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É consensual que a arquitetura brasileira vem desde os anos 1990 procurando retomar os valores de
nossa arquitetura moderna, inclusive o uso do concreto armado, parcialmente desprezado nas duas
décadas anteriores. Suas qualidades expressivas vêm sendo revalorizadas, juntamente com a exploração
plástica dos elementos estruturais, o uso extensivo do de materiais expostos, e dos amplos espaços
sociais que caracterizaram a arquitetura paulista dos anos 1950-70. Mas esta revisitação guarda
algumas especificidades que convém compreender.
A partir da década de 1950 as estruturas passam a ser exploradas como elementos expressivos, e se
destacaram por sua plasticidade, leveza e elegância de formas. Mas a partir da década de 1980 essa
arquitetura passa a ser criticada pela repetição indiscriminada de seus elementos, esvaziados de seus
significados1. Estas críticas foram parte de um fenômeno que ocorreu em todo o mundo,
particularmente na Inglaterra e Estados Unidos2.
1 Hugo Segawa. A pesada herança: dilema da arquitetura brasileira. in: Projeto 168, outubro, 1993.
2 Rejéan Legault relata críticas feitas aos experimentalismos nas texturas de concreto feitas por I.M.Pei, Paul Rudolph e Marcel
Breuer nos Estados Unidos no início dos anos 1970. Rejéan Legault. The semantics of exposed concrete. In Jean-Louis Cohen,
Martin Moeller, eds. Liquid Stone: New architecture in Concrete. New York: Princeton Architectural Press, 2006.
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O conceito de tectônica, desenvolvido por Kenneth Frampton ainda na década de 1980, procura relacionar a arquitetura com
o saber fazer, por meio do entendimento das técnicas construtivas passadas de geração em geração pelos mestres de obras,
empreiteiros e construtores como algo essencial para a cultura e identidade de um povo. Kenneth Frampton. Studies in
Tectonic Culture. Cambridge: The MIT Press, 1995.
variedade construtiva e tecnológica, uso de soluções inovadoras e justaposição de materiais, buscando
demonstrar a intenção da construção sem esconder os passos fragmentados dos processos
construtivos4. Enfrenta-se o desafio de uma arquitetura cuja construção gradativamente se
transformará em montagem e articulação de peças e partes disponíveis no mercado5. E neste sentido,
ao contrário do que se poderia esperar, o concreto está assumindo um papel renovador, como se pode
perceber em algumas obras ilustradas nesta coletânea - a sede do Sebrae (Alvaro Puntoni, Luciano
Margotto, João Sodré e Jonathan Davies), a residência em Ubatuba (Angelo Bucci) e o Complexo
Desportivo de Deodoro (BCFM Arquitetos).
A construção da sede do Sebrae retoma uma tradição de edifícios institucionais que ajudaram a
consolidar a qualidade da arquitetura brasileira moderna. Partindo das restrições urbanísticas de
Brasília, da topografia do terreno e da imagem da instituição foram criados espaços flexíveis, onde
importava a franca relação com a cidade e a preocupação com a performance ambiental e energética.
Três elementos essenciais marcam a imagem do projeto: a fachada livre com brises metálicos, as
expressivas empenas laterais, o pilotis que descortina o generoso vazio interno bastante convidativo -
um prolongamento da rua, com passarelas e espelhos d’águam para onde se voltam todas as
circulações. O pilotis torna o edifício leve e permeável, favorecendo visuais que respeitam e valorizam a
cidade e seu lago.
Na casa de Ubatuba, o terreno com um forte declive e a bela vista para a praia fizeram com que Angelo
Bucci procurasse interferir ao mínimo na encosta, na vegetação e na paisagem. Três pilares gigantescos,
dois na frente e um central e recuado, este com um metro de diâmetro, sustentam duas vigas invertidas
na qual estão pendurados três volumes independentes, cada um com dois pisos. O acesso se dá pelo
alto onde foram acomodados garagens, piscinas e o deck. Os três volumes abaixo definem cotas
4
Hartoonian, Gevork. Ontology of Construction: On Nihilism of Technology in Theories of Modern Architecture. Cambridge:
Cambridge University Press, 1994, p.28.
5 David Leatherbarrow. Uncommon Ground: Architecture, Technology and Topography. Cambridge: The MIT Press, 2001, p.151.
diferentes garantindo as vistas para o mar e gerando uma composição dinâmica de volumes suspensos
ligados por passarelas.
Como alertado por Otávio Leonídio6, um dos aspectos mais instigantes da obra de Bucci é a complexa
relação que ele estabelece entre estrutura e espacialidade. A estratégia de um volume se lançando para
vazio apoiado em poucos pontos em topografia acidentada tem antecedentes nas casas que Lina e
Reidy conceberam ao mesmo tempo entre 1950 e 1951. Mas como ressaltou Leonídio, a obra de Bucci
não é simples continuidade desta tradição, mas um desdobramento que renova esta herança. A ênfase
de Bucci não estaria na ousadia e a beleza da estrutura em si, como um objeto icônico a ser admirado,
mas para a espacialidade e criação de vazios.
Nesta casa, isto pode ser comprovado no tratamento do grande pilar recuado. Uma peça essencial na
articulação da casa, o pilar é envolvido por uma escada que conecta os dois volumes próximos da
encosta e liga a casa ao terreno. Entretanto, essa presença totêmica, que enaltece a proeza estrutural,
não é reforçada, ela dissolve-se pela presença da madeira, da vegetação, das frestas para o mar, das
pessoas e dos objetos presentes nos distintos aposentos que se abrem para este espaço. Só aos poucos
percebemos sua centralidade e robustez, o que lembra a impressão que José Luis Borges teve ao
adentrar um quarto de hotel na Islândia e descobrir, apalpando na penumbra, uma enorme coluna
redonda dentro do aposento. 7
O Complexo Esportivo da Vila Militar de Deodoro, na zona oeste do Rio de Janeiro, foi projetado para
receber as provas de tiro esportivo, hipismo, tiro com arco, hóquei sobre grama e pentatlo moderno dos
Jogos Pan-Americanos de 2007. O projeto foi pensando para contribuir para revitalizar esta região da
cidade, após os Jogos, prevendo a gestão e a manutenção dos espaços para uso da comunidade. Assim,
além do desafio de atender as particularidades e rígidas regras de cada federação esportiva, os
diferentes e irreconciliáveis fluxos de atletas, delegados, juízes, imprensa e público em geral, os edifícios
precisariam também ser flexíveis e absorver as prováveis mudanças de usos pós-evento.
Apesar da enorme escala do complexo a estratégia do escritório BCMF foi pensar as instalações de
forma não-isolada, como conjunto que expressasse unidade; que foi atingida, segundo seu autor, por
meio de um “repertório formal mínimo que pudesse ser composto de diversas maneiras, de acordo com
a especificidade de cada esporte e lugar”. 8 Para atingir esse objetivo foi reduzido o leque de materiais e
parcialmente adotada a pré-fabricação de componentes, para reduzir custos com a economia de escala,
acelerar a construção e conferir unidade visual ao conjunto. O sistema construtivo misto teve no
A arquitetura obtida por um processo de montagem ainda é novidade no Brasil, e algumas vezes visto
como algo limitador; mas também pode abrir uma série de possibilidades expressivas. O Pavilhão de
Tiro, por exemplo, possui espaços extremamente ricos como o vazio coberto pela grelha de concreto
revestida de madeira e a fluidez da promenade de acesso. Neste complexo, os arquitetos enfrentaram
um problema central na arquitetura contemporânea que é tentar fazer uma arquitetura singular e
conectada ao lugar quando seus elementos são, cada vez mais, provenientes de outros lugares e em
grande parte pré-fabricados. O detalhe passa a ser entendido como um elemento crucial no processo
projetual, sobretudo em projetos desta escala, que exigem a articulação de diferentes materiais,
rapidez, diminuição de custos e flexibilidade.
As obras aqui discutidas mostram como esta nova geração considera a própria construção como um
meio de expressão e acredita que ela deve ser, e demonstrar ser, honesta, clara e bem resolvida. O
cuidado com as junções e articulações de materiais, a forma como os materiais são tratados, o nível de
detalhamento por meio da clara exposição de partes e arremates, a honestidade construtiva, a mescla
de materiais tradicionais e pré-fabricados e a evidenciação do processo construtivo apontam para
caminhos promissores para a arquitetura brasileira, no qual o concreto parece ser ainda um importante
protagonista.