotânicos, estudo de caso da resistência no acampamento do mst dom tomás
balduíno, em goiás
Fabiane Prado Silveira e Vicente de Paulo Borges Virgolino da Silva
Diversidade etnobotânica e uso para a medicina alternativa e soberania alimentar nos quintais femininos agroecológicos no nordeste goiano
Tatiana M. C. Agostinho, Wesley Júnio de Andrade e Marco Antônio Baratto
Contribuição de 16 assentamentos na economia do município de Unaí/MG
Érica Campos Ribeiro
A conformação da questão agrária no Distrito Federal
Barbara Loureiro Borges e Luiz Henrique Gomes de Moura
Saúde da mulher rural: a história das mulheres do assentamento itauna, afirmação de muitas histórias
Cleonice Cesario dos Santos
Recuperação do solo e os impactos causados pelo agronegócio no acampamento 8 de março – Planaltina/DF
Edineide Soares da Rocha

PARTE 2 – Experiências de formação e a luta por políticas públicas
A cooperação nos assentamentos de Reforma Agrária e as consequências da aprovação da lei 12.690/2012
Fábio Ramos Nunes e Manoel Pereira de Andrade
Assistência técnica e extensão rural: o dilema da formação do extensionista
Tauana Faleiro Barros e Maria Neuza da Silva Oliveira
Escola itinerante de formação Zé Porfírio: contribuições para a formação do campesinato
Wesley Júnio de Andrade, Tatiana M.de Castro Agostinho e Marco Antônio Baratto
Os sem terra e a escola de terra
Rosmeri Witcel

PARTE 3 – Experiências de educação, arte e cultura no campo
Desafios na abordagem da temática indígena em sala de aula
Aldenora Pimentel Batista da Silva e Mônica Celeida Rabelo Nogueira
Agronegócio como fator condicionante da redefinição da hegemonia no tempo e no espaço
Gleciane Cezário dos Santos Machado
A formação dos educadores do centro municipal integrado de educação do campo valmor copati: articulação entre práticas escolares e vida
campesina
Rosana Maria Breier Neideck e João Batista Pereira de Queiroz
Mulheres da Reforma Agrária do assentamento pequeno willian: utilizando práticas agroecológicas
Adriana Fernandes Souza
Mulheres em luta: análise de experiências de engajamento pela permanência no campo
Keyla Morales de Lima Garcia

Parte 4 – Análise de experiências na formação de trabalhadores: pós-graduação em alternância nas universidades
Residência agrária da unb: o papel da formação política na disputa da hegemonia
Geraldo Gasparin e Rafael Villas Bôas
A mística no curso residência agrária: matrizes produtivas da vida no campo
Beatriz Casado Baides e Lindalva Santana
Elementos básicos para a compreensão da relação entre cultura e estratégia política na experimentação cultural do mst
Juliana Bonassa Faria
A importância do curso residência agrária no cotidiano da vida estudantil e profissional do(a) estudante das ciências agrárias
Maria Adriana Alves Dantas
Ciranda infantil e a formação de educadores do campo – a experiência da unb planaltina
Neuza Maria Cezário dos Santos, Eliete Ávila Wolff e Gleciane Cezário dos Santos Machado
SOBRE OS AUTORES

Prefácio

Mônica Castagna Molina

A pesquisa do Observatório da Educação do Campo/Capes intitulada “Análise de práticas contra-


hegemônicas na formação dos profissionais da Educação e das Ciências Agrárias das regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste” tem, entre seus objetivos, a reflexão sobre as experiências formativas
desenvolvidas no âmbito do Programa Residência Agrária.
Concebido como parte das políticas públicas de Educação do Campo, o Residência Agrária foi criado
em 2004, vinculado ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, tendo como meta contribuir
com a formação crítica dos profissionais das Ciências Agrárias, oportunizando processos formativos
com ênfase nas especificidades da Agricultura Camponesa, no intuito de fortalecer um modelo agrícola
bastante diferente do hegemônico na sociedade brasileira. Este modelo hegemônico, baseado no
agronegócio, se estrutura a partir de: intensa concentração fundiária; monocultura; uso máximo de
agrotóxicos; devastação da biodiversidade; redução dos postos de trabalho no campo; e máxima
exploração da força de trabalho utilizada.
Com a perspectiva de fortalecer o modelo agrícola oposto ao hegemômico, no qual o alimento não é
compreendido como mercadoria, mas como direito humano (baseado na promoção de práticas
agroecológicas, na busca da promoção da soberania alimentar, da manutenção da sociobiodiversidade e
da ampliação de postos de trabalho no campo), o Residência Agrária se propôs a desencadear novas
estratégias de formação nas quais estas questões tivessem centralidade para orientação da relação entre
os profissionais desta área e os agricultores.
Na sua primeira edição, lançada em 2004, como experiência-piloto para subsidiar a política pública
que então se gestava, o Residência Agrária ofertou 300 vagas em cinco cursos de Especialização,
envolvendo todas as regiões do país, e articulando 15 Instituições de Ensino Superior (IES), que
trabalharam articuladamente, em rede, nestes cursos de pós-graduação para os profissionais das Ciências
Agrárias. O registro detalhado e as reflexões sobre os êxitos, os equívocos e os desafios desta primeira
experiência estão descritos no livro intitulado: Educação do Campo e Formação Profissional: a
experiência do Programa Residência Agrária (Molina et al., 2009).
Já na ampliação do Programa, que se materializou a partir de um edital em parceria com o CNPq para
que as universidades desenvolvessem os cursos do Residência Agrária, foram ofertados 35 cursos de
pós-graduação, com 1.035 alunos, em todo o país (Pronera, 2015). Porém, com uma relevante
qualificação do desenho da política pública em relação à experiência-piloto inicial: neste novo edital, os
cursos de pós-graduação foram ampliados para diferentes áreas do conhecimento, considerando-se que a
promoção deste outro modelo de desenvolvimento rural requer profissionais de muitos campos
científicos que compreendam as especificidades econômicas, políticas, culturais, sociais, ambientais, dos
modos de trabalho e de produção da vida dos sujeitos camponeses.
Neste sentido, o “Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo,
formação em cooperação, agroecologia e cultura com ênfase na organização social” tem riquíssimas
experiências a serem analisadas. Em muitas delas, importantes elementos do que vimos considerando
como práticas contra-hegemônicas no Observatório da Educação do Campo se fizeram presentes tanto na
formação dos profissionais das Ciências Agrárias, que estiveram no curso, quanto na formação de
educadores, de agentes culturais, de militantes dos movimentos sociais, que dele foram alunos, vindo dos
Estados de Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e do Distrito Federal.
Dentre estes elementos, consideramos importante destacar os que se referem tanto à concepção
epistemológica que orientou o processo formativo, quanto à experiência metodológica, cujos principais
aspectos inovadores serão descritos logo mais.
No tocante à concepção de ciência a orientar o percurso materializado neste Residência Agrária,
consideramos relevante enfatizar o espaço central ocupado pelos integrantes dos diversos movimentos
sociais do campo presentes no curso, nos momentos de reflexão e tomada de decisão permanente sobre
os rumos do processo formativo, a partir da participação na Comissão Político-pedagógica do curso
(CPP), contribuindo com a indicação de materiais de estudo, de docentes a serem convidados, da
proposição de palestras e temas a serem estudados coletivamente, pela proposição e organização de
atividades de Tempo Comunidade, entre tantas outras tarefas pedagógicas por eles desempenhadas, em
permanente diálogo com os docentes da universidade, também integrantes da CPP. Não se imagine ser
este um diálogo tranquilo, sem tensões. Ao contrário. A riqueza epistemológica reside exatamente na
busca da convergência entre as intelegibilidades e distintas leituras da realidade nas quais os estudantes
do curso estavam inseridos, a partir da própria posição dos diferentes sujeitos presentes no processo.
Embora o protagonismo dos movimentos sociais seja um dos princípios da Educação do Campo, em
muitos processos de institucionalização de seus cursos, sejam os do próprio Residência Agrária, ou das
Licenciaturas em Educação do Campo, não tem restado nem uma pequena coadjuvância para os
movimentos, quanto mais a cena principal... Manter este protagonismo é um importante desafio teórico-
prático, que requer constante vigilância, e que foi realizado com muita qualidade durante toda a execução
desta Especialização, legando importantes aprendizados à construção fundamental desta aliança de
classe, entre os movimentos sociais e docentes da universidade, também integrantes da classe
trabalhadora. E, ainda, também pela importância da ressignificação de elementos da falsa dicotomia
campo-cidade, a partir da compreensão das verdadeiras contradições a serem superadas.
De todas as dimensões contra-hegemônicas presentes no referido curso, talvez a principal seja a
própria ousadia de se desafiar a pensar os processos de produção da vida no campo de maneira
absolutamente interligada, buscando romper com as tradicionais fragmentações da ciência, que
compartimentaliza os fenômenos sociais complexos nas suas respectivas áreas científicas: humanas,
biológicas, exatas.
Ao ter como amálgama o trabalho cooperado, como eixo principal das matrizes produtivas da vida no
campo, à qual se articulam a produção agroecológica e a cultura, o curso conduz seus processos
formativos transitando articuladamente entre os diferentes saberes, presentes nestes territórios de
produção da vida, contribuindo muito para ampliar, complexificar e alargar a capacidade crítica de
leitura da realidade dos profissionais que dele participaram, avançando em direção a uma leitura
totalizante dos processos sociais.
Os quatro capítulos nos quais se organizam este livro, escritos a partir dos trabalhos executados pelos
educandos que cursaram esta Especialização, são testemunhos disso que afirmamos. Embora com
diferentes níveis de profundidade, percebe-se, em todos eles, o quanto os profissionais de diferentes
campos avançaram na articulação dos elementos sociais, econômicos, políticos, culturais, ambientais na
análise dos problemas estudados durante o curso, e principalmente, na busca de soluções coletivas, junto
com as comunidades camponesas, para estes problemas e desafios estudados.
E neste ponto, mais dois elementos de práticas contra-hegemônicas se fazem presentes: o primeiro, em
relação à orientação metodológica principal para a condução das pesquisas e dos Trabalhos de
Conclusão de Curso propostos por esta Especialização, baseados nas metodologias cientificas de cunho
participativo, nas quais, os integrantes das comunidades camponesas onde os educandos do curso se
inseriram, não foram tratados como “objetos” de pesquisa, mas como sujeitos conhecedores de sua
realidade, capazes de produzir conhecimento sobre ela, em parceria com os estudantes e docentes da
Especialização nas atividades de Tempo Comunidade (TC).
Articulada a esta dimensão, outro importante elemento de formação na perspectiva contra-hegemônica
que se depreende desta preciosa experiência, diz respeito à maneira como foram tratados tanto o desafio
da relação teoria prática nos processos formativos em curso, quanto a difícil materialização da formação
em alternância na real integração de Tempo Escola e Tempo Comunidade.
A partir da constituição dos Núcleos Territoriais, definidos pelos locais de origem dos movimentos
camponeses presentes no curso e da inserção dos outros estudantes não camponeses nestas mesmas
comunidades, várias ações de intervenção foram planejadas e executadas nestes Núcleos Territoriais, em
articulação com os membros destas comunidades, na perspectiva de desencadear processos de formação
permanentes, a serem geridos pelas Escolas Itinerantes de Formação (EIF), constituídas a partir destes
vários coletivos territoriais.
A experiência de constituição destas EIF é de grande relevância pedagógica, por dar centralidade a
uma das maiores riquezas dos processos formativos em alternância, que são exatamente as inúmeras
potencialidades contidas no Tempo Comunidade.
A constituição destes Núcleos Territoriais para pensar e planejar as atividades de TC está em
processo de enraizamento, tendo continuidade agora na execução de um novo Projeto de Educação do
Campo, na FUP, o Programa Residência Agrária Jovem, ainda em sua fase inicial, mas que, com certeza,
deverá ser objeto de análise e reflexão ao término desta prática, para se extrair os aprendizados dela
resultantes.
A concepção da relação teoria prática presente no curso, compreendida como uma unidade, e não
como momento subsequente, estruturada a partir da categoria da práxis foi, sem dúvida, um dos elementos
pedagógicos mais marcantes desta experiência, o que também se pode comprovar nos textos escritos
pelos estudantes com alguns de seus orientadores. As intervenções nas comunidades, seja na direção
concreta da implantação de sistemas agroflorestais, de hortas orgânicas, de cultivo de medicinais, de
quintais produtivos, todas estas vinculadas à prática da promoção da soberania alimentar, seja as
belíssimas experiências de promoção de práticas culturais nas comunidades protagonizadas pelos
próprios integrantes das comunidades camponesas, como sujeitos produtores de cultura e não apenas
consumidores, conforme apresentado nos trabalhos dos estudantes, e que testemunham o êxito desta
experiência pedagógica.
Ainda se faz necessário destacar outra importante contribuição dada pelo curso, que também se
articula à compreensão da relação teoria prática vinculada aos processos de produção de conhecimento.
Além de ter como orientação metodológica que os processos de pesquisa a serem desenvolvidos pelos
Trabalhos de Conclusão de Curso, os TCCs, deveriam partir de problemas de pesquisa dialogados com
as comunidades camponesas de origem dos educandos e dos territórios nos quais os educandos não
camponeses se inseriram, também nos processos de defesa destes trabalhos científicos, importantes
mudanças metodológicas se processaram.
Foram constituídos momentos coletivos de pré-qualificação destes trabalhos, nos quais toda a turma
pode acompanhar e assistir as pré-defesas, tendo também a oportunidade de apreender sobre as várias
pesquisas que estavam sendo realizadas, bem como apresentar elementos para enriquecer este diálogo.
O mesmo ritual de defesa coletiva, com os trabalhos articulados por temáticas, se reproduziu na defesa
final dos Trabalhos de Conclusão de Curso.
Acrescido a esta riqueza metodológica, há que se destacar que estes momentos de pré-defesa e defesa
foram integrados a atividades pedagógicas nas quais se articulou a graduação com a pós-graduação,
estando presentes, nestes debates, os educandos do Curso de Licenciatura em Educação do Campo da
UnB, muitos deles jovens camponeses dos territórios onde foram realizados os trabalhos de pesquisa que
estavam sendo defendidos, o que proporcionou diálogos bastante instigantes.
A análise e acompanhamento de atividades do Curso de especialização Residência Agrária “Matrizes
produtivas da vida no campo: formação em cooperação, agroecologia e cultura com ênfase na
organização social”, pelo Observatório da Educação do Campo, foi a oportunidade de um imenso
aprendizado.
Aprendizado de que é possível fazer uma ciência diferente, comprometida com as necessidades do
povo brasileiro; que é possível o trabalho coletivo dos docentes na universidade; que é possível o
exercício de uma gestão participativa com os movimentos sociais, e que temos que aprender a dialogar
de igual para igual, enfrentando não só nossos limites pessoais, como as instâncias administrativas e
burocráticas das universidades, que não estão preparadas, e muitas vezes, não desejam, de fato, a
instauração de processos verdadeiramente democráticos...
A todos da equipe docente e discente que participaram da realização deste Residência Agrária,
queremos expressar nossa admiração e gratidão pelas importantes contribuições teóricas e práticas para
o avanço da transformação da universidade e das lutas da classe trabalhadora.

APRESENTAÇÃO

Beatriz Casado Baides, Eliete Ávila Wolff, Luís Antônio Pasquetti

Esta sistematização da produção de conhecimentos foi construída coletivamente por professores e


educandos do Curso de especialização Residência Agrária: “Matrizes Produtivas da Vida no Campo:
formação em cooperação, agroecologia e cultura com ênfase na organização social”, oferecido pela
Universidade de Brasília (UnB), campus Planaltina, coordenado pelo Prof. Dr. Rafael Litvin Villas Boas
e financiado pelo Pronera, em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), sendo uma das 35 propostas aprovadas na segunda edição dos cursos Residência
Agraria, edital 2012.
O Residência Agrária da UnB iniciou-se em agosto de 2013 com 50 alunos, e se encerrou em agosto de
2015 com 34 profissionais concluintes (técnicos de Ates, professores e agentes comunitários) que atuam
nas áreas de Reforma Agrária do Distrito Federal e Entorno, Goiás, Mato Grosso do Sul (Ponta Porã) e
Mato Grosso (Sinop). Por meio do curso, procuramos a articulação das dimensões da agroecologia,
organização social, formação política, cooperação, comunicação, cultura e educação popular, de forma
interdisciplinar e complementar entre teoria e prática. Dessa forma, o curso proporcionou uma formação
em áreas de conhecimento que não costumam ser abordadas de forma articulada, com a intenção de
possibilitar aos residentes uma capacidade de leitura profunda e abrangente dos territórios e
comunidades em que atuam por meio da elaboração de diagnósticos, envolvendo comunidade, ambiente,
escola e dinâmica produtiva, e municiar esses profissionais com diversas metodologias, técnicas e
teorias que os habilitem a formular planejamentos complexos e eficientes à medida que são colocados em
prática. Nesse intuito, o curso contribuiu no desenvolvimento de processos metodológicos e formativos
que visam à construção de redes de produção agroecológicas e culturais que permitam a troca de
experiência entre comunidades rurais e quilombolas e a articulação entre campo e cidade no âmbito da
produção agrícola e da soberania alimentar.
A construção das redes ocorreu na esfera da integração entre os residentes de diferentes núcleos
territoriais mediante atividades promovidas pelas sete Escolas Itinerantes de Formação (EIFs). Todavia,
a construção de redes permanentes depende da consolidação dos processos produtivos em chave
agroecológica, recém-introduzidos, com cinco unidades demonstrativas de produção e com os sistemas
agroflorestais implantados, a saber: Sistema Agroflorestal em consórcio com criação de galinha caipira,
no assentamento Sílvio Rodrigues, em Alto Paraíso (GO); Sistema Agroflorestal (SAF) do Centro de
Formação do Assentamento Gabriela Monteiro, em Brazlândia (DF); Sistema Agroflorestal (SAF) do
Santuário dos Pajés, no setor noroeste do Plano Piloto de Brasília (DF); Sistema agroflorestal do
assentamento Oziel Alves III, em Planaltina (DF); Unidade Demonstrativa de produção de milho crioulo,
no Assentamento Itamaraty, em Ponta Porã (MS); Unidade Demonstrativa de Gado Leiteiro
Agroecológico, no Assentamento Florestan Fernandes, em Unaí (MG). Tivemos, em muitas ocasiões, o
exemplo concreto de que as articulações que envolvem as dimensões da cultura, da formação e da
agroecologia são possíveis e produtivas à medida que sejam encampadas pela estratégia dos diversos
sujeitos coletivos do campo e dos quilombos. O método desenvolvido evidencia uma concepção de
universidade e produção de conhecimento mais exógena que endógena, mais voltada para o diálogo e
para a construção coletiva com as comunidades dos territórios pesquisados, evitando tomá-las como
objetos de análise. Nesse sentido, destacamos que a importância desta sistematização ocorre pela
metodologia adotada que tem a práxis como eixo principal e a inversão da lógica dos cursos tradicionais,
em que apenas a universidade é o centro de produção do conhecimento.
Visando à potencialização do processo de produção, difusão e transferência de conhecimento, no
decorrer do curso, desenvolvemos um sistema que envolveu os residentes, os docentes, orientadores e a
coordenação do curso, que incluiu as seguintes frentes: meta de produção de um artigo por residente por
etapa de Tempo Comunidade; produção de informações textuais e visuais para o blog do curso; na UnB,
durante as etapas de Tempo Universidade, foram realizadas duas edições das Jornadas Universitárias de
apoio à Reforma Agrária, em 2014 e 2015, e dois seminários nacionais, o Conexões III Novos
Horizontes de Mobilização Social e Conexões IV Feminismo, Campesinato e Luta de Classes, além do 1º
Seminário de pesquisadores do Território Quilombola dos Kalunga, realizado na comunidade de
Diadema (GO), em 2014. Essa dinamização de processos de diversas envergaduras, metodologias e
focos estimulou a produção intelectual do curso, e o esforço coletivo entre professores das disciplinas,
residentes, membros da coordenação e orientadores resultou na série de Cadernos do Residência
Agrária da UnB1, que encerramos com o Caderno 5: Experiências de agroecologia e cultura no campo.
Os textos desse quinto e último Caderno estão organizados em quatro partes e partem de um lócus, o
território onde atuam os educandos, e tem a experiência, o trabalho, a realidade concreta, a relação com
os trabalhadores e suas organizações sociais, como matérias-primas essenciais em sua tessitura. A
primeira parte tem textos que oferecem reflexões sobre os desafios para a implantação de sistemas
agroecológicos, reforçando o uso do conhecimento histórico mantido pelos agricultores sobre plantas
medicinais e a diversidade, cuja manutenção é atribuída à presença da mulher no âmbito familiar,
marcando seu papel central, juntamente com a luta pela terra, no resgate dos saberes locais. Por outro
lado, os textos abordam o uso da terra no entorno do DF, a crescente concentração de terra e a
comercialização da produção camponesa.
Na segunda parte, foram selecionados textos sobre experiências de formação e luta por políticas
públicas. Discute-se o papel das cooperativas na produção e na organização do produtor para garantir a
sobrevivência familiar, em oposição à legislação que impede o crescimento das pequenas cooperativas e
favorece as grandes empresas. Medidas que visam diminuir a resistência dos povos do campo contra a
penetração do agronegócio, como é, também, a formação dos técnicos extensionistas que dificulta o
atendimento das demandas do campo. Neste sentido, um artigo relata a luta dos camponeses para garantir
uma formação que atenda os interesses da classe trabalhadora do campo resgatando a agroecologia como
forma de produção, motivadora de uma organização social que aponte para um projeto popular de
desenvolvimento rural sustentável. Nesta mesma direção está colocada a experiência da Escola Nacional
Florestan Fernandes (ENFF), construída pelo próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
A terceira parte apresenta textos sobre experiências de educação, arte e cultura no campo, no âmbito
da luta pela Reforma Agrária. Analisa a implantação do ensino de história e culturas indígenas nas
escolas brasileiras, obrigatório desde 2008, e a formação continuada de educadores em uma escola do
campo, em outro artigo, cujo resultado foi o fortalecimento da escola, dos educadores e estudantes
formando-os como sujeitos de transformação. A parte contextualiza, em outro trabalho, o estágio atual do
agronegócio como elemento conjuntural de análise da Reforma Agrária e, ainda, situa a trajetória de lutas
do Assentamento da Reforma Agrária Pequeno Willian, conquista do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST-DF). Em outro texto se resgata o protagonismo das mulheres e suas propostas de
autossustentação com práticas agroecológicas. A invisibilidade da mulher no meio rural, decorrente do
patriarcado, manteve o homem no papel de marido, como único provedor econômico do núcleo familiar
reconhecido socialmente, gerando o ocultamento da mulher em seu protagonismo histórico na produção
da vida. Os trabalhos desenvolvidos a respeito da mulher camponesa revelam a realidade desigual que se
impõe sobre sua individualidade, sua força coletiva, criativa e produtiva, sendo, portanto, fundamentais
como denúncia. A mulher também é apontada como defensora da agroecologia no âmbito da comunidade
e da educação do campo. O próprio nome da turma, Marias da Terra, expressa a identidade feminina que
esteve atuante e demandante, denunciando verdades e anunciando sonhos, propondo novos jardins.
Por fim, na quarta e última parte, a coordenação do curso se desafiou a elaborar vários textos que
contribuem com o debate e análise de experiências de formação de trabalhadores em alternância, nas
universidades. O curso resgata a relação entre política, cultura e agroecologia. O primeiro artigo desta
parte procura explorar os efeitos deste esforço na formação humana voltada para a coletividade. Analisa
o papel do coletivo de educadores empenhado em propor e dar subsídios para a formulação do trabalho
pedagógico e para sua fundamentação teórico-prática. Tal e como assinalávamos, através das atuações
dos estudantes nos territórios, se materializaram, por meio da organização social nos Núcleos
Territoriais, ações de formação política, cultural e técnica para além do curso, por meio das Escolas
Itinerantes de Formação (EIFs), resultantes da produção e da dinâmica do curso, na relação com as
turmas e os territórios.
A valorização da cultura no processo de formação tornou-se um elemento catalizador tanto para a
turma quanto para as ações territoriais. Nas ações concretas de diversos NTs, emergiram manifestações
representando as propostas de mudança ou as identidades locais. A mística é destacada, também, como
instrumento político-cultural da formação pedagógica. Tornou-se, para o grupo de estudantes, recurso
didático acessível, tendo sido utilizada como prática transformadora individual e coletiva. Por fim, um
dos trabalhos se dedica a estudar os efeitos que a educação infantil proporciona ao curso de Residência
Agrária, possibilitando que as mães estudantes possam acessar sua formação profissional. A ciranda
acolhe as crianças e provoca, ao mesmo tempo, a reflexão sobre a educação infantil e a infância no
campo, além do debate sobre a necessidade do trabalho solidário e coletivo no contexto da educação.
Esta produção se apresenta, ainda, como um desafio para compreender como as diferenciações da
produção da cultura, da agroecologia se relacionam no espaço territorial, entendendo que as relações de
classe produzem diferentes territórios em permanente conflitualidade, assim como ocorre nas relações
sociais de produção da vida. Os territórios referenciados nos artigos produzidos têm como espaço
geográfico: Distrito Federal e Entorno, compreendido pelos territórios do Nordeste Goiano, Noroeste
Mineiro e regiões dos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
O curso estabelece múltiplas relações com as comunidades do entorno do DF, penetrando de maneira
mais incisiva na organização comunitária, ao promover ações que resultam necessariamente em
momentos contínuos de análise, por coletivos locais. A inserção promove e incentiva a criação de
espaços de aprendizagem para a juventude, recolocando a noção de futuro e produção da vida no
contexto do campo, opondo-se à perversidade da tendência à expulsão da terra conquistada, muitas
vezes, pela luta. O curso propôs, por meio de sua coordenação, a realização do currículo como práxis,
resistindo ao abandono da terra, valorizando-a enquanto meio de produção da vida.
Para a Educação do Campo e, em especial, para o Curso de Licenciatura em Educação do Campo, o
trabalho desenvolvido pelo Residência Agrária representou o fortalecimento da relação institucional
entre escola e comunidade, através das organizações e coletivos locais. A criação dos Núcleos
Territoriais tornou mais orgânica a presença da educação do campo nas suas regiões de inserção. Trouxe
a pesquisa sobre os contextos para as mãos daqueles que atuam e propõem transformação, integrados às
comunidades, rejeitando o academicismo e o isolamento da produção do conhecimento.
Esperamos que a leitura deste livro contribua com a pesquisa, reflexão e formação de outros
educandos, de lideranças de organizações sociais e sirva para fortalecer a lógica da cooperação na
construção de conhecimentos nas universidades.

Série de Cadernos do Residência Agrária da UnB: Caderno 1: Escolas itinerantes de formação; Caderno 2: Cultura, arte e
comunicação; Caderno 3: Comunicação e disputa da hegemonia; Caderno 4: Teatro político, formação e organização social. Todos eles,
junto com o presente Caderno, estão disponíveis no blog do curso: <www.matrizesprodutivasdavidanocampo.wordpress.com>.

PARTE 1
DESAFIOS PARA A IMPLANTAÇÃO DE
SISTEMAS AGROECOLÓGICOS E COMERCIALIZAÇÃO
DA PRODUÇÃO CAMPONESA

JARDIM DE CHEIRO – AUTONOMIA E VALORIZAÇÃO DOS USOS
ETNOBOTÂNICOS, ESTUDO DE CASO DA RESISTÊNCIA NO
ACAMPAMENTO DO MST DOM TOMÁS BALDUÍNO, EM GOIÁS

Fabiane Prado Silveira e Vicente de Paulo Borges Virgolino da Silva

Introdução
O presente trabalho apresenta a experiência vivida nas atividades realizadas no Acampamento Dom
Tomás Balduíno1, ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Complexo
Agropecuário Fazenda Santa Mônica, pertencente ao Senador da República, Eunício Oliveira. Seu
histórico perpassa por pressões de venda da terra, sofridas por inúmeras famílias para a formação de
arrojado complexo agropecuário. A fazenda possui aproximadamente 22 mil hectares e faz divisa com
três municípios goianos, Corumbá, Alexânia e Abadiânia.
No documentário de Camila Freitas, para cinema, com o título Passarim2, há registros de depoimentos
de ex-moradores que contam, com certos detalhes, a opressão sofrida na história desse território: a
destruição das fruteiras antigas, das grandes matas, com a mudança drástica da paisagem, do ponto de
vista da agrobiodiversidade e do povoamento; a mudança de estradas, o trancamento de porteiras até a
insistência da compra e o ilhamento dos que resistissem.
O modelo de produção agrícola, adotado pelo complexo agropecuário, opera a partir de poucas
matrizes de produção, com rebanhos de gados de corte e monocultura de soja, característica
desenvolvida depois dos impactos da revolução verde3, uma agricultura altamente tecnificada com
insumos oriundos das indústrias e grandes áreas de produção primária de exportação.

A questão agrária
Souza (2009) aponta que a questão agrária dialoga não somente com a propriedade e a concentração
de terras, mas também com questões relacionadas à soberania, à segurança alimentar e à diversidade.
O modelo, dito hegemônico, se apresenta como o modelo produtivo capitalista, cujo desenho é a
monocultura, com os objetivos que não são, nem o de viver da terra, nem, tampouco, a produção de
alimentos que esta função rural determinaria, mas, sim, o acúmulo de capital, a qualquer custo.
Segundo Moura et al. (2013), “o capital tende a mover-se para as atividades que multipliquem em
maior quantidade e no menor espaço de tempo o próprio capital”. Neste sentido, a questão agrária no
Brasil, em suas aparentes incongruências, apresenta-se a serviço da especulação financeira, atrelada aos
modos de produção engendrados no consumo de fertilizantes químicos, no alto consumo de agrotóxicos,
na pouca mão de obra humana e na pouca diversidade na produção.
Em contraposição ao modelo da revolução verde, e alicerçada pelas escolas da ecologia, das
chamadas agriculturas alternativas e das resistências dos processos históricos de lutas dos movimentos
sociais do campo, surge a Agroecologia, que propõe o resgate dos saberes tradicionais, dialogando com
os conhecimentos científicos, nas abordagens das análises dos agroecossistemas de modo
multidimensional, compreendendo a complexidade dos processos e superando a fragmentação da ciência
cartesiana e positivista. Uma ciência em movimento, se aproximando de realidades concretas, se
propondo ao desenvolvimento de tecnologias sociais e apropriadas, privilegiando processos mais
sustentáveis, buscando o equilíbrio de aspectos sociais, ambientais e econômicos.
Dentre os modelos produtivos com princípios e fundamentos agroecológicos, e que ajudam a compor
processos agroecológicos, podemos citar a agricultura orgânica, a biodinâmica, a permacultura, dentre
outras que desenvolvem técnicas que ajudam a compreender com se dão as interações de fatores bióticos
e abióticos na natureza. Dentre as muitas técnicas desenvolvidas, com foco na produção agropecuária,
junto a sistemas agroflorestais e sistemas agrossilvipastoris, o objeto foco deste estudo, o Jardim de
Cheiro, remete a questões de resgate de conhecimentos etnobotânicos e, de forma ampliada, pode trazer
processos de autonomia e soberania alimentar, atrelados à discussão de gênero, proporcionando aspectos
de saúde e pensando a integralidade do ser humano.

Jardim de Cheiro
Jardins de Cheiro são espaços potencialmente úteis em diversos aspectos. Geralmente são espaços
femininos em volta da casa, com grande diversidade de plantas, utilizadas em alimentos, condimentos e
remédios. Árvores frutíferas, de porte mais elevado, convivem com arbustos, capins e plantas rasteiras.
A autonomia gerada por esses processos tradicionais fortalece também sua soberania enquanto população
detentora de matrizes genéticas e conhecimentos passados de geração a geração.
O desenvolvimento agrícola, adotado globalmente nos dias de hoje, e a acelerada urbanização
possuem características que invisibilizam as peculiaridades regionais, trazendo uma série de perdas de
conhecimentos populares, paisagens, matrizes genéticas ancestrais e o esvaziamento do campo com
acelerado crescimento urbano e, principalmente, o periurbano.
Há pouca interlocução dos processos hegemônicos entre os aspectos de conservação biológica e
cultural, constituído de força financeira poderosa, intervindo em paisagens, culturas e referenciais
históricos, em prol de um discurso desenvolvimentista.
Costa (2008) afirma que, no mundo contemporâneo, o controle da produção global está nas mãos de
multinacionais, gigantescas corporações transnacionais. E que o avanço e domínio sobre tecnologias têm
sido usados com finalidades lucrativas, privatizando conhecimentos, muitas vezes, se apropriando da
biodiversidade e saberes tradicionais nascidos e transmitidos ao longo da própria história da
humanidade.
A agricultura industrial vem, cada vez mais, ocupando os lugares antes determinados pela agricultura
de comunidades, que viam no chão de plantar e preservar, a soberania alimentar e a autonomia em cuidar
da saúde. Para Sauer (2013), os processos agroecológicos transitam em diálogo numa construção social,
nas interações entre pessoas, recursos, localizações e ações, em consequentes mudanças socioambientais.
É, portanto, no paradigma dessa ciência que se propõe o desenvolvimento deste trabalho.
Os jardins medicinais proporcionam a autonomia na preservação de práticas, matrizes genéticas e
conhecimentos ancestrais. Santos et al. (2011) afirmam que apesar de existirem estudos sobre toxidade e
benefícios das plantas medicinais, a literatura científica ainda é pequena, sobre conhecimentos,
propriedades terapêuticas e usos. Uma comunidade que desenvolve sua autonomia nos jardins
fitoterápicos pode auxiliar no controle de diversos males para a saúde.
Já Altieri (2012) propõe a Agroecologia como método de potencializar o patrimônio ecológico
planetário, nos modos de produção da agricultura familiar, apontando cinco motivos: segurança
alimentar, conservação dos recursos naturais, diversificação de alimentos, manutenção da
agrobiodiversidade sem transgenia e a criação de microclimas.

Paisagens biodiversas, dimensões e desafios
Em cinco meses de ocupação de pequena fração do latifúndio4, o caso do Acampamento Dom Tomás
Balduíno mostrou a transformação da paisagem, com a produção de alimentos em bases agroeclógicas.
Reafirmou, também, o resultado da perda dos conhecimentos tradicionais, da desvalorização desses
saberes, da não transmissão desses conhecimentos, dos processos de êxodos rurais, gerando perdas
culturais que agem diretamente sobre a autonomia e soberania intrínsecas a esses conhecimentos. Nos
processos de lutas e reocupações de terras, esses conhecimentos são naturalmente absorvidos e
retransmitidos em processos dialógicos de organização social.
Segundo Konder (2009, p. 113-114), as relações do indivíduo com seu âmbito social são inseparáveis
e entre o ser humano e as relações criadas em sua construção histórica, influenciando diretamente o ser
social em sua existência, integrados em sua própria essência. Para tanto, é preciso ver os indivíduos
como sujeitos de ação, em constante transformação, em determinado espaço real, com sua peculiar
interação social.
Os saberes tradicionais, que têm suas referências relacionadas às plantas de convívio, ao bioma de
origem e plantas adaptadas, interligados aos hábitos alimentares e à saúde, são elementos culturais que
perdem seus referenciais nas práticas que vão desaparecendo. Reconstruir esta valorização e o acesso a
esses recursos genéticos pode contribuir para o fortalecimento cultural do pertencimento à terra, na
cultura da comunidade.

Aspectos metodológicos
Foram ao todo oito visitas, ocorridas entre setembro de 2014 e março de 2015. Na primeira, houve o
reconhecimento do território e das famílias que ali estavam. Nas três seguintes, houve o contato através
de doação de diversas plantas medicinais e frutíferas, além de visitas aos plantios de roçado, às matas de
galeria e, também, aos jardins dos barracos.
Em todas as visitas, houve troca de conhecimentos, levantamento de informações sobre as
circunstâncias que os levaram até ali. Privilegiou-se o diálogo sobre as questões ambientais, políticas e
culturais. Esta pesquisa buscou ouvir conhecimentos de vida da comunidade: “o Diagnóstico Rural
Participativo (DRP) pretende desenvolver processos de pesquisa a partir das condições e possibilidades
dos participantes, baseando-se nos seus próprios conceitos e critérios de explicação” (Verdejo, 2006).
Neste sentido, as visitas se concentraram muito mais em colher os conhecimentos etnobotânicos do que
em tentar transmiti-los. Este processo proporcionou ouvir a comunidade local, a fim de comparar seus
conhecimentos aos reconhecidamente comprovados pela ciência, buscando, assim, fortalecer seus
processos de construção de conhecimento.
Nos depoimentos registrados em vídeo, nota-se que o aprendizado é passado de geração a geração e,
mesmo com o deslocamento de zonas rurais para áreas urbanas, ainda permanece ativa a prática
relacionada e esses conhecimentos ancestrais. Observou-se a sabedoria popular na valorização das matas
e na consciência de que as árvores são responsáveis pelos ciclos das águas e seu equilíbrio.
A metodologia não reuniu os grupos pesquisados, as entrevistas e visitas foram isoladas, individuais,
para cada pessoa, família, ou vizinhos. As perguntas passaram pelo local de origem, o que fez com que
eles quisessem um pedaço de terra, saindo da cidade e voltando para o campo. A maioria dos
entrevistados nasceu em área rural e depois foi para a cidade.
A pesquisa teve, também caráter participante, como elemento de empoderamento das populações mais
vulneráveis, com base na pesquisa-ação com abordagem qualitativa. Estes procedimentos levaram a
pesquisa para o cotidiano da comunidade, circulando pelos espaços e entre as pessoas, trocando
experiências e conhecimentos e, também, aprendendo com os processos vivenciados na comunidade.
Toledo et al. (2013) lembra a importância destas formas de pesquisa participativa e sua origem no
Brasil. Na América Latina, não só a pesquisa-ação, mas as pesquisas participantes de maneira geral
surgem nas experiências de Paulo Freire, entre as décadas de 1960 e 1970 e de Carlos Rodrigues
Brandão, Danilo Strech, entre outros, preocupados, também, com a participação dos grupos sociais
considerados excluídos da tomada de decisões para a solução de problemas coletivos, tendo, portanto,
um conteúdo bastante politizado.
A socialização dessas práticas como elemento agregador, aproximando comunidades em prol de um
bem-estar coletivo, buscando autonomia de conhecimentos, é estratégia essencial para valorização desses
saberes tradicionais que vêm perdendo espaço, e seus sabedores se encontram em situação de
vulnerabilidade no que se refere até mesmo ao conflito pela terra.
O DRP também foi elemento importante da metodologia para a aproximação, conhecimento e
reconhecimento tanto da comunidade quanto do território, no intuito de compreender os processos que
envolvem o conhecimento etnobotânico da comunidade e buscando salientar que eles são detentores de
conhecimentos valiosos que precisam ser fortalecidos individual e coletivamente.
Na tabela 1, são apresentadas algumas das plantas citadas e mostradas na mata e nos jardins quintais,
sistematizadas de forma simples com o nome popular, o nome científico, alguns dos usos etnobotânicos e
estudos bibliográficos sobre comprovação científica. Na maior parte das identificações, é possível
perceber que a ciência já comprovou diversos usos populares e quando não, Lorenzi (2002) salienta que
não houve estudos comprobatórios, porém, apresenta seus usos seculares no Brasil e no mundo.
Tabela 1 – Dados sistematizados
Nome Usos
Nome científico Comprovação científica
popular etnobotânicos
Alevante Mentha Citrata, L. Febre, gripe. Antiviral, gases,
Diabetes, feridas,
Babosa Aloe vera Cicatrizante, antimicrobiano.
câncer.
Plectranthus barbatus
Boldo Estômago Gastrite, dispepsia, azia, mal-estar gástrico.
Andrews
Cipó do Arrabidaea chica (Humb. &
Anemia, rins. Anti-inflamatória, imunoreguladora.
Índio Bonpl.) B. Verl.
Bronquite, asma, Diurético, expectorante, antimicrobiana, anti-
Copaíba Copaífera langsdorffii Desf.
pneumonia. inflamatória, cicatrizante.
Hepatite,
Jurubeba Solanun paniculatun L. Anemia e problemas hepáticos.
amarelão.
Verme,
Chenopodium
Mastruz enfermidades Contusões, vermífuga.
ambrosioides, L.
internas.
Picão Bidens pilosa L. Hepática. Hepatoprotetora, febre, bactericida.
Poejo Mentha pulegium L. Gripe, gases. Bronquite catarral.
Coutarea hexandra (Jacq.)
Quina Anti-inflamatória. Anti-inflamatória.
Schum.
Fonte: Lorenzi (2002) e Oliveira et al. (2009) e Pesquisa de Campo (entrevistas).

Conclusão
A realidade da Fazenda Santa Mônica configurou o esvaziamento do território, o desaparecimento de
grandes áreas de vegetação nativa e, consequentemente, o desalojamento de inúmeras espécies animais
silvestres. Essa transformação não ocorreu de forma espontânea, mas, sim, através da força do poder
econômico.
Foram encontradas, nos quintais familiares, dezenas de espécies cultivadas e já em uso etnobotânico,
como as pílulas de babosa e o poejo, cultivado por mães, entre diversas outras plantas. A erosão dos
conhecimentos e práticas etnobotânicas em comunidades que, não tendo a terra, vão morar em áreas
urbanas, torna evidente a fragilidade que essa perda pode gerar, com impactos nas próximas gerações. A
população urbana, por consequência, sofrerá o empobrecimento referente a esta falta de autonomia e de
soberania de seus conhecimentos.
O vídeo, produzido como parte dos resultados apresentados nesta pesquisa, pôde colaborar de forma
diferenciada, revelando a realidade dos depoimentos documentados em sons e imagens. O levantamento
realizado a partir das espécies medicinais em relação aos conhecimentos populares mostrou a
comprovação científica dessa sabedoria, em sua maior parte, positiva.

Referencial bibliográfico
ALTIERI, M. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. São Paulo: AS-PTA, 2012.
CALDART, S. R.; PEREIRA B. I.; ALENTEJANO P.; FRIGOTTO G. (orgs) Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro e
São Paulo: Expressão Popular, 2012.
CONDER, L. Marxismo e alienação: contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação. São Paulo: Expressão
Popular, 2009.
COSTA, E. A globalização e o capitalismo contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
LORENZI H. & MATOS, F. J. A. Plantas medicinais no Brasil: nativas e exóticas. Nova Odessa/SP: Editora Instituto Plantarium,
2002.
SAUER, S. e BALESTRO, M. V. (orgs) Agroecologia e os desafios da transição agroecológica. São Paulo: Expressão Popular,
2013.
VERDEJO, E. M. Diagnóstico rural participativo: guia prático DRP. Brasília: MDA / Secretaria da Agricultura, Familiar, 2006.
SOUZA, A. S. Questão agrária e agroecologia: autonomia e diversidade na reconstrução do meio rural. XIX Encontro Nacional de
Geografia Agrária, São Paulo, 2009.
Fontes pesquisadas na internet
FREITAS, C. Filme documentário “Passarim”. Disponível em: <http://vimeo.com/112022804>. Acesso em: 27 dez. 2014.
MOURA, L. H. G.; MACHADO, L. C. P.; VILLAS-BÔAS L. R. Questão Agrária e Hegemonia: manejos dos agroecossistemas em
um pré-assentamento em Planaltina/DF. Revista Cadernos de Agroecologia, v. 8, n. 1, 2013. Disponível em: <www.aba-
agroecologia.org.br/>. Acesso em: 18 mar. 2015.
OLIVEIRA, P. C. D.; BORRÁS, L. R. M.; FERREIRA, L. C.; LOZANO, L. J. Atividade anti-inflamatória do extrato aquoso de
Arrabidaea chica (Humb. &Bonpl.) B. Verl. sobre o edema induzido por venenos de serpentes amazônicas. Rev. Bras.
Farmacologia, v. 19, n. 2b, João Pessoa, 2009. Disponível em: <www.scielo.com.br>. Acesso em: 20 mar. 2015.
TOLEDO, R. F.; JACOBI, P. R. Pesquisa-ação e educação: compartilhando princípios na construção de conhecimentos e no
fortalecimento comunitário para o enfrentamento de problemas. Educação e Sociedade, v. 34, n. 122. Campinas, jan./mar.
2013. Disponível em: <www.scielo.com.br>. Acesso em: 18 mar. 2015.

O nome do Acampamento é uma homenagem do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a Dom Tomás Balduíno,
Bispo Emérito da Cidade de Goiás, um dos fundadores da Comissão Pastoral da Terra, defensor dos direitos dos povos do campo,
falecido em maio de 2014.

Disponível em: <http://vimeo.com/112022804>.

“No Brasil, a revolução verde se deu através do aumento da importação de produtos químicos, da instalação de indústrias produtoras e
formuladoras de agrotóxicos e do estímulo do governo, através do crédito rural, para o consumo de agrotóxicos e fertilizantes” Silva et
al. 2005 apud Meirelles, 1996.

O termo, de origem latina, era usado na Roma antiga para referir-se às extensões de terra controladas pela aristocracia, e passou a ser
utilizado para designar grandes propriedades de terra em geral (Caldart, 2012).

Diversidade etnobotânica e uso para a medicina alternativa e soberania alimentar
nos quintais femininos agroecológicos no nordeste goiano

Tatiana M. C. Agostinho, Wesley Júnio de Andrade e Marco Antônio Baratto

Introdução

Se uma crise alimentar existe é porque existiria também uma crise do padrão de desenvolvimento imposto à agricultura nos últimos
quarenta anos. Ainda que se ostente o aumento espetacular da produtividade nesses anos em alguns cultivos e atividades agropecuárias,
fato é que as mencionadas crises geram problemas e impasses que gradualmente começam a ganhar momentum, indicando crescentes
dificuldades de manutenção do padrão produtivo ‘moderno’ implantado no período pós-guerra (Altieri, 2004, p.8).
Segundo a FAO, hoje, quase 870 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de desnutrição crônica.
Modelo insustentável de desenvolvimento, o agronegócio vem degradando o meio ambiente, ameaçando
os ecossistemas e a biodiversidade, que são meios necessários para garantir o fornecimento de alimentos
no futuro.
A Via Campesina (1996) afirma que é direito de cada nação manter e desenvolver os seus alimentos,
tendo em conta a diversidade cultural e produtiva, em que um dos principais objetivos é promover a
agricultura local, de base camponesa, em pequena e média escala, contrapondo a lógica da expansão do
capitalismo transnacional de produção agroexportadora, que controla hegemonicamente toda a cadeia de
produção. É justamente este setor que aprofunda a exploração da força de trabalho e a dependência
econômica em torno do modelo agroexportador internacional, implicando, assim, em índices alarmantes
de desigualdades sociais e nações inteiras ainda sem condições de alimentar seu povo.
Hoje, esta reivindicação já não se circunscreve apenas ao mundo camponês, mas também é reclamada
por amplos setores sociais. Alimentar-se, e poder decidir como o fazer, é coisa de todos. Em resumo, ter
soberania plena para decidir o que se cultiva e o que se come (Vivas, 2014).
Sabe-se que os camponeses produzem o alimento nosso de cada dia e, embora quase sempre em
pequena escala, se observa que quando o fazem de forma cooperada e organizada, utilizando-se de
sementes crioulas e conhecimentos tradicionais, estão intimamente vinculados à segurança alimentar das
comunidades, preservam os alimentos tradicionais das regiões onde estão inseridos, além de contribuir
para uma alimentação balanceada e saudável. Trazem consigo um vasto conhecimento sobre plantas úteis
para a cura e prevenção de doenças. Assim, a abordagem agroecológica provou ser culturalmente
compatível, na medida em que se constrói com base no conhecimento agrícola tradicional, combinando-o
com elementos da moderna ciência agrícola (Altieri & Hecht, 1989).
A população brasileira, de um modo geral, guarda um saber significativo a respeito de métodos
alternativos de cura das doenças mais frequentes. As comunidades tradicionais possuem uma bagagem
maior sobre o assunto, porém, sofrem ameaças constantes devido à influência direta da medicina
ocidental moderna e pelo desinteresse dos jovens das comunidades, interrompendo assim o processo de

Diversidade etnobotânica e uso para a medicina alternativa e soberania alimentar
nos quintais femininos agroecológicos no nordeste goiano

Tatiana M. C. Agostinho, Wesley Júnio de Andrade e Marco Antônio Baratto

Introdução

Se uma crise alimentar existe é porque existiria também uma crise do padrão de desenvolvimento imposto à agricultura nos últimos
quarenta anos. Ainda que se ostente o aumento espetacular da produtividade nesses anos em alguns cultivos e atividades agropecuárias,
fato é que as mencionadas crises geram problemas e impasses que gradualmente começam a ganhar momentum, indicando crescentes
dificuldades de manutenção do padrão produtivo ‘moderno’ implantado no período pós-guerra (Altieri, 2004, p.8).
Segundo a FAO, hoje, quase 870 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de desnutrição crônica.
Modelo insustentável de desenvolvimento, o agronegócio vem degradando o meio ambiente, ameaçando
os ecossistemas e a biodiversidade, que são meios necessários para garantir o fornecimento de alimentos
no futuro.
A Via Campesina (1996) afirma que é direito de cada nação manter e desenvolver os seus alimentos,
tendo em conta a diversidade cultural e produtiva, em que um dos principais objetivos é promover a
agricultura local, de base camponesa, em pequena e média escala, contrapondo a lógica da expansão do
capitalismo transnacional de produção agroexportadora, que controla hegemonicamente toda a cadeia de
produção. É justamente este setor que aprofunda a exploração da força de trabalho e a dependência
econômica em torno do modelo agroexportador internacional, implicando, assim, em índices alarmantes
de desigualdades sociais e nações inteiras ainda sem condições de alimentar seu povo.
Hoje, esta reivindicação já não se circunscreve apenas ao mundo camponês, mas também é reclamada
por amplos setores sociais. Alimentar-se, e poder decidir como o fazer, é coisa de todos. Em resumo, ter
soberania plena para decidir o que se cultiva e o que se come (Vivas, 2014).
Sabe-se que os camponeses produzem o alimento nosso de cada dia e, embora quase sempre em
pequena escala, se observa que quando o fazem de forma cooperada e organizada, utilizando-se de
sementes crioulas e conhecimentos tradicionais, estão intimamente vinculados à segurança alimentar das
comunidades, preservam os alimentos tradicionais das regiões onde estão inseridos, além de contribuir
para uma alimentação balanceada e saudável. Trazem consigo um vasto conhecimento sobre plantas úteis
para a cura e prevenção de doenças. Assim, a abordagem agroecológica provou ser culturalmente
compatível, na medida em que se constrói com base no conhecimento agrícola tradicional, combinando-o
com elementos da moderna ciência agrícola (Altieri & Hecht, 1989).
A população brasileira, de um modo geral, guarda um saber significativo a respeito de métodos
alternativos de cura das doenças mais frequentes. As comunidades tradicionais possuem uma bagagem
maior sobre o assunto, porém, sofrem ameaças constantes devido à influência direta da medicina
ocidental moderna e pelo desinteresse dos jovens das comunidades, interrompendo assim o processo de
transmissão do saber entre as gerações (Amoroso, 1996). A desagregação dos sistemas de vida
tradicionais que acompanham a devastação do ambiente e a inclusão de novos elementos culturais
ameaçam muito de perto a perda de acervo dos conhecimentos empíricos e do patrimônio genético, de
valor inestimável para as gerações futuras (Amoroso & Gély, 1988).
Dentre os objetivos deste estudo, destacamos o levantamento botânico dos quintais no assentamento
Bom Sucesso, das variedades de espécies comestíveis presentes nos quintais e identificar as espécies de
uso medicinal. Para este diagnóstico utilizou-se da metodologia do diálogo de saberes, documentação
fotográfica e coleta de material vegetativo das plantas citadas que permitiram a troca de conhecimentos e
saberes empíricos, numa relação de ensino-aprendizagem. A fim de conhecer seus principais usos, foi
feito um resgate de conhecimentos tradicionais servindo como estratégia de conservação da espécie e
possíveis fornecedores de sementes.

Metodologia

Para esse levantamento foi utilizada a metodologia do diálogo de saberes que é a confluência ou o
encontro do conhecimento científico, sistematizado, comprovado, aprendido na escola, com o
conhecimento ou saber popular, adquirido por meio da experiência de vida, nas diversas dimensões, que
expressa o que faz sentido para ele, sua visão de mundo, sua identidade de camponês (MST, 2012).
Utilizou-se de um questionário semiestruturado com objetivo de buscar um sistema de compreensão e
planejamento dos agroecossistemas familiares e o desencadeamento da experimentação em agroecologia,
a implementação da transição agroecológica e o estabelecimento de agroecossistemas sustentáveis
(Oliveira et al., 2012).
Também foram coletadas amostras de parte das plantas para posterior identificação e comprovação da
família e da espécie de cada uma delas. Para identificar cientificamente as espécies citadas pelos
assentados, utilizou-se bibliografia especializada, revisões e estudos taxonômicos disponíveis bem como
chaves de identificação e descrição específicas. O sistema adotado para a identificação das famílias das
plantas foi o Cronquist (1981), sistema que classifica as plantas superiores, com flores, as angiospermas,
em duas classes, monocotilédones e dicotiledôneas, facilitando, dessa maneira, sua classificação nas
famílias. As exsicatas ajudaram na confirmação das identificações, pelas características morfológicas.
As indicações de doenças propostas pelos assentados e as espécies identificadas foram agrupadas com
base na proposta da Organização Mundial da Saúde (2000).
Tendo como base o uso e a ocorrência para se analisar a importância da espécie de maneira
quantitativa, utilizou-se o valor de uso e foi aplicada a fórmula proposta por Phillips e Gentry, (1993a,
1993b) e Phillips et al. (1994):
VU= ∑ ( U/n)
VU = Valor de uso
U= Número de citações da espécie
n= Número de informantes que citaram a espécie
VU ≥ 1,00
O valor de uso pode apresentar valores superiores ou iguais a 1,00, indicando que quanto mais alto for
esse valor, maior será a importância da espécie para a comunidade.

Desenvolvimento
O assentamento Bom Sucesso I localiza-se a 9 km da área urbana de Flores de Goiás, sentido Nova
Roma; por uma estrada de terra, a GO-114, percorre-se 3 km, entra-se à esquerda, percorre-se mais 6 km
chegando-se à sede do Projeto de Assentamento. Teve sua emissão de posse em 2000 e, antes de tornar-
se assentamento, era um latifúndio produtor de arroz, possuindo uma área de 2.645,070 ha (Incra, 2000).
O assentamento conta com 84 famílias assentadas em chácaras individuais, variando de 18 a 25 ha cada
uma; aproximadamente 300 ha de reserva legal e 340 ha de área coletiva às margens do rio Paranã. O
assentamento encontra-se no município de Flores de Goiás, o qual está inserido na região do nordeste
goiano, e pertence ao Território da Cidadania Vale do Paranã, ficando a uma distância de 240 km da
Capital Federal e a 430 km da capital do Estado (Goiânia). As cidades de referência são Posse, ao norte,
a 143 km pelas rodovias GO-236 e BR-020 e Formosa, a 160 km, seguindo em direção sul pela GO-114
e BR-020.
A população rural de Flores de Goiás é de 73,73%, significativamente muito maior que a urbana, que é
de 26,27% desde o primeiro Censo Populacional apresentado pelo IBGE.
São 84 lotes, mas nem todos se encontram ocupados pelos seus beneficiários. Dessa forma, optou-se
por apenas fazer as visitas a quem realmente morava no assentamento e que estava presente no dia da
visita para a entrevista. Dessas, apenas 20 famílias foram encontradas.
A coleta de dados ocorreu nos meses de outubro e novembro de 2014, com aplicação de questionário
para as famílias que se encontravam em casa e foram levantadas, dentre outras informações, as plantas
conhecidas nos quintais de suas casas, sua utilidade e forma de uso para fins medicinais. Foram
coletadas, também, amostras das plantas citadas para posterior identificação de acordo com as famílias
propostas por Cronquist (1981).
Observou-se que, das 20 famílias visitadas, em 90% das casas o cuidado com o quintal ficava a cargo
das mulheres, pois os homens eram os provedores de dinheiro, seja com o trabalho externo nas lavouras
de arroz, que é abundante na cidade de Flores, seja nos trabalhos na roça, e por isso não tinham “tempo
de cuidar dos quintais”. Já os outros 10% não são casados ou são separados e, devido a isso, o cuidado
com a alimentação da família e com a escolha das plantas do quintal ficava, naturalmente, a cargo das
mulheres da casa.
Essas mulheres relatam que muitas dessas plantas eram usadas por suas mães e avós como remédio, ou
seja, há um conhecimento que passa de geração em geração, uma tradição que trazem de herança de suas
famílias. Outras mulheres relatam que algumas plantas, como o Noni, por exemplo, foi conseguida com
uma vizinha. Há troca de conhecimentos e mudas entre a vizinhança, o que também é um hábito comum no
assentamento.
Aspectos relevantes como a grande quantidade de espécies, forma de cultivo e conhecimentos
tradicionais remetem esses quintais a uma matriz produtiva agroecológica. A agroecologia é uma
perspectiva holística do ambiente, transforma o ambiente rural em um ambiente saudável, livre de
agrotóxicos, respeitando a diversidade, o bem-estar animal e gerando qualidade de vida para os
assentados. Em seus relatos, contam que não se utiliza adubos químicos nem agrotóxicos na maioria das
hortas. Apenas uma senhora relatou o uso de ureia como adubo de cobertura, porque o marido o ganhava
na lavoura de arroz.
Observou-se, ainda, que os assentados não dispunham de tecnificação para ampliar suas produções,
sem contar o escasso recurso hídrico. Utilizam apenas dois poços artesianos coletivos, perfurados pelo
Incra, mas não podem utilizá-los para grandes irrigações. Há poucos assentados que possuem poço
particular. Devido a esses limitantes, observa-se que os quintais são apenas para a subsistência com
pouca ou nenhuma sobra para a comercialização. Nesta seção, faremos uma breve descrição do que foi
encontrado nos quintais.

Tabela 1. Lista das espécies com aplicações terapêuticas utilizadas no Assentamento Bom Sucesso I,
Flores de Goiás/GO, com seus nomes populares

Família Espécie Nome Popular O VU IU PU FP
Justicia
Acanthaceae Anador P 1,0 Dores de cabeça Folhas Chá
pectoralis
Jacq

Alliuma
Cebola-branca P 1,0 Gripe Bulbo Chá, Tempero
Alliaceae scalonicum L
A. sativum L. Alho P 1,0 Gripe Bulbo Chá, Tempero
Myracrodruon Casca do
Aroeira e 1,2 Inflamação Chá
urundeuva caule
Spondias
Seriguela P 1,0 Diarreia Folha Chá
purpurea L
Prisão de
Frutos,
ventre, In natura, suco,
Caju P 1,0 casca do
antidiabé-tico e garrafada
Anacardium caule,
vermífugo
Anacardiaceae occidentale
Diarreia,
Castanha do Torrada e
P 1,3 hipoglice-mia e Castanha
caju descascada
gripe
Anemia,
câimbras,
Mangifera
Manga P 1,3 calmante, Fruto Sucos
indica L
problemas
cardíacos
Pimpinella Flatulência, Folhas e
Apiaceae Erva-doce P 1,0 Chá
anisum L calmante flores
Seca e ralada no
Cocos
Arecaceae Coco-da-Bahia P 1,0 Diabetes Castanha preparo de
nucifera L
alimentos
Brassicae B. oleracea Couve P 1,2 Anemia Folhas Suco
Dores de
cabeça,
Ananas Fruto,
Bromeliacea Abacaxi P 1,0 digestivo, In natura, suco, chás
sativus casca
infecções
infantis
Pereskia Anemias Seca, frescas, cruas
Cactaceae Ora-pro-nóbis P 1,0 Folhas
aculeata severas ou cozidas
Carica
Caricaceae Mamão P 1,0 Prisão de ventre Fruto In natura
papaya L.
Caryocar Gripes,
Raiz, Emulsão, cozidos
Caryocaceae coriaceum Pequi E 1,0 bronquite e
Frutos como temperos
Wittm resfriados
Chenopodium
Anti-
Chenopodiaceae ambrosioides Mastruz P 1,0 Folha Macerado
inflamatório
L.
Cucurbita
Cucurbitaceae Abóbora P 1,0 Vermífugo Semente Torrada
pepo L
Manihot
Calmante, Raiz,
esculenta Mandioca P 1,0 Chá
micose Folhas
Crantz
Euphorbiaceae
Phyllanthus
Quebra Inflamações nos
niruri e 1,0 Folhas Chá
pedra rins,
Mull. Arg
Dipteryx alata
Baru e 1,0 Dores de coluna Casca Garrafada
Vog.
Tamarindus
Fabaceae Tamarindo P 1,0 Vermes Folha Chá
indica L.
Vigna Feijão de
P 1,0 Colesterol Grão Cozido
unguiculata corda
Problemas
Coleus
Boldo 1,0 hepáticos, Folhas Chá
barbatus
digestão
Origanum Problemas
Orégano P 1,0 Folhas Chá
vulgare L. femininos
Ocimum Analgésico,
Lamiaceae Folhas e
americanum Manjericão P 1,0 antisséptico, Chá
flores
L. cicatrizante.
O.
gratissimum Alfavaca P 1,0 Gripe Folhas Chá
L.
M. officinalis Erva cidreira P 1,0 Gripe, roquidão Folhas Chá
Malpighia
Malpighiaceae Acerola P 1,0 Gripe, resfriado Fruto Suco
glabra L.
Gossypium Inflamação, Folha,
Malvaceae Algodão P 0,16 Chá
herbaceum L asma e gripe maça
Psidium
Goiaba P 1,0 Diarreia Folhas Chá
guajava L
Controla a
Folhas,
pressão,
Psidiun sp. Araçá P 1,0 frutos, Chás, óleos,
Myrtaceae vermífugo,
brotos
diarreia.
Prisão de
Myrciaria Fruto in natura,
Jabuticaba P 0,9 ventre, asma e Fruto
cauliflora geleias, licores,
diabetes
Dor de barriga Flores cozidas,
Fruto,
infantil, fadiga, frutos in natura,
Musaceae Musa spp. Banana P 1,0 flores e
câimbra, folhas. folhas novas em
diabetes. compressas.
Analgésico,
Capim limão, calmante,
Cymbopogon
Poaceae capim santo, P 1,8 antidepres-sivo, Folhas Chás
citratus
capim cidreira. estimulante da
lactação
Punica Dores de Casca do
Punicaceae Romã P 1,9 Mastigação, chá
granatum L. garganta, gripe fruto
Fruto,
Morinda
Furúnculo folhas,
Rubiaceae citrifolia None P 1,2 Suco
conjuntivite flores e
L.
tronco
Citrus
Limão P 1,0 Gripe Fruto Chá e suco
limon L.
Rutaceae
Citrus Acidose, prisão
Laranja P 1,0 Fruto Sucos
sinensis L. de ventre
Capsicum Pimenta Fortalece o
P 1,3 fruto Tempero, molhos
frutescens malagueta organismo
Solanaceae
Capsicum Pimenta dedo Energética e
P 1,0 fruto Tempero e molho
baccatum de moça anti-inflamatória
Holocalyx Dor de cabeça e
Verbenaceae Alecrim P 1,0 Folhas Chá, banho
balansae gripe
(ocorrência (O) (p = plantada, e = espontânea), valor de uso (VU), indicação de uso (IU), parte utilizada
(PU) e forma de preparo (FP).

No estudo florístico, observa-se 25 famílias botânicas e 40 espécies citadas. A família com maior
número de espécies encontradas foi a das Lameaceae com cinco espécies, seguida da família das
Anarcadeaceae com quatro espécies, a Fabaceae e a Myrtaceae seguem empatadas com três espécies
cada, logo em seguida Aliaceae, Euphorbiaceae, Rutaceae e Solonaceae com duas espécies cada e as
demais famílias apresentam apenas uma espécie como representante. Como mostra o gráfico abaixo:

Gráfico 1 – Quantidade de espécies etnobotânicas

Com relação ao uso terapêutico das espécies encontradas, as formas de preparo foram: 55% das
espécies utilizadas em forma de chá, 12,5% das espécies consumidas in natura, 15% em forma de suco,
5% em garrafada, 2,5% utilizadas como compressa, 2,5% por mastigação, 10% como tempero, 7,5%
como molhos, 7,5 na forma de cozido, 2,5% das espécies utilizadas para banho, 5% torradas, 2,5 %
utilizadas por maceração, 2,5% consumidas nas formas de geleias e licores. Como mostra o gráfico a
seguir.

Gráfico 2 – Forma de preparo para uso terapêutico


Conclusão
Não podemos desvincular a alimentação saudável da farmacopeia popular; observa-se, tanto nas falas
das mulheres quanto nas pesquisas de levantamento de densidade etnobotânica, que a biodiversidade de
plantas nos quintais agroecológicos proporciona uma forma de assegurar uma alimentação saudável à
família, livre de agrotóxicos, em contraposição ao modelo de produção do agronegócio. Em uma pequena
área, as mulheres cultivam uma grande diversidade de frutos, hortaliças, ervas medicinais e sementes,
afirmando a defesa pela soberania alimentar.
Desta forma, a contribuição do conhecimento tradicional para assegurar a soberania alimentar permite
que o camponês assuma o protagonismo de seu processo histórico tenha um papel ativo na transformação
de sua realidade. Pequenas áreas ao redor das casas dos agricultores, segundo Altieri (2004), geralmente
abrigam 80 a 125 espécies de plantas úteis, muitas delas para alimentação e uso medicinal.
Altieri (2012) reafirma, ainda, que camponeses e camponesas de todo o mundo utilizam-se de sistemas
de policultivo, com enormes variedades de consórcios e espécies, o que reflete a ampla variedade de
culturas e práticas de manejo para atenderem às suas necessidades de alimento. Preservam a
agrobiodiversidade, o alimento regional tradicional e medicinal, o que, além disso, representa uma
oportunidade para impulsionar as economias locais, especialmente quando combinada com políticas
específicas destinadas a promover a proteção social e o bem-estar das comunidades.
Tendo em vista a grande quantidade de espécies plantadas, juntamente com as nativas ali existentes –
como a aroeira, o baru e o pequi –, podemos considerar que nos quintais utilizam-se as bases da
agroecologia na preservação da biodiversidade, em seus aspectos culturais e produtivos. As últimas
Conferências de Segurança Alimentar e as plenárias do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (Consea) apontam a necessidade do país estimular a produção agroecológica e promover
uma alimentação saudável.
Uma das principais razões pelas quais os agricultores, em diversas regiões do mundo, preferem o
sistema de policultivo, muito frequentemente, é a possibilidade de obtenção de maiores produtividades
numa área semeada em policultivo do que numa área equivalente semeada com monocultura (Altieri,
2012). Assim, a reprodução das unidades familiares rurais baseia-se no conjunto das atividades
produtivas por elas desenvolvidas e nos vínculos com os mercados que lhes são correspondentes. Há
sempre que mencionar a parcela da produção que é destinada ao autoconsumo, importante componente da
reprodução dessas famílias e de sua segurança alimentar (Maluf, 2004).

Referências bibliográficas
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Janeiro: Expressão Popular, AS-PTA, 2012.
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Paraense Emílio Goeldi, v. 1, p. 47-131, 1988.
AMOROSO, M. C. M. A abordagem etnobotânica na pesquisa de plantas medicinais, in: DI STASI, L. C. (org.) Plantas medicinais:
arte e ciência. Um guia de estudo interdisciplinar. São Paulo: Unesp, 1996, p. 47-68.
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FREIRE, P. Ação e prática para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
FREIRE, P. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
MALUF, R. S. Mercados agroalimentares e a agricultura familiar no Brasil: agregação de valor, cadeias integradas e circuitos
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ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE – OMS. Classificação estatística internacional de doenças e problemas
relacionados à saúde. 10ª ed., São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
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52, p. 47-59, 2001.
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<http://www.cnpmf.embrapa.br/index.php?p=pesquisa-culturas_pesquisadas-mandioca.php>.
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Disponível em: 21 jun. 2014.
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<http://www.plantasquecuram.com.br/ervas/cajueiro.html.VMPMuf7F_Lw>.

CONTRIBUIÇÃO DE 16 ASSENTAMENTOS NA ECONOMIA DO MUNICÍPIO
DE UNAÍ/MG

Érica Campos Ribeiro


Introdução
As principais atividades econômicas no município de Unaí/MG são relacionadas à produção
agropecuária. A agricultura familiar desempenha papel fundamental, pois do total de 3.593
estabelecimentos agrícolas, 2.734 são familiares, correspondendo a 76,1% do total do município
(Manggini, 2012). Compõem essa agricultura 34 projetos de assentamento, totalizando 1.639 famílias
assentadas (Incra, 2013).
Existem muitas críticas em relação à implantação de assentamentos, pois ainda pouco se sabe sobre a
contribuição deles na dinâmica econômica dos municípios onde estão localizados. Por isso, é de
fundamental importância estudar os assentamentos rurais, a oferta de seus produtos no mercado e suas
contribuições na dinamização do comércio local.
O objetivo deste trabalho é colaborar para a discussão sobre a contribuição que os assentamentos de
Reforma Agrária exercem sobre a economia do município, a partir da experiência de Unaí/ MG.
É resultado do diagnóstico rápido e dialogado (DRD) realizado em 16 assentamentos de Reforma
Agrária. O DRD faz parte da metodologia, preconizada pela Embrapa Cerrados, para apoiar o
desenvolvimento da agricultura familiar e que está sendo utilizada pela Cáritas Diocesana de Paracatu,
na Assessoria Técnica, Social e Ambiental (Ates) dos assentamentos. São parceiros dessas ações o curso
Residência Agrária da Universidade de Brasília (UnB), a Embrapa Cerrados e o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais (STR) de Unaí.

Metodologia
O trabalho foi desenvolvido em 16 assentamentos da Reforma Agrária, localizados em Unaí, com 941
famílias.
Esses assentamentos são contemplados com a prestação de serviço de Assessoria Técnica, Social e
Ambiental (Ates) firmado entre o Instinto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra SR 28 /
DFE) e a Cáritas Diocesana de Paracatu (Tabela 1).
Portanto, este estudo é parte integrante da prestação de serviço de Ates e se constitui em uma
importante ferramenta de suporte na busca da transformação social e econômica das áreas de Reforma
Agrária.

Tabela 1 – Identificação dos assentamentos entrevistados

1º DIAGNÓSTICO 2º DIAGNÓSTICO
Projeto de N. de Projeto de N. de Projeto de N. de
Assentamento (P.A) famílias Assentamento (P.A) famílias Assentamento (P.A) famílias
Campo Verde 40 Vazante 63 Barreirinho 147
Canabrava 21 Nova Califórnia 49 São Miguel 111
Curral do Fogo 138 Papamel 28 Jiboia 55
Santa Clara /
Paraíso 81 43 Santa Marta 60
Furadinho
Renascer 45 Divisa Verde 15 Cachoeira 16
Menino Jesus 29
TOTAL
TOTAL DIAGNÓSTICO 1 523 418
DIAGNÓSTICO 2
TOTAL DE FAMÍLIAS: 941
A fim de se ter uma visão inicial dos assentamentos, foram consultados dados disponibilizados por
instituições e fontes de estudos específicos. Os dados secundários foram complementados com a coleta
de dados definidos na metodologia de apoio ao desenvolvimento sustentável da agricultura familiar
recomendada pela Embrapa Cerrados (Gastal et al, 2003; Gastal et al, 2002).
Foram feitas 665 entrevistas, individualmente, com aplicação de questionários específicos para o
Diagnóstico Rápido e Dialogado (DRD) em duas etapas distintas, correspondentes a 71% das famílias
dos 16 assentamentos. O primeiro diagnóstico ocorreu no período de novembro de 2013 a janeiro de
2014, com 390 famílias, o que corresponde a 75% do total das famílias de dez assentamentos. A segunda
coleta de informações ocorreu no período de novembro de 2014 a janeiro de 2015, quando foram
entrevistadas 275 famílias, o que corresponde a 66% do total das famílias de seis assentamentos.
O diagnóstico consiste no conhecimento, análise e interpretação dinâmica dos sistemas de produção1,
recursos naturais, e organização social (assentamento). No questionário, foram abordados os seguintes
itens, considerando a safra 2012/2013, para o primeiro diagnóstico e a safra 2013/2014, para o segundo
diagnóstico:

mão de obra: composição familiar e caracterização dos tipos de mão de obra empregados;
cultivos: lista de cultivos, suas respectivas áreas, produção e o destino dessa produção
(consumo familiar, comercialização, consumo animal, entre outros);
rebanho: bovinos, suínos e aves; descrição do sistema de criação e o destino dessa criação
(consumo familiar, comercialização, consumo animal, entre outros);
fonte de ingressos monetários: ingressos da produção e locais de venda;
fonte de ingressos externos;
despesas: principais produtos comprados para a exploração do estabelecimento e manutenção
da família; locais de aquisição desses produtos.
Antes da aplicação dos questionários, a equipe de entrevistadores foi treinada, com o objetivo
de padronizar o uso desse instrumento na coleta de dados.
Para o tratamento dos dados, foi criada uma base no Microsoft Excel. A escolha foi feita por se
tratar de um programa bastante comum e de fácil manuseio por parte dos técnicos.

Resultados e discussão
De acordo com Neto et al. (2009), o grande número de famílias assentadas tem influenciado
diretamente no volume de recursos aplicados no município de Unaí. Segundo o autor, no ano de 2006,
somente os créditos aplicados para implantação dos assentamentos rurais (R$ 38.640.000,00) superaram
em aproximadamente três vezes o valor do Fundo de Participação dos Municípios.
Por meio das informações coletadas, observou-se a diversidade das atividades dos assentamentos,
cuja constituição da renda está relacionada a várias produções (tabela 2).

Tabela 2 – Participação das atividades produtivas na composição da renda dos assentamentos

Produtos Renda anual por produto %
Leite R$ 7.013.347,84 61,13%
Bovinos R$ 1.391.607,00 12,13%
Aves R$ 948.254,00 8,27%
Queijo R$ 688.488,42 6,00%
Grãos R$ 325.140,50 2,83%
Ovos R$ 226.990,00 1,98%
Frutas/Olerícolas R$ 200.079,30 1,74%
Mandioca R$ 150.384,50 1,31%
Diversos R$ 528.361,10 4,61%
TOTAL R$ 11.472.652,66 100,00%
Mesmo com a diversificação de produtos, observa-se que a renda proveniente do leite é a mais
significativa, proporcionando aos assentados a maior fonte de renda entre as demais observadas, gerando
mais de 7 milhões por ano. Logo após, aparece a produção de bovinos para a comercialização, em que a
venda totaliza 1,3 milhão por ano.
Observa-se que a criação de gado é o subsistema de criação que mais se destaca. Isso pode ser
justificado devido à intensa produção de leite na região, visto que, de acordo com o Boletim Setorial do
Agronegócio (2015), Unaí/MG se destaca na produção leiteira do país, caracterizando-se como a 11ª
região que mais produz de leite no Brasil.
Na base Cidades (IBGE, 2014), o município possui uma produção leiteira de 115 mil litros de leite
por dia, correspondente a uma produção anual de 41.975.000 de litros.
A análise dos dados da produção atual mostra que as famílias entrevistadas seriam responsáveis por
22% da produção leiteira municipal, de 2012, que corresponde a 9.233.987 litros. Destes 7.594.554
litros foram comercializados o equivalente a R$ 7.013.347,84.
Extrapolando estes dados, considerando que o munícipio possui 1.639 famílias assentadas pela
Reforma Agrária, estima-se que estas produziriam, por ano, 23.314.083 litros de leite, representando
assim 54% da produção do município, correspondendo ao valor de R$ 21.016.950,20 por ano.
De acordo com Martins (2014), a cada R$ 5.081,00 vendidos, de leite e derivados, é gerado um
emprego permanente na economia brasileira. Neste contexto, o total de renda com a produção de leite
gerado pelas famílias dos 10 assentamentos seria responsável por gerar 1.380 empregos permanentes.
Observou-se que a criação de aves é a terceira principal atividade econômica nos assentamentos. Foi
constatado um total de 52.063 aves, que corresponde a 26,48% da criação efetiva do município, em 2012
(IBGE, 2014). O volume comercializado de aves é de R$ 948.254,00 por ano.
Verificou-se que o milho representa não só uma atividade de renda, mas principalmente a
possibilidade de sua transformação na propriedade para múltiplos usos, destacando-se o uso como
insumo energético na alimentação de suínos, aves e gado leiteiro.
Cabe salientar que muitas outras atividades desenvolvidas nos assentamentos de Reforma Agrária
poderiam ser citadas e que representam importantes segmentos para a economia da região como
geradoras de crescimento e desenvolvimento rural, porém, optou-se por destacar aquelas de maior
expressão econômica e de cunho social. Nesta perspectiva, a renda das famílias oriunda da
diversificação da produção (milho, cana, olerícolas, frutas, farinha de mandioca, frangos, ovos, carne de
porco, entre outros) atinge R$ 11.472.652,66 por ano.
Verificou-se que a reprodução socioeconômica das famílias e dos estabelecimentos também é
garantida por ingressos externos, como venda de mão de obra, associada ou não, a outros tipos de renda
não agrícola, como a aposentadoria ou a bolsa família. Isso corresponde a uma movimentação de R$
7.364.294,00 por ano. Destes, 35% são provenientes de aposentadorias e 28% venda de mão de obra.
Os ingressos obtidos com a produção, somados aos ingressos externos, totalizam por ano R$
18.836.946,66. Para Neto et al (2009), tal fato:
Enfatiza a importância dos assentamentos, não apenas pelo seu aspecto prático que é a oferta de produtos no mercado local, mas
também por evidenciar a percepção de que as famílias nos assentamentos rurais conseguiram ultrapassar a condição de produção de
valores de uso, destinados exclusivamente ao autoconsumo, para se constituírem, de modo efetivo, em produtores de valores de troca,
isto é, produtores de excedentes comercializáveis (Neto et al., 2009, p. 9).
Os principais gastos nas propriedades totalizam R$ 12.613.040,55. Destes, 66% são gastos na
produção e 34% são gastos com a família. Impressiona o fato de que 26% dos gastos totais dos lotes são
utilizados na aquisição de ração bovina, mostrando uma forte dependência dos sistemas de produção de
insumos de fora da propriedade.
Os créditos aplicados e os gastos fortalecem principalmente o comércio local, tendo em vista que são
efetuados em casas de material de construção, lojas de produtos agrícolas, postos de gasolina,
supermercados etc. Isto contribui tanto para uma maior circulação de recursos e dinamização da
economia, quanto, ao final da cadeia, para ampliar a arrecadação de ICMS e de outros impostos locais,
impactando positivamente o valor do FPM repassado ao município (Neto et al., 2009).
Apesar dessa contribuição na economia do município, esses assentamentos, embora tenham, em média,
16 anos de criação, possuem muitas dificuldades para se desenvolverem, principalmente em relação ao
abastecimento de água. Das 665 famílias entrevistadas, 67% relata que possui suprimento de água
insuficiente para o consumo familiar e para as atividades agropecuárias. De acordo com Guanziroli et al.
(2001) citado por Leite Junior et al. (2013), as limitações hídricas atuam como um pré-condicionante
para o insucesso dos projetos de assentamento de Reforma Agrária. Porém, segundo o autor, a melhoria
destas condições terá resultados diretos na evolução da qualidade de vida da comunidade local e no
desenvolvimento das atividades produtivas.
Acerca do suprimento de energia elétrica, 12% famílias não dispõem do acesso à energia elétrica nos
lotes. Esse percentual está exclusivamente no P.A Barreirinho onde, 16 anos após a criação do
assentamento (8/9/1998), 95% das famílias assentadas não possui rede elétrica. A falta de energia
elétrica interfere diretamente no conforto e bem-estar das famílias. Equipamentos simples e essenciais
como bombas d’água ou utensílios domésticos como, geladeiras, ferros de passar, dentre outros, não
podem ser utilizados. A falta de eletricidade limita drasticamente o desenvolvimento das atividades
produtivas devido ao fato de não possibilitar a mecanização de algumas tarefas. Despende-se grande
quantidade de mão de obra e tempo em atividades que não atingem resultados satisfatórios.
Neste sentido, para Leite Junior et al. (2013), citado por Guanziroli et al. (2001):
O almejado desenvolvimento sustentável só logrará êxito se não se limitar a fatores econômicos, fornecendo às famílias não apenas o
acesso à terra, mas também toda a infraestrutura e aporte necessário para a redistribuição do poder político, de modo a promover uma
verdadeira reforma do setor agropecuário brasileiro (Leite Junior et al., 2013, p. 3).

Conclusão
Apesar das críticas com relação à forma como os assentamentos vêm sendo implantados, estes devem
ser percebidos, principalmente pelas populações urbanas e governantes, como de suma importância para
o desenvolvimento do município.
Essa relevância se explicita no aumento da oferta de produtos produzidos no município pelos
assentamentos. Tal perspectiva é importante, pois foi possível demonstrar que os assentados conseguiram
ultrapassar a condição de produção destinada exclusivamente ao autoconsumo, para se constituírem, de
modo efetivo, em produtores de excedentes comercializáveis.
Por outro lado, deve-se reconhecer a importância dos assentados não apenas como novos produtores
agrícolas, mas também como novos consumidores, visto que são instrumentos geradores de forte demanda
no comércio local.
Neste contexto, os dados mostram que os assentamentos possibilitaram que os trabalhadores rurais
passem da condição de meros vendedores de força de trabalho, para o papel de produtores e de
vendedores de produtos, basicamente alimentos e, como complemento, de consumidores de uma vasta
diversidade de produtos em virtude de seu acesso a um maior volume de renda monetária. Isso significa,
em última análise, um grande passo no sentido da inclusão social dessas populações extremamente
desfavorecidas.

Referências bibliográficas
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derivados/Boletim%20Bovinocultura.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2015.
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Planaltina, DF: Embrapa Cerrados, 2002.
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2003.
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lang=&codmun=317040&idtema=121&search=minas-gerais|unai|pecuaria-2012>. Acesso em: 24 jan. 2014.
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de Geografia Agrária, v. 8, n. 16, p. 342-378, ago., 2013.
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Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília, 2012.
MARTINS, P. do C. Leite é um bom negócio. Disponível em: <http://www.milkpoint.com.br/cadeia-do-leite/conjuntura-de-
mercado/leite-e-um-bom-negocio-8127n.aspx>. Acesso em: 25 jan. 2014.
NETO, J. A. F.; et al.. Assentamentos Rurais e Desenvolvimento Econômico: Um Estudo sobre o Noroeste de Minas Gerais. 47º
Sober, Porto Alegre, 26 a 30 de julho de 2009, Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural.
ZOBY, J.L.F. et al.. Transferência de tecnologia, agricultura familiar e desenvolvimento local: a experiência do Projeto Silvânia.
Planaltina, DF: Embrapa Cerrados, 2003.

Sistema de produção é a combinação de fatores de produção utilizados por um produtor e sua família com a finalidade de satisfazer
seus objetivos, tomando em conta um determinado contexto em seus diferentes aspectos, social, econômico, ecológico, administrativo e
político. Abrange todo o estabelecimento: as terras, os recursos naturais, equipamentos, benfeitorias, cultivos, criações, a família do
agricultor e o modo como estes diversos componentes interagem (Zoby et al., 2003).

A CONFORMAÇÃO DA QUESTÃO AGRÁRIA
NO DISTRITO FEDERAL

Barbara Loureiro Borges e Luiz Henrique Gomes de Moura

Os entrecruzamentos da questão agrária nacional e do Distrito Federal


A concentração da propriedade da terra opõe, por um lado, uma minoria de grandes proprietários
detentores do monopólio do fator de produção e, de outro, uma imensa maioria da população que não
dispõe de terra em quantidade suficiente para garantir a sua reprodução (Prado Júnior, 1979). Assim, o
traço mais evidente da questão agrária brasileira contemporânea está representado pela assimetria entre
o latifúndio sob o controle de poucos proprietários e uma imensa maioria de trabalhadores do campo
que, ou não tem terra ou, quando estão nela, exploram áreas insuficientes para garantir a sua existência e
de suas famílias, muito menos para estruturarem uma sólida base produtiva nacional.
No caso do Distrito Federal, essa situação não é diferente. Localizado na porção central do Brasil,
com uma área de 5.802 km², o Distrito Federal foi instituído nessa região em 1960, junto com a
transferência da capital do país para Brasília, durante o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961).
A criação de Brasília e sua localização no centro do país estiveram associadas a muitos outros fatores
além da formação de um novo centro político nacional. As propostas da Marcha para o Oeste, em curso
no período do Estado Novo do governo de Getúlio Vargas (1937-1945) tem na construção de Brasília
elemento estrutural. Nos termos de Pessoa (1999),
a expressão máxima e o coroamento da Marcha para o Oeste se deram com a construção de Brasília. Passar a abrigar a capital
federal significou profundas alterações econômicas e políticas para o Estado [de Goiás]: aceleração do ritmo migratório, ocupação de
novas terras, abertura de estradas, expansão do mercado, novos empregos (...) (p. 47).
A proposta buscava unificar as macrorregiões do país, ocupando áreas com baixa densidade
populacional do Planalto Central, articulando a industrialização, a urbanização e meios de transporte que
permitissem fomentar a produção nacional e desenvolver o interior do país (Schimidt, 1985; Pádua,
2007). Nesta nova reorganização geográfica do capitalismo brasileiro, caberia ao Centro-Oeste o
fornecimento de matéria-prima para o Sudeste industrializado e a preparação para o avanço da fronteira
agrícola rumo à Amazônia (Bezerra; Cleps Jr., 2004).
Na dimensão específica da migração, cabe ressaltar a articulação com a questão agrária. Lopes (1996)
aborda o processo de recrutamento de trabalhadores organizado pelo governo para dar conta do projeto
inédito de construção e inauguração de uma cidade em apenas três anos. O autor relata o processo de
envio para Brasília de camponeses retirantes da seca nordestina, o pagamento aos proprietários de terras
pela cessão de colonos e a busca de contingentes de trabalhadores de zonas pobres de Estados do
Nordeste e do norte de Minas que vinham em caravanas nas caçambas dos caminhões para trabalhar nas
obras. De acordo com o autor, os dados do Censo do IBGE de 1957 retratam que o Estado com maior
número de mão de obra migrante nesse período foi Goiás, seguido por Minas Gerais, São Paulo e os do
Nordeste.
As bases para a questão agrária no DF são gestadas nesse contexto de necessidade de expansão da
acumulação capitalista no campo, apoiada por medidas incentivadoras do Estado, associado com o
contingente de migrantes que se fixavam na região.
De acordo com Botelho (2001), o planejamento para o Distrito Federal previa que toda a sua área
seria desapropriada, sendo que apenas aquelas destinadas à ocupação urbana poderiam ser transmitidas a
particulares. Ou seja, os demais imóveis rurais estariam sob a responsabilidade da Novacap (Companhia
Urbanizadora da Nova Capital do Brasil) e seu aproveitamento econômico se daria por meio do
arrendamento.
Na época da transferência da capital para Brasília, o “Relatório para ordenação de Linhas Gerais de
Implantação de um Sistema de Abastecimento em Brasília” foi elaborado pelo Conselho Coordenador de
Abastecimento (CCA) – órgão responsável pelo direcionamento da política de abastecimento do país.
Deste planejamento, destacam-se dois pontos principais. O primeiro determinava o papel do Estado
como controlador e idealizador de todas as ações em relação às terras rurais, reforçando a organização
da produção agrícola planejada para o DF. O segundo ponto reforça a agricultura local como base do
sistema de abastecimento do DF, organizada através da criação da Unidade Socioeconômica Rural1
(User). O planejamento da User compunha estruturas de apoio aos agricultores, como mercado de
produtos, armazenagem e fomento de produção, e estruturas sociais, como posto de saúde, escola, núcleo
residencial, áreas de lazer.
Esse primeiro momento da ocupação do DF teve um direcionamento para o aumento das pequenas
propriedades que fossem capazes de manter uma exploração agrícola intensiva. Para Maciel (2006), esse
incentivo se deu pela inexistência, nesse período, de tecnologias apropriadas para a exploração intensiva
em grandes áreas no Cerrado. Esse procedimento remete à experiência realizada em Goiás, com a
criação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (Cang), na década de 1940.
Apesar dos critérios de seleção para o arrendamento privilegiarem a condição de agricultor, a divisão
de terras em pequenos lotes para serem arrendados por produtores de pequeno porte não trouxe avanços
para a produção agrícola camponesa no DF (Maciel, 2006; Figueiredo, 1979). Muitos desses agricultores
não proviam de condições econômicas efetivas para exploração das áreas e nem receberam apoio
financeiro para tal e, além disso, suas culturas produtivas se diferenciavam daquelas esperadas e
planejadas pelo projeto estatal. Outro fator importante era a possibilidade imediata de assalariamento na
construção civil e em atividades informais urbanas. Por fim, há ainda que se mencionar que parcela
desses lotes foi entregue a funcionários públicos e comerciantes como atrativo para que estes se
instalassem na nova capital, mas foram utilizados como espaço de lazer.
Para impulsionar a produção agrícola e em resposta às pressões por melhores condições de vida e
trabalho2 é determinada a criação de Núcleos Rurais para a produção hortigranjeira, produção agrícola
em geral e pecuária através do Decreto n. 163, de 1962 e da Resolução n. 28, de 1963. Tais Núcleos
possuíam áreas consideradas médias para a região e deveriam contar com uma adequada infraestrutura de
comercialização e assistência técnica, o que na realidade não se efetivou (Figueiredo, 1979).
No período de 1970, surgem outras formas de acesso à terra, através das categorias de Colônias
Agrícolas e Áreas Isoladas. As Colônias Agrícolas abarcavam projetos de terras distribuídas pelo
Estado, com áreas menores e sem a infraestrutura planejada como nos Núcleos Rurais, tendo como
principal função a reserva de mão de obra para os grandes empreendimentos agropecuários (Maciel,
2006). Já as Áreas Isoladas tinham tamanhos variados e tinham por finalidade legalizar a situação dos
lotes irregulares fora das áreas dos núcleos e colônias.
Outra situação que se vivia no setor agropecuário do DF era a dificuldade dos produtores em arcar
com os custos do arrendamento, gerando um alto nível de inadimplência (cerca de 40%) e levando a um
movimento de abandono e venda de lotes (Rocha, 1992). Esse quadro gerou novas políticas de acesso às
terras, entre elas o Decreto n. 2739, de 1974, que tinha a finalidade de dinamizar a exploração dos lotes
rurais trazendo novas modificações, como a exigência que o proponente arrendatário comprovasse sua
capacidade econômica para exploração agropecuária e a não fixação do tamanho dos lotes o que, por
consequência, levou à possibilidade de concentração fundiária.
O resultado disso foi o estímulo aos grandes produtores, em que as taxas cobradas funcionavam como
mecanismos de discriminação e controle do acesso à terra, excluindo das maiores glebas os candidatos
que não podiam apresentar plano de utilização e exploração da terra com maior suporte econômico. Para
os migrantes sem condições econômicas de arcar com esses custos que chegavam ao DF, restou a
ocupação dos lotes das Colônias Agrícolas ou a tentativa de ocupar áreas devolutas, submetendo-se a
uma condição de campesinato proletarizado (Bruno, 1976).

A revolução verde e a concentração fundiária no DF
Mesmo com esse estímulo aos grandes produtores, não houve avanços significativos no uso produtivo
dos lotes rurais, tendo em vista que a maior parte desses arrendatários possuía outras fontes de renda.
Uma exceção é encontrada no Núcleo Rural da Vargem Bonita, ocupado por japoneses e descendentes,
em que mais de 80% dos agricultores comercializavam seus produtos, tornando o DF autossuficiente em
hortaliças nesse período (Bruno, 1976; Figueiredo, 1979). A explicação para esse êxito pode estar nos
estudos de Figueiredo (1979) sobre a Vargem Bonita, realizado nos anos de 1977/1978, que
identificaram a existência de trabalho assalariado em quase todos os lotes e alta intensidade de capital
invertido na produção, como sistema de irrigação, adubos, fertilizantes, agrotóxicos, microtratores e
pulverizadores.
No entanto, a discussão em torno da necessidade de impulsionar o desenvolvimento agropecuário na
região Centro-Oeste esbarrava em alguns fatores naturais do bioma Cerrado que eram considerados
entraves para obtenção de cultivos com padrões de produtividade próximos aos da região Sul e Sudeste
do país. Os solos eram considerados pobres em fertilidade, com elevada saturação de alumínio e
carência de cálcio, e as chuvas, embora em quantidade satisfatória, eram mal distribuídas durante o ano,
e com ocorrência de veranicos durante a fase reprodutiva de alguns cultivos (Embrapa Cerrados, 2015).
Nessa perspectiva de romper as barreiras para a inserção do capital e desenvolvimento agrícola da
região Centro-Oeste, foram lançadas diversas políticas e programas direcionados a essa região. Uma das
principais ações foi a criação e execução, em 1975, do II PND (Programa de Desenvolvimento do
Cerrado – Polocentro). Esse programa tinha como objetivo incorporar a região Centro-Oeste ao espaço
econômico nacional, por meio da inserção de inovações tecnológicas, produção agropecuária voltada
para a exportação e absorção da migração de mão de obra (Oliveira, 2002). O Polocentro foi um
importante agente de desenvolvimento da pesquisa, investimento em infraestrutura e facilitação do acesso
ao crédito rural (Figueiredo; Trigueiro, 1986).
A região do entorno do DF também recebeu aportes específicos para o desenvolvimento do capital na
agricultura, como é o caso do Programa da Região Geoeconômica de Brasília, criado na metade da
década de 1970, e que compreendia o agrupamento dos municípios do entorno articulados em seis eixos:
Ceres-Anápolis, Área de Influência das BRs 040 e 060, Vale do Paracatu, Vale do Paranã, Área de
Mineração e Distrito Federal. O programa pretendia desenvolver o entorno do DF, tendo Brasília como a
cidade central, a qual se desenvolveria em uma relação de coevolução com a agricultura dos municípios
vizinhos, ou seja, o estímulo do mercado de Brasília se irradiaria pela região, expandindo e
modernizando a agropecuária (Müller, 1987).
Associado a esse movimento da política governamental para a modernização das formas de
acumulação do capital na agricultura da região e na tentativa de superar questões ecológicas do Cerrado,
tidas como entraves para esse desenvolvimento, também está a criação e fortalecimento de instituições de
pesquisa, que tinham por objetivo desenvolver técnicas de cultivo e variedades de plantas que fossem
adaptadas ao solo e ao clima do Cerrado. Entre essas, se destacam a criação do Centro de Pesquisa
Agropecuária dos Cerrados (CPAC) ligado à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa); a
criação de Escritórios Técnicos Agrícolas (ETA), a partir de convênios entre Brasil e Estados Unidos; e
a criação de quatro Granjas Modelo, as quais eram denominadas Tamanduá (produção de sementes), Ipê
(produção de frutas), Torto (produção de leite, ovos e frango) e Riacho Fundo (criação de suínos) (Sá;
Sousa, 2014; Matsuura, 2008).
No bojo dessa dinâmica das políticas governamentais para impulsionar a agricultura capitalista no DF,
foi criado o Programa de Assentamento Dirigido do Distrito Federal (PAD-DF), em 1977. Esse programa
trouxe modificações para o acesso ao financiamento através do sistema de crédito, o qual marcou
profundamente a conformação agrária no DF. Foi autorizado pelo Conselho Monetário Nacional que os
contratos de arrendamento pudessem ser utilizados como garantia nos financiamentos bancários para a
exploração de atividades agropecuárias (Figueiredo, 1979; Rocha, 1992). Esse fato aumentou a
concentração dos meios de produção e, sobretudo, a concentração fundiária, que já vinha se
intensificando desde que o acesso ao arrendamento de terras do DF, e exigiu a comprovação de
condições econômicas para tal, aumentando as diferenças existentes entre os grupos sociais envolvidos
nas atividades agrícolas no DF.
Dirigiram-se para o PAD-DF, principalmente, migrantes da região Sul do país, com a característica de
serem proprietários de terra, arrendatários e comerciantes (Figueiredo, 1979). Segundo Rocha (1992), a
escolha desse público se deu pela vivência com o cooperativismo3, além da experiência acumulada no
uso de fatores de produção modernos e a disponibilidade imediata de capital inicial a ser investido em
maquinário agrícola. Características essas bem diferentes de grupos de trabalhadores rurais que
buscaram as áreas de expansão de fronteiras agrícolas em busca de terra e trabalho.
O Programa abrangeu uma área de 61 mil ha e, como base da produção, foram criadas seis subáreas
com cerca de 150 módulos medindo cerca de 300 ha cada um e mais quatro núcleos residenciais com
módulos de um ha.
O êxito do PAD-DF foi incentivado com a implantação do Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro
para o Desenvolvimento do Cerrado (Prodecer), em 1979, que se diferenciou dos outros programas pela
ocupação do Cerrado com bases técnicas e gerenciais voltadas para a produção de grãos, principalmente
a soja, que se encontrava em recessão no mercado japonês (Inocêncio; Calaça, 2009). Esse foi um
movimento expressivo de reestruturação do território do bioma Cerrado por meio da inserção de cultivos
que fossem mais rentáveis (soja, milho, algodão etc.) e que pudessem atender às demandas do mercado
externo.
No período que se seguiu, permaneceu o incentivo à criação das grandes propriedades, com atuação
direta do Governo do Distrito Federal na distribuição e seleção dos arrendatários.
A tabela 1 apresenta dados da antiga Fundação Zoobotânica, disponibilizados por Rocha (1992), que
mostram a evolução, de 1977 a 1983, da área média e total dos lotes nas áreas arrendadas no DF. No
caso das Colônias Agrícolas, a área média dos lotes caiu pela metade, reforçando o caráter de serem
áreas utilizadas apenas para reserva de mão de obra e como solução imediata para a resolução de
conflitos pela posse de terra decorrente do crescente contingente de migrantes no DF. Os dados mostram,
ainda, que houve um crescimento na participação das Áreas Isoladas e do PAD-DF no total das áreas
arrendadas no DF. Essa expansão das Áreas Isoladas pode estar associada ao arrendamento de glebas
para produtores que não encontraram mais espaço no PAD-DF (Sá; Sousa, 2014).

Tabela 1 – Evolução da área média e total dos lotes nas áreas arrendadas no DF

1977 1983
Áreas
Arrendadas Número de Área média dos Área total Número de Área média dos Área total
lotes lotes (ha) (ha) lotes lotes (ha) (ha)
Núcleos
898 58,88 52879,8 1903 55,91 61112,4
Rurais
Colônias
267 16,85 4501,5 748 8,30 6212
Agrícolas
PAD-DF 86 295,52 25414,8 110 289,82 31879,7
Áreas
78 370,29 28883,2 174 264,20 45970,5
Isoladas
Fonte: Rocha, 1992.

O mapa de uso do solo do DF de 1984 (figura 1) mostra a distribuição das áreas agrícolas
(representada em amarelo claro), concentradas, sobretudo na porção leste do DF onde se instalou o PAD-
DF. As manchas em cinza representam as áreas urbanas, que nesse período representavam 3,68% da área
do DF.

Figura 1. Mapa de uso do solo no DF – 1984. - Fonte: Unesco, 2002.

Nesse contexto, surgem em 1986, os Combinados Agrourbanos (Caub), os quais tinham como proposta
resolver os problemas urbanos decorrentes dessa população excedente e desempregada. A proposta foi
implantada nas áreas públicas das granjas do Ipê e Riacho Fundo, por meio da criação de agrovilas que
integrassem loteamento rural com núcleos urbanos. O projeto era composto por lotes de mil m² e
chácaras de 6 ha (lote rural) e visava inicialmente a exploração econômica com soja e plantio de
cítricos.
O mapa de uso do solo do ano de 1998 apresenta um aumento considerável da área urbana e da área
agrícola no DF, que passaram respectivamente de 4,84% e 36,79%, em 1994, para 6,57% e 46,33%, em
1998 (figura 2). Neste período, entra em cena o governador Joaquim Roriz, que desde o seu primeiro
governo (1988) promoveu programas voltados à redução da demanda habitacional, distribuindo lotes
semiurbanos como fixação e erradicação de favelas (Maciel, 2006).

Figura 2. Mapa de uso do solo no DF – 1998. – Fonte: Unesco, 2002.

No ano 2000, durante o terceiro governo de Joaquim Roriz, a Câmara Distrital aprovou a Lei n.
2689/2001, a qual permitiu a alienação e concessão do direito real de uso de terras públicas que estavam
ocupadas pelos arrendatários (Distrito Federal, 2001). Para Maciel (2006), esse processo caracterizou a
privatização das terras rurais públicas no DF, levando à especulação e à acumulação primitiva que
ocorre na busca dos títulos de propriedade de terra.
O mapa de uso do solo e vegetação do DF do ano de 2001 (figura 3) mostra que a área agrícola
aumentou para 47,41% e a área urbana, para 7,39%. Na imagem, é possível observar que áreas que antes
eram consideradas agrícolas se tornaram áreas urbanas, como é o caso de São Sebastião, Lago Oeste,
Varjão, Riacho Fundo 2 e condomínios horizontais próximos do Lago Sul e Lago Norte.

Figura 3. Mapa de uso do solo no DF - 2001 – Fonte: Unesco, 2002.

Diante desse quadro, observa-se uma crescente concentração de terras no Distrito Federal, o que pode
ser verificado pela evolução do Índice de Gini4 para concentração fundiária, que em 2006 foi de 0,818
(tabela 02).

Tabela 2 – Evolução do Índice de Gini

ANO
1970 1975 1985 1995 2006
0,794 0,780 0,767 0,801 0,818
Fonte: IBGE, 2006

Também é possível perceber, segundo os dados do Censo Agropecuário, um aumento no número de
estabelecimentos rurais entre os anos de 1970 e 2006 (tabela 3). Verifica-se um aumento considerável do
número de estabelecimentos com menos de 10 ha, o que pode ser explicado parcialmente pelo aumento
do parcelamento dos lotes para a criação de condomínios horizontais próximos às cidades satélites.

Tabela 3 – Evolução do número de estabelecimentos agropecuários

Ano
Grupos de área total
1970 1975 1985 1995 2006
Menos de 10 ha 619 514 1.097 930 2.038
10 a menos de 100 ha 1.056 1.044 1.696 1.069 1.432
100 a menos de 1000 ha 218 273 560 429 453
1000 ha e mais 20 28 48 31 30
Total 1.913 1.859 3.410 2.459 3.955
Fonte: IBGE, 2006

Observa-se, também, segundo os dados agropecuários obtidos pela Emater-DF para o ano de 2013
(tabela 4), que as grandes culturas (café, milho, feijão, soja, sorgo, trigo, outras) ocupam uma área de 143
mil ha, ou seja, 93% maior que a área de produção de hortaliças e fruticultura (Emater, 2013). As
informações mostram, ainda, que as Regiões Administrativas de Planaltina e Paranoá participam com
89,79% da produção (em toneladas) desses itens das grandes culturas no DF. Esses dados mostram que o
desenvolvimento agrícola no DF permanece voltado para as grandes empresas, a partir da perpetuação
do modelo da produção em monocultura, em grande extensão e voltado para exportação.

Tabela 4 – Área e produção de grandes culturas, hortaliças e fruticultura no DF

Culturas Área (ha) Produção (ton.)
Grandes Culturas 143.255,09 842.608,98
Hortaliças 8.505,92 248.599,80
Fruticultura 1.708,54 37.117.57
Fonte: Emater-DF, 2013

De acordo com os dados do Censo Agropecuário de 2006, o número de pessoas ocupadas nos
estabelecimentos agropecuários cresceu 306% entre 1970 e 2006, enquanto que o número de tratores
cresceu 925% no mesmo período (IBGE, 2006). Esses dados podem indicar um aumento na tecnificação
agropecuária no Distrito Federal.
A intensificação agropecuária no DF, baseada no modelo da agricultura empresarial, passou a exigir
cada vez mais insumos externos e grandes áreas para garantir o padrão de produção e a margem de lucro
dos empresários capitalistas. As consequências foram o aumento da concentração fundiária e a exclusão
dos agricultores que não tinham o suporte para produzir nesse modelo, acentuando o papel do Estado
brasileiro como negador de um projeto camponês e de Reforma Agrária.
Maciel (2006) destaca que a produção agropecuária no DF é pressionada para aumentar sua margem
de lucro, correndo o risco de ter sua área destinada a outras finalidades que não as de produção, como é
o caso do avanço das áreas urbanas sob antigas áreas rurais. Essa pressão vem trazendo, como
consequência, diversos conflitos fundiários decorrentes da criação de condomínios horizontais
irregulares, implantados tanto em terras não desapropriadas pela União, como em terras públicas por
meio da prática de transferência de títulos de propriedade por meio da grilagem de terras.
Como pontos centrais desses conflitos, percebem-se a carência de certeza e precisão quanto aos
limites divisórios dos imóveis públicos, bem como do aumento populacional no DF sem que houvesse um
planejamento para oferta adequada de moradias. Esse fato se assemelha ao ocorrido na negação da
promoção da Reforma Agrária no planejamento das áreas rurais no DF, acentuando a completa omissão
do Estado na resolução dos problemas fundiários no campo e na cidade.
Diante do exposto, fica claro o traço característico da questão agrária no DF que é a sua íntima relação
com a questão urbana, decorrente de um processo histórico da negação das demandas dos trabalhadores
do campo e da cidade, moldada, sobretudo, pelo crescimento do grande polo que é Brasília, como capital
federal.

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Cultura, 2ª ed., 2002.

As User se transformaram, posteriormente, nos Núcleos Rurais.

Segundo o jornal Correio Braziliense de novembro de 1963, mais de 2 mil lavradores foram ao Palácio do Governo exigir providências
para a melhoria das condições de vida e trabalho dos produtores agrícolas.

Segundo Rocha (1992) o desenvolvimento do cooperativismo fazia parte do planejamento do PAD-DF, sendo prevista a atuação de uma
cooperativa integrada ao programa, com a função de ser um polo irradiador de tecnologia, além de intermediar as relações do Estado e
do capital, tanto comercial quanto industrial, com os agricultores instalados.

O Índice de Gini é um indicador da desigualdade social que varia de 0 a 1. Quanto mais perto do número 1, maior é a desigualdade
social.

SAÚDE DA MULHER RURAL: A HISTÓRIA DAS MULHERES DO
ASSENTAMENTO ITAUNA, AFIRMAÇÃO DE MUITAS HISTÓRIAS1

Cleonice Cesario dos Santos


Introdução
As lutas históricas dos movimentos de mulheres indicam a situação de desigualdade de gênero,
opressão e dependência. A ordem patriarcal inverte responsabilizações e tece sensações de culpa e medo
nas próprias mulheres, fazendo com que se sintam humilhadas e depreciadas, muitas vezes, diante da
própria família. É o lado perverso da violência de gênero. Não é mera casualidade que a pesquisa
realizada com o grupo de mulheres da comunidade Itaúna resulta em relatos de espancamentos, agressões
verbais, difamações, dentre outras formas de violência de gênero.
As dificuldades enfrentadas por essas mulheres remetem ao que Crenhaw (2002) chama de associação
de sistemas múltiplos de subordinação, que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. São
problemas de consequências estruturais e de dinâmicas de gênero, classe, raça, etnias, geração,
regionalidade e outras. Desigualdades básicas na vida dessas e de outras mulheres negras e pobres são
criadas pelas formas com que se exercem e se combinam o sexismo, o racismo, o patriarcalismo, a
opressão de classe e outros sistemas discriminatórios. De modo geral, a estrutura e reprodução do
patriarcado ainda hoje são predominantes, em diferentes formas e graus, sobre as mulheres seja qual for
sua raça ou etnia, geração e classe social.
No entanto, pelo que se observa na trajetória dessas mulheres agricultoras, o fato de ser pobre, mulher,
nordestina, rural, negra índia potencializa a dominação patriarcal. Percebemos como o gênero intersecta-
se com outras identidades e como essas intersecções contribuem para a vulnerabilidade alimentar,
trabalhista, educacional, habitacional e da vida privada das mulheres e de seu grupo familiar.
No contexto da atenção integral à saúde da mulher rural, existem mecanismos que levam à
identificação dos impactos da violência sobre a sua saúde física e mental. O acolhimento ainda é um
elemento importante para a identificação do tipo de violência e os problemas inerentes à situação vivida.
A violência de gênero resulta em grande impacto na vida produtiva e na saúde física e psíquica, assim
como na vida de seus filhos. Vivenciam situações de medo, baixa autoestima, perda da autonomia e,
muitas vezes, fragilidade emocional, que abrem margem para quadros clínicos como depressão, síndrome
do pânico, dentre outros. Essa naturalização deve ser rompida, sobretudo porque o agressor, na maioria
das vezes, é o homem com quem a mulher tem laços de afeto e de vida conjugal.
Mediante fatos como esses, evidencia-se a dificuldade de contar a história do ponto de vista do
protagonismo das mulheres, pois é preciso sempre buscá-la nas entrelinhas, naquilo que não está escrito,
ou fazer o questionamento sobre cada elemento, do porquê do não protagonismo. Sabe-se, de outro modo,
que, na sociedade patriarcal, as mulheres foram convencidas de que o poder não é para elas, ao passo
que parece ser inerente aos homens (Gebara, 2002).
Nesse sentido, as mulheres trabalhadoras rurais vivem, no cotidiano doméstico, o peso da cultura
machista, sexista e patriarcal. A dominação masculina é bem forte, muitas mulheres são sujeitadas às
responsabilidades de manutenção doméstica e de reprodução. Creem que aquele jeito de pensar e agir
diante da situação de opressão é o único que podem ter. Assim, diversos problemas de saúde se
manifestam, contextualizados no vínculo de suas crenças e sistemas de valores morais.
A violência contra a mulher é um fenômeno histórico, social e cultural, que está enraizado na nossa
sociedade. Não existe uma causa única, é um fenômeno complexo e multicausal, que envolve fatores
sociais, culturais, psicológicos, econômicos, religiosos, entre outros, que contribuem para que ela ocorra.
O sistema patriarcal existente favorece a manutenção de estruturas de desigualdade de gênero que se
evidenciam desde a educação sexista, que perpetua estereótipos de papéis de gênero, principalmente na
esfera doméstica. Porém, compartilho a posição de que a violência também é uma construção social e
pode ser um fenômeno aprendido e, como tal, também pode ser desaprendido (Grossi, s/d).
Contudo, a abordagem interdisciplinar para enfrentar a violência de gênero como um todo, deve ser
coerente com as crenças e atitudes culturalmente enraizadas. É fundamental a participação e atuação das
mulheres na integração em diferentes espaços formativos de educação em saúde. Para entender sua
complexidade é preciso desvendar as estruturas e os mecanismos do impulso agressivo motivado num
paradigma que configura relações de poder.
Com esta perspectiva, Merhy (2002) destaca esse espaço como lugar estratégico de mudança do modo
de produzir saúde. O envolvimento do profissional com o trabalho; a sua disponibilidade para escutar,
estabelecer vínculo com o usuário; o compromisso de oferecer uma atenção integral e humanizada, de
utilizar seu conhecimento para produzir cuidado em saúde, e sua responsabilização pelo usuário são
importantes pontos de partida. Criar espaços de análise para entender o que acontece no encontro com o
usuário e lidar com isso são, também, exigências para a construção de novas práticas.
Apesar de todas as dificuldades e limitações na abordagem sobre o cotidiano dessas mulheres, existem
aspectos positivos, evidenciados pelo respeito às ascendências pessoais, aos vínculos de amizade e,
também, à proximidade da natureza e à qualidade de vida no campo. Na atual conjuntura, o desafio é
entender os valores e novos anseios das mulheres. Através de oficinas, possibilitou-se problematizar a
condição plural da própria identidade das companheiras inseridas no grupo. Nesse aprendizado, a
intensificação da comunicação se multiplica e se reproduz, criando uma força própria do coletivo.
Entendendo, como Ceccim (2005), que a formação do profissional da saúde não pode tomar como
referência apenas a busca eficiente de evidências ao diagnóstico, cuidado, tratamento, prognóstico,
etiologia e profilaxia das doenças e agravos, deve-se buscar desenvolver condições de atendimento às
necessidades de saúde das pessoas e das populações, assim como da gestão setorial e do controle social
em saúde, redimensionando o desenvolvimento da autonomia das pessoas até a condição de influência na
formulação de políticas do cuidado.
Dessa forma, a mudança de prática dos profissionais de saúde, com a utilização da metodologia de
educação em saúde, implica num processo de valorização essencialmente dos saberes e das práticas de
cuidados frequentemente desconsiderados, devido à sua raiz popular, facilitando o aprendizado do grupo.
Deve-se pensar os encontros entre teoria e prática, no campo da saúde e da educação, voltados para a
experiência da vida comunitária, na perspectiva de melhores condições de saúde, solidariedade e
igualdade de gênero.
A atenção primária é a “porta de entrada” para a rede de serviços de saúde e, também, para uma
multiplicidade de demandas sociais que acabam por se traduzir em demandas de saúde, que se encontram
na fronteira entre os “problemas da vida” e a patologia propriamente definida. Daí a importância das
“tecnologias de conversas”, que facilitam a identificação das necessidades que podem vir a ser
satisfeitas no serviço de saúde ou em outro espaço institucional (Coelho et al., 2009).
É preciso compreender a dinâmica da vida em comunidade, o convívio diário com os frequentes
diagnósticos de depressão oriundos de episódios de violência física, moral, racial, de gênero, classe e
outros mais, em seu conjunto de complexidades e semelhanças da conexão com o universo patriarcal e da
dimensão da fé e da transcendência. Há uma particularidade no campo desse estudo, que exige uma longa
e minuciosa investigação. Diversos recortes e abordagens evidentes ou explicativas definem a submissão
das mulheres em relação aos homens, configurada com o processo de autoexclusão dos espaços
formativos comunitários.
Nesse contexto, Coelho (2009) afirma que, na atenção à saúde das mulheres, compreendemos a
integralidade como a concretização de práticas de atenção que garantam o acesso das mulheres a ações
resolutivas, construídas segundo as especificidades do ciclo vital feminino e do contexto em que as
necessidades são geradas. Nesse sentido, o cuidado deve ser permeado pelo acolhimento com escuta
sensível de suas demandas, valorizando-se a influência das relações de gênero, raça/cor, classe e
geração no processo de saúde e de adoecimento das mulheres.
Entre as consequências no processo de saúde e adoecimento, destacam-se os problemas psicológicos,
sociais e biológicos, arraigados no patriarcado que se manifesta pelo controle da mulher como submissa,
oprimida, e subordinada como propriedade privada, especialmente pelo controle da maternidade e da
sexualidade. Tratar das doenças não é menos importante, mas é apenas uma das ações que visam ao
cuidado integral. No entanto, é também fundamental constituir um vínculo como dispositivo de
intervenção que possibilita a troca de experiências entre essas mulheres.
As mulheres foram e continuam sendo vítimas de uma sociedade desigual, não só pela sua condição
feminina. Também por serem pobres são colocadas num lugar de inferioridade social e que são mantidas,
como se sua condição e posição fossem um resultado imutável ou natural da vida e não tivesse, por trás,
todo um aparato social hegemônico e opressor, muitas vezes, invisível. Essas mulheres agricultoras
enfrentam resistência e isto tem sido um grande desafio para elas, agricultoras de diferentes raízes
étnicas, nordestinas, de baixa renda, de pouca escolaridade, formadas culturalmente para serem do lar,
subordinadas ao poder de seus pais e maridos (Siqueira & Sardenberg, 2013).
Assim, provocar mudanças no território implica entender a subjetividade como uma construção sem
fim que se dá ao longo da vida, como um acontecimento coletivo e social. Disseminada por aspectos
religiosos, culturais e econômicos, em que o fazer coletivo dá visibilidade a situações problemáticas no
contexto em que as mulheres se inserem. A autoridade do companheiro é associada à experiência de vida
do convívio familiar que provém das gerações machistas, que, infelizmente, marca o cenário das
privações de liberdade de expressão e da invisibilidade diante da perda do direito pela posse da terra.
Configurado em um protótipo de homens ativos, racionais e dominadores, como se fossem qualidades
naturais, que contribui para a perpetuação de uma cultura violenta e patriarcal, isso tem provocado uma
constante inquietação e sensação de insegurança na vida dessas mulheres, apesar de serem titulares da
terra.
No universo rural feminino, Daron (2009) descreve que a experiência de resistência vivenciada pelas
mulheres camponesas organizadas e a complexidade das questões que dela emergem são muito maiores
do que a capacidade de traduzi-las numa investigação, que sempre tem seus limites e seus recortes de
análise. Nesse sentido, os valores éticos, a coerência, o coletivo e a postura aberta, de busca de ser mais,
de companheirismo e solidariedade, são alguns determinantes que permeiam o trabalho dessas mulheres
com base assentada em princípios e valores, comprometidas com a mística do projeto popular, libertador
e emancipatório.
Assim, as estratégias autônomas permitem que essas mulheres atuem como protagonistas na construção
de sua própria história, nas práticas de cuidado da saúde da família, na luta pela permanência na terra e
na transformação do ambiente em que vivem. O objetivo não é, exclusivamente, resolver o problema, mas
viver com a perspectiva de que as doenças psicológicas oriundas das violências de gênero não venham a
surgir e nem prevalecer na vida dessas mulheres. E, assim, estabelecer uma ligação maior entre os
momentos de sistematização de experiências, ampliando os espaços de discussão/decisão, de escuta,
trocas e decisão coletiva, bem como criar elos de comunicação entre as mulheres, além de proporcionar
uma mudança de conceitos e a visualização geral da vida em coletivo como um todo.

Entre ficar ou sair: o silêncio que barulha na invisibilidade dos direitos da mulher rural
Em outras palavras, percebe-se que, à medida que a duração do acampamento se prolonga para além
do inicialmente previsto, se coloca a necessidade de adequar o acampamento enquanto espaço de
sociabilidade e de organização de novas relações sociais. Para tanto, a inclusão das mulheres como
titulares da terra está conectada com a afirmação da história de luta e resistência, recorrentes ao tempo
acampamento, e dos longos anos de persistência nos barracos de lona preta. Descrevem suas lembranças
desse período com base na identidade de gênero, fundamentada na associação do feminino com a família,
a maternidade e o trabalho doméstico.
De acordo com Paulilo (2009), a luta das mulheres para serem consideradas produtoras rurais não
significa necessariamente uma busca nas relações entre marido e mulher. O trabalho fora de casa não
torna as mulheres automaticamente mais independentes de seus maridos e atuantes politicamente. Mesmo
uma forte consciência das desigualdades de classe não leva, por adição, a uma preocupação semelhante
com a desigualdade entre os gêneros. Quanto ao nosso objeto de estudo, mulheres rurais adultas,
podemos ter certeza de que são também casadas e que dificilmente pensariam sua vida fora do
casamento, pois o único treinamento profissional que recebem é o de ser agricultora, e só o serão pelo
casamento. Esse fato explica, em parte, porque a exclusão das mulheres da herança da terra é pouco
citada.
Situações como essa são comuns no cotidiano das mulheres; seus desejos e sonhos são travados por
uma lógica que posiciona o homem como o provedor natural da casa. São perceptíveis as dificuldades
encontradas para se desvencilharem de tais responsabilidades e direcionarem suas atenções e forças para
a participação política nos assentamentos, no que se refere ao direcionamento da produção, capacitação
intelectual e profissional, formação coletiva, comercialização, organização de grupos, enfim, nos rumos
da vida nestes espaços.
No questionamento das antigas hierarquias, mesmo quando novas relações assimétricas de poder
aparecem, surge lugar para redefinições. As assentadas estão inseridas num espaço privilegiado que não
é só para reflexão, mas também para ação. O simples fato de não estarem mais isoladas e, sim, mais
próximas geograficamente do que sempre estiveram antes, já é um elemento novo e mobilizador. Diante
disso, seria inocência pensar que uma maior liberação feminina não entrará em choque com uma
organização familiar na qual, tradicionalmente, o papel da mulher foi o da parte subordinada (Paulilo,
2003).
O vínculo com a terra e a família marca a história dessas mulheres; as múltiplas histórias de vida não
são, aqui, consideradas como reproduções do vivido, mas como construções da história individual e
coletiva a partir do presente. De vivências que aconteceram e acontecem na vida de assentamento,
moldado e determinado na memória da luta pela terra. No entanto, demonstram que, para a grande
maioria, esse momento foi vivido sob o impacto da incerteza, da dúvida, do medo.
Tomando por referência os estudos de Schwendler (2009), cabe destacar que o ingresso da mulher na
luta pela terra colocou-a, não apenas diante da luta de classes, mas também diante do enfrentamento da
questão do acesso à terra. Nos primeiros acampamentos dos anos 1980, os homens solteiros podiam ser
cadastrados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para receberem um lote,
no momento da desapropriação de terras, direito que não estava posto para as mulheres solteiras. Além
disso, quando uma família era assentada, o lote ficava apenas no nome do homem.
Marcadas pela concentração da propriedade da terra e por uma estrutura machista extremamente
desigual, a maioria das mulheres assentadas e educadas na tradição da diferenciação sexual dos espaços
e papéis sociais, entende que as questões da política e do direito à posse da terra e da produção ainda
são temas prioritariamente masculinos. Na sua argumentação para a não participação, reforçam as
temáticas e encargos tradicionais da mulher.
A decisão de renunciar ao lar, ceder a terra e desistir dos sonhos é um dos momentos mais difíceis de
todo o processo de luta e persistência. Quase sempre têm que começar do marco zero, incluindo
conseguir trabalho como empregada doméstica para o sustento dos filhos. Aprisionadas à sua condição
natural, à maternidade e ao trabalho doméstico, ao lado desse sentimento de insegurança, outro elemento
presente nas narrativas das agricultoras é a recordação, com certa surpresa, da coragem que tiveram em
romper com a rotina da existência de anos de uma relação violenta e opressora. E partir para uma
experiência que nada lhe assegura, onde tudo é incerto a imprevisível.

Conclusão

Evidencia-se, nas rodas de conversa, que há um desempenho importante no papel pedagógico da
educação em saúde coletiva. Além de valorizar suas histórias de vida e buscar as estratégias políticas de
sobrevivência numa sociedade excludente e machista, permitem que a ação das mulheres, envolvidas com
o grupo de trabalho com plantas medicinais, permaneça como uma alternativa para minimizar o
problema. Essa troca de saberes favorece a estratégia de reconhecimento dos diferentes tipos de
violência sofrida pelas companheiras, com a possibilidade de criar laços de pertença mais consistentes
na comunidade.
Refletir sobre o ser mulher na agricultura familiar é contemplar a dimensão individual e coletiva, em
função dos fatores que aproximam as manifestações corajosas de autonomia intelectual e a
sustentabilidade para permanecerem no campo. Torna as companheiras conscientes da importância de
suas lutas, desde a conquista da terra até a preservação da sua história no convívio familiar e
comunitário.
Através da participação no coletivo do Assentamento Itaúna, essas mulheres vêm contribuindo para a
renovação de suas forças para lutar pelo seu lote, como também para que se reconheçam enquanto
mulheres e percebam onde e em que momentos do seu cotidiano a violência de gênero, classe e raça se
manifestam, bem como em quais condições estão subentendidas. Passam a defender cada vez mais a
importância da mulher no processo de luta pela terra.
Na jornada de busca do registro e socialização das muitas histórias, estão as companheiras, mulheres
guerreiras, filhas, irmãs, esposas, mães e avós. Com um amplo potencial de sabedoria, assentadas,
trabalhadoras rurais, administradoras do lar e do lote, advogadas dos filhos, artesãs e professoras da
vida transformam-se em esperança e paixão pela vida, o que as auxilia na construção de um cotidiano que
as incentiva a seguir em frente.

Referências Bibliográficas
CECCIM, Ricardo Burg. Educação Permanente em saúde: descentralização e disseminação de capacidade pedagógica na saúde.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 10, n. 4, 2005.
COELHO, Edméia de Almeida Cardoso. Integralidade do cuidado à saúde da mulher: limites da prática profissional. Escola Anna Nery.
Revista de Enfermagem, v. 13, n. 1, p. 154-160, jan-mar., 2009.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista
Estudos Feministas, v. 10, n. 1, 2002.
DARON Vanderléia Laodete Pulga. A dimensão educativa da luta por saúde no Movimento de Mulheres Camponesas e os desafios
político-pedagógicos para a educação popular em saúde. Cad. Cedes, Campinas, v. 29, n. 79, p. 387-399, set./dez. 2009.
GEBARA, Ivone. Cultura e relações de gênero. São Paulo: Cepis, 2002.
MERHY, Emerson E. Saúde: cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002.
PAULILO, Maria Ignez. Movimentos das Mulheres Agricultoras e os muitos sentidos da igualdade de gênero, in: FERNANDES
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gênero. Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas, v. 2: a diversidade das formas das lutas no
campo. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009.
_____. Agricultura ou esposa de agricultor? in: FERNANDES Bernardo Mançano; MEDEIROS, Leonilde Servolo de; PAULILO,
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conquistas, v. 2: a diversidade das formas das lutas no campo. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários
e Desenvolvimento Rural, 2003.
SCHWENDLER, Sônia Fátima. A participação da mulher na luta pela terra: dilemas e conquistas; a construção da identidade da mulher
sem-terra, in: FERNANDES Bernardo Mançano; MEDEIROS, Leonilde Servolo de; PAULILO, Maria Ignez (orgs.). O difícil
cruzamento entre classe e gênero. Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas, v. 2: a
diversidade das formas das lutas no campo. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento
Rural, 2009.
SIQUEIRA, Ana Paula P. de B. e SIQUEIRA, Manoel F. B. de. Adubo orgânico fermentado. Programa Rio Rural. Manual Técnico,
n. 40. Niteroi, 2013.

Esse texto é parte da pesquisa monográfica orientada pela Professora Vânia Costa Pimentel, do Curso de Pós-graduação Residência
Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, da Universidade de Brasília; linha de pesquisa: Culturas Tradicionais e Resistência.

RECUPERAÇÃO DO SOLO E OS IMPACTOS CAUSADOS PELO
AGRONEGÓCIO NO ACAMPAMENTO 8 DE MARÇO – PLANALTINA/DF 1

Edineide Soares da Rocha


Introdução
Segundo Fernandes (2012, p. 21), “a formação do acampamento é fruto do trabalho de base, quando
famílias organizadas em movimentos socioterritoriais se manifestam publicamente com a ocupação de um
latifúndio”. É geral a preocupação com a degradação e contaminação do solo e da natureza no
acampamento 8 de Março, vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por
parte das famílias que vivem à espera do acampamento se tornar um assentamento de Reforma Agrária,
independente do nível socioeconômico. Todos sabem da importância da recuperação do solo e do
ambiente do local, totalmente desmatado e degradado pela ação do agronegócio.
Um Estado provedor e protetor, convivendo com a defesa do mercado, a visão da propriedade da terra como direito absoluto, o discurso
da solidariedade entre as classes sociais no campo e a violência como prática e retórica da legitimação dos grandes proprietários de
terras e dos empresários rurais e do agronegócio no Brasil e que muito contribuem para o exercício da dominação e exploração da
classe camponesa (Bruno; Lacerda; Carneiro, 2012, p. 521).
A vegetação campestre do cerrado, com suas árvores pequenas e com troncos tortuosos, em grandes
variedades, já não existe mais naquela localidade. Foram extraídas para a expansão do agronegócio, que
avança para o Cerrado, causando transformações no bioma devido à retirada total de sua vegetação
nativa, provocando perda total da cobertura natural, causando compactação e contaminação do solo, que
perde seus nutrientes naturais.
A perda de cobertura do solo é um dos mais claros indícios da insustentabilidade que ultrapassa os
limites dos problemas locais para afetar, de forma grave, os equilíbrios globais. “Os dois componentes
básico das estratégias de atenção ao efeito estufa vivido pelo planeta são a emissão de gases e o
escoadouro de carbono provocado pelo desmatamento” (Perico e Ribero, 2005, p. 81).
O grileiro usa parte da fazenda como pastagem voltada para a atividade agropecuária, o que favorece a
compactação do solo, dificultando o armazenamento e a infiltração da água da chuva, e contribuindo para
o não crescimento da vegetação natural do cerrado. A lógica produtiva do agronegócio está em poder das
grandes empresas transnacionais que têm o controle de toda a cadeia produtiva, desde a produção de
sementes geneticamente modificadas até a comercialização final de alimentos processados que abastecem
os mercados internacionais, padronizando o consumo em escala planetária. Aos grandes latifúndios cabe
expandir suas fronteiras agrícolas, tendo na produção monocultora, em larga escala, a base de
sustentação do modelo de produção baseado no tripé: monocultivo-mecanização pesada-agrotóxicos.
Atuando desta forma, contribui para a devastação natural do cerrado e para a degradação do solo, que
perde nutrientes fundamentais para a sobrevivência das plantas e dos animais. Carvalho (2013) considera
que:
As opções empresariais consideradas pelo agronegócio como promissoras para ampliar a acumulação capitalista pela via da espoliação
são as estratégias burguesas de concentração de terras, da produção agropecuária e florestal em larga escala, do monocultivo e da
busca de um produtivismo insano que lhe induz ao uso intensivo de agrotóxicos, de hormônios, de herbicidas e de sementes híbridas,
transgênicas e mutagênicas, além de exercitarem hodiernamente o desprezo sociocultural pelos povos do campo e a desterritorialização
dos camponeses (Carvalho, 2013, p. 31-32).
O presente artigo possui uma proposta metodológica de revisão bibliográfica e vivência in loco, que
engloba o uso de diagnóstico participativo da comunidade, proposta de atividades de plantios, manejos,
coletas e troca de conhecimentos.
De acordo com Gil (2008), é um tipo de pesquisa com base empírica, concebida e realizada em
estreita associação com o individuo, ou com a resolução de um problema coletivo, no qual os
pesquisadores e participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo
cooperativo ou participativo.
O trabalho inicial teve como ponto de partida uma análise visualizada da realidade da área desmatada,
com forte presença do agronegócio. O objetivo do presente artigo é informar e compartilhar com a
comunidade o histórico da área e a possibilidade de cultivar os quintais de forma agroecológica. Desse
modo, servirá como ferramenta para reflorestar e recuperar o solo degradado do Acampamento 8 de
março.
De acordo com a legislação brasileira sobre sementes e mudas (Lei n. 10.711, de 5 de agosto de 2003), define-se como cultivar local,
tradicional ou crioula: ‘variedades desenvolvidas, adaptadas ou produzidas por agricultores familiares, assentados de Reforma Agrária e
indígenas, com característica fenotípicas bem com determinada e reconhecida pelas respectivas comunidades, substancialmente
distintas das cultivares comerciais’. Essa lei também prevê que ‘ficam isentos da inscrição no Renasem os agricultores familiares, os
assentados da Reforma Agrária e os indígenas que multipliquem sementes ou mudas para distribuição, troca ou comercialização entre
si’ (Mapa, 2007).

Cerrado: realidade e necessidade dos acampados do 8 de março

O cerrado é um bioma importante para a conservação da biodiversidade, pela sua vegetação, que é
eficaz aos recursos hídricos, e, também, por consumir menor quantidade de água para sobrevivência de
todos os seres nativos do bioma. O real cenário dessa localidade é um mar de soja no lugar do cerrado.
No acampamento 8 de março, as famílias têm muita preocupação com a degradação, com a
contaminação do solo e da natureza e com o uso abusivo de venenos agrícolas. Esta região vem, há anos,
sofrendo agressão ambiental, com plantios de soja, sorgo, milho e criação de gado para o agronegócio.
A fazenda está em posse do grileiro Mario Zinatto, um grileiro de outras áreas na região do DF e
entorno. A fazenda tem 1.258 ha e o atual ocupante diz ter o direito de uso de 769 ha e que 489 ha
pertencem à agência de regulação das terras públicas do Distrito Federal (Terracap). A área de cerrado
foi totalmente desmatada, nascentes extintas e o solo contaminado pelo uso abusivo de agrotóxicos. A
fazenda foi ocupada por três vezes, sem permanência local, pelo MST; somente na quarta ocupação, há
quase três anos, o acampamento conseguiu permanecer na área.
A comunidade vive à espera de uma decisão da Justiça, que é muito lenta em questão de
desapropriação de terras para fins de Reforma Agrária. Há uma grande preocupação por parte das
famílias que pleiteiam a área, em relação à contaminação do solo, destruição da natureza e do bioma do
cerrado que ocorrem mais naquele local. O acampado Antônio diz: “É uma tristeza ver uma área tão
grande de cerrado, totalmente desmatada, sem nenhuma árvore do cerrado, nem sequer um pé de pequi
(Caryocar brasiliense), dói saber o quanto o agronegócio destrói”.
As famílias que serão assentadas naquela região têm como desafios, recuperar o solo para produzir
seus alimentos e as características da paisagem do cerrado.2
De acordo com Durigan et al.. (2011):
(...) o cerrado era visto como terra improdutiva, sendo explorado apenas para a extração de lenha e carvão e para pecuária extensiva,
atividades que causavam relativamente poucos danos ao ecossistema. Embora a área já devastada seja extensa, a ocupação do cerrado
por agricultura e pecuária de alta tecnologia – estas, sim, atividades altamente impactantes – é um fenômeno recente (p. 7).

Diante dessa realidade, as famílias sabem da importância da vegetação do cerrado para o equilíbrio
ambiental da área e do potencial financeiro da biodiversidade, que será rica e benéfica para finalidades
alimentícia, artesanal e medicinal.

Solo e agricultura sem agrotóxicos: caminhos para o desenvolvimento rural
O solo é um recurso natural básico e fundamental para os ecossistemas e ciclos naturais, tornando-se
mais importante devido à coexistência de todos os seres vivos. É um minério renovável, por isso pode
ser usado por diversas vezes. Segundo Bertoni e Lombardi Neto (2008),
O solo é um recurso básico que suporta toda a cobertura vegetal de terra, sem a qual os seres vivos não poderiam existir. Nesta
cobertura, incluem-se não só as culturas como, também, todos os tipos de árvores, gramíneas, raízes e herbáceas que podem ser
utilizadas pelo homem. O solo, além da grande superfície que ocupa no globo, é uma das maiores fontes de energia para o grande
drama da vida que, geração após geração de homens, plantas e animais, atuam na terra (Bertoni e Lombardi Neto, 2008, p. 28).
Nas últimas décadas, vem ocorrendo, com frequência, a degradação do solo, consistindo em erosões,
contaminações causadas principalmente pela ação dos agrotóxicos utilizados pelo agronegócio. Seu
avanço constante tem causado o empobrecimento da fertilização do solo, com perda de nutrientes e
matéria orgânica, e afetado a capacidade de reprodução da vegetação natural necessária para a cobertura
do solo, que é a defesa contra a erosão.
Para Bertoni e Lombardi Neto (2008, p. 30), “a presença de alguns fatores restritos de uso (erosão,
declividade, excesso de umidade, escassez de água na região, inundação, acidez ou alcalinidade, baixa
fertilidade) pode determinar a separação de subclasses, diferentes tipos de manejo, dentro das classes”.
Para estes autores, “as variações topográficas podem trazer marcadas variações na drenagem natural;
assim, as gramíneas crescem mais rapidamente nas áreas úmidas, e como o excesso de umidade causa
uma baixa aeração, a decomposição dos resíduos das plantas é lenta; a acumulação de matéria orgânica é
diretamente proporcional ao teor de umidade de solo”. A erosão é o processo de desprendimento
acelerado das partículas do solo, que afeta de muitas maneiras a vida existente na terra. Ainda, segundo
eles, as principais características físicas do solo são:
Cor é uma das características mais facilmente distinguíveis dos solos que, em geral, apresentam diversas tonalidades de cor (...);
textura é a destruição quantitativa das classes de tamanho de partículas de que se compõe o solo (...); estrutura é a forma como se
arranjam as partículas elementares do solo (...); porosidade refere-se à proporção de espaços ocupados pelos líquidos e gases em
relação ao espaço ocupado pela massa de solo (...); permeabilidade é a capacidade que tem o solo de deixar passar à água e ar através
do seu perfil (...) (Bertoni e Lobardi Neto, 2008, p. 40).
Segundo Lepsch (2002), “os horizontes do solo são constituídos de quatro componentes principais:
partículas minerais; matéria orgânica; água e ar, os quais estão normalmente tão misturados que sua
separação só pode ser feita em laboratórios, por métodos específicos”.
No Brasil, existem várias organizações responsáveis por identificar e recuperar áreas degradadas sem
condição de produtividade de culturas diversas, principalmente, em áreas de assentamentos de Reforma
Agrária. Existem projetos e programas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do
Ministério do Meio Ambiente, da FAO (Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) e do
Bird (Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento) que contribuem para recuperar as
áreas.
Segundo Primavesi (2009, p. 5), “o solo tem que ser sadio, ou seja, com equilíbrio entre todos seus
fatores, bem agregado para que ar e água possam penetrar, e limpo, isto é, sem substâncias tóxicas”. A
autora afirma que, em enormes áreas desmatadas plantam-se monoculturas, sem uso de matéria orgânica,
com três adubos quimicamente refinados (Nitrogênio, Fósforo e Potássio - NPK) após correção do pH do
solo para neutro através de calagem, usando-se herbicidas e defensivos químicos (agrotóxicos). Com
isso, morre a maior parte da microvida, permanecendo somente algumas poucas espécies que podem
utilizar as excreções radiculares e a palha desta monocultura (Primavesi, 2009).
O avanço no processo de modernização agrícola no Brasil, caracterizado por concentração de terras,
expansão de monocultivos, uso intensivo de equipamentos e modelo produtivo químico-dependente de
agrotóxicos e fertilizantes sintéticos, vem induzindo processos de desterritorialização que repercutem
sobre o modo de vida dos trabalhadores do campo e das comunidades (Carneiro, 2012). De acordo com
a Lei Federal n. 7.802, de julho de 1989, regulamentada pelo decreto n. 4.074, de 4 de janeiro de 2002,
os agrotóxicos são:
(...) produtos e componentes de processos físicos, químicos ou biológicos destinados ao uso nos setores de produção, armazenamento e
beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na produção de florestas nativas ou implantadas, e em outros ecossistemas e
também ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar composição da flora e da fauna, a fim de preservá-las da
ação danosa de seres vivos considerados nocivos. São considerados, também, como agrotóxicos, substâncias e produtos como
desfolhantes, dessecantes, estimulantes e inibidores de crescimento (Brasil, 2002).
Agricultura é o conjunto de técnicas utilizadas para cultivar plantios com o objetivo de obter
alimentos, fibras, energia, matéria-prima, construções, medicamentos, ferramentas, ou apenas para
contemplação estética, por intermédio da força de trabalho do homem e tecnologia de máquina e
equipamentos avançados ou não.
Na agricultura orgânica, sem uso de agrotóxicos, o produto tem que ser elaborado em um ambiente de
produção orgânica, onde se utilizam técnicas e princípios agroecológicos que contemplam o uso
responsável do solo, da água, do ar e dos demais recursos naturais, respeitando as relações sociais e
culturais. A cultura e a comercialização dos produtos orgânicos, no Brasil, foram aprovadas pela Lei
10.831, de 23 de dezembro de 2003. Sua regulamentação, no entanto, ocorreu apenas em 27 de dezembro
de 2007, com a publicação do Decreto n. 6.323.
Agricultura convencional é um termo usado a partir da “revolução verde”, sendo o modo agrícola em
que prevalece a busca da maior produtividade através da intensa utilização de insumos externos, gerando
resultados econômicos visíveis em curto prazo, e aumento da produtividade e eficiência agrícola, com
uso intensivo de agrotóxicos.
(...) A agricultura constitui-se, então, no fator de construção de sociedades assentadas no território, localizadas espacialmente e em
condição estável e permanente. A agricultura não somente era responsável pela provisão dos alimentos necessários para a
sobrevivência desses grupos, senão também determinou a localização deles e as condições para o seu desenvolvimento social e
institucional, a relação de denominação e de uso ou exploração dos recursos que estavam a sua disposição (Perico e Ribeiro, 2005, p.
31).
Embora a agricultura seja praticada pela humanidade há mais de dez mil anos, o uso intensivo de
agrotóxicos para o controle de pragas e doenças nas lavouras existe há pouco mais de meio século.
Londres (2012) afirma que teve origem após as grandes guerras mundiais, quando a indústria química
fabricante de venenos, então usados como armas químicas, encontraram na agricultura um novo mercado
para os seus produtos. Relata que diversas políticas foram implementadas em todo o mundo para
expandir e assegurar esse mercado. A pesquisa agropecuária voltou-se para o desenvolvimento de
sementes selecionadas para responder à aplicação de adubos químicos e agrotóxicos em sistemas de
monoculturas altamente mecanizados. Segundo seus promotores, esta “revolução verde” seria
fundamental para derrotar a fome que assolava boa parte da população mundial.
Sabe-se que esse modelo serviu para o avanço do agronegócio a nível mundial, fortalecendo o uso
intensivo de venenos na alimentação da população e contaminação do solo e de todos os ecossistemas e
ciclos naturais. Diante dessa realidade, a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional n. 11.346/2006,
chamada Losan, já define em seu artigo 4º que a ampliação do acesso a alimentos passa, especialmente,
pela produção da agricultura tradicional e familiar, e pela conservação da biodiversidade e a utilização
sustentável dos recursos. Surge, assim, em 1997, a proposta de estruturação de uma linha de produção e
comercialização de sementes registradas de hortaliças em bases agroecológicas.
Packer (2010) afirma que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) discute as
consequências da inserção do pacote tecnológico disseminado pela revolução verde, que estimula a
aquisição de insumos externos, a dependência do crédito e fomenta sistemas produtivos pouco
diversificados para os assentamentos e a agricultura familiar, e ressalta, ainda, que a Bionatur contribuiu
no debate a respeito do significado das sementes na vida e na cultura dos camponeses no lançamento, no
Fórum Social Mundial, da campanha internacional da Via Campesina: “Sementes, patrimônio dos povos a
serviço da humanidade”. Para Londres (2012):
(...) as pragas agrícolas possuem a capacidade de desenvolver resistência aos venenos aplicados: com o tempo os agrotóxicos vão
perdendo eficácia e levando os agricultores a aumentar as doses aplicadas e/ ou recorrer a novos produtos. (...) A última novidade da
indústria para ‘solucionar os problemas da agricultura’ foi o desenvolvimento das famigeradas sementes transgênicas. Esta tecnologia
segue a mesma lógica da agricultura convencional, ora fabricando plantas inseticidas, ora plantas de uso associado a herbicidas e, desde
que foi introduzida há pouco mais de uma década, só fez aumentar o consumo de agroquímicos (Londres, 2012, p. 21).
Para Sauer e Balestro (2013), em oposição a uma agricultura globalizada, sob o controle das grandes
corporações transnacionais, se reforça o fortalecimento de uma agricultura de base familiar, alicerçada
no uso múltiplo dos recursos naturais e no potencial endógeno das comunidades rurais. As famílias
acampadas sabem que estão diante de um grande desafio que tem contra si o agronegócio que é o de
produzir mais, considerando o manejo e as técnicas de produção de alimentos ambientalmente saudáveis
em relação à soberania alimentar. Mas, através da realidade, nasce a necessidade de produzir culturas em
maior quantidade e com qualidade agroecológica. Segundo Guzmán e Molina (2013, p. 72), “trabalhos
realizados em comunidades camponesas por diferentes pesquisadores, fundamentalmente antropólogos,
biólogos e agrônomos, elaboram uma proposta teórica que pode ‘ser considerada potencialmente como
um novo paradigma’”.

Agronegócio e seu mito de combate à fome
Após a Segunda Guerra Mundial, o modelo da revolução verde trouxe o pacote de sementes
modificadas geneticamente, insumos químicos e máquinas de altas tecnologias para substituírem a mão de
obra do trabalhador rural. Atualmente, é possível perceber que a modernização da agricultura demonstra
eficácia e rentabilidade frente à demanda de crescimento da produção. De acordo com o MST (2014),
o capitalismo mundial, a partir da década de 1980, ingressou numa nova fase de seu desenvolvimento, sendo agora hegemonizado pelo
capital financeiro e pelas empresas privadas transnacionais, oligopolizadas, que controlam o mercado mundial das principais
mercadorias. Isso significa que o processo de produção de riquezas continua sendo realizada pelo trabalho na esfera da indústria,
agricultura e do comércio. No entanto, as taxas de acumulação e de divisão do lucro se concentram na esfera do capital financeiro e
das grandes empresas privadas capitalistas oligopolizadas que atuam em nível mundial. (Segundo dados do Pnud - Agência de
Desenvolvimento das Nações Unidas, as 700 maiores empresas controlam 80% do mercado mundial!) (Programa Agrário do MST,
2014, p. 9).
Esse modelo dominador do capital, em todo o mundo, trouxe mudanças também no modo de dominar as
produções agrícolas. Nasce uma aliança de classe, entre a burguesia das empresas transnacionais, os
banqueiros (o capital financeiro), a burguesia proprietária das empresas de comunicação de massa e os
grandes proprietários de terra com a finalidade de controlar a produção e a circulação das commodities
(mercadorias agrícolas padronizadas).
No Brasil, a revolução verde surgiu na época da ditadura militar como estratégia de modernização.
Ocorreu de forma conservadora, dando continuidade ao avanço da alta concentração de grandes
latifúndios, que, para Marcattor (2013), não só exige “uma escala mínima para se tornar economicamente
viável, como também apresentar ganho de escala, isto é, quanto maior a quantidade produzida, menores
serão os custos proporcionais de produção”. O sistema de produção do agronegócio vem apresentando
números expressivos de produtividade agropecuária, elevando altos índices de exportação e
representando um aumento na composição do PIB nacional. Entretanto, esse modelo convencional traz
consequência à sociedade. Nesse sentido, Sosa et al. (2013) afirmam que:
O uso excessivo de pesticidas e fertilizantes sintéticos provocou um crescente desequilíbrio dos ecossistemas no campo, em detrimento
dos fatores naturais. Um exemplo disso foi a eliminação de muitos organismos benéficos, inimigos naturais, necessários para o controle
de pragas. O resultado? O aparecimento contínuo de novas pragas, e a ineficiência no controle das já conhecidas. Este desequilíbrio dos
sistemas agrícolas transformou-os em nicho propício à proliferação de pragas, o que provocou efeitos devastadores nas principais
culturas (...) (Sosa et al., 2013, p. 44).
O pacote tecnológico aplicado nas monoculturas do agronegócio levou o Brasil a ser o maior mercado
consumidor de agrotóxicos do mundo, concentrando 84% das vendas na América Latina. O Brasil
também é o segundo maior plantador de sementes geneticamente modificadas do mundo e tende a ser o
maior pagador de royalties decorrentes da utilização de sementes de soja geneticamente modificada
(Londres, 2012). Segundo Andrioli e Fuchs (2012, p. 148), “os povos indígenas e áreas preservadas,
como o famoso Pantanal, estão sendo afetadas, sempre mais, pela expansão da soja”. Em relação à
existência dos transgênicos, estes autores afirmam:
Com a introdução das plantas transgênicas, os agricultores são confrontados com inúmeros desafios e problemas. Nestes estão
incluídos a perda de mercados estrangeiros, dificuldades em aquisição de sementes e, por parte das multinacionais, inúmeros processos
jurídicos, bem como a perseguição judicial a agricultores em função de violação de patentes (Andrioli; Fuchs, 2012, p. 59).
Esse modelo mostra-se insuficiente para a produção de alimentos saudáveis para a população
brasileira, tendo em vista o aumento do consumo de agrotóxicos e sementes transgênicas. Nesse sentido,
a Reforma Agrária permanece como elemento fundamental nesse debate, sendo necessário fortalecer a
produção agroecológica e as estratégias da agricultura familiar para produzir mais e com qualidade. Sosa
et al. (2013) relatam ainda que:
(...) a manutenção de práticas como o uso de tração animal, as fontes alternativas de energia, a associação e rotação de culturas, a
produção de sementes, o uso de esterco como adubo e outras formas de interação animal nas fazendas, foram circunstâncias que
possibilitaram resistir ao impacto que viria nos anos 1990, assim como assegurar rápidos crescimentos da produção para aliviar a crise
alimentar e favorecer, mais adiante, o avanço do movimento agroecológico (Sosa et al., 2013, p. 45).
Machado e Machado Filho (2014) relatam que a substituição da tração animal pela tração mecânica
representa uma nova e enorme modificação em todos os processos agrícolas. A agricultura camponesa é
esmagada pela “modernização conservadora”, em sua máxima expressão, pela fracassada “revolução
verde”, que é, também, a expressão máxima da destruição da agrobiodiversidade, a negação da natureza.
Por isso, para desenvolver um método de uso do solo agrícola, há que se pensar na integração
animal/vegetal e, por consequência, em ambas as produções que são irmãs e interdependentes; há que se
compreender a agrobiodiversidade, como condição essencial e primeira para o seu uso (Machado e
Machado Filho, 2014. p. 31).
Segundo o Ministério da Agricultura (Mapa, 2014), o Brasil lidera a produção e exportação de vários
itens agropecuários, como açúcar, café, laranja, aves, carne bovina e, mais recentemente, o etanol. A
exportação agrícola gera 40% de superávit comercial no Brasil e a sua produção gera quase 6% do PIB,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O poder econômico do agronegócio
brasileiro, fruto do apoio do Estado, está voltado para o lucro do capital, restringindo-se a um pequeno
grupo de produtos ditados pelo mercado externo e ignorando interesses nacionais (Teixeira, 2014).
O agronegócio, no Brasil, não se converte em melhoria da qualidade de vida dos pequenos
agricultores, os quais ainda possuem índices preocupantes de insustentabilidade financeira e alimentar. A
condição financeira de trabalhar a melhoria da terra para produzir, é mínima, o solo do acampamento 8
de março tem características do cerrado, com muita acidez, e quando não está na condição natural, se
encontra na situação de degradação, por consequência da exploração agrícola com uso abusivo de
agrotóxico, ou pela própria erosão provocada pelos fenômenos da natureza. De acordo com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidades, de 1948, a alimentação situa-se
entre os direitos humanos fundamentais:
Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação,
vestuário, habitação, cuidados médicos, os serviços sociais indispensáveis e direitos à segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou outros, casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle (...) (ONU, 1948).
Em 1996, o Governo Federal instituiu o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(Pronaf3), criando condições para o desenvolvimento socioeconômico do país e promovendo o
desenvolvimento sustentável na zona rural com maior capacidade produtiva, financeira e geração de
empregos e qualidade de vida para os agricultores. A agricultura familiar é o conjunto das unidades
produtivas agropecuárias com exploração de economia familiar, compreendendo aquelas atividades
realizadas em pequenas e médias propriedades, com mão de obra da própria família. Abramovay (2004)
afirma que a agricultura familiar tem as seguintes características:
a) a gestão é feita pelos proprietários; b) os responsáveis pelo empreendimento estão ligados entre si por laços de parentesco; c) o
trabalho é fundamentalmente familiar; d) o capital pertence à família; e) o patrimônio e os ativos são objetos de transferência
intergerencial no interior da família; f) os membros da família vivem na unidade produtiva (Abramovay, 2004, p. 78).
Os trabalhadores rurais que se organizam em regime de economia familiar, individualmente ou
utilizando da força de trabalho da sua família, caracterizando-se como agricultores familiares, têm
direitos reconhecidos garantindo a aposentaria, são “segurados especiais”, que têm normas
diferenciadas. Na Previdência Social, no ato da solicitação do benefício, o INSS exige que os
trabalhadores comprovem a atividade rural durante o tempo de carência para receber o benefício
solicitado, e não precisam provar que pagaram as contribuições do INSS.
Os moradores do acampamento 8 de março, na grande maioria, precisam sair da localidade para
trabalhar fora, como autônomos, pedreiros, jardineiros, dentre outras funções, porque a comunidade não
tem espaço suficiente para a produção e a geração de renda. As famílias sabem da importância de se
trabalhar nos quintais, produzindo alimentos e gerando o conhecimento a partir do manejo para a
transição agroecológica. Os trabalhadores rurais visam o futuro da área, tornando-se um modelo de
assentamento agroecológico.
Nos quintais do acampamento, verificamos a produção de mais de 60 espécies, envolvendo as
hortaliças convencionais e tradicionais, frutíferas, medicinais, grãos etc. que são utilizados para o
consumo diário dos trabalhadores acampados, contribuindo, assim, para a segurança alimentar e
nutricional. Mas, por falta de espaço, os trabalhadores não conseguem produzir excedentes para a
comercialização e geração de renda. Para Lia (2015)4, “no quintal é onde aprendo e descubro a
importância de produzir diversos alimentos saudáveis, não esquecendo as minhas origens, sendo o
melhor lugar do acampamento”.
Esta diversidade dos quintais é de suma importância para a agricultura sustentável5 dos camponeses,
ao contrário da monocultura do milho e soja plantada em volta do acampamento pelo latifundiário da
Fazenda Toca da Raposa. No acampamento 8 de março, parte das mulheres, sendo elas casadas, viúvas
ou mães solteiras, a iniciativa de plantar e manter os quintais produzindo, além de cuidar do manejo com
as pequenas criações de aves, como galinhas, patos e codornas, também atuam e são responsáveis pela a
biodiversidades dos quintais produtivos.
A produção dos quintais do acampamento 8 de março é um sistema que não conta com pesticidas e
fertilizantes químicos, utilizando-se de esterco de gado, galinha, coelho, adubação verde, como feijão de
porco, guandu, crotalária, mucuna etc. O plantio diversificado gera fonte nutricional para o camponês,
através do consumo da produção do próprio quintal, além do reconhecimento da capacidade individual
de reprodução da autossustentação das práticas agroecológicas no próprio espaço onde vive.

Considerações finais
Este trabalho conclui que a fronteira agrícola do agronegócio, com seu avanço para as regiões do
cerrado, contribui para o desmatamento e a degradação do solo da região, e que as famílias acampadas
terão um grande desafio para produzir seus alimentos, mas, ao utilizar-se de técnicas agroecológicas, a
partir dos quintais, estarão contribuindo para a restruturação do solo contaminado com os agrotóxicos
utilizados há vários anos na fazenda. O agronegócio é o inimigo dos agricultores da Reforma Agrária no
Distrito Federal, pela sua presença em torno dos acampamentos e assentamentos, que têm constantemente
seus pequenos espaços invadidos pelas famosas parcerias, através de propostas de arrendamentos das
terras e da especulação imobiliária, que fortalece a grilagem de terras públicas e particulares.
Esse trabalho propõe, como alternativa para a recuperação da degradação do solo do Acampamento 8
de Março, que a comunidade inicie com plantios agroecológicos nos quintais, no modelo do sistema
agroflorestal, que contribuirá para a cobertura do solo degradado, além de produzir seus alimentos com
um alto teor de colorias, benéficas para a saúde humana. Com base na revisão bibliográfica e na pesquisa
realizada pela autora, a reflexão sobre os impactos do agronegócio e alternativas para a recuperação da
área do acampamento, continuará sendo compartilhada com a comunidade.

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Esse artigo faz parte da pesquisa orientada pela professora Janaína Diniz, realizada no Curso de Especialização Residência Agrária:
matrizes produtivas da vida no campo, da Universidade de Brasília.

A vegetação é parte importante no equilíbrio da terra, pois permite manter a vida dos animais, a qualidade do solo e da água. Disponível
em: <https://www.embrapa.br/cerrados/publicacoes>. Acesso em: 17 fev. 2015.

Foi estruturado com os seguintes objetivos específicos: ajustar as políticas públicas de acordo com a realidade dos agricultores
familiares; viabilizar a infraestrutura necessária à melhoria do desempenho produtivo dos agricultores familiares; elevar o nível de
profissionalização dos agricultores familiares através do acesso aos novos padrões de tecnologia e de gestão social; estimular o acesso
desses agricultores aos mercados de insumos e produtos.

Agricultora e moradora do acampamento 8 de março, entrevistada em janeiro de 2015.

É o manejo e conservação dos recursos naturais e a orientação de mudanças tecnológicas e institucionais de tal maneira a assegurar a
satisfação das necessidades humanas, de forma continuada, para as gerações presentes e futuras. Tal desenvolvimento sustentável
conserva o solo, a água e recursos genéticos animais e vegetais; não degrada o meio ambiente: é tecnicamente apropriado,
economicamente viável e socialmente aceitável (Veiga, 1994, p. 22).

PARTE 2

EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
E A LUTA POR POLÍTICAS PÚBLICAS

A COOPERAÇÃO NOS ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA E AS
CONSEQUÊNCIAS DA APROVAÇÃO DA LEI 12.690/20121

Fábio Ramos Nunes e Manoel Pereira de Andrade


Introdução
A aprovação da Lei n. 12.690, de 19 de julho de 2012, cria um marco regulatório para as cooperativas
de trabalho no Brasil, descaracterizando os princípios cooperativistas e estabelecendo verdadeiras
obrigações trabalhistas que afetam diretamente a lógica de funcionamento interno, podendo demandar
longo período para adaptação à nova regulamentação. A lei massacra as organizações mais pobres que
precisam se organizar coletivamente para desenvolver a produção e se manterem no mercado capitalista
e, ainda, há um tratamento diferenciado às grandes cooperativas de profissionais liberais e médicos, pois
estas não se enquadram no projeto, estão excluídas.
O processo de cooperação surge nos assentamentos de Reforma Agrária com uma concepção
igualitária, produzindo alimentos para consumo interno das famílias. Logo, torna-se um importante
instrumento dos movimentos sociais para desenvolver a produção, tendo em vista a grande dificuldade de
investimentos produtivos de forma individual. A cooperação simples, num determinado momento, já não
é suficiente para atender às necessidades básicas, como alimentação, vestuário, material escolar dentre
outras, havendo necessidade de evoluir.
O passo seguinte é a formalização dos grupos e associações em cooperativas, se enquadrando na
lógica mercantil, mostrando para a região onde está inserida, e à sociedade, de maneira geral, a
importância da Reforma Agrária no desenvolvimento do campo brasileiro, fornecendo aos mercados
locais alimentação de qualidade produzida nos assentamentos.
Com o intuito de avançar nas relações sociais e de produção, foram criadas as Cooperativas de
Produção Agropecuária (CPAs), organizadas de forma coletiva e envolvendo os assentados,
proporcionando a participação de mulheres e jovens, evitando, assim, o esvaziamento dos assentamentos
e garantindo a continuidade para as gerações futuras.
Diante da grande importância das CPAs para o desenvolvimento econômico e social dos
assentamentos, este estudo busca apontar as consequências da aprovação da referida lei para as
cooperativas, abordando as dificuldades de adequação e, até mesmo, podendo inviabilizar o surgimento
de novos empreendimentos sociais desse tipo.

A cooperação como alternativa para potencializar a produção dos trabalhadores do campo
A cooperação surge como forma de aprimoramento do trabalho, tornando-o mais efetivo e dando
condições para que os trabalhadores consigam alcançar maior produtividade, proporcionando a a
independência, desobrigados de vender sua força de trabalho para as grandes empresas. Para Marx
(2002, p. 378), a cooperação é “a forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um
plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos”.
Ao se empregar a força de trabalho coletiva em determinado processo de produção, não se multiplica
simplesmente a quantidade de trabalhadores que passam a fazer parte do processo. O somatório das
forças exercidas individualmente é menor do que a força total coletiva resultante da união entre as
pessoas. Além dos ganhos da divisão de tarefas, as pessoas sentem-se mais motivadas na realização
destas. De acordo com Marx (2002, p. 379), “o efeito do trabalho combinado não poderia ser produzido
pelo trabalho individual, e só o seria num espaço de tempo muito mais longo ou numa escala muito
reduzida”.
A partir disso, pode-se comparar o trabalho individual com o trabalho coletivo: o trabalho realizado
por um trabalhador rural solitário envolveria a preparação da terra, posteriormente, o plantio e outros
trabalhos necessários à produção de determinada cultura. Ele poderia gastar certo número de dias de
serviço, com certeza maior por trabalhar sozinho e se sentir menos motivado, ou pelo fato de o trabalho
exigir muito e o trabalhador apresentar limites, somente superáveis com a ajuda de companheiros. Por
outro lado, se o trabalho for realizado de forma coletiva, com vários trabalhadores distribuídos na
realização de tarefas específicas, estas resultarão em maior produtividade, e, ainda, incrementadas pela
maior disposição das pessoas. Assim, seriam alcançados mais rapidamente os objetivos determinados,
com melhor qualidade e menor quantidade de trabalho e tempo empregados.
Não se trata, aqui, da elevação da força produtiva individual através da cooperação, mas da criação de uma força produtiva nova, a
saber, a força coletiva. Pondo de lado a nova potência que surge da fusão de muitas forças numa força comum, o simples contato
social, na maioria dos trabalhos produtivos, provoca emulação entre os participantes, animando-os e estimulando-os, o que aumenta a
capacidade de realização de cada um, de modo que uma dúzia de pessoas, no mesmo dia de trabalho de 144 horas, produz um produto
global muito maior do que 12 trabalhadores isolados, dos quais cada um trabalha 12 horas, ou do que um trabalhador que trabalhe 12
dias consecutivos (Marx, 2002, p. 379).
Os trabalhadores, individualmente, enfrentam dificuldades para adquirir os meios de produção
(maquinários e insumos), meios para beneficiar os produtos primários e para realizar a comercialização.
Além das atividades pontuais, os assentados precisam evoluir aos modos de cooperação, por meio da
criação de cooperativas para o desenvolvimento do processo produtivo com novas tecnologias e apoio à
colocação dos produtos em seus mercados consumidores. Pimentel (1999, p. 4) sugere que a cooperação
se inicie “com as formas mais simples tais como: mutirão, troca de serviços, de insumos, grupos de
trabalhos coletivos, semicoletivos e associações prestadoras de serviços e ir evoluindo, aos poucos, em
direção às formas mais desenvolvidas de cooperação”.
Na lógica do processo de produção capitalista, as grandes empresas se utilizam, historicamente, da
cooperação para diminuir o tempo de trabalho empregado na produção de determinado item, conseguindo
elevar a força produtiva e, consequentemente, sua escala de produção. Contudo, os valores pagos ao
trabalhador, pelo capitalista, são referentes à sua força de trabalho individual empregada e não à força
produtiva social do trabalho2 proveniente da cooperação, tornando-se uma força produtiva do capital.
Por outro lado, a cooperação tem sido extremamente importante para uma efetiva Reforma Agrária em
vários Estados do Brasil, conseguindo organizar a produção, industrialização e a comercialização
através da criação de cooperativas e investimentos coletivos dos recursos destinados aos assentados.
No primeiro momento, a produção é orientada para subsistência e, posteriormente, para a geração e
comercialização do excedente, junto às comunidades vizinhas, com vistas a realizar um retorno financeiro
para garantir o sustento dos trabalhadores no campo.
Os trabalhadores cooperam entre si, aprimorando e potencializando o processo produtivo, fazendo
com que o resultado da força produtiva do trabalho social seja revertido para o coletivo. Ganham
autonomia na comercialização realizada diretamente com o consumidor final, eliminando, assim, os
atravessadores que desvalorizam o trabalho dos produtores e criando condições econômicas e
financeiras para a permanência das famílias no campo através da geração de emprego e renda para
homens, mulheres e jovens.

Cooperativas em assentamentos de Reforma Agrária: aspectos legais e organizacionais
A criação de cooperativas em assentamentos rurais responde às necessidades dos assentados, relativas
ao desenvolvimento de atividades, formas de beneficiamento dos produtos e posicionamento no mercado,
buscando alternativas de comercialização. Segundo os princípios da sustentabilidade, o alcance destas
metas proporciona aos trabalhadores se tornarem sujeitos da transformação, tanto como pensadores e
planejadores, quanto como responsáveis pela execução das tarefas e, ao mesmo tempo, sócios da
cooperativa, deixando, assim, de vender sua força de trabalho a terceiros. O formato cooperativo de
realização das tarefas em assentamento equivale a “um empreendimento autogestionado, porque o
associado será sempre o ‘dono’ da empresa, com todos os direitos, deveres e responsabilidades que lhe
competem” (Turra, Santos e Colturato, 2002, p. 29).
Para a criação da primeira cooperativa em Rochdale (Inglaterra), foram criados princípios, baseados
em ideais socialistas para nortear ações e o funcionamento, iniciando um novo período do movimento
cooperativista. Esses princípios foram discutidos em diversos congressos ao longo de todos os anos
posteriores e formalizam, segundo Rech (2000, p. 23), “uma declaração a respeito dos valores e a
definição de sete princípios cooperativistas.” A declaração, que antecede os princípios, apresenta-se da
seguinte forma:
As cooperativas se baseiam nos valores de ajuda mútua, responsabilidade, democracia, igualdade, equidade e solidariedade. Seguindo a
tradição de seus fundadores, seus membros acreditam nos valores éticos da honestidade, transparência, responsabilidade social e
preocupação pelos demais integrantes (Rech, 2000, p. 23).
Segundo Turra, Santos e Colturato (2002, p. 29), “esses princípios tornam as cooperativas sociedades
com características únicas em todo o mundo.” Tendo em vista a grande importância dos princípios para a
caracterização das cooperativas, torna-se imprescindível apresentá-los, levando em consideração ideias
apresentadas por Rech (2000):
1. Adesão voluntária e livre: as cooperativas constituem organizações voluntárias, abertas a todas as
pessoas aptas a utilizar os seus serviços e assumir as responsabilidades como membros, sem
discriminações de sexo, sociais, raciais, políticas e religiosas. Mas as pessoas devem estabelecer
mecanismos internos para terem autonomia coletiva de decidirem se querem que uma determinada pessoa
entre ou não; assim, os critérios de adesão devem constar no estatuto social.
2. Gestão democrática pelos membros: a iniciativa mais concreta deste princípio é de que cada
associado tem um único voto, seja qual for a sua posição, fazendo com que todos tenham direitos iguais.
3. Participação econômica dos sócios: os sócios contribuem com a cooperativa injetando recursos
para o seu pleno funcionamento e “as sobras existentes” são assim distribuídas: 1. para desenvolver a
cooperativa por meio da criação de um fundo de reservas, mantendo-se indivisível “pelo menos uma
parte”; 2. para beneficiar individualmente os associados, proporcionalmente “às suas transações com a
cooperativa”; e 3. para o “apoio a outras atividades da cooperativa, segundo decisão da assembleia dos
associados.”
4. Autonomia e independência: as cooperativas devem funcionar com autonomia e liberdade sem ter
que se submeter nem ao Estado ou a outras instituições que se arvoram o direito de impor a sua
representação.
5. Educação, capacitação e informação: parte do excedente da cooperativa deve ser destinada para a
educação, assistência técnica e social dos seus associados e suas famílias.
6. Intercooperação: a cooperativa busca a integração com outras cooperativas, visando ao
fortalecimento do movimento e procurando se firmar para intervir da melhor forma na transformação da
sociedade.
7. Compromisso com a comunidade: as ações da cooperativa, ao mesmo tempo que tem, como centro,
o benefício dos seus sócios, deve irradiar o seu princípio da cooperação para que a sociedade que ela
propõe – da participação, da igualdade e da justiça – também esteja presente e disponível para todos.
Os princípios apontados garantem aspectos mais humanos e sociais às cooperativas. Para conseguir se
manter no mercado e realizar as atividades essenciais características, a cooperativa tem que competir
com empresas capitalistas cuja competitividade é indiscutível. De acordo com Pimentel (1999, p. 6), os
movimentos sociais devem assumir uma posição diferenciada, “buscando um mercado alternativo, com as
seguintes características: popular, local/regional, ideológico/propaganda da Reforma Agrária, de
comercialização direta entre os trabalhadores.”

As Cooperativas de Produção Agropecuária (CPAs)
As CPAs surgiram num momento político desfavorável para a Reforma Agrária (no governo Collor de
Mello), com ausência de políticas públicas para fortalecer os assentamentos e marcado pela forte
repressão aos movimentos sociais do campo, em especial ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). O objetivo era potencializar a produção, inicialmente voltada para a subsistência,
transformando os grupos coletivos informais e associações em cooperativas, fornecendo aos mercados
locais produtos da agricultura familiar e mostrando para a sociedade a importância da Reforma Agrária
para o desenvolvimento do campo brasileiro.
Rech (2000, p. 51) destaca que as CPAs “têm como objetivo a produção agropecuária,
comercialização, agroindústria, assistência técnica, entre outros” e apresentam características
particulares:
1. parte da terra dos associados é arrendada ao coletivo, recebendo uma parte das sobras apuradas nas
operações. Assim, todo o patrimônio posteriormente constituído (imobilizado e investimentos de capital)
está sob o controle e em nome da cooperativa, menos o capital social que é dos associados;
2. para uma gestão democrática das atividades da cooperativa, a definição das atividades produtivas
específicas é de responsabilidade da própria assembleia ou transferida para os núcleos que a
representam;
3. o uso dos meios de produção constitui-se em posse real coletiva, mantida pela perspectiva coletiva,
mas não é posse individual, como nas cooperativas de trabalho; as atividades não são realizadas de
forma individual;
4. cada associado tem uma função determinada na cooperativa, mas isso não quer dizer que vai
realizar aquela atividade específica sempre, ou seja: a relação com a produção é fruto da decisão de
instância associativa e não resultado de vínculo específico com, por exemplo, a propriedade, posse ou
usufruto.
Ainda segundo Rech (2000, p. 52), estas CPAs inovaram o cooperativismo brasileiro e introduziram
um importante debate no esforço para a implantação de uma nova legislação que proteja “esse tipo de
iniciativa comunitária de gestão de negócios e conquista de direitos coletivos”.
Com respeito à organização do trabalho, as CPAs estabelecem um tempo mínimo de trabalho para cada
associado desempenhar, variável com as demandas das atividades, já a “distribuição das sobras [ou
excedentes] pode-se dar [proporcionalmente com as] horas trabalhadas ou dias trabalhados” (Pimentel,
1999, p. 8).
As cooperativas tornaram-se um importante instrumento organizativo dos assentamentos. Com o
fortalecimento das cooperativas, os assentados passaram a acessar de forma mais efetiva os mercados
institucionais destinados à compra de produtos da agricultura familiar, atendendo à demandas da
Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)
direcionando-os para merenda escolar em diversos municípios do país.
O avanço da produção agropecuária, do processo de agroindustrialização e da comercialização, cria
condições para a permanência das famílias no campo, com a geração de emprego e renda, mostrando a
importância da cooperação para o desenvolvimento dos assentamentos e das relações com a sociedade.

A criação da Lei n. 12.690/12 e suas consequências para as cooperativas de produção
A Lei 12.690 de 19/07/2012 foi criada com o intuito de barrar as cooperativas fraudulentas que se
utilizam dos benefícios legais para intermediação de mão de obra, deixando de garantir os direitos do
trabalhador previsto em lei, precarizando o trabalho.
Empresas criam cooperativas de trabalho, com seus estatutos e demais apanágios legais, as registram devidamente e depois mandam
seus empregados se tornarem membros delas, sob pena de ficar sem trabalho. Os empregados são demitidos, muitas vezes de forma
regular, e continuam a trabalhar como antes, ganhando o mesmo salário direto, mas sem o usufruto dos demais direitos trabalhistas.
Estas são as falsas cooperativas também conhecidas como cooperfraudes e outros epítetos. São cooperativas apenas no nome,
arapucas especialmente criadas para espoliar os trabalhadores forçados a se inscrever nelas (Singer, 2013, p. 2).
Mas, como afirma Rech (2012, p. 19), “lamentavelmente, as restrições e imposições criadas pela lei
estão limitadas às iniciativas das populações mais pobres e mais necessitadas de se organizar”. Esta
afirmação se justifica, primeiro, pelo fato de serem excluídas da lei, as grandes cooperativas de
profissionais liberais e médicos, não se enquadrando nas obrigações estabelecidas. Essa medida faz com
que os pequenos sejam cada vez mais dependentes do Estado, sem possibilidades de se desenvolverem
com autonomia.
Em segundo lugar, porque determina no seu art. 7º, uma série de direitos que são quase que
equiparados aos dos trabalhadores em regime de contratação via CLT, criando de acordo com Rech
(2012, p. 19), “obrigações trabalhistas que mais estão no âmbito da relação capital e trabalho do que
entre participantes de um empreendimento cooperativado e, com isso, praticamente coloca os integrantes
da cooperativa como seus empregados”.
O Art. 7º foi o que gerou mais discussões e controvérsias nas cooperativas de trabalho, prejudicando
diretamente, dentre outras, as cooperativas organizadas pelas famílias para desenvolverem a produção,
industrialização e comercialização dos assentamentos de Reforma Agrária. Por isso, este estudo
aprofunda os direitos estabelecidos e as suas consequências para o conjunto das cooperativas, conforme
detalhamento a seguir:
O inciso I do referido artigo, determina que deva haver “retiradas não inferiores ao piso da categoria
profissional e, na ausência deste, não inferiores ao salário mínimo, calculadas de forma proporcional às
horas trabalhadas ou às atividades desenvolvidas”.
De acordo com Ivan Alemão, juiz do trabalho da 1ª Região e professor doutor da Universidade
Federal Fluminense, “essa Lei em algumas oportunidades quase que equipara cooperativa à empresa, e
cooperado à assalariado”, abordando o tratamento das “chamadas ‘retiradas’ quase que como salários”.
Agora, com a nova lei, a retirada ganha uma conotação de pagamento mensal. Aliás, esse tem sido um tema obscuro nas ‘retiradas’ ou
‘produtividade’, relacionada com uma unidade de tempo semelhante ao salário-hora. Tal prática, sem dúvida, é uma distorção da função
da cooperativa e a Lei 12.690, de certa forma, contribui para legalizar essa situação, mas sem uma regulamentação precisa (Alemão,
2012).
Os incisos: II, que trata da jornada de trabalho de 8 (oito horas) diárias e 44 (quarenta e quatro) horas
semanais; III, que se refere ao repouso semanal remunerado; IV, que aborda o repouso anual remunerado,
e V, das retiradas para o trabalho noturno superior ao do diurno, em geral, já eram comtemplados pela
maioria das cooperativas de produção agropecuária em seus estatutos, não havendo grandes dificuldades
na aplicação prática após a regulamentação.
Sobre o inciso VI que trata do adicional sobre a retirada para atividades insalubres ou perigosas,
Alemão (2012) destaca que “a norma não estabelece o percentual, o que deverá constar no estatuto. Ela
estabelece a base de cálculo sobre a retirada” do cooperado que executa tal tipo de trabalho.
O inciso VII prevê a contratação de seguro de acidente de trabalho privado para todos os cooperados,
tendo em vista que nas retiradas dos sócios junto às cooperativas são descontados valores específicos
para contribuição à Previdência Social, sendo garantida a seguridade do cooperado, pois para efeito
previdenciário, as cooperativas são iguais às empresas.
Expostos os pontos que têm gerado as principais discussões acerca da lei, fica nítido que o tratamento
dos direitos do cooperado está quase que equiparado aos do trabalhador avulso. Mas há uma diferença
clara e significativa, que prejudica muito os cooperados e as cooperativas: quem paga a conta.
No caso dos trabalhadores avulsos, são as empresas contratantes que arcam com os direitos do
trabalho de tais empregados, como pagamento de férias, décimo terceiro etc.; no caso das cooperativas,
quem arca com os benefícios são os próprios cooperados e a lei deixa claro que as cooperativas devem
buscar meios para garantir todos os direitos estabelecidos aos cooperados e uma das saídas é a criação
de fundos. Alemão (2012) enfatiza que “trata-se de uma medida de eficácia duvidosa, pois tal fundo
acaba diminuindo as próprias retiradas ordinárias”, destaca ainda que “o problema nesse caso é a
impossibilidade de se pagar a si próprio. Fica parecendo que, neste caso, se está criando direitos
meramente formais, pois quem paga é o próprio beneficiário”.
Para Alemão (2012) “ou os benefícios serão redundantes, meras nomenclaturas pagas no lugar da
retirada ordinária, que será praticamente o mesmo pago para cada um em função do que produzir, ou
existirá alguém que ‘pagará a conta’.” Não tem outro jeito, os cooperados vão ter que abrir mão de parte
das retiradas em função de fundos a serem criados pela cooperativa para garantir os benefícios
estabelecidos em lei.

Considerações finais
Nos assentamentos de Reforma Agrária, a cooperação é um importante instrumento para aumentar a
produtividade das lavouras, otimizar a força de trabalho empregada e melhorar a qualidade de vida dos
trabalhadores. Ela possibilita, aos assentados, acumular forças para participar de lutas sociais e
políticas, como moradia, infraestrutura de estrada, água, energia, educação etc. e, economicamente,
facilitar o acesso ao crédito, realizando investimentos em máquinas, equipamentos e o beneficiamento da
produção através da instalação de agroindústrias, gerando valor agregado.
As medidas apresentadas na Lei 12.690/12 prejudicam as cooperativas de produção, pois há que se
preocupar com a adaptação dos pequenos empreendimentos, garantindo viabilidade econômica para que
tais direitos sejam garantidos, uma vez que serão pagos pelas retiradas dos próprios cooperados. Essa
adequação não será imediata, podendo até não acontecer no prazo estipulado para carência e, em casos
específicos, poderá haver a quebra das cooperativas que se encontram num baixo nível de
desenvolvimento organizativo e produtivo, além da influência de condicionantes externas, como a
dinâmica do mercado capitalista.
Além disso, os direitos apresentados no artigo 7º da lei inibem a criação de novas cooperativas,
aumentando inevitavelmente o trabalho informal, pois exigem condições econômicas e financeiras que,
geralmente, os grupos coletivos em processo de constituição e formação não possuem. Isso precariza as
condições de trabalho dos camponeses que necessitam progredir na produção, tendo como horizonte a
construção de formas mais avançadas de cooperação.
É importante ressaltar que a lei não faz imposições às grandes cooperativas de trabalho, representadas
por profissionais liberais, pelas cooperativas de transportes e médicos, incorrendo num grave erro. As
organizações mais pobres que buscam formas de cooperação para minimizar os danos causados pela
exclusão na sociedade capitalista, que surgem da necessidade conjunta de fortalecer as ações e
experiências isoladas em determinados setores da sociedade, estão cada vez mais fragilizados e
concorrendo de forma desleal com grandes empresas.
Para minimizar os prejuízos causados pela criação da lei na organização dos assentamentos de
Reforma Agrária, tendo em vista que há dificuldades no acesso às políticas públicas, será necessário uma
efetiva implementação do Programa Nacional de Apoio ao Cooperativismo de Trabalho (Pronacoop),
elaborado e vinculado ao Projeto de Lei 12.690/12 para criar condições de estruturação e fortalecimento
das cooperativas de trabalho, subsidiando créditos, investindo em formação e facilitando o acesso aos
mercados institucionais, mas ainda é duvidosa sua eficácia.

Referências bibliográficas
ALEMÃO, Ivan. Comentários sobre a Lei das cooperativas de trabalho (Lei 12.690 de 19.7.2012) à luz do direito do trabalho. 2012.
Disponível em: <http://ivanalemaouff.blogspot.com.br>. Acesso em: 1º nov. 2013.
CALDART, Roseli Salete (org.). O Instituto de Educação Josué de Castro e a educação profissional. Cadernos Iterra. Veranópolis:
Iterra, 2007.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
_____. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural. 1996.
PIMENTEL, Andréa Eloísa Bueno. A organização da produção em cooperativas de Reforma Agrária. Anais Sober. São Carlos: 1999.
RECH, Daniel. Cooperativas: uma alternativa de organização popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
______. Documento contendo a análise das diversas regulações (leis, decretos e projetos de lei) relacionadas ao interesse das
entidades cooperativas no âmbito solidário, especialmente no que tange a aspectos de constituição, promoção, controle e
funcionamento. Brasília, 2012.
SINGER, Paul. Cooperativas de trabalho. Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/geral/publicacoes>. Acesso em: 1º nov. 2013.
TURRA, Fabianne Ratzke; SANTOS, Flávio Eduardo de Gouvêa; COLTURATO, Luiz Carlos. Associações e Cooperativas. Brasília:
Sescoop, 2002.

Este trabalho foi elaborado com o objetivo de analisar a Lei 12.690/12 que regulamenta as Cooperativas de Trabalho e suas
consequências para as organizações dos camponeses, em especial os assentados da Reforma Agrária. Contou com a orientação do
professor Manoel Pereira de Andrade, durante a Especialização em Residência Agrária: Matrizes Produtivas da Vida no Campo:
Formação em Cooperação, Agroecologia e Cultura com ênfase na organização social do Programa de Pós-Graduação em Meio
Ambiente e Desenvolvimento Rural da UnB Planaltina.

A força produtiva específica da jornada de trabalho combinada é força produtiva social do trabalho ou força produtiva do trabalho
social. Ela decorre da própria cooperação (Marx, 1996, p. 445).

ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL: O DILEMA DA FORMAÇÃO
DO EXTENSIONISTA1

Tauana Faleiro Barros e Maria Neuza da Silva Oliveira

Introdução
A extensão rural enquanto prática educativa para a transferência de informações técnicas na
agropecuária teve características diversas ao longo da história da humanidade, com papéis determinados
pelo modo de produção e desenvolvimento das forças produtivas de cada época. Sob a égide do
capitalismo, adquire novos contornos de modo a separar o trabalho manual do intelectual, dando base
para o surgimento de uma categoria intermediária, o profissional da extensão. Não ligado diretamente ao
processo produtivo, esse profissional assume o papel de transmissor das informações técnicas ao campo
e de instrumento para a superação do atraso da agricultura, doutrinado pelo modelo norte-americano
(Caporal, 1991).
Em seu livro Extensão ou Comunicação, Freire (1983) afirma que, primordialmente, o objetivo do
extensionista é fazer com que a comunidade substitua seus conhecimentos pelos que estão sendo impostos
de forma a negar ao homem sua construção como sujeito transformador da própria realidade. No
processo de extensão assistencialista, a domesticação está muito presente, fazendo com que o homem do
campo não se veja como o agente da mudança, negando-lhe o protagonismo da ação.
Com base nesses parâmetros, os objetivos da extensão alcançaram sucesso na disseminação da forma
de produção, colaborando na geração de externalidade negativas sociais e ambientais. Segundo Silva
(2010), a partir das décadas 1970 e 1980, foram direcionadas críticas às formas de extensão já que o
modo com que estava sendo executada não estava trazendo melhorias efetivas, fazendo-se necessária uma
nova formulação. A realidade dos agricultores deveria ser problematizada para que estes, no exercício
de interação com o conhecimento, se tornem críticos e alcancem a independência dos agentes externos
(Silveira; Balem, 2004).
A inoperância do modelo convencional de extensão rural, a pressão dos movimentos sociais e as
críticas de diversos setores, trouxeram mudanças estruturais nas ações governamentais sendo criada a
Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater) com enfoque no desenvolvimento
sustentável, nas metodologias participativas e na agricultura de base ecológica (Brasil, 2010). Grande
marco para extensão rural brasileira, a Pnater encontra diversos desafios em sua implementação, sendo
um deles a formação dos agentes de assistência técnica, devido à matriz curricular especialista de seus
profissionais.

Referencial teórico

Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater)


Os serviços de Ater, no Brasil, foram criados em 1948, através do convênio entre o Governo de Minas
Gerais e a Associação Internacional Americana (AIA) com a qual criou a Associação de Crédito e
Assistência rural (Acar). Sob a influência norte-americana, surge como instrumento para a superação do
atraso da agricultura sem considerar as especificidades locais. Entidade sem fins lucrativos, a AIA
desempenhou um papel importante no desenvolvimento da extensão rural. Inicialmente, seu objetivo
principal era atender e auxiliar os pequenos produtores que se utilizavam do crédito rural, destinado a
contribuir na produção agropecuária e proporcionar benefícios às comunidades rurais (Oliveira, 2012).
A assistência era tida como processo de interiorização das técnicas desenvolvidas pelo capitalismo
industrial, de maneira a fazer da agricultura um espaço propício para a acumulação capitalista do setor
dinâmico da economia. Centradas no “desenvolvimento de comunidades”, verdadeiramente não passava
de estratégias para a subordinação da agricultura ao modelo industrial.
Em 1972, foi criada a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que, junto com a
Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural (Abcar), assume o papel de solucionar os
problemas advindos do modelo tecnicista. A Embrapa produzia a tecnologia enquanto as agências de
assistência técnica a difundia entre os produtores que tinham condições econômicas para aderir os novos
pacotes, geralmente grandes latifundiários (Silva, 2010)
Posteriormente assumindo características mais claras, a partir de 1974, cria-se a Empresa Brasileira
de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater) que coordenou no país a ação do Estado para o meio
rural e colaborou com a expansão dos serviços prestados. Em 1974, com reformulações feitas na Abcar2
surgem, então, as Empresas Brasileiras de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), coordenadas
pela Embrater e vinculadas ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) (Silva,
2010).
A primeira fase da extensão rural, 1948 e 1960, denominada humano-assistencialista, teve o objetivo
de aumentar a produção e, consequentemente, o aumento do bem-estar das famílias rurais, com aumento
de renda e redução de mão de obra, porém não levava em conta a consciência crítica dos indivíduos.
Neste período, a extensão rural servia como instrumento de inserção do homem rural no mercado. Apesar
da “boa” intenção, estes métodos não levaram o desenvolvimento social ao campo, principalmente por
não usar métodos problematizadores junto aos sujeitos do campo (Lisita, 2005).
Nesse processo, estava um modelo de desenvolvimento urbano-industrial do país, o da revolução
verde, encaixada na segunda fase da extensão rural brasileira chamada de difusionismo produtivista,
período com abundante crédito subsidiado para a modernização da produção. Como o papel dos
extensionistas era relacionado ao crédito agrícola, nessa época, os agricultores que não tinham acesso a
crédito estavam à margem desse serviço (Lisita, 2005).
Essa postura de serviços, vinculada fortemente com a obtenção de crédito por meio de agências
financeiras, fez com que a extensão deixasse de lado sua função prioritária, a função social, prejudicando
principalmente os pequenos agricultores, de modo a evidenciar que a junção de assistência técnica e
crédito subsidiado não foi uma boa saída (Oliveira, 2012).
De acordo com esses parâmetros, a extensão rural atingiu os objetivos na disseminação de uma forma
produtiva, porém, colaborou na geração de externalidades negativas sociais e ambientais. Em oposição
ao difusionismo da extensão, Paulo Freire (1983) destaca-se como um dos primeiros críticos da extensão
convencional, propondo relação dialética entre o agricultor e o extensionista, troca de saberes e
adequação à realidade local. A partir de 1970 e 1980, muitos críticos baseados na ideologia de Freire
afirmavam que a maneira como a extensão vinha sendo construída não estava trazendo melhorias efetivas,
necessitando de uma nova formulação.
Em 1990, com a extinção da Embrater, a extensão rural foi sucateada e houve grande desmonte nos
serviços de Aters públicas estaduais. Anos depois, com a criação e consolidação do Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), os movimentos sociais passaram a exigir com mais
veemência um serviço de Ater público, gratuito e de qualidade. Em agosto de 1997, realizou-se o
seminário nacional sobre Ater, onde surgiu a proposta de consolidação de um modelo institucional de
Ater pública, descentralizada, pluralista, autônomo e gratuito. Como princípios, a proposta defendia
ainda o desenvolvimento sustentável, exclusivo para a agricultura familiar (Pettan, 2010).
Ao longo de seu histórico, percebeu-se que a extensão no formato convencional de transferência de
tecnologias apresenta limites e ineficiências. A inoperância deste modelo colaborou para que ocorressem
mudanças estruturais nas ações governamentais e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)
coordenou a elaboração da uma Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater). A
política está fundamentada em objetivos como a adoção de agricultura de base ecológica, intervenção
baseada em metodologias participativas, aumento da renda dos agricultores e aproximação do meio rural
com o conhecimento científico (Brasil, 2010).
Essa mudança exige que o extensionista seja um impulsionador do desenvolvimento das comunidades
rurais, estimulando os laços de solidariedade e utilizando métodos participativos que permitam a
capacidade de decisão dos grupos sobre sua própria realidade. Essa mudança, como toda quebra de
paradigma, traz um momento de desordem e redução de eficiência. Para seu sucesso, é necessário o
envolvimento de todos os seus membros, democratizando suas decisões e estimulando a
corresponsabilidade (Caporal, 2006).

Formação dos profissionais de Ciências Agrárias

Para Caporal (2007), o ideal da sustentabilidade exige o entendimento da agricultura como um
processo de construção social e não puramente a aplicação de tecnologias industriais geradoras de
dependência. Para que isso ocorra, é necessário um novo profissionalismo dos agentes de extensão rural
para além da difusão de pacotes tecnológicos intensivo em capital. Esse profissional deve, dentro dos
sistemas biológicos e sociais, integrar os diferentes saberes (científicos e populares) para o
desenvolvimento sustentável das comunidades.
Porém, com o perfil dos agentes e sua formação voltada para difusionismo inovador, torna-se
praticamente impossível a expansão de novos modelos de agricultura, como a agroecologia. Desde a
metade do século passado, grande parte do que era ensinado nas universidades e utilizado como fonte de
pesquisa era o modelo tecnicista da revolução verde, com seu aporte tecnológico e monocultivo
(Silveira; Balem, 2004).
A visão elitista da realidade agrária brasileira é refletida nos currículos das universidades com ênfase
no processo produtivo e as relações político-econômicas características do modelo de desenvolvimento
de interesse empresarial. Esse perfil tecnicista faz com que o profissional tenha uma visão restritiva,
voltada para aspectos produtivos e econômicos, não compreendendo a complexidade do campo e suas
novas ruralidades existentes (Miranda, 2013).
Para Lusa (2013), a implementação da Pnater aponta um novo perfil político de desenvolvimento de
Estado e de profissionais de Ater. Para que isso ocorra, é preciso que os pressupostos da nova Ater
estejam presentes desde a formação dos agentes de extensão, os quais têm como principal desafio a
superação da carência de ações multidisciplinares.
No texto original da Pnater, é evidente a preocupação com a formação dos extensionistas e com a
atualização desses profissionais para que atuem nas especificidades de cada comunidade de forma mais
eficaz. Conforme esclarecem diversos estudiosos, a Pnater requer um perfil de extensionista rural distinto
daquele que foi buscado durante o período da modernização da agricultura brasileira e que ocupava
grande parte dos postos de trabalho das organizações públicas governamentais de extensão rural
(Caporal, 2006).
A transição para um modelo sustentável encontra como fator limitante esse tipo de formação voltada
para o atendimento às demandas do mercado, dificultando a formação de um profissional que pense na
sociedade em todos os seus aspectos: sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais (Choa,
2012).
Segundo Silveira e Balem (2004),
(...) faz décadas que debate-se a mudança do perfil do extensionista rural, passando de um difusor de tecnologia para um agente
educativo, construtor de conhecimento num processo interativo com os agricultores. No entanto, os profissionais formados nas escolas
de ciências agrárias têm dificuldade de atender este novo perfil, pois este contraria os pressupostos de sua formação (Silveira e Balem,
2004, p. 4).
Essa mudança exige que o extensionista seja um impulsionador do desenvolvimento das comunidades
rurais, utilizando métodos participativos que permitam a capacidade de decisão dos grupos sobre sua
própria realidade. Para Costabeber e Moyano (2000),
A importância de profissionais devidamente capacitados para desencadear este processo é inquestionável, pois “(...) antes de um
processo autônomo, endógeno ou espontâneo, a transição agroecológica supõe, primeiramente, a adesão dos agricultores às propostas
de extensionistas rurais do serviço público ou de outras instituições vinculadas ao meio rural...” (Costabeber; Moyano, 2000 apud
Silveira; Balem, 2004, p. 6).
Diversos estudos voltados para a questão apontam a formação como um dos entraves para a
disseminação de um modelo sustentável. A dificuldade se torna maior quando se considera que, para que
haja uma verdadeira mudança, diversas instituições, como as de ensino, são instadas a mudar seu perfil.
A fragmentação do conhecimento em disciplinas é outro fator que contraria a promoção de uma
agricultura sustentável já que, para operar vínculos do todo entre as partes, é preciso uma visão
interdisciplinar. Além disso, a formação deve ser fundada na habilidade de enfrentar incertezas, pois elas
sempre serão os desafios dos profissionais do presente e do futuro. Portanto, para promover uma
agricultura sustentável, a formação dos profissionais das ciências agrárias deve ser diferente do currículo
da agricultura dita moderna (Froehlich, 2010).

Metodologia
Foi utilizado, como instrumento de pesquisa, questionário semiestruturado, aplicado a 21
extensionistas da Emater, de cinco escritórios distintos. A região de abrangência foi do Distrito Federal e
Entorno escolhidas aleatoriamente de acordo com a disponibilidade dos extensionistas na época da
pesquisa. A pesquisa foi feita ente os meses de maio e julho de 2014. O questionário foi composto por
questões estruturadas de forma simples e direta e semiestruturadas com opção de citar e desenvolver
melhor seu ponto de vista a respeito do tema abordado. O conteúdo das questões estava relacionado à
formação, capacitação, interesse pela prática agroecológica, desenvolvimento rural sustentável e as
políticas de extensão rural, agroecologia e produção orgânica. A revisão literária também fez parte dos
procedimentos metodológicos utilizados.

Resultado e discussão
A análise exploratória dos dados visou identificar a presença do tema da “agroecologia” no processo
de formação dos extensionistas, capacitação posterior à formação, grau de envolvimento com o tema e
visão sobre adequação da Emater à Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater),
à Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo) e sobre o Desenvolvimento Rural
Sustentável.
A respeito da formação, a maioria dos extensionistas (67 %) afirmou não ter cursado nenhuma
disciplina que tivesse alguma relação com a agroecologia, porém, teve algum curso de capacitação
(62%) que abordasse a temática, mostrando que, apesar da ineficiência do ensino nesse quesito, há certo
esforço para algum tipo de formação a posteriori. Esse resultado é um indicador de que os sistemas de
ensino formal ainda trabalham na lógica da disciplinaridade (Oliveira, 2012).
Mostrando grande interesse sobre a agroecologia, metade dos entrevistados diz conhecer a existência
da Pnapo e 10% afirmou ter um conhecimento parcial. A respeito da Pnater (95,3%), a maioria dos
entrevistados, diz ter conhecimento e acredita que a Emater está se adequando às novas políticas. Em
contrapartida, não nega as dificuldades enfrentadas para efetivação de ambas as políticas, como:
questões culturais dos agricultores acostumados ao sistema convencional de plantio; falta de apoio
governamental; formação acadêmica dos técnicos; falta de comprovação dos resultados agroecológicos;
despreparo dos técnicos; falta de subsídios para pesquisa; falta de nivelamento dos órgãos
governamentais; conhecimento superficial sobre políticas; quantidade restrita de profissionais em
determinadas regiões; falta de apoio e interesse por parte do Estado; falta de reconhecimento político da
importância da extensão rural para agricultura familiar. As respostas dos entrevistados vão na direção
das reflexões de Silva Neto (2011) que afirma serem necessárias mudanças profundas na área das
ciências agrárias, em especial, no que se refere ao modelo hegemônico atual.
Sobre o questionamento do que deveria ser mudado na Extensão Rural para que ocorra o
desenvolvimento rural sustentável, as respostas mais frequentes foram: a valorização do profissional de
extensão e pagamento de salários justos (Estado de Goiás); contratação de novos profissionais; cursos
continuados de agroecologia para técnicos e produtores; conscientização desde a infância com os filhos
dos agricultores; acesso à educação; recursos financeiros para a transição agroecológica; mudança no
acompanhamento dos resultados, não sendo o financeiro o principal fator avaliador; campanhas maciças
de difusão da ecologia agrícola; foco governamental; acompanhamento da Ater pública constante;
formação adequada e conscientização dos produtores; criação de macroprojetos de incentivo à produção
agroecológica (subsídios); formação dos agentes de Ater em relação à Pnater; pesquisa com enfoque
sustentável; reestruturação da Ater em regiões onde está sucateada; superação da pobreza e desigualdade
social. Conforme se observa, a transição para um modelo de agricultura sustentável requer mudanças
importantes na formação do profissional de Ater, mas, também, em outras esferas do contexto agrícola,
para que as diversas dimensões: sociais, econômicas, políticas, culturais e ambientais possam ser
contempladas (Choa, 2012).

Considerações finais
Para reorientar a educação rumo ao desenvolvimento sustentável é necessário adotar modelos
complexos e interdisciplinares de educação, trazendo reflexões sobre as relações entre o todo e suas
partes. O modelo educacional baseado em disciplinas, em sua maioria, fragmenta o conhecimento e
impede o indivíduo de contextualizar e estabelecer conexões entre as partes e o todo. Assim, para que o
conceito de agroecologia e sustentabilidade ocorram, de fato, na prática, o especialista precisa
ultrapassar sua área de conhecimento, a fim de criar espaço para a construção de novos saberes.
Nesse sentido, a relação entre ensino-pesquisa-extensão tem o papel de aproximar os universitários da
realidade agrária para além da prestação de serviços. O formando, desde o princípio de sua experiência
formadora, deve se assumir como sujeito também da produção do saber e se convencer de que ensinar
não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção.
Para construir uma assistência técnica e extensão rural voltada para agroecologia e para o
desenvolvimento rural sustentável, são necessárias mudanças profundas na área das ciências agrárias,
pois o modelo hegemônico da agronomia impede que seus profissionais tratem os problemas da
agricultura sob o ponto de vista da sustentabilidade. Para que isso ocorra, necessita-se de extensionistas
com uma formação que proporcione o conhecimento dos princípios ecológicos, permitindo a
compreensão dos agroecossistemas em que os agricultores estão inseridos, o estudo das propriedades de
forma sistêmica e uma ação com dimensão educativa.
Faz-se necessário o comprometimento das instituições de ensino que perpasse toda a formação do
profissional de Ater com temas relacionados ao desenvolvimento rural sustentável. Aproximar o aluno
dos sistemas de produção e vivência do meio rural brasileiro e propiciar espaços através da pesquisa e
extensão são formas para que, no espaço extrauniversitário de ensino, ele possa ter uma visão mais
reflexiva e complexa da realidade, além da fragmentação disciplinar.
Um exemplo diferenciado de formação profissional são os cursos de Residência Agrária. Com uma
proposta pedagógica diferenciada, baseada na pedagogia da alternância, alinha teoria e prática,
concebendo estudante residente como um profissional mediador entre os territórios e a universidade. No
caso específico do curso na Universidade de Brasília, o curso perpassa três eixos de formação,
“Formação política, pesquisa e cooperação”, com habilitação em Agroecologia ou Cultura, Arte e
Comunicação. A formação diferenciada e a atuação nos territórios proporcionam um melhor diagnóstico
da realidade, auxiliando na identificação dos limites e potencialidades e inovação nas metodologias. Tais
experiências auxiliam na superação do hiato que existe entre o agricultor e o extensionista,
proporcionando uma relação mais dialógica.

Referências bibliográficas
BALEM, T. A. Da extensão rural difusionista à construtivista agroecológica: condicionantes para a transição. XIV Congresso
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Artigo produzido como parte da pesquisa monográfica realizada por Tauana Faleiro Barros durante o Curso de Especialização
Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, da Universidade de Brasília, sob a orientação do professor Flávio Murilo
Pereira da Costa.

Criada em 1959, a Abcar era o órgão central que coordenava as ACARs brasileiras.

ESCOLA ITINERANTE DE FORMAÇÃO ZÉ PORFÍRIO: CONTRIBUIÇÕES
PARA A FORMAÇÃO DO CAMPESINATO1

Wesley Júnio de Andrade, Tatiana M.de Castro Agostinho e Marco Antônio Baratto


Introduzindo o debate
De acordo com Sá e Molina, “a luta dos trabalhadores do campo por terra e educação é parte do
processo mais amplo de resistência às consequências degradantes da crise estrutural do sistema do
capital” (2014, p. 92).
A Escola Itinerante de Formação (EIF) Zé Porfirio2 nasce da proposta pedagógica do Curso de
especialização Residência Agrária da Universidade de Brasília, em parceria com a Escola Nacional
Florestan Fernandes (ENFF). Este espaço de formação decorre da necessidade de acumular processos
contínuos de formação política, para além dos espaços formais de educação, tendo os territórios sociais,
políticos e culturais e os sujeitos históricos que o compõem como protagonistas dos processos de
formação e de leitura de mundo. Compreende-se que é necessário chamar a atenção para esse debate,
pautando processos de educação e de formação que atendam às demandas da classe trabalhadora do
campo.
Acreditamos ser necessário pautar o debate da formação política das pessoas, resgatando a
perspectiva histórica e tendo como centralidade os sujeitos de direitos, “lutadores e construtores – onde
a ciência e a técnica entram como elemento importante desta luta e construção” (Pistrak, 2009, p. 28).
Desta forma, é necessário entender o quanto somos sujeitos vulneráveis a um sistema educacional de
reprodução do conhecimento. Para isso, é importante compreender como se sustenta o modo de produção
hegemônico, expondo os sujeitos à fábula do desenvolvimento capitalista:
O modo de produção capitalista exige permanentemente a renovação das técnicas para operar o seu conceito motor schumpeteriano de
destruição criativa: ou seja, produtos novos a serem promovidos como objetos de desejo, sucateando cada vez mais rapidamente
produtos anteriores e mantendo a lógica de acumulação em curso (Dupas, 2006, p. 76).
Na perspectiva do debate agrário, sobretudo em tempos de hegemonia do agronegócio, observa-se uma
erosão social na população em termos culturais, ambientais, políticos, dos modos de produção, de saúde,
convívio social etc. operando uma forma de alienação e homogeneização ao padrão capitalista de
consumo excessivo, de individualismo, além de causar danos à saúde através do consumo de alimentos
produzidos com o uso abusivo de agrotóxicos.
Dupas (2006) afirma, ainda, que “a forma privada da exploração do capital, junto de um sistema de
repartição das gratificações sociais compensatórias, assegurava certa lealdade das massas. Foi assim que
o progresso quase autônomo da ciência e da técnica transformou-se em variável independente”. Desta
maneira, a formação tem um papel importante nos sujeitos e, portanto, é fundamental pensarmos as
“matrizes formadoras fundamentais do ser humano nessa concepção que defendemos: trabalho, luta
social, organização coletiva, cultura e história” (Plano de Estudo, 2013, p. 14), na formação das pessoas
como sujeitos humanos que se relacionam em todo processo de desenvolvimento histórico e contraditório
do meio onde vive.

Percebendo que os camponeses3 estão inseridos em seu meio com suas particularidades políticas,
sociais e culturais e, entendendo que são sujeitos de construção de processos educativos, torna-se
importante enfatizar o conhecimento popular camponês como elemento central da ação educativo-
formativa em tempos da modernidade, sem perder de vista a disputa pelas tecnologias e pela ciência.
Para isso, devemos fortalecer os conhecimentos e tradições dos camponeses, não sobrepondo uma
segunda consciência de sua realidade. Assim, compreender a forma de vida e de trabalho do camponês,
suas relações com a agricultura e com o trabalho atrelado à disputa das tecnologias sociais e da ciência,
tornam-se necessários para a batalha das ideias em direção a outra forma de produzir cultura, seja no
campo da produção agrícola, da política, do ambiente, das relações.
Assim, pensar a agroecologia como instrumento formativo para “construir novas práticas sociais, no
seu meio e a partir do meio, construindo um novo sujeito histórico – lutador e construtor – onde a ciência
e a técnica entram como elementos importantes dessa luta de construção” (Pistrak, 2009, p. 28), torna-se
cada vez mais necessário, pois “a revolução e a escola devem agir paralelamente, porque a escola é a
arma ideológica da revolução” (Pistrak, 2005, p. 30).
Acreditando em um processo de revolução dos saberes populares, técnicas e tecnologias que atendam
às demandas do homem e da natureza, a agroecologia emerge com princípio formativo no método de
trabalho da EIF Zé Porfírio, buscando, a partir da elevação do nível de consciência, a ruptura tática das
estruturas capitalistas – que, além de não respeitar as relações humanas e a natureza, utiliza a tecnologia
para controlar todas as formas de viver em sociedade:
esse desafio consiste em adotar sistemas de produção que assegurem geração de renda para o trabalhador rural e que este disponha de
condições dignas de trabalho, com remuneração compatível com sua importância no processo de produção. Considerando o número de
famintos no planeta, e particularmente no Brasil, é necessário que a produção agrícola contribua para a segurança alimentar e
nutricional. Considerando, ainda, que o contexto social não seja uma externalidade de curto prazo do processo produtivo e, portanto, do
desenvolvimento, é necessário construir novos padrões de organização social da produção agrícola por meio da implantação de Reforma
Agrária compatível com as necessidades locais e da gestação de novas formas de estruturas produtivas (Altieri, 2009, p. 10).
Portanto, cremos que cada comunidade deve fazer seu próprio desenho de forma coletiva, desenvolver
métodos juntos aos(as) educadores(as), pesquisadores, movimentos sociais, criando estratégias de
desenvolvimento rurais sustentáveis através da matriz produtiva agroecológica; fortalecendo a estratégia
de desenvolvimento da educação do campo; potencializando o desenvolvimento e a capacidade coletiva
de formação entre os sujeitos envolvidos; observando os limites e potencialidades; analisando a situação
atual nas comunidades/territórios, seus objetivos e as relações com a sociedade.
Utilizando-se de instrumentos e/ou parâmetros para desenvolver atividades em cada comunidade, a
EIF Zé Porfírio propôs à comunidade na qual se insere, a seguinte reflexão: onde queremos chegar, para
onde queremos ir, o que queremos para a nosso desenvolvimento (cultural, produtivo, econômico e
social)? Pois é relevante ressaltar que “o modo de construção do conhecimento que tem prevalecido nas
ciências agrárias do Brasil pode ser considerado como um dos fatores que contribuíram para a
consolidação do atual modelo de desenvolvimento dominante no campo” (Sá; Molina, 2014, p. 91).
Os processos de formação na sociedade capitalista “servem para que uma pessoa se acomode ao seu
mundo ou se envolva em sua transformação” (Peloso, 2012, p. 33). Desse modo, com o objetivo de
reverter esta lógica, “um processo dialético de tradução, reconhecimento e criação do conhecimento que
capacita educadores/educandos a ler criticamente a realidade, com intenção de transformá-la” (Peloso,
2012, p. 34), deverá ser o viés para outra leitura de mundo.
A EIF Zé Porfírio, ao pensar como contribuir com a formação4 dos camponeses, utiliza-se da educação
popular como ferramenta para a produção dos conhecimentos, entendendo que este processo educativo
parte da concepção da formação para classe oprimida, considerando que:
(...) a educação popular é uma ferramenta político-pedagógica cujos objetivos permanentes são: a) traduzir, divulgar e recriar o
conhecimento como força material para transformar a realidade; b) construir, divulgar e acompanhar a implantação da estratégia da
organização popular com resposta aos desafios do cotidiano e da história; c) qualificar quadros de militantes que se dispõem a
transformar, pela raiz, a estrutura do sistema capitalista, no nível político, econômico, ideológico e cultural; d) elevar o nível de
consciência da classe oprimida a incorporar o povo como protagonista; e) facilitar o entendimento e aplicação do conteúdo e da
metodologia popular, compreendendo as pessoas como a multiplicação criativa (Peloso, 2012, p. 34).
As propostas das escolas itinerantes de formação realizam uma interface intensa com a vida
circundante (comunidades), entendendo-a como repleta de possibilidades formativas, mas não só
formativas. “As contribuições para a formação do campesinato, fazem com que os sujeitos participem de
todo o processo de colaboração, pois existe o trabalho socialmente útil, e uma ‘cumplicidade entre a
educação e a vida’ e é a base da nova forma (trabalho) das escolas itinerantes, inseridas em um processo
de luta pela transformação social” (Plano de Estudo, 2013, p. 23).
Ao se materializar na formação, a agroecologia se torna um dos vastos caminhos de possibilidades de
se criar e recriar, que é dinâmico, pois são vários os temas norteadores que possibilitam a formação dos
camponeses tanto na teoria, quanto na prática, na pesquisa e na extensão, pois
(...) é irrenunciável o compromisso de construir um projeto de sociedade no qual a produção social da riqueza tenha também a
apropriação social... é preciso elaborar, com arte e ciência, uma estratégia de poder e construir ferramentas populares que reúnam,
organizem e eduquem a classe oprimida no seu processo de emancipação (Peloso, 2012, p. 34).
Aqui, estamos nos referindo à formação como processo histórico, que se materializa em suas
contradições e complexidades. Desta maneira,
as escolas itinerantes têm o forte compromisso de não excluir e nem formar submissos. Alterar a precariedade exige lutadores e as
possibilidades forjadas exigem construtores. Lutadores e construtores do futuro que assumam a tarefa de tornar realidade novas formas
de organização social, mais justas e democráticas. Isto é mais, portanto, do que uma simples ‘ligação’ entre teoria e prática (Plano de
Estudo, 2013, p. 23).
Os camponeses tendem a incorporar novas tecnologias disponíveis, devem se apropriar de ferramentas
que garantam a vivência de novas relações entre o saber popular e cientifico, utilizando-se do trabalho
socialmente útil.
É necessário um profundo conhecimento sobre o meio, tanto em seus aspectos físicos e biológicos quanto em seus aspectos humanos. É
necessária uma nova (agri)cultura que concilie processos biológicos (base do crescimento de plantas e animais) e processos
geoquímicos e físicos (base do funcionamento de solos que sustentam a produção agrícola) com os processos produtivos, os quais
envolvem componentes sociais, políticos, econômicos e culturais (Altieri, 2004, p. 11).
Neste sentido, a agroecologia passa de um sistema de produção agrário ecológico para a reconstrução
de uma consciência humanizada, politizada, de interesses comuns ao campesinato e que respeita os
saberes populares, a dinâmica nas relações de trabalho e a força de trabalho, a soberania alimentar com a
produção livre de agrotóxicos e transgênicos, que é imposta pelo agronegócio “servindo para
impulsionar um modelo produtivo, que expande a produção de commodities em detrimento da produção
de alimentos” (Alentejano, 2014, p. 46).

Escola Itinerante de Formação: proposta de um projeto popular para a formação nas
comunidades/territórios
Amadurecendo, criando corpo e identidade em cada território, as EIFs, articuladas junto aos
camponeses, educadores, movimentos sociais, pesquisadores e educandos buscaram referências nos
pilares da educação popular, formação política, agroecologia, conhecimento científico e saberes
populares, uma construção inacabável, mutável que poderá acontecer em qualquer lugar e espaço, em que
todos e todas poderão constituí-la no processo de suas atividades.
Emerge devido à demanda do Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da
vida no campo5, da UnB/FUP, em parceria com ENFF e o MST, dentre outros movimentos sociais.
Dentre os desafios propostos pela CPP – coordenação político-pedagógica do curso – estão a
responsabilidade pelos processos que determinam metodologicamente os tempos pedagógicos, definindo
claramente atividades táticas nos territórios; alcançando em médio e longos prazos objetivos estratégicos
do ponto de vista do acúmulo político e domínio popular dos meios de produção necessários; alternando
momentos de ensino-aprendizagem inter-relacionados entre os tempos escola e comunidade” (ELF, 2014,
p. 10) ou, como sugere Sá, Molina (2014), ao dizerem que:
além de ser uma importante inovação nos métodos de formação acadêmica, desafia os docentes a buscar na proposta um caminho
alternativo às dificuldades identificadas em sua práxis na Universidade. A alternância traz, em sua essência, um caráter dinâmico à
prática docente, estabelecendo um movimento dialético entre os tempos educativos que acontecem entre a Universidade e as
comunidades rurais (Sá; Molina, 2014, p. 108).
Desta maneira, os educadores e educandos comprometeram-se a participar na construção de um
projeto popular de formação política, cultural e agroecológica que desenvolva as
comunidades/territórios buscando contribuir no desenvolvimento rural sustentável. Duas questões
emergem no debate e merecem ser respondidas: Como surgiu a Escola Itinerante de Formação? O que é
Escola Itinerante de Formação?
As Escolas Itinerantes de Formação, ainda sem uma identidade formada ou com pouco entendimento de
em que poderia se transformar, inicialmente, foram idealizadas com o nome de Escolas Livres de
Formação (ELF), o que por um tempo (entre as etapas de Tempo Universidade–TU e de Tempo
Comunidade–TC), assim se consolidou ainda de forma embrionária.
Ao retorno de uma das etapas de Tempo Comunidade, em um dos momentos de discussão em torno de
sua concretização política e de sua identidade, houve várias reflexões sobre qual característica deveria
ter este instrumento de formação, observando os núcleos territoriais (territórios de influência da escola)
(ver mapa 1). Sua aceitação foi de que seria um espaço de formação independente das instituições
públicas e privadas, sendo elas não institucionais e ligadas aos movimentos sociais do campo,
contribuindo nos processos formativos para a classe trabalhadora do campo e da cidade.
Considerando as peculiaridades de cada núcleo territorial e o intercâmbio dos colaboradores nos
territórios, o coletivo optou por Escola Itinerante de Formação, onde cada núcleo territorial desenvolva
seus processos de formação política de maneira itinerante, a partir das demandas reais e concretas dos
territórios, socializando conhecimentos e trocando experiências através da junção dos conhecimentos
científicos e tradicionais, com a colaboração de todas(os) os/as educandos(as), professores(as),
pesquisadores(as) e camponeses(as), fortalecendo o quadro de formação na comunidade/território.

Mapa 1. Territórios das EIF. Fonte: blog Curso Residência Agrária da UnB.

Desse modo, a EIF pode ser considerada “como um organismo vivo e orgânico que estimule atividades
formativas nos territórios” (ELF, 2014, p. 20), pois busca alcançar as comunidades e seduzi-las para a
participação popular em ações que contribuam para a formação e desenvolvimento socioeconômico,
cultural, ambiental e político das comunidades e territórios com ações que visam fortalecer o modelo de
produção agroecológica:
os princípios básicos da agroecologia incluem: a reciclagem de nutrientes e energia; a substituição de insumos externos; a melhoria de
matéria orgânica e da atividade biológica do solo; a diversidade de espécies de plantas e dos recursos genéticos dos agroecossistemas
no tempo e no espaço; a interação de cultura e pecuária; e a otimização das interações e da produtividade do sistema agrícola como um
todo, ao invés de rendimentos isolados obtidos com uma única espécie (Altieri, 2012, p. 16).
Assim, visando desenvolver atividades potenciais para o desenvolvimento rural sustentável, a Escola
Itinerante de Formação, buscará, através da agroecologia:
(...)fornecer uma estrutura metodológica de trabalho para a compreensão mais profunda tanto da natureza dos agroecossistemas como
dos princípios segundo os quais eles funcionam. Trata-se de uma nova abordagem que integra os princípios agronômicos, ecológicos e
socioeconômicos à compreensão e avaliação do efeito das tecnologias sobre os sistemas agrícolas e a sociedade como um todo. Ela
utiliza os agroecossistemas como unidade de estudo, ultrapassando a visão unidimensional – genética, agronômica, edafológica –
incluindo dimensões ecológicas, sociais e culturais (Altieri, 2004, p.23 ).
Portanto, a escola itinerante de formação propõe como instrumento de transformação e de projeto
social para o campo, cumprindo outras funções organizativas, para além da formação e promoção da
produção em bases agroecológica:
• articular e potencializar o trabalho de base junto universidades e comunidades;
• contribuir nas matrizes curriculares das escolas do campo;
• retomar o debate da questão agrária;
• fortalecer as estruturas organizadas e lideranças, formando quadros;
• fortalecer as relações dos movimentos sociais e as comunidades;
• resgatar e manter viva a memória e história das comunidades;
• criar espaço de experimentação prática através do conhecimento científico e a sabedoria tradicional;
• desenvolver tecnologias agroecológicas (alternativas) através das práticas tradicionais, habitando
com técnicas científicas;
• inserir os educandos no campo prático da pesquisa em uma leitura crítica da realidade endógena;
• potencializar e sistematizar a coleta de dados dos territórios.
As discussões realizadas pela Escola Itinerante de Formação propõem conduzir o sujeito do campo a
resistir ou mesmo superar as contradições que o agronegócio impõe aos assentamentos da Reforma
Agrária, sendo que,
o modelo do agronegócio, ao contrário da etapa do capitalismo industrial, não distribuiu renda e nem gera emprego para juventude. O
capital aplica um modelo de produção agrícola, sem agricultores e com pouca mão de obra. Isso traz, como contradição, a falta de
futuro da juventude, o aumento da migração e o despovoamento do interior (Caldart; Aletejano, 2014, p. 188).
Contudo, a Escola Itinerante de Formação busca contribuir no debate da formação em torno da
Reforma Agrária, construindo coletivamente pesquisas, a partir dos processos de interações práticas e de
planejamentos estratégicos, tendo como impulsionadoras as atividades do Curso de especialização
Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo.
Mas, além do curso, visa contribuir para que os processos de formação provocados pelas EIFs
consigam concretizar novas experiências e vincular novos sujeitos às ações práticas nos territórios, tendo
em vista a elevação do nível de consciência da classe trabalhadora e garantias de novos acúmulos que
visem transformar a realidade dos territórios agrários/ambientais em diversos setores estratégicos para o
bem viver.

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CALDART. Roseli Salete; ALENTEJANO Paulo (org.). MST, universidade e pesquisa. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2014.
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MOLINA, M. C.; SANTOS, C. A.; MICHELOTTI, F.; SOUZA, R. da P. (org.). Práticas contra-hegemônicas na formação dos
profissionais das Ciências Agrárias: reflexão sobre agroecologia e educação do campo nos cursos do Pronera. Brasília: MDA,
2014. (série Nead Debate, 22).

Artigo extraído do Trabalho de Conclusão Curso: Estudo de caso das ações desenvolvidas pela EIF – Zé Porfirio no município de Flores
de Goiás/GO, orientado pelo professor Marco Antônio Baratto, durante o Curso de Especialização Residência Agrária: matrizes
produtiva da vida no campo, da UnB.

EIF é um instrumento organizativo criado pelo Residência Agrária, da UnB, com o intuito de potencializar as ações de formação dos
núcleos territórios (NTs). Mais informações podem ser obtidas no blog <www.matrizesprodutivasdavidanocampo.wordpress.com>.

Utilizaremos, aqui, o conceito de campesinato entendido por Caldart (2012) como o “conjunto de famílias camponesas existentes em um
território. As famílias camponesas existem em territórios, isto é, no contexto de relações sociais que se expressam em regras de uso
(instituições) das disponibilidades naturais (biomas e ecossistemas) e culturais (capacidades difusas internalizadas nas pessoas e
aparatos infraestruturais tangíveis e intangíveis) de um dado espaço geográfico politicamente delimitado”.

O coletivo da EIF – Zé Porfírio compreende a formação dos camponeses como, “formação política e identitário de um outro projeto de
campo. Primeiro, porque vai além de uma ação corretiva de históricas desigualdades e passa a ser defendida como proposta dos povos
do campo em processos de afirmação social, política, cultural e pedagógica (Caldart, 2012, p. 362).

O programa de Residência Agrária foi forjado na sociedade civil a partir da aliança entre as lutas dos movimentos sociais do campo e
do movimento estudantil da Agronomia. As experiências formativas que ele engendrou representa a manifestação concreta do potencial
contra-hegemônico do projeto dos trabalhadores do campo no Estado e nas universidades (Sá; Molina, 2014). Práticas contra-
hegemônicas na formação dos profissionais das Ciências Agrárias, Brasília: Nead, 2014.

OS SEM TERRA E A ESCOLA DE TERRA

Rosmeri Witcel

Introdução

Este trabalho tem como objetivo analisar a necessidade da formação política nas organizações
populares, tendo como foco a proposta de formação do MST. Um movimento que, desde seu nascimento e
de forma permanente, vem realizando a tarefa da formação em sua base social, na projeção de novos
militantes, dirigentes e quadros. Contribui, decisivamente, para esse processo, a construção da Escola
Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Uma escola feita com a argamassa da solidariedade e com a
esperança de fincar na terra uma utopia concreta: a autoformação dos trabalhadores como caminho da
luta emancipatória. Este é o projeto dos Sem Terra para atender ao propósito da formação política.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi criado em 1984, quando ocorreu, em
Cascavel/PR, um primeiro encontro de trabalhadores, homens e mulheres de vários lugares do Brasil que
decidiram participar da luta pela terra, tendo, como objetivo central, a construção da unidade em torno de
um propósito comum: a luta pela Reforma Agrária.
Um movimento que se legitimou devido às lutas que questionavam a grande concentração de terras no
Brasil, uma característica herdada desde o Brasil colônia, e que motivou uma série de protestos
populares, motins e sedições ao longo do Império, com destaque ao início do Brasil Republicano,
período em que floresceram movimentos de luta pela terra.
O MST surge, portanto, reivindicando o legado desde Canudos, Contestado e, no século XX, as
palavras e os gestos carregados de significado contra as injustiças e iniquidades do latifúndio, como é o
caso das Ligas Camponesas no Nordeste do Brasil. Nasce no contexto histórico da luta social contra a
ditadura civil-militar, instalada em 1964, na retomada da luta pela terra no Brasil, e do protesto popular
por maior participação política, ilustrada na afirmação do poeta Pedro Tierra, “se calarmos as pedras
gritarão!”.
Naquela década de 1980, se congregavam trabalhadores pobres e suas famílias, despossuídos da terra,
na luta por justiça social e pelo direito de acesso à terra, fazendo a denúncia da concentração de terras
nas mãos de poucos, enquanto milhares permaneciam em condições indignas de submissão nos grandes
latifúndios, sem condições mínimas de existência, subjugados e expostos às mais diversas situações de
violência e sem quaisquer direitos atinentes ao mundo do trabalho. Eram camponeses e camponesas que,
sabendo ou não, faziam parte da classe trabalhadora do Brasil. Uma camada de camponeses Sem Terra
com sua consciência reivindicatória1, seres humanos, parte da natureza e em permanente transformação,
trabalhadores buscando os meios para produzir e reproduzir sua vida e sua existência.
Estes homens e mulheres, organizados e em movimento, reivindicam o direito à terra, meio de sua
transformação em natureza transformada; buscam conquistar seus próprios meios de produção para
exercer suas capacidades de estabelecer a relação entre a produção de ideias e a produção da vida
material. Neste sentido, podemos até pensar a natureza sem o homem, mas não podemos pensar o homem
sem a natureza. Esta relação entre homem e natureza, em transformação, permite o desenvolvimento das
forças produtivas, e o desenvolvimento humano, com atributos e capacidades. Portanto, esta negação, aos
seres humanos, da possibilidade de transformar a natureza e se transformar, torna-se uma agressão à
existência humana em suas capacidades de produção e criação.
Convém ainda, neste artigo, definir melhor o conceito de ideologia que pretendemos manejar durante
esse trabalho. O conceito de ideologia, no sentido que pretendemos abordar, se articula ao da política, ou
seja, do exercício do poder, mas sobretudo, refere-se ao conjunto das ideias que tornam possível esse
poder que, numa sociedade dividida em classes como a nossa, poderia se falar das ideias que tornam
possível o domínio de classe.
Karl Marx, autor que, em primeira mão, deveríamos visitar para a compreensão de ideologia é que
escreveu, em colaboração com Engels, a Ideologia Alemã, entre outras obras. Já de início, Marx vai
tratar nessa obra, de um de seus pressupostos fundamentais em se tratando do conceito de ideologia: “Os
seres humanos elaboraram até agora falsas representações a respeito deles mesmos, do que são ou
deveriam ser”.
Na perspectiva dos autores da Ideologia Alemã, ideologia era nada mais que uma falsa consciência do
mundo, ou uma consciência invertida deste mundo. Assim, era preciso dar-lhe historicidade, ou seja,
cotejar as ideias desde o real, desde o movimento histórico da sociedade. Nas palavras dos próprios
autores, encontramos um arcabouço teórico para pensar os problemas da dominação de classes:
As ideias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante
da sociedade é, ao mesmo tempo sua força espiritual dominante. A classe que se tem à sua disposição os meios de produção material
também dispõe, ao mesmo tempo, dos meios da produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em
média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual (Marx; Engels, 1986, p. 72).

A formação orgânica

O processo de formação no MST


Aliado à luta reivindicatória, de denúncia e construindo uma pauta por melhores condições de vida e
trabalho, o MST sustentou ao longo de sua trajetória a preocupação permanente com a formação política
e ideológica em seus diferentes níveis de formação da consciência. Esta sempre esteve voltada à
superação das deficiências orgânicas, avançando para a formação e multiplicação de militantes
engajados na luta pela terra, por Reforma Agrária e por justiça social.
Em cada conjuntura, dadas as suas especificidades, ampliam-se as exigências da luta, assim como se
dimensiona concretamente a necessidade de elevar o nível de consciência do conjunto da organização.
Emana, assim, do ponto de vista teórico e da ação prática, o propósito de formação militante no sentido,
também, de responder aos desafios percebidos nos enfrentamentos que se apresentam desde a realidade.
Ou seja, em última instância, a política de formação do MST é parte de um conjunto de ações políticas,
organizativas e de lutas que abrangem diferentes metodologias e conteúdos, estritamente vinculados à luta
concreta.
Na gênese do MST, a construção dos elementos práticos e teóricos se volta, por um lado, à
recuperação do legado da história das lutas sociais e suas formas organizativas e, por outro lado, ao
permanente diálogo com as matrizes de pensamento que, no Brasil, forjavam mecanismos de
interpretação da realidade brasileira, sob um ponto de vista crítico e transformador da sociedade. Desde
aí, uma elaboração se ressalta: sua construção como movimento autônomo, uma organização
independente, política e ideologicamente. Autonomia entendida como capacidade de pensar, tomar
decisões e andar por conta própria, relacionada a uma construção orgânica que responda às exigências da
problemática da terra no Brasil, às alterações profundas que se dão desde as décadas de 1980-1990 em
relação ao avanço das políticas do receituário neoliberal. Autonomia, também, no sentido de construção,
em coletivo, de um plano de lutas que una os trabalhadores Sem Terra, homens e mulheres, infância e
juventude na luta pela terra e condições de trabalho. Sem, contudo, se deixar capturar pelo isolamento em
relação ao conjunto das relações sociais, políticas e culturais que se estabelecem com outras forças e
segmentos sociais no mundo do trabalho.
Tal definição estratégica se apoia, ainda, no compromisso de construção da unidade na luta com outras
organizações de trabalhadores, e articulando os embates no campo e na cidade num mesmo caminho, em
busca de unir as forças sociais em luta. Como observa um militante do Movimento, em face das questões
aqui abordadas: “Foi assim que o MST, ainda jovem, percebeu que ‘autonomia’ somente rimaria com
‘utopia’ se entre elas estivesse a palavra ‘ideologia’” (Bogo, 2011, p. 12).
No campo da formação, as experiências já existentes contribuíram e imprimiram uma marca,
sobretudo, no que diz respeito ao método a ser utilizado na ação formativa. Quando a metodologia de
trabalho era a das pastorais sociais, desde a elaboração da Teologia da Libertação, estes eram os
principais conteúdos dos cursos de formação política dos trabalhadores do MST. Nesse período, a
formação ainda era compreendida, basicamente, como formação de lideranças. Tratava-se de preparar
lideranças de comunidades, capazes de articular e realizar reuniões com os trabalhadores Sem Terra nas
bases, no intuito de organizar o Movimento para a ocupação do latifúndio improdutivo.
Tais momentos de formação consistiam, fundamentalmente, em realizar encontros de lideranças para o
debate e reflexão em torno de temas que ajudassem na articulação do trabalho de base, da ação
organizativa dos núcleos do Movimento em cada Estado, em distintas regiões do Brasil. Ao mesmo
tempo, se tratava de criar as possibilidades de emergir formas de autoesclarecimento dos trabalhadores e
suas famílias em torno da necessidade histórica de luta pela terra e por Reforma Agrária. Daí, a
estruturação de grupos que se reuniam, periodicamente, em distintos lugares do país para estudar e
preparar as condições para a luta.
A formação se dava, portanto, observando as necessidades organizativas e em um nível de maior
complexidade, face às discussões teóricas desde o pensamento crítico, e se atribuía a tarefa a assessores
e dirigentes, em jornadas de formação, abordando temas específicos em reuniões e encontros do
Movimento. Os temas se relacionavam à complexidade dos estudos em torno da questão agrária, da
sociedade de classes (“como funciona a sociedade”), da organicidade (“metodologia de trabalho de
base”), da história das lutas camponesas, dos princípios organizativos, dentre outros. A formação e a
agitação pretendiam elaborar, a partir de um conteúdo fundamental: a busca coletiva de enfrentamento
para os problemas que eram comuns, por isso, deveria ser encontrada uma solução comum. Portanto, a
unidade em torno de objetivos de lutas comuns era fundamental, assim como a formação baseada nas
questões da realidade, formação orgânica.
Os cursos de formação política desse período eram apoiados por algumas experiências em curso no
Brasil, como as Escolas Sindicais, Centros de Formação Pastoral da Igreja Católica progressista. No
amadurecimento dos processos formativos, foram surgindo problemas relacionados ao método e à
concepção de formação, uma vez que estes já não respondiam integralmente às novas exigências de
organicidade do MST, bem como aos desafios cada vez mais crescentes, impostos pela própria dinâmica
da luta. Disto resultava, em certo sentido, já um momento de formação, pois o esclarecimento em
coletivos acerca da necessidade de ampliar os rumos, aprimorar os métodos, e avançar nos conteúdos,
propiciava uma rica discussão interna, quando já se iam experimentando autores, temas, questões,
metodologia e, principalmente, uma postura e uma perspectiva dialógica e de construção de eixos comuns
de abordagem daquilo que se considerava ferramenta teórico-conceitual e metodologia de ação prática,
numa organização camponesa.
Com a construção do Movimento, nas diversas regiões do Brasil, surgiram demandas específicas e
diferenciadas dos modos de luta do movimento sindical. Eram exigidas respostas no campo da
organização da produção nos assentamentos, da educação e organização das escolas nos assentamentos,
da comunicação, agitação e propaganda, bem como dos métodos de direção. A própria expansão
territorial do MST na região Nordeste trouxe novos desafios, novas necessidades, e por isso, novas
exigências quanto à formação.

Ampliação do conceito e dos mecanismos de Formação
A realidade impôs novas necessidades e novos conhecimentos, tanto em termos de mobilização como
em termos de conquistas de novos assentamentos. Tal fato desencadeou um papel ainda mais exigente ao
conjunto das atividades formativas: multiplicar e intensificar a formação de novas lideranças; garantir a
elevação permanente do nível de consciência da base. Neste ponto, o debate entendia que:
A consciência é uma força viva, dinâmica, que precisa ser estimulada e alimentada permanentemente; caso contrário, ela se desfaz e se
refaz de outra forma. O dever de um quadro revolucionário é cuidar da consciência, sua e de seus companheiros e companheiras.
Alimentá-la corretamente para evitar que se vicie com falsos tratamentos (Bogo, 2007, p. 86).
Para garantir a formação de seus militantes, sua capacidade de reflexão, e principalmente que ela se
realizasse de modo permanente e, em diálogo com outros movimentos do campo e da cidade, em meados
da década de 1990, se começou a pensar “um espaço de formação”, um “lugar social” de referência no
plano da formação militante em escala internacional. No caso, se pensava um “espaço” que não se
resumisse em si, mas onde se pudesse garantir a reprodução das práticas formativas nos mais variados
aspectos, como nesta reflexão:
Então, a escola deve relacionar-se com todos os espaços de reflexão, seja nos cursos escolares, seja nas discussões das diversas
tarefas. Por isso, ela não é ‘uma equipe’ de formadores, mas, sim, a inteligência da organização assumida por centenas de militantes
com funções diversas (Bogo, 2011, p. 190).
Deste modo, nascia a decisão do Movimento em construir, por muitas mãos, uma escola de terra para
os Sem Terra. Em 1996, se decide construir um espaço físico, ou seja, uma Escola Nacional, para
avançar na formação de quadros. Esse era o enunciado dos documentos internos do MST: uma escola
com o propósito de programar, planejar e coordenar a política de formação de quadros.

A escola de terra para os sem terra

Cria-se uma escola


A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), com sua sede localizada no município de Guararema,
região Metropolitana de São Paulo, é um dos espaços de formação dos movimentos populares no Brasil.
Inaugurada em 2005, completa uma década de permanente construção, como lugar onde se busca viver o
internacionalismo da classe trabalhadora e o espírito de solidariedade como sua viga mestra. E, com a
força simbólica que almeja, leva o nome deste importante intelectual e lutador da classe trabalhadora,
Florestan Fernandes. A escola, como reflexo de seu mestre Florestan, foi edificada com a força do
trabalho coletivo permanente e da defesa intransigente do ensino público e de qualidade, como queria
Florestan. A ENFF é, para o MST, uma experiência que demonstra unidade, solidariedade e capacidade
organizativa e de luta do MST, em aliança com outros movimentos e setores da luta social, de vários
continentes.
O Movimento, referindo-se à formação como um dos elementos significativos à elevação do nível de
consciência, entende que ela está intimamente vinculada à luta pela ampliação dos direitos sociais, pela
autonomia e libertação da classe trabalhadora. Portanto, parece claro que este Movimento preze por uma
formação emancipatória, como um processo contínuo e sistemático de reflexão sobre suas práticas de luta
social. Uma formação capaz de articular os termos da relação entre o que foi produzido, historicamente, e
o que se vive, neste momento histórico, e de transformar em ação de massa, a ação reivindicatória para
alcançar o objetivo maior. E que estas indicações históricas sirvam para a prática da luta pela
transformação:
(...) sejam elas indicações para a práxis ou delas retiradas, possam alimentar não só os sonhos, mas também os passos de todos nós que
decidimos enfrentar as forças da dominação, como condição para negar a situação existente e construir uma nova sociedade, na qual
homens e mulheres possam viver, sonhar e cantar a justiça e a liberdade (Pizetta, 2007 p. 10).
A Escola é um dos instrumentos do Movimento que nasce a partir da definição de seus objetivos, de
sua estratégia de ação e sempre de olho nas dificuldades organizativas. Com este entendimento, a Escola
continua sendo edificada Assim está, na sua concepção, a formação de sujeitos críticos da realidade, da
sua própria prática política e da sua organização, sujeitos criativos para propor novos métodos de
trabalhos acompanhando seu período histórico e social.
Na concepção da ENFF, uma escola dos trabalhadores deve ser parte da organicidade do Movimento,
e por isso, ela segue o método de trabalho, de direção, de planejamento, na implementação dos
princípios que regem o próprio MST. É uma escola vinculada a um projeto político de transformação da
realidade e, portanto, preza por sua autonomia política e ideológica.
Uma escola em construção, construída pelos e para os trabalhadores. Uma escola diferente, aquela
cuja vivência da mística revolucionária propicia aos sujeitos, nela irmanados, imaginar, projetar, sonhar,
idealizar e agir por um mundo melhor; a mística que se alimenta da luta, mas, ao mesmo tempo projeta os
desafios e as possibilidades a serem construídas no concreto, na vida real. Para tanto, o MST e a ENFF
compreendem que sua militância precisa ter a compreensão dos elementos sociais e culturais, do geral ao
particular e do particular ao geral, para com o conhecimento elaborado historicamente e a vivência da
luta, o que os torna sujeitos de autonomia para perceber as relações e conexões, e estas em movimento,
encontrando os elementos contraditórios para sua superação.
Neste sentido, a ENFF tem como princípio trabalhar com os valores de uma sociedade do futuro,
valores emancipatórios. Para tanto, é preciso cultivar, elaborar e propagar, desde agora, os valores da
nova sociedade que se deseja construir. Estes valores não podem ser meras palavras e, sim, um processo
de vivência coletiva, parte da organicidade, que cuida permanentemente de cada um de seus
participantes, partindo de ensinamentos práticos com exemplos de vida. Assim como viveu Florestan
Fernandes, e tomando outros exemplos de processos de lutas e de outros seres humanos idealizadores e
sujeitos de um projeto de mundo mais justo e igualitário, neles o MST tem suas referências. A ENFF é,
pois, uma escola pensada, projetada e construída pelos e para os/as trabalhadores/as, edificada com
persistência, dedicação e sentido de pertença. Uma escola insistentemente comprometida com a busca
por coerência entre o que se fala e o que se faz; o que requer um valor humano de cuidar de si mesmo e
do outro, tanto no discurso como na ação prática.

Os pilares da concepção da ENFF
Em 2015, a Escola Nacional Florestan Fernandes completou dez anos de vida. Como uma caminhada,
esta escola é construída passo a passo, e por muitas mentes e mãos, resultando daí um espaço que
ultrapassa as fronteiras da luta pela terra, ou mesmo as fronteiras do mapa do Brasil; ela é uma escola da
classe trabalhadora internacional. Neste espaço, se reúnem militantes e ativistas de várias partes do
mundo, para estudar e debater ideias e produzir conhecimentos, contribuindo no projeto de formação do
MST e na busca por desenvolver habilidades e capacidades face às tarefas e exigências políticas de cada
momento histórico, e, sempre na perspectiva do avanço da luta de classes. Esta construção coletiva, hoje,
conta essencialmente com a dedicação e trabalho voluntário de educadores, professores, pesquisadores
que contribuem na formação e construção do conhecimento crítico.
No propósito de autoformação de consciências revolucionárias e na perspectiva de construção de
emancipação humana, e isso não ser somente enunciado retórico mas, sim, uma prática cotidiana, a
dimensão pedagógica deve estar de acordo com os objetivos e com a concepção da escola e do
Movimento. Seus parâmetros se baseiam na concepção do novo homem, da nova mulher e da sociedade
emancipada, postos desde a criação do MST.
Estes pilares de sustentação e esta utopia perpassam as intencionalidades da ação formativa no
cotidiano, elas dizem respeito aos valores do estudo permanente, da busca do conhecimento, do trabalho,
das relações humanas, da disciplina revolucionária, da organicidade, da mística, da arte e da cultura que,
articuladas e combinadas nos diferentes momentos da escola, buscam contribuir com a formação dos
militantes nos processos de luta e nos processos de aprofundamento teórico. Os pilares de sustentação
desta escola se baseiam no estudo, na solidariedade, no internacionalismo anti-imperialista, no espírito
de sacrifício pela causa dos trabalhadores, na rebeldia contra o projeto do capital, na capacidade de
indignar-se contra as injustiças, no trabalho voluntário no sentido de ser a fonte da vida, no caráter
criador, na mística como combustível que anima a seguir em frente.
Vale, aqui, salientar que seus pilares de sustentação são possíveis porque existe uma participação de
todos/as os envolvidos/as neste processo. Isto acontece pela organicidade que faz com que cada
militante, homem e mulher, assuma sua tarefa e responsabilidade, o que configura se, de fato, a
construção é coletiva; isto quer dizer que, nesta escola, se dá como busca permanente, a superação do
elemento tão incentivado pelo capitalismo: o individualismo.
Nela se encontra um coletivo, cujas contradições são resolvidas coletivamente. Esta organicidade é
articulada aos objetivos imediatos e estratégicos do Movimento. Sem esquecer é claro, que este coletivo
é composto por pessoas que precisam ser respeitadas e cuidadas, pois as mesmas pertencem a um
contexto histórico, a uma realidade em movimento, portanto, contraditória. Ou seja, o método de
funcionamento é dinâmico e se constrói a partir da prática e reflexão, exercendo o princípio da criação
coletiva. É um processo que precisa constantemente ser avaliado, readequado de maneira que possa
contribuir com o alcance dos objetivos que a Escola e o Movimento se propõem. Por esta razão, tal
discussão é permanente na ENFF e, apesar dos avanços perceptíveis, são evidentes também as lacunas,
as deficiências, que vão aparecendo e sendo refletidas em busca de superação.

Considerações finais
Os elementos que abordamos, no presente trabalho, nos fazem refletir sobre dimensões que dizem
respeito à construção de novas relações sociais na perspectiva dos processos de luta e de organização
dos trabalhadores/as. Sabemos que somos profundamente marcados pelos comportamentos da sociedade
atual e que vivemos numa sociedade profundamente desigual. Portanto, falar de uma sociedade justa e
igualitária significa ter a consciência da necessidade da superação desta sociedade dividida em classes,
e ter a clareza de que a sustentação desta sociedade passa, também, por comportamentos enraizados no
nosso dia a dia. E, portanto, estes comportamentos precisam ser mudados em face da construção da nova
sociedade, em busca de relações sociais e de convivências pautadas por novos valores. Tudo está em
movimento: nesta constante relação dialética entre o velho que queremos superar e o novo que queremos
construir se efetivam os saltos de qualidade.
As novas relações de gênero, por exemplo, não acontecem isoladas e separadas daquilo que
historicamente foi se conformando enquanto preconceitos e relações estabelecidas entre homens e
mulheres, bem como nas relações de afetividade e sexualidade. As novas relações se constroem a partir
das velhas, mas, superando-as, refletindo no cotidiano os velamentos produzidos pela sociedade do
capital.
Daí a necessidade de ir construindo uma nova cultura baseada nos princípios humanistas e socialistas,
na coerência das ações, nos elementos da coletividade e da socialização. São elementos que se acredita
fundamentais neste processo de formação, com base na relação entre a teoria e a luta concreta. O MST e
a ENFF fecundam a luta e a formação com a compreensão histórica de transformação, sabendo que são
elementos fundantes na luta pela emancipação. Esta convicção do Movimento nasce do conhecimento
adquirido nas vivências e no que a história tem acumulado, que nos asseguram que o capitalismo não
garante direitos sociais e políticos e que, neste sistema, que se nutre do individualismo e se funda na
competitividade, não se chega à emancipação humana.
A ENFF adota, por princípio, provocar um pensamento que ultrapasse a ideologia dominante, indo
contra o feitio do capital que atua para que a classe trabalhadora não tenha condições de pensar, e, assim,
não agir para tornar outro mundo possível. Não pensar criticamente para que não consiga se enxergar
como potencial de unir forças em busca de seus direitos. Viver na alienação é a projeção do capital para
os trabalhadores.
Assim, neste trabalho, tentou-se apresentar o processo de formação no MST, via ENFF, como
afirmação da necessidade da luta por direitos e pela transformação da sociedade. Os militantes que se
dedicam a este processo de formação buscam, desde o movimento pulsante da realidade e do confronto
entre as classes, a afirmação de que um novo mundo é possível. Destes estudos, desta formação é que se
chega à compreensão do socialismo, de como uma sociedade emancipada do capital é possível, pois, o
possível é parte do real, é possibilidade histórica.
Esta certeza de um caminho na formação de seus quadros faz com que esta escola de formação se torne
insuficiente face às necessidades das organizações dos trabalhadores e, de tal fato, decorre enquanto
decisão, a construção da ENFF em outras regiões do país. Objetiva-se uma atuação permanente de
formação mais da base social do Movimento, como também possibilitar a ampliação de alianças com
outras forças sociais nas regiões e incorporar a contribuição de pesquisadores e de estudos voltados às
realidades locais. Tais estudos e pesquisas contribuem para o entendimento das especificidades das
regiões, dos efeitos e da lógica do capital em sua forma ali presente – destruindo as diferentes culturas
em nosso país. Assim, a ENFF nas regiões, cumpre a função de responder, em concreto, às necessidades
do Movimento e, também, de propor novas metodologias na formação de seus quadros, levando em conta
as culturas e o público de seu tempo.

Referências bibliográficas
BOGO, Ademar. Organização política e política de quadros. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
ENFF. A política de formação de quadros. 2ª ed. Guararema: ENFF, 2007. (Série Cadernos de Estudos ENFF, v. 1)
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 5ª ed. São Paulo: Hucitec, 1986.

Quando o MST aborda o tema da formação da consciência e de seus níveis, está se referindo às mudanças que se operam no processo
da consciência, isto é, as passagens da consciência reivindicatória, aquela que busca resolver os problemas imediatos e de âmbito
puramente econômico. Quando trata da consciência crítica, o MST não está negando a reivindicatória, mas ampliando para além do
imediato e que, portanto, percebe as relações de exploração e a necessidade de sua superação em outro modelo de sociedade.

PARTE 3

EXPERIÊNCIAS DE EDUCAÇÃO, ARTE E CULTURA NO CAMPO



Desafios na abordagem da temática indígena em sala de aula1

Aldenora Pimentel Batista da Silva e Mônica Celeida Rabelo Nogueira


Introdução
O Brasil é um dos países com maior diversidade de culturas nativas do mundo, contando hoje 305
povos e 274 línguas indígenas, segundo o último Censo Demográfico brasileiro (IBGE, 2010). Essa
diversidade se mantém, não obstante o longo histórico de colonização do país, que implicou no
extermínio de muitos povos, na redução do número de línguas faladas e na invisibilização e/ou
negativização das culturas indígenas.
A educação, ainda que tenha grande potencial para gerar transformações, tem sido historicamente, um
dos vetores de dominação e reprodução das assimetrias que caracterizam as relações entre indígenas e
não indígenas em nossa sociedade. Mudanças recentes nos marcos legais da Educação Básica, no Brasil,
sinalizam para oportunidades de alteração desse quadro. Esse é o caso da Lei n. 11.645/08, que
determina o ensino de história e culturas afro-brasileira e indígenas nas escolas, a fim de promover a
valorização da diversidade sociocultural e o direito de comunidades negras e povos indígenas à história
e à cultura.
A Lei n. 11.645/08 não reflete propriamente mudanças estruturais na vida social, mas constitui-se em
uma importante conquista dos movimentos negro e indígena, no plano formal, desafiando gestores
públicos e comunidades escolares a empenharem esforços para realizá-la no plano prático.
O presente artigo problematiza os desafios relativos ao ensino de história e culturas indígenas, a partir
da análise de dados levantados junto ao Centro de Ensino Fundamental (CEF) 316 Norte, em Brasília,
Distrito Federal. Situada em área urbana, o CEF 316 Norte conta com quatro estudantes indígenas, de
famílias migradas para a capital federal. A presença indígena no espaço urbano é uma realidade cada vez
mais frequente em cidades de diferentes portes, em todo o país – de acordo com o Censo de 2010, já
corresponde a 36,2% da população indígena. Esse dado reitera a importância de se visibilizar e dar o
devido tratamento pedagógico à diversidade sociocultural, como condição para a construção de uma
sociedade capaz de se pensar e realizar de forma plural, para além de estereótipos e da reprodução do
padrão colonialista nas relações interétnicas, ou seja, entre indígenas e não indígenas.

Do assimilacionismo ao pluralismo cultural: breve histórico
Desde o início da colonização do Brasil, os povos indígenas têm sido submetidos a processos de
orientação assimilacionista – ou seja, que visam destituí-los de seus traços culturais próprios, para
integrá-los, especialmente ao mercado de trabalho e, mais recentemente, também ao mercado consumidor.
No início da colonização, missionários investiram esforços para catequizar os indígenas e, assim, torná-
los “socialmente dispostos ao trabalho”. As tradições e modos de vida indígenas eram considerados
impróprios para o convívio social, justificando a imposição de valores da cultura cristã e europeia.
Nesse contexto, a educação teve papel preponderante, como instrumento de colonização.
A chegada dos portugueses ao litoral brasileiro implicou um processo desagregador para os povos indígenas, porque, entre outros
motivos, destruiu as formas tradicionais de educação indígena, tal como vinham sendo praticadas nas aldeias. Os processos de
aprendizagem adotados por mais de 1.200 povos que aqui viviam foram desqualificados pelo colonizador, que ignorou as concepções
pedagógicas indígenas, não admitindo sequer a possibilidade de índios e índias terem sido capazes de construir, ao longo do tempo, um
discurso sobre suas próprias práticas educativas (Bessa Freire, 2004, p. 11).
A negação dos modos tradicionais de viver indígena – inclusive a educação – não foi um episódio
histórico, no sentido de um evento localizado em passado remoto, no caso, o período da colonização
portuguesa. O assimilacionismo manteve-se como política oficial do Estado brasileiro, até o século XX.
Em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) iniciou a instalação de Postos de Atração que cumpriam,
grosso modo, as mesmas funções das missões católicas, no período colonial, ao atrair, sedentarizar e
procurar aculturar os indígenas. Nesse contexto, configuram-se claramente os propósitos econômicos, na
crescente incorporação de terras indígenas para a expansão da pecuária e da agricultura pelo interior do
país.
Em 1967, é instituída a Fundação Nacional do Índio (Funai), durante o regime militar. A tônica segue
sendo a submissão dos direitos de povos originários aos interesses econômicos da sociedade dominante.
Mudam as nomenclaturas e regimes de governo, mas seguem as assimetrias e as investidas contra a
diversidade cultural indígena, como expressam as palavras de Gakran (2014, p. 70): “neste contexto, o
modelo educacional implantado procurou, antes de tudo, assegurar os objetivos da sociedade
dominante”.2
Mudanças se anunciam a partir da década de 1970, por meio da mobilização de organizações da
sociedade civil, em defesa dos povos indígenas, mas também da criação do Estatuto do Índio (Lei n.
6.001/73), cujo artigo 47 propõe assegurar: “o respeito ao patrimônio cultural das comunidades
indígenas, seus valores artísticos e meios de expressão”. O Estatuto do Índio, assim, abre espaço para o
debate, junto à sociedade brasileira, sobre a pluralidade cultural e as especificidades dos povos
indígenas – processo que culmina na promulgação da Constituição de 1988.
Os artigos 210 e 231 da Constituição Federal aprofundam o reconhecimento dos povos indígenas, de
suas formas de organização, tradições, línguas maternas e estabelece as bases para o desenvolvimento de
uma educação diferenciada para esses povos, a fim de adaptar as escolas aos modos de vida indígenas.
Dito de outra forma, esses dispositivos legais tornaram possível a educação escolar indígena, integrando
os costumes e línguas nativas ao ambiente escolar, em diálogo com os conhecimentos científicos,
fortalecendo, assim, a identidade étnica dos povos indígenas.
Resultado dos esforços do movimento indígena e de seus aliados, a educação indígena obteve
importantes conquistas no plano formal, ao longo dos últimos anos. A legislação determina, inclusive, o
envolvimento dos governos estaduais e municipais nesse processo. Em 1993, foram elaboradas as
Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, estabelecendo os princípios para o
exercício pedagógico de valorização da pluralidade cultural brasileira. Finalmente em 1996, consolidou-
se o currículo do ensino fundamental diferenciado, lançando as bases para o desenvolvimento da temática
indígena em salas de aula, segundo a Lei de Diretrizes de Base da Educação (artigo 26, inciso 4º) e a
oferta de educação escolar bilíngue e intercultural (artigos 78 e 79). Infelizmente, a implementação da
legislação ainda não atingiu todas as comunidades indígenas. Como afirma Keim (2014, p. 40):
Esse processo de não cumprimento da legislação se dá, entre outros motivos, pelo fato de muitos grupos de indígenas desconhecerem
os meios pelos quais poderão buscar a concretização desse direito e, também, pelo fato dos não indígenas não terem o menor interesse
de que esses povos tenham sua autonomia conquistada.
O processo de organização e seu aprimoramento acontecem lentamente. Parte das demandas do
movimento indígena em torno da educação diferenciada (bilíngue e intercultural) tem sido gradativamente
inserida nos marcos legais e nas práticas sociais, embora a participação indígena na elaboração dos
currículos escolares e nas regulamentações sobre o ambiente escolar ainda seja limitada.

Em anos recentes, os indígenas vêm conquistando o (re)conhecimento e o respeito a seus direitos específicos e diferenciados. Sob essa
ótica, o país, a sociedade brasileira se repensa, se vê em sua multiplicidade, pluralidade e diversidade sociocultural, expressa também
pelos povos indígenas em diferentes contextos sócio-históricos. Mas lembremos que esse reconhecimento exige também novas posturas
e medidas das autoridades governamentais em ouvir dos diferentes sujeitos sociais a demanda por novas políticas públicas que
reconheçam, respeitem e garantam essas diferenças (Silva, 2012, p. 217).
De todo modo, há boas experiências hoje no Brasil relativas à produção de material bilíngue,
formação de professores indígenas, elaboração de Projetos Político-Pedagógicos (PPPs) em moldes
participativos. Grande parte dessas experiências foram gestadas por organizações indígenas e parceiros
não governamentais e constituem-se em referências importantes para a construção de uma educação
intercultural nas escolas indígenas, ou seja, no contexto comunitário, das terras indígenas.
No entanto, de acordo com o último Censo (IBGE, 2010), cerca de um terço da população indígena
hoje reside nas cidades3. Pode-se, assim, supor que uma parte importante, dentre as crianças e jovens
indígenas, frequenta escolas urbanas, sem preparo para acolhê-las em suas especificidades culturais.
Assim, ao lado de uma implementação ainda insuficiente da legislação e políticas relativas à educação
escolar indígena – não obstante a existência de bons projetos demonstrativos –, constata-se, hoje, haver
um novo desafio: o de estender as diretrizes de uma educação intercultural para o contexto urbano, tendo
em vista a crescente presença de indígenas nas cidades brasileiras.
Mas, como garantir o direito ao ensino diferenciado para os indígenas que hoje vivem nas cidades e
frequentam escolas não indígenas? Este talvez seja um desafio, se não propriamente novo,
contextualmente emergente, cujo enfrentamento deve levar em conta, de um lado a forte ideologia
assimilacionista que marcou o histórico das relações entre indígenas e não indígenas em nosso país, mas
também as mais recentes conquistas do movimento, no plano formal, em termos de reconhecimento e
valorização da diversidade sociocultural brasileira. Nesse sentido, além das diretrizes relativas à
educação escolar indígena, convém considerar outro marco legal: o da obrigatoriedade do ensino de
história e culturas indígenas nas escolas, talvez uma janela de acesso às escolas urbanas, para indígenas.

Lei 11.645/08: obrigatoriedade do ensino de história e culturas indígenas nas escolas

O debate instaurado em torno da elaboração e promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (n. 9.394), em 1996, foi fundamental para as conquistas que a sucederam, visando a afirmação
de direitos de minorias sociais, como os povos indígenas, e o enfrentamento do racismo em suas diversas
faces. Nesse sentido, vale destacar que a LDB, em seu artigo 26, inciso 4º, determina que o ensino de
História do Brasil baseie-se nas contribuições das diversas culturas e etnias que fizeram parte do
processo de formação da nação brasileira, destacando-se as contribuições indígena, africana e europeia.
Em 2003, a Lei n. 10.639 instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e
africana, bem como da promoção de uma educação das relações étnico-raciais na Educação Básica.
Cinco anos depois, a Lei n. 11.645 incluiu o componente indígena com o mesmo fim, expressando
claramente a obrigatoriedade, em todos os estabelecimentos de ensino públicos e privados, do estudo da
história e culturas afro-brasileira e indígenas. Passam a ser levadas em consideração, também, as lutas
desses povos e suas respectivas contribuições ao desenvolvimento social, econômico e político do país.
No âmbito da escola/educação formal, em seus vários níveis, pode-se constatar muita ignorância que resulta em distorções a respeito
dos indígenas. A Lei 11.645 de março de 2008, que tornou obrigatório o ensino de história e culturas indígenas nos currículos escolares
no Brasil, ainda que careça de definições mais completas, possibilita a superação dessa lacuna na formação escolar. Contribui para o
reconhecimento e a inclusão das diferenças étnicas dos povos indígenas, buscando pensar um novo desenho do Brasil em sua
sociodiversidade (Silva, 2012, p. 219).
A lei não apaga o processo histórico de negação nem as marcas da indiferença na história dita oficial
sobre os povos indígenas – que poderíamos melhor designar como “hegemônica”. Contudo, sendo uma
conquista do movimento indígena, a lei deve ser acionada para superar esses mesmos conflitos
históricos, desafiando-nos a torná-la realidade concreta. Nessa perspectiva, a capacitação de educadores
e o redirecionamento do trabalho pedagógico para a sua efetivação tornam-se imprescindíveis para uma
melhor compreensão e responsabilidade no desenvolvimento do ensino para a formação cidadã e a
participação social, realmente orientada para uma coletividade plural, como é a sociedade brasileira,
pois, como questiona Silva (2012, p. 213):
Como lecionar sobre os povos indígenas, se é fácil constatar que a imensa maioria do professorado na Educação Básica desconhece a
população indígena em nosso país e nem sabe quantos brasileiros se autodeclararam índios no censo IBGE/2010? Como tratar dos
povos indígenas, se no senso comum e no ambiente escolar apenas se conhecem os índios da Região Norte e do Xingu?
Para o pleno cumprimento do princípio que rege a Lei n. 11.645/08, é imperioso reconhecer e fazer
reconhecer a grande diversidade ainda presente entre os povos indígenas brasileiros, que configura um
inestimável patrimônio sociocultural. Mas, além da diversidade no plano cultural, há que se reconhecer
também a diversidade de trajetórias históricas e situações vivenciadas por esses povos, desde o início da
colonização até o presente. Afinal, hoje a diversidade indígena também se expressa nas histórias de
contato desses povos com as diversas frentes colonizadoras a que estiveram e estão submetidos –
incluindo as mais recentes, representadas por grandes empreendimentos monocultores e concentradores
de terra, além de projetos de infraestrutura, como usinas hidrelétricas, gaseodutos, estradas,
impulsionados pelo próprio Estado brasileiro – que se desdobram em processos de desterritorialização e
reterritorialização dos povos indígenas. Integram também as histórias desses povos as estratégias
assumidas para se organizarem politicamente para lidar com tais relações interétnicas, dentre outros
fatores. Somente lançando luz sobre a complexidade da situação indígena brasileira será possível superar
as visões mais simplistas. Portanto, mais que falar sobre os indígenas, é indispensável estabelecer o
diálogo com esses sujeitos, de modo a torná-los realmente parte desse processo de construção coletiva
de saberes. Isso, sim, será ressignificar o ensino.
Mas, em que medida, a presença indígena nas cidades e nas escolas não indígenas favorece a
construção desse diálogo? Ou em chave contrária, pode a obrigatoriedade do ensino de história e culturas
indígenas favorecer a integração desses sujeitos ao ambiente escolar? Essas são algumas das questões
suscitadas a partir do estudo realizado junto a uma escola de Ensino Fundamental, situada em Brasília,
Distrito Federal, com a presença de um pequeno grupo de estudantes indígenas, como se verá a seguir.

A temática e os indígenas na escola: o caso do CEF 316 Norte
A fim de investigar como vem se dando o processo de implementação da Lei n. 11.645/08, realizou-se,
no ano 2014, pesquisa junto ao Centro de Ensino Fundamental (CEF) da 316 Norte, uma escola situada
em área especial urbana da Asa Norte, no Plano Piloto da capital federal, Brasília. A escola atende 347
estudantes, divididos em turmas dos anos finais do Ensino Fundamental (de 6o a 9o ano), nos turnos
matutino e vespertino.
O CEF 316 Norte está também nas proximidades da Terra Indígena Tapuya – mais conhecida como
Santuário dos Pajés - a única terra indígena demarcada em Brasília – e da Aldeia Tekohaw, ambas
localizadas no novo bairro contíguo à Asa Norte, o Setor Noroeste. Tendo em vista essa proximidade, o
CEF 316 Norte tem, dentre seus estudantes, quatro indígenas, sendo um wapixana4 e três guajajara5 –
razão que justificou a seleção dessa escola para estudo de caso.
Não obstante a presença de estudantes indígenas no CEF 316 Norte, as entrevistas com professores e
membros da Direção da escola revelaram que a Lei n. 11.645/08 ainda é pouco conhecida. Os
professores afirmaram não adotarem práticas específicas para favorecer uma maior integração desses
estudantes indígenas ao ambiente escolar, tendo mesmo aqueles que manifestassem surpresa ao saber que
se tratava de indígenas, já que residem na cidade e não apresentam traços fenotípicos específicos. Tais
manifestações informam sobre as representações estereotipadas que ainda persistem no meio urbano
sobre os povos indígenas, inclusive entre professores, bem como sobre a reedição do velho enredo da
assimilação dos povos indígenas à sociedade nacional. Afinal, ao não serem reconhecidos em suas
especificidades, estudantes indígenas são privados da oportunidade de vivenciarem a escolaridade de
forma mais significativa, integrando aspectos da história e cultura de seus povos ao seu processo de
aprendizagem e, em última instância, de sua construção como sujeito social.
Muitos professores entrevistados apontaram para uma deficiência em formação específica e na
produção de material didático próprio para a abordagem da temática indígena em sala de aula. É certo
que há um déficit de formação específica dirigida a professores, visando a implementação da Lei n.
11.645/08, mas para além de cursos de aperfeiçoamento, a prática reflexiva sobre o trabalho pedagógico
é que se faz necessária – mesmo porque, ao contrário da educação escolar indígena, ainda não há
referências estabelecidas para o ensino de história e culturas indígenas nas escolas. Portanto, das
práticas pedagógicas devem emergir novas referências, num processo, onde os obstáculos possam ser
reconhecidos como parte do aprimoramento da ação reflexiva do professor como também da superação
das problemáticas enfrentadas pela escola em uma ação coletiva e constante. Assim, conscientemente,
Ferreira (2009, p. 9) enfatiza:
A valorização da reflexão do professor sobre a sua própria prática apoia-se no pressuposto de que a docência também é fonte de
conhecimento, por se tratar de uma forma de investigação e de experimentação. O professor, enquanto prático-reflexivo constrói uma
teoria própria, explicativa da sua prática, contribuindo para a sistematização de novos conhecimentos, um dos diferenciais da docência
como profissão.
Como já destacado, trabalhar a temática indígena em sala de aula requer conhecimento não só
histórico, mas também sobre a atual situação desses povos, tendo a sensibilidade e a percepção a
respeito do processo cultural que estão construindo. Por isso, a instituição educacional tem grande
importância nesse contexto e a ela é atribuída a responsabilidade do fortalecimento de uma perspectiva
propriamente intercultural.
A escola precisa, então, refletir sobre seu papel e reconhecer a necessidade de relacionar o saber e a metodologia para repassar os
conhecimentos, consciente das diferenças entre os indivíduos que participam do espaço educacional. No caso do índio [sic], devemos
reconhecê-lo como sujeito histórico atuante, capaz de perceber e apreender a realidade social, como os demais. Todos são sujeitos
sociais (Lima, 2014, p. 3).
Nesse sentido, os professores poderiam convocar os estudantes indígenas a participarem ativamente na
construção dos conteúdos relativos à história e culturas indígenas, dando-lhes voz nesse processo. De
onde vieram esses estudantes? Qual a história de seu povo? Quais seus mitos, línguas, traços culturais
distintivos? Como vivem? Que desafios enfrentam? Como e por que migraram para Brasília? Assim,
como nas experiências de educação escolar indígena, a participação dos próprios indígenas na produção
de conteúdos e na recriação das dinâmicas de ensino-aprendizagem poderia apontar uma direção profícua
e renovadora.
Nessa relação mais ampla de convivência, a escola poderia tornar-se um espaço de emancipação e
autonomia por meio do diálogo e do respeito. Nesse papel, o professor é convidado a ser o vínculo e a
edificar essas realidades. Lima (2014, p. 10) afirma que a escola:
(...) é um lugar de trocas de conhecimentos, intercâmbio de costumes culturais diversos, pois afinal, quem é igual ao outro? Somos,
principalmente no Brasil, formados da junção de vários povos, totalmente diferentes uns dos outros, não só fisicamente, mas também
nas maneiras de pensar, falar e agir.
Membros da equipe da secretaria escolar, também ao serem entrevistados, afirmaram não perceberem
diferenças entre os estudantes indígenas em relação aos demais, senão na irregularidade de sua
frequência na escola, ao longo do ano. Por vezes, podiam ficar meses sem comparecer à escola. Mas
tampouco esses profissionais souberam explicar as razões pelas quais os estudantes indígenas se
ausentaram em alguns períodos do ano letivo. As razões podem variar bastante, podendo a ausência estar
relacionada a trânsitos desses estudantes e seus familiares entre os Estados e o Distrito Federal – devido
a ciclos da vida coletiva em seus lugares de origem – até ao acirramento dos conflitos por terra entre o
setor imobiliário e as comunidades indígenas estabelecidas no Noroeste.6 A escola não apurou as razões
do absenteísmo dos estudantes, embora os profissionais (entre professores e servidores técnico-
administrativos) reconheçam que as faltas dificultam a integração dos estudantes à vida escolar.
As escolas urbanas parecem não estar preparadas para atender a mais essa demanda, uma vez que os estudantes são oriundos de
contextos culturais diferentes, falam uma língua materna diferenciada, têm percepções diferentes do mundo, da educação, do tempo e
do espaço. No entanto, a questão está dada e exige providências efetivas no campo das políticas públicas. Por um lado, devem atender
de forma permanente e com a devida qualidade, as escolas nas aldeias, de modo a reduzir a migração de estudantes para as cidades; de
outro, devem responder mais eficazmente às demandas de estudantes indígenas nas escolas urbanas, capacitando-as para a práxis
educativa intercultural (Santos, Secchi, 2013, p. 16).
Outro aspecto que convoca a atenção no contexto das escolas urbanas, sendo bastante referido nas
entrevistas dos professores, diz respeito ao material didático. Ao abrir um livro didático, espera-se que
ele atenda às necessidades e demandas relativas ao que os professores têm de desenvolver com seus
alunos em sala de aula. Mas o que deveria ser fonte de estímulos para discussões e maior envolvimento
com as problemáticas sociais, na maioria das vezes, renova o ciclo de preconceitos, quando não os
amplia.
Em relação à temática indígena, as considerações trazidas pela maioria das coleções escolares,
recomendadas pelo Ministério da Educação e disponíveis na unidade escolar estudada, retratam os povos
indígenas sempre situados em tempos remotos. Esse tratamento reproduz preconceitos, tomando os povos
indígenas como sociedades primitivas, representações do passado ou permanentemente ameaçadas de
extinção. Fica claro, nesse contexto, o enaltecimento da cultura dominante e a propagação de seus
valores, que reprime qualquer outra que não esteja dentro dos padrões por ela definidos. Nas palavras de
Gobbi (2006, p. 73),
É possível afirmar que, nos livros didáticos, a maior parte das referências aos povos indígenas encontra-se nos capítulos dedicados à
colonização portuguesa. O foco principal costuma ser o ‘branco’ colonizador e seu contato com os habitantes do continente. Nos
capítulos dedicados, especificamente, à temática indígena, como vimos anteriormente, a maioria das informações sobre as diversas
culturas dos povos indígenas aparece no tempo pretérito.
Essa representação dos povos indígenas nos livros didáticos precisa ser revista, de modo a
representar de forma qualificada o indígena na história e a situação desses povos no âmbito da sociedade
brasileira.
O dado nos alerta para a necessidade urgente de reelaboração do saber escolar nesses manuais e de ampliação do olhar crítico do
professor, no sentido de avançarmos de um conteúdo informativo na direção de uma reflexão mais crítica sobre a temática (Barbosa da
Silva, 2012, p. 6).
O material didático deveria reportar fatos que contribuam para o reconhecimento e manutenção da
diversidade sociocultural, valorizando a infinidade de costumes particulares que tanto enriquecem o
Brasil, por seu caráter pluriétnico. Também as conquistas, em termos de direitos, obtidas a partir da luta
indígena, bem como das transformações sofridas por suas culturas, em convivência com outras, deveriam
ser tópicos contemplados no material didático. Mas, observando, desde o espaço dado a informações
relativas aos povos indígenas nessas publicações, percebe-se o descaso com o tema, já que se designa a
utilização apenas das últimas páginas dos livros para o registro da participação indígena na história e na
sociedade brasileira.
Cabe mesmo perguntar se parte do material didático produzido para uso no contexto das escolas
indígenas não poderia ser apropriado em situações de ensino-aprendizagem nas escolas urbanas. Afinal,
esse material reflete o cotidiano das aldeias, repertoria costumes e regras sociais e, no limite, confronta o
não indígena com as línguas nativas brasileiras, tendo sido produzido, na maioria dos casos, por
indígenas. Nesse sentido, a autoria indígena poderia constituir uma forma de tornar mais plural a
produção de discursos sobre o tema, para circulação nas escolas, tendo ainda a vantagem de,
provavelmente, fortalecer, entre os estudantes indígenas, sua identidade.
O livro didático é, assim, um importante veículo para discursos capazes de contribuir para a construção de significados sobre as
relações étnico-raciais e, dessa forma, impactar a constituição de identidades (Barbosa da Silva, 2012, p. 6).
Ao diversificar as representações em circulação na escola sobre a(s) experiência(a) indígena(s)
históricas (por que também contemporâneas) pode-se “romper com a imagem homogeneizada da figura
do índio (sic), tão comum em manuais escolares” (Simm e Bonim, 2011, p. 8). Ao se aderir à emergente
produção indígena – que resulta dos avanços recentes da educação escolar indígena – para a composição
dos recursos didáticos na abordagem da temática indígena em sala aula, pode-se favorecer também um
reposicionamento ético-político e epistemológico desse sujeito, o indígena, na (re)produção das
representações sociais sobre si e suas relações com a sociedade dominante. Pode-se supor que seja
possível, assim, estabelecer o diálogo, de fato, quando estudantes não indígenas são confrontados (e
sensibilizados) a outras narrativas, as narrativas indígenas.
Tal medida pode repercutir não só no ambiente escolar, mas também fora dele, pois é comum que o
material didático seja lido nos domicílios, onde muitas vezes é o único acervo acessível. Assim, a
aquisição desse material para o acervo pedagógico das escolas, em especial, as que ficam localizadas
em centros urbanos, deve contribuir de forma mais efetiva para o exercício da interculturalidade, de
modo que as trocas culturais sejam valorizadas e compreendidas como processos educativos entre
indígenas e não indígenas – e, quiçá, possa se integrar as famílias nesse processo.

Considerações finais

O Brasil é um país de grande diversidade sociocultural. Infelizmente, o histórico de colonização e sua
atualização, na dinâmica de desenvolvimento em curso no país, tem negado, de forma persistente, a
presença e contribuição indígena para a história e sociedade brasileiras. Apesar das conquistas
históricas dos povos indígenas no estabelecimento de legislação e políticas para a promoção de uma
educação diferenciada, que venha atender às suas demandas, é notável a insuficiência desses mecanismos
até o momento para transformar a experiência de escolarização dos indígenas, seja no contexto de terras
indígenas, seja em uma escola urbana como a escola em análise. Afinal, dentre as conquistas, tem-se, de
um lado, a afirmação da educação bilíngue e intercultural como diretrizes da educação escolar indígena –
ou seja, no contexto das escolas de aldeia, no meio rural –, de outro, o ensino de história e culturas
indígenas, como uma obrigatoriedade para as escolas fora dos territórios indígenas e, por isso, mormente
um ensino pensado para não indígenas. Assim, o estudo do CEF 316 Norte aponta para um novo desafio:
o de aproximar essas duas diretrizes e contextos, em razão dos crescentes trânsitos de indígenas pelas
cidades e de sua presença nas escolas urbanas.
Mas o caso estudado revela que, mesmo estando presentes nessas escolas, os indígenas seguem sendo
silenciados e tendo suas diferenças apagadas pelo ambiente homogeneizador que predomina nesses
espaços. Assim, o risco é atualizar o assimilacionismo, que historicamente marcou as relações de contato
e as políticas indigenistas no Brasil. Os professores e servidores técnico-administrativos das escolas
manifestam pouco conhecimento sobre a legislação relativa ao ensino de história e culturas indígenas e
sentem-se despreparados para sua implementação, por falta de formação e material didático.
A pesquisa junto ao CEF 316 Norte também sugere haver um potencial na apropriação de material
didático produzido no âmbito de iniciativas de educação escolar indígena, no contexto das escolas
urbanas. Esse material que é, em grande parte, de autoria indígena pode ser um primeiro passo para a
melhor integração e afirmação da identidade e da voz de estudantes indígenas em um ambiente
predominantemente “branco”. Uma janela de leitura para a(s) história(s) e culturas indígenas
contemporâneas, uma janela para o diálogo, de fato, intercultural.

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<http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/17393/13255>. Acesso em: 13 set. 2015.

O presente artigo apresenta resultados parciais de pesquisa desenvolvida por Aldenora Pimentel Batista da Silva, para fins de conclusão
do Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, pela Universidade de Brasília, sob a orientação
da Prof. Dra. Mônica Celeida Rabelo Nogueira.

Vale mencionar que, durante o período do regime militar, entre os anos 1960 e 1980, a opressão contra povos indígenas recrudesceu. O
Relatório Figueiredo, um extenso dossiê (com mais de 7 mil páginas) sobre crimes praticados contra povos indígenas durante esse
período, atesta a participação de funcionários do SPI em processos de tortura e assassinato de indígenas. Sobre o assunto ver Starling,
2015.

Segundo o Censo 2010, a população indígena no Brasil totaliza 896.917 pessoas, das quais 324.834 vivem em cidades e 572.083 em
áreas rurais.

Povo indígena que vive, majoritariamente, na porção Leste do Estado de Roraima. Os wapixana são falantes de língua aruak.

Povo indígena também conhecido como tenetearas, cuja população é uma das mais numerosas entre os povos indígenas do Brasil. Os
guajajara vivem, majoritariamente, no Maranhão e falam língua da família tupi-guarani.

O conflito se notabilizou na imprensa local do Distrito Federal, desde o ano de 2008. A área reclamada pelos indígenas é de 50,91
hectares, enquanto o espaço já delimitado pela Justiça é 4,1 hectares. Sobre o caso ver Oliveira et al., 2011.

AGRONEGÓCIO COMO FATOR CONDICIONANTE DA REDEFINIÇÃO DA
HEGEMONIA NO TEMPO E NO ESPAÇO1

Gleciane Cezário dos Santos Machado

Introdução
Na história da questão agrária no Brasil, a terra sempre foi um espaço em disputa e, nessa luta de
classes, a hegemonia se reconstitui sobre novas bases econômicas, as tecnologias avançam, mas não há
mudanças em relação à concentração da propriedade da terra. Assim, entendemos que a questão agrária
no Brasil se constitui como um problema estrutural a ser resolvido. Nessa disputa de força, povos foram
dizimados, culturas esquecidas, mas ao mesmo tempo, resistências foram nascendo e se desenvolvendo
de acordo com as transformações da sociedade.
Com foco no estudo da propriedade, estabelecida desde a Lei de Terras de 1850, perseguiremos os
aspectos que contribuíram para cristalização das forças hegemônicas, que se inicia com os grandes
latifúndios e que, desde a década de 1960, vem se reconfigurando no que, nos dias atuais, podemos
chamar de agronegócio.
A questão agrária no Brasil começa a ser assunto de debate antes da década de 1960, com estudiosos
da história da economia política, que procuravam interpretar as relações de produção na agricultura
brasileira. Dentre eles estão Jacob Gorender, Darcy Ribeiro e Roberto Simonsen. A partir dessas
interpretações, Stedile (2005) dividiu em quatro períodos o estudo da questão agrária no Brasil, e, em
todos, há indícios de que as transformações da sociedade brasileira sofreram interferências de interesses
externos.
Em síntese, o primeiro período de estudo da questão agrária vai de 50.000 a. C. a 1500 d. C. A
História registra que as populações que habitavam nosso território viviam em agrupamentos sociais,
famílias, tribos, clãs, a maioria nômade, dedicando-se basicamente à caça, à pesca e à extração de frutas,
dominando parcialmente a agricultura.
O segundo período é marcado por mais de 300 anos de escravidão e o controle das terras brasileiras
pela Coroa Portuguesa. A monarquia repassava o direito de uso da terra ou “concessão da terra”, como
herança, de acordo com interesses, confiança e compromisso com a produção para o mercado europeu. A
distribuição de terras era utilizada como meio de ocupar as áreas desabitadas, para facilitar o controle
do território, e a entrada dos “capitalistas coloniais” com o modelo plantation, na produção.
Desse modo, toda existência primitiva no território brasileiro foi aniquilado e transformado em
“riqueza capitalista”, em “acúmulo de mercadoria” (Marx 1990 apud Carcanholo, 2011, p. 29).
Conforme estudiosos da escravidão no Brasil, o negro era a principal mercadoria da época. Emília Viotti
da Costa, em seu livro Da senzala à colônia, lembra que “a escravidão converteu o escravo em
mercadoria”. E enfatiza, “o trabalho que se dignifica na medida em que se resume no esforço do homem
para dominar a natureza na luta pela sobrevivência, corrompe-se quando se torna resultado de opressão,
de exploração” (Costa, 1982, p. XI). Nesse sentido, o trabalho como principal mediação na
diferenciação entre homem e animal reduz-se a uma estrutura deformadora.
O terceiro período pode ser caracterizado por pressões inglesas à Coroa, pelo movimento da
Revolução Industrial, em 1748, que exigia o fim da escravidão, e a substituição da mão de obra escrava
pelo trabalho assalariado. A elite dominante começa a criar mecanismos de exclusão para inibir a
integração dos negros na sociedade, como pessoas livres e, principalmente, para impedir que os negros
“ex-escravos” se tornassem posseiros das terras.
Um traço marcante desse período foi a promulgação da primeira Lei de Terras (n. 601), de 1850, que
constituiu a propriedade privada da terra no Brasil, e sua transformação em mercadoria. E isso contribuiu
para enrijecer ainda mais a concentração da propriedade da terra. Para José de Souza Martins (1990), foi
a primeira vez em que o Estado assume um papel importante de decisão, no entanto, em favor de sua
própria estrutura.
Com a aprovação da Lei de Terras, com as pressões abolicionistas externas e com as revoltas dos
escravos termina o modelo de produção agroexportador e escravista (1888). Começa um novo ciclo de
imigração de pobres europeus para o trabalho nas lavouras, enganados com a falsa promessa de acesso a
terras férteis. Esse período caracteriza-se pela subordinação econômica e política da agricultura à
indústria.
As oligarquias rurais continuam latifundiárias, a burguesia industrial (originária das oligarquias do
café e do açúcar), representante do poder político, faz aliança com as oligarquias rurais, com intenção de
garantir a produção para exportação e gerar condições para a importação de máquinas e tratores,
“fechando o ciclo de necessidade do capitalismo dependente” (Martins, 1990, p. 26).
Enquanto isso, os negros, indígenas e os pobres em geral começam um processo de migração para as
terras mais distantes, dando origem às comunidades tradicionais, os quilombos, as comunidades
ribeirinhas, ocupando principalmente todo o interior do território do Nordeste, os Estados de Minas
Gerais e de Goiás. No contexto espaço/territorial da cultura sertaneja nesses Estados, foram se
constituindo raízes em um sistema sociocultural, econômico e político que, por décadas, deu
sustentabilidade a esses grupos sociais, criou processos que levaram à formação de identidade, de
coesão e sentimento de pertencimento ao território.
De modo específico, ao observar a caracterização histórica dos povos sertanejos e do nordeste de
Goiás, que correspondem às cidades de Formosa, Planaltina, Luziânia, Alto Paraiso, São João da
Aliança e Cavalcante pode-se perceber que depois da chegada do capital, ocorreu um grande
desenraizamento e desconstrução de todo um processo de existência, com a migração desses sujeitos para
as periferias da nova capital. O que Vicente V. da Silva, em sua tese, chamou de “euforia modernista” ou
a “ocupação de Brasília dentro de um sertão” (2012. p. 26).

Os efeitos da modernização conservadora
Um dos efeitos imediatos da modernização conservadora é o surgimento de um setor industrial
vinculado à agricultura para a produção de máquinas, fertilizantes, venenos e a implantação da indústria
de beneficiamento chamada de agroindústria. Com esse modelo, nasce também uma burguesia agrária,
que procura modernizar a exploração agrícola do trigo, algodão, café e cana e destiná-la ao mercado
interno (Graziano, 1982).
Com a submissão da agricultura à indústria, ocorre uma mudança nas formas de produção, mas a
estrutura fundiária permanece em estado estacionário. A concentração da propriedade da terra se
cristaliza com a concentração dos outros meios de produção (máquinas, ferramentas e insumos), induz e
obriga os camponeses ao êxodo rural, e a vender sua força de trabalho nas fazendas para viabilizar o
processo de capitalização do campo e o modelo hegemônico de sociedade urbana.
Desse modo, não alavancou as bases materiais da sociedade e continuou a explorá-la. Houve um
aumento significativo na produção com a introdução de novas técnicas, mas as condições de trabalho nas
indústrias, sazonal das grandes fazendas de monoculturas e na construção civil, não permitia que os
brasileiros pobres se inserissem no mercado, com possibilidade de elevação econômica e social.
Outro fator importante no processo de modernização da agricultura brasileira é que, sem a inferência
do Estado, ela não poderia existir, pois ele criou as condições para a internalização da produção de
máquinas e insumos. Criou um sistema de pesquisa e extensão voltado para impulsionar o processo de
modernização, e as condições financeiras para viabilizar este processo. Por exemplo, foi criada em 1971
a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que desenvolveu pesquisas para a adaptação
de variedades às condições climáticas e em solos de cerrado, como foi o caso da soja. Foi criada
também, na mesma década, a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) para
disseminar, através de técnicos agrícolas, tais variedades de sementes e outras informações entre os
agricultores.
A nossa entrada na “mundialização do mercado foi precedida por um esforço industrialista nacional
que ficou incompleto” (Kurtz, 1993). O alto padrão produtivo afastou as populações de suas construções
culturais, para criar a força de trabalho moderna. E, à medida que surgem novas tecnologias, essas
populações são descartadas, e não tendo mais para onde voltar, criam um cenário de marginalização em
contraste com o que há de mais “moderno”.
Eduardo Galeano afirma que a história do desenvolvimento da América Latina está unificada com a
história do desenvolvimento mundial. Mas, sobretudo, numa relação entre avanços e atrasos, próprias da
inserção para exploração. A unificação da América Latina com o desenvolvimento mundial pode ser
entendida quando esta se torna importante fonte de recursos naturais, de variedades culturais.
El atraso y la miseria de América Latina no son otra cosa que el resultado de su fracaso. Perdimos; otros ganaron. Pero ocurre que
quienes ganaron, ganaron gracias a que nosotros perdimos: la história del subdesarrollo de América Latina integra, como se ha dicho, la
história del desarrollo del capitalismo mundial. Nuestra derrota estuvo siempre implícita en la victoria ajena; nuestra riqueza ha generado
siempre nuestra pobreza para alimentar la prosperidad de otros: los imperios y sus caporales nativos. En la alquimia colonial y
neocolonial, el oro se transfigura en chatarra, y los alimentos se convirtieron en veneno (Galeano, 1978, p. 5).
Quando transferimos essa lógica para um contexto particular, no caso da entrada do Brasil no sistema
de desenvolvimento mundial, talvez se possa afirmar que a relação mais próxima que sempre tivemos foi
a de servir como canal de exploração consentida. Desde o período colonial, com a economia escravista e
agroexportadora, depois com o processo de modernização conservadora, e nos dias atuais, o controle
imperativo do agronegócio que promove interesses externos sob as bases estruturais do Estado.

Reforma Agrária sem mudança estrutural e hegemonia do agronegócio
A década de 1960 apresenta avanços em relação ao debate da questão agrária e possíveis propostas
para a resolução de suas problemáticas. Vários seguimentos sociais se dispõem a criação de programas e
teses em busca de respostas promissoras. No entanto, o mais promissor foi a organização política dos
movimentos sociais, presentes na história, com visão clara do adversário.
Os principias movimentos, dentre outros foram, as Ligas Camponesas, o Movimento dos Agricultores
Sem Terra (Master), União de Lavradores Trabalhadores Agrícolas (Ultab), Movimento de Educação de
Base (MEB), ligado à Igreja Católica.
Em 1964, o país é surpreendido pelo golpe militar e, no mesmo ano, foi aprovada a primeira lei de
Reforma Agrária no Brasil, o Estatuto da Terra, Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964, promulgada
por Humberto Marechal Castelo Branco, um dos comandantes do golpe. Para Graziano (1982), o Estatuto
da Terra visava estabelecer uma política de desenvolvimento rural para o país, representou uma medida
progressista para a época, contrariando os interesses dos latifundiários apoiadores do golpe, no entanto,
preservando o direito à propriedade da terra.
Apesar da criação do Estatuto da Terra, todos os movimentos que, na década de 1960, lutavam contra
a concentração da propriedade da terra e por sua democratização, foram perseguidos e aniquilados. As
Ligas Camponesas deixaram de ser organizações para se tornarem movimento camponês, que contagiou
grandes massas rurais e urbanas, com ampla repercussão nacional e internacional. Principalmente, por
criar uma consciência em favor da Reforma Agrária. E, por isso, foram violentamente combatidas sob
fortes pressões internas e externas, como: intimidação, ameaças, espancamento ao morador que fosse
encontrado com a carteirinha da Liga, expulsão do morador que se evidenciasse como reivindicativo,
destruição dos roçados de subsistência através da invasão local pelo gado, invasão e destruição de
casas.
Os movimentos que se constituíram depois, como o MST, e outros, continuam sofrendo perseguições.
Dessa vez, além da repreensão policial pelo Estado, a mídia é responsável por criar um imaginário
negativo de que são invasores, baderneiros e até são acusados de formação de quadrilha, por serem
vistos como ameaça à ordem da propriedade.
Temos presenciado que a invisibilidade da democratização ao acesso a terra continua sendo um
problema latente. Desde a Lei de Terras de 1950, muitas famílias padecem à espera, por décadas, em
acampamentos, e outras em assentamentos no abandono das políticas públicas e das promessas
governamentais.
Depois do Golpe, surgiram outras propostas de resolução para os problemas agrários, como o
Programa Agrário do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1989. Esse programa estabelecia mudanças na
política da Reforma Agrária, e a defendia como meio indispensável para a construção de uma sociedade
mais justa, mediante o rompimento do monopólio, do padrão produtivo da agricultura e da quebra do
poder exercido pelos grandes proprietários.
Em 2002, com a vitória eleitoral do PT, a sua proposta de programa agrário, como parte do projeto de
desenvolvimento nacional, foi esquecida e não se falou mais em Reforma Agrária como forma de acabar
com a concentração de terras. Mas, em contrapartida, o governo passou a adotar expressões como
“ambiente rural”, exportação e consumo de produtos agrícolas e seus derivados, conciliar a necessidade
de alimentar a população com a produção de excedentes, incentivar a mecanização e criar ações para
reduzir a pobreza. Haja vista que a proposta de Reforma Agrária coordenada pelo professor Plínio de
Arruda Sampaio, que previa assentamento de 1,4 milhão de famílias foi ignorada pelo presidente Lula,
que se comprometeu com o assentamento de cerca de 400 mil famílias. Sinal da falta de prioridade da
pauta é o fato do quarto governo consecutivo do PT se contentar com a promessa de assentamento de
apenas 120 mil famílias acampadas, até 2018.
Um aspecto marcante em nosso país é que vivemos de reformas políticas, agrárias, constitucionais e
nunca mudanças estruturais. Depois do golpe militar, se cristalizou no interior do Estado uma hegemonia
política, que controla os interesses do capital no Brasil. Está articulada pela concentração da terra, do
controle dos meios de comunicação e tecnológicos, de todos os espaços materiais e simbólicos. Daí
haver uma realidade agrária que cria um imaginário de que o país está no topo de sua modernidade
produtiva. O poder, no Brasil, é constituído pela união entre domínio da terra, dos meios de
comunicação, do poder político executivo e legislativo, e mais recentemente, do apoio direto do capital
transnacional.
Para entendermos a complexidade da atual realidade agrária do Brasil, denominada por hegemonia do
agronegócio, que foi se constituindo juntamente com as transformações da sociedade, torna-se necessário
entendermos que hegemonia é um conceito formulado por Antônio Gramsci para explicar as formas
específicas da produção e organização do convencimento em sociedades capitalistas, sob a dominação
burguesa, a produção da conformidade social por meio da organização e atuação da sociedade civil,
voltada para o convencimento, ao lado da persistência das formas coercitivas do Estado (Pronko e
Fontes, 2012).
E as definições para agronegócio, encontradas no Dicionário da Educação do Campo (Leite e
Medeiros, 2012, p. 79), referem-se ao termo como de uso relativamente recente em nosso país, e que
guarda correspondência com a noção de agribusiness, cunhada pelos professores norte-americanos John
Davis e Ray Goldberg, nos anos 1950. Para os autores, o conceito foi criado para anunciar as relações
econômicas (mercantis, financeiras e tecnológicas) entre o setor agropecuário e aqueles situados na
esfera industrial (tanto de produtos destinados à agricultura quanto de processamento daqueles com
origem no setor), comercial e de serviços.
Para os precursores do termo agronegócio, tratava-se de criar uma proposta de análise articulada que
superasse os limites da abordagem setorial então predominante. Ainda, conforme Leite e Medeiros
(2012), o vocábulo agribusiness foi traduzido inicialmente pelas expressões agroindústria e complexo
agroindustrial, que procuravam destacar a inovação da técnica de modernização e industrialização da
agricultura, que se intensificou nos anos 1970. Diferentes termos também foram usados para destacar o
caráter sistêmico e não apenas setorial da produção agrícola: sistema agroalimentar, cadeia
agroindustrial, filière etc.
Na década de 1990, o termo agribusiness começou a ganhar espaço, mas, já no início dos anos 2000, a
palavra agronegócio foi se generalizando, tanto na linguagem acadêmica quanto na jornalística, política e
no senso comum, para referir-se ao conjunto de atividades que envolvem a produção e a distribuição de
produtos agropecuários, ou seja, o gerenciamento de um negócio que envolve muito mais que uma planta
industrial ou um conjunto de unidades agrícolas, é uma das tônicas da ideia de “agronegócio”.
Agronegócio também se explica como um complexo sistema de relações de produção agropecuária,
industrial, mercantil, tecnológico, financeiro e ideológico.
E, conforme Graziano (1982), esse sistema é uma transição do programa de valorização do aumento da
produtividade agrícola, chamado revolução verde, e por meio de uma tecnologia de controle da natureza
de base científico-industrial, domina a concentração da terra, o poder político e os meios de
comunicação.
Horácio Martins de Carvalho (2004, p. 198) discute o conceito de agronegócio como o conjunto de
empresas capitalistas que direta ou indiretamente estão relacionadas com os processos de produção, de
beneficiamento, de industrialização e de comercialização de produtos e subprodutos de origem agrícola,
pecuária, florestal e agroextrativista e, ainda, segundo Carvalho, as mercadorias são denominadas
commodities.
No estudo da questão agrária no Brasil, Stedile (2012) observa que apenas 1% dos proprietários
controlam 46% de todas as terras, num elevado índice de concentração de produção agrícola em que
apenas 8% dos estabelecimentos produzem mais de 80% das commodities agrícolas exportadas, ou seja,
80% das terras brasileiras são utilizadas para produzir milho, soja, cana de açúcar e pecuária extensiva.
Em relação à concentração do poder político, o agronegócio tem representação pluripartidária no
Congresso Nacional. A bancada ruralista nunca escondeu sua posição, frente ao domínio das terras e
interesses em medidas governamentais. Como por exemplo, defender a propriedade privada, a expansão
capitalista na agricultura, e as mudanças no código florestal, contrariando os interesses do povo
brasileiro.
O agronegócio no Brasil se expande de maneira acelerada, e o seu sucesso é divulgado através de
propagandas veiculadas pelos grandes órgãos da imprensa (Rede Globo). Regiões como o Centro Oeste
e Nordeste são apresentadas como se estivessem saindo do atraso social e econômico, e entrando na mais
nova era da modernidade, em que não há lugar para contradições. Suas virtudes econômicas, produto da
sustentação do Estado e da Sociedade, estão totalmente conformadas para o lucro dos capitais
correspondentes e mais dependência externa.
Guilherme C. Delgado, no artigo “Modelo de produção agrária no Brasil”, publicado em 2012, refere-
se ao atual estágio de nossa dependência externa como um modelo que apela para a superexploração de
recursos naturais, concentração fundiária e “descarte” de populações campesinas (quilombolas,
indígenas, ribeirinhas etc.), mobilizados para suprir, com produtos primários exportáveis, o déficit da
indústria e de serviços e responder ao enorme desequilíbrio externo gestado pela própria especialização:
A agropecuária é capturada pelo comércio mundial e sua expansão se dá de duas maneiras: 1) pela expansão horizontal das áreas de
lavoura, especialmente nos últimos 10 anos, que vem crescendo em média 5% ao ano; e, 2) pela intensificação do pacote tecnológico da
revolução verde. Isto explica a duplicação do consumo interno de agrotóxicos no período de 2003-2009. As vendas cresceram 130%
sem nenhum componente de inovação técnico industrial ou de pesquisa de ponta. São elevados e insustentáveis os custos sociais desse
modelo de expansão agrária, assim como na extração do petróleo, que tem como característica a superexploração da natureza (Delgado
apud Giraldo, Rigotto e Carneiro, 2012).
Do mesmo modo, Carvalho (2013) afirma que o “capital financeiro no campo procura aperfeiçoar seus
lucros ao incrementar seus investimentos em grandes empresas capitalistas a partir de estratégias de
negócios nos setores agroalimentar e florestal e na aquisição e/ou arrendamento de terras” (Carvalho,
2012, p. 31) por vias da espoliação que converge para a desnacionalização do agrário brasileiro
assistida pelo Estado.
O agronegócio tem alcançado efeitos financeiros significativos que lhes são altamente favoráveis
apesar da escolha pela oferta e comercialização de produtos de consumo alimentar e da absoluta
indiferença com a dominação exercida pelas grandes empresas capitalistas transnacionais nas terras
brasileiras. Essa apropriação massiva do capital no agrário brasileiro “foi acompanhada de sua
exploração para fins de produção de commodities para a agroexportação” (Carvalho, 2013, p. 37).
Assim, no grupo dos produtos de origem rural, a produção da soja e seus derivados lideram na frente
de produtos como carne e couros, madeira, celulose, papel, açúcar e álcool. Para Carvalho (2013),
ocorre a chamada “oligopolização da oferta e comercialização de produtos agropecuários que é feita por
apenas dez empresas transnacionais (Bunge Alimentos, Cargill, Souza Cruz, Sadia, Brasil Foods,
Unilever, Copersucar, JBS, Nestlé e ADM)” (Carvalho, 2013, p. 37). Essa concentração econômica
direciona tanto a ocupação das terras quanto os produtos que serão plantados. Convém destacar que o
mercado global de commodities é controlado também por dez grandes empresas transnacionais: Vitol,
Glencor, Trafigura, Cargill, Gunvor, ADM, Noble, Mercuria, Bunge e Philbro.
A economia brasileira está atrelada ao capitalismo internacional, o que faz do Brasil um país
regressivo e dependente, dentro de uma realidade econômica voltada para um contexto “agromineral
exportador tendo como resultados negativos o de contribuir para a desindustrialização da economia”
(Carvalho, 2013, p. 36).
Para Carvalho (2013), a lógica dominante da apropriação privada e controle da terra no Brasil
ocorrem em dois processos que se articulam: um é a territorialização do monopólio, no sentido das
empresas produzirem em terra própria a maior parte da matéria-prima que necessitam; e o outro processo
é a monopolização do território, no caso da produção de grãos ocorre uma aliança entre a burguesia
mundial e a burguesia brasileira que pode ou não ser proprietária de terras.
A hegemonia econômica brasileira descarta qualquer possibilidade diferente daquela que visa o lucro
por via da especulação. Diante disso, a Reforma Agrária é considerada impertinente, torna-se
cristalizada a discriminação social dos camponeses e indígenas que ainda são tidos como resíduos
culturais da hegemonia dominante no Brasil.

Conclusão
Os debates no desenvolvimento da história sobre problemas econômicos da terra demonstram que não
há novidades em relação à questão agrária no que diz respeito à propriedade e uso da terra. Depois do
período monopolista, a terra passou para as mãos dos latifundiários através da Lei de Terras de 1850;
mais tarde, os latifundiários tiveram garantido o direito de propriedade com o Estatuto da Terra, em
1964. Com o processo da revolução verde, aumenta a produção de monoculturas, que depois se
transforma no complexo modelo de produção do agronegócio.
Isso não significa, porém, que os povos que lutam pela terra estão estagnados frente ao projeto
perverso e atual do agronegócio ou em qualquer outro momento o estiveram. Os povos do campo sempre
tiveram consciência de que a terra é um bem comum da humanidade e que, por isso, deveriam lutar pela
igualdade de acesso. Grandes mobilizações ocorreram ao longo da história desse país. A começar pelos
motins dos escravos, o Partido Comunista Brasileiro, as Ligas Camponesas, e a luta atual do Movimento
Sem Terra.
A questão central, nas problemáticas da questão agrária, no Brasil, é a necessidade de mudanças
estruturais, a começar pelo Estado que dá sustentabilidade às reproduções hegemônicas no tempo e no
espaço. Já entendemos que, para o nosso interesse de classe trabalhadora, o modelo de democracia
representativa está falido, só poderá existir mudança de baixo para cima, revirando o passado para
entender o presente e o futuro, porque na nossa condição de dependência atual, ou repensamos nossas
práticas ou seremos dizimados em escala global.

Referências bibliográficas
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Esse trabalho é parte da pesquisa monográfica orientada pelo Professor Rafael Litvin Villas Bôas, do Curso de Pós- Graduação
Residência Agrária Matrizes Produtivas da Vida no campo da UnB-Universidade de Brasília.

A FORMAÇÃO DOS EDUCADORES DO CENTRO
MUNICIPAL INTEGRADO DE EDUCAÇÃO DO
CAMPO VALMOR COPATI: ARTICULAÇÃO ENTRE
PRÁTICAS ESCOLARES E VIDA CAMPESINA1

Rosana Maria Breier Neideck e João Batista Pereira de Queiroz

Introdução
Os sujeitos do campo são parte do povo brasileiro e têm um profundo sentimento de respeito e
pertença à terra, e é nesta ligação do sujeito com a terra que se caracterizam como povos do campo.
Caldart (2002) destaca a existência de uma relação social específica deste povo, assim como uma
identidade diferente que se estabelece no seu modo de vida, a partir de seu relacionamento e trabalho
com a terra.
Segundo Arroyo (2012), na relação entre o trabalho e a terra, encontram-se os sujeitos do campo, que
podem ser definidos como sendo os povos da floresta, agricultores, quilombolas, povos indígenas,
pescadores, camponeses, assentados, ribeirinhos, lavradores, extrativistas, roceiros, agregados, boias-
frias e sem terra.
Povos de luta e resistência que, independentemente de sua localização geográfica, têm em comum o
vínculo com a terra e suas relações de trabalho com ela. São estes sujeitos de diversas etnias, gêneros,
raças e culturas, diversas faixas etárias: idosos, adultos, jovens e crianças que vivem ou viveram no
campo e foram desarraigados, pelo modelo capitalista de produção, de sua vivência com a terra e que, de
alguma forma, lutam para retornar ao campo, às suas raízes, ao seu mundo de trabalho e de vida.
A educação do campo se dá a partir desses diferentes sujeitos que a compõem e, embora diversos,
esses sujeitos se juntam nas lutas pelos seus direitos, dentre os quais podem ser destacados: a terra, a
moradia, ao acesso às linhas de crédito, acesso ao conhecimento, à escola e a melhor qualidade de vida.
Os educadores do campo fazem parte deste coletivo de diferentes sujeitos que lutam pela igualdade no
tratamento e na formulação de políticas públicas, voltadas ao atendimento e fortalecimento dos povos
campo e que, no entanto, historicamente lhes vem sendo negadas.
É nesse processo de luta e de formação que foi construído este trabalho, tendo como objetivo analisar
como vem ocorrendo o processo de formação continuada e a relação com a vida no campo dos
educadores do Centro Municipal Integrado de Educação do Campo Valmor Copati.
Para o desenvolvimento deste estudo, foi realizada pesquisa bibliográfica para fundamentação teórica,
e utilizada metodologia de análise de processos pedagógicos, vivenciados pelos educadores do referido
Centro, através de observação participativa em algumas atividades práticas em sala de aula, e análise de
entrevistas realizadas com educadoras durante as duas formações continuadas, realizadas no ano de
2014.

Educação do Campo e formação de educadores do campo.
Na sociedade capitalista em que vivemos, os educadores têm sua formação inicial e continuada dentro
de uma perspectiva de educação bancária. A escola capitalista, com sua metodologia, interfere na
aprendizagem dos sujeitos e de maneira intencional na formação de seus educadores, que são preparados
para serem transmissores de conhecimento a educandos passivos, sendo apenas receptores de
informações, e que não são levados a pensar criticamente na realidade vivenciada por eles e pelas suas
comunidades.
Caldart (2002) aponta o “tratar” do poder hegemônico sobre os povos do campo como sendo uma
oferta de “educação domesticadora”, pois as políticas públicas não são pensadas na formação dos povos
do campo como uma formação dos sujeitos do campo, mas sempre foi pensada em uma educação para
eles, ignorando o seu potencial político e pedagógico.
Devemos refletir que a identidade dos sujeitos é construída no dia a dia da vida no campo, na sua
maneira de lidar com a terra, e que estes sujeitos da educação fazem parte da organização da comunidade
em que vivem e dos movimentos sociais que a compõem. Então, a sua formação deve ser pensada com
eles.

Os educadores do Centro Municipal de Educação do Campo Valmor Copati

O Centro Municipal Integrado de Educação do Campo Valmor Copati está localizado em um
assentamento do município de Sinop/MT. A colonização de Sinop foi feita por iniciativa privada, na
década de 1970, pela Colonizadora Ênio Pipino, com apoio dos grandes empresários. Sinop é uma sigla
para “Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná”.
O Assentamento Wesley Manoel dos Santos, conhecido como Gleba Mercedes V, local em que se
encontra a escola, foi criado no Governo Fernando Henrique Cardoso e desapropriado, em 1997, para a
Reforma Agrária. Inicialmente pertencia à Empresa Mercedes Bens do Brasil
No assentamento, encontram-se duas escolas que atendem estudantes do 1º ano do Ensino Fundamental
até o 3º ano do Ensino Médio e EJA. Uma delas é a Valmor Copati, que oferece aos moradores
camponeses uma educação no campo e está localizada em um dos núcleos do assentamento. No entanto,
não deixou de ser uma escola urbana na sua maneira de planejar as aulas, de avaliar e de se relacionar
com a comunidade.
Algumas educadoras moram há mais de uma década no assentamento, e são as primeiras educadoras da
comunidade. Conhecem as dificuldades vividas pela comunidade e o perfil dos alunos, suas dificuldades,
suas ansiedades, suas expectativas para o futuro. Mas quando questionadas sobre quais os maiores
desafios de serem educadoras em uma escola do campo, a maioria relatou ter dificuldade em relacionar o
conhecimento teórico e o dia a dia do aluno, e de trabalhar os problemas da comunidade em sala de aula.
Todos os educadores são proprietários de lotes no assentamento. Então, se autodefinem como
professores/agricultores, que além das atividades ligadas ao magistério, se dedicam a atividades do
campo, seja com a pecuária, seja com a agricultura. As mulheres, com uma jornada ainda maior, são
encarregadas das atividades domésticas e dos cuidados com os filhos.
Essa situação de contrato temporário, em que se encontram dez dos 12 educadores do Centro Valmor
Copati, é desmotivadora, pois não lhes permite desenvolver um trabalho de médio e longo prazo, além de
não conquistarem autonomia política na medida em que a condição do contrato provisório os deixa
vulneráveis nos momentos de avaliação e renovação de contrato. Outro ponto negativo que percebemos
na aprendizagem do aluno, com a incerteza da contratação e da rotatividade da atribuição das turmas, é
que o educador, muitas vezes, não consegue dar continuidade no desenvolvimento de projetos dentro da
turma do mesmo ciclo.

A formação inicial dos educadores
A formação inicial de dez educadores do Valmor Copati se deu na modalidade a distância, devido à
impossibilidade de frequentar uma graduação presencial. O Assentamento fica localizado cerca de 90 km
do centro da cidade de Sinop. A modalidade a distância foi à única possibilidade de conseguirem a tão
desejada graduação.
Foi uma luta para nós, uma correria mesmo, todo fim de semana íamos de ônibus, que era precário, até a cidade; saíamos sexta-feira
assim que acabava a aula, na época eram eu e mais quatro professoras que cursavam o mesmo curso, nós dormíamos na escola
Uilibaldo Vieira Gobbo [escola que mantinha as salas anexas do assentamento] e íamos de circular no sábado de manhã até a
faculdade, almoçávamos ou apenas lanchávamos no centro da cidade; ainda no sábado, a tarde, voltávamos para a gleba, chegávamos
no começo da noite, cansadas e cheias de poeira; no domingo, tínhamos as nossas obrigações de dona de casa e, na segunda, começava
a rotina novamente, não tínhamos tempo de descansar; foi muito sofrido, mas conseguimos e sentimos orgulho de termos conseguido
terminar a faculdade (Entrevista A).
A busca pela formação inicial exigiu um grande esforço, uma luta, um desejo por parte desses
educadores do campo de melhorar seus conhecimentos, melhorar a qualidade de vida, e era uma
necessidade para garantir seu emprego no ano seguinte. Era também garantia de aumento salarial quando
concluíssem a graduação. Entre os dez educadores entrevistados, oito cursaram sua formação inicial
quando lecionavam nas escolas do assentamento.
A preocupação por uma formação que atenda às especificidades dos alunos do campo foi constatada
durante as entrevistas em que uma educadora, que leciona para as turmas do 6º ano ao 3º ano do ensino
médio, menciona:
O maior desafio é trabalhar com uma escola integral do campo e não ter nenhum curso ou formação na área, e a falta de interesse dos
órgãos competentes em investir numa escola do campo, proporcionando ao educando um estudo voltado à sua realidade. Mas, para isto,
precisamos de mais formação (Entrevista D).
Pela afirmação dos educadores, percebe-se, que existe uma falta de intencionalidade do poder público
em fazer cumprir, ao menos, o que já vem sendo estabelecido nos próprios documentos do município,
quanto à oferta de formação continuada que capacite os educadores.
Porém, a formação dos educadores deve ser pensada para além do sentido de capacitação, fazendo-se
necessária uma formação de consciência política, o que se faz dentro dos movimentos sociais, dentro das
lutas enfrentadas diariamente pelos sujeitos da comunidade. Infelizmente, a realidade enfrentada pela
sociedade é de que a escola serve como controle social, isto é, a educação formal está firmada como
fonte de conhecimento ligada ao controle de classes e relacionada aos meios de produção.

Formação continuada dos educadores do C.M.I.E.C. Valmor Copati no ano de 2014
No ano de 2014, foram realizadas três formações continuadas na escola C.M.I.E.C. Valmor Copati: O
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, realizado por quatro educadoras das séries iniciais e
ofertado pela Secretaria Municipal de Educação; o Aperfeiçoamento em Educação do Campo – UAB
(Universidade Aberta do Brasil), cursado por cinco educadoras e o Projeto Sala do Educador, que teve a
participação de oito educadores. Esta última formação foi organizada pela coordenação da própria
escola, com apoio do Centro de Formação e Atualização de Professores2 (Cefapro).
O Programa Nacional pela Alfabetização na Idade Certa foi criado na tentativa de alfabetizar os alunos
até, no máximo, os oito anos de idade. A formação dos educadores alfabetizadores é o ponto central na
criação do Pacto, que vê a importância da formação como momentos de reflexão sobre a prática da sala
de aula, do processo de alfabetização e conta com parcerias para trazer a formação aos educadores.
O Curso de Aperfeiçoamento – Extensão em Educação do campo foi realizado na modalidade à
distância, ofertado pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) através dos polos de Cuiabá,
Colíder, Juína e Ribeirão Cascalheira. Essas cidades integram o Sistema Universidade Aberta do Brasil
(UAB), tendo como finalidade a expansão da educação superior no Brasil, contando com o apoio da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e do Ministério da
Educação (MEC).
Pedagogicamente, o curso foi organizado em quatro áreas de conhecimento, por sua vez, organizadas
em sete guias de estudos. Os guias de estudos eram apresentados em “Salas Ambientes Virtuais”, sendo
que cada guia de estudo trazia os objetivos, as metodologias e as explicações do passo a passo para
realização das atividades a serem concluídas nos ambientes virtuais.
Neste momento, focalizarei apenas no guia de estudo 5, que tinha por objetivo ajudar o professor a
escutar e ler suas práticas pedagógicas, vivenciadas nos espaços e tempos do campo, para assim
construírem um projeto de intervenção.
O projeto de intervenção constitui um plano de aplicação/experimentação pedagógica, com foco em um problema da prática educativa,
visto a partir da relação teoria prática abordada em projeto vivencial (Escola de Gestores Projeto Vivencial, doc. III, p. 10, 2007).
O projeto de intervenção era uma atividade obrigatória do curso, que deveria ser construído
coletivamente com todos os educadores da escola e tendo como eixo uma problemática vivenciada pela
comunidade. Foi considerada como a maior problemática a construção da usina hidrelétrica UHE-Sinop.
A construção deste projeto se tornou um momento de aprendizado, focado na reflexão dos problemas da
comunidade e as práticas pedagógicas em sala de aula, oportunizando um movimento teórico-prático na
busca de uma ação intencional de intervenção na realidade.
A partir das leituras do guia de estudo e da sugestão do passo a passo, a serem analisados durante a
construção de um projeto de intervenção, as cinco educadoras cursistas, consideraram ser melhor opção,
no momento, reformular um projeto que já estava sendo desenvolvido na escola, com os alunos do 6º ano
do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio, o Projeto História e Memória3, por perceberem que o
tema do projeto em andamento era a questão mais gritante que a comunidade vinha passando, com as
incertezas quanto ao futuro dentro do assentamento, frente ao empreendimento hidrelétrico. Então, ele foi
reformulado e adaptado para ser desenvolvido por toda a escola, desde o 1º ano do ensino fundamental
até o 3º ano do ensino médio.
Além do Projeto História e Memória, outros dois projetos estavam sendo desenvolvidos na escola, o
Projeto Cultivando Sabores e o Cine Clube, os quais foram formulados, inicialmente, por duas
educadoras que estão cursando uma formação pelo Residência Agrária – Matrizes da Vida Produtiva do
Campo – UnB, dentro da Escola Itinerante de Formação Cultura e Resistência. Os três projetos
pedagógicos estavam envolvendo os educadores, alunos e comunidade em geral do assentamento, porém,
neste trabalho, o foco será dado à articulação da formação do Pacto e o curso de aperfeiçoamento em
educação do campo.
As atividades foram pensadas e executadas pelos educadores por acreditar que elas pudessem levar o
aluno ao reconhecimento de que eles fazem parte da história do assentamento e as ações, os problemas
enfrentados pelos seus pais, refletem em suas vidas e muitas decisões tomadas agora, como a construção
de uma usina hidrelétrica no município em que moram, podem mudar sua realidade, em consequência sua
história.
Pensando nisto, optou-se por primeiro trabalhar com o tema memória, em todas as salas do 1º ano do
ensino fundamental ao 3º do ensino médio, para melhor compreensão sobre como se constrói e como se
registra um texto de memória. Em algumas turmas, os textos dos alunos serviram como base para as
educadoras trabalharem outros conteúdos e conceitos. Também se formou um pequeno livro de história e
memória dos alunos e seu dia a dia. Os textos foram digitados pelos alunos na sala de laboratório da
escola.
Foi a partir dos textos de memórias dos alunos, em que ficou apresentado o local onde moram, que as
educadoras trabalharam com atividades ligadas à formação do Pacto, através de atividades de
localização espacial, desenhos de mapas com legendas, para quê os alunos se reconhecessem no espaço,
partindo do lugar que vivem para o todo, o mundo. Iniciou-se, então, a conexão entre as formações
continuadas.
Com os estudos do caderno 5, do Pacto, sobre geometria, os educadores tiveram maior esclarecimento
sobre a importância de se trabalhar com o estudo curricular da “localização e movimentação no espaço”.
Também, ficou clara a importância de apresentar às crianças das séries iniciais diversos tipos de mapas,
como os hidrográficos, os rodoviários, mapas turísticos, mapas do próprio município, e suas
interpretações, para que servem, para que e para quem foram construídos.
Quanto ao mapa hidrográfico, a educadora solicitou aos alunos que, primeiramente, tentassem
identificar no mapa, os rios que eles passam todos os dias no ir e vir da escola. No segundo momento,
solicitou que olhassem se no mapa mostra alguma alteração na elevação do nível da água do mesmo, e o
que identifica esta elevação. Como no mapa era apresentado o nome dos proprietários em que o
alagamento atingirá, os alunos conseguiram reconhecer alguns de seus vizinhos que serão atingidos.
Em sala de aula, com os dados já levantados pelos alunos, dos rios que passam no trajeto da escola,
foi aventada a possibilidade de mudança do caminho percorrido de casa para a escola; isto será causado
devido à elevação de água de alguns rios, o que interditará a estrada. Segundo a empresa responsável
pela construção da usina hidrelétrica, em alguns lugares, onde o nível da água subirá apenas um pouco,
serão construídas pontes, mas em outras situações, novas estradas deverão ser abertas.
Foi neste momento que alguns alunos começaram a ter uma percepção da mudança pela qual a
comunidade vai passar. Aproveitando da ansiedade dos alunos em saber quem provavelmente iria mudar
de rota para a escola, a educadora solicitou que cada um desenhasse o seu trajeto de casa até a escola,
tomando alguns pontos principais como referência, podendo ser os rios, pontes e mercearias. Em seguida,
foi solicitado que desenhassem a legenda deste percurso, para que os outros alunos que olhassem o
desenho pudessem entender todo o caminho.
O resultado desta atividade foi exposto na noite da socialização do Projeto de Intervenção, para que
toda comunidade escolar também tomasse consciência das possíveis mudanças que a comunidade passará
com o desvio das rotas tão utilizadas pelos moradores. Caminhos que hoje são comuns, de rotina, como ir
à igreja, entregar o leite no resfriador da comunidade e até visitar seu vizinho, poderão ser totalmente
mudados, e esta situação causará muito desconforto e poderá até causar certas privações aos moradores.
Foram realizadas algumas entrevistas com os moradores. Esse questionário possibilitou uma
identificação do perfil dos moradores e, principalmente, seus sentimentos em relação ao assentamento, à
escola e à construção da usina hidrelétrica.
O mais preocupante é o sentimento de ansiedade e frustração que está sendo, a cada dia, construído
nos moradores do assentamento. Serão vários lotes atingidos diretamente pelo lago, o que permeia a
incerteza quanto ao local do reassentamento. Aproximadamente 40 famílias deverão ser reassentadas,
pois seus sítios serão atingidos e perderão mais de 60% da área total da propriedade. Até o momento,
ninguém sabe onde serão reassentados. Outro fator preocupante é o valor das indenizações das
benfeitorias feitas em cada propriedade. Os parceleiros também têm pouca informação sobre o quanto
receberão.
Essas situações acabam gerando uma sensação de impotência e imobilidade por parte dos moradores,
porém, o projeto de intervenção, construído pelas educadoras dentro da formação continuada,
oportunizou momentos de reflexão para os alunos, educadores e comunidade, e mostrou que somos
sujeitos de história e que essas histórias foram construídas coletivamente.
A real compreensão do mundo, da hegemonia e dos padrões de relação social em que estamos
inseridos, deve ser apresentada e discutida nos espaços escolares, pois as lutas contra-hegemônicas estão
lá, presentes no dia a dia de cada educando, educador e membro da sociedade.
Com base na análise das três formações continuadas oferecidas aos educadores do Centro Municipal
Integrado de Educação do Campo Valmor Copati, pode-se conferir que duas delas: a formação do Pacto e
o Projeto Sala do Educador se apresentaram como políticas assistencialistas, ficando restritas às análises
das práticas em sala de aula, sem levar o educador a pensar no contexto social em que o aluno está
inserido, enquanto o Aperfeiçoamento em Educação do Campo, através do projeto de intervenção,
possibilitou refletir sobre a realidade da comunidade e fez com que os educadores pensassem em
práticas educativas que fizessem uma conexão entre os conteúdos ministrados em sala com um problema
da comunidade.

Considerações finais
Temos acompanhado e vivenciado um momento da história da educação do campo brasileiro em que
vemos a sinalização de mudanças no pensar sobre os sujeitos do campo e aqueles que atuam na educação
do campo, mudanças quanto à sua formação, ao pensar de suas particularidades, sua cultura,
demonstrando que a educação não deve mais ser pensada para os sujeitos do campo, mas feita com eles.
Segundo Arroyo (2012), o processo de dominação sobre as classes populares ocultou todo processo
pedagógico nela já existente, como se, em todo período de vida da humanidade, estes coletivos não
tivessem existido como seres de cultura e saberes.
Na medida em que na história política, cultural, esses coletivos foram decretados à margem da história intelectual e cultural sua
condição de sujeito de formação intelectual, cultural, política foi ocultada, ignorada, consequentemente suas pedagogias de formação
como sujeitos sociais, culturais não foram reconhecidas na história oficial das ideias, concepções e práticas pedagógicas (Arroyo, 2012
p. 12).
Se a escola é um agente precursor de conhecimento e formação humana na sociedade, e um direito
social de todos, ela deve estar articulada com os movimentos sociais, a fim de que possa de forma real
cumprir com seu objetivo de formação crítica, valorizando os saberes do campo, sua cultura e sua
relação com a terra.
Percebeu-se, neste trabalho de pesquisa, que os educadores, através dos cursos de formação
continuada, passaram a dedicar tempo para refletir sobre suas práticas educativas e sobre os problemas
vivenciados pela comunidade. O ato de refletir em busca de mudanças fez com que se construíssem, de
forma intencional, atividades dentro de um planejamento coletivo que uniu a teoria curricular com a
prática.
Podemos considerar que a realização do Projeto de Intervenção auxiliou o educando na sua
aprendizagem e na sua formação política, pois possibilitou que ele se reconhecesse como sujeito
pertencente à História, identificando suas particularidades dentro de uma coletividade, e principalmente,
conseguiu levar os sujeitos, envolvidos no projeto, a visualizar que as ações de cada um interferem no
contexto histórico, social, cultural e econômico da sociedade.

Referências bibliográficas
ARROYO, Miguel Gonzalez. Políticas de Formação de Educadores (as) do Campo. Cad. Cedes, Campinas, 2007, v. 27 p. 157-176.
_____. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 336.
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Certa: Apresentação. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional.
Brasília: MEC, SEB, 2012, p. 40.
CALDART, R. S. Caminhos para transformação da escola: reflexões desde práticas da licenciatura em educação do campo.
São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 248. O MST e a escola: concepção de educação e matriz formativa, p. 63-100.
_____. Por uma educação do campo: traços de uma identidade em construção. Seminário Nacional por Uma Educação do Campo.
Brasília, 2002.
KOLLING, J. Edgar; CERIOLI, R. R.; CALDART, R. S. (orgs). Educação do Campo: identidade e políticas públicas. Articulação
Nacional por uma Educação do Campo. Brasília, 2002. Coleção Por Uma Educação do Campo, n. 4, p. 92.

Artigo produzido no Curso de Especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, formação em cooperação,
agroecologia e cultura com ênfase na organização social da Universidade de Brasília, sob a orientação do professor Dr. João Batista
Pereira de Queirós.

Os Cefapros são órgãos subordinados a SUFP/Seduc de Mato Grosso, mantidos em municípios compreendidos como polos estratégicos,
com a função de executar a política do Estado de formação continuada para o Ensino Fundamental, Escola Ciclada e Ensino Médio,
incluindo a Educação de Jovens e Adultos (EJA) (Silva, 2014, p. 35).

O Projeto História e Memória foi construído por alunas do curso de Residência Agrária – Matrizes Produtivas da Vida do Campo –
UnB, com a finalidade de auxiliar na construção da identidade do Assentamento Wesley Manoel dos Santos – Sinop/MT, para analisar a
trajetória de luta, resistência e realidade de vida desses assentados, com a intencionalidade de preservar essas histórias, construindo
uma memória coletiva, auxiliando assim para que essas histórias, relatos de vida, não se percam depois da desterritorialização pela qual
esta comunidade passará com a construção da usina hidrelétrica UHE-Sinop que atingirá todo assentamento, direta ou indiretamente.

MULHERES DA REFORMA AGRÁRIA DO ASSENTAMENTO PEQUENO
WILLIAN: UTILIZANDO PRÁTICAS AGROECOLÓGICAS1

Adriana Fernandes Souza


Introdução
Decorrente da militância da pesquisadora no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do
Distrito Federal e Entorno, há mais de uma década, a produção deste artigo visa trazer presente uma
contextualização das práticas das mulheres na produção da vida em um dos assentamentos da Reforma
Agrária em Planaltina, na região Norte do Distrito Federal.
O MST do Distrito Federal e Entorno se organiza e consolida, oficialmente, em 1994, e o seu território
operativo abrange mais dois Estados: Minas Gerais (Noroeste Mineiro) e Goiás (Nordeste Goiano).
Nacionalmente, o MST foi oficializado em 1984, no Rio Grande do Sul, e é um movimento social de
massa (povo), que está inserido no contexto político da luta pela terra, em sua forma organizativa,
trabalha com núcleos de base, nos quais as famílias formam grupos que, em geral, contêm dez famílias,
nos quais são debatidos os inúmeros contextos políticos e se levantam demandas nas várias dimensões,
como: na saúde, educação, moradia, infraestrutura, créditos, assistência técnica e outras para as pautas de
reivindicações.
Na sua estrutura orgânica, é formado por setores de saúde, educação, formação, produção, frente de
massa e coletivos de cultura, comunicação, direitos humanos, entre outros. O foco principal está na
valorização do ser humano na sua totalidade, em que novos homens e novas mulheres são constituídos
com novos valores sociais e coletivos, sendo que uma de suas linhas principais é o estudo e formação.
Em capítulo único, este artigo faz um recorte específico, abordando a trajetória do Assentamento da
Reforma Agrária Pequeno Willian, uma contextualização histórica e política do território de
Planaltina/DF, e aborda especificamente as experiências das mulheres deste assentamento, visibilizando-
as como construtoras do processo de luta pela terra.
Com o grupo de mulheres do assentamento, avaliamos como elas se veem na Reforma Agrária, qual
sua visão sobre as práticas agroecológicas, como percebem a diferença na relação dos homens e das
mulheres no plantio e no manejo com a terra.
Eu me vejo como parte responsável na formação do sujeito histórico, inserida na responsabilidade de que a minha conquista, esteja
ligada diretamente na conquista das mulheres da Reforma Agrária, para que outras mulheres se sintam inspiradas e não desistam da
luta. Para mim, a agroecologia está em respeitar a natureza e a terra na condição que ela está, na qual fundamentalmente a vida da
terra é mantida (Manu Camile Gomes, assentada do Pequeno Willian).
Nos assentamentos da Reforma Agrária, buscamos a construção de novos paradigmas e técnicas na
recuperação da natureza degradada e, por consequência, uma qualidade de vida para as famílias
assentadas. Desconstruindo conceitos do processo dos modelos implantados e utilizados pelo
agronegócio, investimos na organização da produção de uma alimentação saudável livre de agrotóxicos.
Nessa perspectiva, podemos afirmar que, na agroecologia, o agricultor e a sua família são sujeitos de
todo o processo, portanto, seus conhecimentos são fundamentais para sustentar o desenvolvimento dos
princípios agroecológicos.
A agroecologia representa um caminho sem volta, é vida, é uma ciência, práticas com sabedoria, com uma produção limpa livre de
agrotóxicos, um cuidar do planeta para quem gosta de fazer o bem a tudo, é ser guardião da floresta, da terra e da vida dos seres.
Trabalha com prevenção e observação, assim, descobrimos um reino encantado (Gustavina Alves da Silva, assentada do Pequeno
Willian).
Partindo dos escritos de Miguel Altieri, observa-se que a agroecologia constitui um enfoque teórico,
metodológico e científico destinado a apoiar a transição dos atuais modelos de desenvolvimento rural, de
agriculturas convencionais para estilos de desenvolvimento rural e de agriculturas com uso equilibrado
dos recursos naturais e conservação, redução de resíduos tóxicos e da poluição, reciclagem de materiais
e energias, tecnologias limpas adequadas à proteção ambiental, para que possa possibilitar um equilíbrio
ecossocial.
Para nós, dos movimentos sociais, como afirma Stedile, citando alguns dos argumentos que definem a
Reforma Agrária autêntica, esta deverá tornar a terra acessível a todos que nela queiram trabalhar,
notadamente os camponeses, as camponesas e os trabalhadores sem terra, em primeiro lugar.
É um contraponto ao modelo de desenvolvimento do sistema político vigente, com o modo de
produção agroexportador, ecologicamente devastador na forma de utilização dos recursos naturais;
politicamente excludente; socialmente potente na geração da pobreza e das desigualdades socioculturais.
Partindo do contexto de apropriação dos recursos naturais, das práticas agroecológicas e do
desenvolvimento das políticas públicas, é necessário problematizar a condição da mulher do campo, da
cidade, das florestas, as indígenas e as mulheres quilombolas, com base nas afirmativas de Altieri de que
temos de levar em conta todas as dimensões sociais, econômicas e ambientais.
Apesar disso, as desigualdades entre homens e mulheres persistem no meio rural de forma naturalizada e estruturada sob relações de
poder em bases econômicas. Historicamente, as mulheres trabalhadoras rurais ainda não foram suficientemente reconhecidas pelo
Estado e pela sociedade como agricultoras familiares e assentadas pela Reforma Agrária... Apenas recentemente, este quadro começa
a se alterar, não só com um novo quadro normativo e institucional, mas também, com ações efetivas na incorporação e efetivação dos
direitos das mulheres assentadas (Butto, Lopes, 2010, p. 21).
Na luta pela Reforma Agrária, as mulheres desenvolvem um papel imprescindível, decorrente da
organização política dos trabalhadores do campo, se inserem na busca pela transformação social, com
equidade de gênero e de direitos, pois, as conquistas e as produções nas unidades familiares são
resultado dos esforços de todos e têm que pertencer a todos.

Histórico do assentamento Pequeno Willian
O assentamento Pequeno Willian nasce a partir de uma ocupação realizada pelo MST, em
Planaltina/DF, no ano de 2004, com intenção de denunciar o uso intensivo de agrotóxicos proibidos no
Brasil, utilizados nessa fazenda da qual foram despejados em 24 horas. Parte das famílias constituíram o
acampamento Ireno Alves, em frente à fazenda da qual foram despejadas e a outra parte das famílias
ocuparam a área da Embrapa, na fazenda Sálvia, que fica localizada entre as cidades de Sobradinho e
Planaltina/DF.
A partir de negociações do MST-DF, Incra, GDF, Embrapa e a SPU, após três meses na área da
Embrapa, foi efetuada a transferência deste acampamento para a área da Polícia Rodoviária Federal a 3
km da cidade satélite de Sobradinho, às margens da BR-020.
No MST, temos a tradição de nomear os nossos espaços, homenageando com nomes de companheiros e
companheiras que tombaram (morreram) na luta. Após seis meses de permanência no acampamento Ireno
Alves, algumas pessoas passaram mal com intoxicação provocada pela água de uma mina, próxima do
acampamento, que não sabiam ser imprópria para consumo, pois, estava contaminada pelo uso intensivo
de agrotóxico da fazenda. Entre essas pessoas havia um sem terrinha de dois anos e dez meses, chamado
Willian, que no dia 28 de maio de 2005 veio a óbito. Em homenagem ao sem terrinha, mudou-se o nome
do novo acampamento, que até então era Ireno Alves II, para Pequeno Willian.
Iniciou-se a construção de um grande desafio, o projeto de um Assentamento com modo de produção
agroecológica. O acampamento Pequeno Willian permaneceu na área da Polícia Rodoviária Federal,
durante o período de janeiro/2005 a outubro/2010, quando as famílias se mudaram para a área do
assentamento que, somente em agosto de 2013, foi oficializado.
As comunidades rurais deste território, principalmente os assentamentos e acampamentos da Reforma
Agrária, sofrem com as ofensivas dos interesses das especulações imobiliárias do Distrito Federal, que
tem origens históricas nas ações das grilagens de terras, com envolvimento de forças políticas.
Enquanto isso, o governo não impede o avanço das práticas do agronegócio, dos desmatamentos com
uso intensivo de agrotóxicos próximos de bacias hidrográficas, de mananciais, APPs e com a expansão
dos condomínios de luxo e especulações imobiliárias.
Na área da Educação, a formação de nível superior e técnica, em Planaltina, há um campus da
Universidade de Brasília, com cursos voltados para formação dos povos do campo, remanescentes das
comunidades tradicionais, além do Instituto Federal de Brasília, que é vizinho do Assentamento Pequeno
Willian.

Principais problemas da comunidade

Nos dias atuais, em 2015, encontram-se os mesmos problemas que a comunidade enfrentava desde a
mudança para a área definida: políticas voltadas para favorecer a produção agroecológica, para a
Reforma Agrária priorizando as mulheres, jovens e idosos; licença ambiental definitiva do Ibran;
conclusão da implantação das infraestruturas do assentamento; mecanismos de como trabalhar a terra
para superar as questões ambientais, devido à localização na bacia do Rio São Bartolomeu; água para
garantir a produção em maior escala durante todo o ano.

Situação geográfica

O assentamento Pequeno Willian está inserido na Área de Proteção Ambiental da Bacia do Rio São
Bartolomeu, uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável, criada pelo Decreto Federal n. 88.940, de
7/11/1983, sendo transferido para o Distrito Federal em 12/1/1996, e localizado na cidade histórica,
Planaltina/DF, em frente ao Morro da Capelinha, onde acontece a tradicional via sacra da semana santa.

Mulheres da Reforma Agrária do Assentamento Pequeno Willian

Grupo de mulheres do assentamento Pequeno Willian e suas produções artesanais

No processo de luta dos movimentos sociais do campo, as mulheres da Reforma Agrária do Distrito
Federal têm forjado sua emancipação social, buscando dentro de uma perspectiva de formação da
consciência da mulher e do homem, a necessidade de libertação, que é, para ambos, uma mudança da
realidade nas questões de gênero, reproduzidas pelas desigualdades socioculturais entre homens e
mulheres.
As desigualdades seculares nas relações de gênero têm um impacto maior nas famílias do meio rural,
pois as mulheres do campo têm fortemente marcadas, em suas vidas, as características do meio em que
vive e são mais isoladas. Este é um fator predominante e sempre foi um dos maiores obstáculos à
valorização da participação feminina na luta pela terra e na história da humanidade.
Dentro da unidade familiar, existem diferentes formas de acesso e de controle sobre a terra e os demais recursos produtivos (incluindo
aqueles decorrentes de políticas públicas) e as mulheres, embora trabalhem em praticamente todas as tarefas da propriedade, muitas
vezes não participam da decisão sobre os usos dos recursos ou sobre as prioridades da família e não têm acesso à renda gerada por seu
trabalho. Nas estatísticas oficiais, as mulheres agricultoras são maioria entre os ‘membros não remunerados’ da família (Butto e
Dantas, 2011, p. 155).
Prevalece no campo uma divisão sexual do trabalho, invisibilizando as mulheres no contexto social e
desvalorizando seu trabalho. Por exemplo: se uma mulher cuida da roça, horta, bichos (como galinhas,
vendendo-as e comercializando os ovos) e acumulando com as tarefas da casa, isso é considerado, pela
sociedade, como trabalho doméstico, porém, quando é o homem que desenvolve as mesmas tarefas, fora
o serviço de casa, ele é produtor ou negociador da família.
São prejuízos étnico-socioculturais, que anulam a identidade feminina e invisibilizam as mulheres na
história. Essa realidade é encontrada também nos assentamentos da Reforma Agrária, nos quais as
mulheres são provedoras do sustento familiar, ficando nos acampamentos e garantindo a unidade familiar,
sendo responsáveis pela produção para manutenção da vida.

Alternativas de autossustentação: artesanato e sistemas agroflorestais (SAFs)
Decorrente da morosidade do governo em consolidar assentamentos da Reforma Agrária,
principalmente no Distrito Federal, o processo de acampamento até se tornar o Assentamento Pequeno
Willian, durou quase dez anos, e, nesta conjuntura, a maioria das famílias, se encontrava em um nível de
vulnerabilidade social gravíssimo, principalmente as mulheres chefes de família. Como um mecanismo
para amenizar a situação crítica, as mulheres organizaram um grupo de artesanato para trabalhar com
fibras vegetais e sementes do cerrado e, também, se inseriu em outras formas de produção, com
participação direta.
Práticas discriminatórias com relação às mulheres são encontradas com frequência, de forma naturalizada. A interpretação de que o
titular do projeto ‘tem que ser’ homem, por que ele é o ‘chefe da família’, ‘o cabeça da DAP’, são exemplos desse comportamento, que
se desdobra nos preenchimentos dos documentos em nome do homem, na possibilidade ou não da filiação de outros membros da família
(Butto e Dantas, p. 184, 2011).
Diante deste contexto, as mulheres do assentamento Pequeno Willian, no qual das 22 parcelas, 18 têm
por titular companheiras, estão vinculadas diretamente à luta pela Reforma Agrária e inseridas em vários
grupos de produção, como os PAIS (Produção Agroecológica Integrada e Sustentável), as mandalas, com
produção de hortaliças e animais de pequeno porte. Organizaram o grupo de artesanatos, em 2011,
trabalhando com fibras vegetais, confeccionando biojóias com a utilização de sementes, flores e frutos do
cerrado.
Eu, hoje, me vejo como produtora, temos banca na feira, estou entregando no programa do governo PAA, vendo verduras que eu planto,
plantas ornamentais, ervas medicinais, artesanatos com fibras vegetais, palha de milho e sementes do cerrado (Valdira Sena Santos de
Almeida, assentada do Pequeno Willian).
A matéria-prima que as mulheres utilizam nos artesanatos é encontrada facilmente no assentamento e na
área rural em que moram. O trabalho manual artesanal do grupo visa, como modo de produção,
consolidar a autonomia feminina das produtoras e trabalhadoras da Reforma Agrária do assentamento
Pequeno Willian.
Tudo o que a mulher pensa em precisar, gosta de ter próximo de casa; animais como as galinhas, horta, remédios, as frutas, muitas
flores para tudo ficar mais bonito e gosta de guardar as sementes; a gente troca as sementes umas com as outras, para não precisar
pedir e nem comprar. Nós, mulheres, gostamos de ter cuidado com a terra, de sentir, colocando a mão, enquanto os homens, tudo para
eles é desmatar, passar o trator e vender (Dalci Maria Sousa e Silva, assentada do Pequeno Willian).
É um grupo informal que, com suas produções, busca a manutenção da vida, melhoria da renda
familiar, embora o escoamento da produção artesanal ainda seja limitado, e não exista um local para
produção coletiva. Produz com grandes dificuldades em suas casas, ponto fixo, sem um transporte
apropriado, e o escoamento acontece só quando há eventos e o grupo é convidado para expor em feiras e
exposições agropecuárias. Porém, quase tão importante como a renda é o estreitamento dos laços da
convivência social do grupo entre si e, externamente, com a sociedade.
Nesse sentido, é fundamental perceber que a inserção das mulheres rurais em outros espaços significa a participação delas na esfera
pública, que o processo de participação qualifica sua ação política e ressignifica o seu papel enquanto sujeito no espaço público e
privado. Assim, colocar as mulheres rurais na esfera pública, em espaços como grupos produtivos, contribui para um questionamento da
invisibilidade política, social e econômica, em que essas mulheres estão imersas, bem como para denúncia e enfrentamento das
desigualdades estruturantes (direitos sociais, bens e serviços) e das desigualdades culturais (violências sexistas, divisão sexual do
trabalho), abrindo caminho para a democratização do meio rural brasileiro (Butto e Dantas, 2011, p. 68).
Há varias alternativas viáveis para autossustentação, embora inseridas em uma realidade com grandes
limites e desafios, que possibilitam uma vida com qualidade e dignidade. As alternativas propostas, neste
artigo, passam pela produção de alimentos e de vida, em sistema consorciado, trabalhar com os Sistemas
Agroflorestais integrados com hortaliças e plantas exóticas (frutíferas em geral e árvores típicas do
cerrado), como forma de garantir a sustentabilidade das mulheres assentadas da Reforma Agrária.
Nas economias pré-capitalistas, especificamente no estágio imediatamente anterior à revolução agrícola e industrial, a mulher das
camadas trabalhadoras era ativa: trabalhava nos campos e nas manufaturas, nas minas e nas lojas; nos mercados e nas oficinas, tecia e
fiava, fermentava a cerveja e realizava outras tarefas domésticas. Enquanto a família existiu como unidade de produção, as mulheres e
crianças desempenharam um papel econômico fundamental (Saffioti, 2013, p. 62).
A autora, Heleieth Saffioti, portanto, contribui para o aprofundamento do debate sobre o trabalho
feminino, mostrando como se consolidava a posição econômica da mulher, como ela se garantia
economicamente, numa relação vinculada diretamente ao marido pelo casamento, através do qual se
consolidava esse posicionamento social, uma reprodução da tradição do patriarcado, no qual as mulheres
eram totalmente submissas ao homem. Decorrendo daí sua incapacidade civil, fortalecimento da
exclusão, do abismo das desigualdades sociais vividas pelas mulheres, principalmente as solteiras, que
assumiram o papel de chefe de família.

Considerações finais
As práticas e vivências das mulheres produtoras de um assentamento da Reforma Agrária, dão
visibilidade, no processo da luta pela terra, à trajetória das mulheres e do assentamento, na perspectiva
da autossustentação, com algumas propostas trabalhadas por elas, fortalecendo a presença feminina na
Reforma Agrária, e permitindo que as pessoas que não estão inseridos neste processo acessem o
conhecimento sobre a dimensão da luta pela terra. Apresentamos este grupo de mulheres, do
Assentamento Pequeno Willian, se assumindo como um ser político na história bem como os seus
desafios, construindo um diálogo, que possibilita compreender a trajetória de um assentamento da
Reforma Agrária, quais as alternativas de autossustentação encontradas, como a produção de artesanatos
com fibras vegetais e sementes do cerrado e o projeto de sistemas agroflorestais que contribuem para a
qualidade de vida das famílias assentadas, enfrentando as situações de crise econômica decorrentes,
principalmente, da morosidade do governo em consolidar os assentamentos.

Referências bibliográficas
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SAFFIOTI, Heleieth I. B., A mulher na sociedade de classes. 3ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
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2005.

Artigo apresentado no 1º Congresso Nacional dos cursos de Residência Agrária, realizado em agosto de 2015, como parte do trabalho
de TCC do curso Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, da UnB, orientado pelo professor Marco Antônio Baratto
Ribeiro.

MULHERES EM LUTA: ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS DE ENGAJAMENTO
PELA PERMANÊNCIA NO CAMPO1

Keyla Morales de Lima Garcia


Introdução
Este artigo pretende colaborar para a compreensão sobre condição da mulher, no que diz respeito aos
desafios e às conquistas que estão sendo alcançadas por ela em nossa sociedade, regida pelo sistema
capitalista, dando ênfase à realidade camponesa. Buscou-se compreender a relação das mulheres com a
agricultura e a educação e, nesse sentido, são destacadas as contribuições do Movimento de Mulheres
Camponesas (MMC), que muito tem colaborado para as conquistas dos direitos femininos no campo
brasileiro.
Como uma das lutas do povo camponês é pela garantia a uma educação de qualidade no meio rural,
abordamos uma frente de acúmulo dos movimentos de trabalhadores rurais, a Educação do Campo e,
como exemplo, estudamos algumas das semelhanças dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo
(LEdoC) e o Curso de especialização Residência Agrária Matrizes Produtivas da Vida no Campo, ambos
oferecidos pela Faculdade UnB Planaltina, da Universidade de Brasília, ressaltando suas potencialidades
na formação política dos educandos e educandas, ao mesmo tempo, avaliando como os ideiais feministas
estão permeando todos os espaços de relações sociais dentro desses dois cursos. Esse envolvimento dos
estudantes nas realidades camponesas de várias cidades do país busca colaborar com debates sobre os
conflitos existentes no campo, na tentativa de se inverter a lógica patriarcal, hegemônica.
Acreditando que a mulher é parte fundamental para o desenvolvimento da vida humana, tanto na cidade
quanto no campo, nos dispusemos a fazer esta investigação crendo que, por meio da luta, organização e
conscientização das mulheres, estas ainda conquistarão seus direitos de forma plena, pois muito já tem
sido alcançado em relação às tantas dificuldades enfrentadas em nossa sociedade capitalista e patriarcal.

As mulheres, na luta sempre!
As mulheres, em todos os períodos da humanidade, sempre buscaram se organizar para melhorar suas
vidas. Depois de séculos de discriminação e cansadas de enfrentar tantas dificuldades opressivas, têm
buscado a cada dia, pelos mais variados meios, se mobilizar na incessante luta por seus direitos de
formação humana e educação, trabalho com igualdade de salário, para poder organizar sua família,
usufruir do lazer e ter direito a mais tempo livre etc.
Sem dúvida, a cidadania não se limita apenas à conquista de direitos sociais do indivíduo como
trabalhador. No entanto, numa sociedade extremamente desigual, quer seja nas relações entre as classes,
quer seja nas relações entre os sexos, a construção da cidadania começa pelo direito ao trabalho e aos
consequentes direitos sociais a ele relacionados. O desejo de ter uma profissão socialmente reconhecida
é uma pré-condição para que mudanças ocorram ao nível das relações homem-mulher, já que o trabalho
da mulher, tanto dentro de casa quanto fora, não é valorizado como deveria (Carneiro, 1994).
Sob o capitalismo, o direito a um salário digno é um direito essencial para ambos os sexos, por mais
que a realidade não seja essa. “Se os homens e as mulheres de todo o mundo gozassem de direitos
básicos ao emprego e a um salário que lhes permita sustentar a suas famílias, muitos dos problemas
sociais atuais desapareceriam” (Goldman, 2013, p. 1).
Porém, quando se fala de emprego, tem-se a ideia de trabalho assalariado nos moldes capitalistas em
que a exploração da mão de obra e da mais-valia são a base de sua sustentação. Mas, na verdade, para
haver mudanças significativas é necessário a qualquer ser humano o acesso ao trabalho, pois, por meio
da realização do trabalho são aumentadas suas energias e desenvolvidas suas habilidades e criatividade.
Com o trabalho, tanto o homem quanto a mulher são capazes de modificar a natureza e a si próprios,
produzir cultura e se autoproduzir. Quando se fala em um salário que seja capaz de sustentar suas
famílias, deve-se avaliar que tipo de vida está sendo buscada, pois no emprego assalariado as pessoas
vendem sua força de trabalho e sofrem por não terem tempo para usufruir dos frutos de sua mão de obra.
O capitalismo não criou a inferiorização social das mulheres, mas se aproveita do imenso contingente
feminino, acirrando a disputa por uma vaga no mercado de trabalho, e aprofundando a desigualdade entre
os sexos. Segundo Saffioti,
as desvantagens sociais de que gozavam os elementos do sexo feminino permitiam à sociedade capitalista, em formação, arrancar das
mulheres o máximo de mais-valia absoluta, através, simultaneamente, da intensificação do trabalho, da extensão da jornada de trabalho
e de salários mais baixos que os masculinos, uma vez que para o processo de acumulação rápida de capital era insuficiente a mais-valia
relativa obtida através do emprego da tecnologia de então. A máquina já havia, sem dúvida, elevado a produtividade do trabalho
humano; não, entretanto, a ponto de saciar a sede de enriquecimento da classe burguesa (1969, p. 36).
Safiotti lembra, ainda, que, apesar da tese amplamente difundida, de que o desenvolvimento do
capitalismo seria capaz de proporcionar um novo tipo de família, sem preconceitos, que permitiria o
trabalho feminino fora do lar, constata-se que “as facilidades da vida moderna” continuam mantendo a
mulher trabalhadora presa ao lar (Safiotti, 1969, p. 79). É ilusório, segundo Safiotti, “imaginar que a
mera emancipação econômica da mulher fosse suficiente para libertá-la de todos os preconceitos que a
discrimina socialmente” (1969, p. 82).
(...) a opressão das mulheres foi assimilada pelo capitalismo como forma de diminuir os custos com a reprodução da força de trabalho,
aumentar a exploração da classe trabalhadora; manter uma divisão e competição de interesses e privilégios dentro da classe
trabalhadora; assegurar mecanismos de assimilação da ideologia burguesa e patriarcal no seio dos oprimidos (Godinho, 2003, p. 34,
apud Gonçalves, 2011).
O problema da mulher, segundo Saffioti, não é algo isolado da sociedade e, sim, o resultado “de um
regime de produção cujo sustentáculo é a opressão do homem pelo homem; de um regime que aliena, que
corrompe tanto o corpo quanto o espírito” (Saffioti, 1969, p. 75). A autora considera que somente será
possível superar a opressão feminina com a mudança do regime capitalista para o socialista (Gonçalves,
2011).
É importante destacar algumas das conquistas que foram alcançadas com a Revolução Russa, em
relação aos direitos civis, especialmente para as mulheres. Os mais importantes para elas incluíram a
igualdade perante a lei, o direito ao aborto legal e gratuito e o direito ao divórcio. “Estes direitos eram
essenciais para a independência das mulheres de instituições patriarcais como a Igreja Ortodoxa e outras
autoridades religiosas, e do controle de seus pais e esposos” (Goldman, 2013, p. 1). A conquista da
igualdade perante a lei deu às mulheres o direito do controle sobre seus próprios salários e suas
propriedades, e também de poder lutar pela guarda de seus filhos, em caso de divórcio, além de poder
decidir onde viver, trabalhar e estudar. “Esses direitos não existiam antes da revolução” (p. 1).
A autora destaca, ainda, que os bolcheviques acreditavam que a libertação das mulheres seria possível
somente se o trabalho doméstico fosse socializado, o que para eles era um “obstáculo tanto ao ingresso
das mulheres ao trabalho assalariado em igualdade com os homens, quanto para alcançar a igualdade de
oportunidades na educação” (p. 2) e, depois de muitos estudos, perceberam que:

depois do trabalho, os homens liam jornais enquanto as mulheres lavavam roupas. Socializavam com amigos enquanto as mulheres
cuidavam das crianças. Jogavam xadrez enquanto as mulheres cozinhavam, limpavam e faziam as compras. Resumindo, os homens
podiam se desenvolver como seres humanos enquanto as mulheres serviam à família (e aos homens). A solução bolchevique foi
socializar o trabalho doméstico o quanto fosse possível: criar restaurantes públicos, construir lavanderias, criar creches e reduzir o
trabalho doméstico ao mínimo (Goldman, 2013, p. 2).
De acordo com Goldman (2013), as ideias dos bolcheviques eram excelentes, porém o Estado era
pobre demais para transformá-las em realidade, “muitas das tentativas bolcheviques de criar mais
liberdade para as mulheres enfrentaram a pobreza e a miséria criadas por anos de guerra civil. A década
de 1920 foi um período de alto desemprego, especialmente para as mulheres” (Goldman, 2013, p. 2),
mas, com o início da industrialização na União Soviética, ela se transformou em uma sociedade de pleno
emprego e, nos anos 1930, muitas mulheres ingressaram no mercado de trabalho com bons salários e em
postos industriais.
Hoje em dia, nos países em que prevalece o modelo capitalista de produção os jovens dessa nova
geração estão participando de várias mudanças, em que os direitos, a igualdade de oportunidades estão
garantidos, pelo menos por lei, independentemente de gênero. Porém, eles e elas terão de enfrentar
muitos problemas que as gerações passadas enfrentaram, por exemplo, “como combinar o trabalho e a
família, como criar um lar amoroso, em que os homens se comportem de forma igualitária, dividindo as
tarefas domésticas e se ocupando do cuidado das crianças” (Goldman, 2013, p. 3).

Mulheres e agricultura: íntima relação
Muitas culturas antigas associavam a fertilidade da mulher à fertilidade da terra, por isto é tão
utilizada a expressão “mãe terra”. Mas, o mundo ocidental, ao dominar a natureza, dominou também a
mulher. Com o desprezo aos conhecimentos desenvolvidos nos espaços femininos, ela foi perdendo cada
dia mais seu valor, mas é importante lembrar que tem havido uma luta incessante dos movimentos sociais
do campo pela valorização dos saberes populares relacionados com a natureza, especialmente os
femininos, como a produção saudável de alimentos e da vida digna no campo, conhecimentos esses
acumulados ao longo das gerações e que têm sido amplamente valorizados pela agroecologia, a qual
busca unir os dois saberes: científico e popular.
É importante ressaltar que, no universo social do mundo contemporâneo, a questão camponesa pode
ser considerada como uma temática fundamental e, portanto, está tendo um reconhecimento mundial de
sua relevância e presença. Carvalho (2014) destaca a declaração da Assembleia Geral da ONU de 2014,
como o ano internacional da Agricultura Familiar, e lembra ainda que “os camponeses estão presentes
nas diversas regiões do mundo alcançando aproximadamente um terço de toda a humanidade; são os
camponeses responsáveis pela produção de alimentos para todos os povos do mundo” (Carvalho 2014, p.
64).
Entretanto, mesmo utilizando uma “práxis produtiva altamente integrada com a natureza”, os povos do
campo (indígenas, extrativistas, pescadores, agricultores, quilombolas, ribeirinhos, povos da floresta
etc.), “guardiões da agrobiodiversidade”, os camponeses contemporâneos “são considerados, pelas
classes dominantes, como cidadãos de segunda categoria”; existe um “esforço na artificialização da
agricultura” e “há uma intencionalidade dominante que se alicerça na lógica capitalista de se substituir os
ecossistemas naturais por outros predominantemente antrópicos da agricultura industrial” (Carvalho,
2014, p. 65, 69).
Em 2003, foi fundado o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) que tem como principal missão
a libertação das mulheres de qualquer tipo de discriminação e opressão. Isso se torna concreto por meio
de suas lutas, formação, organização, implementação das experiências de resistência popular, em que as
mulheres são protagonistas de suas próprias histórias. Essa é uma luta por uma sociedade baseada em
novas relações sociais entre homens e mulheres, na sua relação com a natureza, no respeito às diferenças
e igualdade de direitos humanos, onde todos e todas possam falar e ser ouvidos, lutar e dirigir suas vidas
(Brasil, 2014).
O MMC é um movimento autônomo, democrático e popular, classista, construtor de novas relações de igualdade; um movimento de luta
e socialista, para o qual os seres humanos têm o direito de viver com dignidade e igualdade. A luta central do MMC é contra o modelo
neoliberal e machista e pela construção do socialismo. Com base nesses princípios, são definidas as seguintes bandeiras: projeto popular
de agricultura, ampliação dos direitos sociais, participação política da mulher na sociedade e projeto popular para o Brasil (Paludo e
Daron, 2012, p. 10).
Por meio do MMC, estão sendo desenvolvidos importantes projetos em várias regiões do Brasil.
Cinelli e Jann (2011) afirmam que muitas mulheres, a partir da inserção no Movimento, têm mais
iniciativas, se constituem como sujeitos de sua própria história, e percebem que organizadas
coletivamente têm mais força. Através de aprofundamentos teóricos feministas, as mulheres envolvidas
com o MMC têm a oportunidade de romper com a ideia de inferioridade e incapacidade feminina imposta
pela sociedade.
As reivindicações voltadas para a realidade da mulher camponesa são, principalmente, a necessidade
de acesso à terra para plantar e/ou por melhores salários, e ainda por uma política agrícola mais
adequada e por preços justos que garantam a produção e a permanência da família no campo. A
assimilação dessas reivindicações pelo movimento de mulheres tem a importância de tornar visível e
público o seu papel de produtora, justificando, assim, que lhes seja reconhecida a profissão de
agricultora, com acesso a créditos, direito à previdência rural, licença maternidade etc. o que é pré-
condição para a garantia de várias outras reivindicações referentes à cidadania da mulher (Carneiro,
1987).
Além da luta pela igualdade de direito e pela Reforma Agrária, outra questão que tem mobilizado os
movimentos sociais, e principalmente as mulheres do campo, é o direito à educação, que seja realmente
voltada para a vida e que atenda às demandas da realidade camponesa. As escolas rurais têm sofrido
grandemente com a falta de políticas públicas adequadas, que garantam formação de qualidade para as
crianças, jovens, adultos e até mesmo aos educadores.
Por isso, tem havido um importante trabalho em prol da Educação do Campo que, segundo Caldart
(2012), “nomeia um fenômeno da realidade brasileira atual, protagonizado pelos trabalhadores do
campo e suas organizações, que visa incidir sobre a política de educação desde os interesses sociais das
comunidades camponesas” (p. 259). E é nessa perspectiva que os cursos de licenciatura em Educação do
Campo e de especialização, como o Residência Agrária, têm buscado atuar para colaborar com a
realidade camponesa.

Educação do campo – a LEdoC e o Residência Agrária contribuindo com as demandas camponesas
femininas
Na tentativa de se contrapor à realidade existente no país, a Educação do Campo tem sido motivo de
muitas lutas, debates e discussões entre várias instituições de ensino, órgãos governamentais e
movimentos sociais, através de pessoas dedicadas e compromissadas com uma nova proposta de
sociedade, mais justa (Caldart, 2000). Esse modelo de educação visa uma nova perspectiva de vida,
promovendo a formação humana, a construção de uma consciência política; a igualdade de direitos,
garantida a homens e mulheres, camponeses e camponesas; e a luta por um campo com vida digna e
sustentável em todos os sentidos.
Nessa perspectiva, conseguiu-se, depois de muita luta, organizar e garantir aos camponeses cursos de
Licenciaturas em Educação do Campo e cursos de Especializações em Residências Agrárias, em algumas
universidades públicas do Brasil, inclusive, com acesso a bolsas de estudo, na tentativa de garantir a sua
conclusão. Pode-se avaliar, de forma muito positiva, dois desses cursos, a LEdoC e o Residência Agrária
Matrizes Produtivas da Vida no Campo, ambos oferecidos e realizados pela Faculdade UnB Planaltina
(FUP) da Universidade de Brasília (UnB) que, por meio de suas formas de organização, apontam para
uma dinâmica política e educacional com bases matriarcais, e nesse trabalho, são ressaltadas algumas
das semelhanças percebidas em ambos.
O curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC), da Universidade de Brasília (UnB), foi
organizado inicialmente em parceria com o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma
Agrária (Iterra). Essa foi a primeira turma, que seria uma das cinco experiências-piloto convidadas pelo
MEC. E o Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo,
organizado em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes e PPG/ Mader, e recebe, via edital,
financiamento do Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária (Pronera), do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do CNPq
Há uma constante preocupação, nesses cursos, em trazer à tona situações opressoras que cercam as
relações sociais, e por isso, é comum ocorrerem debates sobre as desigualdades sociais, sobre a luta
camponesa, a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres e o respeito mútuo. Esse
reconhecimento da importância do cuidado com outro e do respeito às diferenças, se estendem aos
alojamentos, permitindo aos estudantes possibilidades de adquirir novos conhecimentos a partir da
vivência coletiva entre pessoas, que até então não se conheciam, com diferentes costumes, estilos de vida
e maneiras de pensar. São espaços de desenvolvimento humano, pois as pessoas precisam aprender a
ouvir as opiniões alheias, dividir os mesmos espaços.
Além das aulas, são muito importantes todos os momentos formativos que compõem os cursos, como
místicas, reuniões, análises de conjuntura, Tempo Trabalho, que tem como principal objetivo dividir as
tarefas necessárias para o bom andamento do curso.
As turmas são organizadas por núcleos de base (NBs) ou Grupos de Organicidade (GOs), o que
permite a coletivização da participação nos debates pedagógicos e políticos e a tomada de decisão
coletiva, sem distinção de gênero. Essa condição igualitária de participação promove, por comparação
com os espaços de reuniões tradicionais, um olhar distanciado para a dinâmica machista que rege a
maioria dos espaços de organização coletiva existentes em nossa sociedade. Outra questão importante
que deve ser lembrada é sobre como é feita a escolha dos nomes das turmas, que tanto da LedoC quanto
do Residência Agrária passa por um processo democrático e reflexivo. São momentos de diálogos sobre
qual o nome que melhor exprime o histórico de luta que identifica cada turma.
É por meio da organicidade que se torna possível e necessário o desenvolvimento do diálogo,
apontando formas para a superação das contradições existentes no sistema patriarcal discriminatório que
muitas pessoas trazem de suas realidades. Muda-se aquela forma machista de ver as atividades e a
divisão do trabalho “de homem ou de mulher”, como, por exemplo, os homens cuidarem de crianças, ou
lavar banheiros e louças, as mulheres coordenarem grupos etc. A cada etapa, os estudantes mudam de
setor de trabalho para que todos possam participar de cada uma das tarefas existentes nos cursos, o que
capacita as pessoas para enfrentar suas dificuldades e melhora a compreensão geral sobre a importância
das atividades.
Vale destacar um desses espaços, a ciranda infantil, que garante o cuidado dos filhos e filhas dos
estudantes, enquanto eles estão em aula na Universidade. Nos cursos onde uma ciranda é garantida, as
pessoas que têm crianças pequenas, principalmente as mães, têm a garantia ao estudo e formação, o que
não seria possível se esse espaço não fosse disponibilizado, pois muitos camponeses e camponesas não
têm com quem deixar seus filhos e filhas quando vão para a universidade. Mas além de colaborar com as
mães e pais, esses espaços são extremamente formativos para todos, estudantes e docentes, porque as
crianças passam a ser responsabilidade de todos e todas, o que torna o curso mais humano e sensível,
valorizando as mulheres e socializando algumas das tarefas cotidianas. Os problemas e dificuldades são
compartilhados, o que sempre acaba ajudando na sua resolução.
Os cursos da LEdoC e o Residência Agrária envolvem as áreas de linguagem, arte, comunicação e
cultura, e, por isso, trabalham com uma proposta de teatro político, utilizando as técnicas do Teatro do
Oprimido, de Augusto Boal, um método de discussão/reflexão/ação da realidade, que não se restringe à
palavra escrita e consiste em variadas sequências didáticas que podem ser utilizadas em qualquer lugar,
dependendo do objetivo de cada trabalho e de cada realidade.
Os laboratórios de teatro propostos pelos cursos têm sido exemplos concretos de novas possibilidades
educativas. São utilizadas as metodologias do Teatro do Oprimido (TO), como Teatro Imagem, Teatro
Invisível e Teatro-Fórum2, que visam cumprir dois objetivos principais. O primeiro é ajudar a
compreender melhor uma situação cotidiana, que aparentemente é “natural”; e o segundo é ensaiar ações
que possam auxiliar na quebra de opressões reveladas nesse processo. As aulas de Arte e Sociedade da
LEdoC possibilitam aos educandos e educandas improvisações cênicas como alternativas de resolução
de problemas reais enfrentados nas comunidades.
Através das técnicas de TO, os estudantes adquirem maior senso crítico nos debates, conscientização e
tomada de posição diante do sistema alienador em que vivemos. Normalmente, quando se divide a turma
em grupos para elaboração de cenas de teatro-fórum, alguns dos assuntos que sempre aparecem são as
questões enfrentadas pelas mulheres, como o machismo, o patriarcado, a discriminação, as dificuldades
em suas relações sociais, no campo e na cidade. O que possibilita um debate sobre problemas reais do
cotidiano de muitas estudantes.
Os seminários também são essenciais para a formação de cada estudante e sempre têm se mostrado
como um importante meio formativo e conscientizador, promovendo momentos de muito aprendizado,
conscientização e reflexão. No seminário Conexões 4 “Feminismo, Campesinato e Luta de Classes”,
realizado em setembro de 2014, além de místicas impactantes que trouxeram a questão de gênero, houve
debates acalorados, apresentação de pesquisas, produções variadas (livros, revistas, panfletos, artigos,
ensaios, artesanatos, CDs, comidas etc.) e foram realizadas apresentações culturais e depoimentos que
chocaram as mentes mais passivas e menos informadas, e também alertaram para a surpreendente
realidade feminina, enfrentada no mundo e no Brasil, a luta diária das mulheres por acesso a direitos
básicos.
As palestrantes trouxeram a discussão de como a sociedade foi se tornando machista no decorrer do
tempo, e como a mulher se tornou uma propriedade privada, podendo ser usada como queriam seus
“donos”, (pais, maridos, filhos e patrões). Também foi debatida a realidade das mulheres, hoje, em que
ainda são tratadas como objetos sexuais, ou acumulando duplas ou triplas jornadas de trabalho. Foi feita
uma alerta sobre todo o tipo de violência contra a mulher, que ocorre com frequência inacreditável,
ressaltado como os movimentos feministas, por todo o mundo, têm alcançado várias conquistas em prol
das mulheres.
Esse seminário trouxe muita informação que precisa ser discutida nos territórios camponeses sobre a
realidade feminina, e as dificuldades enfrentadas de forma organizada e coletiva. Atualmente, as
mulheres estão ocupando mais o espaço na academia, por isto é importante que os cursos de formação
humana promovam esses debates e trocas de informação, em prol da mobilização social, para melhoria
da vida das pessoas.
Vale destacar, também, que o Tempo Comunidade também tem sido momento de intensa formação e
conscientização política, pois os estudantes dos cursos vão para suas casas com várias atividades que
precisam ser realizadas na e com a comunidade em que estão inseridos, promovendo espaços de debates
e formação sobre os mais variados temas, e claro que questões femininas estão entre os principais.

Considerações finais
Esse trabalho demonstra que as mulheres são seres ativos em todos os aspectos, e estão na luta por
seus direitos e de sua família, querem ser reconhecidas por suas capacidades e provam que unidas fazem
a diferença. Muito sofrimento já aconteceu e, infelizmente, ainda acontece no mundo moderno, contra as
mulheres, mas não se pode ficar calado, é necessário que as pessoas se conscientizem e falem. No
modelo capitalista, muito precisa ser modificado, mas deve-se destacar que várias conquistas já foram
alcançadas, graças aos esforços de pessoas “guerreiras”, que não têm aceitado a realidade como ela está
dada.
A agricultura sustentável, na perspectiva agroecológica, tem sido desenvolvida em várias comunidades
rurais graças à incessante luta das mulheres camponesas que não se deixam vencer pelos ataques do
agronegócio e pela falta de políticas públicas eficientes de Reforma Agrária. O MMC tem sido um bom
exemplo disso e tem provado que, juntas, as pessoas podem mais facilmente alcançar os objetivos. A
Educação do Campo tem conquistado importantes espaços no meio acadêmico, como os cursos de
graduação e pós-graduação da UnB/FUP, que têm trazido à tona a luta dos povos do campo e a urgente
necessidade de uma educação do e no campo, com qualidade e garantia de continuação, o que tem se
dado na Pedagogia da Alternância e das propostas formativas de continuação nas comunidades
camponesas.
Todos esses aspectos, ressaltados no texto, demonstram que os ideais feministas precisam estar
presentes em todos os setores sociais, e é evidente que a participação das mulheres é fundamental em
todos os debates, pois elas estão em todos os espaços, vivendo e colaborando ativamente com suas
realidades, todos os dias.

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Artigo produzido no Curso de Especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, da Universidade de Brasília,
sob a orientação do professor Rafael Litvin Villas Bôas.

O Teatro do Oprimido busca a transformação do espectador passivo em sujeito transformador da ação dramática, o que vai incentivá-lo
a agir e reagir em sua realidade, conscientizando-o sobre suas responsabilidades diante das necessárias transformações sociais.

PARTE 4

ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS NA FORMAÇÃO


DE TRABALHADORES: PÓS-GRADUAÇÃO EM
ALTERNÂNCIA NAS UNIVERSIDADES

RESIDÊNCIA AGRÁRIA DA UnB: O PAPEL DA FORMAÇÃO POLÍTICA NA
DISPUTA DA HEGEMONIA1

Geraldo Gasparin e Rafael Villas Bôas


Introdução
Quando militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pesquisadores do
grupo de pesquisa Modos de Produção e Antagonismos Sociais decidiram propor a realização de um
curso no campus de Planaltina, da Universidade de Brasília (FUP/UnB) por meio de edital de cursos de
especialização em Residência Agrária, promovido em parceria do Programa Nacional de Educação e
Reforma Agrária (Pronera), órgão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e ao
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pretendiam alcançar o
seguinte objetivo: qualificar profissionais que atuam nas áreas de assistência técnica de cooperativas de
produção de assentamentos e comunidades tradicionais quilombolas, educadores das escolas do campo e
líderes comunitários que atuam nos processos de organização social das comunidades camponesas
existentes em territórios do Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Em um território situado, geopoliticamente, no olho do furacão do avanço das práticas agrícolas
características da matriz do modo de produção do agronegócio: produção em larga escala, de
monocultivos de commodities agrícolas, com alto índice de agrotóxico na lavoura, e com injeção de
recurso de corporações do agronegócio e financiamento do sistema financeiro. Se opor a esse avanço, na
perspectiva da produção do conhecimento e da organização social nos territórios alvejados, com
intenção de fortalecer o modo de produção alternativo da agroecologia, em consonância com o
fortalecimento da organização social e da capacidade de autorrepresentação das comunidades e
organizações, se constituiu em uma das estratégias do próprio curso.
Entre a vontade e a necessidade da realização do curso, não imaginavam esses militantes que teriam
que enfrentar uma longa batalha política, de cunho ideológico, para ter o curso reconhecido internamente
na UnB, após a aprovação do projeto pelo CNPq e pelo Pronera. Durante um semestre, o projeto tramitou
por instâncias internas, e para conseguir ser aprovado teve parte de seu desenho alterado, numa clara
exigência de concessão, em que o eixo de Cultura, Comunicação e Arte teve cortada, praticamente, toda a
planilha orçamentária destinada à aquisição de equipamentos culturais e artísticos. Não entendiam os
pareceristas que, em um curso de Residência Agrária, poderia ser não apenas legítimo, mas necessário, o
enfoque nos campos da Cultura, Arte e Comunicação, vinculados às dimensões formativa e organizativa.
O argumento do professor designado pela Câmara de Pesquisa e Pós-Graduação (CPP) do Decanato de
Pesquisa e Pós-Graduação da UnB, para elaborar o parecer, da área de engenharia, afirmava o seguinte:
A proposta foi aprovada pelas instâncias da unidade e pelo comitê do CNPq que a avaliou. Embora esse relator não seja especialista na
área do curso, nota-se que a proposta possui um forte viés político, focada em uma determinada abordagem que, para esse relator
parece, por vezes, confusa, parcial ou, no seu entendimento, de difícil conexão com o objetivo fim do curso, qual seja a Residência
Agrária: Matrizes Produtivas da Vida no Campo. Por exemplo, na folha 14 do processo, lê-se como um dos objetivos do curso
“socializar um conjunto de formulações teóricas, categorias, métodos e técnicas forjadas no contexto histórico das décadas
de 1960 e 1970, inicialmente de ascenso das lutas populares, e posteriormente, de resistência à ditadura empresarial-militar,
com técnicas sistematizadas e reunidas no Teatro do Oprimido, os métodos de educação popular inspirados pela Pedagogia do
Oprimido, e a formulação dialética da crítica estética marxista, de forte potencial desideologizador”.
Para esse relator, não ficou claro a apresentação de uma visão mais abrangente dos aspectos políticos relacionados ao tema nem uma
abordagem que insira os beneficiados pelo curso em uma visão econômica mais atual de agronegócio e de desenvolvimento
autossustentável de pequenos agricultores, guardados, obviamente, os aspectos sociais e econômicos envolvidos (parecer enviado em 20
de maio de 2013).
Sabiam bem, os proponentes do curso, que a Universidade, no nascedouro, e ao longo de seu processo
histórico, fora se constituindo em um espaço de seletiva participação e, portanto, alheia aos problemas
das comunidades do campo e quilombolas. Mais endógena que exógena, a universidade pública
brasileira se especializou majoritariamente no atendimento às demandas de mercado, à revelia da
preocupação com a função social da universidade pública, e ignorando a possibilidade de diálogo com
os sujeitos coletivos da sociedade civil, organizados em movimentos sociais e outros instrumentos
organizativos.
Entretanto, no esteio da precedente presença da Licenciatura em Educação do Campo sediada na FUP,
e da abertura do campus para cursos vinculados às demandas dos movimentos sociais, não tivemos
dificuldade em elaborar o projeto do curso e a metodologia calcada na experiência acumulada, em que a
partir do regime de alternância, poderíamos projetar a centralidade do curso e do papel da universidade,
para os territórios camponeses e quilombolas, refutando a tradicional endogenia, que torna a
universidade o centro receptor e sistematizador das informações coletadas nas comunidades.
A coordenação do curso, segura das qualidades da metodologia de educação popular, voltada para o
intuito de construção do poder popular, desde o primeiro momento se colocou aberta para que os
residentes colaborassem com suas observações para a construção da metodologia do próprio curso. De
modo que, no primeiro diagnóstico, a prática de campo dos residentes os levou ao resultado comum da
necessidade da formação política para potencializar o trabalho político e organizativo nas comunidades.
Os diagnósticos diferenciavam formação de capacitação, ou seja, não se tratava de uma orientação
instrumental, mas de um processo mais profundo, decidido mediante o interesse da comunidade, a partir
do reconhecimento do diálogo com os povos e suas organizações sociais dos territórios como elemento
central para o planejamento desses processos.
Para levar adiante essa decisão, avaliamos que carecíamos de um instrumento organizativo que
pudesse agregar as pessoas e potencializar localmente os esforços despendidos. Construímos, a partir
disso, as Escolas Itinerantes de Formação (EIFs).

Dissociação entre as esferas da cultura e da política no Brasil
A articulação entre as esferas da cultura e política é uma questão polêmica no debate intelectual. Um
dos efeitos traumáticos da ditadura militar que governou o Brasil, entre 1964 e 1985, é a consolidação da
ideia de que cultura e política são polos dissociados, relativos a aspectos diversos da vida, sendo a
primeira condizente ao cultivo da erudição individual ou ao entretenimento de massas – polos muitas
vezes coincidentes – e a segunda relativa às disputas intrapartidárias voltadas para os pleitos eleitorais.
Boa parte da esquerda contemporânea, inclusive, ao operar uma releitura histórica equivocada e
conservadora, entende que qualquer aproximação entre as duas esferas é sinal de dirigismo, de
subordinação da cultura à política.
Entretanto, desde a publicação do emblemático ensaio “Cultura e Política, 1964-1969”, de Roberto
Schwarz (1978), foi aberto um campo fértil de pesquisa na área, explorando o argumento trilhado pelo
autor, que aponta que o impacto do golpe de 1964 incidiu, primeiramente, nos elos em processo de
construção entre as classes operária, camponesa, estudantil e artística progressista, que engendrava por
sua vez um processo consistente de transferência dos meios de representação da realidade. Enquanto os
movimentos camponeses, como as Ligas Camponesas, e os sindicatos mais combativos foram
desmantelados imediatamente, a repressão sobre os progressistas da classe média só incidiu sobre os
protagonistas da articulação de classe, e ainda assim não de modo sistemático, mas apenas pontualmente,
com fins de romper os vínculos interclasses. A produção cultural de esquerda viveu com relativa
liberdade, e exerceu posição hegemônica até 1968, data da promulgação do AI-5, momento de
“democratização” da repressão.
Conforme a trilha aberta por Roberto Schwarz e bem explorada por Iná Camargo Costa (1996) existiu
no país, sobretudo, nos primeiros anos da década de 1960, uma articulação orgânica entre as esferas da
cultura e política, em perspectiva emancipatória, que justamente por conta de seu poder de desalienação,
em consonância com o acirramento da luta de classes no período, ameaçou o poder da elite local e exigiu
dela tomada de posição imediata para impedir que o novo ciclo de modernização conservadora que se
anunciava fosse transformado pelo povo em revolução social.
A consolidação do monopólio televisivo e da hegemonia da linguagem audiovisual no Brasil é
posterior ao golpe e contou com o forte apoio de seus gestores da caserna e da burguesia local. Data
dessa época a sedimentação da tríade poder econômico e territorial + concentração dos meios de
comunicação + poder político eleitoral que moderniza o velho coronelismo latifundiário e relega para a
população brasileira a democratização do desejo do consumo, via sofisticação do discurso publicitário.
Torna-se natural o fato dos meios de produção cultural serem concentrados em mãos de grupos que
supostamente detêm a competência para melhor exercê-los, enquanto à maioria da população é legado o
direito somente de participar consumindo e cultuando.
Há, portanto, esse marco de agravamento da crueldade brasileira, o golpe de 1964 e a posterior
ditadura militar, que perdura por 21 anos no país, um processo substantivo de embrutecimento, de
produção de insensibilidade coletiva perante as desigualdades brasileiras, perpetuado dia após dia pelos
meios de comunicação empresariais.

Disputas hegemônicas no território da política

Parece-nos ser importante trazer alguns elementos da conjuntura e, portanto, do contexto político-
ideológico em que se travam as batalhas mais gerais na sociedade brasileira na atualidade que, em maior
ou menor grau, influem decididamente na luta das comunidades nos territórios em que atuaram e atuam
nossos residentes. É ali, nos territórios mesmos, com suas lutas cotidianas que a hegemonia deixa de ser
apenas consenso e tem a potencialidade de ser força e coerção. Porque, bem vistas as coisas, e de todos
os ângulos, a formação política, como parte das disputas hegemônicas, se faz com apropriação do
conhecimento acumulado mas, e sobretudo, com os nexos estabelecidos na atualidade da luta e suas
contradições por transformações nas relações sociais e na estrutura da sociedade dividida em classes.
Suspender, ainda que momentaneamente, os elementos principais desta análise, é vestir a capa de Perseu
que tornará invisível, não o herói da mitologia grega, mas a própria realidade que se pretende
transformar.
É parte da verdade que já se gastou bastante tinta, e de diversas cores e matizes, para descrever o
momento político que estamos vivendo. Mas é um exercício que deve ser feito cotidianamente e sempre
coletivamente, para aqueles que almejam uma sociedade em que o capital não possa mais regular nossas
vidas.
O momento político parece confirmar o que dizia Florestan Fernandes sobre a tarefa histórica que a
burguesia em nosso país sempre se propôs: o de vergar o arco histórico para trás. Confirma essa
curvatura o fortalecimento do pensamento conservador, de direita, com certos matizes fascistas e
golpistas que se fortaleceram na classe média, dominou amplamente a imprensa e começou a criar os
seus novos institutos (aparelhos) privados de hegemonia. Esse pensamento antes se abrigava nas cúpulas
empresariais, militares, nos clubes de elite, nas zonas de conforto de algumas capitais, nas festas de
celebridades, nas ceias de natal ou em rodas de amigos. Mas, sobretudo, desde o golpe de 1964, em
ritmo crescente, essa dinâmica tem sido amplamente dirigida pela grande mídia que atua como o partido
dirigente e propagandista deste pensamento conservador.
De outra parte, o pensamento da esquerda hoje, observa o históriador Lincon Secco (2013), coabita o
governo com setores tradicionais de direita, mas a direita “moderna” e órfã vicejou onde a esquerda
governista deixou-lhe o campo aberto, financiando os seus institutos privados de hegemonia em nome da
ideologia da liberdade de imprensa. Não realizou, assim, liberdade alguma posto que a massa de
informações é controlada por grandes empresas. As principais vozes altissonantes do Planalto não
cansavam de repetir: “viva a liberdade de imprensa!”.
Como o furo, em geral, é sempre mais embaixo, é válido reconhecer que houve profundas mudanças no
mercado de trabalho que afetaram não só a subjetividade da classe, mas suas formas de organização e
representação política. Como se não bastasse, a reestruturação produtiva que surfou na onda neoliberal
promoveu ataques sistemáticos às greves, às mobilizações sociais de todo caráter. Passamos rapidamente
dos cenários de resistências e até de ofensivas para a defensiva deliberada. Nesse cenário, as crises e o
declínio da militância conduziram a esquerda a apresentar-se na arena da luta política como uma enorme
agremiação eleitoral que declinava em força ideológica e militante.
Já como governo e, como condição para sê-lo, a esquerda metamorfoseada se viu incapaz de levar
adiante o sentido gramsciano de hegemonia. Gramsci pensou a hegemonia como um processo que pode
começar na fábrica, nas disputas das classes trabalhadoras. Mas, uma vez atingido o poder político, ela
deve incorporar o poder de coerção. É que não se deve reduzir a hegemonia a um sistema consensual,
esquecendo o momento coercitivo. Parcelas da esquerda acreditaram e acreditam que a coerção era só
um momento militar. Mas a história da esquerda é pródiga de exemplos em revelar que a pressão popular
nas ruas, as greves e os levantes de massas são formas de imposição coercitiva que provêm de fora da
sociedade política. Ocorre que essa perspectiva parece não ser mais parte da estratégia da esquerda,
pelo menos de grande parte dela que, para chegar ao poder, preferiu a aliança de classe com a burguesia
e não com as massas. Com isso, trocou a força das ruas pelo poder persuasivo e de entretenimento da
televisão. Agora, porque praticamente todos os lares já possuem esse instrumento de disputa hegemônica,
assiste-se à luta de classes através dela. Momentaneamente, essa batalha está resolvida a favor dos que
bradam: liberdade de imprensa. Momentaneamente, essa batalha está ganha para os que querem
transformar a agricultura num grande negócio, tendo como aliados incontestes os grandes veículos de
comunicação de massa.

Residência Agrária como parte da disputa por hegemonia
O curso de especialização em Residência Agrária da UnB, de maneira geral, fortaleceu a proposição
de ações seja no âmbito acadêmico, sobretudo, no aprofundamento teórico, como nas próprias
comunidades que serviram de instrumentos para apropriação do conhecimento dos sujeitos do campo.
Essas ações fortaleceram e marcaram indelevelmente os educandos como sujeitos capazes de intervir
qualitativamente nas suas comunidades de atuação; na produção de novos conhecimentos; na inserção nos
processos de luta e mobilização destas comunidades; na capacidade de leitura e das contradições da
própria realidade.
Pela avaliação do processo empreendido e pelo retorno dos estudantes residentes do curso, no
seminário integrador final, realizado no mês de agosto de 2015, podemos afirmar que o curso consolidou
um importante processo de formação política e ideológica em todos os educandos que compreenderam a
dinâmica e metodologia da relação universidade/prática social junto às comunidades e às organizações
populares a elas vinculadas.
Nessa disputa hegemônica (no seu amplo sentido, mas aqui também referido como contra-hegemonia
ao agronegócio e como contra-hegemonia às formas enrijecidas de produzir conhecimentos), poderíamos
destacar ainda muitos aspectos que o curso Residência Agrária da UnB acumulou. Um deles foi o de
proporcionar um ambiente educativo fundamentado nos valores e compromissos com a construção do
poder popular, da consciência de classe, da participação efetiva, da solidariedade, da cooperação, da
valorização da diversidade, da igualdade de gênero e etnia, do respeito mútuo, do aprendizado individual
e coletivo. Esse ambiente por si só justifica a necessidade de continuar a fortalecer processos formativos
que recriem esses valores, dificilmente encontrados nos ambientes em que a produção da vida e da
existência estejam dissociados da produção do conhecimento.
O curso também contribuiu para a valorização da produção cultural das comunidades assentadas e
quilombolas; contribuiu no debate da necessidade da participação e integração das comunidade para o
avanço e fortalecimento da Reforma Agrária popular e das comunidades quilombolas nos territórios;
como também incentivou os processos produtivos sustentáveis, agroecológicos e cooperados como fonte
de renda, aprimorando as atividades da agricultura familiar e camponesa. Para essa atuação articulada
em múltiplas frentes, o trabalho, por meio das Escolas Itinerantes de Formação, como frentes
organizativas dos Núcleos Territoriais, foi decisivo.
Outro aspecto que se incorporou como parte das batalhas ideológicas que permanentemente são
travadas nas disputas hegemônicas diz respeito à temática do feminismo, não desvinculada da temática da
luta de classes. Essa questão tem marcado fortemente a identidade coletiva da turma do Residência
Agrária da UnB, assim como os debates sobre questões de gênero, feminismo e campesinato, trazidos
para dentro do curso. O feminismo e a necessidade de abordar a questão de gênero no curso se fez
presente em decisões autônomas, das e dos estudantes, como a assembleia convocada pelas mulheres do
curso para tratar dos problemas de gênero decorrentes da convivência com alguns companheiros que
assumiam postura ostensivamente machista.

Organicidade nos territórios: a chave do processo coletivo e pedagógico

A proposta pedagógica, ou se quisermos, a práxis formativa foi construída e desenvolvida em parceria
com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Isso aportou um grande ganho pedagógico para o
curso, incorporando como elementos centrais o trabalho como princípio pedagógico, o sistema da
alternância (Tempo Comunidade e Tempo Universidade) e a organicidade (engenharia organizativa que
articula instâncias, atribuições e fluxos de decisões, permitindo que os educandos sejam sujeitos da
própria formação).
Por isso, tal e como foi planejado no projeto, para a realização das etapas na universidade (TU), cada
estudante esteve articulado em um Núcleo de Base (NBs) e em uma Equipe de Trabalho. E, para o Tempo
Comunidade, o território de abrangência foi dividido em Núcleos Territoriais (NTs). Ao todo, foram
constituídos sete NTs, a saber: Núcleo Territorial Planaltina (DF: Planaltina, Sobradinho, São Sebastião;
Goiás: Água Fria); Núcleo Territorial DF Sul (DF: Brazlândia, Taguatinga; Goiás: Padre Bernardo);
Núcleo Territorial Nordeste Goiano (Goiás: Flores, Alvorada, Formosa); Núcleo Territorial DF/MG
(Unaí); Núcleo Territorial Kalunga (Cavalcante/GO); Núcleo Territorial Mato Grosso (Sinop); Núcleo
Territorial Mato Grosso do Sul (Ponta Porã).
Ao colocarmos o planejamento em ação, contando com o acúmulo da ENFF, a pluralidade de
formações em nível da graduação dos residentes, e a experiência prévia da maior parte dos integrantes da
turma em trabalhos de assistência técnica ou com a Educação do Campo, pudemos criar um instrumento
organizativo articulado aos oito Núcleos Territoriais em que atuamos, chamado de Escola Itinerante de
Formação (EIF), que conferiu identidade e unidade aos processos de formação não formais executados
nas comunidades e movimentos, do mesmo território. As EIFs são espaços que agregam os residentes
agrários, os estudantes da Licenciatura em Educação do Campo da UnB, e as lideranças dos movimentos
sociais, associações, coordenações das escolas do campo, construídas no ambiente do Núcleo
Territorial.
A iniciativa de criação das EIFs nos fez perceber que deveríamos progressivamente mover a
centralidade do curso para fora da universidade, fazendo com que as etapas de TU não fossem mais o
ponto de convergência central das ações no território. Esse movimento pedagógico e metodológico do
curso nos motivou vários desdobramentos que não estavam previstos no projeto inicial e que puderam
conferir identidade própria e uma repercussão do curso para fora da UnB. Esses desdobramentos, mesmo
sendo iniciados desde as primeiras etapas do curso, foram ganhando força ao longo das suas etapas.
As EIFs se apresentaram no processo como instrumentos organizativos com grande potencial
agregador dos sujeitos coletivos que atuam nos territórios, e também se apresentaram como um
instrumento organizativo capaz de colocar em diálogo os três eixos que conformaram a proposta. Para
construir esse diálogo entre os eixos, os residentes planificaram e desenvolveram diferentes atividades
vinculadas às EIFs: ações através de linguagens do teatro, da literatura e do cinema, no intuito de
aprofundar junto às comunidades o entendimento dos impactos causados pelo Agronegócio e pela
Indústria Cultural no tocante à organização do trabalho camponês e do tempo livre para o lazer e a
cultura; e a implementação de diferentes Unidades Demostrativas (UDs) de produção agroecológica,
abordando soluções tecnológicas que respondam aos gargalos identificados nos diagnósticos anteriores;
nos processos formativos com os diferentes sujeitos sociais como a juventude, as mulheres, na formação
de lideranças comunitárias e da base social das organizações políticas.

Produção acadêmica ressignificada pela prática social

Outro desdobramento do processo foi a produção, em curto espaço de tempo, de subsídios, em formato
de livro, para o processo de construção das EIFs. Após a boa acolhida do Caderno n. 1 do Residência
Agrária da UnB, produzido como material de explicação para as comunidades e movimentos sobre a
proposta da EIF, e para estudo de temas, como análise de conjuntura, a CPP avaliou que era importante
continuar produzindo materiais, em formato de livros, que subsidiassem os processos ativados nos
territórios pelos eixos de formação do curso e que o divulgassem entre os outros Residências Agrárias,
potencializando, dessa maneira, a troca de experiências entre os cursos.
Dessa forma, no que tange ao eixo de Formação, foi produzido o Caderno n. 1 do Residência Agrária
da UnB. Em relação ao eixo de habilitação Cultura, Arte e Comunicação foi planejada a produção de três
cadernos: o n. 2 sobre o tema “Cultura, Arte e Comunicação”; o Caderno n. 3 sobre o tema
“Comunicação e disputa da hegemonia” e o Caderno n. 4 sobre o tema “Teatro político, formação e
organização social”. Também produzimos o Caderno n. 5 com artigos escritos pelos residentes e seus
orientadores, além de alguns membros da coordenação do curso, estabelecendo seleção representativa
das pesquisas, a partir das oito linhas de pesquisa do curso.
O que tornou relevante o processo de capacitação técnica e de formação do curso Residência Agrária
foi a produção teórica seja em artigos, análises críticas, trabalhos de conclusão do curso, em
convergência com as demandas e questões suscitadas na prática social. A produção do conhecimento se
deu nessa interação com a práxis que foi fundamentando as matrizes da vida produtiva no campo: na
produção agroecológica, na política, na organização social, na necessidade permanente da interação entre
a produção de uma nova cultura e a emancipação humana.

Considerações finais: os aprendizados se multiplicam
O que procuramos desenvolver com a metodologia de formação que empreendemos no transcorrer do
curso, com a turma Marias da Terra, foi o fortalecimento da organização social nos territórios dos
Núcleos Territoriais, visando o prolongamento das ações de formação política, cultural e técnica para
além do curso, por meio das EIFs.
Temos, todavia, consciência de que a aquisição da autonomia no processo de formação não pode ser
garantida apenas pelo volume de ações que desenvolvemos no decorrer dos dois anos de curso.
Dependem, sobremaneira, da força combativa das organizações sociais existentes nos territórios e da
capacidade de convergência de seus planejamentos estratégicos.
Mas, para além de tomarmos as atividades como um fim em si, avaliamos que o maior legado seja o da
cultura política que o curso possa ter instituído como princípio, ao priorizar o protagonismo coletivo
voltado para as demandas dos territórios e comunidades. A transferência progressiva de
responsabilidade e poder, que operamos, implicou na capacidade dos residentes conferirem
consequência em suas ações de intervenção, como iniciativas que se acumulam e fortalecem o processo
de organização social e consciência política.
As inúmeras práticas desenvolvidas no decorrer do curso, seja no campo da cultura, arte e
comunicação, seja no campo da cooperação e da agroecologia, buscaram instituir uma cultura política
diversa daquela pautada pelo liberalismo, pela ação individual em benefício exclusivo da família, tendo
o lote como unidade produtiva, diversa daquela que dissocia as esferas da cultura, da política e da
economia. Fazer política por meio da cultura é um meio eficaz de formar a consciência coletiva dos
sujeitos que habitam o mesmo território.
Em todos os eixos trabalhados, nos pautamos pela transferência sistemática dos meios de produção de
linguagens e processos trabalhados, visando a apropriação com autonomia do processo produtivo. A
atitude dos residentes com os territórios e comunidades passou a ser não a do estudante que coleta dados
primários para sistematizá-los e entregar sob a forma de trabalhos acadêmicos para seus professores nas
universidades, prevaleceu uma atitude eticamente implicada com os processos incitados, a ponto de
compreenderem que as pesquisas desenvolvidas nos territórios deveriam ser apresentadas e receber os
retornos dos sujeitos daqueles espaços, antes mesmo dos rituais de defesa dos trabalhos na universidade.
Uma pesquisa, portanto, associada diretamente ao processo de intervenção, buscando qualificá-lo: a
produção de conhecimento socialmente referenciado.
Temos elementos para considerar que o caminho apontado pelo curso pode pavimentar uma trilha
produtiva para a relação entre universidades e movimentos sociais que atuam no campo, e em
comunidades quilombolas, indígenas e tradicionais. O primeiro indício é que um dos dois cursos de
Residência Jovem que a UnB passou a executar desde 2015 assumiu toda a metodologia desenvolvida
por nosso curso de especialização. O projeto Residência Agrária Jovem: formação profissional e social
a partir das matrizes formativas, associativas, cooperativas, artístico-cultural e da comunicação no
campo, coordenado pela professora Eliene Novaes Rocha, foi construído, desde a fase do desenho do
projeto, conjuntamente com os movimentos sociais do campo que atuam na região, criando um fórum
original e produtivo de avaliação e planejamento estratégico conjunto desses movimentos, em que a
universidade assume o papel não apenas de executora de projetos de um ou outro movimento, mas de
mediadora do diálogo convergente das demandas de diversas organizações, fortalecendo com isso a
perspectiva de poder popular nos territórios, na medida em que fornece condições objetivas para
realização de atividades de formação, pesquisa e intervenção, deslocando o centro do processo para os
territórios dos movimentos sociais.
Cabe destacar que não é pequeno esse avanço na qualidade política da relação entre universidade e
movimentos sociais, se pensarmos que até pouco tempo o que ocorria era a decisão de concorrer aos
projetos por parte de um pequeno núcleo de professores nas universidades, que procuravam os
movimentos apenas para apresentar os objetivos e metodologia de projetos já redigidos, com interesse
em conseguir as cartas de manifestação de interesse dos movimentos pelos projetos, na medida em que
esse é um dos critérios de avaliação que consta no manual de operações do Pronera. A consolidação de
um processo de transformação da cultura política da relação entre movimentos sociais e universidades
depende não apenas dos acertos conjunturais, mas, sobretudo, das garantia de continuidade do processo,
por meio do financiamento de novas experiências como a do edital que finda, subsidiando o
desenvolvimento de novas metodologias e de novas concepções sobre a relação entre universidade e
movimentos sociais.

Referências bibliográficas
COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere - v. 2. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
FERNANDES, Florestan. Poder e contra poder na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1981.
SECCO, Lincon. A hegemonia tardia, in: Carta Maior. Artigo publicado em 8 de agosto de 2013.
SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969, in: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

O trabalho contou com a leitura e comentários de Juliana Bonassa Faria e Beatriz Casado Baides, ambas integrantes da coordenação
do Curso de Especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, a quem agradecemos.

A MÍSTICA NO CURSO RESIDÊNCIA AGRÁRIA:
MATRIZES PRODUTIVAS DA VIDA NO CAMPO1

Beatriz Casado Baides
e Lindalva Santana

A mística na prática política do MST


A mística não está no projeto, mas nos sujeitos que o constroem.
Ademar Bogo

A mística é um elemento histórico presente nas lutas e processos organizativos dos movimentos
populares. Considerando que a proposta pedagógica do Curso de especialização Residência Agrária da
UnB foi desenvolvida em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), começamos o
artigo com um breve enquadramento histórico e teórico trazendo alguns elementos sobre a dimensão
pedagógica da mística, sua relação com o processo de formação humana para o MST, e sua
intencionalidade no método educativo e formativo construído pelo MST, a Pedagogia do Movimento2.
As elaborações e análises feitas por Ademar Bogo sobre a mística, ultrapassam o sentido religioso e
espiritual da mística, ampliando a sua compreensão para um sentido sociopolítico:
Mística é um termo compreendido no estudo das religiões como adjetivo de mistério, assimilado por meio da experiência da própria
vivência espiritual. Contudo, nos estudos das ciências da religião e na filosofia da linguagem, pode-se compreender que a mística, em
suas manifestações subjetivas, ultrapassa o espectro do sagrado e introduz-se na vida social e na luta política, numa clara aproximação
da consciência do fazer presente com a utopia do futuro (Bogo, 2012, p. 475).
O mesmo autor, no Dicionário de Educação do Campo (2012) assinala três perspectivas a partir das
quais podemos explicar as experiências e manifestações místicas na atualidade, que são:
- a perspectiva das religiões, a mística nessa perspectiva aparece como atitude e experiência
espiritual, onde o ser social se sente integrado com o cosmos;
- a perspectiva das ciências políticas, em que a mística é analisada como o “carisma” que cada ser
social carrega, colocando estas habilidades a serviço do bem da coletividade, ressaltando, portanto um
aspecto mais individual da mística;
- a perspectiva dos movimentos populares.
Vamos aprofundar a análise nessa última perspectiva: “(...) os movimentos populares compreendem a
mística como expressões da cultura, da arte e dos valores como parte constitutiva da experiência
edificada na luta pela transformação da realidade social, indo em direção ao topos, a parte realizável da
utopia” (Bogo, 2012, p. 476).
Bogo assinala que, desde o final do século XX, os movimentos populares assumiram e deram um
conteúdo sociopolítico à mística, nascendo assim “um novo jeito de ser sujeitos sensíveis na história com
uma mística que impede que sejam destruídos facilmente” (p. 479). Porque a mística é forjada no
processo de luta (formação), em que os sujeitos políticos que estavam com as consciências adormecidas
sentem o seu despertar pela força da mística, que carrega as ações de sentido simbólico, reforçando
ânimo para seguir em frente. Bogo define a mística, desde a perspectiva dos movimentos populares,
como segue:
A mística na militância é como a força de germinação que existe dentro das sementes. Assim como saem da dormência as gêmulas das
sementes, despertam os militantes para a história como sujeitos conscientes de suas funções sociais. Descobrem as potencialidades das
mudanças adormecidas nos contextos sociopolíticos e desvendam, na penumbra dos processos, possibilidades de agregar elementos
diferenciadores que impulsionam as mudanças sociais (...). A mística é o ânimo para enfrentar as dificuldades e sustentar a
solidariedade entre aqueles que lutam. A mística não somente ajuda a transformar os ambientes e cenários sociais; acima de tudo,
impulsiona e provoca mudanças por fora e por dentro dos sujeitos (Bogo, p. 477-479).
Portanto, poderíamos afirmar que, desde a perspectiva dos movimentos populares, a mística possui
duas forças: a subjetiva e a objetiva. A força subjetiva da mística seria essa força invisível que empurra
aos militantes a permanecer na luta, um sentimento muito forte que une o indivíduo a um coletivo a partir
de objetivos comuns. Nesse sentido, podemos dizer que Che Guevara estava dando uma definição da
mística militante ou revolucionária na famosa frase “o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes
sentimentos de amor”.
Esse sentimento de paixão, feito mística, tem suas bases de fundamentação e sustentáculo nos
princípios, nos valores, na ética revolucionaria, no desenvolvimento da consciência, no resgate e cultivo
da memória histórica (individual e coletiva), na arte e na cultura. A força objetiva da mística seria uma
forma de materialização desse sentimento (geralmente simbólica) através dos elementos da memória
coletiva, como expressão da cultura, da arte e dos princípios e valores que alimentam o projeto político
de cada movimento popular.
Mas, para não a fetichizarmos, é importante ter presente que não há possibilidade de mística sem que
haja relação do gesto místico com o projeto político da organização, ou com sua estratégia. Assim,
podemos dizer que uma organização sem estratégia clara é uma organização sem rumo e, portanto, sem
mística. A mística é o apontar dialético para o caminho, porque olha para o passado, para a história das
batalhas perdidas, para construir um futuro que possa redimir o passado.
De tal forma que, quando falamos do sentido sociopolítico da mística, estamos fazendo referência a
essa dupla força que impulsiona a mudança subjetiva que acontece por dentro dos sujeitos (homens e
mulheres) que a vivenciam, mas que, necessariamente, para que essa mudança subjetiva provoque
mudanças na realidade, num sentido sociopolítico, é necessário que consiga impulsionar mudanças
objetivas protagonizadas por esses sujeitos, levando-os a se posicionarem criticamente, e de forma
coletiva, diante da realidade da qual fazem parte, no intuito de transformá-la ao tempo que se
transformam a si próprios.
Nesse sentido, no curso, compreendemos a mística como práxis. Práxis, como conceito, expressa a
relação dialética entre teoria e prática, sendo a categoria fundamental na filosofia de Marx. A práxis, é
entendida como a atividade humana concreta que transforma a sociedade transformando ao mesmo tempo
o sujeito que a realiza. A mística, nessa perspectiva, revela-se como um mecanismo muito importante
para manter em movimento a transformação da realidade, em sentido dialético, alimentando e dando
significação ao projeto político das organizações populares que lutam pela transformação da realidade e
pela emancipação humana.
Mas a experiência e o acúmulo na prática da mística levaram o Movimento a identificar que, para
evitar certos riscos de reificação ou anulação do potencial estético e político, é fundamental, ter presente
a necessária relação entre os gestos místicos de uma organização popular e seu projeto político ou
estratégia. Riscos que aparecem quando ela é interpretada apenas como peça teatral, embora a
linguagem teatral possa ser e é apropriada pela mística, inclusive, como afirma Iná Camargo Costa, de
que esta é a expressão do teatro épico do MST. Tampouco, como ato de animação ou celebração, sendo
importante levar em conta que, apesar de animar no processo da luta, a mística tem um significado que
vai além disso, ela faz parte do processo pedagógico e formativo e tem uma estreita relação com o
projeto utópico dos movimentos sociais.

Essas formas limitadas de olhar e entender a mística são muito habituais, inclusive, por parte dos
próprios militantes dos movimentos populares. Por exemplo, Sottilli (2011) assinala que inicialmente a
interpretação da mística no MST foi centrada no campo da motivação e da esperança para e na luta, e
mesmo que essa interpretação tenha evoluído para uma concepção mais complexa, é muito habitual
encontrar militantes de movimentos sociais (não só no MST) que continuam ancorados nessa concepção.
Pensamos que é fundamental reconhecer esses, e outros riscos ou limites, para evitar cair em uma
visão idealizadora ou romântica da mística. E também que é imprescindível continuar trabalhando,
analisando, refletindo e construindo conhecimento sobre a prática política da mística nos processos de
luta e resistência, e demostrando a sua importância para alimentar o projeto político das organizações
populares e, assim, para poder superar essas visões e interpretações superficiais, para evitarmos que
seja esvaziada do seu conteúdo político, estético, formativo e pedagógico.
Ademar Bogo chama a nossa atenção, também, para refletir sobre como os movimentos populares da
América Latina identificaram claramente que as transformações sociais que perseguem devem ser
trabalhadas com a mesma importância no âmbito da racionalidade e no âmbito da afetividade. Sem
duvida, a mística é uma das formas identificadas pelos movimentos populares, fundamentalmente os
camponeses, para trabalhar de maneira integrada o racional e o emocional.
os movimentos camponeses, a partir do final do século XX, compreenderam que a totalidade do projeto das mudanças sociais não se
realiza apenas pela força e pela inteligência, os sentimentos e a afetividade também fazem parte do projeto e não podem ser ignorados.
A subjetividade de cada um torna-se objetividade no processo que efetiva a antecipação da utopia (Bogo, 2012, p. 476).
Nesse sentido, é inegável que um dos movimentos camponeses que incorporou como herança e
ressignificou a mística como uma necessidade no trabalho popular e organizativo3 foi o MST. Porem, é
necessário dizer que, mesmo que a mística faça parte do MST desde sua criação, ela é um legado das
lutas que o antecederam a nível nacional e internacional. Como o próprio movimento explica, no Caderno
de Formação n. 27, dedicado ao seu estudo:
Desde o início do Movimento Sem Terra desenvolvemos uma mística vinculada à prática. Desenvolvemos essa mística influenciada, em
especial, pelo trabalho pastoral das Igrejas Católicas e Luterana e pela experiência acumulada pelas organizações que nos
antecederam. Mas, sobretudo, a desenvolvemos inspirados no ideário das lutas socialistas históricas, na luta universal por melhores
condições de vida (...). Compreendemos que a prática da Mística tem um papel fundamental em termos individuais e coletivos (...).
Tem o papel de nos animar, de nos revigorar para novas e maiores lutas. De nos unir e fortalecer, de nos dar consistência ideológica
(MST, 1998, p. 5).
Roseli Salete Caldart (2012) afirma que o MST ressignificou a experiência da mística.4 Segundo a
militante e pesquisadora, explicar o sentido da mística do Movimento não é tarefa fácil “porque sua
lógica de significação não se expressa tanto em palavras, mas muito mais em gestos, em símbolos, em
emoções” (Caldart, 2012, p. 211-212).
Concordamos com Caldart quando assinala que, embora no MST se costume dizer que a mística é uma
realidade que se vive mais do que se explica, é possível identificar alguns elementos para podermos
refletir sobre ela e compreender os diferentes sentidos que tem para o Movimento. Nessa perspectiva,
trazemos algumas reflexões que nos ajudam a entender porque, para o MST, a mística, além de ter a
função de motivar para e na luta, é uma prática política, um produto coletivo que constitui ou faz parte da
sua cultura.
A mística é a capacidade de produzir significados para dimensões da realidade que estão e não estão presentes, e que geralmente
remetem as pessoas ao futuro, à utopia do que ainda não é, mas que pode vir a ser, com a perseverança e o sacrifício de cada um. É
uma experiência pessoal, mas necessariamente produzida em uma coletividade, porque o sentimento que lhe gera é fruto de convicções
e de valores construídos no convívio em torno de causas comuns (Caldart, 2012, p. 213).
Nessa mesma linha de pensamento, Sottilli, seguindo Caldart e Bogo, assinala que a interpretação da
mística no MST, inicialmente, foi centrada no campo da motivação e da esperança para e na luta, mas, é
necessário levar em conta que, no sentido filosófico e de valorização cultural remete a entendê-la como
parte da cultura do Movimento:
A mística no MST é um produto coletivo, bem como a sua apresentação e a sua preparação. Por isso, a entendemos como fruto de uma
determinada organização social, ou seja, se o MST tivesse se constituído de outra maneira, possivelmente a mística e todos os seus
elementos se apresentariam de maneira distinta de como se apresentam hoje. Assim, a mística já faz parte da cultura de luta do MST e
de outras organizações (Sottilli, 2011, p. 14).
Olhar para a mística desde essa perspectiva nos ajuda a entendê-la como prática política coletiva que
faz parte da cultura do MST, e que está totalmente ligada a seu processo histórico e a seu projeto
político, e que, portanto, teve funcionalidades e significações diferentes para o movimento ao longo dos
seus trinta anos de história:
Podemos afirmar que a mística faz parte da luta pela terra que o MST empreendeu em toda sua história de luta. Tanto é que a inserção
da mística no MST passou a fazer parte da organização não só nas lutas, como nas ocupações, por exemplo, mas também de sua luta
por outros bens essenciais às pessoas, como o direito à educação (Sottilli, 2011, p. 15).
Com o passar do tempo, e como consequência de múltiplos esforços e debates internos, a mística no
MST também passou a ser entendida como uma prática política com uma forte dimensão educativa e
formativa e, cientes dessa potencialidade, a mística passou a fazer parte do método pedagógico do
movimento e, portanto, a estar presente nas escolas e cursos do movimento, como assinala Caldart:
aprendendo do MST, no IEJC se considera que a mística é uma forma de cultivar sentimentos combinados com convicções e valores,
que nos ajudam a enfrentar os desafios de cada momento, de cada conjuntura. Ela trabalha com o intercâmbio humano no patamar
simbólico-artístico, ideológico e emocional, e [no curso] precisa ser compreendida como mais do que um tempo educativo (...) já que a
mística integra no método pedagógico a intencionalidade do trabalho na dimensão da convivência” (Caldart et al., 2014, p. 345).
Nessa perspectiva, a mística deve estar presente e manifestar-se nos diferentes espaços, tempos
educativos e momentos do curso, sem permitir que fique relegada ou reduzida a momentos concretos.
Destacamos agora, três elementos ou aspectos assinalados por Caldart (2012) sobre o sentido de
vivenciar a mística do MST, do ponto de vista da formação humana.
O primeiro elemento é a relação entre a mística e a formação dos valores humanos que sustentam a
escolha de continuar na luta, no sentido de que a mística “ajuda a construir a disposição subjetiva de
entrar no processo, de vivenciar de modo mais denso e rico as ações de que começam a participar. Em
outras palavras, a mística realiza uma espécie de ritual de acolhida” (Caldart, 2012, p. 214).
O segundo, a relação e cultivo da história ou da memória do povo, no sentido de entender os
momentos de mística como “tempo e espaço intencionalmente reservado ao processo de simbolização e
emocionalização da luta” (Caldart, 2012, p. 215), como um tempo de resgate da memória coletiva
fundamental para que os educandos consigam construir uma consciência de sua própria historicidade,
sendo um momento em que os sujeitos podem perceber o enredo de sua história com a história da
sociedade como um todo, a partir de uma visão de mundo construída pelo ponto de vista da classe
trabalhadora, ou seja, a mística reforça ou constrói laços identitários, e sentimento de pertencimento, a
partir de uma perspectiva de classe.
O terceiro dos aspectos destacados pela autora é o da mística como experiência de produção cultural
como autorepresentação, através dos símbolos e da arte, entendendo que a riqueza pedagógica desse
processo é ser sujeito da própria representação ao tempo que se realiza uma prática de resistência e
disputa cultural. De modo que ela sensibiliza os sujeitos para a necessidade da apropriação dos meios de
produção também no campo da representação simbólica.

O potencial e os limites da mística no Curso de Especialização Residência Agrária:
matrizes produtivas da vida no campo, da UnB
Buscamos, agora, incentivar o debate coletivo sobre as potencialidades e os limites que a mística
apresentou como práxis no desenvolvimento do curso. Como assinalávamos anteriormente, o curso se
desenvolveu em parceria com a ENFF e, portanto, ela esteve integrada na proposta pedagógica como
práxis num sentido marxista, conforme Caldart, “no processo de formação humana que acontece no
movimento da práxis: o ser humano se forma transformando-se ao transformar o mundo” (2012b, p. 548).
Nesse sentido, a proposta pedagógica do curso está baseada na necessária combinação e relação
dialética entre teoria e prática, entre conteúdos e vivência prática coletiva, e no entendimento de que os
estudantes são sujeitos do processo educativo.
Um dos primeiros gestos místicos que teve a intencionalidade de trasladar essa compreensão para os
estudantes foi a mística de boas-vindas, que a Coordenação Político-Pedagógica (CPP) preparou no
primeiro dia do curso. A CPP apresentou a história de vários personagens fictícios, misturando e
juntando fragmentos das histórias de vida de cada um dos estudantes do curso, a partir das cartas de
apresentação que eles tinham enviado no processo de seleção. A CPP queria transmitir que, apesar de
que a grande maioria dos estudantes não se conhecia entre si e suas trajetórias vitais eram diferentes, em
muitos aspectos, as histórias de vida de muitos deles tinham nexos comuns, como as desigualdades
sociais enfrentadas e os sonhos que almejavam, incentivando, assim, desde o primeiro momento, a
construção da identidade coletiva. Por outro lado, aquele gesto místico da CPP tinha a intencionalidade
de construir a disposição subjetiva de vivenciar, de modo mais denso e rico, o processo do qual
começavam a fazer parte. Mas, sobretudo o desafio de trasladar os sujeitos individuais em sujeitos
coletivos do seu próprio processo formativo.
A mística, como gesto coletivo, passou a ser executada pela Turma Marias da Terra, em diferentes
momentos não programados, como os intervalos dos turnos, entre as aulas, e se fez presente em decisões
autônomas dos estudantes do curso, como a assembleia convocada pelas mulheres do curso para tratar
dos problemas de gênero decorrentes da convivência com alguns companheiros que assumiam postura
ostensivamente machista, mas também para falar da ausência da perspectiva de gênero na grade
disciplinar, na bibliografia e no corpo docente selecionado para dar aulas na primeira etapa, que em sua
maioria eram homens, questões que foram identificadas nos primeiros dias da etapa pelas estudantes e
comentadas em pequenos grupos como uma preocupação. Pela sua densidade e importância pedagógica, e
por ser um dos exemplos em que a mística, como gesto místico coletivo, se fez presente na primeira
etapa, passamos, agora, a analisar esse processo e seus efeitos na organização do curso.
A assembleia das mulheres do curso foi um dos gestos místicos coletivos mais fortes da primeira
etapa. De forma autônoma e auto-organizada, foram convocadas todas as mulheres estudantes e da CPP, e
todas estiveram presentes, sendo necessário destacar que, para que isso fosse possível, os companheiros
dos NBs assumiram as tarefas programadas naquele horário, para que a assembleia pudesse acontecer. A
pauta da assembleia era pensar uma forma de responder coletivamente às atitudes e ações machistas que
alguns companheiros assumiram nos primeiros dias, e comunicar para a CPP a demanda coletiva de
integrar na construção do curso a perspectiva de gênero. Os encaminhamentos coletivos da assembleia
foram executar diferentes intervenções místicas coletivas, durante uma semana, em diferentes momentos
do dia, abordando as diversas formas de opressão que sofrem as mulheres na sociedade patriarcal e
machista. E, por outro lado, propor a CPP que, na etapa seguinte do curso, fosse reservado algum espaço
na grade curricular para estudar a relação entre campesinato e feminismo.
Em nossa avaliação, o processo pelo qual o feminismo foi colocado no curso como uma questão
fundamental, foi um exercício de crítica e autocrítica mediado pela mística, que transmitiu um
posicionamento político coletivo das mulheres da turma para dentro e para fora do curso e teve múltiplos
desdobramentos pedagógicos, sendo alguns deles: o reconhecimento, por parte da maioria dos
companheiros da turma, da falta de conhecimento sobre as questões de gênero e da necessidade e vontade
de se aprofundar na temática; a necessidade de incluir conteúdos específicos de gênero em algumas
disciplinas das etapas seguintes; a necessidade de abordar e de fazer uma leitura pedagógica dos
conflitos de gênero na turma; a necessidade de integrar nas linhas de pesquisa a questão de gênero por ser
uma temática demandada por várias estudantes; a necessidade de procurar corpo docente capaz de
abordar temáticas agrárias desde uma perspectiva feminista; a proposta da CPP de organizar o Seminário
“Conexões IV: feminismo, campesinato e luta de classes” que aconteceria durante a quarta etapa do
curso, em setembro de 2014.

Mística durante o Seminário Conexões IV. Foto: Pedro Magalhães



Entendemos que o processo mostrou que as(os) residentes entenderam, desde o início, que “a mística é
mais do que um tempo educativo” e que pode fazer-se presente por decisão autônoma e coletiva dos
estudantes do curso, de diferentes formas e com diferentes impactos e mensagens. Podemos dizer que, por
meio das decisões autônomas e coletivas que os estudantes do curso foram adotando, a mística se revelou
como um mecanismo pedagógico capaz de estimular a formação de sujeitos: críticos, questionando o
próprio processo do curso; criativos e corajosos, transformando com apenas um TNT vermelho um
campus universitário em um cenário aberto para compartilhar a arte e a cultura de resistência e luta;
compromissados, com o processo coletivo; atuantes, solidários, humildes, alegres etc.

Imagem 2. Ornamentação da FUP/UnB- Noite cultural TU I. Foto: Pedro Magalhães



São várias as potencialidades e os limites que a mística apresentou no decorrer do curso e no momento
em que se materializa como ação cênica ou ato de celebração, quer dizer, nesse tempo e espaço diário
reservado intencionalmente na grade curricular para ela. Durante o Tempo Universidade (TU), os
Núcleos de Base (NBs), como mostra a imagem, se distribuem duas tarefas coletivas para os 15 dias de
TU, a coordenação de cada dia e a mística, levando em conta novamente que, quando um NB é
responsável pela mística do dia, tem que planejar e garantir que ela se manifeste nos diversos tempos
educativos e nos diferentes espaços do curso (aula, corredores, pátio, alojamentos, saídas de campo
etc.).
Ao colocar, a cada dia, a realização da celebração da mística como responsabilidade de um NB, a
proposta pedagógica do curso busca também fortalecer a compreensão da organização coletiva como
princípio educativo. Essa intencionalidade é a mesma em todos os cursos que seguem a proposta
pedagógica da ENFF e do MST.
Em relação às temáticas das místicas, podemos dizer que foram bastante variadas, abordando entre
outras coisas: temáticas estudadas em sala de aula, como forma de resgate do debate desatado ou, em
menor medida, alimentando novas reflexões sobre as questões discutidas; reflexão sobre os valores e
princípios militantes; o resgate ou comemoração de fatos ou personagem históricos também foi
recorrente, mas, a maioria eram propostas para reflexão coletiva sobre o cotidiano do próprio curso ou
sobre acontecimentos da realidade externa ao curso (universidade, territórios de abrangência do curso,
lutas em nível internacional etc.)
Em relação ao tempo dedicado ao preparo das místicas diárias por parte de cada NB, é um tempo
organizado e planejado de forma autônoma mas, normalmente, os NBs só dispõem dos momentos de
intervalo ou das noites para isso. Achamos que isso marca um limite, ou desafio nesse e em tantos outros
cursos, já que as programações e atividades das etapas de TU, no geral, são muito intensas, quase sem
espaços livres para que os NBs possam construir e pensar as místicas com o tempo necessário. Isso
implica que, eventualmente, as temáticas e formas das intervenções das místicas sejam repetitivas,
manifestando certo bloqueio criativo, com roteiros pouco pensados e elaborados, em que os elementos
ficam soltos e abertos a improvisações. Ou seja, a rotina incessante, por vezes, torna o gesto da mística
um procedimento automático, em que o risco é a anulação da potente relação entre os seus sentidos
objetivo e subjetivo.
Outro limite é que o escasso tempo disponível para o preparo dificulta a sistematização dos roteiros,
digitalmente, e na memória das etapas, apenas existem registros fotográficos de algumas delas, e não a
estrutura narrativa construída para cada uma, com a sequência dos momentos de cada intervenção.
Todavia, quando o desafio é preparar a mística de algum evento dentro da etapa (seminários, mostra de
teatro, jornadas universitárias etc.), normalmente o tempo necessário para o seu preparo é maior, não só
para o roteiro, mas porque existe maior preocupação com a ornamentação e ambientação do espaço.
Nesse sentido, queremos assinalar outro limite que, sobretudo, constatamos que aparece nas preparações
para eventos, e não tanto para as místicas diárias do curso: estamos fazendo referência a que, mesmo que
a mística tenha uma natureza estética, esta tem que ser cuidada e submetida a objetivos pedagógicos e não
só estéticos, procurando que exista um equilíbrio adequado entre esses dois polos que a mística
apresenta além de ser constantemente renovada, problematizada e analisada, evitando cair em
padronizações, como assinala Sotilli:
Esses dois polos da mística são, ao mesmo tempo, seu fator formador e seu fator alienador (...) nesse sentido, a mística afirma e nega,
afirma-se e nega-se ao mesmo tempo, propõe e denuncia, mas também, pela sua própria prática diária que produz padrões para sua
construção, se autoameaça (...). Há que se educar as pessoas que convivem com essa prática a analisá-la, constantemente, e a
problematizá-la. O que não deixará a mística se autodestruir é que ela deve ser constantemente renovada (Sottilli, 2011, p. 59-60).
Mas, além desses limites, o preparo das místicas também mostra potencialidades e, nesse sentido,
também concordamos com Sottilli quando assinala que “O fato de as pessoas terem que sistematizar,
discutir e elaborar diariamente um determinado tema faz com que a formação de cada um seja tomada por
um ângulo que costumeiramente não é tomado na educação tradicional no meio escolar hegemônico na
sociedade” (Sottilli, 2011, p. 59). Chegamos, assim, à outra das potencialidades que a mística apresenta:
a contribuição dela como ferramenta para construir processos educativos fomentando o protagonismo dos
estudantes na condução do processo, na condução de sua própria formação. Nesse sentido, a mística
rompe a lógica unidirecional, apaziguadora, individualizada e fragmentadora do modelo de educação
hegemônico, trabalhando e potencializando capacidades dos estudantes como sujeitos coletivos que têm a
possibilidade de organizá-la e conduzi-la pedagogicamente, de forma coletiva, por meio do seu preparo e
execução.
Entretanto, constatamos que, para que essa capacidade da mística seja trabalhada durante o processo
formativo, é imprescindível fazer acompanhamento pedagógico e ter espaços específicos de formação
sobre o que é a mística, qual é a sua intencionalidade na proposta pedagógica, como se trabalha a
mística, roteiros estruturas narrativas etc. Pensamos que, dessa forma, poderíamos superar que a mística
se torne uma obrigação sem sentido nos cursos, principalmente para aqueles grupos que não têm
conhecimentos prévios nem experiência sobre a temática.
Dessa maneira, fechamos o ponto com uma autocrítica, já que avaliamos que esse foi um limite da
nossa CPP, no sentido de acompanhamento e leituras pedagógicas da mística no curso, colocando maiores
esforços em fazer análises e conexões com as mensagens que elas trazem para o coletivo e sobre o
processo do curso. Mesmo que em ocasiões pontuais tenhamos conseguido fazer, desde a CPP, esse
acompanhamento, achamos que teria sido necessário empenhar mais esforços e tempo para fomentar que
a mística tivesse maior presença nas atividades das Escolas Itinerantes de Formação (EIFs) e na
implementação das Unidades Demonstrativas. Isso, no intuito de potencializar e dar continuidade, para
além do curso, ao caráter pedagógico e transformador (individual e coletivo) da mística e na sua
capacidade para materializar um dos seus objetivos estratégicos que é o de colocar em diálogo os três
eixos que vertebravam o curso: formação política, pesquisa e cooperação; agroecologia e organização
de assentamentos; e cultura, arte e comunicação. Efetivamente, muitas místicas, realizadas no decorrer do
curso, conseguiram ser sínteses criativas dos três eixos ligadas à realidade territorial em que os NTs
atuam.

Considerações finais

A mística contribuiu para os sujeitos se posicionarem coletiva e politicamente, para dentro e para fora
do curso e, também, para mostrar sua identidade, sua história, e o projeto político estratégico dos
movimentos sociais dos quais fazem parte. Mario Benedetti, no poema “Porque cantamos” poetiza de
forma singular esse posicionar:
Cantamos porque o grito só não basta
E já não basta o pranto e a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota.
O cantar coletivo confere sentido à luta, em todos os campos, institucionais, até as batalhas campais,
nas ocupações, despejos, ocupações de prédios públicos porque traz a certeza de “fazer o caminho de
vencer’’. Ademar Bogo, no poema “Marchar e vencer”, revela o potencial desses seres sociais se
colocarem em movimento pela força da mística:
E nessas marcas de bravos lutadores
Iniciamos a edificação de novos seres construtores
De um projeto que nos levará à nova sociedade.
Marchamos por saber que em cada coração há uma esperança
Há uma chama despertada em cada peito
E a mesma luz é que nos faz seguir em frente
E tecer a história assim de nosso jeito.
Dessa forma, as potencialidades da mística representam, em alguma medida, o sentido de humanidade
em construção que faz frente ao poder desolador da lógica de progresso da classe dominante, ou à
dinâmica automática e destrutiva do capital. Diva Lopes, poetiza do Maranhão, por meio do poema
“Concentração de Direitos” alerta para as necessidades de construção de um novo tempo dessa
humanidade em construção.
Necessitamos de um tempo que plante ideias
E pratique ações transformadoras.
Que desmonte as ordens de quem escraviza,
Que provoque desejos desmedidos,
Que humanamente eduque as gerações,
Não aceitamos mais,
As diferentes faces da mesma dor,
A morte da sensibilidade,
A concentração dos direitos,
O não tempo para o amor,
A prisão da liberdade!
A mística apresenta duas forças: a objetiva, aquela que podemos ver e tocar e é a parte visível da luta
que se materializa através dos símbolos e dos gestos daquilo que ainda não é, mas está para ser; a força
subjetiva representa o sentimento do amor pela causa do povo. Podemos, então, afirmar que a mística
representa um aspecto ideal e um aspecto material porque ela apresenta aspectos que vão além das
aparências.
A mística tem o potencial de prática social transformadora (individual e coletiva), porque os sujeitos
individuais se reconhecem como seres de transformação através da organização política. Por isso, a
mística pode qualificar a prática política dos sujeitos que estão envolvidos no processo. Paulo Freire, de
forma sábia, definiu essa preparação paciente, com a impaciência do novo ser e da nova sociedade, com
o poema “Canção óbvia”:
Estarei preparando a tua chegada
como o jardineiro prepara o jardim
para a rosa que se abrirá na primavera.

Referências bibliográficas
BOGO, Ademar. Mística, in: CALDART. R. S.; PEREIRA, I. B.; ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO, G.(orgs.). Dicionário da
Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: EPSJV; Expressão Popular, 2012, p. 475-479.
BOGO, Ademar. A mística parte da vida e da luta, in: PELOSO, R. (org.) Trabalho de Base. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
_____. O vigor da mística. Caderno de Cultura n. 2. São Paulo: MST, 2002.
_____. O MST e a cultura. Caderno de formação n. 34. São Paulo: MST, 2000.
CALDART, Roseli. S et al. Escola em Movimento no Instituto de Educação Josué de Castro. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular,
2013.
_____. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola. 4ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
_____. Pedagogia do Movimento, in: CALDART. R. S.; PEREIRA, I. B.; ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO, G.(orgs.) Dicionário da
Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: EPSJV; Expressão Popular, 2012b, p. 548-555.
FREIRE, Paulo. Canção óbvia. Disponível em:
<http://www.projetomemoria.art.br/PauloFreire/biografia/08_biografia_correspondencias.html>. Acesso em: 1º jun. 2015.
ITERRA. Instituto de Educação Josué de Castro: Método Pedagógico. Cadernos do Iterra, n. 9. Veranópolis/RS, 2004.
LOPES, Diva. Um instante de transgressão. Imperatriz/MA: Editora Ética, abr. 2011
MST. Mística: uma necessidade no trabalho popular e organizativo. Caderno de Formação n. 27. São Paulo: MST, 1998.
SOTTILLI, Tiago A. Mística e arte no processo de formação do IEJC. Monografia (Licenciatura em Educação do Campo), UnB-
FUP. Brasília, abr. 2011.

Artigo apresentado por Lindalva Santana, no Seminário Educação e Arte no Campo, na Udesc, nos dias 20 a 23 de agosto de 2014.

Excede o objetivo de esse artigo apresentar os diferentes elementos que compõem o método pedagógico construído pelo MST.
Recomendamos a leitura do livro de Roseli Salete Caldart (2012) Pedagogia do Movimento Sem Terra para aprofundar sobre esta
questão. Neste artigo, apenas aludimos ao método pedagógico, por estar refletindo sobre a mística como elemento que o integra.

Titulo do Caderno de Formação n. 27, do MST (1998): “Mística: uma necessidade no trabalho popular e organizativo”, dirigido à
militância sem terra que compila três textos dos principais intelectuais que subsidiaram teoricamente a prática da mística desde o
surgimento do MST: Alimentar nossa mística (Boof, 1992); Como melhorar nossa Mística (Bogo, 1997); A força que anima aos
militantes (Peloso, 1996). Para aprofundar no sentido histórico da mística no MST, recomendamos a leitura de esse caderno disponível
na Biblioteca Digital da Questão Agrária Brasileira: <http://www.reformaAgráriaemdados.org.br/>.

Como afirma Caldart, “o MST é uma coletividade que tem certa cultura organizativa, quer dizer, seus princípios, valores, ideário, mística
não são uma invenção dos sem terra do MST, mas sim, fruto da disposição que tiveram de aprendê-los com outras organizações e
movimentos da história da humanidade e que ao consolidá-los nas suas próprias ações como herança cultural, recriando-os ou dando-
lhes novos formatos práticos e teóricos, como herança também para outros grupos, seus contemporâneos ou os que virão a sucedê-lo”
(Caldart, 2012, p. 206).

ELEMENTOS BÁSICOS PARA A COMPREENSÃO DA RELAÇÃO ENTRE
CULTURA E ESTRATÉGIA POLÍTICA NA EXPERIMENTAÇÃO CULTURAL
DO MST1

Juliana Bonassa Faria

Para pensar o papel da cultura no processo de transformação social é necessário pensá-lo


integralmente. Este constitui um processo contínuo e diverso, no qual, conforme vai-se construindo na
práxis, o processo de transformação social também constrói a cultura que respalda e dá vigor ao mesmo.
Os processos de lutas sociais de caráter transformador, como é o caso do MST, apresentam como
bandeira principal uma urgência em superar as dificuldades e limitações latentes da realidade vivida.
Estas, de caráter prioritariamente social e econômico, são as que movem em grande medida estes
processos de luta. E essa projeção de objetivos imediatos pode opacar em certa medida a importância da
ampliação dos objetivos da luta em busca de uma compreensão da importância de porquê lutar e
conquistar direitos que aparentemente não são tão palpáveis como são a terra, as casas, a agroindústria,
as estradas, os créditos etc.
A luta pelo direito à alfabetização, ao acesso à produção cultural da humanidade, a escrever e se
expressar, e a intervenção e participação nos processos constitutivos de uma determinada comunidade
podem parecer detalhes; porém, em nossa compreensão, é o pilar central do que denominamos processos
emancipatórios. Nesta perspectiva, a luta pelos direitos básicos e pela formação integral dos sujeitos em
luta se apresenta como elemento fundamental na construção de uma nova sociabilidade. Sobre essa
questão, Paulo Freire destacou:
O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interfere na objetividade com que dialeticamente me
relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de
ocorrências. Não só apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato, não
para me adaptar, mas para mudar (Freire, 2004, p. 79).
A essência da questão que abordamos não é banalizar o debate no sentido de priorizar uma ou outra
necessidade. Não se trata de separar qualitativamente a luta pelas melhorias estruturais, econômicas e
sociais; das melhorias do ponto de vista cultural que abarcam todo o anterior e também a educação, os
saberes populares, o comportamento, as crenças, os valores. Em essência, tudo o que implica a maneira
de produzir e reproduzir a existência humana. No caso do MST, essa maneira de produção e reprodução
da existência humana está mediada pela luta e, ao mesmo tempo, está marcada pelas contradições da
sociedade brasileira.
Desde o ponto de vista da formação humana na luta, a importância desse processo de transformação do
indivíduo em sujeito histórico da mudança se fortalece ainda mais quando este possui uma noção e
experiência sobre a realidade de uma maneira participativa. O que no decorrer do processo lhe
possibilita uma leitura crítica do mundo, num processo vivido de intervenção, construído de maneira
dialética desde dentro.
Pelo anterior afirmado, necessitamos reforçar que esse processo não se deve compreender como um
linear e crescente avanço da consciência, como se este fosse um processo de acumulação automático. É
necessário intencionalizar tanto a leitura de mundo como as possibilidades de mudanças, e que essas
correspondam às necessidades reais, pois, a capacidade de projetar processos coletivos de mudança
social é um dos exercícios mais complexos da práxis revolucionária.
Esta preocupação é válida, porque partimos da ideia de que os sujeitos e a luta por mudança se
constroem dialeticamente, na medida em que um processo reforça o outro. Fernando Martínez Heredia,
em seu artigo, “Necessitamos um pensamento crítico”, sobre o papel do intelectual e a necessidade de um
pensamento crítico no processo revolucionário, afirma:
se a história real dos fatos e dos desejos das pessoas numa revolução tem importância, é porque registra os maiores alcances e os mais
profundos problemas dos indivíduos e das sociedades. Por isso, toda história real de revolução é subversiva, e aponta a desafiar o
presente e devolver a fé no futuro (Martínez, 2010, p. 11).
Se assim compreendemos o processo, a prática cultural deve ter um espaço ativo em relação direta
com o conjunto da luta estratégica, pelo qual resulta importante analisar algumas experiências com o
intuito de explicitar como se manifestam ditos processos. Sabemos que essa não é uma questão simples,
dado que o MST não está isolado numa bolha. Suas experiências estão enquadradas no contexto
histórico-cultural correspondente à sociedade brasileira.
Por essas razões, propor-se a construir processos emancipatórios, que nasçam da vinculação do
processo de construção do sujeito de acordo com as necessidades de transformação é um ato de rebeldia.
E se torna ainda mais complexo quando falamos de uma sociedade que, como nos afirma Coutinho,
“carece de processos criadores de participação popular” (Coutinho, 2011, p. 9).
O MST afirma-se na construção de um sujeito social que luta e reafirma uma prática em primeira
instância rebelde. Porém, como sabiamente nos alerta Paulo Freire, as questões da transformação social
são tão profundas que necessitam passar da rebeldia às posições revolucionárias (Freire, 2004, p. 81).
O desafio que se apresenta é de como conjugar as duas esferas na construção do processo
emancipatório. Garantindo que, conforme se conquiste melhorias estruturais, estas também correspondam
a preceitos emancipatórios. É justamente nessa questão onde detectamos a necessidade de repensar o
lugar da cultura no processo de transformação social. Nesse sentido, a cultura pode ser compreendida,
também, como a possibilidade de mudança. No caso específico do MST, para nos acercarmos a sua
produção cultural necessitamos compreender algumas questões que com ela se relacionam diretamente.
A primeira questão é que a prática cultural do MST não nasce do nada, nem se conforma isoladamente.
É fruto de um processo que provém da luta de classes de um país como Brasil, cujo desenvolvimento está
marcado por um processo de permanente negação e assimilação de contradições, com demarcado caráter
homogeneizador do processo de formação cultural, de natureza opressora e excludente.
Esses elementos contribuem na conformação de um sentimento de pertença alienador no qual se
constrói uma imagem e um sentimento de nação que não correspondem à conformação desigual do Brasil.
Por isso, podemos afirmar que é dialética a dinâmica cultural do MST, dado que confronta e assimila
contradições, tal como a dinâmica cultural brasileira. Ou seja, não podemos entender a prática cultural
do MST sem compreender a prática cultural brasileira. E esta experiência é bastante complexa, como
aborda Carlos Nelson Coutinho:
o problema central da cultura brasileira, ou seja, em termos gramscianos, a escassa densidade nacional-popular de seus produtos tem
sua gênese na ausência de um ‘grande mundo’ democrático em nossa sociedade (...), ausência que resulta dos processos de
transformação por cima (‘revolução passiva’) que marcaram a história brasileira, impedindo ou dificultando a participação popular
criadora nas várias esferas do nosso ser social. A principal consequência desta constelação sócio-histórica no plano da vida cultural
brasileira foi a preponderância de uma ‘cultura ornamental’, elitista, que muito dificultou a construção de uma efetiva consciência crítica
nacional-popular entre nós (Coutinho, 2011, p. 10).
A segunda questão é que a “cultura é o arsenal da práxis da existência humana” (Bonassa, 2011, p. 26),
o que significa que a cultura é para o MST a produção e reprodução da existência humana em todas suas
esferas, com uma perspectiva emancipatória anunciada que reconhece a luta como uma de suas matrizes
fundamentais. O que nos permite que a totalidade da luta do MST também se articule com uma ideia de
Cultura como forma de concretizar a vida.
Por isso, se faz necessário estabelecer a relação vital entre cultura e território. Dado que esse arsenal
cultural ao qual nos referimos – o do MST – é também um conjunto de definições de caráter político que
estão em enfrentamento direto com as formas homogeneizadoras e com o arsenal cultural do sistema
capitalista. Esses processos culturais se dão num espaço que é de complexa conformação e que está em
permanente disputa.
Portanto, questões como a forma de organização das comunidades, o que se planta, os cuidados com os
seres humanos que vivem nas comunidades do Movimento Sem Terra, a educação, as questões de gênero,
as formas de luta, as alianças políticas, a comunicação, a saúde, entre outras, são exercícios de
enfrentamento praticados cotidianamente. E, vão conformando um fazer cultural complexo que nos
permite acercarmos à ideia de que no MST podemos falar de uma cultura política, que tem como base a
luta. E essa luta se dá em um território demarcado por processos de enfrentamentos externos e internos.
Nesse sentido, Luiz Henrique Gomes Moura, baseando-se no conceito de território usado elaborado
por Milton Santos, aborda que:
o território usado, que seria sinônimo de espaço geográfico...território usado é o fundamento do trabalho, o lugar de residência, de
mudanças materiais e espirituais e do exercício da vida, enquanto território por si só é um conjunto dos sistemas naturais e de sistemas
de coisas superpostas. É formado pelo conjunto indissociável de sistemas de objetos (que podemos aludir as forças produtivas) e
sistemas de ações (que, por sua vez, seriam as relações de produção) (Moura, 2015, p. 7).
A terceira questão é que toda construção teórica e prática da cultura no MST tem em sua gênese as
contradições e enfrentamentos encontrados no conjunto das relações que o movimento estabelece, não são
somente as derivadas dos seus processos internos. O que nos permite afirmar que, no Movimento Sem
Terra, podemos falar de uma construção de uma cultura que também vai se constituindo no diálogo e
enfrentamento permanente com processos culturais externos a ele próprio.
Esse elemento é importante dado que estamos abordando, aqui, uma dinâmica cultural que se
desenvolve, e que, conjuntamente, vai-se conformando a partir da confrontação com a dinâmica cultural
hegemônica. O MST é uma organização de caráter social e político que assume a cultura como uma de
suas aliadas fundamentais, a qual atua como catalisadora dos processos políticos e como via de
intervenção coletiva. O anterior nos permite reconhecer uma profunda relação entre cultura e política na
práxis geral do MST, pois, ao lutar pela terra, o sujeito antes invisibilizado conquista terra, casa, crédito,
ao tempo que conquista o direito à palavra, à escrita, aos direitos básicos, à intervenção política e
cultural. O percurso entre o iniciar da luta pela terra até o processo permanente de emancipação gera um
sujeito social com capacidade de intervenção na realidade. A luta será a matriz fundamental na
construção da dinâmica cultural do MST. E é a partir da luta e seus desdobramentos que reconhecemos o
vínculo vital.
A quarta questão é que, no que se refere à produção cultural no MST, podemos detectar desde seus
inícios a preocupação com “os mecanismos de construção da hegemonia do sistema capitalista a partir de
dimensões que nem sempre são trabalhadas pelos movimentos, partidos, organizações de esquerda, essas
são as que respondem às esferas de constituição do indivíduo, modos de vida, valores, ética, gostos,
aprendizagens, entre outros” (Bonassa, 2011, p. 61).
Esta preocupação com a influência hegemônica no campo cultural levou o MST a um exercício de
produção na esfera cultural com marcado caráter de enfrentamento. E, ao mesmo tempo, uma produção
cultural que implica uma compreensão e prática totalizadoras, em que os processos artísticos e culturais
sejam compreendidos como elementos importantes na constituição do sujeito social Sem Terra. E, ainda,
que no processo da luta do MST se lute também pela experimentação artística e cultural, pelo domínio de
técnicas, dos meios de produção, do processo coletivo de produção cultural, até a experimentação de
processos de socialização e sociabilização que se contraponham às práticas culturais hegemônicas,
impostas pelo sistema dominante.
É também no caráter de enfrentamento que em nossa análise consideramos a prática cultural do MST
como um processo de continuidade da construção de uma cultura política que foi interrompida pela
ditadura militar iniciada na década de 1960. Sobre essa questão, que constitui um pilar para a
compreensão da relação entre a cultura e a estratégia política na luta Sem Terra, encontramos no estudo
de Rafael Litvin Villas Bôas e Paola Masieiro Pereira a seguinte afirmação:
A historiografia sobre o impacto da última ditadura nacional aponta, com competência, os traumas que permanecem incidindo sobre a
sociedade brasileira, inclusive posteriormente à redemocratização. Cabe destacar alguns, com a intenção de compreendermos no
desenvolver do argumento qual era a força potência daquele processo de ascensão da luta popular: o fim da pretensão de construção
efetiva de um projeto nação; o aprofundamento da cisão entre as esferas da política, da economia e da cultura, e a consequente
compreensão da cultura e da produção artística como sinônimos de entretenimento e espetáculo; o triunfo do liberalismo no âmbito das
políticas culturais, de corte privatista, sendo a Lei Rouanet2 a principal referência; e a consolidação da Indústria Cultural como
dimensão protagônica do bloco histórico hegemônico (Litvin & Masieiro, 2014, p. 2).
De modo que, ter em conta estes elementos, nos ajudam a não cair numa análise moralista ou culposa
sobre algumas questões do campo cultural que não se resolveram apenas por nossos desejos em
transformá-las. A intencionalidade política no fazer cultural deve ser um princípio de condução, dado que
na prática cultural do MST está também insertado de certa maneira um processo de continuidade das
lutas que foram freadas pela ditadura militar.
Por isso, não se pode compreender adequadamente a dinâmica cultural sem compreender pelo menos
esses quatro elementos que apresentamos. Por outra parte, não se pode compreender a dinâmica cultural
do MST sem abordar outros dois elementos mediadores que são fundamentais: o enfrentamento
permanente e a práxis.
O enfrentamento permanente é essencial, porque se trata de um movimento social que tem em sua
essência a luta pela terra. No caso específico do Brasil, ultrapassa a ideia de luta somente territorial no
sentido do solo, esse território é também o conjunto de todas as relações que se estabelecem nele, que
são a sua vez objetivas e subjetivas. E a luta pela terra como primeiro objetivo do MST, não tem sentido
se se resumir somente nela, é necessária sua superação a partir da conquista da Reforma Agrária, e esta
última, da mesma maneira deve ser superada pela transformação social. Ou seja, o território em questão é
também outra forma de produção e reprodução da existência humana (a cultura) em outro projeto de
sociedade, que também está em enfrentamento permanente.
E este enfrentamento permanente está fortemente marcado por elementos da cultura hegemônica.
Portanto, partimos da ideia de um enfrentamento desigual, e necessitamos ter isso esclarecido e saber
como foi se conformando, para não partir de uma análise equivocada de que se trata de uma disputa de
forças semelhantes. A disputa é desigual, pois a conformação das forças igualmente o é. Esta
problemática é abordada essencialmente numa reflexão sobre o teatro político brasileiro, em que Rafael
Villas Bôas e Paola Masieiro nos advertem:
O efeito da hegemonia erigida pela classe dominante depois do último grande tensionamento de classes, que culminou no golpe de 1964,
como única alternativa que restou à elite, a coerção, já que a via de consentimento não estava inteiramente a seu favor – dissemina-se
pelo presente, ameaça o futuro e expropria a memória de ameaça contida no projeto dos perdedores. Em consequência, as obras deste
ciclo formativo do teatro político brasileiro são registradas como mercadorias no inventário do espetáculo da história do teatro nacional,
a despeito de nossas ‘relíquias’ guardarem em si, como força latente e negativa, a promessa de liberdade de um outro mundo
emancipado, por surgirem, como processo, como processo e como forma, contra o mundo coisificado (Litvin & Masieiro, 2014, p. 6).
O enfrentamento permanente no campo das ideias é, nesse contexto, um instrumento eficaz na luta de
classes. Compreender seus mecanismos e conseguir inserir os elementos dessa batalha de ideias de forma
integral nos processos de luta é um grande desafio. Isso seria a prática efetiva de um fazer cultural e
político diferenciado, e uma práxis de combate permanente em que a experimentação de práticas culturais
que tenham como base preceitos emancipatórios que sejam fortalecidos no conjunto do MST. Como por
exemplo, contrapor a lógica do espetáculo a partir de processos coletivos de produção artística e
cultural; privilegiar processos de socialização cultural ao invés de massificação cultural; assumir a
formação como um elemento fundamental para o exercício de práticas culturais de caráter contra-
hegemônico; e intencionalizar as intervenções artísticas e culturais em diálogo permanente com a
estratégia de luta do MST.
A práxis é entendida como o exercício dialético de construção de processos culturais totalmente
vinculados à realidade da vida e da luta Sem Terra, com seus limites, suas contradições, mas também
com suas conquistas em que a teoria e a prática caminham juntas e ambas desenvolvidas pelos sujeitos da
própria luta, ou seja, os/as trabalhadores/as Sem Terra. Aqui, é importante ressaltar que essa construção
não se dá de maneira isolada, pois os sujeitos implicados estão inseridos em um mundo de relações
hegemonizadas pelo sistema capitalista.
Mas esses sujeitos estão, por sua vez, tentando criar e experimentar relações e produções culturais
diferentes das hegemônicas. E esse processo de experimentação necessita ser avaliado e repensado, pois
compreendemos que existe a necessidade de aprofundar algumas questões, como: se existe ou não no
MST uma produção cultural contra-hegemônica; provocar um balanço dos avanços e limites da prática
cultural no MST; pensar formas de debate e de práticas com o conjunto do MST.
Acreditamos que, ao pensar essas mediações do enfrentamento permanente e da práxis, situadas num
processo de luta e de construção de um modo de vida, contribuem para nos aproximarmos dos elementos
que fundamentam uma dinâmica cultural diferenciada. E é justamente no processo contínuo de construção
dessa dinâmica cultural diferenciada que podemos compreender como se produz a relação entre política
e cultura na práxis do MST. É na luta e a partir de suas demandas concretas que se projetam os elementos
vitais dessa relação.
Ressaltamos essa questão das mediações, pois temos como foco um Movimento que tem na sua gênese
num processo de luta que está em enfrentamento direto com a estrutura agrária brasileira, altamente
concentrada nas mãos de poucos e embrião da latente desigualdade social existente no país. Portanto,
quando nos referimos à luta do MST entramos no campo da resistência e do enfrentamento. O que nos
permite detectar que a prática cultural forma parte do todo da luta do Movimento, e é um exercício
permanente de experimentações contrárias às práticas hegemônicas.
Sobre as bases dessas experimentações, encontramos uma interessante sistematização no “Glossário de
Conceitos Chaves sobre Estética e Política”, que aborda alguns “pressupostos para uma ação contra-
hegemônica”
Não há distinção entre política, cultura e comunicação, como não há, na luta de classes, distinção entre Estado e capital. A luta por
transformação da sociedade exige mecanismos de transformação ideológica (da cultura e da comunicação). Uma estratégia de
transformação não pode prescindir desses elementos e não cabe a um militante agitador, propagandista, comunicador e/ou artista atuar
apenas na esfera da comunicação e da cultura, pois é preciso se inserir e atuar nas trincheiras de uma organização a serviço da
transformação da sociedade (Coletivo Nacional de Cultura, 2014, p. 201 e 202).
Tendo como base essa compreensão mais ampliada da relação entre política, cultura e comunicação,
podemos nos aproximar de alguns aspectos que caracterizam o fazer cultural no MST. Estes aspectos nos
permitiriam centrar algumas ideias em relação a que tipo de prática cultural estamos abordando no caso
do MST, e quais são suas relações com a práxis geral do Movimento.
A luta, para o MST, é a matriz fundamental de todos os processos de desenvolvimento pelo e dentro do
Movimento. É na luta que se forjam seus militantes, aqueles que tornam possível sua existência. O
processo contínuo que une a demanda específica e histórica, a luta pela terra, também proporciona a
construção dos sujeitos que atuam nela. E esse processo de formação dos indivíduos em sujeitos da luta
se baseia inicialmente nas conquistas de direitos.
Entendemos que as conquistas dos direitos como pronunciar-se, ler, escrever, elaborar e construir
ideias para a intervenção política3 de caráter emancipador, funcionam como fio condutor para a
compreensão da relação entre política e cultura na práxis geral do MST. Esse processo de conquistas de
direitos essencialmente básicos, no caso da luta social no Brasil, pode ser considerado uma revolução
cultural, pois ao ser praticado, ensina e educa o antes “indivíduo invisibilizado e socialmente excluído”,
que é possível chegar a ser um sujeito histórico da transformação social.
Como podemos observar, o processo de formação da militância no MST é bastante abrangente. Parte
das conquistas dos direitos básicos da esfera educativa, como é a alfabetização, por exemplo, e vai até o
protagonismo na militância política. Esse é um caminho árduo e complexo entre a descoberta das
palavras escritas e as noções de direitos básicos, até chegar à capacidade de elaboração da intervenção
política articulada. Isso nos permite afirmar que, no MST, os sujeitos da luta são os próprios Sem Terra e
que a educação e a formação integral são os primeiros espaços da formação estruturada de um grande
processo emancipador que é a luta do MST.
Em suma, podemos concluir que a relação entre cultura e política na práxis do MST é a principal fonte
de elementos contra-hegemônicos, presente em suas práticas culturais. É na luta que os militantes Sem
Terra percebem e intencionalizam o papel da cultura como espaço de enfrentamento e resistência. Porém,
ainda se faz necessário um processo de compreensão e prática efetiva desse fazer cultural que envolva
todo o conjunto do Movimento, pois, se compreendemos que existe a relação entre cultura e política na
práxis do MST, esta deve, necessariamente, ser construída e praticada por todos seus integrantes.

Referências bibliográficas
BONASSA FARIA, J. Caminos y descaminos en la construcción de una praxis cultural emancipadora. Un registro crítico del desarrollo
del Colectivo Nacional de Cultura del Movimiento Sin Tierra de Brasil de 1996-2006. Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado para obtenção do título de licenciada em História da Arte da Faculdade de Humanidades da Universidade de
Oriente. Santiago de Cuba, 2011.
_____. La relación política y cultura en la praxis del Movimiento de los Trabajadores Sin Tierra de Brasil (MST). Una reflexión acerca
de los elementos contra hegemónicos existentes en la experimentación cultural del MST en el quinquenio 2002-2007. Dissertação
apresentada para obtenção do título de Mestra do Programa de Mestrado “Desarrollo Cultural Comunitario”, da Faculdade de
Ciências Sociais da Universidade de Oriente. Santiago de Cuba, 2015.
CAMARGO COSTA, I. & e CARVALHO, D. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura. Os
cinco primeiros anos da Lei de Fomento ao Teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008.
COLETIVO NACIONAL DE CULTURA DO MST. Cultura, arte e Política no MST. Versão impressa, 2014.
COUTINHO, C. N. Cultura e sociedade no Brasil. Ensaio sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
GOMES MOURA, L. H. Verbete Território. Versão digital, 2013.
LITVIN VILLAS BÔAS, R. e MASIERO PEREIRA, P. Teatro Político, questão agrária e ditadura: Dimensão do trauma,
defasagem e retomada. Brasília, 2014.
MARTÍNEZ HEREDIA, F. El ejercicio de pensar. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 2010.

Este artigo foi elaborado a partir da Dissertação de Mestrado da autora, intitulada “A relação política e cultura na práxis do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST). Uma reflexão acerca dos elementos contra hegemônicos existentes na
experimentação cultural do MST no quinquênio 2002-2007”. Defendida na Universidade de Oriente, Santiago de Cuba, 2015.

Ver mais em Camargo & Carvalho, 2008.

Além dos direitos básicos, como: alimentação, moradia, trabalho, acesso à saúde etc.

A IMPORTÂNCIA DO CURSO RESIDÊNCIA AGRÁRIA NO COTIDIANO DA
VIDA ESTUDANTIL E PROFISSIONAL DO(A) ESTUDANTE DAS CIÊNCIAS
AGRÁRIAS

Maria Adriana Alves Dantas


Introdução:
Antes de começar a falar sobre a importância e contribuições que o curso de especialização em
residência agrária trouxe e traz para minha vida profissional e educacional como estagiária, quero falar
um pouco de como se deu a história de sua criação e formulação, pois assim perceberemos que, por se
tratar de um projeto pensado de forma coletiva, e envolvendo não só intelectuais, mas vários setores da
sociedade e estudantes, ele foi pensado para contribuir verdadeiramente na transformação da vida de
todas as pessoas envolvidas.
Este jeito de pensar coletivamente é chamado de Educação Popular, pois envolve as pessoas em todas
as etapas de um processo, e faz com que as pessoas envolvidas não só transformem suas vidas e mudem
sua visão de mundo, mas desejem que os outros mudem também, passando ambos a serem protagonistas
de suas próprias histórias, dando a elas sentido dialético! O criticar só por criticar não existe mais! A
crítica vem acompanhada da ação, sendo isso algo comum na vida das pessoas que vivenciam
verdadeiramente as práticas da Educação Popular. Creio que, desta forma, foram pensados os cursos de
Residência Agrária há mais de 10 anos, até os dias de hoje: educar para transformar!

Caminhos para chegar ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)

Para chegar ao curso Residência Agrária, como existe hoje, em diversas universidades federais, os
primeiros passos foram iniciados em 2004, quando foi implementado como um programa do Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA) e por meio de uma ação no Plano Plurianual (PPA), 2004-2007.
Após ser legitimado e passar por avaliações, em 2008, se revitalizou com recursos que possibilitaram
novas iniciativas. A seguir, cito trecho do capítulo: “Dez anos de Pronera e o programa Residência
Agrária”, que afirma:
O programa Residência Agrária é uma das propostas que se tornou realidade. Pela teimosia coletiva, por um lado, de produzir avanços
no campo das políticas públicas, e, por outro, pela própria materialidade do Pronera e as relações que produz com as Universidades e
com os movimentos sociais, colocando-os em diálogo. Um diálogo que se inicia em torno de um determinado e específico curso, mas
que, por esta condicionalidade e convivência, se amplia para outras ações (Molina, 2009, p. 7).
O surgimento do curso de especialização em Residência Agrária decorre de um processo intenso e
articulado de diversos educadores(as) e pessoas dos movimentos sociais envolvidos(as) em vários
debates e encontros, como o 1º Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária
(Enera)1, ocorrido em julho de 1997. Nele, os participantes sentiram necessidade de dar continuidade ao
que debateram a partir dessa luta constante em inserir o mundo rural dentro da universidade. Após este
encontro surgiu outro, no mesmo ano, quando representantes de algumas universidades se reuniram na
UnB, em Brasília, para pensar formas de inserir as instituições de ensino superior no processo
educacional dos assentamentos. Deste encontro, foi formado um grupo para pensar a construção de um
projeto educacional das Universidades nos assentamentos, e o documento foi apresentado no III Fórum do
Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, ocorrido nos dias 6 e 7 de novembro de 1997. A
proposta foi aprovada e, em 16 de abril de 19982, e fruto dessa luta, surge o Programa Nacional de
Educação na Reforma Agrária (Pronera), passando a ser incorporado ao Incra em 2001.3
Em 2004, diante da prioridade do governo para a educação como direito social, o Pronera foi
novamente readequado, possibilitando uma maior abrangência de atuação.4 Dessa forma, o Pronera, se
desenvolve, então, como uma política pública para a Educação do Campo, executada pelo Incra (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário).
Quero ressaltar, aqui, que esta ordem cronológica de acontecimentos não surgiu por acaso e nem do
nada, elas decorrem de várias demandas dos movimentos sociais do campo, ligados à Educação Popular,
que traz em seu viés de ação: a luta! Não podemos pensar qualquer política pública sem antes pensar nas
mobilizações, enfrentamentos, discussões e lutas oriundas da organização popular que exigem do Estado
brasileiro que garanta os direitos básicos para todos os cidadãos brasileiros, incluídos aqueles que
moram no campo, tradicionalmente excluídos do acesso às políticas sociais. O surgimento do próprio
Pronera, de certa forma, é uma resposta ao massacre de Eldorado dos Carajás5 e resultado do 1º Enera.
Trata-se de uma política indutora da aproximação entre universidade e movimento social que, desde a
sua criação, foi responsável por garantir a milhares de jovens e adultos trabalhadores e trabalhadoras do
campo que tivessem acesso à escolaridade, sendo alfabetizados e tendo a oportunidade de dar
continuidade aos estudos, retirado deles, por falta de políticas públicas voltadas ao campo, e adiando seu
acesso à educação. E, mais do que uma luta pela educação, para os movimentos sociais trata-se, também,
da resistência e permanência no campo.
A seguir, mapa mostrando os cursos do Pronera, por município de realização (1998-2011):

Fonte: Relatório da II Pesquisa Nacional sobre a Educação na Reforma Agrária – II Pnera, p. 25, 2015.

A experiência do Programa Residência Agrária como ferramenta de transformação coletiva e


individual
Dentre os objetivos específicos do Pronera, existe um que diz: “garantir aos assentados/as
escolaridade/formação profissional, técnico profissional de nível médio e curso superior em diversas
áreas do conhecimento” (Monica Molina, 2009, p. 22). Com isso, surgiu o programa Residência
Agrária, como uma das várias propostas concretas do Pronera, também elaborado de forma coletiva, e
organizado a partir de um plano-modelo que deveria ser desenvolvido simultaneamente em todo o
território nacional nas instituições que possuíssem histórico de trabalhos desenvolvidos com os
trabalhadores rurais, ou seja, grupos de assentados da Reforma Agrária.
O primeiro curso teve o nome: Especialização em Agricultura Familiar e Camponesa e Educação do
Campo. Como se assinala no livro Educação do Campo e formação profissional – a experiência do
Programa Residência Agrária:
O objetivo principal deste programa é oportunizar novas estratégias de formação para estudantes e profissionais das Ciências Agrárias,
preparando-os para uma atuação capaz de compreender as necessidades e especificidades do processo de produção e de promoção do
desenvolvimento rural no âmbito da Reforma Agrária e da agricultura familiar. Este enfoque tem pertinência no peso e na importância
da agricultura (Molina, 2009, p. 11).
Muito se avançou desde o início dos Cursos de Residências Agrárias até hoje, e passado pouco mais
de dez anos desde a primeira experiência, algumas mudanças ocorreram e continuamos iluminados pelos
ensinamentos de Paulo Freire, da Pedagogia da Alternância e da Autonomia. Porém, os desafios
continuam bem parecidos com os do início, como bem disse o relato da professora Maria Inês Escobar
da Costa Casimiro6, a qual teve participação na minha primeira experiência como estagiária no curso
Residência Agrária da UFSCa.7 No capítulo: “Uma residência para as ciências agrárias: saberes
coletivos para um projeto camponês e universitário”, ela afirma:
A proposta tem ainda muitos desafios para sua consolidação: os percalços da implantação de uma nova política; o descompasso entre os
calendários das universidades e a liberação dos recursos pelo programa; a dificuldade das universidades em realizar trabalhos coletivos
e inter e transdisciplinares; as dificuldades de comunicação; e as difíceis condições de acesso aos assentamentos; realidade enfrentada
todos os dias pelas famílias assentadas (Molina, 2009, p. 30).
Com o avanço e experiência de alguns cursos realizados, essa iniciativa continuou ganhando os
corações e mentes de professores que acreditam na educação como meio de transformação, como sempre
problematizou Paulo Freire. E como resposta destes anos de muita luta, em agosto de 2015, ocorreu o I
Congresso Nacional dos Cursos de Residência Agrária, quando se reuniram diversos pensadores,
críticos, professores, professoras e estudantes, o qual, além da avaliação dos cursos realizados neste
último período – em cerca de 35 universidades em todo o país, com 1.500 estudantes beneficiados –,
veio também no intuito de debater formas de fortalecimento da relação universidade e movimentos
sociais, no que se refere à pesquisa, ensino e extensão e a fim de potencializar os projetos desenvolvidos
nos assentamentos. Como não dizer que este congresso também veio para comemorar com alegria a
realização de cursos voltados para o interesse real da sociedade? Claro que sim! O congresso
possibilitou também que estudantes de diversos cursos pudessem socializar as experiências vividas e
aprendidas em cada região, por meio de oficinas, apresentação de artigos, palestras, e arte, durante as
atividades culturais. Ao todo foram 294 artigos, divididos em sete grupos de trabalho: Agroecologia;
Tecnologias de Produção; Questão Agrária, Direitos e Conflitos do Campo; Cooperação, Agroindústria e
Organização da Produção; Práticas Pedagógicas e Metodológicas da Residência Agrária; Cultura;
Educação do Campo.8
Os estudantes e a Coordenação Político-Pedagógica (CPP) do curso Residência Agrária da UnB
também estiveram presentes e colaboraram como anfitriões, visto que o encontro ocorreu em Brasília.
Estivemos responsáveis pela mística de abertura do congresso que marcou, com muita força, o início do
congresso, cumprindo com o objetivo, principalmente, o de integrar a equipe da UnB com membros de
outras delegações. Participamos, também, das feiras, oficinas (ofertamos três das 14 oficinas),
coordenamos três Grupos de Trabalhos (GTs) – ao todo foram sete. O grupo de teatro “Consciência e
Arte” se apresentou nos intervalos de almoço, e distribuímos cerca de 500 exemplares dos nossos
cadernos de número 2, 3 e 4 (no total, produzimos cinco), para todos os 35 Cursos de Residências
Agrárias.

O olhar e a vivência da estagiária no decorrer do curso e suas percepções
Estando eu em mobilidade acadêmica na UnB9·, obtive a possibilidade, novamente, de fazer parte da
história de mais um Residência Agrária como estagiária. O projeto do curso tem como título:
“Residência Agrária - matrizes produtivas da vida no campo: formação em cooperação, agroecologia e
cultura com ênfase na organização social”. Esta foi minha principal morada do saber em Brasília!
Exigindo de mim mais empenho, dedicação e compromisso.
O projeto pedagógico, como essência deste programa, foi feito de forma coletiva, no qual foram
pensados três eixos estratégicos de atuação no Tempo Universidade, quanto no Tempo Comunidade, que
se complementam durante todas as etapas e vivências:
• eixo comum: formação política, pesquisa e cooperação, articulando componentes básicos da matriz
curricular proposta pelo curso;
• eixo de habilitação: cultura, arte e comunicação, articulando componentes de formação específica da
temática em questão;
• eixo de habilitação: agroecologia e organização de assentamentos, articulando os componentes de
formação específica da temática em questão.
Desta forma, o curso contribuiu para que os residentes e demais pessoas envolvidas no processo,
como estagiários(as), professores(as), colaboradores(as) pudessem participar, de forma integrada, das
diversas disciplinas e atividades propostas pelo curso e, assim, terem a percepção de como a arte,
cultura e comunicação precisam estar não só ligadas, mas interligadas com todas as outras áreas do
conhecimento e com as demais disciplinas, como por exemplo: a agroecologia! Esta maneira de perceber
a arte, como parte do nosso cotidiano, é fundamental, pois ela nos dá a visão da realidade em que
vivemos, de como devemos atuar e, mais ainda, de que ela está presente no nosso dia a dia e que só não a
percebemos, não a utilizamos! Como bem disse o professor Hermenegildo Bastos10, durante uma palestra
sobre Arte e Cultura11, na II Jornada Universitária em apoio à Reforma Agrária da UnB, ocorrida em
paralelo à etapa V do Tempo Universidade (TU V) do curso Residência Agrária da UnB:
Somos acostumados a pensar arte e cultura como um reino à parte, como se a cultura por meio da arte fosse algo distante da vida
material, nisso já se constrói vários preconceitos, fazendo diferença entre as pessoas. O mundo da materialidade seria destinado às
pessoas trabalhadoras e a cultura ao mundo da espiritualidade. E este preconceito é muito grave, pois essa é uma maneira organizada
de manter privilégio, estando aí uma das premissas da divisão do trabalho: pessoas que devem trabalhar manualmente e pessoas que
devem trabalhar mentalmente. Isso é uma construção instituída há milênios para designar que algumas pessoas tenham acesso à cultura
e outras devem estar presas à materialidade como algo vil, mórbido (Bastos, 2015).
Essa palestra foi uma das melhores aulas que já tive em torno deste tema e mudou o pensamento que eu
tinha a arte deveria ser um privilégio de poucos. Essa foi a primeira contribuição que o curso trouxe para
minha vida estudantil e profissional: perceber a arte, mística, cultura dentro no cotidiano de um curso.
Até mesmo na vivencia diária, nos diversos movimentos sociais, pude perceber também que esta é a
principal diferença do MST para os demais movimentos, com os quais tive contato nestes dois anos em
que residi em Brasília. A cultura, a mística está sempre presente em todos os espaços do MST, pois é
parte do setor de educação, tornando-o único e cheio de vida!
Em cursos de Exatas, como na Agronomia, não é comum “misturar” qualquer tipo de arte com as
disciplinas ministradas, pelo menos não está incluído na grade curricular, e assim vemos cada disciplina
separadamente e, na maioria das vezes, ao término de uma disciplina, não conseguimos enxergar sua
utilidade. Se essa “mistura”, ou seja, essa transdiciplinaridade12 fosse mais bem empregada no cotidiano
dos cursos, poderíamos ter uma ampla visão de mundo, sociedade, política e cultura. Desta maneira,
deveriam ser pensados os cursos de agronomia: integrando as disciplinas, pois quando percebemos a
cultura como parte de nossas relações, ampliamos esta percepção para outras áreas; interligando a
cultura com a agroecologia, por exemplo, podemos mostrar através de um filme, peça de teatro e tantas
outras formas como nossa soberania alimentar tem sido afetada por anos, ao passo que uma simples
leitura poderia não deixar esclarecer tão bem as pessoas.
De fato, quando conhecemos nossa cultura, percebemos claramente o quanto estamos perdendo a noção
do que é comida de verdade e que hábitos alimentares estão sendo substituídos quando absorvemos e
levamos costumes estrangeiros para dentro das nossas comunidades, matando, assim, primeiramente a
soberania local e, aos poucos, a soberania de um povo! Esse exemplo pode ser bem empregado quando
escutamos a música de Luiz Gonzaga13, gravada nos anos 1950, que fala da diversidade que existia na
feira de Caruaru. Ao trazermos para um debate a situação das feiras atuais, em uma sala de aula,
perceberemos claramente o quanto nossas feiras são homogêneas, ou seja, perdeu-se muito das culturas
locais, afetando diretamente nossa soberania! À medida que vamos esquecendo e trocando nossa cultura,
vamos, também, esquecendo nossa história e a nossa memória alimentar também vai sendo esquecida.
A segunda contribuição que o curso trouxe para minha vida acadêmica, foi o desejo de dar
continuidade à minha formação em agronomia, pois muitas vezes pensei em desistir do curso, por não ver
sentido nem ligação nas disciplinas ministradas em sala de aula pelos professores. É perceptível o
desgaste no ensino das universidades federais, em que o professor até se esforça de verdade para
“passar” o conhecimento, mas poucos têm a visão política e social que precisariam ter. Muitas vezes, o
próprio sistema os impedem de ver, devido a esta estrutura rígida em que nossas universidades foram
gestadas ou até mesmo por reflexo de uma vida acadêmica voltada para dentro de laboratórios, ou seja,
fechada dentro da universidade.
Não é novidade o estado em que se encontram as nossas universidades, afinal, temos uma elite atrelada
aos interesses internacionais, que devido a esta dependência econômica, política, social e cultural, nos
coloca numa estrutura estática em que o aumento de ingressantes não acompanha, de forma igual, o
aumento de tecnologia, ocasionando um período de grandes contradições. Por um lado, vivemos a era das
grandes tecnologias e simplesmente não conseguimos nos comunicar, verdadeiramente, com tantas
informações novas, tantas palavras para inserir no vocabulário e, por outro lado, intelectuais (estudantes
e professores), achando que é necessário falar difícil, de forma não compreensível, porque isso os
destacará dos demais, levando o saber a uma competição desigual. São tempos do faz de conta, onde o
professor nas universidades faz de conta que ensina e o estudante faz de conta que aprende, fazendo de
todos nós fantoches de uma burguesia nacional atrelada aos interesses internacionais. Como bem explica
Luiz Henrique Gomes de Moura:
A história da modernização conservadora brasileira também é, portanto, a história da estruturação da pesquisa agropecuária nacional
(Delgado,1985). Ao mesmo tempo, é a história da negação dos conhecimentos nacionais desenvolvidos pelos povos que já habitavam as
distintas regiões do nosso país. A racionalização profunda, porém seletiva, da produção no campo (Nascimento Jr., 2013), construída
meticulosamente pelos países de capitalismo central ao se tornar projeto ‘moderno’ para o país, também elemento constituinte de um
padrão de capitalismo dependente, muito distinto do discurso recorrente das elites de produção de uma agricultura com ‘tecnologia de
ponta’ e nacional (Moura, 2014, p. 82).
Encontrar sentido no curso de agronomia, percebendo que queria mais que terminar um curso e
batalhar para ser escrava em uma empresa nacional ou de uma multinacional, como engenheira agrônoma,
destinada ao agronegócio ou vinculada a pesquisas que garantam e salvaguardem os interesses do
agronegócio − este será o destino de muitos de meus colegas. Minha experiência no curso Residência
Agrária da UnB fez-me perceber que eu posso me tornar um profissional com pensamento crítico,
autônomo e mais ainda de acordo com a realidade da região em que eu estiver inserida, tendo uma visão
do micro para o macro e do macro para o micro, para entender como as dinâmicas globais se concretizam
de forma específica em cada lugar, em cada território. Ao pensar estratégias de ações voltadas para a
realidade local e do povo ao redor, pude aprender isso quando a estratégia do curso foi mudada no seu
próprio decorrer, quando percebemos que seria no Tempo Comunidade, que deveríamos focar nosso
olhar, pois as transformações perseguidas pelo curso deveriam surtir efeito nas comunidades e nas
realidades territoriais de sua abrangência, e não somente no âmbito universitário.
Inter 2. Tarefa da estagiaria
Se eu não tivesse tido contato, nestes quase dois anos como estagiária do Residência Agrária da UnB,
com as várias atividades acadêmicas e culturais propostas pelo curso, ter participado de palestras e
convivido com as mais diferentes culturas, o que já foi um grande aprendizado, mesmo assim, eu
aprenderia com a própria função, pois somente isso já me proporcionaria ter a ampla visão que adquiri
no decorrer deste processo. Essa finalidade, aliás, está escrita no projeto:
Os bolsistas IEX na função de Monitores/estagiários desenvolveram as seguintes atividades, de forma geral: acompanhamento dos
eixos de habilitação e do eixo de tronco comum, desempenho de várias tarefas logísticas que o curso demanda, estabelecendo pontes
entre as diversas instâncias organizativas, diretivas, e pedagógicas do curso. Os estagiários transitam por todas as instâncias do curso,
para que se formem tendo uma visão ampla da complexidade da estrutura do curso. Entre as atividades concretas realizadas no
decorrer das etapas do tempo universidade, citamos as seguintes:
• apoio aos docentes dos eixos na tarefa de aulas em Tempo Universidade e ações em Tempo Comunidade;
• colaboração com o processo de sistematização das atividades desenvolvidas nos tempos universidade e comunidade;
• integração na equipe de produção dos relatórios das etapas desenvolvidas até agora;
• participação nas reuniões da coordenação do curso, com o intuito formativo de aprender a organizar e coordenar um curso acadêmico;
• apoio da logística geral do curso.
Escrevendo meu relatório individual, a pedido do CNPq, percebi que cumpri fielmente as demandas
pré-estabelecidas: auxiliar na coordenação pedagógica em relação aos relatórios, monitorar a da
prestação de contas, além de estar mais ativa na secretaria do curso, dando apoio à logística geral,
principalmente, durante as etapas de Tempo Universidade. Nestas, a tarefa era operar e alimentar o blog,
o que encarei como desafio e participei de todas as reuniões propostas pela coordenação. Também
auxiliei no relato das atividades desenvolvidas e, por isso, fiquei responsável por ajudar no relatório
final do curso, o que se trata de outro desafio.
Vejo como estas atividades contribuíram para que eu tivesse uma ampla visão de tudo que estava
acontecendo no curso e, desta forma, pude colaborar em diversas funções no decorrer das etapas. Assim,
aprendi a lidar com as mudanças de estratégias, com os problemas que iam acontecendo, ajudando a
resolvê-los, juntamente com os demais membros da coordenação. Essa maneira de estagiar, passando por
diferentes níveis, ao mesmo tempo, me possibilitou um amadurecimento teórico e prático.

Sinceros agradecimentos pela acolhida e confiança
A terceira e não última contribuição que o curso Residência Agrária da UnB me proporcionou foi a
elaboração deste texto, que muito me possibilitou melhorar a escrita e escuta. Durante as simples tarefas
de elaboração de relatórios, no decorrer das reuniões, pude me desafiar a melhorar meu poder de
concentração e agilidade de elaborar o pensamento e escrever. Para muitos, parece ser uma tarefa fácil,
mas a questão de melhorar a capacidade de compreensão é uma real necessidade para algumas pessoas.
Percebo que esse é um dos grandes desafios da classe trabalhadora/camponesa, que, muitas vezes, não
tem o tempo hábil da leitura e preparo teórico, precisando, quase sempre, aprender durante o processo.
Aprendemos durante a execução da tarefa e nem sempre é fácil ter a compreensão dos companheiros e
companheiras que estão um passo à frente.
Creio que, assim como eu, muitos residentes conseguiram vencer este obstáculo da escrita. E, assim,
concluímos nosso curso de dois anos com seis etapas presencias e seis Tempos Comunidades, com 20
trabalhos publicados. Destes, 11 foram escolhidos para o Congresso Nacional dos Residência Agrária,
cinco cadernos publicados (cinco livros impressos e um e-book) e um total de 34 TCCs, defendidos e
comemorados.
Diante disso, só consigo enxergar o curso Residência Agrária como um oásis em meio a este deserto
de crise intelectual em que nos encontramos, principalmente, porque esta tem sido uma das portas de
entrada nas universidades federais, para pessoas de comunidades quilombolas e camponesas e, mais do
que isso, levando para dentro das comunidades o bom da universidade, que é o conhecimento como meio
de transformação da realidade!
O programa é uma conquista do povo e, por isso, o governo tem que garantir a sua continuidade. O Residência Agrária é um exemplo
para outras universidades da América Latina. O governo precisa assumir o compromisso de continuidade do programa, que é uma
conquista do povo (Adriana Fernandes, assentada e estudante do curso Residência Agrária da UnB, em fala durante o I Congresso
Nacional dos Residência Agrária).
Quem é intelectual, senão todos nós que temos a oportunidade de nos enxergarmos como tal? Como
bem escreveu Gramsci, em seu livro Cadernos do cárcere, ao afirmar que cada um de nós foi feito para a
intelectualidade, desde que ela seja desenvolvida nos nossos processos de vida.
A graduação é apenas uma etapa de muitas que terei pela frente, mas com a experiência que obtive no
curso Residência Agrária, da UnB, esse período vai além do aprendizado acadêmico, ele se tornou um
aprendizado para a vida, para meu olhar pela arte e para o futuro de muitos profissionais, os quais, como
eu, tiveram a oportunidade de ter feito parte de uma equipe de um dos cursos de Residência Agrária,
espalhados por este Brasil que sofre, mas que sabe encontrar formas de se transformar e transformar os
seus!
Não estamos perdidos. Ao contrário, venceremos se não tivermos desaprendido a aprender!
(Rosa Luxemburgo)

Referências bibliográficas
CALDART, Roseli Salete; ALENTEJANO, Paulo (orgs.). MST, universidade e pesquisa. São Paulo: Expressão Popular, 2014.
MOLINA, Mônica Castagna et al. Educação do campo e formação profissional: a experiência do Programa Residência
Agrária. Brasília: MDA, 2009.
SANTOS, Clarice Aparecida dos et al. Memória e História do Pronera – contribuições para a educação do campo no Brasil.
Brasília: MDA, 2010.
II ENERA - II Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária: textos para estudo e debate. Coletivo nacional do
setor de educação do MST, 2014.
II PNERA. Relatório da II Pesquisa Nacional sobre a Educação na Reforma Agrária, 2015.
PRONERA - Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Manual de Operações, aprovado pela portaria/Incra/n. 282, de 26
de abril de 2004.

O 2º Enera ocorreu de 21 a 25 de setembro de 2015, em Brasília, marcado como um encontro político, formativo, organizativo, de
mobilização e de celebração.

Portaria n. 10/98, de 16/4/1998.

2001 – Editada a portaria para: Portaria/Incra/n. 837.

2004 – Portaria/Incra/n. 282, de 16/4/2004.

O Massacre de Eldorado dos Carajás ocorreu em 1996, no Estado do Pará, levando à morte 19 pessoas e sensibilizando organismos
internacionais a pressionarem o governo brasileiro por tamanho descaso.

Mestre em Desenvolvimento Sustentável – UnB; participou da equipe que elaborou e implementou o Programa Nacional de Educação
do Campo: Formação de Estudantes e Qualificação Profissional para Assistência Técnica.

Especialização em desenvolvimento do Semiárido e Educação do Campo – estagiária em 2011 e 2012.

Informação retirada do site do MST: <http://www.mst.org.br/2015/08/12/congresso-debate-relacao-entre-educacao-do-campo-e-
reforma-Agrária.html>.

Forma de ingressos na UnB para estudantes de outras instituições federais.

Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo. Concluiu o pós-doutorado na Universidad
Nacional Autónoma de México, em 2004. Foi professor convidado da Unam em 2003 e 2004. Atualmente é professor associado da
Universidade de Brasília.

Debate: “Arte, Cultura e Democratização” organizado pelo grupo de pesquisa: Literatura e Modernidade Periférica e Avante, no
auditório da Poslit, em 9/4/2015.

Transdisciplinaridade significa mais do que disciplinas que colaboram entre elas em um projeto com um conhecimento comum a elas,
mas significa também que há um modo de pensar organizador que pode atravessar as disciplinas e que pode dar uma espécie de
unidade.

A Feira de Caruaru – Luiz Gonzaga.

CIRANDA INFANTIL E A FORMAÇÃO DE EDUCADORES DO CAMPO – A
EXPERIÊNCIA DA UnB PLANALTINA

Neuza Maria Cezário dos Santos, Eliete Ávila Wolff e Gleciane Cezário dos Santos
Machado

Brincar com crianças não é perder tempo, é ganhá-lo; se é triste ver menino sem escola, mais triste ainda é vê-los sentados enfileirados
em sala sem ar, com exercícios estéreis, sem valor para a formação do homem.
Drummond


Introdução
No presente texto, abordamos resultados da pesquisa sobre a ciranda infantil, seus impactos na
formação de educadores do curso de Licenciatura em Educação do Campo da Faculdade da UnB
Planaltina-DF-LEdoC (Santos, 2015) e sua ligação com a ciranda infantil do curso de especialização em
Residência Agrária (UnB/CNPq/Pronera). A ciranda foi desenvolvida no espaço onde acontece a ciranda
da LEdoC. A pesquisa, cuja coleta de dados foi realizada com aplicação de questionários, relatórios de
reuniões, registros nos cadernos da ciranda e memórias, ocorreu principalmente durante o Tempo
Universidade do curso de Licenciatura.1
A formação de educadores do campo, em debate neste texto, revela a importância de garantirmos
espaço para o acolhimento de crianças no âmbito da universidade, a fim de que seus pais, em particular
suas mães, tenham acesso à formação acadêmica. Inspirado na tradição da ciranda infantil do Movimento
Sem – Terra (MST), a LEdoC tem, como compromisso, incorporar as mães na formação universitária,
garantindo um espaço para o acolhimento de seus filhos. Alguns professores(as) e estudantes
implementaram a ciranda infantil por meio do Projeto de Extensão Ciranda Infantil, que acontece em uma
sala do alojamento dos estudantes da LEdoC. É uma pequena sala de acolhimento educativo, para receber
as crianças de mães universitárias. Conforme Rossetto e Silva (2012), o nome foi escolhido pelo fato de
ciranda remeter à cultura popular e estar presente nas danças, brincadeiras e cantigas de roda
vivenciadas pelas crianças.
O objetivo da ciranda, além do acolhimento, é de proporcionar para as crianças, para as mães em
formação, e para os estudantes da LEdoC como um todo, um espaço de reflexão sobre o desenvolvimento
infantil e sobre a infância no campo. Ambos elementos de grande importância para a formação do
educador do campo. Orientada pela mesma inspiração, a ciranda infantil LEdoC pretende motivar a
reflexão sobre a alimentação saudável, sobre a soberania alimentar e a relação com a educação do
campo. Essa experiência poderá se tornar uma contribuição para outras experiências de educação infantil
do campo2 em andamento e servir de estímulo para novas iniciativas.
A infância, em seu sentido genérico, nem sempre teve o seu papel, como sujeito histórico e social,
respeitado. O lugar a ela atribuído pela sociedade deriva de uma construção social e histórica. O
conhecimento produzido acerca das crianças, suas condições de vida e o espaço socialmente organizado
para elas são elementos fundamentais para nossa leitura a respeito de qualquer sociedade, em sua
totalidade, apontando-nos, também, suas contradições. À medida que foi introduzida a institucionalização
da educação infantil, esta ocorreu por meio da separação formal das crianças em relação aos adultos,
com a mediação do Estado (Sarmento, 2004).
Esse cenário, no entanto, pouco incluiu os povos do campo, pois não foram considerados no contexto
da maioria das políticas públicas de criação e manutenção de instituições educacionais. Esse projeto
político e econômico não levava em conta os camponeses como participantes da sociedade, como
interlocutores do processo educacional e, menos ainda, como produtores de vida e de cultura. Essa
invisibilidade social implicou numa ausência de atenção, ainda maior, à infância do campo (Wolff, Spada
e Soeira, 2014).
Mesmo assim, observa-se na educação infantil do campo, de maneira crítica, essa institucionalização.
Segundo Freitas (2010), a escola e a sala de aula são uma construção histórica cujas funções foram
moldadas com o objetivo de facilitar as condições gerais do processo de acumulação de riqueza por uma
classe em detrimento de outra. Tais funções não se referem apenas à exclusão da classe trabalhadora do
acesso ao conhecimento sistematizado, mas também ao exercício, pela escola, de processos de
subordinação dos estudantes.
Tendo em conta tal situação, a proposta político-pedagógica da educação infantil do campo, ao fazer a
crítica à escola capitalista, propõe uma formação integral, mais completa e complexa, oferecendo à
criança uma experiência diversificada. Freitas (2010), nos alerta que a mera presença da classe
trabalhadora na escola causa, em si, um grande desconforto para a classe dominante. A ciranda infantil da
Educação do Campo da LEdoC e do Residência Agrária fortalece a afirmação da educação como um
direito de todos e cobra do Estado o exercício da redistribuição da cultura e do conhecimento.
Resultante das lutas dos movimentos sociais, especialmente na última década, conforme Caldart (2012,
p. 260), a Educação do Campo e, mais recentemente, sua população infantil entram no debate sobre as
políticas públicas para a educação. Em 2002, o Conselho Nacional de Educação (CNE) n. 36/2001
aprovou a resolução que instituiu as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do
Campo (Brasil, 2001) e, em 2009, foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação
Infantil (Resolução CNE/CEB n. 05, em 17 de dezembro de 2009), mostrando um reconhecimento à
infância do campo e suas necessidades.
Atualmente, a Ciranda infantil da LedoC/FUP/UnB tem duas coordenadoras graduadas em Licenciatura
em educação do campo que trabalham no sentido de fortalecer os objetivos do projeto. A equipe da
ciranda está formada por estagiárias(os) de Ensino Médio e Superior que, em geral, conhecem pouco
sobre a educação do campo, porém, à medida que atuam no coletivo, passam a compreender a
intencionalidade educativa da ciranda, os conceitos da educação do campo e as demandas das crianças.
Os/as estudantes que não têm ou não trazem seus filhos, acompanham as dificuldades que as mães
enfrentam para estudar e cuidar. Observam, também, que os coletivos que trabalham na ciranda infantil
estão sempre sendo solicitados a se envolver com as necessidades das mães. Esta experiência
transforma, pois, os processos pedagógicos presentes no cotidiano são enriquecedores e desafiadores.

A ciranda como mediadora entre camponesas e universidade
A ciranda infantil possibilita o diálogo entre a universidade e as camponesas, uma vez que ao ser
acolhida, ela é ocupada por todo o processo histórico de luta e resistência vivenciadas nos movimentos
sociais, principalmente pelas mulheres, criando e recriando alternativas de resistência ao patriarcado. A
mãe-educadora, em formação na LEdoC, desempenha também múltiplas funções nas comunidades. É
pesquisadora da educação do campo, liderança, agricultora, artesã e concilia estas muitas tarefas com a
maternidade e, em muitos casos, com o cuidado de idosos. Diante disso, para as mulheres do campo, o
acesso ao curso superior está articulado ao cotidiano, por isto é preciso garantir que a maternidade não
seja empecilho para a formação acadêmica.
A universidade é levada a cumprir seu papel, oferecendo o acesso a um direito. “O ambiente educativo
das cirandas infantis é organizado de maneira que as experiências pedagógicas apareçam nesse ambiente.
Por ambiente educativo, entendemos tudo o que acontece na vida da ciranda, dentro e fora dela”.
Rossetto e Silva (2012, p. 128). Ao serem questionadas sobre a importância da ciranda infantil na sua
formação, as mães declaram:
Quando iniciei o curso estava grávida de 3 meses, portanto minha filha que está com 3 anos, hoje, cresceu junto com a ciranda do meu
curso. Posso afirmar que sem a ciranda eu não teria chegado ao penúltimo semestre do curso. Ela foi fundamental para mim e minha
filha. M3.
Tivemos uma ótima experiência na ciranda (eu e K). A ciranda nos proporcionou várias oportunidades, a principal é a de eu poder
estudar com ele próximo de mim, juntinho comigo. M4.
É importante que a ciranda permaneça para podermos estudar e acompanhar os nossos filhos de perto. No meu caso, só foi possível
terminar a graduação porque existe a ciranda, sem ela seria impossível. M1.
Cabe, aqui, mencionar que, no decorrer do curso, várias situações levam as mulheres a repensar sua
condição humana. Na LEdoC, as mulheres têm a oportunidade de refletir na sala de aula, nas místicas,
nas palestras e, também, com muita frequência, na ciranda, sobre a desigualdade que pesa sobre elas.
Vão, aos poucos, fortalecendo-se para enfrentar e modificar essa condição de opressão. Na ciranda
infantil, cuidar e educar as crianças não são tarefas somente da mãe. É uma tarefa coletiva. Essa é uma
das tarefas da educação do campo, como demonstra esta experiência educativa dos movimentos sociais,
pois revelam que as mulheres podem ser também protagonistas no contexto de luta e educativo.3
Vale registrar que, nas comunidades, ainda prevalece o entendimento de que as crianças devem ser
cuidadas exclusivamente pelas mães. No contexto da LEdoC, este conceito de cuidado e formação da
infância é questionado ao envolver os homens nas tarefas ligadas à ciranda. É possível observar uma
resistência inicial dos estudantes em participar na ciranda, porém, com o decorrer do curso e da
convivência com as crianças, essa tarefa passa, gradativamente, a ser mais aceita e acolhida. Alguns dos
pais que participam da ciranda, a partir da chegada na LEdoC, passam a se envolver mais com seus
filhos, ressignificando também essa relação.
O alojamento de estudantes da LEdoC4, por sua localização no meio do cerrado, oferece um ambiente
próximo ao das crianças do campo, facilitando sua adaptação. O coletivo ledoquiano, por sua vez, acolhe
as crianças, cada vez mais consciente de seu papel educador. O sentido do trabalho coletivo torna-se
mais necessário e visível quando se trata da ciranda infantil, pois não é possível deixar de atender às
urgências e às necessidades das crianças, assim como não é possível tê-las nos espaços coletivos, sem
pensar o papel educativo que ele adquire na vida dos pequenos.
No campo, em geral, as crianças não têm contato com a escola antes da idade escolar. Na ciranda, ela
passa a conviver com recursos pedagógicos que estimulam seu letramento mais precocemente,
estimulando sua curiosidade e busca de conhecimento. As mães registram frequentes saltos de qualidade
no domínio da linguagem e no desenvolvimento geral das crianças no curto período de dois meses de
estadia na universidade. Há registros também nas memórias das reuniões pedagógicas de que a
convivência coletiva estimula o respeito ao outro. As crianças criam vínculos com os estudantes e com
outras crianças, marcando sua memória afetiva, permanecendo registros posteriores mesmo nas crianças
com menos de dois anos de idade.5
A ciranda colabora com as mães, chama para a problematização e ação coletiva, coloca em evidência
o tema da mulher, os compromissos extra sala de aula e a participação e envolvimento com as lutas por
melhores qualidades na educação.

LEdoC e Residência Agrária: parceria na Ciranda Infantil
O curso de pós-graduação lato sensu Residência Agrária: Matrizes Produtivas da Vida do Campo,
realizado na Faculdade UnB-Planaltina, teve como objetivo qualificar profissionais de nível superior que
atuam nas áreas de Reforma Agrária nas dimensões da agroecologia, organização social, formação
política, cooperação, comunicação, cultura e educação popular.
O curso ofereceu, para as mães estudantes, a ciranda infantil, realizada no espaço já constituído pela
LEdoC. Recebeu, para isso, as contribuições de educadoras infantis dos movimentos sociais,
enriquecendo o trabalho pedagógico com suas práticas de educação do campo.
As contribuições trazidas pelas educadoras infantis dos movimentos sociais se materializaram nas
relações estabelecidas na rotina da ciranda, como a horizontalidade na forma de se relacionarem com as
outras cirandeiras, com a turma, com a coordenação da ciranda e em especial com as crianças. A partir
dessa troca, abriu-se um rico canal de diálogo.
Segundo Santos (2015), um dos momentos mais importantes de interação entre as crianças, as
educadoras e as turmas acontecem na mística, momento de resgate da infância. A mística,
(...) não somente ajuda a transformar os ambientes e cenários sociais; acima de tudo, impulsiona e provoca mudanças por fora e por
dentro dos sujeitos, tal qual o fazem as frutas, que, ao crescerem ganham a massa que lhes dá volume e, ao mesmo tempo, por dentro,
abrigam a formação das sementes (Santos, 2015, p. 478).
As místicas acontecem em sala de aula, durante o cotidiano, provocando os estudantes a pensarem
sobre a responsabilidade do coletivo sobre a ciranda. A ciranda gera uma permanente reflexão, pois lida
com as crianças do campo e seu confronto com a nova realidade. Esse coletivo da ciranda tem gerado
muitas sementes, como a formação e capacitação das estagiárias, por meio de oficinas, sobre os
movimentos sociais, sobre gênero, sobre alimentação saudável, teatro e saúde, sobre como massagens
para as crianças e outras. Estamos em constante aprendizagem.

Contribuições da ciranda infantil para a formação de educadores do campo

Diante da necessidade de compreender a formação de educadores/as do campo, a partir das relações
mediadas pelo ambiente da ciranda, o coletivo de educadoras(os) se propõe a estudar as constantes
transformações que ocorrem no cotidiano da ciranda infantil da LEdoC, assim como resgatar sua história.
Por meio do trabalho coletivo, busca-se a humanização, o convívio coletivo com os colegas do curso, e o
aprendizado. As crianças ressignificam a passagem pela universidade daquelas(es) estudantes que se
dispõem a trabalhar nesse espaço. A passagem é rápida, porém substancial e quebra a frieza da
burocracia e das paredes brancas da faculdade, assim como questiona o modelo atual de universidade.
Quanto às aprendizagens, é possível observar que, a partir da convivência coletiva com diferentes
idades e saberes trazidos pelas crianças, mais do que ensinar, as(os) educadoras(es) da ciranda infantil
da LEdoC aprendem a mediar, liderar e conduzir, de forma autônoma, os vários momentos educativos do
cotidiano da ciranda. Exercitam a solidariedade e a coletividade, porque, conforme anuncia a assertiva
de Luckesi (1992) ao falar sobre a formação do educador, este é o criador e criatura ao mesmo tempo,
que sofre as influências do meio em que vive e com elas se autoconstrói.
Inerente à educação do campo, existe um entendimento de que a experiência pedagógica, na prática,
extrapola o âmbito escolar. Mesmo reconhecendo que no trabalho educativo existe uma especificidade
que está atrelada às escolas, à educação formal, a tradição pedagógica e o acúmulo de conhecimentos
sobre a arte de educar precisa ser recuperada e trabalhada desde a intencionalidade educativa da
Educação do Campo (CALDART, 2004).

Considerações finais
Este trabalho teve como propósito o estudo da ciranda infantil e sua contribuição para a formação de
educadores do campo. O modelo de educação infantil da ciranda segue a proposta metodológica da
educação infantil do campo, uma vez que essas práticas acontecem na Faculdade UnB Planaltina, fora das
comunidades de origem dos estudantes.
A ciranda tem sido instrumento de legitimação e reafirmação da importância da existência de um curso
voltado para as comunidades do campo, num ambiente urbano/universitário. Evidenciava-se, aos mais
atentos, que a luta histórica dos povos do campo pelo acesso aos seus direitos historicamente negados
anunciava suas conquistas através da presença dos camponeses na universidade e da quebra do
monopólio das elites sobre seus espaços.
A educação do campo, por sua vez, incluiu mulheres mães, e o fez fortalecendo seus métodos e
concepções pedagógicas críticas e históricas, mediados pela construção coletiva e pela busca do
fortalecimento de cada sujeito. O desafio é que cada estudante, ao ingressar na universidade, ao acessar
seus direitos, não perca seus vínculos com sua cultura, que esta passe a ser respeitada, conhecida,
estudada, e que seus filhos pequenos não sejam esquecidos, ou deixados para trás, e se reconheçam na
continuidade dos passos de seus pais, para que tenham garantidos seu direito de acesso à educação
infantil.
De mesma forma, a ciranda afeta as relações com a universidade e seus profissionais. Na UnB, existe
uma forte diferenciação e hierarquia entre educadores(as) e funcionários(as), estando presente inclusive
uma desigualdade entre eles. No ambiente do alojamento se estabelece uma convivência igualitária e
solidária, desafiando as formas tradicionais e institucionalizadas de relação.
Por fim, a ciranda infantil protagoniza, de forma profunda, a mudança de valores individualistas e
consumistas para os valores coletivos, de solidariedade, de cuidado com a natureza propostos pela
educação do campo. Proporciona aprendizagens para todos aqueles que com ela convivem, seja as(os)
educadoras(es) em formação, sejam os pais, professores da LEdoC ou as estagiárias(os).
A educação do campo, por sua vez, veio imbuída da tarefa de abrir as portas para as mulheres/mães,
assim como para seus filhos e filhas. O fez por seus métodos pedagógicos históricos, mediados pela
construção coletiva e pela busca do fortalecimento de cada sujeito. De modo que, cada estudante, ao
ingressar na universidade, ao acessar seus direitos, não perca seus vínculos com sua cultura e passe a
fortalecer a luta pelos direitos dos povos do campo.

Referências bibliográficas
BARBOSA, Maria Carmen Silveira et al. (orgs.). Oferta e demanda de educação infantil no campo. Porto Alegre: Evangraf, 2012.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação Câmara de Educação Básica. Resolução CNE/CEB 1, de 3 de abril de 2002, estabelece as
Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Diário Oficial da União, Brasília, 9 de abril de 2002.
Seção.
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Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
CALDART, Roseli Salete. Educação do campo, in: CALDART, Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo;
FRIGOTTO, Gaudêncio (orgs.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio; Expressão Popular, 2012.
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Sônia Meire Santos Azevedo de (org.). Por Uma Educação do Campo. Contribuições para a Construção de um Projeto de
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FREITAS, Luis Carlos de. A escola única do trabalho. Iterra: Veranópolis/RS. Cadernos do Iterra n. 15, set 2010, em 30/6/2010.
FREITAS, Marcos Cezar de; KUHLMANN Jr., Moysés (orgs.) Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Ed. Cortez,
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LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da Educação. São Paulo: Ed. Cortez, 1992.
OLIVEIRA, Zilma de Moraes Ramos de (org.). Educação infantil: muitos olhares. São Paulo: Ed. Cortez. 4ª ed., 2000.
ROSSETTO, Edna Rodrigues Araújo; SILVA, Flávia Tereza da. Ciranda Infantil, in: CALDART, Roseli Salete; PEREIRA, Isabel
Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio. Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo:
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular, 2012.
SANTOS, Neuza Maria Cezário. Ciranda infantil e a formação de educadores do campo: a experiência da UnB Planaltina.
Brasília: UnB, 2015.
SILVA, Carmem Virgínia Moraes; FRANCISCHINI. O surgimento da educação infantil na história das políticas públicas para a criança
no Brasil. Práxis Educacional, v. 8, n. 12. p. 257-276. Vitória da Conquista, jan./jun. 2012.
WOLFF, Eliete Ávila; SPADA, Carina e SOEIRA, Maristela. As contribuições da ciranda infantil para a formação de professores do
campo. Anais do congresso Universidade, 2014. Havana, Cuba.

As turmas pesquisadas foram a 3 e a 4 do curso de Licenciatura em Educação do Campo.

Estudos como os de Barbosa (2012), informam que a qualidade da educação infantil no campo é inferior em relação à ofertada na
cidade, pois a maioria das escolas não possui proposta pedagógica para a educação infantil no campo. Isso leva ao questionamento de
como essa educação está sendo executada, ou seja, será que somente a presença do aparelho escolar no campo garante uma educação
infantil voltada para essa especificidade? (Cesário, 2015).

A inclusão de atividades de Tempo Comunidade dos educandos da LEdoC é parte das propostas da ciranda infantil com o
fortalecimento da educação infantil do campo. A partir de 2016, será obrigação dos municípios oferecerem escola para crianças de 4
anos em diante

Inaugurado em 2014.

Assinalamos o estudo das aprendizagens das crianças como tema de pesquisa.

SOBRE OS AUTORES

Aldenora Pimentel Batista da Silva
Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Roraima (UERR) e especialista em matrizes
produtivas da vida no campo, pela UnB.
Adriana Fernandes Souza
Militante do MST, assentada no Assentamento Pequeno William, gleba 12; integrante do Espaço Cultural
e de Pesquisas Panteras Negras em Planaltina/DF. Licenciada em Educação do Campo de 2013 e
educanda do Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, eixo de
Agroecologia e Produção, UnB/ENFF/Pronera/CNPq .
Barbara Loureiro Borges
Educanda do Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo,
FUP/UnB.
Beatriz Casado Baides
Antropóloga. Doutoranda em Estudos sobre Desenvolvimento- Instituto Hegoa. Universidade do País
Basco (UPV/EHU). Integrante do grupo de pesquisa Modos de Produção e Antagonismos Sociais
(MPAS) e da Coordenação Político-pedagógica do Curso de especialização Residência Agrária:
matrizes produtivas da vida no campo, FUP/UnB.
Cleonice Cesario dos Santos
Licenciada em Educação do Campo pela UnB - Universidade de Brasília. Educanda do Curso de
especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, FUP/UnB.
Edineide Soares da Rocha
Bacharel em ciências contábeis, especialista em Residência Agrária com habilitação em Agroecologia e
organização de assentamentos pelo programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento
Rural da Faculdade UnB de Planaltina. Militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), acampada no Acampamento 8 de março Planaltina-DF.
Eliete Ávila Wolff
Professora do Curso de Licenciatura em Educação do Campo; doutora em Educação, graduação em
Psicologia.
Érica Campos Ribeiro
Engenheira Agrônoma, especialista, pós-graduanda em Agroecologia e organização de assentamentos
pelo Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo. Esse trabalho é
parte integrante da pesquisa monográfica do curso, orientada pelo pesquisador Marcelo Leite Gastal. E-
mail: ericaribeiro.agro@gmail.com
Fabiane Prado Silveira
Estudante do Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, com
ênfase em cultura, agroecologia, cooperação e organização de assentamentos, pela Universidade de
Brasília, campus Planaltina, DF. jardimdecheiro@gmail.com
Fábio Ramos Nunes
Bacharel em Administração, militante do MST.
Geraldo Gasparin
Integrante da equipe de coordenação do Curso de especialização Residência Agrária: matrizes
produtivas da vida no campo, da UnB.
Gleciane Cezário dos Santos Machado
Licenciada em Educação do Campo pela UnB e especialista em Residência Agrária. UnB/CNPq/Pronera.
João Batista Pereira de Queiroz
Doutor em Sociologia (UnB). Professor da Universidade de Brasília (UnB), Campus de Planaltina, Curso
de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC).
Juliana Bonassa Faria
Militante do Coletivo Nacional de Cultura do MST.
Keyla Morales de Lima Garcia
Pedagoga, licenciada em Educação do Campo com habilitação em linguagens e estudante do Curso de
especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, da UnB.
Lindalva Santana
Militante do MST e Agrônoma. Mestranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável Faculdade
UnB Planaltina-FUP, militante do MST e integrante da Coordenação Político-Pedagógica do Curso de
especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, da UnB.
Luis Antonio Pasquetti
Professor Adjunto II Universidade de Brasília. Diretor do Campus UnB Planaltina DF (2013-2016).
Coordenador do Curso de Licenciatura em Educação do Campo (2011\2013) Membro do
CONSUNI\UnB. Membro do CAD\UnB. Membro do CEPE\UnB. Presidente do Conselho e Colegiado da
FUP. Coordenador de Extensão da FUP (2009-2010).Membro da Comissão Pedagógica Nacional do
PRONERA (MDA\INCRA 2009\2016). Grupos de Pesquisa: (1) NEADS - Núcleo de Estudos Agrários,
Desenvolvimento e Segurança Alimentar e Nutricional CNPq (2) Observatório da Educação do Campo
(MEC). (3) MPAS - Modos de Produção e Antagonismos Sociais. Doutor em História (UnB/2007)
Mestre em Administração (PUC-SP/1998). Graduado em Administração (URI/1984).
Luiz Henrique Gomes de Moura
Doutorando em Geografia (IESA/UFG), membro dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Geografia Agrária e Dinâmicas Territoriais (Nepat) e Modos de Produção e Antagonismos Sociais
(MPAS) e da Coordenação Político-pedagógica do Curso de especialização Residência Agrária:
matrizes produtivas da vida no campo, FUP/UnB.
Marco Antônio Baratto Ribeiro
Militante do MST pelo setor de Formação. Doutorando em Política Social – PPGPS/UnB. Membro da
coordenação político pedagógica do Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da
vida no campo – UnB/ENFF/Pronera/CNPq. Membro dos grupos de pesquisa Modos de Produção e
Antagonismos Sociais – UnB/CNPq e Imperialismo e Dependência – Ceub/CNPq.
Manoel Pereira de Andrade
Doutor em Agronomia. Docente da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da UnB.
Maria Adriana Alves Dantas
Graduanda do Curso de Agronomia – Universidade Federal do Cariri (UFCa) e Integrantes da equipe de
Coordenação do Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, da
UnB.
Maria Neuza da Silva Oliveira
Possui doutorado e mestrado em Desenvolvimento Sustentável pelo Centro de Desenvolvimento
Sustentável da Universidade de Brasília, especialização de Conflitos Socioambientais e graduação em
Pedagogia pela UnB.
Mônica Celeida Rabelo Nogueira
Doutora em Antropologia Social e professora da Faculdade UnB Planaltina – FUP/UnB.
Mônica Castagna Molina
Professora adjunta da Universidade de Brasília (UnB) do Programa de Pós Graduação em Educação,
onde coordena a Linha de Pesquisa Educação Ambiental e Educação do Campo, desde 2013. Coordena o
Centro Transdisciplinar de Educação do Campo (CETEC). Coordenou o PRONERA e o Programa
Residência Agrária. Participou da I Pesquisa Nacional da Reforma Agrária, em 2003-2004 (I PNERA) e
Coordenou a II Pesquisa Nacional da Reforma Agrária II PNERA, em 2013-2015. Doutorado em
Desenvolvimento Sustentável pela UnB (2003) e Pós-Doutorado em Educação pela UNICAMP (2013)
Neuza Maria Cezário dos Santos
Licenciada em Educação do Campo pela UnB.
Rafael Villas Bôas
Coordenador do curso de especialização Residência Agrária: Matrizes produtivas da vida no campo
(2013-2015/UnB). Professor da Licenciatura em Educação do Campo da Faculdade UnB Planaltina, do
Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB, do Mestrado Profissional em Artes (Profartes), pólo
UnB. Coordena os grupos de pesquisa Modos de produção e antagonismos sociais e Terra em Cena:
teatro, audiovisual e educação do campo. Membro do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Territorial da América Latina e Caribe (Unesp).
Rosana Maria Breier Neideck
Pedagoga, pela Faculdade do Noroeste de Minas (Finom). Pós-graduada em Gestão Educacional,
Cesumar. Estudante do Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no
campo; formação em cooperação, agroecologia e cultura, com ênfase na organização social da
Universidade de Brasília (UnB).
Rosmeri Witcel
Estudante do Curso de especialização Residência Agrária: matrizes produtivas da vida no campo, FUP-
UnB. Coordenadora pedagógica da Escola Nacional Florestan Fernandes da regional Centro Oeste.
Tatiana M.de Castro Agostinho
Assentada e militante do MST, engenheira agrônoma com especialização em Residência Agrária e
habilitação em Agroecologia e organização de assentamentos pela UnB. Membro da coordenação política
pedagógica da EIF Zé Porfírio.
Tauana Faleiro Barros
Integrante do NEPEAS- Núcleo de Pesquisa, estudo e extensão em Agroecologia e Sustentabilidade
Mestranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural, Estudante do curso de Especialização em
Residência Agrária Matrizes Produtivas da vida no Campo da UnB.
Vicente de Paulo Borges Virgolino da Silva
Graduado em Engenharia Agronômica pela Escola Superior de Agricultura de Lavras (1990), mestre em
Agronegócio pela Universidade de Brasília (2005) e doutor em Educação do Campo pela Universidade
de Brasília (2012), atualmente docente em Agroecologia do Instituto Federal de Brasília.
vicente.silva@ifb.edu.br
Wesley Júnio de Andrade
Assentado e militante do MST. Geógrafo com especialização em Residência Agrária e habilitação em
Agroecologia e organização de assentamentos pela UnB. Membro da coordenação política pedagógica da
EIF Zé Porfírio.

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