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CRITICA E
Série 3.* TEORIA E MÉTODO
Volume 1
RESIGNAÇÃO
fundamentos
da sociologia
de
MAX WEBER
Sio Paulo
f
Capa:
.
DEPTO DE ARTE DA TAQ
- . -
CIP Brasil Catalogação na Fonte
Câmara Brasileira do Livro , SP
-
*i
Cohn , Gabriel ,1938 -
C629c
gia de Max Weber / Gabriel Cohn
T . A. Queiroz , 1979 .
.
—
Crítica e resigna çã o : fundamentos da sociolo¬
São Paulo :
( Bibl 1 otecaJ>5sica de ci ências
sociais ; ser .3. : Teor í a e mé todo ; v l ) .
Bibliografia .
1. Sociologia 2 . Weber , Max , 1864 1920 I . Tí¬-
tulo.
17 . e 18. CUD-301.01
-
79 0509 18. -
301.046
Proibida a reproduçã o,
mesmo parcial, e por qualquer
processo, sem autorização
expressa dos editores.
/
Sumário
Introdução (XI)
Introdução
í “ Essa é a técnica de escritura que me faz falta . Com ela à minha disposi -
• ção eu poderia finalmente fazer o que deveria: dizer muitas coisas separa ¬
das , uma ao lado da outra , mas simultaneamente. ” ( Baumgarten , 1964:
° 482-483 . )
tes n ão lhe é imposta de antem ão mas resulta de um trabalho cons¬ “ Não é a nulidade do singular que confere à totalidade o seu caráter per ¬
trutivo. verso , mas sim que o átomo, o motivo característico, por imposição mes ¬
É um acaso feliz que essa constatação se desse no contacto com mo do seu ser caracterí stico, tem que aparecer como se fosse algo, e nun ¬
a obra de Wagner , essa figura que, ao lado de algumas outras da ca cumpre essa pretenção. Assim , os temas e os motivos combinam-se pa ¬
ra converter -se em algo como uma pseudo- hist ória.” ( Adorno, 1964: 51.)
grande tradi çã o cultural ambiguamente “ burguesa ” alemã
the , Nietzsche , Thomas Mann , sem falar no acorde dissonante de
Goe — ¬
sa concepção de forma est á enunciada de maneira lapidar no diá logo est é ciológica . Mas Weber vai mais adiante.
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¬
tamente com as bases mesmas do seu estilo de pensamento. Ele diz zação fragmentadora e a sí ntese integradora, ele acaba recusando
respeito à sua atitude diante do problema da divisão do trabalho, so¬ ambas; uma posição dif ícil , sem d ú vida, mas responsá vel por uma
bretudo na á rea intelectual. Weber sentiu, como poucos, as conse¬ das m ú ltiplas dimensões em que o pensamento weberiano ganha di¬
quências daquilo que, como lembra Lukács em passagem a ele dedi ¬ nâ mica a partir da tensão sempre presente entre oposições insolú veis.
cada na qual retoma de maneira sumá ria seu estudo sobre a reifica- Sua solução pessoal , e explicitamente entendida como um ato heroi¬
ção em História e consciência de classe, é um traço específico do
pr ó prio desenvolvimento do capitalismo, ou seja, nele “ as classes
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co “ quero ver o quanto consigo suportar” — é no sentido de reu¬
nir em si, como uma espécie de negação individual da especialização,
dominantes também estão submetidas à divisão do trabalho” (Lu ¬ o domí nio das mais variadas áreas de investigação histórico-sociais:
k ács , 1968:49-55). Se admitirmos que Weber nunca abandonou a po¬ da História à Teoria do Direito, da Economia à Sociologia e, per ¬
si çã o assumida de maneira um tanto brusca no seu Discurso Inaugu ¬ meando tudo isso , a Teoria Política e a intervenção ativa nos proble¬
ral como professor de “ Ciência do Estado ” na Universidade de Frei ¬
burg , em 1895: the — —
mas contemporâneos. “ Cabe-nos dizia ele inspirando-se em Goe¬
fazer frente às exigências do dia.”
Essa absorção infatigá vel de conhecimentos não conduziu, no
“ Sou membro das classes burguesas , sinto- me como tal e fui educado nas èntanto, a uma sí ntese teórica acabada, e muito menos deu-lhe con ¬
suas concepções e ideais” (Weber , 1971:20),
dições para estabelecer quaisquer nexos que n ão externos entre teoria
e se lembrarmos ainda que, segundo ele próprio, essas “ classes bur ¬ e pr ática. E , o que é essencial , esse erudito universal repudiava qual¬
guesas” não revelavam qualificações polí ticas para preencherem ple¬ quer busca de sistemas totalizadores, tanto no dom í nio das idéias
namente os papéis dirigentes na nação alemã (Weber , 1971:23), en ¬ quanto na realidade empírica. O resultado é que temos em Weber
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t ão sua posição cr ítica e ambígua em relação a esse problema consti ¬
tui tema a ser melhor examinado.
uma figura prot éica, capaz de assumir as mais diversas formas e ocu ¬
par os mais diferentes lugares na sua vida intelectual, sem na realida ¬
O exame desse tema , que nos ocupará doravante nessa primeira de definir-se por nenhuma delas nem buscar articulá-las entre si, sal ¬
parte do trabalho, permitirá destacar as soluções metodológicas e os vo no plano de uma coerência puramente subjetiva, que ganharia
conceitos fundamentais a que Weber chegou , num processo que tem forma conceituai na sua idéia de uma “ ética de responsabilidade ” . O
algo de paradoxal, à luz das suas formulações metodológicas expl íci ¬ homem que se apresenta , numa primeira aproximação, como a nega ¬
tas. Com efeito, todo o arcabouço metodológico weberiano est á ção individual do parcelamento das atividades no plano social acaba
constru ído sobre uma seq úência de dualidades, articuladas em torno se revelando um indiví duo tanto mais dividido internamente, e cons¬
de uma que é dominante: racional / não-racional. Entre os pólos des¬ ciente disso: “ Limitar-se a um trabalho especializado , por conse¬
sas dualidades supõe-se que as opções dos agentes deveriam ser ine¬ guinte, renunciar à universalidade faustiana do homem é a condiçã o
quívocas, no caso puro. Ocorre que, na trajetória intelectual que de toda atividade valiosa no mundo moderno; assim , hoje a ‘ação’ e
conduziu à elaboração do seu esquema, Weber viu-se continuamente a ‘ren ú ncia’ condicionam-se fatalmente uma à outra” (Weber,
engajado em polêmicas que envolviam posições fortemente contras¬ 1972a: 203.)
tantes. E as solu ções por ele propostas no mais das vezes envolviam à Onde Weber foi buscar os fios para sua infindável urdidura? A
primeira vista mais propriamente um compromisso que adesão clara resposta é t ão desconcertante quanto a sua figura e a sua obra: do
a uma posição e rejeição da outra. Enfim , Weber tinha uma profun ¬ conjunto da cultura alemã da sua época , nada menos. Não houve
da experiência pessoal de que, se podemos construir analiticamente uma só corrente de pensamento à qual ele tenha ficado indiferente e,
opções puras, no universo empí rico seus limites são mais difíceis de o que é mais importante, não há tendência particular à qual ele possa
serem traçados. É como se as suas dificuldades para aderir a uma po¬ ser filiado. Considerá-lo , como é comum , um represehtante nas ciên ¬
si ção inequ ívoca e excludente no interior dos embates teóricos e me ¬ cias sociais de tal ou qual escola filosófica “ neokantiana ” da época é
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todológicos em que se envolveu se refletissem às avessas na ênfase ri ¬
gorosamente dualista do seu esquema analítico.
Na realidade, a atitude de Weber em face da divisão de trabalho
uma grosseira simplificação. Pode-se, no máximo, demonstrar
pelo menos é o que será repetidamente sugerido neste trabalho
que h á uma figura singular no pensamento alem ão em relação à qual
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|j intelectual , cujas manifestações e efeitos ele acompanhava de perto as afinidades de Weber são nitidas: Friedrich Nietzsche . De qualquer
i na sua atividade acad êmica , é igualmente ambígua. Entre a especiali - forma, a universalidade do pensamento weberiano comporta unia
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restrição importante . É que ele absorveu as mais variadas tend ências “ Durante toda a sua vida Max Weber empenhou -se a fundo , com um ri ¬
da cultura alemã da sua época. Isso inclui , é claro, a inevit á vel via¬ gorismo quase autodestrutivo, em pensar as suas posições radicalmente
gem à It ália em busca de formaçã o art í stica ( visto que a viagem aos -
at é o fim , ao invés de contentar se com vias m édias e compromissos cô¬
modos , mesmo quando isso conduzia , no final, a contradições e mesmo
Estados Unidos lhe rendeu mais material para investigação do que aporias insol ú veis. ” ( Mommsen , 1974: 455.)
inspiração intelectual nova). Nos seus escritos, pelos menos, relativa ¬
mente pouco transparece de um contato mais íntimo com o pensa¬ A quest ão , com a qual Mommsen necessariamente só se preocupa de
mento europeu em geral , embora ele obviamente existisse, sobretudo passagem , consiste em rastrear as marcas disso na obra weberiana ,
na esfera art í stica. Sua universalidade, assim como muito de sua re¬ até mesmo na formação dos fundamentos teóricos da sua análise.
flexão pol ítica , est á sob o signo da nação. Na realidade, se em relação a Weber pode-se falar em compro¬
Uma nação bem singular , por sinal. Retardatária no cen ário eu ¬ missos buscados entre posições divergentes, é preciso esclarecer des¬
ropeu , unificada por Bismarck à custa de numerosos compromissos , de logo que eles assumem uma forma muito singular na sua obra. Ja¬
industrializada mas sem uma burguesia capaz de disputar a hegemo¬ mais derivam do empenho em aceitar e tornar compat íveis posições
nia com os grandes senhores rurais, dotada ao mesmo tempo do mais opostas entre si , mas , ao contrá rio, decorrem de uma postura de re ¬
poderoso e bem organizado (em termos de ação rotineira) movimen ¬ futação polêmica das posições dadas, tais como se apresentam , e da
to operá rio da Europa. Uma naçã o cuja visão pol ítica se lançava pa ¬ busca de uma solução pró pria para as quest ões tratadas. A autono¬
ra o Leste e a cultural para o Oeste, como aponta o autor da caracte¬ mia , o car áter independente da sua ação também como cientista ,
rização da Alemanha como “ nação retardatá ria ” e que, citando eram para ele ponto de honra, de tal forma que, na maioria das oca¬
Nietzsche , vê os alemães como sendo “ de anteontem e de depois de siões em que tomou posição diante das controvérsias do dia , sua pri ¬
amanh ã , mas não de hoje” ( Plessner , 1974: 54). Enfim , uma nação
dividida e defasada, cujo peso na reflexão weberiana só pode ter meira atitude parecia ser a de desejar “ a plague on both your
contribuído para acentuar o caráter da sua trajetória, marcada por houses ” . Acompanhemos, então, esse processo de constituição do
dilemas insol úveis. Pode-se mesmo adiantar , neste contexto, que pensamento weberiano , nos seus pontos fundamentais.
não terá sido a presen ça de um capitalismo moderno na Alemanha Todo o período de formação do pensamento de Max Weber se
que levou Weber a concentrar sua atenção sobre a relação entre a con ¬ dá num contexto intelectual marcado pela preocupação com um te¬
duta económica racionalizada em moldes capitalistas e uma ética re¬ ma que só faz sentido numa nação retardat á ria , às voltas com difi¬
ligiosa de fundo puritano. Muito mais que isso, sua pesquisa serviu- culdades para a construção da sua própria hist ória. Essa quest ão di ¬
lhe para visualizar por mais um ângulo a singularidade da sua nação, zia respeito à natureza e à pró pria inteligibilidade do processo histó¬
na qual a ética religiosa predominante era de cunho luterano, bem rico. Em nenhum lugar da Europa do século XIX a Hist ória, como
mais congruente com uma postura de s ú dito obediente do que com decurso real e como objeto do conhecimento, foi t ão levada a sério
uma ação inovadora , como assinalou o próprio Weber (e, antes dele, como na Alemanha (ou naqueles Estados que, após 1870, iriam
Marx). constituir a nação unificada sob a égide da Pr ússia). O problema da
Seria precipitado, no entanto, deduzir disso a idéia de que ao História era a obsessão de uma sociedade que oscilava entre encarar
pensamento de Weber falte coerência. Ao contrá rio, o ponto de vista as revoluções burguesas européias, que acompanhara à dist â ncia
a ser aqui defendido é o de que a reflexão weberiana desemboca em mas cujos desdobramentos sentira diretamente nas guerras napoleó¬
dilemas insol úveis precisamente por ser implacavelmente coerente e nicas, como uma carência ou então como uma ameaça; e que mal ti ¬
impelida por uma audácia intelectual que não permite recuos f áceis nha tempo para deter -se nisso, diante da presença cada vez mais
diante das suas consequências. Os pró prios compromissos que ele marcante das “ massas” populares na sua vida política.
busca freq úentemente entre linhas de pensamento opostas deverão É no dom ínio da reflexão alemã que se constituiu , sobretudo
ser examinados , não como recuos mas como passos no estabeleci¬ após a Restauração pós-napoleônica , a mais vigorosa corrente de
mento de uma orientação própria e inovadora; naquilo que lhe pare¬ pensamento conservador de cunho historicista. Vale dizer , daquela
ciam quest ões de base ele nunca transigiu . Nesse ponto fundamental modalidade de pensamento que se opunha ao í mpeto racionalista,
não há como discordar da posição assumida por um intérprete tão unlversalizante e analítico das idéias iluministas que iriam , em boa
qualificado como Wolfgang Mommsen: medida , alimentar o liberalismo e o positivismo de meados do século
10
— O mundo dividido O mundo dividido
— 11
em diante. Captação, por processos irredut í veis à razão analítica, de o liberal passa a ganhar contornos mais n ítidos, numerosos intelec¬
totalidades hist óricas singulares e concretas, de cujo car áter orgâ nico tuais e cientistas assumem a causa liberal e a reivindicação burguesa
o próprio estudioso é participante. Essa era a palavra de ordem do da unificação alem ã. Agora , nã o se tratava só de literatos e historia¬
historicismo conservador, contra a busca de elementos e regularida ¬ dores (como o historiador Theodor Mommsen , que sonhava ter em
des universais no decurso histórico, articulá veis num quadro teórico Weber o seu sucessor ) mas o recrutamento se dava em todas as áreas
de aplicação e validade gerais; ou seja , contra o “ naturalismo” posi ¬ do saber . Um veículo para essas id éias era dado pelos congressos
tivista . Servia ela também para combater a idéia de que o presente cient í ficos, que reuniam representantes das várias regiões ( Mom ¬
pudesse ser encarado de outra forma que uma totalidade espiritual , msen , 1949: 25-26).
cujo car áter ú nico retire sua legitimidade incontest ável do próprio A frustrada revoluçã o de 1848 ensejou uma reorientação do
processo espont âneo da sua constituição ao longo dos séculos; ou se¬ campo de for ças pol íticas , com a definitiva entrada em cena dos as¬
ja, contra qualquer variante de “ materialismo” . salariados e pequenos proprietários urbanos, o que provocou uma
rá pida aproximação entre a aristocracia rural conservadora e a bur ¬
Na realidade, “ a Alemanha fez com a ideologia do conservantismo o que guesia urbana liberal diante do “ perigo vermelho ” . O grau em que a
a França fez com o Iluminismo. Explorou-a at é o limite das suas conclu¬ presença política do “ Quarto Estado” desconcertou e alarmou os
sões lógicas” . (Mannheim, 1959: 82.)
grupos dominantes na década de 40 pode ser avaliado se considerar ¬
No caso, esse limite era dado por uma concepção radicalmente irra ¬ mos que, ainda em 1830, um porta-voz conservador podia sustentar
cionalista e relativista do problema do conhecimento histórico- que
social. Tudo se passava como se a car ência de uma unidade económi¬
ca, polí tica e social que se configurasse numa efetiva integração na¬ “ as classes baixas do povo como tais n ão representam uma força política
durável. Essa só pode ser transit ó ria , como instrumento do partido mais
cional , ainda a ser forjada, fosse compensada pela idéia de uma uni ¬ atilado ” ( Mommsen , 1949: 171).
dade cultural, traduzida na noção de “ espírito de um povo” . A ex¬
pressão final disso era a rejeição de qualquer teoria (o pensamento Já em 1848, a mobilização aut ónoma dos assalariados e do artesana¬
conservadqr sempre teve o fascínio pelo “ concreto” ), em nome de to urbanos já foi encarada pelos próprios representantes mais avan ¬
um empirismo extremado que, a bem da verdade, ensejou um grande çados do movimento liberal burgu ês como um componente de peso
desenvolvimento das técnicas de pesquisa historiográfica. no processo. Assim , o ent ão ainda jovem fisiólogo Rudolph Virchow
Entre os nomes responsá veis pelo desenvolvimento da pesquisa escrevia, em 1848, ao seu n ão menos liberal pai:
histórica nesse per íodo não é dif ícil encontrar um engajamento bas ¬ “ Você está certo quando sustenta que foram essencialmente os trabalha¬
tante claro nos problemas políticos contemporâneos. O mais ilustre dores que decidiram a revolução, embora eu creia que você , na província,
entre eles, Leopold von Ranke (cuja memoria está ligada , quando n ão percebe plenamente que essa revolução n ão é simplesmente política
nada, à sua profissão de fé empirista — “ narrar os fatos tal como mas fundamentalmente social.” ( Hamerow, 1966: 102)
ocorreram ” — —
e relativista “ todas as épocas est ão ¡mediatamente
-
perto de Deus ” ), nunca deixou de ser um porta voz do pensamento
Na realidade , Virchow compartilhava neste ponto, com o sinal tro¬
cado, da mesma ilusã o que enchia de pânico os conservadores. É ne¬
conservador durante sua longa carreira. Na década de 30, combatia cessário lembrar que a Alemanha de 1848 ainda era fundamental¬
a idéia de transformações gerais no cenário europeu , sustentando mente uma sociedade de base agrária (cerca de 75% da sua popula ¬
que, “ passados os efeitos das guerras revolucion árias, cada Estado ção era rural), e que as rea ções dos seus grupos dominantes aos sinais
voltará ao seu desenvolvimento particular ” ( Meinecke, 1919: 306). de diferenciação social e pol ítica que pressentiam eram despropor ¬
Após 1848, presta sua assessoria ao rei Frederico Guilherme IV, pre¬ cionais em relação às condições específicamente alem ãs, mas refle¬
conizando uma regulamentação das atividades dos trabalhadorès tiam muito mais o temor da repetição daquilo que ocorria em outros
manuais inspirada na disciplina militar ( Hamerow , 1966: 211) e, países, especialmente a Fran ça. O essencial é que, desproporcionais
mais tarde, converte-se em ideólogo do bismarckismo ( Meinecke, ou não, essas concepções não eram totalmente destitu í das de funda ¬
1919: 308 e seguintes). mento, e que, no conjunto, o processo contribu ía muito mais para
O engajamento, no entanto, não era só do lado conservador . debilitar a burguesia alem ã que para fortalecê-la , a ponto de Engels,
Sobretudo após 1840, quando a divisão entre o campo conservador e em sua análise da revolu ção e contra-revolução na Alemanha , poder
12 — 0 mundo dividido O mundo dividido — 13
observar que ela se desfigurava como classe e se convertia numa es¬ A expressão disso tudo no tocante à pesquisa hist ó rica e social
pécie de “ estamento ” totalmente na defensiva. pode ser identificada , no fundamental , por um ponto : a passagem de
As mudanças estruturais da sociedade, que ainda operavam uma etapa de historicismo avesso à reflexão teó rica e seguro quanto
mais no plano das idéias que no da realidade em 1848, converteram- aos resultados das pesquisas emp í ricas produzidas para outra, em
se em processo real no quarto de século imediatamente seguinte. O que a ê nfase vai -se deslocando da á rea das t écnicas e resultados da
crescimento económico , a industrializa ção e a urbanização se desen ¬ coleta de dados para as quest ões de ordem teórica e metodol ógica .
cadearam com um ímpeto sem precedentes na hist ória européia. Os fundamentos teó ricos e metodológicos do conhecimento nesse
Multid ões de camponeses foram expelidos das terras que ocupavam dom í nio assumem car áter problem á tico, e o mesmo ocorre com cate ¬
e nas quais ainda há pouco reinava um regime de vassalagem, seja gorias básicas que antes norteavam a historiografia sem serem ques¬
por n ão poderem pagar as rendas aos grandes senhores rurais , seja tionadas, a começar pela principal , que é a da “ unidade orgânica”
porque estes passaram a adotar a seu modo procedimentos capitalis¬ do objeto . É como se, quanto mais a din âmica hist órica concreta ga ¬
tas, preferindo contratar mão-de-obra sazonal e barata a operar com nhava corpo , mais a reflexão sobre ela se tornava problem á tica.
arrendat ários ou assalariados permanentes. Es.te ú ltimo aspecto , por Operando num espaço exíguo, o pensamento acadêmico alemão da
sinal , foi analisado por Weber em relação à Prussia Oriental quan ¬ época refluí a sobre si pr ó prio, interrogava-se sobre sua validade ,
do , no seu Discurso Inaugural de 1895, apontava os riscos para a in ¬ questionava as condi ções mesmas para produzir um conhecimento
tegridade nacional alemã representados pela contratação em massa cient í fico do processo hist órico-social que n ão subordinasse o trans ¬
de trabalhadores poloneses para tarefas especí ficas, em detrimento correr hist órico à faticidade natural nem conduzisse a Universidade,
dos camponeses alemães. como organização burocr á tica a serviço do Estado burguês em cons¬
Nos centros industriais, uma sociedade ainda “ arcaica” sob mui ¬ tituição, a reforçar as correntes de pensamento contestador de tipo
tos aspectos lutava com os problemas da incorporação acelerada da socialista. Em parte é por isso que a palavra de ordem “ retorno a
tecnologia mais avan çada , fazendo aquilo que Veblen , no seu estudo Kant ” encontraria tanta receptividade; não apenas porque por essa
sobre A Alemanha Imperial e a revolução industrial, caracterizaria via se procurava encontrar terreno seguro para retomar problemas
como uma combinação entre “ o estádio mais avançado e mais efi ¬ como os da razão, do determinismo e da liberdade , mas també m
ciente das artes industriais” e o “ medievalismo quase intacto do es ¬ porque, entre a cr í tica do objeto e a cr ítica do conhecimento, preva¬
quema institucional ” (citado em Dahrendorf , 1969: 32- 33). Isso sig¬ lecia a segunda.
nificava, desde logo, uma atenção especial para a pesquisa pura e
aplicada no domínio dos processos naturais: qu ímicos, físicos e co¬
nexos. Da í deriva o desenvolvimento de um estilo de pensamento de
fundo positivista , que viria a ser representado pela figura caracter ís¬
atomizados do real , no caso da natureza , e a apreensão integradora they ainda se propunha tomar uma psicologia “ descritiva e desmem-
de formas de vivência nas “ ciências do espí rito” . Por tr às disso bradora ” como base para as ciê ncias do espí rito), três categorias
transparece cada vez mais fortemente o contraste entre a vida como comparecem para ordenar seu discurso . Sã o elas: a intersubjetivida-
fluxo cont í nuo e infinitamente rico da experiência humana e a maté¬ de, a memória e a biografia, sendo que cada qual e elas entre si são
ria inerte, convite à abstração ou à ação meramente instrumental. articuladas pela presença do significado.
Claro está que tudo isso implica traçar uma linha divisória n í tida en ¬ “ A experiência na sua realidade concreta torna -se coerente através da ca¬
tre as “ ciências da natureza ” e as “ ciências do espí rito” . tegoria de sçntido . Essa é ’a unidade que, atrav és da memó ria, vincula o
Interessa aqui assinalar , desde logo, o caráter problemá tico que que foi vivido ou revivido . Seu significado não repousa em algo externo
a integridade do mundo humano assume para Dilthey . No seu pensa¬ às experiências que lhes confira unidade, mas está contido nelas e consti¬
mento redefine-se a id éia t ípica do pensamento conservador clássico, tui as conexões entre elas. ( .. .) Onde se encontra o significado da vida de
um indivíduo, de mim mesmo , de outro , ou de uma nação, n ão est á clara ¬
de que os homens t êm os seus nichos assegurados num todo org ânico mente determinado pelo fato de tal significado existir. A sua presença é
engendrado pelas ações dos seus antepassados e consolidado pelas sempre certa para a pessoa qué a recorda como uma série de experiências
suas pr ó prias. Ao mesmo tempo, sua reserva com relação ao positi¬ relacionadas. É apenas no ú ltimo momento de uma vida que . todo o seu
vismo exprime sua relut ância em aceitar nã o só a fragmentaçã o de significado pode ser captado. Em consequência , isso só pode ser feito por
um mundo hist órico em que a divisão do trabalho impõe a especiali¬ um momento, ou por outra pessoa que retraça essa vida. Assim , a vida de
zação crescente, mas também o caráter instrumental do pensamento Lutero recebe o seu significado do fato de ela vincular entre Si todos os
técnico-cient ífico , moldado para ensejar o controle do mundo exte¬ eventos concretos nos quais a nova religiosidade foi aceita e absorvida . Is¬
rior. • so forma, ent ão, um segmento no contexto concreto mais abrangente do
que ocorreu antes e depois. Aqui o significado est á sendo considerado na
Nessas condições, Dilthey constró i , ao longo de quase meio sé¬
sua forma histórica . Mas também é possí vel procurá-lo nos valores positi ¬
culo, um esquema teórico permeado de ponta a ponta por um moti ¬ vos da vida. Nesse caso, ele se relaciona com sentimentos subjetivos (de
vo básico: a unidade para além da diversidade e, sobretudo, uma uma pessoa particular]. ” ( Dilthey , 1968: 237 . )
unidade cuja garantia de exist ê ncia é a presen ça do sentido. O uni¬
verso hist órico-social , que é o objeto das “ ciências do espí rijo ” , não A experiência vivida , a vivê ncia, não tem significado nem exis ¬
é nem pode ser encarado como um grande agregado de eventos dis¬ tência isolados, nem é indiferenciada. Ela pode ser examinada ao lon ¬
go de dois eixos, claro que isoláveis só analiticamente. Um horizon ¬
cretos. Há um processo maior que o atravessa, que é o da “ vida” ; e,
nessa noção jamais bem definida por Dilthey , est á a marca de uma tal , que permite ver como se unifica nela o conjunto de relações que
concessão fatal a uma metaf ísica que ele desejava evitar tanto quan ¬ o sujeito mant ém com outros, numa situação dada, de caráter inter ¬
subjetivo. O outro, vertical , permite ver como, através da memó ria,
to o empirismo não-reflexivo dos positivistas. Talvez pudéssemos
interpretá-la, num plano simplesmente metodológico, como sua ver¬ as vivê ncias se articulam ao longo do tempo para constituí rem uma
são para uma idéia comum no idealismo alem ão e que encontra uma biografia , uma história de vida. Esse segundo ponto é fundamental.
expressão particularmente n ítida no pensamento ling üístico de W. Ele levanta a idéia de que o conhecimento do sujeito passa necessa ¬
von Humboldt , quando este sustenta que a linguagem deve ser trata¬ riamente pela compreensão do processo significativo da sua forma¬
da como uma energeia e não como um ergon; não como coisa feita ção. Sugere també m que esse conhecimento, obtido por via com ¬
mas como processo (Cassirer , 1962: 120-121), desde que fique claro preensiva , sempre será parcial enquanto o processo de constitui çã o
que a caracter ística básica desse processo é a de ser criador de signifi ¬ do sujeito ainda estiver em curso; é só no seu término que a com ¬
cados, de exibir a marca de uma poiesis. preensão poderá ser abrangente, e mesmo assim apenas no que tange
ao segmento do transcorrer histórico representado por essa entidade
Entretanto, o que interessa a Dilthey n ão é simplesmente a no¬ que aí desempenha o papel de sede unit á ria de vivências, que é o su ¬
ção gen érica de “ vida ” , mas sua unidade constitutiva , a vivência. jeito.
Toda a experiência humana é formada por vivências, e essa experiên ¬ -
Nesse ponto introduz se um segundo tema , que mostra como, na
cia é de caráter intrinsecamente hist órico. Aqui , num plano que ain¬ realidade , um psicologismo (no sentido de um reduciónismo) nunca
da é referido ao indiví duo como entidade a ser considerada , na sua esteve no horizonte de Dilthey , apesar de tudo. É que o sujeito indi-
qualidade de “ unidade psicof ísica ” (na fase, portanto, em que Dil-
18 — Dili hey e a hermenêutica Dilthey e a hermenêutica — 19
qual se originou , a inesgot á vel realidade hist ó rico- social , tal como cia so ¬ quema valorativo e a produ çã o de bens são ligados num todo . [ Assim ] as
mente nos é dada , na sua aparê ncia externa ou nos efeitos ou como sim ¬ diferentes unidades das quais deriva a atividade criadora sã o articuladas
ples produto , como sedimento objetivado da vida . Naquelas , portanto , a em contextos hist ó rico-sociais mais amplos : nações , é pocas , per í odos his ¬
abstração ; nestas , inversamente , a retradu ção para o pleno processo vital , t ó ricos . ” ( Dilthey , 1968: 154. )
mediante uma espécie de transposi ção .” ( Dilthey , 1964: 265 . ) Isso sem d ú vida previne contra a atomizaçã o positivista dos fen ô me ¬
N ão se trata , portanto , de uma simples capta ção emp á tica de nos , mas é em princ í pio incompat í vel com a localização de princ í pios
processos ps íquicos de sujeitos individuais, mas da compreensão ou e regularidades mais amplos , que permitam estabelecer v í nculos ob ¬
decifração dos sistemas significativos gerados na exist ê ncia hist ó rica , jetivos entre é pocas, nações ou outras totalidades do gê nero. Por es ¬
através de uma caminhada contra a corrente , que vai do resultado ao sa via , nã o h á como transcender a perspectiva historicista , com sua
processo da sua criação . O conhecimento do mundo cultural n ão se ê nfase intrinsecamente relativista no car á ter singular de cada totali ¬
distingue daquele do mundo natural apenas porque é feito ‘‘a partir dade hist ó rico-social .
de dentro” e não pela observação e forma ção de hipóteses externas Cumpre lembrar , no entanto , que Dilthey dispõe de um recurso
ao objeto . Importa também lembrar que a relação entre as partes e o anal í tico bastante eficaz para tentar contrabalan çar essa tendência.
todo nos sistemas culturais é intrinsecamente significativa . O seu ca ¬ Trata-se da noção de sistema, que lhe abre o caminho para tentar ex¬
r á ter fundamental é que ela se d á pela presen ça do significado tanto trair o melhor de dois mundos: enfatizar o car á ter singular de cada
na interação particular quanto na expressão objetiva dos seus resul ¬ totalidade tomada de per si e , através do uso intensivo da relação
tados, permeando , portanto, a parte e o todo. Mesmo quando ainda parte/ todo , sugerir que cada totalidade singular e centrada em si
procur.ava a base ú ltima para as ciências do esp í rito numa psicologia, própria nem por isso deixa de poder ser encarada como parte de um
Dilthey pensava em algo diverso de uma psicologia anal í tica, que todo maior . Dilthey tenta fazer frente a esse problema mediante a
persegue as unidades m í nimas dos processos psí quicos . Sua atenção , ideia de que as pr ó prias ciê ncias do espí rito , ainda que diferenciadas
ao contr ário, concentrava- se em uma psicologia “ descritiva ” , capaz entre si e referidas cada qual a um sistema de intera ções particular,
de “ desmembrar ” o seu objeto, tomado como sistema , tendo em vis ¬
articulam - se elas próprias num sistema. Esse sistema de ciê ncias do
ta n ão apenas encontrar as articulações da sua estrutura mas recons ¬
esp í rito , por seu turno , n ão é de car áter formal , mas intrinsecamente
tituir o processo da sua constituição . Tanto os elementos do sistema hist ó rico, na medida em que acompanha , em sua constituição, a
quanto ele pr ó prio retiram o seu car á ter significativo da sua pr ó pria
crescente diversifica ção do mundo hist ó rico-social .
constitui ção temporal , da sua forma ção biogr á fica ou hist órica .
Entre biografia e hist ó ria, por sua vez, h á uma continuidade. “ A diferenciação das ciê ncias particulares da sociedade não se realizou ,
Na realidade , Dilthey as vê como formas aná logas de exercí cio de por conseguinte , por um artificio da inteligência teó rica , que tivesse tenta ¬
uma memória. A biografia individual , como seqiiência articulada de do resolver o problema posto pela exist ência do mundo hist órico-social
mediante uma an álise met ódica do objeto da investigação: a pró pria vida
vivê ncias, est á saturada de hist ó ria , e encontra nela a sua expressão a realizou . Sempre que se produziu a separação de uma esfera de ação so ¬
final . De certo modo , Dilthey já levantava a quest ã o que, duas gera ¬ cial e esta provocou uma ordenação dos fatos a que se referia a atividade
ções mais tarde, Wright Mills reclamaria como sendo nuclear para 1 do individuo , existiram as condições para que se originasse uma teoria .
uma sociologia dotada de imaginação: a dos v í nculos entre biografia Desse modo , o grande processo de diferenciação da sociedade , na qual se
e hist ó ria ( Wright Mills, 1965: 12 ) . Com uma conseqiiê ncia séria , produziu sua estrutura extraordinariamente intrincada , levava em seu bo¬
contudo. Se aceitarmos a interpretação segundo a qual uma das jo , por sua vez, as condições e as necessidades pelas quais se realizou o re¬
preocupações de Dilthey era repelir o relativismo , ent ã o é forçoso re ¬ flexo de cada círculo vital que havia alcan çado relativa independ ê ncia em
conhecer que ele falhou nesse intento. Primeiro , pela sua insist ência uma teoria. E assim se expõe , de um modo at é certo ponto completo , a
em tomar os sistemas particulares com que a ci ê ncia lida em cada
momento como totalidades “ centradas ” , cada qual com seu n ú cleo
—
sociedade na qual, como na mais potente das m á quinas, cada roda, ca¬
da cilindro atuam segundo suas propriedades e, no entanto, têm sua fun -
singular de sentido. : ção no conjunto — na coexistência e na articulação de tantas teorias di¬
versas. ” ( Dilthey, 1956: 50.)
“ Cada unidade do mundo do esp í rito tem seu centro em si pr ó prio. As ¬
sim como o indiv í duo , cada sistema cultural , cada comunidade t êm um Passagem fascinante essa, que dificilmente pode ser lida pelo soció¬
ponto focal em seu interior . Nele , uma concepção da realidade , um es - logo sem despertar no seu espírito toda sorte de resson âncias; por
22 — Dilthey e a hermenêutica Dilthey e a hermenêutica — 23
dar conta das variações hist óricas particulares. Mas , nesse passo já
toria universal. se configurava claramente a ameaça de uma violação de seu princí ¬
Nisso tudo, a tarefa das ciências do espirito é eminentemente re ¬
pio básico, de que o entendimento dos fenômenos histórico-sociais
flexiva. Elas representam o modo pelo qual os processos constituti ¬ deve ser imanente a eles, por via compreensiva e dispensando cons¬
vos da cultura e da sociedade tomam consciência de si próprios. truções prévias. Daí que, ao contrário, a pró pria noção de “ visão do
“ Em toda relação permanente entre indiv íduos ocorre um desenvolvi ¬ mundo ” acabou levando Dilthey a assumir plenamente uma posição
mento pelo qual valores , regras e propósitos são produzidos , tornam -se relativista . “ Toda visão do mundo é historicamente condicionada ,
conscientes e se consolidam . Essa atividade produtiva, que ocorre em in¬ portanto relativa e limitada ” , escreve ele no seu último ensaio, em
divíduos, comunidades , sistemas culturais e nações sob condições natu ¬
1911 . Sua raiz ú ltima é a vida, que “ cria o seu pr óprio mundo a par¬
rais que constantemente fornecem material e est í mulo , ganha consciência tir de catia indivíduo ” . E, num tom que recorda seu mestre Ranke:
nas ciências do espirito . .” ( Dilthey , 1968 : 154. ) “ Cada visão do mundo exprime , nos nossos limites de pensamento ,
Nessas condições, à medida que novas dimensões do processo hist ó ¬ um lado do universo; cada qual é verdadeira” (citado em Glockner ,
rico-social vão ganhando corpo, forma-se a ciência correspondente 1968: 1.074).
que, progressivamente articulada às demais , permite ganhar um grau Não deixa de ser significativo o empenho de Dilthey em fugir a
mais elevado de consciência do processo todo. Isso envolve a idéia de um relativismo histórico sem encontrar outra sa ída senão a ênfase
uma hierarquia de ciências do espí rito, cujo posto mais baixo (no du¬ crescente na id éia de que o fundo da hist ó ria , a “ vida ” , é essencial¬
plo sentido de fundamental e subalterno) é ocupado pela Psicologia. mente irracional, “ não se submete ao tribunal da razão” . Esse teólo¬
Sobre essa base ainda relativamente indiferenciada vai-se construin ¬ go de formação, perfeitamente integrado no sistema acad êmico
do, material e não formalmente, o edif ício das ciências do espírito prussiano, desiste até mesmo de buscar algum fundamento absoluto
que, terminado, permitiria algo como uma plena consciência do pro ¬ de caráter teol ógico para o transcurso hist ó rico, quando, uma gera¬
cesso histórico como um todo. ção antes, esses embaraços não existiam para Ranke. Para este, tal
Isso, que soa como uma estranha amálgama de Comte e Hegel , recurso existia e at é mesmo assumia forma “ secularizada” , conver ¬
na qual ambos são rejeitados para retornarem desfigurados, nos leva tendo-se em apologia do projeto politico absolutista bismarckiano.
ao fundo das dificuldades de Dilthey. Elas ficam n ítidas se, em cone¬ A ú ltima tentativa alemã para produzir uma concepção explicita-
xão com o que ficou dito acima, lembrarmos a analogia que ele esta¬ mente “ cosmopolita ” da história com base racional havia sido a de
belece entre história e biografia —
qual seja, a de que o transcurso Kant . De Herder em diante, e com o desenvolvimento do historieis-
24 — Dilthey e a hermenêutica
Dilthey e a hermenêutica — 25
mo , a alternativa que se oferecia com crescente clareza estava entre “ individualidade” , mas por se tomarem os indiv íduos como entida ¬
um relativismo fundado na id éia do car áter particular e individuali ¬ des integradas, como totalidades.
zado das manifestações hist ó ricas que, na prática, acaba restringin ¬ Numa passagem especialmente radical, Dilthey nos apresenta os
do a atenção ao “ horizonte” germâ nico, e uma fuga da hist ória ru ¬ indiv íduos como verdadeiras mónadas:
mo à metaf ísica . Claro est á que, à margem do pensamento acadêmi ¬ “ As unidades cujos modos de a ção recí proca nós distinguimos na socie¬
co mas com crescente vigor e penetração, desenvolviam -se o anti -his- dade como Costume, Direito , Economia , Estado, são indivíduos, totali¬
toricismo de Nietzsche e o materialismo hist órico . É em Dilthey, dades psicof ísicas , dos quais cada qual é diferente dos demais, dos quais
contudo, que iriam desembocar e ganhar a coerência possível no mo¬ cada qual è um mundo. ” ( Dilthey , 1964: 61 .)
mento todas as correntes historicistas anteriores, já numa fase clara¬ Aqui , os problemas com que Dilthey se defrontava aparecem por ou-
mente defensiva , de decl ínio. Seu lugar passaria a ser ocupado, por tro â ngulo, numa passagem que, de resto, mostra como os conceitos
um lado pela “ escola histórica ” na Economia e, por outro, pela So ¬
I
fundamentais da Sociologia de Simmel já estavam pré-figurados em
ciologia. É nesse contexto que ganha pleno sentido sua obra , articu ¬ Dilthey, quando este fala em “ modos (Simmel diria “ formas” , nu ¬
lada em torno do par conceituai significado / sistema e voltada para ma mudança que nos ocupar á mais adiante) de ação recí proca” . Ca¬
os problemas suscitados pela proposta de conhecer sistemas histori ¬ da indiv í duo é um todo particular , inesgot ável como tal; mas a reali ¬
camente constitu ídos mediante a compreensão dos significados que dade que nos interessa estudar , que é hist órico-social , se constitui no
veiculam. processo de interação. É para essas relações recíprocas que cumpre,
O esfor ço de Dilthey para estabelecer as relações entre sigififica- portanto, dirigir a atenção. Daí a abertura para uma sociologia e não
dos e sistemas est á presente ao longo de todos os seus escritos sobre para um sociologismo, visto que os processos de interação em que os
as “ ciências do esp í rito ” , e com oscilações que ensejam a leitura da indiv íduos se envolvem não os esgotam enquanto tais e muito menos
sua obra tanto num registro “ psicológico ” quanto de uma perspecti ¬ os explicam cabalmente . Com isso , fica também matizada, mas não
va mais propriamente “ sociológica ” . Sem d ú vida ele sempre recusou anulada , minha observação anterior de que os pró prios sujeitos indi ¬
car á ter de ciência à Sociologia, referindo-se às stias variantes positi¬ viduais se constituem na intersubjetividade; o que se constitui nesse
vistas. A ú nica exceção que viria a admitir seria a de Simmel. No en ¬ processo é o individuo historicamente situado, ou seja , uma combi ¬
tanto, sua obra sempre esteve em sintonia com uma preocupação nação específica de traços que, tomados de per si, ele compartilha
com os fenô menos hist ó ricos em grande escala , nos quais as dimen ¬
com toda a humanidade.
sões decisivas dizem respeito às formas de organização da vida cole ¬ Em seu ensaio sobre a noção de papel social , Ralf Dahrendorf
tiva. Nesse sentido, é legítimo procurar traços de uma “ sociologia” , cita uma passagem das Regras do método sociológico de Durkheim,
ainda quando ele só fala de psicologia ou de “ antropologia ” (en ¬ na qual este fala da realidade objetiva das obrigações impostas aos
tendidas, ambas, como ciências que buscam os invariantes da “ natu¬ indiví duos, nas condi ções de “ irmão, marido, cidad ão” , em termos
reza humana ” por tr ás de todas as suas manifestações históricas par ¬ de que elas não são criadas pelos indiví duos mas simplesmente her ¬
ticulares). Quanto à ênfase na dimensão “ psicológica ” , ela pode ser dadas através da educação, para comentar que “ nessa passagem
reduzida a um postulado fundamental , cuja import â ncia realmente Durkheim avizinha-se da categoria de papel social discutida nesse en
—
¬
n ão pode ser subestimada, sobretudo aqui , pois ser á ao lado da saio” ( Dahrendorf , 1968: 23 ) . O que diria ele ao ler a seguinte passa-
id éia de que a dimensão constitutiva da unidade das ações e dos gem de Dilthey ?
i
eventos é a do sentido
they que poder á ser
— o ú nico aspecto especí fico da obra de Dil -
reencontrado ( ainda que sem necessidade de se “ O juiz encontra-se, ao lado das suas funções jur ídicas , em v á rios
outros complexos de atividades; ele age no interesse da sua fam í lia , ele
supor uma influ ência direta) em Max Weber , em cujo esquema tam ¬ tem o seu desempenho econ ómico para realizar , ele exerce suas funções
bé m ocupa posição central. Trata-se da idéia de que è somente nos pol íticas, talvez ainda faça versos. N ão são , portanto , indiv íduos enquan ¬
individuos , que constituem unidades integradas , que nossa experiên ¬ to totalidades que se vinculam a tais complexos de atividades, mas, em
cia pode encontrar fatos “ espirituais ” , ou seja , dotados de sentido. meio à diversidade de condições de atividade, apenas se relacionam entre
Veremos mais adiante que o ponto fundamental , nesse passo , n ão es¬ si aqueles eventos que pertencem a um sistema determinado, e o individuo
tá dado pelo tom “ individualista ” dessa formulação, mesmo porque encontra-se numa teia de complexos de atividade diferentes. O complexo
uma configuração hist ó rica também pode ser tomada como uma de atividades de um sistema cultural (ou seja, “ educação, vida econ ô mi-
26
— Dilthey e a hermenêutica Dilthey e a hermenêutica
— 27
ca , direito, funções pol í ticas , religiões, sociabilidade , arte , filosofia , ci ê n ¬ o de uma decifração , de uma interpretação enfim , cujos procedimen ¬
cia ” ] realiza-se mediante uma localização diferenciada dos seus mem ¬ tos est ão submetidos à s regras da hermenêutica .
bros. O arcabouço firme de cada complexo é formado por pessoas , nos
quais os procedimentos subordinados ao desempenho formam a atividade “ A compreensão ostenta diferentes graus. Esses são inicialmente condi ¬
principal de suas vidas, seja por inclinação seja porque à inclinação se as¬
cionados pelo interesse . Se este è limitado , a compreensão també m o ser á .
( .. .) Mas , mesmo a aten ção mais intensa somente pode converter-se em
socia a profissão.” ( Dilthey , 1968: 167.) procedimento met ódico , no qual se atinge um grau controlá vel de objeti ¬
Apesar da referência aos “ sistemas culturais ” (ou seja , aqueles vidade , quando a expressão da vida est á fixada , de modo que possamos
cujo dom í nio é o dos valores) , é ní tida a ressonância dessa passagem sempre retornar a ela. Designamos essa compreensão met ódica de expres ¬
em relação a noções como a de sistema social e de papel social . Isso sões da vida permanentemente fixadas por exegese ou interpretação. ”
( Dilthey , 1964: 319.)
já permite deixar consignado o alvo que a presente análise persegue :
mostrar como em Dilthey se encontram muito mais fortemente pré- A formulação não poderia ser mais clara . A compreensão está su ¬
figuradas certas correntes de pensamento de caráter “ estrutural - fun ¬ bordinada a um método que , corretamente seguido , assegura a obje¬
cional ” ligados à “ análise de sistemas ” que a obra de Max Weber . tividade dos resultados . Segue- se , de imediato , que o problema da
À primeira vista , o que permitiria aproximar Dilthey e Weber se¬ objetividade do conhecimento nas ci ências do espí rito não é motivo
ria , para além da ênfase no caráter significativo dos fenômenos de perturbação maior para Dilthey . A realidade cultural é transpa ¬
histórico-sociais e também , como querem alguns , de um psicologismo rente para o intérprete — qualquer intérprete — que domine as re ¬
pelo menos latente , o recurso à compreensão como instrumento fun ¬ gras hermenêuticas . Essa objetividade , de resto , tem seu fundamento
damental da análise . No entanto , o modo como o problema da com¬ em dois pressupostos das ciências do espírito . O primeiro diz respeito
preensão aparece em Dilthey só permite estabelecer , ao contrário , à identidade sujeito / objeto , na qual essas ci ências se apoiam :
seu distanciamento do universo weberiano e até mesmo sugerir , con ¬ “ A primeira condi ção de possibilidade da ciência da hist ó ria reside em
forme passo a fazer , que os desdobramentos de suas concepções con ¬ que eu pró prio sou um ente hist órico, que aquele que pesquisa a hist ó ria é
duzem aos antipodas do modo de pensar de Weber . Seja dito desde o mesmo que faz a hist ória . ” ( Dilthey , 1968: 278.)
logo , para ser explorado mais adiante , que , se para Dilthey trata -se O segundo refere-se à situação privilegiada do int érprete, que sempre
sempre da compreensão de significados de formas de expressão sim ¬
é tomado como estando em condi ção de compreender o autor do tex ¬
bólica , para Weber o que cumpre compreender é o sentido da ação to melhor que ele próprio se compreendia; mesmo porque , como vi ¬
social para o agente, o que envolve diferenças seguramente não ne¬ mos em Dilthey , a compreensão é sempre retrospectiva.
gligenciá veis . Para Dilthey , o termo compreensão designa “ o proce¬ Este segundo ponto tem uma implicação importante , trazida à
dimento pelo qual conhecemos algo interno a partir de sinais dados luz por um dos expoentes contemporâneos dessa orientação , Gada-
externamente através dos sentidos ” ( Dilthey , 1964: 318) . Não se afir ¬ mer . É que o recurso à hermenêutica permite captar o sentido tam ¬
ma , portanto , que se trata de uma captação imediata, intuitiva de bém quando não intencionalmente perseguido; ou seja , ela opera
significados . O próprio da compreensão é a apreensão de uma totali¬ com resultados e não com intenções subjetivas .
dade significativa, para além dos dados particulares . Seu ponto de
partida é “ a conexão do todo , que se nos apresenta vivo , para poder “ O problema hermenêutico somente deve sua universalidade é sua condi¬
ção de fundamento para toda a experiência inter-humana da hist ó ria e do
chegar ao singular ” ( Dilthey , 1964: 172) . Essa captação implica uma
presente porque é possível experimentar o sentido onde ele n ão é realiza ¬
“ revivência ” , uma reprodução mental do complexo de significados
do de forma intencional.” (Gadamer , 1973: 70.)
originalmente vivido por outros .
É verdade que o intérprete sempre está em situação vantajosa Essa postura em face do problema da objetividade assinala, por ou¬
em relação aos produtores originais dos significados , visto que a ele é tro lado , a caracter ística mais abrangente dessa concepção de ciên ¬
dado captá-los como um todo já constituí do . Essa superioridade do cia . Trata -se do seu acentuado tom conservador, que herdou do ve¬
intérprete é traço nuclear do processo compreensivo assim concebi¬ lho historicismo . Isso transparece no tratamento dado ao tema da
do , e é uma garantia , não só da sua exeqüibilidade como também da verdade no conhecimento histórico-social . Se Dilthey desemboca na
objetividade dos seus resultados . Na medida em que não se reduz a constatação do caráter intrinsecamente finito é , portanto , relativo
um lampejo intuitivo, o processo de compreensão é entendido como desse conhecimento , para um autor contemporâneo confio Gadamer ,
28 — Dilthey e a hermenêutica Dilthey e a hermenêutica — 29
que se preocupa expl ícitamente com a quest ão da “ verdade e m éto¬ dual , mediante a “ fusão dos horizontes hist óricos” do autor e do in ¬
do ” (que usa como t í tulo da sua principal obra), as coisas se colocam t érprete. No interior desse horizonte de experiências e representa ¬
de maneira mais desconcertante. Para ele , a discussão dos procedi ¬ -
ções comuns torna se poss í vel o “ di álogo ” entre o int érprete e o
mentos hermen êuticos n ão se faz em termos metodoló gicos e somen ¬ “ outro Eu ” que produziu o texto.
te numa acepção muito particular em termos epistemológicos. “ N ão Merece ainda ser assinalado um aspecto ambíguo nas posições
proponho um método — —
escreve ele mas descrevo o que é” Ou . hermenêuticas aqui mencionadas . Essa ambigiiidade deriva da des¬
seja , a quest ão se põe no plano ontol ógico , inspirada em Heidegger preocupa ção com distinguir claramente entre a compreensão do su ¬
— ( Ricoeur , 1919: 29-42) . O que justifica a reflexão hermenê utica é
unicamente
jeito produtor de significados (o autor individual do texto , sendo to¬
mado este termo numa acepção ampla , mesmo quando a preocupa¬
“ a abertura de possibilidades de conhecimento que n ão são percebidas ção básica é com a expressão discursiva e a linguagem) e a interpreta ¬
sem ela. Ela não ministra de per si um crit é rio de verdade. ” (Gadamer , ção do texto. H á uma oscilação cont í nua entre esses dois pólos , e é
1973: 300.) em parte por isso que afirmei acima que Dilthey pode ser lido “ psi¬
cológica ” ou “ sociológicamente” . Nessas condições , falta também
E a que se referem essas possibilidades de conhecimento? À com ¬ uma exploraçã o mais rigorosa do tema das relações entre essas duas
preensã o do significado hist órico de objetos significativos (textos) dimensões da pesquisa . Encontra -se aí um problema que reaparece ,
veiculados por uma tradição. Aqui , de certo modo , se joga com a à sua maneira , na obra de Max Weber e que tem causado consider á ¬
dupla acepção de “ significativo ” —
dotado de significação e impor ¬
tante — para propor o problema final da hermenêutica, que ê o da
vel confusão entre os seus comentaristas. É verdade que há para isso
uma solução que , sem descaracterizar o sujeito individual como a en ¬
justificativa da seleção do objeto. Numa retomada do problema de -
tidade nuclear na análise , permite no entanto trat á lo sem incorrer
que a compreensão implica examinar uma parte com base num aces¬ num psicologismo . Ela já aparece ocasionalmente em Dilthey ( por
so prévio ao todo do qual é segmento, chega-se à id èia de que os pro¬ ex. , Dilthey , 1968: 153 e seguintes) e está presente com todo o vigor
cedimentos interpretativos estão fundados em preconceitos acerca em Max Weber . Trata-se do recurso à noção de portador , pela qual
do seu car á ter historicamente significativo. Em outras palavras, o indiv íduo (autor ou agente ) aparece como o ponto de convergência
responde-se ao problema de que só temos acesso à s partes mas não e sobretudo de realização efetiva de linhas possí veis de elaboração
podemos compreendê-las sen ã o recorrendo ao todo mediante a id éia significativa e de ação, sem que, no entanto , os processos que condu¬
de que o significado da parte, que constitui objeto da compreensã o e zem a esses resultados possam ser reduzidos àquilo que ocorre no in ¬
interpretaçã o, já vem prejulgada .
terior do seu sistema psí quico. Interessa sempre que esses resultados
A quest ão básica , assim , passa a ser a do fundamento da legiti ¬
“ abertura para o mundo ” que lhe abre , em princ í pio , uma infinida ¬ um isolamento da Sociologia em relação à s outras ciências do “ mes ¬
de de possibilidades. Nessa linha de raciocinio, Gehlen , e Gadamer mo n í vel metodológico ” , obstando com isso a constru çã o de uma
com ele, chega à id éia de que o homem “ descarrega ” na cultura e , teoria geral da ação , almejada por Parsons . Nesse momento importa
mais especificamente para Gehlen , nas institui ções (educação , moral que , pela via aqui seguida , estaremos em condições de apontar os
etc .) que articulam o seu mundo, a carga representada por essa aber ¬
contrastes entre o pensamento de Weber e o representado por Dil ¬
tura para todas as possibilidades. Com isso, volta -se à noção de tra¬ they , para al é m das supostas convergê ncias , e ao mesmo tempo fun ¬
dição como inst â ncia articuladora do mundo no qual os homens se damentar uma cr í tica ao modo dominante de incorpora ção da obra
movem. Temos aí os elementos para uma das mais sofisticadas va ¬
de Weber na Sociologia contempor ânea .
riantes do pensamento conservador nas ciências sociais contempor â ¬
Luhman parte da id éia de que o conceito fundamental da Socio ¬
neas. O seu componente básico é a id éia de que o homem é um ser in ¬ logia é o de sentido e que, mediante o recurso às noções polares de
trinsecamente ativo em relação ao ambiente mas simultaneamente interior / exterior , pode-se derivar desse conceito o outro, també m
afetado por uma necessidade “ an áloga a um instinto ” de estabilida¬ fundamental , de sistema. Ambos combinados , por seu turno , permi ¬
de ambiental (Gehlen , 1957: 15). Às instituições caberia ent ã o esta ¬ tem uma definição precisa da noção de sujeito , como “ sistema que
belecer os v ínculos entre ambas essas caracter ísticas. usa sentido ” , o que permite evitar sua caracterização em termos da
Embora as formulações de Gehlen tenham sido incorporadas subjetividade do pensar . O sentido, por seu turno , é definido como
por sociólogos influentes (um bom exemplo é dado pela sociologia “ uma estratégia de conduta seletiva sob condi ções de alta complexi ¬
do conhecimento de Berger e Luckman ), o desenvolvimento da te ¬
dade” ( Luhman , 1972: 12 ) . A presen ça do sentido ê condi ção para o
mática que nos interessa diretamente tem o seu melhor representante
em outfo autor alemão, Niklas Luhman , que se vem empenhando,
controle de um meio-ambiente — o “ mundo ” — que oferece uma
variedade inesgot ável de referências a possibilidades de vivê ncia ,
ao longo de copiosa obra, na constru ção de uma teoria sociol ógica através da restriçã o seletiva desse “ complexo de referê ncias ” . En ¬
cujos pilares são os conceitos de sistema e sentido. Se recordarmos fim , a presença do sentido corresponde a um processo de redu ção
que já foi salientado antes como esse par conceituai é nuclear no pen¬ sistemática da complexidade do mundo. Feita uma seleção, o meio-
samento de Dilthey , fica claro por que esse desenvolvimento teórico
particular se torna pertinente para a presente an álise. Ele nos permi ¬
—
ambiente o “ mundo ” — permanece enquanto “ horizonte de refe
r ê ncias para novas possibilidades e portanto como dom í nio para no
¬
—
¬
ria “ estrutural-funcional” ; portanto , aos ant ípodas de Weber , em re. Essa identidade se mant é m pela estabilização de “ fronteiras de
que pese as tentativas de Parsons e seus seguidores para unir Weber e sentido ” em relação a outros sistemas e ao mundo em geral , que se
Durkheim. constituem precisamente pelos procedimentos seletivos especí ficos
Seja dito aqui apenas de passagem que o exame dos desdobra ¬ postos em pr ática. O decurso da existência do sujeito é pensado em
mentos da corrente de análise representada por Dilthey, passando termos de vivências. Estas se articulam conforme dois processos. Um
— —
por Simmel que será examinado a seguir sugere que poderia ha¬
ver um caminho mais direto do que o adotado por Parsons para arti ¬
diz respeito à “ identificação ” de possibilidades alternativas propi ¬
ciadas pelo mundo e a sua articulação num sentido. O outro, pro¬
cular , num esquema anal ítico abrangente, os conceitos de sentido , priamente social , é de car áter intersubjetivo.
sistema e ação. Que Parsons não tenha cogitado disso é f ácil de ser “ A dimensão social da vivência . constitui -se ( . .. ) mediante o reconheci
constatado quando se considera que , nas quase 800 páginas de texto
¬
em relaçã o a Simmel , Parsons julga inadequada “ por razões que não tivo-objetivo o pressuposto essencial é a n ão- identidade dos sujeitos vi ¬
ser ão tratadas aqui ” (Parsons, 1964: 773) sua fundamentação da es¬ ventes . Somente ela enseja o distanciamento do sujeito ( . . . ) dos seus con ¬
pecificidade da Sociologia e, sobretudo, considera que ela conduz a teúdos vividos . Seus objetos são os mesmos dos outros sujeitos , e portan-
32 — Dilthey e a hermenêutica Dilthey e a hermenêutica — 33
to t ê m sua independ ê ncia naquilo que os torna acess í veis a todos — no N ã o importa aqui acompanhar a solu çã o proposta por L. uhman para
seu sentido . Isso conduz a uma recuperação perspectivista do mundo e, os problemas que propõe , em termos de uma redefini çã o do conceito
em conseqii ê ncia disso , a uma consciê ncia reflexiva da pr ó pria perspecti de Junção. Cabe assinalar , no entanto , a prioridade que no seu es
¬
¬
va como uma entre outras possí veis ( . .. ) Os outros sujeitos envolvidos ali
¬
mo ‘‘sistemas de ação ” , no sentido de que eles se definem em termos ternativa implica n ã o considerar a outra . Isso é feito em nome da
de seu pró prio desempenho seletivo , levando-se em conta que a açã o idéia de que as seleções significativas entre possibilidades oferecidas
se distingue da vivê ncia porque se identifica a partir das seleções que pelo mundo exterior ao sistema n ão eliminam aquelas que são , expl í ¬
opera no interior do complexodafuncional do sistema , ao passo que a citamente ou implicitamente, negadas no processo seletivo mas as re ¬
vivência retira sua identidade ordem já ‘‘reduzida ” , já dada no t é m ainda como possibilidades presentes no modo de operaçã o do
sistema . Uma citação espec fica í conquanto longa permite caracteri ¬
sistema , sempre orientado significativamente. Assim , num exemplo
zar de vez as analogias aqui apontadas . que lembra Simmel ,
“ A constatação de que a contingência de todo o sentido é um elemento “ em toda a coopera ção anuncia -se també m a possibilidade de um confli ¬
funcional essencial elimina qualquer reducionismo naturalista , qualquer to , que funciona como regulador secreto das formas e das condições da
envio a um ser n ã o contingente , a causas ú ltimas ou a um suposto substra
¬
cooperação . O conflito , por sua vez , só è possível com base em definições
to de grandezas ou probabilidades mensuradas . A intersubjetividade do da situação concebidas como comuns , sobre as quais n ão se est á em con ¬
conhecimento n ã o pode mais ser fixada em algo dado , acess í vel à expe ¬
¬
flito . ” ( l . uhman , 1972: 91 .)
riê ncia de toda pessoa racional ( . . . ) Aquilo que foi designado por possibi
lidade de transferê ncia intersubjetiva de representa ções e conhecimentos Est á claro que essas formulações conduzem a uma neutralização ,
só pode ser realizado através de uma forma de elaboração significativa da n ã o só das oposições polares como da pró pria id éia de “ negaçã o ” .
vivê ncia . A quest ão è: qual ? H á pelo menos uma resposta difundida de h ã Esta , ali á s, é reincorporada em termos da capacidade dos sistemas
muito . Ela remonta à tese iluminista de que o homem só conhece aquilo para “ diferenciarem ” as suas seleções / negações , tornando-se mais
que pode produzir ( . . . ) O crit é rio pragm á tico do sentido , emergente no fi flexí veis e aptas para um “ aprendizado ” . Baseia-se esse aprendizado
¬
nal do século XIX , assim como a tentativa de Max Weber de racionalizar na capacidade reflexiva dos sistemas significativos complexos, que
os conceitos cient í ficos com o auxilio de uma relação meios - fins simulada os conduz a tomar crescente consci ência do componente negador
.
ideal - tipicamente são apenas variantes tardias dessa id éia fundamental presente nas seleções que neles se operam . É por isso que Habermas
Hoje , no entanto , os limites dessa garantia de transferê ncia t écnico- prag
¬
. Eles foram primeiro explicitados prin ¬ articula sua cr ítica a essa concepçã o de Sociologia , em sua polê mica
m á tica desenham -se nitidamente com Luhman , em torno da id éia de que se trata de uma modalidade
cipalmente pela ciência hist ó rica e pela hermen ê utica , mas atualmente
també m se impõem nas formulações para uma teoria geral dos sistemas de “ tecnologia social ” , preocupada fundamentalmente com o dom í ¬
altamente complexos
ainda que n ã o t ão
—
expl
portanto n ão apenas com Dilthey e Habermas,
í citamente , també m em von Bertalanffy , Ashby ou
nio das formas de controle da sociedade ( Habermas, 1972: 142- 190) .
Essa redefini çã o da polaridade exterior / interior em termos da
Simon . Elas se vinculam aos limites da concepçã o causal cl ássica e dos manuten çã o de “ fronteiras significativas ” entre complexos de pro¬
cálculos lógicos atualmente disponí veis , que não prometem resultados cessos seletivos e um ambiente marcado pela contingê ncia , constitui
precisos na aplicação a sistemas altamente complexos e , por isso , n ão po
¬
-
ções acadêmicas reduziram se a 28% do total , ficando os 72% res¬
de car áter irracionalista que é a vida, concebida como fluxo dos
tantes para revistas não-acadêmicas. Para o conjunto de seus artigos
eventos. O segundo ponto é fundamental , e refere-se à explicitaçã o
publicados ao longo de sua vida ( 180 trabalhos) , 36 % seguem a via
da modalidade de abstração adequada para tratar de fen ômenos que
acad êmica e 64 % atingem um p ú blico mais amplo ( Coser , 1965: 35). ocorrem como processos empiricamente flu í dos de interações entre
Essa condi çã o singular , de marginal dentro da academia, distin ¬
gue Simmel de todas as outras grandes figuras da fase heroica da So ¬
entidades individuais, na ausência de uma estrutura abrangente dada
de antem ão: os tipos, que Simmel deriva do seu tratamento das for ¬
ciologia , embora também nesse particular ele se aproxime mais de
mas de intera ção. O terceiro refere-se à postura básica do cientista
Weber do que qualquer outro. Com efeito , també m de Weber é l ícito diante da realidade a ser compreendida, que é a de poder assumir um
dizer que distanciamento em relação a ela. Nesse ponto, como em vários ou ¬
“ com todo o respeito que lhe era dispensado , permaneceu um marginal tros, Simmel leva at é o fim certas sugest ões já presentes em Dilthey,
no mundo cient í fico do seu tempo.” ( Jonas , 1969: 62 . ) que no entanto assumira uma posi ção amb ígua em relação ao tema.
Claro que no caso de Simmel essa condi çã o era muito mais radical e Quando Simmel diz que “ n ão é preciso ser César para compreender
suas possibilidades de resposta incomparavelmente mais fracas do César ” , no fundo ele está dizendo, de maneira muito mais forte do
que as de Weber . Em suma: jamais o judeu Simmel poderia aspirar a que o faria Dilthey , que é preciso ser plenamente outro para com ¬
—
qualquer tipo de participação mais direta na vida pol í tica oficial
-
—
vale dizer , n ão revolucion á ria - na Alemanha da sua é poca , ao pas
so que Weber criou-se numa casa em que o debate pol í tico de alto n í ¬
vel era cotidiano. Por outro lado, jamais se poderia esperar de We
¬
¬
preend ê-lo. Nesse particular Weber teve muito que aprender com
Simmel , e n ão parece ter perdido as oportunidades, como ainda ve¬
remos. ( Vale lembrar , de passagem , que embora Dilthey tivesse sido
freqiientador assíduo da casa paterna de Weber — mas não da sua
ber que dedicasse suas energias à redaçã o de um ensaio sobre o “ es ¬ pró pria, da qual Simmel era um dos convivas freq íientes ao lado de
trangeiro ” , cuja posiçã o no grupo em que vive é caracterizada como
envolvendo uma “ unidade do pr ó ximo e do remoto ” e que , na medi ¬
outros sobre os quais exerceu influ ênciá direta, como Luk ács — nun ¬
ca houve contato direto entre Simmel e Dilthey , apesar de trabalha¬
da em que n ã o pertence ao grupo desde o in ício, é visto como intro¬ rem na mesma Universidade e, finalmente, que a aten çã o de Simmel
duzindo nele “ qualidades que não derivam , nem poderiam derivar , já estava voltada para outros temas quando Weber começou a preo¬
do pr ó prio grupo” . Tampouco se poderia esperar de Weber que co¬ cupar-se com Sociologia. ) Finalmente, o quarto ponto decorre dos
gitasse do problema da objetividade da percepçã o , compreensã o e anteriores , e refere-se ao car áter intrinsecamente unilateral do co¬
avaliação da realidade hist órico-social com refer ê ncia direta à liber¬ nhecimento histórico-social, devido à presen ça simultâ nea de pontos
dade prá tica e teórica que precisamente é um dos atributos básicos de vista (ou “ perspectivas” , se quisermos falar como Nietzsche, no
do “ estrangeiro ” (Simmel , 1964: 402-405). O contraste final é dado qual Simmel muito se inspirou nesses pontos) inconciliáveis. A dife¬
pela distribuição das publicações . No caso de Weber a grande maio¬ rença entre ambos , nesse passo, é que Simmel , ao contrário de We ¬
ria dos trabalhos foi publicada em prestigiosas revistas acadêmicas, ber , n ão dedicou atençã o sistemática às conseqiiências metodológi¬
das quais no mais das vezes ele fazia parte da comissão editorial. O cas do problema da adesão a valores envolvido nisso . Isso merece
que escapava dessa categoria era destinado aos grandes jornais e uma consideração mais especí fica.
consistia de artigos altamente engajados , referentes às grandes ques ¬
Quando Simmel trabalhou com temas axiológicos ele o fez ou
t ões pol í ticas e económicas do dia . bem de maneira “ naturalista ” mas já preocupada com as colisões
Nem por isso, no entanto , é possí vel tratar de Weber sem passar entre mandatos éticos, no in ício da sua carreira, com a Introdução à
por Simmel . H á pelo menos quatro pontos, a serem examinados ciência moral, de 1892-93 (Glockner , 1968: 1.082-1.083), ou então,
mais adiante, em que Simmel antecipa posi ções fundamentais de já na sua fase final , nas suas reflexões sobre a “ visão da vida” , de
Weber . O primeiro diz respeito à disposição de Simmel de assumir o 1918 . Nestas reflexões, os temas que o preocuparam nos seus traba¬
cará ter plenamente fragment á rio do conhecimento hist órico-social , lhos mais importantes são retomados com um í mpeto que permite
sem buscar apoio em quaisquer princí pios totalizadores últimos; em ¬ destacá-los na sua expressão mais extrema. Seu ponto de partida é a
bora seja precisamente nesse ponto que a diferen ça mais profunda contraposição entre a idéia de vida, como fluxo concreto de eventos
entre ambos também se manifeste, na insist ê ncia de Simmel em cons- dotado de car á ter intrinsecamente criador, cujos portadores são
I
38 — Simmel e a depuração das formas Simmel e a depuração das formas — 39
dos valores e outro dos sujeitos para os quais eles t ê m vigê ncia ; sam a existir segundo sua l ógica pr ópria e a submeter os homens aos
um programa , portanto, que o afasta de qualquer escola “ neo- seus des ígnios ao invés de assegurarem sua autonomia e individuali ¬
kantiana ” , embora n ão tanto de Weber como possa parecer à pri ¬ dade .
meira vista . A pró pria vida , diz ele, deve encerrar em si a exigê ncia Entre vida e forma Simmel traça aquilo que já foi chamado de
é tica , no seu pr ó prio processo de desenvolvimento. Repele-se , pois, “ dialética sem concilia ção” ( Landmann , 1968: 16). A expressão ple¬
um confronto entre ser e dever , enfatizando-se a iman ência do pro ¬ na disso est á na idéia de tragédia, que Simmel explora no dom í nio da
cesso real , sempre individual , nas normas reguladoras da conduta . cultura .
Subjacente a isso est á a idéia do sujeito como unidade que se consti ¬
“ Entendemos por fatalidade tr ágica o seguinte: que as for ças aniquilado ¬
tui na sua hist ória de vida. Disso deriva a id éia de uma “ lei indivi ¬
ras dirigidas contra um ente tenham sua origem precisamente nele ; que
dual ” , que exprime essa imanência do decurso de fato da vida do su ¬ com sua destruição fique consumado um destino que é o seu pró prio e
jeito nas suas decisões (pois, trata-se de decisões fundamentalmen ¬ que, por assim dizer , é o desenvolvimento lógico dessa mesma estrutura ,
te responsá veis; cada açã o singular , ao ser entendida como normati ¬ com a qual o ente construiu sua pr ó pria positividade . É do conceito de to
¬
va, envolve a responsabilidade por toda a existência do sujeito, diz da cultura que o espírito crie algo , independentemente objetivo , pelo qual
ele) , cujo sentido é dado pela sua vida como um todo. Este é o ponto o desenvolvimento do sujeito de si mesmo para si mesmo tome seu cami ¬
fundamental: o sentido de cada ação concebida como obrigat ó ria nho ; mas precisamente nisso esse elemento integrador , condicionante da
não é dado por m áximas de conduta externas à exist ê ncia concreta , cultura, est á predeterminado para um desenvolvimento pr ó prio que ainda
mas pela pr ópria unidade do processo vital. Enquanto Weber distin ¬ consome for ças dos sujeitos , ainda arrasta sujeitos na sua trilha , sem no
entanto conduzi -los à altura de si pr ó prios . O desenvolvimento dos sujei
¬
gue analiticamente entre uma “ ética da convicção ” e uma “ ética da tos n ão pode agora mais seguir o caminho tomado pelo objeto ... ” (Sim ¬
responsabilidade ” , referidas ambas à orientação subjetiva da ação e mel , 1968: 142- 143. )
tratadas como tipos, Simmel trata ambas essas dimensões no interior
de uma unidade concebida simultaneamente como objetiva e, por ¬ Nessa passagem , a linguagem por vezes soa hegeliana; mas, nesse ca¬
tanto, geral na medida em que deriva do pr óprio processo vital do so, trata- se realmente de um simples “ flerte” . A id éia , contudo , é
qual o sujeito compartilha e não dos seus conte ú dos , e individual, clara : as formas, enquanto objetivações significativas da exist ência ,
posto que se traduz em conteú dos que só fazem sentido e t êm poder destacam -se dela , ganham vida pr ó pria e passam a impor-se aos ho¬
normativo numa manifestação real e , portanto, particular desse pro ¬
mens. Trata-se explicitamente de uma generalização da idéia marxis ¬
cesso. Por essa via Simmel buscava dar bases sólidas para seus esfor ¬ ta do fetichismo da mercadoria (Simmel , 1968: 140) . Simmel n ã o se
ços para preservar a integridade do sujeito no interior de processos contenta, no entanto, com assinalar o problema , mas busca uma ex ¬
que o transcendem e o absorvem, como os de formação de grupos plicação para ele, e a encontra no incremento do processo de divisã o
sociais. do trabalho. Na sua perspectiva , a divisão de trabalho na produ ção
Essas formulações exprimem a versão final de um tema que rea ¬ de objetos culturais tem por consequência not á vel que o objeto cul ¬
parece, com suas variações , ao longo de todos os trabalhos mais im ¬ tural assim produzido “ como totalidade e como unidade especí fica¬
portantes de Simmel . Trata-se do confronto entre vida e forma. mente eficaz não tem produtor, n ão emergiu de uma unidade corres¬
“ A vida est á inescapavelmente condenada a somente se apresentar na rea¬ pondente de um sujeito individual ” (Simmel , 1968: 138). Aqui , cla¬
lidade na forma do seu oposto , vale dizer , numa forma . ” (Simmel , 1968: ramente, se problematizam id èias que encontramos em Dilthey , mas
172.) já com base num contato com a obra de Marx; coisa que n ão deve ser
subestimada , no ambiente intelectual da época, se levarmos em con ¬
As formas, das quais se constituem tanto a cultura como a socieda¬ ta , por exemplo , que nas 1.200 páginas dos fundamentais volumes I ,
de, t êm sua génese na pr ópria vida , cujos portadores sã o sujeitos. V e VII das Obras Completas de Dilthey não há uma ú nica referê ncia
Uma vez realizadas , contudo , tendem a contrapor o seu car áter aca ¬
ao nome de Marx , e nem os seus leitores esperariam que houvesse .
40 — Simmel e a depuração das formas Simmel e a depuração das formas — 41
xorá vel para ele precisamente porque suas raí zes sã o simultaneamen ¬
que se opõem a ela mas constituem sua ú nica maneira de manifestar ¬ pre foi tratado como o da constru ção de uma sociologia formal , sen ¬
se . Essa rela ção è de conflito , no qual a solu ção para o inevit á vel des ¬
do que esse termo deve ser entendido como a busca das formas bási ¬
compasso entre a vida e uma forma especí fica é sua substituição por cas que o processo de interação social assume, com relativa indepen ¬
outra forma, que igualmente est á fadada a entrar em conflito com dê ncia dos seus conte ú dos particulares. A expressão “ relativa inde¬
sua origem e també m com aquela que irá substitu í -la . pend ê ncia ” , que é de Simmel , tem aqui uma importância estratégica.
“ Mas também é um preconceito totalmente filisteu supor que todos os Ela visa a cortar desde logo qualquer interpretação que busque
conflitos e problemas somente existam para serem resolvidos . Ambos atribuir -lhe uma separação sumá ria entre forma e conte ú do, que
t ê m , na gest ão e na hist ó ria da vida , outras tarefas , que desempenham in
¬
conduzisse a essa quimera que é a forma vazia , sem mais. Isso evi ¬
dependentemente da pr ó pria solução , e por isso n ão foram in ú teis mesmo dentemente n ão faria justiça a um pensador t ão avesso à rigidez ana ¬
quando no futuro o conflito n ão é substitu ído por uma conciliação , mas l í tica . O problema das formas aparece em Simmel no contexto de
apenas por uma troca de formas e conte ú dos por outros (. . . ) Com isso , no
uma an álise da interação . A id éia básica aqui é que as formas de inte¬
entanto , realiza -se a legitima marca da vida , que é uma luta no sentido ab ¬
soluto , que abrange a oposição relativa entre luta e paz . ” (Simmel , 1968: ração só podem ser entendidas a partir da totalidade da situação em
173. ) que se manifestam . Isso significa que elas não podem ser reduzidas a
processos que, ocorrem inteiramente no interior dos indiv íduos en ¬
Assinale-se que essas palavras sã o de 1918 , quase contempor â ¬ volvidos. Vale dizer , transcendem as motivações subjetivas dos agen ¬
neas dás conferê ncias que Max Weber proferiria em 1919 sobre tes ( interesses , impulsos , etc.). Se considerarmos que são precisa ¬
“ Ci ê ncia como Vocação ” , nas quais se insiste na id éia da “ luta eter ¬ mente essas motivações que constituem o conteú do ou “ subst â ncia ”
na entre os deuses das ordens e dos valores diferentes ” . É verdade da interação, fica clara a razão da busca das formas. Para chegar a
que nesse ponto , como em muitos outros , o pensamento de Simmel é elas , basta prolongar a análise.
mais complexo e mais matizado que o de Weber . Este , no entanto , Nas suas interações , os indiv íduos n ão se defrontam como enti ¬
levava a vantagem da maior proximidade dos grandes temas do dia , dades singulares sem mais , mas se definem mutuamente em termos
enquanto Simmel cada vez mais era empurrado para uma posi ção das situações em que se encontram . Ocorre entre eles o que , no con ¬
que seus adversá rios não hesitavam em qualificar como marcada por texto de uma cr í tica a Weber , o filósofo Alfred Sch ü tz chamou de
uma atitude esteticamente contemplativa . É que tudo em Simmel são “ tipificações de senso comum ” em contraste com aquelas construí ¬
alusões , rodeios aparentemente f ú teis em torno do tema central . das pelo pesquisador , já com base nas anteriores (Sch ü tz, 1964:98-
Mas , como demonstrou Luk ács em seus trabalhos até 1923, a assimi ¬ 115 ). Ou seja , os parceiros da interação , ao se defrontarem , já par ¬
lação intensiva de formulações suas pode contribuir para uma refle ¬ tem da inclusão rec í proca em certas categorias, congruentes com a si ¬
xão bastante radical , é claro que côm a condição de abandonar -se a tuação. A isso acresce que, nas suas ações reciprocas, os parceiros
sua esfera de atuação na periferia das instituições e també m desde vão delimitando mutuamente a margem de escolhas possíveis de li ¬
que o trato com os problemas da dialética seja mais seguro do que nhas de conduta , de tal maneira que se estabelece uma correspondên ¬
nele . Em sua obra , contudo, ainda que desfigurada ela est á mais pre ¬ cia entre essas restri ções recí procas à autonomia da ação. A configu ¬
sente do que na de qualquer outro soci ólogo acad ê mico da é poca . ração resultante é a forma, que persiste mesmo quando variam as
Nesse particular ele nunca recorreu à constru ção de dualidades r ígi ¬ motivações puramente individuais, ou seja , os conte ú dos particula ¬
das , como Max Weber sempre esteve tentado a fazer . Tampouco a res da interação, e orienta as predefinições da situação para as rela ¬
distinção positivista entre metaf ísica e ciê ncia empí rica teve jamais ções sociais futuras. Processos como a divisão de trabalho, a coope¬
qualquer import â ncia para ele, em novo contraste com Weber ; na ração e o conflito não são , portanto, red ú tiveis às intenções subjeti ¬
realidade , os mesmos contempor â neos que o rejeitavam por ser ex¬ -
vas dos sujeitos envolvidos mas, ao contr á rio, informam nas , no
sentido exato do termo. Em conseq úência , a tarefa do sociólogo po¬
cessivamente especulativo també m recuavam perante o componente
positivista no pensamento de Weber . Nesse ponto faz sentido a ob ¬ de ser descrita conforme a seguinte regra , proposta por um comenta ¬
servação de Aron , segundo o qual a “ tragédia da cultura ” é algo ine¬ rista de valor :
42 — Simmel e a depuração das formas Simmel e a depuração das formas — 43
“ N ão considere o que os individuos fazem segundo o seu ponto de vista , ção auxiliar de linhas e figuras absolutas , por assim dizer . Estas só podem
mas atente para as correspondencias nas suas relações . N ão considere a ser encontradas na vida social real como esboços e fragmentos , como rea ¬
regularidade das ações singulares de individuos , mas sim a regularidade lizações parciais que são constantemente interrompidas e modificadas .
nas relações entre as ações de v á rios. ” ( Tennbruck , 1958:599. ) Em cada configuração sócio- hist ó rica singular operam numerosas reci ¬
Em suma , a Sociologia formal não envolve a abstração dos fenôme¬ cimento sociológico transforma os fen ô menos hist ó ricos de tal modo que
nos de conteúdos mas da perspectiva do conte údo , em favor da pers¬ sua unidade é decomposta em numerosos conceitos e sí nteses que são de ¬
pectiva da forma (Tennbruck , 1965 :78) . Esse é , com efeito , o ponto finidos de uma maneira puramente unilateral e que ocorrem como que
fundamental , e dele Simmel extrai da maneira mais coerente as con ¬ numa linha reta . Como regra , um deles apanha a caracter í stica principal
sequências teóricas e metodológicas . do fen ô meno hist ó rico em exame. Ao se curvarem e se limitarem mutua ¬
mente , todos eles combinados projetam sua imagem com crescente exati ¬
“ A imbricação imediata entre conte ú do e forma , tal como se apresenta d ão sobre um novo plano de abstfaçã o ( ... ) Todos esses regimes de dom í ¬
na realidade histó rica , n ão impede o isolamento cient í fico de cada qual . nio unipessoal [ mencionados] são t ão profundamente diferentes entre si
Assim , a Geometria só considera a forma espacial dos corpos , que tam ¬
quanto o são as ‘nivelações’ correspondentes entre seus s ú ditos . No en ¬
bém só existe com e numa mat éria , que cabe a outras ciências examinar . tanto , o motivo dessa correlação opera do mesmo modo em todos eles ; as
Igualmente o historiador , no sentido estrito , somente trabalha com uma imensas diferen ças entre os fen ô menos materiais imediatos d ão lugar a es ¬
abstração de eventos reais. Também ele destaca da infinidade do agir e do sa linha ideal , por assim dizer , na qual essa correlaçã o é traçada neles . Na
falar reais ( ...) os desenvolvimentos conformes e certos conceitos. Nem sua pureza e regularidade , contudo , essa correlação é uma constru ção
tudo o que Frederico II [ fez , pensou e sentiu ] é narrado na ‘hist ó ria’ ; mas cient í fica , abstrata .” (Simmel , 1964: 200- 201 . )
o conceito de politicamente importante é aplicado aos eventos reais e en ¬
t ão os que lhe correspondem são selecionados e narrados , embora n ão te ¬ As passagens citadas acima são de importância fundamental pa ¬
nham ocorrido assim , ou seja , nessa pura coerência interna e nesse isola ¬ ra a presente análise , na medida em que permitem estabelecer já de
mento ( ...) A Sociologia se propõe destacar para exame especí fico o mo ¬ maneira mais precisa os enlaces e as separações básicas entre a cor ¬
mento puramente social da totalidade hist ó rica , vale dizer , o que ocorre rente que veio sendo examinada desde Dilthey , e cujo ponto nuclear
na sociedade ou , numa formulação um tanto paradoxal , ela pesquisa para os atuais propósitos é Simmel , e o pensamento de Max Weber .
aquilo que é ‘sociedade’ na sociedade.” (Simmel , 1968:44-45.) Em consonância com o plano de exposi ção que venho desenvolven ¬
As formas de interação derivam , portanto , dos limites que as si ¬ do , vou ocupar - me antes das diferenças mais salientes para em segui ¬
tuações em que as relações sociais se dão impõem à plena realização da procurar estabelecer as aproximações .
dos conteúdos particulares envolvidos . Se avançarmos mais um pas ¬ A ênfase de Simmel sobre a perspectiva anal í tica da forma já foi
so nessa linha de racioc í nio , veremos que a plena realização das pró¬ apontada , especialmente por Kurt H . Wolff , como
prias formas no seu estado puro também é impossí vel , devido à pre ¬ “ acercando-o da moderna preocupação com a ‘estrutura social’; faz-se
sença simultânea no cenário social de uma multiplicidade delas , en ¬ justiça a uma grande parte da Sociologia de Simmel ao dizer-se que ele
tre as quais algumas conflitantes entre si . Segue-se que não podemos buscou lan çar luz sobre a estrutura da sociedade. ” ( Wolff ,
encontrar empiricamente formas puras de interação : temos que 1964: XXXVI . )
construí -las como instrumentos anal í ticos indispensáveis . O procedi ¬
Tomada nesses termos , essa formulação soa um pouco sumária de ¬
ção do conjunto de s úditos ao mesmo n í vel mediante procedimentos gens derivam disso . É que o uso exclusivo do conceito de socializa ¬
eliminadores das gradações sociais entre eles . ção ao invés do de sociedade confere ao seu pensamento toda a flexi ¬
cialização [ou seja , da constituição de m ú ltiplas formas atrav és da intera ¬ calizadas e não referidas a uma sociedade tomada como sistema mais
ção] nos seus significados e formações particulares. Visa a analisar com ¬ abrangente) que derivam da ênfase na dimensão de processo da vida
plexos de fen ômenos em seus fatores m í nimos at é o ponto de aproximar ¬ social (Tennbruck , 1958 : 604 , 613; 1965 : 92 e seguintes) . Claro que
se de regularidades indut í veis. Isso só pode ser feito mediante a constru ¬ nesse ponto reaproximamo-nos de Weber e também , diga-se de pas-
44 — Simmel e a depuração das formas Simmel e a depuração das formas — 45
vezes, deparamos com uma forma preexistente , que preenchemos com zável , nos termos do seu Diário , como “ nouveaut é, vice, art ” . O
nossa conduta individual . ” (Simmel , 1968:79-80.) exemplo pode ser estendido para Weber e Simmel . A m ão de Weber
Mais que refletir uma idiossincrasia do modo de pensar de Simmel , é como a de Aschenbach (e a de Thomas Mann ? ), mas a de Simmel ,
não é acidental que essas considerações sobre o desempenho de pa ¬ embora não ociosa , aproxima-se da postura esteticista de Gide, em ¬
péis na sociedade apareçam num ensaio sobre o ator e n ão em algu ¬ bora talvez se salve do cultivo de uma certa decadência pela sua viva¬
ma exposição sistemá tica de conceitos básicos sociol ógicos. É que is¬ .
cidade Os testemunhos daqueles que assistiram a suas aulas desta ¬
so ilustra como em Simmel o fato de se reservar à Sociologia a pers¬ cam sua capacidade de dar uma dimensão visual aos seus esfor ços
pectiva da forma n ão implica abandonar , por um momento que seja, para trazer à luz os ângulos mais inesperados de um problema.
a atenção sobre o jogo freqiientemente sutil entre interesses (no sen ¬ “ No momento mesmo (...) em que se julgava que ele havia chegado a
tido mais amplo do termo) e as formas que moldam suas possibilida ¬ uma conclusão, ele erguia seu braço direito e , com três dedos da sua m ão,
des de expressão, ou entre individualidade e papel desempenhado , na girava o seu objeto imagin á rio para exibir mais outra faceta.” ( Wolff ,
medida em que se recusa uma separação dualista entre indiv íduo e si¬ 1964: XVII .)
tuação, entre conte ú do e forma. Enfim , a maneira como Simmel tra¬ Se combinarmos esse gesto de exibir sempre novas facetas do
ta desse tema ilustra aquela que talvez seja sua mais profunda dife¬ seu objeto com a passagem citada mais atrás , segundo a qual os di¬
rença em relação a Weber ; e, como vimos, essa diferença n ão reside versos elementos do fenômeno a ser analisado “ projetam sua ima¬
no fato de ele dedicar alguma atenção unilateral à “ estrutura gem com crescente exatidão sobre um novo plano de abstração” , te¬
social ” . O que est á em jogo é sua capacidade de estabelecer distin ¬ mos algo mais que a caracterização de um modo de pensar em que o
ções anal í ticas, não para mant ê-las limpamente separadas na análise, car áter dinâmico atribu ído aos objetos enquanto processos é conce¬
mas para melhor poder examinar , por todos os â ngulos, as mudan ¬ bido como variação infindá vel das suas características espaciais. Va¬
ças provocadas em ambos os termos pelas suas relações recí procas. le assinalar , de passagem , que esse traço do pensamento de Simmel
Talvez se possa dizer que a concepção que Simmel tem desse tema o pode ter ajudado o seu ex-discí pulo Lukács a tomar por traço essen¬
leva a enfatizar , não o papel nem o ator ou sua ação , mas , cial da reificação o pensamento espacializado, que elimina a tempo¬
recorrendo-se a um termo que não aparece nele , as estratégias de ralidade , evidentemente ainda presente em Simmel mas já filtrada
ação dispon íveis para o indiv íduo num contexto de filiações grupais por essa sua ótica espacial ou ent ão reduzida ao puro fluxo da vida .
m ú ltiplas e nem sempre compat íveis entre si , em que ele se define ple¬
46
— Simmel e a depuração das formas Simmel e a depuração das formas — 47
Recorde-se que essa ú ltima concepção, do tempo como fluxo quali ¬ Essa mesma recusa de Simmel a estabelecer quaisquer dicoto ¬
tativo dos eventos, embora não diretamente vinculada à noção de mias r ígidas manifesta -se também no seu tratamento de dois temas
“ vida ” , ainda marca fortemente as idéias de Luk ács na sua primeira que novamente o colocam em confronto com Weber , sendo que num
fase . Vale lembrar também que Luk ács relaciona a espacialização do dos casos é este pr ó prio que o formula. Logo no in ício de Economia
tempo a uma posição contemplativa em face do mundo , reduzido a e Sociedade , Max Weber adverte que estar á preocupado com estabe ¬
um processo mecâ nico exterior à consciência ( Luk ács, 1960: 117 ). É lecer um distin ção n í tida entre o “ sentido” subjetivamente visado e
que isso envolve uma questão teórica das mais sé rias, a saber , a da o “ sentido” (as aspas são de Weber ) objetivamente válido,
objetividade do conhecimento histórico-social. À primeira vista , “ que não somente Simmel nem sempre separa quanto freqiientemente
Simmel não parece duvidar da possibilidade de um conhecimento permite de modo deliberado que confluam entre si ” . ( Weber , 1972:1.)
objetivo nesse dom í nio, sempre que o objeto seja tomado como ex ¬
Sem d ú vida isso é intencional em Simmel, posto que para ele o senti ¬
pressão parcial e unilateral de um processo para o qual não há como
do de uma configuração social só pode ser captado mediante o exa ¬
encontrar a referê ncia a uma totalidade abrangente já dada. Um exa¬ me das relações especí ficas que se estabelecem , no caso dado, entre
me mais atento, contudo, sugere uma conclusão mais radical: a de formas e conte údos , ou seja , entre os enquadramentos que se dese¬
que Simmel na realidade é indiferente a esse problema , não o temati-
nham para a expressão dos interesses ( na acepção mais ampla do ter ¬
za na sua análise (novamente em óbvio contraste com Weber ). Com mo) e estes mesmos. Portanto, o sentido é da configuração social ,
efeito, ele propõe que a seleção do objeto e sua análise são comanda ¬ não da ação individual de cada um dos parceiros das m ú ltiplas inte¬
dos pelo conceito segundo o qual o pesquisador se aproxima da reali ¬ rações envolvidas , nem da pura relação social entendida em termos
dade. Na citação acima, o exemplo seria o do conceito de “ politica ¬ weberianos, como ação de vá rios reciprocamente referida.
mente importante” . Não lhe ocorre, contudo, questionar -se sobre os É em consequência disso que Simmel se desvia de Weber (seria
fundamentos da seleção e construção do próprio conceito: afinal , em mais correto dizer o contrá rio, visto que a.obra de Simmel é ante ¬
nome do que tais ou quais eventos caem na categoria de politicamen ¬
rior ) num ponto metodológico importante. É que, enquanto Weber
te importante e , sobretudo, por que aproximar -se dos fenômenos busca sempre estabelecer conexões significativas individuais entre ti¬
munido desse conceito e não de outro? pos de ação social definidos pelo seu sentido , Simmel persegue mo¬
Isso enfraquece a ênfase que ele pr óprio d á ao car áter necessa¬ .
dalidades de correlação entre formas Em suma , busca localizar con¬
riamente unilateral do conhecimento hist órico-social , visto que isso é gruências sistemáticas entre formas, tal como o faz na passagem cita ¬
pensado como derivando simplesmente do car áter parcial em relaçã o da mais atrás, em que as formas correlacionadas são as de superordi-
à complexidade dos fenômenos que um ponto de vista particular im ¬ nação despótica e subordinação niveladora. Disso deriva , ainda no
prime ao seu conhecimento, mas não problematiza os fundamentos caso de Simmel , que nas suas análises os individuos comparecem
dessa unilateralidade em oposição a outros possí veis e concorrentes. não como agentes t í picos nem como meros portadores de papéis,
Em suma , nesse ponto Simmel não vai além da posição de Dilthey, mas se definem mais propriamente como a expressão da tensão em
embora lhe imprima sua marca pró pria, ao substituir um relativismo processo entre essas duas dimensões. Neles ganha corpo a dialética
de base historicista por uma concepção da gradativa integração do entre a vida e a forma. Por isso eles ocupam posição nuclear na sua
conhecimento formulada , por assim dizer , more geométrico: o unila ¬ análise, mas não t êm posição garantida nem como agentes nem mes¬
teral é visto como um lado entre outros existentes num objeto finito
— —
uma forma e basta girar o objeto para que os demais sejam
-
mo como sujeitos , basta lembrar o exame das consequências do pro¬
cesso de divisão do trabalho por Simmel, quando ele examina a “ tra¬
igualmente bem projetados no plano da análise. O mí nimo que se gédia da cultura ” .
pode dizer é que, se Weber fosse operar com analogias desse tipo, ele At é aqui apareceram mais diferenças que semelhan ças entre
não falaria de retas e planos , mas de vetores e entenderia aquilo que Simmel e Weber ; diferen ças essas que oferecem uma visão mais clara
Simmel chama de formas como um campo de forças , levando at é as e simultaneamente mais matizada do confronto, implícito naquela
últimas consequências o caráter relacional do conceito. Aqui nova ¬ ocasião, entre Dilthey e sua corrente de pensamento (à qual Simmel
mente se manifesta o contraste entre uma postura contemplativa e se filia de mais de um modo) e Max Weber . No entanto , o ponto co¬
uma participante. mum inquestionável entre Simmel e Weber é fundamental , e diz res-
48 — Simmel e a depuração das formas Simmel e a depuração das formas
— 49
nas ciê ncias sociais , Weber adverte que suas considera ções n ão t êm ber , que nunca se desviou do dom í nio estritamente metodológico
( “ l ógico ” , na sua terminologia ) ao refletir sobre a ciência.
pretensã o inovadora , pois
Uma distinção básica entre o tratamento que Simmel d á ao pro¬
“ quem conhece os trabalhos de lógicos modernos — apenas menciono
Windelband , Simmel e, para nossos propósitos, especialmente Heinrich
cedimento tipológico e aquele que viria a ser adotado por Weber
consiste em que, para este, não h á como encontrar umainstância in
Rickert — perceber á de imediato que em todos os pontos essenciais eles
constituem o apoio” . ( Weber , 1973:146.)
termedi á ria entre a multiplicidade de ações sociais e a constru ção dos
¬
rie de motivos, mas seguramente não no que concerne a uma das pas¬ po, vicia a pr ó pria prá tica tipológica. Isso não se deve apenas a que o
sagens mais importantes do ensaio , referente à constru çã o e utiliza ¬ recurso à noção de forma já pressupõe a presença de regularidades
ção do tipo ideal (Tennbruck 1956: 609). Com efeito, nesse particu ¬ universais de ordenação .da interação social. É que também nesse
lar a contribuição de Simmel é decisiva , embora , como veremos mais ponto reaparece a diferen ça entre uma visão rigorosamente analí tica
adiante, não possa ser considerada isoladamente . O essencial dessa e dicotomizadora do real , que é a de Weber , e a de Simmel , que não
constribuição é que Simmel traz à luz a modalidade de abstração que persegue as unidades últimas da exist ência social nas suas expressões
logicamente se ajusta a uma análise que opera com aqueles pressu ¬ mais puras e contrapostas analiticamente entre si mas se det é m num
postos básicos que são comuns a ambos os autores . Esses pressupos¬
tos são os de que as unidades ú ltimas e fundamentais de exist ência
plano intermediá rio — precisamente o das formas — em que os po¬
los das dicotomias weberianas ainda se encontram imbricados, em
hist órico-social são indiv íduos envolvidos em processos de interação; oposições que n ão são concebidas como puramente anal í ticas mas
de que aquilo que convencionalmente é designado por sociedade é como reais.
um processo em fluxo e não uma estrutura dotada dos atributos de Nessas condi ções , a perspectiva da forma permite incorporar os
uma totalidade persistente; e, mais genericamente, de que as mani ¬ fenô menos de conte ú do na pr ó pria análise , n ão apenas geneticamen ¬
festações empíricas dos fenômenos são inesgotavelmente diversifica ¬ te mas també m como elementos persistentes de resist ê ncia às pró ¬
das e desprovidas de qualquer capacidade espont â nea ou já dada de prias formas, numa tensão cujas sedes são os indiv íduos envolvidos
antemão para estruturar -se fora do âmbito das interações correntes. nas interações. É ainda por isso que Simmel não estabelece uma dis ¬
Em Simmel essa modalidade de abstração corresponde ao isola¬ tinção que aparece claramente nas formulações programáticas de
mento e à depuração analítica de segmentos do transcurso empí rico Weber : aquela entre ação social e relação social . Aparentemente, a
da existência social. Isso é feito tendo em vista , inicialmente, identi ¬ ele apenas interessa a segunda , mas na realidade ele opera simulta ¬
ficar as suas formas para , em seguida , pelos motivos já expostos, neamente com ambas, sempre problematizando a primeira , isto é , o
submeter as próprias formas ao mesmo tratamento, visando a atingir sentido que sua ação pode ter para o agente num campo de intera ¬
aquilo que na sua terminologia é ainda ambiguamente designado por ções dado. Enfim , Simmel est á sempre atento para o intrincado jogo
“ tipo de forma ” . A idéia básica do recurso à construção tipológica entre as ações conscientes dos homens e suas objetivações e para os
est á aí exposta claramente, apesar da ambigiiidade terminológica , possí veis descompassos entre ambas, sem correr o risco de Weber , de
que de resto não é acidental. E que em Simmel a passagem da idéia ser apanhado de surpresa pelas manifestações disso.
de forma para a de tipo não é completamente realizada , pelo menos De qualquer modo , a noção de forma ainda ostenta uma forte
nas suas formulações explícitas. Isso se deve à circunst â ncia de que o marca empirista , na medida em que essa entidade é concebida como
seu pensamento, nesse particular , move-se a meio caminho entre pre¬ efetivamente dada na realidade, como objeto a ser trabalhado e não ,
missas de caráter empirista e uma adesão a princí pios rigorosamente como seria o caso de uma postura radicalmente idealista , como algo
idealistas. Digamos, esquematicamente , que sua solução de compro¬ semelhante a uma categoria do entendimento ordenadora do real . É
misso consiste em concentrar sua atenção sobre os problemas mais por isso que a ê nfase de Simmel , mais que na sua construçã o do ob-
50 — Simmel e a depuração das formas
das com o caráter construtivo do tipo. É como se, no confronto entre fundamental para o desenvolvimento das idéias de Weber , tal como
ambos, Simmel se dintinguisse como o mais complexo e matizado este mesmo o sugere? A resposta imediata seria a de que isso decorre
nas análises concretas ao passo que Weber levasse vantagem na sofis¬ da sua célebre distin ção entre ciê ncias generalizadoras e ciê ncias indi -
ticação do tratamento de quest ões metodológicas. Nessas condições, vidualizadoras. Uma atenção maior ao tema sugeriria , logo em se ¬
é preciso ampliar desde já o quadro , coni o exame dos outros autores guida , que essa import â ncia advé m da introdu ção da problem á tica
mencionados por Weber na passagem citada acima. dos valores na consideração da especificidade das ciências históricas.
Com mais um passo, chegar íamos a assinalar o pró prio crit ério que
Windelband oferece, em seu cl ássico ensaio sobre Hist ória e ciência
da natureza, de 1894, para estabelecer a distinção entre essas modali ¬
dades de “ ciências da experiência ” (que ele distingue das “ ciências
racionais” , como a Matem á tica e a pró pria Filosofia , cuja relação
com a experiência é indireta ; no que se torna claro que ele utiliza o
termo “ ciência ” no seu sentido mais amplo e tradicional , de um “ sa ¬
ber ” , como parte da sua reação ao positivismo). Esse crit é rio é
“ puramente metodol ógico , fundado em conceitos l ógicos precisos ( . .. ) O
principio de classificação das ci ências é o caráter formal dos seus alvos de
conhecimentos . ” ( Windelband , 1970: 224. )
Quanto à classificação propriamente dita, vale recordar a passagem
mais citada da sua obra:
"Podemos então dizer : as ciê ncias da experi ência procuram no conheci ¬
mento do real quer o geral , na forma da lei natural , quer o singular , na
configuração historicamente determinada . Elas observam num caso o fa¬
to sempre idêntico , noutro o conteúdo único do evento real determinado
de per si . Umas são ciências de leis , outras são ciências de acontecimen ¬
tos; aquelas ensinam o que sempre existe , estas , o que existiu uma vez . O
pensamento cient í fico é ( . . . ) num caso nomoté tico e noutro idiográfico .
Se quisermos ater -nos às expressões usuais podemos falar , nesse sentido ,
da oposição entre disciplinas naturais e históricas , desde que se tenha em
mente que nessa concepção metodol ógica a Psicologia deve ser plenamen ¬
Diante dessa observaçã o final , n ã o admira que Dilthey tivesse rejei ¬ sador da natureza o objeto singular dado à sua observação jamais tem va ¬
tado vigorosamente a classificaçã o proposta e tivesse preferido man ¬
lor cient í fico como tal ; ele só lhe é de valia na medida em que o pesquisa ¬
ter como crit é rio o próprio objeto das ciê ncias para identificá -las . dor se sinta justificado a trat á-lo como tipo , como caso especial de um
Quanto à relev â ncia disso para o pensamento de Max Weber , conceito gen é rico , e desenvolver este ú ltimo a partir dele. Assim , a refle¬
ela ainda é bastante remota , at é aqui . Cumpre ent ã o acompanhar xão é apenas sobre aquelas caracter í sticas que se prestam à percepção de
mais o texto. A seqii ência da passagem acima talvez seja mais signifi ¬ uma generalidade conforme as leis. Para o historiador a tarefa consiste
em reavivar novamente para uma experiência contemporânea ideal qual¬
cativa . “ É poss í vel e verificá vel que os mesmos objetos possam ser quer constelação do passado na sua expressão mais individual . Compete-
submetidos a um exame nomot ético e também idiogr á fico ” , visto lhe fazer em relação àquilo que ocorreu algo an álogo ao que o artista faz
que essa distin çã o é relativa . Afinal , ela “ classifica o tratamento e com o que est á na sua fantasia . Nisso reside a afinidade do trabalho hist ó ¬
de pesquisa da natureza ” . Isto se justifica tanto mais quanto ambas turalismo ” e do “ positivismo ” leva-o a descuidar -se do componente
as modalidades de ciê ncia compartilham as mesmas modalidades de de historicismo tradicional que a todo momento adere às suas for ¬
demonstração: experiê ncias, dados sensoriais. Além disso, nenhuma mulações . Isso fica ainda mais nítido na seq úência da sua exposição.
delas se satisfaz com o que o senso comum oferece . “ Ambas necessi ¬
Para Windelband , as duas modalidades de ciência que propõe
tam para seu fundamento uma experi ê ncia cient í ficamente depura ¬ distinguem-se pelo lugar que a “ abstra çã o ” ocupa nas generaliza ¬
da , criticamente formada e provada no trabalho conceituai ” ( Win ¬
ções e , a “ plasticidade ” , no tratamento da experiência individualiza ¬
delband , 1970: 226) . da . Para perceber isso , diz ele, cabe comparar os resultados da pes¬
At é aqui temos uma distin ção que ainda promete chegar à espe¬ quisa. E , ao fazê-lo, tem o seguinte para dizer da historiografia:
cificidade decisiva dos seus componentes e que os associa sob o signo
de algo assim como um empirismo cr í tico. Na realidade, já se torna “ A sua meta final sempre é extrair com esmerada nitidez da massa de da ¬
n í tido nesse ponto que Windelband est á empenhado em encontrar dos a figura verdadeira do pret é rito. O que ela fornece sã o quadros de
uma solu çã o de compromisso , defin í vel no plano estritamente meto ¬
pessoas e vidas pessoais com toda a sua riqueza caracter ística , conserva ¬
dol ógico, entre as posições positivistas de cunho “ naturalista ” que dos em toda a sua vida individual . ” ( Windelband , 1970: 228.)
se encontravam ent ão em plena ofensiva e a consideração pela legiti ¬
midade e especificidade do conhecimento hist órico. Tratava -se , em Portanto, reprodu ção do objeto na sua integridade individual . Deci ¬
suma , de abrir um espaço para a historiografia e as á reas afins no didamente, quanto mais tentamos nos aproximar de Weber , mais
dom í nio das ciências. Nesse sentido, a preocupa çã o est á voltada nos afastamos dele . Est á claro, pelo menos, que Windelband tem
pouco ou nada para oferecer no tocante ao caráter construtivo do
mais para o modo de associa çã o poss í vel entre as duas modalidades
de ci ê ncias propostas que para o simples estabelecimento de uma dis ¬
conhecimento hist ó rico e à utilização do tipo como instrumento de
tin çã o entre elas ; e é por isso que o car á ter puramente formal da sua an á lise. Talvez a referência à avaliação como traço intr í nseco à ciên ¬
classificação desempenha um papel t ão importante no seu trabalho. cia hist órica nos d ê o ponto de contacto.
O passo seguinte , no entanto, já permite estabelecer melhor a base
Essa quest ão é posta por Windelband em termos de qual o valor
ú ltima da distinção proposta: que o conhecimento de um objeto tem ; e esse valor é dado pela possi ¬
bilidade de integr á-lo no conhecimento mais amplo, para o qual con ¬
“ A diferen ça entre pesquisa da natureza e hist ó ria somente começa quan ¬ tribuiria.
do se trata de ajuizar os fatos conforme o conhecimento . Aqui vemos: “ Assim , num sentido cient í fico , o pr ó prio fato já é um conceito ideológi ¬
uma ci ê ncia busca leis; a outra , configurações. Numa , o pensamento con ¬ co. Nem tudo o que é real , arbitrariamente dado , é fato para a ciê ncia ,
duz da constatação do particular para a capta ção de relações gerais, na mas só aquilo do qual — expresso em termos sum á rios — se pode apren ¬
outra ela se det é m na caracteriza ção atenta do particular . Para o pesqui ¬ der algo. ”
'Í L
54 — Windelband , Rickert e os valores Windelband, Rickert e os valores — 55
ou seja , acerca de como “ os homens como tais pensam ,- sentem e ciais mas não em todos , h á entre ele e Rickert .
querem” (Windelband, 1970: 232). No caso de Weber , as regularida ¬ Não é dif ícil assinalar a preocupação básica que norteia o seu
des de conduta envolvidas na explicação não são t ão genéricas e mui¬ pensamento e que caracteriza a chamada escola neokantiana de Ba ¬
to menos “ leis gerais” , mas pelo menos a linha de raciocínio é seme¬ den (mais precisamente, da capital dessa proví ncia, Heidelberg , onde
lhante. Da mesma maneira , na última passagem que nos interessa da Weber també m trabalhou ). Sua intenção manifesta é estender o
História e ciência da natureza, o in ício evoca Weber para logo em se¬ '
apriorismo kantiano do dom í nio do conhecimento da natureza para
guida o raciocí nio orientar -se no sentido oposto àquele que ele ado¬ o da história. Vale dizer, buscava-se estabelecer em moldes rigorosos
taria sobre o tema; neste caso, aliás, um tema central , o da relação as condições da possibilidade do.conhecimento hist órico-cultural. Is¬
entre causalidade e liberdade. Para Windelband , a cadeia da seqiiê n- so se fazia na luta contra três adversá rios de peso: o historicismo, o
cia causal que as ciências possam estabelecer não tem fim , não há psicologismo e o naturalismo positivista.
“ f órmula universal ” que explique o conjunto. Por isso Nessa linha de interesses, o pensamento de Windelband
“ sempre nos resta um resí duo de incompreens í vel em tudo que experi ¬
desenvolve-se numa trajet ória que não é uniforme, ao longo de 30
mentamos histórica e individualmente —algo inefável , indefiní vel ( . .. ): anos em que se preocupou diretamente com o tema. Uma tentativa
isso aparece à nossa consciência como o sentimento do caráter não causal digna de nota de fazer frente aos problemas dos quais também trata ¬
da nossa essência , ou seja , da liberdade individual” . (Windelband , 1970: ria no trabalho citado acima , sobre História e ciência da natureza,
254. ) aparece num ensaio um pouco anterior , de 1882, em que ele examina
56 — Windelband , Rickert e os valores Windelband, Rickert e os valores — 57
as relações entre “ normas e leis naturais ” . Nesse trabalho , ele ainda Na realidade, a fonte imediata das concepções de Windelband ,
est á claramente voltado para uma tentativa de conciliaçã o entre esses que ele mesmo aponta , é a obra de seu mestre , Hermann Lotze, um
dois dom í nios. O conceito de que ele se vale para isso é o de seleção filósofo atualmente esquecido mas que parece ter exercido forte in ¬
entre manifesta ções da realidade . flu ê ncia sobre seus contempor â neos. Para esse autor , o conhecimen ¬
caso . As leis da lógica são uma seleçã o entre as diversas .formas possí veis tritamente em termos de sua vig ência (Glockner , 1968: 974). Esse
de associações de ideias; as leis da é tica , uma seleçã o entre as formas de conceito de vigência passa a ocupar posição central no pensamento
motivação possí veis; as leis da est é tica , uma seleçã o entre as formas possí
¬
de Windelband , e o conduz a conceber toda a Filosofia como giran ¬
veis de nossos sentimentos e de seu modo de manifestar -se. ” Para que is ¬
so possa ocorrer , impõe-se que tais leis ou normas tenham validade uni ¬
do em torno da quest ã o dos valores. J á nas concepções de Lotze
versal . Assim , “ as normas são aquelas formas de realização das leis natu ¬ encontram -se os elementos d è uma espécie de “ hegelianização ” de
rais que devem ser aprovadas pressupondo-se que se ajustem ao fim da vi ¬ Kant , no sentido de uma busca da normatividade, de um “ espí rito ” ,
g ê ncia geral ” . ( Windelband , 1949: 266, 267 . ) se se quiser , imanente aos fen ômenos. Windelband leva essas suges ¬
Ao desenvolver essas id éias , Windelband chega à conclusão de que t ões at é o fim , e acaba propondo, num ensaio de 1910, uma “ reno¬
vaçã o do hegelianismo” .
“ a razão n ã o é engendrada , mas já est á contida no interior da variedade
infinita dos processos naturalmente necessá rios: cumpre reconhecê-la e , Esse ensaio est á explicitamente dedicado a um apelo para que se
ao revelá- la à consci ê ncia , convert ê-la em fundamento determinante . O considere a
reino da liberdade é aquela prov í ncia do reino da natureza na qual só rege
a norma . Nossa missão e nossa ventura consistem em instalarmo- nos nes ¬ “ responsá vel seriedade pela qual a filosofia hegeliana se esforça por com ¬
sa prov í ncia ” . ( Windelband , 1949: 284.) preender e trazer à tona conceitualmente ( .. . ) a razão dentro do mundo ,
nesses “ tempos espiritualmente agitados ” em que n ão se busca ‘uma filo ¬
Essa formulação é significativa quando nada porque sugere cla ¬
contida nos “ processos naturalmente necessá rios? ” ). J á aqui encon- da é uma concepção muito particular do significado do pensamento
. tramos elementos para considerar plausí vel a observação de Haber - de Kant .
mas, feita em relação a Rickert mas igualmente aplicá vel a Windel ¬ “ Sua filosofia transcendental é, quanto aos resultados , a coerência dos
band , de que seu problema básico é precisamente haver formulado princípios de tudo o que hoje resumimos sob o nome de cultura .
um problema hegeliano mas ter sido “ incapaz de completar a transi ¬
Examinam -se nela os fundamentos conceituais do saber , da moral , do di ¬
versal e incondicional dos “ sistemas de normas ” de que fala Windel ¬ mum , de tal modo que sejam vá lidos para todos os lugares e todos os
band . Enfim , em ambos os trabalhos examinados at é aqui , e tam ¬ tempos . Assim , e n ão de outro modo, deve ser interpretado o apriorismo
bém nos posteriores , Windelband oscila entre a id éia de uma consti ¬ kantiano. ” ( Windelband , 1949: 198.)
tuição transcendental do dom í nio da natureza e da cultura , em ter ¬ Essa interpretação est á diretamente fundada na noção de vig ência ,
mos das condições a priori para o seu conhecimento , e a idéia de sis¬ tomada de Lotze , que també m é aplicada ao pensamento pós-
temas normativos dados de fato embora com validade universal . kantiano , cujos desdobramentos o ensaio procura examinar .
58 — Windelband, Rickert e os valores Windelband , Rickert e os valores — 59
Para Windelband , os problemas legados por Kant encontram ser e o acontecer soltos , no tempo , em toda a sua variedade individual ;
duas grandes linhas de resposta entre seus sucessores: a de Fries , que não pensa nisso pela simples razão de que , embora quisesse fazê- lo , não o
conduz a um psicologismo , e a de Hegel , que conduz a um historicis ¬ * poderia . Também ele seleciona entre a massa infinita dos fatos historica¬
mo. Ambas carregam consigo o risco do relativismo , que Windel ¬
mente dados alguns , que em nada são determinados pelo destino da tradi ¬
ção , mas antes essencialmente pelo interesse que os diversos elementos do
band quer evitar . A saída que ele encontra é a de se separar nitida ¬
passado estão chamados a despertar . São incontáveis as coisas que ‘acon
mente os dom í nios do ser e do dever, da existê ncia e da validade . Por
¬
tecem ’ e que jamais entrarão na ‘hist ória’ . E o interesse que preside tanto
essa via , procura impossibilitar a solução relativista de derivar o nor ¬ a tradição quanto a seleção do historiador depende , nesse caso , dos con ¬
mativo do empiricamente dado. Em suma , ele propõe que se distin ¬ ceitos de valor da vida humana ; somente se reconhece como fato histórico
gam a esfera dos valores do campo de suas realizações , tomando-se aquilo que tem alguma import ância para a memória da espécie , para seu
aquela como dotada de vigê ncia universal e incondicional . No seu ' valioso conhecimento de si mesmo . E o próprio interesse determina , es ¬
entender , isso já se encontra em Hegel ( Windelband , 1949: 205 ), em ¬ sencialmente , as relações em que o historiador dever á vincular entre si os
bora envolva o risco de uma recaída em posições puramente metaf í ¬ fatos ; o que ele busca não são conceitos genéricos mas formas e comple ¬
chegar a filosofia crí tica . Fazer valer de um modo efetivo ante a consciên ¬ das por ela própria para esse fim , mas sempre como meio para chegar a
cia empí rica sua evidência imediata mediante sua própria razão de ser compreender aqueles v í nculos . Portanto , também a ‘hist ória’ , considera ¬
imanente e objetiva; nisso consiste a missão do filósofo . E isso é o que a da como objeto da ciência , constitui uma conexão ordenada , que pode ¬
dintingue , a rigor , da nova metaf í sica . ” ( Windelband , 1949: 206 . ) mos extrair e preparar com base nos fatos dados , conforme o padrão dos
Essa é, ent ão, a saída proposta por Windelband : a Filosofia como interesses racionais necessá rios e da validade geral . Com efeito , a ciência
ciência cr í tica dos valores , entendidos esses não em termos de exis¬ histórica somente se distingue do relato individual por tomar como princ í ¬
As ideias básicas de Rickert sã o bem conhecidas . Segundo ele , a dotada de um conte ú do: precisamente o dos valores. Rickert insiste
realidade apresenta-se como um “ cont í nuo heterogé neo ” de eventos em que nesses valores importa exclusivamente a vigência , n ão a exis¬
discretos. tência. Essa concepção o levou , num certo momento da elaboração
“ Na realidade n ão existem objetos gerais , mas apenas individuais; so ¬ de seu pensamento , a conceber a id éia da definição de um sistema de
mente existe o ú nico, e n ão h á nada que realmente se repita . ” ( Rickert , valores universais que pudessem desempenhar , em relação ao conhe ¬
1961: 45.) cimento hist órico, o papel das categorias a priori no conhecimento
Fiel à orienta ção da sua escola , ele sustenta que o apriorismo kantia ¬ da natureza em Kant . A impossibilidade de derivar esse sistema da
no já forneceu uma resposta plenamente elaborada para um dom í nio multiplicidade de manifestações empí ricas de valores no mundo his¬
do real , que é o da natureza . Resta desenvolver de modo conseqiiente tórico levou-o a abandonar esse projeto, mas não conduziu à rejei¬
os conceitos correspondentes a outro dom í nio, que é o da hist ória. ção do princí pio de que os valores universais e suas formas historica ¬
No tocante ao primeiro ponto , a reflexã o de Rickert , assim co¬ mente dadas de realizaçã o constituem dois universos distintos. É em
mo a de Windelband , ajusta-se à definição contida no parágrafo 14 nome desse princ í pio que ele ganhou condições para sua distinção
dos Proleg ómenos a toda Metaf ísica futura, de Kant , segundo a qual fundamental entre avaliação pr á tica de um fenômeno e referência
“ natureza é a existência das coisas na medida em que é determinada teó rica a valores com vistas ao seu conhecimento.
conforme leis gerais ” . Isso lhe permite delimitar o campo das ciê n ¬ Essas considerações de Rickert permitem-lhe propor a exist ência
cias da natureza: ele se constitui quando o sujeito se defronta com o de uma categoria especí fica de objetos que não fazem parte nem da
real munido do conceito de lei geral , ou seja , busca o que é genérico realidade captada por via sensorial nem do mundo psíquico. São os
a uma multiplicidade, ou classe, de fenômenos. Por contraposiçã o, | complexos de sentido, entidades significativas acessíveis à compreen¬
delimita-se o campo das ciências hist óricas: ele se constitui pela apli ¬ são, de modo análogo ao que ocorre “ com uma palavrà ou o sentido
cação de conceitos individualizadores aos fenômenos. Portanto, a de uma proposição ” . Num primeiro momento, Rickert propõe cha ¬
diferença entre ci ê ncias da natureza e ciências hist óricas não é dada mar esse dominio de “ espírito” , para logo abandonar o termo, devi ¬
por quaisquer atributos intr í nsecos à realidade, mas esta se constitui do a suas ressonâ ncias hegelianas e também diltheyanas , e substitu í-
como natureza ou como hist ória conforme os interesses de conheci ¬ lo por cultura. Com isso, a história identifica-se como “ ciência da
mento do sujeito sejam de car á ter generalizador ou individualizador . cultura humana ” . Nesse ponto , fecha-se a distinção entre natureza e
Como também ocorre com Windelband , naquilo que este tem de hist ória:
kantiano, Rickert elabora à sua maneira id éias cuja expressão em “ A vida cultural apresenta-se sempre como um acontecer significativo e
Kant est á dada nas suas obras dedicadas à “ razão pr á tica ” , especial ¬ pleno de sentido, ao passo que a natureza se desenvolve sem significado e
mente a de que o conhecimento do mundo n ão lhe confere nenhum sentido.” ( Rickert , 1961: 36. )
valor de per si , mas apenas quando envolve a id éia de um fim . Este , A cultura refere-se , ent ão , ao universo significativo em que os ho¬
por seu turno, implica um interesse que, no caso do conhecimento ,
opera como o princí pio que aciona a própria vontade de conhecer ,
mens vivem, e se manifesta através de realizações individuais e irre
pet í veis, na história , de valores universais. O conhecimento da histó¬
-
em conformidade com a formulação na Fundamentação da Metaf ísi¬ ria consiste, portanto, em examinar precisamente esse caráter indivi¬
ca dos costumes, de que é pelo interesse que a razão se torna prá tica, dual e particular que valores universais assumem em configurações
ou seja, “ causa determinante da vontade” . É nesse contexto, de res ¬
concretas e irrepet í veis; daí o seu caráter necessariamente individua ¬
“ multiplicidade íntegra do seu conte ú do , mas se realiza numa determina ¬ Nesse contexto esclarece- se uma observação de Rickert , ao dis ¬
da seleção e transformação , vale dizer , destaca-se num complexo de ele ¬ cutir a possibilidade de se operar com “ leis ” hist óricas .
mentos que nessa combinação particular só pertencem a um objeto deter ¬
minado ( ...) . Devemos distinguir ent ão a ‘individualidade’ que corres ¬ “ A cultura n ão é de modo algum uma realidade livre de concepções , que
ponde a todo objeto ou processo qualquer ( cujo conte ú do coincide com possa ficar sujeita a qualquer elaboração e transformação mediante con ¬
sua realidade e cuja cognição n ão é nem alcan çá vel nem desejá vel ) da in ¬ ceitos , mas aquilo que é concebido como cultura é, em primeiro lugar , um
dividualidade significativa para n ós (que consiste somente de determina ¬ determinado fragmento da realidade da qual n ão se sabe se valem justa ¬
dos elementos) e devemos entender com toda a clareza que a individuali ¬ mente para ele e somente para ele os conceitos da lei ; e, ademais, esse
dade no sentido mais estrito , à qual nos referimos comumente, assim co ¬ fragmento é uma realidade já estruturada e transformada em uma forma
mo o geral do conceito especí fico , n ão são elas pr ó prias uma realidade muito determinada atrav és de valores culturais . ” ( Rickert , 1961 : 101 . )
mas um produto da nossa interpretação da realidade , de nossa conceitua -
ção pré-cient í fica.” ( Rickert , 1961: 45.)
Essa idéia , de que o cientista encontra o seu objeto já estrutura
'
¬
[ Assim ,] “ a hist ó ria não só pressupõe seu pró prio fim cientifico como va ¬ tas , proclama que “ a afirmação da ‘unidade do método cient í fico’
lor , como o faz toda ciência, mas à sua essência lógica pertencem outros contradiz de modo absoluto os fatos” ( Rickert , 1961 : 53) . Aqui se
valores vinculados a seus objetos , sem os quais nem mesmo seria possí vel encontra a raiz do seu af ã por separar os dominios das ciências natu ¬
uma concepçã o individualizadora .” ( Rickert , 1961: 67-68.) rais e hist óricas , de uma maneira tal que “ as proposições de umas
não possam ser traduzidas para proposições das outras ” ( Habermas ,
Aqui aparece com toda força a exigência da distinção entre avaliação 1970: 74-75 ) . É nessa caminhada que se apresenta a armadilha a que
prática e referência teó rica a valores . aludi acima . É que , apesar de todos os seus esforços para evitar o
pró prio termo “ espí rito” , porque poderia evocar o “ esp í rito absolu ¬
“ A referência teó rica a valores na história n ão só é independente da valo ¬ to” hegeliano (ou a noção correspondente em Dilthey) ele acaba che ¬
rização positiva ou negativa como também deve ser livre de arbitrariedade
em mais outro sentido , a saber , acerca de quais são os valores a que os ob¬ gando perigosamente próximo do historicismo . Isso ocorre porque ,
jetos são referidos. Mas isso se consegue quando o historiador divide a a despeito de todos os seus esforços em contrário , ele tende a transfe ¬
realidade individual em elementos essenciais e n ão essenciais unicamente rir os sistemas de valores universais a priori que buscava definir no
mediante referê ncia e valores gerais, vale dizer , a valores tais como se en ¬ início da sua reflexão para a própria realidade empí rica . Os valores
contram materializados nos exemplos do Estado , da arte, da religiã o , que conferem significado ao objeto e orientam a sua seleção perten ¬
etc.” [Em termos sum á rios ,] “ a individualidade de um objeto obtem sen ¬ cem ao próprio objeto , ainda que como expressão de valores univer ¬
hist ó rica parece estar presente , como ocorre quando Rickert afirma terogé neas entre si de conceitos e de dom í nios do conhecimento cor ¬
que respondentes , e levam seu dualismo at é a sua consequ ência ú ltima ,
“ se tornam historicamente essenciais unicamente aqueles objetos que que é a de postular dois universos separados , o do ser e o do dever,
possuem significação com respeito á interesses de grupo ou sociais, ou cu ¬ entre os quais n ão há conciliação possível .
ja estrutura de sentido , à s quais servem de portadores , deixam -se com ¬ E comum ler -se que entre as duas principais escolas neo-
preender como constitu í dos por valores sociais. Disso decorre que o obje ¬ kantianas rivais da é poca , a de Baden e a de Marburgo, a primeira
to principal da investigação hist ó rica n ã o seja o homem pensado como
desligado da sociedade mas o homem como ser social , devido à conex ã o
orientava seu pensamento em termos do primado da “ razão
hist ó rica real das partes com o todo hist ó rico . Dever -se- á levar especial ¬
pr ática ” , e a segunda em termos da “ razão pura ” . Isso pode valer
mente em conta a medida em que [ele] participa da realiza çã o dos valores para um confronto ( que , evidentemente, n ão tenho condições para
que são importantes para a conex ã o social . ” ( Rickert , 1961: 87 . ) fazer ) entre, digamos, Wilhelm Windelband e Hermann Cohen .
Mas , é no grande representante da escola de Marburgo na á rea da re¬
-
É f ácil ver , contudo , que essa observaçã o mais refor ça que atenua a
presente argumenta çã o, sobretudo se atentarmos para a presen ça um
flexão sobre as ci ê ncias humanas , Ernst Cassirer , que encontramos
uma visão muito clara dos limites em que se debatiam seus colegas de
tanto insólita nesse contexto da quest ão do “ todo hist ó rico ” e das Baden . Cassirer , que elaborou toda uma fascinante teoria sobre os
rela ções necessá rias parte / todo, que envolvem primordialmente a problemas das relações entre exist ência , expressão e forma na hist ó¬
noçã o de sistema. Nesse ponto , e como já ocorrera com Windel ¬ ria e na cultura , e que soube fazer uso do estudo da linguagem para
band , n ã o estamos t ão longe de Dilthey . Al é m disso, e como adver ¬ elaborar uma concepção da forma que lhe permite evitar a visão
t ência fundamental , temos que considerar que , no esquema de Ric
——
¬
ção de conceito bastante mais flex í vel que aquela presente em Win ¬
aparece, diz respeito aos m óveis da orientaçã o do conhecimento para delband e Rickert . Após criticar , é verdade que de modo um tanto
o dom í nio da natureza ou para o da hist ória. sum ário , o car á ter arbitr á rio das distin ções que eles propõem , lem ¬
“ Uma divisão em ciê ncias naturais e ci ências culturais baseada na especial bra que
significação dos objetos da cultura poderia manifestar melhor do que
qualquer outra a oposição de interesses que separa os dois grupos de in ¬ “ todo conceito cient í fico é, na realidade , algo geral e particular ao mes
¬
vestigadores. ” ( Rickert , 1943: 44. ) mo tempo; sua missão consiste precisamente em realizar a sí ntese entre
um e outro ” . (Cassirer , 1972: 60.)
Para evitar uma concepção mais propriamente hist ó rica ou so ¬
Mas, entre a sí ntese e o dualismo , aqueles autores com que Weber te¬
ciol ógica dos valores (que implicaria precisamente buscar as condi ¬
ções empí ricas da sua vigê ncia ) Rickert redefine o problema da ex ¬
ve contato acadêmico mais direto seguiram a linha do dualismo.
pressão dos valores na hist ória . Ao invés de serem tomados como ex ¬
Karl Knies polemizavam contra o pensamento econ ómico inglês, cu ¬ Não tenho condições , aqui , para deter-me no tema , que creio
jo racionalismo abstrato repeliam em nome de uma descrição daqui ¬ merecer atenção. De qualquer modo, e apesar de seu caráter reco¬
lo que os homens concretos em condições especí ficas “ tentaram e al ¬ nhecidamente sumário, a idéia de Bukharin , de que o marginalismo é
cançaram na vida econó mica ” , para usar a expressão de Roscher. expressão da “ psicologia do consumidor ” que caracteriza a condi ¬
Claro que teria que ser assim , comenta Werner Stark , pois ção de rentiers que se beneficiam do afluxo de excedente acumulado
“ os teó ricos da economia alem ã de 1840 não podiam admitir como corre¬ para seus bolsos de pessoas desvinculadas do mundo da produção
ta a doutrina dos seus colegas economistas ingleses, deduzida como era do através do desenvolvimento das formas de crédito (Bukharin , 1967:
princí pio do interesse pró prio, simplesmente porque esse interesse n ão 19-71), não me parece desprezível , como ponto de partida. Uma si¬
prevalecia em seu país [no qual] dois terços da população estavam entre¬
tuação desse tipo é bastante plausivel para os casos dos economistas
gues à agricultura numa economia feudal e tradicional. ” (Stark , 1961:
75 .)
continentais', e ocorre de fato no caso de Jevons, a julgar pelo teste¬
munho de um seu admirador que se destacou como economista e há¬
Daí a ênfase dos autores alemães na peculiaridade da estrutura insti ¬ bil investidor na Bolsa ( Keynes, 1956: 126). Por outro lado, não se
tucional na qual se dá a atividade económica. Daí também a tendên ¬
pode desprezar a advertência de Eric Roll, quando aponta (preten ¬
cia para conceber a ciência económica não só como uma historiogra ¬
dendo , sem êxito nesse ponto, refutar Bukharin) o dado complemen ¬
fia mas também, e principalmente, como uma sociologia. “ A Eco¬ tar de que, na época , a ciência económica já estava institucionalizada
nomia atualmente é uma ciência só na medida em que se expande nu ¬ como disciplina acadêmica exercida por intelectuais profissionais
ma Sociologia ” , sustentava Gustav Schmoller , o expoente dessa po¬ ( Roll , 1959: 339-340). De qualquer maneira, é visí vel que ainda há
sição na “ controvérsia metodológica ” , na qual seu principal adver ¬ muito no que pensar nessa á rea.
sário seria Cari Menger . Foi Menger quem desencadeou a controvérsia metodológica, ao
Cabe aqui Uma observação acerca da relação que Stark propõe en¬ publicar , em 1883, as suas Investigações sobre os métodos das ciên¬
tre o desenvolvimento das id éias econ ómicas e seu contexto social. cias sociais. Nessa obra , cuja influência sobre Max Weber não pode
Ela é plausí vel nesse ponto particular , mas revela-se bastante fr ágil ser subestimada (no entender de Friedrich Tennbruck , em seu impor ¬
quando se submetem suas formulações a um exame mais detido. Por tante ensaio sobre a génese da metodologia de Max Weber, ela é sim ¬
exemplo , ele procura dar conta do fato de que o pensamento margi- plesmente decisiva), Menger assinala e defende, de uma perspectiva
nalista desenvolveu-se, nos seus pontos essenciais, no período de muito pessoal , precisamente aquelas concepções que os membros da
1854 a 1874 porque esse foi (pelo menos na Inglaterra , presume-se) “ escola histórica ” mais abominavam . Seu ponto de partida é o clás¬
um per íodo em que algo próximo à “ concorr ência perfeita ” encon ¬ sico problema proposto de maneira alegórica por Mandeville e em
trou sua expressão mais acabada , o que obviamente é congruente termos de análise económica por Adam Smith na Inglaterra oitocen ¬
com uma concepção do processo económico atomicista e fundada na tista , qual seja, o da emergência de instituições socialmente benéficas
idéia do interesse individual. A data inicial , 1854, já envolve um fato de modo independente da vontade dos homens, que agem individual ¬
embaraçoso: ela assinala a primeira expressão coerente dessa teoria , mente em defesa de seus interesses pessoais. Com isso, fica descarta¬
nada menos do que produzida na Alemanha, por Hermann Gossen. da a prioridade para o exame das instituições (embora Menger não se
Quanto à data final , as obras relevantes de Menger e Jevons são am ¬ opusesse, em princípio, à pesquisa histórica ou sociológica) para
bas de 1871 e a de Walras é de 1874. No tocante à concentração de concentrar-se a atenção sobre o agente económico individual , toma ¬
representantes do pensamento marginalista na Á ustria , de 1870 ehi do como “ átomo ” da sociedade. Isso lhe permite tratar as categorias
diante, Stark argumenta que esse país já vinha ent ão “ desenvolven ¬ económicas sem consideração pelo contexto social em que se mani¬
do uma atmosfera comercial e capitalista” que lhe permitia oferecer festam , visto que esse é um simples resultado não intencional de um
“ uma ci ê ncia económica germâ nica para os ingleses” (Stark , 1961: conjunto de ações realizadas por indivíduos com vistas a seus fins
78). Vale lembrar aqui que os pressupostos ú ltimos do marginalismo pessoais. Do ponto de vista metodológico, sustenta Menger , essa
costumam ser apontados pelos comentaristas ( por exemplo, Myrdal , perspectiva coloca as ciências sociais em vantagem em relação às na ¬
1963: 54-77) como de origem inglesa , e encontram sua expressão turais, visto que nestas as unidades últimas de análise, os “ á tomos”
mais acabada na corrente filosófica “ utilitarista ” . Restaria explicar e “ forças ” , não são de natureza empí rica, ao passo que seus corres¬
o caso do su íço Léon Walras. pondentes nas ciências sociais , os “ indivíduos humanos e seus empe-
70 — A controvérsia metodoló gica A controvérsia metodoló gica — 71
nhos ” , o são. Assim , as dificuldades anal íticas nas ciê ncias sociais que portanto seja poss í vel estabelecer v í nculos inequ í vocos entre seu
são menores e não maiores do que nas ciê ncias naturais , ao contr á rio pensamento e o utilitarismo ingl ês da linhagem Adam Smith - Jeremy
do que julgava Comte, baseado na sua concepção de sociedade como Bentham . Afinal , a idéia de uma harmonia natural de interesses , que
um “ organismo ” real e especialmente complexo e não na concepção tanto fasc í nio ainda exercia sobre Bentham ( Halevy , 1966: 88- 150,
adequada para uma ciência social emp í rica , que é a da sociedade co¬ esp. 108) , parece sair um tanto prejudicada do seu confronto radical
mo agregado de ações e interesses individuais (Menger , 1963: 142, n ? com os desdobramentos sociais e políticos da noção de escassez , tal
51). como a vê Menger . É bem prová vel que os marginalistas de l í ngua
Menger , como fundador que foi , juntamente com Jevons e Wal ¬ alemã estivessem escrevendo para alemães e austr íacos mesmo. Vale
ras, da teoria económica da utilidade marginal , e como autor de uma dizer , suas id éias possivelmente fazem mais sentido no contexto de
apresentação considerada pelos especialistas como particularmente um capitalismo retardat á rio, estremamente desigual no seu padrão
vigorosa da teoria subjetiva do valor ( “ O valor dos bens é indepen ¬ de desenvolvimento e bem menos suscet í vel de interpretações amenas
dente da exist ê ncia da sociedade” , diz ele), é especialmente impor ¬ como as dos ideólogos da Revolu ção Industrial inglesa.
tante para a presente análise por dois motivos: pelo modo como traz A grande contribuição de Menger , no que nos interessa , é con ¬
à tona todas as implicações da noção central de escassez para uma tudo a constatação , não plenamente elaborada mas no entanto ob¬
teoria baseada na ação individual e pela sua capacidade de perceber servada com maior precisão do que por qualquer seu contemporâ neo
o papel central que deve ser atribu ído a procedimentos tipológicos (incluindo, portanto , Simmel ), de que a decisão metodológica de to¬
nessas condições. mar as ações e interesses individuais como unidades de análise impli ¬
Numa passagem realmente fundamental da sua obra sobre os ca necessariamente tratar os fenômenos mediante a construção de ti ¬
“ princípios da doutrina económica ” , de 1871, Menger escreveu: pos. A quest ão, aqui , ainda que tenha sido apenas entrevista por
“ O esforço dos membros individuais de uma sçtciedade para dispor ,
Menger e que ele talvez não tivesse plena consciê ncia do seu alcance ,
com exclusão de todos os demais membros , das quantidades adequadas é que há uma conexão lógica entre conceber o objeto de aná lise em
de bens tem ( . . . ) sua origem no fato de a quantidade de certos artigos à termos de agentes individuais e conduzir a análise em termos tipoló¬
disposição da sociedade ser menor que a demanda . Portanto , como sob gicos. Não se trata de uma opção metodológica entre outras possí ¬
tais condições é impossí vel a satisfação plena da demanda de todos os in ¬ veis, mas de uma necessidade inerente ao esquema metodológico
divíduos , cada qual tem o incentivo para prover o necessário à sua de ¬ adotado. Sem levar isso em conta é impossí vel entender o esquema
manda mediante a exclusão de todos os outros sujeitos económicos . En ¬ que seria posteriormente proposto por Weber .
tretanto , em virtude da competição de todos os membros da sociedade Para Menger a ciência económica se divide em tr ês ramos: o
por uma quantidade de artigos que sob nenhuma circunstância é comple ¬
pr á tico, o hist órico e o teórico. Quanto a este ú ltimo, pode-se ainda
tamente suficiente para satisfazer a todas as necessidades dos indivíduos distinguir entre uma orientação “ realista” e uma “ exata ” . Esta dis¬
( . . . ) uma solução prática do conflito de interesses que aqui se suscita uni ¬
tin ção é formal , posto que se trata do mesmo objeto, que pode ser
camente é concebí vel entregando-se ao indivíduo quantidades parciais da
quantidade total dispon í vel na sociedade em poder dos sujeitos económi ¬ encarado a partir daquelas duas perspectivas estritamente metodoló¬
cos individuais e protegendo-os em sua posse mediante a exclusão simul ¬ gicas. A perspectiva “ realista” busca encontrar regularidades e for ¬
tânea de todos os outros sujeitos económicos . ” (Stark , 1961 : 79. ) mas mediante a observação empírica , e seu resultado é a obtenção de
“ tipos reais ” . A perspectiva “ exata ” preocupa-se com leis gerais,
A importância de uma formulação como essa para o pensamen ¬ que precisam ser desentranhadas da multiplicidade dos fenômenos
to de Weber é muito grande, como logo veremos. O que fica patente empí ricos, e se apresentam como “ tipos rigorosos” . A questão, nes¬
desde logo é que as idéias de Menger , formuladas num registro pura ¬ te caso, consiste em
mente económico, trazem implicações sociológicas e mesmo pol íticas “ descobrir os elementos mais simples de toda a realidade, os quais , na
muito mais n ítidas do que se poderia esperar de um adversá rio do medida mesma em que são os mais Simples devem ser pensados de modo
historicismo e sociologismo de Schmoller e seus companheiros. Além rigorosamente t í pico . Por essa via a investigação teórica alcança qualitati ¬
disso, parece ser conveniente encarar com certa reserva a idéia de que vamente formas rigorosamente t í picas de manifestação dos fenômenos
autores como Menger e também Bõhm-Bawerk estivessem fazendo ( . . . ) . É verdade que essas não podem ser testadas na realidade empí rica
uma Economia em lí ngua alemã “ para ingleses ” , como quer Stark , e plena (pois as formas de manifestação de que aqui se trata em parte exis-
72
— A controvérsia metodoló gica A controvérsia metodológica
— 73
tem apenas na nossa idéia). De modo semelhante a investigação exata re¬ Daí a força do “ ju ízo de valor ético” , que deriva da “ crescente per -
solve a segunda tarefa das ciências teóricas: o estabelecimento das rela¬ cepção de todas as relações causais ” (von Ferber , 1967: 170, 172).
ções t í picas, das leis dos fenó menos (...). J á mostramos que leis dessa na ¬ Em suma , entre conhecimento e julgamento pr ático de valor haveria
tureza não são alcançá veis com referência à plena realidade empí rica dos uma continuidade indiscut ível.
fenômenos, devido ao caráter não rigorosamente t í pico dos fenô menos No in ício do século uma nova geração de intelectuais aderiu à
reais. A ciência exata também n ão examina , portanto, as regularidades Associação, entre eles Max Weber e Werner Sombart. Em 1905, es¬
nas sequências e nas demais formas de manifestação dos fenômenos reais. ses “ jovens” (Weber tinha então 41 anos) provocaram a ira dos vete ¬
Ela examina (...) como, a partir dos elementos mais simples e em parte di ¬
retamente n ão-empí ricos do mundo real , em seu isolamento (igualmente ranos, para os quais representavam a ala “ esquerda radical ” , ao de¬
n ão-empírico) de todas as outras influências , desenvolvem-se fenômenos fenderem a id éia de que a entidade deveria dedicar-se ao desenvolvi¬
mais complicados sempre levando em consideração a medida exata (igual¬ mento da teoria económica e sòcial , sem restringir -se ao exame empí ¬
mente ideal!).” (citado por Tennbruck , 1959: 588-589; cf . Menger , 1963: rico de problemas especí ficos para fins práticos diretos. Esse novo
60-61 .) confronto seria responsável , em parte, pela criação da “ Sociedade
É evidente que Weber não compartilharia da preocupação de Men ¬ Alemã de Sociologia ” , em 1909, da qual Weber participou intensa ¬
ger com a busca de leis gerais; mas, igualmente evidente é a proximi ¬ mente at é 1912, quando se retirou ao verificar que a nova querela ,
dade de ambas as linhas de pensamento, no plano que lhes é próprio, dessa vez sobre a quest ão da “ neutralidade valorativa” nas ciências
vale dizer , o metodológico, como demonstra a alusão favor ável que sociais, se desenvolvia sem esperanças para a sua posição, que era a
Weber faz a essa passagem de Menger (Weber , 1973: 35). da nítida separação entre a pesquisa cientí fica e avaliação e imple¬
Cabe lembrar , finalmente, como já foi assinalado de passagem , mentação de medidas imediatas. Enfim , na própria linguagem da
que a ‘.‘disputa metodológica” ofereceu importante material para as época, passava-se da “ disputa metodológica” para a “ disputa sobre
reflexões de Weber sobre a ‘‘objetividade ” nas ciências sociais, na ju ízos de valor ” . Em ambos os casos, a posição de Weber assumiu
medida em que envolvia o confronto entre a concepção favor ável a contornos que poderiam sugerir a busca de um compromisso entre as
um caráter neutro da teoria económica de Menger e a postura de posições em pugna , mas na realidade ela estava , mais do que nunca,
Schmoller , que defendia firmemente a idéia de uma ciência económi ¬ buscando o seu próprio caminho. É essa sua solução independente
ca diretamente voltada para as quest ões pr áticas e dotada de conteú ¬ que vai interessar-nos, nos seus pontos básicos, para os quais as to¬
do normativo intr í nseco. Como é sabido, Schmoller , juntamente madas de posição alheias servem de balizamento.
com outros representantes do chamado “ socialismo de cátedra” , co¬ Antes de passar a essa fase final do trabalho, é necessá rio lem ¬
mo Adolf Wagner e Georg F. Knapp, foi o fundador da “ Associa ¬ brar um ú ltimo ponto de interesse para se localizarem as fontes de
ção para Política Social ” , entidade voltada para a pesquisa e promo¬ inspiração para as soluções metodológicas de Weber. Até agora fo¬
ção de medidas pr áticas relativas aos grandes problemas da socieda¬ ram levantadas questões ligadas à formação de Weber como econo¬
de alemã da época. O período de existência dessa associação é signi ¬ mista e também como historiador . No entanto, outra área básica de
ficativo: vai do apogeu do Estado prussiano, em 1872, até as véspe¬ sua formação intelectual , a dos estudos jurídicos, também lhe propi ¬
ras da ascensão de Hitler , em 1932. ciou sugest ões importantes, sobretudo ño que se refere à concepção
Schmoller , como líder do seu grupo fundador, tinha posições do seu conceito de tipo ideal. A referência, no caso, é ao jurista
bem definidas a respeito do papel da- ciência económica. Ele a conce¬ Georg Jellineck , a quem vários comentaristas atribuem a paternida ¬
bia como uma espécie de função de assessoria do Estado, na busca de desse conceito e pelo menos um (Guenther Roth) atribui papel
da harmonização dos conflitos sociais latentes na sociedade. fundamental para a formulação da análise da dominação de Weber ,
Competia-lhe, no seu entender , formular “ ju ízos de valor que se inspiraria na sua teoria do Estado ( Roth, 1973: 312). Jellineck
objetivos” acerca das questões do dia, com o que suas conclusões ga ¬ fala , com efeito, do “ tipo ideal ” como um instrumento básico na
nhariam estatuto normativo. O car áter “ objetivo ” desses ju ízos de¬ análise jurídica, e o distingue do “ tipo empírico” , que seria aquele
rivaria da circunst â ncia de que realmente relevante para a reflexão de Weber .
“ os bons e elevados homens do mesmo povo e da mesma época cultural “ O tipo empí rico distingue-se do tipo ideal sobretudo por n ão pretender
cada vez mais se unem com respeito aos principais julgamentos práticos expor uma realidade objetiva mais elevada . Ele significa uma conjugação
de valor ” . de caracter ísticas dos fenômenos que depende totalmente da posição ado-
74 — A controvérsia metodológica
lética hegeliana representada pelo CapitaI de Karl Marx ” ; além do sua Sociologia da Religi ã o, se sairmos dos limites da sua obra sobre a
que as referências a Marx no seu livro sobre a hist ória da economia ética protestante e o espí rito do capitalismo. Com uma ponta de exa ¬
pol í tica , em uma ú nica página , são de “ alarmante insuficiência ” gero, mas de maneira plausivel no geral , um comentarista contempo ¬
( Weber , 1973: 17). Embora Weber faça referência, mais adiante, ao râneo escreve:
fato de as formulações de Roscher serem vulnerá veis diante da “ nos¬ “ Cumpre parar de ver em Weber um ‘anti - Marx ’ , pois Weber chega , no
sa atual maneira de ver , orientada em relaçã o a Marx ” , o fato a ser conjunto da sua obra e em particular nos seus ensaios sobre Sociologia da
desde logo salientado aqui é que o pr ó prio Weber também jamais se Religião , a uma conclusão exatamente inversa daquela que formula na
dedicou a um confronto explícito com a dialética marxista. É preci¬ Ética protestante . Toda a sua obra está permeada por uma convicção: a
samente por isso que , apesar da ó bvia import ância de Marx
melhor , das concepções do marxismo que circulavam na época de
— ou organização de uma sociedade e as correntes de pensamento qué a ani ¬
mam são , em última análise , o produto da relação de forças entre as cá-
Weber — para as suas pr ó prias idéias, enquanto ponto de refer ência
negativo, não há necessidade , no presente trabalho, de estabelecer
madas que a compõem . Eis o que nos aproxima consideravelmente da
concepção de Marx ! ” ( Stern , 1971 . )
um confronto direto entre ambos esses pensadores. Primeiro , por ¬ Por sua vez, o pr ó prio Weber não regateava elogios à obra de
que isso não é diretamente relevante para uma análise preocupada Marx, que considerava de penetração quase prof ética na realidade
com o universo de idéias que efetivamente, através do estudo e do histórica que se propunha examinar . Já em 1920, numa das suas últi¬
contato direto , contribu íram para formar um esquema teórico origi ¬ mas apresentações em p ú blico , Weber opos-se energicamente às for ¬
nal , além de que tais confrontos já existem na bibliografia (por mulações depreciativas que Oswald Spengler dedicava a Marx, numa
exemplo, Ashcraft , 1964). Depois, porque parece estar suficiente ¬ conferência. “ Se Karl Marx saísse do t ú mulo hoje e olhasse em vol ¬
mente Comprovado que realmente Weber sempre trabalhou à mar ¬ ta, teria razão para dizer , apesar de algumas discrepâncias importan ¬
gem do pensamento de Marx, sem jamais atravessá-lo criticamente. tes: o que vejo é realmente carne da minha carne, sangue do meu
—
Pelo menos até 1906 ou seja, quando suas concepções metodoló¬
gicas já estavam cristalizadas — tudo indica, conforme estudiosos
sangue” (Baumgarten, 1964: 554).
De qualquer modo, é evidente que há um ponto em comum en ¬
autorizados, que Weber não havia feito uma leitura aprofundada de tre as preocupações de Marx e de Weber , e que não deve ser subesti ¬
Marx (Mommsen , 1974a ; 147 ; Giddens, 1972: 190 e seguintes). mado: a posição central atribuída aos problemas da sociedade capi ¬
Convém, de qualquer modo, advertir desde logo contra a ten ¬ talista na obra de ambos , ainda que com a diferença de que num caso
dência, encontradiça na bibliografia , de apresentar Weber como isso conduz a uma cr ítica revolucionária e no outro a uma crí tica
uma espécie de paladino antimarxista , preocupado basicamente com marcada pela resignação.
a formulação de uma contrapartida idealista ao materialismo hist óri¬ Na sua cr í tica a Roscher e especialmente a Knies, contudo, We-
co. Essa interpretação tem sido sustentada, em grande medida, por , ber est á mais preocupado com as implicações da posição historicista
autores mais interessados em apresentar Weber como um porta-voz i que eles assumem . Mais amplamente, suas objeções dirigem-se tanto
do antimarxismo que eles pró prios sustentam do que em realizar iao “ historicismo ” quanto ao “ psicologismo ” ou ao “ naturalismo”
uma aná lise séria da sua obra. E isso já ocorria durante a vida de ' como fontes supostamente legítimas de “ visões do mundo” (Weber ,
Weber , para seu desgosto. Segundo um ex*discí pulo e amigo seu , 1973: 63). Mas, no caso de Roscher e Knies o alvo principal é o histo¬
Paul Honigsheim , quando o historiador Hans Delbriick tentou di ¬ ricismo, representado por idéias desses autores como a de que os
fundir a id éia de que a tese de Weber sobre a relação entre calvinismo “ povos ” constituem “ unidades orgâ nicas ” impulsionadas por
e capitalismo constitu ía um caso exemplar de idealismo antimarxis¬ “ forças ” internas, e que o complexo orgâ nico mais abrangente é a
ta , este protestou dizendo: “ Não posso aceitar isso; sou muito mais “ humanidade” , ou por noções como a de “ condicionamento recí ¬
materialista do que Delbriick pensa” ( Honigsheim , 1968: 43). Dei ¬ proco” dos fenômenos (Weber, 1973: 142 e seguintes). Ao sustentar
xando de lado as conhecidas afirmações de Weber de que ele estava id éias desse tipo, por sinal, Knies está na mais direta linhagem que
mais preocupado com “ completar ” a obra de Marx do que com tem sua origem em Herder , que é afinal algo assim como o patrono
refutá-la através da inversão da sua perspectiva , e também ignoran ¬ das diversas variantes do pensamento historicista no século XIX, in ¬
do por ora a sua evidente e declarada oposiçã o prá tica ao socialismo, cluindo, em boa medida , Dilthey (Gregory, 1963). Nesse mesmo con ¬
cumpre reconhecer que essa sua observação tem fundamento até na texto est á a importante crítica que Weber dirige mais adiante contra
80 — Racionalidade e compreensão Racionalidade e compreensão — 81
a id éia , que també m jà vimos em Windelband , de que h á um compo¬ ser considerado uma espécie de sistematizaçã o e explicitaçã o progra ¬
nente fundamental de caráter imprevisí vel na ação humana , atribu í ¬ má tica das id éias contidas nos trabalhos sobre Roscher e Knies , em ¬
do à irracionalidade que a caracterizar ía e à qual ele vincula a liberda
¬ bora evidentemente não se reduza a isso.
de da ação. A isso Weber responde com uma formulação que ocuparia Um problema de especial import â ncia que é examinado intensi ¬
posi ção central no seu pensamento. É a de que a associação entre ir ¬ vamente nesse conjunto de ensaios é o da compreensào / interpreta -
racionalidade e imprevisibilidade não pode ser identificada com li ¬ ção da ação ou dos seus resultados como recurso anal í tico nas ci ê n ¬
berdade mas, ao contr ário, que esta só pode encontrar -se nas condi ¬ cias hist órico-sociais. O tratamento que Weber d á ao tema é caracte-
ções exatamente opostas , quando a racionalidade e a previsibilidade risticamente complicado , com in ú meras hesitações, at é terminol ógi ¬
ensejam opções entre linhas de ação alternativas ( Weber , 1973: 66, cas, e infindá veis digressões polêmicas, mas as id éias fundamentais a
69). Em suma , Weber est á enfatizando, neste ponto, que tanto a li ¬ que ele chega podem ser expostas de maneira razoavelmente integra ¬
berdade do sujeito quanto a possibilidade de explicação cientí fica da da , no que diz respeito aos pontos realmente fundamentais. O car á ¬
sua jtçãp n ão podem ficar subordinadas à id éia de acaso , que d á con ¬ ter tortuoso do raciocí nio de Weber não deve ser atribu í do, é claro , a
te ú do à associação entre irracionalidade e imprevisibilidade . limitações de ordem intelectual ou a puros cacoetes de estilo: é que
Do ponto de vista mais amplo, a tese de Weber é a de que a previsi ¬ ele estava lutando com problemas para os quais o repert ório concei ¬
bilidade do conhecimento cient í fico da ação humana é t ão possí vel , tuai dispon í vel não oferecia soluções. E , o que é pior , e normal nes ¬
ou mais, do que no caso dos fenômenos naturais . Enfim , a ação hu ¬ ses casos, o pr ó prio vocabulá rio do qual era obrigado a servir -se difi ¬
mana é explicável , ou seja, pode ser posta em consonâ ncia com nos¬ cultava a formulação n í tida dos problemas que o preocupavam .
so conhecimento “ nomológico” , referente a regularidades observá ¬ A pr ó pria noção de compreensão é um exemplo disso. Na tradi ¬
veis dos' eventos. Mas isso não conduz Weber ao campo de uma con ¬ ção de pensamento em que ela se insere a tendência é no sentido de
cepção positivista, segundo a qual o conhecimento de leis gerais é vincul á -la à id éia de vivência e concebê-la como uma reconstru ção,
possí vel , necessá ria e suficiente também no dom í nio das ciências mais ou menos enfaticamente pensada como ocorrendo pelo exercí ¬
hist órico-sociais. Seu argumento , neste ponto, é também da maior cio de uma “ empatia ” , das condições concretas da ação. Ora , We ¬
import â ncia, porque prefigura as idéias que norteariam todos os seus ber sustenta , contra o positivismo naturalista , que a compreensão é
trabalhos posteriores. Não adianta , sustenta ele, constatar da manei - recurso acess í vel e indispensá vel nas ci ências hist órico-sociais: “ sem
¬
ra mais precisa e rigorosa que, sempre que expostas a determinada si ¬ pre que pudermos , devemos usá-la ” . No entanto , ele dedica enorme
tuação, as pessoas reagirão de maneira indê ntica. Falta “ compreen ¬ esforço para demonstrar que essa compreensão, ou interpretação,
der ” (as aspas são de Weber ) porque sempre se reage assim . Vale di ¬ nada tem a ver com qualquer “ revivência empá tica ” de ações
zer , precisamos ter condições para uma “ reprodução interna ” da alheias, sempre que seu objetivo seja conduzir a um conhecimento
motivação dessas pessoas. cient í fico de fenômenos empí ricos. Nesse particular , sua argumenta ¬
Com isso, apesar das ó bvias hesitações e imprecisões de lingua ¬ ção segue duas linhas principais. Primeiro , toda vivência ( inclusive a
gem , est á dado um passo decisivo. A especificidade das ciências
,
de si pr ó prio) é vaga e confusa , sendo incapaz de ministrar crit érios
hist órico-sociais reside no caráter significativo (o exame desse termo analí ticos seguros para distinguir o significativo do irrelevante nos
não é empreendido por Weber nesse ensaio) dos fenômenos de que fenômenos. Para chegar -se à compreensão é preciso romper os limi ¬
tratam , embora Weber advirta também que a constatação disso não tes opacos da vivê ncia e convert ê-la em objeto da aná lise ( Weber ,
é suficiente para resolver o problema lógico dos procedimentos a se¬ 1973: 104). Segundo, a tentativa de captar o significado de um fenô¬
rem adotados no conhecimento dessa realidade e, sobretudo, não meno através de sua revivência acarreta o risco de confundir a vivê n ¬
responde à questão fundamental de como firmar a validade das con ¬ cia pr ó pria com a do sujeito da ação que se pretende conhecer . En ¬
clusões alcançadas. Com isso, todos os grandes temas est ão lan çados fim , o recurso à compreensão não envolve , de modo algum , qual ¬
e podem ser examinados tal como se desenvolvem nesse conjunto de quer modalidade de intuição e nada deve a qualquer tipo de psicolo-
ensaios, sempre levando-se em conta que na presente análise esses es¬ gismo.
critos, que se estendem de 1903 a 1906, estão sendo tratados como Na realidade, a compreensão envolve , antes de qualquer supos¬
formando uma unidade. Recorde-se que, de permeio, Weber publi ¬ ta “ evid ê ncia imediata ” , dois recursos anal í ticos fundamentais : o
cou seu ensaio sobre a objetividade, que, sob vários aspectos,- pode acesso a um conhecimento “ nomológico ” , referente a regularidades
H 2 — Racionalidade e compreensão Racionalidade e compreensão — 83
observáveis de conduta dos agentes, e a construção de tipos. Ambos idéia de que a causalidade não é a marca da servidão dos agentes às
esses recursos, por sua vez, envolvem a consideração por valores, co¬ exigências “ objetivas” , mas de sua pró pria liberdade.
mo princí pios ú ltimos orientadores da conduta: no primeiro caso , Isso nos remete ao papel que Weber sempre atribuiu , no seu es ¬
porque a observação de regularidades da conduta implica considerar quema anal í tico, à ação racional , que envolve o dom í nio da relação
as linhas alternativas de ação abertas para os sujeitos pelos valores entre meios e fins. Recorde-se que para ele a ação racional com refe¬
vigentes no contexto em que agem ; no segundo, porque é com refe¬ rência a fins é a ação compreensí vel por excelência. Uma das grandes
r ência a valores determinados , vigentes para o pesquisador , que se contribuições dos ensaios que estamos examinando consiste precisa ¬
terão os critérios para os procedimentos seletivos inerentes à constru¬ mente em levar isso at é as suas conclusões ú ltimas e, especialmente,
ção de tipos — e, sobretudo, que se despertar á o interesse pela busca -
em associá las a uma idéia de extrema importância , a saber , que a
de nexos causais entre os fenômenos. Longe de acompanhar a tese compreensão não incide simplesmente sobre a ação, nem muito me¬
intuicionista de que a compreensão permitiria captar uma “ persona ¬ nos sobre o agente, mas sobre a situação em que a ação se dá. No
lidade” ou um “ indiv íduo histórico” na sua integridade, a convic¬ fundo, compreendem-se cohiplexos , ou encadeamentos , de ações do¬
ção de Weber é a de que a unidade de tais entidades só pode ser obti ¬ tadas de sentido, das quais os agentes são portadores , para usar um
da por via construtiva e mediante a seleção de determinados atribu ¬ termo repetida e sugestivamente adotado pelo pró prio Weber. Aqui
tos seus , precisamente os que são significativos para o pesquisador , cabe uma longa citação, que exprime as idéias centrais de Weber com
com referência a determinados valores . relação ao tema. Ela õcorre no contexto da discussão da utilidade do
ínsecos aos fenômenos que permi¬
Assim , não há atributos intr esquema tí pico-ideal da aplicação, pelo agente, da relação adequada
tam o seu conhecimento pleno atrav és das supostas evidências ense¬ e portanto racional , da relação meios/ fins. Vale dizer, est á em jogo a
jadas por alguma forma de captação intuitiva . Definitivamente, e is¬ idéia de que , conhecidas certas regras do decurso dos fenômenos , é
so nunca ser á suficientemente enfatizado, a compreensão não diz possí vel estabelecer , como hipótese dotada de alta probabilidade de
respeito às personalidades dos agentes, muito menos a quaisquer confirmação empírica, qual a linha de ação que oferece uma conexão
“ vivências ” , mas às suas ações. A Weber n ão interessa a vivência
dos sujeitos, mas sua experiência. Vale dizer , também não lhe inte ¬
“ ótima ” — o termo n ão é de Weber —
entre os meios dispon í veis
para o agente e os fins por ele perseguidos. Trata-se, portanto, de
ressam suas ações de per si , mas sim o estabelecimento de nexos cau ¬ avaliar empiricamente a eficácia racional da ação.
sais entre várias ações do mesmo agente (t í pico) ou entre as ações de “ Confrontamos a ação efetiva com aquela que, do ponto de vista ‘teleo-
.
vá rios sujeitos diversos, num mesmo contexto Da í a import ância , lógico’ , é racional consoante regras gerais da experiência causal , seja para
nesse ponto, do conhecimento “ nomológico ” d ò pesquisador , pois o estabelecer um motivo racional que possa ter guiado o agente , e que pre¬
que importa é transcender a ação singular como puro evento. Daí tendemos conhecer , mediante a demonstração de que suas ações efetivas
também a import â ncia dos procedimentos construtivos envolvidos constituem os meios adequados para um fim que ele ‘pudesse’ ter perse¬
no tipo , pois do contr á rio não há como transcender a pura realidade guido , seja para tornar compreensí vel por que um motivo que conhece¬
empí rica vivida , que é um fluxo inesgotável de eventos singulares mos do agente tenha tido outro resultado que o esperado subjetivamente
por ele, devido à escolha dos meios . Em ambos os casos, contudo, não
( um “ cont í nuo heterogéneo” , para usar a linguagem de Rickert , que
empreendemos uma análise ‘psicológica’ da ‘personalidade’ mediante
aqui cabe). Tomado de per si o universo dos eventos singulares é pu ¬
quaisquer recursos peculiares do conhecimento, mas sim analisamos a si ¬
ramente contingente; mas, como os homens criam valores e são ca ¬ tuação ‘objetivamente’ dada com ajuda do nosso conhecimento nomoló¬
pazes , em função desses, de atribuir significado à sua conduta , est á gico . A ‘interpretação’ reduz-se aqui ao conhecimento geral de que pode¬
aberto o caminho não só para a racionalidade da ação como também mos agir ‘eficazmente’ , vale dizer , que podemos agir com base na ponde¬
para seu conhecimento pelas vias racionais pró prias ao m étodo cien ¬ ração das diversas ‘possibilidades’ de um decurso futuro no caso da reali ¬
t í fico. O estabelecimento de relações causais entre cursos de ação es¬ zação de cada uma das ações (ou omissões) pensadas como possí veis. Em
t á , portanto, intimamente ligado à quest ão da (racionalidade da pró¬ conseqiiência da eminente importância fatual da ação ‘consciente dos
pria açã o. Mas , como a circunst â ncia das ações terem causas não de¬ fins’ na realidade empírica, a racionalização ‘ideológica’ presta-se a ser
riva de quaisquer atributos objetivos intr ínsecos ao mundo mas da usada como meio construtivo para a formação de figuras de pensamento
pr ó pria capacidade dos homens de criarem a racionalidade como va ¬ dotadas do mais extraordinário valor heur í stico para a análise causal de
conexões históricas. E essas figuras de pensamento construtivas podem
lor e orientarem suas ações em consonância com isso, fica de pé a
84
— Racionalidade e compreensão Racionalidade e compreensão — 85
ser : ( 1 ) de cará ter puramente individual , como hipó teses interpretativas ção puramente racional de um evento hist ó rico singular , a presen ça do
para conex ões singulares concretas (como na an álise da pol í tica de Frede ¬ ‘livre-arbitrio’ em qualquer sentido possí vel do termo no plano
rico Guilherme IV , condicionada por seus fins e pela constelação de empí rico . ” ( Weber , 1973: 132- 133.)
—
‘grandes potenciais’ ] ; ( 2 ) ou ent ão
-
—
e isso nos interessa aqui podem
ser constru ções t í pico ideais de cará ter geral , como as ‘leis’ da economia
De maneira ainda mais incisiva essas ideias aparecem condensadas
quando Weber sustenta que
abstrata , que constroem as conseqiiências de situações econ ó micas deter ¬
minadas sob o pressuposto da ação rigorosamente racional . Em todos os “ as ‘leis’ econ ó micas são esquemas de açã o racional que são deduzidas
casos , contudo, a relação entre essas constru ções ideol ógicas e aquela n ã o da an á lise psicol ógica dos indiv íduos mas mediante a reprodu ção
realidade de que tratam as ciências empí ricas ( . . . ) é apenas a de um con ¬ t í pico-ideal do mecanismo da luta de preços a partir da situação objetiva
ceito t í pico-ideal , que serve para facilitar a interpretação empiricamente assim constru ída na teoria . Esta , quando se exprime de maneira ‘pura ’ ,
v álida na medida em que os fatos dados são comparados com uma possi ¬ somente deixa para o indiv íduo envolvido no mercado a opçã o entre a
—
bilidade de interpretação um esquema interpretativo ( .. .) També m n ão
ocorre que ‘conheçamos’ através da interpretação racional ( ...) a ‘ação
adaptação ‘teleológica’ ao ‘mercado’ ou ru í na econ ó mica . ” ( Weber ,
1973: 140. )
real’ mas sim conex ões ‘objetivamente possí veis’ . A evidê ncia teleológica Essa passagem final permite , numa observação circunstancial , lem ¬
tampouco significa , nessas constru ções , uma medida especí fica da valida ¬
te grande , em conseqiiência disso , o papel desempenhado pelo conheci ¬ se ní vel é a da racionalidade possí vel da ação .
mento nomológico, tanto para o agente quanto para o pesquisador , e tan ¬ Sabemos que para Weber a ação social é sempre significativa , e
to mais o agente está ‘determinado’ no tocante aos ‘meios’ . H á mais . que a relação social o é de maneira ainda mais profunda , posto que
Pois , quanto mais ‘livre’ , no sentido aqui empregado, é a ação , vale dizer , nela não interessa somente a orientação da conduta do agente con ¬
quanto menos traz em si o caráter do ‘decurso natural ’ , tanto mais se rea ¬ forme a de outro mas , sobretudo , que o sentido da sua ação está con ¬
sência’ na constância de sua relaçã o interior com determinados ‘valores’ e vo das ações de outro , ou outros . Aqui já desponta a razão metodo ¬
ameaça de um “ psicologismo ” , fica descartada, entre outros moti ¬ alternativas. Por outro lado, da mesma maneira como a constituição
vos (dos quais o principal é que a entidade compreensí vel é o sentido da situação limita internamente o campo de opções dos agentes, ela
da ação e não o próprio agente), precisamente pela circunst â ncia de limita externamente as possibilidades alternativas. Se associarmos a
que a análise efetiva incide mais sobre a relação social. Weber tinha isso a idéia de Weber , de que é possí vel observar, empiricamente e
—
n ítida consciência, tal como Simmel , de que as ações sociais mais —
não em princí pio, certas regularidades nas ações de sujeitos o que,
—
precisamente, os seus sentidos — condicionam-se reciprocamente,
conduzindo a um estreitamento da margem de opções dispon í veis
creio eu , implica tomá-los como já situados então abre-se o cami ¬
nho para trabalhar a idéia da “ possibilidade objetiva” das situações
para os agentes. Simmel derivou dessa idéia o seu conceito de forma, ou linhas de ação alternativas em termos daquela modalidade de
ao passo que em Weber ela se traduz na idéia de situação. A grande “ experiência mental ” à qual Weber atribu ía tanta importâ ncia nos
diferença entre ambos os autores, nesse ponto, é que Weber proble- estudos históricos e também sociológicos, na medida em que se possa
matiza aquilo que para Simmel era pacífico. afirmar que aquilo que para o historiador é um evento é uma situa¬
Essa diferença manifesta-se de duas maneiras fundamentais. A ção para o sociólogo. Tome-se o exemplo utilizado por Weber ao
primeira diz respeito à idéia da necessidade de operar com tipos , pre¬ discutir o caráter significativo e referido a valores da seleção de um
sente em ambos mas com uma distinção da maior importância. É fato histórico e ao elaborar o conceito de “ possibilidade objetiva” : a
que , se em Simmel o tipo é obtido através de um processo de depura¬ batalha de Maratona. Efetivamente, dado que gregos e persas com-
ção dos dados empíricos cuja unidade já est á presente, para Weber provadamente se envolveram nessa batalha , havia objetivamente a
trata-se de construí-los a partir de traços discretos tomados seletiva ¬ possibilidade de qualquer dos lados sair vitorioso, como também
mente de uma realidade que se apresenta como congérie de eventos eram objetivas as consequências prováveis que adviriam disso em ca ¬
singulares. Para Weber seria impossível partir , como Simmel , da da caso , admitindo-se a hipótese da persistência das orientações re¬
perspectiva de forma, pois só é possível imprimir alguma forma a gulares da conduta dos participantes observadas antes do seu con ¬
conjuntos de eventos com base nos seus conteúdos, vale dizer , nos fronto, pelo menos no tocante às relações com povos vencidos. O
sentidos das ações, ou nos seus portadores, vale dizer , nos agentes. A confronto entre o decurso histórico efetivo e o (objetivamente) possí ¬
segunda distinção permite mostrar como noções de fundo metaf ísico vel mas (subjetivamente) construído permite mostrar, ent ão, a im ¬
são sistematicamente transformadas por Weber em quest ões meto¬ portância do evento para quem o examina com a atenção orientada
dológicas. Em Simmel, as formas derivam da vida, como fluxo irra¬ para o confronto entre valores e formas de conduta de vida que os
cional de eventos, e se contrapõem a ela. Deixando de lado que a ex¬ oponentes representavam . Observe-se , no entanto, que, se a batalha
pressão desses eventos, em Simfnel , se dá no plano das vivências e de Maratona é um evento ú nico e irrepetível da perspectiva do histo¬
que Weber se recusa a atribuir a essa noção qualquer utilidade na riador , ela só ganha pleno sentido quando encarada sociológicamen ¬
análise científica, o essencial é que aquilo que em Simmel aparece co¬ te como uma situação, na medida em que envolve a presença de regu ¬
mo “ vida ” converte-se em Weber na noção muito mais específica de laridade de conduta dos participantes , influenciada pela pr ó pria re ¬
história,entendida também como fluxo de eventos, mas não como lação entre eles. Reciprocamente, uma situação especí fica de merca¬
intrinsecamente irracional e sim apenas como empiricamente inesgo¬ do, para ficarmos na área tratada por Weber na citação acima, pode
t ável, e a noção de forma converte-se na de situação. ser encarada como um evento: por exemplo, a promulgação das
A noção de situação envolve a idéia de um complexo de ações “ corn laws” na Inglaterra novecentista. De todo modo, o conceito
reciprocamente referidas (sem que isso implique a presença concreta de “ possibilidade objetiva” incorpora em sua formulação tanto a
dos agentes; basta que as ações sejam orientadas conforme outros perspectiva histórica quanto a sociológica , e permite demonstrar co¬
possíveis) que ganham seu caráter particular de algo assim como mo ambas são inseparáveis no pensamento weberiano.
uma matriz de sentido, presente em todas essas ações. A constituição Essas considerações permitem também pôr no seu devido lugar
e sobretudo a persistência de uma situação são, contudo, problemᬠo papel da compreensão no esquema weberiano. Como tantos ou ¬
ticas, porque ocorrem num contexto em princí pio aberto —
num caso limite, que é precisamente o que mais preocupou Weber ,
salvo tros , esse termo adotado por Weber é infeliz, porque traz consigo a
idéia de que se esteja procurando um recurso que assegure a evidên¬
—
ou seja, o da vigência plena da racionalidade da ação e são, por ¬
tanto, possíveis mas não determinadas nem necessárias; sempre há
cia dos fenômenos analisados, dispensando quaisquer outros proce¬
dimentos cientí ficos de controle dos seus resultados. Na realidade,
88 — Racionalidade e compreensão
simbólico” e sua aplicação à Sociologia da Religi ão ( Bourdieu , 1974: bilidade” têm no pensamento weberiano. Elas referem -se à ocorrên ¬
-
79-98, esp. 81 82). Weber sempre desconfiou das “ evid ências” já da¬
das sem mais (embora elas constituam meta do conhecimento), assim
cia de certos nexos entre fenômenos sociais e, sobretudo, à sua per ¬
sist ê ncia. E isso nos conduz a alguns aspectos centrais do seu pensa¬
como rejeitava qualquer busca de uma “ visão de essências ” de raiz mento. Dadas as premissas da análise weberiana, seu problema bási ¬
fenomenológica (com a explícita restrição a Karl Jaspers, cujas ten ¬ co nunca poderia ser posto em termos da questão da mudança de
tativas apoiava). É contra isso que se dirige sua observação, na intro¬ condições est áveis e estruturadas da existência social (salvo no caso,
du çã o à Ética protestante e o espírito do capitalismo , de que “ quem muito mais radical , da criação de condições totalmente novas , atra¬
quer ‘visões’ que vá ao cinema ” . Da mesma forma , nada queria ter a vés da formulação de novos valores, que se vincula sobretudo à sua
ver com qualquer forma de “ empatia ” , pelo contrá rio: sempre pre¬ análise da ação carismática, e que não ser á examinado mais detida-
conizou ú m certo distanciamento entre o cientista e os fenômenos mente aqui ). Seu problema mais amplo é precisamente o oposto, re¬
observados, que ele afinal converte em objetos de análise. Na mesma lativo às condições de persist ência de formas de ordenação social.
passagem da Ética encontra-se também uma clara referência cr í tica à
“ falta de distanciamento ” (ou de “ perspectiva ” , na tradu çã o brasi¬ A que se deve essa persist ência , que afinal se traduz na continui¬
leira ) em relação àquilo que se estuda. dade cotidiana de certas linhas de ação por uma pluralidade de agen ¬
tes individuais? Como já foi apontado da maneira mais explícita por
Guenther Roth , essa persist ência deve-se ao fenômeno da dominação ,
ou , mais amplamente , à conexão dominação / legitimação ( Roth ,
1968: 82 e seguintes). Isso significa que não é casual a grande aten ção
dispensada por Weber a esse fenômeno, nem a posição nuclear ocu ¬
pada pelos conceitos correspondentes, em sua análise. Pelas suas
90 — Cultura e sentido Cultura e sentido — 91
pró prias premissas , a sociologia weberiana é necessariamente centra ¬ pria para compreender a ação , sem precisar preocupar -se com a
da no estudo da dominação e na construção dos seus tipos. Mas o “ personalidade” singular do agente , nem com quaisquer processos
mesmo Roth também assinala que o conceito de dominação em We¬ psíquicos internos a ele, salvo como fontes de desvio do tipo , o que
ber é precedido por um outro, que julgo poder ser considerado seu os converteria em novos objetos para a formula ção de hipóteses e
fundamento ú ltimo. Trata-se do conceito de apropriação ( Roth , aná lise.
1968: 44). Esse conceito faz sentido no seu esquema porque ele opera Nesse sentido , é interessante a observaçã o de Talcott Parsons,
com a premissa de que, na sua exist ê ncia concreta , os homens sem ¬ em seu livro sobre o sistema social , quando afirma que a racionaliza ¬
pre agem num contexto de carência , de escassez . A dominação deri ¬ ção “ é uma ‘direcionalidade’ inerente ao processo de ação, como â
va da apropriação diferenciada, e tornada legí tima em determinadas entropía na mecâ nica clássica ” , e que isso diz respeito ao pr ó prio es ¬
condições sociais , de bens materiais e /ou simbólicos escassos. É por quema conceituai adotado e n ão a uma generalização empírica ( Par ¬
isso que me parece de tanta import â ncia a formulação de Cari Men - sons , 1964: 352). O esquema conceituai em questão é o do próprio
ger , citada mais acima , acerca do tema. Relida à luz das presentes Parsons, que nesse ponto se apoia em Weber , e a referê ncia cabe
considerações, ela se revela plenamente como uma reflexão apenas também para o que estou argumentando a respeito do pró prio We ¬
aparentemente económica mas na realidade com implicações para ber . Tenho plena consciência de que esse uso por Parsons de um con ¬
uma teoria sociológica e polí tica perfeitamente congruente com ceito muito complexo, desenvolvido no século passado nos estudos
aquela desenvolvida por Weber . da Mecâ nica estat ística e sobretudo da Termodin â mica , é obscuro e
É nesse contexto que me parece fundamental destacar que a só nos pode servir como elemento sugestivo no exame de certos pro¬
idéia de probabilidade (ou de “ chance” ) de ocorr ê ncia efetiva de de ¬ blemas centrais do tratamento do processo de racionalização no es¬
terminada ação com sentido desempenha em Weber , ainda que de quema weberiano, a serem tratados mais adiante .
modo jamais explicitado por ele, um papel de instrumento de medida Cabe apenas lembrar , no plano puramente intuitivo que me é
informal (portanto não “ estat ístico ” , apesar de Weber ter contem ¬ acessí vel , que a “ entropí a ” , na sua acepção original , pode ser enten ¬
plado explícitamente a possibilidade de, nos casos-limites, torná-la dida como uma medida da homogeneidade da distribuição de ener ¬
quantitativamente mensurá vel ) das condições de persist ência de rela ¬ gia em sistemas fechados. Referida à dinâmica dos processos t érmi ¬
ções sociais. Vale dizer , opera como um índice da presença e da efi¬ cos , ela se aplica a um processo, ou tendência, que pode ser expresso
cácia do processo de dominação / legitimação , na medida em que é em termos da passagem de estados “ menos prováveis” para “ mais
nesse processo que encontramos a forte conversão de linhas de ação prová veis ” do sistema. Isso porque, encarados de uma perspectiva
em condutas cotidianas (embora o próprio Weber também aponte a dinâmica , os elementos de um sistema definem-se como variáveis (is¬
pura inércia dos hábitos como contribuindo para isso). to é, podem assumir diferentes valores quantitativos), e o conjunto
Pode-se avançar mais um passo e sugerir que ela também permi ¬ de valores assumidos por essas variá veis num momento dado define
te “ medir ” o grau de racionalização das ações. A ação perfeitamente o seu estado. A id éia básica, aqui , é a de que, num sistema fechado,
racional é plenamente previsí vel (e “ desencantada” , diria Weber ). -
esses valores vão se equalizando, at é que, no ponto de entropía má ¬
Ela oferece probabilidade máxima de previsão correta de sua ocor¬ -
xima , tenha se um sistema no interior do qual não há mais variedade
rência. Quanto aos outros tipos de ação social constru ídos por We¬ nem mudança; um estado estacioná rio , em que a probabilidade de
ber , eles t êm , conforme esse raciocínio, probabilidades decrescentes ocorrência de Um “ fato novo ” é m í nima e, no limite, nula. Isso sig¬
de previsão correta de sua ocorrência , at é chegar no caso limite da nifica que o grau de previsibilidade dos eventos no interior do siste¬
ação de tipo “ afetivo” , que quase já não é social. Observe-se a rela ¬ ma é máximo, ou , em termos do processo, que ela aumenta na mes¬
ção que há entre o grau de probabilidade de acerto na previsão da ma proporção que a entropía. Devido a essas características, o con ¬
ação afetivamente realizada pelo agente e o seu grau de compreen¬ ceito de entropía tem sido interpretado mais genericamente, fora do
.
são A ação racional, a mais previsí vel , é também o caso privilegiado seu dom í nio de origem , como uma medida de ordem ou de organiza¬
da ação compreensí vel: basta que o observador conheça o fim visa¬ ção , ou de informação (nesses casos em termos negativos, visto que
do, os meios dispon íveis e que leve em consideração que existe uma e todas essas noções t êm em comum a idéia da variedade de eventos).
apenas uma forma de maximização dos resultados, nas condições Parece que, ao fazer essa analogia , Parsons pretendia simplesmente
dadas. Vale dizer , basta que ele conheça a situação e sua lógica pró- dizer que, num sistema (social) dado, a racionalidade da ação tende
92 — Cultura e sentido Cultura e sentido — 93
necessariamente a crescer do mesmo modo como a entropía tende a mente em Wittgenstein e nos seus desdobramentos ( Runciman , 1972;
aumentar em sistemas í f sicos; daí a referência à “ direcionalidade” Winch , 1967). Weber exprime id éias que vão nessa mesma orientação
da racionalização. Convém lembrar que isso tudo só faz sentido para ao definir o que entende por gest ão económica, no segundo capí tulo
sistemas fechados , sem interação com o ambiente, o que n ão se apli ¬ dos fundamentos metodol ógicos de Economia e Sociedade.
-
ca a sistemas sociais. ( Recordem se, de passagem , as idéias de Luh - “ A definição de gest ão econ ómica deve ser a mais geral possí vel e expres¬
man examinadas em outra passagem deste trabalho, segundo as sar claramente que todos os processos e objetos econ ó micos adquirem es¬
quais o sentido é um processo redutor da variedade e complexidade
do ambiente no qual operam sistemas de ação. Segundo a analogia
se caráter enquanto tais pelo sentido que nele põe a ação humana — co¬
mo fim , meio, obst áculo, resultado , acessó rio. Só que isso n ão se pode
de Parsons, o processo de sentido seria , ent ão, gerador da “ entro¬ expressar, como ocorre com freqiiê ncia , dizendo que a Economia é um
pía” .) De qualquer forma , a idéia básica de Parsons é importante, e fenômeno ‘psíquico’ . De modo algum se pode dizer que são ‘psíquicos’ a
envolve uma advertência que é diretamente relevante para o entendi ¬ produção de bens, o preço ou mesmo a ‘avaliação subjetiva’ dos bens ,
mento do problema com que Weber se defronta no seu esquema. É embora eles sejam , por sua vez , processos reais. No entanto, nessa expres¬
que não se pode introduzir impunemente a idéia de um processo de são aponta-se algo justo: que eles possuem um sentido subjetivo peculiar
racionalização num esquema anal ítico: uma vez instalado, ele se ex¬ e que só esse constitui a unidade dos processos em questão e os torna
compreensíveis.” ( Weber, 1975: 31, final grifado por mim ).
pande inexoravelmente, e leva de roldão todos os obst áculos empíri ¬
cos e teóricos , e pode comprometer também as próprias premissas A unidade compreensível da ação é , ent ão, dada pelo seu senti ¬
metateóricas. do. Resta saber onde se localiza esse sentido, posto que Weber não
Aqui, no entanto, interessam as idéias de Weber , e não seus des¬ opera com a idéia de sistemas significativos objetivos já dados. Só há
dobramentos em Parsons, por sugestivas que sejam . Cumpre ent ão uma resposta possí vel , no esquema de Weber. A ú nica sede efetiva ,
prosseguir no exame das suas noções centrais. Se o que é próprio da empirica , possivel do sentido é o agente, o sujeito, que comparece as¬
ação social é ser dotada de sentido para o agente, ou seja, ter um sen ¬ sim , para usar o sugestivo termo do próprio Weber , como seu porta¬
tido subjetivo , temos que nos deter um pouco mais nos problemas
que isso envolve. Uma ação não é uma entidade simples , embora a
análise de Weber encontre nele o seu elemento mí nimo. Realizar uma
dor. É por isso, e apenas por isso
“ psicologismo ” — —longe, portanto, de qualquer
que Weber insiste no caráter subjetivo do sentido
da ação. O sujeito individual constitui , para ele, o limite “ para cima
ação envolve o encadeamento de um conjunto de atos de tal modo e para baixo” da realização do sentido. A noção de sujeito desempe¬
que formem uma unidade , que , pelo menos no universo social, é nha um papel absolutamente fundamental no esquema weberiano
sempre teleológica: busca um fim , aponta para algo, enfim tem um por mais uma razão, ligada à anterior. É que ele é portador simult â ¬
sentido. E é precisamente o sentido detectável na ação que funda a neo de múltiplos sentidos e, o que é decisivo , forma uma unidade , é
sua unidade. Por isso mesmo podemos dizer que a compreendemos, verdade que n ão necessariamente homogénea e at é contraditória, cu ¬
e a reconstruí mos como unidade de atos singulares; unidade apenas jos elementos componentes são precisamente os diversos sentidos
possível entre outras , e portanto a compreensão não nos fornece evi ¬ possí veis de suas ações. Não que o sujeito, enquanto agente social ,
dências mas somente material para hipóteses. Não há condições, preexista como unidade já constitu ída aos sentidos das suas ações.
aqui, para desenvolver mais a fundo essas considerações muito su ¬ Pôr a quest ão nesses termos equivaleria a perguntar pela génese indi ¬
márias. Isso demandaria não só maior estudo dos textos relevantes vidual dos sentidos, quando o problema é o de sua orientação. O
em Weber como o exame crítico de ampla bibliografia secundá ria, sujeito/agente constitui-se no próprio exercício da ação com sentido.
da qual não se poderia excluir a análise desses tó picos feita por Al ¬
fred Sch ü tz com uma perspectiva “ fenomenológica ” . Em Sch ü tz, de Importa enfatizar desde logo algo que me parece decisivo para
resto, os termos “ ato” e “ ação ” aparecem com sentido bem diferen ¬ entender o esquema de Weber: o sujeito / agente é a única entidade na
te e at é oposto do adotado por mim (Sch ü tz , 1972: esp. p. 61). Seria qual se podem efetivar relações entre sentidos diferentes de ações,
necessá rio, também , examinar comparativa e criticamente as contri ¬ nas suas múltiplas esferas de existência. No sujeito cruzam-se e inter ¬
buições nessa á rea apresentadas por W .G . Runciman , que adota agem (causalmente ou não) sentidos particulares e diferentes. Ele
uma linha inspirada na filosofia analí tica inglesa e nos desenvolvi ¬ não é apenas o ú nico portador efetivo de sentidos mas també m é a
mentos recentes da Lógica , e por Peter Winch , que se apóia direta- única sede possível do estabelecimento de relações entre eles, pois é
94 — Cultura e sentido Cultura e sentido — 95
de um caráter significativo ao campo do real selecionado para exa¬ ticas que permite formular . Isso possibilita introduzir uma ressalva
me . O car á ter gen ético do tipo deriva da circunst â ncia de que sua importante em qualquer aproximação que se faça entre a postura we-
construção est á subordinada à import â ncia significativa que os tra¬ J beriana e o historicismo. E que Weber repudia da maneira mais ené r ¬
ços dos eventos ou dos processos empí ricos selecionados para gica um componente básico das correntes historicistas com que se de¬
compô-lo assumem para o pesquisador em termos das suas conse¬ frontou , que é o seu empirismo radical (que, para ele, é també m um
quências aqui e agora (não importa, aqui, se se trata de eventos ocor ¬ traço do “ naturalismo ” positivista , igualmente repudiado). Impor ¬
.
ridos no passado ou de processos que ocorrem no presente) Tomado ta , reitera ele seguidamente, n ão confundir conceito e história. Recu ¬
na sua acepção plena o tipo é, portanto, a expressão metodológica sa, portanto, a simples subordinação dos conceitos à experiência em ¬
da orientação do interesse dos cientistas que o constroem e aplicam . pírica, assim como a idéia de que se possa construir um sistema con ¬
( Isso no caso “ ideal ” : não estou considerando os casos, efetivamen¬ ceituai abrangente, de natureza dedutiva. Portanto, nem imersão
te freq ü entes , em que a tentativa de aplicação não leva em conta o dos conceitos nos fatos, nem absolutizaçâo dos pró prios conceitos.
caráter genético do tipo e o toma meramente como conceito genéri¬ Estes retiram sua autonomia metodológica em face da história do
co .) Assim , os limites da sua aplicação são dados sobretudo pela vi ¬ seu vínculo com os problemas que constituem a ciência, mas essa au ¬
gência dos problemas que o informam e, por conseguinte , do interes¬ tonomia é limitada pela natureza histórica desses mesmos proble¬
se de conhecimento especí fico que presidiu à formulação dos pró¬ mas.
prios problemas. É por isso que é totalmente equivocado conceber o “ Precisamente porque o conteúdo dos conceitos históricos é variável é
tipo como um “ esquema ” ou “ modelo ” aplicável a qualquer análi ¬ preciso formulários cada vez com maior precisão . [É necessário] apenas
se, independenteménte dos seus pressupostos ou , pior ainda, como que ao utilizar tais conceitos , se mantenha cuidadosamente o seu caráter
livre de pressupostos, visto que estes são inerentes ao pró prio concei¬ de tipo ideal , e que não se confunda tipo ideal e história. Dado que, devi¬
to. São os problemas e seus pressupostos, e não um dom í nio empíri ¬ do à inevitável variação das ideias de valor básicas , não há conceitos his¬
co de fatos, que primordialmente definem o campo histórico e social t óricos verdadeiramente definitivos suscet í veis de serem considerados co¬
da validade dos próprios conceitos e, pòr extensão, dos resultados da mo fim último geral , [segue-se] que , precisamente por se formarem con ¬
pesquisa. Enfim , não se trata somente de uma questão relativa à cor¬ ceitos rigorosos e un í vocos para o ponto de vista singular que orienta o
reta aplicação do m étodo indutivo, embora esse aspecto seguramente trabalho , será possí vel dar-se conta claramente dos limites da sua valida¬
não seja negligenciá vel , mas de um problema mais amplo , visto que de . ” ( Weber , 1973 : 209 . )
em Weber a questão universal de método relativa à generalização dos Importa , portanto, manter -se nos limites do objeto tratado e da vali ¬
—
resultados da pesquisa portanto, da sua validade empírica est á —
inextricavelmente ligada à quest ão particular da validade significati¬
dade dos conceitos pertinentes. Ora, definir o objeto primordial da
análise em termos de uma “ individualidade histórica” cujo sentido
va dos pressupostos da própria pesquisa. nuclear e específico é o da racionalização, tem conseqiiências que,
associadas à ênfase posta na ação racional com referência a fins co¬
Nesse ponto, convé m tomar essa mesma quest ão por um outro mo a ação social por excelência (vale dizer, compreensível pelo seu
â ngulo, que concerne à relação entre conceito e realidade no pensa¬ sentido uní voco), comprometem as pr ó prias premissas teóricas e
mento de Weber . Para ele, a ciência não se constitui em termos da também metateóricas de Weber .
articulação objetiva entre “ coisas” , mas da articulação conceituai Para que isso possa ser demonstrado em suas implicações fun ¬
entre “ problemas” ; e já vimos como o tipo ideal desempenha um pa ¬ damentais, no entanto, é ainda necessá rio delinear melhor aqueles
pel fundamental nisso, ao permitir uma formulação rigorosa dos outros aspectos do pensamento weberiano que são relevantes para a
problemas para a pesquisa , ao mesmo tempo que enseja a identifica ¬ presente an álise. É impossí vel , desde logo, passar por alto os proble ¬
ção das suas referências empí ricas quando da sua aplicação a casos mas suscitados pela concepção de Weber acerca da relação entre
particulares. O importante é que, uma vez constru í do , o tipo passa a ciência e valores e os temas correlatos, como os das suas noções de
operar como conceito a ser relacionado com outros conceitos. Não cultura e de sociedade.
lhe cabe “ retratar ” o real e , por isso mesmo, ele n ão tem valor se to¬
mado isoladamente na pesquisa: um tipo só tem utilidade cientifica “ O pressuposto transcendental de toda ciência da cultura não consiste em
no confronto com outros tipos e através das relações causais hipot é- que consideremos valiosa uma cultura , determinada ou qualquer , mas em
98 — Cultura e sentido Cultura e sentido — 99
que somos homens de cultura , dotados de capacidade e de vontade de as¬ pensar . Torna plausível a hipótese de que o débito das suas idéias em
sumir conscientemente uma posição perante o mundo e conferir-lhe um relação a esses “ lógicos modernos” não vá mais longe do que isso.
sentido” , Mas a coisa ainda é pior . Weber não respeita rigorosamente essa ter ¬
minologia, pois, enquanto Rickert fala de “ valores ” ou “ valores
escreve Weber numa das passagens mais célebres sobre a “ objetivi ¬
culturais ” , Weber fala de “ idéias de valores ” ou “ idéias de valores
dade” (as aspas são dele, convém lembrar) do conhecimento na ciên ¬
pode causar alguns embaraços para uma interpretação não “ neo- tigue a totalidade dos valores culturais gerais e os apresente sistematica¬
kantiana ” , é, segundo Weber , a expressão “ puramente lógico- mente , oferecendo assim simultaneamente um sistema dos princí pios do
formal” correspondente à idéia de que “ a ‘cultura’ é um segmento decurso histórico , sistema no qual caibam e encontrem seu lugar todos os
finito da infinidade carente de sentido dos eventos no mundo, conce¬ sistemas de valores obtidos através da análise das obras históricas e
bido do ponto de vista do homem como tendo sentido e histórico-filosóficas , e com respeito ao qual devam ser avaliadas. ” ( Ric¬
significado” . Interessam as “ idéias de valor ” com que encaramos a kert , 1961: 121. )
“ cultura” (as aspas são de Weber) em cada caso singular. Enfim , “ o O ponto fundamental em tudo isso é que, enquanto Rickert con ¬
conceito de cultura é um conceito de valor” (Weber , 1913: 175 e cebe os valores como constituindo o mundo cultural pela sua vigên ¬
180). cia incondicional , Weber vê nos pró prios homens historicamente
Além disso, Weber adverte, de passagem , que quando fala do concretos a entidade que confere valores a segmentos da realidade e
condicionamento do conhecimento da cultura por idéias de valor ele a constitui como “ cultura” . Isso coloca-o praticamente nos antípo¬
está-se valendo da “ terminologia dos lógicos modernos” . Sabemos das de Rickert e sugere que devem ser levadas a sério as reservas con ¬
que entre os “ lógicos modernos” a que ele est á aludindo inclui-se o tidas nas suas formulações acerca do simples uso da terminologia ou
nome de Rickert . Essa referência ao uso da terminologia já dá o que ent ão de que os seus ensaios sobre Roscher e Knies deveriam servir ,
100 — Cultura e sentido
Em suma , Weber est á sempre mais preocupado com a discussão pretação, não texto” . E levanta a id éia de que “ algu é m , com a inten ¬
dos meios que dos fins , mesmo porque estes, embasados em valores ção e a arte da interpretação opostas ” , concluisse, com base nos fe¬
entre os quais não se pode estabelecer qualquer hierarquia ou crit ério nômenos , que o mundo
“ objetivo ” de.seleção, não se prestam ao exame sistemá tico. Pode- “ tem um decurso ‘necessário ’ e ‘calculá vel’ , mas não porque nele reinam
se, é claro, defender aqueles a quem se adere, e seguramente Weber leis , mas porque absolutamente faltam as leis, e cada potência , a cada ins
¬
tem os seus, pelos quais est á disposto a combater , e que também in ¬ tante , tira sua ú ltima conseqiiência” . ( Nietzsche, 1974: 280 . )
formam a sua obra cient í fica , como premissas metateóricas: a auto ¬
Esse “ algu ém ” é o próprio Nietzsche, claro. Em suas passagens
nomia do indivíduo, a razão, a liberdade, a verdade, a responsabili¬ mais radicais Weber desenvolve suas idéias numa linha sugestiva ¬
dade e assim por diante. É em nome desses valores que ele assume
mente semelhante. Mas, isso não ocorre sistematicamente. Se há
uma postura cr ítica em relação ao sçu tempo e, freq üentemente, aos uma presença de Nietzsche em Weber , ela é sem d ú vida incompara ¬
—
seus int é rpretes por exemplo, quando repudia a “ forte veia buro¬
cr ática ” dos componentes da escola histórica da Economia alem ã ,
velmente mais forte e mais fecunda que a de qualquer “ neo-
kantiano” , mas ainda é filtrada e atenuada, sem ir às últimas conse-
como Schmoller. E é no mesmo sentido que ele se dedica à ciência
por exemplo, quando escreve em 1920, numa carta ao economista
— q úê ncias. O que vou tentar demonstrar é que, mesmo que se possa
argumentar , e nesse caso voltando contra mim minhas próprias con ¬
Robert Liefmann, que siderações , que as id éias de Nietzsche afinal não passavam de outros
“ se agora tornei-me oficialmente sociólogo , é essencialmente para pôr tantos meios para Weber em sua caminhada própria, é patente que se
fim nesse negócio de trabalhar com conceitos coletivos . Em outras pala¬ tratava de meios especialmente privilegiados na constituição do seu
vras , também a Sociologia só pode ser realizada a partir da ação de indiví ¬ esquema teórico.
duos mais ou menos numerosos , portanto de modo estritamente ‘indivi ¬ É fora de d ú vida que Weber conhecia a obra de Nietzsche e
dualista’ quanto ao método . ” ( Mommsen , 1965: 44, nota 2. ) dedicou -lhe considerável atenção. Não lhe faltaram , também , as
A questão é saber como se articulam essas duas .dimensões no em ¬ mais variadas vias indiretas de acesso a esse pensamento, no clima
preendimento de Weber: a prática, na qual seus valores são explicita ¬ intelectual em que vivia. Est á amplamente demonstrado o cuidado
dos, e a teórica , na qual persistem na condição de pressupostos ne¬ com que ele leu e releu o livro de Simmel sobre Schopenhauer e
cessários, considerando-se ainda que o seu pensamento é permeado Nietzsche, além de que entre os cí rculos intelectuais com que manti¬
pela convicção da necessidade de separarem-se rigorosamente ambas nha contato pessoal inclu íam -se literatos fortemente influenciados
as esferas. por Nietzsche. Deixando de lado o exemplo do poeta Stefan George,
As afinidades de Weber com o pensamento de Nietzsche e seu cuja obra ele chegou a apreciar mas com cuja postura básica nunca
afastamento de posições aparentemente mais próximas vai mais fun ¬ se identificou , há o caso , muito mais sugestivo, do seu interesse pela
do, no entanto, do que o n ível apenas formal. Uma passagem de seu poesia de Rainer Maria Rilke (Mitzmann , 1971: 262 e seguintes, esp .
texto que estou comentando , na qual de resto se torna particular ¬ 265). Se aceitarmos, apesar das polêmicas envolvidas, a interpreta¬
mente agudo o contraste com Rickert , é aquela na qual Weber enfa ¬ ção de um crítico literário influente, segundo a qual há grande afini ¬
tiza o car áter radicalmente destituído de sentido intrínseco do “ mun ¬ dade entre a poesia de Rilke e temas nietzscheanos, ainda que esses
do” e que, portanto, compete aos próprios homens outorgarem sig¬ apareçam atenuados nele ( Heller , 1961: 109-155), ent ão o quadro
nificado a alguns entre os infinitos eventos que o constituem , como torna-se mais completo. Para Heller , o principal ponto de contato
condiçã o prévia para o seu conhecimento e também para agirem ne¬ entre Nietzsche e Rilke est á na idéia da necessidade da “ audaz expe¬
le. É imposs í vel, nesse ponto decisivo, não pensar em Nietzsche. Por riência ” de atribuir ao pr ó prio homem o papel de redentor , num
exemplo, quando este critica , no parágrafo 22 de Para além do bem e mundo secularizado e med í ocre, já que Deus est á morto (Heller ,
do mal , a concepção oficial da natureza em termos da sua “ legalida¬ 1961: 148). O tema clássico do “ desencantamento do mundo” , in ¬
de” . Após identificar nessa posição a id éia de que h á “ por toda par ¬ corporado por Weber encontra aqui o seu pathos mais radical. Afi ¬
te igualdade diante da lei —
nisso a natureza não está de outro modo
nem melhor do que nós ” , e de criticá-la como exemplo dos “ instin¬
nal , somos “ homens de cultura” : só a nós compete instaur á-la , na
luta com outros homens portadores de outros valores e na persistente
tos democr áticos da alma moderna ” , ele adverte que “ isso é inter ¬ recusa da mediocridade (noção que em Weber ganhava corpo naque-
104 —
\
Weber, Nietzsche e a crítica dos valores Weber , Nietzsche e a crítica dos valores — 105
la figura que ele chamou , certa feita , de “ santo Burocr ácio ” ). É ver ¬ tatos com o jovem Luk á cs , que na época estava às voltas com preo ¬
dade que já aqui desponta o momento básico em que Weber eviden ¬ cupações semelhantes ( Mitzmann , 1971: 272-273). Isso, por sinal ,
temente deixa de acompanhar Nietzsche. É o da emergê ncia do “ no¬ suscita um aspecto muito interessante do clima intelectual em que
vo homem ” , que lhe é t ào estranha quanto a id é ia marxista da emer ¬
Weber se movia e da forma ção da sua própria personalidade .
gencia da “ nova sociedade ” . Poder -se-ia argumentar que pelo me ¬ Em contrapartida , n ã o encontrei ind ícios de qualquer interesse
nos traços disso existem na sua noçã o de “ carisma ” , o que já me pa ¬ de Weber por Thomas Mann , a despeito das afinidades que se pode ¬
rece um pouco forçado , apesar do inegá vel ponto em comum que é a riam apontar entre eles quanto à problem á tica das suas obras e , so¬
preocupação dos dois autores com o problema da criação de novos bretudo, à circunst â ncia mais geral de que ambos estavam , na ex ¬
valores. De qualquer modo, ambas as ideias soam -lhe como utopias , pressão de Luk ács acerca de Thomas Mann , “ em busca do
incongruentes com sua visão “ realista ” (ou resignada? ) do mundo. burguês” , numa sociedade que sequer teve condições para desenvol¬
Cabe lembrar que, muito caracteristicamente, Weber só admite a ver o equivalente ling üístico para citoyen ( Lukács, 1967: 223, 235).
utopia num n ível, precisamente o metodológico, e n ão hesita em usar Claro que a obra de arte e a obra cient í fica não são compará veis ter ¬
afirmativamente o termo para caracterizar esse instrumento analí tico mo a termo. Basta lembrar que , a despeito de toda a sua recusa de
que é o tipo ideal. qualquer id éia de identificação do pesquisador com o objeto de aná ¬
A postura de Weber em relação à literatura , aliás, é também lise, e da sua ê nfase no distanciamento como atitude metodol ógica , é
bastante caracter ística do seu modo total de ser . H á claros indicios totalmente inacessível a Weber, enquanto cientista , o recurso liter á ¬
de que seus interesses por autores e obras sempre estiveram forte¬ rio da ironia , que é central em Thomas Mann . É verdade, por outro
mente marcados por suas preocupações intelectuais mais imediatas lado, que o distanciamento que Weber preconizava dizia respeito ex¬
e , mais amplamente, pela referência aos seus “ valores ú ltimos ” ; ou , clusivamente ao exercício da atividade cient í fica . Quanto às quest ões
já que estamos num parênteses liter á rio , por aquilo que ele chamava pol í ticas , ele n ão só n ão a recomendava como a repudiava na prá ti ¬
de os “ demónios ” que detinham em suas m ãos os fios da sua vida . ca . Nisso reside uma diferença básica e talvez decisiva entre ele e o
Est á claro, e não só por essa refer ê ncia , que ele leu e releu o seu Goe¬ Thomas Mann seu contempor â neo , que ainda em 1918 (quando We ¬
the e que tinha a boa formação liter á ria peculiar a um intelectual do ber preparava sua confer ê ncia sobre “ Pol ítica como vocação” ) es ¬
seu meio e da sua época. Mas, no geral , parece que, tal como fre- crevia suas “ Considerações de um apolitico” e vinculava expressa ¬
qiientemente ocorre com grandes intelectuais fortemente envolvidos mente o afastamento irónico, que defendia també m no dom í nio pol í ¬
numa linha de idéias (é também o caso de Freud , por exemplo), ele tico, a uma postura conservadora . “ A ironia e o conservantismo são
procurava na literatura o prolongamento das suas preocupações do intimamente afins” , escrevia ele. “ A ironia é uma forma de intelec¬
dia. Assim , não é de surpreender que um dos seus autores favoritos, tualismo e o conservantismo irónico é um conservantismo intelectua-
segundo Honigsheim , fosse o su íço Conrad Ferdinand Meyer , no lista. 'Nele contrapõem -se de certo modo o ser e o agir , e é possí vel
qual “ admirava a habilidade para compreender o mundo do passado que ele fomente a democracia , que estimule o progresso pelo modo
e para retratar os aspectos tr ágicos do uso do poder ” ( Honigsheim , como o combate ” (Mann , 1977: 53-54).
1968: 78). Além disso , Meyer , escrevendo no clima pós-1848, Em face disso, a rela ção entre Weber e Nietzsche deve ser exa ¬
preocupava-se intensamente com os problemas da unidade e inde¬ minada de maneira matizada. Não se trata de uma continuidade di ¬
pendência nacionais, embora não estivesse imune à “ ideologia abs¬ reta e explícita na obra de Weber , embora em situação mais informal
trata do poder e da missão mística e fatalista de grandes homens” , ele tivesse identificado Marx e Nietzsche como os pensadores decisi ¬
marcados pela sua “ solid ão ” ( Lukács, 1963: 222, 224). É Meyer , por vos para a sua época ( Baumgarten , 1964: 554-555); o que, traduzido
sinal , quem atribui a um personagem seu , o rebelde protestante von para o seu universo de discurso, significa que Weber considerava in ¬
Hutten , uma frase que dificilmente deixaria Weber indiferente: “ Eu dispensá vel tomar posição perante eles. Ressalvado, no entanto, um
não sou um livro bem raciocinado; sou um homem , com suas contra ¬ problema particular (o da intepretaçã o da religião em termos de
dições ” . Por outro lado, seu contato com a literatura russa parece “ ressentimento ” ) , ser á dif ícil encontrar uma tomada de posição cla ¬
ter sido bastante intensa. Além de suas repetidas referências a Tols¬ ra e vigorosa de Weber em relação a Nietzsche, diversamente do que
toi, há indícios de que Dostoievski exerceu consider ável fascínio so¬ ocorre com Marx . É que sua relação com Nietzsche é mais sutil , e
bre ele, tanto assim que forneceu temas para boa parcela de seus con- mais de afinidades que de contrastes. É possí vel que ela tenha passa-
106 — Weber, Nietzsche e a crítica dos valores Weber, Nietzsche e a crítica dos valores
— 107
do mais pelo dom í nio da experiê ncia est ética que pelo da reflexão fi ¬ blemas semelhantes, mas em escala muito atenuada, referente ao uso
losófica . Assim , suas afinidades reforçam-se , enquanto as diferen ¬ da terminologia cient í fica e filosófica corrente. Sua postura é mais
ças , que são profundas, tornam-se secund á rias. Isso significa que, de reserva , de hesitação diante dos termos, que n ão são contestados
no caso especí fico de Nietzsche, a absorção por Weber de um estilo e a fundo e, portanto, ameaçam constantemente carregar consigo os
de certos temas não é algo superficial e negligenciável, justamente significados já acumulados neles, na medida em que são apenas pos¬
porque não é submetida ao controle sistemático por ele, ao contrário tos entre aspas.
do que ocorre em relação à terminologia e aos temas dos “ lógicos Nisso revela-se o quanto Weber é afinal uma espécie de Nietz ¬
modernos” que invoca. sche tornado “ positivo ” , at é mesmo no sentido de que , quando h á
Comum a ambos os autores, desde logo , é a postura de distan¬ ameaça de limites críticos do pensamento serem atingidos, ele recua
ciamento , na análise, expressa na exigência nietzscheana , em Ecce onde Nietzsche prossegue; o que, de resto, o livra de cair no irracio¬
Homo, de ter “ um senso de distância, de ver em todo lugar a hierar ¬ nalismo. Isso pode ser observado através da sua atitude em face da
quia, a graduação, a ordenação entre homem e homem , de distin¬ hist ória e da historiografia. Sua visão é “ poli -hist ó rica ” ( Hirano ,
-
guir" , o que não elimina em nenhum deles a paixão pelo conheci¬
mento, antes a exacerba. Eles também compartilham uma atitude
1975: 16, 20 e seguintes): há uma multiplicidade de histórias possí¬
veis, cada qual correspondendo a uma ordenação de um conjunto de
aberta , experimental em relação ao mundo, alheia à busca de siste¬ eventos conforme determinados interesses de conhecimento valorati-
mas fechados , sempre pronta para novas tentativas e para descartar vamente fundados. At é aqui , falar de uma hist ória ou de outra é
as anteriores. Com uma diferença profunda , contudo: Nietzsche est á uma questão de “ perspectiva ” , de interpretação, no que ainda esta¬
disposto a submeter tudo às suas experiências de pensamento, ex ¬ mos próximos de Nietzsche. Mas, Weber jamais chega. ao ponto de
pressas em seus aforismas, ao passo que Weber pá ra num ponto, que negar a idéia de que se possa alcançar uma verdade cientí fica a res¬
é o da validade do empreendimento cient í fico metódico e racional. peito da hist ória e da sociedade, ainda que particularizada. Não
A id éia de Nietzsche, em Para além do bem e do mal , de que os acompanha a visão irracionalista de Nietzsche, pela qual no fim das
“ filósofos do futuro” poderiam ser chamados, com todos os jogos contas só há interpretações mas nenhum texto (Habermas, 1973:
de palavras envolvidos nisso, de “ tentadores” e de que mesmo essa 260), e muito menos essa forma sofisticada de naturalização e elimi¬
designação é uma “ tentativa , uma tentação” , vai além de tudo que nação da história que é a noção de “ eterno retorno” . A idéia da ver ¬
Weber pudesse assimilar . Termos como “ tentativa” e “ experimenta¬ dade do conhecimento histórico reaparece em Weber , rebatida sobre
ção” só podem ser levados ao pé da letra , por ele , na sua á rea especí¬ o plano da verdade do conhecimento cientí fico de tal ou qual hist ória
fica de preocupações. Afinal , sua ciência nada tem de “ alegre” , nem particular . É que Weber não est á empenhado em desmascarar radi ¬
ele é um “ espírito livre” . O cientista como vocação , vá lá; mas co¬ calmente os valores e suas manifestações hist óricas, não está procu ¬
mo tentador , também no sentido de homem de tentação? Diante das rando uma resposta genérica sobre o que valem afinal os valores,
-
implicações disso, ambos separam se, mesmo porque Nietzsche está mas parte da vigência empírica e particular deles, para preocupar-se
disposto a ir até o fim , e reivindicar para o filósofo a condição de le¬ com o método adequado para estabelecer relações entre eles que pos¬
gislador , que é exatamente o que Weber quer vedar ao cientista. sam ser aceitas como válidas por todos os que aceitam a verdade co¬
( Não que haja um desacordo direto entre ambos quanto a este último mo valor legítimo , e a ciência como um modo de atingi-la. Nesse
ponto, visto que Nietzsche seria o último a conceber um cientista , tal ponto ele move-se exatamente dentro do universo que Nietzsche está
como Weber o entende, como “ legislador ” . São precisamente as di ¬ procurando aniquilar pela cr í tica imanente. É que aqui aparece a afi ¬
ferenças de perspectivas entre eles que estão em jogo.) Essas diferen ¬ nidade básica de Weber com o positivismo: existem muitas histórias,
ças refletem-se diretamente num aspecto importante dos seus estilos mas somente uma ciência legí tima , ou , mais precisamente, existe a
de exposição. Em Nietzsche, “ o uso ocasionalmente frenético da dic¬ unidade do método cientí fico. Diante disso, Nietzsche provavel ¬
ção poética, do ‘ditirambo’ , pode ser tomado como tentativa para mente o incluiria entre aqueles que, desde o século XIX, assegura ¬
desvencilhar-se dos há bitos ling üísticos ” , no contexto de uma refle¬ ram “ não a vitória da ciência, mas a vitória do método cient í fico so¬
xão obrigada a exprimir-se com o repert ório lingüístico dispon í vel bre a ciência ” .
mas que luta por firmar uma crítica radical à pró pria linguagem e Tanto Nietzsche quanto Weber est ão de acordo em que o mun¬
aos seus pressupostos ” ( Danto, 1964: 389). Weber é sensí vel a pro¬ do não é intrinsecamente dotado de sentido e que não há um sistema
108 — Weber , Nietzsche e a crítica dos valores Weber, Nietzsche e a crí tica dos valores — 109
de valores já dado , independente da luta entre os homens. Ambos “ o artigo de fé mais antigo é o conceito de ego como uma identidade . Es ¬
també m coincidem em conceber a vigê ncia de determinados valores sa identidade é projetada sobre todas as coisas , e é somente assim que
como expressão da dominação de grupos humanos sobre outros ; ou emerge a categoria de ‘coisa’ , à qual se podem predicar atributos ( . . . ) Na
seja , vinculam estreitamente a tem á tica dos valores à do poder . Cla ¬
forma gramatical primordial da sentença , a relação sujeito- predicado
cristalizou -se num esquema geral de explicação . Da mesma forma , a dis
ro que as ê nfases das suas an á lises sã o diferentes . Enquanto Nietz ¬ tinção fict í cia entre o agente ativo e a ação est á fixada como forma gra
¬
ficas de dominação , não h á como encontrar qualquer hierarquia tamos ; desconhecemos o que resultará dela . Mas cremos o contrário a res¬
“ objetiva ” de valores; tomados como tais , eles são todos equivalen ¬ peito de todos os três . O suposto motivo , a suposta ação e as supostas
conseqii ências pertencem à hist ória que conhecemos , mas elas também
tes . Cabe també m propor a idé ia de que Weber acompanha Nietz ¬
fazem parte da sua hist ória desconhecida , enquanto soma , em cada caso ,
sche quando este inverte a problem á tica cl ássica , ao de três equ í vocos . ” ( Nietzsche , 1969: 567 . )
“ sobrepujar a quest ã o deixada aberta da verdade do valor para propor
aquela que lhe parece mais radical , sobre o valor da verdade ” . ( Fink ,
Ações , motivos, intensões n ã o podem , portanto, ministrar qualquer
'
1973 : 127 . ) base para o conhecimento objetivo do mundo humano pelos pr ó¬
prios agentes ; mas, tampouco podemos recorrer a uma noçã o de
Isso inclui a própria ciência; só que aquilo que para Nietzsche é uma sujeito-agente que as articule para convertê-las em objetos de conhe¬
quest ão crítica fundamental converte-se , em Weber , num problema cimento leg í timos. Tudo indica que é dif ícil superar o hiato que sepa ¬
metodol ógico. ra isso de uma aná lise baseada no sentido visado da ação de sujeitos-
Creio que é nessa ordem de id éias , e não nas pá lidas concepções agentes, como ocorre .em Weber , ainda mais porque tampouco é pos ¬
de um Rickert , cuja terminologia ele insiste em adotar , que devemos s í vel recorrer à noçã o de causa e que tudo isso evidentemente tem a
procurar a razão ú ltima da exigê ncia metodológica de Weber , segun ¬ ver com a problemá tica da compreensã o e da interpretação.
do a qual a seleçã o do objeto particular de análise só pode ser feita Na realidade , a categoria de causalidade cria tantos embaraços
com refer ência a determinados valores, posto que do contr á rio só ao pr ó prio Weber , obrigando-o mesmo a recorrer a f ó rmulas alter ¬
restaria o ceticismo total ou o puro arbí trio irracionalista . A Weber , nativas menos precisas como aquela , do maior interesse , de “ afini ¬
contudo, interessava fazer ciência; e mais nitidamente , fazer uma dades eletivas ” entre ordens diversas de sentidos da açã o , que ocorre
ciência da realidade . E isso conduz-nos de volta a um tema que agora mesmo perguntar pela razão dessa insist ê ncia nela. Com efeito, con ¬
-
ganha novos contornos. Trata se da insistência de Weber no caráter sideremos suas principais concepções acerca do tema: qualquer fenô¬
causal da explicação em ciê ncias sociais. É talvez esse o ponto em meno singular resulta de uma infinidade de causas; a an á lise causal
que ele mais se afasta de Nietzsche , na medida em que este submete só adquire car á ter empiricamente verificá vel quando toma como uni ¬
—
ambas as noções a de causalidade e a de sujeito como um ego inte ¬ dades as ações de sujeitos individuais; é impossí vel encontrar uma
grado
— a uma critica intensa , fundada na idéia de que se trata de
ficções, de “ met á foras ” fundamente entranhadas na pr ó pria estru ¬
tura da linguagem de que se valem tanto o senso corqum no trato co¬
causa final ou sequer fundamental em relaçã o às demais para a hist ó¬
ria ou para sociedades tomadas como um todo; e , como consequ ê n ¬
cia mais drástica disso tudo, uma relaçã o causal estabelecida para re ¬
tidiano quanto a metafísica nas suas cogitações. Um dos corol á rios lacionar processos hist óricos ( no exemplo cl ássico , a relação calvinis¬
dessa cr í tica é a rejeição da id éia de que se possam tomar noções co¬ mo / capitalismo) n ão é un í voca , mas pode ser lida nos dois sentidos
mo as de “ motivo ” ou de “ vontade” como tendo qualquer cará ter possí veis, vale dizer , pode aparecer invertida em outra an á lise igual ¬
causal ( Danto, 1964: 388 e seguintes , esp . 389-90) . Conforme comen ¬ mente leg í tima . Elas sugerem dificuldades metodol ógicas apreci á ¬
ta Habermas, veis. No entanto, a resposta para a quest ão formulada é simples, e
110 — Weber, Nietzsche e a crítica dos valores Weber, Nietzsche e a crítica dos valores — 111
permite ao mesmo tempo ajudar a esclarecer por que as reflexões de que a ação concreta de indiv í duos reais raramente ocorre com plena
Weber se concentram sistematicamente sobre o plano metodológico. consciê ncia dos elementos envolvidos e das suas implicações.
É que a exigência da an á lise causal prende o pesquisador às regras Desta segunda idéia há um desdobramento importante, que por
universalmente aceitas do m étodo cient í fico, e assegura o car á ter sinal também evoca um tema nietzscheano , que é o da relação entre
també m universal (o que, neste contexto, significa: válido como co¬ memória e esquecimento (ou faculdade de reprimir a memória). Em
nhecimento para todos os interessados) das suas conclusões. Em su ¬ consonâ ncia neste ponto com Nietzsche e em direto confronto com
ma , Weber apóia essas considerações de método na categoria de cau - essa categoria central do historicismo que é a da memória, Weber le¬
sà lidade porque, já que não há garantia alguma de universalidade vanta , no ensaio sobre a objetividade , a quest ão de que, no seu coti ¬
(vale dizer , no caso, de intersubjetividade) para os fins, que ao me¬ diano concreto, os homens freqiientemente agem esquecidos da
nos ela exista para a ciência enquanto meio. “ idéia ” historicamente original que fundamenta os princí pios orien ¬
Isso lhe permite ser congruente com a advertê ncia de Nietzsche , tadores das suas ações, seja porque essa idéia já pereceu , seja porque
na Genealogia da moral, de que a ciê ncia apenas se difundiu através das suas consequências ( Weber , 1973:
“ necessita , sob todos os aspectos, de um ideal de valor , de uma pot ência 198). E , completando isso, adverte, em sua conferência sobre a ciê n ¬
Numa aná lise da concepção de destino na antigiiidade , citada por em Nietzsche nesse ponto . No entanto , nessa linha de raciocinio e
Walter Benjamin em seu ensaio “ Cr í tica da viol ência ” , o fil ósofo poss í vel , mesmo admitindo- se as diferen ç as entre o fil ósofo e o so ¬
Hermann Cohen (em obra cuja leitura Weber recomendava a Robert ci ó logo preocupados com quest ões de método , sugerir que a critica
Michels , numa carta ) , define-o como “ um conhecimento que se tor ¬ de Taubes , tal como é formulada , talvez seja correta para o t ó pico
na inescapá vel e cujos pró prios mandamentos parecem originar e particular a que se aplica , mas no geral é discut í vel . Ocorre que pre ¬
produzir essa infração , esse desvio ” ( Benjamin , 1965 : 58 ) . A formu ¬ cisamente Weber enseja , talvez com mais forç a que qualquer outro
lação é interessante , mesmo quando , a rigor , est á sendo retirada do cl ássico da Sociologia , a quest ão sobre quem .
seu contexto . Pode sugerir algo a respeito do modo como a própria " Interesses ( materiais ou ideais ) e n ã o ideias dominam
diretamente a a çã o
ci ência acaba sendo simultaneamente reveladora e c ú mplice do “ des ¬ dos homens. Mas: as ‘imagens do mundo ' criadas por ideais muito fre-
tino ” do homem moderno em Weber . Numa aná lise cr í tica dessa qiientemente determinaram , como guarda - trilhos , os rumos pelos quais a
concepção weberiana , o teólogo e soci ó logo Jacob Taubes fecha o din â mica dos interesses impulsionou a ação" ( Weber , 1972 : 252 ) ,
c í rculo ao comentar que um autor como Weber , que t ão bem conhe ¬ escreve Weber em seu ensaio sobre a é tica econ ómica das religi ões
cia os perigos dos conceitos coletivos , como o atesta sua insist ência mundiais ( e n ão “ Psicologia social das religi ões mundiais ” , como
em que as entidades coletivas reduzem - se às “ chances ” de que ações traduzem Gerth e Mills , numa concessão à tend ê ncia norte-america ¬
determinadas sejam executadas por indiv í duos determinados , “ deve ¬ na para incorporar Weber num registro psicologista ) . Basta ir aos
ria , sempre que fala do destino , dar os nomes" (Tauber , 1969 : 129- textos para comprovar que a “ dinâmica de interesses ” que Webcr
30 , grifos meus) . Isso parece atingir em cheio a incoerência fatal ( o buscava conhecer para cada caso não pode ser discutida sem “ dar os
termo é intencional ) do pensamento weberiano , e permite ver por ou ¬ nomes ” . O que se pode questionar é se ele realmente conseguiu dar
tro ângulo um tema nuclear do presente trabalho , que é o de como o os “ nomes certos ” em determinadas aná lises . E isso é apenas uma
próprio esquema de Weber ameaç a constantemente fechar -se sobre maneira de propor a quest ão mais profunda , sobre se , no seu esque ¬
ele , de maneira análoga ao que ocorre com os agentes que ele de ¬ ma , Weber tem condições para ir além do ato de “ dar os nomes ” em
monstra , em suas aná lises , serem v í timas do “ paradoxo das conse ¬ cada caso ; pois é disso ( que n ào é simplesmente uma d ú vida empí ri ¬
quê ncias ” . ca ) que se trata , pelo menos se a cr í tica busca sua inspiração no mar ¬
No entanto , de certo modo a quest ão de Taubes é “ nietzschea - xismo .
na” , embora formulada com uma inspiração marxista . Com efeito ,
para Nietzsche é fundamental a substituição da quest ão sobre o que
pela pergunta sobre quem , sempre que se queira chegar à essência
das coisas .
“ A interrogação: ‘Quem ? ’ , segundo Nietzsche , significa isso : consideran ¬
do-se uma coisa , quais são as forças que dela se apoderaram , qual a von ¬
tade que a possui ? Nós apenas somos conduzidos à essência pela pergun ¬
ta : Quem ? Pois , a essência é somente o sentido e o valor da coisa; a essên ¬
cia é determinada pelas forças em afinidade com a coisa e pela vontade
em afinidade com essas forças ( . . . ) A arte pluralista não nega a essência:
ela a torna dependente em cada caso de uma afinidade entre fenômenos e
forças , de uma coordenação entre essas forças e vontade . ” ( Deleuze ,
1973: 87.)
Est á claro que essa não é diretamente a ordem de preocupações de
Weber , sobretudo se considerarmos que a resposta final de Nietzsche
e essa questão não diz respeito a tais ou quais agentes sociais , mas a
essa entidade impessoal que é a “ vontade de pot ência” . Também é
patente que Weber nada tem a ver com qualquer variante de “ filoso¬
fia da vida” , no que difere de Simmel , que buscou muita inspiração
4
I
Dominação e dialética
mo o da burocracia em Hegel e Weber, acabam indo além das seme¬ ce como imanente ao próprio movimento do real , ao passo que em
lhan ças tem á ticas para afirmarem a identidade dos fundamentos das Weber ela é externa , reflete uma recusa subjetiva de tal ou qual as¬
id êias de ambos, pelo menos nesse particular . Isso pode conduzir a pecto do mundo. Isso tem seu desdobramento na concepção de cr í ti¬
verdadeiras caricaturas, como ocorre na observaçã o cr í tica feita por ca, que em Hegel se refere à pró pria coisa e em Weber aplica-se ao
Nicos Poulantzas, nesse contexto : modo de conhecê-la , no plano metodológico, ou ent ão reaparece co¬
mo simples recusa estribada em certos valores que se contrapõem a
“ Conforme seu papel próprio a burocracia intervém assim na autonomia outros equivalentes, no plano substantivo; ou ajnda , neste mesmo
relativa do Estado capitalista: mas, seu papel não é nem a causa nem o fa ¬ plano, pode assumir uma acepção neutra , de exame da eficácia da
tor principal dessa autonomia , como o apresentam o conjunto das con ¬
cepções idealistas, que apanham o Estado como sujeito e que vinculam
articulação entre meios e fins num tipo particular de conduta.
sua ‘autonomia’ à sua ‘vontade racionalizadora’ , da qual a burocracia se¬ Uma outra distin ção entre ambas as orientações, que conduz a
ria a encarnação ( Hegel , Weber etc . ) . ” ( Poulantzas , 1974: 201, nota 1.) um aspecto especialmente interessante do pensamento de Weber , re-
fere-se às idéias de “ mediação” em Hegel e de “ elo mediador ” em
No meu entender essas aproximações são equivocadas, sempre Weber . Em Hegel , a mediação refere-se à determinaçã o da negação
que n ão se limitem a apontar semelhan ças temá ticas (o que è trivial ) recí proca entre dois termos opostos, no seu movimento constitutivo
mas sugiram analogias nos pró prios fundamentos das linhas de pen ¬
de uma unidade , na qual esses pró prios termos deixam de ser isola ¬
samento envolvidas. O problema ó bvio é que qualquer aproximação dos , abstratos , indeterminados para se apresentarem como determi ¬
com Hegel tem que passar pela quest ão da dial é tica. Procurarei apre¬ nados no interior dessa unidade nova, que desencadeia já em outro
sentar em seguida alguns pontos básicos de discordâ ncia entre as li ¬ n ível o movimento mediador. Isso, que é central em qualquer refle¬
nhas de pensamento em exame, para em seguida deter -me num pon ¬
xão de tipo dialético, é totalmente estranho a Weber. Nele temos,
to especí fico e especialmente sugestivo. contudo, a noção de “ elo mediador ” , no sentido não-dialético de
A lista sumária das diferen ças naturalmente começa pelo modo “ intermediário ” (convé m insistir , nesse ponto, em que a mediação
como se concebe o conceito e sua relação com o real . Na posição es¬ dial ética não é um terceiro termo, mas o pró prio movimento que per ¬
tritamente metodológica assumida por Weber o conceito é o instru ¬ passa os termos opostos e os determina na sua unidade).
mento que o pesquisador forja para ordenar um segmento da reali ¬ Ao discutir , por exemplo, a ética económica da religião chinesa ,
dade e construir seu objeto. Entre o conceito e o real estabelece-se Weber observa que “ nenhum elo intermediá rio conduzia do confu-
uma enf á tica separação. Na perspectiva hegeliana o conceito , em sua cionismo para um método de vida burguês” ( Weber , 1972a: 524).
acepção mais ampla, é o pr ó prio real no seu processo de constitui ¬ Nisso ele retoma uma linha de preocupações que já estava presente
ção, ou ent ão cada manifestação particular do conceito capta um em seu trabalho sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo,
momento desse processo . Cabe ao pensamento acomodar-se a esse no qual a idéia de “ vocação” pode ser interpretada como desempe¬
movimento do real , acompanhá-lo e captar suas determinações (o nhando esse papel mediador entre a ética religiosa e a conduta meto ¬
que , naquilo que é mais que um mero jogo de palavras com a expres ¬ dicamente racional na esfera econ ó mica. Numa análise ousada e esti ¬
são alem ã bestimmung , significa invocar o real pelo seu nome, que é mulante um especialista em teoria liter á ria , Fredric Jameson , subme ¬
o conceito). Além disso, n ão encontramos em Weber nada que se as¬ te a exame a estrutura narrativa da obra de Weber e sustenta que essa
semelhe à dialética entre o geral e o particular , sempre presente no idéia de elo mediador desempenha um papel especí fico e central nela ,
-
pensamento hegeliano . Ao contrá rio, Weber restringe se ao particu ¬ na medida em que sua função na análise consiste precisamente em
desaparecer no seu final . Assim , o conceito com que Weber efetiva¬
lar , tomado explicitamente de modo unilateral ( “ abstrato” , diria
Hegel ), e repele qualquer referência ao geral . Por outro lado , Weber mente trabalha , ainda que implicitamente, seria o de “ mediador eva ¬
trabalha sempre com conte ú dos subjetivos da consci ê ncia empí rica nescente ” , que caracterizar í a “ todo o pensamento sociológico e his¬
dos agentes e jamais acompanharia a caminhada hegeliana em busca t órico weberiano e pode ser visto como a estrutura dominante da sua
da constituição de um “ espí rito objetivo ” (corporificado na moral . imaginação ” ( Jameson , 1974: 136). Na interpretação que Jameson
118
— Dominação e dialética Dominação e dialética
— 119
propõe para o estudo de Weber sobre a ética protestante e o espí rito dos seus temas essenciais para a presente discussão, com base estrita ¬
do capitalismo, a primeira desempenha o papel de “ mediador eva ¬
mente nessa parte da obra ( Hegel , 1952: 133-150).
nescente” entre o mundo “ tradicional medieval ” de que emergiu e o A descrição hegeliana fala do “ senhor ” e do “ servo” e busca
mundo “ moderno e secularizado” que ajudou a preparar . Sua im ¬
apanhar as relações dialéticas que os vinculam numa unidade. Essa
port â ncia estaria num aspecto paradoxal da narrativa weberiana , e - unidade é uma figura da consciência que deve ser entendida como
essencial nela: é que n ão encontramos nela a exposi ção um tanto tri ¬ um todo e que trata especí ficamente n ão do servo e do senhor como
vial de uma transição para o “ desencantamento” racional do mundo entidades que comportem tratamento separado, mas da dominação e
através do enfraquecimento da religi ão mas , ao contrá rio, é a inten¬ da servidão como momentos inseparáveis na formação da consciên ¬
sificação do caráter religioso da vida pelo calvinismo que, ao conver¬ cia de si independente e, em seguida , livre. Assim , quando se fala do
ter o mundo todo no equivalente a um monastério, ajuda a desenca ¬ senhor e do servo a refer ência é à consciência senhorial e à consciên ¬
dear as transformações cujo ponto final é o capitalismo moderno . É cia servil , e não diretamente a indiv íduos ou categorias sociais.
apenas ao reforçar sua presença histórica que a ética protestante pro¬ Trata-se, portanto, de examinar a formação da consciência de
move a coerência entre os fins e sentidos religiosos e a organização si ; e esta somente se realiza á través de uma outra consciência de si .
racional dos meios. E ao fazê-lo, cria , de maneira não-intencional Ela é “ uma consciê ncia de si para uma consciência de si ” . Para reco-
nos seus agentes, as condições para o seu desaparecimento da cena nhecer-se a si própria ela carece do reconhecimento por outra e, para
hist órica no que diz respeito à organização e persistência do mundo tanto, precisa reconhecer a outra. Mas esse reconhecimento precisa
racionalizado em moldes capitalistas. O capitalismo triunfante dis¬ ser especí ficamente humano e não meramente natural: não pode fi ¬
pensa o apoio da ética religiosa , como diz Weber . car limitado ao desejo imediato e à sua satisfação. O senhor tornou -
Para além do interesse específico da sua análise (e contraria¬ se tal justamente por ter superado, no combate, o â mbito meramente
mente, talvez, a algumas de suas inten ções) o trabalho de Jameson
permite ilustrar como a idéia de “ elo mediador ” em Weber , por im ¬
natural da vida e ter afrontado heroicamente — isto é, em nome de
—
exigências e necessidades que escapam ao mundo natural a morte,
portante que seja no seu pensamento, nada tem em comum com a o “ senhor supremo” . O servo, vencido, torna-se tal ao aceitar sem
“ mediação” hegeliana, que jamais é concebida como intermediá ria e mais a vida , na qual é mantido em troca da servidão. Na primeira re¬
muito menos como “ evanescente” nos processos em que figura. Es¬ lação entre ambos o senhor aparece como capaz de atingir a indepen ¬
sa mesma distinção pode também ser examinada com apoio num ou ¬ d ência e a consciência de si , e o servo surge como inteiramente de¬
tro tema que apanha aspectos centrais das obras de Hegel e Weber. pendente dele, que dispõe sobre sua manutenção em vida , e subordi ¬
Trata-se do confronto entre a idéia hegeliana da “ dialética entre o nado à pura exterioridade natural. Sua relação com o senhor é de pu¬
senhor e o servo ” e a idéia weberiana da “ dominação ” como relação ro temor. Mas, as relações entre ambos se desdobram num movi¬
social fundamental. Parece-me que é a í que encontraremos o ponto mento complexo que acaba invertendo a posição inicial, sem no en ¬
de partida mais rico para o exame das eventuais afinidades e , sobre¬ tanto anulá-la. O senhor n ão reconhece o servo como outra cons¬
tudo, das fundas diferenças entre essas linhas de pensamento, de pre¬ ciência de si. Ele é o seu instrumento para satisfazer seus desejos , e
ferência ao de burocracia , que afinal est á subordinado à temática da suas relações com as coisas desejadas passam sempre por ele. Mas , o
dominação. senhor depende para seu reconhecimento como consciência indepen ¬
A secção sobre “ dominação e servidão ” constitui uma das pas ¬ dente da consciência dependente e n ão reconhecida por ele do servo.
sagens mais célebres da Fenomenología do espírito, de Hegel . Na Nesta caminhada o senhor não tem como atingir a consciência de si,
descrição do movimento do espí rito para si pr ó prio através de figu ¬ e a consciência dependente do servo passa a ser a verdade da cons¬
ras de consciência que se desdobram e vão ganhando conteú do con ¬ ciência do senhor . A consciência do senhor est á subordinada ao de¬
sejo; a do servo, às coisas com que se relaciona para servir ao amo.
creto nesse processo de formação que constitui o tema geral da Feno¬
menología , o exame da dominação e da servidão aparece na segunda Entre o senhor e as coisas interpõe-se a consciência servil ; e entre o
parte da obra , dedicada à “ consciência de si ” , e refere-se mais dire¬
servo e a consciência senhorial interpõem-se os objetos da sua ativi¬
tamente à “ independência e dependência da consciência ” . Não te ¬ dade servil. Mas na atividade do servo realiza-se algo inacessí vel ao
nho condições para pretender oferecer um coment á rio desse texto, e senhor: a mediação do desejo e da satisfação, que é o trabalho. O
nem seria este o lugar para isso. Vou limitar -me a assinalar alguns trabalho é “ desejo reprimido” e persistência da satisfação, ele é
120
— Dominação e dialética Dominação e dialética — 121
“ formador ” : sua relaçã o com o objeto é negativa , ele o nega ao N ã o se trata aqui , é claro , de caricaturar a reflex ão hegeliana ,
impor -lhe uma forma , e esta permanece . Nisso o trabalhador forma reduzindo-a à sociologia ou à historiografia , quando sua preocupa ¬
o objeto e se forma a si pr ó prio, como ser para si . Mas o trabalho so ção é mais propriamente com os fundamentos ú ltimos da sociedade e
da hist ória . A quest ã o é sobre a possibilidade de reconhecer -se nisso
¬
bre as coisas abre també m o caminho para que o servo negue , atrav és
da negação do objeto imediato no seu trabalho sobre ele , o pr ó prio algo da orientaçã o das id éias de Weber acerca da dominação; pois,
senhor que se contrapõe à sua consci ê ncia de si , e caminhe para se isso n ã o ocorrer aqui dificilmente ocorrer á em outro ponto , salvo
ela. O confronto com o objeto rio trabalho é també m seu confronto no plano da mera semelhança tem áfica .
interno com seu temor e a abertura para sua supera çã o , pela qual ele Em Max Weber a ¡uta é uma dimensão sempre presente nas rela ¬
se torna formalmente (subjetivamente ) livre e pode reencontrar o seu ções entre os homens , que “ n ão pode ser eliminada de toda a vida
senhor nesse mesmo plano, nos momentos posteriores do desenvolvi ¬ cultural ” ( Weber , 1973: 517 ) e “ atravessa potencialmente toda e
mento do processo . qualquer modalidade de ação [social] ” ( Weber , 1973: 463). Mas, pa ¬
Isso já permite trazer à tona o que efetivamente interessa apon ¬
ra alé m disso , a dominação constitui processo fundamental na sua
tar aqui , que é o car á ter assumido pela domirfação na relaçã o entre o caracterização da vida social e no seu esquema analí tico, como se vê
servo e o senhor . É verdade que esta formulação já é viciada pelo em v á rias passagens do presente trabalho. Neste momento interessa
empenho no confronto com as id éias de Weber , porque apanha uni ¬ o confronto entre a concepçã o weberiana dessas quest ões e a hegelia ¬
lateralmente a dominação, quando em Hegel o processo é descrito de na, esboçada acima .
tal modo que dominação e servid ã o atravessam -se mutuamente nu ¬ A luta a que Weber se refere não diz respeito a uma configura ¬
ma unidade inextricá vel . O importante , contudo , é assinalar como çã o de uma consciê ncia que transcende os homens empí ricos , mas
em Hegel a dominação / servid ão perpassa ambos os termos opostos, sim a uma orientação básica nas condutas reciprocamente referidas
o senhor e o servo, determinando-os numa unidade em que cada ter ¬
de agentes sociais. Refere-se estritamente a conteú dos subjetivos da
mo també m assume um car á ter contradit ório. Nesse movimento o ação de cada qual e n ão tem qualquer desenvolvimento fora das suas
senhor é também servo do servo e o servo é també m senhor do se¬ ações efetivas. Quanto à dominaçã o, trata-se de conceito fundamen ¬
nhor . Ao mesmo tempo, senhor e servo est ã o envolvidos nã o apenas tal em Weber , quando nada porque permite associar duas premissas
num confronto externo mas também interno a cada qual: trata-se de do seu esquema anal í tico: a da exist ê ncia na vida social de uma mul ¬
tornar -se senhor de si pró prio. Assim , a dominação est á na relação tiplicidade de valores equivalentes , entre os quais não se podem esta ¬
entre os termos e nos pr ó prios termos. Ao cabo do processo descrito belecer critérios estritamente racionais , objetivos e , muito menos,
por Hegel fica claro que, na dialé tica da dominaçã o e da servid ão, é universais de escolha , e a da escassez como pano de fundo de toda
ao servo que cabe efetivamente determinar -se como sujeito , em am ¬ ação social . Da associação entre ambas deriva a idéia de uma apro¬
bos os sentidos do termo. Vale, no entanto, frisar que em Hegel esse priação diferencial de bens valorizados materiais e simbólicos , que se
processo todo corresponde à descrição de uma figura particular da tornam objetos de uma disputa , latente ou aberta , acerca da sua dis ¬
consciência , no interior de um movimento em que ela se desdobrará tribuição social e da sua persist ê ncia na condição de valorizados em
em outras e que só ganha sentido da perspectiva mais desenvolvida detrimento de outros possí veis . Mais especí ficamente , a dominação ,
( na acepção dialética do termo, de desentranhamento das diferenças ) que envolve a possibilidade de obter -se obedi ência , repousa na legiti ¬
que é o “ saber absoluto ” , do conceito constitu ído plenamente , no mação pelos dominados dos valores que fundamentam a capacidade
qual se estabelece a unidade consciente do subjetivo e do objetivo ; de mando dos dominantes . A legitimaçã o implica , portanto, omis ¬
ou seja , da perspectiva da conciliação entre o conceito e o real , na são, ou repressão , da busca de valores alternativos pelos dominados.
qual , para lembrar a formulação célebre da Filosofia do Direito , a O exame dos motivos subjetivos para a legitimaçã o permite construir
realidade tornada concreta , efetiva , é racional e o racional é realida ¬ uma tipología da dominaçã o , relativamente vazia de conte ú dos his¬
de efetiva. Não faz muito sentido , assim , perguntar -se sobre quem é t ó ricos e portanto aplicá vel a situações concretas bastante diversas,
decisivo, o senhor ou o servo, e n ão faz sentido algum conceber essa conforme a orientação do interesse do pesquisador . Vale assinalar
relação como eterna e imut á vel , pois, como momentos de uma figura aqui que Weber constr ói tipos de dominação, dos quais os motivos
da consciência que é uma etapa na formação do espí rito , ambos de ¬ de legitimação são complementares. N ã o é possí vel estabelecer uma
ver ão ser superados. analogia entre o par conceituai dominação / legitimação e a oposi-
122 — Dominação e dialética Dominação e dialética — 123
ção hegeliana consci ê ncia senhorial / consci ência servil , visto que , no tendo em vista a tend ê ncia de Weber para operar com dicotomias r í ¬
caso weberiano, os termos n ão se interpenetram e se desdobram na gidas , entre as quais não h á concilia çã o nem terceiro elemento inter ¬
formaçã o de uma unidade nem , muito menos, são suscet í veis de medi á rio. Mas isso n ã o invalida a quest ão , antes a refor ça , pois o
qualquer inversão. Mas , o ponto decisivo para caracterizar o modo conceito de dominação ocupa posi ção nuclear no esquema de Weber
como Weber separa o que em Hegel são momentos de uma unidade e , portanto, merece tratamento muito particular da sua parte . O fato
— —
e o faz assumindo uma perspectiva senhorial consiste em que
sua grande quest ão est à na criãfcão de novos valores e n ão na mera
é que h á um mediador entre
dominantes e dominados no esquema
weberiano , e com caracter í sticas muito peculiares . Trata -se do “ qua ¬
opção entre os possí veis existentes. E isso cabe exclusivamente aos dro administrativo ” , que é assinalado por Weber como componente
dominantes ( mais precisamente, a um tipo particular de dominante, de qualquer tipo de dominação que tenha vigê ncia ao longo do tem ¬
o líder carism ático) e nunca aos dominados; o que contrasta forte ¬
po. A peculiaridade do quadro administrativo consiste em que , se
mente com a imagem hegeliana do senhor ocioso e confinado no mo ¬
considerarmos a an á lise de Jameson citada acima , ele é um mediador
mento do desejo. Se observarmos esse contraste e considerarmos que não evanescente. Ao contr á rio , quanto mais Weber enfatiza a eficá ¬
a criação de novos valores , que para Weber define o que h á de mais cia de um tipo de dominação , ou seja , quanto mais ele se aproxima
'
fundo na dinâ mica hist órica , é concebida por ele como irracional ( no do exame da dominação de tipo racional -legal , cujo quadro adminis ¬
sentido de irredut í vel a considerações puramente racionais fundadas trativo e de tipo burocr á tico , mais se acentua a consist ê ncia interna e
em quaisquer condições objetivas já dadas), transparece o peso que a durabilidade desse mediador privilegiado, que é o quadro adminis ¬
tem , para a formação do seu esquema , o abandono do tema do tra ¬
trativo intercalado entre dominantes e dominados. O quadro admi ¬
balho, t ão presente nas considerações hegelianas sobre a dominação nistrativo n ão é uma mediaçã o dial ética mas é estritamente concebi ¬
(e depois incorporadas criticamente por Marx). Como é sabido, o do como um intermediá rio , externo aos termos que vincula . Como
pensamento weberiano move-se no campo da apropriação e da dis ¬ tal , figura como instrumento para assegurar a adequada efetivaçã o
tribui ção e n ã o do trabalho e da produ ção; e aqui manifesta -se sua dos mandatos dos dominantes . Mas , como ele n ão se limita a estabe ¬
diferen ça não só em relaçã o a Marx mas já em relação a Hegel , ex ¬ lecer a passagem entre os termos e depois desaparecer , introduz-se o
pressa ambas as vezes na rejeição de qualquer perspectiva dialética , risco sempre presente de que o instrumento venha a usurpar a com ¬
que, no concernente a Hegel , ele caracterizava negativamente como pet ê ncia daqueles que o usam , e a pô r em xeque o pr ó prio controle
uma visão “ emanatista ” e “ panlogista ” da hist ória. A isso também externo sobre ele por parte dos dominantes , ao mesmo tempo que se
se vincula a concepção weberiana da luta e da dominação como di ¬
mensões sempre presentes na vida social , sem qualquer perspectiva
-
afasta ainda mais dos dominados ; e isso ocorre com maior força no
caso da burocracia ( recordem -se as análises weberianas sobre o con ¬
de superação. flito entre o pol í tico e o burocrata , por exemplo ) . Atingimos aqui
Um último ponto , que me parece especialmente sugestivo, diz um ponto em que já não se trata somente de demonstrar as diferen ¬
respeito ao modo como aparecem , no tratamento do tema da domi ¬ ças entre o pensamento weberiano e outros , mas no qual um dos pro ¬
no; ele est á empenhado em trazer à tona a regra interna pela qual esses go ¬
Claro que essa caracterização nào diz respeito diretamente ao modo saio sobre a objetividade. Na realidade, trata-se de trecho do comen ¬
como Weber concebe o tipo ideal, mas ela não deixa de assinalar cer ¬ t á rio que George Sabine dedica á célebre frase de Hume , de que “ a
tos aspectos relevantes, como o seu cará ter particularizador , razão é e deve limitar-se a ser escrava das paix ões e jamais pode aspi ¬
“ irreal ” , comparativo, e a circunst â ncia de ser constru í do com base - -
rar a outra tarefa sen ã o servi las e obedecê las” ( Sabine, 1973: 551 -
em um princí pio que o articula e lhe d á sentido. Este ú ltimo ponto é 552). Entre as “ pequenas adaptações ” a que aludi para tornar essa
defendido vigorosamente como constituindo traço essencial do tipo passagem congruente com as idéias de Weber estaria a substitui ção
ideal nos trabalhos de Maria Sylvia de Carvalho Franco (Carvalho de “ razão ” por “ ciência ” e de “ paixões” por “ valores ” , o que ,
Franco , 1972: 23-24). A propósito , essa circunst â ncia pode ser ú til bem examinado , revelaria n ão ser pouco; mas as semelhan ças entre
també m para explicar a perturbadora freqiiê ncia do termo “ estrutu ¬ as linhas de pensamento saltam aos olhos, e talvez, pudessem ser des ¬
ra ” nas análises de Weber , especialmente em Economia e Sociedade. de logo acentuadas, para al é m das diferen ças, se considerássemos o
Assim , quando ele escreve que “ em conson â ncia com seu princí pio forte papel desempenhado em ambos os casos por noções como as de
estrutural o patrimonialismo foi o lugar especí fico do desenvolvi ¬
escassez e interesse. Efetivamente, seria possí vel assinalar vá rios
mento da figura do ‘favorito’ ” ( Weber , 1972: 646), isso poderia ser pontos de afinidade entre o pensamento de Weber e aquele que tem
lido em termos de que segundo o princí pio que informou a constru ¬ Hume como seu ponto de referê ncia , ou seja , a melhor linhagem po
—
¬
ção do tipo de dominação patrimonial, destacam-se determinados sitivista entendida aqui não em termos comteanos mas como
fen ômenos, entre os quais o apontado. aquela que vai precisamente de Hume a tend ê ncias contemporâ neas ,
O conceito de tipo ideal aparece inicialmente como a expressão como o empirismo l ógico e o pragmatismo. As reiteradas objeções
mais n í tida da solu ção dada por Weber aos problemas suscitados pe¬ de Weber ao “ naturalismo” (que interpretava basicamente como
la sua concepção de ciência hist órico-social . Essa solu ção consiste uma concepção do conhecimento que atribui à ciê ncia a faculdade de
em assumir da maneira mais conseqiiente o car á ter fictício dos con ¬ legislar diretamente sobre a conduta) não devem obscurecer sua pro ¬
ceitos com que operam essas ciências. Com isso, eles sã o entendidos ximidade em relação ao positivismo em vá rios pontos importantes.
estritamente como instrumentos para análises empí ricas e particula ¬ Entre estes cabe assinalar: seu nominalismo, expresso na recusa em
res , no â mbito portanto de uma “ ci ê ncia da realidade ” , como de res¬ admitir outras referências que n ã o individuais para quaisquer con ¬
to fica expl ícito no ensaio sobre a objetividade. Vale dizer , de uma ceitos; sua cren ça , mantida apesar das interpretações em contrá rio,
ci ência preocupada unicamente com o modo de apresentação dos fe¬ na unidade do mé todo cient í fico; sua preocupação com distinguir ni ¬
nômenos e com as relações entre eles, sem questionar seus pressupos¬ tidamente entre enunciados sobre o “ ser ” e sobre o “ dever ser ” . Es¬
tos para alé m do plano metodológico e sem preocupar-se com a bus ¬ te ú ltimo ponto, é claro, já está também presente em Hume , com o
ca de quaisquer “ essências” não acessíveis à experiência empírica. É qual o pensamento de Weber também guarda outras afinidades mais
nesse ponto que, demais das eventuais inspirações neokantianas ou especí ficas. Apontarei somente uma , sempre com a ressalva de que
mesmo nietzscheanas , ganha sentido a idéia de que há pelo menos não se trata de raciocinar em termos de “ filiações ” ou “ influências ”
tanto de Hume quanto de Kant incorporado ao pensamento weberia- diretas , mas sugerir que determinados problemas relevantes para o
no ( Jonas, 1964: 34). entendimento de Weber podem ser descritos proveitosamente com
“ A razão enquanto tal não prescreve qualquer forma de agir. referê ncia à orientação classicamente representada por Hume.
Ela pode mostrar , mediante um conhecimento de causas e efeitos, O ponto em quest ão diz respeito à atenção que ambos os autores
que o resultado de agir de uma certa maneira será este ou aquele; ain ¬ dedicam às caracter ísticas da ação individual , num contento de ênfa ¬
da persistirá a quest ão sobre se, ao cabo do raciocí nio , o resultado se nos processos particulares e de desconfiança diante das generaliza ¬
será aceit á vel ou não para a inclinação humana . A razão é um guia ções sumá rias, mas sobretudo àquilo que concerne à idéia da regula ¬
para a conduta na estrita medida em que mostra quais meios atingi ¬ ridade das condutas humanas. Em ambos os casos a concepção da
r ão uma meta desejada ou como pode ser evitado um resultado desa ¬ tendência humana para persistir numa orientação da conduta torna ¬
gradá vel ( ...) ” . da habitual desempenha papel importante, tanto no trato com ques¬
A citação acima , com algumas pequenas adaptações, poderia tões substantivas (como a da estabilidade da vida social) como na or ¬
apresentar -se como uma descrição sumá ria do papel da ciência social ganização do pró prio esquema analí tico. No caso de Weber isto se
segundo Max Weber , tal como ele o expõe na introdução ao seu en- manifesta na sua idéia de que o conhecimento de regularidades empí -
128 — Caráter, destino e história Caráter, destino e história — 129
ricas da conduta ( o conhecimento "nomol ógico ” ) é importante para porque permite formular hipóteses acerca da sua influ ê ncia causal
a explicaçã o hist ó rico-social , e constitui mesmo o fundamento da sobre o modo como se apresentam contemporaneamente certos \ alo ¬
aplica çã o do conceito de " possibilidade objetiva ” , pela qual se bus ¬ res a que o pesquisador adere ; em suma , trata -se de examinar a res ¬
ca "apreender conex ões causais reais mediante a construçã o de cone ¬ ponsabilidade hist ó rica do tipo em face daquilo que importa ao pes ¬
duzido (o que n ã o implica que as formas das suas combinações e da do , por isso m ésmo , a um destino que , no essencial , permanece cons ¬
sua manifestação emp í rica sejam suscet í veis de an á lise exaustiva ). O tante ” ( Benjamin , 1959: 49 ) . Ora , se transcendermos a experi ê rlcia
essencial , em Weber , é que o conhecimento "nomol ógico ” refere-se vivida e tomarmos esse algu é m estritamente pelo que tem de caracte ¬
a regularidades observadas que sã o insuficientes para estabelecer leis r í stico, isso equivale a tom á - lo como tipo. Nada fazemos , ent ã o , se ¬
gerais mas ensejam infer ê ncias plaus í veis , que assentam na probabi ¬
n ã o definir univocamente e fixar sua experi ê ncia , isto é , entend ê- la
lidade de se repetirem as conexões entre motivos e condutas j á reite ¬
como destino . "O tempo do destino é um tempo fixo , e disso adv é m
radamente observadas . essa transpar ê ncia das coisas que favorece a tarefa dos videntes ” ,
No geral , contudo , a posi çã o básica de Weber acerca dessas diz Benjamin ; e favorece també m a tarefa dos soci ólogos weberia -
quest ões é clara . Ele est á perfeitamente disposto a pagar o preço de nos .
operar com constru ções explicitamente fict ícias , desde que isso crie O tipo ideal sociol ógico refere-se , contudo , sempre a indiv í ¬
condi ções para tornar cognosc í veis e control á veis determinados seg ¬
duos , sejam eles agentes ou constelações hist ó ricas. Mas , é nesse
mentos da realidade emp í rica , quando nada porque esse , mais que a ponto que o termo “ indiv í duo ” revela sua ambigiiidade enganadora ,
vocação, é o destino do homem de ci ê ncia. Dificilmente seria possí ¬
pois o pr ó prio do tipo é tornar impessoal a ordem de fen ô menos a
vel associar um exame do pensamento de Weber à discussão do ceti ¬
que se refere, e isso ele també m compartilha com a noçã o de destino .
cismo, como costuma ocorrer com relação a Hume. E essa diferen ça “ O sujeito do destino permanece indetermin á vel ” ( Benjamin , 1965 :
est á presente, entre outros pontos , no papel de relevo que ocupa no 72 ) .
esquema weberiano a id éia de destino, que exprime a raiz ética do A identificaçã o destino-car á ter assim concebida , que Walter
seu pensamento, em contraste com a .postura mais propriamente es¬ Benjamin critica , vincula atributos dos sujeitos a um veredito sobre
t ética de Hume (que se manifesta na sua concepção da hist ória como eles ; ambos são despojados de qualquer conte ú do moral , sã o como
espet áculo) e que afinal est á na base da atração que ele exerce sobre o ' que naturalizados. As qualidades dos sujeitos sã o mat é ria de consta ¬
construçã o é genético : tais ou quais traços isolados da realidade são lações que liga o homem ao erro ” — e examinemos a sua expressã o
mais pura. As com édias de um Moli è re , por exemplo , mostram - nos
selecionados e associados no tipo na estrita medida em que a ordem
de fenô menos a que ele se refere é significativa para o pesquisador , isso em sua plenitude . O que ocorre ? Continua o car á ter amoral , ou
130 — Caráter, destino e história Caráter, destino e história
— 131
mes que se tecem ao redor do seu erro ( ... ) , o car á ter traz a resposta do gê¬ ¬
nio. Ao complexo sucede o simples , o factum torna-se liberdade. O car á ¬ ta-se dessa conjugação de opostos representada pela presen ça de
ter do personagem có mico n ão é o espantalho que os deterministas for ¬ uma “ ética da convicção ” e uma “ ética da responsabilidade ” em
jam ; ele é a tocha que ilumina a liberdade dos seus atos. ” ( Benjamin , Weber .
1965: 76.) Enquanto instrumento caracterizador o tipo ideal não se con ¬
funde com conceitos generalizadores ou classificat órios . Ele particu ¬
Em seu ensaio , Walter Benjamin est á empenhado em distinguir lariza certas modalidades de ações com sentido ou de seus agentes
as ideias de car á ter e destino , em repô-las nos seus devidos lugares. portadores precisamente ao torn á -los “ an ónimos ” , de tal modo que
No tipo ideal , contudo, elas aparecem entrelaçadas e privadas de sua presença , ou ausência , sem deixar de ser singular , possa ser loca ¬
quaisquer motivos éticos ou religiosos. O que faz com que o conceito lizada pela pesquisa empí rica em tais ou quais manifestações da rea ¬
sociol ógico de tipo , tal como o é concebido por Weber, vincule , nu ¬
lidade hist órico-social. Nesse sentido, ele exprime também o esforço
ma constru çã o un í voca , a id éia da liberdade do sujeito, ao caracteri - de Weber para operar uma s í ntese , mais do que uma contraposição
zá-la unilateralmente para ressaltar seus traços mais caracter í sticos , e r ígida , entre um conhecimento individualizador e um generalizador
a da trama inexorá vel do seu destino? É o procedimento genético en - ¬
no dom í nio hist ó rico-social . A constru çã o do tipo pressupõe um cer ¬
volvido na sua constru ção. Na medida em que apenas se tornam sig ¬
to grau de conhecimento de uma realidade espec í fica , para a qual ela
nificativos os traços individuais (e pouco importa que se trate do fornece os elementos básicos , além de demandar , em maior ou me ¬
neos nã o questionados , seus desdobramentos no tempo já est ã o pre- “ Os tipos ideais são constru ídos com a ajuda de regras da experiê ncia his ¬
figurados na sua pr ó pria constru ção. Isso persiste mesmo quando o | t ó rica , que são usadas como proposições heur í sticas . Por exemplo , a teo¬
propósito em jogo é expl í citamente o de formular hipóteses acerca ria da monarquia de Weber inclui a observação de que os monarcas , ao
dessas relações causais , pois assim apenas se torna condicional e su -
J longo do tempo, desde a Mesopotamia antiga at é a Alemanha imperial ,
| t ê m -se preocupado com o bem -estar dos seus s ú ditos, porque necessita ¬
jeita a met ódica verificação emp í rica a relaçã o estabelecida . 1 vam do apoio dos estratos inferiores contra os superiores ; entretanto , es¬
O conceito de tipo ideal incorpora , na sua expressão mais pura , 1 ses estratos superiores , a nobreza e o clero , normalmente mant ê m -se im ¬
as ambig ü idades do empreendimento weberiano. Ele combina , num I portantes para a manuten ção do poder e legitimidade mon á rquicos . Em
“ todo n ã o contradit ó rio ” , a concepçã o da liberdade e da autonomia consequ ê ncia , a estabilidade da monarquia repousa em parte na habilida ¬
do sujeito com a de que suas ações t ê m consequ ê ncias que poder ã o de do chefe em equilibrar ambos os grupos. É a partir de observações co ¬
questionar pela base esses mesmos atributos . Vale dizer , toma o indi ¬ mo essas , que permitem a especificação necessá ria , que emerge o tipo
viduo como “ car á ter ” , mas o faz mediante um procedimento que ideal do patrimonialismo . ” ( Roth , 1968: 33.)
desde logo o vincula ao seu “ destino ” . Isso permite lembrar , tam ¬
Uma vez constru í do o tipo , ele pode ser aplicado a todos os casos em
bé m , que dadas as premissas gerais e a postura básica de Weber , o que fen ô menos compar á veis àqueles que comandaram sua constru
conceito de tipo ideal é necessário ao seu esquema , mas ao mesmo
¬
í>
ção se apresentam . Desde , naturalmente , que se considere que cada
tempo o particulariza. O equ í voco de Weber , nesse ponto , foi imagi - „
132 — Caráter, destino e história Caráter, destino e história — 133
um desses casos será, por sua vez, individual e particular. Por essa Como vimos,' no entanto , Weber é suficientemente tributário de
via Weber tenta superar os impasses entre o historicismo e o positi ¬ uma concepção positivista sobre a unidade do método cientí fico para
vismo. insistir , no ensaio sobre a objetividade, em que a ciência é constitu í ¬
Significa isso que os tipos constru ídos por Weber , ou em conso¬ da não pela articulação objetiva entre “ coisas” , mas pela articulação
nância com seu método, são a-históricos? Seguramente não. É verda¬ conceituai entre “ problemas” . Pode-se, ent ão, pensar numa ciência
por exemplo — —
de que os tipos ideais propriamente sociológicos os de dominação,
sã o relativamente vazios de conte údo hist órico, no
histórico-social unificada como conjunto de problemas? Não vejo
como, se os próprios fundamentos para a formulação dos problemas
que se diferenciam dos tipos caracterizadores de “ individualidades e dos conceitos são heterogéneos e est ão em constante mudança. Na
históricas” — —
a ética protestante, por exemplo em que o pr ó prio
conteúdo é historicamente saturado. Para todos os casos, porém , va¬
realidade, nem mesmo no plano estritamente metodológico Weber
tem como sustentar a idéia da unidade da ciência histórico-social ,
le a consideração decisiva de que a natureza histórica do tipo ideal contraposta à idéia da multiplicidade de histórias. Se o faz, é para
não est á no seu conteúdo, mas no seu próprio procedimento de cons¬ não cair num relativismo irracionalista , mesmo que à custa de hesita ¬
trução. Sua historicidade intrínseca reside no seu car áter genético, ções e incongruências . Convém ressaltar que não estou empenhado
que lhe é essencial , como vimos. É verdade também que o pró prio aqui em contrapor a Weber esquemas que lhe são alheios; interessa-
modo de exposição adotado por Weber (ou pelos responsáveis pela me apenas acompanhar sua posição até o fim . E ele conhece muito
publicação de suas obras póstumas) possa por vezes sugerir o contrᬠbem os riscos que corre, pois dirige-se explicitamente àqueles que
rio. Com efeito, nas passagens sistemáticas, sobretudo as introduzi ¬ querem fazer ciência , que compartilham à sua maneira os valores da
das de Economia e Sociedade, pode-se ter a impressão de que Weber verdade e da razão. Mas ele não tem nenhuma garantia contra o peri ¬
estaria 'buscando formular um sistema de tipos puros de ação e de go do isolamento. Talvez daí advenha , em parte, sua preocupação
dominação, com validade geral; em dado momento ele próprio le¬ constante com a coerência. Diante do risco, percept ível já na sua
vanta a idéia de uma “ casuística ” , que implicaria ir tratando, passo época, de um isolamento real nas suas posições, ele age conforme a
a passo, de todos os casos possíveis, para logo abandoná-la. expressão de Lutero sobre o homem solitá rio, que “ sempre deduz
Ambas essas idéias, contudo, entram em choque direto com as uma coisa da outra e pensa tudo até a sua mais amarga conclusão”
premissas básicas do seu pensamento , no tocante ao conhecimento (Arendt , 1960: 477).
cient í fico. Com referência à primeira ainda é possí vel fazer uma con ¬ Na realidade, o modo de exposição dos tipos puros em Econo¬
cessão, e admitir que um pesquisador individual, ou um conjunto de¬ mia e Sociedade que, na parte introdutória, segue a forma da defini¬
les com a mesma orientação, pudesse elaborar um esquema tipológi ¬ ção, induz facilmente a equ ívocos graves. Muitos já foram levados a
co fechado e exaustivo, entre outros possí veis, e não é imprová vel operar com os tipos weberiahos em suas pesquisas empíricas como se
que algo assim estivesse na mente de Weber , ao realizar a sua obra. eles fossem modelos (tanto no sentido de exemplar como na sua
Feita essa ressalva , as objeções permanecem . Primeiro, porque o acepção analítica), tomando-os mesmo em numerosas ocasiões co¬
fundamento valorativo da seleção do objeto, num universo de valo¬ mo se fossem paradigmas já prontos para utilização sobre qualquer
res equivalentes e irreconciliáveis, torna inconcebível a articulação -
objeto e livres de pressupostos. No limite , questiona se a própria le¬
da multiplicidade de tipos possí veis caracterizadores desses objetos gitimidade do uso de tipos, com base numa análise em que esse as¬
em termos sistemáticos, pois eles são essencialmente heterogéneos pecto n ão é devidamente levado em conta ( por ex. , Blau, 1963: 306-
quanto ao princí pio de seleção. Tentar conjugá-los num sistema 316).
abrangente permitiria , ao máximo, reproduzir no plano analitico as É preciso, contudo, ter em mente que, se os tipos ideais, incluin¬
pugnas entre valores presentes no mundo histórico-social concreto. do o mais notório que é o de dominação burocr ática, já aparecem
Quanto à “ casuística” , é evidentemente incompat í vel , salvo como prontos na obra sociológica de Weber , isso n ão deve levar-nos a es¬
tarefa infinita, com as id éias weberianas sobre o car áter inesgotá vel quecer que para tanto eles tiveram antes que ser constru ídos. E cons-
dos nexos no universo empí rico em cada momento e sobre o caráter truidos.com base em premissas que os tornam inerentemente hist óri ¬
histórico do próprio conhecimento, que se redefine à medida que no¬ cos, no sentido forte do termo, dado pelo seu caráter genético. Por
vos problemas e perguntas vão emergindo. outro lado, há uma distinção fundamental a ser feita neste ponto,
134 — Caráter, destino e história
sem a qual tanto o cará ter genético do tipo quanto a relação entre
conceito e realidade em Weber ficam ininteligí veis. Pois, o fato de o
tipo ser intrinsecamente hist órico na sua construção não implica que
ele se confunda com a hist ória empí rica. É preciso distinguir o decur ¬
so histórico/empí rico, do qual se extraem os traços que comporão o
6
tipo e ao qual este se aplica como instrumento de pesquisa , da histo¬
ricidade do próprio tipo. Esta só se realiza na sua relação com outra
historicidade, a do pesquisador . É nessa segunda relação que se ma ¬
nifesta a natureza genética do tipo, na medida em que ele é construí ¬
As armadilhas da coerência
do e aplicado tendo em vista a clara formulação de problemas que
sã o significativos para o pesquisador , no momento e no contexto em
que ele se move. É essa distinção que fundamenta a diferença mais
profunda estabelecida por Weber neste particular , que está entre a
sucessão empí rica dos eventos e a sucessão genética típico-ideal; sem ¬ De modo geral, portanto, fazer sociologia “ weberiana ” n ão se reduz
pre considerando-se que o termo “ genético” não se refere aqui à gé¬ a fazer a sociologia de Weber. Não é simplesmente usar os seus tipos
nese do próprio tipo, mas ao papel que lhe pode ser imputado na gé¬ e alguma versão do seu método (salvo, no primeiro caso, se o pesqui¬
nese de situações ou eventos significativos nos quais possa figurar sador assumir explícitamente posição idêntica à de Weber em face da
como fator causal. Em suma, genético como atributo do tipo ideal realidade estudada e demonstrar que isso é empiricamente válido). O
deve ser entendido como causalmente significativo; e isso é equiva¬ requisito básico, no caso, é ter condições e disposição para construir
lente a historicamente relevante; e, por fim , a relevância histórica é os tipos adequados às situações cujo conhecimento se procura e in ¬
definida em termos da historicidade do pesquisador. A distinção bá ¬ corporar , na sua aplicação, as propostas metodológicas fundamen ¬
sica proposta por Weber transparece, por exemplo , quando ele escre¬ tais de Weber . Surge por vezes na literatura a crítica a Weber no sen ¬
ve, numa passagem da sua apresentação das “ categorias sociológicas tido de que seu tipo ideal de dominação burocrá tica é demasiada ¬
fundamentais da vida económica ” , em Economia e Sociedade, que, mente calcado nas condições dos serviços pú blicos prussianos da sua
no estádio ainda preliminar de elaboração de um arcabouço de con ¬ época e que isso diminui ou mesmo elimina sua utilidade para o estu ¬
ceitos uní vocos indispensáveis para a pesquisa em que a análise se en ¬ do de condições diferentes. Mas , supondo que seja o caso, isso não é
contra naquela passagem , “ é evidente que não apenas a sucessão em¬ uma cr ítica a Weber e sim àqueles que imaginam ser possível , ou até
-
pírico-histórica como também a sucessão típico genética das formas
[de ação social orientada economicamente] não são tratadas de mo¬
necessário, tomá-lo ao pé da letra. São numerosos os equívocos en ¬
do satisfatório” ( Weber , 1972; 63, grifo meu ).
contradlos tanto nas tentativas de aplicação dos tipos ideais à pes¬
quisa empí rica como em críticas e comentários a seu respeito. No
Entre as premissas da tipología weberiana é essencial a da ênfase mais das vezes, eles derivam da insuficiente consideração pelo cará¬
na racionalidade da ação e no processo de racionalização como ca¬ ter construtivo e genético do tipo; ou , em outras palavras , esquece-se
racterísticas do universo cultural europeu , vale dizer , do mundo de que, para Weber , n ã o são as qualidades objetivas de uma realidade
Weber . Basta considerar isso para perceber que at é mesmo os tipos já dada que comandam a constru ção e utilização dos tipos , mas os
aparentemente mais genéricos e vazios historicamente
tipos ideais de ação social — — os quatro
são construidos rigorosamente em ter ¬
interesses especí ficos do conhecimento, em condições e com pressu ¬
postos também especí ficos. Três exemplos, sumariamente apresenta¬
mos dessa premissa. Eles se articulam , com maior ou menor afasta ¬ dos, são: (1) supor que apenas um ú nico tipo possa ser construído
mento, em torno do núcleo constituído pela ação racional com refe¬ para cada objeto , esquecendo-se de que, afinal , o tipo é constitutivo
rência a fins. E por que somente essa construção seria possível? do objeto e de que, para cada segmento da realidade, tantos tipos
podem ser construídos quantos forem os interesses da pesquisa en ¬
volvidos; (2) operar com um tipo isolado, esquecendo-se de que se
trata de instrumento caracterizador e comparativo ú til para formular
hipóteses e de que isso implica operar com pelo menos dois deles, pa-
(
136
— As armadilhas da coerência
lidade’ dos modos de legitimação em relação às perenes lutas pelo nais para cada caso, são contraditórias quanto ao seu sentido mas são si ¬
poder entre os dominantes e o staff (e parcialmente também os domi ¬ multaneamente ‘vigentes’ empiricamente” . ( Weber , 1913: 445.)
nados) ” ( Roth , 1976: 312). Essa tensão interna ao próprio processo No entanto, as dificuldades suscitadas por essa id éia de sujeito
de dominação/ legitimação pode, contudo, ser interpretado como vêm à tona quando consideramos os seus estreitos v í nculos com as
mais propício à sedimentação que à disrupção das relações sociais .
noções de compreensão e de sentido Na realidade , Weber jamais
que sustenta. conseguiu dar conta de maneira inequ í voca desses conceitos, supos-
O mesmo tema permite examinar por outro ângulo a questão do tamente centrais na sua aná lise. O mais claro sintoma disso é o cará ¬
car áter hist órico dos conceitos weberianos. Tomemos os seus tipos ter inconclusivo e logicamente viciado por um raciocí nio circular da
ideais de dominação: são a-históricos? Visivelmente não, a despeito sua definição de sentido, no in ício de Economia e Sociedade. “ Por
de serem relativamente vazios de conte údo, pois não são indepen ¬ sentido entendemos aqui o sentido visado e subjetivo do sujeito da
dentes entre si no que diz respeito à sua construção e suas relações ação.. .” ; e segue-se uma enumeração de formas de manifestaçã o de
m ú tuas não se reduzem ao plano sistemático-formal. Eles não são sentidos , sem que o termo mesmo seja melhor examinado. Procedi ¬
concebidos como equivalentes. Um deles é dominante em face dos mento semelhante é realizado com referência à compreensão , que de
demais, tanto porque estes são constru ídos em função dele como .
resto não é claramente distinguida da interpretação Num autor rigo¬
porque esse predom í nio é concebido como se exprimindo na forma roso como Weber isso d á o que pensar. O problema , do qual essa im ¬
de uma tendência efetiva no interior de uma hist ória que precisamen ¬ precisão é um sintoma , é, em termos sumários, o seguinte: dadas as
te ele permite caracterizar . Trata-se da dominação racional-legal, condições examinadas antes, e sobretudo o papel nuclear reservado
aquela que particulariza a “ cultura ocidental ” . Isso tem uma conse¬ para a dimensão racionalizada dos processos, o procedimento meto¬
quência importante. É que, nessa linha de raciocí nio, fica patente dológico associado às idéias de sentido e sujeito , ou seja , a com ¬
que a idéia de dominação é responsável não somente pela ordem preensão, tende a ficar irremediavelmente comprometido. Isso por ¬
substantiva dos eventos no esquema weberiano como também pela que, para o caso puro de ação racional referente a fins, é perfeita¬
pró pria ordem lógica desse esquema. mente plausí vel o argumento de que, conhecidos os fins, os meios e
É na ênfase na racionalidade e no processo de racionalização as máximas de ação correspondentes , o sentido mais adequado da
que reside a fraqueza , mas também a força do pensamento weberia¬ ação pode ser derivado inequivocamente sem passar pelo sujeito,
no, como revela o seu exame imanente. Cumpre, ent ão, completar n\esmo porque só há um ú nico curso de ação que maximiza os resul ¬
são categorias fundamentais do esquema analí tico weberiano. No in ¬ quema weberiano , mas sugere claramente o modo pelp qual suas
terior do seu quadro analítico elas estão estreitamente articuladas constru ções analí ticas se contrapõem , em suas implicações ú ltimas,
através da construção de tipos, mas, se tomadas cada qual de per si, aos valores a que ele adere. Com efeito, só se justifica a exigência à
revelam-se as diferenças de papéis que desempenham no conjunto. compreensão quando a margem de autonomia do agente não permite
Se a dominação pôde ser identificada antes com a figura do “ desti ¬ outra via mais direta de acesso a hipóteses adequadas sobre os seus
no” , então o sujeito se apresenta como a tradução para o plano ana ¬ cursos de ação. Lembro que Weber associa a racionalidade da açã o à
lítico da idéia de “ car áter ” . Em outras palavras: se uma exprime a liberdade . Por que, ent ão, no final, a racionalização da ação acaba
visão “ realista” e “ desencantada ” de Weber , a outra incorpora os imprimindo rumos un ívocos às linhas de conduta dos agentes, mes¬
valores básicos aos quais adere, sobretudo os de autonomia e liber¬ mo dentro do esquema weberiano? A resposta mais plausí vel é a de
dade. Já vimos que a noção de sujeito-agente é indispensável no es¬ que isso resulta da sua concentração na ação racional de caráter ins¬
quema weberiano, porque def íne a ú nica entidade na qual os diver ¬ trumental, voltada para a eficácia de uma relação entre meios dados
sos sentidos possí veis nas diferentes esferas de ação se encontram e se e fins não questionados; ou seja , da racionalidade formal. Por outro
relacionam . É mesmo fundamental que lado, é verdade que Weber também fala de uma racionalidade mate ¬
“ a ação real de indivíduos pode ser orientada com sentido subjetivo con ¬ rial, que abrange o tratamento dos fins, mas essa passa para posição
forme várias ordens que, conforme os há bitos do pensamento convencio ¬ secund á ria no decorrer da sua obra , salvo na idéia de que, no dom í-
140 — As armadilhas da coerência As armadilhas da coerência — 141
nio da ação orientada economicamente , é imposs í vel incrementar si ¬ ca . Weber combateu com todas as forças , sem ser ouvido , a extensã o
multaneamente ambas essas formas de racionalidade . Temos ai a da guerra submarina pela Alemanha , durante a 1 Guerra Mundial ,
“ irracionalidade básica e inexor á vel da economia ” ( Weber , 1972: advertindo sempre que isso acabaria envolvendo os EUA , o que seria
60) que reforça , para Weber , sua polê mica com o socialismo . Isso desastroso para a causa alem ã . Quando , no entanto , soube que o fa ¬
não impede que muitos autores , a começar pelo texto cl ássico publi ¬
to que temia estava consumado , seu coment á rio foi : " Ent ã o , agora è
cado em 1932 por Karl Loewith sobre W'eber e Marx ( Loewith , o destino , e com ele n ós nos arranjamos ” . Ou seja , enquanto esta ¬
1970) , tenham enxergado na tensão entre essas duas modalidades de mos envolvidos num processo em curso , agimos , criticamos e com ¬
racionalidade a fonte da dinâ mica da aná lise weberiana , o que , no batemos , mas , diante dos fatos consumados , resignamo- nos. Em fa ¬
meu entender , é insuficiente para caracterizá-la . ce disso , n ão seria o caso de perguntar se , na l í mpida separação que
No tocante à noção de compreensão , cabe assinalar que, al é m Weber faz entre ci ê ncia e ação pr á tica , nã o caberia à ci ê ncia o dom í
¬
do seu papel estritamente anal í tico , ela desempenha algo como um nio da resignação , do conhecimento distanciado dos fatos que , pela
papel ideol ógico no pensamento weberiano. É que, apesar de todos pr ó pria natureza do esquema anal í tico adotado, est ã o, sen ã o consu ¬
os problemas e ambig ü idades envolvidos no seu uso , é nela que se ex ¬
mados , pelo menos prefigurados ?
primem da maneira mais profunda os valores básicos que informam Por outro lado, Jaspers tem razão quando diz que Weber fra ¬
as concepções metodológicas de Weber , sobretudo a id éia de que os cassou no seu empreendimento total , mas que se trata de um malo¬
agentes são sujeitos, vale dizer , entidades aut ó nomas capazes de in ¬ gro fecundo. A prova disso est á num aspecto do seu trabalho cient í ¬
que está em jogo não é a subjetividade dos agentes mas unicamente a res , valemo- nos de um “ conhecimento nomol ógico ” , referente a cer ¬
referência a sujeitos (aqui o raciocí nio é análogo ao da distinção en ¬ tas regularidades da ação observ áveis ao longo do tempo. Com isso
tre valorização e referência a valores ). Serve també m para marcar a -
ele procura assegurar a possibilidade geral de fazer se ciência, ao im ¬
adesão à idéia de que esses portadores são, afinal , sujeitos, e n ão pedir a confusão entre a idéia de car á ter não determinado dos fenô¬
simples suportes empí ricos de sentidos analisá veis sem consideraçã o menos com a de simples acaso. O que desejo apontar , em relação a
pelas suas vontades, intenções e opções. Weber tinha plena consciê n ¬ isso , é que por essa via alcan çamos a idéia mais importante de todas
~
cia de que, com o avanço do processo de racionalização , os sujeitos em Weber , aquela que permite articular todas as demais e reduzi-las
convertem-se cada vez mais em meros portadores de sentidos e suas às suas devidas proporções no conjunto. É que essas regularidades
opções cada vez mais definem-se univocamente e de modo indepen ¬
ocorrem no interior de esferas especí ficas da ação social . Avançando
dente deles, nas situações em que est ão envolvidos. Mas , sua postura mais um passo, chegamos à idéia, totalmente decisiva em Weber , da
critica básica em relação a isso acaba exprimindo-se nas ambig ü ida ¬ autonomia das esferas da ação , tomando-se o termo autonomia no
des das suas formulações e conceitos. seu sentido exato , de legalidade própria (que é, aliás, a tradu ção
É também em boa medida disso que deriva o cará ter dualista do mais aproximada do termo originalmente usado por Weber). Vale
seu pensamento, que opera sistematicamente com pares opostos: ra ¬ dizer , cada esfera da ação desenvolve-se, enquanto processo, confor ¬
cional / não-racional, cotidiano / extra-cotidiano e assim por diante. me sua lógica imanente particular, ao mesmo tempo que entra em
Weber est á consciente dos dilemas com que seu pensamento se de ¬
contato e estabelece relações com as demais, através dos sujeitos in¬
fronta , mas assume essas dualidades at é o fim , inclusive no tocante à dividuais .
oposiçã o entre conhecimento cient í fico e ação pr á tica . Isso introduz Não h á condições aqui para examinar passo a passo a id éia; isso
uma tensão constante e fecunda no seu pensamento e, ao mesmo exigiria um estudo especial . Tenho que limitar-me a apontar algumas
tempo, sugere muito acerca da sua postura básica enquanto cientista de suas implicações.
e homem de ação, preocupado com os problemas do seu tempo. Um Os textos de Weber em que essa id éia é mais intensivamente ex ¬
episódio narrado por Karl Jaspers pode ilustrar isso de forma sint éti ¬ plorada são os da Sociologia da Religião, a partir da Ética protestan-
142 — As armadilhas da coerência As armadilhas da coerência — 143
te e o espirito do capitalismo, e as refer ê ncias mais explicitas qualquer apreensã o ou mesmo descriçã o exaustiva . Assim , ter o do¬
encontram -se no ensaio sobre “ Orientações e etapas da rejei ção reli ¬ m í nio do sentido das pr ó prias ações singulares (ou poder t ê-lo: a ri ¬
giosa no mundo” . Não admira que assim ocorra : é nesses estudos gor , isso só é plenamente acess í vel ao agente t í pico-ideal ) envolve
que Weber examina da maneira mais minuciosa e consequente o pro¬ uma participação na trama significativa da hist ória , mas n ão implica
blema das afinidades ou tensões entre sentidos da ação em esferas di ¬ fazê-lo conscientemente. H á um sentido na açã o , mas n ã o h á um
ferentes da exist ência dos sujeitos . Para tomar uma passagem , entre sentido imanente à hist ó ria , n ão porque ela seja insensata ( assim for ¬
muitas possí veis: mulada , esta quest ão nem se coloca para a ci ência ), mas porque n ã o
“ A racionalização e sublimação conscientes das rela ções do homem para
tem um sentido ú nico e inequ í voco . Os m ú ltiplos sentidos da hist ória
com as diversas esferas da propriedade de bens exteriores e interiores , reli
¬
constituem -se atr ás das costas dos agentes , a partir de ações que para
giosas e seculares , presssionaram no sentido de tornar conscientes as au ¬
eles esgotam seu significado em suas realizações singulares. Entre
tonomias [legalidades pró prias] internas das esferas singulares pelas suas sentido da ação e sentido da hist ória há um hiato insuper á vel ; e , co ¬
consequências , permitindo que entrassem naquelas tensões mútuas que mo não h á sentido sen ão na ação efetiva , n ão há como realizá -lo no
estavam ocultas para a primitiva relação ingénua com o mundo exterior . ” plano totalizador de uma hist ória da humanidade, pois esta simples ¬
( Weber , 1972a: 541 -542 . ) mente n ão existe ( nem vale argumentar que possa vir a existir , pois
O quadro que se desenha , à luz dessas idéias de autonomia , é o não cabe à ci ê ncia propor utopias salvo como instrumentos metodo¬
de linhas da ação com sentido , cada qual correspondendo a uma es¬ lógicos). O que existe efetivamente é um fluxo de eventos recortado
fera da exist ência hist órico-social , que seguem suas legalidades pró¬ internamente por ordens heterogéneas de sentidos. Enfim , se quiser ¬
prias , sua lógica interna , mas que n ão sã o indiferentes umas às ou ¬ —
mos falar de hist ó ria e Weber evitava fazê-lo com qualquer cono¬
tação substantiva , e preferia falar em “ decurso das coisas” , “ acon ¬
tras naquilo que realmente interessa , que é a orientaçã o das ações
dos sujeitos. É nele que elas se cruzam , aproximando-se ou tecimentos no mundo ” ou termos semelhantes, procurando sempre
repelindo-se . É em termos delas que podemos estabelecer relações evitar a confusão entre a hist ória como ordenação conceituai de
uma certa ordem de eventos, como análise histórica , e o pr óprio de
que Weber , à falta de melhor termo , chama de causais mas que são
—
¬
bem melhor caracterizadas por uma expressão que ele também usa curso empí rico dos fenômenos há tantas histórias quanto valores
— significativamente, tomada da literatura e não da bibliografia fi ¬
losófica ou cient í fica — e que é a de afinidades eletivas.
ú ltimos e equivalentes que fundamentem a atribuição de import â ncia
a determinadas configurações de eventos e situações. Isso, no entan ¬
A contrapartida disso, fundamental mas só implicita em Weber , to, n ão conduz sem mais ao relativismo, porque , embora n ão haja
é a premissa da unidade do sujeito. Sem ela a visão atomística dos crit érios universalmente válidos e objetivos para hierarquizar os va ¬
——
eventos no universo hist órico-social empí rico conduziria a um irra ¬
lores e , portanto, as m ú ltiplas histórias que eles permitem articu ¬
cionalismo incompatí vel tanto com as quest ões de m étodo como com lar os há subjetivos: eles são hierarquizados praticamente por ho ¬
os princí pios ú ltimos que preocupavam Weber . O recurso aos tipos mens concretos , que sustentam valores específicos e combatem em
ideais de ação com sentido pressupõe o caráter dividido do sujeito- seu nome, e buscam mesmo tornar efetivamente dominantes. Para
agente; mas , o estabelecimento de relações entre eles e o recurso à Weber , a multiplicidade dos valores não conduz à indiferença relati ¬
compreensão pressupõem a sua integridade, embora tensa e mesmo vista, mas exacerba o compromisso com a luta por aqueles a que se
contradit ória. Dificilmente haver á caso mais n ítido de tradução dos adere e impõe aos agentes sociais concretos uma carga tanto maior
dilemas de uma época e de uma formação social para o plano concei ¬ de responsabilidade (outra idéia central nele) pelas conseqiiê ncias
tuai . dos seus atos.
A isso vincula -se a questão da autonomia como atributo básico
do sujeito . Na concepção weberiana o agente social é identificado sujeito
Assim , a autonomia do agente
— — ou seja, sua constituição em
não pode ser concebida como sendo conquistada na cons¬
com o conjunto das suas ações , de cujos sentidos é portador. Essas trução prática da história de todos os sujeitos, mas na luta com ou ¬
ações, tomadas cada qual de per si , são dotadas de sentido para ele tros agentes. Portanto , n ão pode haver autonomia generalizada ,
mas constituem , no conjunto de relações que estabelecem entre si nas emancipação do gê nero humano . A autonomia é um ponto de fuga ,
m ú ltiplas situações em que se realizam , uma rede significativa que um valor particular entre outros ( ao qual Weber adere e que informa
escapa ao seu alcance e que , nas suas inumer á veis conexões, desafia o seu pensamento , de tal modo que é imposs í vel usar o seu esquema
144 — As armadilhas da coerência As armadilhas da coerência — 145
anal í tico sem incorpor á-lo també m ) sem o qual n ão é poss í vel falar “ Nenhuma é tica econ ómica foi jamais determinada só religiosamente . É
em sujeitos. Sua realização, contudo, é problemá tica , devido à exte ¬ evidente que ela possui , em face de atitudes perante o mundo determina ¬
rioridade entre a ação significativa individual e o decurso coletivo e das por componentes religiosos ou outros de cará ter ‘interno’ ( nesse senti¬
tornado objetivo dos eventos. E é essa exterioridade que provoca o do do termo ). Mas , de todo modo a determinação religiosa da conduta de
descompasso entre as metas perseguidas pelos agentes individuais e vida també m se inclui como uma — bem entendido : somente uma das—
determinantes. da é tica econ ó mica . Esta mesma , por seu turno , natural
as efetivamente realizadas no decurso hist órico , naquilo que Weber ¬
duz Weber a reintroduzir a categoria de causalidade na aná lise dados. ” ( Weber , 1972a: 238- 239. )
hist órico-social , contra toda a herança kantiana , para a qual a id éia
de autonomia só é compat í vel com uma concepção teleol ógica da Nesses termos , é poss í vel propor algo que creio ser mais do que
ação , voltada para um “ reino dos fins ” livremente perseguidos. Fi ¬
um jogo de palavras. O pensamento de Weber est á centrado na id éia
nalmente, é a preocupação com não perder de vista , apesar de tudo, de uma sobredeterminação dos eventos e situações , sem qualquer de ¬
a id éia de autonomia que em boa medida est á na base das ambigiii- terminação final , geral ou un ívoca .
dades.do tratamento da causalidade por Weber . O aparente jogo de palavras envolvido nessa id éia de uma “ so-
Na realidade, a categoria de causalidade, tomada no seu sentido bredeterminação sem determinaçã o ” na realidade repousa numa dis¬
estrito de uma sequência linear e uní voca com validade universal , tinção conceituai importante . É que nos defrontamos aqui com duas
pouco tem a ver com o esquema analí tico weberiano. Para ele inte¬ acepções distintas de “ determinação ” . A primeira delas é compat í ¬
ressa saber como, em situações particulares, as legalidades pr ó prias vel com o esquema weberiano , na medida em que é pertinente a uma
das divêrsas esferas da ação se articulam para resultar numa orienta ¬
análise de natureza causal , na qual o termo determinado figura como
ção específica das ações de muitos agentes, e como essas configura ¬ efeito ou modo de expressão de um termo determinante que lhe é ex ¬
ções singulares podem dar origem a linhas de ação, a sentidos ou en ¬
terno, ou de vá rios simultaneamente, quando ent ã o ocorre a “ sobre-
t ão a valores novos , que por su á vez possam ser reincorporados na determinaçâo ” . A segunda , que é incompat í vel com ele, quando na ¬
dinâ mica das diferentes esferas da exist ê ncia hist órico-social . Por da porque tem como n ú cleo a id éia de uma totalidade determinada ,
exemplo: em que condições foi possí vel ao judaísmo antigo (que We ¬
est á associada à dialética marxista . Numa formulação muito sum á ria
ber toma como o n ú cleo histórico do “ desencantamento do mun ¬ ela pode ser definida como a especificação das diferenças no interior
do ” ) ou ao protestantismo ascético desdobrarem-se em significados e de um processo tomado como um todo, no qual um dos termos no —
orientações da conduta novas no conjunto da exist ência de m últiplos
indiv íduos? Nos estudos em que procurou responder a isso Weber
—
caso , o momento da produção figura como determinante na me ¬
dida em que necessariamente est á presente no interior do conjunto
utilizou sistematicamente sua id éia da autonomia , não dos sujeitos , | das formas também necessá rias assumidas pelas demais , passando
mas das diversas esferas da ação. Na realidade, para Weber as ações no entanto pela especificidade de cada qual; sendo que “ necessá rio ”
sociais não são nem contingentes nem univocamente determinadas , significa aqui que somente se realizam as formas adequadas à dimen-
nem tribut á veis a causas isoladas. Dada a presença decisiva da auto¬ I são determinante e que esta , por sua vez , não se realiza senão através
nomia das esferas de ação e a circunstância de que elas entram em dessas formas, e que o processo todo não tem como assegurar a sua
contato através dos agentes e em configurações sempre particulares , continuidade senão pelo retorno ao seu momento determinante. A
o curso efetivo dos eventos n ão é determinado somente pela legalida ¬
sugest ão, portanto , é que a id éia da autonomia das esferas da açã o
de pr ó pria da esfera em que ocorrem , nem por alguma determina çã o em Weber , associada à sua preocupação com a an álise causal , é emi ¬
sempre presente em ú ltima inst â ncia , nem muito menos por alguma nentemente compat í vel com a noção de “ sobredeterminaçã o ” con ¬
determinação inerente a alguma totalidade de que façam parte , mas forme a primeira das acepções acima , mas claramente elimina a pos ¬
pela conjugação conjuntural ( mas “ rotinizá vel ” nos seus efeitos ) e sibilidade de cogitar -se da “ determina çã o ” na segunda delas . É esse,
significativa de esferas de ação diferentes . É nesse espí rito que ele es
¬
aliás , o ponto básico em que Weber se opõe a Marx .
creve , nas páginas iniciais do seu estudo sobre a “ é tica econ ó mica Num texto recente encontra -se uma referê ncia a essa quest ã o ,
das religi ões mundiais ” ' que merece coment á rio. Nele , l ê-se que “ Miriam Glucksmann [em
146 — As armadilhas da coerência
As armadilhas da coerência — 147
seu livro Structuralist Analysis in Contemporary Thought ] aludiu à
possibilidade de que a noçã o estruturalista de sobredetermina çã o po ¬
aspectos “ vergonhosos ” de sua vida , quando poderia muito bem
deria ser simplesmente outro termo para descrever as explica ções fazê - lo se quisesse , e procura o “ div ã de Freud ” para tanto , nada ga ¬
multicausais de Weber ” ( Turner , 1977 : 12 ). Mas , como é sabido , a nhar á com isso do ponto de vista é tico , sustenta Weber numa carta
id éia de sobredeterminaçã o n ão é originalmente “ estruturalista ” , e na qual vetava a publica çã o de um artigo de um adepto de Freud nos
talvez valha a pena ir à sua fonte , ou seja , a Freud . Numa exposi çã o Arquivos para a Ciência Social , e da qual estou retirando os dados
de 1901 acerca do seu estudo sobre a interpreta çã o dos sonhos , da presente exposi çã o ( Baumgarten , 1964: 644-648; Mitzmann ,
Freud escreve: 1971 : 281 - 282 ).
Cada elemento do conte ú do [ manifesto ] do sonho est á sobredeterminado
Quanto à convergê ncia metodol ógica — na medida em que se
pelo material das id éias on í ricas [ que formam o conte ú do latente do so ¬
d á , pois n ão vou estender minhas considerações al é m desse ponto
o apoio mais direto para minha argumentaçã o consiste em que tanto
—
nho e somente s ão acessí veis à an á lise ) . Ele n ão se filia a um ú nico ele¬
mento dessas id éias mas a toda uma sé rie deles , que de modo algum preci ¬
na id éia freudiana de sobredeterminaçã o quanto na weberiana de au ¬
sam estar próximos nelas mas podem pertencer aos dominios mais diver ¬ tonomia das esferas da a çã o estamos diante de esquemas anal í ticos
sos da trama de id éias . O elemento on í rico é, no sentido exato , a represen ¬ preocupados com procedimentos de interpretação . Al é m disso , em
tação substitutiva no conteúdo do sonho para todo esse material d í spar . ambos encontramos a id éia de que esses motivos normalmente ( para
Mas , a an álise ainda revela uma outra faceta das relações complexas entre Freud , necessariamente ) n ã o est ã o presentes na consciê ncia dos su ¬
diocridade” , cujo lema é “ admite o que és e o que desejas ” e que por Creio que é nessa concepção que se encontra o cará ter especí fico
isso contrasta com a “ ética heroica ” defendida por Weber , pela qual do pensamento weberiano, e a id éia que permite articular os compo ¬
cada homem deve defrontar-se sempre com tarefas acima das suas nentes de suas aná lises , e não nos conceitos de “ compreensão ” , de
forças no cotidiano. Quem n ão tem condições para lembrar -se dos “ sentido ” ou mesmo de “ tipo ideal ” . Por outro lado, é inegá vel que
també m essa id éia é afetada pela ê nfase weberiana no processo de ra-
148 — As armadilhas da coerência As armadilhas da coerência — 149
cionaliza çã o, visto que ele se distingue precisamente por imprimir sua mas não são cient í ficas ; para fazer ci ência cumpre assumir essa . A
l ógica pr ó pria a todas as esferas da existencia , comprometendo , por ¬ ética da responsabilidade também tem vigê ncia no interior do dom í ¬
articulá -lo ao geral , que repele . Sua cr í tica cient í fica é metodol ógica ,
n ã o é do objeto nem o transcende . Da í a ê nfase na dimensã o do po ¬
ção sobre a autonomia da esfera de ação cient í fica — vale dizer , em
termos weberianos , daquela pertinente à ação orientada para o co¬
der em suas an á lises . O objeto particular apresenta-se assim e n ã o de
outro modo , igualmente poss í vel , porque h á uma for ça que o cons ¬
nhecimento racional e met ódico dos fenômenos — somente acentua
a circunst â ncia de que, como toda modalidade de ação social , tam ¬
trange a ser assim, e essa for ç a é social e també m particular : domina ¬
bé m o conhecimento cient ífico est á sobredeterminado; tanto mais
çã o , poder . Da í també m a contrapartida valorativa disso , no que quando ocorre em contextos institucionais definidos, como divisão
concerne à tomada de posi çã o extracient í fica , que é a negaçã o heroi ¬
de trabalho, quadros administrativos e tudo mais que diga respeito à
ca , individual , marca de adesã o à id éia de uma autonomia cuja reali ¬
dominação racional -legal , da qual é insepar á vel .
zação efetiva não se concebe em termos universais mas que n ão se Weber procurou sempre fazer frente ao grande dilema a que seu
admite ver sufocada no particular . Nesse contexto a ciê ncia é o do ¬
pensamento o conduzia : aquele entre a crítica que se traduz na açã o e
m í nio da resignaçã o , mas é preciso lembrar que , se ela n ã o pode a resignação que se traduz no conhecimento neutro nos seus resulta ¬
prescrever formas espec í ficas de a çã o , tampouco prescreve a resigna ¬ dos, vale dizer , dispon í vel para quaisquer fins. Talvez se possa sus ¬
çã o. Ela n ã o prescreve nada fora do seu dom í nio . Weber n ão quer a tentar que ele incorporava algo como o “ má ximo de consci ência pos¬
resignaçã o , mas també m n ã o quer abrir m ã o da racionalidade; e n ã o sí vel ” nos quadros do pensamento liberal - burguês da sua é poca , na
tem como conceber uma cr í tica racional com validade objetiva e ca ¬ qual ele apareceria como uma espécie de Maquiavel tardio, que enfa ¬
paz de ministrar diretrizes pr á ticas . Assim , a cr í tica racional fica tiza tanto mais a noção de virt ú quanto mais a de fortuna é substitu í ¬
confinada ao dom í nio do conhecimento. Cumpre, portanto , n ão ter da pela de destino. Ocorre que essa é poca ainda não está superada ,
ilusões quanto ao alcance da ci ê ncia e ficar atento para as lutas que no essencial , e portanto ele permanece atual, para quem se dispuser a
se desenrolam na arena dos valores e dos interesses inconcili á veis , assumir o desafio das consequências do seu estilo de pensamento.
n ã o para ficar inerte , mas para tomar posiçã o de maneira adequada . Creio que Weber apreciaria a formulação do poeta Novalis , de
Na realidade , a ci ê ncia n ã o prescreve nada salvo fazer ciência . A que “ um impulso absoluto para o terminado e o completo é uma
neutralidade valorativa do cientista enquanto tal n ã o significa subor ¬ doen ça , t ão logo se revela destrutivo e hostil contra o incompleto , o
dina çã o ao objeto dado nem indiferen ça ao móveis e às consequ ê n ¬ inacabado ” . Se sua obra ficou incompleta e permanece como um de ¬
cias do empreendimento cient í fico , mas implica uma tomada de po¬ safio, não compete a nós assumirmos uma doença contra a qual sem ¬
si çã o: aquela que é compat í vel com a ci ê ncia . H á outras poss í veis , pre lutou e que não é dele, mas do seu e do nosso tempo.
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Freyer , Hans, 34 Jellineck , Georg, 73, 74
Jevons, William Stanley, 68-70
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Gadamer , Hans-Georg, 27 30 Kant , Immanuel , 13, 23, 56-58, 60, Oliveira Filho , José Jeremias , de, Sombart , Werner , 34, 73
Gehlen , Arnold , 29, 30 61, 64, 126 XII Spengher, Oswald , 79
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Para além do bem e do ma! ( Nietz¬
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Park , Robert E . , 44
Giddens, Anthony , 78 Taubes, Jacob, 112, 113
Parsons, Talcott , 30, 31 , 33, 91 , 92,
Gide, André, 45 Landmann , Michael, 39 94 Tennbruck , Friedrich H . , 42 , 43 ,
Glockner , Hermann , 15, 23, 37, 57 Liefmann , Robert , 102 Plessner , Helmuth , 8
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Glucksmann , Miriam , 145 Limites da conceptualização na Poulantzas, Nicos, 116
Teoria geral do Estado ( Jellineck ) ,
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Toennies , Ferdinand , XI
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Tolstoi , L , 104
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-
Luhman , Niklas , 30 34 , 92 Turner , Bryan , 146
Habermas, J ürgen , 19, 32, 33, 56, Lukács , Georg , 6, 12, 37, 40, 45, Rammstedt , Otthein , 35
-
63, 64, 107 109 46, 104, 105 , 115, 136 Ranke, Leopold von , 10, 23 Veblen , Thorstein , 12
Halevy , Elie, 71 Lutero, Martinho, 17, 133 Regras do método sociológico, As Virchow , Rudolph , 11
Hamerow , Theodore S., 10, 11 ( Durkheim ) , 25
Hegel , Friedrich , 22, 56, 58, 64, Mach , Ernst , 12 Rickert , Heinrich , XII, 48, 51, Wagner , Adolf , 72
115-122, 125 Mandeville, Bernard , 69 55-65, 82, 98, 100, 101 , 102 , 108 Wagner, Richard , 3- 5
Heidegger , Martin, 28 Mann , Thomas, 4, 45 , 105 Ricoeur, Paul, 28 Walras , Léon , 68, 70
Heller , Erich , 103 Mannheim , Karl, 10 Rilke, Rainer Maria , 103 Weffort , Francisco C. , XIV
Helmholtz, Hermann von , 12 Maquiavel , 149 Roll, Eric, 69 Winch , Peter, 92 , 93
Hempel, Carl , XI -
Marcuse, Herbert , 100, 101 Roscher , Wilhelm , 67 , 68, 77- 79, Windelband , Wilhelm , 48 , 51-65 ,
Header , J.G. von , 23, 79 Marx , Karl, XI, 4, 8, 39, 78, 79, 81 , 88, 89 80
Hertz, Heinrich , 12 105 , 122, 136, 145 Roth , Guenther , 73, 89, 90, 131 , Wittgenstein , Ludwig, 93
Hirano, Sedi , 107 Mead , Herbert George, 44 138 Wolf , Kurt H . , 43, 45
História e ciência da natureza (Win- , Meinecke, Friedrich , 10 Runciman , W .G . , 74, 92 , 93 Wright Mills, Charles, 20, 113
delband ) , 51 , 54, 55 Menger , Carl, 68-72, 90
Hist ória e consciência de classe Merleau- Ponty , Maurice, 136
( Lukács), 6 Merton , Robert K . , 45
Hitler , Adolf , 72 Mestres cantores, Os ( Wagner) , 4
Honigsheim, Paul, 78, 104 Meyer, Conrad Ferdinand , 104
Hughes, H. Stuart , 15 Michels , Robert , 112