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Espacialidade, tectônica e montagem

Fernando Diniz Moreira

Em Blanco Revista de Arquitectura n. 09/2012

É consensual que a arquitetura brasileira vem desde os anos 1990 procurando retomar os valores de
nossa arquitetura moderna, inclusive o uso do concreto armado, parcialmente desprezado nas duas
décadas anteriores. Suas qualidades expressivas vêm sendo revalorizadas, juntamente com a exploração
plástica dos elementos estruturais, o uso extensivo do de materiais expostos, e dos amplos espaços
sociais que caracterizaram a arquitetura paulista dos anos 1950-70. Mas esta revisitação guarda
algumas especificidades que convém compreender.

O concreto armado abriu novas possibilidades ao desafiar convenções arquitetônicas do passado e os


limites impostos pelos materiais tradicionais. No Brasil, o descompasso entre os princípios difundidos
pela arquitetura moderna e as condições técnicas e construtivas locais permitiu a integração e
intermediação de elementos industriais e artesanais em soluções construtivas apropriadas. O avanço
dos engenheiros no campo do cálculo do concreto, somado à mão de obra pouco qualificada fizeram do
concreto armado uma opção viável que muitos arquitetos ajudaram a tornar experimental.

A partir da década de 1950 as estruturas passam a ser exploradas como elementos expressivos, e se
destacaram por sua plasticidade, leveza e elegância de formas. Mas a partir da década de 1980 essa
arquitetura passa a ser criticada pela repetição indiscriminada de seus elementos, esvaziados de seus
significados1. Estas críticas foram parte de um fenômeno que ocorreu em todo o mundo,
particularmente na Inglaterra e Estados Unidos2.

Ao se nutrir das principais conquistas da nossa arquitetura moderna, arquitetura contemporânea


brasileira evitou cair em formalismos ou sentimentos nostálgicos, procurando no passado exemplos de
uma relação mais harmoniosa do edifício com o lugar, de adequação climática e de coerência
construtiva. Há um maior pragmatismo na geração de formas buscando espaços que atendam ao
caráter do programa, aos limites e potencialidades do terreno, às disponibilidades e carências do lugar e
da região e os custos. Há uma certa ênfase nos aspectos tectônicos3, com maior experimentação e

1 Hugo Segawa. A pesada herança: dilema da arquitetura brasileira. in: Projeto 168, outubro, 1993.
2 Rejéan Legault relata críticas feitas aos experimentalismos nas texturas de concreto feitas por I.M.Pei, Paul Rudolph e Marcel
Breuer nos Estados Unidos no início dos anos 1970. Rejéan Legault. The semantics of exposed concrete. In Jean-Louis Cohen,
Martin Moeller, eds. Liquid Stone: New architecture in Concrete. New York: Princeton Architectural Press, 2006.
3
O conceito de tectônica, desenvolvido por Kenneth Frampton ainda na década de 1980, procura relacionar a arquitetura com
o saber fazer, por meio do entendimento das técnicas construtivas passadas de geração em geração pelos mestres de obras,
empreiteiros e construtores como algo essencial para a cultura e identidade de um povo. Kenneth Frampton. Studies in
Tectonic Culture. Cambridge: The MIT Press, 1995.
variedade construtiva e tecnológica, uso de soluções inovadoras e justaposição de materiais, buscando
demonstrar a intenção da construção sem esconder os passos fragmentados dos processos
construtivos4. Enfrenta-se o desafio de uma arquitetura cuja construção gradativamente se
transformará em montagem e articulação de peças e partes disponíveis no mercado5. E neste sentido,
ao contrário do que se poderia esperar, o concreto está assumindo um papel renovador, como se pode
perceber em algumas obras ilustradas nesta coletânea - a sede do Sebrae (Alvaro Puntoni, Luciano
Margotto, João Sodré e Jonathan Davies), a residência em Ubatuba (Angelo Bucci) e o Complexo
Desportivo de Deodoro (BCFM Arquitetos).

A construção da sede do Sebrae retoma uma tradição de edifícios institucionais que ajudaram a
consolidar a qualidade da arquitetura brasileira moderna. Partindo das restrições urbanísticas de
Brasília, da topografia do terreno e da imagem da instituição foram criados espaços flexíveis, onde
importava a franca relação com a cidade e a preocupação com a performance ambiental e energética.
Três elementos essenciais marcam a imagem do projeto: a fachada livre com brises metálicos, as
expressivas empenas laterais, o pilotis que descortina o generoso vazio interno bastante convidativo -
um prolongamento da rua, com passarelas e espelhos d’águam para onde se voltam todas as
circulações. O pilotis torna o edifício leve e permeável, favorecendo visuais que respeitam e valorizam a
cidade e seu lago.

As circulações verticais e áreas de serviço e apoio estão concentradas em faixas periféricas,


conformando as expressivas empenas externas de concreto que fincam o edifício no solo e que contém
a faixa de brises metálicos. O peso destas empenas contrasta vivamente com a leveza destes últimos. A
associação do concreto armado com e os elementos metálicos tornou possível estes espaços, mas eles
foram visualmente separados para demonstrar como a construção foi feita. Como as empenas internas
não se manifestam na fachada, esta fica ainda mais leve. Na face norte, a longa e suave curvatura da
empena, o enorme rasgo com as passarelas, e o volume do auditório emergindo do terreno confere um
belo dinamismo ao conjunto.

Na casa de Ubatuba, o terreno com um forte declive e a bela vista para a praia fizeram com que Angelo
Bucci procurasse interferir ao mínimo na encosta, na vegetação e na paisagem. Três pilares gigantescos,
dois na frente e um central e recuado, este com um metro de diâmetro, sustentam duas vigas invertidas
na qual estão pendurados três volumes independentes, cada um com dois pisos. O acesso se dá pelo
alto onde foram acomodados garagens, piscinas e o deck. Os três volumes abaixo definem cotas

4
Hartoonian, Gevork. Ontology of Construction: On Nihilism of Technology in Theories of Modern Architecture. Cambridge:
Cambridge University Press, 1994, p.28.
5 David Leatherbarrow. Uncommon Ground: Architecture, Technology and Topography. Cambridge: The MIT Press, 2001, p.151.
diferentes garantindo as vistas para o mar e gerando uma composição dinâmica de volumes suspensos
ligados por passarelas.

Como alertado por Otávio Leonídio6, um dos aspectos mais instigantes da obra de Bucci é a complexa
relação que ele estabelece entre estrutura e espacialidade. A estratégia de um volume se lançando para
vazio apoiado em poucos pontos em topografia acidentada tem antecedentes nas casas que Lina e
Reidy conceberam ao mesmo tempo entre 1950 e 1951. Mas como ressaltou Leonídio, a obra de Bucci
não é simples continuidade desta tradição, mas um desdobramento que renova esta herança. A ênfase
de Bucci não estaria na ousadia e a beleza da estrutura em si, como um objeto icônico a ser admirado,
mas para a espacialidade e criação de vazios.

Nesta casa, isto pode ser comprovado no tratamento do grande pilar recuado. Uma peça essencial na
articulação da casa, o pilar é envolvido por uma escada que conecta os dois volumes próximos da
encosta e liga a casa ao terreno. Entretanto, essa presença totêmica, que enaltece a proeza estrutural,
não é reforçada, ela dissolve-se pela presença da madeira, da vegetação, das frestas para o mar, das
pessoas e dos objetos presentes nos distintos aposentos que se abrem para este espaço. Só aos poucos
percebemos sua centralidade e robustez, o que lembra a impressão que José Luis Borges teve ao
adentrar um quarto de hotel na Islândia e descobrir, apalpando na penumbra, uma enorme coluna
redonda dentro do aposento. 7

O Complexo Esportivo da Vila Militar de Deodoro, na zona oeste do Rio de Janeiro, foi projetado para
receber as provas de tiro esportivo, hipismo, tiro com arco, hóquei sobre grama e pentatlo moderno dos
Jogos Pan-Americanos de 2007. O projeto foi pensando para contribuir para revitalizar esta região da
cidade, após os Jogos, prevendo a gestão e a manutenção dos espaços para uso da comunidade. Assim,
além do desafio de atender as particularidades e rígidas regras de cada federação esportiva, os
diferentes e irreconciliáveis fluxos de atletas, delegados, juízes, imprensa e público em geral, os edifícios
precisariam também ser flexíveis e absorver as prováveis mudanças de usos pós-evento.

Apesar da enorme escala do complexo a estratégia do escritório BCMF foi pensar as instalações de
forma não-isolada, como conjunto que expressasse unidade; que foi atingida, segundo seu autor, por
meio de um “repertório formal mínimo que pudesse ser composto de diversas maneiras, de acordo com
a especificidade de cada esporte e lugar”. 8 Para atingir esse objetivo foi reduzido o leque de materiais e
parcialmente adotada a pré-fabricação de componentes, para reduzir custos com a economia de escala,
acelerar a construção e conferir unidade visual ao conjunto. O sistema construtivo misto teve no

6 Otávio Leonídio. Espaço de Risco. In Monolito, 1, fev-mar, 2011, p.30


7 José Luis Borges, Hotel Esja, Reykvavik in Atlas. Obras completas III. São Paulo: Globo, 1999, p.487.
8 Complexo Esportivo de Deodoro (CED) in Vitruvius Projetos 083.02 Institucional, ano 07, out 2007.

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/07.083/2839?page=3 assessado em 07.01.2012


concreto seu grande protagonista: seja fundido ‘in loco’ (pilares, contenções e muros de proteção) ou
pré-moldado (degraus das arquibancadas e lajes em geral). A eles foram agregados estruturas metálicas
e vedações (dry-wall, painéis de telha, brises e vidros) claramente independentes da estrutura.
Revestimentos praticamente inexistiram e ao finalizar-se a montagem destes elementos a obra estava
em grande parte pronta.

A arquitetura obtida por um processo de montagem ainda é novidade no Brasil, e algumas vezes visto
como algo limitador; mas também pode abrir uma série de possibilidades expressivas. O Pavilhão de
Tiro, por exemplo, possui espaços extremamente ricos como o vazio coberto pela grelha de concreto
revestida de madeira e a fluidez da promenade de acesso. Neste complexo, os arquitetos enfrentaram
um problema central na arquitetura contemporânea que é tentar fazer uma arquitetura singular e
conectada ao lugar quando seus elementos são, cada vez mais, provenientes de outros lugares e em
grande parte pré-fabricados. O detalhe passa a ser entendido como um elemento crucial no processo
projetual, sobretudo em projetos desta escala, que exigem a articulação de diferentes materiais,
rapidez, diminuição de custos e flexibilidade.

As obras aqui discutidas mostram como esta nova geração considera a própria construção como um
meio de expressão e acredita que ela deve ser, e demonstrar ser, honesta, clara e bem resolvida. O
cuidado com as junções e articulações de materiais, a forma como os materiais são tratados, o nível de
detalhamento por meio da clara exposição de partes e arremates, a honestidade construtiva, a mescla
de materiais tradicionais e pré-fabricados e a evidenciação do processo construtivo apontam para
caminhos promissores para a arquitetura brasileira, no qual o concreto parece ser ainda um importante
protagonista.

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