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Duarte-Feitoza 95
CULTURA E DESENVOLVIMENTO:
EXISTEM RESULTADOS E IMPACTOS?
Paulo H. Duarte-Feitoza
A gestão cultural no campo das relações entre cultura e desenvolvimento é muito ampla e, às
vezes, dominada por certa retórica com pouca concretude em seus resultados e efeitos. Este
artigo apresenta resultados e impactos na cultura e no desenvolvimento a partir da discussão
e da análise da janela temática do Fundo para o Alcance dos Objetivos do Milênio (F-ODM),
um dos programas internacionais mais ambiciosos e inovadores das últimas décadas.
Contexto de referência
A
Organização das Nações Unidas amplamente reconhecida como elemento
(ONU) assinou, em setembro de estrutural para alcançar os objetivos tão
2000, a Declaração do Milênio,1 almejados pela comunidade internacio-
cujo objetivo principal é garantir direitos nal. De forma sucessiva, em 2010 e 2011, a
humanos básicos e contribuir de forma efe- ONU aprovou duas resoluções sobre cultura
tiva para a superação da pobreza extrema. e desenvolvimento (65/166 e 66/208) que
Fruto desse histórico acordo internacio- tinham como meta fortalecer e impulsio-
nal foram os oito Objetivos de Desenvolvi- nar globalmente o enfoque cultural para o
mento do Milênio (ODM),2 que deveriam desenvolvimento.3 É preciso ressaltar que
ter sido alcançados em 2015: erradicar a tanto as políticas quanto os projetos cultu-
pobreza extrema e a fome (ODM1); alcan- rais contribuíram muito positivamente para
çar o ensino primário universal (ODM2); alcançar os ODM.
promover a igualdade de gênero e o empo- Em dezembro de 2006, o Programa
deramento das mulheres (ODM3); reduzir das Nações Unidas para o Desenvolvimento
a mortalidade infantil (ODM4); melhorar a (PNUD) e o governo da Espanha assinaram
saúde materna (ODM5); combater o HIV/ um importante acordo de cooperação inter-
Aids, a malária e outras doenças (ODM6); nacional, de aproximadamente 900 milhões
garantir a sustentabilidade ambiental de dólares, como meio de estimular que esse
(ODM7); e gerar uma parceria global para propósito fosse conquistado. Com os recursos
o desenvolvimento (ODM8). foi criado o Fundo para o Alcance dos Obje-
Ainda que não mencionada de for- tivos do Milênio (F-ODM),4 que financiou
ma explícita nos oito ODM, a cultura era projetos nos quais se integraram as diferentes
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agências das Nações Unidas, os governos na- agenda internacional o fortalecimento das
cionais, os governos locais e as comunidades. indústrias criativas e da proteção natural e
É importante destacar que o F-ODM foi um cultural como instrumentos eficazes de de-
elemento-chave da política espanhola de coo- senvolvimento econômico. A Janela de Cul-
peração multilateral para o desenvolvimento tura e Desenvolvimento foi uma inovação
na primeira década do novo século. dentro das abordagens clássicas do PNUD
O F-ODM, segundo dados oficiais, apoiou e das Nações Unidas no âmbito da coope-
130 programas interagenciais em 50 países, de ração internacional ao desenvolvimento, já
cinco continentes, beneficiando de forma dire- que abria novas perspectivas de luta contra
ta mais de 9 milhões de pessoas.5 Os programas a pobreza. Representou também um desafio
foram divididos em oito janelas temáticas: para o próprio sistema de agências da ONU,
que não tratava a cultura como campo prio-
• Infância, Segurança Alimentar ritário na cooperação internacional para o
e Nutrição; desenvolvimento. E permitiu, ainda, a re-
• Igualdade de Gênero e cuperação das identidades culturais como
Empoderamento das Mulheres; expressão de coesão social, memória histó-
• Meio Ambiente e Mudanças rica e patrimônio cultural a partir de uma
Climáticas; perspectiva integral.
• Juventude, Emprego e Migração; Viu-se na cultura um ativo singular para
• Governança Econômica o desenvolvimento sustentável e indispensá-
Democrática; vel para a redução da pobreza. Com um or-
• Desenvolvimento e Setor Privado; çamento de 95,6 milhões de dólares, a Janela
• Prevenção de Conflitos de Cultura e Desenvolvimento possibilitou a
e Construção da Paz; realização de 18 programas em todo o mundo:
• Cultura e Desenvolvimento. África (5), América Latina (5), Ásia (2), Esta-
dos Árabes (3) e Leste Europeu (3).
Assim, conjuntamente, esses programas Foi no documento Termos de Referên-
contribuíram para o progresso e o alcance cia da Janela de Cultura e Desenvolvimento
dos ODM, estimulando a participação nacio- que se desenharam e delimitaram as propos-
nal das iniciativas por parte dos países onde tas a ser consideradas para o financiamento.
eram realizados. Visava-se apoiar a implementação e a ava-
liação de políticas públicas efetivas que pro-
A janela temática em cultura movessem ações sociais e a inclusão social,
e desenvolvimento e seus termos facilitando, assim, a participação política e
de referência a proteção de direitos. Nesse marco de atua-
Uma das grandes inovações do F-ODM foi ção, a janela temática procurava impulsionar
a inclusão de uma janela temática dedicada as indústrias culturais e criativas centradas
exclusivamente à cultura e ao desenvolvi- em políticas de diversidade, cultura e desen-
mento, com a qual foi possível introduzir na volvimento. É importante listar e observar os
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elementos ilustrativos dos Termos de Refe- regulamentos legais nos níveis na-
rência, que pretendiam alcançar os objetivos cional, regional e local, destinados a
principais e também evidenciar a amplidão facilitar a inclusão de minorias cul-
do campo das relações entre cultura e desen- turais em cargos públicos;
volvimento. Os Termos de Referência ser- • desenvolver, implementar e mo-
vem para formular a pergunta sobre o que nitorar políticas de igualdade de
pretendia a janela temática. Essa questão é oportunidades no recrutamento
importante porque é a expressão do desejo e na promoção de minorias cultu-
de inovação nas abordagens clássicas das rais e outros grupos excluídos por
propostas de desenvolvimento. Agrupados razões culturais no setor público
em três grandes blocos, alguns dos Termos (i), inclusive em escritórios desig-
de Referência procuravam:6 nados, no serviço civil e nas forças
de segurança locais, regionais e na-
1. Formulação, implementação e monitora- cionais; (ii) em parlamentos eleitos,
mento de políticas públicas social e cultu- em assembleias subnacionais e em
ralmente inclusivas: cargos ministeriais; e (iii) no Poder
Judiciário e nos tribunais.
• apoiar o diálogo, as iniciativas trans-
culturais e os intercâmbios educa- 2. Concretizar o potencial econômico e so-
cionais destinados a promover a cial do setor cultural e fortalecer as indús-
compreensão e a tolerância entre trias culturais e criativas, incluindo:
diferentes comunidades culturais;
• construir a capacidade institucional • desenvolver recomendações de po-
em órgãos, departamentos e agên- líticas para melhorar o ambiente
cias oficiais responsáveis pela im- institucional e regulatório em se-
plementação de políticas e práticas tores específicos da indústria cul-
culturais que promovem a igualdade tural e criativa, como música, novas
de oportunidades; mídias, design, artesanato, jornais,
• apoiar o interculturalismo e o mul- televisão e livros;
ticulturalismo nas políticas sobre • desenvolver capacidades desenhadas
direito regular, pluralismo jurídico com o intuito de melhorar a gestão
e leis sobre línguas oficiais; de bens culturais, as habilidades em-
• proteger os sistemas de conheci- preendedoras e as práticas de gestão
mento tradicional, reconhecendo de negócios entre empreendedores
sua contribuição para a proteção culturais, empresas iniciantes e ar-
ambiental e a gestão de recursos na- tistas autônomos, tanto na economia
turais, saúde e educação; formal quanto na informal;
• desenvolver, implementar e mo- • apoiar a criação de empresas culturais
nitorar políticas, procedimentos e locais, desenvolvendo “incubadoras
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Notas
11 MARTINELL, Alfons S. ¿Por qué los ODS No Incorporan la Cultura?, 2015. Disponível
em: <http://www.alfonsmartinell.com/?p=326>. Acesso em: 5 nov. 2019.