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ARTIGO ARTICLE 951

Bioética e avaliação tecnológica em saúde

Bioethics and health care technology assessment

Fermin Roland Schramm 1


Claudia Caminha Escosteguy 2

1 Departamento de Ciências Abstract The simultaneous existence of a biotechnoscientific paradigm (which emphasizes
Sociais, Escola Nacional
technological incorporation) and a culture of limits (which selects technologies) challenges cur-
de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz. rent health systems, raising ethical and political discussions as to the choices to be made. Health
Rua Leopoldo Bulhões 1480, care technology assessment is mainly concerned with the consequences of health care and health
8 o andar, Rio de Janeiro, RJ
care policies. Thus, there is significant overlap between this activity and bioethics, even though
21041-210, Brasil.
roland@ensp.fiocruz.br they are different fields of knowledge. Although the importance of ethical and social issues aris-
2 Hospital dos ing in technology assessment has been recognized, most publications emphasize only method-
Servidores do Estado.
ological and scientific aspects. There are different interests involved in technological incorpora-
Rua Sacadura Cabral 178,
Rio de Janeiro, RJ tion, and many value conflicts arise. Ethical implications include those related to clinical trials,
20221-161, Brasil. medical care assessment, incorporation of technology, resource allocation, equity, and the effec-
tiveness gap. Incorporating the ethical dimension into technology assessment will foster a better
understanding of health care practice and progress in its improvement.
Key words Bioethics; Biomedical Technology Assessment; Quality of Health Care

Resumo A vigência simultânea do paradigma biotecnocientífico (que incentiva a incorporação


tecnológica) e da cultura dos limites (que seleciona as tecnologias) constitui um grande desafio
aos sistemas sanitários atuais, suscitando debates éticos e políticos sobre as escolhas a serem
feitas. A avaliação tecnológica em saúde diz respeito à análise das conseqüências dos cuidados
em saúde e das políticas de saúde, e apresenta pontos de interseção com a bioética, apesar de
serem campos distintos. A importância das implicações éticas e sociais da avaliação tecnológica
é cada vez mais reconhecida, mas a maioria das publicações tem enfatizado apenas os aspectos
metodológicos e científicos. Existem vários tipos de interesses envolvidos na incorporação tec-
nológica, fontes de conflitos de valores. As implicações éticas incluem aquelas relativas aos en-
saios clínicos para aferir sua eficácia; à avaliação da boa ou má prática médica; à forma de in-
corporar as novas tecnologias e à sua efetividade; ao acesso e à alocação de recursos disponíveis.
A incorporação da dimensão ética na avaliação tecnológica possibilitará melhor compreensão
da prática de saúde e um avanço em direção ao seu aprimoramento.
Palavras-chave Bioética; Avaliação da Tecnologia Biomédica; Qualidade dos Cuidados de
Saúde

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Introdução tre meios e fins, mas refere-se também aos prin-


cípios morais de não maleficência e de benefi-
Com a vigência do paradigma biotecnocientífi- cência, visto que uma relação não eficaz entre
co no campo da biomedicina (Schramm, 1996), meios e fins acaba prejudicando a saúde da po-
a prática médica vem se confrontando com pulação.
inovações vertiginosas nos âmbitos diagnósti- Embora se possa argumentar que exista
cos e terapêuticos. Mas a incorporação tecno- prioridade lexical da primeira questão sobre a
lógica no campo da saúde vem sendo feita mui- segunda (pois o objetivo da satisfação da “qua-
tas vezes de forma acrítica, sem avaliar corre- lidade em saúde” viria logicamente antes da
tamente sua eficácia (pode funcionar?), sua definição dos meios a serem utilizados para is-
efetividade (funciona de fato?) e eficiência (va- so), de fato ambas implicam responder a quais
le a pena utilizá-la?), bem como sem ponderar custos envolvidos podem ou devem ser assu-
seus efeitos sobre os gastos públicos com os midos pelo sistema, quais seriam as modalida-
serviços de saúde. des de acesso às novas tecnologias, como satis-
Isso torna-se relevante em um contexto só- fazer a exigência de justiça e como avaliar as
cio-econômico que os responsáveis das políti- tecnologias incorporadas no campo das práti-
cas públicas e seus gestores definem de recur- cas em saúde.
sos escassos, e que Daniel Callahan (1987, 1990, Este artigo visa apresentar alguns aspectos
1996) definiu como o da “cultura dos limites”, morais relacionados à avaliação tecnológica
implicada pela transição epidemiológica e o em saúde, a partir de uma revisão da literatura
conseqüente envelhecimento da população; a pertinente.
incorporação acelerada e nem sempre eficaz
de novos procedimentos e novas tecnologias
em campo biomédico; o encarecimento de tais A complexidade do campo da avaliação
procedimentos e tecnologias. tecnológica em saúde
A vigência simultânea do paradigma bio-
tecnocientífico (que incentiva a incorporação A preocupação ética com o agir médico é tão
tecnológica) e da cultura dos limites (que sele- antiga quanto a própria medicina (Fineberg,
ciona as tecnologias) constitui um grande desa- 1985). Já a avaliação da qualidade do conjunto
fio para os sistemas sanitários, solicitados seja organizado de conhecimentos, técnicas e pro-
pelas demandas crescentes de seus usuários cedimentos do campo da saúde data do início
seja pela racionalização dos recursos imposta a do século XX (Donabedian, 1966).
seus gestores. Isso suscita debates éticos e po- Nos países industrializados, o interesse por
líticos sobre quais seriam as escolhas mais ra- este tipo de avaliação cresce a partir da década
zoáveis, moralmente legítimas e politicamente de 60, acompanhando a complexificação da as-
aceitáveis a serem feitas. sistência médica (Reis, 1995) no contexto da
Uma questão relevante diz respeito a como emergência dos “direitos do consumidor” (Nar-
alocar de maneira justa os recursos disponí- veson, 1998) e, a partir dos anos 70, devido à
veis, pois a vigência da “cultura dos limites” tem incorporação tecnológica no campo do saber-
inevitavelmente a conseqüência de algumas fazer biomédico.
demandas serem atendidas e outras não, e o É nesse período que surgem vários termos
respeito do princípio de justiça implica em ter na literatura especializada, tais como avalia-
que optar entre políticas de “universalização” ção de qualidade, outcome research, avaliação
(que de fato não poderão fornecer todos os ser- de efetividade, quality assurance, avaliação tec-
viços para todos) e de “focalização” (que deve- nológica em saúde (health care technology as-
rão decidir a quem fornecer quais serviços), ou sessment), que nem sempre são utilizados cor-
seja, em responder o que fornecer e para quem. retamente. A este respeito, Miettinen (comuni-
Outra questão relevante concerne à avalia- cação pessoal) tem apontado a dificuldade em
ção daquilo que se pretende fornecer aos usuá- utilizar termos vindos de fora da Medicina e da
rios. Em campo sanitário, isso significa verifi- Epidemiologia, quase sempre “importados” da
car a efetividade das tecnologias incorporadas, economia e da indústria.
avaliando as mudanças esperadas no estado de De fato, o desenvolvimento do campo da
saúde dos usuários e da qualidade da assistên- avaliação ocorre freqüentemente junto às agên-
cia, através de “indicadores de qualidade de vi- cias de avaliação tecnológica dos países indus-
da” que dependem da eficiência do sistema de trializados, que têm enfatizado as atividades de
alocação dos recursos disponíveis (Edgar, 1998). avaliação tecnológica a fim de planejar sua in-
Esta questão diz respeito, em primeiro lugar, corporação e gerenciar sua utilização (Banta &
ao princípio pragmático da melhor relação en- Luce, 1993; Battista & Hodge, 1995). A avaliação

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das tecnologias médicas consiste basicamente tuações diferentes tem custado perda de iden-
em avaliações de precisão diagnóstica, eficá- tidade da atividade. Com efeito, muitos méto-
cia terapêutica e segurança, envolvendo avalia- dos que podem ser empregados para avaliação
ção de custos e benefícios, bem como impacto tecnológica – tais como: ensaios clínicos ran-
da distribuição de recursos, e possibilitando domizados, estudos observacionais, metanáli-
uma avaliação global da qualidade (Donabe- se, avaliação de efetividade, estudos de varia-
dian, 1988). ção de práticas, análises de custo-efetividade,
O termo avaliação tecnológica foi usado pe- cenários futuros, desenvolvimento de consen-
la primeira vez em 1965, durante deliberações sos, análise de decisão, simulação e análise de
do Committee on Science and Astronautics of impacto social – têm se qualificado, de forma
the U.S. House of Representatives, com o propósi- inadequada e com baixo poder explicativo, co-
to de fornecer elementos para tomada de deci- mo avaliação tecnológica (Goodman, 1992).
são a respeito de tecnologias (Goodman, 1992). Além disso, a literatura especializada tem cha-
Uma das primeiras aplicações na área da saúde mado a atenção para o fato de boa parte da as-
foi um estudo dos impactos da introdução da sistência à saúde ser baseada em evidências
técnica do coração artificial, conduzido pelo científicas fracas e estar enfatizando a necessi-
National Institute of Health em 1969; a partir dade de gerar ensaios clínicos randomizados
de 1975, através de um programa do U.S. Office para dar sustentação a uma melhor assistência
of Technology Assessment (OTA), observou-se tecnológica. Embora o papel dos ensaios clíni-
considerável promoção das atividades de ava- cos constitua o método padrão para avaliar a
liação tecnológica (Panerai & Mohr, 1989). Para eficácia de tecnologias em saúde (por apresen-
a OTA, esta seria uma forma compreensiva de tar menor possibilidade de vieses), eles são in-
pesquisa que examina as conseqüências técni- suficientes para uma avaliação tecnológica con-
cas, econômicas e sociais das aplicações das sistente, logo, para uma tomada de decisão so-
tecnologias, preocupando-se especialmente cialmente sustentável (Goodman, 1992).
com efeitos não previstos e impactos sociais Em particular, o campo da avaliação tecno-
tardios (Goodman, 1992). lógica tem se confundido com o da avaliação de
Mas “avaliação tecnológica”, diferentemen- qualidade. Embora haja muito em comum en-
te do sentido original, tem sido usada em refe- tre os dois campos, devido aos evidentes impac-
rência a qualquer forma de avaliação de inter- tos da tecnologia sobre a “qualidade” ampla-
venção em saúde, criando ambigüidades. Esta mente entendida, em sentido mais técnico, a
ambigüidade do conceito – e a dificuldade em avaliação tecnológica visa avaliar a performan-
distinguir seu uso daquele em outras áreas de ce da tecnologia, ao passo que a avaliação de
avaliação – talvez se explique porque, à medida qualidade refere-se à extensão do campo defi-
que uma nova tecnologia se difunde, gera dife- nido pelas várias situações em que a tecnolo-
rentes expectativas nas indústrias, nos pesqui- gia é usada (Donabedian, 1988). Em outros ter-
sadores, órgão reguladores, profissionais de mos, o objeto primário da avaliação da quali-
saúde, donos de hospitais, provedores de servi- dade é o cuidado (ou assistência) e, somente
ços e usuários. Assim, conforme os seus interes- por inferência, as performances de quem par-
ses respectivos, tais atores podem ter preocu- ticipa dos cuidados que a incorporação tecno-
pações diferentes quanto à segurança, eficácia, lógica torna possíveis, em uma relação prag-
efetividade, custo, relação custo-efetividade, mática de adequação de meios e fins. Já para a
impacto econômico e social, e isso certamente avaliação tecnológica, o objeto são os indica-
é fonte de conflitos. dores dos cuidados (os meios) e, apenas de for-
Por sua vez, a experiência com os efeitos ma indireta, a qualidade do cuidado (os fins).
colaterais de inúmeros produtos industriais, a A avaliação tecnológica tem produzido in-
baixa resolutividade dos serviços e a má utili- dicadores e padrões de eficácia, efetividade e
zação dos recursos, contribuiu para a compre- eficiência, conceitos que também variam na li-
ensão de que, além do papel prima facie bené- teratura. As definições de eficácia e efetividade
fico da tecnologia, existe um potencial de con- adotadas pela OTA, têm sido amplamente utili-
seqüências nocivas não previstas ou ignoradas. zadas. Segundo esta agência, eficácia refere-se
Por isso, a avaliação tecnológica foi concebida ao resultado de uma intervenção realizada sob
como um meio de identificar tanto os efeitos condições ideais, bem controladas, como nos
de “primeira ordem” das tecnologias quanto os ensaios clínicos ou em centros de excelência;
de “ordem superior”, não intencionais ou im- efetividade diz respeito ao resultado de uma in-
previstos. tervenção aplicada sob as condições habituais
Mas a flexibilidade na utilização do concei- da prática médica, que estão mais ou menos
to de avaliação tecnológica em contextos e si- longe do ideal. Por fim, a eficiência, segundo

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Donabedian (1988), pode ser medida, sob con- tecnologia em pauta, ponderando os conflitos
dições próximas do ideal ou na prática diária, de interesses em jogo e os efeitos sociais da tec-
como relação entre input e output. nologia (Liberati et al., 1997).
A definição de qualidade é mais problemá- Isso tem importantes implicações morais,
tica na área da saúde, por ser repleta de valores pois os efeitos sociais de uma tecnologia de-
sociais e subjetivos. Mas, neste caso, o concei- pendem também dos sistemas de valores mo-
to de qualidade talvez só possa ser abrangente rais e políticos vigentes em determinado con-
e complexo, visto que deve-se lidar com multi- texto social, sendo, portanto, os efeitos sociais
plicidade de fatores, tais como modalidades de inevitavelmente “mediados” por tais sistemas
acesso, adequação, efetividade, eqüidade, cus- de valores. Embora historicamente “razão téc-
tos e satisfação do paciente (Donabedian, 1980; nica” e “razão moral” tenham sido vistas como
Vuori, 1982). opostas, esta idéia é enganosa “porque uma ra-
Atividades de avaliação tecnológica têm sur- zão técnica, para ser uma verdadeira razão hu-
gido em resposta a necessidades diversas. Fa- mana, deve ter em conta valores morais”, e “uma
tores como as especificidades dos processos razão ética que não tem em devida conta a efi-
decisórios, aspectos políticos e econômicos, cácia e a eficiência é sem dúvidas injusta” (Cor-
bem como a variabilidade cultural, são funda- tina, 1998:25).
mentais e envolvem inevitavelmente a impos-
sibilidade de um método ser aplicável a todas
as situações. Por outro lado, a falta de estrutura Interfaces e distinções entre Avaliação
metodológica comum tem dificultado a inter- Tecnológica e Bioética
pretação de avaliações realizadas em vários lo-
cais. Nesse sentido, o trabalho do European-As- Os sucessos da medicina contemporânea de-
sessment (EUR-ASSESS) Subgroup on Methodo- pendem fortemente da incorporação de tecno-
logy desenvolveu-se como parte de um projeto logias diagnósticas, terapêuticas e reabilitado-
para sistematização da atividade de avaliação ras, que têm sido mais proeminentes nos hos-
tecnológica, com os objetivos de delinear um pitais do que na atenção primária.
conjunto de seus elementos básicos, prover Boa parte da tecnologia médica tem sido
uma diretriz para que tais elementos fossem muito útil, estando os produtos imunobiológi-
executados com padrão de qualidade aceitável cos e as vacinas entre os melhores exemplos de
e melhorar a divulgação dos resultados (Liberati sucesso. Porém, os interesses das indústrias de
et al., 1997). Desta forma, os autores esperavam fármacos e equipamentos médicos podem di-
propiciar melhor uso dos resultados das várias recionar os rumos da inovação tecnológica, a
avaliações e prover uma base consensual para formação e a prática médica; a transição epi-
a colaboração internacional na condução das demiológica pressiona as necessidades dos in-
avaliações feitas em contextos diferentes pelo divíduos; o público prefere produtos tecnoló-
estabelecimento de um padrão de procedimen- gicos a mudanças de hábitos de vida que pode-
tos e métodos. riam obter resultados melhores a longo prazo.
Agora, se a avaliação tecnológica em saúde Para Callahan (1996), isso tornaria a medicina
está preocupada com o impacto e as conse- “vítima” de seus próprios sucessos, razão pela
qüências da assistência e das decisões das po- qual seria imperioso que a avaliação tecnológi-
líticas sanitária, no caso de tecnologias novas ca levasse em consideração as conseqüências
esta ponderação se dá em situação de incerte- sociais a curto, médio e longo prazo, o que im-
za, visto que os dados são incompletos. Por is- plica em avaliar o significado moral das tecno-
so, opta-se, muitas vezes, por avaliar as conse- logias devido a suas conseqüências em termos
qüências da assistência por inferência a partir de qualidade de vida da população. Por isso,
das tecnologias em saúde vigentes (Liberati et analisar o sentido moral seria tão importante
al., 1997). Mas este procedimento tem sofrido quanto avaliar a eficácia clínica, apesar da re-
numerosas críticas por ser freqüentemente in- cente ênfase em modelos probabilísticos e na
fluenciado por considerações políticas e eco- “medicina baseada em evidência” (Evidence
nômicas, que interfeririam na isenção da ava- Based Medicine Working Group, 1992), visto
liação. De fato, devido às interfaces com a ava- que a prática médica é uma prática de alguém
liação da qualidade, a avaliação tecnológica sobre outrem e o julgamento individual do mé-
deve simultaneamente garantir a fidedignida- dico (ou prestador de tratamentos e cuidados
de dos dados, a fim de poder explicitar o nível médicos) não poderá nunca ser totalmente
de evidência que existe por trás de cada con- substituído por probabilidades.
clusão e recomendação, e responder às neces- Outro aspecto moralmente relevante diz
sidades das partes interessadas nos efeitos da respeito à avaliação da prática de introduzir

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tecnologias novas antes destas terem sido bem de que se tenha presente a legitimidade dos di-
avaliadas, pois a incorporação prematura de reitos de todos os envolvidos e as melhores
tecnologia, além dos inevitáveis riscos para a conseqüências possíveis do acordo.
saúde da população, ao sobrecarregar os siste- Poucas tecnologias de saúde foram compro-
mas sanitários de custos moralmente contes- vadas como sendo a resposta mais apropriada
táveis, torna mais difícil a retirada a posteriori para a solução de um problema determinado.
daquelas que não se mostrarem efetivas ou Isso talvez explique porque, no campo da saú-
sem relação custo-benefício favorável. de, ocorra freqüentemente a “importação” de
Por isso é necessário implementar, encora- tecnologias de outros campos (como a física ou
jar e financiar melhor as atividades de pesquisa a biologia), por julgá-las supostamente mais fi-
nas diversas áreas de avaliação em campo sani- dedignas. Mas isso não exclui que, na prática,
tário, incluindo pesquisa em informação e sis- ter-se-á que proceder pelo método empírico da
temas de processamento de dados em conjun- tentativa e erro.
to com as modalidades diagnósticas e terapêu- As implicações éticas da incorporação tec-
ticas, as quais só podem melhorar a própria nológica vão desde as questões relativas à lici-
avaliação como um todo. O esforço deve incluir tude moral das tecnologias em si (o caso do de-
tanto as tecnologias de alto custo e complexi- bate internacional sobre a moralidade da clo-
dade quanto as mais simples, freqüentemente nagem é exemplo disso); passando por aquelas
só usadas ambulatorialmente. Mas tal esforço relacionadas à ponderação da relação entre
terá impacto reduzido se não houver também meios e fins, como no caso dos ensaios clínicos
avaliação dos fatores que influenciam os mo- em que os sujeitos, objeto da pesquisa, não se-
dos como os profissionais de saúde respondem rão necessariamente os diretos beneficiários da
às evidências oriundas das pesquisas de avalia- pesquisa (é o caso, por exemplo, das vacinas pa-
ção tecnológica e de resultados. ra portadores de HIV ), que pressupõem ques-
Entretanto, a divulgação de diretrizes claras tões de não maleficência e beneficência; até a
sobre determinada tecnologia não envolve que prática médica dos clínicos e dos profissionais
os dados da avaliação venham a ser absorvi- de saúde em geral, que implicam inclusive ques-
dos pela prática médica, pois as evidências têm tões de alocação de recursos, envolvendo justi-
mostrado que, apesar da avaliação de efetivi- ça social e eqüidade.
dade e das diretrizes melhorar a qualidade da Segundo Liberati et al. (1997), no documen-
assistência médica, os médicos ignoram, mui- to citado do EUR-ASSESS Subgroup on Metho-
tas vezes, as implicações morais, preocupan- dology, a discussão dos aspectos éticos e sociais
do-se essencialmente com os aspectos científi- envolvidos nas tecnologias de saúde ter-se-ia
cos e metodológicos. limitado, muitas vezes, à mera enumeração e
A discussão ética tem sido enfrentada em descrição desses aspectos, sem entrar propria-
estudos que abordam tecnologias específicas mente no mérito da análise moral. Uma outra
(como reprodução assistida, transplantes de ór- abordagem, dita avaliação tecnológica interati-
gãos e tecnologia genética), porém mais do pon- va ou construtiva e mencionada pelo mesmo
to de vista da ponderação entre custos e benefí- documento, considera que os assessores envol-
cios do que em artigos substantivos a respeito vidos na avaliação tecnológica deveriam pro-
das implicações morais da incorporação tec- curar identificar os possíveis conflitos sociais e
nológica em saúde. morais originados pelo uso de uma tecnologia,
Agora, a incorporação tecnológica visa, a a fim de promover o entendimento entre as vá-
princípio, prevenir e aliviar o sofrimento das rias partes. Entretanto, esta abordagem retém
pessoas, o que faz parte do campo dos “direitos ainda o “viés” do paternalismo médico (Häyry,
dos consumidores” (Narveson, 1998), isto é, visa 1998), uma vez que parte do pressuposto cor-
a “qualidade de vida” dos indivíduos, o que cer- reto de que o assessor (freqüentemente médi-
tamente possui relevância moral. Ademais, pro- co) detém o conhecimento inicial, mas chega à
blemas morais sérios surgem quando os obje- conclusão, incorreta, de que cabe somente a ele
tivos não são alcançados devido a conflitos de identificar os aspectos relevantes, que só então
interesses que impedem o acesso às tecnolo- serão objeto de discussão entre as partes en-
gias a amplas camadas populacionais, tornan- volvidas. Assim sendo, a intenção interativa do
do-o assim uma fonte de injustiças. Nesse caso, processo acaba de fato subsumida aos aspec-
para sair do impasse, a única solução encon- tos técnicos e ao poder médico, pois os autores,
trada pelas sociedades liberais democráticas embora reconheçam e valorizem a dimensão
é, muitas vezes, o acordo baseado em compro- ética da atividade de avaliação tecnológica, aca-
missos e negociações entre partes em conflito. bam priorizando os aspectos epistemológicos
Isso é perfeitamente legítimo moralmente, des- e metodológicos. Ou quando fazem a necessá-

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ria distinção entre aspectos científicos e aspec- de na definição de quais benefícios são impor-
tos morais – para poder em seguida articulá- tantes e de que parcela de custos – diretos e in-
los – acabam incorrendo no viés paternalista diretos – ela está disposta a arcar.
que é, em última instância, um subproduto da O mesmo acontece com a produção nacio-
subsunção do saber moral ao saber técnico- nal. Os poucos trabalhos encontrados na base
científico. de dados priorizavam a necessidade da cons-
trução e utilização de indicadores e padrões na-
cionais baseados em “evidências científicas” e
A literatura sobre a moralidade questões de perda de efetividade devido à incor-
da avaliação tecnológica poração desordenada das tecnologias (Krauss-
Silva et al., 1992, 1994, 1996; Reis, 1995). De fa-
Esta tendência se verifica na literatura especia- to, no Brasil, a incorporação e a utilização de
lizada. Em uma pesquisa via Internet à base de tecnologias médicas vêm sendo feitas, muitas
dados MEDLINE através dos termos de busca vezes, de maneira lesiva à qualidade técnica dos
listados na Tabela 1, observa-se a freqüência li- serviços tanto do ponto de vista da eficácia e
mitada de artigos que abordam questões éticas efetividade quanto do ponto de vista do custo,
e avaliação tecnológica em relação a artigos com repercussões negativas sobre o financia-
que contemplam apenas um ou outro desses mento do setor e sobre a eqüidade no acesso e
termos de busca. utilização de serviços (Banta, 1986; Krauss-Sil-
Foi feita uma revisão dos títulos identifica- va, 1992).
dos que englobavam os termos de busca ética e A incorporação desordenada de tecnolo-
tecnologia, no período de 1989 a 1998, a partir gias tem certamente implicações morais, resul-
da qual foram localizados resumos de interesse tantes de seu acesso reduzido e da perda de
para o presente estudo. A maioria dos títulos efetividade quando investimentos tecnológi-
assim identificados abordava questões éticas cos de alta complexidade são feitos em detri-
relacionadas ao uso de tecnologias específicas, mento de soluções menos dispendiosas e sem
como dilemas observados em centros de tera- os resultados esperados. Tais questões foram
pia intensiva, nas aplicações de tecnologias ge- mencionadas nos artigos nacionais acima lis-
néticas e de reprodução assistida. Raramente tados, porém sem discussão suficientemente
foram observados títulos que incluíssem a dis- elaborada e indispensável para a incorporação
cussão sobre a moralidade das atividades de das tecnologias ao campo da saúde que seja, ao
avaliação tecnológica e a maioria das publica- mesmo tempo, racional e legítima.
ções revisadas privilegiava o caráter “técnico” e Contudo, se a prática da avaliação tecnoló-
“científico” da avaliação tecnológica, procu- gica envolve considerações éticas, de fato não
rando modelos baseados em “evidência cientí- existe “solução de continuidade” entre saber téc-
fica” para definir seus conceitos e padrões de nico-científico e saber moral (Virvidakis, 1996),
um ponto de vista meramente pragmático, com isto é, entre fatos e valores, pois “que o queira-
pouca pesquisa relativa às motivações morais e mos ou não, por princípio a ciência não tem na-
às repercussões sociais dessa atividade. da a dizer sobre a conduta desejável dos huma-
Outro aspecto que tem sido enfatizado na nos, e a lei natural que ela constrói é irrefutavel-
maioria dos artigos revistos refere-se às ques- mente estranha à lei moral” (Dupuy, 1982:228).
tões econômicas envolvidas nas tecnologias de No entanto, esta distinção não é sempre res-
alto custo. A discussão sobre custo x benefício peitada. Heitman (1998), por exemplo, preocu-
aparece com freqüência, porém, geralmente pada com as questões éticas relativas às ativi-
sem levar em consideração o papel da socieda- dades de avaliação tecnológica, propõe que se-
jam agrupadas em categorias amplas de con-
ceituação normativa, diagnóstico, prevenção e
tratamento, pesquisa e avanço do conhecimen-
Tabela 1 to, alocação de recursos. A autora enfatiza que
a dimensão ética do processo propriamente di-
Freqüência de artigos identificados no MEDLINE. to da avaliação tecnológica deve ser abordada
tendo-se em conta a integralidade dos objeti-
Termo de busca Toda a base 1989 a 1998 vos do projeto, dos procedimentos envolvidos
e efeitos esperados, assim como o reconheci-
“Ethics” 53.326 29.975
mento claro e crítico dos propósitos dos ava-
“Technology assessment” 2.729 1.973
liadores. Mas, desta maneira, não se pode mais
“Technology assessment and ethics” 189 132
saber quais são os valores cognitivos e pragmá-
ticos, e quais os valores morais.

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Tecnologias de medicina de resgate, supor- drões” éticos para a prática de avaliação tecno-
te de vida, transplantes, genética e reprodução lógica será processo longo e complexo de com-
assistida têm mudado as definições de aspectos promissos e negociações. Tais autores, vindos
essenciais da vida humana, de tal forma que as do próprio campo da avaliação tecnológica,
“tecnologias têm afetado tanto as questões éti- atrelada à idéia da importância das “evidências
cas por nós formuladas, como os caminhos e científicas” e da normatização, conduzem com
meios através dos quais nos formulamos tais freqüência a discussão para um lado mais téc-
questões” (Heitman, 1998:544). Assim sendo, os nico, não ético.
modos através dos quais as tecnologias afetam Resumindo, a importância da discussão mo-
a interação humana no domínio da assistência ral é mencionada, a diversidade das culturas
à saúde e como a tecnologia médica pode ser envolvidas e a importância da discussão local
usada para melhorar as condições de vida são enfatizadas, mas a linguagem dos documentos
questões pertinentes para a bioética. revela o “viés” da própria metodologia de ava-
O campo da avaliação tecnológica tem se liação tecnológica.
desenvolvido concomitantemente ao campo
da bioética. Apesar de serem campos distintos
do conhecimento, autores da área de avaliação Bioética da avaliação tecnológica
tecnológica têm afirmado que esta atividade
apresenta significativa interseção com a bioéti- Com a conscientização crescente dos usuários
ca. Entre eles, Heitman (1998), quando escreve de serviços de saúde em relação a seus direitos,
que a avaliação tecnológica é uma atividade de surgem novos conflitos que nem sempre podem
avaliação focalizada da natureza, propósitos, ser resolvidos com os meios tradicionais da éti-
uso e conseqüências das tecnologias, voltada ca médica. Por isso surgiu a Bioética, ou “ética
para a “busca da saúde e melhor qualidade de da qualidade de vida” (Mori, 1990), que permi-
vida”. De fato, ainda que nem todas as aplica- tiu novos enfoques dos conflitos de valores para
ções específicas da avaliação tecnológica te- promover acordos entre as partes interessadas
nham objetivos eticamente orientados, há as- no processo de assistência à saúde, baseados em
pectos éticos em todas as técnicas e funções da princípios morais prima facie negociáveis nas
avaliação tecnológica, visto que estas se refe- situações de conflitivas da vida contemporânea.
rem a práticas com conseqüências sobre a qua- O caso do infarto agudo do miocárdio (IAM)
lidade de vida. Por isso, muitos autores do cam- é um bom exemplo deste tipo de conflito, por
po da avaliação tecnológica consideram que o ser uma das áreas com maior riqueza de dados
propósito ético maior dessa atividade seria o sobre as intervenções disponíveis para diag-
de transformar a política de saúde e a prática nóstico e tratamento. Com efeito, o uso de de-
médica, a fim de melhorar a saúde dos indiví- terminadas tecnologias de eficácia comprova-
duos e da sociedade (Granados et al., 1997). da em reduzir a letalidade do IAM tem sido in-
Pode-se então afirmar que existem razões ferior ao esperado em várias séries internacio-
históricas para se falar em “inevitáveis interfa- nais onde o acesso à terapêutica não é fator li-
ces” entre avaliação tecnológica e bioética, sen- mitante. O estudo multicêntrico do European
do que seu desenvolvimento se dá com a sofis- Secondary Prevention Study Group (1996), por
ticação da tecnologia biomédica (Jonsen, 1993; exemplo, revelou que 20% dos casos de IAM
Heitman, 1998). com indicação de terapêutica trombolítica in-
Mas existe também uma razão especifica- travenosa não receberam o tratamento. Tem si-
mente filosófica, visto que a necessidade de do relatado também o uso excessivo de tecno-
abordar a dimensão ética da avaliação tecnoló- logias em relação ao sugerido pelas evidências
gica resulta do fato das tecnologias de assistên- científicas, como o elevado uso de procedimen-
cia à saúde terem o objetivo de ajudar aqueles tos invasivos de angioplastia coronariana após
aos quais elas são aplicadas. Assim sendo, a tec- uso de trombolíticos no IAM em pacientes es-
nologia de avaliação tecnológica deverá, após táveis (Franco & Topol, 1994).
ponderação de riscos e benefícios, prescrever a Usando o banco de dados secundários da
melhor solução possível do ponto de vista do Autorização de Internação Hospitalar (AIH), de
bem estar humano. 1995, e os padrões nacionais elaborados por
Entretanto, os métodos de avaliação tecno- Krauss-Silva et al. (1996), a avaliação preliminar
lógica vêm sendo utilizados por número cres- da efetividade da atenção hospitalar a esta con-
cente de indivíduos e organizações, que têm dição no Rio de Janeiro sugere perda de efetivi-
seus propósitos e interesses diversos. Dessa for- dade, mesmo para os casos que tiveram acesso
ma, autores como Liberati et al. (1997) e Heit- a uma unidade coronariana (UC). A taxa de le-
man (1998) apontam que a articulação de “pa- talidade para o conjunto de casos de IAM inter-

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nados em UC foi 17,9%, superior ao padrão de vezes resistem em seguir os dados, caso se sin-
11,2% estimado para uma UC do tipo mais sim- tam pressionados ou quando se considerem
ples (contando apenas com tecnologias de pre- mais qualificados do que os autores das orien-
venção e tratamento da parada cardiorrespira- tações; b) embora considerem que dados de
tória e aspirina). Entretanto, se são observados, efetividade/resultado e diretrizes conduzam às
por um lado, tais indícios de baixa efetividade melhores práticas, julgam que ainda não foi es-
na assistência hospitalar ao IAM no Rio de Ja- tudado o risco de uma overcompliance aos mes-
neiro, por outro, já se nota a incorporação de mos; c) nem sempre lêem as publicações perti-
procedimentos terapêuticos de alta complexi- nentes devido à quantidade de informação dis-
dade, como a angioplastia primária, também ponível; logo, freqüentemente fazem julga-
sem controle adequado dos resultados obtidos mentos sem conhecer as diretrizes; d) necessi-
(Souza et al., 1998). Tais exemplos certamente tam normas para julgar quando as diretrizes
merecem reflexões da bioética. precisam ser adaptadas ao contexto real.
Em países em desenvolvimento, um dos Outro exemplo refere-se aos last chance
motivos de perda de efetividade é o mau uso da treatments (discutido sobretudo em relação ao
tecnologia, que pode resultar de indicações er- câncer), promissores em estudos preliminares,
radas e/ou execução inadequada. Estas, por sua e que podem salvar, prolongar e melhorar a
vez, podem ser secundárias com relação a pro- qualidade de vida dos doentes. Mas tais ações
blemas de treinamento e de interesses econô- não são ainda comprovadas cientificamente
micos como a distorção das indicações. A per- (Sabin, 1997). Neste caso, se o tratamento for
da de efetividade resulta também de defeitos efetivo para o paciente, não oferecê-lo pode
da tecnologia, que são passíveis de melhoria, provocar dano prematuro e infringir os princí-
ou da manutenção inadequada. Outro motivo pios da beneficência/não maleficência; mas, se
é ainda o uso da tecnologia em situações hete- não for efetivo, mantê-lo implica em gastar re-
rodoxas, diferentes das dos ensaios em que a cursos finitos que poderiam ser mais efetivos
eficácia da tecnologia foi documentada (Escos- em outros procedimentos, infringindo o prin-
teguy, 1998), freqüentemente na ausência de cípio da justiça distributiva. O responsável pela
uma ou mais tecnologias acessórias presentes política de saúde deve considerar todas essas
nos ensaios clínicos. questões e ponderá-las, pois elas envolvem di-
As questões relacionadas à “incorporação lemas morais que não podem ser dirimidos a
heterodoxa” de tecnologias médicas têm certa- priori, mas somente após uma inferência com-
mente uma dimensão ética (Krauss-Silva, 1992), plexa e incerta que resulte em tomada de deci-
pois pode-se perguntar: até que ponto é etica- são. Isso tem seus custos em termos sociais e
mente aceitável “adaptar” uma tecnologia, cu- políticos, que só poderão ser aceitos se estive-
jo efeito foi documentado sob condições espe- rem de acordo com um padrão moral razoável
cíficas que não serão atingidas? Como enfren- e socialmente aceitável.
tar o fato da prática médica ter incorporado Agora, algumas organizações norte-ameri-
freqüentemente tecnologias sem eficácia com- canas de managed care já custeiam tratamen-
provada? É moralmente aceitável aplicar tec- tos quando estes fazem parte de um ensaio clí-
nologias quando o resultado não é conhecido nico, mas não isoladamente, devido aos riscos
ou previsível? É lícito aplicar recursos, reconhe- financeiros envolvidos. A este respeito, pode-
cidamente finitos, em tecnologias cuja efetivi- se dizer que um Estado de direito que garanta
dade é aquém da esperada ou, simplesmente, os direitos legítimos de seus cidadãos, suscetí-
não conhecida? Como generalizar resultados de veis de avaliação imparcial, constitui um con-
ensaios clínicos controlados, sem ferir nem a texto moralmente razoável de interação social
correta metodologia nem os princípios morais? entre indivíduos. Mas, um Estado “justo” deve
Em estudo desenvolvido pelo Hastings Cen- saber também que nem todos seus cidadãos
ter, sobre como médicos usam dados de avalia- têm condições parecidas, portanto tendo que
ção de efetividade/resultados e diretrizes (Boy- optar entre privilegiar seus cidadãos mais des-
le, 1997), objeções foram levantadas pelos mé- providos ou fazer de conta que isso não existe,
dicos, tais como: 1) questionamentos quanto à o que acarreta saber quais custos são pertinen-
confiabilidade dos dados ou à objetividade das tes e eticamente relevantes para as decisões
diretrizes; 2) apesar de alguns médicos consi- sobre políticas de saúde que, em princípio, não
derarem os dados confiáveis, não seguiam as deveriam considerar a saúde como um bem
evidências por causa da solicitação do pacien- qualquer, mas sim um bem que é a condição
te, da não aplicabilidade dos dados ou receio indispensável para outros bens e garantido por
de processo jurídico. Entre as conclusões do es- lei, como é o caso da Constituição Brasileira de
tudo, constatou-se que os médicos: a) muitas 1998 (Brasil, 1988).

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BIOÉTICA E AVALIAÇÃO TECNOLÓGICA EM SAÚDE 959

Uma maneira de resolver eticamente este nais de avaliação tecnológica, e não simples-
tipo de dilema passa necessariamente por um mente a incorporação de soluções “importa-
diálogo entre paciente, família, médicos, prove- das”, certamente poderá auxiliar na análise ra-
dores e pesquisadores clínicos, o que parece ser cional e imparcial deste quadro.
adicionalmente uma boa oportunidade para Mas para que as ações reguladoras da quali-
exercer decisões colaborativas, resultantes do dade da assistência à saúde e o monitoramento
exercício do diálogo entre partes em conflito. de seu “impacto” sejam efetivos, as várias esfe-
Contudo, para contextualizar o debate de ras do governo devem dispor de sistemas de in-
forma adequada, não podemos esquecer as ca- formação confiáveis, que abranjam tanto o se-
racterísticas do atual processo de globalização tor privado quanto o público, com dados sobre
que supõe, no nível social, o desmantelamento custos, quantidade e qualidade dos serviços
dos mecanismos provedores do Estado que de- oferecidos.
fendem os mais desprovidos, o que agudiza os Do ponto de vista moral, tanto as ativida-
conflitos sociais. Por isso, no Brasil (e demais des de avaliação tecnológica quanto as do fun-
países latino-americanos) é essencial a discus- cionamento adequado de um sistema de ava-
são relativa ao enfoque público da bioética, já liação e melhoria da qualidade da assistência
que é crescente a “sensação” de que o campo dependem de informações confiáveis, produ-
sanitário enfrentará, cada vez mais, dilemas zidas em tempo hábil, visto que os sistemas de
morais implicados pelo acesso universal aos informação são também fonte de considera-
cuidados em saúde e a vigência da cultura dos ções éticas, sobretudo frente à prática crescen-
limites, visto que, neste caso, a questão moral- te da utilização de dados de fontes secundárias
mente pertinente consiste em saber se “tal li- em pesquisas, sem que os indivíduos envolvi-
mitação fatual [é] também eticamente justificá- dos tenham conhecimento deles.
vel” (Schramm, 1997:235). A prática de avaliação tecnológica é um âm-
Do ponto de vista da bioética laica e plura- bito de reflexão do campo da saúde, cuja im-
lista, a utilização do principialismo pode ser portância tentamos enfocar do ponto de vista
um meio adequado para enfrentar esta discus- de suas implicações bioéticas, pois a incorpo-
são, já que os princípios morais são prima facie ração da dimensão bioética na avaliação tec-
(não absolutos), que podem portanto entrar em nológica possibilita uma abordagem mais com-
conflito, mas também em negociação. Em ou- preensiva da saúde pública, inclusive porque
tros termos, devido à sua preocupação tanto visa integrar o problema, moral e politicamen-
com o contexto concreto e evolutivo da morali- te relevante, da equidade na distribuição dos
dade quanto com a pluralidade dos sistemas recursos, que, sem dúvida, constitui um dos di-
morais das sociedades secularizadas contem- lemas mais complexos enfrentados tanto pela
porâneas, o modelo principialista parece ser bioética pública quanto pela saúde das popula-
um modelo viável também para ações comuni- ções humanas, seus ambientes naturais e bio-
cativas que visam soluções pragmáticas, atra- tecnocientíficos.
vés de negociações entre princípios diferentes
ou através do estabelecimento de uma hierar-
quia de prioridades, negociadas previamente e
aceitas pelos envolvidos.
Entretanto, em razão do contexto social de
exclusão crescente, deve-se ressaltar a priori-
dade moral prima facie do princípio da justiça,
vista como meio de ponderar a importância re-
lativa de cada princípio.

Considerações finais

O Estado brasileiro tem sido caracterizado co-


mo hipertrofiado em inúmeras ocasiões. No
que tange à regulação da qualidade da assistên-
cia à saúde, teria atuado de forma omissa, des-
contínua e/ou distorcida, permitindo que os
interesses de grupos específicos e corporativos
moldassem as formas da assistência à saúde no
país. O desenvolvimento de atividades nacio-

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