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1881)1
Introdução
A imprensa periódica como fonte para a história da Bahia, com ênfase nos “negócios de
Macaúbas” é o eixo de análise do presente artigo. Recortamos tendo em vista a pesquisa em
jornais da capital da província da Bahia e do Rio de Janeiro, no período compreendido entre
1878-1881, período que abarca a cobertura das disputas entre facções locais de Conservadores
e liberais na vila de Macaúbas e os debates em torno da reforma eleitoral. Objetivamos
discutir como a pesquisa em curso lida teórica e metodologicamente com a fonte em destaque,
enfatizando a maneira como a investigação nos jornais contribui para o debate em torno do
objeto, bem como os desafios e as possibilidades que a fonte enseja.
No ano de 1878, o partido Liberal recebe do Imperador a incumbência de realizar a
reivindicada reforma eleitoral, introduzindo, dentre outras coisas, o voto direto. Órgãos de
imprensa, alguns vinculados a interesses partidários, mobilizaram-se contra ou a favor da
nomeação. Algo para além da reforma eleitoral figurava nas páginas dos periódicos, a saber:
os conflitos violentos, algumas partidárias, nos sertões, motivadas, dentre outras coisas, por
cargos jurídico-administrativos na estrutura burocrática do Império, tais disputas
desencadearam novas rivalidades locais e/ou acirram velhas.
A categoria “periódicos” abrange subcategorias, destacamos de início a maneira que
estamos recortando-a. Ana Maria de Almeida Camargo aponta que, numa perspectiva geral, a
categoria imprensa periódica abarca revistas, jornais, almanaques e poliantéias . Tendo em
vista isso, e não negligenciando as especificidades atreladas à historicidade e características
dos jornais, optamos por adotar as categorias “periódicos” ou “imprensa periódica” todas as
vezes que tratarmos dos jornais neste texto. Abordaremos três jornais da Bahia e dois do Rio
de Janeiro, respectivamente, Correio da Bahia, Gazeta da Bahia, O Monitor, O Cruzeiro, A
Reforma. Na primeira parte do texto apontaremos alguns traços a partir da Nova História que
possibilitaram novas perspectivas para a ciência histórica, com ênfase especial na noção de
documento, preconizada dentre outros movimentos, pelos Annales. Na segunda parte
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apontamos as principais questões que orientam a pesquisa histórica nos periódicos da Bahia e
do Rio de Janeiro, bem como os desafios e possibilidades postas à investigação.
Os periódicos têm sido utilizados em análises históricas como objeto e como fonte. Tal
utilização é fruto de um longo processo na história e historiografia, no geral, e na brasileira.
Os impressos ganharam espaço no rol de fontes históricas e vem sendo utilizados como objeto
ou fonte em pesquisas com temas e abordagens das mais diversas. Inicialmente, cabe destacar
alguns traços do movimento desencadeado em meados do século XX, que provou uma
mudança significativa no paradigma histórico.
Se atualmente podemos avaliar que os periódicos ― entendidos no seu amplo
significado ― têm seu lugar no desenvolvimento de pesquisas nos vários campos do
conhecimento histórico como a história social, história política, história cultural, história
econômica, história das mulheres só para citar alguns, esse nem sempre foi o quadro. Segundo
Tânia Regina de Luca (2005, p. 113-114), por muito tempo relutou-se em promover uma
história escrita por meio da imprensa, apesar de haver uma preocupação em escrever a história
da imprensa. Tal resistência esteve ligada a certa tradição da escrita da história ― a chamada
história tradicional ― e a percepção quanto às próprias características dos periódicos. Um
ideal de busca da verdade, tradição em curso desde o século XIX e início do XX, segundo a
qual o historiador em seu ofício deveria atingir a verdade, através de documentos carregados
de objetividade, neutralidade, fidedignidade e distanciados no tempo, é a síntese dessa
maneira de conceber a escrita da história. A citada frase de Leopold Von Ranke é a uma
espécie de clichê da concepção apontada, segundo ele o historiador deveria apresentar os fatos
“como eles realmente aconteceram”, contemplando objetividade e fidedignidade ao
documento (escrito), que deveriam ser peças oficiais, diplomáticos, etc. O preço dessa
concepção foi a negligência de outros documentos (BURKE, 1992, p.15). Os periódicos, por
suas próprias características estruturais e de conteúdo, eram vistos com desconfiança.
Relutava-se em incorporá-los a pesquisa histórica, considerados pouco adequados para a
recuperação do passado, por conter registros fragmentários do presente, realizados sob a
influência de interesses, compromissos, paixões, etc., do ocorrido forneciam imagens parciais,
distorcidas e subjetivas (LUCA, 2005, p.112). Esse era o argumento corrente, e mesmo com o
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advento dos Annales e a pluralidade de possibilidades que o movimento encerrou, a ortodoxia
da fonte escrita (objetiva, neutra e fiel aos fatos) manteve-se com alguma força. A imprensa
periódica continuou a ser relegada enquanto fonte histórica.
Nas décadas finais do século XX começa a desenhar-se um novo quadro. Ocorreu um
alargamento do campo de preocupação dos historiadores, em concordância com os Annales,
que teve na década de 70, com a Terceira Geração, novas possibilidades, pois propunham
novos objetos, problemas e abordagens ― também em concordância como outros
movimentos, dentre eles a História Social Inglesa e a profunda renovação do marxismo, a
história cultural e a própria renovação da História Política ― proporcionando entre outras
questões uma renovação temática, que segundo Tânia de Luca tornou-se a face mais evidente
desse movimento. O vocabulário histórico se alargou, ganhou espaço temáticas como mito,
corpo, festas, jovens, crianças, mulheres, cotidiano, etc. (2005, p.113-114). No percurso
apontado, alterou-se a própria concepção de documento e, com isso, viabilizou-se a
introdução de novas fontes à pesquisa histórica, incluindo os jornais.
Conforme aponta Jacques Le Goff (1994, p.539) havia uma insistência, desde os
fundadores da revista Annales d’historie économique et Sociale, sobre a necessidade de
ampliação da noção de documento. Lucien Febvre discorria:
"A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes
existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando
não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar
para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. [...] Numa palavra, com
tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem,
exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as
maneiras de ser do homem (FEBVRE apud LE GOFF, 1994, p.466.)
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outra revolução de grande peso, uma “revolução tecnológica”, a do computador. Portanto,
delineia-se um processo diferente e, de certa forma, inédito de manejo e trato das fontes. O
novo documento é armazenado e manejado em bancos de dados, inauguram-se, a partir do
contexto exposto pelo autor, outras possibilidades e desafios para a ciência histórica.
Certamente, a confluência das revoluções diagnosticadas pelo historiador francês, não tornou
o arquivo ― velho recanto do historiador ― arcaico. Os arquivos continuaram sendo a
morada das histórias que os historiadores “perseguem”, contudo, é inegável o peso do advento
e popularização dos computadores e da internet. Atualmente é possível acessar acervos do
Brasil e de países diversos, em banco de dados que recobrem vastos períodos históricos,
tornando a pesquisa, acessível, prática e rápida. A Hemeroteca Digital Brasileira, apenas para
citar um exemplo, figura no Brasil enquanto um importante portal de periódicos nacionais que
possibilita consulta pela internet, a um variado acervo de periódicos, contando com jornais,
revistas, anuários, boletins, etc.
Para Le Goff (1994, p.543), constatar a existência de uma “revolução documental” não
era suficiente, o documento deveria ser submetido a uma crítica mais radical. A escrita da
história praticada desde a Idade Média, passando pelos eruditos do século XVII ― mesmo a
escrita praticada pelos historiadores do XIX ― concentrava a crítica documental, quase
totalmente, no sentido de identificar aquilo que era falso nos documentos. Os fundadores dos
Annales demonstraram, desde cedo, preocupação com tal questão. Le Goff, na coletânea La
Nouvelle Histoire, apontava como uma das tarefas da História Nova a partir de então, adotar
uma nova concepção de documento, acompanhada de uma nova crítica deste. Sublinha:
O documento não é inocente, não decorre apenas da escolha do historiador,
ele próprio parcialmente determinado por sua época e seu meio; o
documento é produzido consciente ou inconscientemente pelas sociedades
do passado [...] É preciso desestruturar o documento para descobrir suas
condições de produção. Quem detinha, numa sociedade do passado, a
produção dos testemunhos que, voluntária ou involuntariamente, tornaram-se
os documentos da história? (LE GOFF, 2005, p.76)
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A crítica documental é parte imprescindível do ofício do historiador. As fontes são os
vestígios de uma temporalidade, dotadas de historicidade, carregam, portanto marcas do seu
tempo. Possuem um lugar social marcado por questões e demandas específicas, não devem ser
consideradas fora de suas condições históricas. É preciso destacar ainda que existe fontes e
fontes: orais, inventários, literatura, processos crimes, jornais, revistas, correspondências,
imagens, músicas, objetos, enfim uma infinidade de vestígios sociais, sobre os quais deve-se
empregar análises específicas. Mesmo a categoria “periódicos” precisa ser devidamente
recortada, pois jornais, revistas, almanaques são suportes diferentes, com características
próprias. Mesmo os jornais precisam ser analisados atentando-se as suas seções, pois uma
seção, como a noticiaria, por exemplo, possui objetivos e marcas que não são comuns as
demais. Diante das premissas apontadas, quais os desafios, limites e possibilidades da
utilização dos periódicos na pesquisa histórica? É possível uma reflexão e a escrita de uma
história dos “negócios de Macaúbas” a partir das páginas dos jornais?
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notícias sobre as violências nos sertões, e formativo, expressando em suas páginas, entre
outras coisas, análises da realidade social e política dos sertões, da província da Bahia, do
Brasil.
Pela complexidade de lidar com vestígios do passado, por vezes faz-se necessário
termos em conta algumas noções, que longe de padronizar as pesquisas, tem por intenção
fornecer questões, encaminhar o pesquisador a análise das possibilidades e desafios postos por
determinada fonte. Sem a pretensão de fornecer um roteiro ou fórmula para o trato dos
periódicos, Tânia de Luca (2005) lança algumas questões pertinentes que nos encaminham na
análise dos impressos. Segundo a autora é necessário inserir a fonte numa série, ou seja,
identificá-la na história da imprensa, atentar-se as suas funções sociais, a materialidade dos
mesmos ― periodicidade, impressão, papel, iconografia, publicidade ― e seus suportes,
alerta: “Historicizar a fonte requer ter em conta, portanto as condições técnicas de produção
vigentes e a averiguação, dentre tudo que se dispunha, do que foi escolhido e por quê.”
(LUCA, 2006, p.132). É preciso atentar-se a hierarquia posta no interior dos próprios jornais,
a maneira como determinado conteúdo está exposto, se na primeira página, se na última, “ter
sido publicado implica atentar para o destaque conferido ao acontecimento, assim como para
o local em que se deu a publicação” (LUCA, 2006, p.140). Encaminhamos a análise no
sentido de consideramos as particularidades das seções dos jornais, lidamos basicamente com
três tipos de seções: literária, informativa (inclui-se a publicação de correspondências),
formativa4. Não as analisamos como seções fechadas, pelo contrário, consideramos a
flexibilidade que pode se processar no conteúdo dos textos, uma vez que a seção informativa
pode conter traços formativos e vice versa, da mesma forma que na literária pode se processar
o mesmo caminho, ou não5.
Os jornais são vinculados aos partidos imperiais, é perceptível uma preocupação em
transmitir aquilo que, política e socialmente, agradava as ideias dos partidos Conservador e
Liberal. É necessário estarmos atentos ao discurso da fonte, evitando incorporá-lo. Afinal,
estampavam as páginas dos periódicos certas visões de mundo, certa percepção da vida
política, social, cultural associada a valores ligados a determinado partido ou ideologia. Em
11 de fevereiro de 1879, o jornal Gazeta da Bahia publica um artigo intitulado A eleição
direta e o partido liberal, no qual defende que deveria caber ao Partido Conservador a
realização da reforma eleitoral, concluindo que:
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Podia o partido Conservador muito legitimamente levar a efeito a reforma da
eleição direta. Poderá outro tanto dizer o partido Liberal? Desde já dizemos
não; e havemos de em breve prová-lo. Então teremos o direito de tirar esta
conclusão: o partido conservador, e só ele, podia dar ao Brasil essa reforma.
Existia um olhar particular em cada periódico quanto aos “negócios” do sertão, assim
como existiam traços comuns. Por exemplo, através de seus artigos, textos noticiários,
literários, etc., a imprensa, pintava a face do sertão, enquanto lugar de desordem, anarquia,
falta de educação, falta de segurança, violências e direcionava, a partir do discurso, a uma
espécie de teatralização da vida política e social, através de expressões como “teatro de
desordens” “cenas lastimáveis”, “teatro da Bahia” (respectivamente, associados a teatro e
violências), e semelhantes. Certamente, trata-se de um recurso utilizado pelos redatores, que
merece atenção na pesquisa, aliás, todo o discurso e os vários recursos utilizados nos
impressos. É preciso questionar, a que interesses servem determinada publicação, as
motivações de publicar algo, a exaltação de alguns aspectos e os silêncios em relação a outros.
Outro aspecto a ser destacado é a forte oposição entre os periódicos, não somente na
Bahia, mas também os do Rio de janeiro. Os jornais dedicaram artigos, por vezes longos, a
critica das matérias dos demais periódicos, ou mesmo para a defesa de determinadas posições.
Em texto intitulado Ocorrências de Macaúbas (Bahia), publicado em 17 de abril de 1878, no
jornal A Reforma, de cunho liberal, faz uma crítica ferrenha à imprensa conservadora da
Bahia:
Aproveitando-se das lastimáveis ocorrências da vila de Macaúbas a imprensa
opocisionista tem-nas convertido em ariete contra a administração do Sr.
barão Homem de Mello. Na província O Correio confederado ao Monitor
consideraram uma mina aqueles acontecimentos, desde que a circunspecta
administração não tem deixado brecha à seus despeitados ataques. Se o
Correio contenta-se em que leiam na província, não acontece outro tanto ao
Monitor, que faz transcrever suas declarações e diatribes nas colunas do
Jornal da Bahia.
Esse tipo de discurso foi uma constante nas páginas dos periódicos. Portanto, a
investigação lida em um terreno de tensões, os periódicos são também lugares de disputas
ideológicas e discursivas. Analisar os interesses envoltos nos jornais, que nem sempre estão
expostos nas páginas, é fundamental. É preciso rastrear os interesses de redatores, editores,
financiadores, pessoas que publicam correspondências, etc., bem como o público ao qual se
destina o suporte. No século XIX, como alerta Luca (2006), os periódicos tinham
características, inclusive no quesito financiamento, diferente dos jornais que foram impressos
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no século XX, os últimos marcados por um forte processo de mercantilização. Os jornais do
século XIX eram muitas vezes fruto do investimento de um único sujeito e, segundo Luca,
carregavam as seguintes características:
O caráter doutrinário, a defesa apaixonada de ideias e a intervenção no
espaço público caracterizaram a imprensa brasileira de grande parte do
século XIX, que, é bom lembrar, contava com contingente diminuto de
leitores de leitores, tendo em vista as altíssimas taxas de analfabetismo. Os
aspectos comerciais da atividade eram secundários diante da tarefa de
interpor-se nos debates e dar publicidade às propostas, ou seja, divulgá-las e
torná-las conhecidas. (LUCA, 2006, p.133-134).
Considerações finais
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fonte no seu lugar social é o primeiro passo, sua historicidade é a marca histórica mais
profunda.
NOTAS
1
O título do artigo é uma menção direta ao texto de Tânia Regina de Luca, História, dos, nos e por meio dos
periódicos e a maneira como os acontecimentos de Macaúbas eram intitulados nos jornais, como “Negócios de
Macaúbas”.
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Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia, Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Orientação da Prof.ª Dra. Lina Maria
Brandão de Aras e coorientação da Prof.ª Dra. Ana Paula Medicci. E-mail: daianabarbosa02@gmail.com
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O Correio da Bahia (1878); Gazeta da Bahia (1879-1880); O Monitor (1878-1880); O Cruzeiro (1878); A
Reforma (1878)
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Apontamos essa definição a partir de consideração de Ana Maria de Almeida Camargo, sobre textos formativos
e informativos. Os primeiros dão aos historiadores “a medida mais aproximada da consciência que os homens
têm de sua época e de seus problemas”, o segundo, informa, mas também pode comportar o caráter do primeiro.
Ver: CAMARGO, Ana Maria de Almeida. A imprensa periódica como fonte para a história do Brasil.
Disponível em: http://anais.anpuh.org/wpcontent/uploads/mp/pdf/ANPUH.S05.44.pdf
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O jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, por exemplo, tinha ma seção intitulada Notas Semanais, onde um
Eleazar (pseudônimo de Machado de Assis) publicava crônicas. Em 18 de agosto de 1878, Eleazar publica uma
crônica sobre os ocorridos de Macaúbas. No jornal O Monitor, também havia seções dedicadas a literatura.
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No jornal Gazeta da Bahia aspectos da configuração social aparecem amplamente.
REFERÊNCIAS
BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da
UNESP, 1992.
CAMARGO, Ana Maria de Almeida. A imprensa periódica como fonte para a história do
Brasil. Disponível em: http://anais.anpuh.org/wpcontent/uploads/mp/pdf/ANPUH.S05.44.pdf
- Acesso em: 02 de setembro de 2016
LE GOFF, Jacques (org). A História Nova. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
10
Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.
LUCA, Tânia Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
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