Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
O artigo se concentra na área de intersecção entre os campos da engenharia e arquitetura, procurando
compreender as relações que contribuem no desenvolvimento de projetos de edificações, desde as
primeiras concepções à obra construída. Para isso foram selecionados dois projetos do arquiteto Paulo
Mendes da Rocha, através dos quais são examinados, com auxílio de metodologia própria da engenharia,
as diferentes concepções de sistema estrutural e aspectos relevantes do processo construtivo, buscando
compreender seus conceitos e como estes se refletem no desenho dos espaços e na configuração formal
da obra construída.
Os dois projetos analisados foram construídos inteiramente em concreto - a casa do arquiteto no
Butantã (1964), moldada in loco, e a Casa Gerassi (1982), com peças estruturais pré-fabricadas em
concreto protendido – e são exemplares de um raciocínio que integra arquitetura e engenharia e se
apresenta com grande elegância e precisão em toda a trajetória do arquiteto.
Abstract
This paper is concentrated on the intersection area between the engineering and architecture fields,
searching for the comprehension of the relations which contribute to the development of buildings projects,
from the first conceptions to the final built work. For this reason, two projects of the architect Paulo Mendes
da Rocha were selected and, with the aid of the engineering’s methodology itself, the different conceptions of
structural systems and relevant aspects of the building process have been analysed in order to comprehend
their concepts and understand how they reflect in the drawing of spaces and in the formal configuration of
the constructed work as well.
The two analyzed projects were fully built in concrete - the architect's house in Butantã (1964), molded
in loco, and the Gerassi House (1982), which structural parts were prefabricated with prestressed concrete –
and are examples of a reasoning that integrates architecture and engineering and presents it self with great
elegance and accuracy on architect’s path at all.
2.1 Apresentação
No ano de 1964 são projetadas duas casas idênticas em terrenos contíguos no bairro do
Butantã: uma para o próprio arquiteto e a outra para sua irmã. As casas, dispostas lado a
lado, contrastam com as residências do entorno: o ideal de arquitetura para uma vida
comunitária em meio à opção pelo isolamento. Os princípios sociais comunitários
consolidados por Vilanova Artigas no edifício da FAU-USP aparecem na escala íntima de
uma residência particular.
A casa está compreendida num único pavimento elevado sobre quatro pilotis. O
terreno teve sua topografia redesenhada de modo a constituir um talude que garante o
resguardo da residência e restabelece a proximidade da sala com o jardim, mantendo um
agradável diálogo com a praça à sua frente. A entrada se faz de carro ou a pé, entre os
pilotis, e uma escada independente leva ao prisma elevado.
Este projeto de Paulo Mendes da Rocha adquire um caráter ensaístico e revela a
formulação de uma tipologia que será redescoberta na maior parte de seus projetos
ANAIS DO 48º CONGRESSO BRASILEIRO DO CONCRETO - CBC2006 - 48CBC0028 3
residenciais subsequentes. Em sintonia com os demais ensaios habitacionais da
arquitetura paulista dos anos 60 e 70, o projeto do arquiteto também considera no
programa um espaço articulador e de convívio, um espaço contínuo com usos
sobrepostos capaz de conferir nova dimensão às relações familiares, o “espaço sem
nome” de Flávio Motta. Com o desenho de um núcleo central de espaços
compartimentados são gerados no pavimento dois espaços de convívio: a noroeste a
varanda dos quartos e a sudeste o estar. Os quartos são configurados por paredes
divisórias em argamassa que se interrompem a 2,00m de altura, com espessuras
inferiores a 3cm e venezianas de correr, tendo comunicação com os dois espaços
principais. Num possível diálogo com a Casa do Bandeirante, situada do outro lado da
rua, as grossas paredes de taipa são substituídas por finas empenas de concreto, com
aberturas diminutas.
A estrutura do edifício se dá com grande rigor e simplicidade. Quatro pilares delgados
(seção quadrada de lado 35cm) suportam duas lajes nervuradas: uma para o piso e a
outra para a cobertura do pavimento elevado. Estas são formadas por duas vigas
principais e nervuras transversais com duplos balanços. A saudável relação entre
balanços e vãos nas vigas contribui para aliviar os momentos e permite o desenho de
peças mais esbeltas. Toda a edificação foi construída em concreto armado moldado no
local, sendo grande parte deste já usinado. O terreno à beira do Rio Pinheiros,
encharcado e argiloso, recebeu os poucos pilares ancorados em fundações com estacas
de concreto.
Uma estrutura composta por peças tão esbeltas está sujeita a grandes deformações,
sobretudo devido às diferenças de temperatura ao longo do dia e à deformação lenta
natural do concreto. Deste modo é fundamental que a estrutura esteja livre para trabalhar
e se movimentar. A grande casca de cobertura (formada pela laje nervurada e empenas)
e a laje do primeiro pavimento se apresentam como dois corpos independentes, unidos
apenas através dos pilares. Todos os elementos que fazem o encontro entre estes dois
corpos mereceram detalhes especiais: caixilhos, instalações, paredes divisórias, etc.
Todas instalações são independentes da estrutura: tubulações correm externamente às
paredes e através de furos previstos nas nervuras da laje, enquanto que a alimentação
elétrica se dá somente por fios soltos, sem o uso de conduítes. A empena lateral é
pendurada com o prolongamento das duas vigas principais da laje de cobertura, formando
a calha para águas pluviais. O desalinhamento entre a cortina lateral de concreto e a
parede interna com 4 fiadas de blocos permite a livre movimentação da estrutura. A fresta
na fachada foi coberta com um pré-moldado de concreto, mantendo os caixilhos com a
mesma dimensão. O Sistema de fechamento dos caixilhos foi desenhado especialmente
para esta obra, permitindo movimentos verticais e horizontais. Os caixilhos ficam abertos
na posição natural de equilíbrio, em que se alinham verticalmente o eixo de rotação e o
centro de gravidade da placa formada pelas molduras metálicas e vidro. O desenho
facilitou a execução com a adaptação de peças automotivas e trabalhos elementares de
serralheria: cantoneiras metálicas, barras de aço dobradas e soldadas.
Foi desenhada uma haste metálica para fixar nas nervuras as paredes divisórias.
Estas foram executadas como peças de argamassa armada: ferros de espera na laje
garantiram o engastamento da base e a fina lâmina (3cm) foi armada com uma tela
metálica, recebendo concreto chapiscado. A haste metálica transmite forças horizontais
3.1 Apresentação
A casa Gerassi se constituiria na materialização, 25 anos mais tarde, da idéia perseguida
pelo arquiteto já na residência do Butantã e em projetos residenciais posteriores: a
industrialização da construção na provisão da habitação. Paulo Mendes sempre perseguiu
a excelência da técnica, a simplicidade, rapidez de execução, trabalhando com sistemas
modulares na tentativa de encaminhar a solução para o déficit habitacional através da
pré-fabricação. Nos outros projetos, devido a problemas na acessibilidade da tecnologia
ANAIS DO 48º CONGRESSO BRASILEIRO DO CONCRETO - CBC2006 - 48CBC0028 6
ou intempéries políticas, o arquiteto não conseguiu se desvencilhar da técnica tradicional
de trabalho artesanal do concreto. Na escala reduzida desta residência, entretanto, a
experiência do pré-fabricado se deu em toda plenitude.
É notável a preocupação de Paulo Mendes da Rocha em transformar em desenho
suas aspirações por uma cidade melhor. Quando indagado a falar sobre a metrópole
responde denunciando a “rota do desastre” na qual estamos todos embarcados. A idéia
de construir casas isoladas numa cidade de quase 20 milhões de habitantes é um grande
absurdo para o arquiteto. “A solução contemporânea envolve a idéia de um prédio
vertical, concentrando a população em áreas servidas por transporte público. É melhor ter
grandes parques com arvoredos exuberantes do que ter um jardinzinho para cada um”
(Reis, 2002). Sua visão de cidade está incorporada em todos seus projetos, incluindo aí
as residências particulares. A opção pelo prisma elevado libera o solo para outras
atividades, e, acima de tudo, reforça sua condição de território pertencente ao universo
maior da cidade. Desde as primeiras casas, contemporâneas à sua própria, até o projeto
para Antônio Gerassi, vemos a constante reincidência de uma tipologia e de uma
manifestação formal de seus ideais. Se observarmos esta em relação à Casa do Butantã
veremos inúmeras constantes: a opção pelo concreto armado enquanto estrutura e forma
aparente, o prisma elevado de planta quadrada, os jogos de luz dos rasgos na cobertura,
a espacialidade contínua e homogênea sem circulações intermediárias.
O imaginário do arquiteto aparece nos projetos: a infância no porto de Vitória,
acompanhando o pai em obras de infra-estrutura, permitiu grande intimidade com a
linguagem de navios e embarcações e a noção da capacidade potencial do homem de
transformar a natureza. Não há estranhamento na idéia de uma estrutura de grande porte
poder formar uma bela casa.
O grande interesse pela casa Gerassi não advém tanto da possibilidade de
multiplicação sugerida pelo sistema construtivo, mas, antes de tudo, da demonstração da
simplicidade aparente de construir. O projeto de uma casa isolada, repudiado pelo
arquiteto, é elevado aqui à formulação de uma hipótese. Esta não se espelha na
reprodução do sistema, mas no uso instrumental de suas virtudes. “É um alerta sobre as
infinitas possibilidades que qualquer sistema construtivo expõe quando o arquiteto o
interroga” (MILHEIRO, 2000).
A estrutura do edifício foi exclusivamente constituída por peças pré-fabricadas, um
verdadeiro jogo de armar. Paulo Mendes materializa o ideal da pré-fabricação dos anos
60: projetar através de catálogos: “Uma casa que se poderia fazer por telefone: compra-
se a estrutura e monta-se lá de acordo com um plano arquitetônico de implantação, em
três, quatro dias.” (MILHEIRO, 2000) O preconceito com relação aos pré-fabricados foi
comprovado durante a montagem da estrutura: o bairro todo se juntou para protestar
imaginando que se tratava de um galpão industrial. O resultado seria outro: uma casa de
padrão refinado, sustentada por peças que saíram de uma usina onde tudo é controlado:
dosagem de concreto, protensão, resistência, etc.
Nas primeiras pesquisas do projeto o arquiteto procurou a Reago para fornecimento
das lajes protendidas da casa. Era a única empresa a trabalhar com lajes pré-fabricadas
no momento. Se iniciaram conversas com o arquiteto Carlos Alberto Tauil, então diretor
técnico da Reago, e o projeto foi sendo adaptado para ter a estrutura completamente
industrializada. O projeto final resultou de um próspero diálogo entre o arquiteto, a Reago,
4 Conclusões
Ainda atualmente, mas caracteristicamente nas décadas de 60 e70, o concreto armado se
dava como um conjunto material aplicado sem necessidade de aparto técnico muito
avançado. Nos projetos que lhe permitiam aparecer, o verdadeiro artifício estava no
desenho das fôrmas, sua delicadeza seria permanentemente exposta. O desenho do
negativo, a racionalização no aproveitamento e corte das pranchas era o mais próximo
que se poderia chegar de uma industrialização. Essa relação direta com o material
estrutural se dava por uma facilidade de correspondência entre o desenho e a execução.
Apesar da grande precisão, não há refinamento ou acabamento, mas a estrita exposição
da matéria crua, da manufatura. Em conversas entre o calculista e o arquiteto eram
ANAIS DO 48º CONGRESSO BRASILEIRO DO CONCRETO - CBC2006 - 48CBC0028 9
decididas as formas da estrutura monolítica, que, ao ser desformada, precisaria apenas
de alguns poucos componentes auxiliares para tornar-se habitável. Os trabalhos eram
realizados por equipes pequenas, de poucos especialistas, e a proximidade entre os
arquitetos e os engenheiros, e entre estes e os demais envolvidos, era potencialmente
facilitada. O resultado era uma arquitetura fundamentada na sua própria maneira de se
constituir materialmente, ou seja, a arquitetura era, sobretudo, sua própria construção.
O trabalho com o concreto moldado in loco deve implicar num raciocínio de projeto
que contemple a produção da estrutura em poucas etapas claramente definidas. Não é
apropriado pensar o edifício como um conjunto de componentes reunidos, mas como
grandes peças únicas. Neste sentido, o projeto de Paulo Mendes da Rocha para sua
própria residência é exemplar. Foi baseado um duas ações muito simples e claras:
primeiro a concretagem da laje nervurada de piso e, em segundo, a concretagem da laje
nervurada de cobertura, com o reaproveitamento das fôrmas da primeira. Todo o
processo se repetiria na produção de casa praticamente idêntica, ao lado desta. Da
interação entre estas duas partes surge grande parte da beleza deste projeto. São duas
partes que se sobrepõem, independentes. Seria contraditório, por exemplo, uní-las com
os caixilhos. As janelas, então, se penduram na cobertura e, quando abertas, liberam,
sem vestígios, a grande linha horizontal do peitoril.
É inevitável a associação entre as intenções de pré-fabricação na década de 60,
especificamente no projeto da Casa do Butantã, e a materialização destes desejos com a
construção, 20 anos mais tarde, da Casa Gerassi. Essencialmente composta por pré-
fabricados em concreto, a residência consiste basicamente no aproveitamento de peças
de produção industrial corrente com um arranjo especial para a excepcionalidade de um
programa residencial. Como mencionado pelo próprio Paulo Mendes da Rocha, a lógica
de montagem dos sistemas usuais de pré-fabricados em concreto pressupõe peças
simplesmente apoiadas e, portanto, um conjunto de comportamento isostático. Isto,
associado ao dimensionamento para o transporte, contribui para elementos com
dimensões maiores. É esclarecedora a comparação entre o porte das estruturas das duas
casas. As áreas do pavimento superior são razoavelmente próximas, 215m2 na Gerassi e
250m2 na do Butantã. Por outro lado, o volume de concreto presente na estrutura da Casa
Gerassi é praticamente três vezes maior: 140m3 contra 50m3 na Casa do Butantã. Na
casa pré-fabricada, apesar dos seis apoios, as vigas vencem vãos de 15m apoiadas nas
extremidades. Estão submetidas, portanto, a esforços muito superiores aos da Casa do
Butantã, onde os quatro pilares recuados do perímetro apóiam a estrutura com
compensações entre vãos centrais e balanços. O projeto com pré-fabricados pressupõe
restrições maiores, mas os processos são potencialmente mais controlados e previsíveis.
Quando o arquiteto é capaz de fundamentar seu raciocínio na maneira como se faz a
arquitetura, o pressuposto dos pré-fabricados torna-se um importante aliado.
Numa cidade como São Paulo, com mais de 20 milhões de habitantes, não faz
sentido basear qualquer ocupação recente em pequenos lotes privados. A infraestrutura
disponível fica muito aquém do desejado e está concentrada na região central e em
ramificações lineares. A residência unifamiliar, portanto, seria contraditória. A matriz deve
ser alterada. Relembrando a colonização da América Latina talvez seja possível identificar
os princípios que levaram às condições atuais. Paulo Mendes da Rocha costuma
desenhar casas elevadas do território. Não somente casas, mas praticamente todos os
5 Referências
BOGÉA, M. Entrevista com o arquiteto em 1998 (texto inédito)
MILHEIRO, A. Journal Arquitectos nº 192, out 2000.
MOTTA, F. Revista Acrópole nº 343, set 1967.
REIS, C. Entrevista com o arquiteto na revista Arquitetura & Construção, ago 2002.
ROCHA, P. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo: Cosac & Naif, 2000.
________. Entrevista com o arquiteto realizada pelos autores em março de 2006.
SALVADORI, M. Structure in Architecture. New Jersey: Prentice-Hall, 1986.
SPIRO, A. Paulo Mendes da Rocha. Ed. Verlar Niggli AG, 2001.
6 Agradecimentos
Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pela
concessão da bolsa de Iniciação Científica que deu suporte à pesquisa da qual resultou
este artigo.
Agradeço também aos que se disponibilizaram para entrevistas ao longo da pesquisa:
Alexandre Delijaicov, Carlos Alberto Tauil, Cláudio Creazzo Puga, Jorge Zaven Kurkdjian,
Júlio Frunchtengarten, Osmar Augusto Penteado e Paulo Mendes da Rocha.
Merecem ainda agradecimentos os que autorizaram a visita às obras estudadas ou
contribuíram disponibilizando materiais para a pesquisa: Lito Mendes da Rocha, Loja
Forma, Mariluza Costa, Marta Moreira, Poupatempo Itaquera e Telmo Daeifeld.
Figura 3 - I. corte transversal e corte longitudinal II. carregamentos e dimensões das vigas principais e das
nervuras III. diagrama de momentos fletores para o pórtico e para as nervuras do primeiro pavimento e
cobertura IV. deformação esperada das estruturas (escala distorcida para visualização) V. diagrama de
momentos fletores e deformação esperada para a viga principal superior considerada como biapoiada VI.
diagrama de momentos fletores para viga com as mesmas dimensões e apoios articulados nas
extremidades