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ESCOLA E CONHECIMENTO NA CONCEPÇÃO SOCIALISTA DE EDUCAÇÃO

Elementos para análise da experiência cubana

NEREIDE SAVIANI
Programa de Mestrado em Educação
UNISANTOS / SP

RESUMO

Em pesquisa de natureza bibliográfica, realizada no início dos anos 1990,


procedi a análise de conteúdo de obras que trazem, de um lado, estudos sobre em
que consistem e como têm se desenvolvido os processos de elaboração e
implementação de currículos e programas, na visão dos historiadores do
currículo e das disciplinas escolares e, de outro lado, concepções teóricas que
versam sobre o que e como devem (ou deveriam) ser tais processos. Tal
sistematização revelou que, mesmo quando se atêm ao estudo de um
determinado aspecto-eixo, os autores das obras analisadas reconhecem que a
organização do saber escolar – manifesta nos currículos, nas matérias de ensino
e nos respectivos programas – é determinada por condições e finalidades sociais
e envolve aspectos ligados ao sujeito que aprende, ao objeto a ser aprendido /
ensinado e ao trabalho pedagógico necessário para que se realize a
aprendizagem, segundo as finalidades mais amplas da sociedade e as específicas
da escola. Os diversos temas identificados nas obras selecionadas foram
sistematizados segundo três grandes eixos: a) os objetivos, interesses e
necessidades do indivíduo e da sociedade; b) as características do sujeito
cognoscente e de sua atividade
nos processos de produção / construção / apropriação do conhecimento; c) as
características do objeto cognoscível, ou dos elementos culturais a serem
apropriados. Com a finalidade de reunir elementos para reflexão e análise da
experiência cubana, alvo de debate neste painel, o presente trabalho destaca,
entre aquelas obras, as que se alinham na concepção socialista de escola
(produzidas ou traduzidas / publicadas) naquele país, acrescentando reflexões
resultantes de levantamento realizado para referencial teórico de pesquisa
recente sobre o papel do professor na seleção dos conteúdos curriculares e na
organização do trabalho pedagógico.

Palavras-chave: Escola e Conhecimento; Pedagogia Socialista; Educação em


Cuba; Política Educacional.

Introdução
Em pesquisa bibliográfica, realizada no início dos anos 1990 (SAVIANI, 1993),
procedi à análise de conteúdo de obras que trazem, de um lado, estudos de historiadores do
currículo e das disciplinas escolares sobre em que consistem e como têm se desenvolvido
os processos de elaboração e implementação de currículos e programas, e, de outro lado,
concepções teóricas sobre como devem (ou deveriam) desenvolver-se tais processos. Os
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diversos temas identificados nas obras selecionadas foram sistematizados segundo dois
grandes eixos: 1) a relação escola-sociedade; 2) a relação sujeito-objeto – compreendendo:
2.1. as características do sujeito cognoscente e de sua atividade nos processos de produção /
construção / apropriação do conhecimento; 2.2. as características do objeto cognoscível, ou
dos elementos culturais a serem apropriados. Tal sistematização revelou que, mesmo
quando se atêm ao estudo de um determinado aspecto-eixo, os autores das obras analisadas
reconhecem que a organização do saber escolar – manifesta nos currículos, nas matérias de
ensino e nos respectivos programas – é determinada por condições e finalidades sociais e
envolve aspectos ligados ao sujeito que aprende, ao objeto a ser aprendido / ensinado e ao
trabalho pedagógico necessário para que se realize a aprendizagem, segundo os objetivoss
mais amplos da sociedade e os específicos da escola.
Com a finalidade de reunir elementos para análise da experiência cubana, alvo de
reflexão e debate neste painel, destaco, no presente trabalho, entre aquelas obras, as que se
alinham na concepção socialista de escola. A principal delas é o livro Pedagogia (ICCP,
1981), um compêndio, espécie de manual, destinado a educadores e pesquisadores em
Educação, produzido pelo Instituto Central de Ciências Pedagógicas, órgão do Ministério
de Educação de Cuba. Segue-se a esta, uma coletânea de textos referentes a um ciclo de
conferências ministradas pela psicóloga e educadora soviética Nina F. Talízina, na
Universidade de Havana, sobre Los Fundamentos psicopedagógicos de la enseñanza em la
Educación Superior (TALÍZINA, 1984). Outras, também importantes, apresentam
elementos para elaboração e desenvolvimento de propostas pedagógicas na ex-RDA –
República Democrática Alemã (KLINGBRG, 1972) e na ex-URSS – União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (DANILOV & SKATKIN, 1978; DAVYDOV, 1981) – todas
traduzidas para o espanhol e publicadas em Havana..

1. A relação escola / sociedade

A tônica da abordagem desses autores é a visão de que os conteúdos


escolares devem ser organizados e selecionados de acordo com as exigências de formação
do homem contemporâneo, numa perspectiva de educação para o futuro, que pressupõe:
entender a história como desenvolvimento; compreender a ação dos homens como ao
mesmo tempo individual e social, com caráter de classe (envolvendo a construção material

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e espiritual do mundo em constante transformação e a ação revolucionária dos oprimidos e


explorados); reconhecer o caráter objetivo-subjetivo, revolucionário, das transformações
sociais. Tais são os pressupostos da escola única, cujas idéias centrais podem ser assim
resumidas:
- a educação, no sentido amplo, como manifestação específica da ação
social do homem e voltada para a formação da personalidade em seus
múltiplos aspectos;
- a educação como fenômeno social historicamente determinado,
compreendendo relações sociais e formas de comportamento social,
imbuídos de caráter de classe;
- a educação como relacionada diretamente com a prática e com o
conhecimento dessa prática e, portanto, necessariamente vinculada com o
trabalho;
- a educação escolar como manifestação da educação no sentido amplo,
constituindo-se numa esfera especial da atividade humana e tendo como
campo principal o ensino;
- o caráter científico do ensino (processo consciente, deliberado,
sistemático e metódico) e seu caráter de classe;
- a consideração, na organização do ensino, das transformações ocorridas
na produção científica e técnica;
- a formação do pensamento científico como requisito fundamental para
colocar as gerações atuais no nível de nossa época e a educação escolar
como principal responsável por essa tarefa;
- a consideração do ensino em sua dupla função de servir como fonte de
informação e de organizar a atividade cognoscitiva dos estudantes.
(SAVIANI, N., 2003, p 63-64)
.
Segundo os referidos autores, a escola deve ser criadora o suficiente para, além de
transmitir os conhecimentos científicos, dotar o aluno da capacidade de buscar
informações, conforme as exigências de sua atividade principal e de acordo com as
necessidades do desenvolvimento individual e social.
Esta concepção ressalta o papel do Estado na edificação, manutenção e
desenvolvimento do sistema nacional de educação, imprescindível à viabilização da escola
unitária, gratuita e laica, extensiva a todas as regiões do país e a todas as camadas da
população:
... a educação é função do Estado, o qual garante a escolarização de crianças
e jovens e oferece múltiplas facilidades para continuar os estudos
especializados e superiores, com o fim de assegurar a universalização do
ensino. Este caráter estatal garante exigências únicas na formação dos
estudantes – vivam na cidade ou no campo – assim como um elevado nível
de educação e de ensino. (ICCP, 1981, p. 16).

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O sistema nacional de educação prevê ações escolares e extra-escolares, tendo por


critério “que todo estudante seja um trabalhador em formação e todo trabalhador seja um
estudante, que se supere cultural e tecnicamente de forma sistemática”. (ibid., p.17). O
“enfoque de sistema” supõe, entre outras exigências, a planificação educacional, a
organização da escola única articulada nos diferentes tipos e níveis de educação, a
combinação entre estudo e trabalho, com o propósito essencial de garantir “a formação
multilateral e harmônica do indivíduo, mediante a conjunção integral de uma educação
intelectual, científico-técnica, político-ideológica, física, moral, estética, politécnico-laboral
e patriótico-militar” (ibid. pp.15-16). Para tanto, considera-se fundamental o papel do
professor, que deve ser formado para “dominar profundamente as disciplinas que leciona e
saber aplicar os princípios psicológicos e pedagógicos relacionados com seus conteúdos”
(ibid., p. 364). Nesta perspectiva, a docência é considerada um trabalho coletivo, uma vez
que: o educador atua junto a grupos de alunos; há uma relação de interdependência entre as
ações dos diversos educadores; é na ação coletiva que cada profissional forma sua
individualidade criadora. Assim, “o êxito do ensino depende não de educadores isolados,
mas do esforço conjunto de todos os que integram o coletivo pedagógico” (ibid., p. 369).

2. A relação sujeito / objeto

Para os autores das obras em pauta, o processo educativo consiste na ação


pela qual se propicia aos estudantes o acesso às múltiplas realizações humanas, tendo por
eixo a apropriação do conhecimento científico. Tal perspectiva tem como fundamento a
concepção de que o conhecimento não se separa da vida material da sociedade, é processo
inerente à relação que os homens estabelecem entre si e com a natureza, na produção e na
reprodução de sua existência. Na atividade prática, material, o homem conhece objetos e
fenômenos da natureza e da sociedade, atua sobre eles e os transforma. O trabalho torna-se
princípio educativo, como atividade humana, prática social concreta, voltada para um
determinado fim. É isso o que distingue os homens dos demais seres naturais: a propriedade
de ser ativo e consciente, a possibilidade de desenvolver capacidades e forças reais. E é
nisso que reside o fundamento da educabilidade humana. Os homens educam-se na e pela
atividade consciente, que é a mediação da relação entre sujeito e mundo objetivo.

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O processo de ensino caracteriza-se pela atividade consciente de professores e


alunos a fim de desenvolver-se o trabalho intelectual orientado ara o desvendamento da
realidade, tanto no que se refere à apropriação dos conhecimentos acumulados, quanto no
concernente à formação da capacidade de investigação e interpretação, necessária à
produção de novos conhecimentos.
O domínio do conhecimento científico torna-se uma necessidade que a educação
escolar não pode ignorar. A importância do ensino da ciência consiste, ao mesmo tempo,
em elevar o nível de pensamento dos estudantes e em permitir-lhes o conhecimento da
realidade, o que é indispensável para que as jovens gerações não apenas conheçam e
saibam interpretar o mundo em que vivem, mas também, e sobretudo, saibam nele atuar e
transformá-lo. Como experiência generalizada da humanidade, a ciência exerce influência
educativa no desenvolvimento da personalidade do estudante, porque propicia o
desenvolvimento da capacidade de observação, do raciocínio, da linguagem, da memória,
da imaginação e tem a possibilidade de atuar não só sobre a mente, mas também sobre a
alma e o sentimento. (Danilov & Skatkin, 1984, p. 150).
O conhecimento, mais especificamente o conhecimento científico, constitui, desta
ótica, o núcleo estruturador do conteúdo da educação escolar. Assim, o processo de ensino-
aprendizagem reveste-se de caráter sistemático e metódico e requer planejamento –
diferentemente do que exigem as relações de aquisição do conhecimento espontâneo. O
conhecimento científico envolve processos mais complexos, na medida em que visa a
captar a essência do objeto. Não consiste em simples continuação das experiências do
cotidiano, nem de seu mero aprofundamento ou ampliação. Exige “meios especiais de
abstração, de singular análise e generalização que permita fixar os nexos internos das
coisas, suas essências: requer vias peculiares de ‘idealização’ dos objetos do conhecimento”
(Davydov, 1981, p. 105).

2.1. As características do sujeito cognoscente

A perspectiva acima colocada encontra seus fundamentos no materialismo histórico,


que fornece as premissas para a compreensão do papel da linguagem na formação e no
desenvolvimento das funções psíquicas humanas e a formação dos signos materiais e

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verbais como mediatização. Interessa à educação o estudo das relações, contradições,


mediações e elementos de unidade inerentes ao processo de formação dos conceitos nas
ciranças. É em Vigotski e seus colaboradores (Leontiev, Luria, Galperim) que os autores
das obras referidas vão encontrar subsídios para compreender o desenvolvimento das
funções psíquicas superiores como processo em constante movimento e transformação e se
convencem da necessidade de detectar as mudanças qualitativas pelas quais a criança passa
ao longo do seu desenvolvimento. Aprendem com o psicólogo soviético a diferença
existente entre os conceitos espontâneos (do cotidiano) e os científicos, bem como as
implicações disto para a educação escolar:
- a idéia de que o ensino deve ser especialmente organizado, para garantir a formação dos
conhecimentos científicos;
- a necessária sistematização dos conceitos (estabelecimento de suas interdependências);
- a conscientização da atividade mental (tomada de consciência das operações mentais);
- o estabelecimento de uma relação especial com o objeto, a fim de apreender seus nexos
internos;
- o ensino como mediação entre o sujeito e o objeto, pela atividade docente. (Cf. Davydov,
1981, passim).
A psicologia soviética encontra em Rubinstein (apud DAVYDOV, op. cit.) um
avanço em direção à filosofia, mais precisamente à lógica dialética, que explica a
transformação dos dados sensoriais pela atividade mental por meio das operações de
análise, síntese, abstração e generalização, como características peculiares ao nível mais
desenvolvido do homem: o pensamento teórico, também denominado científico ou
abstrato. Assim, o ato de pensar consiste numa “reconstituição mental” do objeto e, como
tal, “constitui um processo de interação específica entre o sujeito cognoscente e o objeto
cognoscível” (DAVYDOV, 1981, p. 228). Das teses de Vigotski e Rubinstein, soadas às
contribuições da filosofia e da pedagogia, Davydov deriva as seguintes implicações:
- a necessária compreensão da íntima relação que existe entre a lógica e a psicologia, e o
conseqüente entendimento que o pensamento não pode ser visto como função psíquica
particular do indivíduo isolado;

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- a necessária compreensão de que as atividades psíquicas não são dadas de antemão, são
aprendidas, e que o processo de aprendizagem tem suas peculiaridades e se desenvolve de
diferentes maneiras, exigindo orientações adequadas aos seus diversos aspectos;
- a necessária compreensão da unidade entre o geral e o particular e entre o abstrato e o
concreto – bem como entre os caminhos que eles comportam no processo de formação dos
conceitos científicos – para a estruturação das disciplinas escolares e respectivos
programas.

2.2. As características do objeto cognoscível:

O objeto cognoscível, segundo os autores das obras em análise, constitui-se, em


sentido amplo, nos elementos da própria realidade – os fatos, fenômenos, processos
(naturais, sociais, psíquicos) – cujo conhecimento envolve questões sobre essência e
aparência, forma e conteúdo, quantidade e qualidade, entre outras, na sua historicidade, em
suas relações, contradições, transições, transformações, implicando procedimentos de
investigação e de aproximação do real. Na educação escolar, o objeto cognoscível já
comportaria os conceitos, teorias, idéias, princípios, valores etc., relativos aos diversos
domínios da cultura, sistematizados nas ciências, na literatura, nas tecnologias, nas artes e
traduzidos em matérias de ensino, ou disciplinas escolares. Estas, de acordo com os
mesmos autores, devem ser organizadas de modo a aproximar-se da estrutura das ciências
correspondentes, conforme sua história, sua lógica e seu método.
Convém registrar que a proposta de organização das disciplinas escolares segundo a
estrutura das áreas de conhecimento aparece, nessas obras, justificada por motivos
diferentes daqueles que ensejaram tal proposta no debate sobre organização curricular entre
autores estadunidenses, nos anos de 1960 (cf. DOLL, 1974; BERMAN, 1976). Neste caso,
o alarme provocado pelo lançamento do Sputinik russo teria obrigado os educadores
americanos a refletir mais profundamente sobre o nível de ensino, gerando um movimento
em prol da recuperação do lugar do conhecimento na educação escolar, que vinha dando
maior ênfase aos métodos e recursos que aos conteúdos, cuja seleção se dava segundo a
utilidade ou de acordo com os interesses imediatos dos alunos e com os impactos da
comunidade local sobre a escola. Passa-se, então, a prestar mais atenção à estrutura das

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disciplinas científicas, à inter-relação dos conhecimentos e sua diferenciação nos campos


acadêmicos, bem como aos instrumentos específicos, às finalidades e aos modos de
investigação das diversas áreas, implicando nova organização do currículo, segundo a
estrutura das disciplinas escolares, considerando-se imprópria a idéia de se ensinar
deixando de lado as matérias. Procura-se, então, romper com a visão que dá exclusividade
ao como se aprende, evitando-se incorrer novamente na inversão, ou seja, a recuperação
dos conteúdos em detrimento dos métodos.
Por seu turno, os soviéticos – que, a partir da revolução russa de 1917, conseguiram
não só erradicar o analfabetismo, de taxas altíssimas, quanto atingir um tal nível de
desenvolvimento científico e tecnológico, a ponto de provocar o referido alarme entre os
americanos – encontram-se, também, na década de 1960, às voltas com o problema de
repensar a organização do seu ensino, sobre o qual já pesam algumas críticas. Uma delas
referia-se ao método de complexos, que durante muito tempo vinha imperando na educação
escolar daquele país (e influenciando, também, a dos demais países do então bloco
socialista).
Caracterizando-se pela concentricidade de temas gerais, ligados entre si, o método
de complexos assemelhava-se a outros procedimentos metodológicos propostos pela
chamada “escola ativa”, tais como os centros de interesse, as unidades de trabalho, o
sistema de projetos, em que pese não cair sobre a educação soviética a acusação de não
diretivismo, nem de menosprezo aos conteúdos ou de falta de rigor no ensino, no controle
do aproveitamento e na avaliação dos resultados. Entretanto, apesar dos inegáveis avanços
em relação à educação liberal burguesa nas suas principais versões e diversidade de
propostas, a pedagogia socialista ainda não se mostrava suficiente para garantir o
acompanhamento das transformações científicas e tecnológicas e atender às exigências de
formação do homem contemporâneo. Impunha-se um ensino capaz de contribuir para a
elevação do nível de pensamento dos estudantes, e a concentricidade dos complexos
deixava a desejar. Daí, a preocupação com um trabalho mais sistemático com as ciências,
segundo sua história, sua lógica e seu método, o que implicaria novos métodos de
estruturação das disciplinas escolares, entendidas como a forma pela qual se apresenta o
conteúdo de ensino, manifesto nos programas, nos livros e outros materiais didáticos,
representando as bases ou fundamentos das ciências, artes ou técnicas correspondentes,

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traduzidas em atividades consoantes com os objetivos do ensino e organizadas de modo a


atender às peculiaridades das idades dos alunos. (cf. ICCP, 1981, p. 237).
Nessa perspectiva, a elaboração dos programas das disciplinas escolares “pressupõe
não só basear-se no ‘conteúdo positivo’ das ciências correspondentes, mas também possuir
idéias lógicas precisas sobre a estrutura da ciência como forma peculiar de reflexo da
realidade” (DAVYDOV, 1981, pp. 6-7 – itálico do autor). Implica, ainda, considerar a
relação entre “a atividade mental dos alunos e o conteúdo dos conhecimentos a serem
assimilados” (ibid., p.7).
Assim concebida, a estruturação das disciplinas escolares deve seguir certos
princípios, tais como (cf. ICCP, 1981, pp. 239-244):
- o caráter científico – seleção dos conteúdos científicos fundamentais e determinação dos
procedimentos metodológicos adequados, a fim de atingir os objetivos educacionais que
incluem a formação de uma visão científica e moderna de mundo;
- a sistematização – organização do conteúdo de maneira lógica, do simples ao complexo e
do conhecido ao desconhecido;
- o caráter único – uma estruturação válida para todas as escolas, garantindo-se
crescimento progressivo de complexidades para as atividades intelectuais e manuais e entre
elas, com mecanismos adequados de passagem de um nível a outro e de intercâmbio dos
ramos e modalidades de ensino;
- a relação intermatérias – organização das disciplinas de modo a refletir as relações
inerentes às próprias ciências, que, por sua vez, refletem os nexos existentes na realidade
objetiva, ou seja, a concatenação dos fenômenos naturais, sociais e psíquicos.
Na prática escolar, a relação intermatérias se manifesta nas relações entre os
conteúdos selecionados, os métodos de ensino, os hábitos e habilidades, refletindo as
relações entre os sistemas de conhecimentos das disciplinas, a utilização do aparato
instrumental de uma disciplina em outras, a contribuição de todas as disciplinas para a
formação da concepção científica de mundo. A relação intermatérias supõe um trabalho não
restrito à simultaneidade ou complementaridade, mas voltado para os verdadeiros nexos
que existem entre os conhecimentos científicos e sua manifestação no processo de estudo
das ciências, levando-se em conta que:
- diferentes ciências estudam um mesmo objeto;

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- os métodos de uma ciência são utilizados para estudo dos objetos de


outra ciência;
- diferentes ciências utilizam uma mesma teoria para estudar diferentes
objetos. (Cf. DANILOV & SKATKIN, 1978, p. 73).

Com efeito, se, por um lado, não se pode conceber um ensino que aborde as
disciplinas separadamente, por outro lado, a relação intermatérias não pode ignorar o
movimento próprio de cada disciplina. Isto quer dizer que não se trata de suprimir a
diferenciação, mas, sim, de entendê-la dialeticamente, de acordo com os avanços científicos
da época atual.
Neste sentido, a estrutura do objeto cognoscível comporta a aproximação das
disciplinas escolares às ciências de referência. Trata-se de empreendimento bastante
complexo, especialmente quando são consideradas as características das ciências na
atualidade, com suas ramificações e interligações, num processo dialético de diferenciação
e integração, em que as diferentes teorias e respectivos elementos concorrem na formação
de diferentes disciplinas, consideradas matrizes ou afiliadas. (Cf. KLINGBERG, 1972, p.
72). Assiste-se, hoje, “a um processo de penetração e fusão mútuas das ciências que
conduz ao desenvolvimento de novas disciplinas (intermediárias ou limites)” (ibid., p. 72) –
expressando tanto uma diferenciação progressiva quanto uma tendência à integração, com o
desenvolvimento de disciplinas limites mediante a penetração dos métodos de uma ciência
no “terreno” de outra. A integração e a diferenciação das disciplinas são processos
objetivos, em unidade dialética, expressando a unidade (objetiva) na diversidade de
processos e fenômenos, tal como ocorre no movimento do real. (Ibid., pp. 72-73).
O “aspecto atual” das ciências é que elas “não têm por objeto as coisas mesmas e
suas manifestações imediatas” e seu ensino implica a necessidade de “criar abstrações
teóricas especiais, destacar algum nexo determinado das coisas e transformá-lo em singular
matéria de estudo.” (DAVYDOV, 1981, 105-106). Com efeito, os métodos de ensino que
se prendem ao empírico, concebendo ser possível a formação e conceitos científicos pela
via única do concreto ao abstrato, não podem satisfazer às exigências atuais. A principal
tarefa do ensino escolar, desde seu início, “consiste em destacar para os alunos as
propriedades diretas das coisas e suas possíveis interpretações no conceito teórico”. (Ibid.,
p. 107)

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A formação do pensamento científico-teórico é algo a ser perseguido desde o início


da escolarização e compreende processos muito complexos, para os quais devem concorrer,
mutuamente, a atividade do professor e a atividade do aluno. Ainda quando não se
caracterizem diretamente por disciplinas científicas, os componentes curriculares não
devem perder de vista, mesmo nos níveis iniciais, os elementos que possam contribuir para
a formação da capacidade de estabelecer relações teóricas, isto é, de desenvolver
abstrações e generalizações. Já nos níveis mais avançados, não só é necessário aprofundar e
ampliar a formação das referidas capacidades, como garantir ao aluno a compreensão da
estrutura de cada disciplina. (Cf. ibid., 107).
Por conseguinte, o ensino exige um tratamento dialético, que concebe a organização
do currículo e a elaboração do programa de cada disciplina como elementos de um mesmo
movimento no qual se inter-relacionem e se impliquem: o lógico e o histórico; a teoria e a
prática; o concreto e o abstrato; o simples e o complexo; o geral e o particular; o lógico e o
psicológico. Um tratamento que supere a dicotomização ordem linear versus ordem
concêntrica e que não veja na relação intermatérias a mera justaposição das disciplinas.

Para refletir...

As idéias educacionais aqui apresentadas, com base nas obras de autores auto
identificados com a pedagogia socialista, têm, por suposto, sido alvo de debate na formação
de educadores cubanos. O presente trabalho ateve-se às concepções, mas a sua articulação
com os outros textos propostos para este painel pode permitir uma reflexão sobre como e
em que medida elas se relacionam com determinações legais e práticas pedagógicas,
conforme dados e informações levantados nas respectivas pesquisas.
No entanto, para além da sua consideração na discussão sobre a experiência cubana,
os pressupostos dessas concepções têm sido tomados como referência para reflexão sobre a
educação escolar e análise do processo pedagógico, na perspectiva de construção de
projetos de democratização da educação, nos marcos de relações capitalistas. A idéia de
edificação de um sistema nacional de educação, o papel do estado como decisivo na
manutenção e desenvolvimento do ensino público, gratuito e de qualidade em todos os
níveis, a elevação do nível de pensamento dos estudantes, o atendimento às exigências de

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formação do homem contemporâneo – são bandeiras também empunhadas pelos defensores


de uma educação que forme cidadãos críticos e dispostos a lutar contra a discriminação, o
preconceito, a superstição, a exclusão social.
Em pesquisa recente, junto a escolas públicas e particulares do estado de São
Paulo, foram discutidas questões sobre o papel do professor na seleção dos conteúdos
curriculares e na organização do trabalho pedagógico, examinando-se documentos,
ouvindo-se docentes de vários níveis, séries e disciplinas, examinando-se situações
concretas e materiais didáticos. As intenções, manifestas ou implícitas, de se realizar uma
educação que prime pela mediação pedagógica no processo de apropriação da cultura nas
suas múltiplas manifestações têm, em geral, esbarrado em graves problemas, tais como:
organização do tempo e do espaço escolares; carência de recursos financeiros e materiais;
situação dos professores (formação precária, ausência de planos de carreira, baixo salário –
conduzindo a estafantes jornadas e dificultando o trabalho coletivo); instabilidade do corpo
docente; oscilações das determinações legais e das orientações pedagógicas, à mercê das
mudanças de administração nas várias esferas de poder. Sem falar em problemas de
disciplina e até de violência nas salas de aula, nos outros espaços da escola e em seu
entorno, envolvendo alunos, professores e membros da comunidade. Em que pese registrar-
se, em muitas escolas pesquisadas, experiências importantes, estas vêm dependendo do
esforço de indivíduos ou pequenos grupos, apresentando problemas de continuidade. As
questões pedagógicas acabam por subordinar-se a todos esses problemas, a ponto de
parecer aos educadores (às vezes, até mesmo aos próprios pesquisadores) que não há o que
discutir em relação às diferentes concepções pedagógicas e seus fundamentos psicológicos,
sociológicos, filosóficos, antropológicos etc, pois tudo no ensino depende da política
educacional. Com isso, ora prevalece o descrédito em relação às contribuições teóricas, ora
se apela ao ecletismo, buscando-se pinçar aspectos “vantajosos” em cada proposta. Ou, o
que é pior, parece que o que resta é “administrar o dia-a-dia”, no caso dos educadores e
limitar-se à constatação / denúncia, no caso dos pesquisadores.
Voltando à experiência cubana, é no mínimo curioso que esse país, quando ainda
subordinado à União Soviética, tenha conseguido manter relativa autonomia na organização
de seu sistema nacional de educação e na formulação de suas orientações pedagógicas,
articulando princípios do marxismo-leninismo aos de Jose Martí e, com isso, atingido

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níveis elevados de educação e na formação de profissionais e cientistas nas várias áreas do


conhecimento, destacando-se em campos das artes e dos desportos. E que consiga manter-
se em evidência, mesmo após a queda dos regimes socialistas da URSS e do Leste Europeu,
tendo, ainda, que enfrentar o longo e profundo bloqueio norte-americano.
Ao ensejo do exame da atual reforma da Educação Secundária Básica, conforme
pesquisa em andamento, cujos resultados parciais são apresentados num dos textos deste
painel, cabe refletir sobre: quais os diagnósticos dos quais se parte para se propor a
reforma? O que está sendo reformado e em direção a quê? Quais os indícios de que estão
sendo consideradas as contradições detectadas pela pesquisa do final dos anos de 1980,
também apresentada neste painel? Em que medida estão sendo mantidos, mudados ou
substituídos os pressupostos pedagógicos e respectivos fundamentos teóricos, conforme
discutidos no presente trabalho? E, ainda, em quais condições concretas se realiza hoje a
educação escolar, quais os problemas enfrentados e como a atual reforma se propõe a
resolvê-los?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GLOBO, 1976.

DANILOV, M. A. & SKATKIN. M. N. (orgs.). Didáctica de la escuela média. Havana:


Ed. Pueblo y Educación, 1978.

DAVYDOV, V.V. Tipos de generalización en la enseñanza. Havana: Ed. Pueblo y


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DOLL,R.C., El mejoramiento del curriculum: toma de decisiones y processo, 2º ed.


Buenos Aires, El Ateneo, 1974.

ICCP - Ministério de la Educación de Cuba. Pedagogía. Havana: Ed. Pueblo y Educación,


1981.

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KLINGBERG,L,., Introducción a la Didáctica General. Havana, Ed. Pueblo y


Educación, 1972.

SAVIANI, N. Saber Escolar, Currículo e Didática: problemas da unidade


conteúdo/método no ensino. PUC-SP. Tese de Doutorado. 1993.
____________. Saber Escolar, Currículo e Didática: problemas da unidade
conteúdo/método no processo pedagógico. Campinas: Autores Associados, 2003, 4ª ed.

TALIZINA,N.F., Los fundamentos de la Enseñanza en la Educación Superior -


conferências - Univ. Havana, 1984.

São Vicente/SP.
Novembro/2005.
Nereide Saviani.

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