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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º.

Seminário
Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-
288-0061-6

Nos domínios da imprensa: novas estratégias, novos debates, novos objetos –


reflexões sobre a revista Vida Capichaba
Lívia de Azevedo Silveira Rangel∗

Introdução

Atualmente, a proposta de utilização da imprensa como fonte de pesquisa já não


suscita tantos debates e desconfianças; no entanto, para alcançar o nível de consenso em que
presentemente repousa foi preciso travar uma série de discussões e desmontar uma estrutura
bastante rígida, a qual fixava as fontes no estatuto da oficialidade, da objetividade e da
veracidade. Essa mudança de paradigma, com o despontar de uma história escrita a partir de
1
documentos menos convencionais (COLLINGWOOD, 2001: 149), esteve diretamente
ligada às novas propostas historiográficas da terceira geração dos Annales. O grupo de
historiadores, formado a partir de então, propôs que a história voltasse seus esforços para uma
nova perspectiva em que fossem adotados novos objetos, problemas e abordagens, mas sem
negar toda a contribuição anterior, como a longa duração, a história econômica, demográfica e
a história social.
Nesse momento, a história das mentalidades retomou um lugar já antes previsto pela
primeira geração dos Annales, quando os pioneiros Lucien Febvre e Marc Bloch procuraram
distanciar-se da história dita factual, narrativa e política para agregar significado a outros
campos de estudo, a saber, a economia, a psicologia coletiva e o social. Para solidificar uma
história mais profunda e universalizante tornava-se imprescindível à ampliação da noção de
documento. Assim, pretendia-se reformular a metodologia para que os fatos históricos
deixassem de ser analisados por meio de interpretações isoladas, imutáveis e, além de tudo,
pronunciadas como imparciais, substituindo-as por uma “história-problema”, articulada a uma
perspectiva renovada na maneira de pensar e escrever os temas da historiografia. A esta
característica primeira de inovação histórica dos anos 1930, a geração dos Annales de 1970


Mestranda em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista de
Pós-graduação do Programa de Bolsas da Fundação de Apoio à Ciência e Tecnologia do Espírito Santo
(FAPES).
1
A objetividade almejada nas pesquisas históricas encetadas pelos positivistas foi sendo lapidada a partir do
desprezo pela história universal e pela elevação da história particularizada, como única possibilidade de verdade,
já que o universalismo era considerado um ideal inatingível. Esta história dita factual acabou por exaltar os
grandes acontecimentos e as grandes personalidades. A historiografia positivista tinha um domínio sem
precedentes sobre pequenos problemas e, “uma fraqueza sem precedentes no tratamento dos grandes
problemas”.

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vinha acrescentar um ingrediente pouco explorado pelo ramo histórico, as experiências


culturais.
Distribuída em características diversas de publicação, a imprensa, como fonte
documental, preencheu, em muitos casos, os vazios deixados pelos documentos considerados
tradicionais e legítimos. Emergida como material passível de análise, abordada com o mesmo
rigor científico dado a outras fontes, a imprensa se firmou conjuntamente no rastro das
perspectivas acadêmicas que tomaram por objeto o estudo da história dos excluídos. Nesse
contexto, a mídia impressa deixou de ser vista como um simples depósito de notícias e dados
fragmentados e ideologizantes para ser observada como mais uma alternativa à escassez de
informações diretas a respeito dos grupos marginalizados, destituídos do poder de expressão e
absorvidos pelo silêncio. No entanto, para além dos exemplares tipográficos ditos oficiais,
estiveram presentes àqueles de caráter independente, dentre os quais diferenciam-se os da
imprensa legal e os da imprensa marginal, distintos entre si pela amplificação dada aos
aspectos opositores veiculados nas suas edições, quando os primeiros apresentavam
tendências mais moderadas, embora não menos afiadas, e os últimos uma radicalidade perene
à sua luta, geralmente ligada as reivindicações das camadas populares urbanas, como aquelas
ligadas às idéias anarquistas e comunistas.
Pode-se notar, mesmo apressadamente, que o conjunto de recursos documentais
propiciado pela mídia impressa é bastante diversificado e amplo e que possibilita um número
incalculável de temas a serem explorados na composição histórica. O que até a década de
1970 mantivera-se preso à condição de objeto de estudo, veio à tona a partir dos anos
seguintes como um testemunho histórico, como um instrumento documental de proporções
analíticas abundantes. A migração arquivística em busca das fontes impressas empreendidas a
partir de então, deu-se em meio a realidade precária das condições de armazenamento de
bibliotecas e arquivos do País, circunstância que nos impulsiona de maneira idêntica a refletir,
neste trabalho, as formas pelas quais podem-se incorrer pesquisas históricas nos domínios da
imprensa.
Escolhemos, como suporte de análise para os objetivos deste trabalho, a publicação
periódica Vida Capichaba, órgão originário da cidade de Vitória que circulou por todo o
estado do Espírito Santo, durante a década de 1920. A escolha por tal revista foi condicionada
por três fatores. Primeiramente, por ser a principal fonte da qual me valho para pesquisar o
tema de minha dissertação, intitulado Representações “modernas” da mulher capixaba: o
papel da moda e da intelectualidade no limiar das conquistas femininas em Vitória. Em

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segundo plano, por estar disponível em sua integralidade nos acervos do Arquivo Público do
Estado do Espírito Santo (APEES) e da Biblioteca Estadual, nas versões impressa e
microfilmada. Por último, pela necessidade de abordar de forma problemática e mais detida
nos interesses da disciplina História, a defasagem de um campo intelectual e técnico que dê
prioridade aos estudos que se retenham na construção da história do Estado e de seus
municípios, os quais apresentam toda uma gama de possibilidades de inserção de pesquisas,
sejam elas inéditas ou revisoras do que já foi escrito. O importante é que isso ocorra na
confluência de uma melhoria nos recursos técnicos, já em andamento em algumas unidades
arquivísticas do Estado, como comprova a reforma realizada recentemente na Biblioteca
Estadual e aquela em vias de execução no APEES.
É sob este viés de análise que nos propomos perscrutar a revista Vida Capichaba, na
intenção de provocar uma aproximação não só entre os aspectos físicos e materiais da revista
com seus aspectos discursivos, como também na intenção de pensá-las como fonte em
potencial, vista como material integrante da história capixaba.

I – Breve histórico da imprensa capixaba

Antes de detalharmos as características da revista Vida Capichaba, acreditamos ser


pertinente uma breve apreciação da história da imprensa no Espírito Santo, que só se
desenvolveu de maneira mais relevante a partir da Proclamação da República.
De acordo com Gabriel Bittencourt, a imprensa só se instalou em terras capixabas 32
anos após a criação da Imprensa Régia, no Rio de Janeiro, em 1808, com a publicação do
primeiro jornal do Espírito Santo, chamado O Estafeta, surgido a partir de um contrato com o
Executivo capixaba, que previa a concessão por um período de dez anos para que esse jornal
pudesse publicar os atos oficiais. Afora a “boa vontade” do governo, o jornal não seguiu
adiante, tendo circulado apenas uma única edição e nada mais. Dessa primeira experiência até
a próxima, decorreram praticamente nove anos, deixando a imprensa capixaba de existir nesse
espaço de tempo, voltando em 1849 com a inauguração do Correio de Victoria, fundado por
Pedro Azevedo, também sob custódia do governo, com a intenção de que esse organizasse o
seu conteúdo em torno de uma postura governista e publicasse, da mesma forma, os atos
oficiais. Assim, até o ano de 1864, o Correio de Victoria assumiu essa responsabilidade.
Depois desse último jornal, ainda surgiu, em 1872, o Espiritossantense, que manteve a

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publicação dos atos oficiais até 1889, momento em que acontece, não só no Brasil, mas na
maioria dos Estados, a mudança no quadro de dirigentes no Executivo. 2
Com a nomeação de Affonso Cláudio de Freitas Rosa para governador, “é que ocorre
o nascimento da Imprensa Oficial no Espírito Santo” (FERREIRA. In: MARTINUZZO,
2005: 28), em 1890. O primeiro governador do Estado reclama então que, para a obtenção da
ordem pública, é necessário que seja criado um espaço de comunicação oficial do governo, o
qual publicaria ininterruptamente todos os atos oficiais expedidos pelo Estado – sabemos, no
entanto, que a trajetória do D.I.O, sofreu constantes interrupções, encerrando as atividades e
reabrindo-as várias vezes. Assim, no dia 23 de maio de 1890, data de comemoração da
colonização do solo espírito-santense, circulou o primeiro número do Diário Oficial. A
consolidação de uma imprensa mais organizada, com o surgimento de oficinas gráficas,
favoreceu o aparecimento não só de jornais, mas também de revistas. Segundo Bittencourt, da
última década do século XIX até meados da década de 1920, foram registrados 484 títulos, na
Capital e no interior. Dentre os mais relevantes, estão A Magnólia (1881), O Pirilampo
(1882), Gazeta Literária (1899), Revista Ilustrada (1910), Vitória Ilustrada (1914) e Vida
Capichaba (1923). 3 Daí por diante, Vida Capichaba imperaria como a revista mais lida no
Estado, circulando em praticamente todas as cidades do norte e do sul do Espírito Santo.
Esse momento na história da imprensa é visto por Nelson Werneck Sodré como o
marco de inauguração de uma imprensa mais profissional, que se movia num novo ritmo de
produção. A nova fase da imprensa foi substituindo, gradativamente, as oficinas artesanais
por modernas tipografias. De acordo com a opinião de Sodré, a imprensa, neste período,
adotou a estrutura de uma empresa capitalista, que longe das tímidas formas de folhetins,
pasquins e jornais de circulação irregular e efêmera, pretendiam organizar um mercado sólido
e lucrativo em torno dos periódicos e jornais, o que demonstrava a estreita relação entre as
novas expectativas da imprensa e o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Segundo suas
palavras:

A ligação dialética é facilmente perceptível pela constatação da influência que a


difusão impressa exerce sobre o comportamento das massas e dos indivíduos (...)

2
Este parágrafo é uma síntese das informações contidas no livro de Gabriel Bittencourt e no artigo de Guilherme
Ferreira e Marcelo Rossi, para maiores detalhes, ler: BITTENCOURT, Gabriel. Historiografia capixaba e
imprensa. Vitória: EDIT, 1998 e FERREIRA, Guilherme; ROSSI, Marcelo Marconsini. “A história de um lugar
de história”. In: MARTINUZZO, José Antônio (org.). Diário Capixaba: 115 anos da Imprensa Oficial do
Espírito Santo. Vitória: Imprensa Oficial do Espírito Santo, 2005.
3
JORNALISMO Ufsc. Mídia e memória – Estudantes de jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo
escrevem a história da comunicação capixaba. [consultado em 30 de abril de 2008]. Disponível na World Wide
Web: <http://www.redealcar.jornalismo.ufsc.br/cd3/jornal/joseantoniomartinuzzo.doc>

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governada, em suas operações, pelas regras gerais da ordem capitalista (...) tudo
conduz à uniformidade, pela universalização de valores éticos e culturais, como pela
padronização do comportamento.4

Neste sentido, a revista Vida Capichaba se beneficiou de todas as possibilidades


inovadoras que marcaram a transição de uma imprensa mais “amadora” e parcial para uma
imprensa mais “profissional”, preocupada em transmitir informações com maior
comprometimento e, portanto, menos opinativa. Tal mudança foi realmente significativa,
afetando o conteúdo dos periódicos e o formato jornalístico da época. Com o adendo de que
as revistas, longe de se disponibilizarem a reunir somente informações factuais da realidade,
também ofereciam aspectos culturais da “vida mundana”, envolvendo em suas páginas uma
gama variada de assuntos, condensando ilustração, fotografia, literatura, notas sociais e
publicidade, num arranjo sedutor ao público. Com a alcunha de “revistas de variedades e
mundanismos”, tentavam descrever o mais globalmente possível a sua disposição editorial.

II – Sobre a Revista Vida Capichaba

Iniciada em abril de 1923, Vida Capichaba tornou-se, logo após a sua inauguração, a
mais expressiva publicação do período, apresentando-se, de certo modo, como o principal
veículo divulgador das qualidades capixabas, buscando estimular dentro e fora o
reconhecimento da capacidade econômica, política e intelectual do Espírito Santo. Sob a
direção de Garcia de Rezende experimentou uma vida breve, sucedida por um hiato de dois
meses, findado quando os novos encarregados pela direção da revista assumiram suas
posições no editorial. Dentre estes destacamos Elpídio Pimentel, Manoel Pimentel, Aurino
Quintais, Teixeira Leite, Arnaldo Barcellos e Guilherme Santos Neves, grupo que
imediatamente, na edição de número 4, buscou esclarecer os objetivos que pautariam daí por
diante a sua publicação:

Dentre os motivos que nos levaram a tomar a direção deste quinzenário, dois devem
ser salientados aqui: 1º. A convicção de contribuirmos para o incentivamento das
letras e artes no Espírito Santo. (...) 2º. O empenho de provarmos que Victoria, capital
do Estado do Espírito Santo, já comporta a mantença de um periódico literário, máo
grado o costumeiro dar de hombros dos nossos systematicos pessimistas (VIDA
CAPICHABA, 1923, n.4: s/p).

4
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p.1-2.

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Intitulada “Revista Quinzenal e Illustrada”, durante toda a década de 1920, Vida


Capichaba tinha como primeiro ideal se consolidar como a vanguarda literária e cultural do
Espírito Santo. Essa proposta esteve inteiramente relacionada com as origens intelectuais de
seus dirigentes e colaboradores. Elpídio Pimentel, por exemplo, enquanto principal redator da
revista e por muitos anos, autor das crônicas de abertura sob o título de “Quinzena em
Quinzena”, era membro da Academia Espírito-Santense de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico do Espírito Santo. Tendo como profissão o magistério, como professor de
Filologia, nesse contexto, atuou na cena literária de Vitória de maneira bastante expressiva. 5
Embora a revista Vida Capichaba funcionasse no sentido de incrementar o cenário
literário da época, não era possível dar continuidade às suas edições apenas sob essa
perspectiva. Assim, o conteúdo foi organizado muito aproximadamente à maneira de outras
revistas ilustradas, inspirando-se principalmente, nas publicações do Rio de Janeiro.
Daí pode-se supor que não faz sentido pensar a Vida Capichaba como um
empreendimento descolado do contexto nacional da imprensa. A sua estrutura, além de reunir
as principais obras literárias do Espírito Santo, em prosa e poesia, também mesclava o seu
conteúdo com notas sociais, colunas femininas e escritos sobre personalidades políticas do
Estado. Além da publicação de vinhetas e curiosidades, apresentava o desenvolvimento do
Espírito Santo com notas e fotografias de indústrias instaladas, bem como suas belezas e a
capacidade produtiva dos seus meios.
Funcionando em oficinas próprias, Vida Capichaba era composta de cerca de 36
páginas, contabilizando por ano uma média de 24 edições, durante o período em que circulava
quinzenalmente. Cada edição comportava um número significativo de propagandas, ficando
estas concentradas nas primeiras e últimas páginas, formato mais ou menos padronizado das
revistas desse gênero - ilustradas e de variedades. A linha editorial, assim, foi durante todo

5
A Academia Espírito-Santense de Letras foi fundada em 4 de setembro de 1921, pelos escritores Elpídio
Pimentel (publicitário e educador), Garcia de Rezende (escritor e jornalista) e Alaríco de Freitas (advogado e
parlamentar). O principal objetivo desse grupo de intelectuais, homens públicos e educadores era o de congregar
e orientar o movimento artístico do Estado. O Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, por sua vez, foi
constituído em junho de 1916, com a finalidade de promover os aspectos culturais e científicos do Estado,
preservando a “exata situação geográfica do Espírito Santo, defendendo as nossas fronteiras (...) e difundindo a
nossa história”, que na verdade, “não é tão incolor”, como dizem. (INSTITUTO Histórico e Geográfico do
Espírito Santo. Uma síntese da história do IHGES: origem e evolução. [consultado em 30 de abril de 2008].
Disponível na World Wide Web: <http://www.ihges.com.br/historico.htm>). Para maiores detalhes, ver: VALLE,
Eurípedes Queiroz do. O Estado do Espírito Santo e os espírito-santenses: dados, fatos e curiosidades. 3ª ed.
Vitória, 1970.

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Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-
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seu percurso muito bem articulada e, por isso, duradoura, já que Vida Capichaba circulou
durante 47 anos, permanecendo corrente até 1970.
No ano de 1928, a revista se torna semanal, saindo das oficinas para os pontos de
venda todas às quintas-feiras, passando a se identificar como “Revista Moderna Illustrada”. O
seu grande sucesso fez com que fosse reconsiderada a possibilidade no aumento das tiragens,
modificando então a sua periodicidade, favorecida, da mesma forma, pela freqüência de seus
colaboradores, que enviavam vasto material para publicação.
Outro aspecto importante da Vida Capichaba é a singularidade da presença feminina
nas suas publicações. Nelas, as mulheres não só aparecem como símbolos de beleza,
fragilidade, delicadeza e altruísmo, como também são apreciadas e recebidas como detentoras
de uma intelectualidade. Vários são os escritos assinados por mulheres, dentre estes poesias,
artigos sobre política e cidadania, educação, etiqueta e outros temas. Tudo nos leva a crer que
algumas seções de moda eram escritas diretamente por mulheres para mulheres. Como a
seção Feminae que, embora tivesse sua autoria encoberta por um pseudônimo – Flor de
Sombra -, não escondia o seu sexo, colocando-se do mesmo lado das leitoras, como podemos
verificar na citação a seguir:

A moda. (...) Quando, porém, a essa despótica soberana occorre impôr-nos o uso de
algum adorno, pelo qual já sentíamos irresistível attracção, succede-nos o mesmo que
ás crianças traquinas, longamente privadas do folguedo favorito (VIDA CAPICHABA,
1927, n.95: s/p).

A pessoa que escreve a seção não apresenta um posicionamento distante, de simples


apreciação dos trejeitos e das características femininas, mas se inclui na discussão, pois não
são somente as leitoras que sentem as intransigências da moda, como também ela, a autora.
Obviamente que o grupo feminino que se projetava na Vida Capichaba era assaz restrito, mas
isso não diminui a relevância dessa constatação.
Reunidas, por fim, as principais características de Vida Capichaba, é preciso ter em
mente a importância desses periódicos “na modelagem da vida cotidiana de seus
contemporâneos” (ROSTOLDO, 2000: 39). O conceito de representação de Roger Chartier, o
qual defende a idéia de que as representações são, na verdade, os meios com que grupos ou
indivíduos dão “sentido ao mundo que é o deles” (CHARTIER, 1991: 177), cabe
perfeitamente em nossa análise, já que acreditamos haver uma estreita relação, de formas
recíprocas, entre a sociedade e os meios de comunicação. A duplicação da realidade, que
encontra personificação tanto no mundo concreto quanto nas construções simbólicas, funciona
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como um reflexo, no qual a sociedade é vista pelos olhos da imprensa ao mesmo tempo em
que se vê nela. Daí, a importância dessas publicações em contextos sociais tão semelhantes e
ao mesmo tempo tão distintos e que, mesmo recebendo as novidades do mundo moderno em
graus de intensidade diferentes, confluíam na necessidade de ver sustentadas mídias que lhes
oferecessem um pouco mais de inteligibilidade e ainda de orientação frente ao novo rumo da
sociedade do início do século XX.

III - A revista Vida Capichaba como alternativa documental

Escrever a história do Espírito Santo é, antes de mais, contribuir para a construção de


uma perspectiva diferenciada e particular sem, no entanto, incorrer no desacerto de isolá-la do
contexto macro-social, nem tampouco no equívoco de apressar uma crítica contrária à visão
evidente da situação pouca promissora do Estado, durante a maior parte da sua trajetória
histórica. O que já não satisfaz, para uma visão-problema da história do Espírito Santo, é a
busca de justificativas que abortem as limitações internas, principalmente as de caráter
político-administrativo e, por consequência, as econômicas, com vias a culpabilizar as
adversidades impostas externamente, quase sempre por um governo imperial insensível às
necessidades da capitania e, mais tarde, da província.
A função, exercida pelo Espírito Santo, de “barreira ecológica” na rota das regiões
mineradoras, no período colonial, tem sido a mais agastada das justificativas utilizadas para
explicar a posição retardatária do Estado frente a outras potências regionais do Brasil. A razão
não é implausível, mas não dá conta da complexidade histórica que envolve o território
espírito-santense. Há, sem sombra de dúvida, outros motivos, ainda pouco explorados, que
devem ser ancorados às pesquisas como meio de contrapor o lugar comum da invisibilidade
do Espírito Santo e, principalmente, da intenção atual de “inventar” uma história construída
alheiamente ao marasmo em que ficou aturdido o Estado até, ao menos, o ensaio de
dinamismo iniciado na Primeira República. São elementos históricos que não podem ser
desconsiderados, mas que merecem uma interpretação menos pacata e mais crítica.
É nesse quadro de preenchimento das lacunas que se insere a relevância da revista
Vida Capichaba como fonte documental. Sendo a primeira publicação no formato de
magazine a prosperar e a alcançar um número elevado de leitores, até mesmo fora dos limites
estaduais, esse periódico oferece aos pesquisadores atuais um retrato privilegiado da
sociedade capixaba, que se formava, naquele início de século, agregada a dois pilares: da
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unicidade de uma identidade própria e dos valores universalistas que preponderavam na esfera
ocidental do mundo. 6
De posse de um breve levantamento dos temas presentes em trabalhos acadêmicos que
utilizaram o periódico Vida Capichaba como fonte de pesquisa, observamos que preponderam
os relacionados às áreas da história da educação; da história de gênero e das mulheres e da
história da mídia. 7 Mesmo esses são trabalhos isolados que não geraram ainda a proximidade
entre os diferentes discursos teóricos abordados, necessária para se pensar, a partir de uma
visão menos fragmentada, os distintos pontos de atuação em que se manifestaram as
estratégias de educação no Estado, bem como as sociabilidades femininas e masculinas em
âmbito urbano e rural, de acordo com as várias camadas sociais que compõem a sociedade
capixaba.
Afora essas incursões temáticas, há muito que se produzir sobre a história regional e
local e para tanto há que se ampliar não só a noção de imprensa, com suas limitações e
horizontes, como também promover o conhecimento do material disponível nos acervos. De
acordo com Ruth Reis, professora do Departamento de Comunicação Social da UFES e
pesquisadora dos percursos do jornalismo no Espírito Santo, o último inventário organizado
com informações sobre a imprensa capixaba foi àquele publicado, em 1929, pelo Instituto
Histórico e Geográfico do Espírito Santo, de autoria de Heráclito Amâncio Pereira. O
inventariante partiu do marco temporal referente a chegada da primeira máquina tipográfica
no Estado e seguiu até o ano de 1926, contabilizando 484 publicações periódicos. Desde
então, “não houve quem se dispusesse a fazer o mesmo esforço, sendo, portanto, este
levantamento o de maior fôlego existente hoje sobre o conjunto que compõe a história da
imprensa capixaba” (REIS, 2003: 17).
Em face do que propomos discutir nesse trabalho, retemos ainda um instante a noção
de que uma escrita da história apoiada na imprensa como fonte documental não teria sido
6
É bastante provável que antes do surgimento da revista Vida Capichaba, em 1923, seus fundadores tenham
percebido uma demanda por parte de grupos sociais, especialmente de Vitória, que, não obstante, iniciando um
processo de habituação aos gestos modernos, não detinham ainda uma publicação que norteasse esses
movimentos e que funcionasse como catalisadora das tendências locais e das manifestações externas, como as
provenientes do Rio de Janeiro e da Europa. E, nesse sentido, essa publicação veio a preencher os propósitos
implícitos de produzir, na camada distinta da sociedade, uma sensação de pertencimento.
7
Ver: XAVIER, Kella Rivetria Lucena. Mulher e poder nas páginas da revista Vida Capichaba. Dissertação de
mestrado em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências
Humanas e Naturais, 2008; BARRETO, Sônia Maria da Costa. A Imagem da normalista capixaba nos anos de
1920 retratada pela revista “Vida Capichaba”. Anais do III Congresso Brasileiro de História da Educação.
Curitiba/PR, 2004; RANGEL, Claudia. A fotografia de imprensa em Vitória: 1910 a 1979 – dos primórdios ao
reconhecimento da profissão de repórter-fotográfico, 1999; MALVERDES, André. No escurinho dos cinemas: a
história das salas de exibição na Grande Vitória. Vitória: A. Malverdes, 2008; BUSATTO, Luiz. O modernismo
antropofágico no Espírito Santo. Vitória: Secretaria Cultural, 1992, dentre outros.

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iniciada sem o contexto de abertura das possibilidades temáticas e alargamento da noção de


documento. O que se provou daí por diante foi oportunamente a idéia de que, longe de serem
meras “enciclopédias do cotidiano [com] imagens parciais, distorcidas e subjetivas” (LUCA,
2006: 112), os periódicos se revelaram importantes fontes primárias, pois que trazem em si
uma complexa estrutura de informação que, de certa forma, abarca o cenário social do espaço
em que circulava. A opinião que aponta a imprensa como mero veículo de comunicação e
como simples instrumento de manipulação da classe dominante, caiu por terra e o que surgiu
em seu lugar foi uma apreciação muito mais construtiva de que é preciso estudar a imprensa
com um olhar crítico e não ingênuo, com o rigor de avaliar, filtrar e desconstruir (IDEM,
2006: 118).

Bibliografia

BITTENCOURT, Gabriel. Historiografia capixaba e imprensa. Vitória: EDIT, 1998.

CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”. Estudos Avançados, vol. 5, nº 11, 1991.

COLLINGWOOD, R. G. A idéia de História. Trad. de Alberto Freire. Lisboa: Abril, 2001.

FERREIRA, Guilherme; ROSSI, Marcelo Marconsini. “A história de um lugar de história”.


In: MARTINUZZO, José Antônio (org.). Diário Capixaba: 115 anos da Imprensa Oficial do
Espírito Santo. Vitória: Imprensa Oficial do Espírito Santo, 2005.

LUCA, Tânia Regina de. “História dos, nos e por meio dos periódicos”. In: PINSKY, Carla
Bassanezi. (org.). Fontes Históricas. 2ª ed. São Paulo: Editora Contexto, 2006, v.1.

REIS, Ruth. “Percursos do Jornalismo no Espírito Santo: Correio da Victória, primeiro jornal
capixaba – reminiscências de um lugar”. In: I ENCONTRO NACIONAL DA REDE
ALFREDO DE CARVALHO, 2003, Rio de Janeiro. Anais Mídia Brasileira: dois séculos de
história.

ROSTOLDO, Jadir Peçanha. Vida Capichaba: o retrato de uma sociedade – 1930. Vitória:
IHGES, 2007.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad,
1999.

VALLE, Eurípedes Queiroz do. O Estado do Espírito Santo e os espírito-santenses: dados,


fatos e curiosidades. 3ª ed. Vitória, 1970.

Documentos eletrônicos

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INSTITUTO Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Uma síntese da história do IHGES:


origem e evolução. [consultado em 30 de abril de 2008]. Disponível na World Wide Web:
<http://www.ihges.com.br/historico.htm>

Fontes primárias

REVISTA VIDA CAPICHABA, Vitória, 1920.

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