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HISTORIA GERAL DA
ARTE NO BRASIL
VOl.II

INSTITUTO WALTHERMOREIRA SALLES


FUNDAÇÃO DJALMA GUIMARÃES São Paulo 1983 BRASIL
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W Ai TER ZANINI
Coordenação e direção editorial

CACIlDA TEIXEIRA DA COSTA


Pesquisa, assistência editorial e coordenação técnica
MARlLIA SABOY A DE ALBUQUERQUE
Pesquisa e assistência editorial

ZANINI, Walter, org. Histôna gerai da arte no Brasil. São Paulo,


Instituto Walther Moreira Salles, 1983. 2v., il.

Conteúdo: v. 1 - A arte no período pré-colonial. Arte índia.


Do séc. XVI ao início do sêc. XIX, maneirismo, barroco e rococó.
Sêc. XVII e o Brasil holandês. Os pintores de Nassau. Séc. XIX.
Transição e início do séc, XX. Art-nouveau , modernismo, ecletis-
mo e indusrrialisrno. v.2. - Arte contemporânea. Arquitetura
contemporânea. Fotografia. Desenho industrial. Comunicação
visual. Arte afro - brasileira. Artesanato. Arte educação.

1. Arte - História - Brasil. L Título.

CDO 709.81
COU 7(091)(81)
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SUMÁRIO

ARTE CONTEMPORÂNEA 499


8 Walter Zanini

Introdução ·501

DAS ORIGE S DO MODERNISMO Ã SEMANA DE 1922.


8.1 São Paulo, núcleo do movimento modernista .502
8.2 As fontes européias e a busca de estimulantes nacionais 507
8.3 As primeiras exposições modernistas 511
8.4 Anita Malfatti, a precursora 513
8.5 A contribuição de Di Calvalcanti, Vicente do Rego 520
Monteiro e Victor Brecheret
8.6 O Futurismo em São Paulo 528
8.7 A abertura no ambiente conservador do Rio 530
8.8 Os artistas plásticos na Semana de Arte Moderna 533
EVOLUÇÃO DO MODERNISMO, DEPOIS DA SAM, ATÉ 1930
8.9 Desdobramentos e difusão do Modernismo 541
8.10 Deslocamentos dos artistas da Semana para Paris 547
8.11 Os primeiros anos de Segall no Brasil 554
8.12 Tarsila do Amaral: do pau-brasil à antropofagia 556
8.13 Outros artistas de experiência européia 560
8.14 Goeldi, Nery e outros artistas ativos no Rio 562

TRANSFORMAÇÕES ARTÍSTICAS DE 1930 AO PERÍODO DA SEGUNDA


GUERRA MUNDIAL
8.15 Afirmação do Modernismo no meio artístico alargado 568
8.16 Novas fases dos pioneiros 574
8.17 O' 'salão revolucionário" 578
8.18 Agrupamentos de artistas no Rio e São Paulo 579
Núcleo Bernardelli 579
ASPAM 580
OCAM 582
O Salão de Maio 583
O Grupo Santa Helena 585
A FAP e o sindicato 586
8.19 A obra de Portinari 588
8.20 Síntese da contribuição dos artistas do Rio 596
Guignard e Pancetti 596
Artistas do Núcleo Bernardelli 599
Artistas influenciados por Portinari, quase sempre 602
Burle Marx 605
Artistas europeus 605
Escultores do período 609
Bruno Giorgi 610
Maria Martins 613
A arquitetura e o programa do edifício do 614
Ministério da Educação
8.21 Síntese da contribuição dos artistas de São Paulo 615
O meio paulista 615
Flávio de Carvalho 615
Novos nomes 618
Ernesto de Fiori 621
Os santelenisras: Bonadei, Graciano, Pennacchi, 623
Rebolo, Volpi, Zanini e outros
Posições diversificadas 630
Os escultores 634
8.22 Aspectos da arte em vários Estados 637

A INTEGRAÇÁO NO CURSO INTERNACIONAL DA ARTE


8.23 A aderência ao universo das formas abstratas 641
8.24 Transformações do meio ambiente 643
8.25 Os artistas surgidos com a exposição dos' 19' 649
8.26 Arte concreta e neoconcreta no Brasil 653
8.27 Outras tendências construtivas e diferentes
morfologias abstratas 678
O interesse construtivo em Volpi e outros artistas 678
A abstração lírica 689
O Expressionismo abstrato 693
As tendências do Expressionismo abstrato na gravura 703
A escultura e a abstração 708
8.28 Engajamentos na arte social 709
8.29 A perseverança da figuração 715
8.30 Aspectos da arte em capitais regionais 726

AS VARIÁ VEIS ARTÍSTICAS AS ÚLTIMAS DUAS DÉCADAS


8.31 Os desdobramentos da arte e o quadro local de atividades 728
8.32 O movimento artístico diversificado 734
8.33 Contribuição ao nível do objeto e da arte desmaterializada 739
As novas figurações 739
A surrealidade presente 758
O ideário construtivo 763
As múltiplas linguagens no desenho e na gravura 764
Variantes da expressão escultural 769
Desmaterialização e reanimação 776
Os processos intermediais 785
8.34 Aspectos da arte em vários Estados 802
A caricatura 806
Arte incomum 808
A visão ingênua e popular 810
co CLUSÁO 812
Notas 813
Bibliografia 820
500

ARTECONTEMPORÃNEA

PARTE I DAS ORIGE S DO MODERNISMO Ã SEMANA DE 1922


São Paulo, núcleo do movimento modernista
As fomes européias e a busca de estimulantes nacionais
As primeira exposições modernistas
Anita Malfatti, a precursora
A contribuição de Di Cavalcami, Viceme do Rego Momeiro e Victor Brecheret
O Futurismo em São Paulo
A abertura no ambiente conservador do Rio
Os artistas plásticos na Semana de Arte Moderna

PARTE II EVOLUÇÃO DO MODERNISMO, DEPOIS DA SAM, ATÉ 1930


Desdobramemos e difusão do Modernismo
Deslocamentos dos artistas da Semana para Paris
Os primeiros anos de Segall no Brasil
Tarsila do Amaral: do pau-brasil à amropofagia
Outros artistas de experiência européia
Goeldi, Nery e outros artistas ativos no Rio
Introdução
Os novos ideários da arte que se impuseram no Brasil pelo
desenrolar do século XX são objeto desta parte do livro. Desde o
movimento modernista (das raízes à Semana de Arte Moderna e sua
evolução até 1930) encadeiam-se os estudos referentes a períodos
cronológicos quase sempre bem demarcados por décadas. É verdade
que no início do decênio de 1930 delineia-se uma fase que se alonga
aos anos da Segunda Guerra Mundial, ou mesmo um pouco além.
Cada uma das três décadas seguintes, entretanto, apresenta fortes
peculiaridades Procurou a àbordagem dessas etapas distintas colher
nas linhas gerais tanto o trabalho individuál quanto a animação de
grupos ou tendências, assim como as características do sistema só-
cio-cultural da arte aqui existente.
A análise - por entre as dificuldades de pesquisa já apontadas
no prefácio do livro - busca esclarecer os aspectos principais que
marcam a atividade artística criadora no diversificado meio brasileiro
e ao mesmo tempo mostrar os dados que a ligam ao contexto inter-
nacional. 501

PARTE III TRANSFORMAÇÕES ARTÍSTICAS DE 1930 AO PERÍODO DA SEGUNDA


GUERRA MUNDIAL

Afirmação do Modernismo no meio artístico alargado


Novas fases dos pioneiros
O "salão revolucionário"
Agrupamenros de artistas no Rio e São Paulo
A obra de Portinari
Síntese da contribuição dos artistas do Rio
Síntese da contribuição dos artistas de São Paulo
Aspectos da arte em vários Estados

PARTE IV A INTEGRAÇÃO NO CURSO INTERNACIONAL DA ARTE


A aderência ao universo das formas abstratas
Transformações do meio ambiente
Os artistas surgidos com a exposição dos' 19'
Arte concreta e neoconcreta no Brasil
Outras tendências construtivas e diferentes morfologias abstratas
Engajamenros na arte social
A perseverança da figuração
Aspectos da arte em capitais regionais

PARTE V AS VARIÁVEIS ARTÍSTICAS NAS ÚLTIMAS DUAS DECADAS


Os desdobramentos da arte e o quadro local de atividades
O movimento artístico diversificado
Contribuição ao nível do objeto e da arte desmaterializada
Os aspectos da arte em vários estados

CONCLUSÃO
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Das origens do Modernismo à Semana de 1922

8.1 São Paulo, núcleo do movimento modernista


Desde o segundo decênio deste século alguns fatos tornaram-se
indicativos do aparecimento de uma .nova situação cultural no Brasil.
Em reação a antigos e sedimentados estratos de nossas artes e
letras, tributárias, ainda depois da Primeira Guerra Mundial, de
valores já esgotados em fins do século XIX na Europa - sempre
centro das atenções da inte//igentsia da nação - afirmou-se gradual-
mente uma orientação revolucionária de sensibilidade e de idéias
resultante nos anos posteriores em sucessivas e agudas manifes-
tações que configuraram de vez o fenômeno conhecido como Moder-
nismo. Entre essas manifestações aparece, como um marco decisivo
502 de arregimentação e ao mesmo tempo com toda a força de um sím-
bolo, a Semana de Arte Moderna. Nela demonstrava-se o quanto era
imperiosa e urgente a renovação mental do meio. A transformação
pretendida embasava-se na absorção das tendências mais avançadas
da cultura e da arte do Velho Mundo, havendo consciência da neces-
sidade--de introduzir nessa atualização um conhecimento aprofundado
da realidade nacional.
Embora suas não poucas contradições, a Semana de 1922
representou, ao aglutinar esforços dispersos em várias áreas poéticas
e valendo-se do escândalo, o primeiro gesto coletivo de rejeição do
passadismo em que aqui remansavam a expressão icônica, musical e
verbal. E mesmo indo além de tudo isto, ela não deixava de exprimir
anseios mais vastos que idealizavam o país integrado ao diapasão
das sociedades evoluídas. A partir de então, outros desdobramentos
consolidaram o Modernismo até o final da década, quando, em
sincronia com o crack de 1929 e o advento da República de 1930,
inaugurou-se um outro tempo, que aproveita o impulso dos pioneiros
mas que decorre em função de coordenadas próprias. No transcorrer
dos anos 20 registraram-se movimentos que se aproximam do espíri-
to de renovação da Semana também em outras capitais do hemis-
fério, a exemplo daqueles dirigidos pelo Sindicato de Artistas Revolu-
cionários do México (1922) e o grupo da revista Martin Fierro de
Buenos Aires (1924).
Essa tomada de consciência das artes e das letras era contem-
porânea de uma sociedade penetrada de perseverante espírito positi-
vista, dominada politicamente pela velha e poderosa oligarquia lati-
fundiária - sociedade que, de um modo geral, mostrava-se cultural-
mente conformista, apegada a modelos estéticos europeus pouco
renovados, que a compraziam desde o Império. O propósito dos artis-
tas, como dos literatos da primeira hora modernista, coincidia com a
industrialização que se acelerava - impelida pela massa de imigran-
tes fixados no sul do país - e encontrava correspondência, pela déca-
da de 1920, no ânimo político contestatário da classe média em
ascensão e nos ideais de reforma moralizante do tenentismo, diante
do desajuste e o desgaste do regime instituídc em 1889 - todas
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causas desencadeadoras dos rumos ideológicos responsáveis pela


Revolução de 1930. Não faltam interpretações que atribuem decidi-
damente à Semana de Arte Moderna méritos de estimulação de um
discernimento objetivo dos problemas substanciais de auto-identifi-
cação de que era carente a nação e ela, que assimila as tensões da
sociedade, certamente os pode reivindicar pela natureza e alcance de
seus conceitos.
Entretanto, antes dos acontecimentos intelectuais e artísticos da
Semana e do desenrolar dos vários e importantes episódios políticos
da década de 1920, nos anos que antecederam o evento de 1922,
sobretudo a partir do período da Primeira Guerra, todo um processo
de abertura tomava consistência em setores do país, reduzindo o
arcaísmo confrangedor herdado das velhas estruturas sócio-econômi-
cas em que fora longa mente moldado. No Brasil do segundo decênio
do século XX fortalecia-se o sistema capitalista como conseqüência
do conflito mundial. Um dos efeitos maiores deste fato foi o desenvol-
vimento fabril concentrado nos próprios recursos manufatureiros
locais. Era ao mesmo tempo o instante em que se acentuava a
penetração das idéias socialistas, sucedendo-se as reivindicações 503
proletárias que em 1922 resultavam na fundação do Partido Comu-
nista. Este industrialismo incipiente, mas que deixava longe os índices
qualitativos do fim do Império e começo da República, ocorre com
muito maior ênfase em São Paulo, para onde se deslocara o eixo de
gravidade econômica do país e acha-se inextricavelmente ligado à
propulsão das concepções de tendência modernista.
Considerar São Paulo florescente pela riqueza do café espalhado
pelo interior do Estado, acrescido vertiginosamente em sua
população (de 240 mil habitantes em 1910 passava a 500 mil em
1920), convulsionado pela construção e reconstrução imobiliárias,
por empreendimentos financeiros e comerciais e, acima de tudo, pela
multiplicação de oficinas e fábricas, é levar em conta desde logo os
contrastes sócio-econômicos que passavam a se acentuar entre a
província do sudeste - principalmente - e outras regiões do território
nacional. Sob angulação mais vasta agravava-se a já considerável
assimetria existente entre as cidades litorâneas, algumas também e
mais sensivelmente atingidas pela explosão demográfica e o desen-
volvimento industrial, do interior agreste e pobre posto à mostra pela
obra de Euclides da Cunha.
O fenômeno da rápida expansão da capital paulista assinalaya-se
pela complexidade de seus determinantes. A imposição da cidade,
subvertendo a tradicional primazia do campo em toda a nação, era
em São Paulo devida em grande escala às levas imigratórias que par-
ticipavam de forma vital na criação de recursos de toda ordem,
influindo na economia, nos costumes, na problemática das idéias. Por
outras palavras, essa presença que transformava os Estados meridio-
nais, trazendo nova contribuição à etnia brasileira, fazia-se fortemente
sentir na dinâmica da sociedade e da sua cultura. Não a podemos
perder de vista quando abordamos o fenômeno do Modernismo. Liga-
do à lavoura cafeeira - que recuperava submersas energias de des-
cendentes de antigas famílias bandeirantes e cuja intensificação, por
entre os dramas das crises sucessivas que afetavam o produto, se
fizera, ao lado de outros incrementos agrícolas, pelo braço do negro e
do imigrante - o surto de industrialização que alterava radicalmente
o velho burgo de Piratininga, sobretudo depois da Segunda Guerra,
diferenciava sobremaneira São Paulo de outras cidades, como o Rio
de Janeiro, capital da República, ou Belém, engrandecida na fase efê-
mera da exploração da borracha.
Este quadro progressista será instigação decisiva para os moder-
nistas do campo das letras, que o relacionavam às lições colhidas no
agitado meio cultural europeu da época, principalmente a uma de
suas vertentes mais prolíferas: o Futurismo, fundado em 1909, e toda
a sua crença na civilização tecnológica. Preparado em São Paulo, a
partir da segunda década, ampliando-se em direção ao Rio e contan-
do com uma participação pernambucana, a corrente renovadora
estendeu-se depois de 1922, nos seus aspectos literários, a outras
cidades que, inicialmente mais ao norte que ao sul, recebiam o estí-
mulo, enfrentando densos contextos de marasmo.
Haviam permanecido muito influentes na pintura brasileira inter-
secular o academismo derivado da ortodoxia neoclássica, as impreg-
nações românticas e realistas, às quais faltara a vivencialidade históri-
ca geradora dessas problemáticas e assimilações tardias da sensibi-
504 lidade impressionista. Crisol de homens e instituições que o impu-
nham como pólo de irradiação das diretrizes culturais do país, o
Rio gerava para as províncias esses elementos colhidos no ambiente
parisiense mais tradicional. Desde a fundação da Academia Imperial
das Belas-Artes em 1826, transformada em 1890 na Escola Nacional
de Belas-Artes, reduto do ensino oficial das artes no Brasil, dali se
disseminava a orientação aos estabelecimentos congêneres que, a
longos intervalos, foram sendo instalados em diversas províncias: em
1877 na Bahia, a que se seguem, só muito mais tarde, as escolas de
Porto Alegre (1908) ou Belém (1918). Em São Paulo não haveria ins-
tituição como essa antes de 1925.
Tornou-se até um truísmo dizer que a longa ausência do ensino
estatal na capital paulista lhe foi vantajosa na medida em que a
subtraía ao menos por esse lado, dos preceitos da estética de conteú-
do e de soluções formais descompassadas com o seu tempo lógico.
É claro que o academismo invadia solto o ambiente paupérrimo por
outras vias. Mas aquele fato não deve ser descurado, inclusive na
inversão que revela, quando se faz alusão à arquitetura moderna, a
qual absolutamente nada poderia pretender da Escola Politécnica e
que, afinal, na Paulicéia, se restringia a uns poucos representantes,
ao contrário da incitação que essa área de estudos receberia no cír-
culo, neste particular menos preconceituoso, da Escola Nacional de
Belas-Artes'. Na deflagração da vaga modernista a inexistência de tra-
dição no cultivo artístico em São Paulo é, portanto, dado ponderável e
deve ser vinculada a todos os aspectos sociológicos resultantes do
fundamental e recente cosmopolitismo personalizador da cidade.
É necessário insistir nas características culturais paulistanas, que
permaneceriam por muitos anos ainda estabilizadas em sérias defi-
ciências provinciais. Na vastidão do crescente espaço urbano, São
Paulo se europeizava sobretudo à feição italiana desde os fins do sé-
culo XIX, no ecletismo e depois no Art-Nouveau da arquitetura e da
decoração (neste último estilo as melhores realizações pertenceriam,
no entanto, a arquitetos de outras origens), nos hábitos, na própria
miscigenação da língua. A cidade, em suma, na sua vivência,
peculiarizada pelos contextos étnico-culturais de uma população sui-
generis (com seus italianos, portugueses, alemães, espanhóis, sírios
etc.). adquiria ares de capital, com edifícios públicos e residências de
grande porte, a ereção de monumentos escultóricos e a urbanização
com áreas ajardinadas. Engrandecida e enriquecida, a cidade impri-
miu um ritmo rápido às suas atividades culturais. A abertura do sole-
ne Teatro Municipal (1911) assinalou nova data para a cultura institu-
cional, provida, bem antes, de casas de espetáculos para peças
teatrais, óperas e operetas, concertos musicais e outros eventos,
sofrendo já a concorrência do cinematógrapho. Um cinema artesanal,
sobretudo ensaiado Junto aos imigrantes italianos, procurava sua
oportunidade As freqüentes exposições de arte adaptavam-se aos
espaços improvisados no velho centro. Em 1911 esse entusiasmo já
era muito acentuado, como prova o I Salão de Belas-Artes, feito nos
moldes do Salão Oficial do Rio. Já antes, em 1905, fundara-se a
Pinacoteca do Estado, que até os anos 60 não escaparia ao espírito
do conservadorismo.
Entre os mestres mais acatados que atendiam, no seu imobilis-
mo, a uma clientela amante da pintura reprodutora do real, achavam-
-se Benedito Calixto (1853-1927) e Pedro Alexandrino (1856-1942) 505
Ambos haviam estudado em Paris, Calixto com Gustave Boulanger
(1824-88), Alexandrino com Antoine Vollon (1833-1900). O primeiro
cultivou um repertório de temas religiosos e históricos, assim como a
paisagem e a marinha, e o segundo tornara-se meticuloso pintor de
naturezas-mortas.
Fixando-se em São Paulo, Oscar Pereira da Silva (1867-1937),
formado no Rio ainda nos tempos do Império e depois aluno de Bon-
nat (1833-1922) em Paris, cultor neo-romântico de temas ternos ou
de ênfase celebrativa, também correspondia àquelas expectativas.
Numerosos eram desde então os artistas estrangeiros que por exten-
sas temporadas ou definitivamente se radicavam em São Paulo, como
acontecia em outras cidades das Américas. Os pintores Georg Fischer
Elpons (1865-1939). Enrico Vio (1874-1960) e os escultores Ama-
deu Zani (1869-1944) e William Zadig (1884-1952) de sedentários
códigos visuais, como tantos outros seus colegas, exerciam também
atividades de ensino, ainda não estudadas. Não faltavam ao núcleo
de artistas, de predominância italiana, já compacto nos anos 1910-
-1920, requisições para a decoração de edifícios públicos ou de resi-
dências de famílias tradicionais e de imigrantes enriquecidos. Releve-
se o papel do Liceu de Artes e Ofícios no aprendizado de inúmeros
artistas e artesães qualificados. Dessa casa de ensino e do esforço
autodidata surgiriam valores mais tarde afirmados. Passaram por
seus bancos muitos estatuários e decoradores que adornavam a cida-
de, tal como ainda em 1935 a viu severamente Lévi-Strauss, na "indi-
gência pretensiosa das suas ornamentações", "agravada pela pobreza
do trabalho graúdo: as estátuas e as guirlandas não eram em pedra
mas sim em gesso pintado de amarelo a imitar uma pátina" 2.
O interesse em dar expressão cultural à cidade, até cerca de
1890 reduzida quase só à Escola de Direito e à sua emanação
literária, expandia-se na busca de existência artística que compensas-
se ou conjurasse o preponderante pragmatismo. Se na transforrnacão
urbana, em seu sentido monumental, fora dos mais salientes o papel
do arquiteto e empresário Ramos de Azevedo (1851-1928) e o grupo
móvel de arquitetos - incluindo muitos estrangeiros - que com ele
..
trabalhavam, na animação intelectual de São Paulo essa tarefa coube
principalmente a um homem de carreira política, apaixonado pela cul-
tura francesa, que adquirira gosto pelo colecionismo de obras de arte,
e que se destacou na promoção de exposições e na obtenção de bol-
sas para viagem de artistas ao exterior o senador Freitas Valle. É ver-
dade que o primeiro - profissional de rígida formação neoclássica,
responsável desde 1886 por inúmeras obras importantes (iniciadas
com o remanejamento e construção dos edifícios do Pátio do Colé-
gio) - nas contingências de suas funções empresariais ou em incum-
bências oficiais, também se interacionava ao meio de pintores, de
escultores e, pela própria natureza do seu escritório de engenharia e
arquitetura, a artistas decoradores Mas coube a Freitas Valle, espírito
não menos conservador, um desempenho constante e dos mais pres-
tativos nesses aspectos. Caracterizou-o, ainda, a atividade de anfitrião
de famosos encontros de artistas e intelectuais, de gerações e atitu-
des diversas, na sua Vila Kirial. A aproximação fazia-se sob a égide do
cidadão que enfeixava não raros poderes nas mãos, o que não deixa
de ser já sintoma dos aspectos mecenáticos ou paternalistas que no
futuro estariam no cerne da orientação de muitas instituições artísti-
506
cas no Brasil. Freitas Valle patrocinou por anos a fio esse clima de
convivência na sua casa de Vila Mariana, considerada "templo de
arte" (Souza Lima). onde as estimulações não eram de sorte a induzir
o contexto artístico à alternativa renovadora de que necessitava.
Outras forças, entretanto, emergiam nos contornos alargados de
São Paulo. Dois artistas, principalmente, exerceram enorme influência
na metamorfose operada no contexto antes de 1922. Anita Malfatti
(1889-1964) e Victor Brecheret (1894-1955) Apoiados por alguns
intelectuais e poetas, jovens como eles e ainda num estágio de inde-
cisão entre estéticas declinantes e a experimentação, é da sua
ligação íntima que tomará corpo o movimento modernista Sua eclo-
são na São Paulo industrializada e não fora dela foi explicada em
1942 por uma das figuras centrais do Modernismo, Mário de Andra-
de, quando sublinhou os contrastes culturais existentes entre São
Paulo e Rio. A primeira cidade - diz ele - "estava muito mais "ao
par" que o Rio de Janeiro E, socialmente falando, o Modernismo só
podia mesmo ser importado por São Paulo e arrebentar na província
Havia uma diferença grande, já agora menos sensível, entre Rio e São
Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida
exterior. Está claro. porto de mar e capital do país, o Rio possui um
internacionalismo ingênito. São Paulo era espiritualmente muito mais
moderna porém, fruto necessário da economia do café e do
industrialismo conseqüente. Caipira de serra-acima, conservando até
agora um espírito provinciano servil, bem denunciado pela sua políti-
ca, São Paulo estava ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial
e sua industrialização, em contato mais espiritual e mais técnico com
a atualidade do mundo:".
Ao levantar a complexa problemática da promoção da Semana,
clímax da arregimentação de energias que já extrapolava São Paulo,
Mário de Andrade aquilatava as distâncias que separavam as classes
dirigentes de ambas as cidades em suas relações com a arte. Opunha
a formação da "alta burguesia riquissima" do RIO, que não se achava
preparada para "encarnpar um movimento que lhe destruía o espírito
conservador e conformista", ao nível cultural da "aristocracia intelec-
tual paulista" 4. Esta, na sua empolgação pelo progresso civilizatório
que atingia o Estado, considerou coerente o risco de trabalhar a favor '\,
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da Semana de Arte Moderna. É verdade que foram somente alguns
poucos homens dessa classe - à frente dos quais o escritor e
homem de negócios Paulo Prado - a encorajar o evento. A ela coube
essa solidariedade aos artistas e escritores que procuravam reagir ao
"que era a inteligência nacional:". Quanto a estes, em parte perten-
ciam à mesma origem social ou então desfrutavam de inegável status
na comunidade - o que deixa patente as camadas de onde provinha
a primeira geração do Modernismo brasileiro. Mas deve-se ressaltar a
presença de imigrantes e descendentes no agrupamento de vanguar-
da, os quais certamente nela introduziam inquietudes sociais próprias
do seu meio, tese levantada por Flávio Motta nas suas reflexões sobre
um artista mais antigo, Eliseu Visconti (1866-1944)6. Da mesma for-
ma, é preciso lembrar os intelectuais estrangeiros, entre os quais
muitos de formação anarquista, atuantes em São Paulo e outras cida-
des, e cuja ideologia revolucionária não deixaria de ressoar no espíri-
to inconformista mais geral do Modernismo, embora a dissidência
deste viesse configurar-se em modelos exclusivamente estéticos. 507

8.2 As fontes européias e a busca de estimulantes nacionais

A histórica recorrência da cultura brasileira às fontes européias


ratificava-se uma vez mais nessa geração que aparecia disposta a con-
testar paralisantes correntes nos primeiros dois decênios do século XX.
Se permanecia o' contributo francês, tradicionalmente primordial, ou-
tras inserções salientes, como o Já referido Futurismo, de procedência
italiana, nas letras, ou o Expressionismo alemão, nas artes plásticas,
alteravam a quase unicidade do apelo anterior. Mas a busca dramá-
tica do paralelismo com a dinâmica do tempo internacional fazia-se
com a atenção simultânea nos valores internos do país, outrora objeto
de transfigurações românticas e acadêmicas. A difícil procura de osmo-
se entre universal e nacional estava, pois, no cerne da consciência
sincrônica dos intelectuais modernistas (a preocupação com o nacio-
nal era contudo menos generalizada entre os artistas plásticos).
Não obstante as restrições de que se tornou passível o Modernis-
mo brasileiro quanto à extensão e profundidade do corolário de
experiências absorvidas no estrangeiro, à ausência de homogeneidade
grupal e à margem de atraso na assimilação das vanguardas interna-
cionais, nele tomava corpo um teor de essencialidade que, nos casos
mais consistentes, voltaria as costas a todo o convencionalismo cul-
tural daqui é do Continente Antigo, este defrontado desde o final do
século XIX por um encadeamento de resolutas afirmações de indiví-
duos e comunidades intelectuais e artísticas.
Não cabe aqui senão breve aceno ao extraordinário clima de cria-
tividade que marcou algumas capitais européias - particularmente
Paris - num contexto de vida turvado em contradições sociais. Antes
de 1914, deixados para trás Impressionismo e Pós-Impressionismo,
mas influente ainda o Art-Nouveau, cumprira-se uma etapa que revolu-
cionava o entendimento aceito das linguagens plásticas que têm em
Picasso (1881-1973) um nome maior. As artes plásticas, como a
literatura e a música, refaziam-se estruturalmente. Através do Expres-
sionismo, do Cubisrno. do Futurismo, das correntes abstratas e
construtivas, da pintura metafísica - as primeiras três facções e a últi-
ma já com um ápice alcançado no limiar da guerra - haviam-se difun-
dido códigos visuais que projetavam um universo ajustado à complexa
dinâmica da realidade contemporânea. Tratava-se de ruptura com cri-
térios de representação herdados de longa data, ultrapassados pela
prospecção de conceitos de espaço/tempo, equivalentes às for-
mulações científicas pós-euclidianas. A dissidência dialética de Marcel
Duchamp (1887-1968), entretanto só ao alcance do futuro, com a sua
refutação da pintura retinal e a valoração primacial da idéia na arte,
datava também do período de pré-guerra. Na anárquica postura Dada
dos anos de conflito mundial e logo após, radicalizava-se uma proble-
mática nihilista na crítica feroz ao estab/ishment social e à arte
Nessa atmosfera de mudanças rápidas que alteravam no sentido
508 visceral o conceito das artes e das letras ocidentais, permeavam
influências do pensamento de Nietzsche, cujo individualismo enleia
Expressionismo e Futurismo; de Freud, menos impregnante, mas cuja
investigação do inconsciente repercute na literatura e artes visuais des-
de os anos 20 - a ambas essas influências acrescentando-se outras,
de particular significação, como foram as do materialismo histórico de
Marx e do intuicionismo de Bergson.
A divergência vigorosa dos repertórios artísticos tombados na
entropia retórica, únicos reconhecidos com o direito de cidadania no
acomodamento da alta sociedade européia, era fenômeno que se
difundia pelo mundo e que chegava até aqui pelo segundo decênio do
século, produzindo conseqüências similares de perplexidade e refu-
tação. Esse conflito entre novos e passados princípios estéticos não
poderia ser reduzido à simples reedição da querela histórica entre anti-
gos e modernos. A expressão artística procurava integrar-se a uma
totalidade de consciência diante do mundo em crise desde muito antes
da Primeira Guerra e sem mais condições de readaptação a velhos sis-
temas de idéias e de estruturas sociais e políticas.
Difundiam-se as recentes concepções no curso da chamada
Segunda Revolução Industrial, quando o aperfeiçoamento das comuni-
cações intervinha na formação de uma internacional idade cultural
intensificada, mas onde o nacionalismo das potências de outrora resis-
tia com razões de força. Era também a gênese da era dos super-Esta-
dos. No Brasil essa revolução histórica internacional fluiu na própria
medida de sua problemática de país dependente. Tomando alento na
inflamada ideologia futurista (mas logo excluindo o repúdio às tra-
dições que a caracterizava na Itália) e seu espírito agressivo e exaltante
da civilização transformada pela técnica, o Modernismo brasileiro nes-
sa fase foi antes de mais nada uma busca em bruto de libertação. Os
estímulos da modernidade vinham, igualmente, para escritores e artis-
tas, de recentes fenômenos culturais parisienses. No caso da pintura
um dos membros da vanguarda brasileira - Anita Malfatti - recebia
uma carga do Expressionismo alemão. Da conjugação desses valores
internacionais às idéias locais tomadas de efervescência, após o tempo
de descompasso com o ritmo da cultura ocidental, à qual o Brasil per-
tence, todavia sincretizada por outros importantes aportes culturais,
houve mais tarde, pelo avanço dos anos 20, resultados incontestes nas
letras, na música e também nas artes visuais.
No segundo decênio o Modernismo (sobretudo pelos seus repre-
sentantes da literatura, mais numerosos) mostrava ligação entre o
fenômeno da renovação e o problema da afirmação de um fundo
próprio de cultura. E contrariamente à idealização que sofria no passa-
do o enfoque da realidade brasileira, como se disse, com o Modernis-
mo dar-se-ia um salto à frente, principalmente graças à que seria sua
ala mais lúcida, liderada por Mário de Andrade e Oswald de Andrade,
na seqüência impondo-se sobretudo o trabalho mais solitário deste úl-
timo, estabelecendo em níveis críticos a visão do meio da vivência.
Apegando-se ao "exótico descoberto no próprio país pela sua
curiosidade liberta das injunções acadêmicas" 7, reapreciaram o con-
junto dos fatores componentes de um caráter específico de ambiente
que Ihes devia ser básico para o trabalho.
Desde o estudo do espaço físico até à observação do homem de
etnia complexa que o habita e transforma, enfatizada a contribuição
recente encarnada pelo irniqrante". tudo adquiriu para eles aura de 509
estímulo legítimo. Em alguns outros países latino-americanos, corno o
Uruguai e o México, desvelava-se essa preocupação, com a criação de
padrões estéticos ligados a fatores locais de vida e cultura. São
exemplos disso, na área de pintura, Torres Garcia (1874-1949) e Die-
go Rivera (1886-1957).
O interesse pela realidade nacional, entretanto, precedera os
modernistas e era já voz corrente no segundo decênio". quando se fun-
dara a Revista do Brasil. Declarava-se o ideário francamente antes e
durante o ímpeto da modernidade, em figuras de diversificada for-
mação. Duas delas, ligadas aos problemas visuais e estéticos, são
Gonzaga Duque e Vicente Licínio Cardoso. Ao menos desde 1888
havia no crítico simbolista essa preocupação. Ele se indaga: "Se a nos-
sa arte não tem uma estética nem no seu ensinamento existem tra-
dições, como admitir a existência de uma Escola Bresiteire?" 10. Diante
das exposições do final do Império e seus "assuntos bíblicos e as ale-
gorias", ele pergunta: "Este desnacionalismo ameaça continuar?" t t
Mais tarde, reafirmará a ausência de uma identidade nacional na arte
produzida no Brasil, justificando-a pela natureza nova do país, mas
acreditando que o evento esteja próximo'". Por sua vez, o filósofo posi-
tivista Vicente Licínio Cardoso, que aperfeiçoara o pensamento estético
no próprio período da ebulição do Modernismo, sem contagiar-se por
ele, apegar-se-ia à tese nacionalista e também americanista.!".
A problemática, evidentemente, vinha de longe, desperta pelo
Romantismo. Entre os escritores muito atentos à questão do nacio-
nalismo, cumpre mencionar Lima Barreto, prosador de particular acui-
dade crítica; Graça Aranha, o autor de Canaã, mais tarde, em 1921,
atraído pelas hostes modernistas; e o regionalista Monteiro Lobato,
autêntico militante na abordagem de questões relevantes do país,
impulsionador do movimento editorial brasileiro, espírito fascinado
pelo progresso, sem meias palavras no trato do 'subdesenvolvimento'.
O escritor de Urupês, todavia, pendeu para o lado contrário à causa
artística reformadora, fatalidade que um dos maiores entre os moder-
nistas, Oswald de Andrade, lamentaria profundamente depois".
,i
No âmbito da arquitetura, encontra-se outro aspecto significativo
desse comportamento, como demonstra a irrupção do neocolonial,
tentando inicialmente ganhar terreno na cosmopolita São Paulo pela
pregação de Ricardo Severo (1869-1940) e com melhores resultados
na obra de Victor Dubugras (1868-1933), mas que se tornaria real-
mente fértil na atmosfera conservadora do Rio. Muitos equívocos cer-
caram o movimento, defendido na capital federal p~lo espírito ortodoxo
e apaixonado de José Mariano Filho - em oposição ao magnetismo
exercido por diferentes estilos históricos europeus implantados no país
e pela presença menos difundida do Art-Nouveau - que serviu acen-
tuadamente à reivindicação de uma cultura de substratos locais.
No plano do pensamento transformador, teria cabido a Oswald de
Andrade, que a crítica supõe informado das recentes experiências da
literatura européia já em 1912, ao escrever os versos livres de "Último
passeio de um tuberculoso pela cidade, de bonde" - obra todavia
extraviada e que se desconhece - um empenho antecipador nesse
sentido!". Dele, a quem se deve a fundação, em 1911, do seminário O
Pirra/ho - órgão em que se transfundia com irreverência a nervosa
510 atmosfera paulistana da época, captada graficamente pela caricatura>
mordaz de Voltolino (1884-1926) 16 - e cujos conhecimentos do vers-
-librisme de Paul Fort e da doutrina futurista iriam minar, embora len-
tamente, os elos que o prendiam ao Parnasianismo - conscientização
crescente de liberação, como atesta a carta de Monteiro Lobato de
1916, mencionada por Mário da Silva Brito"? e a sua solidariedade a
artistas modernistas - é o citadíssimo artigo "Em prol de uma pintura
nacional", publicado em seu periódico no começo de 191518. No tex-
to, Oswald clamava contra os artistas pensionistas do Estado que viaja-
vam para a Europa e que regressavam dérecinés'". opondo a eles o
pintor Almeida Júnior (1850-99) como exemplo: "Creio que a questão
da possibilidade de uma pintura nacional foi, em São Paulo mesmo,
resolvida por Almeida J únior, que se pode bem adotar como precursor, en-
caminhador e rnodelof". Esta opinião sobre o pintor de Itu ele não mante-
ria a seguir ao criticá-I o pela sua "mera documentação nacionalista'?".
Se o aluno de Cabanel não se prestava a servir de modelo à
evolução da arte, aqui ou em outro lugar, havia nele sem dúvida, com
suas limitações, a veracidade do regionalismo, da sua visão caipirista.
Neste sentido, é ele precursor de um aspecto da pintura no Brasil
arraigada aos estímulos imediatos do meio. Oswald, que se equivocava
totalmente ao dizer que os estágios no exterior serviam apenas à
"aprendizagem técnica", tinha razão ao condenar os famosos "prêmios
de viagem", os quais desandavam quase sempre sob a pressão da cul-
tura plástica mais involutiva ensinada e divulgada em Paris.
Oswald se afigura assim como .urn dos introdutores do germe de
atualização internacional no país, pela via do verso livre e do Futurismo,
ao mesmo tempo em que se empenhava por uma arte afeita às suges-
tões locais, preludiando a própria instauração do nativismo de "Pau-
-Brasil", dez anos depois'". Ele que, no início de 1918, não hesitará
em defender a pintora expressionista Anita Malfatti, na exposição que
levantava "as mais irritadas opiniões e as mais contrastantes hostilida-
des"23, fará prosélitos, contribuindo para a formação da grei modernis-
ta que é em muito trabalho seu, resultado da sua argúcia de catalisa-
.dor de talentos, embora viesse a ser mérito da área não verbal a polari-
zação do movimento.
8.3 As primeiras exposições modernistas

É na órbita das artes visuais que a definição de Modernismo pôde


ganhar sua mais avançada consistência. Passavam-se as coisas
diferentemente no âmbito literário, onde, além de Oswald, outros
futuros participantes do movimento - Mário de Andrade, Guilherme de
Almeida e Ronald de Carvalho - retardavam-se em compromissos
estéreis com valores oitocentistas, os quais. já próximo da Semana,
Oswald e Mário procuravam superar. A poesia de Manuel Bandeira em
Carnaval antecipava elementos assimétricos em 1919. Em música,
depois do silêncio do fim do século XIX, estava-se, em 1914, chegan-
do tardiamente ao fluxo impressionista de Debussy, com Villa-Lobos (a
primeira das Danças africanas) 24. No entanto, a obra expressionista de
Anita Malfatti, posta em evidência quando de sua exposição de 1917-
-18, mostrou-se contribuição precursora e audaciosa que não apenas
separava a artista por um abismo da pintura acadêmica como também
a distanciava dos que logo mais seriam seus companheiros de rup- 511
tura25. Amadurecendo antes que os demais colegas do seu ou de
outros domínios poéticos, tateantes na busca de um sistema presentifi-
cado de linguagem, como se verá adiante, a pintora paulistana, filha de
imigrantes ítalo-norte-americanos, tornou-se presença de importância
capital na pequena constelação de episódios vanguardistas da década.
Embora fosse de 'futurismo', em interpretações equivocadas, de
que obsessivamente se falasse a respeito de qualquer obra que fugisse
à 'normalidade' representativa, couberam a artistas encaminhados ao
Expressionismo as primeiras exposições de arte moderna realizadas no
Brasil, a de Anita, citada acima, e duas outras anteriores: a de Lasar
Segall (1891-1957) em São Paulo e Campinas (1913) e a da própria
Anita em São Paulo (1914). Não restam dúvidas, entretanto, no que
concerne estritamente à evolução histórica do Modernismo no país, e
sem considerar a qualidade de ambos os artistas, que a mostra de
1917 -18, pela repercussão alcançada, aparece como acontecimento
de significado superior.
Há casualidade de encontro nessas manifestações quase contem-
porâneas (1913 e 1914) de Lasar Segall e Anita Malfatti, artistas que
praticamente cruzaram seus passos em Berlim e que começavam a se
marcar nos contatos com o pathos expressionista. Sabemos que tanto
a dupla exposição de Segall, como aquela de Anita, despertaram lirni-.
tado interesse. Das obras exibidas por Segall (pinturas e desenhos),
parte ao menos só por volta de 1922 seria notada pelos modernistas,
como confirmam as palavras de Mário de Andrade, ao falar no "des-
cobrirnento assombrado de que existiam em São Paulo muitos
quadros de Lasar Segall" 26. Entusiasmado pelo Expressionismo, o
escritor já conhecia o pintor através de publicações européias.
Muitíssimas referências foram dedicadas a esses primórdios cro-
nológicos que alimentaram controvérsia já superada. A questão girava
em torno do mérito da introdução da arte moderna no Brasil. Indiscuti-
velmente, a mostra do pintor de Vilna antecipara-se de muito àquela
fundamental, de Anita, em 1917-18 e também viera antes da primeira
individual da artista brasileira em 1914. Segall expusera -=- segundo o
próprio depoimento - "algumas experiências típicas de arte expressio-
nista, ao lado de obras de um modernismo mais moderado" 27. Deci-
dira-se, no entanto, por uma seleção centrada neste último aspecto, de
fase anterior, onde predominava o acento impressionista. As de caráter
expressionista já anunciavam a linguagem futura e o seu inerente cará-
ter humanista. Mas o ambiente não estava à altura da mensagem e
em pouco ou nada reagiu. A receptividade crítica de alguns jornais
quase não ultrapassou o nível dos lugares-comuns amenos, não raro
dispensados aos forasteiros. Segall foi passivamente absorvido e até
elogiado pela "técnica moderna e às vezes ousada" 28. Todavia, houve
a exceção do cronista Abílio Álvaro Miller que, em Campinas. colhia
em cheio, instintivamente, a essencial idade da instauração segaliana,
512 referindo-se ao autor como "um dos mais empolgantes pintores de
almas que tenho conhecido" 29. Há ainda o detalhe da aquisição de
várias peças expostas (sem que isto certamente tivesse o mínimo a ver
com qualquer tipo de apoio à nova arte). Segall também, ao partir, dei-
xaria trabalhos com parentes aqui residentes. Essas obras sem dúvida
foram vistas durante anos junto aos seus colecionadores. Mas não há
indícios de que provocassem fermentação no meio prosaico. O episó-
dio se encerraria com o retorno do artista à Alemanha nesse mesmo
ano de 19133 °.
A exemplo da exposição de Segall, a de Anita, em 1914, entre
seu regresso da Europa e a viagem aos Estados Unidos (1915). não
alcançou maior ressonância, embora as novidades que traziam a sua
pintura, desenho e gravura. Os jornais Correio Pau/istano e O Estado
de s. Paulo registraram a mostra com simpatia. Neste último órgão, o
crítico Nestor Pestana, de tendência conservadora, enalteceu nas obras
"uma espontaneidade, um vigor de expressão e uma largueza de exe-
cução", vendo com fé o seu futuro!". A pintora - que em 1912 visitara
a IV Sonderbund, em Colônia ("para mim foi uma revelação e minha
primeira descoberta") 32 e que, em Berlim, estudara com Lovis Corinth
(1858-1925), no início da fase em que este se aproximava do Expres-
sionismo, e com dois outros pintores, aproveitando ainda a estada para
muitos outros conhecimentos - voltava com apreciável cultura visual,
informada dos grandes artistas do fim do século XIX e início do século
XX. Vinha já inteirada do Expressionismo. Em que pese, entretanto, a
crispação das tonalidades, os acentos por vezes duros do contorno e a
textura agitada de algumas pinturas exibidas na ocasião, ela ainda não
estava de posse da liberdade formal, da pulsação da cor, do tratamen-
to espacial sintético e da agudez interior que lhe traria a permanência
nos Estados Unidos'".
8.4 AnitaMalfatti, a precursora

Toda outra é a história da "exposição insurrecional" 34 de 1917-


-18, que demonstraria a convicção expressionista de Anita Malfatti. Se
a residência na Alemanha (1910-14) fora o instante da incubação nes-
sa visão do mundo, através da cor, os quase dois anos passados nos
Estados Unidos (desde fins de 1914) e, em especial, os contatos com
as idéias de Homer Boss (1882-1956), na Independent School of Art,
de Nova York - ambiente que incentivava a interdisciplinaridade poéti-
ca e que lhe deu acesso pessoal a vários artistas de primeira ordem,
traçaram o perfil durável da pintora, destinada a ser a força inaugural
do Modernismo no Brasif'".
Às descobertas precedentes que haviam formado a sua sensibili-
dade - o Impressionismo e o Expressionismo, o conhecimento de Van
Gogh (1853-90), Gauguin (1848-1903), Munch (1863-1944~, Hodler
(1853-1918), Nolde (1867-1956) e outros pintores, na visita à IV Son-
derbund - associou-se a experiência existencial com Boss, mestre que 513
obrigava o aluno a um processo catártico antes de considerá-Ia apto
ao trabalho artístico". Essa aproximação foi determinante para a per-
, sonalidade tímida de Anita, fazendo-a extravasar disponibilidades emo-
cionais em desenhos e telas de enérgica instauração. Sua conscienti-
zação da dramática We/tanschauung contida na assistemática corrente
do Expressionismo - centrada na prospecção confessional da imagem,
que havia germinado sem pausa em seu espírito, concretizava-se des-
de 1915 em múltiplas obras de unitária organização, onde se incor-
poram também outras influências do internacionalizado meio novaior-
quino.
Exemplos maiores da produção que assinala o clímax de toda a
trajetória da artista, em 1915-16, pertencentes a museus e coleções
de São Paulo, são as paisagens "Rochedos", "O Farol", "A Ventania";
as figuras "A Estudanta Russa", "O Homem Amarelo" (segunda ver-
são), "A Boba", "A Mulher de Cabelos Verdes" e "O Japonês" (todas
pinturas a óleo), além de "O Homem Amarelo", primeira versão e "O
Homem das Sete Cores" (ambos pastéis), "Torso". realçado a carvão e
pastel e vários desenhos a carvão, entre eles "O Homem de Muita
Força" e "Nu Masculino Sentado" 37.

Superando convenções de forma, cor e percepção do espaço, ain-


da visíveis em obras de 1914 e dominando os códigos técnicos, a sua
linguagem verticalizara-se em todos os sentidos. Alta temperatura de
cor e tensão gráfica equilibravam-se agora na concisão da imagem
subjetiva, onde o anímico enraizéimento expressionista recorria a
esquemas de construção cubo-futurista.
A influência expressionista em Anita era de ordem generalizada,
havendo outras incidências, sobretudo da Escola de Paris. Não consta
na pintora, entretanto, a exacerbação conteudista de um Kirchner
(1880-1938) ou Nolde, por exemplo. A introspecção psicológica pre-
valeceu nas figuras ("O Homem Amarelo", primeira e segunda versões
e "O Japonês", do IEB-USP, "A Boba", do MAC-USP, "A Mulher de
Cabelos Verdes", da coleção Ernesto Wolf etc.). Na paisagem, uma
extroversão formal explosiva - determinada pelo tema e a influência
de Van Gogh - surgiu em "A Ventania", porém é quase exceção. No
desenho ela ousou mais nas deformações, como em alguns carvões
(e.q. no "Nu Masculino Marchando"). de 1915-16. A representação
sarcástica, recordando a caricaturalidade de George Grosz (1893-
-1959), apareceu isoladamente, como em "Café Americano" (C. 1915-
-1 6) 38.
Anita concentrou-se em temário reduzido no seu expressionismo
- quase sempre figuras de retratados de feições vagas e abstratizadas
e vistas paisagísticas. Lúcida e decidida, a pintora brasileira participou
desse universal contexto plástico de idéias e símbolos "sem preocu-
pação de glória, nem de fortuna, nem de oportunidades proveito-
sas" 39, transmitindo uma inquietação pessoal que tocava em proble-
mas essenciais do seu tempo.

514

685 686
685 Anita Malfatti - "A Boba", 1917,
óleo s/tela. 61 x 50,6, cal. MAC-USP.
686 Anita Malfatti - "Nu Masculino
Sentado", 1915-16, carvão, 59 x 41,6, cal.
IEB-USP.
687 Anita Malfatti - "O Farol", 1915,
óleo s/tela. 46 x 61, cal. Gilberto
Chateaubriand, Rio de Janeiro.

515

687
516

688 Anita Malfatti - "O Homem


Amarelo", 191 5-16, 61eo s/tela. 61 x 51, cal.
IEB-USP.
Na permanência em Nova York, tivera a importantíssima oportuni-
dade de avizinhar-se de artistas e escritores europeus ali radicados ou
refugiados, como Marcel Duchamp, Juan Gris (1887-1927), Máximo
Gorki, Jean Crotti (1878-1958) , o empresário dos balés russos Serge
de Diaghilev (1872-1929) e o cenógrafo Leon Bakst (1866-1924). Em
depoimento de 1939, ela se referiu particularmente ao "bonito Marcel
Deschamps (sic). que pintava sobre enormes placas de vidro" e que
"fez uma dissertação engraçadíssima sobre a maneira de fazer a barba
num dia de tristeza" 40. 1915 é o ano do início da execução do "Gran-
de Vidro" e certamente Anita foi o nosso primeiro artista a ter conheci-
mento dessa obra antológica do século XX, assim como de uma sua
performance. Mas o que é imprescindível de ressaltar é a sua vivência
na cidade sacudida pelo Armory Show (1913) - e fortalecida pela pre-
sença de algumas figuras fundamentais da arte revolucionária.
A Independent School of Art promovia exemplares contatos pes-
soais com esses e outros artistas. Isadora Duncan também aparece
nas citações de Anita a propósito das aulas de desenho ao, vivo junto
aos seus dançarinos no Century Theatre?". No que diz respeito à
evolução do seu expressionismo, especificamente no arcabouço 517
construtivo das figuras, parece-nos não descartável a idéia de que ela
tenha tirado proveito formal das próprias imagens do "dinamismo está-
tico" de Duchamp, cujo "Nu Descendant l'Escalier" (1912) era a mais
célebre pintura moderna existente nos Estados Unidos. Outras inferên-
cias extraídas dos artistas desse círculo sem dúvida se tornaram sensí-
veis em sua obra. "Eles só falavam no cubisrno'" e nós de macaquice
começamos a fazer as primeiras experiências" - afirma Anita43. Ao
concluir a estada nos Estados Unidos, a pintora estava inegavelmente
de posse de grande segurança de recursos plásticos e de um ideário
que parecia inabalável.
Os fatos que a envolveram ao regressar ao Brasil ("viagem no
tempo e no espaço", como diz sua biógrafa Marta Rossetti Batista),
são por demais conhecidos. "Quando viram minhas telas, todos
acharam-nas feias, dantescas ( .. J Guardei as telas" 44. Entrementes,
Anita participara de concurso promovido por Monteiro Lobato sobre a
representação do "Saci". A versão da pintora, entretanto, despertou o
espírito de chacota do próprio organizador do certame. "A sra. Malfatti
também deu sua contribuição em isrno" - dizia ele45. Foi nesse perío-
do que o então jornalista e caricaturista Emiliano Di Cavalcanti (1897-
-1976), visitando Anita, animou-a a expor, o que se deu depois de mui-
ta hesitação da artista, entre dezembro de 1917 e janeiro de 1918,
num salão da rua Líbero Badaró. Anita selecionou mais de 50 obras
em técnicas diversas (inclusive a gravura) e inseriu peças já produzidas
em São Paulo, com enfoque temático nacional (e.g. "Tropical") 46.
Uma curiosidade foi que acrescentou um desenho cubista de AS.
Baylinson (1882-1950). secretário da Independent School of Art. que
poderia servir de reforço à sua posição renovadora.
A exposição constituiu-se em impacto para a crítica e a opinião
pública e ajudou a fazer conhecer melhor o estado do estreitamento
cultural de São Paulo. Na interpretação dos críticos, como na reação
do público, em tudo transparecia essa situação descompassada do
dinâmico ritmo criador inaugurado pelos europeus desde a bette épo-
que. A exposição foi um choque exatamente porque nas soluções das
obras realizadas nos Estados Unidos não havia resquícios passadistas.
Houve dois aspectos relevantes e opostos entre si na mostra: um alta-
mente positivo, o de provocar a idéia da arregimentação de forças dis-
persas que se encaminhavam para uma nova cultura. Nesse sentido,
Anita foi o "estopim do modernismo", conforme a expressão de Mário
da Silva Brit047. O outro aspecto é inteiramente oposto, podendo-se
dizer que, às custas dessa contribuição, a artista tornou-se alvo de
comentários violentos e insultuosos, e que interferiam desastradamen-
te em seus princípios estéticos e na sua qualidade artística. É verdade
que, antes da exposição, já havia censuras à sua pintura e que ela em
nada reagira às circunstâncias adversas, mostrando-se temerosa de
exibir trabalhos. Em última análise, a responsabilidade do retrocesso
que se anunciava e que se agravou com os ataques à mostra, coube à
sua própria dificuldade de enfrentar não só o poderoso misoneísmo
artístico do ambiente como certamente também outras formas de pre-
conceito da época, a exemplo das restrições à liberdade feminina.
A parcela de responsabilidade da crítica é enorme, porém. A prin-
cipal investida à exposição veio do conceituadíssimo escritor Monteiro
Lobato, cujo artigo "A propósito da Exposição de Anita Malfatti" era
518 acolhido na edição vespertina de O Estado de S. Pau/o48 e depois ain-
da reproduzido no livro Idéias de Jeca Tatu, sob o título de "Paranóia
ou mistificação". No texto, Lobato, defensor da arte acadêmica e ele
mesmo pintor pompier, embora paradoxalmente não se isentasse de
reconhecer o "talento vigoroso, fora do comum" de Anita e de perce-
ber o quanto a "autora é independente, como é original, como é inven-
tiva", não a viu, finalmente, senão como alguém que "penetrou nos
domínios dum impressionismo (sic) discutibilíssimo e (que) põe todo o
seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura". O seu raciocí-
nio falhava na suposição de que a estrutura sintática das obras que
condenava não era inseparável da estrutura de sua significação. O
improvisado crítico - e isto não era exceção no Brasil - situava
temerariamente a artista como pertencente à 'espécie' dos que "vêem
anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras,
sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes ( .. .)" "São produtos do
cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência ( .. .)". E
mais ainda: "Embora eles se dêem como novos, precursores duma
arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica:
nasceu com a paranóia e com a mistificação". Ao comentário não fal-
taram as costumeiras referências caluniosas ao "Futurismo, Cubisrno.
Impressionismo e "tutti quanti" 49.

Nos entreveros suscitados pela exposição, um único dos logo


mais líderes modernistas saiu em defesa da artista. Foi Oswald de
Andrade: "Anita está a serviço de seu século" - ele afirma. "As suas
telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no
espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negativa
de cópia, a ojeriza da oleoqrafia". E adiante: "Onde está a realidade,
perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão que ela expõe?
A realidade existe mesmo nos fantásticos arrojos criadores e é isso jus-
tamente que os salva" 50.
Além de Oswald e Di Cavalcanti, que convencera a pintora a
mostrar-se, outros do futuro clã foram envolvidos pela mensagem,
como Mário de Andrade, Menotti dei Picchia e Guilherme de Almei-
da"'. O papel estimulador exercido por Anita Malfatti nos modernistas
em potencial é testemunhado por Mário de Andrade, que afirma em
1944: "Ninguém pode imaginar a curiosidade, o ódio, o entusiasmo
que Anita Malfatti despertou. Não posso falar de meus companheiros
de então mas eu pessoalmente devo a revelação do novo e a con-
vicção da revolta a ela e à força dos seus quadros ( .. .). E nós cerra-
mos fileiras em torno da artista. Se alguns poucos escritores ponderá-
veis, Menotti dei Picchia, o sr. Oswald de Andrade que iam se tornar
os propulsores eficazes do movimento modernista já nos conhecíamos
então, eles podem testemunhar se o primeiro espírito de luta, a pri-
meira consciência coletiva, a primeira necessidade de arregimentação
foi despertada ou não pelo que se passava na cidade, com a exposição
de Anita Malfatti. Foi ela, foram os seus quadros que nos deram uma
primeira consciência de revolta e de coletividade em luta pelá moderni-
zação das artes brasileiras. Pelo menos a mim" 52.
Mas a geração de poetas que integraria a facção modernista não 519
escapava, ainda em 1917, à coação do meio, à sua exigência de mol-
des parnasianos Entre os lançamentos daquele ano, figuravam livros
como Juca Mulato, de Menotti (a cujos méritos de jornalista o movi-
mento modernista deverá muito de sua propagação), Nós, de Guilher-
me de Almeida e Há uma gota de sangue em cada poema, de Mário
de Andrade (então Mário Sobral). o primeiro e o último aderentes à
convicta linha literária nacionalista, intensíssima naquele ano assinala-
do pelo engajamento do Brasil na Guerra e quando eclodia também o
nacionalismo econômico e ao mesmo tempo se fazia sentir, mais pro-
fundamente, com a greve geral dos operários em São Paulo, a influên-
cia do socialismo no país. Por essa época, Oswald de Andrade já ela-
borava as Memórias sentimentais de João Miramar, destinada a ser
das obras magnas da moderna literatura brasileira. Isto tudo era con-
temporâneo ao surgimento, no Rio de Janeiro, do livro Cinza das
horas, de outro futuro modernista, Manuel Bandeira'".
A polêmica exposição abrira uma perspectiva e seria motivadora
do primeiro elo do movimento moderno. Paradoxalmente, entretanto,
esta conseqüência, na percepção dos estimulados, foi descompensada
pela reação contrária provocada na causadora da mudança. Os teste-
munhos são muitos: Anita, na indecisão contraída no seu país, psicolo-
gicamente menos preparada do que se poderia supor, não assimilou a
diatribe e a repercussão que ela tivera nos espíritos recalcados. As
razões externas que antes já interferiam no seu mundo interior a con-
duziriam a uma crise da qual não' mais escapou.
8.5 A contribuição de Di Cavalcanti,
Vicente do Rego Monteiro e Victor Brecheret
Se o novo aporte entre os artistas plásticos era dos mais consis-
tentes em Anita Malfatti, nas outras figuras que se projetavam
naqueles anos já próximos da Semana de Arte Moderna - essencial-
mente Victor Brecheret. Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) e Di
Cavalcanti - a linguagem carecia da afirmação autêntica adquirida
posteriormente. Era incontestável, porém, sua evolução em novas vias
de percepção, em torno de 1920-21. Este amadurecimento anterior
dos artistas e o entusiasmo que provocava nos escritores e poetas
mais abertos autorizam a acreditar na tese do empuxo exercido pelas
689 artes no modernismo das letras".
Dos três artistas, Di Cavalcanti aparecia como o menos afirmado.
Nascido no Rio, iniciara-se na arte através da caricatura, em 1914, na
revista Fon-Fon, praticando-a intensamente nos anos seguin'tes ao lado
de uma atividade de ilustrador. Paralelamente, exercia o jornalismo.
520 Em 1917 fez sua primeira exposição em São Paulo. Nesse mesmo ano
começou na pintura junto a Elpons. Assinalava-o, sobretudo, uma incli-
nação tardia pelo Simbolismo e o acento ert-nouveeu, visível em
desenhos influenciados por Beardsley (1872-98) e telas de um 'pe-
nurnbrisrno' exteriormente próximo a Euqene Carriere (1849-1906) (o
paralelo com o simbolista francês é de Ronald de Carvalho). Em 1921
ele realizou no Rio a série de desenhos "Fantoches da Meia-Noite",
enfocando o mundo boêmio da Lapa com a verve da caricatura. Mas

689 Di Cavalcanti - "Fantoches da


Meia-Noite", fev. 1922, Monteiro Lobato e
Cia. Editores, São Paulo.
690 Di Cavalcanti - "O Beijo", 1923,
têmpera s/tela, 90.4 x 62,3, col. MAC-USP.
691 Capa do catálogo da exposição da
Semana de Arte Moderna, desenhada por DI
Cavalcanti.

690 691
antes de 1923 - data da primeira viagem à Europa - a linguagem do
artista já evoluíra. Sua empolgação pela modernidade levara-o a resul-
tados como "O Beijo", tela a óleo do MAC-USP, onde as figuras são
decididamente hipertrofiadas e o espaço cobre-se de formas dúcteis e
cores em liberdade. Das telas conhecidas da época é a mais avançada
(ao lado do desenho para a capa do catálogo da Semana de Arte Moder-
na) e exemplifica o que ele mesmo diz: "Meu modernismo coloria-se
do anarquismo cultural brasileiro e, se ainda claudicava, possuía o
dom de nascer com os erros, a inexperiência e o lirismo brasileiros" 55.

Paralelamente, a participação de Di Cavalcanti fazia-se também


notar pelas qualidades do animador. Viu-se que fora ele a incitar Anita
a fazer a exposição de 1917-18, como será ele um dos 'descobridores'
de Brecheret. Em 1921, trará incentivo importante a Osvaldo Goeldi
(1895-1961) no Rio. Caber-lhe-ia uma posição central no repto ao
"carrancisrno provinciano paulista" (e brasileiro): partiu dele, ao que
tudo indica, a iniciativa do evento de 1922, o ápice de sua tarefa na
movimentação do contexto divergente.
A presença de Vicente do Rego Monteiro no grupo de ponta reu-
nia alternativas pessoais de pesquisa ainda de base formativa antes de 521
1922. Como em Brecheret e Di Cavalcanti, a angulação exata de sua
problemática visual foi evento posterior. Nos anos de que aqui se trata,
este artista, originário de Pernambuco, integrou-se ao Modernismo tra-
zendo a ebulição de uma experiência precoce e movediça, em que
intervinham apropriações de culturas antepassadas ao lado de influên-
cias da contemporaneidade parisiense e um apego à realidade telúrica
do seu país. Ativo no Rio e Recife, após anos de aprendizado em Paris
(1911-14), Rego Monteiro exporia em São Paulo (maio de 1920) um
conjunto de 43 aquarelas e desenhos, entre os quais muitos de temáti-
ca indígena. Esta mostra, que deveria conter ao menos parte das obras
Já apresentadas no Recife, em 1919, teve lugar na Livraria de Jacinto
Silva, sede de outros eventos artísticos e intelectuais situados nas ori-
gens da Semana da Arte Moderna. Em 1921 ele deu prosseguimento

692 Vicente do Rego Monterro -


"Nascimento de Maru". 1921, aquarela e
nanquim a cores, 28,2 x 38,2, cal.
MAC-USP.

à série de figurações de ídolos e episódios míticos florestais (ct. "O


Nascimento de Mani"). de apuro formal sintético e estilizada linha de
contorno, por onde transparece o seu preparo escultórico. Absorções
da arte egípcia e hindu, da gravura japonesa dos séculos XVIII-XIX,
eram por ele interacionadas ao estudo da arte marajoara As peças
que exibiu em São Paulo captaram simpatia pela narrativa aborígene,
mas algumas liberdades formais no arranjo da composição bastaram
para que a crônica, por vezes, o estigmatizasse como 'futurista',
o Jornal do Comércio (edição de São Paulo) comentava os
exemplares como sendo "todos extraídos das nossas ingênuas lendas
indígenas, trabalhadas com uma tendência mais do que pronunciada
para o descabido futurismo - eterno foco de coisas ridículas" 56, nota
que contrastava com a opinião de Nestor Pestana, em O Esteao de S.
Paulo, para quem o artista não caíra "nos exageros do futurismo ou do
cubisrno". ressaltando a "forma individual, que revela apreciável inde-
pendência de espírito e qualidade de inventiva" dos desenhos e
aquarelas'".
Monteiro Lobato também o viu com bons olhos, encontrando nos
quadros de temas lendários "sempre um alto senso decorativo" 58.

Fora diferente o pensamento do Fanfulla, que criticara a "incompatibili-


dade existente entre os temas mitológicos brasileiros e o estilo futurís-
tico das figuras" 59. Nada havia, em verdade, de 'futurista', nessa série,
posteriormente ampliada para a nova exposição de 70 exemplares,
desta vez no Rio, em 1921, no Teatro Trianon, com outras figuras e
ambientes amazônicos imaginários, ocasião em que Ronald de Car-
valho dedicou-lhe uma apreciação motivada essencialmente pelo senti-
522 mento nacionalista, sugerindo o aproveitamento do tropicalismo de
Monteiro em bailados: "Na sua exposição, o que mais interessa, é a
contribuição do pintor para os efeitos de uma grande arte cênica, de
caráter profundamente nacional. A série de bailados que sugeriram as
fábulas selvagens, como a do Corupira e o Caçador, a de Pahy e
Tumaré e a das Ikamiabas, mereceria ser aproveitada por um dos nos-
sos musicistas, como Villa-Lobos. Com aqueles cenários e a curiosíssi-
ma indumentária que desenhou Rego Monteiro, poderíamos ter alguns
bailados admiráveis" 60.
Os desejos do escritor não se realizariam. Eles eram, aliás, os do
próprio artista adolescente, cujo interesse tropicalista, ao que ele afir-
mou, se manifestara logo na volta de sua primeira viagem à Europa.
Em 1918, Monteiro cogitara de organizar um bailado de lendas indíge-
nas, ao assistir a espetáculo de Anna Pavlova no Recife. Mas tudo
ficara nas intenções, enquanto Anita foi induzida pela vaga nacionalista
a valer-se de temas nativistas na exposição de 1917-18. Não havia
nela a convicção que assinala a obra de fundo indianista de Vicente, a
partir de 1919. Muito mais tarde, o pintor pernambucano reivindicaria
a condição de "um precursor do indianisrno". razão de sua recusa em
aderir ao movimento antropofágico de Oswald de Andrade'".
Antes de começar a se impor como pintor, já em anos vizinhos da
Semana da Arte Moderna, Vicente do Rego Monteiro se havia con-
centrado momentaneamente na escultura. Estudando pintura, desenho
e escultura na Académie Julian, em Paris, ele (aos 14 anos) tivera
obras aceitas no Salon des Indépendants, em 1913. Adveio-Ihe dessa
época o cognome de Le Petit Rodin62. No Brasil, entre 1914 e 1919, o
trabalho escultural (ele também lecionou essa arte no Recife) traria
conseqüências definitivas para a sua pintura, onde a cor é subalterna
ao desenho, traçado com denso teor de estabilidade. Viajando pela
segunda vez à Europa, em 1921, Monteiro confiou a Ronald de Car-
valho algumas pinturas recentes, que seriam expostas na Semana. O
conjunto era bastante heterogêneo. Entre outras peças, havia quadros
de influência impressionista, como "Cabeças de Negras", uma
aquarela de acentos art-nouveau, seuratianos e matissianos ("Baile no
Assírio"). desenhos com estilizados motivos indígenas e retratos em
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que idealiza os personagens, como no de Ronald de Carvalho, colocan-


do-os por vezes à frente da paisagem nordestina. Tudo isto além de
telas de caracterização cubista que marcavam "a evolução do pintor
em direção à pintura intelectual" 63. Evidenciava-se a decisão do artista
na escolha do procedimento pictórico: ele estava perto dos propósitos
expressivos que o salientaram na década de 1920.
Afora Anita Malfatti, entretanto, nenhum outro artista da primeira
leva modernista atraiu tanta atenção quanto Victor Brecheret. Nascido
em Viterbo (Itália) em 1894 e emigrado para o Brasil em 190464 fizera
aprendizado no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo viajando para
Roma em 1913, onde estudou escultura com Arturo Dazzi (1882-
-1971). No retorno ao Brasil, em 1919, permaneceu meses entregue a
um trabalho solitário. Em janeiro de 1920, esse isolamento foi quebra-
do pela visita de Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e o pintor e carica-
turista Hélios Seelinger (1878-1965) ao atelier que improvisara numa
sala do Palácio das Indústrias. Logo em seguida, em artigos encomiás-
ticos, o próprio Monteiro Lobato (desencontrando-se com o que afir-
mara sobre Anita) e Menotti dei Picchia deram início à divulgação de
sua obra. Era o começo da trajetória amadurecida depois de 1921, na 523
segunda viagem à Europa. A escolha de Roma não havia sido acerta-
da. Apenas no plano da materialidade e da técnica da escultura o tradi-
cional Dazzi lhe poderia ter sido útil. Brecheret. todavia, familiarizara-se
desde muito cedo com o modelado desenvolto de Rodin (1840-1917).
Houve, nessa estada européia, o contato admirativo com a obra do
i ugoslavo Ivan Mestrovic (1883-1962). escultor eclético. influenciado
por Rodin e Bourdelle (1861-1929). E a incidência de aspectos da
escultura de épocas anteriores.
Por entre todas essas assimilações, Brecheret já manifestava,
porém, em torno de 1920-21, refinamentos formais singulares confir-
693 mados na evolução do seu estilo. Entre as peças executadas na Itália,
"Eva". gesso de 1919 (transposta em mármore no ano seguinte), ape-
ga-se a uma concepção naturalista que remonta no mínimo a "Desper-
694
tar", de 1916. Em seus acentos musculares e na energia fisionômica
são visíveis inflexões faciais e torsões da linha serpentinada de Miguel
Ângelo (e.g. "O Gênio da Vitória", do Palazzo Vecchio de Florença).
Nos exemplares paulistas de 1920-21, como os bronzes "Sóror
Dolorosa", "Cabeça de Cristo" e "Vitória", a composição é art-nouveau
enquanto a matéria sensibiliza-se em nuanças impressionistas deriva-
das de Rodin. A "Cabeça de Cristo", estruturada simetricamente com
dureza arcaizante (a exemplo das demais peças da série), é de grande
tensão interior. Nessas obras já estão prenunciadas as constantes 'ma-
neiristas' do escultor, enquanto em "Daisv". busto em mármore de c.
1921, reaparece o movimento dramático de "Eva". com registros ana-
tômicos muito acusados, que ele eliminará no essencial da atividade
posterior. A sofisticação linear de Brecheret aparenta-se ao grafismo
da figuração escultórica do arquiteto Antonio Moya (1891-1949), de
origem espanhola, radicado em São Paulo e participante da Semana
de Arte Moderna, que conjugava esse elemento aos seus projetos de
693 Victor Brecheret - "Cabeça de edifícios fantásticos e túmulos.
Cristo", 1920, bronze, 33,5 x 13,5 x 23,5, cal.
IEB-USP.
694 Victor Brecheret - "Eva" (Roma).
1920, mármore, 85 x 62 x 119, cal.
Prefeitura do Município do Estado de São
Paulo.
524 695 Antonio Garcia Moya - "Túrnulc". Mesmo se embrionária, a obra de Brecheret era fato inédito e
s/data. nanquim, 22,5 x 25,5, col. Regina
Helena Ferreira da Silva, São Paulo. drástico confrontado à escultura produzida no Brasil, submetida aos
696 Antonio Garcia Moya - "Cabeça de padrões que haviam caracterizado essa arte no século XIX. O Neoclas-
índio", 1920, lápis preto, 40 x 26, col.
Regina Helena Ferreira da Silva, São Paulo. si cismo, introduzido pela Missão Artística Francesa, impusera-se no
pais. deixando atrás o Barroco, cedendo mais tarde a conceitos menos
idealísticos e academizando-se, como trata outro capítulo deste livro.
No círculo de escultores formados no Rio e que usufruíam dos prêmios
de viagem à Europa, havia, ainda neste século, um respeito a essas
tradições, ignorando-se ou desprezando-se as iniciativas profundas de
renovação.
Esta fidelidade da escultura a princípios de figuração retesada -
que atingia em alguns casos menos ostensivamente a pintura - é tes-
temunhada por Rodolfo Bernardelli (1852-1931). Coube a ele, a José
Otávio Corrêa Lima (1878-1974) e a outros escultores mais jovens, a
ereção, segundo o gosto oficial corrente, de numerosos monumentos
públicos no Rio de Janeiro.
Em São Paulo (como em Belém, Recife e outros centros), a
situação não era diferente em relação a preferências esculturais.
Operavam, entretanto, na capital paulista, vários escultores imigrantes
ou de passagem, de linha tradicional, quase sempre italianos, como
Ettore Ximenez (1855-1926), Luigi Brizzolara (1868-1939), Amadeu
Zani, Julio Starace (1887-1952), Niccola Rollo (1889-1926) e o sueco
William Zadig. Nas pegadas conservadoras de seus mestres, seguiram
descendentes de imigrantes como Vicente Larocca (1892-1964), João
Batista Ferri (1896-1977), Humberto Cozzo (1900-81) e outros. Das
obras públicas de que foram incumbidos (Cozzo em outros Estados),
nos primeiros decênios, quando a cidade, no súbito crescimento, pas-
sou a exigir a presença de marcos prestigiosos para simbolizar seu
novo stetus. algumas tiveram porte dos mais avantajados, como o
monumento do Pátio do Colégio (Zani) e o complexo em homenagem
a Carlos Gomes, no Anhangabaú (Brizzolara). O monumento do lpir an-
ga tornou-se alvo de todas as atenções com a aproximação da data do
centenário da Independência. O concurso instituído teve como vence-
dor Ettore Ximenez, um entre os muitíssimos escultores de espírito
conservador ativos na Itália e que atendeu, na concepção épica do
conjunto, às expectativas oficiais reinantes.
É em tal contexto que surgiu Brecheret com o ágil modelado de
formas introspectivas. distanciado da radicalidade de cubistas, futuris-
tas e construtivistas, reestruturadores da concepção plástica bi e tridi-
mensional, mas que procurava renovar alguns elementos do antigo
repertório expressivo da escultura. Nas obras feitas em São Paulo,
Brecheret demonstrava muita segurança e exigência no que tinha a
dizer. Para o nosso ambiente eram importantes as deformações de
suas imagens diante das obstinadas leis miméticas literalmente adota-
das na escultura. Ao conhecer o artista, os intelectuais, na iminência
de constituir o grupo modernista, referiam-se a ele com incontido entu-
siasmo. Em artigo do quinzenário Papel e Tinte - órgão que trouxe
apoio às novas tendências da arte - Ivan (Oswald de Andrade?) traçou
paralelos entre o artista brasileiro e Carl Milles, Mestrovic e outros
europeus para salientar que "Brecheret faz a sua escultura endireitar
para o futuro apoiando-se proficuamente nos preceitos ancestrais" 65.

Brecheret servia de arma contundente de ataque contra o espírito


tradicionalista prevalecente nas artes: Menotti dei Picchia declara que 525
sua obra "não despertara a curiosidade de ninguém, ou melhor, fora
hostilizada pelos Pachecos da estatuária, embevecidos em aplaudir os
Zadigs, os Staraces, os Ximenez e outros de igual força e sabe-
doria ... ", E com uma dose de chauvinismo ataca os estrangeiros (em
outras atividades para ele benquistos), chamados para as tarefas escul-
tóricas da cidads'".
Sem dúvida, Brecheret detonara muita polêmica, não lhe sendo
poupadas críticas dos acadêmicos; mas, ao mesmo tempo e ao
contrário do que ocorrera com Anita Malfatti, sua atividade plástica de
compromisso atraíra depoimentos de apoio da ala contrária à moderni-
dade. Do próprio Monteiro Lobato vieram estas palavras: "Brecheret
apresenta-se-nos como a mais séria manifestação do gênio escultural
surgido entre nós" 67.
O êxito provocou desdobramentos: ele seria encarregado do pro-
jeto do "Monumento às Bandeiras", em meados de 1920, seguindo
uma conceituação de símbolos e aleqorias'". A idéia do complexo
escultórico/arquitetõnico surgiu no clima eufórico das festividades do
Centenário, aplicando-se o escultor numa seqüência de desenhos e na
elaboração de uma maqueta composta essencialmente de uma massa
de ciclópicas figuras em movimento sobre alto podium, que sugerem a
'entrada' no sertão, e de outras dispostas lateralmente. O estatuário
"seguia a linha mestroviciana de expressividade violenta, além de se
subjugar às alegorias" 69. Havia sem dúvida concessões naturalísticas.
O projeto não pôde ser levado adiante e só em 1936, após remaneja-
mentos vários, que o apuraram, foi retomado e realizado em granito
(conclusão em 1953).
526

-----

697
Ao escultor que em 1921 se fixaria na Europa para a fase decisi-
va, coube o mérito de selar a unidade do grupo sensível às novas
idéias. Oswald, que se refere a ele, em crônica de c. 1920, corno "o
nosso único escultor, mas que vale bem diversas gerações de modela- .
dores", defende-o dos que vêem a arte apenas por critérios de cópia
do real70 Mário de Andrade, em 1921, na partida do artista para a
Europa, chama-o de "amigo e irmão dos mais íntimos" e "a profecia
mais genial que o país teve até hoje na escultura" 71. Muito mais tarde,
na conferência de 1942, dirá que "fazíamos verdadeiras rêvenes a
galope em frente da simbólica exasperada e estilizações decorativas do
'gênio'. Porque Victor Brecheret. para nós, era no mínimo um gênio.
Este o mínimo com que podíamos nos contentar, tais os entusiasmos
a que ele nos sacudia" n Menotti, em fins de 1921, sabendo-o admi-
tido no Salon dAutomne. em Paris, intitula-o "a bandeira dos futuristas
paulistanos" 73. Ninguém media os arroubos que dirigia à obra de
Brecheret que, na seqüência da comoção suscitada por Anita, aparecia
como uma espécie de pivô de sua arregimentação final .•
Dos depoimentos, o mais revelador é o de Mário de Andrade, em
1942, em que ele também lembrou a metamorfose por que passara 527
seu espírito em 1920 quando, indeciso entre o Parnasianismo e Sim-
bolismo, lera as Villes tentaculaires de Verhaeren, resolvendo-se à
experiência difícil de "fazer um livro de poesias 'modernas' em verso
sobre a minha cidade" 74. Por meses ele tentou a empresa até que, ao
levar para casa a "Cabeça de Cristo" de Brecheret. a "feia" e "me-
donha" imagem com trancinhas provocou verdadeiro escândalo em
família, sobrevindo, então, no desabafo angustiado, o "canto bárbaro"
de Paulicéia desveirede"', que Oswald meses depois chamará de "um
supremo livro neste momento literário". Este testemunho, ao lado de
vários outros, permite uma vez mais deduzir a dianteira tomada pelas
artes visuais no país. No dizer de Manuel Bandeira: "O impulso inicial
do movimento modernista veio das artes plásticas" 76. E no de Mário
Pedrosa: "Graças a esse contato, desde os primeiros passos, com a
plástica moderna, puderam os literatos e poetas do modernismo bra-
sileiro ter, de saída, uma visão globaj do problema da arte e da criação
contemporânea. Educaram-se atravéls da pintura e da escultura moder-
nas" 77.

697 Victor Brecheret - estudo para


"Monumento às Bandeiras", c. 1920,
nanquim s/papel, 32 x 96, col. Família
Brecheret, São Paulo.
698 Victor Brecheret - "Monumento às
Bandeiras", 1936-53, granito cinza, parte
frontal: 600 x 845 x 4400, alt. da base: 210,
parte posterior: 290 x 580, alt. da base ·160,
Parque Ibirapuera, São Paulo.
8.6 O Futurismo em São Paulo

A intenção da pequena coletividade modernista concretizava-se,


em verdade, enquanto redução do retardamento cultural do país. No
campo visual, a assimilação mesmo se precária das novas correntes
internacionais, no segundo decênio, fizera-se com defasagens menos
sensíveis das que se observa na área da renovação verbal. O expressio-
nismo de Anita surgiu como exceção e era emulação inserida no pro-
cesso mais vital da tendência. Em Victor Brecheret e Vicente do Rego
Monteiro valia essencialmente a decisão de investigar a forma com a
liberdade que infringia preceitos de verossimilhança e, no próprio Di
Cavalcanti, "O Beijo" demonstra aberturas para valores morfológicos e
cromáticos de interiorização pessoal. O que realmente presidia todo
esse impulso era, afinal de contas, a vocação generalizada da moderni-
dade, captada por Di Cavalcanti e inclusive por Rego Monteiro em
doses anárquicas. Se em Anita Malfatti o processo contributivo estava
528 encerrado já muito antes da Semana e em Di Cavalcanti, ao contrário,
mal despontavam significantes que o personalizariam, Brecheret e
Monteiro abeiravam-se da linguagem que os definiria a partir do reen-
contro com a Europa.
Embora fossem várias as procedências dos estímulos desses
artistas e de outros que a eles se associaram na Semana de 1922,
tomou vulto incontrolável a sua caracterização como futuristas, termo
utilizado com ilimitada versatilidade pelos que combatiam a insurgên-
cia. Apelava-se para essa denominação a propósito de não importa
quais modelos plásticos, musicais ou verbais, desagregadores das
idéias repertoriadas. Entre os intelectuais modernistas, o Futurismo
acabou por encarnar parte significativa dos seus próprios princípios de
combate, havendo dissenções quanto aos limites de sua influência.
Uma primeira divulgação - sem maior repercussão - do Futuris-
mo no Brasil coube a Almáquio Dinis no mesmo ano do lançamento
do manifesto de Marinetti?". Oswald de Andrade tomara conhecimento
do movimento em 1912 na própria Europa, trazendo a informação
para São Paulo, onde o Futurismo seria difundido dois anos depois em
artigo do professor Ernesto Bertarelli?". Laconicamente lembrado no
Rio em 1913 por Afonso Costa, na figura de Marinetti'": citado em
1916 na própria Academia Brasileira de Letras, em discurso de Alberto
de Oliveira, como algo qualquer indistinto de outras manifestações de
várias Indoles'". o Futurismo teria episódio efêmero na articulação sur-
gida em 1915 entre Ronald de Carvalho e o poeta português Luís de
Montalvor, diretores da edição inaugural da revista Orpheu. Os dois
números dessa publicação assinalaram o início do Modernismo em
Portugal, onde o Futurismo afirmaria breve seqüência na obra de poe-
tas e pintores, entre eles Fernando Pessoa, Santa-Rita Pintor (1889-
-1918) e Almada Negreiros (1893-1970), enquanto aqui, dessa fonte,
que envolvia um intelectual mais tarde aderente à Semana da Arte
Moderna, não se geravam conseqüências paralelas.
o ideário futurista, fundamentado na necessidade de criar dimen-
sões de linguagem compatíveis com o avanço tecnológico e tendo
como divisa a rejeição concomitante das tradições acumuladas -
consciente das alterações radicais que experimentava a estrutura já
fragmentada da sociedade contemporânea - serviu à causa modernis-
ta no Brasil, melhor dizendo de São Paulo, na fase mais aguda de sua
configuração (entre 1920-21), tornando-se instrumento crítico de com-
bate às posições ultrapassadas e constituindo-se, no próprio âmago da
confraria que se consolidava, em objeto de sérias refregas, como ficou
demonstrado no desentendimento havido entre Oswald e Mário de
Andrade.
Coube a Menotti dei Picchia e à sua freima jornalística, depois de
combatê-Ios e de muitas hesitações, sair a campo na defesa polêmica
dos postulados futuristas, divulgando conceitos, traduzindo poemas de
Marinetti e Govoni e apresentando novos poetas que, sem enquadrar--
se no sistema futurista, livravam-se parcialmente das estruturas verbais
metrificadas.
Houve identificação entre a cidade tumultuada pelo progresso
material e os novos poetas e escritores com a estética que pregava a 529
"beleza da velocidade", "o movimento agressivo", "a insônia febril".
Mas as adesões ao Futurismo diversificavam-se com inseminações
próprias do ambiente brasileiro, desfigurando as premissas italianas
originais. Se de parte dos adversários dos modernistas havia, para
começar, incorreções esdrúxulas no manejo do nome - o que aliás
ocorreu também em outros países, como a Rússia, onde o Futurismo
foi influente e por muito tempo denegrido - no grupo revolucionário a
acepção 'futurista' era deliberadamente alargada e confundida com a
vasta dialética do movimento modernista internacional, a exemplo do
que pregavam Menotti dei Picchia (desde fins de 1920), Oswald de
Andrade, Cândido Mota Filho e Sérgio Buarque de Holanda, em arti-
gos divulgados pela imprensa no ano de 1921. Estava-se todavia mui-
to longe da profundidade de conceitos alcançada por futuristas de
outros centros europeus. O Futurismo, como demonstrou Mário da Sil-
va Brito, em alguns capítulos do seu livro fundarnental'". tornou-se em
São Paulo palavra de ordem e da moda para explodir nas próprias
mãos dos modernistas em meados de 1921, no instante em que
Mário de Andrade respondeu ao artigo "O meu poeta futurista" de
Oswald de Andrade'". O autor que estrearia com Os condenados
i mpregnava o poeta ainda desconhecido de Paulicéia desvairada, do
nome extremado que este repudiou altivamente, negando-se ao papel
de "reforrnador. revolucionário, iconoclasta" 84 Ele duvidava da exis-
tência de um "futurismo brasileiro, ou por outra de São Paulo" - que,
Oswald não definia - discordando sobretudo do materialismo futurista,
ao invocar sua condição de católico e opondo-se à renegação total do
passado, apoiado no seu marcado nacionalismo, que preza "nossas
tradições, poucas, mas áureas". Na sua resposta, Oswald não teve dú-
vidas em reafirmar o que dissera: colocava-se "na larga visão de Prate-
lia" e considerava "que em relação ao acanhamento de estética e ao
embrutecimento tradicional do nosso país em coisas de arte, os versos
de Paulicéia desvairada são do mais chocante, do mais estuporante, e,
para mim, do mais abençoado futurismo". Ele fala de "meu futurismo
sem as acrobacias tipográficas de Marinetti nem as asnices intrujadas
de Max Jacob, nem as liberdades criadoras de Vicente de Carvalho"
para exaltar "mestres calmos" de sua primeira nota: Guilherme de
Almeida, Agenor Barbosa e Menotti dei Picchia. Para Oswald estes
constituíam também o 'futurismo' de São Paulo'".
Se a discussão em causa era importante - sem que ninguém,
entretanto, se preocupasse em conceituar o "futurismo paulista", mais
próximo da moderação de sua vertente florentina que da radical idade
assumida pelos rnarinettianos'" - de maior relevância era a delineação
do clã contestatário que, lentamente, desde a exposição de Anita e a
descoberta de Brecheret. já estava em seu estágio maduro. A 9 de
janeiro de 1921, portanto meses antes da polêmica entre os dois
Andrade, numa homenagem que se prestava a Menotti dei Picchia no
Trianon, Oswald, saudando o autor de As máscaras, concitou-o à parti-
cipação decidida no esforço da coletividade marginal. Ele falava "em
nome de meia dúzia de artistas moços de São Paulo" ( ) "grupo de
orgulhosos cultores da extremada arte de nosso tempo" ( ) "restrito
bando de formalistas negados e neqadores" No discurso citou Victor
Brecheret. Di Cavalcanti, Anita Malfatti e John Graz (1891-1980), o
pintor suíço, futuro expositor da Semana da Arte Moderna. Dias
530 depois, no artigo" Na maré das reformas", Menotti mostrava enfatica-
mente toda a sua aversão "à caturrice originária da nossa subserviên-
cia ao passado" 87. Sem dúvida, a essa altura, o grupo estava alicerça-
do. Mas não menos que no grupo de literatos predominava entre os
artistas a posição individual. Não havia entre eles uma teoria que os
norteasse, apesar da falaciosa rotulação de 'futuristas'. É claro que nos
aspectos formais do expressionismo de Anita Malfatti há por vezes
soluções de movimento que se avizinham das 'linhas de força' futuris-
tas'". O que os aproximava, entretanto, era a formação ainda em curso
(salvo no caso da própria Anita e de Graz) adquirida direta ou indireta-
mente nos consecutivos movimentos europeus do início do século e
ainda não interiorizados.

8.7 A abertura no ambiente conservador do Rio


A consistência do grupo modernista já era fato indiscutível em
1921. Uma de suas características fortes - a procura da interdiscipli-
naridade - ganhara maior densidade nesse ano. Silva Brito enumera
entre os seus membros quatro pintores: Anita Malfatti, Di Cavalcanti,
Vicente do Rego Monteiro e John Graz e um escultor: Victor Brecheret,
especificando também o contingente maior de literatos: "Poetas são
Mário de Andrade, Menotti dei Picchia, Guilherme de Almeida, Agenor
Barbosa e Plínio Salgado. Menotti e Oswald de Andrade são romancis-
tas. Na crítica, sustentando a polêmica, estão Mário de Andrade,
Oswald, Menotti, Cândido Mota Filho e, com menor desempenho, Sér-
gio Milliet". Na lista do estudioso, aparecem depois Armando Pamplo-
na ("interessado em cinema") e Antonio Garcia Moya89, o arquiteto
"poeta de pedra", no dizer de Menotti dei Picchia, lista à qual se deve
acrescentar outros nomes, como o do historiador Rubens Borba de
Morais. Foi ainda em 1921 (outubro) que se registrou o primeiro movi-
mento de expansão do grupo fora de sua área geográfica original. Uma
delegação composta de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e
Armando Pamplona viajou ao Rio em missão de proselitismo.
No Rio, acomodado às tradições da Escola Nacional de Belas-Ar-
tes, da Academia Brasileira de Letras e outras instituições, a renovação
das idéias demandaria longo prazo. Em 1921, ao mesmo tempo em
que Mário de Andrade, em São Paulo, publicava a série de artigos
"Mestres do passado", dando por finda a interminável etapa do Parna-
sianismo, na capital federal realizava-se uma espécie de "semana de
arte antiga", no dizer de Wilson Martins, as "vesperais literárias" da
Biblioteca Nacional, organizadas por Adelino Magalhães, com a partici-
pação de jovens que reiteravam a mentalidade acadêmica, vesperais
que "foram qualquer coisa comparável a uma 'semana de arte moder-
na' abortada" 90.
A comitiva paulista que fora ao Rio, ali se entendera com aqueles
poucos que seriam os seus pendants de cruzada. Mário de Andrade
apresentou os versos de Paulicéia desvairada, "numa leitura principal,
em casa de Ronald de Carvalho, onde também estavam Ribeiro Couto
e Renato Almeida, numa atmosfera de simpatia" e "obtinha o consen- 531
timento de Manuel Bandeira, que em 1919 ensaiara os seus primeiros
versos-I ivres, no Carnaval" 91.
Em 1921, ainda, no próprio mês em que os modernistas viajaram
ao Rio, Graça Aranha estava de regresso ao Brasil depois de se exercer
por muitos anos na carreira diplomática. O autor de A estética da vida
(1921) aproximar-se-ia imediatamente das vanguardas e seu renome
nacional seria utilizado por estas de forma estratégica como trunfo para
atrair adeptos à causa, embora a duplicidade do seu posicionamento en-
tre valores ultrapassados e adaptações a conceitos mais vívidos.
Os representantes do disperso Modernismo carioca eram da área
literária - além dos citados, há a se destacar Sérgio Buarque de
Holanda, de São Paulo, mas que residia no Rio, Álvaro Moreyra e Aní-
bal M. Machado. Logo se cogitaria do compositor Villa-Lobos. quando
se pensou na Semana, e de alguns artistas plásticos. Era peculiar no
contexto a presença de Di Cavalcanti, cuja atividade dividida entre São
Paulo e Rio facilitava contatos assíduos em ambos os centros. No Rio
ele ilustrara Carnaval, de Manuel Bandeira, colaborava na revista Fon--
Fon em 1921 e era ligado a Ribeiro Couto. que prefaciara a série de
desenhos "Fantoches da Meia-Noite". Embora sempre vinculado ao
Recife, Vicente do Rego Monteiro, nos anos 1920-21, revelava intenso
ritmo de trabalho no Rio, onde estudou a cerâmica marajoara junto às
coleções da Quinta da Boa Vista, realizando exposições em que figura-
vam aquarelas com motivos dessa inspiração.
Ao Rio retornara em 1919 Osvaldo Goeldi, o futuro fundador da
gravura moderna no Brasil, após longa residência na Suíça. Em 1921,
no Liceu de Artes e Ofícios, ele exporia uma série de desenhos expres-
sionistas, mostra malograda em termos de público e de crítica, mas
que atraiu o apoio dos intelectuais do Modernismo carioca, entre eles
Ronald de Carvalho e Aníbal M. Machado, afora a solidariedade
sempre manifesta de Di Cavalcanti, de onde talvez a lembrança para a
sua presença na Semana de Arte Moderna, o que, aliás, nunca se pôde
comprovar. Uma das principais figuras da arte no Brasil desse decênio,
o paraense Ismael Nery (1900-34), iniciava-se no Rio por essa época
(1921-22).
Não se estende muito além disto o número de artistas de visão
nova, muitos em princípio de carreira, na capital do país, ambiente
contraído pelas normas da instituição oficial. Entre os pintores mais
antigos, Eliseu Visconti constituía figura de exceção, inclusive no ensi-
no. O acento pessoal da fase marcada pela sensibilidade pré-rafaelita
- que o torna um dos raros e apreciáveis artistas sensíveis ao Sim-
bolismo fora da Europa - e o Art-Nouveau, rendera-se à orientação
divisionista e impressionista, único aporte que o aproximava tenuamen-
te das gerações voltadas para o futuro. Por aí ele se aproxima das
gerações voltadas para o futuro. Flávio Motta, em seu texto deste livro
(1 Q vol.. cap. 7) traz elementos valiosos para o estudo do art-nouveau
em Visconti e outros artistas que absorvem sua modernidade, pro-
curando incuti-Ia no próprio ambiente das academias onde lecionavam.
O desenvolvimento notado na obra de Belmiro de Almeida (1858-
-1935), "mineiro que possuía a verve, a sagacidade de um parisiense
bulevardeiro" (Gonzaga Duque). o fez passar do tradicionalismo da tela
"Arruíos" para o divisionismo segundo Seurat (1859-91) 'da paisagem
de Dampierre (1912). Indo além, num período mais tardio, transcorri-
532 do entre o Rio e Paris, avizinhou-se de aspectos genéricos do Cubismo,
do Futurismo e de Delaunay (1885-1941); (cf. "Mulher em Círculos",
1921). Mas esse approach não captou senão de forma decorativa
aquelas mensagens revolucionárias.
O Neoclassicismo diluíra-se no contato com o Naturalismo, difun-
dindo-se no meio todo um repertório iconográfico e formal acadêmico.
O Simbolismo, de sua parte, teve raros adeptos. A incidência do
registro impressionista ou de uma maior espontaneidade de represen-
tação se fez presente em artistas diversificados, como o citado Belmiro
de Almeida, Lucílio de Albuquerque (1877-1939), Rodolfo Chambe-
Iland (1879-1967), João Timóteo da Costa (1879-1930), Carlos
Oswald (1882-1970), Artur Timóteo da Costa (1882-1923), Navarro
da Costa (1883-1931). Georgina de Albuquerque (1885-1962). Mar-
ques Júnior (1887-1960), Pedra Bruno (1888-1949), ao passo que
Henrique Cavaleiro (1892-1975) assimilaria o colorido teuve. Sobretu-
do em Artur Timóteo da Costa, pintor de intrínseca poesia, desapareci-
do prematuramente, observa-se resoluta evolução entre Impressionis-
mo e Expressionismo, como atestam duas de suas melhores obras de
1920. Pertencente a essa geração, Hélios Seelinger aparta-se por suas
preocupações simbolistas deslizantes em "bizarrisrnos duma superexci-
tacão". como diz Gonzaga Duque. Mas os raros comprometimentos
específicos com o Modernismo, na terceira década do século no Rio,
estavam reservados a outros artistas.
8.8 Os artistas plásticos na Semana de Arte Moderna

Fruto de longa maturação de idéias, embora não deixasse de se


marcar por contradições em sua montagem aparatosa, como vimos, a
SAM foi essencialmente uma atitude de ruptura e provocação, enfren-
tando a estagnação cultural brasileira. Nela confluíram mentalidades
inconformadas em busca da inserção do pensamento e das artes do
país na exata contemporaneidade histórica. Em concomitância, realça-
va-se a necessidade da sensibilização pelos valores autóctones. Ao pro-
pósito de modernidade atendia-se apenas em parte, não sendo supera-
da a distância entre as pretensões de radicalidade e o que efetivamen-
te era apresentado ao público no Teatro Municipal. De certa forma, as
intenções revolucionárias do evento pairavam acima dos indivíduos e
suas dificuldades e prejuízos de formação, suas contradições e conces-
sões. O que finalmente importava, diria Paulo Prado, era a realização
do evento e a sua capacidade de impacto. Relevavam-se as presenças
ocasionais ou as fissuras existentes no comportamento do grupo. 533
Empenhadas em destruir, essas forças deixavam para etapa posterior a
construção apurada dos novos modelos. Está claro, por outro lado, que
o academismo nas artes, como nas letras, não seria, nem poderia ser
erradicado, uma vez que é uma realidade comum a todas as épocas,
correspondendo à expectativa de um determinado público.
A idéia da promoção de uma manifestação memorável na passa-
gem do Centenário da Independência estava assente desde 1920 no
espírito de Oswald de Andrade, como mostra o rastreamento de Silva
Brit092. Todavia, se não o pensamento original, pelo menos a iniciativa
de levar adiante o projeto do que já seria a Semana, coube a Di Caval-
canti, conforme testemunho por ele prestado em seu livro Viagem da
minha vide'", corroborado por várias opiniões ponderáveis, e a que nos
parece se dever dar crédito. A decisão de concretizá-Ia deu-se quando
da exposição do artista em novembro de 1921 na livraria O Livro, de
Jacinto Silva, em São Paulo, oportunidade em que exibia suas pri-
meiras pinturas ao lado dos "Fantoches da Meia-Noite".
Cogitou-se de utilizar o espaço que o livreiro se habituara a reser-
var em sua loja da rua 15 de novembro a intelectuais e artistas quando
de lançamentos e exposicões'". mas o empreendimento logo ganhou
maior amplitude, resolvendo-se transportar a Semana para o Teatro
Municipal Apresentado por Graça Aranha a Paulo Prado, Di Cavalcanti
levou a este o propósito, imediatamente aceito, da realização de "uma
semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na
barriga da burguesiazinha paulistana" 95. Paulo Prado, que aliava em si
o profissional da economia cafeeira ao conhecedor erudito das idéias
mais atuais, futuro autor de Retrato do Brasil, tornou-se o principal
financiador e animador da Semana, colocando em jogo seu prestígio
ao envolver-se no que seria o tumultuoso festival de fevereiro de
192296.
Várias figuras da alta sociedade, induzidas certamente por Paulo
Prado, surgiriam como promotoras da manifestação, o que nada agra-
dava a Di Cavalcanti que fazia críticas "ao aspecto demasiadamente
mundano que ia tomando a Semana" 97. Até hoje graves acusações
pesam sobre o que seria a cumplicidade entre patrocinadores e patro-
cinados. Estes últimos, contudo, pertenciam, em boa parte, às chama-
das classes de elite.
Graça Aranha aparecia como o autor da iniciativa no noticiário jor-
nalístico que preparava a opinião pública. Articulados os modernistas
de São Paulo e Rio, tomadas as providências organizativas, onde se
destacou o escritor René Thiollier - "mais que um assimilador da "Se-
mana", fui seu empresário", diz ele98 - o evento teve lugar sob o
comando dos intelectuais. O acontecimento, em verdade, ganharia cur-
so dentro e fora do recinto nobre da casa da ópera de São Paulo. No
dizer da crítica Aracy Amaral: "A luta se deu não apenas durante os
dias 13, 15 e 17 nos programas divulgados, no Teatro Municipal de
São Paulo, alugado para a ocasião, como sobretudo através da impren-
sa, em textos dos modernistas apaixonados como de seus atacantes
534 mais acirrados" 99.
A idéia central da Semana foi a de torná-Ia uma expressão inter-
disciplinar. A presença da poesia, da música, da dança e de uma expo-
sição de artes visuais, por entre alguns discursos de fundo teórico que
pregavam as razões do Modernismo, quase fizeram da Semana um
espetáculo completo sob esse aspecto. Faltariam o teatro e o cinema.
A respeito do teatro afirma Décio de Almeida Prado: "A verdade, a
dura verdade, é que não estivemos na Semana de Arte Moderna, nem
presentes, nem representados por terceiros" 100. Foi omitido o cinema
que se desenvolvia precariamente e que atravessava fase de decadên-
cia nos anos anteriores a 1922. O contexto das artes plásticas incluía
a arquitetura, a escultura e a pintura. A coordenação alcançada não
deixa dúvida quanto à lucidez desse ato cultural.
A Semana que seguia à sua maneira manifestações de grupos
europeus de vanguarda e que é de alguma correspondência com a
Armory Show, exposição que, em 1913, também pela via do escân-
dalo, desencadeara as tendências internacionais da arte nos Estados
Unidos (que decorrem paralelas às resistências realistas locais), arga-
massava o Modernismo já sólido de São Paulo, e o do Rio, mais recen-
te e menos coeso.
As novas correntes interacionadas, como vimos, em suas varian-
tes categoriais de expressão, foram, como já se verificara antes da
Semana, tachadas de 'futuristas'. Pretendia-se, aliás, assumir o termo
tabu para a Semana, idéia depois abandonada. O escopo principal era
obviamente a contestação e a provocação - o que se fez face a um
público ruidoso e que lotava o teatro, mas ao mesmo tempo diante da
indiferença das autoridades que encampavam as performances coloca-
das sob a égide de representantes da própria classe dirigente.
Uma dissertação de Graça Aranha - "A emoção estética da arte
moderna" - na linha de pensamento do seu livro A estética da vida
(1921) - inaugurou a Semana. Com linguagem sentenciosa, própria
da práxis acadêmica, o escritor maranhense anunciou ao público os
"horrores" que o esperavam em pintura, poesia e música, descartando
a noção do belo como "fim supremo da arte". Referia-se por outras
palavras, implicitamente, à tese antológica da multiplicidade das cate-
gorias estéticas que se impusera desde o Romantismo, enfatizando
a "transformação incessante" da arte, a subjetividade e indepen-
dência que a conduzem, entretanto, sem cogitar de seus condiciona-
mentos sociais. Na palestra destacaram-se diversos pontos de apoio
ao Modernismo, a que Graça Aranha aderira sem penetrar-lhe a radi-
calidade. O escritor defendeu o individualismo da sensibilidade artística
moderna, a "liberdade absoluta" da expressão diante da qual "não pre-
valecerão as academias, as escolas, as arbitrárias regras do nefando
bom gosto, e do infecundo bom senso", condenou o regionalismo,
como o condenavam os modernistas ("O regionalismo pode ser um
material literário, mas não o fim de uma literatura nacional aspirando
ao universal"), reportou-se a vários co-participantes como os autores
do "próprio comovente nascimento da arte no Brasil" (tomando como
modelo Villa-Lobos) e afirmou a necessidade da formação de um "Uni-
verso brasileiro", liberto de passadismos e componente de um todo
maior ("Para sermos universais, façamos de todas as nossas sen-
sações expressões estéticas, que nos levem à ansiada unidade cósrni-
ca")"?". '
Ao discurso de Graça Aranha impregnado da espiritualidade de 535
sua busca cósmica, iria sobrepor-se a intervenção turbulenta e um
pouco simples de Menotti dei Picchia, enfrentando o Futurismo 'orto-
doxo' ("abomino o dogmatismo e a liturgia da escola de Marinetti")
mas ao mesmo tempo afirmando: "queremos escrever com sangue -
que é humanidade; com eletricidade - que é movimento, expressão
dinâmica do século; violência - que é energia bandeirante" '02. Antes

de Menotti, na parte teórica da Semana, a comunicação de Ronald de


Carvalho, no dia 13, revelava preocupações com uma arte nacional por
fazer-se, como ficou evidenciado no capítulo "Arte brasileira" de seu
livro Estudos brasileiros, publicado em 1924. Identificado a Graça
Aranha, nele aflorava uma refinada sensibilidade que se contraditava
na procura da conciliação impossível entre envelhecidas estruturas
mentais e a modernidadet'". sincretismo que, a exemplo de Menotti e
alguns outros, o distancia do grupo mais autêntico do Modernismo.
Mário de Andrade leu a conferência "A Escrava que não é
lsaura". em parte talvez recuperável através do ensaio do mesmo
nome, divulgado no início de 1925 e que reassumia também o curso
de idéias expostas no "Prefácio interessantíssimo" de Paulicéia des-
vairada (1921) O texto, apoiado em artigos lidos na revista L 'Esprit
Nouveau (especialmente em Paul Derrnée). é um tour d'horizon de
problemas estéticos. Mário de Andrade deduzira que "um dos pontos
mais incompreendidos pelos passadistas" fora a "substituição da
ordem intelectual pela ordem subconsciente", não ignorando os "peri-
gos formidáveis" dessa substituição, .a exemplo do "herrnetisrno cego
em que caíram certos franceses na maioria dos seus versos". Em outro
tópico, utiliza a comparação freqüente entre os modernistas: "O poeta
sintetiza e escolhe os universais mais impressionantes O poeta não
fotografa cria. Ainda mais não reproduz: exagera, deforma, porém
sintetizando". De onde, como ele dissera, "todo um ambiente de reali-
dades ideais onde sentimentos, seres e coisas, belezas e defeitos se
apresentam na sua plenitude heróica, que ultrapassa a defeituosa per-
cepção dos sentidos" ("Prefácio interessantíssimo") Ele defendia na
"Escrava" a simultaneidade "como processo artístico", a "polifonia
poética", o esforço "em busca duma forma que objetiva esta multiplici-
dade interior e exterior cada vez mais acentuada pelo progresso
material e na sua representação máxima em nossos dias", o que, em
termos plásticos, permite-nos vê-Ia vizinho ao Cubismo, Futurismo e
Orfismo, situando-se sua posição estética como um "trabalho pragma-
tista (que) longe da especulação abstrata, conota o critério da eficácia
enquanto teste da viabilidade prática dos conceitos" 104.
Mas na Semana tratava-se menos de propor e especificar novos
códigos poéticos do que de combater antigos sistemas de arte e litera-
tura. No primeiro aspecto, que completaria o segundo, a parte teórica
da Semana não primou pela unidade de pontos de vista ou pela objeti-
vidade. As coisas não poderiam mesmo acontecer de outra forma.
Todos os representantes da área de letras vinham de formação parna-
siana ou simbolista ou estavam perdendo essa condição. Ao procurar
aproximar-se do Modernismo, os 'clássicos' Graça Aranha e Ronald de
Carvalho detinham-se no evolucionismo de compromisso. As fissuras
do movimento modernista incoavam já nas arengas do Teatro Munici-
pal, mesmo se os desígnios contestatários que moviam uns e outros,
em diversa escala, se realizassem na inquietude produzida.
536 A Semana configurou-se, como vimos, pela apresentação sincro-
nizada de diferentes dimensões poéticas e com o máximo de infor-
mação relacionável. A exemplo dos outros setores da manifestação, a
mostra de artes plásticas, instalada no saguão do teatro, incluía ape-
nas reduzida quantidade de participantes, dos quais Anita Malfatti, Vic-
tor Brecheret, Vicente do Rego Monteiro e Di Cavalcanti eram os
nomes mais em evidência. O catálogo, por demais sumário, impresso
na ocasião (trazendo no frontispício um desenho expressionista de Di
Cavalcanti, que apontava algo para a sua visão formal posterior), enu-
merava os seguintes expositores distribuídos em três secções: Antonio
Garcia Moya e Wilhelm Przyrembel (1885-1956) (arquitetura); Victor
Brecheret e Wilhelm Haarberg (1891) (escultura); Anita Malfatti, Di
Cavalcanti, John 'Graz, Alberto Martins Ribeiro, Zina Aita (1900-68),
João Fernando de Almeida Prado (1898), Ferrignac (Inácio da Costa
Ferreira; 1892-1958) e Vicente do Rego Monteiro (pintura) 105. Perma-
necem algumas dúvidas quanto à presença de artistas citados por
outras fontes e que seriam hors catalogue, como Osvaldo Goeldi e Hil-
degardo Leão Velloso (1899-1966). Nada se sabe, por outro lado, do
envio de Martins Ribeiro mencionado na lista. Por haver colaborado na
feitura de cal/ages de Almeida Prado incluiu-se automaticamente na
mostra o desenhista Antônio Paim Vieira (1895). Vicente do Rego
Monteiro, Zina Aita, Martins Ribeiro e Hildegardo Leão Velloso compu-
nham a delegação do Rio, organizada por Ronald de Carvalho e da qual o
primeiro - a bem dizer o representante pernambucano - constituía o
único nome relevante. Os demais do elenco eram todos de São Paulo.
A incipiente catalogação das obras expostas, a incerteza do com-
parecimento de artistas mencionados em notícias dos jornais e a dis-
persão de muitos dos trabalhos foram sempre fatores prejudiciais à
reconstituição completa desse encontro nacional pioneiro da arte
moderna no país. Muitas interrogações permaneceram no ar, embora
certamente pouco de monta haja a acrescentar à informação acumula-
da, sobretudo nos últimos anos?". Seja como for, o que restou da
Semana é mais do que suficiente para a avaliação do seu contexto. O
estado de paralelidade temporal em relação à cultura plástica interna-
cional, pretendida pelos modernistas, c8nfirmava-se apenas parcial-
mente. Um decênio ao menos (e mais em alguns casos) se passara do
momento heróico do Expressionismo, do Cubismo e do Futurismo. O
Futurismo, a abstração e o Construtivismo russo, como o movimento
De Stijl, já eram formulações de longo e sólido desenvolvimento pela
segunda década do século. Desde 1919, idealizada pelo arquiteto
racionalista Walter Gropius (1883-1969), a 8auhaus se havia proposto
a preencher o vazio aberto entre o artista e a civilização industrial. A
potente ação Dada estava cumprida, só lhe faltando o desenlace 'ofi-
cial' do "Congresso de Paris", e da- "Soirée du coeur à barbe". Em
1912 Duchamp havia abandonado a pintura e instaurava uma própria
dialética artística. Enquanto isto, aqui mal se saía do estado de letargia
imposto pelos padrões acadêmicos, pagando-se seríssimo tributo a
essa submissão sem horizontes. As condições culturais haviam esta-
belecido clima restritivo às iniciativas individuais que investigavam o
presente com sentido crítico. Não se pode obliterar esse quadro da
evolução histórica do pensamento e arte no país ao se olhar para os
expositores válidos de 1922 - e os resultados que eles atingiam no
seu esforço solitário.
Aos comentários anteriores à obra de Anita Malfatti, Victor 537
Brecheret, Vicente do Rego Monteiro e Di Cavalcanti, cabe acrescentar
poucas referências ao se tratar da Semana. A vacilante Anita Malfatti,
que fizera novas individuais em São Paulo e Santos em 1920-21, levou
à exposição "doze telas a óleo e oito peças entre gravuras e desenhos
alguns deles coloridos" 107, um rebatimento da mostra de 1917-18,
acrescentado de peças recentes em que se diluíra consideravelmente o
seu expressionismo vigoroso. Foi a fase paradoxal dos estudos com
Pedro Alexandrino e da freqüentação de Georg Elpons. Depois de
declínio violento nos anos 1918-20 - "período em que buscara o
isolamento" 108 - houve nela, em 1921, tentativa de recuperação da
linguagem original ao reaproximar-se dos mcdernistas"'". Sua expo-
sição na Semana devia refletir essa instabilidade que levara Mário de
Andrade a escrever pouco antes: "tinha-se a impressão dum artista
que tivesse perdido a própria alma" 110. Somente através das obras de
1917 -18 Anita Malfatti ainda era capaz de trazer uma mensagem vital
no contexto da manifestação. Sérgio Milliet. citando "O Homem
Amarelo", "O Japonês" e "Paisagens à Borda do Mar" 111, colocou as
obras ao nível de "puros chefs d'oeuvres", ressaltando que "seu
desenho concentrado e seu colorido sóbrio fazem dela o melhor pintor
da exposição". O crítico dizia que uma "lndienne" marca a evolução
699 Anita Malfatti - "índia" (dito
"Moerna"). c. 1921-22. pastel. 63 x 48.5. definitiva de Anita Malfatti na direção da pintura de interpretação sinté-
cal. Gilberto Chateaubriand. Rio de Janeiro.
tica". A evolução era, entretanto, como se viu, a reçressão"'".
A contribuição de Di Cavalcanti não chegou a ter a forma de
pequena retrospectiva, como a amostragem de Anita. Técnicas diver-
sas caracterizavam os seus trabalhos: óleos, pastéis e desenhos1u
Alguma vinculação cubista e expressionista nuançava a produção mais
recente, como demonstra a ilustração que preparou para o rosto do
catálcpo"'". O seu penumbrismo de figuras espectrais era algo que
ficava para trás, mas ele o incluiu na mostra. Milliet aproximou as últi-
mas obras de Di Cavalcanti (não apresentadas na Semana) às gravuras
do expressionista belga Frans Masereel (1889-1971) "que ele des-
conhecia antes de minha chegada". Acrescenta que Di Cavalcanti
errara ao expor apenas trabalhos da fase precedente, criticando os de
forte contraste de luz e sombra que considera "pintura antiga" 115.
Não faltavam igualmente disparidades na seleção de pinturas de
Rego Monteiro, como já observado. Em evolução muito rápida entre
1920-21, o artista recifense ultrapassara o impressionismo de "Ca-
beças de Negras" e "Cabeça Verde" para adotar componentes cubis-
tas (duas das obras, extraviadas, têm como título "Cubisrno") e a este
respeito Sérgio Milliet também deixou testemunho expücito"!" Nota-se
a insistência nessa novidade do artista em Ronald de Carvalho que se
referiu aos "cubisrnos da Semana" em carta a René Thiollier '!". De
Rego Monteiro eram ainda vistos na Semana desenhos com sua temá-
tica indígena de figuras alongadas e despojadas. O apuro formal des-
sas "lendas brasileiras", assim como certamente dos retratos, entre os
quais o do patrocinador Ronald de Carvalho, provam que ele estava a
um passo das soluções da fase parisiense dos anos 20118
Recém-chegado ao Brasil (março de 1920) para rápida estada,
mas onde se fixaria em definitivo, participou da Semana o artista suíço
John Gr az. formado em Genebra e Munique. Aqui, casado com Regina
Gomide (1902-73), que também cursara a Escola de Belas-Artes de
700 John Graz - "Ciprestes", 1919,
óleo s/tela. 73.4 x 58,8, col. Gerda 8rauen, Genebra, ele desde logo se acercara dos modernistas paulistas '?". Um
538 São Paulo. artigo de Claro Mendes, insistindo em que seja aproveitado como
701 Zina Aita - "Homens Trabalhando",
1922, óleo s/tela, 22 x 29, col. Yan de vitralista, o tem como "uma força de que São Paulo necessita" 120.
Almeida Prado, São Paulo.
Graz, que em dezembro. de 1920 exporá suas pinturas "ao lado de tra-
balhos artesanais" de Regina Gomide Graz no saguão do Cinema
Central'F'. recebera uma citação de Oswald de Andrade no discurso do
Trianon, como vimos e será incluído na Semana com oito quadros,
todos feitos na Europa. No "Retrato do ministro G." {início de 1917)122
é ·influenciado pelo expressionismo de Hodler, assim como por Cézan-
ne (1 839-1906) nas paisagens que exibiu,
mostradas também em
1919 na galeria do artista Moss em Genebra 123 . Denotam esses tra-
balhos expressionistas o pintor de bons recursos cornpositivost'". que
acentua os acentos formais geométricos e esmera a cor nostálgica. A
respeito de sua presença na Semana de Arte Moderna, a testemunha
ocular Sérgio Milliet afirma: "Eis, da esquerda para a direita, John
Graz. antigo discípulo de Hodler125, que nos apresenta telas de um
colorido vigoroso e de um simbolismo místico simples, duro e ingênuo.
"A Descida da Cruz" é, entre todas, o melhor exemplo. Nas paisagens
e nas naturezas-mortas essa mesma rudeza de expressão, que é um
dos princípios de Hodler. "Paisagem de Espanha" é uma tela magnífi-
ca"126. Desse momento data também "Ciprestes".
700
A pintora Zina Aita levou à mostra a imagem de um divisionismo
superado, aceito, entretanto, por Anita Malfatti, que lembrava em 1951
suas "oito telas bem modernas" 127. Milliet Julgou a pintora "antes
bizarra que original", não deixando de apreciar-lhe a cor "moderna"
mas criticando o realismo do dssenho"'". Zina encaixava-se entre os
brasileiros experientes da Europa antes de 1922, tendo estudado em
Florença mas não com suas personalidades mais vivas. Eram visíveis
acentos art-nouveau nas obras da época desta artista não desprovida
de qualidades gráficas, que se endereçaria para uma cerâmica pictóri-
ca anacrônica numa carreira desde 1924 transcorrida em Nápoles.
Dos demais presentes à seção de pintura (e desenho), ignora-se,
como se disse, o que apresentou Martins Ribeiro. Ferrignac, carica-
turista e ilustrador colaborador da revista paulista Penoplie, estivera
igualmente na Europa em duas oportunidades, dividindo o tempo entre
tarefas jornalísticas e a atividade gráfica e plástica. Em 1919 ele vinha
de volta de viagem a Portugal, Espanha e Itália trazendo numerosas
ilustrações a lápis, nanquim e aquarela. Uma crônica da época situava-
-o como "muito moderno nas suas sensações de artista", com obra
feita de "nervos e de sonho" (que) "tem sempre no traço, na sombra, 539
no colorido e no movimento, esse mesmo ritmo, essa mesma melodia
dos artistas 'decadentes', e toda a graça dos coloristas ingleses" 129.
Pelo que dele se conhece nada faz crer que o quadro "Natureza
Dadaísta". exibido na Semana, tivesse algo a ver com a intenção do tí-
tulo. O testemunho de Sérgio Milliet esclarece tratar-se de "natureza--
morta", informação a que acrescenta, não sabemos por quê "É a
extrema esquerda do movimento paulista" 130. Quanto à participação
de João Fernando (Yan) de Almeida Prado (e do ilustrador, gravador e
ceramista art-nouveau Paim Vieira). de que não restou traço, ela se fez
com desenhos e co//ages de "contestação" humorística ao espírito da
mostra, como confessou o futuro autor do polêmico livro A grande
Semana de Arte Moderne'?',
A escultura da Semana era essencialmente o conjunto de doze
peças de Brecheret. Já foram aqui feitas menções ao artista a quem
Sérgio Milliet, a exemplo de Oswald de Andrade e outros, reporta-se
702
com adjetivos incandescentes: "gênio da raça latina", "digno sucessor
de Rodin e Bourdelle, e também admirável poeta pela sua extraordi-
nária imaginação" (o crítico deslocava-se do contexto da Semana para
centralizar a atenção no projeto do "Monumento às Bandeiras") 132.
Não há dúvida de que os méritos de Brecheret conduziam os críticos
ao gosto do ditirambo. A presença de Wilhelm Haarberg marcava-se
por um grupo de esculturas de pequeno porte em madeira.
Trata-se de um artista e professor alemão temporariamente radi-
cadono Brasil e conduzido ao evento de 1922 por Mário de Andrade:
"Eu descobria Haarberg, o escultor expressionista" 133. Novas pesqui-
sas em trâmite sobre este modesto escultor podem acrescer o pouco
que dele se sabe, inclusive no âmbito decorativo a que se dedicou. Das
peças que apresentou, "Mãe e Filho" indica sensibilidade intimista e
honestamente emotiva que trata com segurança a imagem. Num
703 desenho da época em que a figura simbólica da "Morte" domina o
espaço preenchido por registros de rostos dramáticos, observa-se a
702 Ferrignac - "Colornbina". 1922,
desenho aquarelado, 19 x 31, cal. A.F. disposição extrovertida dominada pela aflição dos problemas huma-
Leirner, São Paulo.
nos134• Não se tem informação a respeito do que Hildegardo Leão
703 Haarberg - "Mãe e Filho", c. 1921,
madeira, 32 x 14,7 x 15, cal. IEB-USP. Velloso teria mostrado na Semana. Introduzido na escultura aos 15
~- - -- , -, .•... -

- -- - -

anos por Rodolfo Bernardelli e ao mesmo tempo aluno de desenho de


Henrique Bernardelli (1858-1936), seguia a linha tradicional do
mestre estatuário. A obra posterior, de acentuada base naturalista,
mesmo quando estiliza a imagem, certifica distanciamento de qualquer
propósito de rnoder nidadel " e portanto o equívoco de sua presença,
se ela ocorreu, no encontro de 1922.
A mostra compreendia aceno à arquitetura, estando-se porém ain-
da longe do enraizamento local da problemática racionalista. Na época
tomava densidade o entusiasmo patriótico em busca do neocolonial,
que redundaria freqüentem ente em equívocos. Wilhelm Przyrembel,
arquiteto polonês aqui radicado na segunda década do século - um
dos convidados - procurou absorver tais princípios historicistas na
"Taperinha na Praia Grande" (1922), de simétrica e apurada orde-
nação nos cheios e envazaduras da fachada, complicada entretanto
pelo uso de elementos ornativos ecléticos. Antonio Garcia Moya, de
origem espanhola - o outro convidado - exibiu projetos de edifícios
visionários. Desenhados com traço sensível a nanquirn. suas
construções lembram moles egípcias e exóticos castelos do Mediterrâ-
540 neo. A depuração das fachadas e a organicidade geométrica dos blo-
cos dos muros devem ter atraído o interesse dos modernistas por ele
que todavia adaptava, nas elevações e interiores devaneantes, elemen-
tos híbridos ou evocativos de esti los antepassados.
Na exposição de artes plásticas, como em outros aspectos da
Semana de Arte Moderna, só em parte atingia-se as metas propostas.
Descartadas as admissões enganosas e ambíguas, valiam mais as
intenções, como se viu, do que os resultados em torno da real interpe-
netração com o momento internacional.
O mesmo se pode dizer das ambições nacionalistas. O Futurismo
é mais ideá rio difuso, sobretudo presente, de um modo ou de outro, no
espírito dos intelectuais. Nos artistas, em maioria na busca da identi-
dade profunda, são evidentes, isto sim, elementos de formação cornpó-
sita. destacando-se a influência do Art-Nouveau e assimilações cubis-
tas e expressionistas, estas decididamente incorporadas na obra de
An ita Ma Ifatti.
- - -~- -- - -- , ~ ~-

- - --- - - - - ~~ - -

Evolução do Modernismo, depois da SAM, até 1930

8.9 Desdobramentos e difusão do Modernismo

Apesar de suas dissonâncias, a SAM fertilizara o ambiente de


novo fluxo de idéias. A repercussão fora de São Paulo e Rio fez-se qua-
se inteiramente em seus aspectos literários e, mesmo na capital
federal, é esse o ângulo que predominou largamente Não obstante os
comprovados surtos de Modernismo em várias regiões do país, efetiva-
mente dependentes do Modernismo de 1922, procurava-se, como se
procura, restringir o seu alcance. As características de 'festa' que, aliás,
não faltaram à Semana e que foram admitidas pelos seus próprios res-
ponsáveis, serviram de pretexto para ataques dos que a ridic,ularizavam
ou que então contestavam os níveis de renovação alcançados. O
comando das manifestações do Teatro Municipal pela aristocracia 541
paulista e a preocupação concentrada nos problemas estéticos dos >
:o
participantes ensejou também críticas ideológicas mais recentes que ;;::
c-a
o
se estenderiam a todo o desenrolar do primeiro Modernismo. Não se Z
--;

pouparam referências quanto à própria conduta ética dos protagonis- ~


-o
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tas do evento. Seria entretanto possível admitir que a cultura do país :<>.
z

tivesse idêntico curso sem o grande solavanco que sobretudo foi o >
compromisso de 1922?
Até o fim do decênio de 1920, quando se completou essa etapa
histórica, uma linha de início invisível conecta a inquietude dos meios
culturais ao inconformismo das classes urbanas ascendentes, diante
da situação social e política da nação em sua Primeira República, o
que resulta em traumas de rebeliões e revoluções. Há obviamente
mais que uma coincidência entre a fervilhação cultural e aquelas ten-
sões. De um lado e de outro tentava-se escapar às condições históri-
cas herdadas com o peso do seu atraso e gerar uma nação moderna.
Na seqüência dos acontecimentos de fevereiro de 1922, foi
lançada em São Paulo, com aspectos gráficos de origem futurista (de-
vidos a Guilherme de Alrneida). a revista mensal K/axon, que, sob a
liderança de Mário de Andrade, desempenhou papel fundamental na
coordenação teórica do movimento e sua divulgação (maio 1922 -
janeiro 1923) Pretendia-se dar unidade às idéias dispersas e desen-
contradas tais como haviam sido expostas na SAM, lutando-se por
uma cultura objetiva e atualizada, atenta à vivência das idéias interna-
cionais e à realidade do país136. Um sobrevivente da Semana e de K/a-
xon - Rubens Borba de Morais - vê na publicação um impulso de
onde brotaram posicionamentos políticos interessados em derrubar a
velha oligarquia à qual o Modernismo se aliara na primeira hora':".
K/axon emularia no Rio a revista Estética (setembro 1924 -
março 1925), fundada por Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de
Morais Neto, decidida a "apresentar o modernismo antes em seus tra-
balhos de reconstrução que de demolição" 138 - incentivando ainda o
aparecimento de diversas outras como Novíssima e Terra Roxa e
Outras Terras, na capital paulista.
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ANO I -Vol. 1 Setembro -1924

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Revista de arte. literatura. sociedade. politica

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704 705 706

704 Capa da revista Klexon, n? 1, São


542 Paulo, maio 1922.
705 Capa da revista Estética, n? 1, Rio
de Janeiro, set. 1924.
706 Capa da revista Novíssima, n? 3,
São Paulo-Rio de Janeiro, fev. 1924.

Em 1924, dava-se o rompimento de Graça Aranha com a Acade-


mia Brasileira de Letras e o Modernismo enfrentava suas primeiras dis-
sensões. Os escritos de Tristão de Ataíde eram rechaçados pelas prin-
cipais figuras revolucionárias de São Paulo, algo que se acentuaria
anos depois entre os 'antropófagos', opostos ao espiritualismo católico
do crítico. O Manifesto da poesia pau-brasil, de Oswald de Andrade,
pregando a recorrência aos estímulos autóctones, data desse ano.
Com sua sintaxe telegráfica, o autor afirma: "O trabalho da geração-
futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro, Ser regional e puro em sua
época". Assim, depois da necessária assimilação cosmopolita pro-
punha a via do "contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a
adesão acadêmica", Seria este o primeiro passo para o também seu
Manifesto antropófago de 1928, inspirado em Montaigne e Dada e
que demonstra empenho autonomista e primitivista. É pela deglutição
de todos os aportes culturais alienígenas. Os manifestos pau-brasil e
antropófago (1928-29) permaneceriam sem dúvida entre os documen-
tos incisivos da história do Modernismo. Dos ideais 'antropófagos' sur-
giram dois ápices literários brasileiros: o poema Cobra Noreto, de Raul
Bopp, e sobretudo a rapsódia Macunaíma, de Mário de Andrade. Nas
artes plásticas, como veremos, a pintura de Tarsila (1886-1973) seria
a única a ter vínculos com o pau-brasil e a 'antropofagia', a esta acor-
dando-se também as idéias de Flávio de Carvalho (1899-1973).
O novo interesse pela realidade brasileira seria razão para outros
manifestos, notadamente o do Verdeamarelismo, ou da Escola da
Anta. Nele extremava-se o nacionalismo auto-suficiente. "Estarnos em
condições de criar uma arte brasileira, com elementos exclusivamente
brasileiros", dizia, já em 1926, Plínio Salgado que, ao lado de Menotti
dei Picchia e Cassiano Ricardo, reiterava uma doutrina conservadora
------- -- ------------ --

encaminhada para uma ação política militante das mais reacionárias e


que acabaria por tornar seus os próprios ideais do fascismo. A politi-
zação dos modernistas, nesses anos que precederam de pouco ao biê-
nio crítico 1929-30, terá, grosso modo, esta ala direitista representada
pelos verdeamarelistas, a que faz acirrada frente o agrupamento dos
'antropófagos' liderados por Oswald.
Movimento de minorias cultas de São Paulo logo estendido ao
Rio, o Modernismo não teve enquanto iniciativa organizada equivalen-
tes noutros Estados, exceto o que decorre de suas próprias premissas.
Colocou-se em dúvida a existência do Movimento Regionalista do
Recife e de seu respectivo manifesto, pelos quais Gilberto Freyre reivin-
dica um lugar específico para Pernambuco na renovação cultural da
década de 1920. É um fato que só em 1952 foram impressos os seus
postulados (defesa da cultura popular, do rnocambo. dos bens arquite-
tônicos, dos valores culinários etc.) e assim mesmo em versão reei a-
botada. segundo o próprio Gilberto Freyre, depois de terem sido apre-
sentados oralmente no Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste
em 1926139. Inegavelmente, o futuro autor de Casa grande e senzala,
logo após seu retorno do exterior, em 1923, buscava afirmar uma cul- 543
tura de sentido regional que o interessava como fundamentação nacio-
nalista. Mas não se poderia, a rigor, falar de 'movimento'.
O Modernismo em Pernambuco contara sobretudo com a figura
pioneira de Vicente do Rego Monteiro, cuja formação, a exemplo
daquela de seu irmão mais jovem Joaquim do Rego Monteiro (1903-
-34), fizera-se independentemente de Rio e São Paulo. Vicente, que foi
influenciado, como vimos, pela Escola de Paris e que introduziria moti-
vos da região natal em quadros de 1919-20, período em que também
explorava uma temática indianista, mudara-se, entretanto, em 1921 e
por muitos anos, para a França. Caberia ao jornalista e escritor Joa-
quim Inojosa tornar-se, desde 1922, o emissário e representante do
Modernismo das letras no Recife, de onde o irradiou a outras capitais
do Norte e Nordeste14°.As viagens dos modernistas, particularmente a
de Guilherme de Almeida, em 1925, ajudaram a expandir as novas
tendências culturais. O Norte (o Pará desde 1924) e o Nordeste ante-
ciparam-se ao Rio Grande do Sul e Minas Gerais, onde fortes grupos
modernistas se constituíram em 1925. Em Porto Alegre, Augusto
Meyer e outros fundaram a revista Madrugada e, em Belo Horizonte,
sob a direção de Carlos Drummond de Andrade e Martins de Almeida,
aparecia A Revista. Nessa última cidade surgiria, em 1927, o suple-
mento Leite Criô/o. Ainda em Minas, a pequena Cataguases também
teria, a partir de 1927, em Verde o seu órgão modernista. Nas capi-
tais regionais apontadas e em outras, como Salvador, sede da revista
Arco e Flexe, lançada em 1928, os interesses literários do Modernis-
mo foram sempre o essencial, senão a sua quase única preocupação.
A renovação literária, como a artística, vinculada às correntes
internacionais, buscava o feitio nacional, característica marcante do
Modernismo de diferentes grupos, ainda que menos sensível nas artes
plásticas. Nas letras, Mário de Andrade levará o propósito até a tentati-
va extremada de uma língua brasileira escrita, liberta do português. Na
dimensão musical é que se alcançaram prontamente resultados nesse
aspecto.
- - - - - - -- -- - --~ - - ~.

Em fins da década, a Revista de Antropofagia opunha-se às for-


mas de passadismo, onde elas se encontrassem, inclusive nas
posições internas enfraquecidas do movimento. Contrastando com a
comunidade antropofágica, o grupo da revista Festa - criada no Rio
em 1927 - era exemplo de uma perseverança simbolista, ou "van-
guarda, dessa vanguarda que marcha com mil precauções para não
estragar os sapatos" (como se escreveu no número 2 da segunda den-
tição da revista do 'açougueiro' Geraldo Ferraz). O Modernismo paulis-
ta, traçando-se perspectivas poéticas de experimentalidade imanente e
apreendendo criticamente o meio, ajudou, sem dúvida, a abrir portas
amplas, como as que conduzem ao romance nordestino, inaugurado
com A Bagaceira de José Américo em 1928, pródromo da fertilidade
de autores e obras da década seguinte.
Fora de São Paulo e Rio, artistas isolados da província e de linha
independente, vinculados ou não aos programas modernistas locais,
devem aqui ser lembrados mesmo se de forma precária e a título de
exemplo. Manuel Bandeira, do Recife, é autor de uma '(obra passio-
na!". "de aspectos expressionistas visionários", como se disse noutro
707 Capa da Revista de Antropofagia,
544 edição fac-similada, São Paulo, lugar141. Em Belém, cidade que conhecera um colecionismo público e
1928-29/1975.
privado de incomum intensidade, decorrente da economia da borracha,
além de alguns aspectos surpreendentes de vivência dos problemas
artísticos, o Impressionismo só teria chegado em fins dos anos 20,
porém a nota 'futurista' - na interpretação local - foi dada por Nicola
de Garo e Giovanni de Garo, artistas "procedentes do Recife" 142, mas
ao que parece sem maiores conseqüências no ambiente morosot'".
Em Minas Gerais, o retraído Genesco Murta (1885-1967), apesar da
experiência de duas viagens à Europa, permanecera fiel ao Impressio-
nismo, indo por vezes ao linde do pontilhismo em sua longa atuação.
Em Salvador, atuava o pintor José Guimarães junto ao grupo da revista
Arco e F/exa. É normal a inexistência de pesquisas sobre quase todos
esses artistas e outros, uma vez que, mesmo em São Paulo e Rio de
Janeiro, os primeiros levantamentos críticos da arte do Modernismo e
as primeiras monografias datam de anos recentes. Fora dessas duas
cidades o ambiente plástico era desolador. Permanecia-se fiel aos dita-
mes da ENBA ou das escolas locais de belas-artes.
Aprofundava-se nos anos 20 a linguagem da maioria dos artistas
importantes do núcleo modernista, ademais aparecendo reforços que,
embora raros, eram significativos. Um deles é o escultor de origem
maranhense Celso Antônio (1896) que se encontrava na capital paulis-
ta entre 192.6 e 1930, depois de estudos com Bourdelle em Paris.
Localmente. o meio artístico vanguardista debilitava-se com a par-
tida temporária para a França da maioria de seus membros. As expo-
sições faziam-se em termos individuais e esporadicamente. Mas houve
mesmo assim razoável número delas em São Paulo e Rio. Durante o
decênio e mesmo quando do retorno ou de estadas dos que se acha-
vam no exterior, não tomou corpo uma arregimentação com vistas a
manifestações coletivas ou à criação de qualquer coisa que se opuses-
se ao poder organizado das correntes de arte conservadora. As razões
que contribuíam para isso eram, além das viagens dos modernistas, a
falta de maior emulação das novas idéias e o escasso interesse do
público. Um só evento significativo pode ser registrado em muitos
anos: a "Exposição de uma Casa Modernista", já em 1930, em São
Paulo, quando da inauguração de uma residência de Gregori
Warchavchik (1896-1972), à rua Itápolis, 119 (atual nO 691), mostra
da qual participavam 14 artistas de São Paulo e Rio, ao lado do arqui-.
teto que apresentava anteprojetos e artefatos por ele desenhados.
Havia algumas obras estrangeiras de arte aplicada ... e uma escultura
de Lipchitz (1891-1972). Aos artistas plásticos, Juntavam-se nessa
ocasião muitos escritores, que exibiam seus livros144.
Nada havia de comparável, sob a angulação aqui pretendida, à
impulsão e difusão do Modernismo literário, à sua expressão numérica
e à presença de suas atitudes concretizadas em sucessivos agrupa-
mentos e aspectos próprios em áreas geográficas diversas. Nos órgãos
do movimento, os problemas plásticos eram pouco tratados, ou nem
sequer o chegavam a ser, na maioria desses veículos. Também era
raro abrirem-se à ilustração de obras, que fazem aparições em Klaxon,
No víssim a e na Revista de Antropofagia. Outras publicações
começaram a trazer apoio, como a Revista do Brasil, que, desde 1925
sob a direção de Paulo Prado, renunciava ao tradicionalismo que a
caracterizara. A revista Para Todos, no Rio, de fins dos anos ,20, dirigi-
da por Álvaro Moreyra, daria oportunidade a ilustradores modernistas e
sobretudo a Di Cavalcanti. Na imprensa diária há o exemplo da recepti- 545
vidade do Diário Nacional (devido à dedicação de Mário de Andr ade).
o jornal do oposicionista Partido Democrático, fundado em 1926.
Eram os tempos precoces para iniciativas museológicas, reclama-
das por Ronald de Carvalhol'" ou obviamente para se pensar num
ensino fora dos velhos padrões. Quase não chegavam até aqui expo-
sições coletivas estrangeiras. Mas à exceção da apresentação de obras
da Escola de Paris, em 1924, quando da conferência de Blaise
Cendrars em São Paulo, será preciso aguardar até 1930 para se ver
uma primeira grande mostra internacional. A informação era colhida
através de revistas e livros importados, por ocasião das viagens de uns
poucos privilegiados ou em pequenos acervos de obras que se consti-
tuíam em São Paulo (ct. infra).
Da Alemanha, em 1928 e 1929, vieram duas mostras que cabe
assinalar: a Exposição de Arte Alemã no Brasil, reunindo obras de
espírito tradicional e de um modernismo conciliador, e Arte Decorativa
Alemã no Brasil, que difundia no meio objetos para várias aplicações
da associação "Vverkbund". com formas depuradas em cerâmica e
metal, e tapetes e almofadas com motivos abstratos.
Novas alternativas de exposições surgiam com a Primeira Expo-
sição Geral de Belas-Artes, organizada em 1922 pela Sociedade
Paulista de Belas-Artes, fundada no ano anterior, e o Salão da Prima-
vera, aberto pela primeira vez em 1923 no Rio por Manuel Santiago
(1897), Manoel Faria (1895-1980), Quirino da Silva (1902-81) e
outros pintores - e que se negava ao papel de 'sala dos recusados' da
exposição oficial. Nessas exposições, entretanto, predominavam os
acadêmicos, como de resto ocorria naqueles embriões de galerias de
arte da época. Na Associação dos Artistas Brasileiros, criada no Rio de
Janeiro em outubro de 1929 e destinada a longo curso, as portas
eram franqueadas a todos.

708 Salão da Primavera. in Revista da


Semana. Rio de Janeiro. 3 lev. 1923.
Confrontada ao Rio, a capital paulista permanecia na década de
1920 mais sensível ao processo de abertura. Entre outras coisas, pode
ser lembrado o depoimento do pintor Henrique Cavaleiro, um acadêmi-
co mais liberal, que, expondo na sua volta de Paris em ambas as cida-
des, deu-se melhor em São Paulo, "um meio mais propício, uma elite
artística mais avançada nas teorias modernas" 146.
Entre os episódios marcantes do cotidiano das letras e das artes,
na década de 1920, em São Paulo, estavam os 'salões', por outras
palavras os encontros em casas de personagens catalisadoras. Vai a
crédito de Mário de Andrade, Paulo Prado, da colecionadora Olívia
Guedes Penteado e Tarsila do Amaral, esse hábito de cenáculos
modernistas, cada qual com sua própria peculiaridade e que contribuiu
para difundir o Modernismo no Brasil147 Os endereços dos anfitriões
igualmente correspondem aos das primeiras coleções de arte moderna
do país. Um de seus locais de reunião era o circo do palhaço Piolin
(Abelardo Pinto), a que se devotavarn':". Deve-se registrar, entretanto,
que, por volta de 1916, Arinda Houston ("pessoa de idéias avança-
das", segundo Lívio Xavier). fizera de sua casa, em Niterói, um espaço
546 para músicos, artistas, poetas, jornalistas e estudantes':". O grupo se
dispersou em 1921. Em verdade, as reuniões de intelectuais e artistas
na ex-capital federal, pela década de 1920 e mais tarde, tinham lugar
em bares e cafés150. Antônio Bento registra que foi num deles, o Café
Lamas, que "no começo de 1926, Mário Pedrosa, Lívio Xavier e eu,
i mpressionados com a falta de idéias artísticas de vanguarda no Rio,
pensamos em lançar um manifesto, mais ou menos dentro do espírito
dadaísta ou surrealista - o que, aliás, acabou por não acontecer" 151.

Da pouca ressonância da arte moderna no Rio de Janeiro, aquele críti-


co deixou claro testemunhcl'". Uma busca de repercussão maior para
o significado do Modernismo motivou o jornal A Noite em seu "Mês
Modernista", entre dezembro de 1925 e janeiro de 1926, ocasião em
que depuseram vários membros do movimento.
Esses anos foram assinalados pela vinda ao Brasil de Blaise
Cendrars (1924), espírito estimulante muito ligado a Paulo Prado, Tar-
sila do Amaral e, por algum tempo, a Oswald de Andrade; de F.T.
Marinetti (1926), recebido com manifestações de desagrado no Rio e
São Paulo; de Le Corbusier (1929). que contribuirá decididamente
para a afirmação da arquitetura raciona lista entre nós, além de Benja-
min Péret. nesse mesmo ano. Em 1923 Lasar Sega II fixava-se em São
Paulo - ano também da chegada de Gregori Warchavchik, arquiteto
russo formado em Roma. Em 1927 com a casa da rua Santa Cruz
(bairro de Vila Mariana, São Paulo), obra antológica não obstante as
contradições entre o conceito e a verdade de sua realização, introduzia,
como se vê noutra parte do livro, a arquitetura funcional no Brasil pela
via do racionalismo estrito. Warchavchik lançara um 'manifesto' em
1925, defendendo os novos princípios ar quitetônicosl'" A ele entre-
tanto se antecipara Rino Levi (1901-65) que, de Roma, onde estudava,
enviara carta publicada em São Paul0154 pregando uma arquitetura de
"praticidade e economia", que também fosse adequada às condições
climáticas brasileiras. Advertia ainda sobre a necessidade de inserção
dos problemas arquitetônicos no contexto maior do planejamento
urbanístico. Segundo sua afirmação: "A estética das cidades é um
novo estudo necessário ao arquiteto e a este estudo está estritamente
conexo o estudo da viação e de todos os problemas urbanos". Rino
- -- -- -- - -- -

Levi referia-se também ao aproveitamento da "florescente vegetação"


e às "belezas naturais" do país, preparando teoricamente o campo do
paisagismo no Brasil, pela primeira vez posto em prática em 1927 por
Mina Klabin, mulher e colaboradora de Warchavchik. A década de
1920 assinalou ainda o começo das múltiplas tarefas de Flávio de Car-
valho, com seus projetos arquitetõnicos. a que não faltam a dose visio-
nária e a turbulência de um inconformismo com os padrões dominan-
tes, que os tornavam inaceitáveis. A já citada passagem de Le Corbu-
sier (1887-1968), por São Paulo e Rio, em 1929, é fato relevante a
considerar na persuasão teórica e prática por uma arquitetura de orde-
nação funcional. Os frutos começarão a vir alguns anos depois, com a
atividade de um grupo de jovens profissionais do Rio de Janeiro.

8.10 Deslocamentos dos artistas da Semana para Paris


547
Boa parte dos artistas da Semana de Arte Moderna mudava-se
pelos anos 20 para Paris à procura de sua aragem universal. Isto era
prova de que permaneciam sólidos os vínculos artísticos com a Europa
e especialmente com a França. Victor Brecheret e Vicente do Rego
Monteiro partiram em 1921; Di Cavalcanti e Anita Malfatti em 1923.
Como uma espécie de compensação, neste último ano, Lasar Segall
radicava-se definitivamente em São Paulo e, em 1924, era a vez de
Tarsila do Amaral, de formação acadêmica, regressada há pouco de
Paris, iniciar atividade conseqüente na capital paulista. Também em
1924, no Rio de Janeiro, Osvaldo Goeldi descobria sua forma essen-
cial de expressão na gravura. Acrescente-se que a partir de 1923 Joa-
quim do Rego Monteiro, retornando de Paris, onde se encontrava des-
de os anos de pós-guerra, teria aqui uma permanência até 1925,
período de uma série de obras motivadas pelo Nordeste - sempre
pouco conhecidas mas que não deixam de revelar importância para o
Modernismo brasileiro. Em 1924 ele expôs trabalhos realizados em
Paris e Nice, no Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, sem alcançar
maior repercussão. Nos anos 20, ainda no Rio, surgiria a singular per-
sonalidade de Ismael Nery.
A natural e perseverante atração exercida por Paris sobre os artis-
tas brasileiros - a exemplo óbvio do que aconteceu a seus colegas das
Américas e de outras partes do mundo - fez com que o movimento
modernista se desenvolvesse simultaneamente durante os anos 20 em
duas frentes geográficas. Entre as principais marcas parisienses deixa-
das na arte do Brasil desse decênio estão as absorções do Cubismo,
as impregnações do Art Déco e a influência por vezes decisiva de um
grande artista, como Brancusi (1876-1957) em Brecheret. Picasso em
Di Cavalcanti, Léger (1881-1955) em Tarsila, Chagall (1887) em
Ismael Nery. Não se pode esquecer também que aquela privilegiada
capital européia mostrava-se de há muito sensível às chamadas cul-
turas exóticas da África, da Polinésia etc., as quais se constituíram em
fator revigorante de sua própria arte. Esta valoração internacional de
forças nativistas contribuiu para induzir vários artistas brasileiros à pr o-
cura da expressão de substâncias nacionais, onde o exótico era um
elemento natural, como decididamente se constata na obra de Di
Cavalcanti e Tarsila do Amaral.
Nos que se deslocaram para Paris observa-se desde logo a con-
sistência adquirida por Brecheret e Vicente do Rego Monteiro. Di
Cavalcanti se deteria pouco em sua "primeira fuga européia" que toda-
via é fundamental para defini-Io. Anita, despojada da aguda visão psi-
cológica anterior, amoldava-se a uma figuração intimista e apaziguada,
sentindo a influência de Matisse (1869-1954). Em Paris estava, desde
o início da década, um outro brasileiro, Antônio Gomide (1895-1967),
depois de estudos em Genebra e no auge de sua fase cubista. E Tarsila
que, em fins de 1922, retornava ao principal centro artístico europeu
já consciente das novas dimensões abertas para a pintura mas neces-
sitada de orientação.
Os que se integraram longa e profundamente ao meio parisiense
- mais aplacado em relação aos decênios anteriores, porém agitado
pelo movimento surrealista fundado em 1924 - foram Brecheret e
Vicente do Rego Monteiro. Entre os dois houve certamente íreqüen-
548 tação durável. Gomide manteve relacionamento com ambos. Anita, em
longo estágio parisiense (1923-28). conviveu com Brecheret. Di Cava 1-
canti, Gomide e Celso Antônio, este aluno de Bourdelle entre 1924 e
1926, a quem também prestava assistência. Outros contatos, que
incluem Tarsila, a partir de 1923, verificaram-se na pequena e instável
cornunidadel'".
A aproximação estendia-se também aos músicos Villa-Lobos e
Souza Lima e a escritores brasileiros amigos vivendo em Paris ou de
passagem. Gilberto Freyre visitava Vicente do Rego Monteiro "numas
águas-furtadas da rue Gros" e referia-se a ele em artigo de 1923, dan-
do conta dos retratos que exporia nesse ano no Salon des Indépen-
dants "duma fina pureza de linhas" e da temática indígena que desen-
volve, notando a propriedade do seu ternperarnentol'". No mesmo ano,
Sérgio Milliet comentava Tarsila "que hoje dispõe de seguríssima téc-
nica permitindo-lhe realizar as mais ousadas concepções" e Vicente do
Rego Monteiro, "outro brasileiro que tem realizado grandes progres-
sos" 157. Ainda em 1923, Oswald de Andrade pronunciava na Sorbon-
ne a conferência "L'effort intellectuel du Brésil conternporain". em que,
exaltando as forças étnicas primitivas do país (nosses energias pan-
teístas"). enfatizava a convergência de manifestações do pensamento,
literatura e artes na busca "da pura verdade nacional". Movido por
suas convicções e otimismo, citava na ocasião vários e discrepantes
nomes de artistas modernistas e mesmo de não-modernistas que
"lançavam as bases de uma pintura realmente brasileira e atual" 158.

A obra de Brecheret. que amadurecia na época anterior à Sema-


na, ganhou traços definidos desde o começo do alongado período pari-
siense (1921-36). Sua "Mise au Tornbeau". premiada no Salon d'Au-
tomne de 1923 - hoje no Cemitério da Consolação em São Paulo (tú-
mulo da família Guedes Penteado) - demonstra o rigor de sua apri-
moração formal. A peça amoldava-se com perfeição ao quadro arquite-
tônico. Superando a exigüidade do bloco de granito (25cm na parte
mais profunda; a largura da base é de 37cm)159, o artista trouxe à
composição um arranjo rítmico de figuras interacionadas em suave
ascensão a partir do corpo estirado de Cristo. Há, nos planos geométri-
cos simplificados, acorde seguro de linhas curvas e retas. A ênfase
colocada no estilo como força imanente da peça, onde há evidentes
vestígios morfológicos arcaicos e acentos da sensualidade e das
hipertrofias figurais do Art Déco, reduz de muito as implicações trági-
cas da cena. A escultura é dos pontos mais altos dessa fase assinalada
por outros exemplos de temática religiosa: a "Madoria" de c.1924, em
bronze polido, e a ulterior "Fuga para o Egito", na mesma matéria.
Mas interessou-o muito o corpo feminino que trabalhou através de grá-
ceis e estirados portes, como vemos, em contrastes de tamanho, na
"Portadora de Perfume", em gesso dourado, de 1924, pertencente à
Pinacoteca do Estado de São Paulo e na pequena "Dançarina", em
mármore polido, de 1925. Um crítico de Paris observava com acerto,
em 1924, a construção da forma "en fuseau" na primeira dessas
obras, também presente na segunda, correspondendo a uma con-
cepção extremamente sofisticada que então se difundia.

711

549

709

o artista sofreu particular e determinante contágio de Brancusi,


710 sem que se restringisse sua visual idade ilustrativa da vida diante dos
arquétipos estruturais do mestre romeno. De leve assimilou elementos
709 Victor Brecheret - "Portadora de cubistas, como é evidente em suas versões da "Tocadora de Guitarra",
Perfume",s/data, gesso dourado, 341 x 102,
col. Pinacoteca do Estado, São Paulo. em bronze e mármore polido. Brecheret. que se aplicava com grande
710 Victor Brecheret - "Tocadora de esmero ao desenho, eliminava, nessas e noutras peças, as incidências
Guitarra",c. 1925, bronze, 86 x 27, col.
Pinacotecado Estado, São Paulo. psicológicas do tempo anterior a 1922, concentrando-se nos proble-
711 Victor 8recheret - "Sepultamento" mas formais influenciados pela voga do Art Déco. É a etapa áurea da
(túmuloda família Penteado), 1923, granito,
213 x 388 x 14, Cemitério da Consolação, carreira deste escultor que atingiu nível internacional. Foi participante
SãoPaulo.
freqüente de vários salões de Paris, cujos coerentes resultados veio
mostrar em São Paulo e Rio, algumas vezes antes da volta definitiva
em 1936. A essa altura, novos desdobramentos já se faziam evidentes
em sua obra.
Vicente do Rego Monteiro inaugurava, a exemplo de Brecheret.
um momento decisivo de sua arte, que perdurou até 1929. Ele se rela-
cionou ao grupo da Galeria l'Effort Moderne, de Léonce Rosenberg,
onde expunham Picasso, Braque (1882-1962), Léger, Gris. Gleizes
(1881-1953) e Metzinger (1883-1957) e compareceu aos melhores
salões parisienses da época. Os antecedentes escultóricos de Rego
Monteiro explicam o predomínio da linha sobre a cor e a desenvoltura
dos volumes em sua pintura. Acrescenta-se uma tendência fundamen-
tal para a composição, de amplitude mural e decorativa. A temática
nativista que praticava perdurou nele em quadros como "Atirador de
Arco", de 1925, e nas ilustrações dos livros Légendes, croyances et
ta/ismans des indiens de /Amazonie (1923), Oue/ques visages de Paris
(1925) e ainda nos figurinos e cenografias preparados para o espetá-
culo de dança Légendes indiennes de /Amazonie, realizado a partir de
1923.
Nesses anos, o artista pernambucano adotou variada iconografia:
motivos religiosos, paisagem, índio, nu, figuração de operários, temas
esportivos, retrato. Suas principais fontes de estímulo formal encontra-
550 vam-se tanto no presente - Art Déco, Cubismo e particularmente Lé-
ger - como no passado - cerâmica maraJoara, escultura egípcia e
assíria, tradição do afresco. Ele convergia para uma pintura construtiva
de tons baixos (ocres e terras). As figuras são agigantadas, sintéticas e
rígidas e a composição esquematizada pelo apuro geométrico. A "Fla-
qelacâo". em coleção particular no exterior, "A Caçada", do Musée
National dArt Moderne, de Paris, ambas de 1923, "Os Calceteiros".
de 1924, pertencente ao Palais des Conqrés de Liege, a "Adoração
dos Reis Magos", de 1925, da coleção Gilberto Chateaubriand e "A
Mulher e o Galgo" (1925), de coleção particular parisiense, acham-se
entre os óleos de maior relevância desse momento e são demonstrati-
vos da originalidade de um talento de muralista que as circunstâncias
confinaram ao quadro de cavalete. Sob tal prisma, Monteiro antecedeu
Di Cavalcanti e Portinari (1903-62). A partir de 1925, ele amainou os
ângulos geométricos duros e contraídos, dando maior flexibilidade à
linha, como em "A Mulher e a Bola Vermelha", de 1927, do Palácio
de Verão de Campos do Jordão, e "Batismo de Cristo", de 1928, para
no final da década (1929) mostrar-se algo permeável ao Surrealismo.
Exemplos deste approach são a "Moderna Degolação de São João
Batista" e "Diana". Todavia, em suas mudanças compassadas, não
sofreu alteração a imanência conceptual das imagens. Homem que se
daria a múltiplas atividades, entre as quais sobressaem as do âmbito
da poesia - seu "violino dlnqres" e a edição de poemas em sua Pres-
se à Bras - Rego Monteiro dividirá o tempo futuro entre o Brasil e a
França, com fases diversificadas em pintura, sem reencontrar a consis-
tência revelada nos anos 20160.
Notam-se certas afinidades estilísticas entre Victor Brecheret e
Vicente do Rego Monteiro, no decênio, bastando comparar-se algumas
figuras femininas de ambos, como por exemplo a citada "Portadora de
Perfume", do primeiro e "A Mulher e a Bola Vermelha", do segundo. A
"Fuga para o Egito", esculpida por um e pintada por outro, tem um
espírito comum. Obviamente a linha em Brecheret é ágil e sensual,
enquanto em Rego Monteiro o desenho é mais racional. Mas os pon-
tos de contato existem. Havia, é claro, situações similares na Paris da
época, sendo, porém, de se tomar em consideração a convivência que
713

551

714

712 Vicente do Rego Monteiro -


ilustração para capa de Légendes, croyances
er ralismans des indiens de IAmazonie,
Paris, Tolmer, 1923.
713 Vicente do Rego Monteiro -
"Flaqelação". 1923, 61eo s/tela. 80 x 90, col.
Sra. Fernand Rousseau, Paris.
714 Vicente do Rego Monteiro -
"Adoração dos Reis Magos", 1925, óteo '
s/tela. 81 x 101, col. Gilberto Chateaubriand,
Rio de Janeiro.
- - - - - -- --+ -- - - -~ ~ - , - ~ ,

552

715

cultivaram. Por outro lado, Antônio Gomide compartilha dessas analo-


gias (ct. "Oração na Igreja", de c.1925)
Do grupo modernista ativo em Paris, Anita Malfatti renunciava ao
Expressionismo, depois de tentar reativá-Io antes de sua partida do
Brasil, como é evidente nos dois retratos de Mário de Andrade, hoje no
Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Ela se aplicou em variado
repertório temático: cenas de interiores, nus, paisagens, naturezas--
mortas e mulheres junto ao balcão da janela - e os realiza com méto-
do e correção. Não raro a pintora absorve a contemplatividade e o
espírito decorativo do universo de Matisse, sendo, porém, mais narrati-
va e apegada aos aspectos sensoriais dos seres e objetos (nas vistas
de interiores). As mulheres solitárias junto ao balcão prenunciam o
desnorteante 'primitivisrno' de anos posteriores?". Uma dessas pin-
turas espirituosas e de bom nível, "Mulher do Pará", encaixa-se entre
seus esparsos approaches de temática nativista.
717

715 Vicente do Rego Monteiro - "A Di Cavalcanti deixou testemunho de sua agitada permanência em
Mulher e o Galgo", 1925, 61eo s/tela. Paris, entre 1923 e 1925, quando a pintura lhe ocupa só parte do
145 x 80, col. Pierre Mathias, Paris.
716 Vicente do Rego Monteiro - "A ternpol'". Ao escrever as memórias, acentua que "dois acontecimentos
Mulher e a Bola Vermelha", 1927, 61eo marcaram a minha vida: conheci Picasse e assisti às comemorações
s/tela. 130 x 90, cot. Palácio de Verão do
Governo do Estado de São Paulo, Campos fúnebres da morte de l.enine" (fevereiro de 1924)163 O "Pierrot" dessa
do Jordão.
época possui acentos picassianos anteriores ao Cubisrno. mas toda a
717 Antônio Gomide - "Oração na
lqreja", c. 1925, 61eo s/tela. 77 x 49.4, cot. atmosfera artística parisiense. especialmente o próprio Cubismo, agiu
João Carlos Leite Bastos, São Paulo.
em seu amadurecimento. Foi ainda a partir de Paris que se tornou
para ele axiomática a escolha de modelos figurais que implicassem a
constante de uma insígnia social e nacional. Como Rivera no México,
Di Cavalcanti aferrar-se-ia a uma compreensão telúrica do Brasil, atra-
vés de uma temática popular que todavia se enobrece na suntuosa
concepção decorativa de sua visão.
- -- - -- -

- -- - - --- --- - -

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553

718 Di Cavalcanti - "Cinco Moças de


Guaratinquetá". 1930, 61eo s/tela. 92 x 70,
cal. MASP.
- -- - - -- - - - , -,

A tela melhor sucedida do pintor nos anos 20 - "Cinco Moças de


Guaratinguetá" .( 1926), do MASP, uma das principais de toda a sua
produção - constitui síntese da linguagem então delineada na forma
ampla e arredondada e na cor tropical. A presença das mulheres e a
disposição com positiva não deixam de recordar superficialmente
aspectos de "Les Demoiselles dAviqnon" (1907), mas Di Cavalcanti
reduziu a presença ostensiva de significantes cubistas. Ele, aliás, tirou
todo o partido dessa tendência, na severidade de suas regras de pro-
porção e no jogo eurrítmico de sua visual idade. Nas figuras ressalta-se
a tipologia da negra e, especialmente, da mulata, que constituirá o sen-
sual mundo feminino do pintor, refletindo essencialmente a ambiência
carioca.
No regresso de Paris, em 1925 - ele expôs no Rio "quadros
cubistas e expressionistas feitos na Europa" 164. Surgiram aí seus
temas sociais, como a favela e o samba (decoração do Teatro João
Caetano), que situam de forma expressionista a sua a~aixonada aproxi-
mação da realidade brasileira. .

554

8.11 Os primeiros anos de Segall no Brasil


Em São Paulo, bastante esvaziado com a partida dos artistas
modernistas, havia a novidade peculiaríssima da chegada de Segall em
1923 e que, já em 1924, montava suas primeiras exposições. A vinda
era definitiva. Segall, ligado ao movimento expressionista alemão pou-
co a ntes da pri meira vi agem ao Brasi I (1 91 3), fixara-se em D resden na
volta, onde seria um dos fundadores da Sezessjon local, em 1919. No
longo período que se encerra em 1922, quando deixou aquela cidade
por Berlim, o artista, que anteriormente não se identificara ao irides-
cente Impressionismo e que se dirigira espontaneamente ao encontro
da estética expressionista, realizou parte importante de sua pintura.
Usufruíra da atmosfera de Dresden, onde o grupo Die Brucke havia
cravado durável mensagem de arte, dimensionada pelo entendimento
dramático do ser humano. Segall, que trazia em si a experiência do
metonímico sistema cubista. absorvido pela emocional idade expressio-
nista, descrevia uma órbita idiomática própria, na segunda década,
com suas composições de figuras agoniadas, semeadas num espaço
de fortes tons contrastantes e de onde emergem em recortes de ten-
sas arestas oblíquas. Mas de "Morte", de 1917, e "Eternos Caminhan-
719 Lasar Sega 11- "Interior de
tes", de 1918, à "Viúva com Filho", de 1919, e "Interior de Indigen- Indigentes", 1920, 61eo s/tela, 85 x 40, cal.
tes", de 1920, este do MASP, todos óleos, deu-se uma evolução for- MASP.

mal que abandona as fragmentações e angulosidades cubistas à


outrance por uma construção mais tranqüila e de cores menos exalta-
das. Segall avizinhava-se dos pintores da Die Neue Sachlichkeit (a
Nova Objetividade). esta disposição final do Expre,ssionismo acerada-
mente envolta pelas preocupações sociais, como aparece na última
dessas obras e em "Ailing Farnilv". de 1920.
-- - -- - - - - - ~ - - - --

Como afirma Will Grohmann, "Segall, não obstante sua ligação


ao primitivo e ao povo, é um cético" 165. Ele manteria para sempre no
Brasil a experiência adquirida na Alemanha, inseparável dos fundamen-
tos espirituais de sua origem judaica. Expondo no próprio atelier no iní-
cio de 1924 e a seguir na rua Álvares Penteado nO 24, o artista deu a
conhecer ao meio paulistano grande parte de sua evolução em pintura,
incluindo desenhos e litografias. Neste último aspecto apresentava os
álbuns Oie Sanfte (baseado em Dostoievskil. Erinnerung an Vi/na e
Bubu. Mário de Andrade logo comentou a força visual das obras: "Não
é a inteligência, a compreensão refletida dessas pinturas que nos leva
a pensar nos dramas alheios da pobreza, da fome e da dor. É a sen-
sação visual que nos obriga a sentir tanta fatalidade. Não provém
duma colaboração forçada e posterior da inteligência, antes, puramen-
te sensualista, deflagrada pelas formas, linhas, cores e utilização racio-
nal das duas dimensões da superfície. É admirável. E é doloroso de
sentir. Raramente se sentirá realizada com tanta eficácia, como nestas
obras de Lasar Segall, a expressão da miséria miserável" 166.
Outras mostras ele faria na década de 1920, em São Paulo
(1927) e Rio (1928), em seguida a exposições em Berlim, Dresden e 555
Stuttgart (1 926). Trabalhos destacados, que procuram identificar-se
720
com o ambiente brasileiro desses primeiros anos de Segall aqui, são
"Menino com Lagartixa" {1924l. "Paisagem Brasileira" {1925l. do
Museu Lasar Segall (São Paulo) e "Bananal" (1927), da Pinacoteca do
Estado de São Paulo. Os vibrantes retratos de Mário de Andrade do
IEB-USP, Guilherme de Almeida e Victor Brecheret são dessa época
(1927). Nas cores surgiram gamas suaves de reflexos locais, manten-

721

720 Lasar Segall - "Paisagem


Brasileira", 1925, 61eo s/tela. 64 x 54, col.
Museu Lasar Segall, São Paulo.
721 Lasar Segall - "Retrato de Mário de
Andrade". 1927, 61eo e/tela. 73 x 60, col.
IEB-USP.
722 Lasar Segall - estudo para
"Mangue", 1925, lápis e bico-de-pena,
24 x 18,5, col. Museu Lasar Segall, São
Paulo.
723 Lasar Segall - "Bananal", 1927,
722
61eo s/tela. 87 x 127, col. Pinacoteca do
Estado, São Paulo.
do-se a percepção melancólica inerente ao pintor. O interesse pela
favela, pela paisagem, pela figura do negro, por temas específicos,
como na série do Mangue do fim da década - cenas da prostituição
no Rio de Janeiro retomadas mais tarde - é parte da produção dessa
época que inclui a decoração (destruída) do pavilhão que Olívia Gue-
des Penteado reservara em sua casa para abrigar uma coleção de
obras modernas. Segall pusera aqui de lado o impulso trágico do
Expressionismo, enveredando para uma elaborada composição geo-
métrica de brandos agenciamentos tonais. Mais tarde, nas decorações
da Sociedade Pró Arte Moderna (SPAM), ele se abandonaria a uma
alegre percepção passageira. Seu universo era, porém, visceralmente
outro.
Uma longa trajetória iniciava-se no Brasil, em 1923-24, para este
artista de existência reclusa que, a seu prejuízo, renunciava à eferves-
cência cultural européia em troca de um ambiente precário mas que
lhe oferecia a paz. No país adotivo o reconheceremos sempre na
liberação de uma grande energia interior, comovido pela condição do
homem em sua solidão ou fatalmente preso às contradições e conflitos
556 da sociedade. Inadaptável ao proselitismo, a linguagem de Segall só
quase pela via indireta influiria no ambiente. Sobretudo no "aspecto
ético" e no "exemplo de seriedade" 167 sua presença apareceu como
das mais ponderáveis no meio, devendo-se ver nos recursos criadores
de seu discurso de valor internacional uma contribuição inseparável da
história maior do Modernismo no Brasil.

8.12 Tarsila do Amara!: do pau-brasil à antropofagia


Outros brasileiros, além dos que haviam tomado parte no movi-
mento de 1922, como vimos, trabalhavam ou realizavam estudos em
Paris. Tarsila do Amaral, que se iniciara em escultura com Zadig e
Mantovani e em pintura com Pedro Alexandrino e Elpons, em São
Paulo, antes de 1920, adaptando-se ao seu academismo, estivera na
capital francesa em 1920-22, freqüentando a Académie Julian e a
escola de Emile Renard, com proveitos técnicos mas informando-se
imprecisamente das tendências recentes. Estes últimos contatos não
agiram prontamente no espírito da artista (ct. "Chapéu Azul", de
1922). Há muito ligada a Anita Malfatti, ela também se aproximaria
dos modernistas Oswald, Mário €i Menotti, de onde resultou o chama-
do Grupo dos Cinco. Em 1922, pintando os retratos dos dois Andrade,
com aplicação de pinceladas fragmentadas e outros procedimentos tí-
picos da pintura parisiense, desprendia-se do tradicionalismo anterior.
Quando novamente em Paris no fim desse ano e com a experiên-
cia do breve mas estimulante convívio com os modernistas paulista-
nos, Tarsila procurou fortalecer os princípios estéticos que começara a
assimilar, aproximando-se de alguns pintores cubistas. Em 1923 tor-
nou-se sucessivamente discípula de André Lhote (1885-1962) e Albert
Gleizes. Se deste último recebeu sólida informação teórica, seria Léger,
a quem se ligara por amizade, o seu mestre por excelência. Entre as
~ - - -- - -- ~ ,

- - - - - - --- - - ----~-- - - - -

pinturas feitas nesse ano destacam-se "Caipirinha" e "A Negra" em


que conecta os elementos derivados da morfologia de Léger e a
memorização de um horizonte espiritual, captado na vivência do mun-
do rural paulista. Os novos conhecimentos da arte cruzavam-se a con-
teúdos de forte imanência nessa figura que simboliza em volumes
amplos e deformados uma imagem primitiva preservada pelo incons-
ciente. "A Negra", pertencente do acervo do MAC-USP, é antecedente
de fase posterior intitulada "antropofápica" e já indício do esforço da
artista em juntar influências cosmopolitas e "relacionamento ecológico
direto" 168.
Em fins de 1923, deixando Paris, onde, juntamente com Oswald
de Andrade, estabelecera múltiplos contatos com o mundo artístico e
724 Tarsila do Amaral - "A Negra", literário - aqui especialmente com o poeta Blaise Cendrars - Tarsila,
1923, 61eo s/tela. 100 x 80, cal. MAC-USP.
725 Tarsila do Amaral - "E.FCB.",
em vaivém contínuo entre o Brasil e a Europa, pintou em São Paulo
1924, 61eo s/tela. 142 x 126,8, cal. desde o início de 1924 os quadros da série posteriormente batizada
MAC-USP.
"pau-brasil" O nome derivava do manifesto lançado por Oswald de
Andrade naquele ano. Tais obras, lentamente trabalhadas a'codificadas
com rigor, exprimem uma linguagem arquitetõnica de pureza quase
ingênua que também caracteriza os futuros períodos da pintora. O que 557
vemos nela são valores plásticos em que se mesclam elementos de
observação e de imaginação pura. A autora possui um modelo constru-
tivo próprio contendo o embasamento cubista submetido subliminar-
mente a uma forma feérica de contemplação do mundo. De aparência
simples, as representações são entretanto de exigente refinamento.
Tarsila, como outros modernistas - e perto dela Oswald de
Andrade -, foi movida por Blaise Cendrars, naquele ano em visita ao
Brasil, na direção da descoberta de arquétipos culturais e artísticos do
país. Em depoimento de fins dos anos 30, ela refere-se à viagem que
fez a várias cidades mineiras na Semana Santa de 1924, ao lado de
Cendrars, Oswald e Mário de Andrade. "Encontrei em Minas as cores
que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e cai-
piras. Segui o ramerrão do gosto apurado, .. Mas depois vinguei-me
da opressão, passando-as para minhas telas: azul puríssimo, rosa
violáceo, amarelo vivo, verde cantante, tudo em gradações mais ou
724
menos fortes, conforme a mistura de branco. Pintura limpa, sobretudo,
sem medo de cânones convencionais" 169. Tais cores, de raízes
populares e a concepção nítida da forma são as constantes, entre
outros, dos quadros de 1924, "Morro da Favela", "E.F.C.B.", "São
Paulo", "Anjos", "A Cuca". este de 1924-25, "A Gare" e "O
Mamoeiro", de 1925, sobrelevando-se o segundo deles, pertencente
ao MAC-USP, pelo contraste e dinâmica dos signos e a boa organici-
dade da composição, acordada à topologia da tela. Sérgio Milliet
referiu-se à ternura aplicada pela pintora "nas composições de peque-
nas aldeias atingidas pelo progresso, espantadas com o trem e o auto-
móvel, de feiras abarrotadas de frutas tropicais, de casas de colonos
nas fazendas de café, de pretos e caboclos de mãos postas diante do
santo protetor. Tarsila. nessas telas, reflete bem o interior do Brasil,
principalmente da zona central que abrange São Paulo e Minas" 170.
Emotivamente ligada ao contexto nativo, a artista fundamentava sua
narrativa em intrinsecas relações plásticas. A este tipo de visualidade

72&
faz pendant a pregação de Oswald no Manifesto pau-brasi/ por uma
linguagem "Natural e neolóqica". pelo "trabalho contra o detalhe
naturalista - pela síntese; contra a morbidez romântica - pelo
- -- - - ~ - - , - '" -~~

-~ -

558 726 Tarsila do Amaral - "São Paulo",


1924, óleo s/tela. 67 x 80, col. Pinacoteca
do Estado, São Paulo.
727 Tarsila do Amaral - "Abaporu".
1928, óleo s/tela. 85 x 37, col. Érico Stickel,
São Paulo.
equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela
invenção e pela surpresa". Esta fase da obra de Tarsila será mostrada
em 1926 na Galeria Percier, de Paris, despertando a atenção de
alguns críticos, sobretudo pelo exótico e a naiveté da linguagem. Ela
tornaria a expor em 1928, na mesma galeria, quando já envolvida na
etapa seguinte, denominada "antropofáqica". Só depois disto, em
1929, exibiria seus quadros no Brasil.
Tão ou mais importante que o seu ciclo "pau-brasil" foi a fase
"antropofáqica" e sua surreal presença de seres florestais disformes e
cenários tropicais encantados. A fase começou, como diz a própria pin-
tora, "numa tela minha que se chamou "abaporu". antropófago: uma
figura solitária monstruosa, pés imensos, sentada numa planície verde,
o braço dobrado repousando num joelho, a mão sustentando o peso--
pena da cabecinha minúscula" 17'. O novo item representacional de
Tarsila, em que as formas se agigantam, denotando uma forte insti-
gação surrealista, coloca-se numa atmosfera de fábula. Havia indícios
desta orientação na pré-antropofágica "A Negra", de 1923, e na
própria aura metafísica de pau-brasil.
Uma vez mais. agora, em fins da década de 1920, com a pintura 559
antropofágica de Tarsila, as artes visuais contribuíam para impulsionar l>
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a literatura. Foi do impacto de "Abaporu" que Oswald de Andrade e o ~
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poeta Raul Bopp partiriam para criar um novo movimento. De fato, Z
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seria logo lançada a Revista de Antropofagia, de início dirigida por ~


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Antônio Alcântara Machado (maio de 1928-agosto de 1929), conten- l>.
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do em seu primeiro número o manifesto de Osv'vald na defesa do pri-
mitivismo nativo e pregando uma independência cultural para o país,
com o retorno à terra, radicalizando os conceitos do Manifesto da poe-
sia pau-brasil. Tarsi!a. entretanto, manter-se-ia "alheada ao manifesto"
e às "desavenças, dissidências ocorridas sobretudo na segunda fase
da revista, em 1929, (que) parecem ocorrer em mundo outro que o da
pintora, inspiradora mas não participante do tom do b/ague e/ou pro-
vocação que assumiam os textos publicados", como diz sua biógrafa
Aracy Arnar al'?".
Na derradeira edição, a revista, como que incorporando Tarsila ao
movimento, dava grande destaque à sua exposição no Palace Hotel do
Rio, que servia para violento ataque ao establishment artístico carioca:
"A sua exposição é à nossa primeira grande batalha. É a nossa pri-
meira grande ofensiva. Graças a Freud, porém, temos certeza de que,
ainda desta vez, como sempre sairemos vencedores. Os quadros que
Tarsila vai expor - alguns de suas fases anteriores e a maior parte
puramente antropofágicos - são tão gostosos, tão repousantes, tão
nossos, que eles, sozinhos, nos vingam da Escola de Belas Artes e da
sua horrível Pinacoteca( .. .)" 173.
A mostra alcançou repercussão na capital federal e o mesmo
aconteceu ao ser apresentada na capital bandeirante, ainda em 1929.
Mas, como diz Sérgio Milliet. a sua "pintura de tons puros e crus, cha-
pados. sem volume ( ... ) era por certo uma heresia chocante e em
São Paulo enfrentava os tabus paulistas" 174. Os anos de 1928-29
ficaram assinalados na carreira da artista como dos mais fecundos na
contribuição a uma plástica que possui semelhanças espirituais com a
do Douanier Rousseau (1844-1910) e que se aproxima, no Brasil, à de
Alberto da Veiga Guignard (1896-1962).
- - --- ~-- - - --- - -- - ---, ~ - - --

8.13 Outros artistas de experiência européia

Algumas alusões já foram aqui feitas a Gomide que, a exemplo de


Tarsila. é originário do interior de São Paulo. Antes de fixar-se em
Paris, em 1920, ele fora aluno do expressionista suíço Ferdinand
Hodler, em Genebra. Nesta cidade formara-se uma comunidade de
brasileiros em temporada de estudo, composta de Sérgio Milliet. 728 John Graz e Regina Gomide Graz -
"Diana Caçadora", década de 1920,
Rubens Borba de Morais - depois relacionados ao primeiro Modernis- tapeçaria, 79,6 x 150, col. John Graz, São
mo - o futuro cineasta Alberto Cavalcanti, o próprio Gomide, sua irmã Paulo.
729 Antônio Gomide - "Retrato de Vera
Regina, que no Brasil se dedicaria às artes decorativas, a eles se jun- Azevedo", 1930, 61eo s/tela. 123,6 x 58,3,
tando o artista suíço John Graz. futuro expositor da Semana de 1922, col. Gerard Loeb, São Paulo.
730 Antônio Gomide - "Composição
como se viu. Graz nos anos 20 e seguintes empregaria grande parte Cubista". 1932, guache, 24 x 32, col.
do seu tempo na ambientação de interiores de residências em São Gilberto Chateaubriand, Rio de Janeiro.

Paulo, desenhando móveis e outros objetos - tapetes, colchas, aba- 729


jures, almofadas etc. - de um gosto igualmente ert-déco. inovador no
ambiente'?".
560

728

Antônio Gomide pesquisara formas estilizadas, utilizando a técni-


ca da aquarela. Ao transferir-se para Paris apareceram as suas compo-
sições cubistas, de invenção lírica e ordenação exigente. Duas telas em
cores ásperas do MAC-USP, de 1923, testemunham sua adesão con-
victa a essa tendência estética, que todavia em breve se mescla a
aportes formais próprios da década de 1920 e evidentes também em
outros brasileiros ligados à Escola de Paris. Em obras posteriores, fei-
tas no Brasil, como o "Retrato de Vera Azevedo", o Cubismo reservava-
-se essencialmente à disciplina do arranjo dos planos. E ele surgiria
enfático no guache da coleção de Gilberto Chateaubriand (1932), que
apresenta confluência de signos pictóricos, tipográficos e musicais,
730
dominados por um mostrador de relógio.
O pintor brasileiro exporia nos principais salões parisienses, tra-
vando conhecimento com Picasse. Braque, Picabia (1878-1958),
Severini (1883-1966). Lhote e outros artistas. Ao mesmo tempo culti-
vou a amizade de Brecheret. vizinho de atelier em Montparnasse. Em
pintura já citada, a "Oração na Igreja", ou em "Descida da Cruz", de
1926, registra-se uma similaridade de seu estilo com a geometrização
fusiforme do escultor modernista. Na França sua atividade estendeu-se
ao desenho para tecidos e à pintura mural, técnica que desenvolveu a
partir do aprendizado com Marcel-Lenoir (1872-1931) em 1924 e que
praticaria com freqüência, a exemplo do vitral, ao regressar ao Brasil.
Aqui ele faria uma exposição em 1927, quando de rápida passagem.
--- ~--~~--~- -

Somente em 1929, depois de 16 anos quase todos passados no


exterior (desde 1913), Gomide retornou definitivamente ao meio de
origem, onde sua linguagem será crescente mente alterada pelos estí-
mulos locais, sobretudo pelos de conteúdo popular"?".
A raridade e a dispersão das obras de Joaquim do Rego Monteiro
têm dificultado o seu conhecimento. Nenhuma pesquisa aprofundada
existe sobre este pintor pernambucano prematuramente falecido. Dos
textos consagrados a ele, o mais acurado e abrangente nos parece ser
o de Géo-Charles publicado na revista Renovação há quarenta anos'?".
Como vimos atrás, Joaquim estivera em Paris depois da guerra e entre
1923-25 trabalhara e expusera no Brasil para novamente voltar à
França. Valendo-se da experiência parisiense, ele colhera aqui com
registros gráficos incisivos e a utilização de cores que vibram na obs-
curidade, a natureza e o homem nordestinos. Igrejas, mocambos, pes-
cadores inserem-se numa sumária paisagem tropical de quase-sonho.
De regresso à França, em 1925, retomou motivos brasileiros, mas
doravante serão as cidades de Paris e Nice os focos ternáticos impor-
0-

tantes. A forma torna-se, por um momento, mais realista em relação à


..~\ fase anterior. A partir de 1927, ano em que fez exposição na Galeria 561
". :i'~.f Gonnet e participou do Salon de Surindépendants, é que provavelmen-
-vi.", ". ~
( "'~', 1:. te teve começo a sua pintura de teor surreal-abstrato. Géo-Charles
731 denominava "América do Sul" uma tela em que "há o céu, as estrelas,
o Atlântico Sul para o qual se dirige um cavalo preto" 178. Joaquim,
propenso à pintura de forte visão introspectiva, em etapas precedentes,
envolver-se-ia completamente num fantasioso universo de descobertas
i manentes sem perder a antiga identificação gráfica e plástica. Deve-
mos vê-Io como um dos primeiros artistas brasileiros atraídos pelas
formas abstratas.
Celso Antônio levara para Paris, em meados dos anos 20, o
aprendizado conservador colhido na ENBA e junto ao atelier de Rodol-
fo Bernardelli. Um elogio bastante citado, que recebeu de seu novo
mestre, o já sexagenário Antoine Bourdelle, é o de ser possuidor de "u-
ma sabedoria rara de escultor" 179. A escultura encontrara novas vias,
desde a segunda década do século, mas o maranhense satisfazia-se
com o ensino mais tradicional do estatuário francês. Em sua estada na
Europa (1924-26), Celso Antônio teve aproximações com alguns
membros do primeiro Modernismo brasileiro, como Di Cavalcanti, Ani-
ta Malfatti e Brecheret Fixou-se depois em São Paulo onde lhe con-
fiaram várias encomendas.
732
Coube-lhe em 1927 realizar o Monumento Comemorativo do II
731 Joaquim do Rego Monteiro -
"Ascensão", década de 1920, in revista ' Centenário do Café no Brasil, erigido em Campinas. Relevos em bronze
Renovação, Recife, abr. 1940, p. 2.
de um cafeeiro adulto e de figuras representando o operário rural
732 Celso Antônio - Túmulo de Lídia
Piza de Rangel Moreira, 1927, granito negro, a operária branca (colona italiana) e o estivador, foram apostos
polido, 190 x 90 x 60, Cemitério da
Consolação, São Paulo.
a um bloco retangular em granito. As figuras são de um modelado
severo e conciso, integrando-se à austeridade do conjunto. De carac-
terísticas aproximadas é o monumento funerário do Cemitério da Con-
solação, consagrado em 1928 ao presidente Carlos de Campos. Aqui
foram interpenetrados três retângulos em pedra, aparecendo em cada
extremidade uma figura alegórica em bronze (a "Pátria" e a "Repúbli-
ca"). de grande rigor geométrico e serenidade facial e de gestos. No
ano seguinte, Celso Antônio esculpiu em granito uma figura feminina
para o túmulo de Lídia Piza de Rangel Moreira (Cemitério da Con-
solação). A nova obra obedecia aos habituais critérios formais econô-
micos. Mas, na ronde bosse, pôde ele desenvolver todas as suas apti-
dões construtivas na definição da figura, de grande contenção psicoló-
gica, representada com o drapeado colante. O volume é compacto,
porém enriquece-se de registros nuançados, revelando sentido rítmico
na fluidez das linhas curvas.
Embora as incidências plásticas de Bourdelle (ou generalizada-
mente da estatuária antiga, como a egípcia), Celso Antônio chegava a
parâmetros modernos pela observância do rigor geométrico dos volu-
mes. Sua obra despertaria o interesse sem dúvida sincero de Le Corbu-
sier, quando da passagem do arquiteto pela capital paulista, em
novembro de 1929. Em março-abril de 1930, ele exporia ao lado dos
modernistas na casa de Warchavchik, no Pacaembu, mas sua carreira
decorrerá a seguir no Rio, inclinando-se por temas de conteúdo nacio-
na1180.

562 8.14 Goeldi, Nery e outros artistas ativos no Rio

Embora as constantes ausências de seus membros o movimento


artístico modernista guardava, na sua cidade de origem, uma situação
de liderança nacional. No Rio, afora Di Cavalcanti que, no retorno da
Europa, em 1925, pouco ali se detinha, há a registrar, sobretudo no
terceiro decênio, a atividade do gravador e desenhista Osvaldo Goeldi.
Osvaldo Goeldi, natural do Rio, crescido até os seis anos em
Belém do Pará e educado na Suíça, tornou-se, como vimos, o primeiro
gravador moderno do país, fecundando um campo da linguagem plás-
tica não só de poucos adeptos no Brasil como também esteticamente
descompassado, a exemplo do que mostra a obra do já citado Carlos
Oswald, todavia preceptor nos domínios técnicos de futuros e destaca-
dos gravadores nacionais. Após expor desenhos no Rio, em 1921,
Goeldi começaria a gravar em 1924, na senda de uma visão expressio-
nista que tirava proveito de seu mestre ou guia espiritual Alfred Kubin
(1877 -1960) e ainda de Edvard Munch. A gravura em madeira de
Goeldi, por muitos anos (até 1937) concentrada no preto e branco,
transfunde na realidade do espaço objetivo uma situação visionária. As
representações de inquietantes habitações e ruas ermas, de solitárias
silhuetas humanas ou de lúgubres animais, feitas com um grafismo
conciso e envoltas em dramáticos efeitos de luz e sombra, ultrapassam
as conotações narrativas imediatas e os magníficos referenciais
ambientais do velho Rio, para converter-se numa transcendente reali-
dade.
José Maria dos Reis Júnior (1903), o pintor seu amigo e estudio-
so, afirma que há em Goeldi uma "afinidade com a noite", que "coisas
e seres" tornam-se nele "fantasrnais" 181. Uma inelutável sensação de
angústia ou desespero afeta sem cessar a sua mensagem. Manuel
Bandeira observa a "personalidade monstruosa e aterradora" que
assumem em suas representações "as coisas elementares, um lam-
pião de rua, um poste, a rede telefônica, uma bica de jardim" 182. Mui-

tas de suas cenas afiguram-se não raro como instantâneos de eventos


inconclusos (como por outras palavras notou Aníbal M. Machado a
respeito de certas estampas), o que parece contribuir para acrescentar-
-Ihes um caráter de aflição183. Aspecto considerável do trabalho de
Goeldi, é o do ilustrador de livros, de jornais e revistas, através de
desenhos e gravuras. Desde o fim dos anos 20, com as imagens cria-
das para Canaã, de Graça Aranha, ele encarou seriamente essa tarefa
das mais constantes na obra futura.
Toda a produção deste artista, no desenho e sobretudo na xi logra-
vura - sem demora provida de uma homogeneidade de forma e con-
teúdo -, explica-se enquanto atitude contemplativa, a partir de uma
existência marcada pelo retraimento. Não se trata em verdade de um
expressionista cáustico, que encarne papel acusador, ou por outra, não
há nenhuma direção fixa nesse sentido em Goeldi. Foi só em torno de
1929-30, este último o ano da viagem para conhecer pessoalmente
Kubin (e da edição do álbum Dez gravuras em madeira), que o profis-
sional intransigente nos princípios éticos e estéticos começou a fazer-
se melhor conhecer no Rio e em São Paulo.

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733 Oswaldo Goeldi - "Amanhecer na


Praia", 1930, xilogravura, 11,7 x 12, col.
IEB-USP.

Nesses anos 20, que trouxeram para as artes arregimentações


carregadas de veemência, como a Semana de Arte Moderna, que
assistiram ao rumor das atitudes de afirmação de críticos e artistas,
foram também anos de cumprimento de tarefas silenciosas, como no
caso do solitário Osvaldo Goeldi. Em clima de distanciamento também
se produziu a obra de Ismael Nery, o primeiro artista nacional a vin-
cular-seà poética surrealista, a partir de 1927, ano em que viaja pela
segunda vez à Europa, conhecendo o chefe da doutrina, André Breton,
e ocasião em que se encontra com Chagall. Aproximadamente em
1929, Vicente do Rego Monteiro, vivendo em Paris, também sofrera
essa influência o que acontecerá igualmente com Di Cavalcanti. Em
Vicente isto é visível em algumas obras - como "Diana" -, aliás ante-
- - -- -- -- - ---~-, -..- ~

cedidas, em 1926-27, de trabalhos de percepção 'rnetafisica'. sem dú-


vida de não causar surpresa em quem nos dá impressão de pintar
"conceitos mais que seres" (Pierre Descargues). No seu irmão Joa-
quim do Rego Monteiro já se fizera sentir essa incidência. E ainda
outro pintor de Pernambuco, Cícero Dias (1907), mostraria desde
1928 uma surrealidade elementar. Mas coube a Ismael Nery, pelos
pontos de contato que ligam sua vitalidade, de fundo espiritual pessi-
mista, àquela imaginária do inconsciente, a introdução do Surrealismo
no Brasil. As fases anteriores do artista se haviam assinalado pela assi-
milação de preceitos expressionistas e cubistas. explorados com um
sentido concreto ú plasticidade, já evidente nos quadros que pintara
em 1922 no Rio, depois de uma viagem de ex-aluno da Escola Nacio-
nal de Belas-Artes a países europeus e à Palestina (1921-22)
"Pintor maldito", como o considera Antônio Bento 184, pela
incompreensão e hostilidade sofridas no desolador ambiente do Rio,
no decênio 1920-30, Nery, mesmo considerando sua morte aos 33
anos, deixou obra quantitativa mente pouco apreciável. Suas faculdades
mentais de visão foram alimentadas por um espírito filosófico de fun-
564 damentos católicos, "constantemente preocupado com o absoluto,
com o essencial e com a unidade", no dizer de Jorge Burlamaquil'". O 734

poeta Murilo Mendes, íntimo amigo do artista, um de seus críticos


mais conscientes e a quem muito se deve da preservação de suas
obras, definiu o pensamento de Ismael Nery dentro de um sistema
essencialista: "Era o essencialismo, baseado na abstração do tempo e
do espaço, na seleção e cultivo dos elementos essenciais à existência,
na redução do tempo à unidade, na evolução sobre si mesmo para
descoberta do próprio essencial, na representação das noções perma-
nentes que darão à arte a universalidade". E acrescenta. "Já se vê que
ele não improvisou um tal sistema. Suas raízes vinham de longe.
Embora muito pouco dado a leituras, era Ismael extremamente curioso
de todas as experiências humanas, passando sempre em revista as
teorias mais diversas. Sua vida e as poucas notas que deixou provam
que Ismael Nery viveu seu sistema, julgado por ele próprio uma intro-
dução ao catolicismo" 186.

O ideá rio de Nery não foi transmitido como corpo de doutrina,


fato lamentado pelos contemporâneos chegados a ele, mas procura-se 735

encontrar o que seriam seus equivalentes no desenho, na pintura e em


outras formas de expressão onde se exerceu com força criadora, como
a poesia. Todas elas se tornaram campo de uma investigação harmo-
niosa de plenitudes de valor espiritual. A possibilidade de dizer as coi-
sas profundamente, ele a perseguia com obsessão, voltado para uma
visão absolutista que foi permanente em sua inteligência. Construiu
imagens desenhadas energicamente e trouxe-Ihes qualidades cromáti-
cas. Sua busca da essencial idade concentrava-se na figura humana e
era aqui levado a definir a complementaridade entre suas dimensões
anímica e corpórea. As aspirações transcendentais sacras moviam-se
em seu espírito sem desprender-se de inelutáveis impulsões eróticas,
característica de sua iconografia feminina, de seus pares amorosos e
i magens visionárias.
Ismael Nery - artista recuperado apenas na década de 1960 -
raramente expôs individualmente. uma vez em sua cidade natal e duas
no Rio, participando ainda da coletiva brasileira enviada em 1930 ao
Roerich Museum de Nova York, razão que, ao lado da morte precoce,
contribuiu para deixar o seu nome em situação de ostracismo, como
ocorre com outros artistas brasileiros de sua geração. Nas fases em
que se aproximou de parâmetros expressionistas e cubistas (1922-27),
o pintor trouxe desde logo as assimilações parisienses para o domínio
de severa concepção formal. Picturalmente são as melhores etapas do
artista, que mantinha o aprendizado colhido junto à pintura antiga vista
nos museus da Itália e da França. Ao primeiro período pertenciam as
representações da chamada "fase azul", em que se incluem retratos
de figuras angulosas captadas por entre sutis modulações de luz ("Au-
to-retrata-toureiro", de 1922, "Retrato de Murilo Mendes", de 1922,
"A Espanhola". de 1923 ... ) seguindo-se os trabalhos ordenados por
princípios do Cubismo sintético, com o "Retrato de Adalqisa". de
1924, composição articulando figuras etc.
Foi sem transe e até com naturalidade que passou depois a
absorver a arte fantástica de Chaqall. No "Auto-retrato" tendo ao fundo
a Torre Eiffel e o Pão de Açúcar, de 1927, da coleção de Domingues
Giobbi, ele manteve os elementos formais cubistas que surqiarn por
entre signos superficialmente órficos. Do mesmo modo absorveu
idéias freudianas, como se observa em "Composição Surrealista". de 565
1929, "Formas Decompostas", de 1931, da coleção de Domingues
Giobbi, e em "Desejo de Amor", de 1932. De entremeio o artista
. (mais prolífero e provavelmente melhor realizado enquanto desenhista)
produziu obras menos apegadas a preceitos de doutrinação estética,
734 Ismael Nery - "Auto-Retrato". como em "Mulher com Ramo de Flores", de 1929, magnífica tela de
1927, óleo s/tela. 130.7 x 86,3, col.
Domingos Giobbi. São Paulo. tons vibrantes, em que a sensual esposa, Adalgisa Nery, é vista numa
735 Ismael Nery - "Composição receptiva posição de abandono (Cal. Alberto Alves Filho). O onirismo
Cubista", s/data, guache s/papel. 24 x 18.
cal. Petite Galerie. Rio de Janeiro. ingênito unificou sem dúvida as diferentes etapas, a última das quais, abrin-
736 Ismael Nery - "Moça com Ramo de
do uma perspectiva surrealista, constitui a contribuição mais destacada que
Flores", 1929. óleo s/tela. 60 x 50. cal.
Alberto Alves Filho, São Paulo. deixou, permanecendo fiel a uma universalidade de princípios poéticos.

______ 736
741
- - ~- - --- - - ~- -- -

Procedente de Pernambuco, achava-se ativo no Rio de Janeiro,


nesse final de decênio, o pintor Cícero Dias, destinado a longa vivência
na Europa (a partir de 1937) e a integrar-se à Escola de Paris. Nos
anos de que aqui se trata e logo depois, o artista nordestino, utilizando
o guache, a aquarela e o nanquim, concentrava-se na evocação neit e
feérica do ambiente nativo - Pernambuco e Rio -, acostando-se à
imaginária de Chagall e sendo também sensível ao decorativismo de
Matisse. Sobretudo, porém, estabelecia uma atmosfera singular de
representações, desprezando cânones construtivos eruditos, para fazer
extravasar um espaço irreal de inesperadas assimetrias, povoado de
motivos bizarros (por exemplo, animais fantasmagóricos) e efusões de
liberta vida tropical.
Ruben Navarra referiu-se à sua composição como "uma monta-
gem de símbolos e imagens - poemas e não arquitetura" O que
importava para Cícero Dias, nessa época, afirma o crítico paraibano,
era "figurar um determinado sentido de evocação, por meio de ima-
gens em geral soltas e mal construídas, onde tudo se encorrtr ava na
737 Cícero Dias - "Eu Vi o Mundo, Ele idéia de produzir um choque poético, através de uma linguagem como
Começava no Recife" (pormenor). 1929,
61eos/papel Ipreparado com cola e gesso).
a dos primitivos ou a das crianças" 187. Ao menos em parte de suas 567
250x 150, col. MNBA, Rio de Janeiro. fases abstratas posteriores, ele conservará vestígios desses fortes
738 Cícero Dias - s/titulo. s/data. apelos de fundo mágico-telúrico
guache e nanquim s/papel, 50,5 x 64, col.
particular, Rio de Janeiro. O meio carioca apresentava outros exemplos isolados de liberda-
739 Cícero Dias - "Mulher", 1930, óleo
de pessoal, como em Ouirino da Silva e José Maria dos Reis Júnior,
s/tela, 71 x 60, col. Pedro Carvalho.
740 Cícero Dias - "Sonho de ambos ex-alunos da EN BA. Ouirino da Silva, que vimos participando do
Prostituta", 1930, aquarela, 55 x 50, col.
Gilberto Chateaubriand, Rio de Janeiro.
grupo instituidor do Salão da Primavera, desenvolvia, desde o início
741 Ouirino da Silva - "Paisagem de dos anos de 1920, uma pintura fundamentada em Cézanne mas dota-
São Carlos". 1926, óleo s/madeira, 30 x 40,
col Carolina Silva Telles. São Paulo. da de um ritmo formal próprio, brando e até lânguido, a que se acorda
742 José Maria dos Reis Júnior - a sensual textura do colorido. Em meados da década, parece ter sido
"Retrato de Piolin", 1927, óleo s/tela.
87 x 107, col. F. e A Leirner, São Paulo. passageira uma influência cubista na escultura que também praticava.
No mineiro de origem Reis Júnior, a composição exclui o descritivismo
acadêmico e impõe-se pelo espírito de síntese das formas e cores.
Ao findar os anos 20, as artes visuais em São Paulo e Rio, no
contexto modernista, não constituíam um corpus de especial densida-
de, mas apresentavam algumas situações individuais de bastante
interesse num quadro distinto e evoluído diante daquele revelado na
Semana. Os artistas marcantes de 1922, e os poucos outros de maior
significação surgidos na década, já tinham quase sempre alcançado
características essenciais de linguagem no período, embora pudessem
no futuro, ainda, trazer novos contributos à sua obra. A apreensão por
eles de estruturas revolucionárias de percepção obedecia às razões
históricas que ligam o Brasil à Europa, Essa identificação com as van-
guardas internacionais, e sobretudo com a Escola de Paris, deu oca-
sião aos artistas da casa de encetar no plano interno a mesma luta
generalizada travada contra as tendências imobilistas. Os novos
modelos e sua profunda identificação com a pesquisa permitiram do
mesmo modo a descoberta crítica e direta da realidade do meio em
que eram assimilados e operados.
Transformações artísticas de 1930 ao período
da Segunda Guerra Mundial

8.15 Afirrnaçâo do Modernismo no meio artístico alargado

Os anos que se estendem de 1930 ao período da Segunda


Guerra Mundial assinalaram-se no Brasil pelo crescente número de
adeptos da arte moderna. Do mesmo modo, passou a haver maior
diversificação de tendências. Particularmente, registra-se uma busca
generalizada de interação da arte com a imediata realidade física,
humana e social. A Revolução, liderada por Getúlio Vargas, vértice da
escalada de crises políticas e conflitos militares da década de 1920 e
ponto final do domínio absoluto da oligarquia rural, conduzia ao poder
outras forças das classes privilegiadas. O modelo que adveio com Var-
gas introduziu uma legislação social atualizada, mas as transformações
568 pretendidas para a reordenação da sociedade ficariam bastante aquém
do almejado. Inclinado às soluções ditatoriais, enfrentadas pela
Revolução Constitucionalista de 1932, o regime implantou em 1937 o
Estado Novo, que perduraria até 1945.
Esses anos, que se iniciavam carreando os efeitos da crise econô-
mica de 1929 e que viram acentuar-se no país a penetração das linhas
ideológicas de direita e esquerda, foram, entretanto, férteis na procura
da afirmação de novas dimensões culturais, ainda como conseqüência
do espírito de abertura do Modernismo e apesar do clima desfavorável
inaugurado com a Revolução. A presença de alguns homens receptivos
à problemática contemporânea da arte no então Ministério da Edu-
cação e Saúde revelar-se-ia uma brecha positiva no sistema, com
importantes conseqüências para a consolidação daquelas idéias.
Na arte, depois do formalismo predominante e caracterizador dos
dois decênios precedentes, ganhava vigor uma expressão mais direta-
mente vinculada aos estímulos diretos do meio. Esta propensão ligava-
-se a todo um amplo movimento de idéias que abrangeu as Américas,
a partir da arte murai mexicana eclodida em seguida à Revolução de
1911. Ao mesmo tempo que contribuiria para afirmar o Modernismo
no país, Cândido Portinari daria grande impulso a padrões de arte
interessada nas contingências populares. Se no primeiro Modernismo
as artes plásticas se haviam antecipado às letras, desde fins dos anos
20 eram estas a adiantar-se à imagem visual, agora na busca das
potencialidades do campo social. A literatura, especialmente o roman-
ce nordestino, sensível aos propósitos de recuperação de fundamentos
autóctones do Modernismo e inspirado na vida popular, captava uma
realidade áspera, a começar pela obra pioneira de José Américo. O
cinema, com Humberto Mauro, pela primeira vez procurava denunciar
os contrastes entre miséria e riqueza. Os anos 30 produziriam expli-
cações originais do país em estudos de características compósitas,
mas de embasamento histórico e sociológico, como foram os de Gil-
berto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. A obra
do futuro autor de Formação do Brasil contemporâneo, sobretudo,
traria forte mensagem para as novas gerações.
Evento de instância decisiva na década foi a renovação educacio-
nal que removia o predominante interesse literário na intelectual idade
brasileira. O conhecimento afirmava-se, por outras palavras, através da
pesquisa científica. Isto se deveu à Escola Nova, movimento brotado
do liberalismo dos anos 20 e cuja implantação nos anos 30 coube a
figuras como a de Fernando de Azevedo. A criação da Universidade de
São Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em 1934, foram
resultado de inadiáveis decisões para definir os rumos do ensino no
país. Nesta última, instaurou-se desde logo um instituto de arte de alto
nível e inédito entre nós, como se verá adiante. Da maior relevância se
tornou a instituição da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
USP, unidade orientada por mestres europeus e destinada, sobretudo
desde os fins dos anos 40, a assinalar sua presença na vida intelectual
da nação. Nela, entretanto, as artes não se organizariam como um
setor, a exemplo do Rio, devendo-se ressaltar, porém, a influência exer-
cida por três professores franceses. Jean Maugüé, Claude Lévi-Strauss
e Roger Bastide188. Aspecto saliente do período foi, como se verá, o
apoio de alguns setores educacionais e culturais do governo federal às
novas formas da arte, evidente na construção da sede do Ministério da 569
Educação no Rio de Janeiro e seu programa de integração das artes
(1936-45), Esta iniciativa repercutiria em Minas Gerais onde, por oca-
sião da edificação do conjunto da Pampulha, uma idêntica orientação
seria seguida por um governo estadual (1944-45).
No estudo dos principais problemas artísticos do período devem
ser consideradas as novas variáveis assumidas pela linguagem plásti-
ca, não mais confinada a uns poucos pintores e escultores, mas já
como atividade espraiada entre muitos indivíduos de gerações e for-
mações diversas e de diferentes classes sociais. Esse alargamento
refletia-se na fundação de várias associações de profissionais em São
Paulo e Rio - a capital federal àquela altura mostrando-se já desperta
e mais influente - e no sensível interesse que movia uma parcela do
poder político em se avizinhar dos artistas de mentalidade insubmissa
ao ensino acadêmico mantido pelo Estado. A arte moderna, como
veremos, passaria a irradiar-se timidamente para fora de São Paulo e
Rio, onde em grande parte estava confinada.
Enquanto o academismo resguardava-se em suas cidadelas, o
Modernismo fazia-se sentir com muita capacidade de organização
associativa nos anos 30, característica sem paralelo no futuro.
Acontecimento de especial relevo foi a rápida passagem de Lúcio
Costa (1902) à frente da ENBA A presença na instituição do arquiteto
que há pouco adotara a linha funcionalista de Le Corbusier devia-se a
Rodrigo Mello Franco de Andrade, chefe de gabinete do ministro da
Educação, Francisco Campos. O diretor recém-nomeado empenhou-se
em contratar novos professores, considerados pelos descontentes
como 'futuristas' - Warchavchik, AS. Buddeus, Celso Antônio e Leo
Putz (1869-1940), este último, pintor alemão, ex-membro da Schelle
de Munique, temporariamente residente no Brasil, onde produziu
numerosas obras inspiradas na natureza do Rio e no povo carioca. Lú-
cio Costa. contudo, ao mesmo tempo que renovava, mantinha os
velhos mestres, no que obedecia ao seu espírito de conciliação.
No inevitável confronto de forças que se provocou, o antigo corpo
docente acabaria por levar a melhor. Lúcio Costa, com a solidariédade
de Rodrigo Mello Franco de Andrade, Manuel Bandeira e em geral dos
círculos modernistas, tomaria naquele ano a decisão de transformar a
XXXVIII Exposição Geral de Bela-s-Artes numa manifestação aberta a
todas as tendências. O "Salão Revolucionário" ou dos "Tenentes",
como seria apelidado, constituiu-se por isso em novo marco da van-
guarda. "Pela primeira vez a pintura moderna aparecia francamente ao
grande público" (Mário Barata) 189 e no próprio reduto em que era
intransigentemente rechaçada. Tudo, porém, duraria pouco. Diante da
onda de protestos dos inconformados acadêmicos, o espírito conserva-
dor do certame foi restabelecido. Somente em 1940, ao criar-se a
Divisão Moderna do Salão, os artistas avançados obteriam espaço
próprio a nível oficial.
A pretendida reforma da ENBA que se incorporava à Universida-
de, não resistiu mais que alguns meses. Como afirmou Manuel Ban-
deira: "Não creio que a arte dos tenentes vingue na Escola. A retirada
do ministro Campos arrastará provavelmente a saída de Lúcio Costa.
570 Os generais voltarão ao trambolho da avenida Rio Branco. Não faz mal.
Lúcio Costa deixa um ponto luminoso na história daquela casa: refor-
mou em bases decentes o curso de arquitetura e deu o exemplo de
uma verdadeira exposição de artes plásticas" 190. No início da década
de 1940, outra crise tomaria assento na ENBA com a reação dos
estudantes contra os professores antiquados, estabelecendo uma
situação de longo conflito que atingirá seu paroxismo nos anos 60.
De curta duração nos anos 30, foi outra tentativa, a do Instituto
de Artes implantado na Universidade do Distrito Federal, audaciosa-
mente planejada por Anísio Teixeira e cujo espírito revolucionário não
resistiria à pressão governamental. Segundo Celso Kelly, entre suas
principais características encontravam-se: "a) o nível universitário, no
ensino e pesquisa da arte, qualquer que fosse o seu ramo; b) a coexis-
tência de todas as artes, da música à arquitetura; c) a inclusão das
artes industriais, especialmente as auxiliares da arquitetura, as gráficas
e as de indumentária, como processo de renovação do gosto no ensi-
no profissional do Rio; d) ênfase especial à pintura mural e à escultura
monumental; e) a instituição do ensino de urbanismo; f) atividades
pós-graduadas, sobretudo em arquitetura e música; g) extensões uni-
versitárias, visando ao esclarecimento da formação artística do povo,
diante das novas correntes estéticas; h) uma tentativa geral pela unida-
de de criação" 191. Como se observa, os propósitos eram dos mais
ambiciosos, antecipando-se a projetos futuros. Lecionaram no Instituto,
entre outros, Villa-Lobos, Lorenzo Fernandez, Andrade Muricy, Mário
de Andrade, Celso Antônio, Lúcio Costa, Portinari e Guignard.
Em São Paulo mostrou-se relevante a criação do Departamento
Municipal de Cultura, para a qual Paulo Duarte teve decisivo papel. O
DMC, posto a funcionar em 1936, era em verdade o germe do Institu-
to Paulista de Cultura, que não chegou a ser fundado. O projeto de lei
que o estabeleceria, redigido por Mário de Andrade, fundamentou o
estatuto do SPHAN. Mário de Andrade, que seria o primeiro diretor do
Departamento Municipal de Cultura, acabaria demitido pela política
ditatorial da época'V.
Entretanto, o fato de maior relevância no plano institucional das
artes, durante os anos 30, foi, sem dúvida, a criação do SPHAN, em
1937, destinado a uma atividade fundamental na preservação e res-
tauração dos bens culturais.
No plano dos salões e exposições, cabem algumas observações
gerais. Persistia a ausência de museus de arte; os primeiros, atuantes,
viriam só depois da Segunda Guerra. O Rio, onde não faltavam socie-
dades de artistas acadêmicos, dispunha desde fins de 1929 da ecléti-
ca Associação dos Artistas Brasileiros. A entidade reunia, como rezam
os seus estatutos, "artistas de todos os ramos, por forma a criar um
espírito de colaboração e interpretação cultural". Em seu salão do
Palace Hotel, fizeram exposições Portinari (várias vezes). Ismael Nery e
Guignard, além de muitos outros artistas de orientação moderna. A
associação teuto-brasileira Pró-Arte também se destacou, como o faria
em São Paulo, organizando mostras anuais no início da década de
1930 e individuais de Guiqnard. Segall, Di Cavalcanti e Ernesto de
Fiori (1 884-1 945). Entre outros eventos, o I Salão de Arte Social, orga-
nizado em 1935 pelo Club da Cultura Moderna do Distrito Federal, evi-
dencia preocupações agudas daquele momento. 571
Em São Paulo, o Liceu de Artes e Ofícios e o Instituto Profissional
Masculino foram, para muitas vocações, as únicas possibilidades de
obter formação. Numerosos artistas de mais de uma geração freqüen-
taram seus cursos. Eram comuns, porém, na capital paulista, os casos
de autodidatismo - o que parece ser menos freqüente entre os artistas
do Rio.
Os anos 30 iniciavam-se auspiciosamente com a exposição da
"Casa Modernista", já antes referida. Warchavchik organizara o
ambiente, desenhando e fazendo construir os móveis e outros objetos,
de acordo com a arquitetura, imbuído da necessidade da aproximação
das artes. Ao mesmo tempo eram apresentadas obras de artistas
nacionais e estrangeiros. A iniciativa, entretanto, permaneceria isolada.
Vindo na seqüência de outras exposições periódicas, dessa déca-
da, instituiu-se, em 1934, um salão oficial, por empenho da Sociedade
Paulista de Belas-Artes, fundada em 1921. Nele juntavam-se tradicio-
nalistas e modernos. Estes últimos haviam-se infiltrado de tal modo na
sua organização e na composição do júri, que os acadêmicos, por eles
recusados em 1936, passaram a atribuir-Ihes toda essa responsabili-
dade. Nada se poderia esperar, porém, do SPBA e de suas limitações.
Os artistas atualizados partiram para a criação de associações
próprias, resolvendo autopatrocinar as suas exposições, surgindo assim
o Salão de Maio e as exposições da Família Artística Paulista. Em São
Paulo não haveria salão oficial 'de arte moderna' antes de 1951.
Somos carentes de pesquisas sobre os salões: uma investigação
a respeito de seus regulamentos, sua administração, o material expos-
to, a luta das tendências, a formação e a orientação dos júris, a desti-
nação dos prêmios, o público que os assiste e outros fatores, permitirá
um dia conhecer aspectos de forma alguma negligenciáveis da
evolução artística no Brasil.
Pelas características dos salões de São Paulo, e principalmente
do Rio, podemos deduzir sobre a natureza daqueles realizados noutros
Estados e a sua tardia abertura à problemática contemporânea. Em
Minas Gerais, apenas em 1944 haverá uma primeira mostra cultural
de relevância, por iniciativa do prefeito Juscelino Kubitschek.
o período assinalou-se também pelo aparecimento de algumas
publicações especializadas no Rio de Janeiro: Forma (1930), Base
(1933) e Bellas Artes (1935). De fins de 1928 .a meados de 1930 a
revista Movimento, depois Movimento Brasileiro, mostrou apoio às
novas idéias na arte. Em 1934 fundou-se a Revista de Arquneture.
também no Rio. Algumas outras abriam espaço para a matéria artísti-
ca, como a Ilustração Brasileira, a nova Bazar (Rio) e a revista verutes,
na capital paulista. O mesmo se diga do "Suplemento em Rotogra-
vura" de O Estado de S. Paulo. No Recife, a revista Renovação, criada.
em 1939, trazia cobertura de problemas de artes plásticas. Novas
revistas de cultura surgiriam no Rio e São Paulo na década de 1940,
como a Revista Acadêmica, Dom Casmurro, Leitura e Oiretnzes, no
Rio, e Clima e Planalto, em São Paulo, divulgando as artes.
U ma atividade crescente da crítica de arte - toda ela de base
autodidata, fenômeno perdurável ainda hoje no país - em revistas, jor-
nais e através de alguns livros assinalou também o período. Entre seus
743 Capa da revista Renovação. n? 3.
principais representantes achavam-se Mário de Andrade, 'Manuel Ban-
Recife. jun. 1941. Ilustração da capa por deira, Sérgio Milliet. Antônio Bento, Mário Pedrosa, Luís Martins, Ouiri-
Vicente do Rego Monteiro.
572 no Campofiorito, e logo depois Ruben Navarra, Santa Rosa e l.ouriva!
Gomes Machado. Tornar-se-ia evidente a posição em favor da pre-
sença do assunto como necessário à obra de arte que deseja alcançar
o grande público, na compreensão gideana de Sérgio Milliet. e logo
mais, a atuação avançada e empenhada em favor da arte abstrata,
assumida por Mário Pedrosa.
Entre 1930 e 1945 foram raríssimas as exposições vindas do
exterior. Esta falta de comunicação com o estrangeiro, sensível tam-
bém nas dificuldades de acesso a publicações de arte, era um proble-
ma perseverante. Em São Paulo, pelos anos 20, o público pudera ver
uma só vez algumas poucas obras de pintores internacionais. Isso
acontecera em 1924, por ocasião do accrochage de quadros de Cé-
zanne, Léger, Delaunay e Gleizes - junto a outros de Segall e Tarsila,
no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Seis anos mais
tarde, em 1930, por empenho pessoal de Vicente do Rego Monteiro e
do poeta francês Géo-Charles, chegava ao Brasil, sob o patrocínio da
revista Montparnasse, a exposição "L'~cole de Paris", de histórica
importância. Foi ela a primeira mostra internacional de arte contem-
porânea a chegar e a devemos, sem dúvida, aos múltiplos relaciona-
mentos do pintor pernambucano com o tout Paris. Entretanto, mesmo
apresentando Matisse, Picasso, Braque, Léger, Derain (1880-1954),
Vlaminck (1876-1958), Gris, Dufy (1877-1953), Laurens (1885-
-1954), Lurçat (1892-1966), Severini, Pascin (1885-1930), Herbin
(1882-1960), Marcoussis (1883-1941), Miró (1893), Masson (1896)
etc., através de quase 100 obras,' a exposição não obteve, em seu iti-
nerário por Recife, Rio e São Paulo, a audiência que merecial'".
Cabe realçar, na seqüência de mostras vindas da Alemanha no
final da década de 1920, a Exposição Alemã de Livros e Artes Gráficas
na América do Sul, em 1930, nela figurando artistas expressionistas.
Houve depois, em 1933, a I Exposição de Arte Moderna da
Sociedade Pró-Arte Moderna em São Paulo, onde, ao lado de obras
nacionais, eram vistos, entre outros, trabalhos de Vuillard (1868-
-1910), Picasso, Marie Laurencin (1885-1956), Giorgio De Chirico
(1888-1978), Léger, Gris. Lhote, Gleizes, Delaunay, Dufy, Foujita
(1886-1968), Pompon (1855-1938), Brancusi e l.ipchitzt'". pertencen-
-

--~---- ------------- ~
,
744
tes a colecionadores paulistas. Ainda na década de 1930, támb
, , •....
~ .;:.; ~
m em
São Paulo, artistas internacionais seriam apresentados no II e III Salão
de Maio (1938-39). Entretanto, será preciso aguardar até 1940 para a
Exposição de Arte presença, no Rio e São Paulo, de uma ampla mostra de pintura, como
Decorativa Allemã foi a Exposição de Arte Francesa, um survey do neoclassicismo de
David às tendências inaugurais do século XX. Não raros artistas jovens, ou
no Brasil 1929
ainda jovens na época, reputaram-na um acontecimento maior. Só en-
tão, pela primeira vez, a maioria podia conhecer originais de Cézanne.
Acabada a guerra, a França não perderia tempo, enviando em
1945 e 1949 duas novas circulantes, incluindo Toulouse-Lautrec
(1864-1901), Léger, Delaunav. Modigliani (1884-1920), Picasse. Bra-
que, Matisse, De Chirico, Rouault (1871-1958), Tanguv (1900-55),
Masson, Atlan (1913-60), Schneider (1896) e Tal Coat (1905), entre
outros. A École de Paris tinha nelas alguns de seus monstros sagrados
~io "de J:aneiro
Academia de Bellas Artes
SâoP:lulo e gente mais jovem, como Tal Coat e Schneider, - que alguns anos
Alvares Penteado No. 7
no mel: de Novcmbro . nQ mel. de Se e e m b e c
depois influenciariam a formação da pintura abstrata gestual japonesa .
745
Aqui a situação era prematura para essa aderência: a abstração iria
tomar os rumos da geometria lírica e construtiva.
I.~EXPOSiÇÃO A prática inversa, ou seja, a de levar mostras de arte local para o 513
DE ARTE MODERNA
exterior, acompanhando, mesmo se modestamente, o intercâmbio de
DA

SPA M
comunicações culturais da época, teve um primeiro exemplo em fins
de 1930 quando uma exposição foi inaugurada no Roerich Museum
de Nova York. Colaborou na sua organização a The Brazilian Society of
Friends of Museum e o patrocínio era dos governos brasileiro e norte-
americano. A escolha dos artistas fora das mais ecléticas, colocando-
se lado a lado pintores de linha tradicional e modernos. Entre aqueles,
bem mais numerosos, Almeida Júnior, Lucílio de Albuquerque, Modes-
to Brocos (1852-1936), Carlos Chambelland (1884-1950) e Osvaldo
Teixeira (1904-74). Mas o interesse de algumas autoridades asse-
PINTURA
ESCULTURA
gurou a presença, entre outros, de Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Tarsila,
ARQU ITETURA Gomide, Ismael Nerv. Cícero Dias e Alberto da Veiga Guignard.
A seguinte mostra brasileira no exterior só teria lugar em 1944, e
aliás por motivos de solidariedade aos Aliados em guerra. Aberta em
744 Capa do catálogo da Exposição de Londres, a Exhibition of Modern Brazilian Paintings, apresentada por
Arte Decorativa Alemã no Brasil. 1929.
745 Capa do catálogo da I Exposição de
Ruben Navarra, com 168 obras de 70 artistas, visava obter fundos
Arte Moderna da SPAM. 1933. para a Hoval Air Forcs"'". Participavam Segall, Tarsila. Di Cavalcanti,
746 Capa do catálogo da Exposição de
Pintura Francesa. set. 1940. Flávio de Carvalho, Cícero Dias, Quirino da Silva e muitos da leva sur-
gida nos anos 30. Em 1945, o escritor Marques Rebelo transportava a
Montevi~éu, Buenos Aires e La Plata a exposição Vinte Pintores Bra-
sileiros, composta quase só de artistas do Rio e pertencentes a duas
gerações de modernistas. Nela eram incluídos Di Cavalcanti, Tarsila.
Guignard, Portinari, José Pancetti (1902-58), Milton Dacosta (1915) e
EXPOSIÇÃO Iberê Camargo (1914). Era o inicioríe uma atividade pela qual Mar-
Df;.
ques Rebelo tomou gosto. A partir de 1947, ele organizou mostras cir-
PINTURA FRANCÊSA culantes em vários Estados do Brasil.

SETEMBRO

1940

Fd hdo 'frIo • 10. itll>. &,,~.••• ';>:pd:W

SA.O 'l"At: o

746
8.16 Novas fases dos pioneiros

Os artistas que haviam dominado a cena do Modernismo sofriam


por vezes variações profundas no decênio de 1930. Mas sua imagem
marcava-se sobretudo pela condição do pioneirismo. Anita Malfatti
realizou, a partir desses anos, uma série de retratos convencionais e
depois paisagens, cenas de festejos populares e de eventos religiosos
de importância secundária em sua obra, não evitando até transvios de
expressão que se acostam enganosamente à linguagem ingênua. Em
Vicente do Rego Monteiro, a pintura não somente se rarefaz depois
dos anos 20, como não mantém o nível criador daquela década essen-
cial. De novo no Recife, em 1932, tomou interesse por motivos regio-
nais, como se observa em "O Aquardenteiro". ou motivos religiosos
colhidos na pequena estatuária popular do Nordeste. A disciplina
cubista que adquirira estará presente na série de naturezas-mortas inti-
tulada "A Cafeteira que o Mundo Criou" (1942). Distribuindo seu tem-
574 po entre a França e o Brasil e curtindo tarefas variadas, como disse-
mos, e a que se pode aduzir as do poeta, cineasta, jornalista (defensor
do Estado Novo), produtor de aguardente etc.. Vicente do Rego Mon-
teiro chegará a se empenhar na retomada de sua visual idade da déca-
da de 1920 ou mesmo no refazimento de obras desse período, depois
de uma fase (fins dos anos 50 e início da década seguinte) em que
fora receptivo à própria arte informal.
Diversamente de Anita e Monteiro e as fraturas de suas respecti-
vas fases, a pintura de Di Cavalcanti manterá a peculiaridade icônica e
estilística da década de 1920. As influências cubistas. expressionistas
e surrealistas sofridas pelo pintor - e especialmente tLido o que lhe
advém de Picasso - reduziram-se no conjunto da obra a um expressio-
nismo sensual, de fidelidade aos tipos humanos e à cor do ambiente
tropical.
A Brecheret. o seu retorno, em 1936, trouxe-lhe a responsabilida-
de da realização do velho projeto do "Monumento às Bandeiras". A
mole em granito é coerente com os princípios de definição formal
revelados no decênio de 1920 e se sustenta na funcionalidade do ges-
to global. Brecheret executou muitas encomendas públicas. Fiel aos
materiais tradicionais (pedra, gesso, terracota e bronze), tecnicamente
caracterizado pelo procedimento da modelagem e na forma dirigida
para o volume pleno, o escultor motivou-se por preocupações puristas
na série das "Pedras" enriquecidas por incisões. O mais importante
dos anos tardios de Brecheret seria a abordagem da temática indíge-
na, sob o influxo da abstração. Ele se avizinhou assim dos escultores'
que levaram a expressão biomórfica aos limites da depuração geo-
métrica. Exemplos dessa atividade criadora final - contemporânea de
atendimentos menos felizes de encomendas oficiais - são obras como
"A Luta do índio e a Suaçuapara". em bronze, e a "Luta de índios 747 Victor Brecheret - "luta de lndios
Kalapalo" em terracota, do MAC-USP, ambas de 1951. Kalapalo". 1951. terracota. 83 x 179 x 35.5.
col. MAC-USP.
#

748 Di Caval .
Brésilienne" canti - "Scé
114 .1937-38 ne
Mod x 146. col. Muse' ~eo s/tela.
7e~na. Paris. u acional de Art
I . 9 Lasar Se
2~lgrantes". 193~~~ - "Navio de
e 575
P O x 275. col M 1. óleo s/tela
aulo. . useu Lasar Segall.
. São
A vitalidade e a coerência continuaram a marcar a obra de Lasar
Segall depois da 'fase brasileira' dos anos 20. Na diretriz da universali-
dade, que marca na década anterior seus temas dramáticos, acrescen-
ta uma série de pinturas relacionadas à perseguição do povo judeu, à
Segunda Guerra Mundial, que participam da ampla visada humana e
social da arte no Brasil daquele tempo: "Poqrorn" (1936-37), "O
Navio de Emigrantes" (1939-41), ambos do Museu Lasar Segall,
"Guerra" (1942), "Campos de Concentração" (1945), "Êxodo" (1947),
são os principais registros dessa imaginária de distorções formais e 750 Lasar Segall - "Animais com
Pinheiro", 1931, guache, 3.1,5 x 46, coi.
valores monocrômicos, onde os espaços se abrem para comprimir a
Museu Lasar Segall, São Paulo.
multidão de vítimas. A essa percepção trágica são contemporâneos os 751 Tarsila do Amaral - "Operários",
1931, 61eo s/tela. 120 x 205, cot. Palácio de
registros líricos de Campos do Jordão, nas décadas de 1930 e 40,
Verão do Governo do Estado de São Paulo,
visões campestres e florestais que o levarão a novas experiências de Campos do Jordão.
síntese formal no futuro. Outros valores ainda dilatavam a aura do
artista que, desde 1929, juntava à dimensão do pintor e gravador a do
escultor.
Um desejado mas superficial compromisso com o ideário social
ou socialista conduziu Tarsila a um discurso semântico surpreendente,
576 dando-lhe presença na problemática pictórica dos anos 30. "O-
perários" - um inventivo e nett retrato de grupo - "Segunda Classe",
principais obras de fundo social que produziu, datam de 1933 e
mostram as dificuldades de adaptação de seu lirismo aristocrático à
interpretação da exploração do trabalho e do infortúnio. A artista mais
tarde retomaria princípios da fase "pau-brasil"
750

751
Como já foi aqui referido, após longa estadia européia, Antônio
Gomide regressaria ao Brasil em 1929. A ele o Cubismo trouxera sóli;/
dos princípios construtivos, de permanente presença em sua obra. M13s
a inclinação nativista e com ela o prazer que encontrava nas expres-
sões da vida popular o conduziram a uma figuração de maior esponta-
neidade narrativa. Muito ativo nos anos 30-40, não é possível separar
em Gomide o pintor e o artista de múltiplas tarefas decorativas.

752

752 Antônio Gomide - "Sambista", c.


1956, 61eo s/tela. 40,8 x 26.7, col.
particular, São Paulo.
753 Oswaldo Goeldi - Ilustração de Impreaso nao Offi': 577
Cobra Norato, 1930, xilogravura, 10 x 8,2, cinas Graphica8 de
documento IEB-USP. Paulo. Pongetti &
754 Oswaldo Goeldi - Ilustração de Cia. Avenida Mem
Cobra Noreto, 1937, xilogravura, de Sá. 78 - Rio de
27,3x21,l, documento IEB-USP. Janeiro - 1930

753 754

Goeldi. que robusteceria sua obra de ilustrador nas visualizações


de Cobra Norato (1937) e que nesses domínios interpretativos traria
mais tarde férteis e seguras contribuições, manteve sua gravura nos
padrões conhecidos. Ismael Nery, tomado pelo Surrealismo, morreria
cedo, em 1934, como se viu.
Quanto a Celso Antônio, os anos 30 e 40 lhe trarão outras opor-
tunidades de trabalho. A essência pessoal do jovem escultor confirma-
va-se na força de concentração e despojamento de sua estatuária.
assim como no empenho por uma iconografia voltada para tipos
raciais brasileiros, como o negro e o mulato. Logo após sua chegada
ao Rio, seria convidado por Lúcio Costa a lecionar na ENBA. Mais tar-
de, a partir de 1937, realizou várias maquetas que se destinavam ao
projeto escultórico do Ministério da Educação: "O Homem Sentado",
"O Trabalhador", "Vitória Alada", "Maternidade", "Moça Reclinada" e
"Moça Ajoelhada", estas três últimas aproveitadas, sendo que a princi-
pal delas, em granito cinza, de 1940, está incorporada ao edifício. A
obra serena de Celso Antônio, sensível ao hieratismo de formas ante-
passadas e empenhada numa figuração caracterizadamente antropoló-
gica, alcança sua plenitude nesse conjunto. O retrato é outro campo
de atividade em que interpenetrou o rigor formal e a vivência espiritual
dos representados.

755 Celso Antônio - Atelier do escultor,


c. 1956. Vê-se à esquerda "Maternidade" e
maqueta do "Homem Sentado"; à direita
"Moça Sentada com as Pernas Cruzadas",
obras destruídas.
756 Celso Antônio - "Moça Reclinada",
1940, granito picotado sem polimento,
116 x 65 x 220, (base elíptica
16 x 92 x 188) Palácio da Cultura, Rio de
Janeiro.
8.1 7 O 'salão revolucionário'

Sem o escândalo que cercou a SAM, mas despertando a atenção


pela afluência de artistas modernos e o confronto destes com os aca-
dêmicos, a XXXVIII Exposição Geral de Belas-Artes contribuiu para tra-
zer mais força de persuasão às novas tendências. Reestruturada por
Lúcio Costa, como vimos, e organizada por uma comissão composta
por ele mesmo, Anita Malfatti, Celso Antônio, Portinari e Mánuel Ban-
deira, a capital federal dava finalmente importante passo ao encontro
da cultura plástica em seu curso criador. O episódio começava a
alterar o quadro anterior, assumindo o Rio um poder natural que vinha
sem dúvida dos valores ali emergindo - principalmente Portinari -,
mas onde interferia bastante o fator oficial, dado o interesse tomado
por autoridades do setor cultural pelo movimento rnodernot'".
Destinado a permanecer único em uma experiência de abertura a
todos os envios, o Salão de 1931, serviu à propagação das vanguardas
578 no Rio e à sua irradiação pelo país. Bastante difundida pela imprensa,
a exposição funcionou como marco de conscientização de uma realida-
XXXVII! de artística por muito tempo quase só circunscrita a São Paulo e a
EXPOSiÇÃO GERAL casos isolados do Rio. Mas se é verdade que o Rio começava a con-
DE BELLAS ARTES verter-se em pólo de atenção para os Estados, o movimento de arte
1931 moderna em São Paulo não arrefeceria, ganhando mesmo maior den-
sidade que na década anterior ao sediar uma série de iniciativas e pro-
vocar uma evolução local de linguagem que, como veremos, se reen-
contrava com situações de muito maior amplitude.
A XXXVIII Exposição Geral de Belas-Artes reunia uma ala quase
completa de modernos diante de um setor acadêmico desfalcado pelo
ESCOLA NACIONAl.. DE SEl.I. •••S ARTES

boicote de suas principais vedetasl'". Estavam ali as figuras de Anita,


Brecheret, Di Cavalcanti, Segall e Tarsila, ao lado daquelas que se
haviam destacado no fim da década de 1920 - à exceção de Goeldi -
757 Capa do catálogo da XXXVIII
como Gomide, Ismael Nery, Celso Antônio, Cícero Dias e de alguns
Exposição Geral de Belas-Artes, 1931, novos, a exemplo de Portinari. Várias obras de fases precedentes foram
Escola Nacional de Belas-Artes, Rio de
Janeiro. apresentadas por Anita e outros artistas do primeiro grupo modernista,
de sorte que o Salão, embora de forma precária, devia fornecer uma
perspectiva do desenrolar das vanguardas no Brasil. Parodiando o jar-
gão desse período de transição social e política, os modernos eram
chamados de 'tenentes' por oposição aos 'generais' (os acadêmi-
COS)198.

Entre os de ingresso recente no meio avançado, não obstante


conservasse resíduos de seu aprendizado na ENBA, encontrava-se,
como vimos, Cândido Portinari, acabando de voltar da Europa e que
bisonhos hábitos provinciais utilizariam como prova de que um artista
moderno deforma a forma mas não por não saber dominá-Ia. Outros
da última leva da corrente insubmissa eram Flávio de Carvalho, Alberto
da Veiga Guignard e Orlando Teruz (1902). Predominavam os acadê-
micos, dispostos, pela comissão organizadora, em salas separadas dos
modernos, indicando o lacônico catálogo dezenas de nomes de alunos
e professores da ENBA. Se Portinari foi presença das mais notadas,
pela série de retratos, outra atração era Guignard, há pouco de regres-
so da Europa e cujo trabalho isolado no Rio alcançava receptividade
entre os modernos. Flávio de Carvalho, presente com trabalhos em
diversificadas técnicas, certamente surpreendia com a peça "Monu-
mento Funerário Modernista", enraizada em princípios cubistas e
inteiramente divorciada dos padrões da maioria dos escultores do
salão.
Tentando a coexistência entre tradição e modernidade, figuravam
Eugênio de Proença Sigaud (1899-1979) e Edson Motta (1910-81).
Vittorio Gobbis (1894-1968) e Paulo Rossi Osir (1890-1959), que
começavam a firmar-se em São Paulo, faziam-se conhecer no Rio. Mas
o comparecimento bandeirante marcava-se essencialmente pelas per-
sonagens da tradição modernista. "É-me grato constatar que o suces-
so do Salão contou com um elemento decisivo na contribuição paulis-
ta", afirma Manuel Bandeira''".
A seção de arquitetura englobava-se no espírito renovador da
exposição, documentando as principais etapas de uma arte que no
Brasil se definiria muito rapidamente nesse decênio. Achavam-se pre-
sentes Warchavchik e Flávio de Carvalho, um com a sua lição ortodoxa
e outro trazendo a inquietude visionária de seu espírito. Expunham
também os jovens Lúcio Costa, Marcelo Roberto (1908-64) e Affonso
Eduardo Reidy (1909-64), que em breve desempenhariam importante· 579
papel na arquitetura moderna do país.

8.18 Agrupamentos de artistas no Rio e São Paulo

o espírito de associação manifestou-se em sucessivas iniciativas


dos artistas no decênio 30. No Rio e São Paulo criaram-se vários gru-
pos, cujo exemplo seria seguido fora dessas cidades sobretudo na dé-
cada de 1940. Entre outros eventos do período destacam-se o Salão
de Maio e as exposições da Família Artística Paulista.
O Núcleo Bernardelli No mesmo ano do "Salão Revolucionário", fundava-se no Rio o
"Núcleo Bernardelli - Movimento Livre de Artes Plásticas". Uma atitu-
de de independência diante da orientação imprimida ao ensino pela
ENBA motivou seus jovens integrantes, liderados pelo pintor Edson
Motta. Homenageavam os antigos professores da Escola (Rodolfo e
Henrique Bernardelli) e tinham em mente a formação de artistas sendo
desde logo evidente o comedimento dos princípios de renovação dos
seus membros.
O Núcleo apareceu modestamente - e assim permaneceria -
funcionando como atelier livre nos porões da ENBA. Pressionado pela
atmosfera reacionária da Escola, mudou-se em 1936 para a rua São
José e posteriormente para a Praça da República, atravessando a dé-
cada até extinguir-se no ano de 1940. Suas condições sempre foram
precárias, equivalendo-se à pobreza e à boêmia dos seus mantene-
dores. Os artistas do Núcleo Bernardelli eram, além de Edson Motta,
Bráulio Poiava (1904), Bustamante Sá (1907), Expedido Camargo
Freire (1908), Milton Dacosta, João José Rescala (1910), Ado Mala-
goli (1906), Martinho de Haro (1907), Eugênio Proença Sigaud, José
Pancetti, Yoshyia Takaoka (1909-78), José Gomez Correia (1915), Yuji
Tamaki (1916-79), mais os preceptores Bruno Lechowski (1889-
-1941), Manuel Santiago e Ouirino Campofiorito (1902). Caracteriza-
va-os uma rigorosa dedicação ao aprendizado técnico. Desenhavam
com modelo vivo à noite, saíam nos fins de semana para o campo
"procurando o quadro composto" 200 Os temas mais constantes do
grupo foram a paisagem e a figura humana, notando-se a influência
impressionista O pintor polonês Bruno Lechowski excursionava à praia
para a pintura de marinhas. Como veremos, Campofiorito e Sigaud
aplicaram-se à pintura de fundo social. José Pancetti, personalidade
essencial do grupo, deveu seu aprofundamento técnico e expressivo a
Bustamante Sá, Takaoka e Lechowski, sobretudo. Junto ao Núcleo for-
mou-se .Joaouirn Tenreiro (1906), Já um projetista de móveis. Sem
livrar-se inteiramente do espírito passadista e às vezes a este condicio-
nado, incentivando o estudo num meio pouco informado do movimen-
to moderno internacional ou promovendo exposições de seus
membros, o Núcleo Bernardelli não deixou de adquirir um sentido para
o desenvolvimento da arte no Brasil na década de 193Q201.
A SPAM Mais densa que no Rio foi a vivência artística comunitária em São
Paulo nos anos 30, a concluir-se pelo número e desempenho de suas
580 associações. Em fins de novembro de 1932, à diferença de um dia,
criaram-se a Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) e o Clube dos Artis-
tas Modernos (CAM)202, arregimentações que, como se disse, pre-
ludiaram outras na segunda metade da década.
A SPAM reunia muitas das figuras do primeiro Modernismo, era
uma sobrevivência dele e dos hábitos locais de fazer a alta classe
patrocinar a arte. Almejava "criar um ambiente mais propício aos artis-
tas, que os incentivasse, alargando o seu contato com os amadores de
arte e com o público em geral"203. Embora não fosse além de um cur-
to período de existência (janeiro de 1932 a março de 1934) a SPAM
cumpriu algumas tarefas que representaram aquisições para a cultura
da cidade e do país Entre elas a inédita iniciativa de organizar duas
manifestações que se tornariam famosas: o "Carnaval na Cidade de
SPAM" e a "Expedição às Matas Virgens da Sparnolândia". No seu ati-
vo estão também duas exposições coletivas e outros eventos.
Os bailes de Carnaval, a princípio meros pretextos para obtenção
de fundos para a sociedade, transformaram-se, sob a direção de Lasar
Segall, em projetos de criação de ambientes e ações programadas. O
primeiro dos eventos, realizado nos salões do Trocadero (16 fev.
1933), transcorreu numa cidade imaginária construída com painéis
pintados. Vestindo roupas especialmente confeccionadas, os partici-
pantes exerciam várias funções, subordinados a um prefeito. No fun-
cionamento da pequena urbe a ficção humorada contracenava com a
crítica à realidade. Esta significação era transparente na aura carica-
tural dos figurinos e na decoração expressionista, orientada por Sega 11.
Colaboraram com o autor do projeto, Paulo Rossi Osir. Vittorio Gobbis,
John Graz, Anita Malfatti, Ester Bessel (1908-64), Regina Gomide
Graz, Arnaldo Barbosa (1902), Moussia Pinto Alves (1910), José
Washt Rodrigues (1891-1957), Hugo Adami (1900), Jenny Klabin
Segall (1900-67), Anita Burman, Waldemar Gerschow e Paulo Mendes
de Almeida 204 . A Camargo Guarnieri coube compor o Hino da SPAM e
a Chinita Ullman apresentar danças expressionistas (de que é pioneira
no Brasil) à frente de um pequeno corpo de baile.
O segundo baile de Carnaval - "Expedição às Matas Virgens da
Spamolândia" - teve lugar um ano depois numa "vasta pista de pati-
759

758 Lasar Segall - projeto para


decoração do baile da SPAM, 1933, , ~
aquarelae lápis s/papel vegetal, 36 x 56, col.
Museu Lasar Segall, São Paulo. 581
759 Lasar Segall - "Porta-Estandarte",
1933, (baile de carnaval da SPAM),
aquarela, 46,5 x 36, col. Museu Lasar
Sega11,São Paulo.
760 Lasar Segall - "Tigre com Chifres",
SPAM (Da série "Animais Fantásticos"),
1934, aquarela, 22,5 x 29,5, col. Museu
Lasar Segall, São Paulo.
761 Lasar Segall - "Pássaro 11", SPAM,
1934, aquarela e bico-de-pena, 29.4 x 22,5,
cal. Museu Lasar Segall, São Paulo.
762 Lasar Segall - "Máscara para
Carnavaldo SPAM", 1934, aquarela,
47 x 35,5, col. Museu Lasar Segall, São
Paulo.
763 Lasar Segall - "Estudo para Baile
do SPAM", 1934, aquarela. 33 x 22.4, col.
Museu Lasar Segall, São Paulo.
760

761 762 763


__ _ "_ _ ~ __ ~__ _ ~_, _T ~ _

- --

nação da rua Martinho Prado ( .. .) transformada numa bárbara seI-


va" 205. com animais monstruosos. Diz Paulo Mendes de Almeida: -"O
baile reafirmou o sucesso do anterior. Em plena selva. houve a
recepção ao Príncipe Carnaval. que era o ator Procópio Ferreira, sauda-
do à chegada com bailados exóticos. dirigidos por Chinita Ullman e
Kitty Bodenhein. estando a música aos cuidados dos maestros Mozart
Camargo Guarnieri e Ernst Mehlich"206. Uma vez mais nessa
decoração, de grande porte, diferenciada da primeira pelo barroquismo
da concepção, impunha-se o ímpeto ordenado de Segal!. Não é difícil
supor que dos alucinantes cenários do cinema expressioniata derivas-
sem influências no projeto e que de Macunaíma e outras obras antro-
pofágicas recentes procedessem estímulos para essa "bárbara selva".
Mantinha-se aqui a crítica ao estab/ishment citadino. Segall mesclava
motivos colhidos na arte indígena e figurações imaginárias. certamente
estabelecendo um espaço envolvente para a participação do público.
Tomaram parte na ambientação alguns dos artistas que -já haviam tra-
balhado ao lado de Segall e gente recém-chegada. como Gastão Worms
(1905-67) e Armando Balloni (1901-69)207. Uma festa de Carnaval
582 prestava-se assim a uma manifestação articulada de várias linguagens
artísticas.
As duas exposições da SPAM tiveram suas peculiaridades. A pri-
meira, realizada em abril-maio de 1933, contou com pinturas e escul-
turas de artistas da Escola de Paris, colecionadas em São Paulo, como
foi visto. A elas juntaram-se obras de membros da SPAM, como Anita,
Brecheret, Segall, Tarsila, Gomide, John Graz. Regina Graz, Hugo Ada-
mi, Gobbis. Rossi Osir. Ester Bessel. Moussia Pinto Alves e Arnaldo
Barbosa. Na introdução ao catálogo, modesto mas de uma qualidade
rara para os padrões da época, Mário de Andrade constatava o interes-
se dos pintores pela natureza e a "ausência de arte social entre nós".
Defendendo agora uma arte a seu ver de responsabilidade social, cla-
ma por modelos que revelem "uma compreensão da vida", declarando
ademais: "O que realmente faz falta em nossa pintura spamista são
criadores de ordem social". A liberalidade do meio artístico da SPAM,
de fato. não tinha em mira esse objetivo que aparece individualmente
em raros de seus associados.
A segunda exposição, de fevereiro de 1934. no Rink S. Paulo, era
dedicada a artistas modernos do Rio, uma tentativa de aproximar o
movimento artístico das duas capitais, sempre de escassos contatos
entre si. A participação incluía Di Cavalcanti, Ismael Nery, Guignard,
Portinari. Orlando Teruz. Bruno Lechowsky e o pintor primitivo Cardoso
Júnior (1861-1947).
Várias outras manifestações foram promovidas pela SPAM. que
instalara sede na Praça da República. Cisões internas, entretanto,
abalaram a sociedade desde os fins de 1933, quando Segall se demi-
tiu da comissão-executiva. Adeptos do integralismo - ou seja, a versão
fascista cabocla - pertencentes à sociedade paulistana. discriminavam
brasileiros, estrangeiros e especialmente judeus, levando a agremiação
a uma situação moral insustentável e à sua própria extinçã020B.
O CAM Uma atitude mais independente e um programa ativíssimo carac-
terizaram o CAM, confrontado à SPAM. Surgido da vontade de Flávio
de Carvalho e de sua aliança com Di Cavalcanti, Gomide e Carlos Pra-
do (1908). o grupo contestava indiretamente a sua 'concorrente': "de-
testamos elites - não temos sócios doadores". Seus volantes eram de
linguagem desabrida. Acenava o CAM a vários intentos. entre eles. a
possibilidade de promover exposições. Dizia-se organizado para vender
a produção dos artistas. propósito temerário para a época. Mas a asso-
ciação. funcionando à rua Pedro Lessa n9 2. nos baixos do viaduto de
Santa Ifigênia. onde originariamente os seus fundadores se haviam ins-
talado com atelieres. sem dúvida atingiu parte dos propósitos visados.
sobretudo como espaço aberto de manifestações culturais. Ao lado de
algumas raras exposições de valor artístico ou documental. como a
mostra gráfica da expressionista alemã Kaethe Kolwitz (1867-1945). e
as de cartazes russos. de trabalhos infantis e de psicopatas. promoveu
recitais de canto e música. além de uma série de palestras e debates
de conteúdo variado. e sobretudo engajado em problemas sociais. a
cargo de Caio Prado Jr. e Mário Pedrosa. entre outros. Foi ainda criado
um setor teatral - o chamado Teatro da Experiência - inaugurado em
fins de 1933 com a peça Bailado do deus morto. escrita e co-dirigida
por Flávio de Carvalho e considerada tentativa avançada entre nós para
o período. Cogitava-se. ainda. de montar a peça O homem e o cavalo
de Oswald de Andrade. Mas o teatro seria fechado sumariamente pela
polícia nas sessões iniciais. O CAM era pouco apreciado em sua 583
liberalidade pelo regime de tendência ditatorial. De uma afirmação do
autor de Bailado do deus morto depreende-se que o clero instigara as
autoridades a praticar a violência. O arbítrio motivou aquele que é cer-
tamente o primeiro abaixo-assinado de protesto de intelectuais e artis-
tas brasileirosê'". A decisão que golpeou o Teatro da Experiência aca-
bou por contaminar todo o CAM. Debatendo-se ainda em dificuldades
financeiras. encerrou suas atividades em fins de 193;i.
Assim como Sega 11na SPAM. Flávio de CarvalheÍ foi o esteio do
CAM. A discriminação racial do próprio meio artísticó afetou a SPAM.
enquanto a censura prejudicou irremediavelmente o CAM. Esses fatos
contribuíram para a efemeridade de ambas as organizações. que mes-
mo assim constituíram elos importantes no processo modernista.
o Salão de Maio Se o CAM e a SPAM deixavam de existir. permanecia a necessi-
dade de somar esforços no meio artístico paulista. que intercalava
momentos de entusiasmo e de irresolução. Em 1937 surgiram. inter-
vaiados por poucos meses. dois movimentos marcantes: um que levou
à realização dos Salões de Maio e outro à formação da Família Artísti-
ca Paulista (FAPl. Essas duas frentes. através de seus ecléticos partici-
pantes. punham à mostra uma conciliação entre insistentes influxos
internacionais e a idiossincrasia gerada no ambiente. situação mais
evidente em São Paulo que em outras capitais brasileiras. por reflexo
de um meio social onde é grande a presença de artistas estrangeiros.
como por suas específicas condições de cidade industrializada. Mas
então. já de algum tempo. tomara corpo espontaneamente o depois
chamado Grupo Santa Helena. O Salão de Maio. de que se falará
agora. foi repetido em 1938 e 1939. Ouirino da Silva. que se havia
fixado em São Paulo. tornou-se o seu principal organizador. Geraldo
Ferraz e Flávio de Carvalho o coadjuvaram até o III Salão. quando uma
divergência afastaria Ouirino da Silva. assumindo então Flávio a res-
ponsabilidade maior da mcstraê!".
É fora de dúvida que o Salão de Maio revelou-se modelar para o
meio. O II Salão (1938) reuniu artistas locais em número dos mais
expressivos. além de estrangeiros. contando-se vários ingleses de ten-
dência surrealista. como Ceri Richards (1903) e Roland Penrose
!AI.ÃD (1900)
Nicholson
desenhos
e uma das principais
(1894-1982).
e gravuras. Eram
figuras
Esse
também
da arte abstrata
grupo trazia
apresentadas
naquele
guaches,
país, Ben
aquarelas,
xilografias dos

~.MAID expressionistas
León (1897).
mexicanos
Se no II Salão
Leopoldo
se haviam
Mendez (1902-69)
sobressaído
entre os artistas do exterior, no seguinte o domínio era de artistas das
e Dias
os surrealistas,
de

correntes abstratas, destacando-se Josef Albers (1888-1976). Alberto


Magnelli (1888-1971) e Alexander Calder (1898-1976), com pinturas,
gravuras e outras técnicas, o último representado também com um
mobile. Embora a presença desses artistas se devesse principalmente
aos relacionamentos de Flávio de Carvalho, o Salão de Maio soube

11!13B impor-se
novas correntes
serem
pela

assimiladas
consciência
internacionais
e diante
da necessidade
da arte, entretanto,
das quais parte
de intercâmbio
pouco suscetíveis
importante
com

da crítica
as
de

demonstrava-se despreparada.
764 Capa do catálogo do II Salão de Além da justaposição de nacionais e estrangeiros, antecipando a
Maio. São Paulo. 1938.
práxis das Bienais de São Paulo, era importante a busca de representa-
tividade das posições de atualidade no meio, objetivo alcançado em
584 boa parte. Ressalte-se, em particular, como qualidade cultural das
exposições, que todos os salões contaram com atividades paralelas de
palestras e debates. Um aspecto positivo foi ainda o preparo dos
catálogos, muito superiores à média. O de 1939 foi incluído na pri-
meira e única Revista Anual do Salão de Maio, publicação antológica
que reúne depoimentos sobre o Modernismo e textos sobre arquite-
tura, literatura, música e cinema. A produção gráfica da RASM, de Flá-
vio, com sua áspera capa de alumínio, também escapava à rotina.
A afluência maior ao Salão de Maio - os primeiros dois realiza-
dos no Esplanada Hotel e o último na Galeria Itá211 - era das gerações
em ascensão em São Paulo, havendo inclusive "principiantes" (sic)
que haviam submetido obras à comissão orqanizadora+". A primeira
geração modernista participou com quase todos os membros princi-
pais (Anita, Brecheret Di Calvalcanti, Segall, Tarsila, Gceldi). Do Rio
compareceram uma ou duas vezes, nos dois primeiros salões, além do
gravador Goeldi e Cícero Dias, pintores que se firmavam nos anos 30,
como Guignard, Portinari, Orlando Teruz e Santa Rosa, entre outros.
Dos paulistas ou radicados em São Paulo, afora alguns raros apareci-
dos ainda na década anterior, como Hugo Adami, Quirino da Silva, Flá-
vio de Carvalho, o grosso do contingente (nos três salões) era, como
dissemos, parcela da nova leva. Surgem entre esses participantes -
com alguns estrangeiros fixados na cidade bandeirante - pintores, escul-
tores, desenhistas e gravadores, cujos nomes já eram ou viriam a ser
conhecidos: Vittorio Gobbis, Paulo Rossi Osir, Carlos Prado, Lívio Abra-
mo (1903). Waldemar da Costa' (1904-82), Alfredo Volpi (1896),
Rebolo Gonsales (1902-80). Fulvio Pennacchi (1905), Manoel Martins
(1911-79), Nelson Nóbrega (1900). Yolanda Mohalyi (1909-78). Elisa-
beth Nobiling (1902-75). Moussia Pinto Alves, Lisa Ficker Hofmann
(1879-1964), Renée Lefêvre (1907), Jacob Ruchti (1917-74). Oswald
Andrade Filho (1914-72), Gervasio Furrest Mufioz (1893), Bernard
Rudosfsky (1907), Ernesto de Fiori, Odette de Freitas (1897) e Lucy
Citti Ferreira (1914).
Um contraste separava drasticamente o surrealismo ou a
abstração dos artistas estrangeiros, no confronto com os brasileiros.
Depois das duas primeiras e efervescentes décadas, o movimento
artístico europeu arrefecera algo nos anos 20, aquietando-se ainda na
década seguinte, período em que se consolidam as correntes abstra-
tas. Em termos locais, como já se frisou, o formalismo da primeira
geração modernista cedera aos empenhos conteudistas da sua suces-
sora que, através de soluções expressionistas, voltava-se com freqüên-
cia para a realidade mais imediata da vida brasileira. As preocupações
sociais espraiavam-se, acompanhadas do fervor pela paisagem prole-
tarizada, cultivada sobretudo por vários artistas de São Paulo. Esses
aportes e o Expressionismo mais existencial (Segall, Goeldi, Yolanda
Mohalyi) ladeavam no Salão de Maio os onirismos de Guignard e Cí-
cero Dias, o popularesco de Gomide, e outras figurações mais esteti-
zantes. A pintura prevalecia diante da raridade da escultura - estabili-
zada nos princípios expressionistas ou sintéticos da captação da figura
humana - setor onde, além de Brecheret. figuravam Flávio de Car-
valho, Gervásio Furrest Munoz. Elisabeth Nobiling e Ernesto de Fiori,
recém-chegado da Europa, nomes que por ora apenas regjstramos,
além de Quirino da Silva. Exceção no conjunto brasileiro eram as
peças "Espaços" (em alumínio) e "Construção Linear" (em arame), do
escultor e arquiteto Jacob Ruchti, um estudante rebelde do Mackenzie. 585
Na primeira obra relaciona espaços exprimindo-se por puras formas
abstratas, de espírito construtivista, linha em que se pode considerá-Io
precursor no país.
Por outras palavras: o Salão de Maio documentava aspectos
sensíveis da evolução artística brasileira, em particular de São Paulo,
onde artistas europeus alargavam aquela parte da instauração definida
pelas condições locais. A incidência de valores internacionais era de
ordem bastante genérica, ligada aos princípios de construção formal
mais livre e pouco ou nada tinha a ver com o que mostravam os convi-
dados estrangeiros. Formalmente, a situação dos artistas brasileiros ou
aqui residentes revelava-se em geral refluída, sem ímpetos vanguardis-
tas, sem endossos ainda ao dominante apelo a formulações abstratas.
O Salão de Maio assinalava essa discrepância e ao mesmo tempo
sobrelevava a necessidade de romper isolamentos culturais.
O Grupo Santa Helena Por volta de 1935-36 tomava consistência em São Paulo um nú-
cleo de artistas de origem social modesta, concentrados em atelieres
improvisados do Palacete Santa Helena, no centro da cidade, onde se
localizavam numerosos escritórios de profissionais liberais e onde tinha
sede a entidade representativa dos sindicatos operários. Descendiam
quase todos de famílias de imigrantes italianos e sua condição prole-
tária ou pequeno-burguesa caracterizava-os no confronto com os
modernistas dos anos 20. Autodidatas ou ex-alunos do Liceu de Artes
e Ofícios, também por esse aspecto diferenciavam-se da geração pio-
neira.
Exerciam-se na pintura decorativa de residência, entre outras tare-
fas, e este vínculo profissional tornou-se fator decisivo para a sua apro-
ximação, que perdurou com mais força até o início dos anos 40. Foi
sem idéias preconcebidas que deram forma a uma existência comuni-
tária. Mostravam-se ciosos da necessidade do conhecimento dos
materiais e das técnicas da arte e esteticamente tiravam proveito da
petite sensation do Impressionismo, como das formas construídas de
Cézanne ou ainda do traço incisivo de Van Gogh. É de relevar-se a
influência que recebiam da pintura italiana - à qual se ligavam natural-
mente pela sua quase sempre origem peninsular ou pelo que capta-
vam de pintores visitantes ou radicados no meio e ainda pela infor-
mação fotográfica. A pintura do Grupo "Novecento". por exemplo,
repercurtia na capital paulista ..
Não se aproximando das linhas de vanguarda, mas ao mesmo
tempo guardando distância das regras acadêmicas, escolheram o
caminho de um Modernismo contido. A obra que produziram, com atri-
butos comuns, reflete em primeiro lugar o extrato social a que perten-
cem - e demonstra-o o seu pro/etarismo, como afirma Mário de
Andrade 213. Prevalecem em suas representações, as paisagens humil-
des despojadas, os arrabaldes operários anônimos, as naturezas-mor-
tas, a figura humana popular, os temas religiosos e alguns outros raros
motivos por onde definiram as limitações do seu próprio quadro de
vida. Nas soluções plásticas predominou o registro tecnicamente
acurado das emoções experimentadas, valendo-se nas cores de terras
e cinzas. Pertencem ao Grupo Santa Helena os pintores Francisco
Rebolo Gonsales, Mário Zanini (1907 - 71), os primeiros a instalar
atelier no prédio, Aldo Bonadei (1906 - 74), Alfredo Volpi, Clóvis Gra-
ciano (1907), Fulvio Pennacchi, Manoel Martins, Alfredo Rullo Rizzotti
586 (1909 - 72) e Humberto Rosa (1908 - 48). Vários outros artistas,
porém, freqüentavam os atelieres do edifício da velha praça da Sé,
sobretudo os de Rebolo e Mário Zanini.
A FAP e o sindicato Ao constituir-se em 1937 a Família Artística Paulista, por iniciati-
va de Paulo Rossi Osir. todos os pintores do Grupo Santa Helena
integraram-se a esse movimento promotor de três exposições, em
1937 e 1939 (São Paulo) e 1940 (Rio de Janeiro). A Família Artística
Paulista era criada no mesmo ano que o Salão de Maio e não deixou
de traduzir algum espírito de competição, embora houvesse artistas
participantes em ambas as mostras. Geraldo Ferraz, um dos responsá-
veis pelo Salão de Maio, definia desaforadamente os membros da FAP
como "tradicionalistas" e "defensores do carcarnanisrno artístico da
Paulicéia". a morrer de amores pelos processos de Giotto (1266
-1337) e Cimabue (c. 1240 - c.1302)214. Mas à FAP não faltaria o
reconhecimento de Mário de Andrade, Paulo Mendes de Almeida, Sér-
gio Milliet ou Antônio Bento, o primeiro, especialmente, autor de um
ensaio de dupla visada, psicológica e sociológica, de muita argúcia,
sobre o grupo, mas em que procura 'conter' em alguns limites a men-
sagem desses artistas.
Da primeira mostra da Família, realizada no Hotel Esplanada
(1937), participavam, além do organizador Paulo Rossi Osir e Vittorio
Gobbis, ou seja, dois dos pintores de maior experiência e conhecimen-
to no meio, a pioneira Anita Malfatti - que prestigiava assim um setor
de arte paulista em boa parte surgido fora do âmbito da burguesia-,
os artistas do Grupo Santa Helena, além dos pintores Armando Balloni,
Waldemar da Costa e Arnaldo Barbosa, e dos escultores Arthur P. Krug
(1896-1964) e Joaquim Figueira (1907-43). O catálogo tinha a apre-
sentação do crítico Paulo Mendes de Almeida, íntimo do grupo, e era
epigrafada com um pensamento de Ozenfant e Jeanneret: "A Pintura
vale pela qualidade dos elementos plásticos e não por suas possibilida-
des representativas ou narrativas".
A segunda mostra, aberta nos salões do Automóvel Clube (1939),
contou com um ·"expositor de honra", Cândido Portinari, e os membros
do Grupo Santa Helena, à exceção de Rosa, incluindo Alfredo Rullo
Rizzotti e mais: Ernesto de Fiori, Bernardo Rudofsky, Hugo Adami,
Domingos V. de Toledo Piza (1887-1945), Nelson Nóbrega, Nelson
MAIO IVNHO 1939
Barbosa, Renée Lefévre e Vilanova Artigas (1915). Assim, estrangeiros
ilustres, como o escultor e pintor Ernesto de Fiori e o arquiteto e pintor
Rudofsky, participantes do Salão de Maio, inscreviam obras na expo-
II
sição da FAP, bem como o paisagista brasileiro por muitos anos resi-
fALAb dente na França, Toledo Piza, além do estudante de arquitetura Vilano-
DA va Artigas, interessado no desenho.
A exemplo da anterior, a última mostra da Família, promovida no
Palace Hotel do Rio, em 1940, pela Associação dos Artistas Brasileiros
e a revista Aspectos, apresentava alguns novos no elenco, ao lado de
FAMILIA Paulo Rossi Osir. dos membros do Grupo Santa Helena e seu círculo
próximo. A lista completa dos expositores foi a seguinte: Anita Malfatti,
ARTUTI( A Paulo Rossi Osir. Vittorio Gobbis. Domingos V. de Toledo Piza, Alfredo
PAYLI STA Volpi, Arnaldo
Gonsales,
Barbosa,
Franco Cenni (1909-73),
Alfredo Rullo Rizzotti, Clóvis Graciano,
Fulvio Pennacchi, Humberto
Rebolo
Rosa,
~VA LIBERO BADi\RO 287
Nelson Barbosa, Nelson: Nóbrega, Manoel Martins, Mário Zanini. Paulo
Sangiuliano, Renée Lefévre, Vicente Mecozzi (1909-64), Waldemar da
768
Costa, Ernesto de Fiori, Arthur P. Krug, Bruno Giorgi (1905), Joaquim
FAMILIA
GRUPO DOS
ARTISTICA
ARTISTAS
PAULISTA
PlASTICOS
Figueira e Carlos Scliar (1920). 587
$td, P,o_ito,io • Alam. 80r60 de limeira, 109 • Ap_ 14 • Telephone 4-0325
Não deve ser ignorado outro movimento surgido no meio paulis-
, tano na segunda metade do decênio de 1930 e de caráter mais fecha-
w"~..............c 1,1...<-<,. ~ d.( /IP úp
1 •
i ~....::t.o~:
•....•. do por reunir exclusivamente artistas da colônia japonesa. O Grupo
"~-~~'a......,-~ .•••.. Seibi era formado inicialmente pelos pintores Tomoo Handa (1906),
_.~'c..:...~é. .•~(7~.,,:.,_
1'''' d.v> ~..t.-, " J----~-
1:2....:...4 ..••....•. Walter Shigeto Tanaka (1910-70), Yuji Tamaki e Yoshyia Takaoka. a
"'-""'"~-4 ~ ~ ~ sua figura de maior projeção. Estes dois últimos já haviam sido atuan-
~~~~'~r'~~·.....r~'r-
Âc ••..•.

D-<-<-'4,~ ~
tes no Núcleo Bernardelli. O Seibikai (Grupo de Artistas Plásticos de
~. São Paulo), que abriu a primeira exposição em 1938, teve longa
,.t. r--r-'-/~ ~-----.~
r - ~"":"""..t-., "<-'j---<- /4 -r-- ~ duração, sofreu uma interrupção devido à Segunda Guerra, incentivou
~~~~r-- a prática amadora da arte, só se extinguindo na década de 1970. Seus
.•.~;----:-s..--... ~-~ ~~ participantes daquele período, em geral de nível modesto, revelavam
~- r ~ ~ ,é'~ _

r---A.~,~~ todavia traços comuns à índole dos componentes do Grupo Santa


,,~-...~'~v- Helena21s.
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Se o Salão de Maio trazia sua última versão em 1939 e a FAP
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~ ~. ~---;.,...r",..,.~'
,~ d -6--.-'1••..• ""'- ~ ~ dissolvia-se no ano seguinte, desde 1938 a Sociedade Paulista de
(~~~~ Belas-Artes transformava-se em Sindicato dos Artistas Plásticos de São
""~/~'~'~ 4-?-'_'A ... Pau10216. Ganhava-se com isso um salão que será levado adiante até
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~~~~'.
1949. Admitindo os mais conformistas ao lado dos modernos, o Salão
C' I~ ') o ~

do Sindicato, desde o começo da década de 1940, registrou predomí-


nio destes últimos, por suas antigas e novas gerações. A significação
da mostra anual do Sindicato está no preenchimento do vazio deixado
765 Capa do catálogo do II Salão da por manifestações extintas e a oportunidade constante dada aos artis-
Família Artística Paulista. São Paulo, 1939.
Ilustração de Fulvio Pennacchi. tas da leva dos anos 40. A crédito do Sindicato vai também a tarefa de
766 Família Artística Paulista Grupo dos divulgação artística através de mostras em bairros.
Artistas Plásticos, Carta assinada por Clóvis
Graciano, dirigente da Família Artística Outra exposição, que pretendia continuidade, o Salão de Arte da
Paulista.
Feira Nacional de Indústrias, não passou do primeiro evento, em
1941. Trata-se de uma aproximação mútua entre artistas e empre-
sários, contando seus organizadores - Quirino da Silva, Vittorio Gobbis
e o jornalista Elias Chaves Neto - com o apoio de numerosos partici-
pantes. Seria do meio empresarial paulista que surgiria mais tarde,
como lembra Paulo Mendes de Almeida, a iniciativa da criação do
Museu de Arte Moderna2H Ao mesmo tempo que o Sindicato, o Con-
selho de Orientação Artística do Estado patrocinava o Salão Paulista
de Belas-Artes, freqüentado pelos acadêmicos.
- - ~-- -- - - -- , - ~ ~

8.19 A obra de Portinari

A partir do Salão de 1931, o Rio, longa mente reduzido a raros e


isolados artistas modernistas, daria mostras de maior receptividade às
recentes mutações da arte. De velha data sede do ensino artístico ofi-
cial e residência dos principais representantes da arte tradicional, esse
ambiente conservador enfrentava pela primeira vez a discordância
ampla e decidida. A oposição ao seu conformismo fazia-se sentir parti-
cularmente em artistas que concatenavam a liberdade formal e os con-
teúdos sociais do quadro da existência brasileira. À transformação cul-
tural de um ex-aluno da ENBA, por longo tempo fiel às raízes do seu
aprendizado, Cândido Portinari, deve-se a contribuição maior de afir-
mação do Modernismo diante dos sistemas canônicos de represen-
tação e conseqüente enfraquecimento destes. Pelos anos 30, o pintor
nascido em Brodósqui (SPl. em 1903, iria adquirindo o próprio status
de um símbolo, tornando-se o seu nome equivalente ao da noção de
588 'arte moderna' para largos estratos do público brasileiro. Algo
semelhante ao que poderia significar para muitos, na esfera internacio-
nal, o nome de Picasse.
Os decênios de 1930 e 40, principalmente o primeiro, foram os
de importância decisiva na carreira do artista, que manteria no entanto
características experimentais técnico/expressivas. A estada na Europa,
entre 1928-30, graças a prêmio de viagem, obtido por méritos
próprios no Salão Nacional de Belas-Artes de 1928, trouxera-lhe as
condições fundamentais para a superação da atitude artística conven-
cional. Duas fontes plásticas distintas marcariam sobretudo sua obra
a contemporaneidade parisiense e a pintura italiana do Quattrocento.
767 Capa do catálogo da Exposição Desde o regresso ao Brasil ele confrontará esses modelos com a visão
Portinari. São Paulo, 1934.
da realidade local. A pintura mexicana será outra instigação para a
logo revelada inclinação muralista de Portinari.
Em carta datada da Europa e, portanto, do momento em que
incubava os códigos pictóricos que o orientariam no futuro, o filho de
imigrantes toscanos deixava clara a presença em seu espírito da afini-
dade visceral que guardava com as origens geográficas - a terra roxa
de Brodósqui e sua gente218. Desde esse núcleo subliminar de visão,
irradiar-se-é toda a sua temática de enfoque do habitat nacional e da
natureza humana a ele relacionado. Portinari dialetizou aqueles
poderosos elementos de linguagem na interpretação plástica do
ambiente nativo. Valeu-se de uma imaginação coordenadora que, em
parte essencial de sua obra, enfatiza as características antropológicas e
as condições sociais do povo brasileiro.
Vimos que seus quadros já despertavam atenção no Salão
Revolucionário, acontecendo o mesmo quando das individuais que
organizou no Rio (1922-1933) e em São Paulo (1934). Portinari cho-
cava e ao mesmo tempo interessava pela versatilidade dos recursos
técnicos, iconográficos e expressivos. Na época pintava sob encomen-
da muitos retratos, de precisão mas destituídos de inventividade, e ao
mesmo tempo, controvertidamente, captava a vivência popular. Seria
esta última opção que determinaria sua posição na arte.
Entre as principais telas a óleo do pintor nos anos 30, de várias
coleções de museus e particulares, encontram-se "Morro" (1933),
"Baiana e Crianças" (1933), "Casamento em Brodósqui". "O Homem
dos Sorvetes" (1934), "Café" (1934), "Carregadores de Café" (1934),
"Mulatas à Beira Rio" (1934), "O Mestiço" (1934), "Futebol" (1935),
"Domingo no Morro" (1935), "São João", "Sertão" (1936), "Retiran-
tes" (1936), "Circo" (1937) e "Três Mulheres Sentadas" (1940).
Todas são de pequeno ou médio porte, apelando às vezes decidida-
mente para a dimensão mural, o que já se revela em "Café". Nessa
série de quadros, Portinari envolve-se profundamente na caracterização
de tipos (o negro e o mulato, sobretudo), registra o trabalho na roça, o
cotidiano nas favelas dos morros cariocas e no sertão, reminiscências
infantis de Brod6squi e a saga dos retirantes do Nordeste.
O ciclo inteiro impregna-se de forte e inconfundível atmosfera.
Nós a respiramos na sua cor arroxeada predominante, demonstração
do estímulo que o ambiente físico exerce no espírito e nos sentidos do
artista. À realidade intensa da terra ele relaciona figuras e coisas como
componentes inseparáveis. Faz isso com sentido estrutural do espaço,
assimilado do racionalismo da Renascença. No enérgico porte e deli-
neamento formal das figuras serenas vemos os mesmos pontos de ori-
gem, todavia intumescidos pela presença de localizadas deformações 589
expressionistas. Portinari vai direto ao encontro da vida popular,
demonstrando, desde logo, consciência crítica ao abordar temas como
"Café", em que acentua as pesadas condições de trabalho do campo-
nês. A objetividade de sua observação não exclui o prazer poético dos
distanciamentos oníricos (como em "Futebol" e "Circo"), que prece-
deram o approach surrealista da série dos "Espantalhos".
Mário de Andrade explica o comportamento estético do pintor
"De tal forma ele funde a ciência antiga de pintura a uma personalida-
de experimentalista e anti-acadêmica moderna, que de Cândido Porti-
nari se poderá dizer que é o mais moderno dos antigos" 219. Esta recu-
peração cultural é comum no passado e no século XX, bastando recor-
dar-se de Picasse. na própria criação de uma de suas obras fundamen-
tais, "Les Demoiselles d'Aviqnon". As recorrências de Portinari passa-
vam por decidido poder catalisador, amalgamando-se às introspecções
do autor e sua funda empatia com as próprias origens rurais e o clima
da vivência. A determinação do artista está, numa larga margem, colo-
cada na exaltação da humanidade a que se sente pertencer ou a que é
solidário ("aquela gente com aquela roupa e com aquela cor ( ... ) a
minha gente"), como ele escreveu em carta220. O inconformismo e a
rebeldia próprios dos imigrantes que traziam no sangue a luta
ancestral do camponês pelo direito da terra deviam insuflar-lhe a temá-
tica a assumir.
Portinari, que em 1936 tivera a oportunidade de realizar o friso
para o Monumento Rodoviário da estrada Rio-São Paulo - onde enfati-
za uma vez mais o trabalhador, com uma visualidade que lembra o
futuro realismo radical - nesse mesmo ano foi convidado por Gustavo
Capanema para pintar os ciclos econômicos da história do Brasil, des-
tinados ao futuro edifício do Ministério da Educação e Saúde, como
parte de um programa de integração das artes. Portinari, que obtivera
a segunda menção honrosa na exposição internacional do Instituto
Carnegie de Pittsburgh, em 1935, com o quadro "Café", desfrutava de
celebridade crescente e inédita para um pintor no Brasil. Este fato
pesou na escolha do ministro, personalidade esclarecida entre os
governantes da época e que naquela oportunidade apoia:a 'lorajosa-
590

768

768 Pbrtinari - "Café", 1935, óleo


s/tela. 130 x 195, col. MNBA, Rio de
Janeiro.
769 Portinari - "Três Mulheres
Sentadas", 1940, óleo s/tela, 71 x 58,5, col.
Aldo Franco, Rio de Janeiro.

769
mente Le Corbusier e o jovem grupo de arquitetos da capital federal no
seu projeto para a sede do Ministério. As qualidades do pintor se
haviam confirmado nos vários ângulos de sua produção, a começar
pelo domínio dos procedimentos técnicos, enriquecidos pela vocação
experimental. Neste particular, não se poderia negligenciar outro
aspecto do meio emigrantista de onde descende. o de seus recursos e
habilidades artesanais=". Esteticamente, embora o enraizamento euro-
peu, criava uma dimensão própria, impregnada do contexto ecológico
e social do país, retomando, sem o imitar, o exemplo de pintura mural
que, a partir do México, disseminava-se pelas Américas.

Portinari, na temática assistido por Afonso Arinos de Mello Franco


e Rodolfo Garcia, fez prevalecer um ideá rio que realça fundamental-
mente a figura do operário nos ciclos da economia nacional (de "O 591
Corte do Pau-Brasil" a "A Extração da Borracha"). Esse sóbrio conjun-
to de pinturas, concluído em 1944, impõe a incisiva peculiaridade do
artista, quando comparado a Rivera, Orozco (1883-1949) e Siqueiros
(1896-1974), que estimulavam o meio americano na procura de uma
arte de alargado sentido dia lógico. O pintor brasileiro resguardou-se do
sentido popular didático e épico e dos excessos conteudísticos
daqueles artistas. Mesmo ao filiar-se ao PC, nos anos 40, Portinari não
se vinculou ao Realismo Socialista ou a outras soluções de caracteriza-
da natureza política.
Comparadas às implicações sócio-políticas dos afrescos mexica-
nos e sua visão complexa da história da nação, em data recente
empenhada na Revolução, as pinturas de Portinari para o ministério,
710 Portinari - "Construção de uma circunscritas, é verdade, por um roteiro específico, restringem-se a
Rodovia- I", 1936, 61eo s/tela. 96 x 768, enfatizar o trabalho, e até mais que este, o trabalhador, como fator da
Monumento Rodoviário, Rodovia Outra.
711 Portinari - "Mural do Ciclo riqueza. Na iconografia portinaresca o operário é geralmente o
Econômico", 1936-44, afresco, Palácio da negr0222, realçando-se a posição inferiorizada que ocupa. Por aqui o
Cultura, RIo de Janeiro.
artista contraria a harmonia entre capital e trabalho pregada pelo regi-
me, como notou Annateresa Fabris22l.
Do ponto de vista da estruturação plástica, a composição de Por-
tinari, conforme deduziu a mesma pesquisadora, é de uma dinâmica
controlada e obedece a planos geométricos que resguardam a topolo-
gia do espaço, não acompanhando a impetuosidade e a transitorieda-
de das cenas rnexicanasê'". De um desenho pessoal e desenvolto, a
obra impõe-se por princípios formais' derivados da pintura italiana do
século XV, mais propriamente daquela determinada a defi.nir a solidez
e a estaticidade dos volumes. Esses valores eram convertidos à "linha
abstrata da construção moderna", referida por Ruben Navarra22s. Os
afrescos de Portinari, com emprego de deformações visíveis já em "Ca-
fé" e contrastando cores densas e luminosas, constituem um dos
momentos altos da criatividade do artista, muito embora não alcancem
toda a plasticidade revelada na fase dos estudos preparatórios. O pin-
tor sofrera infundadas críticas de Oswald de Andrade e Le Corbusier.
que o haviam levado a "modificar sua primeira intenção", como há
tempos lembrava Mário Barata226.
592
Portinari, que em 1935-37 lecionava pintura na recém-criada Uni-
versidade do Distrito Federal, nos anos a seguir atenderá a várias
encomendas, a começar dos grandes painéis para o Pavilhão do Brasil
na Feira Mundial de Nova York (1939). De sugestão partida do his-
toriador de arte Robert C. Smith, surgiram os murais a têmpera para a
Sala da Fundação Hispânica, da Biblioteca do Congresso de Washing-
ton (1941-42), consagrados à America Latina e que são um desdobra-
mento mais livre das austeras composições do Ministério. Para a Rá-
dio Tupi do Rio (1942-43) e a Rádio Difusora de São Paulo (1944).
pintou painéis respectivamente com motivos brasileiros e assuntos
bíblicos, influenciado por "Guernica". visitada em Nova York. Sua pale-
ta convertera-se então aos cinzais. sob a incidência da mesma obra.
Ainda da primeira metade dos anos 40, são o painel "Jogos Infantis" e
outros trabalhos para o prédio do Ministério, incluindo o desenho dos
azulejos da parte externa, além da por muito tempo anatemizada repre-
sentação de São Francisco para a Igreja da Pampulha (MG)"de Nieme-
ver (1907), assinalada pelo dinamismo do desenho definindo planos e
conjugado às rápidas passagens de tom na ambientação quente das

772 Portinari - "Ciclo Erva-Mate", s/


cores. 593
data, desenho a pastel e crevon s/aapel. Paralelamente ao mural, Portinari prosseguiu com sua pintura de
40 x 40, col. Gustavo Capanema, Rio de
Janeiro.
cavalete. A série de "Espantalhos", do início da década de 1940, apro-
773 Portinari - "Maquete de Fumo", xima-o superficialmente do Surrealismo. Ele retornou aos meninos de
s/data, guache e lápis s/papel colado em
cartão, 42 x 41, col. João Cândido Portinari,
Brodósqui, aos retirantes e pintou cangaceiros. O impacto da desco-
RIo de Janeiro. berta de "Guernica" levara-o a um expressionismo exasperado na
774 Portinari - "Cacau" (9~ parte do
Mural do Ciclo Econômico), 1936-44, caracterização trágica do homem. Exemplos da absorção picassiana
afresco, 280 x 298, Palácio da Cultura, Rio
encontram-se em painéis já citados e em telas como "Retirantes",
de Janeiro.
"Enterro na Rede" e "Criança Morta", todas de 1944, do MASP, que
tratam de condições sub-humanas de existência no Brasil. Na época,
Portinari desejava atuar politicamente na sociedade, como demonstra
sua filiação ao Pc. Esses anos assinalaram-se também na sua traje-
tória por exposições marcantes, como em 1939 no MNBA; 1940, em
algumas cidades norte-americanas: 1942, novamente no Rio; 1946,
na Galeria Charpentier, em Paris; 1948, no MASP. Em 1940 ele parti-
cipa de uma exposição latino-americana no Museu Riverside de Nova
York. Uma fase definida no futuro será a dos desenhos 'israelenses' e
os da série "Dom Ouixote". de linearidade aguçada e cores dominadas
pela luz.
No âmbito das composições murais, o artista prosseguiu muito
ativo, com uma série de trabalhos, sobretudo de conteúdo histórico,
onde ordenou grupos de figuras renovadas por pesquisas de desenho
e cor, sobre espaços não menos refeitos na intensificação dos recortes
geométricos. A diafaneidade da policromia contribuiu para uma atmos-
fera de abstração, mais ótica que táctil. em certas obras finais. Entre
elas estão "Primeira Missa no Brasil" (1947), pintada em Montevidéu,
para o Banco Bcavista. do Rio, "Tiradentes" (1949). para o Colégio de
Cataguases (MG). "A Chegada de Dom João VI ao Brasil" (1952), para
o Banco da Bahia (Salvador). "O Descobrimento do Brasil" (1954),
para o Banco Português do Brasil, no Rio, e o conjunto de 12 pinturas
a óleo e a têmpera, com vários motivos nacionais (1954-56), para a
revista O Cruzeiro, também no Rio. Desde 1953 ele iniciara os painéis
"Guerra" e "Paz" para a ONU, apresentados ao público no Teatro
Municipal do Rio em 1957.
Foram muitas e contrastantes as fases de Portinari. A liberdade
que tomou com respeito à sua linguagem não o levou a descaracteri-
zá-la. nem a torná-Ia uma unidade diversificada. Ao contrário de Lasar
Segall, imerso em introspecções, ele se impôs pelo temperamento
apaixonadamente apegado à exterioridade da vida, dirigindo parte con-
siderável da atenção à realidade circundante. Apenas em Di Cavalcanti
há outra expressão no país-em termos de arte mural, sem que se pos-
sa confrontá-Ia à qualidade constante e ao vasto sentido social da
contribuição portinariana. A influência que exerceu é aspecto inerente
da importância deste artista: ela extravasou o círculo dos que com ele
estudavam ou trabalhavam, a exemplo de Roberto Burle Marx (1909),
Enrico Bianco (1918), Alcides da Rocha Miranda (1909), Aldary Tole-
do (1915) e Rubem Cassa (1905). Um total aproximado de vinte alu-
nos formou-se junto a ele no breve período em que lecionou no Institu-
to das Artes da UDF. A atuação de Portinari, que estreava como pro-
fessor, e a intensidade dos trabalhos desenvolvidos, sem dúvida asse-

594

775

guraram ao efêmero atelier da universidade uma participação nas reali-


zações da década.
Mas até hoje a avaliação exata de Portinari, artista de importância
ímpar no meio - o que é preciso reconhecer em voz alta -, sofre os
percalços da polêmica que o envolveu desde os tempos em que os cír-
culos governamentais da Revolução de 30 e do Estado Novo reitera-
vam-lhe uma preferência declarada. Valeu-lhe isso a fama de 'pintor
oficial' e, pior ainda, a de artista ligado a uma ditadura das mais
repressivas - o que provocou acirrada disputa entre seus defensores e
detratores (portinaristas e antiportinaristasl=". Não se pode· negar,
entretanto, que era ele um "indisposto a transigências", como a propó-
sito do seu' comportamento, definiu-o o insuspeito Graciliano
Ramos228. A análise de sua obra, descontados prejuízos como os que
envolvem parte de sua retratística, assegura-nos a certeza da fidelidade
mantida pelo pintor aos valores plásticos, argamassados com indepen-
dência na vinculação resoluta com os conteúdos sensíveis da realidade
do homem em luta pela sobrevivência.
775 Portinari - "Tiradentes". (painel
para Colégio Cataguases SA, MG) 1949,
têmpera s/tela, 315 x 1800, Palácio
Bandeirantes, São Paulo.
776 Portinari - "Espantalho no Arrozal",
1947, 61eo s/te!a, 60 x 73, col. Mem Xavier
da Silveira, Rio de Janeiro.
777 Portinari - "Criança Morta", 1944,
61eo s/tela. 190 x 190, col. MASP.

777

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