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Poética e filosofia da resistência em duas obras

de Antônio Wagner Rocha


AURORA CARDOSO DE QUADROS*
MÔNICA NOGUEIRA CAMARGO**

Resumo: A proposta deste artigo é analisar as obras Crepúsculo de arame e Os dias partidos,
do poeta e filósofo Antônio Wagner Rocha. A investigação dos componentes essenciais de
forma e conteúdo dos versos revela o lirismo e a crítica à ditadura militar brasileira (1964-
1985). Na primeira obra, a memória desse tempo revela um ser que se angustia pelos ecos da
repressão do passado; na segunda obra, o tempo é presente e os versos expressam a
perplexidade diante da atual conduta do governo Bolsonaro, que anuncia uma perigosa reedição
do totalitarismo daqueles tempos. Quanto ao estilo, observa-se que o modo de dizer, ao mesmo
tempo poético e consciente do mundo, constrói uma resistência que se une ao outro, seu irmão,
e distingue-se da costumeira natureza panfletária. Quanto às relações implícitas, observam-se
conhecimentos filosóficos e elos mentais com teorias, como o existencialismo de Heidegger,
que subjazem às questões refletidas nos versos.
Palavras-chave: Crepúsculo de arame; Os dias partidos; Estética e Filosofia; Estética e Política.
Poetics and philosophy of resistance in two works by Antônio Wagner Rocha
Abstract: The purpose of this article is to analyze the works Crepúsculo de arame and Os dias
partidos, by the poet and philosopher Antônio Wagner Rocha. The investigation of the essential
components of the form and content of the verses reveals the lyricism and criticism of the
Brazilian military dictatorship (1964-1985). In the first book, the memory of that time reveals a
being that is distressed by the echoes of the repression of the past; in the second, time is present
and the verses express perplexity at the current conduct of the Bolsonaro government, which
announces a dangerous reissue of totalitarianism of those times. As for the style, it is observed
that the way of saying, at the same time poetic and conscious of the world, builds a resistance
that joins the other, his brother, and is distinguished from the usual pamphlet nature. As for the
implicit relationships, philosophical knowledge and mental links with theories are observed,
such as Heidegger's hermeneutics, which underlie the issues reflected in the poems.
Key words: Crepúsculo de arame; Os dias partidos; Aesthetics and Philosophy; Aesthetics and
Politics.

*
AURORA CARDOSO DE QUADROS é professora do Departamento de Comunicação e
Letras da Universidade Estadual de Montes Claros; Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada
com tema sobre o jornal comunista O Homem do Povo.

**
MÔNICA NOGUEIRA CAMARGO é Mestre em Desenvolvimento Social pela
Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes); e especialista em EAD pela mesma instituição.
Atualmente é professora do Curso de Graduação em EAD da Universidade Estadual de Montes Claros, e
professora no Curso de Especialização lato sensu em EAD, do Instituto Federal do Norte de Minas.

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Introdução abstrato, são os sentimentos e emoções
Publicado em 2014, Crepúsculo de resultantes da sua trajetória, que se
Arame, de Wagner Rocha, imprime o movimentam entre consciência política,
espírito de um ser poético inserido nos filosofia de vida e sensibilidade
problemas de uma sociedade em que humana.
ainda retumbam os ecos de uma história A linguagem é construída num
política repressiva, o período do regime movimento pendular que equilibra a
militar no Brasil (1964-1985). Outra tensão a respeito do perigo da realidade
obra do autor, Os Dias partidos, editado complexa e peculiar contra a
em 2019 e lançado em 2020, retoma a democracia brasileira. O resultado
reflexão sobre a democracia hoje e a potencial é de ponderação de forma e
referida ditadura militar, trazendo à tona conteúdo em ambas as obras. Por um
seus espectros decorrentes, nas últimas lado, o assunto político, áspero, duro,
décadas, desde o final da década de lancinante, inevitavelmente pesa,
1980 até o momento atual de produção provocando uma perturbação na
da segunda obra, no contexto político atmosfera da leitura; por outro lado, o
do governo Bolsonaro. As metáforas pathos que o artefato sugere é certo
simbolizam o concreto, em delineamento de uma aura ética e
contraposição ao discurso que tolhe sensível do sujeito poético. No poema
praticamente todas as conquistas “Contestação”, os versos explicitam
concernentes à liberdade do homem, essa ambivalência:
como o direito de se expressar e a
inclusão de minorias. Quanto ao

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A vida se esvai considerados desvios morais ou
neste país de uma paz derradeira. patologias sociais, como as orientações
sexuais minoritárias, as questões raciais
Ao céu indagamos etc. Contudo, esse poema é o único
por nossas aldeias queimadas.
poema que explicita o nome do
É tempo de armas na mão e na alma.
presidente, sendo que os demais tratam
de fatos, ideias e sentimentos. A maioria
Tempo de escuras palavras, da obra realiza muito mais uma
de assassinatos nas ruas, nos morros e construção intuitiva e um modo de dizer
[nos campos. metafórico, revelando o estilo simbólico
do poeta e definindo a primazia do
Nas praças estão bradando espírito poético sobre o conceitual. E,
os homens revoltados. ainda neste poema, observa-se que, por
Resistiremos a Bolsonaro exemplo, o ataque à vida não faz com
E a seus cegos soldados! que ela seja arrancada, como um rolo
(ROCHA, 2019, p. 32)
compressor, torturada, como numa
decapitação pela guilhotina, que talvez
Ao manifestar a resistência ao atual
fosse uma metáfora que bem
governo brasileiro, o poema erige um
representasse as atrocidades da ditadura.
panorama das decorrências dos
“A vida se esvai”. O grito, a intempérie,
discursos do presidente Bolsonaro,
a violência também são, de modo talvez
desde a campanha presidencial, como a
não intencional, mas profundamente
ideia do armamento dos civis, o
enraizados, atenuados pela indagação ao
discurso da violência contra minorias
céu. Na palavra não há um concreto
como, por exemplo, relacionadas a
esbravejar e, do mesmo modo, não
orientações sexuais, índios e sua repulsa
parece estar entredentes. Os
em relação aos mesmos. Isso gerou no
assassinatos e as armas além da
país uma indignação e revolta por parte
resistência explícita ao presidente da
de muitos brasileiros, uma vez que a
república são os contrários pathêmicos
intolerância provoca um
que, de fato, imprimem a face dura da
recrudescimento da discriminação que
poética. E, embora este poema
compreende afetos sociais acentuados
específico represente uma resistência
como vingança, fobia e ódio, o que
“armada” ao sistema, numa evidente
define o “tempo de armas na mão e na
expressão de morticínio, a sua palavra
alma.” (ROCHA, 2019, p. 32).
da obscuridade tende a construir uma
O que se explicita no poema relaciona- poética nos termos apresentados por
se às consequências explicadas por Alexander Nassau, ao analisar outra
Josiana Matias e Josenir Barros, que obra intitulada Lápis lapso, também do
ligam o governo atual ao poeta:
“aniquilamento dos direitos sociais na Poeta que se olha enquanto escreve,
vertente das políticas públicas, ou seja, ele não está livre dos resíduos de
haverá perdas políticas e sociais um estilhaçamento do real, como a
historicamente conquistadas sem ditadura que devasta as
precedentes” (MATIAS; BARROS, democracias da modernidade. Mas
2019, p. 353). O discurso do governo se trata de um realismo poético
propicia a legitimidade àqueles que diverso da agressividade panfletária
acreditam na coibição ou na extirpação, (quase sempre inevitável em
enfim, na ação rígida e extrema dos período de pressão); (NASSAU,
2019, p. 98)

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Observa-se que, de fato, ao construir Se o ser homem se define pela
essa obra de resistência, a atmosfera inserção da existência num
sombria é formada não só pela ausência horizonte temporal histórico, se a
de luz das palavras “escuras”, não morte, como significado concreto
da finitude, é o parâmetro-limite
iluminadas, mas pela carga semântica
para a criação e a recriação do
que elas carregam em seus possíveis projeto humano, se essa situação
referentes concretos e abstratos. E a considerada na sua singularidade
voz hibridamente política e poética gera a angústia de um existir
nasce das metáforas criadoras dessa devorado pelo tempo, então esses
atmosfera sombria, sendo sugestivas, dados, imediatamente presentes
inclusive, de modo subliminar, dos numa análise da existência finita
porões recônditos das torturas, da consciente de si, devem ser os
preferência pelos momentos noturnos pontos-chave de uma filosofia que
convenientes ao obscurantismo das pretende apreender a singularidade
ações, sempre dissimuladas em falsas humana na sua plena efetividade.
(ABRÃO, 1999, p. 444).
alegações. Assim, o que se ressalta de
modo predominante no espírito dos Se o eixo dessa busca do sentido do ser
poemas é a organicidade de clima e no percurso filosófico da poética se
atitude que eles sugerem. E, partindo do delineia pelas questões espirituais, o
enfrentamento verbal e resultado é de que os sentidos
concomitantemente do ferimento aprofundem-se como sugestões
psíquico e agônico do eu, o trajeto, metafísicas, para além da concretude
embora não linear, acaba conduzindo a nominal de pessoas ou de objetos
uma confluência de sentidos pares que palpáveis, do mundo natural, passando a
congregam a criação da atmosfera em tratar mais do plano espiritual, a
torno da dor existencial. Esses fatores exceção de alguns poemas que se
favorecem a expressão de aflição e o referem, por exemplo, ao Frei Tito, ao
percurso de tentativa de intelecção Paul Celan e ao poema anteriormente
sobre a vida e o homem cujas referido, a Jair Bolsonaro. Essas
elaborações de Martin Heidegger, associações cujas estruturas podem estar
segundo Bernadette Siqueira Abrão, em dispersas no plano da expressão brotam
História da filosofia (1999), tem como do desvelamento no plano discursivo e,
ponto fundamental “o sentido do ser.” ainda que possibilitadas mais pela
(ABRÃO, 1999, p. 452). E é a busca intuição poética do que pela lógica da
desse sentido que define o percurso filosofia, as questões hermenêuticas
espiritual das duas obras do poeta. As entram no lirismo de forma
ideias sobre o homem e suas questões naturalmente integrada pela sua própria
referentes ao âmago do ser ou à natureza imaterial e também pela sua
sociedade em que ele vive podem congruência homogênea com a
encontrar afinidades com a seguinte problemática representada pela poética.
ideia:

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Foto: Marco Antônio Souto Menezes / Edição: Luíza Cardoso de Quadros

Crepúsculo de arame frente, a apontar para um problema de


Na primeira das duas obras, Crepúsculo mesma natureza do ocorrido na
de arame, evidencia-se a repercussão do repressão militar. Vista à luz da
período de repressão, no plano da fenomenologia presente no pensamento
superfície e no plano profundo, no de Martin Heidegger (2013), a poesia
íntimo do eu poético, entendendo esse insere questões envoltas numa
“eu” como o ser que subjaz aos versos. problemática que oscila como báscula
Sua ressonância manifesta-se nas que ora se questiona devido ao entorno,
sensações de ser e ao, mesmo tempo, no ora se reafirma devido ao fazer poético,
ausentar-se desse ser social pelo ainda que este esteja envolvido
estranhamento e pelas ponderações do emocionalmente no conflito de valores
existir. Revelando as contradições que o que haviam sido desestabilizados pelo
contexto construiu, é o contrassenso advento do referido período. A
desse espaço externo que centraliza, organização artística tende a representar
contorna e dá o tom geral da poética. a vida presente em meio ao caos, o que
Nota-se que o ponderador, o ponto de reflete no espírito de quem a olha e a
equilíbrio, é o modo de ver e de se exprime, pelos versos, com tristeza.
posicionar perante ele. Isso ocorre em Porém, ao vislumbrar uma mudança,
ambas as obras. Nesta obra, Crepúsculo alivia a tensão e projeta a paz esperada,
de arame, o contrassenso está num plano mnemônico, lembrando,
impregnado nos ares espectrais do conforme explica Bernadete Abrão
passado e no então resultado concreto sobre o pensamento de Heidegger, que
advindo dele décadas depois. Nesse “[o] modo de ser do homem é o poder-
sentido, a obra distingue-se da outra ser, isto é, fazer da vida sempre um
criação mais recente, Os dias partidos, projeto. O fato de estar no mundo como
que manifesta a hesitação do amanhã possibilidade de ser gera a angústia, que
tenebroso e os sinais do presente, na sua pode ser entendida como sentir-se no
mundo em estado de carência ou de

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temor indeterminado.” (ABRÃO, 1999, vislumbrada em esquálido tom, urdida
p. 455). pela voz da espiritualidade leve, mas
que se deprime pela desesperança.
Gerado pelas contradições existenciais
levantadas nos versos, um embate Desse modo o conjunto da obra torna-se
revela o espírito do homem que sente a exemplar da indissociável relação entre
dor psíquica de si e a dor histórica dos sujeito e objeto, arte e sociedade,
tempos idos e que projeta um futuro representando aspectos contextuais, que
melhor. A lembrança obscura e suas Antonio Candido (2000) considera
vozes retumbam incessantemente na inerente à obra ficcional. Em “A flor e a
alma que exprime o âmbito íntimo e o floresta” Wagner (2014, p. 58) exprime
social. Sobre isso, o longo poema a contemplação noturna da vida de sede
“Crepúsculo de arame”, que intitula a e silêncio. Em “Canção para Paul
obra de 2014, alia o problema à Celan” (ROCHA, 2014, p. 57), o eu
perspectiva da mudança: irmana-se com o outro poeta, ferido da
Sigo este caminho, confuso, guiado vida, judeu sobrevivente do nazismo e
por um deus escandinavo, perdido cuja poética também retrata uma voz de
dor do mundo. A linguagem sombria
como se me ausentassem os pés e torna-se especular em ambos, e o ideal
os dias mais longos que vi cravados desses dois poetas congrega o problema
social que repercute na alma e na mente.
em meu tormento. Pudera o grito A obra de Wagner Rocha lembra
atravessar os tímpanos da dúvida também em grande medida a essência e
a forma da poesia de cunho social de
e esta areia fina que se esparrama Drummond. Interessante que parece
sobre as margens do mar.
haver também, além do ideal socialista,
[...] uma unidade harmônica entre o modo
o grito que atravessa, alto, a espessura de dizer e os traços que dão impressões
de um deserto. E vem como a invadir do modo de ser entre o itabirano e o
corjesuense. E o modo de dizer
o espaço solitário de uma aldeia muda. refletindo o modo de ser de Carlos
E vem, intrépido como um vulcão Drummond revela-se em poemas
presentes, sobretudo em Sentimento do
em chamas, a chamar os teus horrores mundo e em A rosa do povo
de vida. Pavoroso, o barco traz suas (DRUMMOND, 2002). Carlos
Drummond também cria um eu que se
mágoas, o dia a sucumbir as fronteiras
irmana e “dá as mãos” ao outro,
do medo. Decerto as águas acalmarão
(ROCHA, 2014, p. 60, 64) manifestando-se como sujeito
participante que, em tempos de
Ao exprimir o tédio, a palavra faz um “homens partidos”, é preciso mudar a
movimento duplo no qual a paisagem poesia. Os termos da metáfora “homens
exterior acaba sendo um constituinte partidos” ou “dias partidos” sugerem a
interior, uma vez que age equacionando densidade polifônica de “partidos”. Este
os ecos que ela reverbera no eu. A adjetivo indica vários referentes
ambígua cisão/imersão entre si e o implícitos de qualificativos como
mundo político faz da existência a “ferido”, “excluído”, “separado” e o
agonia em uma vida que se impulsiona substantivo “bancadas” (partidos
pelo desejo de uma renovação políticos), por exemplo. A literatura
torna-se, pois, a expressão de vários

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possíveis indivíduos e vários sentidos O que antes sonhei tornou-se
implícitos. O componente social Uma estranha aurora
concatena a voz do ser poético ao Nada restou da palavra que eu dizia
elemento externo, seu semelhante. dentro de um
claro abismo.
Nessa dinâmica, o interior expande-se
Nada restou de mim senão a febre
filosoficamente para o exterior, num Que contagiou a paisagem
modo subjetivo de ver o mundo. Tal (ROCHA, 2014, p. 55)
dialética é defendida por Antonio
Candido, concebendo a literatura como Evidencia-se o vestígio do passado
“fatos eminentemente associativos; impregnado no presente que o eu
obras e atitudes que exprimem certas consciente somatiza num processo em
relações dos homens entre si, e que, que “a temporalidade humana não é
tomadas em seu conjunto, representam uma soma de momentos, mas uma
uma socialização dos seus impulsos extensão compreensiva do passado, do
íntimos.” (CANDIDO, 2000, p. 127). presente e do futuro.” (ABRÃO, 1999,
No poema “Acontecimento” (ROCHA, p. 457). Com essa união de planos
2014, p. 56), os versos constroem a temporais, as arestas que entrecruzam as
simbologia contrastante da gaivota que, épocas no mesmo espaço geográfico,
em meio à poeira e aos martelos de também entrecruzam espaços psíquicos
operários, junta-se a esses sem, contudo, e históricos no mesmo eu. Comungando
provocar nenhuma mudança naquela com essa ideia, a explicação de Anelito
cena. A dinâmica cíclica revela a de Oliveira, em análise intitulada
realidade de um mundo que se alastra e “Depois da queda”, confirma a visão de
um microcosmo em cujo vazio se ouve que os versos de Wagner Rocha
apenas o som agudo dos martelos. O refletem a repercussão histórica,
poema lembra a ideia heideggeriana, psíquica e política do fenômeno
segundo a qual “[s]omente existe ocorrido na segunda metade dos anos
História quando existe acontecimento: 80. Desse modo, contextualiza o
essa noção somente pode ser impulso de Wagner, lembrando que
compreendida como mobilidade das “[t]ornou-se, pouco a pouco, imperativo,
várias formas de acontecer. Existir é o especialmente nos três últimos anos da
mesmo que temporalizar-se.” (ABRÃO, década, perceber o lastro político das
1999, p. 457). desigualdades sócio-econômicas,”
(OLIVEIRA, 2014, p. 65).
Em “Pós-história”, os versos localizam
um momento da estranha sensação após Aquele tempo explicitamente repressivo
a realização de um sonho. Ainda que e sobrevoado por nuvens carregadas,
alcançado o desejo alusivo a um dos “corvos do nunca mais” dos versos
pretérito esboçado, nada faz sentido de Eduardo Alves da Costa (2003), que
para o indivíduo, ainda febril do povoavam as noites dos poetas
passado ditatorial, centrado num lugar dementes com a agudeza dos atentos,
onde o sol está dividido entre muralhas ouvidos, dos agudos, inexoráveis
e o eu encontra-se perdido em hesitação “olhos de açoite” (p. 88) é a matéria de
e vazio: uma releitura subjetiva do mundo, no
poema que dá nome à obra,
“Crepúsculo de Arame”. Numa
tentativa de entender a representação do
“crepúsculo” inicia-se inevitavelmente
com a ideia de ofuscação da luz.

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Impossível não perscrutar a voz da sintaxe da estrutura verbal do simulacro
experiência do filósofo Antônio Wagner tem função de aposto do anjo, mas pode
Rocha, leitor de Heidegger e do seu se ligar ao próximo nome, tornando-se,
pensamento a respeito da “retomada do por meio do cavalgamento do verso,
ser num tempo de indigência humana, simulacro de Deus:
tempo de esquecimento da verdade Onde tudo me assusta, sinto as tuas
originária.” (ROCHA, 2018, p. 1). A Pegadas, ó anjo atormentado, simulacro
verdade sendo apagada como o dia
transmuta-se em noite, ao mesmo tempo de Deus a me amparar no fastio desta
em que a vida transcorre e a juventude madrugada. Sim, ao que tudo indica,
passa. A lucidez também se apaga pelo
obscurecimento da verdade. Todos eu existo, e a minha existência pressupõe
esses sentidos podem estar na densidade esta agônica esperança, estes olhos
da metáfora dura, de arame. Nesses
termos, no espaço da mente que se perdidos a mirar a paisagem lânguida
da vida. Pressupõe sofrer e andar só
inquieta com a diluição da verdade,
após a escuridão, a penumbra e morrer e se embrenhar pelos bosques
crepuscular bem representa o tempo mais ermos.
sombrio posteriormente vivido pelo eu, (ROCHA, 2014, p. 65).
pois a aurora, embora presente nos
versos do poeta, configura uma Torna-se perceptível certo toque de
hipótese, uma luz perdida, mas sonhada brandura na abertura do coração
pelos “poetas dementes que sonham de magoado do sujeito da criação poética e
olhos abertos”, categoria em que se da provável alusão ao referido
enquadra o eu lírico de Alves da Costa existencialismo heideggeriano. No
(2003, p. 89). O regime militar, que âmbito do jogo da poesia com a
nunca poderia antes ser retratado, existência, do agônico traço da
décadas depois, acrescido do benefício esperança, o eu perdido constata-se pelo
do distanciamento para melhor eu poeta, a partir do “resguardo”, uma
observação, ainda fomenta criações vez que “[a]ssim como não pode haver
como Crepúsculo de arame, uma obra sem ser criada (necessitando
incrementadas tanto pelo forte insumo essencialmente daqueles que criam),
filosófico, como pela potente e também o criado, ele mesmo, não pode
passional representatividade emocional se tornar algo que é sem aqueles que
no pensamento do país. resguardam”. (HEIDEGGER, 2002, p.
O homem passa pela existência numa 75). Assim, a densa simbologia da
condição de viver por viver, quase sem figura do anjo, misto de Deus/amparo e
remédio: “Ponho-me a atravessar um poesia, traz à vida o ente, ser de poesia,
mundo / que não é meu, um rio e eu a que faz versos, portanto existe. A poesia
bordo,” (ROCHA, 2014, p. 60). E neste ponto é o que cria o elemento de
termina com a sugestão dual e simbólica equilíbrio, mesmo que o eu (talvez por
da presença de um anjo simulacro, isso) esteja perdido. Aquele que seria
evocando algumas impressões em que invisível aos olhos do regime, que lhe
as acepções possíveis de simulacro, tolheria o direito de ser, concretiza-se,
como as de Jean Baudrillard (1997); e a ou em outras palavras, realiza-se no
interdependência entre a obra e aquele poder expressar-se poeticamente. Seria
que a cria (HEIDEGGER, 2002) parece o anjo dos versos de Antônio Wagner
subjazer ao discurso do eu poético. A

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uma retomada do deus nórdico, quem persona poética, com denominação em
sabe da poesia, da escritura? português de “eu poético”, aquele que
emite a fala, que diz, e a voz que subjaz
A profundidade metafísica, relacionada
aos versos, representa a circunstancial
à representação de Deus, atribuída à
tragédia do viver. O que se evidencia é
divindade corporificada no simulacro,
que os versos terminam sem anunciar,
que no final do poema se apresenta,
como em outras ocorrências nos
avizinha-se de uma elaboração de
poemas, uma predição de novos tempos,
Fernando Pessoa (2015) e possibilita
da renovação que seria um ideal
uma associação ilustrativa como forma
desprendimento utópico da tensão ou do
de buscar um aspecto possível para a
compreensão do pensamento conflito. Tal prenúncio alcançar-se-ia,
por meio do trágico momento presente,
metafísico: “Talvez se descubra que
aquilo a que chamamos Deus, e que tão em que as emoções se condensam e
depois se libertam pelo efeito catártico,
patentemente está em outro plano que
não a lógica e a realidade espacial e uma vez que a situação trágica,
“despertando a piedade e o temor, tem
temporal, é um nosso modo de
existência, uma sensação de nós em por efeito a catarse dessas emoções”
(ARISTÓTELES, 1999, p. 43). Sem
outra dimensão do ser.” (PESSOA,
2015, p. 109). E completa a sua prever essa recuperação da harmonia, o
intelecção, na sequência da mesma poema então constrói a imagem do
página: “O próprio Eu, o de cada um de crepúsculo sem, contudo, apontar para
nós, é talvez uma dimensão divina.”. um novo amanhecer, um novo tempo de
Isso se liga aos sentidos do anjo paz, liberdade e harmonia. Porém,
simbiótico, efigie e mimese aristotélica embora, ao possibilitar essa
(1999) e confluem em prol do representação crepuscular, o anjo torne-
atormentado e solitário poeta, sem, se benfazejo pelo papel que o poeta
contudo, atuar contribuindo com o exerce em seu trabalho, e uma vez que a
criação poética parece ser o instrumento
alento da catarse, também presente na
de enfretamento da angústia, numa
explanação aristotélica
configuração da existência e da arte
(ARISTÓTELES, 1999, p. 43). Em
outras palavras, a mimese, ou seja, a heideggeriana, a questão não se resolve.
O transcurso da voz finda nos versos
representação da realidade pela arte da
palavra, que é cunhada por Aristóteles finais com um apontamento cíclico, em
que a existência é representada pelos
em sua Poética (1999), em Antônio
”olhos perdidos a mirar a paisagem
Wagner, tem como matéria o trágico
lânguida/ da vida. Pressupõe sofrer e
momento que, no plano psíquico,
andar só/ e morrer e se embrenhar pelos
retumba na mente do sujeito poético.
bosques/ mais ermos.” (ROCHA, 2014,
Nesse poema específico, essa fala,
p. 65). Elimina, com isso, a
embora expresse uma “agônica
esperança” existencial, não vislumbra possibilidade da catarse, do alento e da
distensão do conflito.
uma luz que venha clarear a vida e
superar o caos, nem mesmo pela poesia,
simbolizada no anjo. Desatinado, a

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Os dias partidos p. 72). O ser que atua por meio da
A poética de Wagner Rocha, em Os palavra e pensa as questões
dias partidos (2019), obra lançada no remanescentes do regime repressor
início de 2020, instala uma atmosfera lança seu olhar que vê a nova ameaça.
tão sombria quanto aquela da obra As metáforas, sugestivas dos estados de
anterior, de 2014, numa profundeza que espírito em tempos de totalitarismo,
envolve ingredientes também geram um efeito de negatividade do eu
nebulosos, mas sublimados pela que, na tristeza da confirmação do caos,
natureza e modo como a poesia exprime introverte em espírito para tentar
os problemas. De modo central, a poesia demonstrar, por fortes metáforas,
inquieta-se com o momento atual, sentimentos, ideias e sensações
aliando-se à indignação provocada pelo inefáveis, o estado da sociedade em que
contundente discurso de intolerância do vive e a conjuntura do regime que a
presidente da república e pelos ecos da governa.
ditadura militar no Brasil, que é Em “Desatino”, a divisão entre o incerto
evocada. No equilíbrio orgânico da e o escuro parece localizar o eu entre
obra, já no início a dedicatória inclui “as dois tempos nebulosos:
vítimas históricas das várias formas de
opressão política.” (ROCHA, 2019, p.
3); e o poema final lembra aquele que
morre “nas mãos violentas do
capitalismo e da fome” (ROCHA, 2019,

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Guardo nos olhos os fatos que ferem e atenuar a luz dos
a paisagem rasa do dia, fatos, representando a penumbra da vida
o incerto caminho presente e futura. A estrutura orgânica
das coisas. se evidencia desde a construção da
[...]
história do sujeito e as pistas de
Nada levo nas mãos
A não ser este destino ferido.
experiências que teria tido, como no
poema “Frei Tito” (ROCHA, 2019, p.
Nada sei dos rumos do mundo, 71) em que os versos expressam a falta
mas estou entre o escuro de novos freis titos, personagem que
e um coração que oscila. combateu corajosamente o fascismo do
(ROCHA, 2019, p. 48). governo Médici. A representação do
enfrentamento pelo frei é exemplar para
O espaço entre dois momentos, a uma identificação do eu. O poema,
ditadura militar no Brasil, assinalada revelando o desajustado entorno da
pela ferocidade com a qual foram sociedade atormentada em que se vive,
tratados os opositores do regime, e o faz ressurgir os tempos idos. Ao
mau agouro do futuro próximo diante espelhar o presente no passado, produz
das tendências totalitárias do momento o efeito de aproximação e
presente, apontam para o dilaceramento distanciamento: aproxima o mundo e
de todas as crenças e para a reinstalação torna distantes os homens em
insana da insegurança das experiências individualismo e inércia involuntários.
pregressas. Os fatos sugeridos E assim também ocorre com os outros
fomentam a associação entre história e poemas que, entre figuras e temas,
filosofia, guardadas as proporções perfazem o trajeto de resistência numa
quanto à intensidade e à gravidade, com sintaxe não linear, mas que trança os
a acepção da morte em Heidegger que, fios de Os dias partidos. E a sociedade
explicada por Bernadette Abrão seria que apodrece na confusão de modelos
uma “característica singular ao nosso morais e éticos, onde a vida torna-se
modo de existir: o homem não apenas é incompreensível, resulta num espaço de
um ente que está-aí, lançado no mundo, sonhadores de uma espera que mais
mas sobretudo está no mundo para a apaga do que acende o amanhã, como
morte (ABRÃO, 1999, p. 455-6). A voz em “Canto necessário” (ROCHA, 2019,
exprime a impotência de nada portar, p. 70) em que o mundo se deteriora e os
além da palavra poética, como ambientes que configuram o espaço das
instrumento de tentativa de interferência contradições abrem-se aos fatos
no estigma que vive, pois o “ente é um cruciais, envoltos em atmosferas
modo de ser e, portanto, o ser o sombrias. As imagens como “a vida
determina.” (ABRÃO, 1999, p. 453). dissolve-se nas sombras”, “as palavras
Entre literatura e mundo, em que os adormecem no escuro das retóricas”
aspectos políticos insurgem como (ROCHA, 2019, p. 70) pontilham o
matéria da arte, a dor de existir vira clima nebuloso em que os sinais de
poesia. vida, flores, frutas se perdem diluídos
Assim, o efeito geral é de que os pelo mal em sua natureza putrefata. A
disposição da denúncia liga o homem ao
elementos que constroem o cenário
interior do sujeito determinam o modo mundo e a literatura passa a expressar
mimeticamente a vida morta.
como ele vê o mundo adverso a si e ao
outro, e que esses convergem para um Diante do papel político da fala que se
fenômeno antitético: buscar trazer à luz choca com o meio, pela diferença como

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vê as contradições de um “mundo diretamente explicitada, afina-se com a
obstruído”, os versos do poema “Da densa psicologia do momento, e em um
existência” tratam da perpetuação das segundo plano da obra, é uma abstração
sombras do morticínio da repressão: mnemônica ante o concreto passado, ao
Juntar teus ossos ponto de quase se poder sentir o odor do
que soçobram no chão melancólico sangue ou ouvir o eco dos gritos das
de um descampado torturas. Ao projetar a abjeção dessa
e reter tua pungente sombra história, cuja vileza do regime
que transcende a vida. acarretou-lhe a revolta individual, o eu
(ROCHA, 2019, p. 55) instala a atmosfera em que os fios se
entrelaçam no plano psíquico. Esse ser
A figura sugestiva do espectro parece que registra a agonia histórica também
reforçar o caráter enigmático do terror e implanta pela poesia uma voz que não
da morbidez que circundam os fatos. Os se rasga e vitupérios, mas se entristece
ossos revelam a desintegração e a com o terrível contexto.
passagem da matéria, mas as sombras
Observa-se a seleção vocabular da
permanecem. Impossível não rever, na
opressão e do seu retorno com a
voz política da denúncia, os cemitérios
situação política atual. Esse ingrediente
de ossos da ditadura. Os horrores dos
fortalece o conjunto orgânico da estética
fatos cruciais, sempre noturnos,
do poeta, uma vez que acresce o
complementam a natureza estilística do
elemento da sugestão, da expectativa,
estado penumbroso, e tornam mais forte
conferindo em decorrência da sua
o componente mórbido abordado nos
organização verbal a empatia, que, por
versos. Contudo, não são expressos,
um modo de dizer sem levantar o tom
mas aludidos poeticamente. Interessante
nem baixar o nível moral, torna-se elo
esse fator natural com que se concebe a
emocional e dispositivo de adesão à
força das metáforas da morbidez em que
força de alerta do perigo.
o implícito torna-se infinitamente maior
como um iceberg que se revela apenas De um modo, em parte, especular com o
na ponta. O verbo não se rasga e, por exterior, o vocabulário harmoniza em
isso, não se limita. As palavras parecem uma das suas faces com a poética da
ser as ideais para expandir, quando repressão da história do país, uma vez
caladas, a aridez e a ferocidade dos que as descobertas que desvelam os
fatos. Os ossos, como conta a história, horrores sucessivos parecem surgir mais
longe de constituírem metáfora aterrorizantes a cada dia. O tormento do
hiperbólica de um surrealismo eu espelha a natureza, que o reflete no
subjetivo, são palpáveis peças que falam plano morfológico (os termos que criam
mais do que os papéis documentais. as imagens “crepúsculo”, “tormento”,
Porém, como usados, torna-se o “ossos”, “agonia”, “grito”, “vazio” etc.)
dispositivo de apontamento ao infinito e no semântico (os significados que
da intuição poética. A ausência de luz, giram em torno da temática da agonia
pelo menos da luz que evidenciaria os interior que se volta e reflete a
detalhes, auxilia nesse efeito. Fred natureza). A essência poética, desse
Botting, em sua obra Gottic: The new modo, associa a história à natureza
critic idiom (2013), explica que a exterior, sendo que a paisagem na
ausência de luz caracteriza o estilo “poesia” é transformada de maneira a
gótico e cria sua atmosfera. A refletir o mundo interior do ser. Nesse
simbologia dos ossos, mesmo que não sentido, a literatura imita tanto a vida

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quanto a natureza, transformada pela No poema “Paisagens”, a densidade do
visão do eu sobre a vida. Mas ainda plano semântico é intensificada pelos
aqui se observam elementos interiores termos que se organizam para
que ponderam pelo olhar o mundo descortinar os atributos do panorama da
exterior, como a “transcendência da decomposição:
vida” que atenua o sentido mórbido, São estas as palavras que se despem
pela suavidade da expressão. A no vão da manhã. Estes, os escombros
“melancolia”, representando nostalgia, onde, incólume, o dia renascerá.
atenua o sentimento provável do Estes, os nomes dissipados na triste
doentio cenário de ossos. música das horas. As coisas
que tangem ferindo a voz insolúvel do
Outro leitor da poética de Wagner mundo.
Rocha, Alexander Nassau, ao ligar a São estas as entranhas de onde brotam
palavra artística do poeta ao violento as nuvens e os caminhos partidos.
espaço histórico da repressão política, Estas, as muralhas e as pálidas orquídeas.
explica-a da seguinte forma: [A terra fecunda onde paira o sonho
a poesia vai “sangrando como um da existência. Um rio que transborda
segredo”, diz a bela aliteração, na sede inefável do poema.]
porque o poeta é filho de uma São estes os cavalos aéreos que se
ditadura que cuida, sobretudo, da irrompem,
paulatina eliminação do concreto. absortos, no sono das papoulas.
Tempo do homem-pêndulo. Vigora Aqui vagueiam lânguidos insetos,
o super-regime que corrói as sombras de serpentes, vozes violentadas.
pessoas por dentro, deixando-as E esta luz que cega os arabescos.
expostas à ilusão de que, Este pátio que abriga os espectros da
consumindo cada vez mais ou infância.
camuflando-se as dores do presente, São estas as casas abstratas, as árvores
o mundo evolui e as sociedades amanhecidas.
avançam. Porém, a verdade nua e Estes, os espelhos trincados dentro do
amarga é que o mundo real perde instante.
terreno, que todos os dias a (ROCHA, 2019, p. 72)
fantasmagoria coletiva triunfa cada
vez mais em ritmos rápidos. Nesse procedimento parece residir
(NASSAU, 2014, p. 98). também, pelo efeito exposto, o
potencial de prender o leitor que, com
Fernanda Bernardo, considerando sua
as emoções exaltadas pelo pathos,
resistência e definindo a escrita como
possivelmente reagirá em consonância
“sobre-vivência” do poeta, atribui-lhe a
com o surrealismo que de fato se vive
radicalidade e a alteridade, o que se
no mundo real. A provável busca de
afina com a poética drummondiana, que
superar o estado aflito que antecede a
ela classifica como a “voz do escritor-
leitura, talvez seja o fator catártico pelo
poeta-pensador, digno do nome, para
desvendamento das sensações
apelar para um justo-viver-juntos no
inexplicáveis. A dinâmica emocional
mundo. Para apelar para um justo, para
funciona no modo da introjeção da
um, enfim, humano morar dos homens
ansiedade por que muitos passam,
no mundo, para convocá-lo na obstinada
irmanados na impotência e diluição da
recusa de ameaça, nunca redimida, do i-
expressividade verbal, que se contamina
mundo...” (BERNARDO, 2019, p. 9-10.
do inefável. Atando as obras do poeta,
Grifo da autora.)
ecoa o verso de “Assombro”, em que
não resta nada além de um “nome que

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violenta/ a pele das coisas, a espessura aos quais Aurelínio/Astrojildo chama de
dos entes partidos.” (ROCHA, 2014, p. “carniça gostosa”, até as formações
31). Mas a poesia equilibrada cuja abstratas das combinações vocabulares
palavra se despe parece revelar um com que representa o capitalismo,
corpo dotado da elegância poética, num observa-se a busca de identificação com
modo diferentemente leve de retratar a a visão que tem da “descompostura”
situação. Para melhor se entender essa moral do regime. Perdendo a
percepção da poética de Wagner Rocha, compostura, se for possível entender seu
tome-se, por exemplo, O poema sujo de estilo com essa expressão também
Ferreira Gullar, em que a palavra metafórica, aqui criada, o articulista do
representativa do regime militar despe, jornal vai ao encontro dos espíritos em
por assim dizer descendo até o chão, estado limítrofe contra o governo
para revelar a sujeira da miséria Vargas e os problemas das grandes
brasileira. Os estilos se distinguiriam potências mundiais, definidos por
quase em oposição, não fossem a Astrojildo pereira.
sensação deflagrada pela essência da Seguindo a linha da construção do eu
ideologia, as belas metáforas em imagens e sentimentos surreais, é
representativas de abstrações poéticas, importante ressaltar que não se quer
também em Gullar, (sem pretensão dizer que o ar de opressão, de certo
valorativa contra o vocabulário modo aliviado pelo estilo de Rocha, seja
obsceno, que talvez exista atenuado também pela palavra, mas, ao
inconscientemente) e o sentimento de contrário, a poética fecha o que se abriu,
oposição e agonia em ambos. repetindo a mesma atmosfera de
São muitos os exemplos do ímpeto da escuridão e constatação da precariedade.
radicalidade expressiva que se pode Mas é o sentimento gerado pela
comparar porque, ao contrário do modo expressão que, refletindo um modo de
como o poeta analisado escreve, rebaixa ser, seleciona termos que parecem
o nível vocabular do plano expressivo. estabelecer o equilíbrio do efeito
Há, por exemplo, Astrojildo Pereira, o estético pela poesia. No poema final
“revolucionário cordial”, conforme intitulado “Alteridade”, o ente
definição feita por Martin Cezar Feijó posiciona-se ao lado dos outros homens,
(2001). A sua efetiva afabilidade não o com quem se irmana na constatação da
faz amenizar a expressão “apodrecida”, própria confluência social, política e
mal cheirosa e cáustica, da palavra com humana, de um mundo sem luz e sem
que expressa o regime dos anos 1930. É ar. O outro é o opaco espelho do ser
assim que procede como articulista no que, por fim, admite o aniquilamento da
periódico O Homem do Povo luta e da esperança:
(ANDRADE; GALVÃO, 1984), em O outro, a extensão do meu eu,
que, sob o pseudônimo “Aurelínio a sombra de mim nas paredes finitas do
Corvo”, representa o canibalismo tempo.
devorador do mundo capitalista, numa O outro, meu irmão perto e distante.
rede hiperbólica de sarcasmos, na seção
que veicula as notícias referentes aos O outro é aquele que morre, a cada dia,
problemas do mundo capitalista. nas mãos violentadas do capitalismo e da
Enquanto Wagner predominantemente fome.
lamenta, Astrojildo festeja, como forma
de agredir o sistema. Desde as palavras É aquele que a política sórdida
escondeu atrás de janelas escuras.
usadas para expressar esses problemas

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existência. Algumas ligações lógicas
O outro é o silêncio ou o grito perfazem o caminho do caos social,
quando o ódio nasceu no coração duro dos possibilitando um processo de se criar
poderes um fio de memória que vai atando
e aniquilou a luta e a esperança.
pistas da desconstrução genialmente
coerente (e coerente exatamente porque
Considerações finais representa a diluição essencial) que se
Fazendo um percurso digressivo do que exprime.
se disse neste estudo, é possível Assim, este estudo, que iniciou
verificar uma poética de resistência, que buscando os sentidos contextuais,
em alguns pontos explicita e deixa filosóficos, os recursos estéticos e o
patente sua concretude expressiva. Em clima dos poemas de Crepúsculo de
outros, que constituem a maioria das arame e de Os dias partidos, observa
duas obras de Antônio Wagner, a que ambas as obras procedem a uma
configuração se apresenta em uma interiorização do social e uma
composição mais intuitiva, em nuances socialização do interior do eu, numa
e estruturas sugestivas, como a natureza conjetura subjetiva de si e da história.
semiótica do pensamento ou, mesmo, Nesse procedimento poético e
como a representação do estado filosófico, observa-se que, sem intenção
psíquico do ser ficcional em conflito. de criar uma sintaxe sempre direta e
Essa técnica, longe de tornar árdua a iluminada, nem o contrário de propor
leitura, faz da experiência estética uma uma ruptura com toda forma linear da
dinâmica também intuitiva, de fluxo palavra poética, a poesia de Crepúsculo
esteticamente harmônico e de arame e de Os dias partidos, ao
ideologicamente ético. Em alguns contrário, variam como a própria vida
versos da expressão, reveladora de um em suas variadas faces. O que,
caos interior contaminado pela entretanto, se mantém como um topos é
desordem exterior, a interação se define, a tristeza essencial e a questão da
numa intencional redundância, por existência tanto no plano da expressão
sugerir um início de impressão das quanto na superfície profunda do texto.
partes, que provavelmente se pretendam Essas confluem para expressar a
de fato como partes de uma construção perplexidade do problema que repercute
polifônica e sem contornos definidos nos versos. A partir da constatação de
em curto olhar. Mas no avançar do olhar instabilidade causada pela triste
as partes criam elos abstratos e as lembrança, em uma obra, e pelo
impressões deixadas em segundo plano recrudescimento de um discurso
vão fazendo sentido e congregando para totalitário de apologia ditatorial, em
criar a organicidade obscura e outra, exprime o indizível processo
equilibrada, não conclusiva, mas intuitivo do caos, em que predomina a
profundamente tocante em sua desordem e a oscilação. A essência
abstração metafórica. poética, no plano discursivo, revela o
Nessa configuração geral da relação leitor drummondiano e heideggereano e,
poética dos versos de Wagner Rocha, o no plano poético que, inclusive, se une
centro nevrálgico considera-se na ao ideológico, revela o leitor da dor de
construção poética de uma angustiada si e da sociedade brasileira em tempo de
contraposição ao período da ditadura repressão política.
militar no país e sua ressonância no
íntimo do eu, que traz à questão a

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