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l2

SAKHUSHETIz
RETOMANDO
E REAPROPRIANDO
UM
FOCOPSICOIOGICO
AFROCENTRADO
Wade W. Nobles

Sankofa:sewo werefi na wo sankofaa yenkyi


não é proibidovoltaratráse reconstituir].
[Sevocêesquece4

Ao nxeurNAR o povo africano em toda a diáspora, poder-se-ia di-


zer que, coletivamente, precisamos "voltar atrás e reconstituir o que
esquecemos'lEu diria ainda que o que nós, coletivamente, esquece-
mos ou, de modo mais preciso, o que nosso opressor tentou esvaziar
de nossa mente foi o significado de ser africano. Também acredito
que, embora tenha sido pavoroso o ataque contra o senso de ser dos
africanos,ele não conseguiu destruir o africano dentro de nós. Entre-
tanto alterou a percepção ou a crença em nosso senso de africanidade
intrínseco; e essesenso alterado de consciência é o problema funda-
mental dos africanos e afro-americanos e diaspóricos. O campo da
psicologia negra está reemergindo atualmente (Nobles, 1986b) e rea-
firmando uma base afrocentrada em seu cerne (Akbar, l9B4; Grills e
Rowe, 1996;Kambon, 1992;Myers, lgBB). A maior parte da discussão
contemporânea nesse campo tem ocorrido, contudo, em reação às li-
mitações da psicologia ocidental (branca) e/ou às consequênciaspsi-
cológicasnegativasde ser africano numa realidade antiafricana. Pou-
cas discussõestêm articulado com seriedadea natureza fundamental

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* WADEW.NOBLES *
-"ïíi#ii:ãïã""T3J
Ï:"ï:ïiïi""ïï'
explicações,fundamentoslógicos ou ('
de ser africano (negro),seussignificadospsicológicose funçõesasso_ criado não conseguem fornecer
para o próprio povo queelase destina
ciativosou a teoria(s)necessária(s)com respeitoaos processospsico- pra,rru, preventivas e curativas
lógicos africanos "normais'l a oPrimir.
uma singular experiênciahis-
Essaproblemática pode ser melhor apreciada na simples tarefa dos A psicoÌogia dos africanos deriva de
imperativo humano naturale instin-
africanos de viverem como tais em ambientes decididamente hostis e tórica e é por ela determinada. o
impulso revolucionáriopara atingir a
antiafricanos. É na busca de "ser africano ou não ser" (Nobles, 1984, tivo dessapsicologia é adquirir o
Portanto, o que obr''iamentese faz
l99S) que a psicologia deveria funcionar como ferramenta fundamen- libertação física, mental e espirituaÌ.
em nossasessênciae integridade
tal em termos de compreensãoe utilidade. No entanto, a psicologia, necessárioé uma psicologia centrada
desenvolver uma perspectivane-
um instrumento ocidental de compreensão humana e de prática, tem africanas, o que exige irmos além de -
ocidental'Fundamental'*
limitações básicasem sua capacidadede orientar a exploração,o es- gra,ou mesmo "afrocêntrica'isobre a psicologia
de ideias,teoriasepráticas des- +
clarecimentoe a apreensãoda experiênciahumana das pessoase dos a essatarefa é criar e criticar um corpo
e, quandonecessário,a
povos africanos. tinado a favorecera compreensão,a explicação
em todasasexpressões
Por isso a discussãodesenvolvidaneste texto terá dois objetivos. O cura do ser,do vir-a-ser e da pertença africanos
Não se tratade um pen-
primeiro é identificar a experiênciaafro-brasileiracomo um estudo de históricase desdobramentoscontemporâneos'
busca raízesprofundasno
caso ou exemplo específico do ataque mais amplo, de âmbito mun- samento europeu revisado ou rearranjado;
dial, contra a humanidade dos africanos. Em segundo lugar, procuro pensametlto afticano.
i\i atestar a necessidadede uma disciplina afrocentrada que nos permita A i magem. . psicost asia, jdospapir osdeHu- Nef er doant igovaledor io
foio escriba real

ii não apenas compreender o significado e a experiência de ser africano,


mas também conhecer a utilidade e a realizaçãoda fé, da alegria e da
beleza em ser, pertencer e tornar'se africano. Defini esse campo de
psicologia negra como Sakhu Sheti.Ele exige que respeitemosa parti-
Nilo, nosïá uma orientação a esserespeito.Hu-Nefer
e guardião do gado no governodo faraó seti I
(cercade 1370-1333

A cena retrata o espírito (Ka) de Hu-Nefer recitando


a'c')'
o Per-EM-HRU(O

liuro do emergir da escurídãopara a luz, equivocadamente


chamado de
í\ Heru' Asar'Ammit' Ba-
cularidade das diferentes experiênciashistóricas dos africanos em di- Liuro dosmorto.s),na presença de Tehuti' Maat'
"Consciência'lrepresen-
ferentesépocase lugares.Dessemodo, quando for adequado,tentarei bai e os filhos de Heru. E uma dramatizaçãoda
da psicologiacomo , -,
neste ensaio localizar as ideias, os conceitos e as aplicações associa- tando simboÌicamente a primeira conceitu alização
humano'Essapsicolo-
dos à psicologia negra (ou à Sakhu) no quadro da experiênciaparticu- a "Iluminação" e o "Discernimento" do espírito
do in-
gia de inspiração africana percebia os papéis interdependentes
lar da vida afro-brasileira. no fun-
Arazã.ode ser da psicologiaocidental como disciplina se resume,em telecto,da emoção,do espírito,da conduta e do discernimento
antigacompreensão
grande medida, a alimentar e sancionar o regime político imperialista cionamento humano. A "psicostasia"retrataa mais
e a ideia de "Nor-
humana sobre a importância da "conduta correta"
e racista que a inventou (CCHR, 2003).A esserespeito,alguns autores
consideramos sistemasexplanatóriose as abordagensde tratamento da malidade Humana'i
para esclarecero que deveria ser a psicologianegra,oferecio antigo
psicologiaocidental como parte da ideologia do sistemapolítico opres- Netcher[A escrita
termo Sakhu Sheti(Nobles, 1998).Extraído do Medu
sivo. Entretanto, eles se apresentam como princípios empiricamente o oÌho e a alma
de Deus], sakhusignificaa compreensão,o iluminador,
validados de ciência médica e psicológica, sendo utilizados como se profundamentenum
do ser,aquilo que inspi ra.E shetiquer dizer entrar
fossem práticas psiquiátricas e psicoterapêuticasde valor "objetivo'lA pro-
assunto; estudar a fundo; pesquisar nos livros mágicos;penetrar
psicologia eurocêntrica e o sistema industrial de saúde mental por ela

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AKHTI SHETII RETOMANDO B RBAPROPRIANDO UM
Foco Psrcor,ócrco aFRocENTRADo )É
i
no,
fundamente. Os parâmetros do pensamento, da teoria e da terapia na atuais. Entretanto, o importante da herança religiosa encontrada .:
\f
psicologia negra exigem que se obtenha uma compreensão plena da Brasil não são as práticasreligiosasou oSsincretismos,mas a manuten-r
do que significa ser uma pessoa'
pessoaafricana mediante a pesquisa,o estudo e o domínio do processo ção de uma conceitualizaçãoafricana
de "iluminar" o espírito ou a essênciahumanos (Nobles, t986a). para ou um ser humano. Embora essencial para as ideias da religião e para a
'i
, . or africanos, o entendimento humano exige o exame e a explicação do própria sobrevivência com qualidade de úda, esse aspecto fundamen-
' das
. significado,bem como o funcionamento da natureza (essência)do ser tal (o que significa ser humano) muitas vezes se perde nas análises
humano. Diferente da noção de "essencialismo"encontrada no pen- religiões de base africana no Novo Mundo'
samento ocidental, a ideia africana de "essência"ou natureza humana o sakhu shetíexigiria que se interrogasse!:l 4 finguagem e a lógica
e
'ainda estápor ser exploradae compreendida em termos africanos.
Não dos povos atïicanos tradicionais iiaia apràender de forma profunda
Nossos
. podemos aceitar a priori o pressupostode que a noção africana de "es- nítida o funcionamento dos povos africanos contemporâneos'
liberdade,
sência" ou espírito corresponda ao essencialismoeuropeu. A África ancestraisforam trazidos para o Novo Mundo destituídos de
ì e as coisasafricanasdevem ser examinadas de pensamento ou
e apreendidasem terreno ou seja,em grilhões,mas não chegaram destituídos
uma ló- '+
africano (ou seja,com significadose aplicaçõesafricanos).Agir de ou- crençassobre quem eles eram. Nossosancestraisüeram com
tl\.
tra forma é restringir o conhecimento africano e as suas inspirações ao gica e uma linguagem de reflexão sobre o que significava ser humano
existiam' Somente fJ'$'
campo de visão dos instrumentos e das interpretaçõeseuropeus. sobre quem eleseram, a quem pertenciam e por que
de
Assim, proponho que qualquer corpo de informaçõese práticas des- por meio de uma interpretação profunda da linguagem e da Ìógica
os africanos diaspóricos' ca-
tinado a compreender os africanos represente e reflita uma explicação e nossaprópria ancestralidadeseremosnós,
iluminação do espírito, da força e do poder do que significa ser africano, pazesde verificar os significados e as compreensões que determinadas
Ani
e por elasdeve ser orientado.Dada a intenção destacoleção,gostariade comunidades transportaram para o maafa da escravidão'Marimba
grande desastre e
convidar o leitor a me acompanhar numa 4lordagem preliminar Sakhu (lgg4) introduz o conceito d,emaafa e o define como
il' I r
Sheti da essência,da experiênciae das expressõesafro-brasileiras.Pro- infortúnio de morte e destruiçãoalém das convençõese da compt€€ÍÌ-
básica do maafa é a negação
ponho igualmente um diálogo contínuo em relação à nossa terpoìru- são humanas. Para mim, a característica
e do desres-
bilidade de criar uma compreensão própria e autêntica do significado e da humanidade dos africanos,acompanhada do desprezo
a
da naturezada condição humana para o povo africano. peito, coletivos e contínuos, ao seu direito de existit. o maafa autoriza
destruição físicae espiritual
perpetuaçãode um processosistemáticode
dos africanos,individual e coletivamente'
ances-
O se,xnu Do sER aFRrcaNo Por exemplo, a língua e a lógica iorubas indicam que nossos
de um espí-
trais dessegrupo acreditavam que a pessoaé constituída
é formado
Para compreender o sakhu, ou iluminação do espírito, afro-brasileiro, rito e de um corpo (Opoku, lg7}, p'g2)' O corpo' ou ara'
que a pessoa interage com
deve-se discutir a ideia africana do que significa ser um ser humano ou pela divindade orisa-nla. E por meio do ara
e sentir' o
uma pessoa.Em geral se reconhece que os africanos escraüzadospor o meio ambiente; é essaa parte da pessoaque se pode tocar
o com-
holandesese portuguesese enviados para o Brasil provinham majori- arapod.e sofrer danos e se desintegraapós a morte. Entretanto,
"força espiritual" ou eS-
tariamente da África Central (bacongo, malimba, bambo, loanfgo) e do ponente "essencial"da pessoa é o espírito, a
divino e a
Senegâmbia(banto, ioruba, wolof, bambara, mandinka). por isso,mui- piritualid ad.e(emí). O emí dá vida à pessoa.É seu elemento
pessoa morre, o emí retorna
tos etnólogos ligam a ancestralidade afro-brasileira à Nigéria e à Angola vincula diretamente a Deus. Depois que a

zBo zBt
X WADE W. NOBLES ì1í *iíi#ïí:ã";?ïâJÏ:"ï:ïïïïHïANDouM

ao Elemi (o dono do espírito, Deus) e continua a viver. como pessoa,o o Ser Supremo'
eterna expansão.Essaenergia, cuja totalidade constitui
indiúduo também possui uma cabeça interior, ou ori inu. oludamaré de conhecer
exige que os sereshumanos, como espíritos, sejam capazes
(o Ser supremo) dá essacabeça diretamente. Ela constitui o ,,espírito,, humanos (inter) e por fim ao Di-
a si mesmos (intra), a outros espíritos
particular da pessoa. ori tnu é o guardião do eu; carrega o nosso des-
vino (supra).
tino e influencia a personalidade.Além d,eemi (essênciadivina) e orí espíritos e erro-
O que muitas vezes é üsto como uma hierarquia de
inu (essënciapessoal),a pessoa tem okan Essapalavra significa cora- São de fato diferentes graus
neamente representado como "paganismo"
ção, mas, como aspecto constituinte da pessoa,representao elemento se diz que a hie-
de espírito, força, poder ou energia. Frequentemente
imaterial (essência)qre é a sede da inteligência, do pensamento e da (parentes mortos dos
rarquia espiritual dos bacongo coloca os nkuyu
ação.Assim, por vezesé chamado de "alma-coração"da pessoa.Acre- nkuyu, os nkísi
vivos) acima dos vivos, os simbí (ancestrais) acima dos
dita-se que a okan exista antes mesmo de a pessoa nascer. E a okan de todos' De
acima dossimbi e o NzambiMpongo (Ser Supremo) acima
dos ancestraisque reencarna no recém-nascido.para ser uma pessoa, ioruba coloca
modo semelhante,pensa-seque a hierarquia espiritual
os iorubas também acreditam que se deve ter um ori e um eje. ori go_ acima dos eguns-'
os eguns (ancestrais)acima do ori (pessoa),os orixás
verna, controla e orienta a vida da pessoae de fato a ativa. ori éo por- mais preciso dizei
e Olodumaré (o Ser Supremo) acima de todos. Seria
tador do destino e ajuda a pessoa a rearizaraquilo que veio fazer na representa uma dife-
que cada um dos chamados níveis da hierarquia
Terra. ori é ao mesmo tempo a "essênciada pessoa,,e seu guardião Assim' cada'-
rente manifestação ou expressãoda totalidade do Divino'
e protetor. Está intimamente ligado a emi. Eje é o sangue, expressão do supremo' os
nível tem grau maior ou menor de poder ou espírito
física da energia eletroquimicomagnética que constitui a força (essên- de força ou poder,
humanos poderiam, com efeito, invocar cada nível
cia) que guarnece e anima a vida. os ioruba também acreditam que o "superior" ou "inferior" para ajudar os vivos'
iye ê um componente da pessoa.O lye é o elemento imaterial às vezes "força espiritual"
Incluída na noção africana de espiritualidade ou
referido como a mente. de ser uma
, está a crença de que a complexidade (material e imaterial)
é, naveÍ-
A língua e a lógica banto-congo.sugerem que nossosancestraisan- ,,peSSOa" the dá um valOr hUmanOintrínsecO e que a "peSSOa"
golanos acreditavam que a pessoa é uma energia, espírito ou poder. Ser governadas
dade, um "processo" catacterizadopelas leis divinamente
humano, na visão banto-congo, é ser uma "pessoa"que é um sol r,'ivo, compaixão (Ham-
da essência,da aparência,do aperfeiçoamentoe da
possuindo um espírito (essência)cognoscentee cognoscívelpor meio pate, l98l, p. 166-203).
do qual se tem uma relaçãoduradoura com o universo total, perceptível
e ponderável.Paraos banto-congo,o nascimento de uma criança é per-
cebido como a ascensãode um "sol vivo" ao mundo superior (Fu-Kiau, DnscenRr LHAM ENTo E DESAFRTcANTZAçAo
1991,p. 8). 4 pessoaé ao mesmo tempo o recipiente e o instrumento da
energiae dos relacionamentosdivinos. É a essênciaespiritual da pessoa desempenhado '
Muitos reconhecem acertadamente o papel significativo
que a torna humana. como Ngolo(energia,espírito ou poder), a pessoaé que, porém, é menos
pela escravidãona construçãodo Novo Mundo. o
um fenômeno de "veneraçãoperpétua'i que serviu para forjar o
entendido é oçoder do 9ens9 {"-:r'igglidade
,l Tanto o sistemaioruba quanto o bacongo sustentamque ser humano cerne cultgla!:d*,,,g,o, do Novo Mundo durante a escravidãoe o pe- '
é ser um espírito em contato constante com os poderes ,,espirituais,,que e europeus re- I
ríodo subsequente.A escravidãocontrolada por árabes
habitam o reino inüsível; ser uma "força espiritual,, intrincadamente do desenvolvimento
sultou num grande descarrilhamento na trajetória
conectada ou incrustada numa estrutura diferenciadora de energia em forma que todos os or-
africano. As comunidades humanas, da mesma

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o uM
x sÁK'li;I;3í:ã";".YâJ
Ï:.ï:ïïïïËÏAND

ganismos úvos, têm um caminho/processo de crescimento ou desen- ricoeaexploraçãocontemporâneadopovoafricanosópoderiamter


volvimento que pode ser mapeado. O caminho do desenvolümento Sucessoseossignificadosafricanosdeserhumanofossemapagados
africano em termos de socialização,vida familiar, educação, formas de e/ouredefi ni dos. Apenasquandoocent r odesuaconsciênciaf or af as.
significados africanos de ser humano, ou essessignificados
conhecer a Deus, padrõesde governo,pensamento filosófico profundo, tado dos
africano pode ser permanente-
invenções científicas e técnicas foi descarrilhado pela invasão e domi- forem removidos de sua consciência,
nação estrangeira. O efeito desse descarrilhamento ainda está por ser menteescravizado_eisum pr eceit ocent r aldaaf r ocent r icidade. Essei
compreendido ou registradode forma plena e precisa. processodedescent r am ent ooudesaf r iglniTaeãt oconstdosit uiapr oble-
africa-
compreensão dà óxperiência
A metáfora do descarilhamento é importante porque quando isso mática psicológica-chavena
ocorre o trem contìnua em movimento fora dos trilhos; o descarrilha- nõs-erntodã á dïásPo ra'
mento cultural do povo africano é difícil de detectar porque a vida e a NosEstadosUnidos,geralmentenãoidentificamosoBrasilcomoum
experiência continuam. A experiência do movimento (ou progresso) paíslatino.Suapopulaçãoquase50%africanaoferecemaisumlocal
humano continua, e as pessoasacham difícil perceberque estãofora de paraSeexaminaru.'p.,ic.,ciaafricanadadiáspora,caracterizadapelo
sua trajetória de desenvolümento. A experiência vivida, ou a experiên- processodeem br at qt '"t i- "nt o( m aispr ecisam ent e'aelim inaçãodo
cia dos vivos,não permite perceberque estarno caminho, seguindosua afri cano)que Se. o, , , o. ''pr ior idadeof icialnoBr asilnadécadadelB50.
Machado de Assis,até o presente,
própria trajetória de desenvolvimento,proporcionaria a eles uma expe- Desdeo sécuÌoXIX, com o romancista
brasileirostêm obtido' diabolicamente''.
riência de vida mais significativa. membros da classedos mulatos
o processobrasileirode branqueament'o 7
Os africanos que foram vendidos, raptados e/ou roubados e trazi- melhorescondiçõese respeito. e valor à mo-
ainda atribui, maior '"'p"ìtõ
dos tinham de dar sentido ou significado à realidade de novos lugar, atribuía sistematicamente,e para d
em sua histórica mistura racial
condição e povo. Apesar do descarrilhamento,o único "mapa mental" renidade como objetivo estimado
2001)'
de que dispunham para navegare dar sentido à nova condição de ser- ascensãosocial(Leal,2001;Vieira'
vidão e barbarismo era o mapa mental de ser africanos.A concepção A scomun idadesaf r icanaslivr es( quilom bos) queoper ar am com o
africana de ser humano o definia como emí (espírito), ori inu (dono E s t a d o s i n d e p e n d e n t e s a f r o c e n t r a d o s p o r q u a s e d o i s s é c u lcultu-
osservem
para autenticar as sobrevivências
de um destino traçado por Deus), ngolu (ser um poder) e na'ezalelí como um reservatório histórico
(ser inextricavelmentemisturado com a própria essência).Essaessên- rai sepol íti casaf r icanasnasAm ér icas. Há, no1f r o- Br asil, um af ont ede
(candomblé r'
para documentar o caráter africano $as religiões
cia ou "força espiritual"r tornava alguém humano e proporcionava a rnatgriais
cada pessoauma relação duradoura com o universo total perceptível e eoutras),m úsicaedança[ sam bâ, bõsbanovaeassim por diant e) ear t es
ponderável. O mapa mental de ser africano serviu de filtro cultural da marciais (caPoeira)' a
do governo brasileiro de promover
No entanto, a áupla estratég-1a
resistênciaà escravidãoe ao colonialismo. A concepção do significado cidadãos ao
ptnpíqt'L'__èe-'lpranquear"s€us
da pessoa como recipiente e instrumento da energia e relação divina miscigenação racial com o
tornava o africano, creio eu, inadaptado à escravidão,a menos que de- mesmotempoquepr oibiaaim igr açãonegr aeest im ulavaaim igr ação
para a
safricanizado. branca criou problemas fundam-entais l:t--"ni"- ti::^10""

Devemos reconhecer e respeitar,em última instância, a autodefini- tidadeÊegra.Essasituaçãoperversaéoutravariaçãodaexpressaoco-


l oqui al ,,brancapar acasar , negr apar at r abalhar 'm ulat apar af or nicar 'i
mas-
ção do africano como ser humano, assim como os processoshistóricos
foi bem documentada no ||vto Brasil, mistura ou
Essa estratégia
e contemporâneos destinados a destruir esse significado ou redefini-
-lo a fim de dominar e oprimir os africanos. O escravizamentohistó- sA cre?,es cr it opor AbdiasNascim ent o( t sas) , um dosm aisf am ososat i-

285
284
. WADE W. NOBLES ì( ì( sÁK'li;ïïí:ã";?ïâJÏi"ï:ïi"*HiaND ouM
,.embranquecimento,,Se
o
vistas negros do Brasil. Tal como no México e em cuba, a presença dos a função de regente. Nesse mesmo período,
2001;Nascimento' 1989)'
' ,africanos e suas contribuições à vida brasileira foram fundamentais tornou prioridade oficial no Brasil (vieira, '
que diz "Quando um
+
para o desenvolvimento da nação. No entanto, os fenômenos africanos Neste ponto, é informativo o provérbio africano
tenta clarear o ébano'i Por
são estranhamente negados ou alterados pelo ataque psicológico do toÌo não consegue escurecer o marfim, ele
"embranquecimento'l A mesma noção pode ser encontrada no México no Brasil souberam que eram
mais de quatrocentos anos, os africanos
inimigos da liberdade' Lutaram
("mejorar la raza"), em cuba (btanqueamíento) e por toda a diáspora africanos e que os portugueses eram os
seu povo da escravidão'o pro-
africana. Que significa, de fato, para nós africanos, sermos submetidos à e morreram conrinuamente para libertar
mensagem do "embranquecimento"ou de "melhorar a raça como con- ,,embranquecimento"tem funcionado por cerca de 115 anos'
cessode
causaram mais da-'
dição de sermoshumanos"? Evidentemente, cem anos de "embranquecimento" :*
anos de escravidãora-
Para explorar o Sakhu Sheti no contexto da experiência afro-bra- nos psíquicosaos africanosdo que quatrocentos
.:"-. ,sileira, precisamos discutir o propósito do "embranquecimento,, e a cista e dominação colonial'
resposta e reação dos afro-brasileiros ao processo de serem "embran- ,,embranquecimento,,é um ataque psicológico ao Senso funda. ,;1.
o
\- ser uma pessoahumanatf-i'
., quecidos'i mental dos afro-brasileirosdo que significa
que, se você controlar os pen-
Uma cronologia parcial do Brasil é bastante informativa. A ocupação Carter G. Woodson (ISSO)disseuma vez
preocupar-secom suas ações'Iá
portuguesado país começou em 1500d.C., e.ç-ercade 3.600.000africa- samentosde um homem, não precisa
a capacidadede definir a reali-
nos foram levados para as novas terras. Em 1625,o Brasil testemunhou tive ocasiãode descrevero poder como
definição como se fossedelas
o estabelecimentodos quilombos e o início da longa resistênciaafri- dade e Ïazeroutraspessoasreagirem à sua
para se definir é o signifi-
cana, hoje simbolizada no exemplo e espírito de Zumbi dos palmares. (Nobles, l9B4). A reaÌidade mais importante
o processode "embranque-
Em 1695,setentaanos depois, Zumbi foi capturado e morto, no dia 20 cado da própria condição de ser humano.
de redefinir para os africar'
de novembro, construindo e defendendo o quilombo. Durante um sé- cimento" foi e continua sendo uma tentativa
,', Ì1 culo (1595-1695),os quilombos reunidos na Repúblicade palmaressob nosnoB rasiloquesignif icaSer um apessoahum ana. Aof azê- lo, af ir m a
'i3f o lema "QuenJvem por utítot à liberdade fica" represenraram que por meio do processode
1 a ideia de que ser africanoera ser menos humano e
í I resistênciae liberdade.Liberdade de ser africano e ser humano. ,,embranquecimento"os africanos poderiam tornar-se humanos' com
bondade, o sucesso'a criativi-
Em 1792, foaquim Iosé da Silva Xavie4 o Tiradentes, liderou o pri- efeito, o embranquecimento associa a
meiro movimento de independência, e a coroa portuguesa o conde- dade,ogênio,abe|ezaeacMlizaçãocomabrancura.Emúltimains-,
nou a morrer na forca. Menos de oito anos depois, ocorreu na Bahia a tânci a,i dent if icaacondiçãohum anacom of at odeser br anco.
Revolta dos AÌfaiates (lZSe). Em resposta à ameaça representadapor Duranteminhavida,possorecordar,comocriançanosEstados
às crianças negras que tínha-
Napoleão, a corte portuguesa transferiu-se para o Brasil, de onde gover- unidos, pessoasmais velhas ensinando
de "clareaÍ a Íaça"'As jovens
nou de lB0B a lï2r. Durante esseperíodoe além dele (1807-1835), os mos uma espécie de obrigação ou dever
tão belas ou atraentes quanto
africanos constantemente se rebelaram contra a escravidão e travaram de pele escura não eram consideradas
contínuas lutas e batalhas de libertação contra os portugueses.Africa- asdepeleclara.Aspessoasmaisescurasjamaiseramvistascomoa
nos muçulmanos conduziram batalhasimportantes na Bahia com uma ,,escolhacerta" para se formar um par. Epítetos de "negro isso'i "negro
"feio'i eram saudações depre-
frequência notável: quase de dois em dois anos durante a presençada aquilo,i frequentemente seguidos de
altamente pigmentados'
corte portuguesa(talo, l8r3 e 1816).A filha de Dom pedro II, princesa ciativas comuns dirigidas a afro-americanos
"embranquecimento" português ou
Isabel,aboliu a escravidão(lBBs) quando ocupava,na ausênciado pai, Essa versão norte-americana do

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E REAPROPRIANDO UM
WADE W. NOBLES * * SAKIIU SHETIi RETOMANDO
Foco Psrcor,ócrco AFRocENTRADo*

MENTAL
,.."blAnqueamiento" espanhol nos impunha uma vivência de vergonha TnnnonrsMo psrcOLóGICO, DOENçA
..; 1de nossa cor e um ódio de nós mesmos internalizados e debilitan- E G ENO CÍ O TOCULTURAL

,tes.Essanegação e anulação da negritude permeia toda a sociedade '


brancura" é uma doença men-
norte-americana. Por exemplo, a longa luta travada pelos artistas ne- com efeito, o desejo de "proximidade da
deve ser clas-
gros para serem incluídos na indústria cinematográficafoi, e de mui- tal debiÌitante para os africanos. o "embranquecimento"
no Brasil,assim como em toda t,
tas maneiras continua sendo, marcada pelos padrões brancos de be- sificado como patogênico,e os africanos
quando apresentam
leza. Do Cotton Club da década de 1920 aosBlaxploítation
fiIms dos parte, independentemente da mistura biológica,
ou querem se aproximar da
anos 1970 e aos Mega black films dos dias de hoje, a capacidade de esse desejo incontrolável de ser branco,
são negros^devemser clinica-
mercado dos astros e estrelasnegros semprefoi determinada por sua brancura, ou sofrem da ilusão de que não
trauma causadopela experiên-'
aceitabilidade diante do gosto e da sensibilidadedos brancos. Alguns mente diagnosticadoscomo sofrendodo
psicológico'
clubes universitários femininos de mulheres negras chegaram a ins- cia prolongada e constante do terrorismo
tituir um "teste do papel" em que, para que a pessoa fosse admitida Mui tospsicólogosaf r ocent r adosacr edit am queoat aquehist ór ico
da personalidade africana'
na organização,precisava ter a pele mais clara do que uma bolsa de da supremacia branca resultou na distorção
papel pardo. Agindo assim, a fraternidade julgava estar cumprindo o Akbar(1981),porexemplo,identificaquatrodistorçõesoudesorden.sda
tipificada pela opres-
preceito contido no ditado popular que exortavaos negros a permane- personalidaderelacionadascom uma sociedade
cerem "inteligentes e quase brancos" f" stay bright and nearly white,,l. são,pel oracism oepelaSupr em aciabr anca( ouem anadasdessasocie-
Em muitas cidades dos EstadosUnidos, garotinhasnegrasdemonstra- dade).Aprimeiraéa,.desordemdoegoalienado,iemqueoindivíduo.
própria natureza e sobrevivência'
vam sua agilidade física e acuidade rítmica brincando coletivamente comporta-se de modo contrário à sua
bem-estar e em consequência
de pular corda. Frequentemente,sua habilidade era avaliada por uma Aprende a agir em contradição com seu
cantiga rimada que dizia: "se você é branca,está legal; se é parda, fi- ,,aliena"em relação a si mesmo. Desagrada-lheseu fenótipo natural e
se
física de um africano' Quantos
que por perto; se é preta, pule foÍa" [" If you are whíte, you're att ríght; íf tudo aquilo que lhe recorde a aparência
racial não existe ou que'
you are brown, stick around; íf you are black,jump back"l. Reforçarna afro-brasileiros afirmam que a discriminação
econômica? Quantos afro-
psique das crianças a mensagem de que ser negro é ser por natureza se existe,é por causa da classeou da situação
no Brasil ou que vale a boa
uma versão inferior e desviante de pessoa humana equivale a abusar brasileiros acreditam que não há racismo
" que não se aproxima da aparência
das crianças e negligenciá-las.Pele clara e cabelo liso tornaram-se, e aparência e esta é boa na medida em
,,branqueamento,,criou afro-brasileiros
de muitas formas ainda são,os distintivos inquestionáveisde bondade africana?Seráque o sistemade
,,ebeleza.A cor clara e a proximidade da brancura rornam-seo padrão alienadosem relaçãoa si mesmos?
I'
j clo ser humano. Tornam-se a licença para o privilégio baseadona con- A s e g u n d a é a , . d e s o r d e m d o s e r c o n t r a s i m e s m o ' l e m q u e o i n d i v í' .
ou disfarçadaem relação ao pró-
i ìdição racial e a inegável evidência de que se é valoroso e bom. Por ser duo que expressahostilidade aberta
uma negação fundamental do mérito e do valor intrínseco da pessoa, pri ogrupo , epor t ant oasim esm o. I dent if ica- Seexager adam ent ecom
aliza a hostilidade e o negativismo
ì:\ , o resultante "desejo de se aproximar da brancura" se torna uma con- o grupo dominante e imita ou intern
" r dição psicológica debilitante, patológica e de'strutiva."Embranqueci- dessegrupoemrelaçãoaoseu.Assim,comotempo,torna-Secontrário
mento'j "blanqueemíento",vergonha da cor, "quero ser branco'i ódio ouhostilaqualquercoisaquesejanegraouqueoslembrequesãone-
de si - tudo isso resulta numa condição psicológica movida pelo de- gros.Haveráintegrantesdostristementefamososesquadrõesdamorte
Haverá policiais ou professores
sejo disfuncional de ser branco. que são, na realidade, afro-brasileiros?

289
RBAPROPRTANDO UM
W. NOBLES '3 *' SÁKIIÜ SIIETI: RBTOMANDO E
----
x
tó"o psrcor,ócrco AFRocBNTRADo

afro-brasileiros dotados de um ódio e um desprezo profundos aos afro- IwrnnvrNçõEs cLíNrcAs E TERapÊurrces
brasileiros, que consideram "inferiores"?
pelo sistemahistórico de "embran-
Na terceira desordem da personalidade, a "autodestrutiva'j as pes- Ao identificarmos os danos causados
contemporâneos, assim como ou-
soas afetadas se envolvem em fugas destrutivas da realidade, como quecimento,, e seus desdobramentos
drogas, crimes românticos, fantasias de aceitação, e assim por diante. pt":isamos também articular as
tras formas-Eq-*te$odsmn PsicolóËÏ"
e reparar es-
Homicídios, imposturas, cafetinagem, prostituição e tráfico de drogas, ,;;*.;ro"r.rirricas e terapêuticÀììp"ttárias para aliviar .1
(:" :::- :-
cometidos por negros contra negros, são todos sintomáticos da desor- .'- ='= r;o;êióó ãái"áÈúiqg9,no c9.rygrydadesgpanïzaÇão',
-.r r-, paraapoiar,
dem autodestrutiva. Quantos delinquentes de rua são afro-brasileiros e ït 1"i-:::^"Ï^* específico
um Processcdereabiritação
PrecisamosProietar
crenças, atitudes, habilidades e
nem sequer entendem que seus comportamentos autodestrutivos são estimular e Sustentarcomportamentos,
(aspiraçõeshumanas)' Para en- i
fugas psíquicas de uma realidade profundamente antiafricana? atividades culturalmente significativos
clínicos e intervenções terapêuticas
Finalmente, o dr. Akbar observaque há disfunçõesfisiológicas,neuro- frentar essedesafio, os tratâmentos
lógicas e bioquímicas provocadorasde desordens da personalidade que compatí veiscom osakhut êm com oobielivgar . : [ Ì I oduçãoeor ef ina- \ {i
se devem a desigualdadesraciais de longa data no atendimento médico e qu9 há de melhor na africanidade'
ryçr-r,lqdo
nosso eu ampliado (devido ao
na educação,habitação e outras condiçõessocioeconômicasde vida. Deixar de reconhecer ou admitir
Ao tornar o africano humano apenas na medida em que se aproxima ,,branqueamento" ou à vergonha racial), creio eu' é o fato que impe-
das definiçõesbrancasda humanidade, estamostrocando a "força espi- di uosafr icanosdiaspór icoscom ocom unidadedem axim izar opoder
de "força espiritual" que define
ritual'i aquilo que nossa ancestralidade define como essênciahumana, psíquico encontrado no círculo intacto
por um conjunto de novas lealdades. Por isso é tão importante pensar oserafricano. Sim plesm ent enãoconhecer , nãoadm it ir ounegar Ser
de maneira profunda o fato de sermos africanos. afri cano lim it a. , o, , ucapacidadedecur ar anósm esm osecom pr een-
como Ìimita nossa capacidade de
Embora de certo modo seja mais fácil identificar as patologias en- der nossa conexão humana, assim do
e curar uns aos outros' Nos termos
contradas em pessoas-alvodo racismo, é um pouco mais difícil articular realmente cuidar uns dos outros
qual seria a natureza do funcionamento normal ou natural desse povo sakhu,importanotarqueaconcepçãoafricanadoquesignificaSeruma
na ausência da dinâmica racista. Tendo üvido psicologicamente sitia- p e s s o a h u m a n a t a m b é m d i t a n o s s a c o n c e p ç ã o d o e u , e s e a c o n(No-
ceitua--
dos por tanto tempo, muitos africanos üeram a acreditar que suas rea- (negra) do eu (pessoa)é de fato um "eu ampliado"
llzaçáoafricana
ções e acomodaçõesà opressãoracial constituem, de fato, sua maneira bles,1973,1976),entãoo,,paciente,,temdeseracomunidadeinteira.,
normal ou natural de ser. Nossatarefa é curar toda a raça'
Imagino que muitos afro-brasileirostenham negadosuaafricanidade por
tanto tempo (váriasgerações),aceitando a falsaidentidade de serem apenas
caNDoM BLÉ E Q UTLO M BO S
brasileiros,que não percebernmais o ataque contra seuvalor humano e seu LA KHU SHETT, AXÉ'oRr xÁs'
bem-estar.Quasecomo se estivessemnum estado de choque extremo, em
o desafio de articular uma compreen-
que o corpo não sente mais a doq,muitos afro-brasileirosnão sentem mais Ao retomar e reafirmar o sakhu, ex-
humano africano, tanto em suas
o valor ou a importância de serem africanos.São simplesmente brasileiros. são plena e total do funcionamento
Nesseestado de choque cultural, buscam refirgio em declarar e defender a pressõesnormativascomoaberrantes,exigeabusca,oestudoeodomí..
,,iluminar o espírito humano,, dos povos
posição do Estadode que "Somostodos brasileiros'jmesmo quando todos nio profundos e penetrantes do se crê'
por exemplo, o ori e o orixâ,ao que
os brasileirosnão sãoigualmente tratados ou respeitados. africanos. Na tradição ioruba,

29r
29o
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I W. NOBLBS ì+ *"ïii#ii:ãi?YâJÏ3"ïi"ffi
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o signi-
são incorporados ao ser humano no momento biológico da concepção. o sakhu shetié o processo de entender, interrogar e explicar
para o povo afri- I
o espírito, ou orixá, constitui a parte essencialda pessoa,e o processo ficado, a natureza e o funcionamento do ser humano
do estudo e
de iniciação é o ato de recolocar ou realojar o espírito no ori, a cabeça cano, por meio da busca rigorosa, profunda e penetrante,
humana:
e o destino,da pessoa.A prática iniciatória comum de corta4 raspar,la- do domínio do processo de "iluminar" o espírito ou a essência
terapia novos,
var, perfurar, jejuar e alimentar o orí, a cabeça, destina-se a "consertar'j Exige desenvolver um pensamento, uma teoria e uma
o impera-
abrir ou estimular o orixá dentro do próprio centro da consciência da que reflitam e respeitem a "força espiritual" africana como
venha a possuir tanto o
pessoa. É pela iniciação que o orixá recebe a autoridade de atxiliar os tivo intelectual e instintivo para que o africano
mental e social
sereshumanos a perceber e realizar seu destino. As metáforas como "fi- impulso revolucionário para atingir a libertação física,
que permitam alcançar formas
lho de ...'f"ser montado por ..." e "diga ao meu cavalo" referem-se todas quanto a inspiração e o impulso criativo
futuro' Na ver-
à manifestação do "espírito" e à sua importância central nas relaçõesin- superiores e mais significativas de vida humana para o '''
ter, intra e supra que abrangem a experiência e a capacidade humanas ;.,flad,e,o sakhu sheti permite uma compreensão mais precisa no con- 'l
orixás como
de compreender e comunicar-se com toda a realidade. Acredita-se que, texto do afro-Brasil, dos quilombos, do candomblé e dos
no transe, um "espírito externo" monta a "pessoa interna'i que se torna evi dên ciasdoim pulsor evolucionár ioedoim pu1soinspir at ivoquer e-''
mental e
transparente ao espírito; este,por sua vez, se manifesta à comunidade. velam e iluminam o espírito africano no Brasil, fonte da saúde
Em minha própria iniciação ao Ifá em osogbo, Nigéria, em 19g7,mi- do bem-estar dos afro-brasileiros'
do ser
nha cabeça (ori) foi "aberta" com a fixação de um gorro especialà ca- A noção de axé é fundamental para penetrarmos na natureza
o texto
beça raspada, e o "espírito" foi "afixado" na minha ori. Deram-me um africano. Para entender o axé, contudo, precisamos examinar
orumilá estava
alimento especial para começ palawas para dizer e passospara execu- sagrado dos ioruba. Nessetexto, afirma-se que, quando
suprema auto-
tar (dançar,caminhar para trás, e assim por diante). Iejuei, banhei-me, descendoà terra, Olodumaré lhe deu o odu, atributo da
obedecido' Esseodu era o
ofereci animais aos "habitantes do céu" e, intermitentemente, dormi e ridade para falar e agir e ser implicitamente
presençapoten-
tive üsões. Num ritual, colocaram axé em minha boca, de modo que axé (Idowus, 1994,p.72). o axé é a força geradora ou
plantas, ani-
minhas palavrasfossem poderosase eficazes.Embora a linguagem co- cial em todas as coisas (rochas,morros, rios, montanhas,
(preces, canções'
note que algo "externo" tenha sido colocado em mim, seria mais exato mais, ancestrais,divindades) e nas expressõesverbais
Odu
dizer que "afixar" significa "corrigir'i o que se corrigiu em mim signifi- maÌdiçõese mesmo o discursocotidiano)(DrewaI,1992,p'27)'No
a cada orixá um
cou ativar aquilo que eu já tinha. Ifu-Owonyin ose,afirma-seque olodumaré tinha dado
de fazê-las acontecer
como seresvivos, somos,com efeito, espíritosüvendo uma experiên- axé particular, o poder de dar existência às coisas,
de to-
cia humana. Somoso universal expressocomo pessoaindiüdual. Pelaini- (Mason, 1996,p.7). o axé é a autoridade,o poder e a vida dentro
ciação, nossos ancestraisentendiam que, como espíritos,crescemosem das as criaturas.
a chave para
poder ou clariüdência e portanto somos capazesde melhor guiar nossa Eüdentemente, podemos encontrar na noção de axé
I'
tem seu axé' Ele é ine-
experiência e nossa apreensão da realidade como de seres humanos. entender o sakhudos povos africanos.cada orixá
a "energia" ou
Aqui o dado importante é que se nós não compreendermos plenamente rente e necessário à existência de cada ser. Representa
de todos os
nossa percepção africana da realidade, então, ao tentarmos discutir ou força que constitui a essência,a autoridade e o desempenho
do axé também
praticar a religião africana,vamos compreendê-la de maneira equivocada fenômenos do universo. uma compreensãoadequada
e os quilom-
e realizar de forma inadequada os rituais. Assim, é fundamental nos en- se faznecessáriapara entendermosos orixás,o candomblé
gajarmosno sakhu a fim de'tonhecer" as coisasafricanas. bos no Brasil.

292
293
W. NOBLES *
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ï:*ã:iïïËïï
um exame mais profundo do fenômeno do orixá ajuda a explicar
ou Como uma "força" consciente e cognoscível,Xangô, poÍ exemplo, é o
observar o sakhu na prática. A ideia de orixá nos ajuda a entender
o que orixá dos Opostos,conceito representadopelo machado duplo. É o deus
significa ser africano no nível da pessoae como o Sakhu Shetíé necessário
do raio e do trovão. Como energia ou força universal, Xangô assume a
para se compreender plenamente o se! a pertença e o vir-a-ser
do povo forma concentrada e os atributos conscientesde coragem, engenhosi-
,africano.uma concepçãoafricanado cosmo é a crençade que
a realidade dade, preparação, inteligência (perspicácia), poder, majestade, ferti-
se diüde em dois reinos cósmicos complementares,o mundo
üsível e o lidade e procriação. Ele governa os testículos.Os sereshumanos seus
mundo inüsível. A energia,o podeq,a força ou espírito diüno é
a essência filhos, "omo de Xangô'i são espíritos(forças)em forma humana que re-
do cosmo e se expressanos dois reinos. Essaenergia ou ,,força,,universal
fletem os atributos ou as qualidadesde coragem,fertilidade,majestade,
se concentra em várias "formas" com qualidades,atributos e característi_
e assim por diante. Como "força" conscientee cognoscível,Obatalá re-
casinerentes,e por isso reflete e representatodos os objetosperceptíveis
e presentao orixá da "Integridade'iÉ o deus da sabedoria,da felicidade e
imperceptíveisda realidade.Com efeito, essaenergia ou força
universal é d,apaz. Como energia ou força universal, Obatalá assumea forma con-
um espírito vivo inteligente de que todas as coisassão dotadas.
Os orixás centrada e os atributos conscientesde pureza, sabedoria,moralidade,
são "forças" concentradasda natureza e protagonistasdo mundo
místico- humildade e discernimento.Governa a cabeça.Os sereshumanos seus
histórico dos ancestrais.o Odu lftiexplica que seresse transformaram
em filhos, "omo de Obatalá" são espíritos (forças) em forma humana que
orixáspor meio de seu grande conhecimentoe de seuspodereslumino_
representamou refletem os atributos ou as qualidades de integridade,
sos.O Odu Owonrínweseafirma(Elebuibon,I9gg, p. 59):
púÍeza,paz, sabedoria,e assimpor diante.
Brasil, é im-
Quando consideramoso candomblé e os quilombos do
Orumilá disse:sereshumanostornam_seorixá. oS portuguesestemiam o poder
portante perceber que, acima de tudo,
Eu disse:sereshumanostornam-seorixá. prática do
do espírito africano, tal cotno refletido no quilombo e na
Orumilá disse:vocênão vê Obatalá?
candomblé. Ao reconhecerque o significado do que é ser africano (um
Ele eraum serhumano,
espírito vivo consciente e cognoscível)se alimentava de forma livre e
Mas quandoficou sábioe pôderoso,
contínua nos quilombos, a presençae a prática do candomblé estabe-
Tornou-seum orixá.
leceram um poderoso contraponto à socializaçãoe ao racismo brancos
Orumilá disse:sereshumanostornam_seorixá.
(portugueses).Aquilo que os africanosconsideravama base de sua hu-
Eu disse:sereshumanostornam-seorixá
manidade exigia a destruição dos quilombos e o descarrilhamento da
Orumilá disse:vocênão vê Xangô?
relação dos africanos com Deus (candomblé). o significado intrínseco
Ele eraum serhumano,
que nossosancestraisatribuíam aos sereshumanos tinha de ser descar-
Mas quandoficou sábioe poderoso,
rilhado (desafricanizado)para que os africanosfossem escravizados.O
Tornou-seum Orixá.
processode descarrilhamentocontinua sob o disfarcedo embranqueci-
mento e das atitudesconflitantescom respeitoao candomblé.
Eni to gbon nni won mbo o
Embora todo o sistema do candomblé tenha sido alvo de persegui-
(o sábiosetorna um orixá a serpropiciado) o aspectomais difícil de
ção religiosae ataquesdo Estado,para muitos
apreender,e provavelmenteo mais temido, é o ato do transe ou da pos-
Eeyannii d'Orisa
sessãoespiritual. A psicologia ocidental (branca) explica a possessão
(o sábiosetorna um orixá).
espiritual como uma espéciede anomalia psiquiátrica.E considerada

294 295
*'""''íi#i ouM
Ï3"ï:iffiïHiAND
ïi:ã";?YâJ
resgatar,reivindicar e rein-
uma forma de histeria ou ilusão. Essasavaliaçõesnada mais são do que produzidos, possamoscontinuar a exploraç
Sheti como teoria e prá-
atos historicamentecondicionadosde descarrilhamento. ventar a compreensãoe a utilização do Sakhu
como para os africanosdo con-
Mas o candomblé constitui o melhor exemplo da utilidade do sakhu. tica úteis para os afro-brasileiros,assim
É a revelaçãoabsoluta do espírito üvo como essênciaconscientee cog- tinente e de toda a diásPora'
noscível. O transe místico representa oportunidades nas quais diferen-
tes concentraçõesde energia (ancestrais,orixás, e assim por diante)
se manifestam e, assim fazendo, partilham e participam da comuni- NOTA
.dade humana. A chamada possessão,ou transe espiritual, é mais bem mas
poderia ser traduzido como espiritualidade'
compreendida como uma reunião, reconexão ou concretização do axé 1 | o original em inglês , " spiritness"
;,fo.çu espiritual" por comunicar um componente fundamen-
preferimos o termo de
de diferentesdomínios da realidade.Consideremoso perigo represen- post.,,a crítica e desafiadora' a capacidade
tal do significado de,,spirítness,,'u que carac-
tado (na üsão dos portugueses)por centenasde quilombos em que afri- diante de situações desfavoráveis
resistência e renovação de energias de
de sua trajetória de cativeiro e construção
canosviüam esseencontro com espíritosconscientese cognoscíveis. terizaos afrodescendentes ao longo conota-
entre aspas para realçar essa
Podemos imaginar que Zumbi, tendo vivenciado uma criação na liberdade na diáspora. Grafamos a expressão
ção. INota da organizadora']
Igreja Católica,percebia o quilombo como único lugar onde os africa-
nos teriam a liberdade de viver como africanos.Nós que nos dedicamos
à saúde mental do povo africano não devemos eÍÌxergarcomo mental-
mente saudávelo desejo de Zumbi de ser africano e liwe? Poderíamos
'
até classificaressedesejo como pulsão palmarina e afirmar essaneces-
sidade palmarina (o desejo de ser africano e liwe) como tão irresistível
quanto o desejo de ser reconhecido, de ter valoç ou a necessidadede
comida e água.Em outras palavras,o ato de nos declararmosafricanos
e nos engajarmosem atividades afrocentradaspoderia ativar aspectos
de nosso espírito capazesde nos tornar mais poderosos?Seráque a ne-
gação da africanidadepelo processodo embranquecimento resulta em
formas de aflição psicológicaou constrangimentosocial que deixam os
afro-brasileiroscom a sensaçãode impotência e confusão?Poderíamos
imaginar, por meio do Sekhu Shetí, uma forma de definir o melhor do
' ser humano no Brasil, sem sacrificaro africano no altar da brasilidade?
ì
lSerá possívelque o Brasil reverta sua longa história de antiafricanidade
i e se torne um lugar de liberdade,ou seja,uma nação palmarina?
Minha convicçãoé que o SekhuShetipode ajudar os afro-brasileiros
a restabeleceremo lugar em que todos possam respeitaq,com honesti-
dade, sem pedir desculpase sem sentir vergonha, a utilidade, as reali-
zaçóes,a alegria e a beleza de ser,pertencer e tornar-se africano. Espero
que, com esta coleção Sankofae com outros liwos e recursosa serem

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