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EDIÇÃO 188 | JANEIRO/2019

CUBA
MITOS
E FATOS
60 ANOS DEPOIS DA
ASCENSÃO DE CASTRO,
A AH INVESTIGA 30
QUESTÕES POLÊMICAS

MACABEUS: COMO OS 30 ANOS DO ASSASSINATO ANGLO-SAXÕES: A INVASÃO


JUDEUS SE LIBERTARAM DO AMBIENTALISTA CHICO DOS GERMÂNICOS E A
DO DOMÍNIO GREGO MENDES. O QUE MUDOU? ORIGEM DO POVO INGLÊS
SUMÁRIO

38 CAPA: QUANTAS
MORTES? POR
QUE O IDH ALTO?
E O EMBARGO?
30 PERGUNTAS
E RESPOSTAS
SOBRE O REGIME
CUBANO

6 GALERIA
Nose Art: a pintura 19 MITOS E LENDAS
Golem: o robô 26 BRASIL 54
de guerra dos aviões do rabino PARA
A morte do ambientalista ENTENDER:
Chico Mendes e a pergunta: IDADE MÉDIA
12 ILUSTRADA
Cerco medieval 20 ARTE
Futurismo italiano o que mudou em 30 anos?
e suas armas por Carlo Carrà
55
14 DÚVIDA CRUEL
22 COMO
SEM...
FAZÍAMOS 32 RELIGIÃO COLUNA:
HELEN KING
A Igreja atrapalhou Revolta dos Macabeus,
a ciência? Liquidificador que libertou os judeus

15 ÀO champanhe
MESA
23 NÚMEROS
e deu origem ao Hanukkah
56
A Guerra do Paraguai COLUNA:
e seus mitos e suas vítimas
50 IDADE MÉDIA DANILO
BERNARDINO
A invasão dos anglo-saxões,
16 A evolução das
LINHA DO TEMPO
24 Os 10 maiores crimes
EXTREMOS

celebrações de Natal não resolvidos


germânicos que dariam
origem à língua inglesa 57
ENTREVISTA:
LEANDRO
18 SURREAL
Guerra por um terno: 58 MEMÓRIA
Enquanto isso, NARLOCH
Zoot Suit Riots em Guantánamo...
EDITORIAL

SEM PÓS-VERDADE
DIRETOR-SUPERINTENDENTE
Luis Fernando Maluf
DIRETORES CORPORATIVOS
Editorial:
Claudio Gurmindo (Núcleo Celebridades)

M
e Pablo de la Fuente (Núcleos
ais que nunca, falar em Cuba é causar um incêndio. Em nosso clima po- Novos Leitores e Mensais)
Comercial:
larizado, a solução mais simples teria sido escolher uma das torcidas e dar Márcio Maffei
Finanças e Controle:
a ela o que quer: Cuba ou é uma utopia imperfeita – por pura sabotagem Filipe Medeiros
Internet:
do exterior – ou um inferno totalitário, tão ruim quanto a União Soviética dos Alan Fontevecchia
anos 30. Uma solução desonesta: talvez seja antiquado, mas ainda acreditamos Jurídico e RH:
Wardi Awada
em realidade – ou ao menos em tentar, na medida do possível, retratar a realidade. Digital:
Guilherme Ravache
E nisso entram coisas como: Cuba obviamente não é uma democracia. Como DIRETORIA E GERÊNCIAS
outras ditaduras, teve períodos mais ou menos repressivos. Essa ditadura obteve Publicidade:
Thaís Haddad (Diretora)
alguns avanços. Seus médicos são de verdade, aprendem medicina real, não uma Circulação:
Luciana Romano (Assinaturas)
loucura ideológica como o lisenkoísmo de Stalin. Se isso justificou a repressão, e Tecnologia Digital:
Nicholas Serrano
se justifica ainda hoje, é algo sobre o que todos têm uma opinião forte a respeito. Arte, Prepress e Coordenação Gráfica:
André Luiz Silva
A minha, não faço segredo, é: não. Mas consigo entender o apelo que Che e Fidel
tiveram para uma geração que sangrou pelo autoritarismo do outro lado. Nossa
capa, baseada em ampla diversidade de fontes, serve justamente para ir além da
opinião de um mero jornalista como eu. Tire suas próprias conclusões. (Lançada em 2003)
Editor: Fábio Marton; Arte: Marília Filgueiras;
Revisão: Bianca Albert; Repórter: Letícia Yazbek;

Boa leitura! Estagiários: Alana Sousa, Mariana Ribas


e Thiago Lincolins

REDAÇÃO E CORRESPONDÊNCIA
SÃO PAULO: Av. Eusébio Matoso, 1.375, 5º
andar, Pinheiros, CEP 05423-180, SP, Brasil;
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A, Ipanema, CEP 22411-000 RJ, Brasil, tel.:
Fábio Marton (21) 2113-2200, fax: (21) 2543-1657.
Editor AVENTURAS NA HISTÓRIA 188 ISSN (1806-
2415), ano 15, nº 12, é uma publicação
mensal da Editora Caras. Edições
anteriores: Solicite ao seu jornaleiro
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Erramos: Na última edição (187), página 20, é dito que “Roma já havia sobrevivido...”. Trata-se na verdade de EDITOR RESPONSÁVEL
Wardi Awada
Constantinopla. Pág. 47: piratas infestavam o mar, não “golfo do Caribe”. Pág. 53: são canos, não “barris de mosquete”.
GALERIA

A DECORAÇÃO DOS AVIÕES DE


COMBATE É UM HÁBITO QUE JÁ
FOI PERSEGUIDO PELO OFICIALATO,
MAS TÃO ANTIGO QUANTO A
PRÓPRIA AVIAÇÃO MILITAR
POR FÁBIO MARTON
O GRANDE CLÁSSICO
A boca de tubarão, aqui vista num P-51
Mustang, foi a primeira “arte de nariz”.
Durante a Primeira Guerra, alemães
pintaram seus aviões para se diferenciarem
dos adversários e parecerem mais
intimidadores. A função prática logo se
perdeu: os ingleses adoraram e copiaram.
GALERIA

AMADA NAVE
Uma das inspirações favoritas
para batizar aviões era o nome
das amadas, pretendidas ou
meras prostitutas visitadas pelos
pilotos. O Little Jeanne ao lado
era um P-40 Warhawk, o terceiro
caça americano mais produzido,
usado extensivamente nas
campanhas do norte da África,
e também o primeiro a ganhar
pintura – inicialmente a boca de
tubarão, mas depois os pilotos
ficaram mais criativos.

8 AVENTURAS NA HISTÓRIA
TALENTO VARIÁVEL
O bombardeiro pesado leve A-20 Havoc, mostrando
B-24 “Bruxaria” (canto inferior também um trem destruído em
esquerdo) demonstra que a uma de suas missões. Pin-ups
imaginação não tinha limites, estavam entre as favoritas dos
mas o talento para pintura pilotos, e também uma das
variava muito. As marcas são razões por que várias regras
testemunhas de seu imenso foram baixadas contra a nose
sucesso: cada bomba é uma art e nunca cumpridas. Vários
viagem cumprida e sobrevivida, desenhos mostravam mulheres
e o avião está aí até hoje para ser totalmente nuas. Na prática, era
fotografado, se mais prova fosse uma forma de esquecer a morte
preciso. O “A Difícil” (tradução iminente e foi tolerado como algo
mais adequada) ou “Difícil de que ajudava o moral (se
Pegar” (literal), é um bombardeiro prejudicava a moral) da tropa.
GALERIA

IMAGENS SCOTT GERMAIN/STOCKTREK IMAGES, JONATHAN DANIEL/GETTY IMAGES, WIKIMEDIA COMMONS


O VAGÃO DO DESTINO
Talvez seja um mérito para Quanto ao Bockscar,
a nose art que os bombardeiros bombardeiro que derrubou a
atômicos, ambos B-29 com bomba Fat Man em Nagasaki,
a modificação Silverplate, o nome vem também de seu
não tiveram decorações comandante, Frederick Bock –
particularmente inspiradas. o “carro de Bock”, que faz um
O Enola Gay, que despejou a trocadilho com “boxcar”, vagão,
bomba Little Boy sobre Hiroshima, daí a imagem. Os vários homens
tinha apenas o nome escrito. gordos desenhados acima são
Era uma homenagem a Enola uma referência óbvia ao nome
Gay Tibbets, mãe do comandante da bomba. Só o vermelho é a
Paul Tibbets. Gesto não só de Fat Man. Os outros são bombas
gosto duvidoso mas que irritou convencionais com o mesmo
profundamente o copiloto. formato, usadas como teste.

10 AVENTURAS NA HISTÓRIA
LOBO MAU
O bombardeiro hiperpesado Avro
Lancaster lançou a arma não
nuclear mais poderosa da guerra:
a bomba terremoto Grand Slam,
que, pesando 10 toneladas (duas
vezes mais que a Fat Man), ainda
é a mais massiva já usada em
combate. O Velho Fred, ao lado,
pertenceu ao 467º Esquadrão da
Royal Air Force, formado por
neozelandeses e australianos (daí
as bandeiras). O Lobão da Disney
traz outra das tendências favoritas
na Segunda Guerra (até entre os
inimigos, veja abaixo) – não só os
pilotos usaram desenhos como
os desenhos começaram a
retratar as ações da guerra.

MICKEY NAZISTA
Adolf Galland foi um dos maiores
ases da Luftwaffe. Tirado do ar
quatro vezes, sobreviveu a todas,
e terminou a Segunda Guerra
com 104 inimigos abatidos. Com
seu bigodão, fumando charutos
(dentro do avião) e vez ou outra
pilotando em calção de banho,
cultivava uma imagem algo
excêntrica, terminou sua carreira
num motim fracassado contra
Goering e, finda a guerra, fez
amigos entre os pilotos do outro
lado. O Mickey alucinado,
fumando charuto como ele,
foi sua marca registrada.
Por quê? “Gosto de Mickey
e charutos”, foi sua resposta.
ILUSTRADA

CERCO MEDIEVAL
CASTELOS ERAM REALMENTE DUROS DE
INVADIR. MAS HAVIA MEIOS POR FÁBIO MARTON

N
a Idade Média, um cerco geral-
mente fazia jus ao nome: a for-
taleza inimiga era só cercada
mesmo, de forma que não pudessem
obter mantimentos de fora, até que se
rendessem por fome e/ou falta de mu-
nição. Ataques com trabucos (ao lado) 1
e outras catapultas serviam para en-
corajar o adversário a desistir. Até
mesmo cadáveres serviam de munição
– a Peste Negra teria chegado à Euro-
pa por meio de um trabuco mongol,
que infectou os defensores italianos
com um corpo no Cerco de Caffa, em
1346. A invasão, como ao lado, acon-
tecia se o invasor tivesse pressa – por
exemplo, por reforços inimigos che-
gando – ou quando tinha vantagem
absoluta. A evolução das grandes
bombardas (canhões fixos que lança-
vam projéteis de pedra), no século 15,
tornou fácil destruir as paredes de um
castelo. Mas as fortificações evoluíram
em resposta, com paredes curvas, em
forma de estrela, às vezes protegendo
cidades inteiras. Cercos continuaram
a existir até o século 20 e, de certa for-
3
ma, a Primeira Guerra foi um enorme
“cerco” mútuo entre os dois lados en-
trincheirados. Foi a ideia de guerra
móvel e motorizada – a blitzkrieg –, na
ILUSTRAÇÃO DORLING KINDERSLEY / GETTY IMAGES

grande guerra seguinte, mostrando a


quase inutilidade de algo como a Li-
nha Maginot, a mais moderna fortifi-
cação já feita, que aposentou de vez o
conceito. Ou quase: em guerras de
baixa intensidade, cercos continuam
a acontecer. Infamemente em Saraje-
vo, nos anos 90.

12 AVENTURAS NA HISTÓRIA
1 2 3 4 5
CADAFALSO TORRES ARÍETE PLÚTEOS TRABUCO
Castelos durante Para mandar Para quebrar o A equipe de solo, Nome em bom
um cerco não se soldados para portão do castelo, principalmente português para o
pareciam como dentro do castelo, um grande tronco contra-arqueiros, famoso trébuchet.
em tempos de paz. escalar as paredes pendurado por que tentavam atingir Estrelas do cerco,
Estruturas ou encostar escadas cordas era puxado os defensores, era atiravam projéteis
provisórias de nelas era suicídio. para trás por protegida por contra os muros
madeira, os Os defensores soldados e solto abrigos portáteis, ou sobre eles, e os
cadafalsos, eram disparariam flechas, contra ele. Se o os plúteos, feitos maiores ganhavam
construídas sobre pedras, óleo e areia castelo tivesse um de madeira, palha até nomes próprios:
muros e torres para fervente etc. fosso (como no ou vime. Quando como o Warwolf,
abrigar mais Soldados entrando exemplo), uma as armas de fogo de 1304, o maior
arqueiros e permitir- um a um também rampa de terra era começaram a ser de todos, que, com
lhes atirar de um eram fáceis de construída pelos usadas, também pedras de 150 kg,
ângulo melhor. combater. Torres de invasores. O aríete eram protegidas destruiu o Castelo
cerco protegidas e tinha um telhado por eles. de Stirling e tinha,
largas acabam com para proteger contra por alguns cálculos,
essa vantagem. flechas. 120 m de altura.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 13
DÚVIDA CRUEL

A IGREJA FEZ
MAL À CIÊNCIA?
C
A VERDADE ercada de mitos, a relação entre Igre- Bruno foi queimado vivo “em razão de suas
ja e ciência costuma ser caracteriza- concepções heréticas em relação à divinda-
NÃO É TÃO
da como uma oposição da religião de ou não divindade de Cristo, não porque
SIMPLES ao progresso científico. Afinal, o teólogo e ele acreditasse na infinitude do universo”.
QUANTO OS filósofo Giordano Bruno foi condenado à A maioria dos historiadores contempo-
ESTEREÓTIPOS fogueira pela Inquisição, que censurou e râneos refuta a ideia de que a Idade Média
perseguiu muitos outros cientistas. foi um período de pouco avanço científico.
DE HOLLYWOOD
De fato, a Inquisição julgava todos aque- Ele, na verdade, lançou os fundamentos da
POR LETÍCIA YAZBEK
les que eram considerados uma ameaça às ciência empírica moderna e proporcionou
doutrinas cristãs. E, muitas vezes, essas o desenvolvimento de diversas áreas do co-
pessoas eram cientistas – como Nicolau nhecimento. Em The Sun in the Church:
Copérnico e Galileu Galilei. Cathedrals as Solar Observatories (“O Sol
Será? Gente como o historiador ameri- na Igreja: As Catedrais como Observatórios
cano Ronald Numbers, autor de Myths and Solares”), o historiador John Heilbron afir-
Truths in Science and Religion: A Historical ma que a Igreja ofereceu mais financiamen-
Perspective (“Mitos e Verdades em Ciência to ao estudo da astronomia do que qualquer
e Religião: Uma Perspectiva Histórica”), outra instituição por mais de seis séculos,
discorda. Segundo ele, o número de cientis- até o Iluminismo. A produção de conheci-
tas que perderam a vida por causa de suas mento ocorria em templos religiosos, por
concepções científicas foi zero. Giordano estudiosos que se dedicavam a várias áreas
do saber, como matemática, geologia, bio-
logia, física, agricultura e arquitetura.
Outros mitos ajudaram a consolidar a
noção de que o cristianismo exterminou
a ciência. O boato de que autópsias e dis-
secações eram proibidas pela Igreja, por
exemplo, foi criado no século 19 a partir
de narrativas de ficção, assim como aque-
le que diz que a religião pregava que a
Terra era plana.
A melhor forma de caracterizar essa
relação ainda é debatida pela comunidade
acadêmica. Tensa e instável, ela é marcada
FOTO KLARA KULIKOVA/GETTY IMAGES

por períodos de harmonia e outros de con-


flito. No entanto, questões contemporâne-
as reprovadas pela Igreja, como a utilização
de métodos contraceptivos e o uso de cé-
lulas-tronco na ciência, indicam que esses
embates estão longe de acabar.
À MESA

CHAMPANHE
CLÁSSICO DE FIM DE ANO JÁ FOI VISTO COMO
UM INDESEJÁVEL ACIDENTE POR LETÍCIA YAZBEK

O
vinho já era feito na região de Cham- assim mesmo, como um vinho diferente,
pagne desde a conquista da Gália que causava um impacto ao abrir.
pelos romanos, em 52 a.C. Nos sécu- Uma lenda bastante repetida até hoje
los 16 e 17, o vinho de Champagne já era fala que o champanhe foi descoberto no
apreciado pela corte francesa. Mas a bebi- século 18 por Dom Pérignon, monge res-
da ainda não era efervescente – as bolhas ponsável pela produção de vinho, que, ao
eram consideradas uma “corrupção” do abrir uma das garrafas sobreviventes e ex-
vinho tranquilo. perimentar o vinho borbulhante, teria dito:
Mesmo indesejadas, as bolhas voltavam “Estou bebendo estrelas!”. A história foi
a aparecer para atormentar os produtores. contada por outro monge, o beneditino
Quando o inverno chegava, o processo de Dom Groussard, em 1821, e é provavelmen-
fermentação muitas vezes era interrompi- te apócrifa. O que se sabe de fato é que
do. Na primavera, as temperaturas volta- Pérignon conseguiu controlar a fermenta-
vam a subir e a fermentação era reiniciada ção, adicionando no vinho as leveduras
com o vinho já engarrafado. O dióxido de necessárias para que as bolhas surgissem.
carbono resultante do processo fazia os Além disso, reforçou as garrafas para evi-
vidros explodirem, levando as adegas ao tar que elas se quebrassem. Se Dom Périg-
Se Dom caos – o problema surgiu no século 17, non não criou o champanhe, teve um papel
Pérignon quando as garrafas de vidro passaram a ser essencial nisso. Em 1813, a empresária
FOTO ANDY ROBERTS /GETTY IMAGES

usadas no lugar dos barris de madeira. francesa Madame Clicquot-Ponsardin de-


não criou o Quando as garrafas não explodiam, essa senvolveu uma técnica, chamada remuage,
champanhe, segunda fermentação criava as bolhas que para remover a levedura do líquido turvo.
eram liberadas inofensivamente na abertu- A bebida, clara e cristalina, fez sucesso na
teve um papel ra do recipiente. Aos poucos, os produtores França – em 1845, foram vendidas 6,5 mi-
essencial nisso decidiram apostar na bebida e vendê-la lhões de garrafas – e logo ganhou o mundo.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 15
LINHA DO TEMPO

NOITE
OS MOMENTOS
AO LONGO DA
HISTÓRIA NOS QUAIS
A CELEBRAÇÃO

FELIZ
DO NATAL FOI
CONSTRUÍDA
POR THIAGO LINCOLINS

SÉCULO 6 1582

ANTIGUIDADE NASCE O SÉCULO 16 DATAS


PAPAI NOEL CONFUSAS
ANTECESSOR Ao descobrir que seu ÁRVORE A Rússia celebra o Natal
AO NATAL vizinho ia prostituir as três ENFEITADA em 7 de janeiro. E a razão
Os primórdios da filhas para sustentar a A árvore de Natal moderna é um evento antes do
celebração são atrelados a família, Nicolau teria ganhou origem na nascimento de Jesus. E
Saturnália, uma festa pagã colocado um saco de ouro Alemanha. Ao comemorar isso se deve ao calendário
comemorada entre 17 e 23 na chaminé da casa ao o dia de Adão e Eva, lançado por Júlio César em
de dezembro. O evento lado. O pai das garotas celebrado no dia 24 de 46 a.C., e adotado ao redor
homenageava o pai de encontrou o donativo e dezembro, árvores do mundo até a data
Zeus, Cronos, ou Saturno. usou-o como dote para enfeitadas com bolachas acima, quando o papa
No século 4, a Igreja casar a primogênita. Daí eram colocadas em casas Gregório XIII declarou que
decidiu marcar o Natal em diante o santo ganharia – representavam o dez dias daquele ano não
para essa época para fama de presenteador e “paraíso”. Em seguida, o existiram, de forma a
“sobrescrever” a seria identificado com o costume seria popularizado corrigir uma imprecisão do
celebração. Durante a Pai Natal, o símbolo maior no século 18, pelo príncipe original. A Igreja Ortodoxa
festa, os romanos da data. Hoje bem Albert. A árvore da era Russa nunca o adotou,
decoravam a casa, davam comercializado. vitoriana era decorada com e daí veio a diferença.
presentes e faziam um brinquedos, presentes,
grande banquete. velas e doces pendurados.

16 AVENTURAS NA HISTÓRIA
SÉCULO 18 1881

1644 TROCA 1843 VELHO


DE BICHO GORDUCHO
A GUERRA O peru é uma tradição O RENASCER A imagem moderna do
AO NATAL relativamente recente Ao lançar A Christmas Papai Noel começou a se
Para Oliver Cromwell na ceia natalina. Na Carol (“Um Conto de formar em 1881, quando o
e outros puritanos, tanto Grã-Bretanha, o animal Natal”), em 1843, Charles desenhista alemão Thomas
as cantigas quanto as escolhido para o jantar era Dickens não imaginava Nast publicou na revista
festividades natalinas eram o javali, especificamente o grandioso impacto que americana Harper’s Weekly
práticas anticristãs. a sua cabeça. O animal a sua obra causaria. No um desenho do Bom
A celebração era vista começou a sair de cena início do século 19, com Velhinho. Ele estava em
como um vestígio do no século 18, quando a eclosão da Revolução preto e branco e tinha
paganismo, sem as pessoas notaram que Industrial, o Natal não tinha aparência semelhante à
justificativa bíblica – a data o peru, ave nativa da o mesmo impacto cultural de um gnomo. Nos anos
não é mencionada e, se América e domesticada que agora. Com um livro seguintes, Nast foi
você viu o item 1, o Natal por diversos povos do bem-sucedido que aprimorando o retrato
herdou muito da Saturnália. continente, é barato e resgatava os valores inicial, acrescentando uma
Em 1644, o Parlamento engorda rápido. Assim natalinos, as fábricas barriga proeminente e
inglês promulgou um ato virou símbolo de fartura. começaram a servir aumentando sua estatura.
que baniu as festividades jantares e empresas
natalinas. fechavam no dia.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 17
SURREAL

anos 40, se tornaram populares entre


os músicos de jazz. A roupa, por
exemplo, era a marca registrada do
ícone Cab Calloway em suas apresen-
tações. Mas, quando os latino-ameri-
canos da Califórnia adotaram o visu-
al, a polêmica ganharia vida. Diante
do racionamento de tecido imposto
durante a Segunda Guerra, essa ex-
travagância era considerada um ato
de grave falta de patriotismo. Mas
esse não foi o único motivo que ini-
ciou as Revoltas do Terno Zoot.
Em 1942, um crime tomou conta
da mídia. No dia 2 de agosto, o corpo
de José Gallardo Díaz foi encontrado
numa estrada próxima a um reserva-
tório da cidade. O local era ponto de
encontro de mexicanos-americanos.
A imprensa responsabilizou 17 jovens
pela morte de José durante uma briga
de gangues. (Embora a causa da mor-
te permaneça um mistério, a autópsia
apontou que Díaz estava embriagado
e provavelmente teria se envolvido

ZOOT E
m junho de 1943, um tumulto num acidente que resultou em trau-
tomou conta das ruas de Los matismo craniano.)
Angeles, na Califórnia. Por mais O terno zoot passou a ser visto
de uma semana, policiais e marinhei- como símbolo de “marginais”. Lan-

SUIT
ros brancos, aos gritos, espancavam çada a histeria, as autoridades mar-
e arrancavam as roupas de adolescen- chavam nas ruas invadindo bares e
tes e jovens, a maioria negros e lati- cinemas em busca dos “arruaceiros”.
nos. Eram os zoot suits, “ternos zoot”, As roupas eram queimadas e seus do-

RIOTS
não muito claro de onde veio o segun- nos, humilhados. A revolta se espa-
do termo. Os trajes eram largos e con- lhou para Detroit, levando à pior re-
feccionados com muito material. Com volta racial da cidade, com 34 mortes.
ombros enormes, os paletós batiam Até a primeira-dama, Eleanor Roose-
DURANTE A SEGUNDA no joelho. As calças eram extrema- velt, se pronunciou, acusando a revol-
FOTO BETTMANN / GETTY IMAGES

GUERRA, UM ESTILO DE mente largas e compridas. A “antimo- ta de ser racial, não pela roupa.
da” não começou com os latinos que Acalmados os ânimos, a história
SE VESTIR TERMINOU
viviam nos EUA. Os zoots nasceram foi parar em Tom e Jerry. O curta Zoot
EM TUMULTO com as comunidades afro-americanas Cat (“Gato Zoot”), apresenta uma
POR THIAGO LINCOLINS do Harlem, Chicago ou Detroit. Nos paródia (racista) da moda.

18 AVENTURAS NA HISTÓRIA
MITOS E LENDAS

GOLEM O ROBÔ DO RABINO


POR THIAGO LINCOLINS

N Em uma sexta-
o final do século 16, às margens sótão da Sinagoga Velha Nova (é o
do Rio Vltava, o rabino Judah nome) para caso de necessidade. A
Loew ben Bezalel, através de lenda de Yossele é a mais clássica, mas feira, Bezalel
rituais e encantamentos hebraicos, daria origem a inúmeras outras. Uma se esqueceu de
tentava dar vida a um ser feito de ar-
gila. O boneco que estava prestes a
delas até fala num soldado nazista
adentrando o sótão da mesma sina-
remover o papel.
nascer deveria proteger os judeus que goga e morrendo misteriosamente. No dia seguinte,
viviam em Praga, na República Tche- Uma das produções mais notórias a estátua saiu
ca, dos libelos de sangue – acusações que envolvem a lenda é a trilogia ale-
de que os judeus cometiam rituais de mã Der Golem (“O Golem”), lançada
pelas ruas
sacrifício humano, seguidas pelo po- em 1915, com direção de Paul Wege- de Praga
grom, o linchamento. ner e Henrik Galeen. Além disso, a
As passagens existentes no Sefer história permanece viva na cultura
Yetzirah (“Livro da Criação”) foram judaica. Em lojas de souvenirs em Pra-
utilizadas para que as pessoas tentas- ga, turistas ainda se deparam com os
sem criar monstros do tipo. Eles eram monstros em miniatura.
chamados de golem ,derivado de ge-
lem (“matéria-prima”). Para ganhar
vida, um ritual divino deve ser reali-
zado com as letras do alfabeto hebrai-
co. O processo resultaria no shem, um
dos “Nomes de Deus”, que ao ser es-
crito num papel é inserido na boca ou
na testa da matéria inanimada.
O golem criado pelo rabino Judah
recebeu o nome de Josef, era conhe-
cido popularmente como Yossele.
Alto e extremamente poderoso, po-
deria ganhar forma invisível e até
invocar espíritos. Entretanto, os ju-
deus não podiam contar sempre com
a sua presença. A lei judaica, que não
permite trabalho no shabbat (sábado),
também se aplicava aos golens. Caso
eles fossem ativados no dia, o monstro
se tornaria incontrolável.
Em uma sexta-feira, Bezalel se es-
queceu de remover o papel. No dia
seguinte, a estátua saiu pelas ruas de
Praga, destruindo tudo no caminho.
FOTO GETTY IMAGES

O rabino conseguiu arrancar o papel


de sua boca, e a estátua se partiu em
pedaços. Que foram armazenados no

AVENTURAS NA HISTÓRIA 19
ARTE

CHOQUE DE FUTURO
O FUTURISMO, MOVIMENTO MODERNISTA RADICAL ITALIANO, FEZ UMA APOLOGIA
AO MUNDO INDUSTRIAL E TERMINOU ADOTADO PELO FASCISMO POR LETÍCIA YAZBEK
Manifestazione
Interventista
Autor: Carlo Carrà
Ano: 1914
Técnica: têmpera,
caneta, mica em pó
e papel sobre cartão
Tamanho: 38,5 x 30 cm
Local: Colecção Peggy
Guggenheim, Veneza,
Itália

A sobreposição de A obra traz Influenciado pelas As imagens Como outros


1 imagens e as cores 2 palavras que 3 técnicas utilizadas 4 e palavras são 5 futuristas, Carrà
vivas e contrastantes fazem referência à pelos artistas cubistas apresentadas na forma começou anarquista e
expressam energia modernidade, como na mesma época, Carlo de um caleidoscópio, acabou se convertendo
e velocidade. Esse “esportes”, além de Carrà utilizou recortes de analogia ao turbilhão de ao fascismo na década
movimento convida o representações sonoras jornais, revistas, folhetos, novidades que rodeava a de 20. Diferente de Hitler,
observador a defender e repetições de letras, bilhetes e etiquetas para sociedade. A composição Mussolini apreciava
seus ideais e abandonar características do compor a obra. da obra foi inspirada por o modernismo, e a
a passividade. futurismo italiano, que panfletos caindo de um apologia às máquinas
sugerem gritos e ruídos. avião e se espalhando combinava com a
pelo chão em Milão. mensagem fascista.
COMO FAZÍAMOS SEM...

LIQUIDIFICADOR
PARECE IMPENSÁVEL, MAS TUDO O QUE FAZEMOS COM ELE PODIA
SER FEITO DE OUTRA FORMA ANTES POR MARIANA RIBAS

C
omo era a vida dos cozinheiros antiga- Em 1910 os primeiros modelos foram vendi-
mente? Como eles trituravam seus ali- dos para uso doméstico, mas ainda assim ti-
mentos sem o uso de energia elétrica? nham seus grandes problemas com o tamanho
Teriam os antigos de se virar sem caldos, sopas, do motor e o peso, não tendo tanta popularida-
sucos e milk-shakes? de nas casas. Foi quando, em 1922, Stephen
Não. Tudo isso veio antes do liquidificador. Poplawski inventou uma configuração nova
E, até ele, o único modo de alcançar isso era para o liquidificador. Ele usou o mesmo funcio-
cortando tudo em minúsculos pedaços até che- namento de lâminas dentro de um copo, só que
gar ao resultado ideal, amassando num pilão com um motor mais moderno na base, ficando
ou – caso do milk-shake, que data da década de menor, mais leve, e consequentemente mais
1880 – chacoalhando numa coqueteleira. Não prático. Mas apenas dez anos depois que a pro-
é mistério, o processo além de cansativo era dução foi finalizada que estourou a popularida-
muito demorado. de do liquidificador nas residências.
A primeira ideia similar a um liquidificador
surgiu antes da energia elétrica. Era uma espécie
de copo com lâminas manual, onde se girava uma
manivela para que a lâmina girasse e cortasse os
alimentos, mas esse método também era bastan-
te exaustivo, e a busca por um novo processo
prático e rápido não parou por aí.
Nos Estados Unidos, no ano de 1904, surgi-
ram os primeiros liquidificadores parecidos
com os que conhecemos hoje. Eram um tipo
de mistura entre batedeira e liquidificador, mas
se diferenciavam dos produtos anteriores por-
que não eram manuais, e sim elétricos. O seu
funcionamento era basicamente um motor
enorme ligado à correia de transmissão. Ainda
não era prático para vendas domésticas por ser
grande e pesado, mas era utilizado em mistu-
ras de substâncias químicas e nas lanchonetes
com as produções dos milk-shakes, muito po-
pulares nos EUA até os anos 50, antes de sur-
girem as redes de fast-food.

Teriam os antigos de se
virar sem caldos, sopas,
sucos e milk-shakes?
22 AVENTURAS NA HISTÓRIA
NÚMEROS

CONFLITO QUE
27 de 8 de 5 anos,

QUANDO
ARRASOU O dezembro de abril de
3 meses
VIZINHO NÃO ERA
TÃO UNILATERAL
1864 1870 e 9 dias
QUANTO PARECEU POPULAÇÃO
POR MARIANA RIBAS
Brasil Argentina
Paraguai

9 MILHÕES
POR QUE COMEÇOU 1,5 MILHÃO
O Brasil conduzia uma
Uruguai
450
intervenção no Uruguai para
apoiar Venancio Flores, do Partido MIL¹
Colorado, em sua campanha para 220 MIL
tomar o poder do Partido Blanco,
apoiado pelo Paraguai. O país deu
um ultimato ao Brasil, que, não
cumprido, deu origem à guerra.
NO FINAL DA GUERRA (1871) 221 MIL
PLANO PARAGUAIO 106,2 mil mulheres 28,7 mil homens adultos 86,1 mil crianças

O plano de Solano López


era distrair o Brasil com uma
falsa invasão no Mato Grosso,
enquanto o Paraguai movia uma FORÇAS NO COMEÇO FORÇAS NO AUGE
coluna para a Argentina, contra

64 150
Corrientes, com o intuito de
Paraguai

Paraguai
se juntar a um aliado e atacar
Buenos Aires. A força então
se dividiu, com uma coluna

29 174,5
invadindo o Rio Grande do Sul,
rumo ao Uruguai, para salvar
Aliança

Aliança
Tríplice

Tríplice

os blancos. Ambas fracassaram.

BRASIL

Mato Argentina Argentina


Grosso 8 mil 30 mil
Brasil Uruguai Brasil Uruguai
PARAGUAI 18 mil 3 mil 139 mil 5,5 mil

BAIXAS ²
ARGENTINA
Rio Grande
do Sul Brasil Argentina Uruguai

URUGUAI
¹ THOMAS WHIGHAM E BARBARA POTTHAST, 1999

E A INGLATERRA?
Paraguai
Não teve nada a ver com isso. Ela
estava com relações diplomáticas
cortadas com o Brasil por
² ROBERT SCHEINA, 2003

conta da Questão Christie. Em


compensação, os EUA por pouco
não atacaram – em sua guerra
civil, o Império demonstrou
simpatia pelos confederados.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 23
EXTREMOS

10

3300 a.C.
CRIME PRÉ-
HISTÓRICO
Encontrado sob o gelo
na fronteira da Áustria com
a Itália, em 1991, Ötzi é um
dos corpos mais célebres
da arqueologia. Vivendo na
passagem da Pré-História
para a História, ele foi morto
a flechadas em 3300 a.C.
Acredita-se que foi vítima
de vingança. A morte foi
causada por uma flecha no
ombro, o que já era sabido.
Mas, alguns dias antes,
havia levado outra flechada,
na mão, à qual havia
sobrevivido. Seria ele um
guerreiro ou um modesto
caçador, vítima de uma
agressão injustificada?

9
OS
IOS

1497
T ER
M I S O R
P
OS RAS NCOLINS
S GIOVANNI
S CA Á E AGO LI BORGIA
S TE AM H OR THI
E ER O P Na manhã do dia 15
P
ES UÇÃ de junho de 1947, o cavalo
L
SO de Giovanni apareceu
misteriosamente sem o
dono. Logo foi dado como
desaparecido. Seu corpo
seria encontrado no Rio
Tibre. Borgia foi atacado
com nove facadas e teve
sua garganta mutilada.
Após o início das
investigações, o pai,
o papa Alexandre VI,
acusou publicamente
FOTO HALFDARK / GETTY IMAGES

Gioffre Borgia pela morte


do irmão. Por razões que
nunca ficaram claras, o
caso terminaria fechado
em uma semana.
8 6 4 2

1968
1959
1961

1947
MICHAEL INCIDENTE O ASSASSINO O CASO
ROCKEFELLER EM DYATLOV DO ZODÍACO BLACK DALIA
Diferentemente dos Nos primeiros dias de Nos anos finais da Dois anos após o fim da
membros da dinastia fevereiro de 1959, década de 60, moradores Segunda Guerra, um crime
Rockefeller, Michael decidiu nove esquiadores que do Norte da Califórnia causou indignação
partir numa expedição acampavam nos Montes foram aterrorizados por nacional nos EUA. O corpo
em 1961. Após conhecer a Urais, na União Soviética, um assassino em série, nu e mutilado de Elizabeth
tribo de Asmat, o milionário fugiram desesperadamente que causou a morte de Short, apelidada de “Dália
partiu para a costa da do local. Ainda pior, saíram cinco pessoas e deixou Negra”, foi cortado ao meio
Papua Nova Guiné de sem roupas apropriadas outras duas feridas. De e jogado num terreno
barco. Durante o trajeto para encarar a temperatura forma incomum, preferia baldio de Los Angeles.
um acidente inesperado fez de dezenas de graus usar armas de fogo. O Após virar alvo da mídia, o
com que Michael tentasse abaixo de zero. Como assassino mandou cartas assassinato de Short atraiu
nadar até a costa. Ele resultado, os corpos foram à imprensa, chamando inúmeras confissões falsas.
desapareceu. Buscas encontrados com sinais de a si mesmo de Zodíaco, O departamento de polícia
foram realizadas, mas hipotermia, e outros com falando ter matado 37 chegou a investigar 150
nenhum resultado foi traumatismo em partes e incluindo um trecho homens suspeitos de
conclusivo. Há a tese de distintas. A investigação criptografado (que não dizia terem matado Elizabeth.
que o herdeiro foi morto por concluiu que uma “força muito além de “eu gosto de E, na busca pelo culpado,
membros da tribo. Hipótese desconhecida” foi matar porque...”). Continua até uma recompensa foi
muito difícil de comprovar. responsável pelas mortes. incógnito. oferecida. Sem sucesso.

7 5 3 1
2001

1888
1966
1957

MARY ATAQUES MÁSCARAS JACK, O


REESER DE ANTRAZ DE CHUMBO ESTRIPADOR
Era 8 de julho de 1951 Uma semana após os Em 20 de agosto de Sua história está cercada
quando a polícia encontrou ataques do 11 de 1966, um jovem se de mitos – o maior deles
o corpo de Mary Reeser Setembro, nos EUA, deparou com os cadáveres a respeito de quem foi
em cinzas no seu envelopes infectados de dois homens no Morro o assassino, com um
apartamento, localizado com antraz (ou carbúnculo) do Vintém, Rio de Janeiro. suspeito até entre a
em Cherry Street, nos foram enviados para Ambos usavam terno, realeza. Mas o fato é que
EUA. Restou somente uma veículos de comunicação. máscaras de chumbo Jack (o nome lhe foi dado
das pernas da senhora O episódio causou a morte e não apresentavam pela imprensa) matou
de 67 anos. A cena ficaria de cinco pessoas, e outras vestígios de agressão. brutalmente pelo menos
ainda mais insólita: apenas 17 foram infectadas. Ao lado dos corpos a cinco mulheres (número
o local onde Mary estava Inicialmente, um polícia encontrou um bloco que talvez seja até oito) em
sentada foi afetado pela especialista em armas de notas com símbolos pouco mais de dois meses
combustão. O resto do biológicas foi acusado, e números. O mistério do outono de 1888. O
apartamento permaneceu mas o cientista Bruce nunca foi solucionado. assassino de Whitechapel
intacto. Os laudos foram Edwards Ivins se tornou No entanto, teorias indicam apavorou a população de
inconclusivos e sua morte alvo da investigação. que os homens teriam Londres e foi capaz de
foi registrada como Entretanto, inúmeras utilizado drogas numa driblar a melhor polícia
“combustão humana reviravoltas acabaram tentativa de entrar em do mundo na época,
espontânea”. arquivando o caso. contato com ETs. a Scotland Yard.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 25
BRASIL
CHICO
MENDES
O MÁRTIR
cebia dos fazendeiros da região. Em
maio de 1988, durante um evento
organizado pela Associação dos Geó-

DA FLORESTA
grafos Brasileiros na USP, em São Pau-
lo, Chico Mendes comentou sobre as
intimidações dos fazendeiros locais.
“Vários pistoleiros estão sendo es-
palhados na região para eliminar a
nossa resistência. A minha casa e o
Sindicato estão cercados. Mas não

A
adianta mais matar só um de nós,
HÁ 30 ANOS, O os olhos dos poderosos lo- porque a nossa liderança já está mui-
cais, Xapuri anoitecia em to grande”, disse em um de seus úl-
ASSASSINATO DO
resistência pelos direitos e timos atos públicos. “Se matam um
LÍDER SERINGUEIRO pela vida, nem que a última custasse Chico Mendes hoje, têm outros Chi-
REVELAVA AO BRASIL a primeira. Era 22 de dezembro de cos para dar continuidade à luta.”
A VIOLENTA VERDADE 1988 e um de seus maiores inimigos
DAS DISPUTAS entrava de tocaia no quintal do líder BRASIL REMOTO
da região. Já passava das 18h e um Nesse mesmo encontro, na USP, o
TERRITORIAIS NA tiro de espingarda calibre 20 ecoou ativista fazia um de seus últimos ape-
AMAZÔNIA pelo pequeno vilarejo do Acre. los para o país olhar com mais aten-
POR OTÁVIO URBINATTI Do lado direito do peito, 42 balas ção para sua região. Chico já era in-
de chumbo atingiam Francisco Alves ternacionalmente reconhecido, mas
Mendes Filho, o popular Chico Men- ainda precisava garantir apoio da
des. Naquela noite, enquanto serin- sociedade como um todo.
gueiras sangravam látex, seu mais “Sou seringueiro e tenho uma
célebre defensor sangrava as conse- participação direta na selva. Tive
quências. A causa da conservação que sair do extrativismo para pro-
ambiental da Amazônia e da sobre- curar apoio para minha categoria.
vivência dos povos da floresta perdia Hoje, meu trabalho é diretamente
uma de suas maiores lideranças. ligado aos povos da floresta.” Após
Apesar da grande comoção, seu se apresentar, lembrou da histórica
assassinato já era anunciado. Em di- disputa por terras na região e das
versas palestras, o seringueiro comu- péssimas condições de trabalho dos
nicava as constantes ameaças que re- seringueiros.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 27
BRASIL

Chico nasceu em 15 de dezembro minante para impulsionar a econo- Adquirido da


de 1944, em Xapuri, um dos lugares mia do Brasil e favorecer a anexação
mais longínquos do centro do país. O do Acre, em 1903. Mas era um negó- Bolívia, o território
local, por sua vez, já era considerado cio condenado.
de conflito muito antes dessa época. Adquirido da Bolívia num proces- do Acre passou ao
No final do século 19, a indústria au-
tomobilística nos Estados Unidos pas-
so que envolveu violência e do qual o
país reclama ainda hoje, o território
prejuízo já no início
sou a demandar a borracha brasileira do Acre passou ao prejuízo já no iní- do século 20
e um contingente muito grande de cio do século 20. As sementes das
nordestinos foi para a região, ainda seringueiras foram adquiridas por
boliviana, ganhar a vida nos seringais. britânicos e levadas para suas colônias AMIGOS NA FLORESTA
Ao contrário do que muitos ima- na Ásia, onde, diferente de seu Brasil Daí em diante, comunidades dos se-
ginavam, ali não era um vazio demo- nativo, com suas pragas, podiam ser ringais estabeleceram uma relação
gráfico e muitas tribos indígenas plantadas industrialmente. muito mais íntima com a floresta. Os
moravam nos arredores. A invasão Na Segunda Guerra Mundial, a costumes, as tradições e até certa vi-
dos não indígenas, portanto, deu iní- participação do Brasil no lado aliado são mística da floresta foram incor-
cio aos processos de grilagem e às fez renascer a indústria, para susten- porados pelos seringueiros, que, de
constantes brigas por territórios. tar as indústrias de tanques e aviões. invasores, tornariam-se aliados dos
Nos seringais, migrantes do resto O mercado cresceu, mas em pouco índios, criando uma união entre os
do país, principalmente do Nordeste, tempo as terras recuaram para o es- povos da região.
trabalhavam por vezes em condições quecimento. Foi nessa hora, por so- Mas ainda assim os anos áureos da
análogas à escravidão, aprisionados brevivência, que os extrativistas tive- borracha deixaram como herança a
por dívidas. A mão de obra foi deter- ram que se reinventar. intensa disputa entre fazendeiros e
posseiros. O local era carente de qual-
quer política pública que garantisse a
sobrevida daquela população. Nesse
contexto, sem nenhuma perspectiva,
só restava a Chico Mendes sangrar as
árvores ao lado do pai no Seringal
Cachoeira, em Xapuri.
Foi na década de 1960 que o jovem
seringueiro conheceu Euclides Távo-
ra, um velho comunista que havia
participado da Intentona de 1935 e
decidiu se refugiar na floresta. Com
ele, se alfabetizou. Nas letras e em sua
visão política.
Durante o regime militar, a “terra
esquecida” ganhou novo enfoque. A
partir da década de 1970, o Governo
Federal criou um plano econômico
voltado para o desenvolvimento da
Amazônia – torná-la mais parecida
com o resto do país. A ideia de levar
infraestrutura (como rodovias) à re-
gião – e trazer novos imigrantes –
punha em xeque o modo de vida dos
seringueiros e índios. A própria criou os “empates”, formas pacíficas começava uma discussão sobre um
Amazônia estava visada pelo fogo e de resistência, formando correntes possível colapso ecológico na Ama-
pela motosserra. para impedir o corte das árvores com zônia. “Nos anos 1980, surgiram pes-
“Chico e seus companheiros rece- o próprio corpo. Não aceitando o di- quisas que apontaram que regiões de
beram a notícia do plano desenvolvi- álogo, o grupo de proprietários rurais conservação ambiental que excluíam
mentista de uma forma muito violen- recorreu à Justiça e conseguiu aval suas populações tinham queda dra-
ta. Muitos deles foram encurralados para desmatar e fortalecer a atividade mática da biodiversidade”, afirma a
e a partir daí começaram a se organi- agropecuária. A repressão aumentou, pesquisadora da USP.
zar pela permanência em suas terras”, mas não diminuiu a luta pela terra. Agora, sim, usando a pauta am-
explica Pietra Perez, pesquisadora da bientalista, em 1985, o grupo decidiu
USP e mestra em geografia humana. MENSAGEM AO MUNDO criar em Brasília o Encontro Nacio-
Os primeiros atos de resistência co- Num primeiro momento, a luta desse nal de Seringueiros, onde foi apre-
meçaram a surgir e, em 1975, é forma- povo não era motivada pela preserva- sentada a proposta de criação de Re-
do o Sindicato de Trabalhadores Ru- ção ambiental, mas pela permanência servas Extrativistas.
rais de Brasileia. “Nesse momento, eu das famílias na floresta. “Chico Mendes conseguiu tradu-
entro na luta, porque lá atrás eu con- Quando o então presidente do Sin- zir a mensagem de um grupo sindical
segui colocar algo na minha cabeça dicato é assassinado, Chico assume a do interior do Acre para uma lingua-
com a experiência desse homem que liderança do movimento. Nesse perí- gem universal. Com as reservas ex-
viveu a Intentona”, recordou Chico. odo, o ativista já tinha participado da trativistas, a natureza e as comuni-
Como se temia, o desmatamento formação do Sindicato dos Trabalha- dades estariam protegidas”, explica
foi certeiro na redução da arrecadação dores Rurais de Xapuri e dado início Cláudio Maretti, diretor de ações
da atividade extrativista, aumentando a uma vida sem sucesso na política. socioambientais do Instituto Chico
a miséria e o desemprego no local. Enquanto isso, longe do Brasil e Mendes de Conservação da Biodiver-
Sem saída, o grupo se organizou e seus planos de integração nacional, sidade (ICMBio).

AVENTURAS NA HISTÓRIA 29
BRASIL

Na ocasião, também é criado o aças ao líder aumentavam, e Darli Entre suspeitos, o crime fora atri-
Conselho Nacional dos Seringueiros Alves, então proprietário do Seringal buído a Darli Alves e ao seu filho,
(CNS), com o intuito de mostrar que, Cachoeira e representante local de Darci. Ambos foram julgados em
embora isolada e pouco rentável, a uma entidade formada por grandes 1990 e condenados a 19 anos de pri-
atividade extrativista ainda existia e proprietários, se torna o maior ini- são. Nesse mesmo ano, o governo
era o principal meio de subsistência migo dos ativistas de Xapuri. decretou por lei que mais de 1 mi-
daquelas famílias. O sindicalista passou a prever sua lhão de hectares em Cachoeira se-
Em março de 1987, Chico Mendes morte ainda naquele ano. “Todo riam protegidos do desmatamento,
foi convidado para uma comitiva da mundo sabia que o meu pai estava de derrubadas e queimadas, levando
ONU, em Miami. Durante o evento, sendo perseguido. O assassinato não o nome de Reserva Extrativista Chi-
o ativista denunciou as políticas de- foi novidade para ninguém, porque co Mendes.
senvolvimentistas da Amazônia e isso já tinha acontecido com outras “Hoje, temos cerca de 70 mil famí-
condenou os investimentos de ban- lideranças. Nós sabíamos que era só lias que vivem em diferentes tipos de
cos internacionais na região. O dis- questão de tempo, mas mesmo assim reservas extrativistas, a maioria na
curso, com repercussão mundial, deu foi muito duro”, lembra Angela Men- Amazônia e no litoral. Chico virou
a ele prêmios globais de preservação des, primeira filha de Chico. herói nacional porque teve a capaci-
ambiental. E um alvo pintado em O assassinato, ainda que previsto, dade de projetar sua luta a nível glo-
suas costas. ganhou força na imprensa interna- bal”, ressalta Cláudio Maretti, do
cional e a pressão em cima do gover- ICMBio, instituição responsável por
A INFLUÊNCIA DE UMA MORTE no brasileiro aumentou. Após o epi- implantar, gerir e monitorar as Uni-
A luta em território nacional ainda s ó d io, a l iados do mov i mento dades de Conservação do país.
continuava e, só em 1988, o governo organizaram o Comitê Chico Mendes O movimento não só garantiu a
federal começou a organizar o mo- para criar uma mobilização em prol permanência de inúmeras famílias
delo de reserva extrativista. As ame- do julgamento dos assassinos. em suas terras como também asse-

30 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Aliados organizaram o Comitê Chico dez trabalhadores rurais em maio
de 2017. Os assassinatos acontece-
Mendes para criar uma mobilização ram durante uma ação de reintegra-

em prol do julgamento dos assassinos ção de posse em um acampamento


da região.
“Esses territórios continuam em
gurou minimamente políticas públi- “Eu era adolescente quando ele disputa permanente, porque terra
cas para a região. Joaquim Belo, o morreu. Por isso, ao longo da minha não perde valor. São áreas muito ri-
atual presidente do CNS, comenta vida fui construindo um Chico atra- cas, com muita madeira e muitos
que a passagem do acreano na luta é vés das outras pessoas. Mas acho que minérios”, completa o presidente do
reproduzida de diferentes formas. o sangue e o DNA não negam a mi- Conselho Nacional dos Seringueiros.
“É difícil medir o legado de Chico, nha luta por justiça e igualdade.” Neste ano, a Semana Chico Men-
porque ele está nas pessoas, nas uni- Ela lembra que recentemente uma des, em Xapuri, promove o evento
versidades, em nomes de instituições, área próxima a Xapuri foi foco de Chico Mendes 30 anos: Uma Memó-
em filmes, em livros. Mas, para nós ameaças e algumas casas foram der- ria a Honrar, um Legado a Defender.
do movimento, o seu maior feito foi rubadas. “Não sabemos de nenhuma Após três décadas do assassinato, o
garantir o direito às nossas terras”, morte, por enquanto”, disse. encontro traz um balanço de suas
completou. “Hoje, o defunto é mais Além do Acre, ainda há outros conquistas e estabelece projeções
caro em nosso território.” registros de conflitos entre jagunços para os próximos anos. Para eles, o
Belo ainda conta que a Amazônia e trabalhadores rurais. No sul do mártir não só fica na saudade como
já possui 13% de área destinada a ter- Pará, por exemplo, o chamado mas- é um símbolo da resistência e espe-
ritórios de uso coletivo. Com o intui- sacre de Pau-D’Arco tirou a vida de rança hoje e no futuro.
to de somar a esse número, mais de 80
pedidos de reservas já foram encami-
nhados ao ICMBio nos últimos anos.

DESAFIOS PELAS DÉCADAS


Apesar de limitada, a produção da
borracha ainda é extremamente im-
portante para muitas famílias do
Acre. Por mais que 50% do estado
seja destinado a áreas de conserva-
ção, ainda existe muita disputa por
terra nos entornos das fazendas.
Para isso, o Comitê Chico Mendes
realiza anualmente, em dezembro, a
Semana Chico Mendes entre os dias
FOTOS H. JOHN MAIER JR. / GETTY IMAGES; MIRANDA SMITH

15 (seu aniversário) e 22 (sua morte)


para resgatar os ideais do líder e con-
tinuar a discussão do movimento.
A filha mais velha, Angela, mem-
bro do grupo e do CNS, comenta que
é necessário denunciar que “outros
Chicos” continuam ameaçados na
região. Hoje, a luta é fazer com que
não se perca o que o nome de seu pai
conquistou.
RELIGIÃO

ESTA
TERRA
É A Revolta
dos Macabeus

MINHA
32 AVENTURAS NA HISTÓRIA
HÁ 22 SÉCULOS, UMA REVOLTA FUNDOU UMA NAÇÃO
INDEPENDENTE DOS JUDEUS PELA SEGUNDA E ÚLTIMA
VEZ ANTES DO ESTADO CONTEMPORÂNEO, FUNDADO
EM 1948. A CONQUISTA DEU ORIGEM À TRADICIONAL
FESTA JUDAICA DO HANUKKAH
POR TIAGO CORDEIRO

T
odos os anos, no dia 24 de Kislev do calen- GUERRA ENTRE CONQUISTADORES
dário hebraico (que cai entre o fim de no- No século 2 a.C., o Oriente Médio experimen-
vembro e o começo de dezembro no nosso), tava a influência dos descendentes de Alexan-
os judeus celebram o Hannukah. O também dre, o Grande, que havia morrido em 323 a.C.
chamado de Hanucá ou Chanucá é a festa das A região era vizinha a dois reinos de descen-
luzes. Durante oito noites seguidas, eles acendem dentes do conquistador – os selêucidas, na re-
o hanikiá, o candelabro ritualístico de nove pon- gião da atual Síria, e os ptolomaicos, instalados
tas, e o colocam sobre as janelas de suas casas no Egito. As duas dinastias acabariam por cair
– em Israel, é comum os moradores manterem diante dos romanos algumas décadas depois,
caixas de vidro do lado de fora das casas. Tam- mas, desde a década de 190 a.C., os selêucidas
bém se reúnem entre amigos e comem panque- controlavam a região de Israel.
cas de batata e sonhos recheados. Para celebrar Os judeus estavam divididos: parte deles, a
o milagre que teria acontecido em Jerusalém, no mais pobre e ligada ao campo, se mantinha fiel
ano 165 a.C.: um grupo de rebeldes havia venci- a Javé. Já a parcela mais rica e urbanizada que-
do os conquistadores sírios de influência hele- ria abraçar os hábitos gregos, com o pacote
nística. Pagãos em sua Terra Santa. completo de influências, incluindo os nomes
No processo de purificar o templo, que havia helenísticos, o politeísmo, o fim da prática da
sido utilizado para realizar sacrifícios de animais, circuncisão e a adoção do sacrifício de animais
que o judaísmo considera impuros, era preciso considerados impuros pela tradição hebraica,
queimar lâmpadas cujo combustível era azeite especialmente porcos.
de oliva. Mas o processo ritualístico de preparo Divididos internamente, os judeus entraram
do óleo demorava oito dias, e só havia sobrado em conflito quando o sumo-sacerdote Onias
intacto um pouco de combustível, o suficiente III, ligado às antigas tradições religiosas hebrai-
para apenas um dia. Eis que o pouco óleo conti- cas, foi substituído por seu irmão Jasão, aliado
nuou queimando, por oito dias e oito noites, até do rei selêucida, Antíoco IV, que alcançou o
que a nova leva estivesse pronta. trono em 175 a.C. Antíoco seguia a política de
Para os judeus, o óleo durou por graça de Ya- preservar certa autonomia religiosa e cultural
weh (Deus). Foi um milagre tão espantoso quan- dos povos conquistados, mas, é claro, estimu-
to a própria vitória militar, que acabaria por dar lava o crescimento de lideranças locais alinha-
origem a um reino independente até que os roma- das a seu governo. Jasão começou a transformar
nos incorporassem a região como protetorado, no Jerusalém numa cidade helênica, com ginásios
ano 63 a.C. Esse século de autonomia seria o últi- para a prática de esportes, estátuas para deuses
mo até a fundação do Estado moderno de Israel, gregos e, principalmente, a transformação do
em 1948 – depois dos romanos, ao longo de dois templo de Jerusalém num centro religioso de-
milênios, a região seria dominada por bizantinos, dicado ao deus grego Zeus.
árabes, otomanos e britânicos. Essa última vitória Jasão acabou perdendo o posto para Mene-
foi resultado de uma rebelião liderada por um lau, que era seu braço direito e convenceu o rei
grupo conhecido como macabeus. Antíoco de que poderia acelerar a heleniza-

AVENTURAS NA HISTÓRIA 33
RELIGIÃO

ção do povo hebreu. Menelau mandou matar judaísmo, os macabeus se recusaram a pegar
Onias III, que se mantinha como uma lideran- em armas. Foram massacrados.
ça contra as mudanças. Acabou preso pelo cri- Mas os meses se passaram, e a tática de guer-
me; e o sumo-sacerdócio, devolvido a Jasão. rilha começou a funcionar. Pouco a pouco, os
Insatisfeito com a prisão de Menelau, no ano macabeus começaram a ganhar territórios na
168 a.C. o rei selêucida invadiu Jerusalém, levou direção de Jerusalém. Um ataque-surpresa na
centenas de mulheres e crianças como escravos Batalha de Wadi Haramia, por exemplo, garan-
e pilhou o templo de Jerusalém. Foi a gota tiu a vitória de 600 homens, que enfrentaram,
d’água para os macabeus. com sucesso, 2 mil inimigos. Na Batalha de Beth
Horon, os judeus precisaram de mil soldados
GUERRILHA SANTA para colocar os 4 mil selêucidas para correr. Nos
“Macabeu” vem do hebreu makkaba – “mar- arredores de Emaús, foram 3 mil hebreus, que
telo”. O apelido surgiu para fazer referência a superaram 5 mil inimigos. A sequência de vitó-
uma família que iniciou a resistência, e depois rias permitiu retomar Jerusalém, em 165 a.C. A
passou a ser utilizado para designar todas as primeira medida dos vencedores foi reconsagrar
pessoas que pegaram em armas contra os se- o templo para Yaweh, dando origem à celebração
lêucidas. O pai, um sacerdote de nome Mata- do Hanukkah.
tias, já havia se transferido de Jerusalém para
a cidade de Modin, 40 quilômetros a oeste, para COMO DAVI E GOLIAS
evitar a perseguição aos costumes judaicos A partir desse momento, os judeus passaram a
tradicionais em sua família. Até que um dia, contar com um território próprio, mas a situa-
em 167 a.C., um oficial do rei selêucida apare- ção militar ainda era instável. No ano 162 a.C.,
ceu em Modin para ordenar que os sacrifícios por exemplo, os locais foram derrotados na Ba-
deveriam ser realizados à moda grega. talha de Beth Zechariah. Os selêucidas apelaram
Matatias se recusou a aceitar a ordem e para 50 mil soldados e 30 elefantes de guerra
matou um cidadão judeu que tentava sacrifi- para atropelar os pouco mais de 20 mil adver-
car um porco – há relatos de que ele também sários. Os judeus deram o troco na Batalha de
teria matado o oficial selêucida. Fugiu então Adasa, no ano 161 a.C., mas perderam Judas,
para as montanhas, ao lado de seus cinco fi- seu principal líder, no ano seguinte, durante a
lhos, João, Simão, Eliézer, Jonatas e Judas. A Batalha de Elasa. No lugar de Judas, seu irmão
partir dali, organizou uma rebelião militar. Jonatas se tornou o chefe. Ele, e depois outro
Matatias morreria em batalha um ano depois filho de Matatias Simão, prosseguiram com a
e o comando militar passaria a Judas. Seus guerra de guerrilha e consolidaram o reino.
filhos e os homens que lutavam ao lado deles Nessa sequência de batalhas de Davi contra
seriam conhecidos como macabeus em refe- Golias, é fácil entender como um grupo tão
rência à ferocidade com que atacavam. Ao pequeno e mal armado foi tão bem-sucedido
alcançarem o poder, eles ficariam conhecidos contra uma das nações mais poderosas da épo-
como os asmoneus, em referência ao nome do ca. “O império selêucida era enorme, mas pres-
bisavô de Matatias, Asmoneu. Mas antes seria sionado pelas fronteiras com o Egito e com
preciso vencer o exército grego dos domina- Roma”, explica o historiador israelense Zeev
dores selêucidas. Safrai, professor de Estudos de Israel na Uni-
A guerra de guerrilha começou mal: um versidade Bar Ilan, em Tel-Aviv.
grupo de dezenas de macabeus aceitou se en- “Havia também uma grande pressão inter-
contrar com soldados selêucidas em uma ca- na, todos os reis corriam o risco de perder o
verna, para negociar. A conversa não caminhou trono para grupos rivais. Nesse contexto, a
bem, e os soldados reagiram. Como o encontro Judeia era uma província desértica, montanho-
aconteceu num sábado, dia sagrado para o sa e de pouca relevância. O rei selêucida não

34 AVENTURAS NA HISTÓRIA
A primeira medida dos
vencedores foi reconsagrar
o templo para Yaweh,
dando origem à celebração
do Hanukkah

AVENTURAS NA HISTÓRIA 35
RELIGIÃO

tinha motivos para enviar um grande exército çada dos derrotados ao judaísmo, uma prática
para combater a rebelião dos macabeus.” Em que os seguidores da religião, tradicionalmen-
alguns casos, mesmo depois de uma vitória, te, abominam.
Antíoco IV mandava transferir o exército para Esse esforço de expansão se acelerou a par-
outra região mais estratégica, e os macabeus tir de 110 a.C., quando o império selêucida
rapidamente retomavam o controle. começou a desmoronar, vítima de conf litos
Por outro lado, os macabeus contavam com internos. Um ano antes, o rei Antíoco VII
grande apoio popular – ainda que a elite judai- chegou a montar um cerco a Jerusalém, para
ca, em geral, preferisse adotar o helenismo, no desafiar a autonomia judaica, mas precisou
campo, a reação à interferência na vida religio- desistir e voltar correndo para casa porque
sa tradicional foi violenta. “A revolta dos asmo- havia uma tentativa de golpe acontecendo em
neus foi um movimento popular religioso e sua ausência.
nacionalista que contou não só com tropas mas Mas os aliados romanos não gostaram do
também com movimentos civis, que participa- movimento de expansão dos judeus. Eles aca-
vam denunciando as movimentações militares bariam por se aproveitar dos conflitos entre os
inimigas e perseguindo as elites voltadas ao líderes asmoneus para inf luenciar os gover-
helenismo”, diz Zeev Safrai. nantes mais alinhados a Roma. E foram muitos
Em meio a essa turbulência, a partir da déca- os desentendimentos: pretendentes ao trono
da de 140 a.C., os judeus conseguiram que os do território judaico tomavam cidades para si
países vizinhos, inclusive os selêucidas, os reco- e realizavam cercos uns contra os outros. Num
nhecessem como um país autônomo. Para isso, desses episódios, o comandante asmoneu Ale-
contaram não só com a força do povo e das ar- xandre crucificou 800 de seus compatriotas,
mas: desde a década anterior, Roma vinha em Jerusalém.
apoiando o esforço judaico, mesmo que a distân- Os conflitos se alternavam a momentos de
cia, e pressionando os selêucidas a aceitar a inde- expansão militar de forma intensa, até que, no
pendência daquele território pouco expressivo. ano 63 a.C., o general romano Pompeu deu a
cartada definitiva: a pretexto de resolver uma
BREVE ALEGRIA nova guerra civil judaica, provocada pela dis-
A partir de 140 a.C., com a dinastia dos asmo- puta de poder entre dois irmãos asmoneus, Aris-
neus definitivamente estabelecida, os judeus tóbulo II e João Hircano II, Pompeu tomou para
adeptos do helenismo perderam espaço. Mas si a região. Era o fim da autonomia da Judeia.
ainda formavam uma oposição inf luente. Os asmoneus ainda se manteriam no poder, em
Reagiram, por exemplo, a cada vez que um teoria, até o ano 36 a.C., quando o novo gover-
líder asmoneu tentava ampliar o território he- nante romano da região, Herodes, entregou a
breu, com campanhas militares que, muitas Roma o nono e último líder da dinastia, Antígo-
vezes, acabavam provocando a conversão for- no II, para ser assassinado. Herodes ainda se

SONHO PASSAGEIRO
As principais datas que marcam a vitória e a queda dos macabeus
198 a.C. 168 a.C. 167 a.C. 166 a.C. 165 a.C. 142 a.C. 111 a.C. 96 a.C. 63 a.C.
Os selêucidas O rei selêucida Matatias inicia Matatias O templo de Os selêucidas Antíoco Tem início O general
IMAGENS GETTY IMAGES

assumem o Antíoco IV a rebelião morre e Judá Jerusalém é aceitam a VII cerca uma guerra romano
controle sobre proíbe a contra o rei se torna retomado e autonomia Jerusalém, civil de oito Pompeu retira
a região da prática do Antíoco o líder da reconsagrado dos judeus mas desiste anos entre os a autonomia
Judeia judaísmo rebelião a Javé de retomar a judeus dos judeus
cidade

36 AVENTURAS NA HISTÓRIA
casaria com uma princesa asmoneia, Mariane. ESTADO AUTÔNOMO
No auge, o território dos judeus
Mas depois mandaria matar a ela e aos dois fi-
chegou a ter este tamanho
lhos que tiveram juntos. E assim a linhagem
asmoneia era encerrada. Após a Revolta
161 a.C.

TEXTOS E ESCAVAÇÕES Jonatas Macabeu


161-143 a.C.
A grande conquista dos macabeus foi registrada
em diferentes livros. Dois deles fazem parte do Simão Thassi
143-135 a.C.
cânone aceito pela Bíblia dos cristãos católicos
João Hircano
e ortodoxos. Macabeus I foi elaborado em he- 135-104 a.C.
braico, mas a versão mais conhecida é a tradu-
João Hircano
ção para o grego. E Macabeus II foi original- (disputado)
mente concebido em grego, é posterior e revisa Aristóbulo
os acontecimentos narrados no primeiro livro. 104-103 a.C.
Ambos estão fora do cânone judaico, que os Alexandre Janai
considera mais históricos do que religiosos, e 103-76 a.C.

por isso as igrejas protestantes, que a partir do


século 16 buscaram eliminar inferências cristãs
ao Antigo Testamento, não os considera textos
de inspiração divina. De toda forma, Macabeus
I e II reduzem o papel dos conflitos internos
entre os judeus e tratam o incidente como uma
reação heroica a uma tentativa de dominação
espiritual da parte dos selêucidas.
No século 1, o historiador Flávio Josefo também
escreveu a respeito da rebelião e do governo
independente de Israel. Mais recentemente, os
registros arqueológicos passaram a corroborar
os textos antigos. “No passado, os pesquisado-
res não encontravam evidências arqueológicas
para a revolta dos asmoneus. Não havia inscri-
ções ou moedas, nem registros textuais que importação de vasos, alimentos e bebidas dos
fossem além dos livros de Macabeus e do rela- selêucidas havia cessado.
to de Flávio Josefo”, afirma o professor Zeev “Hoje não há nenhuma dúvida de que aque-
Safrai. “Mais recentemente, as evidências ex- las décadas foram marcadas por um grande
trabíblicas vêm se acumulando. Em Os Manus- renascimento religioso e nacionalista da parte
critos do Mar Morto, que se originaram no dos judeus”, afirma Zeev Safrai. Sob o controle
mesmo período, existem referências aos gover- de Roma, os judeus ainda tentariam retomar
nantes asmoneus e ao fato de que eles governa- sua autonomia em diferentes ocasiões, até serem
ram um Estado independente.” massacrados, já no século 2 da era cristã. A par-
Além disso, diz o professor, a cidadela forti- tir daquele momento, e por mais de 2 mil anos,
ficada de Acra, que, segundo os textos bíblicos, os judeus correriam o mundo. Em muitos países
teria sido destruída pelos rebeldes macabeus, onde viveram, foram obrigados a celebrar o
foi encontrada, e a data de seu fim é coerente Hanukkah de forma discreta, utilizando um
com os relatos. Sabe-se também que, no período jogo de dados, com orações inscritas em cada
de governo asmoneu, desapareceram registros lado, para, de forma disfarçada, agradecer a
de produtos de origem grega – sinal de que a Yaweh pelas grandes vitórias dos macabeus.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 37
CAPA

REVOLUÇÃO
CUBANA
AOS 60 ANOS DA VITÓRIA DE
FIDEL E CHE, 30 PERGUNTAS
E RESPOSTAS OBJETIVAS
SOBRE A ILHA POR BIANCA BORGES

E
m 31 de dezembro de 1958, Fidel Castro
encontrou vazia a cadeira do ditador Ful-
gencio Batista e sentou-se nela. É uma
anedota divertida, mas só isso. Na vida real,
Fidel só chegou a Havana dia 8 de janeiro e
deixou a presidência para Manuel Urritia, um
opositor moderado a Fulgencio, assumindo
como primeiro-ministro em fevereiro de 1959.
Sairia quase 50 anos depois. Não dá para dizer
que foi por falta de tempo que a Revolução não
atingiu a utopia prometida por Marx. Mas atin-
giu muitos pontos, particularmente os corações
e mentes da América Latina. Uma coisa era ter
uma revolução a um hemisfério de distância,
outra era ter num país da América Latina, com

MITOS
uma história de dominação pelos EUA e com
uma cultura, música e até cozinha aparentadas
– com muitas semelhanças com o Brasil, aliás.
Cuba foi uma imensa inspiração aos comunis-
tas e uma enorme ameaça aos demais. Já se vão
25 anos do fim da Guerra Fria e continua a

VERDA
mover paixões. Abordamos o tema através de
fatos, sobre avanços e sobre opressão, sem che-
gar a uma conclusão moral. A você, leitor, dei-
xamos a parte do julgamento.
E
DES
AVENTURAS NA HISTÓRIA 39
DESENVOLVIMENTO
CAPA

CUBA SE
DESENVOLVEU
CUBA x BRASIL

DO BRASIL TAMBÉM LIMITADOS PARA COMPARAR; FONTES: ONU, IBGE, BANCO MUNDIAL, PNUD, ANUÁRIO ONEI,
OBSERVAÇÃO: DADOS PARA CUBA LIMITADOS AO ÚLTIMO RELATÓRIO DA ONU E BANCO MUNDIAL, 2016; DADOS
MAIS SOB FIDEL? PIB PER CAPITA
Cuba não partiu do zero. Antes 1958 US$ 3.115
144% 402% 1958 U$ 1.722

FMI, ARCHIBALD RITTER, UNIVERSIDADE DE MIAMI, OBSERVATORY OF ECONOMIC COMPLEXITY, USP


da Revolução, a ilha caribenha já 2016 US$ 7.815 2016 U$ 8.649
se destacava como um país com MATRÍCULAS ENSINO SUPERIOR / 1.000 HAB
índices sociais que eram, de
forma geral, superiores às
1958 0,33
2016 15,42 4 572% 1 673% 1958 0,78
2016 13,83
estatísticas da maioria dos países
ANALFABETISMO
latino-americanos. Certamente
bem acima do Brasil, com que
comparamos. Dá para ver que,
1958 23,6%
2016 0,3% 98,7% 79,9% 1958 39,3%
2016 8,3%

do ponto de saída, em algumas MORTALIDADE INFANTIL / 1.000


áreas o Brasil avançou mais
rápido. Mas Cuba se desenvolveu
1958 32
2018 5,4 83% 92% 1958 184
2018 14,8
melhor naquilo que a Revolução EXPECTATIVA DE VIDA
escolheu como prioridade.
Quando assumiu o poder,
1958 63
2018 79 25,4% 56,25% 1958 48
2018 75
derrubando Fulgencio Batista
MÉDICOS / 1.000 HAB
(1901-1973), um ditador corrupto
e brutal que estava atacando
o próprio povo com napalm,
1958 0,9
2016 7,6 744% 315% 1958 0,47
2016 1,95

acusando-o de colaborar com


a guerrilha, Fidel Castro (1926-
2016) estava decidido a fazer
de Cuba uma sociedade com
melhores índices de educação,
a promover a reforma agrária e
garantir o acesso gratuito à
assistência médica. Nessa parte,
pode-se dizer que seus principais
objetivos foram cumpridos.

1959: caminhões
desfilam celebrando
a fuga de Fulgencio
Batista e a chegada de
Fidel a Havana
A MORTALIDADE
INFANTIL FOI
ERRADICADA?
Os dados mais recentes do Unicef indicam
que Cuba tem 5,4 mortes de crianças
abaixo de 5 anos por 100 mil habitantes.
É um número próximo do Canadá (5,1)
e melhor que o dos EUA (6,1). “Erradicar”
completamente a mortalidade infantil é
impossível – estamos falando de morte,
afinal. Mas, com um índice assim, dá pra
dizer que conseguiram o que está no
mundo das possibilidades. ELES TÊM UMA MEDICINA
SUPERAVANÇADA?
Cuba tem muito médico, em declínio.
mas pouca estrutura. A infraestrutura atual
Seus médicos não fazem da maioria dos hospitais
CUBA SUPEROU A a medicina do futuro, mas está deteriorada. Faltam
POBREZA EXTREMA? entendem da do presente. remédios básicos, e
Prédios com reboco rachado, carros dos Na época em que recebia os equipamentos para
anos 50, roupas penduradas na sacada. subsídios soviéticos, exames estão obsoletos.
A maioria das imagens de Cuba sugere Cuba formou médicos A política de exportações
pobreza. Que o Banco Mundial define como com qualidade de ensino dos médicos provocou
viver com menos de US$ 1,90 por dia (em e construiu bons hospitais. uma escassez interna
seu último relatório, de 2015). No mesmo Foi possível garantir desses profissionais.
ano, o Escritório Nacional de Estatísticas de acesso universal à saúde O embargo econômico
Cuba registrou uma renda média de US$ 25 e houve um profundo também dificulta aos
por mês (e US$ 29,60 em 2017). Por esses investimento em medicina médicos participar de
dados, o país inteiro estaria na pobreza preventiva. Com o fim do eventos científicos e ter
extrema. Mas, com os vários serviços bloco soviético, o sistema acesso a materiais de
gratuitos, é diferente ser pobre em Cuba do de saúde cubano entrou suas especialidades.
que em Honduras. Recorremos à ONG
americana The Borgen Project, referência
em estudos da pobreza mundial, para tentar
uma resposta: “Não é razoável esperar que
Cuba sequer tente levantar [a renda de] sua
população inteira ao ideal da classe média
americana. Operando nessa mentalidade,
Cuba foi bem-sucedida, em diversas
A MAIOR ESPERANÇA DE
formas, em conseguir prover seus cidadãos VIDA DA AMÉRICA LATINA?
com o que outros países não conseguiram”, Não. Mas está CUBA COSTA RICA
afirma a jornalista Farah Mohammed, em
nome da instituição. “Não quer dizer que
entre as mais altas
do continente. 79,0 79,6
Cuba tenha atingido um ideal. As pessoas O campeão
no país ainda lutam de diversas formas: mundial, o Japão, CHILE BRASIL
¹ OMS, 2018

insegurança alimentar, frustração e uma


falta de itens básicos praguejam o país.”
tem 84,2.¹
79,5 75,1
AVENTURAS NA HISTÓRIA 41
CAPA

RACISMO E HÁ DESIGUALDADE SOCIAL?


SEXISMO FORAM Em Cuba, os salários podem ter pouca variação por
SUPERADOS? ideal, mas há um tipo de desigualdade particularmente
Cuba elegeu (ou indicou, veja cruel: o dólar. Se um médico ganha US$ 67 por mês²,
item 10) a bancada de deputados um taxista ganha isso por 100 km rodados³, menos de
mais diversa de sua história. Dos um dia de trabalho. Nos últimos anos, um dos principais
605, as mulheres são 53,22%. Já motores da economia cubana são as remessas
as pessoas autodeclaradas de dinheiro, em especial de cubanos-americanos.
negras ou pardas correspondem Economistas cubanos1 estimam que os brancos têm
a uma parcela de 40,5%. A pelo menos 2,5 vezes mais chances de receber infusão
composição mais recente da de dinheiro que seus compatriotas afro-cubanos –
Assembleia Cubana revela que o no censo de 2010, 85% dos cubanos e descendentes
país está abordando de frente vivendo nos EUA se identificaram como brancos.
dois problemas históricos de sua
cultura, mais ou menos negados

¹ CARLOS MOORE, CIENTISTA SOCIAL CUBANO, EM ENTREVISTA AO EL PAÍS, 31/08/2015


até pouco tempo atrás: o racismo
e o sexismo. Mas, ao contrário
ESTATÍSTICAS CUBANAS
do que afirma o governo
socialista, esses dilemas não
SÃO MANIPULADAS?
E chegamos à grande questão: dá para confiar nas conclusões
foram suprimidos por meio da
que tiramos até agora, baseadas em estatísticas? Os dados
aplicação da sua política de
que colocam Cuba ao lado de países desenvolvidos são
igualdade. Cuba, onde a

² ASSOCIATED PRESS, 2015 ³ INSIGHTCUBA.COM


chancelados por um padrão internacional. Unesco, ONU,
escravidão foi abolida em 1886,
Unicef, OMS, entre outros, são organismos reconhecidos pelos
é um país em que predominam
governos democráticos. Mas muitos dos opositores do regime
europeus e africanos. A
castrista acusam o governo de manipular dados por diversos
convivência entre esses dois não
subterfúgios. A ativista cubana Yoani Sanchez levanta a
foi exatamente o que podemos
desconfiança sobre as estatísticas oficiais e, em especial,
chamar de amistosa. Havia uma
aos dados que não são revelados. Segundo ela, entre outras
clara distinção no tratamento
coisas, o aborto de fetos vistos como sem chance de sobreviver,
dispensado aos negros, em
para melhorar a estatística da mortalidade infantil.
especial os imigrantes, vindos
das demais ilhas caribenhas,
que ocuparam o degrau mais
baixo da escala racial da
Assembleia
sociedade cubana, sendo Popular do Poder
considerados pelos outros Nacional, Havana
negros e demais cidadãos de
Cuba como indivíduos primitivos
e bárbaros¹. Na cultura cubana,
mulheres negras e mestiças
ainda têm sua imagem
hipersexualizada em estereótipos
populares. E têm menos acesso
a posições de prestígio do que
as descendentes de imigrantes
europeus.
DIREITOS HUMANOS
O REGIME CUBANO
MATOU 141 MIL?
Particularmente em seus primeiros anos,
e particularmente em se falando de
pessoas ligadas ao governo Batista,
Cuba definitivamente matou seus opositores
– no infame paredón, sob torturas, ou em
condições horrendas na cadeia. Como no
caso da União Soviética, o número exato
varia absurdamente dependendo de a quem
se pergunta – e de qual o critério para dizer
que foi o governo o responsável pela morte.
A questão mais fundamental é: conta quem
morreu tentando fugir? Se sim, a famosa cifra
máxima de 141 mil, criada há mais de 30
anos, seria muito maior hoje, especialmente
depois da crise dos anos 90.

SEM NÚMERO OFICIAL

7 325 MORTOS
POLÍTICOS
Parada militar
em Havana
após a Crise
dos Mísseis,
1963

78 000 NO MAR
FUGITIVOS
CUBAN ARCHIVE, 2018 E 2015

141 000 VÍTIMAS


R.J. RUMMEL, HISTORIADOR DA UNIVERSIDADE
DO HAVAÍ, APENAS ENTRE 1958 E 1987. INCLUI
MORTOS NO MAR. O HISTORIADOR DÁ UMA CIFRA
“ENTRE 35 MIL E 141 MIL”.

5155 PRISÕES
ARBITRÁRIAS
EM 2017. ANISTIA INTERNACIONAL

AVENTURAS NA HISTÓRIA 43
CAPA

CUBA É UMA DEMOCRACIA? A OPOSIÇÃO É


Fidel e depois Raúl sempre que apoiadores do regime BANCADA PELOS EUA?
afirmaram governar uma dizem que é uma Em média, US$ 20 milhões foram
democracia. O país tem democracia mais investidos em Cuba² para a “promoção
eleições e plebiscitos. democrática que as liberais. da democracia”. Não tem sido muito
Partidos políticos além do Escolhido o candidato, produtivo. Cuba acusa isso de
Comunista Cubano são nas eleições propriamente basicamente ser dinheiro para a
permitidos¹ – e existem, ditas cabe dizer sim ou subversão. Pela lei cubana, aceitar
ainda que, na prática, não, por voto secreto – dinheiro do exterior é crime e,
tenham que se manter na a participação é bastante constantemente, membros do governo
surdina. As reais eleições alta. No fim das contas, e órgãos de imprensa cubanos acusam
cubanas são as pré- 100% da Assembleia é a oposição de basicamente ser bancada
eleições: quando formada por membros do pelo exterior.
candidatos são escolhidos Partido Comunista Cubano.
por diversas organizações Escolhido pela Assembleia,
de trabalhadores, cidadãos o país é governado desde
individuais e o Comitê para 2018 por Miguel Díaz-Canel.
Defesa da Revolução, do O presidente sucedeu Raúl
qual faz parte a maioria dos Castro, o irmão mais novo
A CULTURA É
cubanos, responsável pela de Fidel. Castro continuou CONTROLADA?
denúncia de atividades a ser secretário-geral do Cuba foi o primeiro país no
“contrarrevolucionárias”. Partido Comunista, o que, Hemisfério Ocidental a instalar
Seja como for, essa como o Partido controla um serviço de bloqueio de rádio,
possibilidade de escolher tudo, tem na prática mais em 19633, e continuou a bloquear
coletivamente é a razão por poder que o presidente. transmissões estrangeiras.
O governo produz e decide
o que as pessoas consomem,

¹ LEI ELEITORAL DE 1992 ² FEDERATION OF AMERICAN SCIENTISTS (FAS), CONGRESSIONAL RESEARCH SERVICE
mas, obviamente, permite coisas
estrangeiras de seu agrado. A Lei
88, de Proteção à Independência
Nacional e Economia de Cuba,
de 1999, não menciona livros
ou nada do tipo, mas “material
subversivo dos Estados Unidos”4.
Na prática, é frequentemente 3 JERRY A. SIERRA 4 PARLAMENTOCUBANO.CU 5 FREEDOM HOUSE

levantada contra opositores.


O país mantém forte controle
sobre as obras de arte e
expressões artísticas em geral.
Cuba está ao lado de China,
Irã e Rússia na lista dos países
com maior censura5.
A INTERNET
É VIGIADA? Red Diamond, navio
De acordo com os últimos dados carregando refugiados
oficiais, entre uma população cubanos, 1983

de 11 milhões de cubanos, 4,5


milhões de pessoas se conectam
à internet. Cuba não tem um
Grande Firewall como a China,
mas usa de filtros, bloqueio de
aplicativos e outros recursos,
como bloquear o acesso para
quem usar termos considerados
subversivos1. Mas a maior
dificuldade é mesmo o preço,
considerado elevadíssimo para
um cidadão cubano comum, cujo
salário mensal médio é de US$ 30.
Nos pontos de acesso, é cobrado
atualmente cerca de US$ 1 por
hora. A internet por celular só foi
totalmente liberada em 6 de
dezembro de 2018, num anúncio
do governo cubano.

O PAÍS CAÇAVA
OS QUE TENTAVAM
FUGIR EM BARCOS?
Até janeiro de 2013, no governo Raúl
GAYS FORAM PERSEGUIDOS Castro, a lei cubana previa pena entre
PELO GOVERNO? um e dez anos para quem tentasse sair
Todos os anos, desde condizentes com a moral
ilegalmente do país. O episódio mais
2007, a ilha celebra o e os ideais revolucionários,
famoso se refere ao rebocador 13 de
dia de luta contra a incluindo os gays, que
Março, que foi cercado por navios do
homofobia. Mas nem eram submetidos a
governo cubano, a mando de Fidel,
sempre foi assim. Entre os insultos e divididos em
EMILIO IZQUIERDO, EL PAÍS, 24/072018

em 1994. O combalido barco levava


anos 1960 e 1970, o país “ativos” e “passivos”2.
74 cidadãos, entre homens e mulheres,
manteve uma espécie de A perseguição foi admitida
jovens, velhos e crianças, que tentavam
campo de concentração, pelo próprio Fidel Castro,
escapar do regime.
com trabalhos forçados, em entrevista ao jornal
as chamadas Unidades mexicano La Jornada,
Militares de Apoio
à Produção (Umap).
em 2010. Ele alegou então:
“Nós tínhamos diante de
1200 000
2
¹ ANISTIA INTERNACIONAL

Segundo a associação das nós problemas tão


³ GOVERNO DOS EUA

CUBANOS SAÍRAM
vítimas Umap Miami, para terríveis, questões de
lá, eram enviados aqueles vida ou morte, que não

DO PAÍS
cujos comportamentos prestamos atenção 3 10% DA
desviavam das condutas suficiente a isto”. POPULAÇÃO

AVENTURAS NA HISTÓRIA 45
ECONOMIA
CAPA

Plantadores de
açúcar em 1946,
nas imediações de
Havana

CUBA É POBRE POR CAUSA


DO EMBARGO DOS EUA?
Simpatizantes do regime defendem PARCEIROS
que a penúria é causada pelo COMERCIAIS
ATUAIS¹
embargo americano. Cuba, porém,
pode fazer comércio com o resto do
mundo (ao lado). Nos últimos anos,
CHINA
já sob o comando de Raúl Castro, 22%
o crescimento PIB do país avançou
não exatamente vistosos 2%.
Mas Cuba seria rica se fosse ESPANHA
capitalista? Talvez não. “Na
comparação com a América Latina,
12%
Cuba se sai melhor do que seus
vizinhos do Caribe e da América BRASIL
Central, mas está aquém das
regiões mais desenvolvidas do
4,7%
continente, como o Cone Sul.
Dificilmente o resultado seria ALEMANHA CUBA VIVIA SÓ
diferente se Cuba tivesse outro
regime político e econômico. 4,5% DE EXPORTAR
Os problemas são estruturais, AÇÚCAR PARA
OS EUA?
como a escassez de recursos
naturais e a infraestrutura deficitária”,
PORTUGAL Antes da Revolução, a
afirma Maurício Santoro, da Uerj. 4,0 % agricultura cubana tinha um
regime de propriedade que
se assemelhava ao sistema
de plantation, marcado pelo uso
de latifúndios, monocultura e
possível escravidão por dívidas
– no caso de Cuba, os
FIDEL TINHA UMA CONTA trabalhadores estavam sujeitos
SECRETA NA SUÍÇA? a péssimas condições. Outra
Em 2007, o major Roberto Fidel Castro foi citado em característica desse sistema era
Hernández del Llano um ranking da revista de que a produção era voltada para
desertou e acusou Fidel economia Forbes como uma abastecer o mercado externo
Castro de ter uma conta das pessoas mais ricas do – no caso, os Estados Unidos,
na Suíça de US$ 1,2 bilhão, mundo, com um patrimônio seu principal parceiro
no nome fantasma de de US$ 900 milhões (cerca econômico de relações
¹ OBSERVATORY OF ECONOMIC COMPLEXITY

Constantino Páez Roselló, de R$ 3,5 bilhões). A Forbes comerciais. Em 1958, 81%¹ da


enquanto pedia asilo aos fez uma estimativa produção cubana consistia em
EUA. No mesmo ano, Pierre considerando o “poder açúcar. O restante era composto
Mirabaud, presidente da econômico sobre uma de níquel (7%), tabaco (7%) –
Associação de Banqueiros rede de companhias de que garantia a produção dos
da Suíça, negou tudo. propriedade do Estado” famosos charutos cubanos –,
Por aproximadamente uma – não exatamente um critério e os demais produtos de
década, entre 1997 e 2006, de propriedade privada. exportação ficavam com 5%.

46 AVENTURAS NA HISTÓRIA
FIDEL CRIAVAM PRODUTOS DE
CRIOU UMA PORCOS EM HIGIENE E REMÉDIOS
SUPERVACA? APARTAMENTOS? SÃO RARIDADE?
Nunca o mundo havia visto Nos anos 10, o colapso da Sabonetes, papel higiênico e até
uma vaca como Ubre Blanca, URSS gerou uma profunda preservativos – um produto com
fruto de um experimento com crise, que levou muitos valor fortemente subsidiado pelo
cruzamentos entre raças. cubanos a criar galinhas em governo – já foram considerados
Em junho de 1982, ela entraria casa. Mas isso foi em casas raros, chegando a sumir das
para o Livro Guinness dos com quintal. A história do prateleiras por um tempo.
Recordes, ao produzir 109,5 porco “na banheira” é ainda A escassez dos itens de higiene
litros de leite. O recorde foi hoje contada pelos cubanos1, foi atribuída pelo governo a crises
superado nos anos 90, porém. mas nunca houve evidência. financeiras globais e a condições
adversas, como quando a ilha
enfrentou três furacões, em 2013,
e precisou importar papel higiênico.
Já a falta de medicamentos
TODOS OS (observada entre 2016 e 2017 foi
CARROS SÃO atribuída3 ao atraso no pagamento
POR QUE CUBA DOS ANOS 50? de provedores estrangeiros e práticas
Cuba tem cerca de 60 mil fraudulentas, como a venda ilegal.
TEM UM IDH carros pré-Revolução2. Para
MAIOR QUE continuar rodando, por falta
O DO BRASIL? de peças originais, foram
Apesar de ter um orçamento modificados com partes
mínimo, o governo caribenho soviéticas, chinesas etc.
consegue oferecer a sua Mas, já em 2004, eram parte
população serviços e de uma frota total de 173 mil.
assistência que elevam seus Hoje convivem com veículos
indicadores. No ranking 2018 soviéticos, chineses e
do Índice de Desenvolvimento (menos) europeus recentes.
Humano (IDH), compilado
pela Organização das Nações
Unidas (ONU), Cuba aparece na
73ª posição (0,777), à frente do
México (0,774), Granada (0,772),
Sri Lanka (0,770), Bósnia e
Herzegovina (0,768), Venezuela
3 REUTERS

(0,761) e do Brasil (0,759).


O relatório avalia o
2 INDEPENDENT.COM

desenvolvimento dos países


segundo alguns parâmetros
de saúde, renda e educação.
No caso de Cuba, seu
desempenho é atribuído
1 INSIGHTCUBA.COM

aos seus bons indicadores


de educação e saúde, ainda
que a economia seja frágil.

Clássico americano na praça


Jose Marti, Cienfuegos
DIPLOMACIA
CAPA

1962: Federico
Fidel Fernandez,
um refugiado nos CUBA FOI UM
EUA, ouve Kennedy
discursar sobre a
FANTOCHE DA URSS?
Crise dos Mísseis A crise dos anos 90 mostrou que Cuba dependia
economicamente da União Soviética. “Mas não
como dependera antes dos EUA”, de acordo com a
historiadora Joana Salém, da USP. “Na sua relação
com os EUA, Cuba saía em desvantagem, enquanto
com a URSS, a relação havia sido economicamente
vantajosa”. Os cubanos conseguiram negociar um
preço mais alto para o seu açúcar e comprar
petróleo mais barato do bloco soviético. “Além
disso”, lembra Salém, “Cuba demonstrou ter
autonomia política em relação à URSS, quando se
engajou nas lutas de independência da África e
defendeu movimentos de emancipação. Sem falar
nas divergências sobre a guerrilha: enquanto Cuba
treinou guerrilheiros latino-americanos, a URSS
adotou uma política contrária¹”.

ERA CUBA UMA


“COLÔNIA” DOS EUA? ARTE EM CUBA É
Não no sentido literal, é claro. Mas no de ser SÓ PROPAGANDA?
dominado econômica e politicamente. Aliás, O governo tem monopólio dos espaços e

¹ CIA, RAND CORPORATION ² THE GUARDIAN, 18/02/2010; HAVANACLUB.COM, ENTREVISTA COM PEDRO JUAN GUTIÉRREZ
poderia ter sido literal – a independência de cerceia a liberdade de criação. A maior parte
Cuba se deu na Guerra Hispano-Americana, dos artistas é formada pela Universidade de
em 1898. Nos acordos de paz com a Espanha, Ensino Superior em Artes Dramáticas e Direção
os EUA anexaram Porto Rico e Guam. Cuba e precisa driblar a censura e a escassez de
só não foi anexada por conta da Emenda Teller, recursos. Artistas em geral têm muito mais
aprovada pelo governo e Congresso dos EUA, facilidade para produzir obras para o exterior
que explicitamente proibiram isso. Os EUA que para os cubanos. Só num exemplo,
governaram o país até 1902, invadiram o famoso autor da Trilogia Suja de Havana,
novamente entre 1906 e 1909, e invadiram mais retratando a penúria em Cuba, Pedro Juan
uma vez em 1912, para proteger os fazendeiros Gutiérrez, teve poucos de seus livros que foram
de açúcar americanos instalados no país. Sem para o exterior publicados em seu país².
jamais atingir a estabilidade, os EUA apoiaram
a primeira ascensão do ditador Fulgencio Batista
em 1933, e, direta ou indiretamente, ele
controlaria os rumos do país com apoio
americano até quase o último momento. FIDEL DESPEJOU CRIMINOSOS
No período pré-Revolução, Cuba tinha uma COMUNS NOS EUA?
economia muito limitada a sua produção de Durante o êxodo de Mariel, em 1980, em que mais
açúcar e era radicalmente dependente de sua de 120 mil cubanos deixaram a ilha em direção a
relação comercial com os Estados Unidos, seu Miami, Castro aproveitou a situação para esvaziar
principal parceiro econômico, que monopolizava as prisões cubanas e enviar presos aos EUA.
aproximadamente 75% de suas transações. Pelo menos 15% da leva seria de delinquentes.

48 AVENTURAS NA HISTÓRIA
A EXPORTAÇÃO DE MÉDICOS REFUGIADOS SÃO
É AÇÃO DE PROPAGANDA? RECEBIDOS NOS EUA
Cuba tem no seu dentro do programa Mais COM TAPETE VERMELHO?
programa de exportação Médicos, por intermédio Não mais. Durante muito tempo, houve uma
de médicos para o exterior da Organização Pan- evidente diferença na recepção dada a um
um negócio duplamente Americana de Saúde imigrante cubano e aos de outras nacionalidades.
lucrativo. Seu “exército (Opas). Eles recebiam Graças à legislação conhecida como “Pés Secos,
de batas brancas” funciona aproximadamente 30% Pés Molhados”, cubanos que tentassem imigrar
como propaganda de do valor correspondente ilegalmente eram devolvidos a Cuba apenas
governo e também garante ao salário e, pelo contrato, se fossem encontrados no mar. Aqueles que
à ilha recursos que hoje o restante era repassado entravam via terrestre (daí a expressão “pés
respondem, segundo a às autoridades da ilha. secos”) ganhavam tratamento diferenciado
Organização Mundial de Conforme ilustra o no processo de imigração e eram considerados
Saúde, por cerca de 15% documentário brasileiro fugitivos do governo cubano. Mas a lei, que
do seu PIB. Os contratos recém-lançado Médicos vigorava desde 1995, foi revogada em 2017,
firmados com outros Cubanos, alguns e agora os cubanos recebem o mesmo
FOTOS HULTON ARCHIVE, ERNESTO MASTRASCUSA,GILBERTO ANTE, ROGER VIOLLET, BETTMANN, MICHAEL OCHS ARCHIVES, JULIEANNE BIRCH E ALAN BAND / GETTY IMAGES

países garantem ao representantes da (e cada dia mais hostil) tratamento.


governo cubano uma fatia categoria consideram o
considerável dos salários programa uma forma de
destinados aos escravidão. Ainda assim,
profissionais. Entre os anos trabalhar no exterior pelo
de 2013 e 2018, o Brasil programa possibilita aos
recebeu profissionais médicos acumular muito
cubanos para prestarem mais do que seria possível
atendimento em se atuassem na ilha, onde
municípios do interior, o salário é de US$ 67.

EXISTE UMA MÁFIA


CUBANA NOS EUA?
The Corporation era apelido da máfia criada
por José Miguel Battle, um ex-policial de
Havana no regime Batista que ajudou a CIA
na fracassada invasão da Baía dos Porcos,
em 1962. Mudaria de ramo e, nos anos
1970, era o grande chefão da máfia cubana-
americana. Ele se tornou o rei da jogatina
em Nova York, onde era conhecido como
El Padrino, ou também Señor Corporation.
Em 2004, foi condenado por cinco
assassinatos e quatro ações incendiárias,
além de mais de US$ 1,5 bilhão obtido com
21 de outubro de 1968:
narcotráfico e outros crimes. Refugiadas cubanas
chegam ao aeroporto de
Miami, após receberem
visto do governo americano
IDADE MÉDIA

OS BÁRBAROS
ANCESTRAIS
50 AVENTURAS NA HISTÓRIA
INVASORES DA dia amanheceu com uma da controlava a ilha com mão de fer-
tranquilidade enganosa na ro. Por volta do ano 300, o império
ALEMANHA, OS decadente cidade romana precisou construir uma série de defe-
FUNDADORES DA do nordeste da Grã-Breta- sas costeiras, os chamados “Fortes do
LÍNGUA INGLESA nha. Os negócios estavam fracos no Litoral Saxão”, deixando claro quem
ENFRENTARAM mercado e ninguém mais se arrisca- era a principal ameaça. Por algum
va a usar a velha casa de banhos, tão tempo a situação melhorou, mas em
UMA RESISTÊNCIA
popular entre os endinheirados do 367 aconteceu o que os romanos te-
DE SÉCULOS, MAS passado. Mas, pelo menos, pensavam miam: um ataque conjunto, em todas
APAGARAM QUASE os bretões, dava para contar com a as frentes – saxões que atravessavam
TODOS OS TRAÇOS DO guarnição de mercenários saxões o mar no leste, pictos da Escócia no
para proteger o local de outros bár- norte, escotos da Irlanda no oeste,
DOMÍNIO ROMANO NA
baros. Por isso ninguém viu os guer- tudo isso misturado a uma rebelião
GRÃ-BRETANHA reiros recebendo com toda calma os das tropas que deveriam proteger os
POR REINALDO JOSÉ LOPES barcos a remo na praia nem percebeu bretões. O general espanhol Teodósio,
que eles se juntaram aos recém-che- pai do imperador homônimo, conse-
gados, em lugar de detê-los. Num guiu deter os avanços bárbaros por
piscar de olhos, o fórum da cidade algum tempo e reorganizar as defesas
tinha sido tomado e seus magistra- da ilha, mas os soldados que ele trou-
dos eram reféns ou cadáveres. Os xe eram, provavelmente, de origem
mercenários bárbaros haviam toma- germânica, entre eles vários saxões,
do o comando. Com uma ou outra pelo que indica o estilo da fivela de
variante, essa cena deve ter se repe- cintos militares daquela época.
tido por toda a costa bretã durante o “Usar mercenários bárbaros para
século 5. Ao contrário do que muita lutar contra outros bárbaros era uma
gente imagina, os saxões e seus pa- prática comum em todo o mundo
rentes invasores, os anglos e jutos, ocidental”, diz Johnni Langer, espe-
eram velhos conhecidos da popula- cialista em história medieval da Uni-
ção da Grã-Bretanha. Tiveram suces- versidade Federal da Paraíba. A situ-
so, em grande parte, porque muitos ação política destrambelhada do
deles foram admitidos na ilha como império logo deixaria a ilha ainda
mercenários e só então se rebelaram. mais vulnerável. É que generais que
Lentamente deixaram de atuar como comandavam tropas na Grã-Breta-
simples piratas e foram conquistan- nha, a começar pelo poderoso Mag-
do terras e se fixando. Não que os nus Maximus, em 383, passaram a
bretões não tenham resistido depois ambicionar o cargo de imperador. A
do choque inicial. Em muitos casos, cada tentativa (fracassada) de tomar
eles conseguiram deter a maré ger- o poder, arrastavam para o continen-
mânica, talvez conduzidos pelo len- te quase todo o exército e deixavam a
dário líder que hoje conhecemos ilha desguarnecida. Quando o último
como Arthur. Mas, após dois séculos, desses usurpadores, Constantino III,
os invasores se tornaram a principal deu com os burros n’água, os bretões
força da região. se cansaram e se declararam indepen-
O ataque de piratas germânicos já dentes. O imperador legítimo, Honó-
era um problemão para os moradores rio, reconheceu o fato em 410, auto-
da Grã-Bretanha desde o final do sé- rizando os nativos da Grã-Bretanha
culo 3, quando o poder de Roma ain- a organizar sua própria defesa.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 51
IDADE MÉDIA

Mas os bretões não sabiam pensar Horsa, mas as menções a eles em po-
em nada melhor do que continuar a emas épicos dos anglo-saxões suge-
política romana de contratação de rem que o mais provável é que fossem
mercenários. Havia gente de sobra personagens lendários”, diz Drout,
disposta a encarar esse serviço entre lembrando que os dois nomes querem
os anglos e saxões (do norte da Ale- dizer “cavalo”, venerado pelos saxões.
manha), jutos (sul da Dinamarca) e O fato é que o cavalo dos invaso-
frísios (da Holanda). “Os dialetos que res eram seus barcos a remo. “Na
se formaram na Inglaterra depois da verdade não passavam de canoas que
imigração sugerem que todos esses provavelmente não tinham vela”,
subgrupos falavam uma língua co- conta Langer. Mesmo assim eram
mum, com variações regionais”, con- boas o suficiente para fazer a traves-
ta Michael Drout, especialista em sia do mar do Norte e subir os rios
língua e literatura anglo-saxã do até as cidades e os povoados rurais.
Wheaton College, nos EUA. Todos O armamento também era simples,
também enfrentavam um problema mas eficiente: lanças, machados, uma
comum: a superpopulação e a falta de espada curta chamada seax (origem
áreas para cultivo em suas regiões do nome tribal dos saxões) e escudos
natais, pantanosas e perto do mar. de madeira.
Tudo indica que os nativos da ilha
DE PIRATAS A CONQUISTADORES se recuperaram do susto inicial por-
A Grã-Bretanha era a terra das opor- que, depois de um avanço saxão que
tunidades e há sinais de que, no co- atingiu cerca de metade do território
meço do século 5, havia anglo-saxões da atual Inglaterra, houve um respiro.
se estabelecendo como posseiros, Nas primeiras décadas do século 6,
outros servindo na defesa das cidades alguém chamado Arthur (provavel-
e muitos atuando como piratas. Os mente um general, e não um rei) pa-
registros da época são confusos, mas rece ter liderado a cavalaria bretã
parece que um chefe bretão de nome contra os soldados de infantaria sa-
Vortigern, que havia se tornado go- xões e levado a melhor. Mas a divisão
vernante supremo de boa parte da da Grã-Bretanha em pequenos reinos,
ilha, tentou transformar mercenários sem uma liderança forte, impediu que
saxões em seu exército pessoal, con- a reação fosse pra valer. Um novo gru-
cedendo-lhes algumas terras. Mas po de invasores, que iriam formar o
não cumpriu o prometido. “Foi um reino saxão de Wessex, voltou a em-
dos erros de cálculo mais espetacula- purrar os bretões para o oeste. É bom
res da história britânica”, diz o histo- frisar que o processo foi lento. No
riador Simon Schama, autor de A início os anglo-saxões eram só uma
IMAGENS GERNOT KELLER; HERITAGE / GETTY IMAGES

History of Britain. Os chefes dos guer- nova elite, governando uma popula-
reiros contratados por Vortigern, os ção nativa maior, que não foi exter-
irmãos Hengest e Horsa, teriam se minada. “A substituição completa
rebelado. Conclusão: os protetores (ou nunca aconteceu. O que houve foi a
piratas) teriam se tornado conquista- prevalência cultural das populações Objetos anglo-saxões. Na página anterior:
dores. “As evidências arqueológicas germânicas”, explica Langer. Na In- réplica do Elmo de Sutton Hoo. Aqui, no sentido
anti-horário: conjunto de moedas (O Tesouro de
mostram que a migração durou um glaterra e em parte da Escócia, a par- Crondall), século 7. A Cruz de Ixword, artefato
século ou mais. Podem, sim, ter exis- tir do ano 600, os recém-chegados cristão do mesmo século – uma cruz maltesa
em pingente de ouro. E a Joia de Alfred, feita
tido líderes com os nomes Hengest e reinavam absolutos. entre 871 e 899

52 AVENTURAS NA HISTÓRIA
O TÚMULO-BARCO
Não há prova maior da
abrangência das conexões
comerciais e da riqueza dos
anglo-saxões pouco depois
da invasão do que o túmulo
real de Sutton Hoo.
Encontrado no vilarejo de
mesmo nome no sudeste da
Inglaterra, o sítio arqueológico
provavelmente abrigava o
corpo do rei Raedwald, de
East Anglia, morto por volta
do ano 620. Raedwald foi um
dos primeiros soberanos
anglo-saxões a se
converterem ao cristianismo,
e sua última morada mostra
uma mistura curiosa de
influências pagãs e cristãs.
Para começar, seu “caixão”
é um barco de quase 30
metros de comprimento,
completamente equipado
com joias belíssimas e armas
de luxo. Os poemas épicos
anglo-saxões sugerem que
os reis eram enterrados dessa
maneira para irem de barco
ao além. O elmo decorado
com bronze e o enorme
escudo lembram o estilo
romano do fim do império,
enquanto o tipo do enterro
e outros objetos sugerem
conexões com a Suécia.
Por outro lado, caldeirões
de bronze foram quase
certamente fabricados por
bretões. E, o mais intrigante
de tudo, há um par de
colheres de prata que levam
as inscrições gregas “Saulo”
e “Paulo”: os dois nomes do
apóstolo São Paulo. Sua
origem é provavelmente
bizantina e indica a conversão
de Raedwald, já que Saulo era
o nome usado pelo apóstolo
antes de se tornar cristão.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 53
PARA ENTENDER

IDADE MÉDIA
5 OBRAS PARA ENTENDER COMO ERA A
VIDA NO PERÍODO MAIS SUBESTIMADO E
MENOS COMPREENDIDO POPULARMENTE

1 3
A VIDA SECRETA OS INTELECTUAIS
DA IDADE NA IDADE MÉDIA,
MÉDIA, Elena Jacques Le Goff
Percivaldi – 2018 – 1957
Os aspectos cotidianos O historiador francês
e menos conhecidos dá ênfase ao aspecto
da Idade Média são intelectual do período
esmiuçados pela medieval. Apresenta
historiadora italiana. a revolução urbana,
Ao abordar como as que deu origem ao
pessoas se vestiam, desenvolvimento de
o que comiam, como se novas escolas e novas
divertiam e qual relação ideias no ensino das
tinham com a morte, letras. Passando por
a autora mostra que fatos pontuais, o autor
nossos antepassados explica a história dos
não eram tão diferentes. intelectuais medievais.

2 4 5
IDADE MÉDIA A CAVALARIA – DICIONÁRIO
– BÁRBAROS, A ORIGEM DOS ANALÍTICO DO
CRISTÃOS E NOBRES OCIDENTE
MUÇULMANOS, GUERREIROS, Jean MEDIEVAL , Jacques
Umberto Eco – 2012 Flori – 1998 Le Goff – 2001
Com a colaboração de A obra retrata a Organizada em
grandes especialistas cavalaria não só por colaboração com o
em estudos medievais, meio de suas batalhas medievalista francês
o escritor e filósofo e golpes de espada Jean-Claude Schmitt,
italiano analisa esse mas como um aspecto a obra traça a história
grande período da militar mergulhado em do imaginário sobre a
civilização europeia. um contexto histórico, Idade Média. Em forma
Focando na sociedade, político e social. Flori de dicionário, traz
arte, história, literatura, apresenta estudos verbetes que
IMAGENS REPRODUÇÃO

música, filosofia e históricos e literários a desvendam o complexo


ciência, Eco oferece um respeito da mentalidade sistema de tradições
olhar realista de uma medieval e do ideal da e ideias do período
época subestimada. cavalaria. medieval.

54 AVENTURAS NA HISTÓRIA
COLUNA HELEN KING

“DOENÇA DA VIRGEM”,
CURADA COM SEXO
V
irgindade feminina, como costumam dizer, é se para aqueles que acreditavam no hímen como uma
mais uma condição psicológica do que física. barreira, e para aqueles que não acreditavam. Estes
Não é algo que pode ser “perdido” ou “tirado”. últimos pensavam que o problema era outro, o de
Mesmo que nem todas as mulheres tenham hímen, e pequenas bocas internas que faziam com que o san-
raramente isso seja uma grande barreira, o conceito gue de todo o corpo fosse primeiro para o útero.
técnico de virgindade ainda se baseia na ocorrência Se você tivesse a “doença das virgens” sua cor de
de penetração vaginal feita por um pênis. E cirurgias pele estava fadada a ser bem pouco atraente, na maio-
de reconstrução ainda são feitas, por exemplo, no Irã.. ria das vezes um tom de verde, ou bem pálida – o que
Olhando para a história europeia, o hímen sempre não ajudava em nada a suas chances de se casar. Essa
foi uma marca definitiva da virgindade? Um escritor é uma possível razão pela qual essa condição era
do século 14, comentando no livro Dos Segredos das também chamada de “doença verde”.
Mulheres, nomeia o hímen como “o guardião da vir- Enquanto os médicos faziam alertas terríveis das
gindade”. Isso resgata uma antiga ideia cristã de que consequências de não se casar logo que a menstruação
a virgindade era tanto espiritual como física. Virgin- começasse, por volta do século 18 pessoas comuns
dade era algo mais que um contavam piadas sobre a
hímen – e era possível ser “doença das virgens”. Em
virgem na alma mesmo que
Descrita no século 16, uma balada de 1705, Enfield
não fosse virgem de corpo. a chamada “doença das Common, uma sofredora é
Nos séculos 16 e 17, o hí- virgens” tinha uma gama curada por um “galante lu-
men já levantava questões xurioso” que consegue
por toda parte. No Livro das de sintomas vagos “aliviá-la e satisfazê-la total-
Parteiras (1671), a parteira mente”. Ele explica:
Jane Sharp escreveu em apenas uma página que “san- Então, com ela deitada lá, uma dose eu lhe dei,
gramento é um sinal indiscutível da virgindade per- Ela confessa, sem delongas, que sua doença
dida” e que “sinal de sangramento às vezes não é eu tirei.
completamente certo”. Quando a virgindade – com hímen ou não –
Já para escritores do início da era moderna, o era uma doença, sexo (preferivelmente matrimo-
enfoque era bem diferente. Descrita primeiramente nial) era a única solução. Algumas mulheres
AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

no século 16, a chamada “doença das virgens” tinha pensavam que poderiam ter uma recorrência se
uma gama de sintomas vagos: tontura, falta de ar, não tivessem filhos. E certos autores achavam que
hábitos alimentares estranhos. Atribuídos ao sangue mesmo homens afeminados poderiam sucumbir
que não conseguia sair do corpo. à doença. Para a maioria dos casos, a relação
Surpresa, surpresa: enquanto a sangria poderia sexual resolveria o problema. Se esse conjunto de
ajudar, a melhor cura era fazer sexo. O ato seria capaz sintomas aparecesse em uma garota com idade
de abrir o corpo e fazer circular o sangue retido. É para casar, o único diagnóstico possível era “a
interessante que a ideia de uma “doença” funcionas- doença das virgens”.

HELEN KING É PROFESSORA EMÉRITA DE ESTUDOS CLÁSSICOS EM THE OPEN UNIVERSITY,


TENDO ATUADO NAS UNIVERSIDADES DE OXFORD E READING.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 55
COLUNA DANILO BERNARDINO

DIADEMA: A COROA DOS


REIS HELENÍSTICOS
A
morte de Alexandre Magno na Babilônia em ção a ele em textos relacionados a Alexandre é de
323 a.C. é entendida como o evento inaugu- Xenofonte, que em seu livro sobre a vida do antigo
rador de uma nova era. Ao deixar um vasto rei persa, Ciro, descreve o Grande Rei utilizando
império recém-conquistado órfão e rodeado de am- um diadema em sua cabeça durante uma procissão.
bições, estava lançada a premissa para o início de Mas, afinal, o que era o diadema? Bom, como
uma sucessão de conflitos, alianças e traições entre objeto, o diadema pode ser descrito como uma sim-
os generais mais proeminentes de Alexandre pelo ples e estreita fita, feita de pano, que poderia variar,
poder. Já ao fim do século 4 o território conquistado durante o período helenístico, nas cores branca,
encontrava-se esfacelado. A região do Egito ficou púrpura e branca com detalhes em dourado, ou púr-
com Ptolomeu, que fundou a dinastia Lágida (ou pura. A fita era amarrada com um nó acima da tes-
Ptolomaica); na Ásia foi fundada a dinastia Selêuci- ta, de modo a deixar duas longas faixas soltas sobre
da por Seleuco; e na Macedônia Antígono Mono- a nuca. Desta maneira, o que impressiona sobre o
phtalmos (caolho) criou a dinastia dos Antigônidas. diadema é sua extrema simplicidade estética, o que
A essas novas monarquias faltava a legitimidade, não é compatível com a sua simbologia como objeto
o direito de governar peran- materializador da própria
te os seus súditos. Assim, a monarquia helenística. Na
emulação da imagem do
O rei mandou executar um Biblioteca Histórica de Dio-
macedônio tornou-se co- sujeito, pois ele teria colocado doro da Sicilia, por exem-
mum entre os reis helenís- o diadema em sua cabeça plo, o historiador relata que
ticos, de modo que até a no período helenístico o
propriedade de seu corpo para evitar que caísse no rio próprio ato do rei de retirar
foi objeto de disputa (Pto- o diadema poderia signifi-
moleu promoveu uma grande emboscada para tomar car a sua negação da monarquia, do mesmo modo
posse do corpo de Alexandre e levá-lo para o Egito, que o ato de colocar o diadema simbolizaria a própria
onde permaneceu pelos séculos seguintes). Entre assunção da monarquia.
essas tentativas de identificar-se com Alexandre, Essa tradição do uso do diadema como grande
helenísticos desde o início adotaram o diadema como símbolo real perdurou para além do período hele-
maior expressão de seu poder, um objeto já símbolo nístico, tendo sido usado também por imperadores
AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA
imperial durante os últimos anos de Alexandre. Em romanos e bizantinos, o que pode ter influenciado a
um episódio pitoresco relatado por Arriano, por criação, durante a Idade Média, das icônicas coroas
exemplo, o rei mandou executar um sujeito, pois ele medievais, que ao contrário do diadema se notabili-
teria colocado o diadema em sua cabeça para evitar zaram pela riqueza nos detalhes e o seu grande valor
que este caísse no rio depois de haver voado da ca- material. Os antigos diademas helenísticos ficaram
beça do rei em virtude de uma brisa. relegados ao silêncio do passado da mesma maneira
A palavra “diadema” vem do verbo grego diadeo como se apresentavam: discretos, mas com grande
e quer dizer “amarrar ao redor”, e a primeira men- peso simbólico a carregar.

DANILO BERNARDINO É MESTRE EM HISTÓRIA PELA UNB E PROFESSOR


DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO DISTRITO FEDERAL

56 AVENTURAS NA HISTÓRIA
ENTREVISTA

BÊTE NOIRE
S
ua carreira começou com a AH – foi repórter
e editor no começo dos anos 2000. É o autor
da série de best-sellers Guia Politicamente
esquerda, aos erros do
PT. E fico triste ao saber
“Acho uma
Incorreto, propondo desconstruir a interpretação que parte dos antipetistas preocupação
que vê como popular e/ou majoritária de persona- são tão alucinados excessiva com
gens e eventos históricos. Sob a ideia de que façam quanto os petistas.
parte da grande narrativa do “politicamente corre-
palavras. Elas
to”, um termo que quase ninguém clamou para si. O que você acha do não têm tanto
Isso o tornou uma figura altamente divisiva – e no Escola sem Partido?
poder assim”
centro do atual turbilhão político do Brasil atual. Não acho que leis vão
Ele concedeu esta entrevista antes disso, em 2017, resolver o grave problema
no lançamento de seu último livro. da doutrinação ideológica
nas escolas. Mesmo
assim, defendo uma lei
O que é “politicamente social tem seu que proteja os alunos.
correto”? “politicamente correto”, Por exemplo, se um
Uma camisa de força. uma patrulha ideológica, professor disser que
Uma perseguição, uma umas velhinhas carolas não houve golpe em
patrulha contra ideias que impõem regras. 1964, mas revolução,
desagradáveis, que Vimos exemplos de e quem discordar tomar
desafiam o bom- politicamente correto 0, o aluno deve ter uma
mocismo de uma época. da direita nas polêmicas lei, uma regra na qual se
O politicamente correto das exposições de arte. amparar para processar
nasceu com a nova o professor. O mesmo
esquerda dos anos 60 Não seria o PC só vale para os professores
nos EUA. Essa esquerda uma questão de de esquerda.
teve um lado positivo, valores que mudam?
de dar atenção a Principalmente a Como trabalhar na
minorias, mas parte dela esquerda atual adquiriu AH levou aos livros?
acabou resultando em uma obsessão com Em 2004, eu era editor
carolice, em camisas palavras. Acreditam que da revista e procurava
de força intelectuais. palavras têm o poder de pautas entre lançamentos
induzir comportamentos. no site americano da
Existe politicamente Honestamente, acho uma Amazon. Deparei com o
correto de direita? preocupação excessiva Politically Incorrect Guide
Existe. Uma característica com palavras. Elas não of American History e na LEANDRO NARLOCH
universal do ser humano têm tanto poder assim. hora pensei numa versão É JORNALISTA,
TENDO TRABALHADO
é uma certa tentação brasileira. PARA A AH, VEJA E
em impor regras sobre Você se considera SUPERINTERESSANTE,
FOTO LEANDRO NARLOCH

ATUALMENTE COLUNISTA
os outros. Não existe um padroeiro da Você já se arrependeu
DA FOLHA DE S.PAULO.
sociedade humana sem alt-right brasileira? de algo que escreveu? É AUTOR DA SÉRIE
regras. Por isso, cada Acredito que captei Bem, esta semana ainda GUIA POLITICAMENTE
INCORRETO DA HISTÓRIA.
época e até cada grupo uma onda contrária à não [risos].

AVENTURAS NA HISTÓRIA 57
MEMÓRIA

ETERNA A
Independência de Cuba foi confiscada pelos
Estados Unidos – isso é algo que os nacionalistas
já diziam muito antes de Fidel. Quando o gigan-
te do norte decidiu se aliar aos cubanos em sua Guer-

VIGÍLIA
FOTO CLAUDE JACOBY/ULLSTEIN BILD VIA GETTY IMAGES

ra de Independência (1895-1898), o conflito rapida-


mente foi vencido. O preço foi que os cubanos nem
sequer tiveram palavra nos acordos de paz, que inclu-
íram a cessão de Porto Rico e Filipinas aos americanos.
SOLDADOS AMERICANOS A Base de Guantánamo foi instalada nessa ocasião,
permaneceu por toda a Guerra Fria e segue até hoje.
NA BASE DE GUANTÁNAMO
Um ato de imperialismo que serve de justificativa para
POR FÁBIO MARTON as ações da ditadura cubana. E um escândalo mundial
após a tortura de prisioneiros nos anos 2000.

58 AVENTURAS NA HISTÓRIA
UNITED ARTISTS:
EDIÇÃO 189 | FEVEREIRO/2019

CHAPLIN E AMIGOS
FUNDAM O CINEMA
INDEPENDENTE

O PODER, A ASCENSÃO
E A DERROCADA DO
IMPÉRIO NEOASSÍRIO

A VITÓRIA DOS
ZULUS CONTRA OS
COLONIZADORES
BRITÂNICOS EM
ISANDLWANA

COMO UM
MOVIMENTO
LOCAL E
SECULAR
DEU ORIGEM
AO NÚCLEO

DA REVOLUÇÃO INSPIRADOR DO
ISLÃ RADICAL

À TEOCRACIA
PRA VER
SENTIR
EMOCIONAR
IR E VOLTAR
ONDE QUISER
SUMÁRIO

CAPA: A
VERDADE
SOBRE A
REVOLUÇÃO
IRANIANA
DE 1979 E
O FANATISMO
XIITA QUE
A DOMINOU,
MAS NÃO
ORIGINOU

6 GALERIA
A arte dos tetos das 18 DÚVIDA CRUEL
Por que o cérebro 24 CINEMA 54
igrejas e mesquitas humano encolheu? PARA ENTENDER
Artistas contra o sistema: MARXISMO
O surgimento do cinema
12 ILUSTRADA 19 MITOS E LENDAS
independente
Apartamentos
na Roma antiga
Muramasa
e Masamune 55
COLUNA

14 SURREAL
Experimentos 20 10 vitórias em
EXTREMOS 32 CIVILIZAÇÕES HESÍODO
Assírios, como o império
Frankenstein desvantagem foi derrotado mesmo com
sua superioridade militar
56
15 ÀChipa
MESA
e pão de queijo 22 ARTE
Clássico surrealista
COLUNA
CIÊNCIA E FÉ

16 DO TEMPO
LINHA
por Salvador Dalí
48 ÁFRICA
58 MEMÓRIA
A mulher como força
As lanças dos zulus contra
os fuzis dos ingleses
57
Balé: Uma história ENTREVISTA
da dança clássica nos protestos do Irã TOM PHILLIPS
EDITORIAL

A FÉ E A FÚRIA
DIRETOR-SUPERINTENDENTE
Luis Fernando Maluf

DIRETORES CORPORATIVOS
Editorial:
Pablo de la Fuente

M
ês passado, ao falar dos 60 anos da Revolução Cubana, tentamos descobrir Comercial:
Márcio Maffei
se as conquistas de um regime autoritário são mesmo as que ele propaga. Finanças e Controle:
Filipe Medeiros
Neste, falamos de uma revolução que não há como contestar: deu certo. Internet:
Alan Fontevecchia
Os clérigos do Irã nunca prometeram algo tão ambicioso como o comunismo, Jurídico e RH:
Wardi Awada
uma sociedade perfeita. Defenderam impor a lei religiosa, cortar vínculos com o Digital:
Guilherme Ravache
Ocidente e reverter reformas, principalmente as que deram direitos às mulheres
e secularizaram o país. E isso, sem dúvida, entregaram. E também transformaram DIRETORIA E GERÊNCIAS
Publicidade:
seu país numa potência ideológica, inspiração para o islã político violento. Na Thaís Haddad (Diretora)
Circulação:
época, ao mundo, pareceu uma mera caricatura, dando origem ao popular (e mal Luciana Romano (Assinaturas)
Tecnologia Digital:
informado) “xiita” como sinônimo para fanático. Mas, mais que isso, o que tra- Nicholas Serrano
Arte, Prepress e Coordenação Gráfica:
zemos nesta capa é a história de um imenso erro estratégico – que os próprios André Luiz Silva
revolucionários de 79 viram seus religiosos da mesma forma como os ocidentais,
agindo como se os clérigos fossem meros pregadores de coisas invisíveis, que se
retirariam para o mundo espiritual após se livrarem de seu inimigo em comum, (Lançada em 2003)
numa aliança literalmente profana. O preço é pago ainda hoje.
Editor: Fábio Marton; Arte: Marília Filgueiras;
Revisão: Bianca Albert; Repórter: Letícia
Yazbek; Estagiárias: Alana Sousa
Boa leitura! e Mariana Ribas

REDAÇÃO E CORRESPONDÊNCIA
SÃO PAULO: Av. Eusébio Matoso, 1.375, 5º
andar, Pinheiros, CEP 05423-180, SP, Brasil.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 189 ISSN


Fábio Marton (1806-2415), ano 16, nº 1, é uma
Editor publicação mensal da Editora Caras.
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Wardi Awada
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GALERIA

DOMOS
SAGRADOS
NOS TETOS DAS IGREJAS, MESQUITAS E
OUTROS TEMPLOS, UMA FORMA DE ARTE
COMO NENHUMA OUTRA POR FÁBIO MARTON

6 AVENTURAS NA HISTÓRIA
GALERIA

REVOLUÇÃO ROMANA CEBOLA RUSSA ARABESCOS


(Página anterior) Domos existem (Acima) Há uma disputa histórica (Ao lado) Completada em 1619,
desde a Pré-História, mas a técnica sobre quem inventou o icônico a Mesquita Sheik Lotfollah, em
romana os tornou monumentais. domo em forma de cebola, típico Isfahan, Irã, é um Patrimônio da
Completado em 1590, o domo da de igrejas russas e, em forma mais Humanidade pela Unesco.
Basílica de São Pedro atinge 136 sutil, mesquitas. A visão tradicional A intrincadíssima decoração das
metros de altura. Projetado por é que foram copiadas dos islâmicos mesquitas, com padrões florais,
Michelangelo, é um marco do fim da no século 16. Acadêmicos russos geométricos e fractais, surgiu como
Renascença. Esperava-se um domo atuais defendem que são uma uma resposta à proibição de retratar
esférico, como o do Panteão (pág. 11), criação nativa, do século 13. a figura humana na sharia. Os
imitando a “perfeição” dos antigos. A interpretação religiosa é de que domos das mesquitas mesclaram
Michelangelo emprestou técnicas representam a chama de uma vela. a tradição romana e persa, com
romanas, mas fez um domo ogival, A Catedral do Sangue Derramado, a evolução de formas ogivais
como o da Catedral de Florença. de São Petersburgo, data de 1907. acopladas a uma base quadrada.

8 AVENTURAS NA HISTÓRIA
GALERIA

NATUREZA
(À esquerda) Para
desenhar a Basílica
da Sagrada Família,
em Barcelona, Antoni
Gaudí misturou o gótico,
a verticalidade e a
sustentação exposta das
igrejas medievais, com
a art noveau, que copiava
as formas da natureza.
O resultado é uma das
mais icônicas construções
do planeta. Construção
mesmo. O prédio começou
a ser feito em 1882 e, pela
previsão atual, deve ser
terminado em 2026.

O ORIGINAL
(À direita) O Panteão de
Roma, completado em
125, tem seu teto formado
por arcas, caixotes de
concreto moldados para
um perfeito encaixe,
servindo como única
sustentação. Com 43
metros, é ainda hoje o
maior domo de concreto
não reforçado. A Catedral
de Santa Maria del Fiore,
em Florença, teve seu
domo (concluído em 1436)
construído especificamente
para superar o romano,
e seu sucesso é
considerado um dos
grandes marcos da
passagem para a
Renascença.
OURO E SANGUE
O Templo Dourado de
Amritsar, Índia, é o local
mais sagrado da religião
GLOWIMAGES, GUSTAVO RODRÍGUEZ, FENG WEI, NIKADA, PHOTOSINDIA, LUCIANO MORTULA / GETTY IMAGES

sikh. Completado pelo guru


Ram Das em 1577, foi
destruído por
conquistadores islâmicos e
reconstruído diversas
vezes. Entre 1799 e 1849, o
Império Sikh dominou a
região, e, demonstrando
sua devoção, o marajá
Ranjit Singh cobriu seu
domo inteiramente com
folha de ouro, em 1830.
Ganhou o apelido – seu
nome oficial é Darbar Sahib
(“Morada de Deus”) ou Sri
Harmandir Sahib (“Exaltada
Casa Sagrada”).

AVENTURAS NA HISTÓRIA 11
ILUSTRADA

ÍNSULA
ROMANA
A IMENSA MAIORIA DOS ROMANOS VIVIA EM
BLOCOS DE APARTAMENTOS POR FÁBIO MARTON
difício condomínio residen- vam o quarteirão inteiro. Exceto 1
cial não é o que as pessoas pelos mais ricos, todo mundo
E trazem à mente ao imaginar morava num deles, e eram uma
a vida na capital da Europa no indústria. Marco Licínio Crasso,
século 1. Mas era exatamente as- aliado e financiador de Júlio Cé-
sim como vivia a grande maioria sar, era o homem mais rico de
dos 1 milhão que Roma abrigou Roma e devia boa parte de sua
em seu auge. Segundo registros riqueza à sua especulação imobi- 2
romanos, no século 4, havia até liária com as múltiplas ínsulas
46 mil insulae (insula no plural) que alugava. Cícero afirmou que,
na cidade, versus menos de 2 mil quando os prédios caíam pela
domus, as mansões dos ricos. O economia que Crasso fazia na
nome quer dizer “ilha”, e era ori- construção, ele ficava feliz, pois
ginalmente usado para denomi- poderia cobrar um aluguel maior
nar os quarteirões, que são como com as novas que construiria no
ilhas entre as ruas. Os edifícios de lugar. Crasso também tinha um
apartamentos ganharam esse serviço de bombeiros para aten-
nome porque geralmente ocupa- der as ínsulas – por um preço.

3
4
Uma ínsula podia
1 ter até nove andares
ou mais, às vezes
expandidos ilegalmente,
com os últimos podendo
ser extensões de madeira,
que facilmente pegavam
fogo. Aqui só é mostrada
a esquina – eram sempre
prédios largos, ocupando
todo o quarteirão.

Para os romanos, 5
2 quanto mais alto,
pior. Não havia elevador,
nem, geralmente, água
ou esgoto nos últimos
andares. Particularmente
sinistro em caso de
incêndios – as mangueiras
dos bombeiros (vigiles)
não tinham pressão para No andar mais baixo,
atingi-los. 4 as condições eram
muito mais confortáveis.
Nem sempre esse “luxo”
era reservado à classe
Conforme se média alta. Era comum que No solo, geralmente
3 chegava mais perto os romanos sublocassem 5 havia negócios
do solo, os apartamentos seus apartamentos, diversos. A cozinha
aumentavam de tamanho, criando cortiços – e um doméstica era um luxo
conforto e preço. Em transtorno para os donos raríssimo, e um enorme
alguns lugares, porém, e as autoridades. risco numa ínsula.
as ínsulas inteiras podiam A maioria dos romanos
ter condições razoáveis. comprava comida fora,
Na ínsula de Herculano, nos thermopolia,
o esgoto era instalado os precursores dos
até o último andar. restaurantes modernos.

ILUSTRAÇÃO DORLING KINDERSLEY / GETTY IMAGES


SURREAL

EXPERIMENTOS
FRANKENSTEIN
A
PARA FUNDAR fábula do Frankenstein é conhecida músculos de rã morta se moviam quando
A FICÇÃO por todos. O livro, de 1818, que narra atingidos por uma corrente elétrica. Em
a história do cientista que cria e dá a 1803, seu sobrinho, Giovanni Aldini, levou
CIENTÍFICA, vida a um monstro usando ondas de eletri- a coisa ao extremo usando como cobaia o
MARY SHELLEY cidade se popularizou, tornando-se a pri- corpo de um homem que tinha sido conde-
SE INSPIROU meira obra de ficção científica do mundo. nado à morte. Aldini e seus assistentes re-
EM FATOS REAIS Mas você conhece os experimentos reais que alizaram o experimento com espectadores.
inspiraram esse romance de terror? O ato saiu no Times, que relatou que o ca-
POR ALANA SOUSA
O que parece fantasia para nós era bas- dáver começou a tremer, um dos olhos foi
tante popular entre as pessoas no século 19. aberto, a mão direita foi levantada e as per-
Experimentos utilizando “eletricidade ani- nas, postas em movimento. Apesar de não
mal” (eletricidade produzida através das ter conseguido cumprir o propósito de res-
células) tentavam a todo custo provar que suscitar o homem, foi o suficiente para sur-
era possível restaurar e até gerar a vida a preender quem assistia e dar esperança para
partir desse recurso. Tudo começou em outros cientistas.
1786, quando Luigi Galvani descobriu que No mesmo ano, Johannes Ritter também
realizou experimentos elétricos. Só que em
si mesmo, com o objetivo de explorar como
a eletricidade afetava as sensações.
Após a publicação do livro de Mary
Shelley, o químico escocês Andrew Ure re-
alizou seus próprios experimentos elétricos
no corpo de um homem executado por as-
sassinato. Quando o homem morto foi ele-
trificado, Ure escreveu: “Cada músculo em
seu semblante foi simultaneamente lançado
em ação temerosa; raiva, horror, desespero,
angústia e sorrisos medonhos uniram sua
expressão hedionda no rosto do assassino”.
Pelo menos um século antes a ideia já
tinha sido debatida por um dos cientistas
mais impor ta ntes da História: Isaac
Newton. Ele especulou, no início dos anos
1700, que havia uma ligação íntima entre a
eletricidade e os processos da vida. Mas não
há como fazer alguém voltar: o que os ele-
FOTO GETTY IMAGES

trodos faziam era estimular o processo na-


tural em que diferenças de carga elétrica
excitam os músculos a se moverem.
À MESA

CHIPA E PÃO
DE QUEIJO
A ORIGEM DOS CLÁSSICOS DO CAFÉ DA MANHÃ BRASILEIRO
PODE ESTAR BEM LONGE DE MINAS GERAIS POR FÁBIO MARTON

O
s ingredientes básicos são os mesmos: e foi misturada a ovos, leite e queijo e man-
tapioca, queijo, leite, ovos e algum tipo teiga ou óleo, introduções europeias trazidas
de gordura, vegetal ou animal. Com pelos padres. Os jesuítas pregaram e criaram
variações, a receita é universal na América suas aldeias, as missões, tanto nos territórios
do Sul. Na Bolívia, com o mesmo formato atualmente portugueses, o Sul e Sudeste do
do Brasil, é chamada de cuñapé. Na Argen- Brasil, quanto espanhóis, no Paraguai, Uru-
tina, Paraguai e Uruguai, domina a já famo- guai e Argentina.
sa chipa (ou chipá), que, além do formato de A chipa parece ter entrado no Brasil na
ferradura, tem uma proporção diferente dos década de 1860, por imigrantes paraguaios,
ingredientes, dando outra textura. Na Co- que fugiam da guerra e procuravam abrigo
lômbia, a chamam de pandebono, tem o mes- por aqui, principalmente no Mato Grosso do
mo formato do pão de queijo e leva, adicio- Sul, que é o estado onde a chipa é tradicional
nalmente, farinha de milho, enquanto a e facilmente encontrada. O pão de queijo
chipa é chamada de pandeyuca. pode ser bem novo: os registros definitivos
Apesar de alguma especulação não com- de sua presença só aparecem nos anos 1950.
provada que tenha surgido no período colo- Se a chipa é mesmo a origem do pão de
nial em Minas, a origem do pão de queijo queijo, ou ele foi uma criação de nossas pró-
possivelmente está bem longe de Minas Ge- prias missões, nunca ficou esclarecido. Seja
FOTO GETTY IMAGES

rais. A chipa é uma invenção das missões como for, atendendo pelo nome que seja, o
jesuítas, juntando tradições indígenas a eu- pãozinho de tapioca e queijo, como o doce
ropeias. A tapioca é um ingrediente nativo, de leite, é algo a unir o continente.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 15
LINHA DO TEMPO

DOS RITUAIS ANCESTRAIS


AO EXPRESSIONISMO
PÓS-MODERNO, UMA
HISTÓRIA DA DANÇA
EM SUA FORMA MAIS
PRESTIGIADA
POR MARIANA RIBAS

<6500 a.C. Séc. 7a.C. 1348 1459


RITUAIS DANÇA GREGA DANÇA TRIUNFO
A dança paleolítica tinha “A dança forma o MACABRA A partir do século 15
uma função prática. cidadão completo”, dizia Na Idade Média, alguns que há uma mudança
Servia para aprimorar Sócrates. Era vista como religiosos denunciavam na sociedade e nas
as habilidades de caça e preparação para a vida a dança como algo relações de classes
pesca e ainda estudar os e para a guerra. Assim diabólico, outros diziam sociais. Pela tradição,
movimentos dos animais. como na Índia e no que era possível louvar a 1459 é considerado
(As pinturas rupestres Egito, a Dança Grega Deus com ela. Durante a o ano de fundação do
encontradas representam homenageava os peste negra, as cidades balé, supostamente num
pessoas em rodas, deuses. Juntando os (ainda) não atingidas casamento de um rei na
correndo e pulando, rituais religiosos com dançavam alegremente Itália, no qual dançarinos
imitando, muitas vezes, o teatro. Dionísio, deus acreditando que isso se vestiram como os
FOTO APRISON / EYEEM / GETTY IMAGES

a postura dos bichos.) do vinho e de mistérios pudesse manter a peste pratos. O fato é que a
Após o surgimento esotéricos, era o mais longe. Nas igrejas, a dança surgiu na Itália
da agricultura, a dança dançado pelos gregos, dança era literalmente no século 15, como um
passou a celebrar a em rituais em que macabra: quadros de passatempo da nobreza,
colheita e a plantação, saltitavam em cima das mortos dançando com e de lá foi exportada
ligada às estações uvas. A população fazia vivos – a Danse Macabre para a França, onde
do ano. fila para vê-los. – se tornaram um clichê. se consolidou.

16 AVENTURAS NA HISTÓRIA
1581 1661 1913 1960
BALÉ DA ÓPERA BALÉ AVANT-GARDE BUTOH
CORTE Na França, Luís XIV Quando foi exposto pela No Japão pós-guerra
No casamento de criou a academia primeira vez, o balé A Tatsumi Hijikata e Kazuo
Catarina de Médici de balé chamada Sagração da Primavera, Ohno começam a criar
com Henrique II da Académie Royale de de Igor Stravinsky, por as primeiras
França, é criado o Balé Musique. Assim surgiu sua própria descrição, manifestações da
da Corte, aprimoração o balé como um causou um tumulto no expressão marginal
do Triunfo chamada espetáculo mais teatro, entre apoiadores e “dança das trevas”
Le Ballet Comique de la sofisticado e estudado e detratores. O som era praticada em bares,
Reine (“O Balé Cômico chamado Ópera Balé, dissonante, as roupas boates e ruas que nos
da Rainha”). As seis criado pelo músico incluíam “selvagens” anos 60 foi intitulada de
horas de espetáculo Jean-Baptiste Lully batendo no chão com Ankoku Butoh. Lidando
consistiam em um novo (1632-1687) e o os pés. Nada se parecia com a destruição,
estilo de movimentos, dançarino Pierre mais com o que todo guerra, horror, morte
abrindo o caminho para Beauchamps (1631- mundo respeitava. A e todos os possíveis
uma arte mais complexa 1705), que criou passos partir daí, artistas como limites do corpo. Uma
e prestigiada nos clássicos do balé que a alemã Mary Wigman das inovações mais
séculos que se são usados até hoje (1886-1973) redefiniram influentes da era
seguiriam. nos palcos. a dança. contemporânea.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 17
DÚVIDA CRUEL

POR QUE O
fato: nos últimos 20 mil anos, o volume mé-
dio do cérebro humano diminuiu de
1500 cm³ para 1350 cm³. Uma massa do ta-

O CÉREBRO
manho de uma bola de tênis. Qual seria a razão?
A teoria mais básica é que o cérebro só acompa-
nhou a diminuição do tamanho médio do corpo
humano. Maiores e mais fortes do que os seres

HUMANO
modernos, os pré-históricos necessitavam de mais
massa cinzenta para realizar suas atividades. Há
cerca de 20 mil anos, o aquecimento da Terra fez

ENCOLHEU?
com que a seleção natural favorecesse pessoas de
estruturas menores. Corpos volumosos são melho-
res em conservar calor e teriam sido favorecidos em
um clima mais frio.
Mas não celebre ainda. A mudança do ambiente
COMPARADOS COM NOSSOS ANCESTRAIS
e do modo de vida interferiu também no tamanho
PRÉ-HISTÓRICOS, PERDEMOS MASSA do cérebro. Segundo David Geary, professor do
CINZENTA. ESTAREMOS FICANDO MAIS Departamento de Ciências Psicológicas da Univer-
BURROS? POR LETÍCIA YAZBEK sidade do Missouri, um corpo forte e um cérebro
grande eram características essenciais para a so-
brevivência em um local hostil. “Com o surgimen-
to de sociedades complexas, o cérebro ficou menor
porque as pessoas não precisavam ser tão inteligen-
tes para se manterem vivas”, afirma Geary. E o
cérebro, órgão que gasta grande quantidade de
energia, não é mantido em tamanho maior a menos
que seja extremamente necessário. Além de não
precisar fugir de predadores, caçar animais e lascar
pedras, o ser humano moderno conta com meios
externos de armazenamento e processamento de
informações, como a escrita.
Ficamos mais burros então? Para Brian Hare,
professor de antropologia evolutiva da Universida-
de Duke, o encolhimento do cérebro não indica que
o ser humano está ficando mais burro. Na verdade,
ele indica que atingimos um nível mais eficiente e
sofisticado de inteligência. Com um órgão mais
compacto, conseguimos trabalhar e nos organizar
com mais rapidez do que nossos antepassados.
Outra teoria é a de que cérebros menores pro-
porcionam menos agressividade e melhor convi-
FOTO DAVID CROCKETT / GETTY IMAGES

vência social. De acordo com Hare, o mesmo padrão


pode ser observado nos animais. “Embora os lobos
tenham um cérebro muito maior do que o dos cães,
os cães são muito mais sofisticados, inteligentes e
flexíveis. Isso mostra que a inteligência não está
relacionada ao tamanho do cérebro.”

18 AVENTURAS NA HISTÓRIA
MITOS E LENDAS

MURAMASA
E MASAMUNE
NO TEATRO KABUKI E NAS
LENDAS JAPONESAS, ESPADAS
QUERIAM VER SANGUE
POR FÁBIO MARTON

G
oro Masamune criou as mais celebradas
espadas do Japão. Ele é um personagem
histórico relativamente bem estabelecido
que viveu, pela teoria mais aceita, entre 1264 e
1343, e sua assinatura está na Honjo Masamune,
tesouro nacional do Japão que, por mais de dois
séculos, serviu de símbolo do poder do xogum.
Já Muramasa simplesmente apareceu na His-
tória. A mais antiga espada com sua assinatura
data de 1501. Ainda que considerado um dos
artesãos mais talentosos do Japão, suas espadas
sobreviventes não têm nenhuma honra do go-
verno. São chamadas de yoto, katanas malditas.
Em lendas e peças do teatro kabuki, se al-
guém desembainhasse uma muramasa, a espa-
da não descansaria até ver sangue – possuindo
seu portador com uma fúria destrutiva, termi-
nando em suicídio se não achasse outra vítima.
Lendas retratam Muramasa como discípulo
de Masamune (que viveu séculos antes). A mais borboletas tanto quanto cabeças”. A arma de Masamune trabalhando,
em Ukyio-e, de Hiroshige,
famosa fala de um dia em que o discípulo desa- Masamune havia escolhido poupar os inocentes. 1843-1847. Na Sengoku
Jidai, a longa guerra
fiou o mestre para ver quem fazia a melhor es- O fato histórico é que a família Tokugawa feudal do século 16,
pada. Trouxeram suas criações para serem tes- teve más experiências com muramasas. Mura- muito mais samurais
foram mortos por lanças,
tadas num riacho. Muramasa batizou sua arma masas mataram o avô e, depois, o filho de Ieya- arcabuzes e canhões do
que por espadas. A katana
de Juuchi Yosamu ( , “10 mil noites géli- su Tokugawa. Seu pai fora trespassado (mas se tornou importante no
das”) e, ao colocá-la na água, passou a partir em sobreviveu) por um samurai bêbado. Mas isso
IMAGEM © VICTORIA AND ALBERT MUSEUM, LONDON

xogunato, período sem


guerras, como arma
dois folhas, peixes, a própria água e o ar. Quan- diz mais sobre a popularidade das muramasas de defesa pessoal
do Masamune pôs no rio sua Yawarakai-Te no século 16 que qualquer ocorrência sobrena-
( , “mãos ternas”), as folhas foram tural. Elas se tornaram tão relacionadas a uma
partidas, mas os peixes se desviaram, e o ar maldição contra o xogum que, na Guerra Boshin
produziu um silvo musical. O discípulo caçoava (1868-1869), samurais inimigos do xogunato
o mestre quando um monge os interrompeu. procuraram por muramasas para transferir sua
Elogiou a espada de Muramasa, mas disse que antipatia – e um número enorme de espadas
era sanguinolenta e maligna, podendo “cortar falsificadas foi vendido então.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 19
EXTREMOS

VITÓRIAS EM
DESVANTAGEM
NESTAS 10 BATALHAS ÉPICAS, O PEQUENO 8,3
PARA 1
VENCEU O GRANDE POR LETÍCIA YAZBEK 3,33
PARA 1
2,5
PARA1
1,66
1
PARA
1,53
1
PARA
1,38
1
PARA

10 1805 9 216 a.C. 8 1932-1935 7 813 6 1415


BATALHA DE BATALHA GUERRA BATALHA DE BATALHA DE
AUSTERLITZ DE CANAS DO CHACO VERSINÍCIAS AGINCOURT
França x Sacro Império Cartago x Roma Paraguai x Bolívia Império Búlgaro x Inglaterra x França
Romano-Germânico 56 mil x 86 mil 150 mil x 250 mil Império Romano 9 mil x 30 mil
65 mil x 90 mil Aníbal dispôs suas A disputa foi o maior do Oriente Cavaleiros franceses
Secretamente, tropas cartaginesas conflito da América 12 mil x 30 mil tomaram a iniciativa
Napoleão mandara de forma que o Sol Latina no século 20. Mesmo sendo e atacaram os
o marechal Davout nascesse atrás de Além de superarem superiores numérica e arqueiros inimigos,
trazer 7 mil homens seus homens e as tropas paraguaias estrategicamente, os mas foram repelidos
de Viena. Quando os ofuscasse os em números, as bizantinos esperaram. e tiveram muitas
aliados estavam romanos. Agrupou a tropas bolivianas Foram 13 dias até que baixas. Logo depois,
prestes a destroçar a infantaria mais fraca tinham maior o confiante general o terreno irregular e
ala direita do Exército no meio e deixou a capacidade militar. João Aplaces cheio de lama expôs
francês, Davout poderosa cavalaria No entanto, apresen- resolveu atacar. A a infantaria francesa
barrou o ataque. nos flancos. Ao taram dificuldades de tensão quebrou o ao arco longo inglês.
Napoleão pegou atacar, os romanos logística e estratégias moral. Quando o Milhares foram
russos e austríacos no caíram na armadilha: de guerra antiquadas. Exército búlgaro mortos ou captura-
contrapé, e arrasou a o centro cartaginês Deslocando-se mais avançou com sua dos. Para aterrorizar
linha inimiga. Os recuou, enquanto a rapidamente, com a cavalaria pesada, os os inimigos, o rei
aliados tiveram suas cavalaria atacava a ajuda da Marinha do pelotões inimigos britânico Henrique V
forças partidas ao retaguarda romana. Paraguai, os solda- recuaram. A maioria deu a ordem de
meio nas colinas de Prensados uns contra dos paraguaios foram dos soldados matar todos os
Pratzen, dando a os outros, os inimigos mais eficientes e bizantinos morreu prisioneiros. De noite,
Napoleão uma de não tinham condi- derrotaram os durante o contra- o Exército francês já
suas maiores vitórias. ções físicas de lutar. bolivianos. ataque búlgaro. estava longe.

20 AVENTURAS NA HISTÓRIA
100
PARA1
10
PARA 1
10
PARA 1
9
PARA 1

5 1560 4 1121 3 61 2 506 a.C. 1 612


BATALHA DE BATALHA BATALHA BATALHA BATALHA
OKEHAZAMA DE DIDGORI DE WATLING DE BOJU DE SALSU
Oda Nobunaga x Reino da Geórgia x STREET Reino Wu x Reino Chu Reino Goguryeo x
Imagawa Yoshimoto Império Seljúcida Império Romano x 30 mil x 300 mil Dinastia Sui
3 mil x 25 mil 55,6 mil x 500 mil Icenos Comandada por 10 mil x 1 milhão
Imagawa Yoshimoto Quando o temível 10 mil x 100 mil ninguém menos que Como superar
levou seu grande Império Seljúcida, Caio Suetônio Paulino Sun Tzu. Tzu desviou números assim?
exército até Kyioto, que dominava da planejou uma 20 mil de seus Com destruição em
nos territórios do Turquia ao Afeganis- armadilha contra os homens para a massa. A estratégia
clã Oda, e acampou tão, invadiu a celtas liderados por cidade de Ying, mas do reino coreano foi
antes da grande modesta Geórgia, Boadicea. Apesar parou no meio do a construção de uma
batalha. Informado, os os georgianos da desvantagem caminho. Ao chegar barragem no Rio
Oda Nobunaga propuseram negociar. numérica, romanos ao local, Nang Wa, Salsu. O Exército
planejou um ataque- O comandante contavam com o primeiro-ministro de chinês entrou pelo
surpresa. Uma forte muçulmano levou-os, armamentos e Chu, foi surpreendido território seco sem
tempestade impediu então, à sua tenda, disciplina superiores. pelos soldados que perceber o perigo.
que o exército de onde estava toda a Mais que isso, surgiram dos Quando as compor-
Yoshimoto percebes- liderança seljúcida. estratégia: eles se bosques. Os 10 mil tas foram abertas,
se a aproximação dos Que foi massacrada posicionaram num homens restantes mais de 300 mil
Nobunaga. Quando no ato pela comitiva. desfiladeiro, que apareceram logo em foram varridos pelas
notaram a presença O exército entrou em impedia os celtas de seguida. O choque águas. As tropas
dos inimigos, fugiram. ação. Pego de os cercarem. Confian- abalou o Exército sobreviventes foram
Imagawa Yoshimoto surpresa, 70% do tes em seus números, Chu, e poucos obrigadas a recuar ou
foi decapitado e seus exército foi morto os celtas atacaram. homens sobreviveram foram mortas pelas
oficiais desertaram. e 25%, capturado. E perderam. à batalha. forças Goguryeo.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 21
ARTE

A MENTE
DE DALI
3

LUTA CONTRA O INCONSCIENTE


E TEMAS RELIGIOSOS NUM
CLÁSSICO SURREALISTA
POR LETÍCIA YAZBEK

E
m 23 de janeiro de 2019 comemoram-se 30
anos da morte de Dalí, um dos mais populares
modernistas do século 20, se não o mais. Nas-
cido em 1904, em Figueres, Catalunha, começou a
pintar aos 13 anos e, em 1919, organizou sua pri-
meira exposição pública. Em 1927, instalou-se em
Paris e tornou-se membro do movimento surrea-
lista, liderado pelo poeta André Breton. Como re-
ação ao racionalismo e ao materialismo, o surrea-
lismo tinha a proposta de utilizar o potencial do 2
subconsciente como fonte de imagens.
A partir de então, Dalí se dedicou a representar
imagens do cotidiano a partir do fluxo inconscien-
te dos sonhos. De forma inesperada e surpreenden-
te, pessoas, animais e objetos se fundiam em suas
composições, cheias de cor e brilho. Essas caracte-
rísticas estão presentes em Persistência da Memória
(1931) e Metamorfose de Narciso (1937).
A Tentação de Santo Antônio, realizada em
1946, em Nova York, foi feita durante um concur-
so no qual era necessário retratar Santo Antônio 1
sendo tentado, assim como na passagem bíblica.
Na obra, Dalí se utilizou das noções de sonho –
diante da intensidade do inconsciente, nos vemos
tentados e desprotegidos.

Santo Antônio se vê diante A cruz segurada por Santo O cavalo, que se lança sobre
1 de uma forte tentação, que o
2 Antônio é de estrutura frágil
3 Santo Antônio, simboliza o
desnuda – assim como os sonhos, e parece prestes a se quebrar, inconsciente profundo e reprimido,
que nos despem de qualquer revelando a fragilidade do homem. o acúmulo de emoções. Um
privação. A única esperança que No chão, dois seres aparentam elefante traz uma mulher nua,
lhe resta está em Cristo – a cruz. passar por outros conflitos. representando a luxúria.

22 AVENTURAS NA HISTÓRIA
4

Como em um sonho, que O deserto, local onde ocorre


4 distorce tempo e espaço, as
5 a tentação, passa a sensação
La Tentación de San
Antonio
Autor: Salvador Dalí
criaturas são desproporcionais às de vazio, abandono e solidão. Ano: 1946
reais. As proporções exageradas Os segundos, minutos e horas Técnica: óleo sobre tela
Tamanho: 90 x 119,5 cm
enfatizam sua maldade e o medo não existem, e o tempo não passa: Local: Musée Royaux des
que o santo sente diante delas. não há como fugir do inconsciente. Beaux-Arts, Bruxelas

AVENTURAS NA HISTÓRIA 23
CINEMA

Cenas de O Circo (1928),


O Garoto (1921), Luzes da
Cidade (1931), Tempos
Modernos (1936), O Grande
Ditador (1940) e Vida de
Cachorro (1918), e também
de imagens sem data de
Chaplin no set de filmagem

CHAPLIN
SURGE O CINEMA
INDEPENDENTE
HÁ 100 ANOS, UNIÃO CONTRA O SISTEMA DE ESTÚDIOS, POR
CHAPLIN, PICKFORD, FAIRBANKS E GRIFFITH, AINDA É CONSIDERADA
UM MARCO NA HISTÓRIA DO CINEMA POR OTÁVIO URBINATTI

E
m janeiro de 1910, um trem realizava meiro instrumento de exibição de imagem em
uma viagem ambiciosa de um extremo movimento dos Estados Unidos. Essa exclusivi-
ao outro do país. David. W. Griffith car- dade fez com que o inventor exigisse patentes de
regava na bagagem uma equipe de 30 tudo que surgisse no campo do cinema, gerando
pessoas e tendências de um novo olhar para o disputas com produtores e exibidores de filmes.
cinema. O diretor da Biograph Company havia Os exaustivos processos de Edison, no entan-
deixado as gravações em Nova Jersey atrás de to, estabeleceram um acordo entre as principais
melhores condições climáticas para filmar. companhias de cinema para regular e licenciar
Nessa década, um pequeno vilarejo da Cali- qualquer tipo de produção. O grande consórcio
fórnia viu florescer projetos que transformariam ficou conhecido como Motion Picture Patents
a trajetória do país. Aos poucos, Hollywood foi Company (MPPC).
dando início a histórias de personalidades que Com a aliança, a duração dos filmes era li-
até hoje são lembradas. Entre elas, a de Mary mitada de dez a 20 minutos e inviabilizava
Pickford, Charlie Chaplin e Douglas Fairbanks, qualquer produção independente. Nessa época,
responsáveis por dar um novo significado à o conglomerado chegou a controlar mais da
indústria do cinema. metade das exibições em território americano.
No século 19, em Nova Jersey, o criador do Hollywood aparecia, assim, não só como a
Cinetoscópio, Thomas Edison, patenteava o pri- terra do sol – e sol significava filmagens ao

AVENTURAS NA HISTÓRIA 25
CINEMA

ar livre, num tempo em que isso era uma enor-


me vantagem, dada a pouca sensibilidade à luz
Com estilo doce e confiante,
dos filmes – mas como um local onde a arte Pickford conquistou papéis
poderia ganhar maior sentido longe do grupo
de patentes. importantes nos curtas
O CRÉDITO DOS ARTISTAS Nação – um revolucionário épico, que pratica-
No Oeste, porém, artistas e companhias de fil- mente lançou o formato longa-metragem, e
magens eram malvistos pelos moradores. “Ini- também um filme incrivelmente racista (veja
cialmente, as pessoas em Hollywood eram trata- abaixo) –, seu nome foi alçado ao topo da in-
das como aventureiros, como pessoas que dústria cinematográfica.
estavam explorando um filão”, comenta Marce- Depois de ter sucesso nos palcos, a canaden-
lo Müller, crítico de cinema e editor do portal se Mary Pickford foi convidada por Griffith para
Papo de Cinema. integrar a equipe da Biograph em 1909. No ano
Esse cenário, entretanto, começou a mudar seguinte, viajou junto com a comitiva do diretor
quando os primeiros trabalhos de Griffith foram para Los Angeles.
apresentados. Embora existissem poucos locais Com estilo doce e confiante, Pickford con-
de exibição na região, o diretor conseguiu cativar quistou papéis importantes nos curtas. Em pou-
um número muito grande de espectadores com co tempo, ganhou o apelido de American Sweet-
movimentos de câmera e técnicas de edição. heart (“A Namoradinha dos EUA”) e se tornou
“Griffith iniciou e estabilizou o que chama- a única mulher nos Estados Unidos a ganhar
mos de narrativa clássica e linguagem cinema- mais de 1 milhão de dólares em um único ano.
tográfica. Elas se mantêm até hoje em suas ba- O cinema mudo, por sua vez, demandava dos
ses”, avalia o professor do Departamento de atores exagero performático das cenas e a atriz
Cinema do Instituto de Artes da Unicamp Fer- entendia a força que as suas expressões tinham.
não Ramos. Pela primeira vez, Griffith estampou o nome de
Como a Biograph formava o grupo da MPPC, um ator no cartaz do filme e Pickford se tornou
seus curtas seguiam os padrões de mercado e uma das personalidades mais famosas do mun-
muitas de suas produções eram inviabilizadas. do. Enquanto isso, um grupo teatral de Londres
Um convite para fazer filmes mais caros e lon- comandado pelo empresário Fred Karno viaja-
gos levou Griffith para a Mutual Film Corpo- va o mundo mostrando peculiaridades da co-
ration. Em 1915, com O Nascimento de uma média inglesa. Em 1913, o filho de animado-

ASTROS DE VOLTA AO COMANDO


Em 2006, o ator Tom Cruise e sua sócia Wagner para produções independentes,
Paula Wagner, após a quebra de contrato no entanto, fez a MGM readquirir a UA
com a Paramount Pictures, anunciaram o integralmente em 2011.
retorno da United Artists. A MGM / Pathé, A United Artists deixou um importante
resultado da fusão entre a MGM / UA pela legado, uma vez que “outros grandes atores
francesa Pathé em 1990, dava novamente e diretores constituíram suas próprias
o comando da companhia nas mãos de companhias ao longo dos anos para
artistas. Wagner como CEO e Cruise como alcançar liberdade e sobressair no mercado
a grande estrela, a companhia lançou puramente financeiro”, diz Müller. Os quatro
filmes como Leões e Cordeiros (2007) pioneiros mostraram que Hollywood não
e Operação Valquíria (2008). A saída de é só contas bancárias, mas sonhos.

26 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Pickford lendo jornal
sobre o voto feminino,
por volta de 1920;
Fairbanks e Pickford se
despedindo de Chaplin,
em viagem para a
Inglaterra; cena de Little
Annie Rooney (1925); nas
filmagens de Hoodlum
(1925); em Meu Único
Amor (1929); e Coquete,
seu primeiro falado, pelo
qual ganhou um Oscar;
cantando em 1920
PICKFORD
CINEMA

Cenas dos filmes O Ladrão


de Bagdá (1924), Volta ao
Mundo em 80 Minutos (1931),
dirigido por Fairbanks, Don
Q, Filho do Zorro (1925) e
O Gaúcho (1927). Foto de
Fairbanks e Pickford sendo
cumprimentados por fãs
durante sua lua de mel em
Copenhague

FAIRBANKS
Os três, portanto, se no documentário Star Power: The Creation of
United Artists (1998).
reuniram para pensar em Já no ano seguinte de sua estreia, em 1916, o
ator criou sua própria empresa de cinema, a
formas de resistência Douglas Fairbanks Film Corporation. Naquele
momento, não só ele mas o nome de Chaplin,
res musicais, Charlie Spencer Chaplin, ia com Pickford e Griffith no cenário cinematográfico
a trupe para a sua segunda turnê nos Estados dava a eles maior liberdade de produção.
Unidos. Na viagem, conheceu o diretor dos es-
túdios Keystone, Mack Sennett, que já apostava A UNIÃO DE ESTRELAS
em produções de comédia. Um convite ao ator A distribuição de películas ainda era um gran-
britânico foi feito e Chaplin atuou pela primei- de impasse para essas estrelas. Esse domínio de
ra vez no curta Making a Living, de 1914. mercado por empresas como Metro-Goldwyn-
“Ele se adaptou rapidamente ao estilo. A ma- Mayer (MGM), Paramount e Fox estabelecia
neira com que dominava a pantomima sobressaiu preços fixos na venda dos filmes e, em muitos
muito facilmente no cinema. Um cinema feito de casos, salas de exibição só podiam comprar
comédias rápidas, curtas e de um humor muito filmes em grupos, inviabilizando qualquer pos-
acessível”, explica o crítico Marcelo Müller. sibilidade de um blockbuster.
O ritmo frenético dos filmes de Sennett e a Além de astros, Chaplin, Pickford e Fair-
singularidade da atuação de Chaplin deram banks eram grandes amigos e já possuíam suas
liberdade ao ator para sugerir e criar em cima próprias empresas. Os três, portanto, se reuni-
de seus papéis. Em busca de uma comédia mais ram para pensar em formas de resistência a
escrachada, Chaplin trouxe um personagem de esse consórcio.
calças largas, casaco apertado e bigode pequeno: David W. Griffith, que passou os anos da
o Little Tramp (“Pequeno Vagabundo”, mais Primeira Guerra na Europa após o fracasso de
simpaticamente chamado de Carlitos por aqui), bilheteria, foi convidado por Pickford para dar
sua marca registrada até hoje. maior credibilidade ao grupo. Em 1919, as qua-
Esse anseio por produções mais exageradas, tro reconhecidas personalidades de Hollywood
dessa forma, foi ponto crucial para que ele dei- assinavam a criação de um novo estúdio de ci-
xasse a Keystone. Com a popularidade de seus nema: a United Artists (UA) nascia para romper
filmes, Chaplin também se tornara um dos no- com os monopólios de distribuição.
mes mais reconhecidos no mundo. “Simplesmente, era a união dos maiores di-
Em Hollywood, Chaplin encontrou um ator retores e atores do cinema mudo, da grande
norte-americano mais velho e com experiência estrela americana e do diretor responsável por
nos palcos da Broadway. Essa amizade com criar a linguagem cinematográfica”, finaliza
Douglas Fairbanks fez com que o ator de teatro, Fernão Ramos.
aos 32 anos, estreasse nas produções de Griffith. O surgimento da UA é considerado por mui-
Sem a presença de dublê, os primeiros traba- tos uma revolução na história do cinema. Era a
lhos de Fairbanks eram marcados por inúmeras primeira vez que uma companhia tinha total
acrobacias. Num período em que quase tudo era domínio de produção, execução e distribuição
novidade no cinema, ele rapidamente se tornou de filmes. “Ela era a fuga daquilo que era nobre
reconhecido pelos espectadores. em Hollywood, já que os estúdios até então eram
“Sua principal virtude foi projetar otimismo espécies de potentados árabes”, explica o pro-
para o público. Se alguém falasse ‘essa parede é fessor de história do cinema e coordenador da
muito alta para subir’, ele dizia que não e que Filmoteca da Faap, Máximo Barro.
era possível saltar. Isso trouxe confiança para Inicialmente, por Grifitth e Chaplin terem
todo mundo”, comentou Douglas Fairbanks Jr. contratos com outros estúdios, a participação

AVENTURAS NA HISTÓRIA 29
CINEMA

de ambos nas produções da companhia foi li-


mitada. Em 1919, Fairbanks foi mais auspicioso
Em poucos anos, quase
e emplacou o primeiro sucesso do grupo com todos os estúdios entraram
His Majesty, The American. No ano seguinte,
Pickford também elevou o nome da nova em- no vermelho
presa em Pollyana.
“A United tinha fundamentos econômicos Em 1945, no período pós-Guerra, os estúdios
muito mais profundos do que os outros estúdios. já tinham pago suas dívidas. Nessa época, Fair-
A questão não era só distribuir e exibir filmes banks tinha falecido e Griffith deixado a lideran-
nos Estados Unidos. Eles queriam pegar esses ça do grupo. A companhia, mesmo com novos
filmes de grande renome e torná-los de poder nomes na presidência, ainda era assegurada pelas
internacional”, completa Barro. ações de Chaplin e Pickford. Inevitavelmente, ela
Na década de 1920, o cinema mudo da UA não figurava mais entre os grandes estúdios de
ganhou proporção e contribuiu para fazer im- Hollywood e passou a sobreviver modestamente
portantes nomes no ramo, como Rodolfo Va- como “locadora” de seu material e de seu espaço.
lentino, Buster Keaton e Gloria Swanson. Questões políticas começaram a se enroscar
em torno de Chaplin. Acusado de comunista, o
TEMPESTADE SONORA ator deixou os Estados Unidos em 1952 e vendeu
A partir de 1929, o surgimento do cinema so- os títulos da empresa. No ano seguinte, Pickford
noro trouxe praticamente uma outra indústria. entregou a UA nas mãos de novos grupos, que a
Foi um golpe enorme para muitos artistas e partir de então passou a ser comprada, vendida
produtores, que não se adaptaram. Em poucos e reestruturada por diversas empresas, mas ain-
anos, quase todos os estúdios entraram no ver- da assim levando o nome em grandes sucessos,
melho. Quando o presidente Franklin Delano como a série 007 e Rocky. A derrocada da marca
Roosevelt assumiu em 1933, muitos estúdios já aconteceu anos mais tarde com o fracasso de
UNITED ARTISTS, NBC/NBCU PHOTO BANK, NY DAILY NEWS ARCHIVE, KEYSTONE-FRANCE, DONALDSON COLLECTION / GETTY IMAGES

beiravam a falência e o então presidente precisou bilheteria de O Portal do Paraíso (1980), de Mi-
garantir a sobrevida dessas empresas. “Primei- chael Cimino. Como o diretor já havia conquis-
FOTOS HULTON ARCHIVE, BETTMANN, MONDADORI, JOHN KOBAL FOUNDATION, AMERICAN STOCK, ULLSTEIN BILD, STRINGER,

ro porque elas geravam muitos empregos. Se- tado o Oscar com Franco Atirador (1978), a Uni-
gundo porque os filmes vendiam os Estados ted confiou em seu trabalho e apostou uma
Unidos pelo American Way of Life. Por isso, o grande quantia na produção do filme. O fiasco
presidente passou a emprestar dinheiro a todos fez com que a MGM comprasse o grupo. Era o
eles”, afirma Máximo. fim de um sonho.

O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO (1915)


O longa de David W. Griffith conta a história com que o diretor lançasse no ano seguinte
de duas famílias durante a Guerra de um filme em resposta às críticas.
Secessão (1861-1865), uma nortista Intolerância seria um dos primeiros
(abolicionista) e outra sulista (proprietária fracassos de bilheteria dos EUA.
de escravos). Com uma linguagem dinâmica, Seu jogo de câmera criava um contato muito
radicalmente nova, Griffith apresenta um peculiar com os atores. Pela primeira vez,
roteiro que valoriza a supremacia branca e o plano fechado no rosto das personagens
considera a Ku Klux Klan como “salvadora” estabelecia uma proximidade maior com
do Sul durante o embate. O conteúdo a trama. Griffith foi responsável por trazer
escandalosamente racista (que Griffith até notoriedade à classe de artistas de cinema,
o fim afirmou ter sido mal compreendido) fez transformando nomes em superestrelas.

30 AVENTURAS NA HISTÓRIA
D. W. Griffith revisando o
primeiro contrato de Mary
Pickford com a United Artists;
Griffith gravando o programa
de rádio D. W. Griffith's
Hollywood; com Chaplin, no
dia em que a United Artists
foi criada; dirigindo a atriz
Carol Dempster em uma cena
de Vontade Suprema (1925);
durante gravações de
Corações do Mundo (1918) e
Inocente Pecadora (1920)
GRIFFITH
Assírios
CIVILIZAÇÕES

APESAR DA SUPERIORIDADE MILITAR, O sobre o reino do Elam em 650 a.C. e o come-


IMPÉRIO ASSÍRIO, O PRIMEIRO DA HISTÓRIA, ço do fim da Assíria. Com o conflito contra
os seus mais antigos vizinhos, os assírios
FOI DERROTADO POR BABILÔNICOS E TRIBOS
incendiaram a velha rixa com os aliados dos
IRANIANAS POR REINALDO JOSÉ LOPES elamitas, os babilônicos, e ainda deixaram
suas fronteiras expostas aos bárbaros que

A
casa era a cara do dono. Escavadas nas habitavam o atual Irã. A região virou um
paredes de pedra, cenas de tirar o fô- barril de pólvora. E o início da guerra total
lego: armadas com couraças, elmos, foi uma questão de tempo. O embate com a
escudos côncavos, lanças e arcos, as tropas Babilônia, apoiada pelas tribos iranianas,
reais encurralam os inimigos e os empurram pôs um ponto-final na história do primeiro
para um rio. Homens e cavalos, crivados de grande império da humanidade.
flechas, afogam-se na correnteza. Em triun- Sem dúvida, a habilidade militar foi tan-
fo, um soldado passeia pelo campo de bata- to a força quanto a fraqueza da Assíria. Des-
lha exibindo a cabeça de um rei adversário. de o ano 1200 a.C., o reino de Assurbanipal
Sim, tais cenas de terror faziam parte da brigou pelo domínio da Mesopotâmia, hoje
decoração do palácio de Assurbanipal (668- Iraque, com a vizinha Babilônia. Entre os
631 a.C.), o temido e cruel soberano da As- assírios, a guerra era um dos principais de-
síria. O emblemático painel, no entanto, tem veres do soberano. “Havia uma tradição
dois significados históricos. Representa, ao anual de campanhas militares, programadas
mesmo tempo, a vitória de Assurbanipal para afirmar a autoridade assíria e prevenir

32 AVENTURAS NA HISTÓRIA
A QUEDA DOS
FUNDADORES

ataques nas fronteiras. Os reis, ao subirem Agora, no entanto, o exército funcionava o A dimensão
ao trono, faziam um juramento de estender ano todo e tinha se profissionalizado.”
os domínios do deus Assur, que dava nome A dimensão do poder de fogo das tropas do poder de
à capital”, escreveu o arqueólogo inglês John assírias ganha realidade nas esculturas e fogo das tropas
Curtis, curador de antiguidades da Mesopo-
tâmia e do Irã no Museu Britânico, em Lon-
baixos-relevos da época. Usando capacete
cônico de ferro e colete coberto de escamas
assírias ganha
dres. Segundo Curtis, ao longo do século metálicas, os arqueiros do rei de Assur joga- realidade nas
9 a.C., a autoridade assíria começou a se vam uma chuva de flechas sobre as cidades esculturas e
estender além das fronteiras próximas aos inimigas, enquanto eram protegidos por
vales dos rios Tigre e Eufrates e começou a outros soldados, carregando grandes escudos
baixos-relevos
alcançar as regiões montanhosas próximas de madeira. Parte dos guerreiros especiali- da época
ao Irã, e partes da Síria, da Palestina e da zava-se em cortar os suprimentos de água do
Turquia. Por trás do sucesso das conquistas inimigo ou, com a ajuda de armaduras pe-
territoriais, aconteceu a organização do exér- sadas e a cobertura dos arqueiros, abria bu-
cito. “É um tema que tem gerado debates, racos nas muralhas de proteção dos reinos
mas uma coisa certa é que eles desenvolve- inimigos. Os assírios contavam até com
ram um exército regular”, diz o historiador “tanques” de guerra, veículos cobertos com
John Brinkman, da Universidade de Chica- pesado couro e equipados com aríete que
go, nos Estados Unidos. “Antes os campone- arrebentava os portões das cidades atacadas.
ses tinham de ser recrutados periodicamen- Em tempos de alta tecnologia de guerra, não
te para lutar e, depois, desmobilizados. é fácil imaginar o poder de fogo desses

AVENTURAS NA HISTÓRIA 33
CIVILIZAÇÕES

rudimentares equipamentos. Mas era essa


parafernália que fazia a fama dos reis da
Assíria, temidos por todo o Oriente Médio.

A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO
Temidos fora de casa, ameaçados interna-
mente. A partir de 827 a.C., os nobres se
rebelaram, seguindo-se um longo período
em que os soberanos perderam a autoridade.
A situação só mudou com a chegada de
Tiglat-Falasar III ao trono, em 741 a.C. Ele
pode ser considerado o pai do Império As-
sírio: esmagou os revoltosos e não se con-
tentou em só arrancar tributos dos vencidos,
mas impôs governadores nomeados e ane-
xou as terras conquistadas aos seus domí-
nios, fazendo nascer, assim, a noção de im-
pério como conhecemos hoje. Os reis que
vieram depois dele, Sargão II, Senaqueribe
e Assaradon, deram continuidade à política
expansionista. No caminho dos vorazes reis
assírios, no entanto, estavam as tribos cal-
deias, no sul da Mesopotâmia. Na tentativa
de arrebanhar o poder na Babilônia, eles se
aliaram aos elamitas para frear a ambição
assíria. Originalmente os caldeus eram nô-
mades do deserto da Arábia. Séculos antes,
fixaram-se nas cidades, tornando-se pode-
rosos comerciantes.
A briga se estendeu durante todo o sécu-
lo 7 a.C. Caldeus, apoiados pelos elamitas,
chegaram a assassinar o herdeiro do rei Se-
naqueribe, que tinha sido nomeado gover-
nador da Babilônia. Em represália, o monar-
ca mandou destruir a cidade. Durante o
reinado de Assurbanipal, os elamitas ajuda-
ram novamente os babilônicos, liderados
pelos caldeus, a se rebelarem. Mas acabaram
ILUSTRAÇÕES DORLING KINDERSLEY / GETTY IMAGES

aniquilados pelos assírios. A vitória, no en-


tanto, assinou a sentença de morte do gran-
de império. “Parece haver um consenso entre
os estudiosos de que, quando os assírios
destruíram o Elam, removeram um estado-
tampão importante que os protegia dos ira-
nianos”, diz Brinkman. Na época, os habi-
tantes da região onde hoje está fincado o Irã
viviam sob o domínio dos ferozes medos,

34 AVENTURAS NA HISTÓRIA
A VIDA NO A área do Império
CENTRO Neoassírio corresponde
DO MUNDO ao Crescente Fértil,
berço da civilização no
Harrã Ocidente, com as capitais
Dur-Sharrukin situadas entre os rios
Os assírios destruíram
o Reino de Israel, exilando Nínive Tigre e Eufrates
sua população, e fizeram Kalhu
de vassalos o Egito, Judá
e as grandes cidades- Assur
estado fenícias

Biblos
Sidon
Tiro

Babilônia

Jerusalém

Mênfis

Ao sul, as fronteiras do O Império Neoassírio


Império eram indefinidas. teve cinco capitais:
O Reino de Quedar, uma Assur (911 a.C.), Kalhu
confederação de tribos (879 a.C.) Dur-Sharrukin
árabes, que pagavam (706 a.C.), Nínive (705
tributo aos assírios, a.C.) e Harã (612 a.C.)
era de natureza nômade

povo de origem persa que logo se tornou o A decadência do Império Neoassírio é um No caminho
inimigo número 1 da Assíria, assumindo o somatório de acontecimentos: guerra civil,
papel antes representado pelos elamitas. campanhas militares internas para manter dos vorazes
Com a aliança entre caldeus e medos, a guer- os domínios e, principalmente, a guerra con- reis assírios,
ra pegou fogo e atravessou o século. “Uma
das coisas importantes é que os assírios pa-
tra os medos, os líderes das tribos iranianas.
Acostumados à vida nômade, eles tinham a
no entanto,
recem ter se exaurido numa longa série de vantagem de uma liderança fortemente cen- estavam as
guerras, principalmente o conflito protago- tralizada e de um exército simples, mas efi- tribos caldeias,
nizado pelo rei Assurbanipal contra os ela- caz, composto de lanceiros e arqueiros.
mitas”, conta o historiador americano. Em Quando a cidade de Assur foi destruída, o no sul da
612 a.C., depois da captura da cidade de rei dos medos, Ciaxares, jurou amizade e Mesopotâmia
Assur, medos e caldeus atacaram juntos Ní- aliança ao chefe caldeu sobre as ruínas da
nive, a capital do império, e a arrasaram em cidade. Tal acordo dividiria o mundo antigo
três grandes batalhas. O profeta judeu Naum, entre os dois povos. O rei Nabopolassar e seu
cujo povo também tinha sofrido a pressão filho, Nabucodonosor, ficaram com o sudes-
assíria, comemorou a derrota com versos te: Mesopotâmia, Síria, Palestina. Já os me-
presentes na Bíblia: “Todos os que ouvem tua dos se expandiram por todo o Irã, pelas
história [a de Nínive] batem palmas ao ou- montanhas do Cáucaso e por parte da atual
vi-la; pois sobre quem tua crueldade não Turquia. Mais tarde os persas, vassalos dos
passou continuamente?”. Os herdeiros do medos, herdaram o império e o expandiram
império, agora, eram os babilônicos. sob seu comando.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 35
CAPA

IRÃ
HÁ 40 ANOS, A
REVOLUÇÃO IRANIANA
MUDAVA A FACE DO
ORIENTE MÉDIO E
PLANTAVA AS SEMENTES
PARA O MUNDO
GEOPOLÍTICO DO
SÉCULO 21 POR CARLO CAUTI

1979-2019
36 AVENTURAS NA HISTÓRIA
O
Irã é uma ilha de estabilidade em
uma das regiões mais instáveis do
mundo, graças à liderança do xá”, foi
com essa frase que o então presiden-
te dos Estados Unidos, Jimmy Carter, começou
seu discurso em Teerã no Réveillon de 1978.
Durante uma visita oficial incomum para um
presidente recém-empossado, que surpreendeu
muitos em Washington. E que mostra o quanto,
naquele momento, o Irã era um aliado estraté-
gico dos EUA. Um país considerado sólido e
fundamental para os interesses geopolíticos de
uma superpotência em plena Guerra Fria.
E, no entanto, no final do 1979 que começa-
va, tudo estaria acabado. O Irã estava em plena
revolução, o xá tinha fugido e o país estava pres-
tes a se tornar uma República Islâmica. Um
regime impopular no exterior, impopular entre
várias camadas da sociedade iraniana, que com-
pleta 40 anos de história. Que mudou radical-
mente o Irã, sua imagem e seu papel no Orien-
te Médio e no mundo, e ao inspirar a ideologia
revolucionária islamista (que não é o mesmo
que islâmica), propondo algo que, veremos, era
radicalmente novo, foi central em conduzir à
situação do pós-Guerra Fria.
O que estava em jogo era bem mais que a
ideologia de um grupo ou, muito menos, um
país inteiro de fanáticos. “O que ocorreu em
1978-79 foi uma revolução, não necessariamen-
te uma revolução islâmica. As pessoas queriam
mais liberdade, mais independência, menos
corrupção. Queriam a república contra a mo-
narquia. A questão islâmica foi imposta somen-
te em seguida”, explicou para AH Abbas Milani,
diretor do programa Estudos Iranianos na Uni-
versidade de Stanford. Milani, exilado político,
foi preso antes, durante o governo do xá e, em
seguida, durante a República Islâmica, por ter
se oposto contra os abusos do regime.

VELHA PÉRSIA E NOVO IRÃ


Para entender as verdadeiras causas da Revolução
Iraniana é necessário olhar para 50 anos antes. Em
1925, com a tomada do poder pelo primeiro mo-
narca da dinastia Pahlavi, Reza Shah, o Irã come-
çou um rápido processo de modernização.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 37
CAPA

E aqui entra um mito no qual alguns dos pró- importantes estava o direito de voto para as
prios iranianos exilados, que preferem ser cha- mulheres, a educação de massa especialmente
mados de persas, acreditam: o sentido de mudar nas áreas rurais e a reforma agrária, que expro-
o nome de Pérsia para Irã não tem qualquer coi- priou e redistribuiu para os camponeses as gran-
sa a ver com religião, e não vem de 1979. Muito des propriedades fundiárias.
pelo contrário, era parte do projeto de ocidenta- Entretanto, essas mudanças foram impostas
lização nacionalista: Pérsia era um exônimo que do alto pelo xá, um homem formado na Europa,
vinha desde a Antiguidade. O nome Irã não tem com uma personalidade culta, cosmopolita e
qualquer relação com religião: é como os persas bastante secular. Bem distante da população,
chamavam seu país desde basicamente sempre. que em grande maioria ainda era rural, pouco
Deriva de aryan, os arianos – os reais, históricos, instruída e tradicionalista. O povo iraniano não
um grupo falante de língua indo-europeia que compreendia as reformas, e muitas vezes opôs
migrou do Cáucaso para o sul da Ásia, sem qual- resistência. Tanto que naquela época um impor-
quer relação com o que os nazistas decidiram tante intelectual iraniano, Ahmad Fardid, criou
chamar assim por sua pseudociência. o termo gharbzadegi, a “intoxicação do Ociden-
O farsi – persa moderno, escrito num alfabe- te”, para descrever o que a sociedade iraniana
to árabe modificado – se tornou a língua oficial, estava atravessando. Mas o xá, em vez de tentar
foram criados tribunais civis e unificados os pe- o caminho da persuasão, percebeu essa dissi-
sos e as medidas, pelo sistema métrico, estrutu- dência como perigosa e decidiu impor sua von-
radas as Forças Armadas, criadas universidades, tade com a força. A Savak, a polícia secreta,
27 de setembro
proibido o véu para as mulheres e garantidos seus instaurou uma repressão brutal, com prisões de 1951: o primeiro-
ministro Mossadegh
direitos de estudar e trabalhar, entre outras coi- sumárias, abusos, torturas e execuções. fala para uma
sas. Uma modernização imposta com punho de multidão durante a
disputa do petróleo
ferro pelo xá, que queria ocidentalizar o Irã nos DEMOCRACIA PERDIDA
moldes do que tinha sido feito na vizinha Turquia “O xá era um modernizador autoritário. Ele
por Mustafa Kemal Atatürk. Um processo que amava seu país, e queria deixá-lo mais forte e
prosseguiu de forma ainda mais acelerada com moderno. Mas atropelou tradições milenares.
seu filho, Mohammad Reza Pahlavi, que assumiu Tentou impor essas reformas com a força, e
um longo mandato começado em 1941. O mo- fracassou”, explica para a AH Amir Tadjik
narca tentou reformar o país em profundidade, (nome de fantasia), exilado político iraniano.
com a chamada “Revolução Branca”. Um amplo Um empresário forçado a deixar seu país depois
conjunto de reformas econômicas e sociais cujo da Revolução de 1979 e que hoje vive na Europa.
objetivo era transformar o Irã em uma potência Além do mais, as reformas da Revolução Bran-
econômica e industrial. ca irritaram profundamente os clérigos xiitas – o
O novo xá introduziu conceitos econômicos islã xiita é a religião de até 95% dos iranianos,
inovadores e lançou projetos industriais finan- com os 5% restantes preenchidos pelos sunitas,
ciados com as receitas do petróleo, do qual o Irã exceto por 0,6% de não islâmicos. Aqueles entre
é um grande produtor. Entre as reformas mais eles que consideravam as mulheres subalternas

1925 1935 1941 1951


A QUEDA DA PÉRSIA 31 de outubroi Reza 21 de marçoi No Ano- 16 de setembroi 28 de abrili
Um passo a passo de como um Shah Pahlavi depõe Novo persa, o xá pede Reza Shah abdica Mohammed Mossadegh
dos países mais ocidentalizados Ahmad Shah Qajar e se ao resto do mundo que em favor do filho assume como primeiro-
do mundo islâmico deu uma torna o primeiro xá da passe a usar o nome Mohammad Reza ministro do Irã,
dinastia Pahlavi. nativo Irã no lugar Pahlavi, que se torna em oposição ao xá.
guinada definitiva rumo a se de Pérsia. o segundo (e último)
tornar uma força teocrática da dinastia.

38 AVENTURAS NA HISTÓRIA
(em sua interpretação da Sharia) tinham o mo-
A reforma nopólio do ensino nos vilarejos agrícolas e eram
os principais proprietários de latifúndios do país.
agrária tirou dos A reforma agrária tirou dos clérigos enormes
porções de terras. Os religiosos, horrorizados
clérigos enormes com a secularização da sociedade, e percebendo-

porções de terras se atacados em suas posses, reagiram.


O xá tinha um lado progressista, mas poli-
ticamente se alinhou ao Ocidente contra a União
Soviética. Para tentar financiar seus planos,
deixou a indústria petrolífera ser controlada por
britânicos e se alinhou politicamente aos ame-
ricanos. Algo inaceitável, agora, para os irania-
nos seculares, nacionalistas e/ou esquerdistas.
O xá Reza Pahlavi em O Irã era ou tentava ser uma democracia. E
posição pensativa
e uniforme militar, alguém foi eleito para atender aos descontentes.
dezembro de 1954
O primeiro-ministro nacionalista Mohammed
Mossadegh assumiu em 28 de abril de 1951. O xá
então se conformou. Mossadegh estatizou a in-
dústria petrolífera e expulsou os estrangeiros –
causando sanções e uma crise de produção que
levou o país à beira da paralisia. Ao mesmo tem-
po, foi concentrando poderes, tornando-se um
líder autoritário. O próprio xá acabaria exilado,
em julho de 1953. A reação foi fulminante: em 19
de agosto do mesmo ano, um golpe de Estado
organizado pelas agências do Reino Unido e EUA
depôs Mossadegh e restaurou o xá no trono. A
democracia iraniana estava enterrada. A partir
daquele momento, Mohammad Reza Pahlavi, que
pela Constituição deveria ter poderes limitados,
se tornou cada vez mais um monarca absoluto.
Mas a insatisfação continuou. No começo, os
protestos se limitaram ao Parlamento e com
alertas ao xá sobre as possíveis consequências
de suas políticas. O grande aiatolá Borujerdi,
um importante líder religioso, escreveu uma
carta ao soberano afirmando que o governo

1953 1963
13 de agostoi No 16 de agostoi 19 de agostoi Tropas 22 de agostoi O xá 26 de janeiroi 6 de junhoi De sua
auge da crise política, Em meio ao estado leais ao xá cercam a volta a Teerã, dando fim Revolução Branca: o xá mesquita em Qom,
com Mossadegh de guerra civil que se residência oficial do à crise política, mas convoca um referendo Rurollah Khomeini
conseguindo poderes segue, o xá se refugia primeiro-ministro, que criando ressentimentos reformista, incluindo o faz um virulento
ditatoriais, o xá cede à em Roma. foge, mas é preso no de longo prazo. ponto mais controverso discurso contra o xá,
pressão da CIA e depõe mesmo dia. entre clérigos, o voto comparando-o a figuras
o primeiro-ministro. feminino. ímpias da História.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 39
CAPA

não deveria tocar nas terras dos religiosos, pois


“qualquer medida que limite o tamanho das
terras é contrário à lei islâmica”. Para acabar
também com essa oposição dialética, Reza
Pahlavi – influenciado também por sua esposa,
a imperatriz Farah Diba, muito empenhada na
causa da emancipação feminina – decidiu con-
vocar um referendo em janeiro de 1963, no qual
a esmagadora maioria aprovou as reformas. A
partir desse momento, o confronto com os clé-
rigos se tornou aberto.

CONTRA O XÁ
Religiosos começaram a alimentar revoltas e
tumultos. Uma série de manifestações cada vez
mais violentas em todo o país ameaçam o poder
e os projetos do xá. Um dos líderes desses pro-
testos foi um clérigo chamado Ruhollah Kho-
meini. Ele tinha pedido o boicote do referendo
e a partir da cidade sagrada de Qom começou
a criticar o soberano em sermões sempre mais
duros. “Khomeini nem era um clérigo de tão
alto nível. Tinha clérigos muito mais importan-
tes do que ele naquele momento, como o gran-
de aiatolá Shariatmadari. Ele apenas foi um dos
mais comunicativos. E, por incrível que pareça,
Iraniano rural, que
no começo ele nem queria uma mudança de migrou para Teerã e
regime político. Apenas se limitava a exortar o se tornou morador da
favela ao fundo, mostra
xá a cortar as relações com Israel e com os EUA, seu apoio a Khomeini,
dos quais era aliado, e a seguir a Sharia para se no final de 1979

manter no trono”, explicou Milani.


Em 3 de junho de 1963, em um discurso em
Qom, Khomeini chegou a chamar o xá de “ho-
mem arruinado e miserável”. Foi demais. Dois
dias depois, ele foi preso, causando uma série
de revoltas que terminou em 400 mortes. Com Naqueles anos, era executado
sua sentença comutada em prisão domiciliar,
em agosto, no ano seguinte, em 26 de outubro, um iraniano por dia

1964 1965 1967 1971 1973


4 novembroi 21 de janeiroi 10 de abril i Tentativa 26 de novembroi 12-16 de outubroi 17 de outubroi
Khomeini é posto num O primeiro-ministro de assassinato contra o Em uma cerimônia Em outra cerimônia A Organização dos
avião para a Turquia, Hassan Ali Mansur é xá. Nunca esclarecida, nababesca, Mohammad imponente, o xá celebra Países Exportadores
rumo ao exílio que morto a tiros em Teerã, a teoria mais sólida Reza Pahlavi é coroado os 2500 anos da de Petróleo decreta
terminaria em Paris. por um estudante de é que era uma ação formalmente após ter fundação do Império embargo aos aliados
19 anos. da KGB. o primeiro filho homem, Persa. de Israel. Começa
como previa a tradição. a Crise do Petróleo.

40 AVENTURAS NA HISTÓRIA
O aiatolá Khomeini apareceu novamente criticando o governo por adiante seus planos. As Forças Armadas foram
num jardim em
Pontchartrain, nos suas relações com os EUA. aparelhadas com armas norte-americanas, e foi
arredores de Paris, A essa altura, o clérigo era forte demais para lançado um projeto ambiciosíssimo de obras
no final de seu exílio
ser eliminado sem incendiar o país. Decidiu-se públicas faraônicas, como dezenas de centrais
então pelo exílio. Assim, em 4 de novembro de nucleares. A grandiosa cerimônia de 1967, em
1964, Khomeini foi capturado por agentes da que o xá se proclamou imperador, e aquela ain-
Savak e enfiado num voo para a Turquia. Mu- da mais nababesca de 1971 em Persépolis, em
dou-se no ano seguinte para o Iraque e, em 1978, que foram celebrados os 2500 anos da fundação
expulso por Saddam Hussein, para a França. do Império Persa, representaram toda a mega-
lomania de Reza Pahlavi. O custo de apenas
SANGUE E CHAMPANHE essas duas festas superou US$ 2 bilhões.
No Irã, o resto dos anos 60 continuou com re- “Também por causa desses gastos desenfre-
formas e protestos. Começou uma espiral de ados a inflação foi às estrelas. E todo esse di-
contestação política e de repressão brutal. Em nheiro em circulação gerou uma corrupção
21 de janeiro de 1965, o primeiro-ministro Has- endêmica, que não foi enfrentada de forma efi-
san Ali Mansur foi assassinado por um jovem caz pelo governo do xá”, explicou para a AH o
de 17 anos, membro do grupo Fada’iyan-e Islam professor Ali Ansari, iraniano docente da Uni-
(“Discípulos do Islã”), que apoiava o clérigo versidade de St. Andrews (Reino Unido) e autor
exilado. Em 10 de abril de 1965, uma tentativa de muitos livros sobre o Irã, como Iran, Islam
de assassinato foi feita contra o próprio xá, ma- & Democracy (sem tradução).
tando dois policiais no lugar. E isso encerraria o “milagre” do xá. Com aju-
O soberano então nomeou o general Nema- da desses gastos desenfreados, a inflação foi às
tollah Nassiri como chefe da Savak. Um militar estrelas. A distância entre os ricos e os pobres
truculento e linha dura, que tentou esmagar os aumentou e as reformas mostraram todos os seus
protestos de forma fulminante. Segundo as es- limites. As terras distribuídas aos camponeses na
timativas de Anistia Internacional, naqueles reforma agrária se demonstraram pequenas de-
anos era executado um iraniano por dia. mais. Muitos deles acabaram se endividando e
Paradoxalmente, vários iranianos relembram quebrando, sendo obrigados a se transferir para
o período com saudade. “É preciso entender que as cidades, que se tornaram cercadas por favelas.
naquele momento as coisas estavam indo bem Surgiu um lumpesinato urbano, classe miserável
sob muitos aspectos. A economia iraniana cres- que os clérigos xiitas logo começaram a mobili-
cia intensamente. O país era atravessado por zar. Além disso, os influentes e tradicionais co-
uma forte influência ocidental e efervescência merciantes dos bazares, os bazari, começaram a
cultural. Os cinemas e teatros estavam lotados, se revoltar contra a elevada inflação e a corrupção
as noites de Teerã pareciam infinitas. Tínhamos dos funcionários públicos.
uma relativa felicidade, otimismo e muita espe- “A causa fundamental da Revolução foi a
rança para o futuro”, diz Tadjik. Graças a esse falência das reformas. Ou melhor, a existência
desenvolvimento acelerado, o xá podia levar de reformas econômicas e a ausência de re-

1978 1979
19 de agostoi Com 8 de setembroi 16 de janeiroi 1º de fevereiroi 4 de novembroi 2-3 dezembroi
o incêndio do cinema Massacre da Praça Com a situação Khomeini volta do Começa a invasão da A República Islâmica é
Rex, em Abadan, Jaleh ou Sexta-Feira definitivamente fora exílio e se torna o Guia embaixada americana formalmente instaurada
começa uma série de Negra: 88 mortos de controle, o xá foge Supremo da Revolução em Teerã, por um após um referendo
protestos violentos. pela repressão a do Irã para o exílio. Iraniana. grupo de estudantes entre a população
um protesto. teocráticos radicais, do país.
em favor do aiatolá.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 41
CAPA

formas políticas. E, quando ocorre esse desali- reagiu impondo a lei marcial. Mas os manifes-
nhamento, deflagra quase sempre uma revolu- tantes responderam convocando um novo pro-
ção”, explica Ansari. testo no mesmo local para o dia seguinte. Só
que no dia 8 de setembro as forças de seguran-
A HORA DA VINGANÇA ça abriram fogo. Foi um massacre com cente-
A crise petrolífera de 1973 acabou com o fluxo nas de mortos. A Revolução tinha seus primei-
de dólares que lubrificava a economia iraniana, ros mártires.
e começaram demissões em massa, a parada das “A partir desse momento as oposições come-
grandes obras públicas e o aumento da pobreza. çaram a provocar confrontos cada vez mais
A tensão foi montando, até que uma faísca pro- violentos, tentando deliberadamente gerar víti-
vocou a explosão. E essa faísca foi o incêndio do mas. Isso porque a única exceção ao toque de
cinema Rex, em Abadan, no sul do país, em recolher era para celebrar funerais, que se tor-
agosto de 1978. Uma carnificina com 477 mor- naram manifestações contra o regime. Inician-
tes. Militantes islâmicos trancaram todas as do um ciclo de violência sem fim”, explica para
saídas do cinema e colocaram fogo na sala. a AH o professor Nicola Pedde, diretor do Ins-
O objetivo era purificar o islã de todas as titute for Global Studies de Roma e autor de Iran
manifestações oriundas do Ocidente, como o 1979: La Rivoluzione Islamica.
cinema (que não por acaso viria a ser proibido Segundo Pedde, é importante entender que
durante a República Islâmica). Mas eles não a revolução contra o xá foi, em seu começo e
assumiram a autoria: em uma campanha de grande parte, uma revolução de caráter marxis-
propaganda, a responsabilidade foi atribuída ao ta. Levada adiante principalmente pelos comu-
governo do xá, que teria provado assim mais nistas do Tudeh, o mais forte partido comunis-
uma vez sua “índole sanguinária”. ta do Oriente Médio. “Eram os militantes do
“Esse foi um caso de fake news manipulado Tudeh que mais iam para as ruas, e que também Mulheres nas
ruas de Teerã nos
pelas forças de oposição. Assim como outras mais morriam nos confrontos. Junto com eles protestos de 1º
falsidades que foram colocadas em circulação, havia os jovens nacionalistas, os libertários, os de Maio de 1979

como a suposta vontade do soberano de restau- estudantes universitários etc. Mas o grosso das
rar o zoroastrismo. Tudo na base da mudança forças era de matriz marxista.”
do calendário, de islâmico para imperial. Na O banho de sangue do final de 1978 começou
verdade Mohammad Reza era um muçulmano a preocupar o governo e também o Ocidente, que
xiita extremamente religioso, beirando a supers- fez pressão sobre o xá. Em outubro, Mohammad
tição. Ele apenas era obcecado por Ciro, o Gran- Reza fez um discurso na televisão tentando recu-
de, fascinado pelo passado glorioso iraniano, e perar o controle. Foi um desastre. Ele pediu que
se inspirava nas antigas tradições e na mitologia o povo deixasse completar a Revolução Branca e
do país”, diz Ansari. disse que a partir daquele momento respeitaria a
As manifestações então não pararam mais. Constituição. Admitindo de forma tácita que até
No dia 7 de setembro cerca de 5 mil pessoas se então a tinha violado. Mais um enorme erro po-
reuniram na praça Jaleh, em Teerã. O governo lítico que gerou ainda mais violência.

1980 1981 1989


7 de abrili O 27 de julhoi O xá 19 de janeiroi Nos 20 de janeiroi 14 de fevereiroi 3 de junhoi Morre
presidente americano deposto morre de acordos de Argel, EUA Os últimos reféns O aiatolá Khomeini o aiatolá Khomeini,
Jimmy Carter encerra câncer no Cairo, reconhecem soberania são liberados da convoca todos os aos 86 anos. Seu
relações diplomáticas Egito, aos 60 anos. do Irã e prometem embaixada em Teerã. islâmicos do mundo velório é atendido
com o Irã. não intervir em seus a executar Salman por uma multidão e
assuntos internos. Rushdie, autor de dez pessoas acabam
Os Versos Satânicos. mortas esmagadas.

42 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Reza fez um discurso na
A ENCARNAÇÃO DA REVOLTA
televisão tentando recuperar A figura de Khomeini começou então a se tor-

o controle. Foi um desastre nar cada vez mais central, conquistando um


consenso unânime no Irã. “Naquele momento
não havia um líder da Revolução. E, graças ao
trabalho feito ao longo dos anos, Khomeini
surgiu quase espontaneamente como lideran-
ça natural”, explica Milani.
Durante seu exílio, o governo iraniano lite-
ralmente ignorou Khomeini. Tanto que uma vez
o então presidente da França, Valéry Giscard
d’Estaing ligou para o xá e lhe perguntou o que
fazer com esse clérigo que se abrigava em Ne-
auphle-le-Château. Mohammad Reza lhe res-
pondeu que a coisa não lhe interessava.
“O que esse velho e piolhento mulá pode nos
Protestos em Teerã
três dias após a fazer de mal em Paris?”, teria dito o soberano.
fuga do xá, janeiro Mas, se o governo iraniano se esqueceu de
de 1979. Ao fundo,
a famosa Torre Khomeini, o clérigo não se esqueceu do Irã. E
Azadi, monumento
ultramodernista ao longo dos anos ele levou adiante sua batalha
datado de 1971 fazendo o que ele sabia fazer melhor: falando.
Ele gravou uma série de áudios em fitas casse-
te que eram contrabandeadas no Irã pelos seus
seguidores, transmitidas por alto-falantes ins-
talados nas lajes das casas e ouvidas nas mes-
quitas do país inteiro. Sermões virulentos que
prezavam a revolta. Mesmo a 5 mil quilômetros
de distância, aquele “clérigo velho e piolhento”
de 78 anos conseguiu conquistar corações e
mentes. Khomeini se tornou uma figura quase
mítica. Não sujou as mãos em brigas políticas
e acabou se tornando um personagem supra-
partidário. A única alternativa capaz de con-
gregar as oposições ao regime: a esquerda, a
direita liberal, os intelectuais, os estudantes e,
naturalmente, os religiosos conservadores.
“Khomeini também investiu muito tempo
cultivando os jovens. Ele organizou uma série
de escolas religiosas em todo o país nas quais,
ao longo dos anos, se formaram centenas de
iranianos, e em que foi instilado o culto à per-
sonalidade do aiatolá. Mais tarde eles se torna-
riam revolucionários, clérigos e Pásdárán”,
afirma Ansari.
Os revolucionários queriam usar Khomeini:
acreditavam que o clérigo presidiria simbolica-
mente a fase transitória do país, da monar-

AVENTURAS NA HISTÓRIA 43
CAPA

quia à república, e depois voltaria para suas


Guarda Revolucionária em Khorramshahr, fronteira
mesquitas de Qom. com o Iraque, após conflitos entre sunitas e xiitas
Logo descobririam o quão longe da marca es-
tavam. Khomeini faria um hábil malabarismo
entre as ideias e os slogans das diferentes – e in-
compatíveis – facções da Revolução. Um populis-
ta nato que gradualmente transforma a Revolução
Iraniana em uma Revolução Islâmica e transfor-
maria a nova República Iraniana em uma Repú-
blica Islâmica – o primeiro caso na História. Uma
revolução que começou decisivamente secular,
liderada por estudantes e políticos de esquerda,
transformada em um movimento religioso.

DUAS QUEDAS
Em 1978 o Irã estava tomado por tumultos,
tiroteios, ataques contra casernas e desordem.
Em janeiro de 1979, quando a violência come-
çou a tomar um rumo insustentável, o xá de-
cidiu deixar o país. Ele temia acabar como Protesto em frente à
embaixada dos EUA
Nicolau II da Rússia, Faysal do Iraque ou Ab- durante a crise dos reféns,
dallah da Jordânia. “Mas também ele era mui- em apoio à invasão por
estudantes islamistas
to fatalista, e queria evitar um banho de san-
gue. Por isso preferiu ir embora. Uma posição
muito diferente, por exemplo, daquela de dita-
dores como Bashar al-Assad na Síria. E de-
UM CLÉRIGO POPULISTA
monstra como o xá, mesmo autoritário, tinha Ruhollah Khomeini, o Guia Milani, Khomeini não era
uma percepção da responsabilidade com seu Supremo da Revolução considerado um teólogo
próprio povo”, declarou Ansari. Islâmica, foi o líder religioso refinado. “Ele era muito
Mesmo com a fuga do xá, Khomeini esperou e político que inspirou a político, muito carismático,
revolta contra o xá. Depois sabia falar bem. Tinha
mais de um mês para regressar ao Irã. Isso de-
de 1979 e até sua morte uma forte influência sobre
monstra como ele não tinha o pulso das mani-
ele ficou conhecido como os jovens. E foi assim que
festações nem controlava os rumos da Revolu- grande aiatolá, nível mais ele fez a revolução. Mas,
ção. E ta mbém que tinha medo de ser elevado entre os religiosos do ponto de vista
eventualmente preso ou executado pelas forças xiitas. Mas ele não era doutrinário, havia muitos
leais ao xá. Somente quando ficou claro que exatamente um papa. aiatolás em nível superior
Mohammad Reza não teria retomado seu trono, “Antes de tudo é preciso ao dele”, explica Milani.
e que o velho regime estava totalmente derro- lembrar que no islã não Alguns deles acabaram
tado, o velho aiatolá voltou para seu país. existe uma hierarquia se opondo à tomada de
Quando Khomeini voltou, ninguém pen- eclesiástica como na Igreja poder de Khomeini e à
sava que ele iria instaurar uma República Is- Católica”, explica o instauração da República
lâmica. Seus seguidores tinham preparado professor Milani. “O status Islâmica, e diversos foram
de um religioso é mais uma presos ou até mortos nos
uma Constituição baseada nas da França e
questão de reconhecimento primeiros meses depois
Bélgica. O Irã tomava o rumo da democracia
entre os pares, não de da revolução. É o caso,
representativa secular. carreira ou de nomeações”. por exemplo, o aiatolá
Mas a tempestade revolucionária ainda esta- Além disso, segundo Shariat-Madari.
va para alcançar seu clímax. No dia 4 de novem-

44 AVENTURAS NA HISTÓRIA
bro de 1979 uma manifestação de estudantes regime, presos e executados após processos
islâmicos em frente à embaixada dos Estados sumários. As sentenças de morte eram muitas
Unidos em Teerã acabou com a invasão da sede vezes cumpridas na própria sala do tribunal. A
diplomática. Foram feitos reféns 63 cidadãos dos tumba de Reza Xá foi destruída pelos guardiões
EUA, forçados a desfilar vendados e amarrados da Revolução. E tudo isso apenas no primeiro
em frente às câmeras. Começou uma crise in- ano. Khalkhali sozinho teria julgado e ordena-
ternacional que duraria 444 dias. Um episódio do a execução de pelo menos 8 mil pessoas. Uma
particularmente humilhante para Washington, fúria que acabou obrigando o próprio Khomei-
que tenta libertar os reféns com uma operação ni a removê-lo do cargo.
militar secreta. A operação Eagle Claw acabou “Esse foi um período extremamente sangren-
em um fracasso retumbante, com as forças es- to. O que vimos durante a época do xá com a
peciais aniquiladas por uma tempestade de Savak foi uma pálida antecipação do enorme
areia, oito marines mortos, seis helicópteros e massacre que o Irã enfrentou nos primeiros
um avião militar destruídos. meses depois da Revolução. E do qual ainda não
O ressentimento contra o golpe de 1953, se recuperou totalmente. Dezenas de milhares
apoiado pelos EUA, ainda era muito forte na de pessoas foram mortas em menos de três anos.
consciência coletiva iraniana. Os estudantes Enquanto de 1963 até 1978 morreram 3164 pes-
achavam que a Revolução estava sendo amea- soas, a grande maioria durante as manifestações
çada pelos estrangeiros, e que o golpe contra de 1978”, explica o professor Ansari.
Mossadegh poderia ter ocorrido novamente. A proposta de Constituição liberal e secular
Por isso atacaram a embaixada. O governo foi substituída por um governo dos clérigos.
revolucionário usou esse episódio para tentar Em dezembro de 1979 foi instaurada a Repú-
distrair a atenção dos graves problemas inter- blica Islâmica, com um referendo de legitimi-
nos que enfrentava. dade duvidosa. O papel do Guia Supremo foi
“A Revolução se tornou islâmica somente consagrado definitivamente como superior ao
depois da crise dos reféns. Até aquele momen- poder político e a lei civil foi fundida com
to o governo provisório era composto de tec- aquela religiosa.
nocratas seculares e liberais. Um grupo lidera- O Estado foi aparelhado capilarmente e, além
do por Mehd i Ba z a rga n, professor d a de todas as alavancas do poder e do monopólio
universidade de Teerã. Mas os clérigos pressio- religioso, os clérigos xiitas voltaram a controlar
navam muito para obter o poder. Depois do amplas fatias da economia nacional. Assim
assalto à embaixada dos EUA, ninguém conse- como tinha sido até a Revolução Branca do xá,
guiu pará-los”, explica Milani. a que dera voto às mulheres em 1963, iniciando
a virulenta oposição.
FOGO E ENXOFRE “A proclamação da República Islâmica foi a
A partir desse momento, começou o triste ritu- maior mudança na cultura iraniana. As leis, a
al da violência revolucionária. Em nome das estrutura social e até as diretrizes morais come-
facções mais intransigentes, o aiatolá Khalkha- çaram a ser baseadas na Sharia”, explica Tajik.
li organizou um golpe dentro da Revolução “Antes da Revolução Islâmica nós tínhamos
graças à força dos Guardiões da Revolução, os liberdade econômica e liberdade religiosa no
Pásdárán. Tropas de jovens fanáticos religiosos, Irã, mas não tínhamos liberdade política. De-
que obedeciam a qualquer ordem dos clérigos pois da Revolução perdemos a liberdade políti-
xiitas. Até os mais sanguinários. Dessa forma, ca, assim como a liberdade religiosa, e nossa
o governo provisório foi deposto e os partidos liberdade econômica foi muito limitada.”
não islâmicos aniquilados. Os políticos não ali- Os primeiros meses da Revolução foram mui-
nhados, eliminados. Assim como todos os ve- to complicados, com constantes terremotos
lhos dignitários, políticos e generais do antigo políticos e muitas revoltas contra a imposição

AVENTURAS NA HISTÓRIA 45
CAPA

da lei islâmica, especialmente entre as minorias Médio, e também em outras regiões do mundo.
étnicas e religiosas. O Irã vivia em estado de Por exemplo na Argentina, onde apoiou os ata-
guerra civil. O novo regime tentou reprimir as ques contra a embaixada de Israel em 1992 e
rebeliões, mas então já parecia nas cordas. A contra a associação israelita Amia de Buenos
Revolução acabou salva por uma figura inespe- Aires em 1994. Ambos de direta responsabili-
rada: Saddam Hussein. dade dos Pásdárán.
O Iraque tem maioria xiita. Saddam, parte “No Oriente Médio o Irã se tornou um exem-
da minoria sunita, era um ditador secular que plo, político e ideológico”, explica Ansari. A
não queria ver seu país arrastado para o turbi- Revolução Islâmica foi o momento em que o
lhão revolucionário do vizinho – e terminar mundo muçulmano se desencantou com o na-
perdendo a cadeira, quando não a cabeça. cionalismo árabe, de Gamal Abdel Nasser, Yas-
Os xiitas iraquianos começaram a mostrar ser Arafat e o próprio Saddam Hussein. A res-
sinais de rebeldia, inspirados pelos irmãos ira- posta secular e socialista ao Ocidente ainda
nianos. Por isso Saddam encabeçou uma fren- parecia ocidentalizada demais. No lugar, entra
te sunita contra o Irã, e em setembro de 1980 o fundamentalismo islâmico, triunfante no Irã,
atacou o vizinho. Começou assim uma guerra e logo também no mundo sunita.
extremamente sangrenta, com mais de 1 mi- A Guerra Irã-Iraque desencadeou uma sé-
lhão de mortos, e onde foram cometidas atro- rie de consequências também nos anos se-
cidades de todos os tipos e todos os lados. Do guintes. Como a invasão iraquiana do Kuwait,
uso de gases venenosos proibidos pelo Iraque a Primeira Guerra do Golfo, a Segunda Guer-
até o alistamento de crianças-soldado nas bri- ra do Golfo, de 2003, a chegada dos militares
gadas Basij iranianas. Saddam foi abundante- dos EUA ao Oriente Médio, que levou à cria-
mente financiado pelos outros países sunitas ção da Al-Qaeda, e até, em última análise, do
FOTOS BETTMANN, KEYSTONE, KAVEH KAZEMI, ALAIN MINGAM - GAMMA-RAPHO, CHRISTINE SPENGLER - SYGMA, KAVEH KAZEMI / GETTY IMAGES

para acabar com a República xiita, mas, não Estado Islâmico. Ainda que sejam inimigos:
obstante a evidente superioridade nos arma- o EI é uma monarquia na qual seu líder, Abu
mentos, falhou. A guerra terminou em 1988 Bakr al-Baghdadi, se diz califa, o detentor do
sem nenhum vencedor no campo de batalha, poder do Profeta, líder de todos os islâmicos
mas com a vitória moral do Irã, que repeliu a do mundo. O Irã pode ser teocrático, mas
agressão iraquiana. ainda é um tipo de república. “Até por ques-
tões teológicas que diferenciam os sunitas do
DEUS NO COMANDO Estado Islâmico dos xiitas do Irã, Khomeini
A guerra contra o Iraque garantiu a sobrevivên- nunca se deixou tentar por tendências messi-
cia da República Islâmica. O ataque iraquiano ânicas, que no islã se denominam madistas.
acabou com as revoltas internas e provocou uma Como foi o caso de Abu Bakr al-Baghdadi.
onda de nacionalismo, com uma grande mobi- Khomeini sempre preservou a forma republi-
lização popular. Milhões de voluntários se alis- cana do regime, mesmo sob forte influência
taram no exército revolucionário. E com essa religiosa”, explicou Pedde.
guerra o novo regime se consolidou de vez. Hoje, após 40 anos da Revolução Islâmica, o
A partir daquele momento o Irã começou a Irã ainda está em meio a uma falha tectônica
levar adiante uma própria política regional. geopolítica. E a pergunta é: o Irã revolucionário
Propagandeando uma visão radical do islã. vai viver mais 40 anos? “Eu acho sinceramente
Ameaçando Israel. Desafiando os EUA. Pleite- que não. O regime mudará nos próximos 40
ando com seus vizinhos sunitas. E apoiando anos. Por causa dos problemas econômicos in-
governos ou movimentos de inspiração xiita, ternos, pela corrupção endêmica e pelo fim do
como o regime da Síria, do clã alauita dos al- ciclo do petróleo. Ou eles mudam radicalmente
Assad, ou o grupo Hezbollah, no Líbano. Au- ou não haverá outros 40 anos de República Is-
mentando assim a instabilidade no Oriente lâmica”, conclui Milani.

46 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Voluntárias da
A POLÍCIA SECRETA DO XÁ
Guerra do Iraque Savak vem do farsi atuava como a longa mão
desfilam em Teerã,
1987. Milhares Sazeman-e Ettela'at de um governo autocrático,
de mulheres va Amniyat-e Keshvar, como era aquele do xá, que
participaram em
combate direto “Organização Nacional via em qualquer crítica uma
ou funções de de Inteligência e Segurança perigosa dissidência.
suporte. Milhares
morreram. Não da Nação”. Era uma polícia Entretanto, não devemos
são relembradas secreta e o serviço de exagerar sobre o papel da
pelo governo como
“mártires”, como segurança do soberano. Savak. Mesmo brutal, ela
os homens O xá tinha criado a Savak se demonstrou bastante
com ajuda da CIA, nas incompetente como força
cinzas dos serviços de de inteligência e repressão,
segurança criados por pois não conseguiu nem
Mossadegh. Famosa por prevenir muito menos
sua brutalidade, a Savak suprimir a Revolução”,
operou entre 1957 e 1979, explica o professor Ansari.
sendo responsável por “Isso porque a Savak
inúmeros casos de prisões trabalhava com uma lógica
arbitrárias de opositores, de Guerra Fria, então eles
abusos, torturas e mortes. caçavam muito mais os
Em seu momento de maior comunistas do Tudeh do
força, a Savak contava com que os religiosos. Por isso
60 mil pessoas, entre que as principais vítimas
agentes, delatores e da repressão foram os
colaboradores. “De fato a militantes de esquerda,
Savak era a instituição mais e também por isso foi tão
odiada e temida do Irã antes fácil assim para os clérigos
da Revolução de 1979. Ela triunfarem em 1979.”

Um membro da Guarda
Revolucionária Iraniana
chora ao lado do corpo
de seu irmão, em Sarpol-e
Zahab, fronteira com o
Iraque, nos primeiros
dias da guerra, 16 de
outubro de 1980. O irmão
fora morto por fogo de
artilharia iraquiana

PARA SABER MAIS


i Revolutionary Iran: A History of the
Islamic Republic, Michael Axworthy, 2013
i The History of Modern Iran Since 1921:
the Pahlavis & After, Ali Ansari, 2003
i The Politics of Nationalism in Modern
Iran, Ali Ansari, 2012

AVENTURAS NA HISTÓRIA 47
ÁFRICA

QUANDO A LANÇA
VENCEU O FUZIL
Zulus modernos
realizam uma
exibição de danças
de guerra em Durban,
África do Sul

D
e um lado, guerreiros prati- Isandlwana, um morro cujo nome faz
camente nus, protegidos por referência ao segundo estômago das
um escudo feito de couro de vacas – para os ingleses, mais parecia
vaca e com uma lança nas uma esfinge, ou um leão deitado. O
mãos, que eles chamavam de iklwa local, que fica a 170 quilômetros da
– na falta delas, qualquer pedaço de atual cidade de Durban, na África do
madeira servia como porrete. A maior Sul, era adequado para os britânicos
parte dos soldados era de campone- acamparem e se posicionarem de for-
ses, vinda de vilarejos. ma defensiva para aguardar a aproxi-
Do outro, o maior império já visto mação zulu. Não foi o que aconteceu.
no planeta Terra, onde se dizia que o Thesiger não acampou, nem esta-
Sol nunca se punha. Soldados bem beleceu um ponto para recuo de seus
preparados, utilizando uniformes pa- homens. Confiante que estava na su-
dronizados com calças pretas, blusas perioridade de seus soldados e suas
vermelhas e capacetes cáqui. Portavam armas, ele montou uma linha de defe-
artilharia, cavalaria e os fuzis mais sa bem armada e avançou.
OS INGLESES modernos disponíveis, os recém-intro- Os ingleses não sabiam, mas já ha-
PRECISARAM DE SEIS duzidos Martini-Henry. viam perdido. Liderados pelo coman-
MESES PARA VENCER dante Ntshingwayo Khoza – ainda
OS ZULUS, NO SUL O DIA DO CAOS estavam estudando os movimentos
A invasão ao território zulu havia ape- dos inimigos europeus e reagiram de
DA ÁFRICA. MAS, NA nas começado quando aconteceu a supetão ao perceber que seriam ata-
PRIMEIRA BATALHA, batalha de Isandlwana. Os ingleses cados –, os zulus fizeram o que sa-
HÁ 140 ANOS, EM haviam se dividido em três colunas, biam: lançaram um ataque frontal e,
ISANDLWANA, FORAM que avançavam sem resistência desde em paralelo, realizaram um movi-
10 de janeiro de 1879. No dia 22 (há mento tático que ficaria conhecido,
MASSACRADOS PELAS
140 anos, portanto), uma dessas colu- na Inglaterra, como o “chifre do dia-
FORÇAS AFRICANAS nas, comandada pelo general e barão bo”: dois grupos atacaram pelas late-
POR THIAGO CORDEIRO Frederic Thesiger, se aproximou de rais, simultaneamente.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 49
ÁFRICA

tidade muito maior de zulus: 23 mil


homens. Morreram 1300 militares do
lado inglês (ou seja, 76% do total), con-
tra aproximadamente mil africanos
(ou 4% dos combatentes).
Das três frentes que iniciaram a in-
vasão ao reino zulu, uma foi destroça-
da em Isandlwana. As outras duas se
viram isoladas, porque penetraram
rápido demais no terreno adversário e
os zulus só precisaram cortar as linhas
de fornecimento de mantimentos. O
mais gostavam, com combates corpo general Frederic Thesiger se viu força-
a corpo até a morte de um dos adversá- do a recuar para fora do país inimigo.
Hoje em dia, os rios, em geral os europeus”, afirma John O erro inicial marcaria sua carreira
zulus somam
até 12,5 milhões
Laband, professor emérito da Wilfrid para sempre, mas ele ainda não sabia
de cidadãos Laurier University, do Canadá, e autor disso. Ainda acreditava que podia re-
sul-africanos.
Vivem tanto em de Historical Dictionary of the Zulu ceber os louros por trazer um novo
aldeias quanto
em cidades, em
Wars (sem tradução). “Apenas alguns território inteiro, e suas minas de dia-
trajes ocidentais, homens a cavalo conseguiram escapar.” mantes, para a posse da Coroa.
vestindo-se
tradicionalmente Muitos soldados morreram tentando
para ocasiões se defender usando facas ou transfor- A TRAIÇÃO DA COROA
especiais
mando suas armas descarregadas em Thesiger havia provocado uma tensão
porretes. Alguns, que optaram por fu- que antes não existia entre britânicos
Os soldados britânicos estavam gir correndo, simplesmente foram cer- e zulus, e decidira partir para a guerra
muito distantes entre si, o que facilitou cados e forçados a lutar até o fim. Quan- sem o aval de seus superiores. Agora
o ataque frontal. “A linha de fogo bri- do a batalha havia se tornado uma estava decidido a se recompor diante
tânica se estendia por 2750 metros, o simples perseguição, era perto das de uma das derrotas mais vergonhosas
que significa que havia espaço demais 14h30. Nesse horário, aconteceu um da história do império a que servia. “A
entre os soldados. Havia dado certo em eclipse total do sol, que deu à derrota vitória zulu mudou a abordagem dos
outras campanhas britânicas, em es- britânica um ar ainda mais funesto. britânicos. A derrota em Isandlwana
pecial contra os xhosas, também do Em parte, o fracasso da estratégia deu aos europeus um novo respeito
sul da África, porque o poder de fogo se explica pela grande diferença de pelos inimigos, além de fornecer um
dos Martini-Henry conseguiu elimi- contingente: eram 67 oficiais e 1707 incentivo: os europeus se tornaram
nar a linha de frente adversária. Não soldados britânicos, contra uma quan- determinados a se vingar, a impor ao
foi o caso em Isandlwana.” Para com- reino zulu uma vitória tão embaraço-
plicar ainda mais a situação, as duas sa quanto a que eles mesmos sofre-
colunas laterais dos zulus encontraram ram”, afirma Jack Hogan, professor do
os flancos desprotegidos, de forma que Departamento de História Internacio-
foi possível cercar os inimigos euro- nal da London School of Economics
peus. Rapidamente, os zulus dispersa- and Political Science.
ram os inimigos que restaram. As motivações para a guerra anglo-
“Percebendo que estavam sendo zulu são difíceis de entender. A Ingla-
cercados, os britânicos perderam coe- terra começou a colonizar o sul da
são, o que permitiu aos zulus separá- África em 1806, apresentando concor-
los em pequenos grupos e provocar a rência aos bôeres, europeus moradores
batalha da maneira como eles mais dos Países Baixos, da Alemanha e da

50 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Dinamarca, em geral calvinistas, que
já estavam estabelecidos em colônias MORTO REAL
A guerra anglo-zulu encerrou
na região. O Império Zulu surgiu dez
a dinastia napoleônica.
anos depois, em 1816, e se tornou um
Uma das vítimas do conflito
aliado tradicional, primeiro dos bôe- deixou os britânicos Zulus
res, depois dos ingleses – no caso dos constrangidos. Trata-se do demonstram o
uso do assegai,
bôeres, eles alcançaram um convívio príncipe francês Napoleão dardos com que
tranquilo depois de uma primeira ten- Eugênio, único filho do iniciavam os
combates, antes
tativa de invasão europeia, repelida em imperador Napoleão III – que de atacarem com
1837. E assim os zulus mantiveram por sua vez era sobrinho do a iklwa, a lança
de infantaria
uma situação relativamente estável em Napoleão original e havia
relação aos vizinhos, mesmo nos mo- governado entre 1852 e 1870.
mentos de conflitos sucessórios inter- O pai morreu no exílio, em 1873,
nos. Nada indicava que eles seriam na Inglaterra. Eugênio, que os
monarquistas franceses
atacados pelos aliados ingleses.
sonhavam em colocar de volta
O rei zu lu, desde 1873, era
no trono da França, tinha outros
Cetshwayo kaMpande, um literal gi- planos, e seguiu para a África
gante de mais de 2 metros e 160 quilos. em busca de aventuras. Acabou
Cetshwayo já havia se consolidado morrendo em maio de 1877,
como o sucessor desde 1856, quando quando participava de uma
entrou em guerra contra seu irmão ação de reconhecimento
mais novo, Mbuyazi, o favorito de seu de terreno que sofreu uma
pai, o rei Mpande, para assumir o rei- emboscada dos zulus.
no. Quando Mpande morreu, em 1872,
não havia competição pelo posto. Di-
plomático, Cetshwayo seguiu as tradi-
ções mantidas por seu pai e seu avô,
ÁFRICA

de Bombaim (hoje Mumbai), na Ín-


o rei Senzangakhona kaJama: os zulus
dia, Henry Bartle Frere, a impressão
valorizavam a pecuária e a agricultu-
de que vencer os zulus seria simples.
ra de feijões, tubérculos, melancias e
E renderia glórias aos dois, que pre-
abóboras. Viviam em cidades de
tendiam instalar, no sul da África,
grande autonomia política e econô-
uma grande federação britânica, ao
mica, chefiadas por líderes tribais que
modo da que haviam visto em terras
juravam obediência ao monarca.
indianas. Para impedir que seus ob-
Em termos militares, o rei também
jetivos fossem barrados em Londres,
mantinha hábitos antigos, como a
ele optou por comunicar seus planos
aposta em armamentos tradicionais
por correio, muito mais demorado, e
– apenas ao final da guerra os africa-
não por telégrafo.
nos começariam a usar mosquetes e O IMPÉRIO REAGE
fuzis velhos, que os homens mal sa- Nada havia mudado, nem na Ingla- A derrota em Isandlwana levou a
biam usar. Cetshwayo também de- terra nem na África, para justificar Coroa britânica a decidir pela substi-
fendia a religião tradicional local, a um conflito militar. Mas Frederic tuição de Thesiger pelo marechal de
ponto de aceitar, por diplomacia, a Thesiger, um militar de carreira, campo Garnet Wolseley, uma das
chegada de missionários europeus, veterano da guerra da Crimeia e de maiores figuras militares do império
que viviam em paz, mas sempre en- conflitos contra grupos rebeldes na no século 19, com passagem em cam-
contrando motivos para mandar ma- Índia, encontrou pretextos (como panhas no Canadá, no Egito, em Bur-
tar os zulus que se convertiam. uma incursão de zulus em territó- ma, na China e na Índia. Mas, até que
rios vizinhos para resgatar as espo- Wolseley chegasse, Thesiger tinha pela
sas fugitivas de um nobre local) para frente alguns meses para agir.
iniciar uma escalada de ameaças e De fato, ele conseguiu mudar a
ultimatos. A lista de exigências che- situação: ajustou a estratégia e solici-
gou a ponto de demandar que o rei tou mais homens. Para a segunda
abandonasse o cargo e desfizesse invasão, o número total de soldados
seus exércitos imediatamente. Inti- havia saltado de 15 mil para 25 mil,
mado a se manifestar até o final do com maior participação de europeus
ano de 1878, Cetshwayo nem se deu – na primeira investida, a maioria dos
ao trabalho de apresentar uma res- homens, 9 mil, eram africanos trei-
posta. As vitórias anteriores contra nados às pressas e sem a mesma ex-
os xhosas davam a Thesiger e a seu periência em batalha.
estrategista militar, o ex-governador Assim, alcançou uma sequência de
vitórias, culminando com a Batalha
FOTOS PASCALE BEROUJON, DEAGOSTINI E LEFTY SHIVAMBU / GETTY IMAGES
de Ulundi, em 4 de julho de 1879.
Nesse dia, iniciou o ataque com uma
hora e meia de bombardeio incessan-
te, seguido pelo deslocamento de uma
linha de frente compacta, que dispa-
rava sem parar. Era, na prática, o fim
Dançarinos do Império Zulu.
zulus em
Newcastle,
“O prestígio inglês no sul da África
África do Sul foi fortemente abalado pela derrota,
então era essencial para o general de-
monstrar a superioridade militar por
meio de uma vitória incontestável so-
bre os zulus”, afirma John Laband.
Guerreiro
posando com
a pesada iklwa,
a principal arma
do arsenal zulu

“Por isso, todas as tentativas de trégua


ou acordo da parte dos zulus foram
rapidamente rejeitadas. Os ingleses só
poderiam aceitar a rendição completa,
a abolição da monarquia zulu e o des-
monte de seu temido exército.”

O AMARGO FIM
A derrota inicial também definiu o
trato aos derrotados. “Foi uma cam-
panha brutal”, diz Laband. “Os britâ-
nicos tomaram poucos prisioneiros. Deposto, o rei Cetshwayo kaMpan-
Os feridos eram assassinados ainda de seguiu para a prisão de Robben Is- SOLDADOS
no campo de batalha e os britânicos land, a mesma onde, no século seguin- DOPADOS
Boa parte dos africanos utilizava
passaram a usar a cavalaria a seu fa- te, Nelson Mandela passaria 27 anos
estimulantes para a batalha.
vor, de maneira a transformar a reti- detido. Mas os conflitos entre os dife-
Os africanos surpreederam
rada do adversário numa verdadeira rentes governantes do antigo reino
os britânicos não pela técnica
caçada.” Apesar da vitória, Frederic foram tão constantes que o antigo apurada, mas porque pareciam
Thesiger nunca mais veria um campo monarca foi convidado a retornar a seu não ter medo algum de morrer.
de batalha até falecer, em 1905, assim país natal em 1883. Hoje se conhece a razão: todos
como Henry Bartle Frere, que morre- Morreria no início de 1884, depois os soldados faziam uso de
ria em Londres, completamente des- de sofrer uma série de derrotas para cogumelos e ervas, misturados
prestigiado, em 1884. Zibhebhu kaMaphitha Zulu, um dos e transformados em chás. Era
Ao receber uma vitória consagrada, mais importantes líderes dos 13 terri- sob o efeito do alucinógeno que
Garnet Wolseley foi firme em sua es- tórios, que tentava, sem sucesso, re- eles partiam para a batalha,
tratégia de dividir o inimigo. “O anti- construir o Império Zulu. insensíveis ao medo e à dor
e sem parecer ter nenhum tipo
go reino foi rachado em 13 fragmentos Apesar do final melancólico, o rei
de noção de perigo. Já os
fracos, que não ofereciam nenhuma Cetshwayo imortalizou seu nome ao
comandantes preferiam a dagga,
ameaça ao território britânico vizi- emplacar uma vitória estrondosa
uma variação da cannabis que
nho”, explica o professor. A estratégia sobre o mais poderoso império da os deixava centrados e otimistas.
foi bem-sucedida, até demais. História.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 53
PARA ENTENDER

MARXISMO
5 OBRAS FUNDAMENTAIS SOBRE A
IDEOLOGIA QUE DOMINOU O SÉCULO 20,
POR SEUS DEFENSORES E CRÍTICOS

1 3
MANIFESTO O ÓPIO DOS
COMUNISTA, INTELECTUAIS,
Karl Marx e R. Aron – 1955
F. Engels – 1848 Um liberal moderado
Fonte primária, que começou na
naturalmente. Se resistência ao fascismo,
a teoria marxista e daí afirmou ter pego
propriamente dita está uma repulsa eterna pelo
em O Capital, o totalitarismo, traça uma
Manifesto é uma carta crítica ao pensamento
de intenções do e aos intelectuais
intelectual. Mas há marxistas. Ele fala em
ainda assim alguns três grandes mitos do
conceitos-chave como: marxismo: o da
“A História de toda a esquerda, da revolução
sociedade que existiu e do proletariado,
até agora é a História e do caráter milenarista,
da Luta de classes”. religioso do pensamento.

2 4 5
MARXISMO, COMO MUDAR MARX, Isaiah
George Boucher O MUNDO, Eric Berlin – 1939
– 2012 Hobsbawm – 2011 Em seu primeiro
Introdução acessível ao Coletânea que abrange livro, o filósofo e
marxismo, explicando décadas de intensa historiador das ideias,
cada um dos principais proximidade com a obra judeu, cuja família fugira
conceitos da política de Karl Marx (1818-83) da União Soviética
e da teoria social e a tradição marxista. em sua infância, busca
e histórica marxistas. O historiador britânico entender Marx por meio
Dividido em três partes marxista, respeitado de sua vida e seu
tratando da evolução mesmo por detratores, tempo. Ele traça uma
e diversificação da defende a atualidade crítica filosófica aos
teoria, passando pelas das reflexões sobre o pressupostos nos quais
diversas escolas capitalismo realizadas se baseia a teoria
IMAGENS REPRODUÇÃO

(ou “marxismos” como por Marx. Algo visível marxista, no que


diz o autor) e suas ao longo de toda a sua é considerado uma
diferenças e trajetória acadêmica das mais instigantes
divergências. e política. contestações a Marx.

54 AVENTURAS NA HISTÓRIA
COLUNA DANILO BERNARDINO

O CANTO DAS MUSAS:


A POESIA DE HESÍODO
 P
rimeiro nasceu o Caos.” É com essas palavras e as famosas poleis ainda não haviam tomado as suas
que Hesíodo, orientado por nove deusas ir- feições mais conhecidas. Nesse cenário, é essencial
mãs, as chamadas musas, começa o hino recordar a presença da tradição oral em um mundo
dedicado a instruir a todos sobre a origem dos deu- grego ainda sem escrita que se utilizou da memória
ses e toda a organização do Cosmos (teogonia), o que para a transmissão do conhecimento e das práticas
faria dele o pai grego da poesia didática, ou instru- por séculos. Assim, na poesia de Hesíodo marcas
tiva. Heródoto em seu livro dois deixa evidente a dessa oralidade são perceptíveis a partir de frases que
influência decisiva de Hesíodo sobre o pensamento se combinam e sequências narrativas que se associam,
grego, afinal, antes dele os gregos não ou pouco co- isto é, técnicas que auxiliavam a memorização daque-
nheceriam os deuses, seus nomes e suas histórias. les que transmitiam histórias através da palavra fala-
Apesar de Hesíodo não ser considerado profeta e seu da, os chamados aedos ou rapsodos, como Hesíodo.
texto não ter um caráter dogmático, a teogonia se Em Teogonia, Hesíodo diz ter sido interpelado pelas
tornou uma base da consciência religiosa helênica. musas quando pastoreava as suas ovelhas aos pés do
Pouco se sabe sobre o poeta, sobre seus objetivos e monte Hélicon e delas recebido uma revelação acerca
suas referências, sabe-se da natureza dos deuses. As
apenas o que se pode extrair musas, segundo a tradição
de seus dois trabalhos sobre-
Apesar de Hesíodo não hesiódica, são fruto da rela-
viventes: Teogonia – A Ori- ser considerado profeta, ção entre Zeus e Mnemosine
gem dos Deuses e Os Traba- a teogonia se tornou uma (Memória) durante nove
lhos e os Dias. Pode-se dizer noites. As nove irmãs com
com alguma segurança que base da consciência religiosa suas belas vozes e dança en-
teria nascido (séc. 8 a.C.) e tretêm os deuses com suas
vivido toda a sua vida na Beócia (região situada na histórias, dando voz assim à memória, sua progenito-
Grécia central), que teria um irmão chamado Perses ra, como fariam os aedos no plano mortal.
(com quem teria entrado em conflito como exposto Segundo as musas, no início havia apenas os deu-
em Os Trabalhos e os Dias) e que não gostava de via- ses primordiais, o Caos (o próprio vazio), a Terra (a
gens marítimas, o que teria feito apenas uma vez para base de tudo que há), e o Tártaro (um abismo infinito
participar de um concurso de poesia na ilha grega de que teria a mesma distância da terra que a terra tem
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Eubeia. Hesíodo teria vivido na mesma época de outro em relação ao céu). Além destes, interessante notar
grande poeta grego, este mais conhecido por suas que Hesíodo acrescenta mais um elemento entre os
narrativas envolventes e menos sistemáticas, Homero, seres fundamentais, aparentemente menos monumen-
durante o chamado período arcaico grego. Nesse dis- tal, mas sem o qual não poderia haver a geração da
tante período, antecessor ao famoso período clássico, vida, isto é, o desejo astuto, perverso e inconsequen-
fundamentos importantes da vida helênica ainda te que se configura em suas façanhas como o motor
ganhavam forma: o alfabeto grego ainda não se cons- do mundo mediante a promoção de uniões e trans-
tituíra por completo, não havia circulação de moedas formações de tudo que existe, Eros, o próprio amor.

DANILO BERNARDINO É MESTRE EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA


E PROFESSOR DE HISTÓRIA DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO DISTRITO FEDERAL

AVENTURAS NA HISTÓRIA 55
COLUNA DAVID LIVINGSTONE & JOHN BROOK

CIÊNCIA E RELIGIÃO:
GUERRA EVITÁVEL
O
lhando para a História, encontramos várias humanismo. As novas possibilidades tecnológicas
ocasiões em que a ciência e a religião entraram que estão nascendo nos levam a questões profundas
em conflito. No início do século 17, alguns sobre o significado do ser humano, um assunto do
católicos acharam as novas teorias do organismo qual os teólogos têm muito a dizer. Pelo menos, a
perturbadoras por causa dos desafios que eles mes- teologia provou ser útil na conversação que articula
mos colocaram no entendimento da eucaristia. Para os valores pelos quais julgar as capacidades humanas
alguns judeus, a proibição da astrologia entre 200 e que poderiam ser desenvolvidas prioritariamente.
500 a.D. reprimiu o estudo astronômico. Para os Com as diferentes fontes de autoridade, sempre
bíblicos, a evolução de Darwin provoca uma postu- existirá divergência, tensão e até comunhão entre as
ra de oposição. Por outro lado, podemos identificar representações religiosas e científicas. Mas tensão,
diferentes pontos de conciliação e enriquecimento divergência e animosidade – até mesmo o conflito
dos dois lados, como uma negociação. Por exemplo, – não são o mesmo que a inevitável guerra. Muitas
a ideia bíblica de que a humanidade vem de uma pessoas religiosas são indiferentes à ciência. Muitos
única fonte, e, assim, essa crença inspirou a busca cientistas experimentaram a alienação vinda da re-
por respostas como o início ligião. Uma desconfiança
da linguagem humana e as mútua comum. Mesmo as-
rotas que os humanos já
As novas possibilidades sim, repito que: indiferença,
fizeram pelo mundo, como tecnológicas nos levam alienação e suspeita não são
os primeiros povoamentos. a questões profundas sobre a mesma coisa. As palavras
No século 17, instrumen- “ciência” e “religião” sofre-
tos científicos como o teles- o significado do ser humano ram profundas mudanças
cópio e o microscópio fo- de significado. Só no meio
ram considerados meios de reverter os efeitos dos do século 19 que a ciência se tornou um guarda-
pecados de Adão. Métodos científicos e instrumentos chuva capaz de capturar a expansão de investigação
foram vistos pela Igreja como meios de amenizar os das especialidades empíricas, supostamente – mas
problemas cognitivos e sensoriais do homem que nem sempre – unidas por um “método científico”
acreditava-se serem fruto da pecaminosidade huma- comum. As religiões conseguem sobreviver às socie-
na. Ou considere toda a questão de design no mundo. dades tecnológicas? Elas já conseguiram – e por uma
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Essa ideia foi fundamental para o desenvolvimento razão importante. Elas conferem as identidades e
da ciência e da ecologia. A chave para os trabalhos buscam encontrar significados nos eventos, para
de história natural, que enfatiza as conexões íntimas interpretar o universo, sem obter como o principal
entre o organismo e o ambiente em que vive, foi a a explicação dele. Como Terry Eagleton disse um dia:
crença de que Deus havia adaptado os animais e as “O erro de acreditar que a religião é uma tentativa
plantas para os determinados ambientes em que iriam fracassada de explicar o mundo é igual a enxergar o
habitar. Mesmo nos dias atuais pode haver benefícios balé como uma tentativa fracassada de correr em
que derivem do diálogo entre a teologia e o trans- direção a um ônibus”.

DAVID N. LIVINGSTONE É PROFESSOR DE GEOGRAFIA E HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE BELFAST


JOHN HEDLEY BROOKE É PROFESSOR DE CIÊNCIA E RELIGIÃO DA UNIVERSIDADE DE OXFORD BY-ND

56 AVENTURAS NA HISTÓRIA
ENTREVISTA

ERRAR É...
O
jornalista britânico Tom Phillips é ex-editor
jornalístico do Buzzfeed e decidiu contar a
História do ponto de vista dos perdedores
os estorninhos na América
do Norte porque achou
“Poucas
– no sentido da língua inglesa, losers, os fracassados, que seriam um tributo pessoas são
mas mais os que falharam de forma espetacular que pitoresco a William realmente
as vítimas. Seu livro, Humanos, é um compêndio Shakespeare. Ele soltou
da História movida pela estupidez, as decisões ca- 60 deles em Nova York
heroicas
tastróficas que moldaram nosso caminho. Começa em 1890. Hoje, existem ou malignas.
pela australopiteca Lucy, como morreu caindo da 200 milhões, uma enorme
Mas idiotas?
árvore, e vai até o que (não) estamos fazendo, neste praga por todo o
exato instante, sobre a mudança climática. Lançan- continente. Não consigo Sempre
do sua versão em português, a AH falou com ele. parar de pensar no que teremos
ele diria disso. Quer dizer,
obviamente há uma boa
idiotas”
Por que um livro mundo islâmico e da chance de a resposta ser
sobre idiotas? Europa Oriental. Não “o que é um avião?”, mas
Há a tentação, em História acho que aconteceria ainda assim queria saber.
popular, de focar em da mesma forma se o
heróis ou vilões, porque xá não fosse um babaca. Estamos destinados
essas são as histórias que a repetir a História?
ressoam conosco. Então é A estupidez pode Por mais que seja
bom tirar uma folga disso ser positiva? naturalmente atraído
e escrever sobre idiotas no Definitivamente. Primeiro, pelo cinismo e fatalismo,
lugar. Poucas pessoas são porque é um grande acredito que podemos
realmente heroicas ou motivador para a mudar – a História
malignas. Mas idiotas? criatividade. “Eu fiz algo claramente mostra
Sempre teremos idiotas. realmente imbecil e, de isso. Não quer dizer
alguma forma, não morri” que devamos ser
Qual decisão estúpida é a definição de uma complacentes (por
que mais influencia grande história. E às vezes favor, não faça isso!),
em nossa vida hoje? coisas burras podem ter mas significa que não
A do xá Ala ad-Din boas consequências. devemos nos desesperar.
Muhammad II do Império A Queda do Muro de Teremos muitos
Corásmio. Em parte Berlim aconteceu porque contratempos no
porque sua decisão ruim o porta-voz do regime caminho, e cometeremos
foi tão hilariamente ruim entendeu errado uma nota muitos erros horríveis, TOM PHILLIPS
É JORNALISTA BRITÂNICO,
(aporrinhar Gengis Khan e se embananou numa como sempre fizemos. EX-EDITOR DO BUZZFEED,
por absolutamente coletiva de imprensa. Ou isso, ou vamos morrer ATUALMENTE NUMA
ONG DE VERIFICAÇÃO
nenhuma razão), mas numa guerra nuclear ano DE NOTÍCIAS. SEU LIVRO
também por seus efeitos: Qual sua história que vem. Mas aí não vai HUMANOS: UMA BREVE
FOTO DIVULGAÇÃO

ter mais ninguém para HISTÓRIA DE COMO


seu império foi aniquilado favorita?
F*DEMOS COM TUDO
e ele abriu caminho para a Eugene Schieffelin, o me acusar de ter sido (SIC) FOI PUBLICADO NO
conquista de boa parte do homem que introduziu muito otimista. BRASIL NO FIM DE 2018.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 57
MEMÓRIA

A FACE DA
EM 2009, A “PRIMAVERA
IRANIANA” VIU MASSIVOS
PROTESTOS CONTRA

OPOSIÇÃO
A REELEIÇÃO DO
CONSERVADOR MAHMOUD
AHMADINEJAD. JOVENS
MULHERES TIVERAM
UM PAPEL DEFINITIVO

FOTO GETTY IMAGES / STRINGER

58 AVENTURAS NA HISTÓRIA

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