Você está na página 1de 3

50 anos semVargas

g H

nossa
ag o s t o 2004 30 31 ag o s t o 2004

CPDOC / FGV CPDOC / FGV

u Alexandre Fortes

Sul em chamas
Incêndios e quebra-quebras sacudiram Porto Alegre no dia
em que Getúlio morreu. Ao apontar o imperialismo como
responsável pelo seu suicídio, ele conseguiu a proeza de unir,
na mesma revolta, todas as correntes políticas de base operária nar suspendendo a sua execução em Minas Gerais. A partir das nove e meia, a “turba”, que segundo

O
O impasse se arrastou e, no Rio Grande do Sul, cin- observadores chegou a contar com cerca de 3 mil
O suicídio de Getúlio Vargas foi sentido O presidente reagiria a essa efervescência traba- co federações e 81 sindicatos gaúchos convocaram participantes, passou a atacar sucessivamente diver-
com particular intensidade pelos gaú- lhista, que desde 1953 tomava conta dos centros urba- para o dia 6 de julho uma greve geral que viria a al- sos alvos identificados como inimigos de Vargas, co-
chos. O ex-governador do estado, afinal, nos do país, com um movimento aparentemente con- cançar proporções inéditas, paralisando não apenas mo os jornais O Estado do Rio Grande (ligado ao
realizara até mesmo a proeza de unificar traditório. Num primeiro momento, cedendo às pres- a capital do estado, mas também cidades como Partido Libertador), Diário de Notícias (pertencen-
as facções políticas regionais – que desde 1893 já ha- sões empresariais, substituiu o ministro do Trabalho Santa Maria, Rio Grande, Pelotas, Caxias do Sul, São te ao grupo Diários Associados, de Assis
viam protagonizado duas sangrentas guerras civis – João Goulart, que apoiava publicamente as propostas Gabriel, Santa Cruz do Sul, Carazinho e Erechim. Chateaubriand), sedes de diversos partidos políti-
em torno da sua candidatura à Presidência da sindicais, por Hugo de Araújo Faria. Porém, a 1º de A Convenção Sindical Estadual, realizada para cos e várias outras casas de negócios “real ou imagi-
República em 1929 e da revolução de 1930, que o le- maio, anunciaria a decisão de reajustar o salário mí- avaliar os resultados do movimento, decidiria pela nariamente” relacionadas ao capital americano.
vou ao poder. Após a democratização de 1945, PSD e nimo nas bases defendidas por Jango. convocação de nova greve para o dia 15 de setembro Todos os escritórios do prédio onde o consulado
PTB, os dois partidos criados sob a égide de Vargas, se Um anúncio publicado no Diário de Notícias de – dessa vez articulada com entidades dos Estados Unidos funcionava, ocu-
tornariam as principais forças políticas do Rio Grande Porto Alegre por militantes trabalhistas destacava que nacionais –, caso as medidas deman- Tropas do Exército pando apenas o sexto andar, foram
do Sul, em cujo governo se revezaram até 1964. essa combinação, queda de Goulart e triunfo de suas dadas não fossem efetivadas. De se confrontaram completamente destruídos e saquea-

ACERVO CORREIO DA MANHÃ. ARQUIVO NACIONAL, RJ.


A mobilização dos trabalhadores porto-alegren- propostas, demonstrava ser ele o instrumento através acordo com o presidente do sindica- com a multidão dos, inclusive o consultório do dr.
ses em reação à morte de Vargas, entretanto, não foi do qual “pretendia e pretende o presidente Vargas to dos metalúrgicos de Porto Alegre, Eliseu Paglioli, reitor da Universidade
numa das principais
uma explosão isolada. Todo o ano de 1954 fora conseguir a redenção do trabalhador nacional”. José César de Mesquita, esta nova Federal do Rio Grande do Sul, figura
marcado por lutas intensas. Desde janeiro, o sindi- Parecia que, assim como na Santíssima Trindade, se- greve fora concebida com o objetivo avenidas da cidade. pública ligada ao PTB, que aparente-
calismo local realizava comícios e passeatas em de- ria o filho – no caso, o afilhado político – o escolhido central de fornecer suporte político a Os manifestantes mente pagou caro pela infeliz vizi-
fesa de duas reivindicações gerais: o reajuste do sa- pelo pai para sacrificar-se pela salvação dos fiéis. Getúlio Vargas contra os golpistas recusaram a ordem nhança. Da representação consular,
lário mínimo e o controle de preços. Os patrões, en- Contudo, em meados de junho, antes que o rea- que ameaçavam derrubá-lo. de dispersar e os não sobraram mais do que destroços,
tretanto, exigiam que o mínimo vigente fosse man- juste do salário tivesse sido implementado, um mi- O desenlace da dramática crise soldados abriram com os quais a multidão armou uma
tido até janeiro de 1955, conforme previsto em lei. nistro do Supremo Tribunal Federal concedeu limi- que atingia o governo, porém, não grande fogueira no meio da rua. A
fogo, matando três e
esperaria até a data marcada pelos mobilização popular de dimensões e
sindicalistas. Por volta das nove da
ferindo dez intensidade inéditas viria a se encer-
manhã do dia 24 de agosto de 1954, rar apenas por volta das quatro da
a notícia do suicídio já tinha se espalhado pela cida- tarde, quando unidades do Exército se confrontaram
de e a rádio lia repetidamente a carta-testamento do com a multidão numa das principais avenidas da ci-
presidente. Uma multidão começou a se concentrar dade. Ao enfrentar a recusa dos manifestantes à or-
em frente à sede do PTB – partido que congregava a dem para que se dispersassem, a tropa abriu fogo,
base popular varguista – na Praça da Alfândega, on- matando três pessoas e ferindo outras dez.
de oradores indignados alimentavam a carga emo- A notícia da morte de Vargas, porém, não causou
cional do momento. Ao fazer posteriormente um comoção apenas nas ruas, mas também no interior
balanço dos acontecimentos, o consulado norte- das fábricas. O metalúrgico Armando Pinheiro relem-
americano da capital gaúcha identificaria na carta- bra que o diretor das Forjas Taurus, Ademar Zanchi,
testamento “referências incendiárias aos interesses era ligado à UDN – partido que liderava o movimen-
do capital estrangeiro, que em Porto Alegre são tra- to golpista contra Vargas. Segundo Pinheiro, “quando
dicionalmente identificados com os interesses dos mataram o Getúlio”, Zanchi subiu numa cadeira e es-
Estados Unidos”. Isto teria propiciado a “histeria de creveu no mural algo como: “O nosso presidente deu
massas” que se seguiu. um tiro na guampa e escafedeu-se!”. Ao descer, o dire-
50 anos semVargas
g H

nossa
ag o s t o 2004 30 31 ag o s t o 2004

CPDOC / FGV CPDOC / FGV

u Alexandre Fortes

Sul em chamas
Incêndios e quebra-quebras sacudiram Porto Alegre no dia
em que Getúlio morreu. Ao apontar o imperialismo como
responsável pelo seu suicídio, ele conseguiu a proeza de unir,
na mesma revolta, todas as correntes políticas de base operária nar suspendendo a sua execução em Minas Gerais. A partir das nove e meia, a “turba”, que segundo

O
O impasse se arrastou e, no Rio Grande do Sul, cin- observadores chegou a contar com cerca de 3 mil
O suicídio de Getúlio Vargas foi sentido O presidente reagiria a essa efervescência traba- co federações e 81 sindicatos gaúchos convocaram participantes, passou a atacar sucessivamente diver-
com particular intensidade pelos gaú- lhista, que desde 1953 tomava conta dos centros urba- para o dia 6 de julho uma greve geral que viria a al- sos alvos identificados como inimigos de Vargas, co-
chos. O ex-governador do estado, afinal, nos do país, com um movimento aparentemente con- cançar proporções inéditas, paralisando não apenas mo os jornais O Estado do Rio Grande (ligado ao
realizara até mesmo a proeza de unificar traditório. Num primeiro momento, cedendo às pres- a capital do estado, mas também cidades como Partido Libertador), Diário de Notícias (pertencen-
as facções políticas regionais – que desde 1893 já ha- sões empresariais, substituiu o ministro do Trabalho Santa Maria, Rio Grande, Pelotas, Caxias do Sul, São te ao grupo Diários Associados, de Assis
viam protagonizado d João Goulart, que apoiava publicamente as propostas Gabriel, Santa Cruz do Sul, Carazinho e Erechim. Chateaubriand), sedes de diversos partidos políti-
uas sangrentas guerras civis – em torno da sua sindicais, por Hugo de Araújo Faria. Porém, a 1º de A Convenção Sindical Estadual, realizada para cos e várias outras casas de negócios “real ou imagi-
candidatura à Presidência da República em 1929 maio, anunciaria a decisão de reajustar o salário mí- avaliar os resultados do movimento, decidiria pela nariamente” relacionadas ao capital americano.
e da revolução de 1930, que o le- vou ao poder. Após nimo nas bases defendidas por Jango. convocação de nova greve para o dia 15 de setembro Todos os escritórios do prédio onde o consulado
a democratização de 1945 , PSD e PTB , os dois Um anúncio publicado no Diário de Notícias de – dessa vez articulada com entidades dos Estados Unidos funcionava, ocu-
partidos criados sob a égide de Vargas, se tornariam as Porto Alegre por militantes trabalhistas destacava que nacionais –, caso as medidas deman- Tropas do Exército pando apenas o sexto andar, foram
principais forças políticas do Rio Grande do Sul, em essa combinação, queda de Goulart e triunfo de suas dadas não fossem efetivadas. De se confrontaram completamente destruídos e saquea-

ACERVO CORREIO DA MANHÃ. ARQUIVO NACIONAL, RJ.


cujo governo se revezaram até 1964. propostas, demonstrava ser ele o instrumento através acordo com o presidente do sindica- com a multidão dos, inclusive o consultório do dr.
A mobilização dos trabalhadores porto-alegren- do qual “pretendia e pretende o presidente Vargas to dos metalúrgicos de Porto Alegre, Eliseu Paglioli, reitor da Universidade
numa das principais
ses em reação à morte de Vargas, entretanto, não foi conseguir a redenção do trabalhador nacional”. José César de Mesquita, esta nova Federal do Rio Grande do Sul, figura
uma explosão isolada. Todo o ano de 1954 fora Parecia que, assim como na Santíssima Trindade, se- greve fora concebida com o objetivo avenidas da cidade. pública ligada ao PTB, que aparente-
marcado por lutas intensas. Desde janeiro, o sindi- ria o filho – no caso, o afilhado político – o escolhido central de fornecer suporte político a Os manifestantes mente pagou caro pela infeliz vizi-
calismo local realizava comícios e passeatas em de- pelo pai para sacrificar-se pela salvação dos fiéis. Getúlio Vargas contra os golpistas recusaram a ordem nhança. Da representação consular,
fesa de duas reivindicações gerais: o reajuste do sa- Contudo, em meados de junho, antes que o rea- que ameaçavam derrubá-lo. de dispersar e os não sobraram mais do que destroços,
lário mínimo e o controle de preços. Os patrões, en- juste do salário tivesse sido implementado, um mi- O desenlace da dramática crise soldados abriram com os quais a multidão armou uma
tretanto, exigiam que o mínimo vigente fosse man- nistro do Supremo Tribunal Federal concedeu limi- que atingia o governo, porém, não grande fogueira no meio da rua. A
fogo, matando três e
tido até janeiro de 1955, conforme previsto em lei. esperaria até a data marcada pelos mobilização popular de dimensões e
sindicalistas. Por volta das nove da
ferindo dez intensidade inéditas viria a se encer-
manhã do dia 24 de agosto de 1954, rar apenas por volta das quatro da
a notícia do suicídio já tinha se espalhado pela cida- tarde, quando unidades do Exército se confrontaram
de e a rádio lia repetidamente a carta-testamento do com a multidão numa das principais avenidas da ci-
presidente. Uma multidão começou a se concentrar dade. Ao enfrentar a recusa dos manifestantes à or-
em frente à sede do PTB – partido que congregava a dem para que se dispersassem, a tropa abriu fogo,
base popular varguista – na Praça da Alfândega, on- matando três pessoas e ferindo outras dez.
de oradores indignados alimentavam a carga emo- A notícia da morte de Vargas, porém, não causou
cional do momento. Ao fazer posteriormente um comoção apenas nas ruas, mas também no interior
balanço dos acontecimentos, o consulado norte- das fábricas. O metalúrgico Armando Pinheiro relem-
americano da capital gaúcha identificaria na carta- bra que o diretor das Forjas Taurus, Ademar Zanchi,
testamento “referências incendiárias aos interesses era ligado à UDN – partido que liderava o movimen-
do capital estrangeiro, que em Porto Alegre são tra- to golpista contra Vargas. Segundo Pinheiro, “quando
dicionalmente identificados com os interesses dos mataram o Getúlio”, Zanchi subiu numa cadeira e es-
Estados Unidos”. Isto teria propiciado a “histeria de creveu no mural algo como: “O nosso presidente deu
massas” que se seguiu. um tiro na guampa e escafedeu-se!”. Ao descer, o dire-
ag o s t o 2004 32 50 anos semVargas
g
IMPRENSA POPULAR. RIO DE JANEIRO, 26/8/1954.
tor se viu preso por um grupo de trabalhadores, apoia-
dos na autoridade do “sr. Adão”, um inspetor de polí-
cia aposentado, vinculado ao PTB, que trabalhava na
empresa. Décadas depois, Pinheiro ainda se admira
com as lembranças da quebra da hierarquia fabril e do
súbito acesso dos operários ao exercício direto do po-
der produzidos pela tragédia.
Para saber mais
Cego a essa dimensão social mais profunda dos
acontecimentos, ao consulado norte-americano não
BODEA, Miguel. Traba-
lhismo e populismo no
restavam dúvidas de que se tratava de uma “rebelião”,
Rio Grande do Sul. Porto com “um caráter inconfundivelmente anti-Estados
Unidos” assegurado pela infiltração de “elementos legenda de texto legenda de texto legenda de texto legenda de
Alegre: Edufrgs, 1992.
texto legenda de texto legenda de texto legenda de texto texto
comunistas” num movimento iniciado espontanea-
FERREIRA, Jorge. “O mente, como “uma reação da turba petebista”. ferir à “campanha subterrânea dos grupos interna-
Carnaval da tristeza: os Seria essa uma avaliação correta? Na verdade, co- cionais” insinuava que os interesses contrariados das
motins urbanos do 24 mo relata o militante Eloy Martins, o Partido empresas estrangeiras estariam por trás do processo
de agosto”. In: GOMES, Comunista do Brasil (PCB) iniciou o dia mais como de desestabilização que levou o presidente à morte.
Angela de Castro (org.). objeto do que como sujeito da ação. Enquanto Vargas contribuía assim para criar, depois de morto,
Vargas e a crise dos anos
Getúlio “enfrentava o combate das forças mais rea- um fator de unidade entre as correntes políticas de
50. Rio de Janeiro:
cionárias e fascistas”, os comunistas, ainda que sua base operária, algo que jamais fizera em vida.
Relume-Dumará, 1994.
oposição se desse “pela esquerda”, faziam coro com A dimensão do gesto do presidente ofuscava in-
FRENCH, John D. aqueles que pretendiam derrubar o presidente, rea- clusive a relevância das lutas sindicais que marca-
Afogados em leis: A CLT e lizando os mesmos ataques e lutando pelo isolamen- vam o período anterior, reivindicando entre outras
a cultura política dos to do governo. Diante do suicídio, a “turba” teve coisas o reajuste do salário mínimo e o controle de
trabalhadores. Coleção poucas dúvidas em incluí-los no extenso rol dos ini- preços. Diante do suicídio, poucos lembrariam da
“História do Povo migos de Vargas sujeitos a retaliação. O jornal comu- ambigüidade do regime, que desde 1930 criava leis
Brasileiro”. São Paulo: nista estadual Tribuna Gaúcha teve sua redação em- trabalhistas mas raramente garantia o seu cumpri-
Editora Fundação Perseu pastelada e, quando os manifestantes se preparavam mento. O fato de que os novos valores estabelecidos
Abramo, 2001.
para destruir suas oficinas gráficas, militantes menos para o mínimo por Vargas somente entraram em vi-
MARTINS, Eloy B. Um
conhecidos do partido, sob orientação dos dirigen- gor meses após sua morte, já corroídos pela infla-
depoimento político. tes, se integraram ao movimento na busca por dire- ção, por exemplo, foi praticamente apagado da me-
Porto Alegre: Edição do cioná-lo para os alvos “imperialistas”. A busca de ob- mória histórica. Do ponto de vista do movimento
autor, 1989. jetos de ataque comuns, portanto, foi mais um me- social, porém, como enfatiza Martins, “após a mor-
canismo de defesa dos comunistas do que a prova de te de Getúlio surgiu um novo período de lutas”. A
sua extraordinária capacidade de manipulação. carta-testamento, ao mobilizar as massas getulistas,
No início dos anos 50, serviços urbanos como tornava “mais fácil a unidade entre comunistas e
bondes, energia e telefone entravam em colapso nas trabalhistas”, com base no nacionalismo comum.
capitais brasileiras, enquanto as empresas estrangei- A trajetória de Getúlio Vargas expressa as contra-
ras que os exploravam pressionavam por aumentos dições de uma era em que os trabalhadores brasilei-
ACERVO CORREIO DA MANHÃ. ARQUIVO NACIONAL, RJ.

escorchantes nas tarifas. O imperialismo, para os tra- ros viram seus direitos sociais e sua importância po-
balhadores urbanos brasileiros, nunca foi tão concre- lítica serem oficialmente reconhecidos, enquanto
to nem esteve tão à mão. A carta-testamento, ao se re- suas organizações e mobilizações permaneciam sob
controle e tutela. O momento em que ele “saiu da vi-
da para entrar na História” assistiria à ruptura vio-
lenta, ainda que fugaz, da atitude ordeira que marca-
ra as formas de manifestação popular nas décadas
anteriores. Prenúncio da radicalização dos conflitos
sociais que se estenderia até o golpe de 1964. H

A l exa n d re Forte s é coordenador no Centro Sérgio Buarque de


Holanda – Documentação e Memória Política, da Fundação Perseu
Abramo e autor de Nós do Quarto Distrito. A classe trabalhadora
porto-alegrense e a Era Vargas. Caxias do Sul: EDUCS, 2004.

Você também pode gostar