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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

ISADORA TAVARES MALEVAL

A INDEPENDÊNCIA NA REVISTA DO
INSTITUTO HISTÓRICO E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
OITOCENTISTA

MALEVAL​, ​Isador​a Tavares


A INDEPENDÊNCIA NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
OITOCENTISTA
R. IHGB, Rio de Janeiro, a.177 (471): 73-100, abr./jun. 2016

Rio de Janeiro
abr./jun. 2016
73

A INDEPENDÊNCIA NA REVISTA DO INSTITUTO


HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO OITOCENTISTA
THE INDEPENDENCE IN THE REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO IN THE
NINETEENTH CENTURY
Isadora Tavares Maleval1

Resumo: Abstract:
Este estudo pretende investigar a forma atra- This study explores how the Instituto Histórico
vés da qual o Instituto Histórico e Geográfico e Geográfico Brasileiro (IHGB) dealt with
Brasileiro (IHGB) se posicionou historiografi- Brazil´s independence through an analysis of its
camente em relação à Independência do Brasil, journal along the nineteenth century. There was
a partir da análise de seu periódico ao longo do at first silencing surrounding the event in com-
século XIX. Nota-se que, de início, houve certo pliance with the rhetorical maxim of the “court
silenciamento sobre o evento, usando-se a má- of posterity” which left to the future to evaluate
xima retórica do “tribunal da posteridade”, que the year of 1822 and its impacts. In many cases,
lançava ao futuro a capacidade de julgar 1822 e the recurrence of this term emerged so as to ren-
suas repercussões. Em muitos casos, a recorrên- der it applicable to the institute’s archival logic
cia desse termo emergiu para dar aplicabilidade concerning the turbulent events at the beginning
à lógica arquivística da associação no tocante of the century such as those leading to our po-
aos conturbados acontecimentos do começo litical emancipation which were considered too
do século, considerados ainda muito próximos close in time. However, since the present is a
temporalmente, como foi o caso da nossa eman- temporary condition, an array of topics express-
cipação política. Mas como o presente é uma ly prohibeted by the committees of the IHGB in
categoria provisória, a partir da década de 1850 the early decades began being explored - partly
uma série de temáticas negadas peremptoria- by specialists – after 1850. And one of them was
mente pelas comissões do IHGB nas décadas the Independence – although this movement was
iniciais passou a figurar como matéria de estu- slow and cautious.
dos, até certo ponto especializados, na revista
da associação. Tal foi o caso da Independência
– ainda que esse movimento tenha sido lento e
cauteloso.
Palavras-chave: Instituto Histórico e Geográfi- Keywords: Instituto Histórico e Geográfico
co Brasileiro; Independência do Brasil; Tribunal Brasileiro; Independence of Brazil; Court of
da Posteridade. Posterity.

A HISTÓRIA COMO TRIBUNAL


Referências ao que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) pretendia empreender como História se configuram desde o dis-
curso inaugural feito por Januário da Cunha Barbosa, reproduzido no seu
periódico. Nas palavras do cônego, a agremiação era encarregada “(...)
de eternizar pela história os fatos memoráveis da pátria, salvando-os da
1 – Doutora em História pela UERJ. Professora Adjunta da UFF.

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voragem dos tempos e desembaraçando-os das espessas nuvens que não


poucas vezes lhes aglomeram a parcialidade, o espírito de partido, e até
mesmo a ignorância”2. É, assim, notória a importância conferida à forma
com que os fatos da nossa História deviam ser interpretados, longe do “es-
pírito de partido”, ou seja, de opiniões e julgamentos parciais. Sobre isso,
Barbosa indicava um determinado momento da História recente como
fonte de preocupação, como consta no seguinte trecho da sua preleção:
O coração do verdadeiro patriota brasileiro aperta-se dentro do peito
quando vê relatados desfiguradamente até mesmo os modernos fatos
da nossa gloriosa independência. Ainda estão eles no alcance das nos-
sas vistas, porque apenas dezesseis anos se tem passado dessa épo-
ca memorável da nossa moderna história, que acrescentou no Novo
Mundo um esperançoso Império no catálogo das nações constituídas,
e já muitos se vão obliterando na memória daqueles a quem mais inte-
ressam, só porque têm sido escritos sem a imparcialidade e necessário
critério, que devem sempre formar o caráter de um verídico historia-
dor3.

A apreensão com a narrativa dos fatos da Independência, conside-


rados ainda passado recente, era recorrente nas sessões da agremiação.
Januário da Cunha Barbosa, tendo sido homem com atuação de destaque
naquele movimento, apresentava seu argumento de que tratar daquele
acontecimento era tarefa de um historiador “verdadeiro”, cuja escrita le-
vasse em consideração “necessário critério”, com destaque para o valor
da imparcialidade. Apontava para a ideia de que muito sobre a Indepen-
dência já estava sendo esquecido, a despeito da proximidade do evento
com o presente – o fato de ainda estar “ao alcance das nossas vistas” – e
que, por causa de interesses pessoais, sua história estava sendo deturpada,
o que era uma grande lástima.

Esse pensamento, que sublima a imparcialidade do historiador, tem


raízes na Antiguidade clássica. Luciano de Samósata, em seu manifesto
Como se deve escrever a história, escrito no século II d.C., aconselhava
o historiador a ser antes de tudo imparcial. A escolha dos fatos narrados
2 – Januário da Cunha Barbosa. “Discurso”. RIHGB, tomo I, p. 9, 1839.
3 – Idem. Ibidem, p. 10, 1839.

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e dos testemunhos tinha de ser feita levando em conta esse princípio: os


primeiros tinham de ser passíveis de comprovação; se atuais, era necessá-
rio presenciá-los ou confiar em quem os expusesse com mais integridade,
“(...) àquelas pessoas que parece que não amputariam ou acrescentariam
algo aos acontecimentos, por compaixão ou hostilidade. Então, deve-se
ser também hábil para visar e dispor o que é mais convincente”. O histo-
riador devia ainda evitar tomar partido, olhar os dois lados, ter visão de
conjunto4.

Em outras partes do discurso de Barbosa, nota-se igualmente a apro-


priação de Cícero pelo orador. Da obra do filósofo romano foi extraída
a compreensão da História como “testemunha dos tempos” e “escola da
vida”. Tal captação do conceito não fora gratuita. Como é sabido, naquele
momento fundacional do Instituto conviviam diferentes noções de His-
tória e uma delas se enquadrava na lógica ciceroniana magistra vitae5, o
que pode ser verificado a partir da constante apresentação do termo nas
produções do IHGB.

Na ótica antiga, o passado fornecia o conjunto de exemplos que po-


diam vir a ser aplicados no presente e no futuro, definindo a História
como meio para promover o aprendizado. A permanência desse topos no
século XIX brasileiro, entretanto, expõe diferentes releituras para a fun-
ção moralizante da História. Nem sempre o seu uso propunha um sentido
prático, de esclarecer o modo pelo qual o passado ensina. Em muitos
casos, inclusive, estima-se que a repetição protocolar da expressão fazia
parte de um lugar-comum nos círculos letrados, como uma fórmula retó-
rica responsável pela legitimação da História enquanto atividade digna
de atenção e, inclusive, de patrocínio do Estado. Em outros, sobretudo
relacionados a gêneros biográficos (elogios fúnebres e necrológios, por
exemplo), é possível verificar o seu sentido clássico, de lição pelo modelo
e imitação, através da narrativa de uma vida tida como exemplar. Por fim,
4 – Luciano de Samósata. Como se deve escrever a história. Belo Horizonte: Tessitura,
2009, p. 75.
5 – Reinhart Koselleck. “Historia Magistra Vitae – Sobre a dissolução do topos na his-
tória moderna em movimento”. In: _____. Futuro passado: contribuição à semântica dos
tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 41-60.

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a expressão aparece na rotina do IHGB propondo o ensinamento através


da História, por um viés moralizante, ainda que não por meio do exemplo
e da repetição6.

Havia, não obstante, um entendimento mais moderno do conceito de


História, evidenciado a partir do que dizia o cônego sobre a narrativa dos
eventos da Independência. Ao demonstrar a fragilidade do que já vinha
sendo escrito a respeito daquele fato histórico, apresentava, por oposição,
o que devia ser feito pela instituição dali por diante. Nesse sentido, se
por um lado era necessário trazer “à luz política” escritos de brasileiros
sobre aquele e outros momentos da História do país, por outro, indicava
a conservação de documentos em arquivos, “para que a posteridade deles
se aproveitasse”7. O cônego parecia indicar que as garantias epistemo-
lógicas de uma verdadeira história passavam por um duplo processo: o
esforço da crítica documental, entendendo, assim, o documento como a
única fonte de verdade e, por isso, a necessidade de criar um imponente
arquivo no IHGB; e o afastamento temporal, haja vista que o tempo seria
tido como o mais eficaz antídoto para as paixões e os interesses humanos.
Quanto mais distante temporalmente, portanto, mais fácil para o historia-
dor atingir a imparcialidade e a perspectiva correta que levariam à melhor
apreciação investigativa8.

Aliando as perspectivas conceituais, Barbosa apresentava o tipo de


História a ser elaborada no seio do Instituto. Dentro desse modelo, verda-
de e imparcialidade aparecem como noções centrais. Ainda que fizessem
parte das aspirações próprias da historiografia desde muito tempo, no sé-
culo XIX, à articulação entre os conceitos foram agregados novos pres-
supostos, justamente quando a História passava a ser dotada de caráter

6 – De forma geral, essas são as três linhas de análise evidenciadas pela historiografia
atual sobre o emprego da fórmula magistra vitae pelos sócios do IHGB oitocentista. Val-
dei Lopes de Araujo. “Sobre a permanência da expressão magistra vitae no século XIX
brasileiro”. In: Fernando Nicolazzi et. al. (Orgs.). Aprender com a história?: o passado e
o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: FGV, 2011, p. 131-148.
7 – Januário da Cunha Barbosa. “Discurso”. RIHGB, tomo I, p. 11, 1839.
8 – Valdei Lopes de Araujo. A experiência do tempo. Conceitos e narrativas na formação
nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008, p. 152.

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eminentemente pragmático. Nessa ótica, integrava um discurso contra o


juízo do presente, por meio da expressão “tribunal da História”, estenden-
do-se a possibilidade de atingir uma História verdadeira e imparcial sobre
aquilo que não se desejava, ainda, arbitrar ao futuro9:

Os crimes, posto que seguidos de um sucesso aparentemente feliz, não


deixam de ser detestáveis no tribunal da história, se a imparcial pena
dos sábios os descreve em sua verdadeira luz. O circunspecto gênio
do historiador, sentando-se sobre a tumba do homem, que aí termina
suas fadigas, despreza argumentos de partido e conselhos de lisonja,
portando-se em seus juízos como austero sacerdote da verdade10.

Eis o dilema dos historiadores modernos: introduzir juízo nas narra-


tivas, fazendo justiça à memória dos mortos11, ou permitir que a História
proferisse por si própria seu veredito. Para este último caso, recorria-se à
evocação da experiência da história como um “tribunal”, que parecia ab-
solver o historiador de toda e qualquer suspeita de ser parcial, revestindo
o preceito retórico de “deixar falar por si mesma a verdade da história” de
ambições científicas12.

Na mesma ótica, outro sócio, Manoel de Araújo Porto-Alegre, aler-


tava para o fato de que “(...) a posteridade despe o manto das paixões
mundanas, para trajar a toga do Anjo da imparcialidade, e distinguir o
aparente do real, o falso do verdadeiro”13. À posteridade era conferido o
papel de juíza dos acontecimentos, justamente por contemplar o distan-
ciamento temporal que promovia a imparcialidade; esta, por conseguinte,

9 – Maria da Glória de Oliveira. “Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade: biogra-


fia, memória e experiência da história no Brasil oitocentista”. VARIA HISTORIA. Belo
Horizonte, vol. 26, n. 43, p. 298, jan/jun 2010.
10 – Januário da Cunha Barbosa. “Discurso”. RIHGB, tomo I, p. 13-14, 1839.
11 – Jules Michelet pode ser visto como a representação dessa percepção do historiador
como aquele que tem uma dívida para com os mortos. A esse respeito, ver François Har-
tog. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013,
p. 150.
12 – Maria da Glória de Oliveira. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como
problema historiográfico no Brasil oitocentista. 2009. Tese (Doutorado em História). Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 161.
13 – Manoel de Araújo Porto-Alegre. “Elogio dos sócios do Instituto, mortos neste 6º ano
Acadêmico”. RIHGB, tomo VI, p. 36, 1844.

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só existia em função desse mesmo deslocamento temporal garantido pelo


futuro. Uma boa chave para compreender a relação entre esses dois con-
ceitos foi oferecida pelo mesmo sócio em 1849:

(...) a posteridade é de uma imparcialidade constante para com o pas-


sado: é o tribunal da civilização, e a depositária que entesoura todas
as riquezas que lhe foram legadas por seus antepassados: a severidade
contemporânea é adoçada pela indulgência dos vindouros: o trabalho
do homem de gênio é como um monumento visto ao longe: admira-se
a sua massa imponente, a harmonia de suas linhas gerais, os contornos
de suas partes, sem se descer à análise microscópica de seus mais
pequeninos detalhes. A posteridade aceita a obra como uma herança
pingue; estima-a e a considera como produto de uma mão desconhe-
cida que a mimoseara: não há mais o indivíduo, não há mais o terrível
eu, que é o gérmen de todos os senões das obras humanas14.

O tribunal da História – ou, como será visto adiante, o “tribunal da


posteridade” – foi um topos recorrentemente utilizado pelos membros do
IHGB para ajudar na definição, então incipiente, dos objetos e da forma
de narrar a história. A problemática do presente deve ser incluída nessa
tematização, tendo em vista que a ideia de um tribunal futuro rechaçaria
qualquer possibilidade de ajuizar sobre e no presente. Há, contudo, que
se especificarem as argumentações que, ao longo da primeira década do
grêmio, apareceram para justificar os usos da expressão. Assim, se por
um lado entendia-se que a distância temporal garantiria menor emotivi-
dade em relação ao objeto narrado e, portanto, menos perigo de incorrer
em uma narrativa parcial – prenhe de “paixões” –, por outro, o avanço
do tempo poderia possibilitar um acréscimo de sentido e de compreensão
dos eventos impossíveis em uma análise direta. Nesse caso, o historia-
dor do futuro se encontrará numa posição privilegiada frente ao cronista
dos acontecimentos contemporâneos: a investigação histórica, partindo
da exigência da verdade, deverá se pautar na acuidade documental, asso-

14 – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. “Ata da sessão de 15 de dezembro de


1849”. RIHGB, tomo XII, p. 555, 1849.

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ciada ao afastamento temporal do historiador em relação ao objeto de sua


investigação15.

O JULGAMENTO DE 1822 PELA POSTERIDADE


A Independência, já se disse, foi um assunto bastante citado pelos
membros do IHGB em seus anos iniciais. Apesar de não ter sido naquele
momento considerada parte integrante da história a ser escrita, devido aos
poucos anos passados e à presença de testemunhas vivas do evento, ela
foi alvo constante de reflexão. O caso era menos de tratar historicamente
1822 do que de discutir como isso seria feito depois, apresentando aos
historiadores do futuro o caminho que deveriam percorrer para elaborar
uma narrativa fidedigna. Compreende-se, portanto, a proposta lida em 16
de março de 1839, em sessão ordinária, na qual se admitia “(...) encarre-
gar uma comissão de apresentar uma memória sobre os fatos que deram
lugar à proclamação da independência do Brasil”16.

Elaborada por Eusébio de Queiroz Mattoso Câmara, a proposição


foi aceita pelos demais sócios no mês seguinte. A aprovação veio junto
com o convite de que os senhores Joaquim Gonçalves Ledo, José Cle-
mente Pereira e Januário da Cunha Barbosa fossem os responsáveis por
formar uma comissão “(...) encarregada de coligir e escrever tudo aqui-
lo, que possa esclarecer ao historiador sobre a gloriosa época da nossa
independência”17. Nota-se que a ideia central era de preparar aquilo que
podia servir aos historiadores; não se pretendia, portanto, fazer a história
da Independência18.

Outro ponto a ser observado diz respeito à escolha das pessoas res-
ponsáveis pela elaboração do projeto. Ela demonstra o posicionamento
do IHGB em relação aos grupos políticos que atuaram no período, tendo
15 – Maria da Glória de Oliveira. Op. cit., 2009, p. 162-163.
16 – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. “Ata da sessão de 16 de março de 1839”.
RIHGB, tomo I, p. 51, 1839.
17 – Idem. “Ata da sessão de 10 de abril de 1839”. RIHGB, tomo I, p. 112, 1839.
18 – A partir da concepção moderna de História, verifica-se uma distinção entre fazer his-
tória (âmbito do político) e de fazer a História (trabalho para o historiador). Cf. François
Hartog. Op. cit., 2013, p. 23.

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em vista a notória presença dos três sócios mencionados nos aconteci-


mentos que deram origem a 1822 e a forte oposição destes em relação ao
grupo liderado por José Bonifácio de Andrada e Silva.

José Pereira e Januário Barbosa participaram do Dia do Fico. O cô-


nego foi, ainda, um dos mentores da Representação do Rio de Janeiro, di-
rigida a D. Pedro, incitando-o a desobedecer às ordens vindas de Portugal,
quando seu pai anunciava, segundo a decisão tomada pelas Cortes, que
devia retornar a Portugal. Atuou também nas gestões para fazer do prín-
cipe “protetor e defensor perpétuo e constitucional” do Brasil e dos atos
que culminaram na convocação da Assembleia Geral Brasiliense, este
último considerado importante passo para o rompimento do Brasil com
a metrópole. Ademais, Gonçalves Ledo e Januário Barbosa fundaram o
periódico Reverbero Constitucional Fluminense e, juntamente com Perei-
ra, formaram o que hoje se chama elite brasiliense19, facção inclinada ao
liberalismo mais radical. Vale lembrar ainda que, após a Independência,
Barbosa foi preso e deportado para a França, junto com outros compa-
nheiros da maçonaria, por ordem de José Bonifácio, então ministro20.

Fica clara, portanto, a abordagem através da qual a narrativa sobre a


Independência se guiaria. As palavras de Barbosa em seu relatório anual
de 1841 sobre o grupo responsável pelo referido estudo são sintomáticas:
“Eles farão pública e bem fundada a relação de fatos, que eles dão glória
imortal como principais colaboradores da independência da pátria; sua
justiça se fará manifesta, apesar do esquecimento em que são tidos”21. No
mesmo texto, relembrou o projeto do qual foi incumbido, juntamente com
os outros dois colegas. Chegava mesmo a mostrar o interesse da propos-

19 – A utilização do conceito foi inaugurada por Roderick Barman em seu livro Brazil: the
forging of a nation (1798-1852). Stanford: University Press, 1988, p. 76-77.
20 – Notória foi, portanto, a atuação desses homens na maçonaria no período imediata-
mente anterior à emancipação do Brasil: Gonçalves Ledo e Januário Barbosa eram mem-
bros da loja Grande Oriente. Para a relação de Januário da Cunha Barbosa e os outros
dois sócios do IHGB com a Independência, ver o verbete sobre o cônego feito por Lucia
Guimarães em Ronaldo Vainfas (Org.). Dicionário do Brasil imperial (1822-1889). Rio
de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 394-395.
21 – Januário da Cunha Barbosa. “Relatório dos trabalhos do Instituto durante o terceiro
ano social”. RIHGB, tomo III, p. 530, 1841.

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ta, frisando novamente o fato de que os membros eleitos para dela tratar
na comissão especial tiveram grande parte na “glória da Independência
do Brasil”. O trabalho, apesar de ainda não ter ido a público naquele
ano, estaria bem adiantado e serviria “(...) para esclarecimento de alguns
pontos da época principal da História do Império, que alguém pretende
desfigurar”. Pretendia-se, assim, que a elaboração de tal memória pudes-
se colaborar com um conhecimento verdadeiro sobre o acontecido. Não
obstante, devido a “circunstâncias imperiosas, mas não invencíveis”, a
memória estava sendo adiada para “tempo oportuno”22 – tempo este que,
ao que parece, nunca chegou realmente, pois o estudo não foi concluído.
A proximidade com o período narrado pode explicar a definição de um
prazo mais longo para que o assunto pudesse ser destrinchado sem gran-
des problemas.

Ainda sobre a relação entre a agremiação e a Independência, vale re-


cordar as palavras de Araújo Porto-Alegre em 1848, quando boa parte dos
homens que atuaram naquele movimento (incluindo Januário Barbosa) já
havia falecido. Sobre eles, dizia:

Todos esses protagonistas do grande drama, que verteram lágrimas


de dor e de prazer, que sofreram dos homens, e que foram arrastados
em triunfo; que beberam na taça do desterro o fel da prescrição, e que
ocuparam os mais altos cargos da sociedade, hoje repousam sentados
em um solo de luz e de eterna serenidade: hoje, sorrindo-se para a
terra que os viu nascer, aguardam o grande restaurador do passado, o
juiz que os há de julgar perante a humanidade, e colocá-los no com-
petente posto!23

Substituindo o ideal cristão do Juízo Final, ao futuro era dele-


gada a tarefa de julgar tais acontecimentos, já que no presente isso
ainda não era possível. A história trazia, com isso, uma força tão
moralizante, quanto assustadora. Essa metáfora, da História como
tribunal, segundo Reinhart Koselleck, “(...) se alimenta da pressu-

22 – Idem. Ibidem, p. 530.


23 – Manoel de Araújo Porto-Alegre. “Elogio Histórico Geral dos membros falecidos”.
RIGHB, tomo XI, p. 177, 1848 (grifos nossos).

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posição de uma justiça que se realiza através da história”24. Em


passagem anterior, Porto-Alegre comentava justamente sobre esse
papel restaurador do futuro, o que fazia muito sentido no caso dos
participantes de 1822:
A posteridade não tem culpa da injustiça dos contemporâneos, antes
ela é o vingador supremo, o justo reparador daqueles que sofreram
injustamente: a posteridade releva sempre os desvios do homem, uma
vez que ele lhe consagre uma flor do seu engenho, um legado de sua
riqueza intelectual, ou um fato que lhe sirva de proveito25.

Por cooptar a função de “tribunal” para si, a História faria justiça à


memória dos mortos, vingaria suas penas e repararia suas perdas. Não é à
toa que o autor apresenta a posteridade em oposição à contemporaneidade
no quesito julgamento. A primeira sabe julgar, é a única, em realidade,
capaz de fazê-lo corretamente – ao contrário dos contemporâneos que
são, quase por natureza, injustos. O que garante a justiça da posterida-
de em contraposição à injustiça da contemporaneidade é um só fator: a
passagem do tempo. Somente ela possibilita o esfriamento das emoções,
garantindo uma apreensão menos pessoal do objeto de investigação.

Aparentemente indo de encontro a essa perspectiva, Januário Bar-


bosa propôs que o IHGB assumisse a tarefa de produzir uma espécie de
diário político do Segundo Reinado: as Ephemerides26. Outra sugestão do
cônego que também demonstra a preocupação em preparar a História do
presente a ser apresentada ao futuro, ainda que sob outro aspecto, foi esta:
atento à dificuldade dos oradores do Instituto em esclarecer determinados
aspectos das vidas dos sócios falecidos, quando era necessário elaborar a
biografia destes para ser lida em sessão solene, propôs que os membros
fossem avisados a mandar os tais “esclarecimentos” sobre a própria vida,
em “(...) memória lacrada, e com declaração no sobrescrito, ao arquivo
24 – Reinhart Koselleck. “A configuração do moderno conceito de história”. ___. (Et. al.).
O conceito de história. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 147-150.
25 – Manoel de Araújo Porto-Alegre. Op. cit., p. 169, 1848 (grifos nossos).
26 – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. “Ata da sessão de 18 de maio de 1839”.
RIHGB, tomo I, p. 114, 1839. Houve leitura das Ephemerides nas sessões do IHGB entre
1840 e 1843. Depois disso, o projeto arrefeceu.

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do Instituto (...)”. Por fim, não poderia ser esquecido que havia um prazo
para que as memórias fossem abertas, “(...) quando constar a morte do
sócio a que pertencem”27.

O cuidado em criar a memória da instituição era uma constante na-


queles anos e as biografias dos falecidos que dela fizeram parte existe
como prática do IHGB até hoje. A percepção de Barbosa em facilitar
essa atividade deixa transparecer outro tipo de procedimento que trouxe
marcas muito profundas ao cotidiano da associação: o arquivamento de
documentos de cunho memorialístico ou autobiográfico até, pelo menos,
a morte de seus autores. Essa ideia de preservar os homens de possíveis
constrangimentos em vida, ao mesmo tempo que se objetivava guardar
em lugar seguro aquilo que poderia ser vislumbrado no futuro e serviria a
um propósito importante para a instituição, aparece no IHGB ao longo de
todo o período monárquico, o que pode ser verificado através da análise
de sua Revista Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro28. Nesse sen-
tido, Barbosa demonstrou a validade de o Instituto se tornar um grande
arquivo para servir aos historiadores do futuro:

O Instituto Histórico e Geográfico tomou a seu cargo reunir primei-


ramente documentos incontestáveis, despi-los de quaisquer sombras
que os possam tornar duvidosos, e assim oferecê-los a futuros histo-
riadores como indispensável material sobre que trabalhe a sua crítica
e a sua filosofia29.

Essa tarefa foi levada a sério pelos membros da agremiação, segundo


comentou Barbosa no ano seguinte: “(...) aumenta-se de dia a dia o depó-
sito de fatos históricos, que devem servir mais comodamente aos nossos
futuros historiadores, que nos arquivos do Instituto encontrarão copioso
cabedal sobre que trabalhe a sua crítica”30. Tal encargo permaneceria in-
tacto mesmo após seu falecimento, vale notar.
27 – Idem. “Ata da sessão de 19 de maio de 1841”. RIHGB, tomo III, p. 234, 1841 (grifos
nossos).
28 – Daqui por diante denominada apenas como Revista.
29 – Januário da Cunha Barbosa. “Relatório dos trabalhos do Instituto durante o quarto
ano social”. RIHGB, tomo IV (Suplemento), p. 5, 1842.
30 – Idem. “Relatório lido no ato de solenizar-se o 5º aniversário do Instituto Histórico e

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O estabelecimento do arquivo do Instituto era, em parte, justificado


em função das questões do presente. Assim, além de documentos iso-
lados, trabalhos sobre momentos recentes que pudessem motivar cons-
trangimentos eram indicados para serem guardados nas dependências do
IHGB. Dizia a esse respeito o secretário perpétuo que
Muitos escritos se têm apresentado, que o Instituto julga não dever
ainda publicar, talvez por circunstâncias mui recentes da nossa his-
tória, e talvez por menos perfeitos na compreensão de fatos que de-
vem fazer o seu complexo. As Memórias do primeiro gênero têm sido
recolhidas no Arquivo para serem publicadas quando não envolvam
comprometimento; e as do segundo foram reenviadas aos seus autores
com observações da Comissão de censura, para se darem à luz pública
depois de refundidas31.

Esse trecho, que deixa clara a postura do IHGB em relação a estu-


dos que tinham como foco os fatos recentes, apresenta também a prática
recorrente da instituição em avaliar trabalhos a ela remetidos por seus
sócios. Seguindo o modelo das academias setecentistas, o espírito asso-
ciativo era pensado em termos da concepção de um programa de trabalho
coletivizado, cujas tarefas eram distribuídas entre os associados, enqua-
drando a produção individual em limites estabelecidos32. Daí a presença
constante de mecanismos censórios para definir o que podia ou não ser
produzido pelos seus membros.

No entanto, em vez de uma junta de censores, como era o caso das


academias, o que existia no Instituto eram comissões. De acordo com
os Estatutos de 1838, o IHGB esclarecia o papel das comissões de Geo-
grafia e História: deveriam receber as memórias, documentos e artigos
oferecidos por sócios ou não sócios e, a partir de suas análises, produzir
pareceres indicando-os ao periódico, à publicação avulsa, ou, ainda, ao
arquivo da instituição. Tais pareceres tomavam por base critérios tanto

Geográfico Brasileiro”. RIHGB, tomo V, p. 6, 1842.


31 – Idem. Ibidem, p. 19-20.
32 – Havia um princípio acadêmico “(...) então em vigor de impessoalizar e coletivizar a
produção”. Ver a esse respeito Roberto Acízelo de Souza. O império da eloquência. Rio
de Janeiro: EdUERJ/EdUFF, 1999, p. 19-20.

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A Independência
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro oitocentista

acadêmicos quanto da conveniência da publicação do trabalho avaliado.


Além disso, a relevância dos escritos só era observada caso eles se coa-
dunassem com a crítica documental e estivessem de acordo com o po-
sicionamento político que, então, se estabelecia como consensual pela
instituição. Por fim, o julgamento e a aceitação de tais trabalhos levava
em conta a abordagem de temas, eventos ou circunstâncias que pudessem
afetar pessoas vivas – o que devia ser evitado a todo custo33.

Entende-se, nesse caso, a assertiva de Barbosa na passagem citada


anteriormente. A publicação de escritos apresentados ao Instituto devia
passar por um crivo que levava em conta a proximidade das circunstân-
cias neles contidas. A menos que não comprometessem nada nem nin-
guém – o que era raro, tratando-se da narrativa de momentos atuais –,
dificilmente poderiam ser publicados. Mais certo era se tornarem parte do
arquivo do Instituto, de onde sairiam em época oportuna.

Exemplo da restrição do IHGB a trabalhos que não se enquadravam


naqueles moldes foi o do programa histórico apresentado por Alexandre
Maria de Mariz Sarmento em fevereiro de 184134. Nele pretendia-se tra-
balhar com as sociedades secretas estabelecidas no Brasil, especialmente
a maçonaria. Em resposta à intenção de Sarmento, alguns meses mais tar-
de, Barbosa reprovava o programa, propondo que tal assunto “(...) fosse
discutido em tempo mais oportuno, atendendo (sic) ainda existirem pes-
soas que pode(riam) ser comprometidas com tal discussão”, e recebendo
apoio dos demais membros do grêmio35. Nesse caso, a forte oposição do
cônego se explica pelo fato de coexistirem, dentro do Instituto, herdei-
33 – Fabiana Dias. Por entre legados e demandas: um estudo sobre os programas his-
tóricos apresentados no IHGB (1838-1856). 2009. Dissertação (mestrado em História)
– Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 75.
34 – O referido programa histórico indagava: “Quais as sociedades secretas se têm es-
tabelecido no Brasil e desde quando, ou sejam nele inventadas, ou trazidas e imitadas de
outros países; os fins do seu instituto; o seu aumento e estado atual, ou a sua decadência
e extinção; que influência hajam tido, e por que meios, na moralidade do povo, nas suas
opiniões religiosas e políticas, e nos acontecimentos mais notáveis do país?”. Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. “Ata da sessão de 13 de fevereiro de 1841”. RIHGB,
tomo III, p. 134, 1841.
35 – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. “Ata da sessão de 19 de maio de 1841”.
RIHGB, tomo III, p. 235, 1841.

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Isadora Tavares Maleval

ros de facções maçônicas antagônicas, sendo ele próprio representante de


uma delas, “pró-Joaquim Gonçalves Ledo”, que contrariava, à época da
Independência, o grupo liderado por José Bonifácio36. Tal procedimento
repressor, por certo, reiterava a regra da agremiação, que indicava que
todo e qualquer constrangimento social devia ser evitado.

Manoel Ferreira Lagos, lendo seu relatório sobre o que foi feito pelo
Instituto no ano de 1844, insistia nas palavras do secretário perpétuo a
respeito do arquivamento de estudos da história recente do país:
(...) muitos (trabalhos) têm sido lidos em nossas sessões, que o Insti-
tuto julga não dever ainda publicar, ou por versarem sobre fatos mui
recentes da nossa história, ou por menos exatos em seu contexto; e
todos eles se acham recolhidos em nosso arquivo para saírem à luz em
tempo oportuno37.

Assim, seguindo o caminho delineado pelo cônego, a solução muitas


vezes encontrada era a de recolher documentos ou trabalhos que não po-
diam ser ainda publicados – fosse por tratarem da história recente do país,
fosse por incorrerem em visíveis inexatidões – aos arquivos do Instituto
para, talvez, um dia merecerem lugar nas páginas da revista ou de outra
publicação sob o crivo do grêmio. Tal foi o caso da nossa emancipação
política.

A LENTA INCORPORAÇÃO DE 1822 PELA HISTÓRIA


Como já vimos, a Independência foi alvo de discussão desde o pri-
meiro ano de existência do Instituto. Isso não quer dizer, contudo, que
naquela época conseguiu ser objeto de análises de cunho historiográfico.
Falar sobre 1822 ainda era, na primeira década do IHGB, aludir a um pas-
sado recente, fora do domínio da história. O interesse pela Independência
se manifestava, então, em avaliar como esse evento devia ser tratado pela
historiografia no momento em que isso se tornasse oportuno. Pode-se di-

36 – Fabiana Dias. Op. cit., 2009, p. 76-77.


37 – Manoel Ferreira Lagos. “Relatório dos trabalhos do Instituto no sexto ano acadêmi-
co”. RIHGB, tomo VI (Suplemento), p. 13, 1844.

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A Independência
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro oitocentista

zer que essa mudança aconteceu a partir da década de 1850, ainda que
muito gradualmente.

Joaquim Manuel de Macedo, em seu relatório de 1856, ao tratar so-


bre a doação do livro Le Brésil, de Charles Reybaud, apontava que o estu-
do possuía muitos pormenores sobre a atualidade, o que bastava para que
ele se abstivesse de “(...) avançar qualquer juízo na intenção de apreciar
o (...) livro”. A tal despeito, julgou ser conveniente comentar de forma
detida a parte relativa à Independência na obra, que “(...) podia já ser dis-
cutida sem que disso se ressentisse a prudência”38. Além disso, Macedo
indicava certo fenômeno que se assemelha ao que Reinhart Koselleck no-
meou de “aceleração do tempo”39. Nas palavras do 1º secretário do IHGB,

É verdade que (d)a nossa regeneração política pode-se dizer um fato


ainda contemporâneo; mas como pensa um grande escritor, “não há
mais história contemporânea, o dito de ontem parece já bem longe
abismado na sombra do passado. As perspectivas recuam quando a
grandeza e a multidão dos objetos e dos acontecimentos se interpõem
entre o olhar e a memória”40.

O tempo, em sua análise, tornou-se de tal modo fluido e acelerado,


que o que antes era considerado presente, rapidamente já deixara de sê-lo.
Isso justificaria o fato de a Independência poder ser considerada, naquele
tempo, parte da História. Resta saber se Macedo concordava totalmente
com essa assertiva, ou se ela só possuía legitimidade ao refletir sobre os
eventos de 1822, já que para outras situações ele foi ferrenho opositor da
escrita da História contemporânea41.
38 – Joaquim Manuel de Macedo. “Relatório do 1º Secretário”. RIHGB, tomo XIX (Su-
plemento), p. 107, 1856.
39 – Reinhart Koselleck. Op. cit., 2006, p. 37.
40 – Joaquim Manuel de Macedo. Op. cit., p. 107, 1856.
41 – Macedo, por exemplo, escreveu no folhetim “Labirinto” do Jornal do Commercio,
em certa ocasião, a seguinte recomendação: “Ninguém pode considerar perdido o tempo
que se emprega em acender uma luz nas noites do passado da nossa história, e em preparar
elementos para que os vindouros escrevam a da nossa época, de que aliás nós outros ou
não podemos, ou dificilmente poderíamos, tratar com a indispensável e completa impar-
cialidade porque todos temos mais ou menos nela pecadilhos e escorregaduras (sic), ou
enfim predileções, simpatias, antipatias e relações que nos tornam suspeitos”. Cf. Labi-
rinto. Organização, introdução e notas de Jefferson Cano. Campinas: Mercado de Letras,

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Isadora Tavares Maleval

O primeiro trabalho publicado na revista relacionado à Independên-


cia apareceu em 1859. De autoria de Felipe José Pereira Leal, constituía
uma memória dos acontecimentos que tiveram lugar no Pará em 1822 e
1823. Tratava-se, portanto, de uma análise sobre a repercussão da eman-
cipação política na parte norte do país, que, de modo geral, ainda se en-
contrava na ocasião “obediente” a Portugal42.

No mesmo ano, o periódico publicava a “Correspondência relati-


va aos sucessos dados em Portugal, e no Brasil, de 1822-1823”43, dan-
do continuidade à reprodução de fontes para o estudo do movimento de
Independência. Em 1874, com a mesma motivação, o Instituto levava à
publicidade uma série de documentos intitulada “Independência do Im-
pério do Brasil. Descrição dos fatos de Marinha, que se deram desde que
se projetou a Independência do Império do Brasil, até o final da luta”44.

Também em 1874 saiu publicada na revista uma espécie de crôni-


ca assinada pelo cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro que tinha
como mote os momentos que anteciparam o processo de Independência.
Cerca de meio século havia se passado desde o evento e, portanto, já era
chegado o momento de verificar aqueles acontecimentos perante o tribu-
nal da história: “É, pois, tempo de liquidarmos a verdade e de fazermos
cabal justiça a quem for de direito (sue cuique tribuere)”45. De modo ge-
ral, comentava a respeito de alguns eventos que foram responsáveis pelo
processo que culminou na Independência: a Revolução Francesa – por
ele descrita como “(...) o choque elétrico que despertou do seu secular
letargo os timoneiros políticos descuidosos do futuro, e levando o bai-
xel do Estado a soçobrar de encontro aos recifes e parceis dos ódios e

Cecult; São Paulo: Fapesp, 2004, p. 284.


42 – “Memória pelo Sr. Phelippe José Pereira Leal sobre os acontecimentos políticos que
tiveram lugar no Pará em 1822-1823”. RIHGB, tomo XXII, p. 161-200, 1859.
43 – RIHGB, tomo XXII, p. 413-439, 1859.
44 – RIHGB, tomo XXXVII (Parte Primeira), p. 195-212, 1874.
45 – Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro. “Motins políticos e militares no Rio de Janei-
ro. Prelúdios da Independência do Brasil”. RIHGB, tomo XXXVII (Parte Segunda), p.
341, 1874.

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A Independência
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro oitocentista

descontentamentos”46 –, o Vintismo português47 e a não aceitação de re-


torno para Portugal do príncipe regente, dando vitória para os desejos do
“partido brasileiro”48.

O cônego, refletindo sobre seu próprio trabalho, indicava no relatório


daquele ano que ao “rastrear” as causas para o Fico, acabou encontrando
“(...) uma série de movimentos revolucionários, que pensei poder carac-
terizar com o título de Motins políticos e militares do Rio de Janeiro”49.
O referido esboço teve como guia a correspondência inédita “(...) do aba-
lizado publicista Silvestre Pinheiro Ferreira”50, a mesma que havia sido
doada ao Instituto muitos anos antes e que seria publicada no periódico
da agremiação somente na década de 188051.

Em outros momentos, os associados voltaram a mencionar os fatos


de 1822 como próximos temporalmente, indicando que o papel da insti-
tuição naquele momento ainda era o de organizar os dados sobre o acon-
tecimento para que os homens do futuro por ele se responsabilizassem.
Exemplo disso foi o parecer feito pela comissão de admissão de sócios
em 1877 a respeito da tentativa de José Maria Latino Coelho adentrar o
grêmio. Para tal, Coelho enviou ao Instituto seu trabalho intitulado Elogio
Histórico de José Bonifácio de Andrada e Silva, que, como a comissão
o caracterizou, não se tratava apenas de uma biografia de Bonifácio, mas

46 – Idem. Ibidem, p. 341.


47 – Iara Lis Carvalho Souza. “D. João e as vicissitudes do Reino”. ____. Pátria Coro-
ada: o Brasil como corpo político autônomo (1780-1831). São Paulo: UNESP, 1998, p.
39-90.
48 – Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro. Op. cit., p. 363-364, 1874.
49 – “Relatório do primeiro secretário o Sr. Cônego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro”. RIHGB,
tomo XXXVII (Parte Segunda), p. 460-461, 1874.
50 – Idem. Ibidem, p. 460-461.
51 – Lucia Guimarães. “Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: O
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889)”. In: Revista do IHGB. Rio de
Janeiro, a. 156, nº 388, p. 519, jul-set. 1995. As “Cartas sobre a revolução do Brasil pelo
conselheiro Silvestre Pinheiro Ferreira” apareceram na revista de 1888. Em nota, explica-
va-se que “Estas memórias compreendem três cadernos de cartas autografadas de Silves-
tre Pinheiro Ferreira a um seu amigo. Dois cadernos com cópias conferidas e numeradas,
e os pareceres autógrafos dos ministros Conde de Palmela, Ignacio da Costa Quintela e
conselheiro Thomaz Antonio de Villanova Portugal, e outros documentos importantes”.
RIHGB, tomo LI (Parte Primeira), p. 239-378, 1888.

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Isadora Tavares Maleval

de uma “(...) página brilhante da história de duas nações irmãs, em uma


quadra difícil e melindrosa, grave e complicada (...)”. Era, portanto, um
trabalho historiográfico, escrito em conformidade com uma das maiores
qualidades do historiador: a imparcialidade, “(...) que só tem na mente a
justiça, por norte a verdade, e por objeto o fato que se propõe a narrar ou a
esclarecer”. Segundo Olegário de Aquino e Castro e Joaquim Nabuco de
Araújo, autores do parecer, o Elogio Histórico de José Bonifácio de An-
drada e Silva reunia como atributo, além da busca pela verdade, a correta
forma de contá-la52.

O parecer, positivo em relação ao trabalho apresentado por Latino


Coelho, conduziu à sua admissão como sócio do IHGB. Entretanto, após
indicar todos os pontos de destaque do opúsculo, a comissão admitia que
ainda era cedo “(...) para pronunciar-se a última palavra sobre assuntos
que se prendem à nossa história política em tempos de tão agitadas co-
moções (...)”. A solução, nesse caso, era que a geração contemporânea
atuasse como “obreiros do porvir”, preparando os subsídios “(...) para o
soberbo monumento da história da nossa pátria”. Mais uma vez a máxi-
ma do “tribunal da posteridade” era reivindicada para cuidar da História
recente da nação brasileira, ainda ela não fosse tão recente assim53.

Nota-se, portanto, que a forma como os escritos sobre a Independên-


cia eram feitos revelava se eles poderiam ser considerados subsídios para
os futuros estudiosos do tema, ou trabalhos históricos. Aparentemente, a
linha que definia esses dois polos era tênue e dependia muito da avaliação
feita pelos sócios do Instituto. Sobre o caso citado acima, não fica clara a
opinião definitiva da comissão de admissão de sócios: por um lado, tratou
o texto de Coelho como um trabalho histórico sobre o período da Inde-
pendência, através da análise da trajetória de José Bonifácio; por outro,
o entendeu como documento para ser utilizado pela posteridade a fim
52 – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. “Ata da sessão de 26 de outubro de
1877”. RIHGB, tomo XL (Parte Segunda), p. 514-515, 1877.
53 – De acordo com o parecer, “A nós cabe a missão de honrar a memória dos grandes
homens; à posteridade o encargo de julgá-los”. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
“Ata da sessão de 26 de outubro de 1877”. RIHGB, tomo XL (Parte Segunda), p. 519-520,
1877.

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A Independência
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro oitocentista

de estabelecer as “verdades” sobre os fatos, tendo em vista que, naquele


momento, isso ainda não era possível. Apesar dessas opiniões, de certo
modo conflitantes, a respeito do trabalho de Coelho, sua aceitação fora
inegável.

Na década de 1880, dois trabalhos sobre a Independência saíram


impressos na Revista, sendo que um deles foi publicado repetidamente:
“O Dia 28 de Julho. Uma página da História do Maranhão”, de Cézar
Augusto Marques. A primeira edição desse estudo apareceu no periódico
de 1884 e a segunda, no de 188654. Os textos tratavam do período pós-
-Independência na província do Maranhão, que ainda se encontrava su-
jeita à Constituição portuguesa. As análises sobre os fatos que compõem
a sua memória são intercaladas com documentos. Entre outros aspectos,
o autor buscava diminuir a importância de Lord Cochrane nos aconteci-
mentos maranhenses.

Importante perceber que, para Cézar Marques, os eventos do ano de


1822 já haviam comparecido junto ao tribunal da posteridade:
Já são passados muitos anos... Já houve tempo de sobra para o arrefe-
cimento de ódios e paixões políticas...

Muitos, ou melhor, quase todos esses heróis, quase todos esses com-
batentes em arraiais contrários, já gozam o descanso do túmulo.

Para eles raiou a posteridade, que lhes fará justiça, (...) pois que a
lousa do sepulcro é o crisol da verdade, o escudo onde se embotam as
espadas dos nossos inimigos, por mais pequeninos e mesquinhos que

54 – Poucas são as diferenças entre as duas edições. Uma delas diz respeito ao fato de o
autor tentar diminuir – e praticamente anular, diga-se de passagem – a atuação de Lord
Cochrane no apoio do Maranhão à emancipação política brasileira. Na primeira versão,
de 1884, Cézar Marques dizia que o Lord “(...) em coisa alguma concorreu para essa glo-
riosa página da História do Maranhão”. Já na seguinte, de 1886, essa frase simplesmente
desaparecera. Cochrane ainda era visto por Marques como de pouca importância para os
acontecimentos, mas não mais era negada a ele a evidência de que participara dos acon-
tecimentos. Apesar de o autor não dar muita notoriedade ao Lord no que dizia respeito
ao Maranhão, o fez tendo em vista a emancipação política em outras províncias. RIHGB,
tomos XLVII e XLVII (Parte Segunda), p. 246-247, 1884; p. 301-310, 1886.

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Isadora Tavares Maleval

sejam, e finalmente a taça onde se mirram os lábios da calúnia por


mais negra e calculada55.

Outro associado, Tristão de Alencar Araripe, argumentou sobre o


mesmo tema, em um texto publicado na revista de 1885. Em “Indepen-
dência no Maranhão”, assim como Marques, evidenciava que a região
já estava em vias de apoiar o Império do Brasil quando Lord Cochrane
apareceu na província. Em suas palavras, a chegada do almirante fora
um “acidente” e ocorreu no momento em que o Maranhão “(...) já estava
na comunhão do império”56. O fato de ter sido agraciado com o título de
marquês do Maranhão por D. Pedro I não queria dizer que o governante
considerava Cochrane responsável pela independência daquela província.
Para Araripe, essa foi a forma encontrada pelo imperador para reconhecer
outros serviços prestados pelo almirante ao longo do processo de eman-
cipação política do país.

Para elaborar sua análise, ele indicou duas obras sobre os referidos
acontecimentos às quais iria se contrapor. A primeira era a narrativa escri-
ta pelo próprio Lord Cochrane publicada em 1859, na qual este indicava
ter sido a independência no Maranhão concluída mais por um golpe de
astúcia do que pela proeza militar: ao chegar à região, o almirante, com
apenas um navio, aportou e revelou às autoridades portuguesas que lá se
encontravam que o seu exército estava pronto, contando com um grande
número de embarcações de guerra para tomar o Maranhão, como tinha
sido feito com a Bahia. Assim, através desse blefe, não tinha sido neces-
sária a guerra para garantir o lugar da província no Império do Brasil57.

A segunda obra era a de João Manuel Pereira da Silva, História da


fundação do Império do Brasil. Segundo Araripe, seu autor não foi feliz
ao tratar dos acontecimentos em terras maranhenses, sobretudo por ter se
pautado justamente na narrativa de Lord Cochrane. Uma série de incon-
55 – Cézar Augusto Maques. “O Dia 28 de Julho. Uma página da História do Maranhão”.
RIHGB, tomo XLVII, p. 246-247, 1884.
56 – Tristão de Alencar Araripe. “Independência no Maranhão”. RIHGB, tomo XLVIII
(Parte Segunda), p. 160, 1885.
57 – Idem. Ibidem, p. 160.

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A Independência
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro oitocentista

gruências foi apontada por Araripe, partindo do princípio de que Pereira


da Silva deveria ter criticado mais os escritos de Cochrane, no sentido de
corrigir muitas de suas assertivas. Reiterava, de modo semelhante à apre-
sentada por Cézar Marques que, quando da chegada de Lord Cochrane
ao Maranhão, só a capital dessa província e Alcântara ainda não tinham
aderido à causa da Independência. A vitória dos independentes deveu-se
aos cearenses e piauienses, que colaboraram com a luta no Maranhão, e
aos próprios maranhenses, não ao Lord Cochrane58.

Em anexo, Araripe expôs alguns documentos, inclusive uma carta


endereçada a Pereira da Silva na qual indicava os erros cometidos pelo
autor no emblemático livro que estava sendo utilizado, inclusive, pela
mocidade brasileira. Havia assistido aos exames finais no Colégio Pedro
II, na qualidade de delegado imperial, e notou que um dos alunos exami-
nados indicou que a “(...) aquisição do Maranhão para a causa da inde-
pendência nacional” devia-se ao Lord Cochrane59. Já que essa informação
não constava das Lições de História do Brasil, o manual de história usado
na instituição de ensino escrito por Joaquim Manuel de Macedo, Araripe
concluiu que o aluno só podia ter se orientado pela obra de Pereira da
Silva. Tal fato merecia destaque, pois, de acordo com Araripe, a juven-
tude estaria desconhecendo os fatos tal como eles realmente ocorreram.
Desmistificar a atuação de Lord Cochrane naquela ocasião para evitar
que outros brasileiros fossem contaminados com o erro em que incorrera
Pereira da Silva foi, inclusive, o motivo que levou o autor a escrever sua
memória sobre o dia 28 de julho no Maranhão60. Por fim, Araripe anexou
também uma lista em que corrigia os erros contidos na obra de Pereira
da Silva. Na realidade, essa parte já havia sido publicada em 1863, sob
o título de “Retificações Históricas” – cuja motivação residia no fato da

58 – Idem. Ibidem, p. 162-164. Ceará e Piauí já haviam sido incorporados ao Império


brasileiro. No caso do Piauí, interessante perceber na narrativa de Araripe a importância
conferida ao seu pai, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, nos eventos que culminariam
no “(...) bom êxito da empresa”.
59 – Idem. Ibidem, p. 169-170. A carta é datada de 19 de novembro de 1872.
60 – Idem. Ibidem, p. 171.

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Isadora Tavares Maleval

grande quantidade de “(...) inexatidões de nomes de personagens históri-


cos, e equívocos ou descuidos de narração (...)” no texto daquele autor61.

Esses extratos reforçam a perspectiva depreciativa que havia em re-


lação à obra de Pereira da Silva, que foi um dos únicos a consagrar pe-
sados esforços ao estudo do Brasil independente ainda durante o século
XIX. O sucesso editorial de sua grandiosa História da fundação do Impé-
rio do Brasil esbarrou na má receptividade que ela teve no ambiente letra-
do da época. O autor, pode-se dizer, foi vítima de suas escolhas, pelo fato
de ter selecionado tratar da história do reinado de D. Pedro I no decurso
do de seu sucessor. Isso explica o porquê de sua obra não ter alcançado
apreciação positiva no IHGB, à exceção de um comentário elogioso feito
pelo cônego Fernandes Pinheiro ao primeiro volume, em 186462.

Outro sócio, Conrad Jacob Niemeyer, escreveu uma pequena memó-


ria ao IHGB, apontando, em 1872, algumas imprecisões que Pereira da
Silva cometeu em seu trabalho intitulado Segundo período do Reinado
de Dom Pedro I no Brasil (1871), cuja matéria era a mesma do segundo
tomo da História da Fundação do Império do Brasil63. É de se esperar
que tais trabalhos provocassem os ânimos de muitos contemporâneos,
pois eles retratavam aquela época de maneira extremamente crítica, jus-
tamente no momento em que D. Pedro II inaugurava uma estátua equestre
em homenagem a seu pai, numa tentativa simbólica de restaurar a sua
imagem. Provavelmente, qualquer obra que se dispusesse a depreciá-lo
em tal contexto seria taxativamente condenada64.

De um modo geral, Pereira da Silva nunca chegou a ser reconhecido


como um bom historiador. João Capistrano Honório de Abreu, já no pe-
ríodo republicano, reclamava da falta de rigor científico (e a demasiada
“imaginação literária”) daquela obra que se propunha a ser uma história

61 – Idem. Ibidem, p. 173.


62 – Armelle Enders. “João Pereira da Silva, Francisco Adolfo de Varnhagen et les ma-
lheurs de l’histoire moderne du Brésil”. Revista de História (ed. especial), p. 118-121,
2010.
63 – Idem. Ibidem, p. 121. Ao menos o recorte cronológico era o mesmo nas duas obras.
64 – Idem. Ibidem, p. 123.

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A Independência
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro oitocentista

do Primeiro Reinado65. Em comparação, a História da Independência do


Brasil, escrita por Francisco Adopho de Varnhagen, teve outro tipo de
acolhida pelo IHGB.

Vale comentar, ainda que brevemente, sobre a trajetória deste último


trabalho. Parte das análises sobre os acontecimentos de 1822 já faziam
parte da primeira edição da História geral do Brasil, finalizada em 1857.
Inclusive, a intenção inicial do autor era de que a narrativa se esticasse até
1825, ano de nascimento de D. Pedro II. No entanto, a partir da segunda
edição do texto, publicada em 1877, foram suprimidas as passagens fi-
nais, que se referiam propriamente à nossa emancipação política66. Esse
tema só voltou a ser explorado pelo escritor na sua história sobre os anos
de 1821 e 1822, impressa postumamente na revista de 1916. A análise his-
tórica de tais fatos era uma tarefa demasiadamente “espinhosa” para sair
à luz tão prematuramente67. Quem indicou essa dificuldade foi o próprio
Varnhagen, ao fim da primeira tiragem de seu trabalho mais conhecido:
A história geral dos primeiros anos do império (...) não a poderíamos
nós por enquanto escrever tão conscienciosamente, como desejára-
mos; não só porque as contemplações e resguardos que se devem aos
vivos pediriam uma redação que não ataria bem com a imparciali-
dade que guardamos pelo passado, como porque os documentos e
correspondências dos estadistas que nessa época figuraram só agora
começaram a ser dadas ao prelo. De trinta e três anos é a vida de uma
geração; e por conseguinte, enquanto não passem outros trinta e três, a

65 – Idem. Ibidem, p. 121-122. Outro crítico voraz de Pereira da Silva, fora do IHGB, foi
Prezalindo Lery dos Santos, que, em 1880, indicou que o autor não soube guardar, mesmo
escrevendo alguns anos depois daquilo que relatava, “(...) a imparcialidade e a frieza de
historiador diante de acontecimentos que se passaram em uma época de efervescência
política em que as paixões tudo cegavam”.
66 – Temístocles Cézar demonstra uma série de modificações feitas na segunda edição
da obra. Segundo ele, em grande parte das vezes, Varnhagen buscou não apenas corrigir
os erros da primeira edição, mas também retirar marcas de subjetividade mais visíveis no
texto. Ver: “Em nome do pai, mas não do patriarca: ensaio sobre os limites da imparciali-
dade na obra de Varnhagen”. História, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 218, 2005.
67 – Lucia Guimarães. Op. cit., p. 571, 1995. Varnhagen faleceu em 1878. Esse texto foi
produzido por ele na década de 1870, quando vivia em Viena. Cf. Manoel Guimarães.
Historiografia e nação no Brasil (1838-1857). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011, p. 195.

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história daqueles primeiros é história contemporânea, que por si pró-


pria se extrema da história geral da civilização do país68.

Curioso observar as diferenças entre as duas composições que se


propunham a analisar a Independência do Brasil. Enquanto Pereira da
Silva publicou os sete tomos de sua História da Fundação do Império do
Brasil na década de 1860 e não poupou críticas a D. Pedro I, Varnhagen,
que não viu sua obra impressa, foi mais benevolente com o monarca; os
alvos de suas críticas mais tenazes não foram outros que não os irmãos
Andrada e Silva, sobretudo José Bonifácio69. Além disso, diferentemente
do primeiro autor, que usava principalmente testemunhas oculares anôni-
mas como fonte – o que lhe rendeu outra leva de críticas –, o historiador
sorocabano citava seus testemunhos, como o de Januário da Cunha Bar-
bosa e outros renomados sócios do IHGB70, e inclusive o seu próprio71.
Nesse caso, o fato de Varnhagen ter sido testemunha ocular adquiria um

68 – Francisco Adolfo de Varnhagen. História Geral do Brazil. Tomo II (1ª ed.). Rio de
Janeiro: E. & H. Laemmert, 1857, p. 442. Na Introdução da História da Independência do
Brasil, o autor comentava uma vez mais as dificuldades em analisar época tão complexa
da nossa história e antecipava, de certo modo, a ideia de uma possível publicação pós-
tuma: “Nunca nos passou pela mente a ideia da audaz empresa de escrever uma História
especial da Independência, e muito menos ainda a de publicá-la em vida, depois de haver-
mos, por vários motivos, abandonado o projeto, que chegáramos a conceber, de esboçar
em grandes traços certa crônica que devia abranger sua época. (...) Não desconhecemos
que o simples título desta obra revela tão grande responsabilidade, não só para o Brasil
como para com Portugal, e que, escrita com o amor à verdade que nela nos guiou, acima
de todas as considerações humanas, como deve ser escrita toda história que aspira a passar
à posteridade, não será provavelmente agora tão bem recebida, como o seria uma espécie
de novo memorandum justificando só os direitos de uma das partes contendoras. O autor,
porém, propôs-se a escrever uma história e não a adular ou lisonjear os sentimentos ou
prevenções de uns, nem de outros, nem por considerações com os descendentes vivos, em-
bora poderosos, de uma a outra parte, tratou de calar censuras, quando as julgou cabidas
e justas”. Cf. Francisco Adolfo de Varnhagen. História da Independência do Brasil até o
reconhecimento pela antiga metrópole, compreendendo, separadamente, a dos sucessos
ocorridos em algumas províncias até essa data. Brasília: Senado Federal, 2010, p. 11-12.
69 – Armelle Enders. Op. cit., p. 124, 2010.
70 – “Essa consciência da pluralidade de interpretações de um mesmo evento é um dos
grandes estímulos para sua historicização. Afinal, pela narrativa era possível alinhar um
número variado de representações sem necessariamente confrontá-las”. Cf. Valdei Lopes
de Araujo. Op. cit., 2008, p. 182.
71 – Armelle Enders. Op. cit., p. 125-128, 2010.

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A Independência
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro oitocentista

caráter de prova. A experiência tornava-se garantia de verdade, compro-


vação cabal do relato que estava sendo feito72.

Ademais, a História da Independência do Brasil permaneceu reclusa


por tempo determinado, até certo ponto, em função dos próprios temores
de seu autor73, ao passo que Pereira da Silva teve seu trabalho proscrito
em várias situações pela instituição histórica mais importante do Império.
Varnhagen, sequer passou pelo constrangimento de ver seu estudo ava-
liado e/ou censurado, porque ele só foi impresso muitos anos depois de
sua morte. Os papeis manuscritos foram encontrados no arquivo do Barão
do Rio-Branco e enviados ao Conde de Afonso Celso, então presidente
do IHGB, por Lauro Muller, em maio de 1916. Estima-se que, após sua
morte, a História da Independência do Brasil tenha ficado um tempo em
posse da viúva. Por conseguinte, o intervalo que separou escrita e publi-
cação isolou ainda mais o período narrado no território do passado; quase
um século já havia transcorrido entre os eventos descritos no livro e o
presente.

Se o oitocentos primou por uma história que ressaltava a construção


nacional, esta não podia ser ainda a da Independência. O foco recaía sobre
o “berço da nação”, o período colonial74, conquanto o IHGB, a partir dos
anos 1850, começasse a construir o arcabouço para a História contempo-
rânea, que incluía a fundação do Império brasileiro.

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73 – Francisco Adolfo de Varnhagen. “Historia da Independencia do Brasil, ate ao re-
conhecimento pela antiga metrópole, comprehendendo, separadamente, a dos successos
occorridos em algumas províncias ate essa data”. RIHGB, tomo LXXIX (Parte I), p. 7 e p.
11, 1917 (1916).
74 – Armelle Enders. Op. cit., p. 128, 2010.

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Texto apresentado em dezembro/2015. Aprovado para publicação


em fevereiro/2016.

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