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EUGENE BOYLAN

A DIFICULDADE
DE ORAR

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br

EDITORI AL ASTER

LISBOA
A D I F I C U L DAD E
D E ORAR

EUGENE BOYLAN, neste livro, dirige-se


sobretudo àquelas pessoas que encontram
dificuldades nos métodos usuais de meditação.
Fala de oração àquelas almas que sentem
a necessidade de falar com Deus, porque
sabem que é Pai, e dá-nos uma lição prorunda
e simples: sendo a oração absolutamente
necessária para a vida cristã, não pode estar
obrigatoriamente ligada a processos compli­
�dos, diriceis para a mentalidade normal.
A oração tem de ser natural e constante,
como a respiração para a vida rlsica.
O autor dirige-se, portanto, a todos os
cristãos, mostrando-nos como a todos é aces­
sfvel a oração - tanto ao religioso arastado
do mundo, como ao sacerdote secular, ou
ao simples cristão na sua vida corrente -,
porque a oração é afinal o resultado da ami­
zade que se possuir com Deus, sendo, ao
mesmo tempo, causa duma progressiva inti­
midade com Ele.
'

p R E F A c I o

Há um processo para imprimir desenhos a cores que


requer a elaboração de chapas separadas para cada
cor elementar que compõe o desenho. As impressões
de cada uma destas chapas são sobrepostas umas às
outras e, se a intensidade relativa de cada cor é correcta,
o resultado é bastante natural. Se, no entanto, qual­
quer dos tons é demasiado fraco, então haverá um
defeito correspondente na reprodução final da cor
autêntica, que pode talvez corrigir-se com uma impres­
são suplementar do elemento enfraquecido.
Ora a finalidade destas páginas é algo parecido com
essa impressão suplementar. Não é que a apresen­
tação corrente da oração mental seja defeituosa, mas
a ideia que muitas almas receberam da oração mental
precisa de ser reforçada em algumas «cores». Esta
finalidade expiica a extensão Irregular em certas maté­
rias, que o leitor notará nestas páginas. O assunto da
meditação metódica é apenas esboçado, já que há
tantos livros excelentes que a tratam elft pormenor.
Além disso, as almas a quem este livro é primeiramente
dedicado, são aquelas que não conseguem aproveitar
com os métodos usuais de meditação, e também aquelas
que em tempos foram capazes de meditar, mas que agora
acham que se lhes tornou impossível fazê-lo.

9
PREFÁCIO

Para enquadrar esta impressão suplementar no


quadro geral da oração esboçou-se pelo menos o assunto
na generalidade, abordando-se mais largamente algu­
mas faces que parece necessitarem de um tratamento
mais minucioso. Mas há outro motivo para que insis­
tíssemos em incluir uma análise de estados de oração
como aquela a que chamamos a oração de fé, e para
que peçamos ao leitor, seja qual for a sua posição na
escada da oração, que leia a obra toda. Diga-se o
que se disser àcerca da lei geral do desenvolvimento
da oração, quando se observa e se tira a média entre
um grande número de almas diferentes, a maior parte
dos indivíduos acha que a sua trajectória de progresso
é extremamente sinuosa e revela variações rápidas e
amplas. Parece, portanto, que, excepto talvez mesmo
ao principio, uma familiarização com a natureza e a
técnica de todos os estados de oração é não só vantajosa
em qualquer estado, mas até necessária em todos eles.
Esta obra, apesar do título, não é uma análise cien­
tífica ou um catálogo classificado das várias dificul­
dades que podem surgir na oração, como uma solução
prática completa para cada um, colocada no lugar
devido. O seu objectivo é, antes, discutir a natureza
e os modos de oração, não com objectividade cienti-

lO
PREfÁCIO

fica, mas do ponto de vista individual, encarando-a


como ela aparece a cada um. Deste modo espera-se
colocar a alma em cpndições de lutar com a maior
parte das suas dificullades. Além disso, o objectivo
principal não é tanto instruir o leitor como animá-lo a
insistir na oração e levá-lo a procurar novos esclareci­
mentos nos trabalhos de penas mais competentes.
Por isso é que o tratamento do assunto é tão conden­
sado; e tanto é assim que será necessária uma segunda
leitura para extrair dele tudo quanto tentámos dizer.
Esta segunda leiu
t ra é ainda mais aconselhável pelo
facto de que os capítulos iniciais serão mais fàcilmente
entendidos à luz dos seguintes.
Por ser ponto tão bem tratado em muUas outras
obras, supõe-se que o leitor tem consciência da neces­
sidade da oração mental. Um cristão que não ora, é
como um homem que nem pensa nem quer �·um sim­
ples animal na vida espiritual. A busca da perfeição
é completamente impossível sem a oração mental que
pode, é claro, fazer-se com bastante inconsciência.
De facto, pode dizer-se que se um homem não ora, não
pode salvar a sua alma.
E nem mesmo nos é lícito pensar que os próprios
leigos estão, pela sua vida, excluídos de aspirar a um

11
PREFÁCIO

progresso na oração como o que se indica neste livro.


Qualquer pessoa que esteja preparada para servir a
Deus com boa vontade e dedique diàriamente tempo
bastante à leitura espiritual e à oração pode com fun­
damento esperar crescer em amizade com Deus, isto
é, progredir na oração. As dificuldades dos leigos na
vida interior requerem uma análise mais detalhada do
que se pode fazer neste livro, mas não são insuperáveis
e não podem impedir que nenhum leigo de boa vontade
tenha uma vida interior de oração mesmo no mundo.
Somos, além disso, completamente contrários à teo­
ria de que não há nenhum estado de oração entre a
meditação metódica ordinária e a contemplação pas­
siva. Como, segundo esperamos, se tornará evidente
nestas páginas, a oração parece-nos ser o resultado de
uma progressiva intimidade e amizade com Deus.
Se a oração não pode progredir, então tão-pouco pode
progredir a amizade.
Este ponto é de grande importância prática, porque
as falsas noções a este respeito podem fazer com que
a alma perca todas as esperanças de alcançar a união
com Deus. Ao longo do que se segue, tentaremos
mostrar como esta união pode ser procurada e encon­
trada por uma intimidade sempre crescente com Jesus

12
PREFÁCIO

na oração e no trabalho. Isto conduz a encarar cada


exercício da vida religiosa como um ponto de encon­
tro onde o cristão tem a certeza, não só de achar Jesus,
mas também de poder e.f_tar unido com Ele.
Notar-se-á ainda que se evitou, em grande parte,
dividir a oração em estados de desenho e recorte nítidos.
As definições, quando de todo se dão, são frequente­
mente amplas e algumas vezes vagas. Isto, no entanto
é propositado. Não vale a pena querermos ser mais
precisos nem mais rigorosos nas nossas noções do que
o é a própria realidade da oração. Ora a oração, em
especial do ponto de vista individual, pode muitas vezes
ser muito imprecisa e inclassificável. E ainda mesmo
se existe uma escada de oração bem marcada para cada
individuo, não é de modo algum necessário, pelo menos
como regra geral, saber em que degrau se encontra.
O importante é evitar parar, e subir sempre.
O facto de a mesma dificuldade reaparecer com fre­
quência em diferentes estados do progresso na oração,
e de o mesmo principio ter muitas aplicações ao longo
da vida espiritual conduziu a algumas repetições no
texto. Num livro escrito para ir ao encontro das neces­
sidades de almas isoladas e que foca o seu assunto de
diferentes pontos de vista e tenta tratar os muitos mal

13
PREFÁCIO

entendidos e noções erradas com que se pode topar,


tal repetição parece justificada e será, segundo cremos,
perdoada de bom grado.
Não nos desculpamos de fazer o que só pode ser uma
tentativa imperfeita na difícil tarefa de esboçar a dou­
trina de S. Paulo sobre a habitação das pessoas divi­
nas na alma baptizada e a incorporação da alma em
Cristo. Esta doutrina foi o alicerce do ensinamento
do apóstolo. É ainda um fundamento sem rival para
uma vida de oração, parecia-nos que é não só o melhor
encorajamento para ela, mas também o mais seguro
apoio para a esperança de levá-la a bom termo. Em
particular, o próprio S. Paulo dá testemunho de que o
Espírito Santo auxilia a incapacidade da nossa oração,
e muitos teólogos vêe11J uma estreita relação entre a
operação dos dons do Espírito Santo e o desenvolvi­
mento da oração.
O facto da busca da oração implicar a busca da san­
tidade, não há-de causar alguma dúvida a ninguém
quanto à possibilidade de a alcançar. Quando o nosso
Salvador se lavantou de entre os mortos, tinha tomado
sobre si mesmo e triunfado de todos os possíveis
obstáculos do nosso passado, do futuro de nós mes­
mos ou da nossa volta, que pudessem interferir na

14
PREFÁCIO

nossa santidade. A agonia que despedaçou o seu


sagrado Coração no Horto, foi o pensamento de que
depois de ter feito e sofrido tanto - muito mais do
que seria porventura necessário - pela nossa santidade,
nós havíamos de tornar o seu sangue inútil pela nossa
cobardia e pela nossa ausência de fé e de confiança
n' Ele. O maio� valor que nós podemos dar aos sofri­
mentos de Cristo, é acreditar que podem santificar até
mesmo os que são como nós.
Temos de facto de completar em nós mesmos aquilo
que falta à ressurreição de Cristo no seu Corpo, dei­
xando-o ressuscitar em nós pela nossa santidade.
Se se desprender destas páginas alguma graça, algum
bem, algum proveito, isso deve-se à intercessão de
Maria- Mãe de Cristo-, deve-se à graça do Espf­
riU) Santo que opera no mais indigno sacerdote, deve-se
aos sofrimentos de Cristo, que mereceu todas as
graças para os homens, deve-se à misericórdia do Pai
do Céu, que quer restaurar todas as coisas em Cristo,
no qual, na unidade do Espfrito Santo, reside toda a
sua glória.

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IN T R O D U Ç Ã O

Perante a dificuldade sempre crescente de levar


uma vida santa em contacto com um mundo que se
torna cada vez mais flagrantemente pagão, impelidas
muitas vezes pelo sentimento mais ou menos cons­
ciente das necessidades de um dos momentos mais
críticos da história da cristandade, muitas almas
começaram a examinar o estado da sua saúde espi­
ritual e a procurar meios de progredir. A necessi­
dade de maior energia interior levou-as a considerar
em especial a sua oração, pois foi-lhes dado chegar
a compreen der que a oração é a fonte do seu vigor
e o centro da sua vida espiritual.
O resultado da investigação é, em muitas casos;
insatisfatório e desanimador. Muitos acham que
alguma coisa está mal na sua oração ; notam uma
falta de progresso, uma dificuldade cada vez maior
e mesmo uma crescente falta de gosto nesc:e exercício.
Alguns concluem que para eles é uma pura perda
de tempo continuar a «oram como t�m feito ;
outros acham o tempo dedicado à oração uma carga
que se está a tornar quase intolerável. É na espe­
rança de fazer alguma coisa para aliviar estas difi­
culdades que estas páginas foram escritas.
Não há razão nenhuma para que os seculares, no
mundo, não encontrem proveito na discussão destes
dramas. Mesmo os principiantes podem cobrar

17
A DIFICULDADE DE ORAR

coragem se as possibilidades da oração lhes são


postas diante, e uma vez que se corrijam os seus
mal-entendidos sobre a natureza da oração, tentarão
a sua prática regular com renovado propósito. Mas
só depois de se ter feito uma tentativa continuada
na oração regular, é que estas linhas encontram por
completo a aplicação pretendida.
Não se pretende fornecer um catálogo exacto das
dificuldades da oração, com um remédio determinado
para cada uma ; antes esperamos, que examinando
as origens donde procedem as dificuldades, o leitor se
tomará capaz, talvez depois de algumas experiências,
de encontrar uma solução para os seus problemas.
Visto que muitas das dificuldades surgem de noções
erradas da sua natureza, vamos em primeiro lugar
passar uma breve revista ao desenvolvimento da
oração, de modo a fixar a nossa perspectiva, para
então voltarmos a uma análise mais detalhada dos
seus vários elementos e estados.
Falando tecnicamente, a oração é uma elevação
do espírito e do coração para Deus, para o adorar,
para o louvar, para lhe agradecer os seus benefícios
e lhe pedir graça e misericórdia. Num sentido mais
restrito, a palavra restringe-se à oração de petição,
isto é, ao pedir a Deus coisas convenientes. Os seus
principais efeitos são fazer-ncs amar a Deus mais
e mais, conformar a., nossas vontades com a sua,
fazer-nos verdadeiramente humildes e levar-nos a
estar mais intimamente unidos a Ele.
Pode com acerto descrever-se como uma conversa
amorosa com Deus, especialmente se se recorda
que a conversa abrange tanto o ouvir como o falar,
e que os grandes amigos podem com frequência
conversar sem palavras. Quando com os lábios
utilizamos uma dada fórmula e procuramos confor­
mar de algum modo os nossos pensamentos e dese-

18
INTRODUÇÃO

1os com us nossas palavras, temos o que vulgarmente


HC chnmu oração vocal. Mas, é claro, para que che­
�uc a ser oração, o espirito tem de tomar nela alguma
pnrtc. Naquilo que se chama oração mental pro­
curamos fazer surgir estes pensamentos e desejos
em nós, por alguma reflexão e então dar-lhes expressão

por palavras- palavras nossas, em geral- ou


mesmo por aquele eloquente silêncio em que o cora­
ção fala a Deus e lhe dá o louvor adequado sem o
ruldo das palavras. Mas ainda que articulemos
palavras, ou pronunciemos esses actos e desejos, a
nossa oração não deixa por isso de ser oração men­
tal. É este, um erro que algumas pessoaf corr.etem,
pensando que devem reprimir qualquer expressão
articulada ou discurso, na oração mental. Pelo
contrário, se, como é frequentemente o caso, a arti­
culação com os lábios contribui para tornar os nossos
actos mais ferverosos ou mais reais, pode perfeita­
mente usar-se. Mas não é essencial. Nisto, como
em assuntos semelhantes deve prevalecer uma santa
liberdade de espírito.
Os «actos» que fazemos na oração, chamam-se
afectos. O significado corrente desta palavra é
inteiramente diverso do que se lhe dá aqui. Os
afectos na oração são essencialmente actos de von­
tade pelos quais ela se dirige para Deus, e suscita
outros actos das diversas virtudes, tais como fé,
esperança e amor, arrependimento, humildade, gra­
tidão ou l ouvor. Nos primeiros estados da vida
espiritual, estes afectos não podem, geralmente, ser
produzidos sem uma consideração laboriosa e um
e.:;forço fatigante. As coisas desta vida, o afogadilho
da actividade humana, a experiência diária dos sen­
tidos, de tal modo inundam li imaginação e excitam
as emoções que as verdades mais abstractas da fé
e os mistérios da vida de Cristo, a dezanove séculos

19
A DIFICULDADE DE ORAR

de distância, pouco cabimento têm no espirito. Temos,


portanto de gastar algum tempo da oração a passar
em revista estes pensamentos e a estimular o coração
para que actue e dê expressão aos seus desejos.
A palavra meditação, no seu sentido estrito, denota
este trabal ho preparatório da reflexão e considera­
ção, que ainda não é realmente oração ; é apenas um
prelúdio para a oração. Os afectos e petições cons­
tituem a verdadeira oração.
Por este motivo é pouco feliz o costume de aplicar
a pal avra meditação ao conjunto de exercícios da
oração mental. Apesar de reservarmos este ponto
para uma análise mais completa num capítulo pos­
terior, diga-se desde já que a palavra meditação,
no seu sentido mais lato, quando aplicada ao exer­
cício da oração mental em conjunto, abrange muito
mais que o sentido estrito da palavra. Para que
possa chegar a ser oração, tem de incluir algumas
petições ou actos.
À medida que se avança na vida espiritual, desen­
volvem-se convicções que fàcilmente se revivem no
momento da oração ; a leitura e a reflexão, dois ali­
mentos essenciais da vida espiritual, aprofundam o
conhecimento de Cristo e da sua doutrina, e
fazem-nos crescer no seu amor ; a realidade das coi­
sas do espirito toma-se mais intensa. O resultado
é que o tempo necessário para a consideração preli­
minar se reduz cada vez mais e os afectos apresen­
tam-se mais fàcilmente e ocupam gradualmente a
maior parte do tempo da oração. Uma tal oração
chama-se «oração afectiva».
Nessa altura, exactamente como quando se esta­
belece a amizade entre dois homens, amadurecem
a mútua compreensão e a comunhão de objec­
tivos e as palavras começam a ganhar toda uma
riqueza de significado, assim também, à medida

20
INTRODUÇÃO

que cresce a intimidade com Deus, a virtude progride


paralelamente, podemos descobrir que os nossos
afectos - isto é, os nossos actos de vontade e das
outras virtudes - necessitam cada vez de menos
palavras para se exprimirem, e pode algumas vezes
acontecer que nos contentemos com ajoel har em
adoração silenciosa, ou em mudo arrependimento,
ou com qualquer outro «afecto» semelhante, sem usar
pa1avras. Assim, a nossa oração simplifica-se.
A esta oração simplificada chama-se frequente­
mente <<Oração de simplicidade», mas embora os
autores estejam de acordo quanto à definição do
termo, poderia parecer que a aplicam a coisas muito
diferentes, e por isso, para evitar mal-entendidos,
parece-nos preferível evitar nestas páginas, o uso
daquela express�o. A oração a que acabámos Je
nos referir pode ser chamada oração dos afectos
simplificados.
Em tudo isto, � claro, a graça de Deus tem estado
a trabal har. Algumas vezes, no entanto, no caso
duma alma que é generosa e humilde, e que se recusa
a pactuar e a assinar a paz com o amor próprio
- não importa quantas vitórias ocasionais possa ter
ganho o inimigo - acontece que Deus começa a
desempenhar um papel ainda maior na sua oração
A sua acção é dum tipo novo e pode de im­
cio passar desp�cebida. Opera nas profundidades
da alma e serve-se muito pouco, ou nada, da imagi­
nação ou das emoções ou mesmo da actividade ordi­
nária da inteligência. Este estado de oração, que
aqui chamaremos uma oração de fé - sem, no
entanto, insistir demasiado na exactidão do termo -
é urna oração de grande valor e muito eficaz para
unir a alma a Deus. Tem as suas dificuldades e
embaraços próprios e pode requerer o exercício de
muita paciência e um esforço decidido. Se, no

21
A DIFICULDADE DE ORAR

entanto, se persevera com generosidade e confiança


em Deus, conduz a grandes graças de oração e san­
tidade. Não será exagero chamar-lhe um atalho
para a santidade.
Antes de deixar este capítulo para considerar
com maior detalhe as diferentes fases da oração,
que acabámos de esboçar, antecipando uma análise
futura do assunto, pode dizer-se, que ainda que
os autores dividam a vida espiritual em «estádios»
correspondentes aos diferentes graus de oração, que
se encontram de modo característico nas a1mas,
não há uma fronteira nítida de demarcação, nem
tão-pouco nenhuma uniformidade estreita em cada
um dos graus. A1gumas vezes, por exemplo, em
especial durante ocasiões de grande alegria ou pesar,
mesmo o principiante pode encontrar-se a orar dum
modo muito simplificado, ao passo que, por outro
lado, a alma adiantada pode ter de regressar à técnica
da meditação para ultrapassar alguma dificuldade
temporária. Em todas estas matérias há muitos
mal-entendidos, e como muitas das dificuldades na
oração mental, provêm destas noções erradas, os
capítulos seguintes darão, antes de mais nada, um
breve resumo das diferentes faculdades que a alma
usa nas suas operações, para depois tratar com mais
pormenor das várias fases de oração aqui esboçadas.

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AS POTÊ
NCIAS DA ALM A

Falando tecnicamente, o homem é um animal


racional. Como os animais brutos, participa da
faculdade da sensação e do apetite sensível, enquanto
que, do mesmo JI!.Odo que os anjos, tem inteligência e
vontade.
No estado de graça torna-se participante da
natureza divina e é enriquecido com o poder de
conhecer e amar a Deus pela fé, esperança e caridade.
Todo o seu conhecimento natural depende do tra­
balho dos seus cinco sentidos externos. Tem, no
entanto, sentidos internos, dois dos quais, a ima­
ginação e a memória, nos interessam aqui. Por
meio destas faculdades, pode recordar e reproduzir
as imagens obtidas pelos sentidos externos, por meio
duma espécie de quadro falante. Pode mesmo
reconstruir quadros novos - ou «fantasmas)), corno
se lhes chama - com o material fornecido pela expe­
riência anterior
Além destas faculdades de conhecimento sensi­
tivo há também a importantíssima faculdade de
desejo sensível, chamada apetite sensível, a qual
deseja qualquer objecto bom ou atractivo que os
sentidos apresentam ao sujeito, quer duma forma
real, quer na imaginação. Esta faculdade é auto­
mática, isto é, actua imediatamente assim que s e
lhe apresenta o objecto, e a sua acção é , muitas vezes,

23
A DIFICULDADI! DI! ORAR

acompanhada por aquilo a que os filósofos chamam


uma paixão, a qual produz um certo efeito corporal.
Podemos ver este apetite actuar - a palavra tem
aqui um sentido muito mais vasto do que na lin­
guagem corrente, porque engloba todos os impul­
sos que se dirigem ao bem de qualquer sentido ­
nos nossos momentos de ira ou, por exemplo, no
desejo dos alimentos proíbidos nos dias de absti­
nência. Note-se de passagcm que, por ser auto­
mático e estar portanto fora do controle da vontade,
este desejo não pode ser nunca um pecado em si
mesmo. Se isto se entendesse claramente, evitar­
-se-ia muita preocupação sobre o suposto consenti­
mento a maus pensamentos e à ira, e quejandos.
Há desejo, mas só no apetite sensível ; não pode
haver pecado até que a inteligência reconheça a natu­
reza pecaminosa do objecto e a vontade o deseje.
Deste modo, numa sexta-feira, por muito que o
«apetite» do homem deseje a carne, desde que a
sua vontade recuse o consentimento, não só ele não
peca, como ainda pode tirar daí méritos.
Esta digressão, que introduzimos por causa da
sua importância em outras circunstâncias, faz-nos
reparar nas faculdades mais elevadas da inteligência
e da vontade. A inteligência é a faculdade pela qual
o homem conhece a verdade ; o seu âmbito é i ndi­
cado pela sua capacidade de conhecer verdades
abstractas, relações, ideias universais, etc.. Nesta
vida - pelo menos enquanto opera segundo o seu
modo actual - a inteligência actua abstraindo o
seu conhecimento dos objectos individuais concretos
representados na imaginação. Mas, mesmo depois
de a i nteligência ter obtido matéria para o pensa­
mento, a imaginação ainda continua a tentar elaborar
alguma imagem que represente as ideias com as
quais a inteligência está a trabalhar. É por isso

24
AS PO'rtNCIAS DA ALMA

que o pensamento abstracto é tão fatigante, porque


a imaginação não pode nunca atingir completa­
mente o seu objectivo ; tem muitas vezes de conten­
tar-se com imaginar uma palavra, ou alguma imagem
vaga, que se adapte à ideia. Os seus esforços podem
ser exemplificados tentando ver que «imagem» forma­
mos de Deus. As suas limitações podem exemplifi­
car-se, se tentamos representar as noções de «depen­
dência>>, de «casualidade» ou de «honestidade», ou
qualquer outra ideia abstracta semelhante.
A vontade é o apetite intelectivo, é a potência
pela qual desejamos ou «amamos» objectos que a
inteligência afirma como bons. Tudo pode ser
olhado como bom sob algum aspecto ; mesmo o
pecado é desejado como um bem - um bem dos
sentidos. Em última análise, o mérito pertence só
aos actos da vontade, e o pecado só pode come­
ter-se através dela. Da actuação da vontade depende
toda a vida espiritual. A vontade é uma faculdade
livre, cuja actividade nos está de tal modo sujeita que
nenhum objecto criado pode forçá-la a actuar.
Por causa desta dúplice natureza do homem, surge
um certo número de reacções às quais está SUJeito
e que designaremos, de um modo geral, por emo­
ções ou paixões. Estas radicam-se na sua natureza
sensível ou animal. A alegria, com a respectiva
expressão corporal, que um rapaz tem por ser clas­
sificado em primeiro lugar num exame, é, na sua
origem. talvez mais racional do que sensível; a vio­
lência com que o mesmo rapaz riposta quando é
atacado, vem mais da sua natureza sensível do que
da acção do entendimento. A este último tipo de
reacções pertencem muitos daqueles «sentimentos»
que se encontram na oração: consolação, aridez,
pesar, alegria, etc.. Por isso se apresentou aqui o
assunto, pois é óbvio que, enquanto procedem

25
A DIFICULDADE DE ORAR

dos sentidos, tais movimentos não são, em si mes­


mos, meritórios nem mesmo sinais de verdadeira
devoção, que consiste na prontidão da vontade
para servir a Deu-;. São, no entanto, um enorme
auxílio para vencer a resi.,tência da «carne» a servir
o espírito, e ajudam-nos a dedicar todas as nossas
energias ao serviço de Deus.
Na prática, nenhum ser humano poderia servir
a Deus com todo o seu coração, a não ser que a
sua natureza sensível encontrasse algum prazer em
entregá-lo a Deus ; porque nós somos homens, e não
anjos. Mas há urna diferença enorme eritre os
«sentimentos» que se originam nas faculdades supe­
riores e transbordam para os sentidos, como por
vezes acontece, em especial nos mais altos voos da
vida espiritu&l, e os «sentimentos» procedentes dos
sentidos que tendem, por si próprios, a arrastar as
potências superiores atrás deles. Muita da «devo­
ção» que se experimenta no inicio da vida espiritual,
contém urna boa dose deste último «Sentimento».
Deus nos livre, no entanto, de o desprezarmos, por­
que com frequência esta consolação pode vir de
Deus. É urna grande ajuda para desapegar os nossos
corações das consolações das criaturas e para mover
todo o coração na busca de Deus. Mas ima­
ginar que a verdadeira devoção consiste em tais sen­
timentos é um erro fatal.
Há outros pontos de importância, relacionados
com isto, mas, desde que o que fica acima é bastante
para a nossa finalidade imediata, podem ser deixados
para mais tarde, e podemos prosseguir no estudo
dos primeiros estados na oração.

26
O RA ÇÃO D I S CU R S I V A

Entende-se por oração discursiva, uma oração


na qual predomina a reflexão ou consideração de
algum mistério ou de alguma verdade da fé. «Dis­
curso» era o vocábulo antigamente usado para desig­
nar o processo de raciocínio pelo qual se chega à
verdade gradualmente - passo a passo -, como em
qualquer demonstração euclidiana.
Poderia chamar-se «intuição», à acção oposta
do entendimento através da qual o espírito apreende
uma verdade de relance ou porque é evidente por si
mesma - «o todo é maior do que a parte», por
exemplo- ou, num sentido menor e restrito, porque
uma longa experiência lhe tornou muito familiares
todos os passos da argumentação que a ela conduz.
Todos, por exemplo, vêem os «axiomas» de Euclides
por intuição, enquanto muitos dos «teoremas>> são
tão familiares para o professor que se pode já dizer
que os vê por intuição.
Introduz-se aqui o termo «oração discursiva»
propositadamente. No sentido estrito da palavra,
<aneditação» aplica-se ao discurso do espírito,
com actuação concomitante da imaginação e da
memória, e apenas a isto. Como, no entanto, em
muitos ambientes religiosos se dá o nome de medi­
tação ao exercício em que um determinado tempo
do programa do dia se destina à oração mental, a

27
A DIFICULDADE DE ORAR

palavra é com frequência aplicada a qualquer forma


de oração mental. Mesmo que uma pessoa se eleve
aos cumes da contemplação, diz-se que está a fazer
a «sua meditação)). Este costume tem as suas
desvantagens ; apropria-se duma palavra muito útil
que há-de ser aqui substituída por «reflexão» ou
«consideração)), e leva os que tomam o termo à letra,
a julgar que a essência do exercício da oração
mental reside nas considerações.
Ora, na verdade, o facto é que não há oração de
verdade até que a alma comece a produzir «actos»
ou afectos». Nunca se insistirá bastante nisso.
A finalidade da consideração, reflexão ou «medita­
ção», no seu sentido estrito, é apenas conduzir a
alma a produzir actos. Tem ainda outros efeitos,
que consideraremos mais adiante, mas logo que
surgem os actos, a sua função está cumprida e deve
por-se de parte até que a alma não possa já continuar
a fazer actos ou, por outras palavras, não possa j á
continuar, d e um ou outro modo, a falar com Deus,
porque nisto é que consiste realmente a oração. Se
se verifica que esta conversa com Deus é possível
logo ao princípi o do tempo de oração, não devem
tentar-se considerações enquanto subsiste o nosso
diálogo com Deus, mesmo que implique o fim da
reflexão (1).
Como, no entanto, não é este o caso corrente,
pelo menos no princ1p10, qualquer método de
reflexão poderá ser muito útil.
A bibliografia sobre este assunto é abundante e a

(1) Pelo menos esta é a nossa opinião, mas nem todos


concordariam completamente com ela. Sobre este ponto, e
sobre a matéria deste capitulo e do seauinte, vide o Apên­
dice I.

28
ORAÇÃO DISCURSIVA

maioria das pessoas estão a par da doutrina comum,


pelo menos até certo ponto. Numerosos autores
esboçaram, expuseram e desenvolveram com mais
ou menos detalhe um «método» que, nas suas linhas
essenciais, está em geral ligado estreitamente com o
usado por Santo Inácio nos seus célebres «Exercí­
cios Espirituais». O tema da meditação, dividido
em «pontos», é preparado na noite anterior, e deter­
minam-se as conclusões principais, actos, petições
e resoluções a que se há-de chegar. Quando chega
o tempo da oração, começa-se o exercício pondo-nos
na presença de Deus; há alguns prelúdios para fixar
as faculdades por meio duma «composição do lugar»,
etc. e algumas petições iniciais ; toma-se o primeiro
ponto, e a imaginação e a inteligência aplicam-se-lhe
metàdicamente ; formulam-se certos actos ; depois
procede-se de forma idêntica com um segundo ponto
e, talvez, com um terceiro. Uma vez feitos os actos,
as petições e as resoluções determinadas com antece­
dência, bem como outras que se tenham apresentado no
decorrer do exercício, a oração termina com um
«colóquio» ou numa conversa com Deus ou com algum
dos seus santos e uma curta acção de graças, à qual
se acrescenta um exame do modo como se procedeu
no exercJCIO. Pode recolher-se algum pensamento
para tê-lo à mão durante o dia, a fim de renovar
na alma os efeitos da meditação.
Para quem tenha usado um destes manuais de
oração, que por vezes estabelecem o plano com grande
detalhe, todo este esquema é familiar, e não vale a
pena tratá-lo aqui mais detidamente.
Quando se segue um método deste género, por
certo há-de dar resultado, e constitui um modo muito
útil de ajudar o principiante nas suas primeiras ten­
tativas de oração mental. As numerosas almas
que podem segui-lo, não precisam dos nossos remé-

29
A DIFICULDADE DE ORAR

dios, mas é aconselhável preveni-las de que devem


estar prontas a modificar o método, caso deixe
de ser-lhes proveitoso, e pô-las em guarda contra
o erro que se pode cometer com uma noção errada
da natureza essencial da oração, de julgar que a
reflexão é a oração, e, consequentemente, de não
guardar tempo bastante para formular actos e
conversar com Deus. Talvez encontrem um novo
alento na sugestão de que podem ainda ter outras
possibilidades diante de si. Há muitas almas que
alcançaram um elevado grau de santidade e que
parece nunca terem usado outro modo de orar.
Dizemos «parece». porque, como se verá mais tarde,
pode acontecer que, enquanto «meditam» com a
parte inferior do espírito, estão, sem que o saibam, a
contemplar a Deus de modo especial com as suas
faculdades superiores. Isto mesmo pode acontecer
até com a oração vocal, especialmente com a recita­
ção coral do Oficio Divino. Seja como for, há
muitas veredas que conduzem à santidade e, se bem
que as graças duma oração proficiente são uma pode­
rosa ajuda, senão a maior, para progredir, estas
não constituem por si mesmas a santidade.
Se um homem ama a Deus com todo o seu coração
e com toda a sua alma, com todo o seu espírito e
com todas as suas forças, cumpriu a lei por inteiro e
é perfeito, seja qual for o seu modo de orar.
Parece, no entanto, que há um certo número de
pessoas que, apesar de reiterados esforços e duma
indubitável boa vontade, não só não encontram
nenhum proveito no uso destes métodos de oração,
mas até se vêem embaraçados por eles, às vezes de
tal modo que toda a oração se torna, em si mesma,
um fardo insuportável. Como consequência disto,
o que devia ser fonte da sua vida espiritual, seca;
a perseverança toma-se difícil, e só se consegue

30
ORAÇÃO DISCURSIVA

progredir através de esforços heróicos. A alma


pode mesmo desistir de toda e qualquer tentativa
para orar, e acabar num desastre espiritual.
E há também aqueles que, em tempos, foram
proficientes na oração, mas que, à medida que passou
o tempo, verificaram que não podiam continuar a
orar como costumavam e foram reduzidos a um
estado de completa impotência na meditação, sem
conhecerem nenhum outro modo de orar.
Todas estas almas podem, esperamos, encontrar
o princípio da soluçãc;> dos seus problemas na aná­
lise da oração mental que se segue. Os leigos não
devem desanimar lá porque, às vezes, é o caso de
sacerdotes e religiosos que nós consideramos. A maior
parte dos pontos que se focam, e todos os princí­
pios indicados, podem aplicar-se aos que, no mundo,
querem levar uma vida de oração e santificar o seu
trabalho quotidiano.

31
MU D A N Ç A D E MÉTO D O

Os métodos da oração discursiva detalhados em


tantos manuais, e que constituem uma dificuldade
para o tipo de almas que agora consideramos, desen­
volveram-se há relativamente pouco tempo; a sua
difusão data de cerca do séc. XVI. Nos velhos tempos,
quando a vida religiosa era de forma mais monás­
tica e a fé talvez mais viva, não era tão geralmente
sentida a falta dum plano com tanto detalhe. Os
espíritos da época eram totalmente alheios à ideia
da oração limitada a um período curto e especialmente
delicado a ela.
Não se sabe até que ponto os antigos monges
faziam a sua oração privada em comum. Este exer­
cício seria antes um meio de atiçar o fogo da oração,
para que pudesse arder firmemente durante o resto
do dia, pois se considerava todo o dia como tempo
de oração.
O papel da meditação, no sentido de reflexão e
consideração, era desempenhado pela leitura espi­
ritual - que se fazia devagar e atentamente - e pro­
longava-se por uina autêntica reflexão e ponderação
sobre as verdades da fé ou sobre os mistérios de Cristo,
durante o tempo de trabalho manual ou nos tempos
livres do dia. Orações, jaculatórias, ao longo do
dia, ajudavam a voltar o coração continuamente
para Deus, e o Ofício Divino dava expressão, duma

33
A DIF1CULDADE DE ORAR

forma concreta e inspirada, aos sentimentos e neces­


sidades não só de cada alma, mas também de toda a
Igreja, Corpo de Cristo. Assim, quando um reli­
gioso se consagrava à oração privada, todo o tra­
balho preparatório estava feito, e ia direito propria­
mente à tarefa de orar.
Com o correr dos tempos, a evolução do estado
religioso introduziu muitas actividades dispersivas
na vida dos seus membros, e tornou impraticável,
na maior parte dos casos, a recitação pública do
Ofício Divino. Verificou-se então que era conve­
niente generalizar o costume de reservar um tempo
determinado para a oração mental, convertê-la num
dos principais exercícios do dia, não para limitar a
sua prática, mas para lhe assegurar pelo menos um
mínimo.
Esta evolução foi talvez acelerada pelos efeitos
do Renascimento que assistiu ao declínio do espírito
de fé medieval que tinha impregnado até mesmo a
vida dos leigos. Actualmente todas as casas de
rd;giosos, mesmo as das Ordens monásticas, desti­
nam um tempo fixo para a oração mental, e o Código
de Direito Canónico recomenda uma prática seme­
lhante para o clero secular. Para resumir o efeito
desta mudança, poderia dizer-se que o dia inteiro
do monge foi concentrado no espaço de cerca de
uma hora e inserido na vida do sacerdote ou 'do reli­
gioso moderno, para se ter a certeza de que pelo
menos durante uma certa parte do dia, se hão-de
elevar acima dos seus cuidados e preocupações, e
conversar com Deus.
Desde que o objecto desta modificação não é
limitar a oração mas apenas insistir pelo menos num
mínimo, concluímos que se em determinado local
ou para determinada pessoa se pode inverter este
processo de compressão e restaurar parte do antigo

34
MUDANÇA DE MÉTODO

espírito, de tal modo que a oração se espraie pelas


outras horas do dia, é muito desejável que assim se
faça. Para isto, a leitura espiritual que é de tanta
importância na vida espiritual, poderia tornar-se mais
ou menos uma meditação.
A leitura espiritual e a oração mental são tão
necessárias para a vida da alma como o alimento
diário para a do corpo. Sem urna leitura espiritual
constante, não só não pode haver progresso na ora­
ção mas nem sequer há nenhuma esperança de per­
severar na vida espiritual. Seria demasiado deli­
cado tentar demarcar o tempo mínimo para esta
prática. A graça de Deus pode sempre adaptar-se
às circunstâncias, e as circunstâncias de cada ambiente
religioso são uma parte muito especial do plano
de Deus. No entanto, quando se dispõe de tempo
suficiente, pode dizer-se que reduzir o tempo da
leitura espiritual, sem causa fundada, a menos de
três horas por semana, é subalimentar a alma, e
acarretar as consequências dessa subalimentação.
E cremos que a leitura deveria ser feita pessoalmente
durante pelo menos metade deste tempo. Uma dieta
exclusiva de leitura pública dificilmente poderia ser
suficiente para satisfazer as necessidade de cada
indivíduo.
Em algumas casas religiosas, devido a circuns­
tânci� especiais, talvez nem sempre seja possível
empregar meia hora por dia nesta prática, mesmo
por períodos parciais. Nestes casos há-de ter-se o
cuidado de aproveitar as ocasiões que surjam, como
nos domingos ou feriados, ou durante o tempo de
férias, para nutrir a alma com uma leitura adequada.
Nas casas em que se têm os livros em comum, deve
cada qual completar a prática geral com uma leitura
pessoal dos assuntos mais adequados às suas neces­
sidades especiais. Todos deveriam familiarizar-se

35
A DIFICULDADE DE ORAR

com os actos e palavras de Jesus Cristo, porque estes


são a revelação da palavra de Deus. A elaboração
duma lembrança viva do Senhor, por meio duma
leitura frequente, é de grande importância. Devía­
mos, além disso, familiarizar-nos com o esquema
genérico da vida espiritual e, em particular, com a
doutrina da oração, mesmo nos graus mais elevados.
Todo este equipamento é necessário para se poder
colaborar nas fases evolutivas da acção de Deus ;
e também nos ajudará a tirar o melhor partido de
uma possível direcção espiritual.
Uma vez que se adquiriram estes conhecimen­
tos espirituais, a leitura deveria ser feita sem
pressa, digerindo e saboreando o que se leu e oca­
sionalmente fazendo aqueles actos de oração que se
apresentem. A leitura, que nunca se deveria come­
çar sem uma curta mas ferverosa oração a pedir
ajuda, deveria sempre ser olhada com espírito de
fé como comendo algures, nas linhas ou entrelinhas
do que se leu, urna mensagem do próprio Deus, que
a oração, a fé e a confiança tornarão perceptível.
Esta leitura espiritual é o fundamento - poderia
dizer-se o fundamento essencial - duma vida de
oração e é a melhor preparação para esse exercício.
Se se pratica fielmente, a necessidade duma longa
e metódica consideração durante a oração, será
ràpidamente reduzida ; de facto, isto pode até tor­
nar-se bastante impossível.
Como consequência, os métodos vulgares de ora­
ção devem então ser modificados para se adapta­
rem às necessidades duma destas almas. À medida
que se faz mais progresso no conhecimento e em
especial na prática da vida espiritual, não só as con­
siderações serão reduzidas, mas os actos ou afectos
tornar-se-ão muito mais simples. De facto, um
acto determinado chegará a abranger muito� dos

36
MUDANÇA DE MÉTODO

outros usualmente indicados no método ; e além


disso a natureza dos actos pode mudar de tal maneira
que seja difícil observá-los, porque há muitos impul­
sos num coração amante que escapam à obser­
vação humana. Quem pode contar os <<actos» de
amor que a mãe faz junto do filho adormecido?
O método de oração necessitará de uma nova modi­
ficação e, em verdade, neste ponto, os métodos devem
ser postos de parte.
Desde que a finalidade da consideração prescrita
nos métodos de oração mental é, sobretudo, condu­
zir a actos ou afectos, tal consideração pode e de
facto deve cessar assim que os actos chegam. Quando
se atinge aquele ponto em que se pode «orar» - isto
é, fazer attos - logo desde o principio da oração,
estas considerações, aparte um recolhimento de
poucos momentos no início para fixarmos a atenção,
J>Odem ser afastados completamente da oração.
F claro que, se a facilidade de oração cessa, pode
ter de se voltar à reflexão para recomeçar de
novo. Mas devemos pôr-nos em guarda contra
o erro de pensar que as considerações são uma parte
çssencial da oração mental.
· Há, no entanto, um outro ponto valioso destas
considerações : aquelas fortes convicções sobre os
principias da vida espiritual, a realidade do sobre­
natural, etc., que se desenvolvem e aprofundam atra­
vés de uma reflexão frequente. Deve-se ter cuidado
em sustentar estas convicções quando a reflexão
já não é usada no tempo de oração. Isto pode
fazer-se por meio da leitura espiritual, especialmente
quando feita à maneira de meditação, ou por refle­
xão frequente, quase inconsciente, durante as várias
partes do dia.
Pode fàcilmente avaliar-se como um homem de
negócios ou um profissional está sempre a pensar

37
A DIFICULDADE DE ORAR

nos seus negócios, <<Illeditando» neles continuamente,


e buscando aperfeiçoamentos e entrevendo novos
meios de avançar. Se uma alma toma a sua vida
espiritual a sério, há-de ser assídua na sua conside­
ração dos modos e meios, na sua busca da verdade,
e no seu esforço por seguir a verdade quando conhe­
cida. Assim, sem determinação expressa, dedicará
bastante reflexão à sua vida espiritual durante os
momentos vagos do dia. A meditação neste sen­
tido, não deveria nunca ser posta de parte ; porque
se um homem não pensa no seu coração, toda a
sua vida espiritual pode ficar em breve desfeita.
Também as resoluções que são em geral indicadas
no método, não devem ser descuradas. Pode acon­
tecer que se não façam durante a oração mental.
Então deveriam ser feitas ou renovadas durante o
exame de consciência; tornar-se-ão provàvelmente
mais simples e mais gerais à medida que passar o
tempo. Mas desde que haja defeitos a vencer em
particular, especialmente se são habituais, há neces­
sidade de resoluções especiais para combatê-los.
Então, dado que a alma ache que pode orar sem
ter de reflectir detidamente sobre diversos pontos,
e que se dedique à reflexão e à renovação dos pro­
pósitos durante qualquer outra parte do dia, não
há razão para não omitir a meditação metódica a
favor duma conversa mais livre e mais plena com
Deus, pelo menos enquanto se mantiver um tal
estado de coisas. Porque, bem vistas as coisas,
a meditação é apenas «pensar em Deus», enquanto
que a oração é «falar co:in Deus», uma conversação
que pode converter-se em «olhar para Deus e amá-lo».

38
O R I GE N S D A S
D I F I CU L D A D E S

Não só é desnecessário, para uma alma que fez


algum progresso na vida espiritual e que vai colher
o assunto e as convicções que conduzem à oração
mental na leitura espiritual reflectida, fazer uma
meditação ponto por ponto quando chega o tempo
da oração, como ainda por cima se veria embaraçada
com dificuldades. Isto é especialmente verdade
quando se está pronto para o tipo de oração seguinte,
no qual a ref lexão é reduzida a um mínimo e predo­
minam os actos e afectos, onde toda a oração é de
facto um amável colóquio ou conversa com Deus.
Impor a uma destas almas o uso de um <anétodo»,
é tentar obrigar um corredor a usar muletas. Não
admira que uma alma nestas circuustâncias, ache a
meditação uma carga intolerável. Mas, antes de
considerar o tipo seguinte de oração, vamos ver
primeiro se não pode haver outras razões pelas
9uais o uso dum método determinado seja pertur­
bador e constitua um obstáculo ao êxito, mesmo
que o indivíduo não esteja ainda no estado de apro­
veitamento na vida espiritual e tenha ainda muito
de novato.
Dá a impressão de que muitos autores, ao con­
siderar a subida da encosta da vida espiritual, come­
çam com a condição dum pecador habitual, para
quem os ensinamentos de fé foram mais ou menos

39
A DiFICULDADE DE ORAR

descurados, e que deu muita rédea livre ao amor


próprio e aos desejos da natureza inferior. Pode
pôr-se a questão de saber se um tal plano, com as
consequentes prescrições de assunto e de método
para a oração, pode ser aplicado ao género de almas
que se encontram nos seminários e noviciados.
A maior parte dos rapazes e raparigas que entram
aqui em religião, ou que começam seriamente a
encarar a prática da vida espiritual no mundo, já,
por assim dizer, se embeberam das convicções da
fé, mesmo na infância e viveram, pelo menos nos pri­
meiros tempos, numa atmosfera de fé. É verdade
que podem não ter tido consciência disso e nunca
terem considerado o significado real da sua religião,
mas pelo menos tiveram a convicção suficiente para
os levar a entrar no seminário ou no estado religioso
e, isto com frequência, logo depois do tempo escolar.
Em geral, também, o pecado habitual de qualquer
tipo grave, é raro entre tais pessoas e há muitos que
ainda conservam a sua inocência baptismal. Por
certo que uma tal alma não tem necessidade nem
pode encarar o longo e fastidioso arrastar dum
plano de meditação de «prelúdio e ponto» durante
muitos anos. É verdade que terá de ser educada
na vida espiritual, e que os novos conhecimentos
terão de ser assimilados pela reflexão. Mas isto
faz-se muitas vezes, bastante espontâneamente, na
leitura espiritual, e dificilmente necessita de um tão
detalhado plano de ataque como o requerido, no
caso de quem tenta converter-se duma vida de pecado.
Fazer «meditar» estas almas sem algumas alterações
no método é, muitas vezes, pô-las a construir urna
casa já acabada.
Uma leitura espiritual adequada produzirá as
convicções necessárias em vista das novas verdades
que apreendem, se é que a docilidade da sua fé e a

40
ORIGENS DAS DIFICULDADES

prontidão do seu fervor o não fazem espontânea­


mente. Os propósitos firmes que são um dos frutos
da meditação, surgirão, em geral, espontâneos na
oração afectiva; e, se não, o exame de consciência
os produzirá. Portanto, pareceria que tais almas
estão muitas vezes realmente prontas para alguma
espécie de oração afectiva, mesmo que depois possa
ser-lhes necessário fazer uso da meditação durante
algum tempo. A sua direcção requer prudência,
mas parece um erro insistir que todos devam adop­
tar a meditação metódica. Seria muito mais eficaz
pô-las em contacto com a pessoa do Senhor, e
deixá-las tornarem-se íntimas com Ele em conversa
amorosa. Um tal trato com o Senhor é um excelente
correctivo para os seus hábitos defeituosos e moldá­
-las-á ràpidamente conforme o seu coração.
Há outra razão que toma aconselhável este pro­
cedimento. As exigências impostas ao tempo de
que dispõe um sacerdote ou religioso moderno pela
preparação e depois pelo exercício das suas activi­
dades, deixam-lhe um mínimo para os exercícios
interiores da vida espiritual e para o desenvolvi­
mento da vida de oração. Se uma pessoa nestas
circunstâncias não entra em contacto com o Senhor,
antes que todo o peso da actividade intensa se
descarregue sobre ela, então não lhe será tão fácil
desenvolver um tipo de oração que possa fàcilmente
adaptar-se ao seu trabalho diário; enquanto que, se
já anteriormente teve a1guma experiência da oração
afectiva, pode em breve adquirir o hábito de con­
versar com Cristo durante o trabalho. Mesmo que
depois de algum tempo lhe seja necessário voltar
à oração meditada durante o tempo reservado para
esse exercício, de modo a poder completar a sua
formação espiritual, apesar disso adquiriu um hábito
de oração jaculatória que é de um valor inapreciável,

41
A DIFICULDADE DE ORAR

e deu o primeiro passo no. caminho da transformação


de todas as suas actividades, em oração verdadeira.
Há outro género de temperamento que encontra
grande dificuldade na meditação discursiva. Alguns
espíritos tiram as suas conclusões mais por uma
espécie de intuição do que por um longo raciocínio
discursivo. Quando se lhes apresenta um assunto,
tiram dele ràpidamente todo o fruto possível de
momento, e a colheita não será aumentada por uma
consideração prolongada. Só mais tarde, à luz de
novos conhecimentos e da experiência, é que as suas
convicções se aprofundam e alargam.
Tais almas têm pouco a lucrar em conservar o
espírito fixado demoradamente nos pontos duma
meditação. É melhor para elas adiantar-se para
os actos e tentar falar com o Senhor ou, se isto
não resulta, repetir frases de alguma oração preferida,
devagar e atentamente. Esta dificuldade pode fàcil­
mente surgir quando, em algumas comunidades reli­
giosas, o assunto e os pontos de meditação se lêem
na noite anterior e de novo de manhã, durante
o tempo da oração. Ao ouvi-lo a primeira vez,
a inteligência pode, com frequência, extrair do
assunto, ali mesmo e nesse instante, tudo quanto
lhe é possível, ficando pronta a iniciar a ora­
ção imediatamente. A repetição da leitura pela
manhã, é então bastante perturbadora, já que se não
precisa de retomar o assunto ponto por ponto. Em
tais casos deve-se tentar falar com Deus, ou então
retomar um assunto novo. É sempre bom ter
qualquer alternativa determinada com antecedência.
Os quinze mistérios do rosário constituem programa
de oração para muitas almas. Outros fazem uso
semelhante das estações da Via-Sacra. Outra variante
é recordar que algures está, nesse instante, a começar
a missa. Se se segue essa missa em espírito e ima-

42
ORIGENS DAS DIFICULDADES

ginação, pode fornecer assunto adequado para a


oração.
Outra fonte de dificuldades na oração, reside na
escolha dum tema. Neste campo deve ter-se em
conta as necessidades e predilecções de cada indi­
víduo. Quando se nos deixa a escolha, as regras
ordinárias de prudência - em especial se se procura
conselho de alguma autoridade competente - resol­
verão o assunto. Mas que fazer quando o tema é
lido para uma comunidade na noite anterior. e repe­
tido ponto por ponto na manhã seguinte ? Esta­
mos perante uma questão delicada que requer um
compromisso.
É preciso evitar dois extremos. Em primeiro
lugar, todo religioso, sejam quais forem as necessi­
dades da sua alma ou seja qual for o seu adiantamento
nos caminhos da oração, deverá estar sempre em
guarda, não vá menosprezar ou desdenhar de algum
modo um alimento espiritual que lhe vem de fontes
autorizadas. As disposições tomadas pelos supe­
riores são uma parte muito especial da providência
divina e vêm repletas de graças. Qualquer que atenda
a essa leitura com espírito de fé, dizendo no seu
coração : «Fala, Senhor, que o teu servo escuta)),
verificará que Deus se serve dela para iluminar e
fortalecer a sua alma. Pode ser apenas um pequeno
ponto - uma única palavra, talvez, que Ele usa ­
mas encaixará num outro contexto, o das demais
relações de Deus com a alma, e será uma fonte de
graça. Cumprir-se-á em nós como acreditamos.
É questão de muita importância que as almas espe­
cialmente as mais adiantadas, sejam muito cuida­
dosas na sua atitude em tais circunstâncias.
Por outro lado, não parece razoável querer que
todas as almas façam a sua oração nos moldes da
meditação lida para todos, e negar a cada um o

43
A D�CULDADE DE ORAR

direito de seguir as atracções da graça. Evitando


estes dois extremos, cada alma de boa vontade,
embora mantendo a sua liberdade de espírito, deve
dar preferência, em idênticas circunstâncias, ao
tema designado por aqueles que têm o encargo de
governá-la. Se se pode fazer uso deste tema para
oração, mesmo que s�ja apenas como ponto de
partida para um colóquio com Deus, deve fazer-se.
Se, no en tanto, não se adapta às necessidades
da nlma e à actuação da graça divina, pode ser serena
e respeitosamente posto de lado. Acontece com
frequência que entre os pontos lidos há uma lem­
brança dh,ina para a alma se familiarizar com alguma
verdade determinada ou algo semelhante, por refle­
xão ou leitura em qualquer outra ocasião sem que
se torne n ecessário para a alma abandonar o seu
próprio modo de orar no momento. Em toda esta
questão há claramente necessidade de discernimento
e prudência, e seria bom que aqueles que acham
necessário desenvolver a sua oração em moldes
próprios, aceitem opinião com algum conselheiro
competente, quer ele seja superior, sacerdote, ou
mesmo um colega prudente.
Nas presentes circunstâncias acontece muitas vezes
que para muitas almas nem sempre está à mão
um guia adequado; mas, entre os retiros anuais
e as diversas viagens que as férias ou a falta de saúde
requerem, em geral será possível consultar algum
«especialista» e estabelecer relações com ele. Uma
vez que se encontrou um guia competente a quem
se possa abrir a alma, e que se familiarizou com as
nossas circunstâncias, uma carta eventual será o bas­
tante para prover a todas as incertezas da trajectória
espiritual. Também neste assunto Deus adaptará
sempre a sua graça às circunstâncias, de modo que,
onde uma tal direcção se não possa conseguir, Ele

44
ORIGENS DAS DIDCULDADES

providenciará doutro modo. Mas, onde possa conse­


guir-se um conselho competente, seria erro rejeitá-lo.
No caso que agora consideramos, acusar de sin­
gularidade ou de soberba quem quer que não siga o
assunto lido e sinta necessidade dum livro para
fixar os seus pensamentos, especialmente numa comu­
nidade que englobe membros de todas as idades
e de vários graus de vivência religiosa, parece
bastante arbitrário. É impossível esperar que numa
tal comunidade o mesmo alimento espiritual seja
adequado para as necessidades de todos. É claro
que os caprichos de cada qual não podem e não
devem ser favorecidos. Mas é preciso um discerni­
mento prudente e urna santa liberdade de espírito.
No entanto, onde o costume já tenha estabelecido
uma regra nestes assuntos, o religioso deve estar
preparado para aceitar as limitações impostas pelas
circunstâncias - tais como a falta duma luz - ou
por disposição directa dos superiores. A graça
de Deus pode sempre adaptar-se a semelhantes cir­
cunstâncias providenciais, e uma confiança resignada
no cuidado paternal de Deus assegurará sempre a
sua ajuda especial. Podemos estar bastante certos
de que aqueles que se resignam alegre e confiada­
mente neste e em outros assuntos semelhantes, pro­
gredirão muito mais ràpi damente e com muito mais
firmeza, do que se procurassem insistir em progre­
dir a seu modo.
Note-se que Deus dá muitas vezes durante o dia
as graças que suspendeu durante o tempo da oração.
De facto, para uma alma que tem cuidado em aceitar
e em se adaptar a todas as actuações da providência,
especialmente quando Ela parece erguer obstáculos, os
seus caminhos, por muito incompreensíveis que pare­
çam à primeira vista, estão no entanto cheios duma ter­
nura maravilhosa e duma bondade misericordiosa.

45
o C A M I N H o
DA O RAÇ Ã O A F E C TIVA

Até agora temos estado a considerar as dificuldades


que surgem na oração, em virtude do uso . de um
método que é inadequado ao nosso estado ou tem­
peramento. A prova geral da adequação neste
aspecto, é dupl a : facilidade no exercício e eficácia
no resultado. Das duas, a segunda é a mais segura
e é por vezes o único sinal dum modo apropriado
de oração ; porque se uma alma faz oração do modo
mais adaptado ao seu estado, o resultado manifestar­
-se-á na bondade e fervor da sua vida.
Quem procura adoptar um modo de orar que
ultrapasse as suas força� ou idade espiritual, depressa
se encontrará rodeado de dificuldades, e começará
a perder em regularidade e a abandonar o fervor
inicial. Mas se, por exemplo, uma alma acha que
pode passar o tempo da oração em amoroso trato
com Deus, mesmo que use poucas palavras, e se,
ao mesmo tempo, não começa a decair no fervC'r
e nas outras actividades da sua vida espiritual, nem
tão pouco começa a adquirir aquela sensibilidade
da soberba que se recusa a aceitar mesmo a mais
pequena humilhação ou desprezo, então pode, e
seguramente deve, ser autorizada a orar deste modo.
Esta é a oração afectiva, que será tratada num pró­
ximo capítulo.

47
A DIFICULDADE DE ORAR

Mas que fazer com a alma que não está ainda pre­
parada para uma tal oração e que, apesar de boa
vontade e de esforços tetJ.azes, não encontra ajuda
no método ordinário de meditação ? Aqui, urna
vez que as necessidades individuais diferem, temos
de contentar-nos em fazer sugestões que possam
indicar uma linha de conduta que há-de levar à
solução desta dificuldade.
Nos nossos dias, graçi:is a Deus, a comunhão diária
é uma prática corrente, não só em casas religiosas,
mas também para muitas almas fora do estado reli­
gioso. Enquanto que há algumas que usam um
livro para fazer a sua acção de graças, há muitas
almas que são capazes de manter-se em oração
durante os habituais quinze minutos sem uma tal
ajuda. De facto, muitos mais o fariam, se não
tivessem uma ideia errada do modo como o Senhor
deseja ser recebido, pois pensam que devemos
usar os termos formais dum livro de orações em
vez de lhe falar com as nossas próprias palavras
incoerentes. Esta acção de graças parece fornecer
um caminho de aproximação à oração mental, por­
que, bem entendida, a não ser que fosse uma reci­
tação meramente formal duma longa lista de ora­
ções vocais, deve ser oração mental de verdade.
Supunhamos então que começamos a nossa oração
com uma comunhão espiritual - bastante infor­
mal - sem nos preocuparmos muito como havemos
de expressar o convite a Deus para que venha aos
nossos corações (porque temos de evitar os «belos
discursos» como uma praga na oração mental,
mas prestando toda a atenção Àquele cuja presença
é a causa da nossa oração, porque Ele já se encontra
nas nossas almas desde a data do baptismo, uma
vez que estejamos em estado de graça. Então
podemos prosseguir exactamente como fazemos

48
A CAMINHO DA ORAÇÃO AFECI'IVA

depois da comunhão sacramental. Muitas almas já


ordenaram programas para este tempo, de forma
a adaptar-se às suas próprias necessidades.
Os quatro fins pelos quais a missa é oferecida,
por exemplo, podem fornecer temas para a oraÇão,
que pode ser desenvolvida em conversa familiar
com o Senhor. Estas são : adorar a Deus, lou­
vá-lo e agradecer-lhe todos os seus dons, repara­
ção pelos nossos pecados e pedir-lhe graça e mise­
ricórdia. Este colóquio ou conversa com Deus
pode ser modificado para introduzir o ponto ou
pontos que são assunto da nossa oração. Com
muita frequência os pontos duma meditação que
acabam de ser lidos, podem usar-se deste modo.
Assim, por exemplo, �e o assunto é a vida oculta
de Cristo, podemos falar-lhe dos seus dias em Nazaré,
familiarmente, intima'!lente, como um homem tem
o dever de falar com o seu amigo. Podemos inter­
rogar o Senhor àcerca desses dias, podemos escutar
o que Ele tem para nos dizer deles. Podemos
falar-lhe do nosso trabalho diário e trocar impres­
sões com Ele : «Acharás tu o trabalho tão fati­
gante ? Os teus fregueses eram exigentes e difí­
ceis de satisfazer ? Doíam-te as costas depois de
estar continuamente curvado sobre o banco de car­
pinteiro ? Não é verdade que sabias fazer as coisas
muito melhor que S. José ? Tu fizeste todo o mundo!
Como te forçaste a passar desta maneira trinta anos
da tua curta vida, com todo o mundo à espera da
tua doutrina e da tua salvação ?», etc., etc.. E deve­
mos então falar-lhe da nossa própria vida, das nossas
dificuldades, das nossas quedas, das nossas imper­
feições, dos nossos pecados. Especialmente dos
nossos pecados! . . . porque este Homem recebe os
pecadores e salvará o seu povo dos seus pecados.
Os pecados dos quais estamos verdadeiramente con-

49
A DIFICULDADE DE ORAR

tritos, podem ligar-nos ao Salvador e o grande


segredo de todo o trato e estreita sociedade com Jesus,
é dar-lhe uma oportunidade para que seja para nós
um salvador.
Se há alguma dificuldade particular na nossa vida,
se há algo desagradável que tenhamos de enfrentar
nesse mesmo dia, falemos-lhe disso. Se há alguma
coisa que insiste em aparecer como distracção,
transformemo-la em oração falando dela a Deus.
Falemos-lhe das coisas que nos perturbam tanto, no
nosso trabalho diário ; falemos-lhe daquele apegamento
que não podemos, ou mesmo que não queremos,
quebrar. O grande meio para converter as distracções
em oração, e transformar um desejo mau ou imper­
feito num santo propósito, é falar dele a Cristo
exactamente como falamos a um amigo, lembrando­
-nos que Ele foi destinado por Deus para nos salvar
dos nossos pecados e de tudo o que conduz ao pecado
ou à negligência. Não podemos esquecer nunca
que, porque é Deus, Ele é omnipotente e por­
tanto, não há absolutamente nenhum abismo do
pecado ou da fraqueza, da escuridão ou du deses­
pero, da quaJ não possa ou não deseje liber­
tar-nos.
Portanto não há ninguém que precise de ter receio,
ninguém que não tenha o direito de aproximar-se
d' Ele, de falar-lhe, de lhe mostrar os seus pecados,
de falar-lhe da sua vida espiritual em qualquer dos
seus aspectos, como falamos com o médico, da doença,
com um amigo, dos nossos negócios, ou à namorada,
da nossa vida, com as suas penas e alegrias, as suas
esperanças e receios.
O princípio básico deste modo de fazer actos é
tal que precisa de ser posto em relevo como de impor­
tância capital em todas as fases da vida espiritual.
E é este : o ponto essencial é entrar em contacto

50
A CAMINHO DA ORAÇÃO AFECTIVA

com Cristo o mais cedo possível, na vida espiritual,


em cada um dos seus exercícios, em especial no da
oração e manter-se em contacto com Ele por todos
os meios possíveis e a todo o custo. Este modo
de actuar fará desaparecer da oração os elementos
que a tornam desagradável e difícil a certas espécies
de almas. É também um remédio para um engano
muito corrente sobre a natureza da oração mental,
porque muita gente tem a noção de que esta é pura­
mente um exercício mental, um trabalho da inteli­
gência e das suas faculdades auxiliares, para des­
cobrir a verdade, para compreendê-la, para formar
convicções e conduzir a propósitos - um trabalho
da cabeça, mas absolutamente alheio ao coração.
Na realidade, tudo isto é um mero prelúdio para a
oração, se n ão oração em si mesma.
É preciso ainda insistir em uma outra consideração
a este respeito. Para muitas almas, uma visão
impessoal ou abstracta da virtude, da perfeição, da
alegria do Céu, ou qualquer outra consideração
análoga, deixa em geral o coração intacto e não
excita desejos. Nem produz oração nem nos impele
à prática de virtude.
O contacto pessoal com Deus, mostra todo o
conjunto da vida espiritual a uma luz totalmente
diferente e, muitas vezes sem muita consideração
explicita ou sem resoluções particulares, conduz a
alma inconscientemente à prática de muitas virtudes
e introduz novas energias no seu caminho espiritual.
Nota-se um efeito análogo nos negócios humanos,
em que somos guiados e encorajados pelos exemplos
dos nossos amigos, do mesmo modo que é já pro­
verbial a capacidade dJm homem apaixonado para
mudar os seus traços mais característicos e esquecer
o seu egoísmo. Este ponto poderia ser extensa­
mente desenvolvido, porque a vida espiritual é um

51
A DIFICULDADE DB ORAR

enamorar-se de Cristo, mas o espaço impede-o.


Contentemo-nos em dizer que este é um princípio
que reso!verá muita , senão todas as dificuldades
da vida da alma, porque Cristo é o caminho, a ver­
dade e a vida. Mesmo nos estádios áridos da oração
contemplativa, quando a alma parece incapaz dum
bom pensamento ou afecto, quando Deus parece
não ser nada mais que uma palavra de quatro
letras, ainda podemos manter-nos em contacto com
Jesus.
O contacto real com Ele é estabelecido através
da fé - fé no seu amor e na sua misericórdia.
Alcançamo-lo pela esperança e agarramo-nos a ele
pelo amor, não importa a aridez do nosso acto de
amor, desde que seja um acto de vontade a acei­
tar a vontade de Deus. Mas uma discussão mais
detida de-.te ponto tem de aguardar um capítulo
posterior.
Há um abuso da oração mental que poderia ser
bom indicar aqui, no qual estão sujeitos a cair todos
aqueles que pregam ou ensinam. Consiste em fazer
da sua oração mental uma preparação para o tra­
balho, mais do que um despertar da vontade para
orar e para amar. Alguns, também, passam o
tempo da meditação «pregando» a si mesmos, interes­
sando-se especialmente em encontrar belos pensa­
mentos e palavras para o fazer a seu gosto. Falar
ao Senhor «com as nossas próprias palavras» pode
ser o remédio desta doença.
Algumas vezes a lista dos actos prescritos no livro
que usamos, aparece-nos como uma droga intra­
gável. Pode ter-se como princípio geral de con­
duta, que ninguém deve sentir-se alguma vez obri­
gado a esgotar todos os actos da lista. Se um acto
basta para nos manter ocupados, não deve ser posto
de parte a pretexto de passar ao seguinte. Desde

52
A CAMINHO DA ORAÇÃO AFECITVA

que o coração está ocupado com Deus, falando ou


em silêncio , isso basta.
Mais uma vez a demasiada atenção a um método
pode criar obstáculo ao nosso proveito na oração
e dar em resultado que todos os nossos actos se
tornem «reflexos». Não fazemos apenas um acto,
digamos, de fé, mas «observamo-nos» ao fazê-lo, e
isto seria bastante como critica, tornando nota, todo o
tempo, de tudo quanto fazemos. Além de não ser
pequena carga, tal acto pode fazer com que nos preo­
cupemos mais connosco próprios do que com Deus.
Esta é a ruína de qualquer oração, porque a oração é
uma preocupação com Deus, e os estados mais ele­
vados de oração são absolutamente impossíveis, se
uma alma se recusa a perder-se de vista a si mesma
e aos seus esforços. De modo idêntico, uma con­
templação contínua dos insucessos c esforços esté­
reis do homem, apenas pode conduzir ao desânimo,
a não ser que ao mesmo tempo conservemos diante
dos olhos, Deus e a sua amorosa misericórdia.
O remédio par4 todas as doenças semelhantes é o
trato familiar com Jesus Cristo.
Poderia parecer que, ao pormos a alma deste
modo, em contacto com Cristo, e ao colocá-la em
conversa com Ele sobre o assunto da meditação,
estamos apenas a voltar à «composição de lugar».
e à «aplicação dos sentidos» prescritos no método.
Na verdade, não há razão pela qual o não devêssemos
fazer, pelo menos até certo ponto, porque se não
serenamos as faculdades dos sentidos por qualquer
modo análogo, podem estorvar i:oda a oração com
as suas divagações.
Mas há aqui uma diferença de perspectiva que
parece ser de importância. Àparte o facto de que
este método de aproximação é mais espontâneo e
se addpta automàticamente ao grau de oração que

53
A DIFICULOADB DB ORAR

cada alma alcançou, tem esta característica parti­


cular : põe-nos em contacto com o Senhor como
mestre, modelo e amante, vivo, presente à alma
aqui e agora. A importância deste facto parece
que é capital, e deve fazer urna grande diferença
para a oração e para o fervor de muitas almas.

S4
O RAÇÃO AFE CTIVA

Já têm sido feitas frequentes referências à oração


«afectiva>> e a sua natureza já foi mesmo indicada,
se bem que apenas de passagem. O assunto, no
entanto, requer mais alguma atenção.
Os que estão familil'lrizados com o plano metódico
para a oração mental, hão-de recordar que a consi­
deração de cada ponto deveria ser segui ia de deter­
minados «actos», e que a oração em conjunto deve­
ria terminar com um «colóquio» ou conversa com
Deus ou algum dos seus santos. Quando estes
actos e o colóquio se alargam pd.ra ocupar a maior
parte do tempo da oração, a oração chama-se : «ora­
ção afectiva>>. É, portanto, um desenvolvimento
natural da meditação, e de facto, se a meditação não
incluir alguma oração afectiva, não chega sequer a
ser oração.
Não há, por consequência, nenhuma separação
rígida e ajustada entre as duas formas. Na oração
afectiva as considerações, seja devido a uma longa
familialidade com o assunto ou a uma leitura espi­
ritual adequada, feita atentamente, ocupam um lugar
pequeno e muito secundário, se é que de todo se
fazem. Num relance, uma reflexão momentânea
é bastante para relembrar e extrair tudo o que o
assunto da oração significa para nós, e o coração
começa imediatamente a exprimir-se em actos,

55
A DIFICULDADE DE ORAR

petições, louvor ou qualquer outra manifestação da


oração. A todas estas acções se dá o nome de
«afectos».
Para entender este termo correctamente, temos
de esquecer por completo a associação com a pala­
vra afectivo porque, como já frisámos, este nome
aplica-se aqui a todos aqueles movimentos da von­
tade para com Deus, que se manifestam em geral em
actos das várias virtudes. É por esta razão que o termo
«afectivo» se aplica a uma oração na qual predomi­
nam estes actos. No entanto, isto não quer significar
nenhuma intensidade de sentimento ou emoção.
Uma vez que este tipo de oração é uma audiência
pessoal ou uma conversa amorosa com Deus, é
susceptível de tantas variações quantas as pessoas
que existem. Por isso mesmo não podemos esta­
belecer-lhe regras rígidas e estreitas. A grande coisa
é falar com o Senhor com as nossas próprias
palavras, com bastante simplicidade, acerca de qual­
quer assunto que seja de interesse mútuo. Nunca
deveríamos enveredar pelas palavras ou frases boni­
tas. Não só o Senhor não procura lindos discursos
como nem sequer nos pede uma boa gramática.
De facto, a oração afectiva é muitas vezes bastante
incoerente, usando-se uma palavra para exprimir
urna multidão de sentimentos.
Para algumas almas cujos espíritos estão cheios
dos significados que encerra, o santo nome de
Jesus é oração bastante. Aquela única palavra
maravilhosa diz mais do que nós poderíamos alguma
vez imaginar. Outras almas não podem encontrar
palavras para dar expressão aos seus desejos. Rezam
um tanto ou quanto assim : «Eu quero . . . Não sei
que quero . . . Quero, apenas . . . » E o Senhor entende.
Ele sabe que o que querem é Ele mesmo, tenham ou
não consciência disso.

56
ORAÇÃO AFECITV A

Tomando na devida conta o facto de que diferen­


tes temperamentos rezarão de modos bastante dife­
rentes, pode dizer-se que, pará muitos, a oração
afectiva consistirá em enamorar-se de Cristo.
A linguagem do amor humano despojada do seu
sentido grosseiro, é o único modo de expressão que
pode satisfazer a necessidade de articular o que sen­
tem algumas almas. Nem todos hão-de orar deste
modo mas, para aqueles em que isso é natural, as
mais delicadas formas de expressão do amor humano,
são modelos excelentes para a nossa conversa com
Deus.
Ele quer possuir o nosso coração e quer dar-nos
o seu coração, e quaisquer palavras que possam
ajudar-nos nessa transacção, constituem urna oração
perfeita. Este exemplo do amor humano pode
ainda ajudar-nos doutro modo a compreender até
onde podemos entender esta oração. Frequentemente
a conversa dos namorados versa apenas sobre coisas
vulgares e, no entanto, podem estar unidos um ao
outro ! Também na oração, as nossas palavras e
mesmo o nosso assunto pode ser bastante vulgar e,
no entanto, pode ser muito grande o amor que damos
e demonstramos a Cristo.
Outras almas, de diferente temperamento, servir­
-se-ão de palavras de orações que lhe são familiares,
de versículos dos Salmos, de petições extraídas do mis­
sal, etc.. Se o estilo da oração pública da Igreja nos
ocorre naturalmente, muito bem : se assim não é,
então não deve tentar-se encaixar a oração de cada
t}ual em estilo semelhante. «Dignai-vos» e outras
palavras no género é preferível que se não usem.
Um outro modo, que pode ajudar os que têm difi­
culdade de expressão, é o que sugere Santo Inácio,
e consiste em repetir lentamente alguma oração vocal :
o «Pai Nosso», a «Avé Maria», a «Alma de Cristo»,

57
A DIFICULDADE DB ORAR

a «Ladainha da Santíssima Virgem», etc. Para os


que usam o Breviário, um único Salmo pode ser
usado deste modo com grande êxito. Podemos sobre
ele improvisar e desenvolver algumas das súplicas,
ou podemos apenas escapar-nos, por assim dizer, por
entre as frases, deixando que o coração se mostre a
Deus sem palavras. Em capítulos anteriores se indi­
caram outros modos de entrar em contacto com o
Senhor, e a devoção de cada um, há-de decerto
encontrar aquele que melhor lhe quadrará a si.
Há alguns erros que devem ser evitados. Um muito
vulgar é esforçar-nos por enchermos nós toda a con­
versa. A alma deveria parar de vez em quando
e escutar Deus. Ele responde-nos, na nossa cons­
ciência, no nosso coração, muitas vezes inconfundi­
velmente. É claro que nesta matéria, devemos estar
em guarda contra a desilusão causada por imagi­
nações vãs e frfvolas, corno se diz rnodernamente.
Um erro muito semelhante é julgar que devemos
manter uma torrente continua de palavras quando
não estamos a escutar o Senhor. Como ainda há
pouco dissemos, deveríamos usar de uma certa elas­
ticidade nos intervalos dos actos.
A capacidade para assim proceder, é muitas vezes
a pedra de toque da nossa sinceridade. Assim, no
momento em que acabámos de dizer a Jesus que o
amamos com todo o nosso coração, só se formos
sinceros, seremos capazes de permanecer silenciosa­
mente nesse sentimento. De outro modo sentir-nos­
-ernos obrigados a prosseguir dizendo qualquer outra
coisa, para que não aconteça que o ouçamos dizer:
«Se tu realmente me amasses, não farias isto e isto!»
Esta é uma das maneiras que o Senhor utiliza para
nos moldar segundo os desejos do seu coração.
Um erro diverso é o de tentar sentir os nossos
actos. O acto essencial do amor de Deus é feito

58
ORAÇÃO AFECTIVA

com a vontade e, portanto, a não ser que ele se der­


rame por sobre as emoções, não pode ser sentido.
A este respeito deveria ter-se bem presente a conhe­
cida doutrina da verdadeira contrição. O verda­
deiro arrependimento do pecado, é o afastamento
da vontade de pecar e manifesta-se numa reso­
lução da vontade de evitá-lo no futuro. É bastante
compatível com uma forte atracção animal para o
prazer pecaminoso, sentida no apetite inferior, e com
a consequente pena de abandoná-lo.
Assim também, na oração, se os nossos actos pro­
cedem da vontade, não importa se afectam ou não o
nosso sentimento. Uma vez que queremos amar
a Deus, por essa mesma razão, com a ajuda da
graça, amamo-lo realmente.
Fora daquelas alturas em que o coração está
árido e não pode produzir nem um bom pensa­
mento nem uma palavra boa, as mais importantes
dificuldades da oração têm as suas raízes fora
dela.
Esta relação que existe entre toda a oração e o
estado geral da vida espiritual, ainda não foi tratada.
Um ponto podemos mencionar, já relacionado com
a oração afectiva, porque esta espécie de oração é
particularmente sensível às desordens na nossa vida
espiritual. Levadas por uma noção errada de Deus
e da atitude correcta a adoptar para com Ele, algumas
almas têm grande dificuldade em «abandonar-se»
e em falar com Ele naturalmente, quando em oração.
Ora é verdade que a reverência é essencial a toda a
oração. Mas na oração privada, estamos em con­
versa com um Deus que está enamorado de nós,
e que procura uma grande intimidade connosco, e
isto com tal ardor que nos dá o seu próprio corpo
e sangue como alimento, mostrando assim quão inten­
samente deseja o nosso coração.

59
A DIFICULDADE DE ORAR

Ele quer que lhe falemos livremente, e há-de dar­


-nos o desconto se a nossa atenção para com Ele
nos leva a ser pouco cerimoniosos. Além disso,
Ele próprio é o remédio para todas as nossas doen­
ças e, se há alguma coisa errada na nossa oração,
tal como a falta da reverência devida, depressa Ele
a pode corrigir. Mesmo correndo o risco de nos
faltar reverência ou de estar imperfeitamente dis­
postos, é melhor entrar num estreito contacto com
Aquele que veio para curar as nossas doenças,
do que manter-se afastado d'Eie por um excesso
de respeito. Os últimos traços do jansenismo estão
longe de estar extintos nas nossas noções de piedade.

60
NOVOS P R O G R:E S S O S

A partir deste ponto da subida dessa montanha


que é a oração, há dois caminhos pelos quais podemos
fazer novos progressos. Um é pela simplificação
da oração propriamente dita, durante o tempo
determinado para esse exercício. O outro é desen­
volvê-la em extensão, de modo a entretecer com ela
o torvelinho do trabalho de todo o dia.
Estes dois caminhos estão tão intimamente rela­
cionados um com o outro, que o melhor é tratá-los
em conjunto.
Uma vez que a oração se tomou afectiva - isto é,
composta de actos, enquanto estes são distintos da
reflexão - pode e deve com frequência ser renovada
ao longo do dia, por insistentes aspirações que deve­
rão ser sempre curtas, muitas vezes originais e, em
geral, com palavras nossas.
Podem mesmo ser isentas de palavras ; um sorriso,
um olhar, um suspiro, um movimento de coração
que nós próprios mal percebemos, podem dizer
tanto como volumes e mais volumes a um amigo
tão íntimo como Cristo. Se se desenvolve este hábito,
a oração pode manter-se perfeitamente através das
nossas ocupações mais absorventes, especialmente
se a nossa oração brota do trabalho que temos entre
mãos, num pedido de ajuda, de paciência nas difi-

61
A DIFICULDADE DE ORAR

culdades, numa palavra de louvor por alguma dis­


posição da providência de Deus concreta, ou se,
como S. Filipe Neri, se agradece a Deus as coisas
que não correm «ao meu gosto» ! A prática de
receber todas as manifestações da vontade de Deus,
em especial quando são desagradáveis, com um
sorriso, mesmo que seja apenas interior, é uma ora­
ção de grande valor e que toca o coração de Deus
de modo muito especial.
Não precisamos de ter receio de passar parte do
tempo da oração, especialmente daquela que pode­
mos chamar oração voluntária, para a distinguir do
tempo de oração que nos é destinado, sem pronunciar
uma palavra ; desde que, é claro, nenhuma oração
de preceito se omita por isto. Por exemplo, uma
visita ao Santíssimo Sacramento pode ser feita com
poucas ou nenhumas palavras, e, se achamos fácil
fazê-la assim, não devemos permitir que nenhuma
consideração de indulgências ou qualquer outra
semelhante seja obstáculo e nos conduza a embre­
nhar-nos numa longa série de orações vocais repeti­
das, que apenas servirão para fatigar a alma, para
lhe criar pouco gosto pela oração e para a manter
afastada de Cristo.
Muitas almas seguem atrás de Marta e têm a preo­
cupação das muitas palavras e das muitas indulgên­
cias, quando vêm ajoelhar aos pés de Jesus Cristo.
A melhor parte é a de Maria, e não devemos deixar
que considerações como aquela, no-la arrebatem.
E, na verdade, se pensamos um pouco nas disposi­
ções necessárias para ganhar todo o valor duma
indulgência plenária, poderemos compreender que
uma pessoa que passa a maior parte do seu tempo
calmamente aos pés do Senhor, é muito mais natural
que lucre à primeira tentativa, do que outras almas
mais «solícitas», em muitas tentativas.

62
NOVOS PROGRESS OS

A alma pode então sentir-se capaz de passar mais


tempo num pensamento amoroso para com Deus.
À oração que apresenta estas características, pode­
mos dar o nome de oração «simplificada». A expres­
são «oração de simplicidade», é usada muitas vezes
para esta oração, mas, como já fizemos notar, é pre­
ferível evitar usar aqui esta expressão.
Esta oração simplificada é uma verdadeira oração
de muito valor e, quando completamente desenvol­
vida, não deve ser perturbada nem para reflectir
nem para fazer actos distintos. Na prática, enquanto
que é uma regra segura não desprezar aqueles actos
para os quais temos facilidade ou atracção, aparte
o caso dum entorpecimento evidente, não devemos
tentar impor-nos actos nos quais não vemos facili­
dade ou vemos até, talvez, com muito desagrado, em
especial se tal disposição é habitual.
Isto é verdade ainda na forma mais árida da ora­
ção, onde nos agarramos a Deus, segundo todas as
aparências, mesmo só pelas pontas dos dedos da
vontade. Podem ser precisos actos - actos cur­
tos - de quando em quando, para nos refazermos
das distracções, mas não devemos forçar-nos a eles
mais do que isso. Nas fases mais consoladoras
desta oração, a alma está gozando de Deus, e este
exercício da vontade é muito agradável para Ele e
muito proveitoso para a alma. Se, no entanto, a
oração se torna árida e distraída e os afectos devotos
de qualquer género, quase impossíveis, então a alma
é levada a orar apenas com a vontade.
E fá-lo, corno escreve Piny, «querendo passar
todo o tempo da oração amando a Deus, e amando-o
mais do que a si mesma ; quer rezar a Deus pela graça
da caridade : querendo permanecer abandonada à
vontade divina. Temos de compreender claramente
que, se queremos amar a Deus, (deixando um momento

63
A DIFICULDADE DE ORAR

à parte a consideração do lugar que cabe à graça


nesta acção, por esse mesmo facto o amamos de
verdade ; se, por um acto real da vontade, determi­
namos unir-nos em amorosa submissão à vontade
d'aquele a quem amamos - ou desejamos amar -,
por esse mesmo acto da vontade, efectuamos imedia­
tamente essa união. O amor não é, na verdade,
nada mais que um acto de vontade».
A ideia de que podemos amar sem uma série de
actos cuidadosamente articulados, é tão nova para
algumas pessoas que pode ser bom discuti-la um
pouco mais detidamente.
Alguns autores lançam mão do exemplo duma
mãe com o seu filho, para ilustrar esta verdade.
Quantos actos não expressos, de amor e admiração
não faz ela, muitas vezes desconhecidos para ela
própria, quando está sentada ao lado do berço da
criança! Quantas coisas diz à criança o silêncio
da mãe, quando a estreita nos seus braços! Mesmo
na amizade humana, e mais ainda no amor humano,
não é preciso mencionar a eloquência do silêncio,
a rica expressão dum olhar ou dum sorriso.
Assim também, nas nossas relações com Deus,
podemos algumas vezes dizer tudo quanto Ele quer
que digamos, em silêncio e sossego. Isto, é claro,
não é oração para todas as almas nem para todo o
tempo. No entanto, se ocasionalmente nos cala­
mos entre os nossos actos, e nos limitamos a ajoelhar
diante de Deus num estado de resignação sincera
com a sua vontade, acontecerá muitas vezes que
verificaremos que é possivel e proveitoso permanecer
nessa disposição durante algum tempo. Se este
é o caso, fiquemos com a certeza de que estamos a
orar de verdade, porque estamos a fazer actos de fé,
de esperança e de caridade, estamos a agradar a
Deus e a implorar-lhe silenciosamente, a sua graça

64
NOVOS PROGRESSOS

e a sua misericórdia. A oração feita deste modo, pode


muitas vezes ser possível durante as visitas ao San­
tíssimo Sacramento. Quem encontrar facilidade em
fazê-lo e desejar mais ensinamentos sobre o assunto,
faria bem em consultar a segunda parte da obra de
Caussade «Ün Prayen> ou o seu livro, mais pequeno :
«Progress of Prayen>.
Uma vantagem desta simplificação da oração, é
que se toma mais fácil estendê-la às horas de tra­
balho do dia. Isto representa um enorme pro­
gresso para a solução do problema talvez mais
importante da nossa santificação, a santificação do
trabalho diário. Se santificámos o trabalho ter-nos­
-emos santificado.
É claro que há diversos gra1,1s nesta oração. As
vezes não há grande dificuldade em conservar as
faculdades ocupadas com Deus ; elas até experimen­
tam aquelas consolações sensíveis que Deus envia
por vezes, mesmo aos principiantes. Outras vezes,
a imaginação está bastante vazia e lança-se a deva­
near por sua conta, e até mesmo a inteligência pode
não encontrar nada a que se agarrar. É só através
da fé que a vontade se agarra a Deus.
Ainda nestes casos, é possível preservar as carac­
terísticas essenciais desta oração durante o traba­
lho diário. A vontade está voltada para Deus,
e as outras faculdades realizam expressamente essa
união, fazendo o nosso dever, que é naturalmente
fazer a vontade de Deus. Deste modo o tra­
balho toma-se uma autêntica oração. É em espe­
cial no caso do trabalho mental, que se tomam
mais evidentes as vantagens desta forma de oração.
É muito possível que a verdadeira oração de mui­
tas almas, que têm vivido uma longa vida de fervor
e perseverado corajosamente na sua meditação
diária, seja algo deste tipo. A vontade é levantada

65
A DmCULDADB DE ORAR

até Deus pela fé e, unindo-se a Ele pela caridade,


reza-lhe desta maneira, silenciosa ; as outras facul­
dades vão realizando a vontade de Deus, ou medi­
tando, ou fazendo oração vocal, ou qualquer outro
exercício, ensino ou trabalho manual que a sua von­
tade indica.
De facto, parece que para certas almas, uma destas
ocupações para as faculdades inferiores - a reci­
tação do rosário ou o uso de jaculatórias, por exem­
plo - é uma condição necessária para o exercício
desta oração de fé. É por esta razão que uma alma
que parece estar absorvida na oração vocal e na
meditação, seja realmente elevada a este grau de
oração. Não é necessário dar mais relevo às van­
tagens duma tal oração de fé, especialmente para
sacerdotes e religiosos activos. Têm ainda mais
necessidade dela do que os membros das ordens
contemplativas. Com ela podem fazer da sua vida
uma oração contínua, de modo que poderão dizer
com verdade : Trabalhar é orar.

66
RE CTI DÃO DE V I DA

Nos capítulos anteriores, ternos vindo a encarar


a oração como o decorrer duma amorosa amizade
com' Deus, e vimos como ela se pode desenvolver e
progredir, do mesmo modo que a intimidade de ami­
gos humanos. É verdade clara, que a oração é
um acto sobrenatural e dependente, portanto, com­
pletamente da graça de Deus. Eis uma parte do
nosso assunto que ainda não discutimos. Mas,
pelo menos até esta altura, o trabalho da graça é
tão proximamente paralelo ao da natureza, que esta
visão dum desenvolvimento «natural» na intimidade
com Deus é bastante justificada.
De passagem, podemos aproveitar o pretexto deste
paralelismo, para fazer notar um erro, mais espa­
lhado do que poderia esperar-se, que muitas vezes
tolhe o crescimento da oração.
É a crença de que, depois do laborioso e lento
caminhar discursivo da meditação, do prelúdio e dos
pontos, não há nenhum modo de oração simplificado,
excepto aqueles fenómenos extraordinários, como
visões e êxtases, que algumas vezes acompanham os
mais altos estados de contemplação, mas que de
facto são puramente acidentais e mesmo desneces­
sários para o desenvolvimento completo da oração.
É um erro basilar. A oração desenvolve-se exacta­
mente como se desenvolve a intimidade humana e,

67
A DIFICULDADE DE ORAR

como esta, tem as suas époéas e as suas variações.


Se, portanto, o nosso modo de orar não é adequado
ao estado concreto da nossa intimidade com Deus,
é natural que surjam dificuldades. Se, por exemplo,
estamos prontos e aptos para a oração afectiva, a
meditação - isto é, a oração discursiva - torna-se
uma carga infrutífera; se um acto ou um tipo de
actos é talvez suficiente para manter a alma ocupada
na oração, então, achamos que qualquer esforço
para multiplicar estes actos é difícil e perturbador
em extremo. Se o coração quer falar a Deus sem
palavras, qualquer tentativa para forçá-lo a fazer
urna série de actos distintos, pode destruir a oração.
E ainda, se Deus dá a sua graça apenas à vontade e
quer que nos unamos a Ele na fé nua, qualquer
esforço para aplicar o espírito ou a imaginação
ao trabalho será apenas urna distracção e é, de
facto, uma resistência à graça. E também as
almas que j á atingiram um alto grau da oração
e caíram então em alguma infidelidade grave, não
podem retomar a forma de oração primitiva sem
reparar a falta e, ainda que não tenham de esca­
lar toda a encosta, de noyo, no entanto a sua
recuperação tem os seus problemas próprios. Deste
modo, cada grau de intimidade com o SenhoJ,
tem o seu modo próprio de oração, e as dificul­
dades podem surgir do facto de não escolher o
adequado.
Ma!Kas maiores dificuldades na oração e os maiores
obstáculos ao seu progresso, têm às suas raízes fora
da oração, no estado geral da nossa vida espiritual.
Da sinceridade da nossa intenção, da sinceridade da
nossa lealdade, da genuinidade do nosso amor - de
coisas como estas, depende em grande parte a nossa
oração. Tudo aquilo que pode fomentar ou preju­
dicar a amizade, favorecerá ou prejudicará a oração.

68
RECTIDÃO DE VIDA

Já notámos como é essencial para a oração a


familiaridade com Deus, e com a sua doutrina, que
deriva da leitura espiritual, e como pode ser uma
grande ajuda para o seu progresso; no entanto, isto
não é de modo algum suficiente. As disposições
fundamentais das quais emerge a oração, e das quais
depende o seu progresso, são humil dade, confiança e
uma sede e necessidade de Deus, que se manifesta
em procurá-lo na oração e, naturalmente, em fazer
sempre a sua divina vontade. Qualquer defeito nes­
tas disposições fundamentais, reflectir-se-á num fra­
casso correspondente na oração.
A oração não se desenvolverá a não ser que a alma
avance para a múltipla pureza de consciência, e
coração, de espírito e de acção. No que respeita
à primeira, a oração é uma amorosa intimidade
com Deus. Ora esta é impossível, se a consciência
está manchada pelo hábito deliberado de pecar, que
representa a negação directa do amor a Deus e um
decidido apartamento dele por parte do nosso coração
e da nossa vida. Mesmo a infracção habitual duma
norma na qual persistimos depois de dela termos
sido advertidos, não permite, por assim dizer, que
olhemos para Vt:us de frente, que procuremos a sua
presença com aquela prontidão de coração para o seu
serviço, que é o segredo de toda a verdadeira devo­
ção e oração. Por isso é tão importante que todos
os sacerdotes ou religiosos, e todas as almas que
desejam avançar, procurem fixar Deus de frente,
com toda a reverência, pelo menos uma vez, cada dia,
sem ràpidamente se embrenharem numa forma qual­
quer de oração vocal.
Na sua perfeição, a pureza de consciência consiste
numa disposição firme da vontade, de nunca consen­
tir deliberadamente em nenhuma ofensa contra
Deus ou em nenhum desvio da sua santa vontade,

69
A DIFICULDADE DI! ORAR

e isto de tal modo, que logo que topa que algum


acto se opõe à vontade de Deus, imediatamente se
põe de parte. Faltas de fragilidade ou por inadver­
tência, surgirão sempre, mas devemos procurar mais
e mais evitar quaisquer faltas deliberadas ; e venham
quando vierem, nem que seja sete vezes por dia,
devemos renunciar imediatamente a elas, e procurar
o perdão de Deus com olhar de contrição e con­
fiança na sua misericórdia. Deste modo ganhare­
mos mais em humildade do que perdemos pela nossa
falta, e o regresso confiante a Deus pode dar-lhe
mais glória do que a que l he negou a ofensa. É por­
tanto uma ilusão, esperar chegar a ser homem de
oração quando pactuamos com o inimigo. A fra­
queza humana e os maus hábitos causarão muitas
derrotas, mas a guerra deve ser mantida com indó­
mita coragem, e com uma firme resolução de
conservar a consciência limpa de tudo o que possa
ofender a Deus.
A pureza de coração consiste em guardar todos os
afectos do coração só para Deus. Não é bastante
banir todos os apegos pecaminosos porque, se o
nosso coração está dividido por um apego desorde­
nado, mesmo lícito, ao nosso trabalho, a pessoas
ou a qualquer outra coisa, não podemos dizer que
amamos a Deus com todo o coração. Sempre haverá
apegos no coração humano, mas devemos subordi­
ná-los a Deus e à sua vontade, de tal modo que
nunca usurpem o seu l ugar com mola real das nossas
acções.
A vida espiritual é um trato de amor com Cristo.
Ele deu-nos todo o seu coração, derramando por
nós até à última gota, o seu sangue, na morte
pela cruz. Ele pede o nosso coração inteiro e não
podemos recusar-nos a querer, pelo menos, dar-lho
todo a Ele. Sem esta disposição da vontade, é impos-

70
RECTIDÃO DE VIDA

sive] permanecer num silêncio amoroso diante do


Senhor. Nada obscurece tanto a nossa visão de
Deus, nada enfraquece tanto o nosso desejo de
Deus, nada afrouxa tanto a nossa luta por Deus,
nada ensurdece tanto o nosso ouvido para Deus,
como um simples apego desordenado. Esta é a
grande fonte de muitas das dificuldades da oração.
Nem tão pouco os efeitos perniciosos de tais
apegos, se limitam a esta oração simplificada do
silêncio. Mesmo o primeiro «acto» que tentamos
fazer na oração, soa a oco e falso nos nossos ouvidos,
quando reparamos que estamos a dividir o nosso
coração entre Deus e as suas criaturas. E não pode­
mos ser íntimos de Deus, durante muito tempo antes
que Ele nos aponte alguns desses apegos, que
fazem rapina no holocausto ; porque Deus é um Deus
ciumento - é um fogo devorador.
Na pureza de espírito incluímos a vigilância cui­
dadosa e constante dos nossos pensamentos e recor­
dações, excluindo prudentemente tudo o que é des­
necessário, frívolo e vão, e construindo gradualmente
uma recordação contínua de Deus e das suas obras.
Esta é também uma das mais importantes mistifica­
ções para aqueles que desejam progredir na vida
espiritual, e muito mais eficaz do que as mais peni­
tentes macerações da carne. De facto, sem ela, a
penitência corporal é quase inútil. Esta morti­
ficação interior deverá estender-se à vigilância das
nossas emoções, especialmente as de ira, medo,
esperança, tristeza e alegria.
O homem cuja esperança, amor e confiança, estão
fixos em Deus, não dá lugar à ira, quando Deus lhe
manda provações, ou quando a gente prova a sua
paciência até ao limite ; nem teme em vão, a amo­
rosa providência de Deus, a qual ele sabe que cobre
todos os pequenos detalhes da sua vida. E também

71
A DIFICUlDADE DE ORAR

a tristeza não entra profundamente no seu coração


quando este está firme nas riquezas de Deus; e as
alegrias da vida parecem triviais, desprezíveis mesmo,
para aquele que conhece o gozo do amor de Deus.
A pureza de acção, a que muitas vezes chamam
pureza de intenção, consiste numa vigilância con­
tínua sobre os motivos que animam as nossas acções,
e num esforço constante para actuar apenas por
amor de Deus e de acordo com a sua vontade.
Requer uma guerra sem tréguas àquele amor próprio
que está sempre à procura de inspirar todos os nos­
sos actos. Quando um religioso se firmou na vida
religiosa e se tomou fiel na observância da sua regra,
há-de procurar novo progresso, não em esforços
violentos para praticar acções , extraordinárias, mas
numa pureza sempre crescente de intenção nos
trabalhos ordinários da vida de cada dia.
Este é o caminho mais seguro, na verdade - aparte
casos muito especiais - o único caminho, para
cumprir aquela lei de perfeição cristã que S. João
Baptista tão bem exprimiu : «Ele deve crescer, eu
devo diminuir». Toda a busca da nossa própria
honra, dum bem-estar indevido, toda a busca de
nós mesmos, por muito encoberta que esteja sob o
pretexto de motivos altruistas ou da procura de uma
santidade mais alta, se opõe directamente aquela
grande regra de nos negar a nós mesmos e de o
seguirmos, que nos foi dada por Cristo.
Isto poderá talvez parecer muito duro, e conduzir
apenas ao desânimo. Mas não é precisa a perfeição
desta quádrupla pureza para o progresso da oração,
porque tal perfeição é sinónimo de santidade; deve­
mos, no entanto, esforçar-nos no sentido de ohter
estas disposições de pureza. Devemos desejar esta
pureza, devemos pedi-la, devemos fazer esforços
enérgicos para a adquirir. Mas sem um auxilio

72
REcriDÃO DE VIDA

especial de Deus, é pouco provável que conseguís­


semos nela um grau suficiente. A bondade de Deus
não tem limites, e é neste ponto que Ele costuma
intervir, tendo compaixão das nossas fraquezas ;
depois de nos termos afadigado toda a noite, apa­
nhando pouco ou nada. Ele actua por meio da sua
providência especial, e em pouco tempo faz-nos
avançar para além de tudo quanto se podia esperar.
Mas Ele pede que façamos a nossa parte, que
continuemos a remar para o mar alto, por assim
dizer, e perseveremos nos nossos esforços para lhe
sermos agradáveis, e para lhe rezarmos, por muito
infrutíferos que pareçam esses esforços. O quadro
perfeito que Santa Teresa de Lisieux traçou da vida
espiritual, ajudará a dar-nos coragem. Vê-a como
uma escada que é preciso subir, no cimo da qual,
está Deus à espera, olhando para baixo com amor
paternal, para os esforços do seu menino ao subir
o primeiro degrau. O menino, que nos simboliza,
não consegue subir nem o primeiro degrau ; apenas
pode insistir em levantar o pezito. Mais tarde ou
mais cedo, Deus tem pena dele e desce as escadas e
arrebata o meninp até ao cimo nos seus braços ;
mas - e Santa Teresa insiste nisto quase tanto como
na gentileza amorosa de Deus - temos de insistir
em levantar o pé. A alma não deve nunca desani­
mar pela infecundidade dos seus repetidos esforços.
Parece ser uma lei da vida espiritual que, uma vez
que todo o progresso depende, em última análise,
de Deus, Ele nos deixe primeiro reconhecer a nossa
incapacidade completa, através de esforços longos
e fatigantes que se reduzem a nada. Mas temos a
sua palavra : «Eu próprio virei e vos salvarei».

73
O R A Ç Ã O
E VIDA ESPIRITUAL

A análise da oração já foi levada suficientemente


longe para se poder ver que o núcleo essencial da
oração é o acto da vontade, voltando-se para Deus,
buscando a Deus, e unindo-se a Deus - a Deus,
entende-se, como é conhecido pela fé.
É evidente, então, que há uma estreita relação
entre a oração e o resto da vida espiritual e que, de
facto, à medida que se progride, tende a desapa­
recer a distinção entre elas, e a oração transborda
dos tempos para tal reservados e começa a penetrar
o resto do dia de tal modo que, quer na palavra quer
no trabalho, a alma é sempre levantada para Deus,
numa união de amor. Esta relação estreita entre as
diferentes partes da vida espiritual, bem como a sua
dependência mútua, existe mesmo desde o princípio.
A oração e a prática são, na realidade, dois ramos
da mesma árvore de caridade. Em todas as árvo­
res a vida de cada ramo depende da seiva vital que
para ele corre do tronco, ao passo que os ramos
fornecem toda a árvore e os outros ramos, com ali­
mento e força extraídos do ar e do sol pelo inter­
médio das folhas. Assim também nesta árvore da
caridade, os ramos da oração e da prática dependem,
no seu vigor, da seiva vital da graça que lhes vem da
vida sobrenatural da alma ; enquanto que esta vida

75
A DIFICULDADE DE ORAR

é, por sua vez, alimentada ela mesma pela actividade


de cada ramo, pois que os ramos da oração e da
prática introduzem em todo o organismo espiritual
as riquezas da atmosfera divina e a energia do divino
sol, para os quais estendem as folhas dos actos e dese­
jos. De facto, nesta árvore da caridade não há dis­
tinção entre raízes e ramos ; pois o amor cresce
amando, e ama crescendo.
O caminho, portanto, que conduz ao progresso
na oração é exactamente o mesmo que conduz ao
progresso na virtude. Eis porque o progresso na
oração está aqui a ser apresentado perante sacerdotes
e religiosos, em especial perante religiosos «activos»,
corno urna parte integrante do programa essencial
do seu estado. O objectivo primordial de todas
as congregações religiosas não é aquele trabalho
concreto, como a pregação, o ensino ou a enferma­
gem, que é peculiar a cada uma delas. É a santi­
ficação de cada um dos membros individuais. Há,
portanto, uma obrigação, para cada religioso indi­
vidualmente, de tender para a perfeição, e esta obri­
gação é o dever primordial do seu estado de vida,
um dever que vem antes de todos os outros. Por
isso, o religioso que está realmente a viver à altura
das suas obrigações, está a fazer tudo o que é neces­
sário para facilitar o progresso da oração.
Mais do que isso, \liDa vez que a oração é o mais
poderoso meio para avançar na perfeição, e uma vez
que o seu poder cresce com o seu desenvolvimento,
nenhum religioso pode permitir-se descuidar o ten­
tar avançar na oração, nem dizer que essas coisas
não são para ele. O progresso na oração é conse­
quência do progresso na virtude, e o progresso na
virtude segue-se inevitàvelmente ao progresso na
oração. Quanto mais tornamo" a nossa vida con­
forme com a vontade de Deus, mais facilidade encon-

76
ORAÇÃO E VIDA ESPIRITUAL

tramas na prática da oração. De facto, a grande


dificuldade na oração é que as nossas vontades
- por outras palavras, os nossos corações - não
são totalmente dados a Deus.
Conclui-se, portanto, que não deve haver hesi­
tação em propor a sacerdotes e aos membros de
qualquer congregação religiosa um programa de
oração que conduz, e inclui, aos estados mais ele­
vados da oração, mesmo aqueles estados que alguns
autores consideram ser essencialmente diferentes da
oração «ordinária». Pelo menos no que respeita
ao esforço fora do tempo de oração, qualquer sacer­
dote que viva de acordo com as exigências do seu
ministério, ou qualquer religioso que faz tudo que
lhe é exigido pelo seu estado, está também a fazer
tudo quanto é preciso para progredir na oração.
Se este progresso não é aparente quando há uma
generosa fidelidade a todos os deveres, deve ter-se
presente que há muitas almas santas e humildes que
têm grandes dons de oração absolutamente ocultos
para si próprias. A oração, como já vimo�. pode
chegar a «simplificar-se» tanto que escapa à nossa
própria consciência. Além do que a relação entre
o progresso e a oração não é a mesma para todos.
Há quem vá longe na perfeição e pelo menos parece
estar ainda nos estados elementares da oração ;
enquanto que, por outro lado, ain4 Deus pode dar
algumas das suas melhores graças a almas que
estão ainda longe da perfeição.
A oração é um meio para atingir a perfeição ;
não é a própria perfeição. Uma coisa se pode
afirmar confiadamente : se mais almas se aplicassem
a orar, e a insistir nas tentativas para orar melhor,
um número muito maior chegaria à sua devida per­
feição e isto com menos dificuldade do que se tra­
tassem a oração como um mero exercício ocasional

77
A DIFICULDADE DE ORAR

da sua vida espiritual - meio que, afinal, se poderia


dispensar.
Neste campo, os membros das congregações mais
activas não têm o direito de pensar que a oração
tal como agora a descrevemos não é para eles.
É certo, talvez, que nas ordens contemplativas pode­
ria ser mais fácil para as almas progredir na oração ;
é verdade também, infelizmente verdade, que o
horário do dia de alguns religiosos está tão abarro­
tado de trabalho e são tão vastas as exigências que
se fazem às suas energias, que pouco tempo ou
energia se pode encontrar para desenvolver a vida
interior. Apesar disso, é verdade que as graças
da oração são oferecidas a os religiosos activos do
mesmo modo que a qualquer outra pt:"ssoa, e que a
colaboração necessária da parte deles não é nada
mais do que aquilo a que estão já obrigados pelo
dever essencial do seu estado. As «actividades»
legítimas dos religiosos não são nenhum obstáculo
para a acção da graça de Deus ; são, de facto, um
instrumento dessa graça, e pode dizer-se que se um
religioso, depois de estar muitos anos em religião,
não atingiu o seu devido estado de perfeição na
oração, isto é devido, até certo ponto, não a ser
membro duma congregação religiosa activa, mas
antes porque as suas actividades não foram tão
sobrenaturalizadas e tão interiores como o exige o
seu dever principal como religioso.
Para facilitar a oração, portanto, e para progredir
nela, deve haver grande fidelidade à vontade de
Deus. As regras e todas as outras manifestações
dos desejos de Deus devem ser fielmente seguidas,
e os detalhes da vida comum, bem como os deveres
diários de cada um, têm de ser executados com
grande exatidão e uma vigilante pureza de intenção.
E depois, é preciso prontidão em corresponder à

78
ORAÇÃO E VIDA PSPIRJTUAL

graça e generosidade em não recusar a Deus nada


que Ele esteja claramente a pedir. Quanto mais
nos abandonamos à vontade de Deus aceitando ale­
gremente todas as suas disposições e confiando
amorosamente em todos os seus planos, tanto mais
depressa avançaremos e tanto mais cedo chegará
ao fim a actividade purgaLiva da acção de Deus na
alma. O objectivo da alma deveria ser sempre
secundar o trabalho de Deus para a sua santificação.
Acima de tudo, uma vez que a humildade é o fun­
damento de toda a vida espiritual, e desde que Deus
quer que a alma seja humilde a todo o custo, deve
aceitar alegre e generosamente todas as humilhações
que Ele lhe envia. Isto tem ainda outro efeito,
porque afecta o que frequentemente é uma fonte de
distracções na oração : a tendência inconsciente
para curar as feridas do nosso amor próprio com
pensamentos e imaginações agradáveis, com aqueles
sonhos e devaneios tontos que tanto interferem
com a oração.
Não deve nunca esquecer-se a importância da
mortificação interior. Não pode haver progresso
na oração sem urna vida mortificada.
Ora isto não significa uma vida de grande peni­
tência corporal. É o nosso amor próprio que deve­
mos mortificar, e tentar penitências corporais extraor­
dinárias e invulgares, sem um claro apelo de Deus
e a aprovação de alguma autoridade adequada, é
vulgarmente apenas uma forma subtil de nos bus­
carmos a nós próprios. Deve, é claro, haver a peni­
tência corporal suficiente para manter o corpo em
sujeição. As regras e os costumes da ordem de
cada um são o melhor guia nesta matéria. Devido
ao relevo dado por alguns escritores às mortificações
extraordinárias praticadas por alguns santos, muita
gente ficou com a noção de que estas coisas são

79
A DIDCULDADE DE ORAR

essenciaiS à santificação. A vida de Santa Teresa


de Lisieux é suficiente para corrigir este erro.
Deve ter-se sempre presente que é pela mortifi­
cação interior da memória, da imaginação e das
emoções, e por uma pronta aceitação das humilha­
ções que se faz o mais rápido progresso. Dar rédea
livre aos nossos pensamentos, entregar-se a deva­
neios, construir castelos no ar, viver continuamente
de recordações passadas, alimentar os nossos agraVO!\
consentir que a soberba ferida dite os nossos pensa­
mentos ou sentimentos - todos estes hábitos são
fatais para uma vida de oração. Apesar de quantas
penitências corporais pratique, o sacerdote ou o
religioso que não pode abster-se de manifestar os
agravos e proclamar as injustiças que padece, bus­
cando consolação quando é desdenhado, e pro­
curando mesmo uma oportunidade para se des­
forrar, está longe de ser mortificado de verdade e, a
não ser que se emende, não pode ser um amigo
íntimo de Cristo.
De grande importância é a fidelidade às inspira­
ções da graça, àqueles convites do Espírito de Deus
que pede a nossa cooperação para qualquer trabalho·
ou sacrifício particular.
É através destes movimentos da graça que Deus
adapta o seu plano e atende às necessidades indivi­
duais e às circunstâncias de cada alma. São de
especial importância para a vida espiritual dum sacer­
dote no mundo. Rejeitar estes convites, em especial
o fazê-lo habitualmente, é, na realidade, extinguir
o espírito. Toda a vida espiritual é uma sociedade
com Cristo e o Sru Espírito ; A oração é como que
a reunião ou a entrevista - poderia bem chamar­
-se-lhe uma entrevista amorosa - em que afinnamos
a Deus o nosso amor e a nos<;a cooperação, onde
manifestamos a n ossa união com Ele e encontramos

80
ORAÇÃO E VIDA ESPIRITUAL

mesmo alegri a nessa união. Ora, se o resto do


nosso dia desmente os nossos protestos e cont radiz
as nossas promessas, não podemos encontrar-nos
com Deus com sentimentos sinceros de amor e de
cooperação ; deste modo, a oração torna-se «difícil»,
e mesmo impossível. É talvez por e�ta razão que
tantas almas não conseguem ir longe no caminho
da oração . Não é porque Deus lhes tenha recusado
as graças da oração, mas porque recusaram a Deus
aquela cooperação cum o que poderíamos chamar
as orações da sua graça - os convite!. para trabalhar
em união com Ele -. porque l he recusaram aquela
cooperação que é o necessário cumprimento e fun­
damento da sinceridade da oração afectiva. Quando
falamos a Deus temos de ter a intenção daqmlo
que dizemos, temos de praticar aquilo que prome­
temos, temos de demonstrar em factos o que diz�­
mos oralmente.

81
A SENDA DO PROGRESSO

H á uma outra consideração que torna desejável,


se é que não é também necessário, que os diferentes
caminhos da oração sejam apresentados a todos os
sacerdotes e a todos os religiosos, e istc não apenas
corno um conhecimento especulativo sem ter nc:nhuma
relação com a prática, mas como métodos práticos
da or�ção que todos poderão ter ocasião de empre­
gar. Mas isto requer urna certa introdução sob a
forma duma análise do caminho que nos há-de levar
às alturas da oração.
É bastante verdade que há uma velhíssima d;vi­
são da vida espiritual em três estados - nomeada­
mente o de principiantes, adiantados e perfeitos ­
que data quase dos tempos apostólicos. É verdade
também que o progreo;so na oração foi dividido em
três modos, correspondentes a cada um destes três
estados. É verdade, além disso, que o caminho
ascendente da oração foi dividido em vários graus
por autoridades tão grandes como Santa Teresa,
e por muitos teólogos de experiência e renome.
A esta tradição de testamento, a este peso do
precedente e da prática, poderiam acrescentar-se
as amáveis sugestões daqueles cujo conselho pro­
curamos ao traçar estas linhas, recomendando deci­
didamente a divisão da vida espiritual em graus
bem marcados, com definições detalhadas de cada

83
A DIFICULDADE DE ORAR

tipo de oração e um tratamento classificado das difi­


culdades que surgem em cada classe.
Apesar diss ) abstivemo-nos propositadamente duma
téntativa demasiado precisa de definição, e também
de qualquer classificação bem delimitada dos dife­
rentes estados no progresso da oração, com divi­
sões bem marcad�s entre cada estado. Ao fazer isto
não pomos em dúvida nem por um momento a ver­
dade dos princípios latentes num procedimento tão
cientifico como o da tradição. Mas este livro não
é um manual teórico para discutir as dificuldades
da oraÇão em termos gerais ou abstractos. É antes
uma tentativa para ajudar as almas, individualmente,
a lidarem com as suas próprias dificuldades, e a
encararem a vida espi ritual não dum modo cientí­
fico, objectivo, mas do ponto de vista sub_iectivo do
individuo, tratando-a como ela aparece na prática
a cada um.
Ora, se tomarmos a experiência dum grande
número de almas de idade, experiência, tempera­
mento e épocas diferentes, e se tirarmos a média,
verificaremos que as divisões e conclusões clássicas
são bastante rigorosas e bem justificadas. Mas se
fôssemos a medir uns quantos homens, a tirar a
média das diferentes medidas e a fazer um fato de
acordo com estas medidas médias, o mais natural
seria não haver pessoa alguma a quem o fato ficasse
bem. Assim acontece ·com a oração. As experiên­
l
cias de cada um, e o caminho pelo qua lhe parece
que corre a sua oração, não hão-de submeter-se à
letra duma lei geral. Em particular encontrar-se-á
grande variação na sequência por que os diferentes
graus de oração se sucedem uns aos outros. Mesmo
naqueles cujo trilho segue mais de perto as tabu­
letas clássicas - meditação, oração afectiva, oração
simplificada, contemplação árida, oração de união,

84
A SENDA DO PROGRESSO

etc. - estas divisões só representam uma média ao


longo dum período no qual predominou um deter­
minado tipo de oração. E não é mesmo impos­
sível que, no ponto marcado com meditação, tenha
havido tempos em_ que se tenha praticado outros
tipos de oração. É claro que é pouco natural que
todos tenham estado presentes.
Autores de espírito bastante conservador fazem
notar que um certo número de almas começam com
a oração afectiva. A muitos principiantes genero­
sos foram-lhes dadas, pelo menos por algum tempo,
as graças da contemplação. A tarefa de receitar
para cada alma deve pois ser encarada com esplrito
aberto e numa completa selecção de receitas.
E além desta variedade, aparentemente inerente à
natureza do caso, parece que, em vista das neces­
sidades destes tempos críticos e do temível vigor das
forças em oposição activa à cristandade, Deus está
ainda mais disposto a derramar as suas generosas
graças de oração em almas que desejem fazer uso
delas. Não importa qual seja o seu estado na vida;
dificilmente há uma alma que se aplique seriamente
a procurar a oração e a santidade, da qual se possa
dizer com algum fundamento que lhe não são ofe­
recidas as mais altas graças de oração. Portanto,
parece desejável que cada alma tenha um conheci­
mento prático dos diferentes modos de orar e esteja
preparada para usar cada um deles de acordo com
as condições variáveis da graça, do fervor e do clima
geral da sua vida espiritual.
Isto significa que deve estar preparada para subir
mais alto se Deus a tanto a convida, e deve estar
pronta, com igual alegria e santa indiferença, a
retomar a meditação se, falhando tudo o resto, isso
se tornasse proveitoso. Isto não é afirmar que não
haverá um desenvolvimento geral da sua oração ;

85
A DIFICULDADE DE ORAR

tudo o que escrevemos mostra claramente que,


numa vida espiritual sã, algum crescimento é quase
inevitável. Mas é muito possível que o curso da
oração, observado dia a dia, venha a manifestar
toda a casta de variações e a exigir um manejo de
vários métodos. Vale a pena notar que S. João
da Cruz i nclui sob o mesmo termo - o de medita­
ção - as diferentes variedades de oração que temos
estado a tratar.
Foi por isso que evitámos as definições exactas
ou delimitações claras. Podemos definir termos
com rigor; mas uma clara definição de estados pres­
supõe a existência de divisões diferentes e precisas
no desenvolvimento da oração, que não são tão fáceis
de encontrar na prática, especialmente quando as pro­
curamos no caso duma alma determinada. É mesmo
tarefa de grande monta traçar a fronteira entre o
estado geral da oração ordinária e o princípio daquilo
a que muitos chamam a contemplação inglesa. Se,
portanto, é visível uma certa imprecisão no presente
tratamento do desenvolvimento da oração, é porque
isto parece estar mais de acordo com a experiência
individual. É também por isto que devemos julgar­
-nos justificados por tratar as dificuldades dos dife­
rentes modos de orar duma forma não classificada.
Há uma arma - um caminho - que é essencial
para lidar com todas as dificuldades e para fazer
progressos na oração. É uma firme resolução de
não deixar nunca de tentar, de não desistir nunca
de orar, não importa que dificuldades surjam, não
importa quão pequeno seja o grau de progresso,
não importa quanto custo tenha de acarretar. Quando
decidimos tornar-nos homens de oração, fáZemos
uma declaração de guerra, não só aos nossos mais
baixos instintos, mas ao próprio demónio. Só uma
coragem decidida e uma confiança inabalável em

86
A SENDA DO PROGRESSO

Deus podem tomar possível a nossa persistência


nesse combate. Mas se somos generosos e fazemos
quanto podemos, mesmo que seja pouco mais que
gloriar-nos nas nossas fraquezas, então podemos
estar certos do auxilio de Deus, porque é um prin­
cípio teológico que àqueles que usam a pouca graça
que porventura jã têm, Deus não recusarã a graça
posterior.
Hã uma dificuldade, muito vulgar, que hã-de pôr
à prova a força desta resolução ; é a luta contínua
contra as distracções. Estas perturbações podem,
é claro, ter a sua origem fora da oração, em aJgum
apegamento, numa curiosidade imortificada, num
remoer mórbido sobre as humilhações, por exemplo ;
podem ser devidas a não s e conseguir um recolhi­
mento generoso e completo no princípio da oração.
Nestes casos, o remédi ó é óbvio. Podem, no entanto,
ser devidas à fadiga; porque se as potências do espí­
rito estão duramente aplicadas ao trabal ho todo
o dia, não lhes é fãcil fazer o esforço necessãrio para
continuarem atentas àquilo que pode ser uma tarefa
muito difícil. Neste caso, quando o trabalho que
nos distrai é indicado por Deus, e não devido a que
nos procuremos a nós mesmos, apenas podemos
gloriar-nos nas nossas fraquezas e esperar na graça
de Deus. As distracções podem, ainda, ser devidas
à instabilidade natural do espírito, especialmente da
imaginação. É lei psicológica que uma ideia tende
a suscitar outra, de acordo com os conhecidos prin­
cípios da associação e do contraste, de tal modo que
o próprio esforço para tornar clara uma ideia pode
ser o meio de iniciar uma distracção. As distrac­
ções podem, ainda, provir de que o assunto da nossa
oração e a actuação da graça de Deus não apresen­
tem atractivos para a imaginação, para os nossos
gostos naturais, ou até para a parte mais familiar

87
A DIFICULDADE DE ORAR

das nossas potências intelectuais. Especialmente


neste último caso, a imaginação e os seus auxiliares
parecem amotinar-se, e qualquer tentativa para as
dominar apenas afastará a atenção da verdadeira
oração, que continua nas profundidades da alma,
no que poderia chamar-se a <<luz invisível» da fé.
Em todos estes casos, o máximo que podemo_s
fazer é renovar a nossa atenção a Deus de acordo
com o modo como estamos a orar-lhe. Isto deverá
fazer-se delicadamente e serenamente, sem vexame,
ou mesmo sem surprêsa pela nossa própria loucura.
Se pudéssemos compreender quanto este contínuo
regresso a Deus lhe revela o nosso amor real por
Ele e quanto lhe agrada mais do que a atenção arre­
batada que tem as suas raízes no amor próprio,
nunca ficaríamos descontentes com a nossa oração
por causa das suas numerosas distracções. Se a
oração é um levantar o espírito para Deus, então
cada vez que nos afastamos das distracções para
renovar a nossa atenção, oramos a Deus - e ora­
mos nas «barbas» da dificuldade e apesar de nós
mesmos. Que poderia ser mais agradável a Deu s ?
Que d e mais meritório ? Ficaríamos muito surpreen­
didos se pudéssemos lançar a vista sobre o livro de
contas que guarda o anjo apontador e ver os diver­
sos valores que lhe lança nas nossas várias tentativas
de oração. A oração que nos agradou, e com a
qual ficamos todos satisfeitos, ficaria, com frequência,
bastante baixa na sua apreciação, enquanto que a
oração que nos desagradou, que era aparentemente
passada só em distracções, poderia acontecer que
merecesse em alto grau a sua aprovação.
Algumas vezes o simples regresso a Deus é sufi­
ciente para banir a distracção ; mas, muito frequen­
temente, o mesmo pensamento de distracção insiste
em reaparecer, apesar das nossas tentativas para

88
A SENDA DO PROORESSO

libertar-nos dele. Uma maneira de lidar com tais


instrusos é torná-los objecto da oração. Com um
pouco de ingenuidade, pode encontrar-se alguma
relação entre a ideia que nos distrai, e Deus. Pode,
talvez, dar-nos alguma coisa por onde orar ; pode
servir-nos como motivo para louvar a Deus; poderá
ser usada como urna evidência da nossa necessidade
da sua graça. Se tudo o mais falha, podemos voltar
ao conselho do autor de «The cloud>> para lidar
com as distracções, de que deveríamos procurar
olhá-las ppr sobre os ombros, corno se estivéssemos
a olhar para algum objecto para além delas e acima
delas - que é Deus. Há um capítulo excelente
sobre as distracções em «Holy wisdorn» ( «Sancta
Sophia») de Baker, urna obra à qual muito devem
estas páginas, e que refere a mesma tradição. A parte
deste livro que trata da oração será decerto de grande
ajuda ; foi publicada separadamente por Weld­
·Blundell sob o título «Prayer and holiness».
Pode ajudar-nos um outro modo de encarar a
oração, quando sentimos que de todo não podemos
orar. Tornemos o tempo da oração corno urna
entrevista com Deus. Se, pelas suas sábias razões,
Ele resolve não comparecer à entrevista, essa é a
sua vontade e, portanto, deve ser louvada. Pela
nossa parte, ajoelhando ali, desamparados, e qua�
desesperados, estamos a fazer o que Ele quer que
façamos, e podemos confiantemente deixar o resul­
tado nas suas mãos. Estas horas desamparada�,
passadas a combater o sono e a distracção, «sem
conseguir nada», corno é costume dizer-se, desem­
penham um papel providencial na nossa santificação.
As distracções que não são deliberadas são uma
provação, não urna falta ; aceitemo-las alegre e
confiadamente. No tempo que Ele ache propicio,
Deus virá e salvar-nos-á.

89
AS D I F I CULD AD E S
D E NÃO ORAR

Até aqui temos estado a considerar as dificuldades


da oração ; vimos também que a oração é susceptível
de desenvolvimento, e verificámos quão estreitamente
está unida com a vida espiritual, de tal modo que
nenhum progresso é possível numa, sem grandes
esforços na outra. Um religioso, esquecendo tal­
vez que está já obrigado a estes esforços pelo próprio
hábito que usa, pode permitir que a sua aparente
dificuldade o detenha a procurar aproveitamento
na oração. Antes de continuar a tratar qualquer
novo avanço na oração, com as suas dificuldades,
será bom que vejamos que alternativas se apresen­
tam a um tal religioso.
Àparte o facto de que a pena e o esforço implícitos
na tentativa para avançar na vida espiritual trazem
consigo a sua própria consolação e força, uma união
com Jesus mais intima e mais consciente, que lhes
pode tirar toda a sua aspereza, são também contra­
balançadas pela supressão da maior de todas as
formas de infelicidade - o serviço «a meias)) na
religião. Para o religioso cujo coração não anda
à procura de união com Deus, a vida é uma desola­
ção perpétua. Toda a vida religiosa está organizada
para conduzir-nos - para transportar-nos, na reali­
dade - em direcção à meta de união divina. Qual­
quer outro caminho, ou qualquer atrazo, faz-nos

91
A DIFICULDADE DE ORAR

andar toda a vida contra a vontade e remar contra a


sua firme corrente.
Se um religioso que assim se afasta do fim prin­
cipal do seu estado, procura distracção absorvendo-se
no seu trabalho, está permanentemente a arranhar-se
contra os inumeráveis obstáculos e impedimentos
que a limitação da sua regra de vida lhe põe no
caminho do êxito completo nessa direcção. Se
tenta encontrar paz na busca de algum prazer infe­
rior, em breve conclui que tem de chegar a medidas
extremas para tentar abafar os remorsos da sua
consciência e os apelos daquela fome, profundamente
enraizada, da sua natureza mais elevada, que não
encontra alimento em uma tal loucura, e assim os
seus dias estão cheios duma miséria sempre cres­
cente. Mesmo que evite tais desordens, todo o
conjunto dos exercícios religiosos se torna sem sen­
tido, sem razão e fatigante em extremo. É como
um rapaz na escola que não quer aprender, um
doente em tratamento que não quer pôr-se bom, um
soldado em armas que está decidido a não lutar. Está
numa guerra contínua - se é que podemos dar este
nome às suas disputas - com aquilo que o rodeia.
O estado religioso é um estado em que urna alma
se entrega a Deus e em que Deus se dá a si mesmo
à alma, depois que a ajudou a sacrificar-se e a pre­
parou para esta dádiva. Qualquer plano pessoal
oposto a este fim é completamente estranho à vida
deste estado, e mais tarde ou mais cedo ou se põe
completamente de parte tal fim ou então começou
o fracasso dessa pessoa como religiaso. Mas se
podemos fazer dessa vida, nossa a verdadeira fina­
lidade e ver todas as coisas como meios divinamente
inspirados para nos unirem a Deus, então teremos
encontrado urna felicidade indizível, e com ela o
segredo da paciência alegre.

92
AS DIFICULDADES DE NÃO ORAR

Muitos religiosos, por exemplo, consideram o


recreio da comunidade uma grande prova - em vez
de recrear, algumas vezes apenas serve para irritar.
Suponhamos, no entanto, que se vai para lá apenas
procurar .Jesus e para o encontrar fazendo a sua
vontade, e então encontra-se também um ponto de
vista que torna o exercício não só tolerável, mas
ainda uma coisa que pode ser aceite alegremente.
Num capítulo posterior havemos de ver quão ver­
dade é que fazendo a vontade de Deus, encontramos
a Deus ; que, mesmo ao cumprir o que parece serem
os mais insignificantes preceitos da regra, estamos
a fazer uma coisa que é mais agradável a Deus e
mais eficaz para a nossa felicidade eterna do que
qualquer outra, por grande ou heróica que fosse,
que pudéssemos fazer naquele momento. Uma tal
atitude é de grande ajuda no caso daqueles preceitos
da regra que parecem frequentemente aborrecidos e
injustificados. Encarados deste modo, o seu cum­
primento torna-se uma oração constante, uma comu­
nhão espiritual prolongada ; não só suplica a Deus
com a máxima eficácia que venha aos nossos cora­
ções como nos une realmente a Ele.
Além disso, é um facto que unindo-nos a Jesus
desta maneira, fazendo alegremente a sua vontade,
também nos unimos a todos os trabalhos de todos
os seus servos através de todo o universo ; estamos
unidos a cada sacerdote que celebra a missa, a cada
missionário que prega o Evangelho, a cada alma que
reza ou que sofre por Cristo ; e, mais ainda, parti­
cipamos do fruto do trabalho deles, e podemos
mesmo ter parte na sua recompensa, de acordo com
a nossa aceitação amorosa da vontade de Deus e a
prontidão em cumprir o dever concreto que Deus
nos designou. Procurar a Deus em verdade, fazer
a sua vontade alegremente, amá-lo de todo o cora-

93
A DIFICULDADE DB ORAR

ção - este é o único caminho para a verdadeira


oração e a verdadeira paz.
Esta vida interior não é apenas a única esperança
de cada indivíduo que está em religião ; é também
a única esperança do estado reiigioso, e ao chamar-lhe
«a única esperança» estas palavras foram tomadas
em todo o seu significado. O Senhor m�smo disse
aos seus apóstolos, na noite em que os ordenou
sacerdotes e fundou a vida activa da Igreja : «Perma­
necei t:m mim, e eu em vós Eu sou a vinha, vós
sois os ramos : aquele que permanece em mim, e eu
nele, esse dá muito fruta, porque sem rni'll nada
podereis fazer->. Todo o discurso que Ele lhes fez
na noite antes de sofrer, foi uma exortação à vida
interior, e urna indicação clara de que era a única
fonte da sua · fecundidade.
Nestes tempos críticos, quando a Igreja tem tama­
nha necessidade da cooperação total de todos os
seus religiosos, é da vida interior de oração e peni­
tência que ela mais necessita, e parece por vezes que
é a última ajuda que os seus membros pensam ofe­
recer-lhe. Há o perigo de, sob a pressão da neces­
sidade e através do contágio com um mundo mate­
rialista, a nossa perspectiva se tornar deformada
e a nossa escala de valores se alterar. Os maravi­
lhosos serviços que o estado rdigioso prestou à Igreja
e aos seus mern bros, pn::gando, en�inando, curando,
em todos os géncros de actividades, são uma das
glórias do cnstianismo. Mas tudo isso não é TD.ais
que bronze que soa e címbalo que tine, se não vem
duma vida de oração e união com Deus.
É forte a tentação para esquecer isto. Quando
há necessidade de novos corpos de professores para
as escolas, quando as missões clamam fortemente
por ajuda, quando os sofrimentos dos pobres dila­
ceram os nossos corações, é muito fácil esquecer a

94
AS DIFICUIDADFS DB NÃO ORAR

necessidade absoluta que representa para cada sacer­


dote e para cada religio!>o, um forte, firme e sólido
fundamento na vida interior; é muito fácil esquecer
a necessidade absoluta do vagar !;Uficiente para a
oração, para a leitura espiritual e para ns co1sas da
vida espiritual. As necessidades de momento podem
amontoar estes exercícios num canto eternamente
apertado do horário, podem fazer exigências cada
vez maiores às forcas c energia dos sacerdotes e reli­
giosos, e podem mesmo chegar a preencher todo o
campo do seu intP.resse. Isto seria fatal ; porque
então não pode haver mais fruto, não pode haver
mais vida, porque Jesus foi empurrado para fora
da vida religiosa e do coração de cada religioso
. . . Ele que é o Caminho, a Vt:.rdade, e a Vida.
Tentar ganhar eficácia, quer do ponto de vista
individual quer dum inslinto, reduzindo o tempo
ou o interesse pela oração e pelos exercícios espiri­
tuais, é ainda mais insensato do que tentar rezlizar
mais trabalho manual pondo de parte o jantar.
Toda a sabedoria, toda a eloquência, todo o tra­
balho do mundo não podem converter nem uma
única alma, a não ser que a oração e os sofrimentos
de alguém atraiam a graça necessária. As palavras
dum homem não iêm urção a não ser que ele viva
uma vida de intimidade com Jesus. Os rapazes,
por exemplo, respeitarão um homem de princípios
elevados, aprenderão com um bom professor, admi­
rarão mesmo um homem penitente; mas se esse
homem não for um amigo íntimo de Jesus, nenhum
progresso exercerá jamais no coração e na alma do
aluno aquela influência que o tornará também um
amigo e um amante de Jesus ; poderia mesmo dizer-se
que, se não há qualquer outra pessoa que esteja
em oração em vez dele, nem sequer fará do aluno
um bom católico.

9S
A DIFICULDADE DE ORAR

Estes são apenas alguns exemplos duma verdade


de aplicação universal. A vida exterior é inútil
se não brota duma vida interior e nenhuma vida
interior pode ser duradoura sem uma oração cons­
tante e de todo o coração. Ora, não há nenhum
exercício da vida espiritual que se preste menos a ser
regulamentado do que a ora�;ão, nem há nenhum
cuja rcgulamen1ação creste e murche tão depressa.
A oração deve ser a prática mais espontânea de
todas. O seu são desenvolvimento numa congre­
gação é assegurado da melhor maneira, não através
duma «orga nização» excessiva, com métodos e
matérias fixas, mas formando antes de mais nada
em cada religioso o espírito da vida interior, com
uma fone convicção do seu valor e da sua nf'cessi­
dade levando-o a um tralo intimo com Jesus, e
dand .)-)he então todas as oportunidades e facilidades
para a desenvolver.

96
A O RA Ç ÃO
D O S A C E R D O T E

Nos capítulos preéedentes fizeram-se tantas refe­


rências à vida religiosa que deve agora prestar-se
alguma atenção ao caso do sacerdote que vive no
mundo. Não se pense que tudo o que se diz neste
livro acerca da possibilidade de progredir na oração
é um ápice se4uer menos verdadeiro para o sacerdote
do que para o religioso. A única razão de se fazer
aqui uma referênc ia mais demorada à vida religiosa
é porqt e este l ivro foi escrito por um religioso, e
porque, efectivamente, só se pode tratar com detalhe
aquelas questões de que se tem experiência imediata.
Pareceu que era preferível, para um autor que só
pode ter um conhecimento de segunda-mão dos
problemas do sacerdote, evitar ver as suas dificul­
dades com dema siado pormenor, para não correr
o risco de não serem <:>ncaradas com inteiro conhe­
cimento e compreensão. Estas dificuldades são
duma natureza tal que um contemplativo enclausu­
rado que tentasse tratá-las demasiado minuciosa­
mente, poderia denunciar-se num estratega de salão.
No entanto, é prec so fazer alguma referência a
estes problemas, pois se assim não fosse poderia
parecer que a oração e a perfeição não eram consi­
deradas acessíveis aos sacerdotes no inundo. Ora,
pelo contrário, o progresso da oração não lhes é

97
A DIFICULDADI' DE ORAR

apenas possfvel , como é mesmo de capital importância


pois o facto é que enquanto que o estado religioso
é um caminho para a perfeição e, por isso mesmo,
aberto àqueles que estão ainda longe da santidade,
o sacerdódo pressupõe de facto qur. já se r.lcançou
a santidade ( 1 ). Poderia dizer-se. de facto, que
ao passo que um religioso está obrigado a tender
para a perfeição por razão do seu estado, o sacer­
dote só está obrigado a fazê-lo se ainda não atingiu
a perfeição requerida pelo seu sacerdócio ; a sua
obrigação priml1ria é ser perfeito.
Já se fez referência às palavras usadas por o
Senhor em pessoa, ao dirigir-se aos Apóstolos depois
de os ter ordenado sacerdotes. Estão tão impreg­
nadas de luz sobre este assunto, que podem citar-se
de novo em bloco.
«Permanecei em mim, e eu em vós. Assim como
o ramo não pode dar fruto por si mesmo. se não
permanece na vide, tampouco vós, se não perma­
neceis em mim. Eu sou a vide, vós sois os ramos ;
aquele que permanece em mim, e eu nele, esse dará
muito fruto. Porque sem mim não podeis fazer
nada. Se algum não permanece em mim, será
arrancado como o ramo e murchará, e será apanhado
e lançado no fogo e arderá. Se permaneceis em
mim e as minhas palavras permanecerem em vós,
pedireis tudo o que quiserdes e vos será feito. Nisto
é que o meu Pai é glorificado ; em que deis muito
fruto, e que vos torneis meus discípulos» (2).
E, quase como se olhasse por sobre os longos
anos e nos ouvisse protestar : «Mas, Senhor, como
hão-de ser estas coisas ? Temos de viver no mundo

(1) Cf. S. Tomás, Summa, ll-11, 189, a. I, ad. 3.


(2) João XV, 4-8.

98
A ORAÇÃO DO SACERDOTE

temos de viver com o mundo ; de maneira que são


para eles, precisamente porque, como sacerdotes, as
suas funções exigem perfeição.
Ainda que o úitimo capítulo tenha tirado a sua
conclusão do facto de que o dever e a finaFdade pri­
mordiais do estado religioso é tend�r para a perfei­
ção, não precisamos de considerar aq ui a perfeição
do estado sacerdotal, precisamente como um «estado> .
Se o texto de S. Tomás, q ue conduziu a algumas di ver­
gências r.a r:loutrina sobre este assunto, se aplica ou
não às condições actu<lis, não é problema q uc precise
de ser posto aqui. (Aqueles que pretendem exami­
nar este ponto encontrá-lo-ão discutido em «The
secular Pricsthood» de E. J. Mahoney»). S. Tomás
é bastante claro ao afirmar que as funções do sacer­
dote, não importa qual o seu «estado», requerem
Uma maior santidade interior do que o próprio estado
religioso ( 1 ). As declarações dos mais recentes Papas
não deixam lugar para dúvidas sobre a necessidade
da santidade no sacerdote. Bastará c:tar aqui Pio X :
«Há alguns que pensam e ensinam que todo o valor
dum sacerdote consiste em ele se dedicar às necessi­
dades dos outros. Quão falsa e desastrosa é seme­
lhante doutrina. S ó a santidade pessoal fará de
nós homens como os que pede a nossa vocação
divina : homens crucificados para o mundo, homens
para os quais estão mortas as coisas do mundo,
homens que caminham numa vida renovada» (2).
Os Pontífices seguintes apenas reafirmaram este
principio.
É certo que um sacerdote não está obrigado a usar
exactamente os mesmos meios de perfeição que um

(1) Cf. S. Tomás, Summa 11-11, 1 84, 8).


,

(2) Haerent Animo, 4 de Agosto de 1908.

99
A DIFICULDADE DE ORAR

religioso, mas isso não diminui as suas obrigações,


pois são muitas e imensas as dificuldades que nos
separam duma tal perfeição !», dá expressão à verdade
total do poder e do sucesso da sua missão como nosso
Salvador numa palavra que é uma resposta perfeita
a qualquer dificuldade que um sacerdote possa
encontrar para atingir a santidade : «No mundo
haveis de ter tristezas : Mas confiai, eu venci o
mundo>>.
Por isto é que pode afirmar-se com confiança que
tudo o que se escreveu nestas páginas sobre a possi­
bil idade e necessidade do progresso na oração e
na perfeição para os religiosos se aplica, «a fortiori»
àqueles que o Senhor escolheu como amigos seus,
mais do que como servos, e os fez sal da terra,
isto é, os sacerdotes da sua Igreja. Porque uma vez
que, é claro, que um religioso está obrigado à per­
feição, segue-se que tem de ser-lhe poss[vel alcançá-la,
sejam quais forem as dificuldades que se apresentem
no seu caminho ou as graças especiais de que precise
para o fazer. A este respeito, as palavras que o
Senhor usou para resumir a vida espiritual dos seus
sacerdotes são cheias de sentido ; porque, como é
que se pode «permanecer» em Cristo a não ser por
meio duma vida de oração ?
Insistiu-se bastante neste ponto, porque fornece
um remédio para a primeira grande dificuldade que
os sacerdotes experimentam na perseverança, na
oração, a saber, a convicção que lhes entra, mais
tarde ou mais cedo, de que o progresso na oração
não é possivel para eles - que os mais elevados esta­
dos da oração são só para religiosos escolhidos.
Este livro pode ser tomado, todo ele, como uma
resposta a essa objecção. De facto, os sacerdotes
têm, nesta matéria, tanto de comum com os religiosos
que ' um resumo das dificuldades que podem surgir

tÔO' ,
A ORAÇÃO DO SACERDOTE

na oração dos leitores clérigos será de aplicação


geral.
A primeira dificuldade - devida à noção de que
o êxito não é possível - já foi tratada. Uma segunda
dificuldade é devida à falta de leitura espiritual
apropriada. Esta leitura é um alimento essencial
para uma vida de oração. Deve ser adequada às
necessidades do indivíduo, e fazer-se não apenas
para adquirir conhecimentos, para pregar, ou para
fins de direcção. É por falta duma leitura assim
que se insiste frequentemente sobre a meditação
metódica diária, em vez de estimular as almas a
orar.
Em terceiro lugar, muitos falham na oração men­
tal por falta duma resolução inflexível - tem de ser
inflexível especialmente no caso dum sacerdote que
viva no mundo, se se quer que dure - de nunca
desistir da prática de perder, digamos, pelo menos
meia hora por dia tentando fazer oração, por muito
mal sucedida que seja essa tentativa. Mesmo que o
resultado não seja mais do que distracções ou sono­
lência, a resolução de perseverar não deve pôr-se
de parte. Há sempre o perigo de que quem tem de
planear o seu próprio dia ao considerar as numerosas
e urgentes solicitações do seu tempo e as muitas
- e aparentemente mais proveitosas - finalidades
às quais poderia dedicar o período aparentemente
perdido uma infrutífera tentativa de oração, possa
ceder à tentação de abandonar esta prática. Isto
seria fatal. Todos os sacerdotes deveriam marcar
algum tempo determinado para a oração quotidiana,
de preferência pela manhã antes da nissa, mas, se
necessário, à tarde, e ter como regra firme não deixar
nunca de pelo menos tentar orar nessa altura meia
hora, por exemplo. Se se escolhe a tarde como
mais conveniente, seria bom reservar um período

101
A DIFICULDADE DE ORAR

curto de manhã à oração a fim de entrar em sociedade


com o Senhor para o trabalho do dia. O espí­
rito da Igreja acerca da oração do sacerdote reflecte-se
no cânone 1 25. Poderia dizer-se que a produtivi­
dade do trabalho do dia inteiro depende desta ten­
tativa de orar, de modo que não se deve nunca
pô-la de parte na mira de fazer um melhor uso do
tempo que se lhe dedica. Não há melhor uso pos­
sível.
Uma outra causa ainda de fracasso, é indicada
pelo facto de que muitos desistem da oração mental,
ou pelo menos não conseguem avançar nela por
causa da sua convicção de que oração mental signi­
fica meditação metódica e nada mais. Quando esta
meditação se torna impossível, então ou desistem de
qualquer tentativa para orar, ou perseveram no
uso do «método» com esforços heróicos quando
deviam passar a orar sem método. Um método é,
quando muito um modo de orar, mas em geral ape­
nas representa um meio de nos prepararmos para
orar ; nem sempre é frutífero, nem mesmo útil, e
neste caso deve ser posto de parte.
Aparentado com este, há também o erro de pensar
que não há nenhuma forma de oração entre uma
meditação deste género e a contemplação passiva.
Uma dificuldade parecida surge da noção dema­
siado rígida da divisão do progresso na oração em
três ou mais estados bem definidos e delimitados.
Receia-se, digamos, fazer uso da oração simplifi­
cada porque as próprias virtudes parecem ser dema­
siado imperfeitas. Ora, possivelmente, é-se des­
viado do uso duma forma simplificada de oração
pela impressão recebida de alguns autores que falam
dum estado místico de oração a que chamam a ora­
ção da simplicidade e a qual, em sua opinião, pres­
supõe que a alma passou através de certos estados

102
A ORAÇÃO DO SACERDOTE

clássicos de purificação chamados «noites escuras».


Outras vezes encontramos o erro contrário, de se
não querer voltar a um grau inferior da oração quando
isto é necessário.
Estas dificuldades têm a sua solução naquilo que
se escreveu nas páginas anteriores sobre o progresso
na oração. Em particular, é preciso insistir no
facto de que a senda de progresso do indivíduo
não é obrigada a seguir nenhuma lei geral. A ora­
ção deve tomar-se tal como vem, sem nos preo­
cuparmos demasiado em saber que «grau» é, ou
que «estado» atingimos. De facto, «localizações»
destas são muitas vezes, para o indivíduo em qual­
quer momento determinado, bastante enganadoras
e podem mesmo ser completamente desprovidas de
sentido.
Ninguém pode negar o facto de que um sacerdote
tem as suas dificuldades especiais próprias, �anto
na sua vida espiritual como na sua oração mental
- dificuldades que são, em geral, muito maiores
do que as dos religiosos. A vida religiosa é abri­
gada ; está ordenada para conduzir à perfeição, e
mesmo os seus menores detalhes são dirigidos pela
obediência. O religioso sabe em cada momento
qual é a vontade de Deus a seu respeito, e o cumpri­
mento dessa vontade é a amarra da sua vida espi­
ritual e o fundamento da sua oração. O sacerdote
na sua missão, não tem um conhecimento detalhado
do plano de Deus a seu respeito, mas tem o Espírito
Santo de Deus, e deve viver por Ele. A atenção e a
fidelidade às inspirações do Espírito Santo e à obe­
diência da caridade podem, para ele, substituir a
obediência do estado religioso. De fllcto, poderia
dizer-se que a devoção ao Espírito Sant o deveria
ser uma das caracteristicas principais da vida espi­
ritual do sacerdote. O Espírito Santo foi-lhe dado

103
A DIFICULDADE DE ORAR

na ordenação para todas as necessidades do seu


sacerdócio. A santidade pessoal e a oração fazem
parte destas necessidades. O Senhor fez depender
toda a fecundidade da nossa «permanência» nele;
o Espírito Santo é o princípio dessa união.
Esta intimidade com o Senhor é também uma
característica que deveria caracterizar a vida dum
sacerdote. A união do sacerdote com o Senhor
é tão estreita que ele consagra e absolve em pri­
meira pessoa : «Este é o meu corpo ; Eu te absolvo >>
. . .

Uma convicção verdadeira da sua própria impotên­


cia e da sua constante necessidade de ajuda guiá­
lo-ão em breve a um vivo sentido de intimidade com
Jesus. Este será alimentado pelo recolhimento e
por aspirações frequentes ao seu Divino Salvador,
que é a origem de toda a sua fortaleza e confiança.
Uma fonna de dar expressão a esta intimidade na
oração é uso frequente de versiculos dos Salmos
do breviário como aspirações da oração privada.
Essas palavras são uma expressão inspirada de ora­
ção, e podem ser pronunciadas em nome de Cristo
e da sua Igreja. Serão muitas vezes de ajuda na
oração mental, porque podem também exprimir as
nossas próprias necessidades. Os Salmos estão
cheios de petições de perdão, gritos de confiança em
Deus e louvor pela sua bondade que ficariam igual­
mente bem nos nossos lábios. Quem, por exemplo,
não poderá aplicar a si mesmo as palavras do «De
profundis» ?
Poderia escrever-se muito mais sobre as possibili­
dades de erigir a vida espiritual do sacerdote sobre
uma constante intimidade com Jesus, mas já se disSe
o bastante para esclarecer que não há razão alguma
para que os leitores clérigos não hajam de aplicar a
si mesmos sem reservas tudo quanto aqui se escreve
a respeito do progresso na oração e na perfeição.

104
A ORAÇÃO DO SACERDOTE

Têm as suas dificuldades próprias, mas acaso não


têm mais direito que quaisquer outros a fazer suas as
palavras confiantes de S. Paulo : «Por isso me glo­
riarei alegremente nas minhas fraquezas, para que
a força de Cristo possa residir em mim». (1)

(l) ll Cor. XII, 9.

lOS
O ESPÍ RITO DE ADOPÇÃO

A nossa análise da oração 1evou-nos a considerar


outras partes da vida espiritual. Não é uma digres­
são vã, porque a oração é a flor que brota da árvore
da vida total dum homem ; para assegurar o seu
vigor é preciso olhar para toda a p1anta e para cada
uma das suas partes. Eis porque temos de continuar
a considerar a vida espiritual na generalidade, e a
examiná-Ia dum ponto de vista que possa ajudar-nos
a orar.
O fim de toda a oração é a união com Deus. Tam­
bém poderia dizer-se que a união com Deus é o prin­
cipio de toda a oração, do mesmo modo que é o
principio da vida espiritual. Os efeitos maravi­
lhosos do baptismo, que é iniciação à vida do espírito
são frequentemente ignorados ou esquecidos. É uma
perda tremenda, porque é por este Sacramento que
somos feitos filhos de Deus, realidade que vai acom­
panhada do respectivo título. No baptismo o que
acontece não é uma mera adopção extrínseca que
não tem nenhum efeito interior, mas há uma mudança
intrínseca real produzida na nossa alma e pela qual
somos feitos participantes da natureza divina, espe­
cialmente da filiação divina, de tal modo que pode­
mos verdadeiramente chamar a Deus nosso Pai.
Mais do que isso : no baprismo Deus vem habitar
nos nossos corações real e verdadeiramente, dum

107
A DIFICULDADE DE ORAR

modo muito diferente daquele pelo qual está pre­


sente no resto da criação. Faz a sua morada em nós
de tal maneira que podemos conhecê�lo e amá-lo de
um modo inteiramente novo e maravilhoso.
Nas instruções do mesmo Cristo sobre a ora­
ção, insistiu em que nos dirigíssemos a Deus como
a um Pai : «orai a vosso Pai . . . O Pai sabe que ten­
des necessidade dessas coisas . . . assim haveis de orar
- «Pai Nosso». Se apenas nos lembrarmos de
que urna vez que estejamos em estado de graça há
em nós aquilo que nos faz filhos de Deus, realmente
filhos, não apenas de nome - se nos lembrarmos
também de que Deus é um Pai cuja bondade, cuja
<<paternidade» não tem limites, a nossa confiança
na oração terá um fundamento sólido e seguro.
A nossa simples atitude, de joelhos ou em qualquer
atitude de oração, torna-se de si mesma oração ; as
nossas necessidades, a nossa fraqueza, os nossos
fracassos, as nossas infidelidades, mesmo os nossos
pecados, tornam-se a nossa mais eloquente súplica
à sua paternal compaixão e pode atrair sobre nós
a sua misericórdia infinita. Deus não abandonará
um coração contrito, e um espírito angustiado não
é apenas uma oração - é um sacrifício diante dos
seus olhos. Esta confiança na nossa fil iação encon­
tra um novo fundamento quando compreendemos
que as nossas necessidades chamam a Deus não
meramente como nossas, mas como as de Cristo,
porque, como veremos em breve, a união de Cristo
com a nossa alma é tal que, nestas coisas, Ele forma
por assim dizer uma só pessoa connosco aos olhos
de seu Pai.
Não é preciso enumerar todos os textos da Sagrada
Escritura que apoiam esta confiança; a parábola
do Senhor sobre o filho pródigo é mais do que
suficiente, porque mostra claramente quão longe se

108
O ESPÍRITO DE ADOPÇÃO

pode levar esta reivindicação da filiação. Ainda


que tenhamos desperdiçado toda a nossa fortuna
numa vida desenfreada, ainda podemos erguer-nos
e ir até junto de nosso Pai, confessando diante d'ele
que pecámos; e, se a parábola do Senhor tem
algum significado, tem de querer dizer que pode­
mos estar absolutamente certos de que o Pai virá
ao nosso encontro, mesmo quando ,ainda estamos
longe, - terr de querer dizer que o simples facto de
virmos e ajoelharmos diante do Nosso Pai contra
o qual pecámos, é urna oração que o há-de mover
às alturas da sua infinita misericórdia e bondade.
Se uma vela acesa diante duma estátua de Jesus
pode exprimir a oração duma alma confiante, quanto
mais a presença dum pecador contrito aos pés de
seu Pai celestial, especialmente se a distracção e a
secura o privam de toda a visão e sentimento da
bondade desse Pai, de tal maneira que não consegue
encontrar nada em que apoiar-se a não ser a insen­
sível esperança dum acto de fé inflexível !
S. Paulo lança mais luz sobre este dom maravi­
lhoso da filiação, pois assegura que vai junto com a
presença do próprio Espírito Santo nas nossas almas.
O Espírito Santo não só dá testemunho de que somos
os filhos de Deus, mas também uma vez que sem
Ele não podemos nem sequer pronunciar meritoria­
mente o nome de Jesus, ora dentro de nós e por nós
com uma oração inegável - a oração do próprio Deus.
Esta doutrina profunda da presença do Espírito
Santo nas almas daqueles que estão em estado de
graça e da sua cooperação com as suas acções está
longe de ser compreendida mesmo por católicos
educados. Mas quando consideramos todas as suas
funções na nossa alma, ficamos aturdidos, porque
dir-se-ia que Ele está ali como possuído por nós e
para nosso uso!

109
A DffiCULDADE DE ORAR

Por muito fecunda que pudesse ser, para a nossa


vida espiritual, uma consideração mais demorada
desta maravilha, não podemos aqui fazer mais do
que apontar a sua relação com a oração. Sobre
isto, S. Paulo é bastante explfcito. Na Epístola aos
Romanos escreve : «Do mesmo modo, o Espírito
também auxilia a nossa fraqueza. Porque não sabe­
mos, corno deveríamos, aquilo por que deveríamos
pedir; mas o próprio Espírito pede por nós com
gemidos inexprimíveis. E aquele que pesquiza os
corações sabe aquilo que o Espírito deseja; porque
ele pede pelos santos conforrnemente a Deus».
Se, pois, o Espírito Santo nos auxilia na nossa
fraqueza, não havemos nós de gloriar-nos nas nossas
fraquezas, de modo que a oração do Espírito possa
sair, sem obstrução, das ocultas profundezas das
nossas almas ? Porque devemos nós desesperar ante
as friezas dos nossos corações e o fracasso das nossas
palavras quando temos dentro de nós a própria
Pessoa de Deus que é Ele próprio o amor do Pai e
do Filho, por quem nós chamamos «Abba-Pai !» ?
É claro, portanto, que não é simplesmente uma figura
vazia de discurso o dizer que a nossa simples pre­
sença diante de Deus - por mais desamparados que
nos sintamos, por mais inexpressivos que estejamos -
pode de per si ser uma oração que toca o coração
de Deus, exactamente como uma criança pode tocar
o coração dos pais só pelo seu desamparo e miséria,
sem precisar de pronunciar uma única palavra.
Estas considerações deveriam dar-nos confiança
na oração, qualquer que seja o estado da vida espi­
ritual em que nos �ncontremos. De passagem deve
notar-se que não há necessidade de procurar Deus
fora de nós quando queremos orar. Qualquer alma
em estado de graça tem Del.is dentro de si, procurando
a sua amizade, a sua confiança e o seu amor. Um

llO
O ESPÚUTO DB ADOPÇÃO

simples acto de atenção põe-nos em contacto com


Ele, um simples pensamento é sufkiente para lhe falar,
um sirnples movimento de coração é quanto basta
para lhe testemunhar o nosso amor.
Mas Deus não veio às nossas almas apenas para
ficar lá inactivo. Vem para auxiliar a nossa fraqueza
e, quando a graça santificame é derramada nas
nossas almas pelos sacramentos ou de q ualqu<!r
outro modo, o Espírito Santo vem a nós para habitar
em nós, e não só n os dá as virtudes infusas da fé,
esperança e caridade e as virtudes morais, como
ainda nos enriquece com os seus sete dons : sabedo­
ria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência. pie­
dade e temor de Deus. Podemos encarar todas
estas riquezas, que ultrapassam todas a:. avaliações,
como se fosse um novo organismo sobrenatural,
pelo qual somos tomados capazes de viver uma vida
nova como a nossa nova natureza de filhos de Deus.
Toda a vida espiritual consiste no desenvolvi­
mento e crescimento desta nova vida - o «homem
novo», como lhe chama S. Paulo - e a sujeição de
toda a nossa própria natureza, o «homem velho»,
à vida do novo. Isto explica o contínuo combate
interno que S. Paulo refere tão vivamente. A difi­
culdade desta nova vida é dara quando recordamc s
que é uma vida de fé, não de sentimento. Mas isso
não deve de modo algum fazer-nos hesitar nem por
um momento antes de nos dedicarmos com todo
o coracão às suas exigências, porque, como o
Senhor mesmo prometeu, dá-se-nos um outro «pará­
clito», isto é, um «consolador», que nos fortalece,
e é o próprio Deus com o seu poder omnipotente
que vem a constituir a nossa ajuda permanente, o
nosso auxílio e a nossa força. Nenhuma dificuldade
real ou imaginária deve, pois, fazer-nos hesitar nunca
em abraçar uma vida de oração. Nunca tomamos

lll
A DIFICULDADE DE ORAR

consc1encia de toda a força ao nosso dispor mas,


quando surge uma ocasião, o poder de Deus fica
ao nosso alcance para que o usemos, se actuamos
com fé, confiança e humildade.
Acima de tudo, é preciso destacar a necessidade
absoluta e essencial de humildade para o progresso
na oração. Deus fez o mundo para a sua glória e
não dará a sua glória a outrem. Ora nesta vida
Ele glorifica-se pelas obras de sua misericórdia, tendo
compaixão da nossa fraqueza, levantando-nos do pó
pc ra participarmos da sua própria natureza, da sua
própria força, da sua própria alegria. Todas as
obras da nossa vida sobrenatul81 vêm d'ele. Ainda
mesmo o fact(l de que nos pertençam dum modo
tal que possamos merecer por elas é devido inteira­
mente à sua bondosa misericórdia. Se portanto
nos gloriamos de alguma coisa mais do que das
nossas fraquezas, tomamos para nós inteiramente a
Deus, pois Ele é que produz em nós tanto o querer
como o agir. A nossa soberba rouba a Deus a
honra da sua obra - obra que, na sua bondade
realizou de tal modo que dela pudéssemos dispor
para nosso mérito - porque não temos nada que
não tenhamos recebido, nem mesmo os nossos
méritos.
Deus está mais interessado na nossa salvação e no
nosso progresso do que nós mesmos. Ele é nosso Pai
e é-o sempre, activamente. Isto significa que Ele nos
santificará e nos unirá a si, desde que não ponhamos
obstáculos no seu caminho. Ora o maior dos obstá­
culos é a nossa soberba, porque com ela desviamos a
sua acção salvadora em nós e lançamo-la contra a
finalidade que presidiu à criação e verdenação do
mundo a sua própria glória. Deste modo, tornamo­
-nos inimigos de Deus, e por isst está escrito : «Deus
resiste ao soberbo, e dá a sua graça ao humilde».

1 12
O I!SPÍRITO DE ADOPÇÃO

A regra de S. Bento é muito significativa a este res­


peito. Ao escrever uma regra para uma ordem con­
templativa, na qual haviam de formar-se homens
de oração, o santo patriarca tem apenas algumas
palavras a dizer sobre a oração, e tão-pouco trata
do restante da vida espiritual mais longamente, até
que começa a falar da humildade. E neste assunto
é eloquente e insistente, atribuindo ·lhe as qualidades
duma escada pela qual se pode atingir as alturas da
vida espiritual ; e S. Tomás de Aquino segue o seu
exemplo, dando a primazia à humildade para a
remoção dos obstáculos à acção de Deus na
alma.
Pouco mais podemos fazer aqui do que mencionar
estas tremendas verdades da presença de Deus nas
nossas almas. Tratá-las adequadamente requereria
um livro inteiro. Fazer menos do que isso seria
correr o risco não apenas de falseá-las mas também
de caricaturizá-las. O leitor deverá procurar por
si mesmo em outros sítios o desenvolvimento deles.
As Epístolas de S. Paulo estão repletas desta doutrina ;
são fundamentais no seu ensino. Um resumo muito
bom e acessível deste assunto e do que se prende
estritamente com ele, e que é tratado no capítulo
que se segue, poderá ser encontrado na intro­
dução da obra de Tanquerey, <<The spiritual life».
Esta obra é uma mina de informação sobre todas as
partes da vida espiritual e deveria fazer parte da
biblioteca de todas as casas religiosas, mesmo daque­
las que não foram treinadas em teologia. É o prin­
cipal trabalho de consulta sobre a vida espiritual.
Um trabalho mais pequeno de Plus, «God within
us», será uma boa ajuda. O próximo capítulo
indicará outras fontes de informação.
O uso desta doutrina da presença de Deus dentro
de nós como uma base da oração encontra apoio

1 13
A DmCULDADI! DI! ORAR

no ensinamento de Santa Teresa. Num ponto diz­


-nos que a alma não precisa de procurar Deus fora
de si para lhe orar. Ele está dentro dela, e pode
d irip.ir-se-lhe com toda a simplicidade duma criança
que fala a seu pai. Deveríamos contar-lhe todas as
nossas necessidad�s e as nossas preocupações, e
suplicar-lhe remédio para todas elas. A santa parece
considerar que esta é uma das melhores maneiras
de assegurar um rápido progresso na oração.
Ern outro lado insiste nas vantagens de adqliirir
uma viva convicção da íntima presença de Deus.
Diz-nos que da própria fez tudo quanto pôde para
se lembrar e para se compenetrar continuamente
da presença do Senhor de.1tro d�la. Se estava
a meditar um mistério, representava-o no seu interior
e dirigia todC's os seus ((afectos» ou actos ao seu
divino hóspede. Este modo de nos lembrar-nos
de Deus pode ser proveitosamente acrescentado à
maneira de orar conhecida como o segundo método
de Santo Inácio. Faz-se isto lendo ou recitando
muito lentamente algumas orações. Fazendo pausa
depois de cada palavra ou fra5e, para fixar o seu
significado no nosso espírito, para excitar a sua rea­
l idade no nosso coração, para a desenvolver em
variações ou para insisur . nela em silenciosa adesão,
de acordo com a nossa tendência natural. E tudo
isto num diálogo com o Senhor e nosso mestre,
como hóspede e nosso salvador, nosso amante e
nosso Deus, que está em nós. Este modo de orar
a Deus nos nossos corações, pode ser empregado
com grande proveito no rosário, ou no Ofício
divino.
Tão-pouco são precisas palavras. Podemos con­
tentar-nos com dispensar uma silenciosa atenção ao
nosso hóspede, cientes de que Ele vê e aceita o amor e
adoração que há no nosso coração. As duas carac-

114
O ESPÍRITO DB ADOPÇÃO

terísticas principais a atender são a referência interior


dt. nossa oração e a sua expressão não forçada; não
devemos esquecer nunca a afirmação de Santa Teresa
de que «oração mentdl não é mais do que uma ami­
zade íntima, uma conversa frequente, de coração
pHa coração, com aquele que nós sabemos que é o
nosso Amante>>.

115
A NOSSA IDENTIFICAÇÃO
C O M CRISTO

Se um homem pratica um crime ou comete uma


injúria contra alguém, os seus amigos podem natural­
mente fazer muito para o ajudar. Podem reparar
a injúria cometida ; podem aplacar a ira da pessoa
injuriada; podem ajudar o próprio homem a fazer
ambas estas coisas ; podem animá-lo e pedir perdão
por ele. Mas não podem, em estrita justiça, aliviar
a sua responsabilidade da pena submetendo-se eles
à pena, nem tão-pouco podem apagar a nódoa da
sua culpa. Culpa, pena e mérito são coisas pessoais ;
não podem ser tratadas por procuração.
No sentido estrito, nenhum homem pode tomar
sobre si a culpa de outrem ; nenhum pode merecer
ou ser punido justamente por outro. Então, como
foi que Cristo nos salvou ? Como desviou Ele o
castigo que nos era devido ? Como mereceu Ele por
nós ? Como chegou Ele a sofrer pelos nossos peca­
dos ? A resposta mais satisfatória para estas per­
guntas e outras semelhantes acha-se nas páginas de
S. João e de S. Paulo. S. João dá-nos as próprias
palavras de Cristo : «Eu sou a vide, vós sois os ramos».
S. Paulo insiste uma e outra vez : «Vós sois o ' corpo
de Cristo».
Não é fácil tarefa resumir e explicar a doutrina
que tão vivamente é expressa nestas duas frases.
A verdade sobre que assenta é tão rica, tão maravi-

117
A DIFICULDADE DE ORAR

lhosa, tão profunda, tão inegualável, que tem de ser


apreciada de muitos pontos de vista diferentes, e
temos d�! fazer uma síntese das várias - quase contra­
ditórias - ideias assim obtidas, antes que se chegue
a uma compreensão razoàvelmente completa da
sua natureza.
Aqui apenas poderemos dar algumas representa­
ções parciais da verdade, mas serão o bastante para
o nosso objectivo.
Na incarnação, Deus Filho, a segunda pessoa da
Trindade, uniu hipostàticamente a si uma natu­
reza humana, de modo que Jesus Cristo, o Filho
de Maria, era Deus de verdade e homem de verdade,
uma pessoa com duas naturezas . Isto, no entanto,
não foi o fim do processo de união com a raça
humana. As palavras do Evangelho de S. João e
das Epístolas de S. Paulo esclarecem que o Sal­
vador quis entrar numa união real mas miste­
riosa com cada membro da raça humana e que
Ele une de facto cada ser humano a si próprio no
baptismo, de modo a formar com ele uma só
coisa, um só corpo, um só homem, um só Cristo
místico.
De certos pontos de vista poderíamos quase enca­
rar esta união como formando uma só pessoa, mas
deve entender-se claramente que não perdemos a
nossa individualidade nesta união. No entanto, a
união é tão estreita que Cristo pode sofrer com toda
a justiça os nossos pecados, e nós podemos com
toda a justiça usar os seus méritos como próprios.
As controvérsias dos teólogos nos últimos séculos
têm tendido a desviar a nossa atenção desta tremenda
doutrina da nossa incorporação em Cristo, e tanto
isto é assim que, para alguns, esta afirmação pod e
parecer demasiado vigorosa. Os Padres, no entanto,
especialmente Santo Hilário, S. Cirilo, S. João Cri-

118
A NOSSA IDENTIFICAÇÃO COM CRISTO

sóstomo e Santo Agostinho, são muito mais vee­


mentes e vigorosos nas suas expressões.
S. Tomás de Aquino, cujas palavras foram medidas
com aquela precisão que é característica do príncipe
dos teólogos, afirma simplesmente que no bap<ismo
os sofrimentos de Cristo são comunicados à pessoa
baptizada - que se torna um membro de Cristo -
dum modo tal como se ele próprio tivesse sofrido
toda aquela dor. E responde às perguntas que
foram postas no início deste capitulo, àcerca do
modo como Cristo satisfaz pelos nossos pecados,
afirmando que Ele o faz pelo facto de que nós somos
os membros de Cristo e formamos com Ele um só
corpo e mesmo, sob este aspecto. uma só pessoa ; e
que portanto a satisfação prestada por Cristo se
aplica a todos os fiéis desde que são membros seus.
Resume a doutrina dizendo que as acções de Cristo
pertencem não só a Ele, mas também a todos os
seus membros, exactamente com a mesma relação
que as acções dum homem justo têm com ,o agente
individual ( I ).
Uma outra maneira de exprimir esta doutrina é
dizer que estamos «em Cristo». S. Paulo usa a
frase cento e sessenta e quatro vezes; e tem certa­
mente de ser tomada como algo mais que uma sim­
ples metáfora. Os Santos Padres tentam ilustrar o
parentesco comparando-o à união da gota de água
com o vinho onde caíu. Dizem t?mbém que esta­
mos em Cristo e cheios d'Ele exactamente como um
ferro em brasa ou um carvão lançado no fogo está
no fogo e é parte dele. O exemplo da vinha da auto­
ri�:� do próprio Cristo vem revelar a nossa posicão
ainda com maior clareza, porque do mesmo modo

(I) Cf. Summa, 11,1; q . 48, art. 1 e 2.

1 19
A DIFICULDADI! DI! ORAR

que a seiva vital corre da cepa para os ramos, assim


Ele envia o seu Espírito às nossas almas e somos
vivificados e divinizados - o termo não é forte
demais - pela graça, que é participação da sua
natureza.
Há ainda outro modo de encarar esta obra maravi­
lhosa do amor divino. Podemos dizer em verdade,
corno diz S. Paulo, que Cristo está em nós.
Habita nas nossas almas desde que estejamos em
estado de graça e, desde que lho consint!lrnos, par­
ticipa em cada uma das nossas acções. Este aspecto
d11 doutrina foi muito bem tratado no pequeno
trabalho de Jaegher, a que já se fez referência, «Um
com Jesus». Este pequeno livro, pouco mais que
um folheto, revelará a muito� leitores urna rica mina
de possibi lidades que nem sequer sonhavam. Deveria
ser familiar a todas as almas que tomam a vida espi­
ritual a sério. Nele podemos ver como Jesus vive
nos nossos corações - corno lhe podemos orar ali,
e orar com Ele ali ; nele podemos ler um inflamado
relato do desejo ardente do coração de Jesus de
partilhar cada um dos nossos pensamentos e acções,
de dar a cada um de nós urna parte da sua própria
vida, méritos e amor. Deve ler-se o próprio livro,
mas a simples ideia que aqui se dá é mostra sufi­
ciente de quanta� possibilidades abre à oração.
Os resultados desta doutrina da nossa incorporação
- ou identificação, se podemos usar a palavra -
a Cristo, que reduzimos a um esboço tão simples
são vastos e de grande alcance. A exortação de
o Senhor para que oremos em seu nome assume
um relevo novo. Podemos lembrar ao Pai a pro­
messa de seu Filho de que tudo aquilo que se fizesse
ao menor dos seus irmãos seria feito a Ele próprio,
e podemos referir as nossas necessidades ao Pai
corno necessidades do próprio Cristo, com toda a

120
A NOSSA IDENTIFICAÇÃO COM CRISTO

verdade e realidade. Podemos pedir todas as gra­


ças necessárias ou proveitosas para nós ou para o
próprio Cristo, porque é a fim de desenvolver a sua
vida em nós que precisamos delas. Mais do que
isso : sabemos que Cristo mesmo pede por nós e
connosco. Por isso é que podemos tomar as pala­
vras de o Senhor muito à letra quando Ele diz :
«Em verdade, em verdade vos digo : se pedirdes
alguma coisa ao Pai em meu nom..::, Fie vo-la dará».
Olhai, então, a origem da confiança absoluta com
que devemos ir junto do trono da graça. Nenhum
pecado, nenhum pejo. deverá :1Unca fazer-nos hesitar
em aproximar-nos de Deus na oração.
Se Jesus, como vemos, toma parte nas nossas
orações e obras, também nós temos parte nas dele.
Aqui temos um prmcírio que pode servir de muita
ajuda quando estamos «paralizados» na oração.
A nossa união com Jesus é tal qut:, desde que a não
rompamos por um movimento pecaminoso deli­
berado da nossa vontade, podemos sempre apre­
sentar a reivindicação de participar nos seus méri­
tos e nas boas obras que Ele está a levar a cabo em
todos os outros membros da Igreja, porque somos
todos um corpo em Cristo.
Podemos mesmo participar na sua oração ao Pai
no céu. É claro que a medida da nossa participação
depende da proximidade da nossa união com a
Cabeça. A união mais perfeita é a da vontade,
quando estamos a fazer a vontade de Deus por
amor de Deus; então estamos o mais possível unidos
a Ele. Por isso, por mais desamparadas ou deses­
peradas que pareçam as nossas tentativas de oração,
se só fizemos a sua vontade, se nos pomos de joelhos
ao seu dispor, podemos contar com uma grande
parte na sua oração, porque Ele está vivo à mão
direita de Deus, sempre a interceder por nós.

121
A DlFICULDADE DE ORAR

A oração é um trabalho de sociedade entre Jesus


e cada um de nós. A nossa parte na sociedade
reside em fazer a sua vontade e em confonnar-nos
com ela, e as l imitações dos nossos esforços fazem
parte dessa vontade. Se cumprimos a nossa parte
podemos reclamar todo o fruto dos nossos esforços
conjuntos. Se, em particular, vamos à oração
resignados com a vontade de Deus e com a nossa
própria incapacidade, não havemos de desanimar
com a nossa aparente falta de êxito. O Senhor
é o nosso «suplemento» em todas estas coisas, e
completa tudo o que não somos capazes de fazer.
Além disso, a nossa impotência faz parte do seu
plano de fazer-nos confiar nele.
Assim se vê que, no que toca à oração, a nossa
união com Cristo é de maior importância do que a
nossa fluência ou o nosso sentimento e fervor, e
importa mais que sermos livres de distracções. Por­
tanto, se as distracções são involuntárias mas são
açeites como uma provação pennitida por Deus
para os seus próprios e sábios fins, então, na medida
em que nos unem a Cristo por sofrermos de acordo
com a vontade de Deus, são uma ajuda para a nossa
oração, mais do que o contrário. De facto, se uma
alma vai à oração para se dar a Deus, resolvida a
atender a Deus e nada mais na medida do possível,
e se resigna com quaisquer provas ou aridez ou
distracção que a Providência consente, a sua ora­
ção, ainda que pareça ser um fracasso completo e
quase uma perda de tempo, é, no entanto, um sacri­
fício muito agradável diante de Deus, que atrairá
muitas graças sobre a alma e a fará avançar muito
na união com Ele.
Segue-se, além disso, que cada acção do dia, por
muito «activa» que seja, quando feita segundo a
vontade de Deus, é feita em união com Cristo, e

122
A NOSSA IDENTmCAÇÃO COM CRISTO

constitui não só por si mesma uma oração, mas


também um excelente ponto de partida, tanto para
um desses colóquios sem palavras, como para uma
conversa mais articulada com Jesus, que podem
converter o nosso dia inteiro em tempo de oração.
É impossível trabalhar numa tão estreita companhia
com Jesus e não lhe orar. Por outro lado, eviden­
temente, se as nossas acções não estão de acordo
com a sua vontade, a sua companhia é um tanto
embaraçosa, é assim que a vontade própria mata
uma vida de oração.
A presença de Jesus continua e intima nos nossos
corações, significa que nenhum lugar ou ocupação
é obstáculo para a oração. Não somos obrigados
a sair fora de nós próprios para encontrar o Deus a
quem queremos falar. Não somos obrigados a
esconder os nossos fatos de trabalho, por assim dizer,
nem de dar por acabados os nossos trabalhos do
dia de semana antes de nos pormos na sua presença .
Ele não só está já presente onde quer que estejamos,
mas está a partilhar de facto do nosso trabalho
- de modo que o nosso trabalho é mais um meio
de oração do que um obstáculo. Isto não significa
que não seja necessário algum período do dia em
que possamos IJPr tudo o mais de lado para recolher
todas as nossas potências e voltá-las para Ele. Signi­
fica, antes, que há uma oração para cada momento
- que os corações que buscam a Deus podem orar-
-lhe já por palavras, já por obras, já com o silêncio,
Já pensando.
Mas não só podemos encontrar Cristo em nós
mesmos, como encontrá-lo e servi-lo e orar-lhe no
nosso proxuno. Tudo o que fazemos ao nosso
próximo é feito a Jesus. Urna vez que compreen­
damos que a oração pode ser despreocupada ao
máximo, podemos ver como qualquer contacto com

123
A DIFICULDADE DE ORAR

os nossos semelhantes pode ser convertido em ora­


ção a Deus. É, para mais, significativo que o
Senhor, antes de ter feito promessas tão extraordi­
nárias sobre a eficácia da oração, apresentasse o
novo mandamento da caridade mútua, e o exempli­
ficas!\e lavando os pés dos seus discípulos. Pode­
mos portanto concluir que não podemos orar em
união com Ele a não ser que estejamos unidos aos
nossos semelhantes pela caridade. Ele insistiu mesmo
em que, antes de oferecer sacrifícios, deveríamos
ir reconciliar-nos com o nosso irmão a quem ofen­
demos.
Deste modo, tudo quanto façamos, por palavras
ou por obras, pode ser uma oração. A própria
comida que ingerimos pode ser dada a Jesus, porque
o que fazemos a nós mesmos, a Ele o fazemos. Mesmo
os nossos divertimentos podem ser o seu prazer.
Não podemos dar um passeio que Ele não parti lhe
e aprecie ; não há parte nenhuma da nossa vida, seja
trabalho ou divertimento, na qual nos não acom­
panhe, desde que, é claro, seja de acordo com a
vontade do Pai.
Assim, a alma, em estado de graça, pode de certo
modo imitar o sacerdote na missa, que levanta o
cálice e a hóstia no fim do cânone e ora ao Pai atra­
vés de Cristo dizendo : «Por Ele, e com Ele, e nEle,
seja para ti, Pai omnipotente, na unidade do Espí­
rito Santo, toda a honra e glória». Desta maneira,
pondo a descoberto Cristo nas nossas vidas, ao
fazer a vontade de Deus, cantamos o nosso cântico
de honra e glória, que é o próprio Cristo.

124
O CRESCIMENTO
,

DE CRI STO EM NOS

No último capítulo foram expostos alguns aspec­


tos diferentes do mistério maravilhoso da nossa
incorporação em Cristo. Deixa-se ao leitor a escolha
daquele que mais o atraia e o desenvolvê-lo pela
leitura e reflexão, pela oração e pela prática. Poderá,
servir de ajuda um pouco mais de consideração
sobre o assunto.
Vimos que Cristo entra nas nossas almas no bap­
tismo, para aí habitar numa união amorosa e viva
connosco. É também verdade dizer que Ele cresce
na nossa alma. A medida em que Ele pi:trticipa em
toda a nossa vida depende grandemente da nossa
vontade. Não nos subtrai a nossa l iberdade ; pode­
mos, se quisermos, viver a nossa própria vida. Se o
fazemos a tal ponto que cheguemos a cometer pecado
mortal, expulsamo-lo da nossa alma. Mas mesmo
aquelas acções que, sem serem seriamente pecami­
nosas, não são no entanto inteiramente de acordo
com a sua vontade, afastam-no tanto quanto elas
representam na nossa vida.
Podemos portanto falar do crescimento e da for­
mação de Cristo em nós, conforme mais e mais nós
mesmos e as nossas actividades são sujeitas e ofe­
recidas a Ele. Como é óbvio, um simples hábito
deliberado de infidelidade, prejudica o sentido de
intimidade com Jesus e impede deste modo a oração.

125
A DIFICULDADE DE ORAR

Não podemos tomar e dar-lhe apenas uma parte das


n ossas vidas e, tendo-o esquecido, ou tendo-o mesmo
posto de lado durante o resto do dia, esperar então
encará-lo sem dificuldade ou embaraço quando
decidimos tomar consciênc ia da sua presença. Ape­
sar da sua clem�ncia e da sua paciente bondade,
haverá pausas desagradáveis na conversa ; é preciso
evitar certos assuntos ; os protestos de dedicação
que dificilmente se harmonizarão com a n ossa negli­
gência e recusa hão-de soar a oco e hão-de mesmo
extinguir-se nos nossos lábios. Por vezes falamos
louca e apressadamente para ultrapassar alguma
recordação infeliz e, desde que tenhamos resolvido
qut: em certos pontos lhe não daremos o que sabemos
que Ele quer, não podemos suportar o seu olhar
ou encará-lo de frente com aquele sorriso sereno
de rendição completa que vem dum coração pronto
a dar-lhe tudo aquilo que Ele pedir, o que é a ora­
ção perfeita.
Esta é a grande diHculdade na oração. Queremos
encontrar a Deus nas condições que marcamos,
queremos chegar a um compromisso ; queremos
trabalhar com Ele em certos momentos e de certa
maneira, mas, para dizer cruamente, queremos
ver-nos l ivre dele em outras alturas. E este é
exactamente o problema. Não podemos ver-nos
livres do Senhor durante certo tempo. Ele está
ali todo o tempo, e ou o tratamos permanente­
mente como amigo, ou então experimentamos uma
«dificuldade» na oração.
Além disto, mesmo que tentemos de facto dar-lhe
um lugar na nossa companhia em todos os momentos,
podemos tentar esquecer que Ele é um Deus cruci­
ficado ; que Ele nunca fez a sua própria vontade ;
que sempre se negou a si mesmo ; que se entregou ;
que se despojou, tomando-se obediente até à morte

126
O CRFSCIMENfO DE CRISTO EM NÓS

na cruz. Gostaríamos de possuí-lo mas não que­


remos partilhar todos os seus ideais, seguir todos
os seus caminhos, e assim achamos outra vez ·a ora­
ção «difícil». Não admira! Porque se a oração é,
essencialmente, um estar consciente de Deus, tudo
aquilo que nos faz não querer ter consciência dele
é um obstáculo à oração. Aqui reside uma das
raízes da relação entre a mortificação e a oração.
A não ser que pelo menos desejemos que Ele nos
ensine os seus caminhos, mesmo o caminho da cruz,
não podemos encontrá-lo na oração com aquele
sentimento de lealdade aberta, franca e sem reservas
que é tão essencial à amizade.
É preciso que se entenda claramente que é a oposi­
ção habitual e deliberada aos desejos de Jesus que
constitui tão sério obstáculo à oração.
Por muito frequente ou profundamente que caia­
mos, Jesus está sempre pronto a renovar a nossa
união, assim estejamos nós de novo resolvidos a
abandonar o nosso próprio caminho. De facto,
como vimos, há um tipo de amor e compreensão
que nasce do pecado perdoado, que tem qualquer
coisa de único e especial no seu sabor, e que tem um
lugar especial no plano de Deus. Os pecados pas­
sados, os fracassos passados, não hão-de nunca
interpor-se entre nós e Ele ; desde que estejamos
contritos de verdade, constituirão apenas mais um
laço. Também do mesmo modo os receios pelo
futuro e aquela falta duma completa boa vontade
que vem da fraqueza e da timidez humanas, nunca
hão-de ser mais do que uma nova reivindicação ao
auxílio daquele que veio curar os enfermos e salvar
os pecadores. A sua posição oficial na nossa alma
é a dum salvador omnipotente ; tudo o que necessita
de ser salvo é uma reivindicação perante Ele, e só
aqueles que aprenderam a gloriar-se nas suas fra-

127
A DIFICULDADE DE ORAR

quezas sabem de verdade que união tão intima de


oração e trabalho com Jesus se pode construir sobre
a própria fraqueza, sobre os próprio s fracassos e
mesmo sobre os pecados passados.
Isto também é verdade acerca da n ossa parte na
cruz. Ele conhece bem o nosso horror à penitência;
compreende perfeitamente o nosso desagrado pelo
sofrimento ; até se compadece de nós nestas dificul­
dades. É certo que Ele quer que o ajudemos a
levar a sua cruz, mas quer também ajudar-nos a
fazê-lo. A sua ajuda é tão doce, tão arrebatadora
a sua companhia, que Santa Tereza achava que só
a primeira das suas cruzes era realmente dura; uma
vez tendo abraçado a aspereza da sua cruz, achava-se
em estreita união com Jesus. Requer coragem,
requer graça, requer talvez um chamamento especial ;
mas a verdade é que este caminho de sofrimento e
de penitência - penitência, entenda-se, tomada ou
aceite de acordo com a vontade de Deus e não com
a nossa - é a estrada da mais alta alegria, e o cami­
nho seguro para as alturas da oração.
A importância da mortificação não é apenas que
nos fere, mas que dá a Jesus uma nova vida em nós ;
nós apenas damos a morte a nós próprios - é isto
o que significa <<Ill.ortificação» - para abrir o cami­
nho a Cristo. É ao mesmo tempo a razão e a medida
da mortificação. Se apenas serve para nos fazer
mais contentes connosco mesmos e soberbos, então já
não é mortificação do eu; é, antes, mortificação de
Jesus. O princípio verdadeiro da mortificação foi
exposto por S. João Baptista quando disse : «Ele
deve crescer, eu diminuir».
Talvez uma comparação um tanto forçada possa
ajudar-nos a focar este processo à sua luz autêntica.
O pão e o vinho que na missa sé transformam
no corpo e sangue do Senhor ornaram outrora

128
O CRESCIMENTO DB CRISTO EM NÓS

a terra numa glória de vermelho e ouro ; foram der­


rubados, batidos e esmagados, moídos e espremidos
até ficarem irreconhecíveis. E só depois de have­
rem sofrido muitas transformações é que o sacer­
dote pôde pronunciar sobre eles as palavras que
haviam de tomá-los no corpo e sangue de Cristo.
Ora, na mesma medida em que a missa é uma trans­
formação de pão e vinho no corpo e sangue de Jesus
- e claro que é muito mais do que isso - poderia
dizer-se que o Senhor diz missa connosco e
com as nossas vidas a servirem de pão e vinho.
Mas é uma missa na qual o moer do trigo e o espre­
mer das uvas, o coser do pão e o do vinho, o ofere­
cimento da hóstia e a oblação do cálice, a consa­
gração de ambos e a sua conversão no corpo vivo e
no sangue de Cristo, têm lugar todos ao mesmo tempo.
Cada vez que nos negamos de qualquer forma, e
em certa medida nos oferecemos a Jesus, Ele vem a
tomar posse de nós na mesma medida, e diz : «Isto
é o meu corpo». Mais do que isso : compadece-se
da nossa cobardia, e envia-nos provas e humilha­
ções que nos moem e nos esmagam para nos con­
verter no pão e no vinho convenientes para nos tor­
narmos parte dele. «Ü meu alimento» - disse
Ele - «é fazer a vontade daquele que me enviou».
E é por isso que todas as coisas feitas de acordo com
a vontade divina dão nova vida a Jesus nas nossas
almas, pois Ele se alimenta com o cumprimento da
vontade de seu Pai. Todas as acções que fazemos,
todos os sofrimentos que padecemos, seja o que for,
desde que seja de acordo com a vontade de Deus,
é um acto de comunhão com Jesus, um acto que não
é apenas um mero desejo, mas um avanço real na
nossa união com Ele ; dá-lhe nova matéria sobre a
qual Ele pode pronunciar as palavras de salvação :
«Isto é o meu corpo».

1 29
A DIFICULDADE DE ORAR

É óbvia a importância deste conceito para uma


vida de oração. A oração não é já uma questão
de passar uns poucos minutos de joelhos, esfor­
çando-nos por encontrar alguma coisa que dizer.
Torna-se uma consciência mais ou menos contínua
de Jesus que vive em nós e de Jesus que cresce em nós,
de Jesus que nos molda com a sua providência ao
desejo do seu coração ; a nossa cooperação, a nossa
companhia, a nossa submissão, o nosso sorriso de
abandono ; ao passo que continuamente renunciamos
ao nosso caminho para que Ele siga o seu, tudo isto
é a nossa oração. A mortificação, em vez de signi­
ficar fazer-nos doer, vem a significar dar o prazer,
dar mesmo a vida a Jesus. Cada acção do dia está
intimamente ligada a Ele.
A prática da caridade cristã é assim focada a uma
luz mais intensa, pois se Jesus vive no nosso pró­
ximo, e está a fazer sua a vida do nosso próximo,
torna-se muito mais fácil compreender o que Ele
queria dizer quando nos disse : «Sempre que o :fizes­
tes ao menor destes meus irmãos, a mim o :fizestes».
Não temos necessidade de palavras para conver­
termos em oração as relações com os nossos seme­
lhantes. Basta recordar que «estamos a fazê-lo a
Ele» e o nosso coração orará com o seu movimento
secreto de amor.
O costume de um dos maiores homens de oração
e de acção que o mundo conheceu - que vem muito
próximo de S. Paulo - é cheio de significado neste
assunto. O pensamento de S. Patrício é-nos reve­
lado na sua famosa oração, aquela maravilhosa
oração, cheia de espírito de S. Paulo, cheia do espí­
rito do próprio Cristo. «Cristo diante de II1Í1D.>>
- reza ele - «Cristo atrás de mim, Cristo à minha
volta, que Cristo estej a neste dia dentro e fora de
mim, que Cristo o humilde e manso, Cristo o todo

1 30
O CRESCIMENTO DE CRISTO EM NÓS

poderoso, esteja no coração de cada um a quem


eu fale, - na boca de cada um que me fale, em todos
os que de mim se aproximem, me vejam ou me
ouçam>>. Conta-nos como ouviu as palavras :
«Aquele que deu por ti a sua vida, esse é que ora
em ti>>. Em outra ocasião escreve : «Eu vi-o rezando
em mim» e, depois de dizer que era o Espírito que
rezava dentro dele, relembra a promessa de S. Paulo
de que o Espírito Santo havia de ajudar-nos na fra­
queza da nossa oração. Temos aqui o segredo da
oração de S. Patricia, o segrr'do da sua vida interior
e, de facto, o segredo do sucesso monumental da
sua vida activa - união com Deus na sua alma, e o
serviço de Deus na alma do seu próximo. Não há
nenhum cristão que não possa imitar este exemplo.

131
EMMANUEL
DE US C O NNOS CO

O exemplo de S. Patrício e a revelação que as


palavras que acabamos de citar dos seus escritos
constituem do interior do seu coração, fornecem-nos
o segredo do modo maravilhoso como muitos dos
santos foram capazes de unir uma vida de oração
com uma vida de acção quase contínua. Toda a
nossa actividade se pode reduzir quer ao serviço de
Cristo no nosso próximo, quer à expansão da sua
vida em nós mesmos. Deve ter-se reparado que a
linha de demarcação entre a oração, no sentido
vulgar do termo, e o resto das actividades de cada
um está a OK.tinguir-se gradualmente à medida que
progredimos na consideração da vida espiritual.
E assim é que devia ser, pois o Senhor mesmo
nos disse que tínhamos de orar sempre.
Mas não deve concluir-se daqui que não haja
necessidade de algum tempo durante o dia no qual
havemos de dedicar a nossa atenção indivisa à ora­
ção. Porque, como vimos, ainda que todos os
nossos actos possam ser oração, só o hão-de vir a
ser desde que alguns actos não sejam nada mais do
que isso. Isto é, a natureza humana é de tal forma
que se a vida incerior não for alimentada pela refle­
xão e pela oração pura, sucumbirá gradualmente à
atracção da actividade natural que em breve toma
conta das nossas acções. De facto, mesmo nas

133
A DIFICULDADE DB ORAR

condições mais favoráveis, a lembrança habitual do


Senhor só pode atingir-se depois de fracassos repe­
tidos. Mas, uma vez que se atingiu, mesmo dum
modo limitado, toda a vida espiritual sofre uma
notável transformação. Sob muitos aspectos, tor­
na-se mais fácil e mais atraente.
O pensamento da mortificação e da guerra ao eu
enche muitas almas de receio, e Faz com que recuem
e abandonem a esperança do progresso futuro.
Isto é bastante compreensível, mas é também bas­
tante tolo, pois o Senhor mesmo disse que o seu
jugo é suave e o seu peso leve. A mortificação
é corno algumas daquelas casas antigas do Conti­
nente ( I ), que vistas de fora constituem urnas estru­
turas semelhantes a barracões tristes e desagradáveis,
mas têm por dentro um pátio cheio de todo o encanto
dum jardim tropical, onde ressoa a música das cas­
catas e reina a fragância do rico perfume das flores.
Nós olhárnos através daquelas grades tristes e vimos
que aquilo que na mortificação parece a morte em
vida é, na realidade, o crescimento de Jesus na nossa
alma, enchendo-nos com o calor do seu sossego, a
melodia da sua companhia e o esplendor do seu
amor. Porque, morrendo para nós mesmos, damos­
-lhe a Ele uma nova medida de vida.
Ao considerar este mistério da vida e do cresci­
mento de Jesus nas nossas almas, e a nossa incor­
poração dele, focámo-lo de um certo número de
pontos de vista. Pode ser olhado como a habi­
tação nas nossas almas do Espirito Santo, o qual
- um tanto à maneira do que acontece com a alma
no corpo humano, que faz uma só coisa, um corpo,

(I) O Autor exprime-se na linguagem corrente em


Inglaterra para designar a Europa (N. T.).

134
EMMANUEL - DEUS CONNOSCO

uma pessoa de muitos memhros - nos ccnverte


numa única coisa, um Corpo, e mesmo, como pode­
remos dizer num sentido real mas limitado, uma
Pessoa, um cr:sto. Ou podemos ver este mistério
como a nossa incorporação em Cristo ao modo
da enxertia dum ramo num tronco novo ; temos
a própria autoridade do Senhor para sustentar
que nós somos ramos da vide que Ele identificou
consigo mesmo. E podemos também olhar este
mistério como a habitação, nas nossas almas, do
próprio Jesus, uma união maravilhosa de colabo­
ração salvadora e amor vivo ; para isto temos a auto­
ridade das suas próprias promessas. À primeira
vista poderíamos pensar que nos embrulhámos
numa contradição ao fazer uso destes diferentes
aspectos ; mas isso é apenas porque a riqueza deste mis­
tério, que encerra uma realidade sem qualquer para­
lelo em toda a criação, é tal que exige muitas ana­
logias diferentes para a sua expressão. Apesar
desta dificuldade e apesar do uso frequente da pala­
vra «mística>) para descrevê-lo, não podemos nunca
duvidar da sua realidade. É a maior das realidades
para Deus : é a nossa única esperança, é o plano de
Deus que quer restabelecer todas as coisas «em
Crista>).
Sob risco de aumentar a confusão que esta múlti­
pla exposição possa talvez ocasionar, seria bom
indicar um outro modo de encarar este mistério,
porque poderá ser útil para algumas ahnas na sua
oração. O Senhor, tomando um corpo humano
no seio de sua Mãe Maria, tornou-se homem, viveu
a sua vida humana para nossa salvação, morreu e
ressuscitou de novo para esse mesmo fim. Não é
que este fosse o seu único fim, pois a glória do Pai
deve ter vindo antes de todos os demais. Mas Ele
queria glorificar a misericórdia -de seu Pai, salvando-

135
A DIFICULDADE DE ORAR

-nos. Ora este processo não terminou com a Res­


surreição. Ressuscitado dos mortos, continua a
sua vida em cada um de nós. Poderíamos ver toda
a nossa existência como se fosse um corpo - um
corpo inanimado, porque sem Cristo é sobrenatu­
ralmente morto -, um corpo no qual Cristo está
a ser gerado gradualmente, conforme lhe submete­
mos, através das operações de graça e cooperação
da nossa vontade, cada vez mais e em maior número
as nossas acções. .•

Este conceito disfruta, até cen o ponto da auto­


ridade de S. Paulo, que diz aos Gálatas que Ele
está «em trabalhos» até que Cristo esteja formado
neles. Também nós estamos (<em trabalhos» até
que Cristo esteja formado em nós. Este é um aspecto
que é preciso não descurar. Mas é ainda mais
importante atender ao significado das palavras do
Senhor a sua Mãe c a S. João, quando vertia
as últimas gotas do seu sangue vivo na Cruz do Cal­
vário : «Eis aí o teu filho. Eis aí a tua Mãe». S. João
estava ai i em representação de toda a raça humana.
Maria é, assim, apontada como sendo a Mãe de
cada um de nós, como que tendo sido dada a ela a
vida de Cristo moribundo, para que ela no-la pudesse
transmitir. É preciso uma certa cautela para evitar
um grau de identificação demasiado afastado entre
a vida de Jesus na sua própria carne e aquela que
Ele vive em nós. No entanto, a carta encíclica do
Papa Pio X Addiem illum, publicada em 2 de Feve­
reiro de 1 904, mostra-nos que podemos levar muito
longe esta noção da maternidade de Maria em relação
a nós, sem nos afastarmos da sua doutrina ou fazer­
mos qualquer inovação, pois que o Santo Padre cita
as próprias palavras de Santo Agostinho para apoiar
a sua doutrina. O Papa opina não só que foi em
Maria que Cristo tomou a sua carne, mas também

136
EMMANUEL - DEUS CONNOSCO

que em Maria uniu a si o corpo espiritual formado


por aqueles que hão-de crer nele.
Aqui está, portanto, um aspecto que pode dar a
nossa Senhora uma nova importância na nossa
vida espiritual e um novo significado para a nossa
oração. Ela não é só a Mãe de Cristo mas é tam­
bém, real e activamente, mãe de cada um de nós,
que cremos nele. Ela foi instrumento para a união
da natureza humana de Cristo ao Verbo ; é também
instrumentO".para unir cada um de nós com Cristo,
visto . que somos o seu corpo. Maria está a coo­
·

perar continuamente na formação de Cristo em nós,


e a tal ponto que poderíamos dizer que Cristo nasce
dela continuamente em nós. Cada vez que subme­
temos uma parte qualquer da nossa vida a Deus,
fazendo a sua vontade do modo que Ele quer, Ela
faz surgir uma nova alma, uma nova medida da
plenitude de Cristo, e nós cooperamos na sua nater­
nidade.
Deste modo a vida espiritual é não só vivida em
união com a Santíssima Trindade, mas é também
uma união activa com Maria. Como estamos a
ver, tudo aquilo que se disse, num dos capítulos
anteriores, sobre o valor da amizade familiar com
Jesus como modo de desenvolver a vida de oração
aplica-se também, <<mutatis mutandis», a uma fami­
liaridade filial com Maria. E não vá pensar-se
que procurar Deus por meio de Maria é perder tempo
seguindo um caminho desviado. Não só não é
tempo perdido como parece que ir a Ele através de
Maria é não só o canúnho mais curto, mas ainda
o mais seguro. Ela é o caminho escolhido por
Deus para vir até nós ; pela sua intercessão pode
fazer tudo quanto Deus pode fazer pelo seu poder ;
Ela tem imenso gosto em aproveitar todas as opor­
tunidades de fazer alguma coisa mais pelo seu Menino

137
A DIFICULDADE DE ORAR

Jesus, e sabe melhor que ninguém quão verdade é


que tudo aquilo que se faz ao último de nós, a Ele
é feito. Estas consideraçêes poderão encorajar aque­
las alma� que se encontram mais à vo'ltade falando
a Maria do que em qualquer outro modo de orar.
Podem ficar certos de que Ela não deixará de fazer
nada para os unir a Jesus, nem a atenção que lhe
prestam a Ela diminuirá no mlnimo a devida a seu
Filho. É, de facto, verdade que M�ria não está
presente em nós do mesmo modo que seu Filho,
mas a sua função de Mãe, tanto nossa como de
Cristo, dá-nos a certeza de que a sua mão t;stá sem­
pre próxima e pronta para ajudar-nos. Os seus ouvi­
dos são rápidos em ouvir-nos, e os seus olhos nunca
nos perdem de vista. As nossas orações não pre­
cisam de palavras para serem levadas a seus ouvidos ;
o simples sorriso do nosso coração, o suspiro da
nossa alma são imediatamente vistos por Ela e não
é preciso esperar para que Ela venha em nosso auxí­
lio. É o refúgio dos pecadores, a consoladora dos
aflitos ; é a Mãe do perpétuo socorro, a Mã� da divina
graça , é a Mãe de Cristo e de todos nós. Não há
ninguém que deva ter receio de lhe falar das suas
necessidades, não há ninguém cujas necessidades
excedam o seu poder; não há ninguém cujos pecados
a façam afastar-se dela. Não há obra nenhuma,
excepto a do pecado, que não possa ser feita sob os
seus olhos, e o verdadeiro quadro da vida espiritual
vivido em união com Maria é o de uma criança tra­
balhando ou brincando, segura na consciência de ter
a sua mãe sentada ao alcance da voz, sempre pronta
a interessar-se pelos seus actos e nunca incapaz de
ajudar.

138
BALANÇO

Nos últimos capftulos tentou-se esboçar em sim­


ples linhas gt:rais algumas das maravilhas que Deus
gravou na alma de cada cristão. Para tratar o
assunto dum modo adequado, ainda que fosse ape­
nas na sua relação com uma vida de oração, seriam
precisos muitos e longos capítulos. Aqui temos
de limitar-nos a indicar o rico filão que o assunto
encerra, e esperar que o leitor procure desenvolvê-lo
em qualquer outra parte. As Epístolas de S. Paulo
são, é claro, uma parte primordial. Os numerosos
e excelentes trabalhos que surgiram nos últimos
tempos sobre o Corpo Místico de Cristo lançarão
muita nova luz sobre a questão. Os trabalhos de
Mura, de Anger, de Mersch, de Sheen são já clás­
sicos sobre este assunto. Os trabalhos de Jaegher,
de Plus, de Duperray são apenas alguns dos muitos
livros mais reduzidos que aplicam esta doutrina à
vida espiritual. Os escritos de Marmion criaram
já um lugar imorredoiro na literatura espiritual.
Não há necessidade de desenvolvermos mais o tema.
Em resumo, portanto : no baptismo, Cristo faz
de cada um de nós um membro seu ; dá-nos o seu Pai,
fazendo-nos filhos de Deus ; dá-nos sua Mãe, como
acabamos de ver, para que seja também nossa Mãe.
Dá-nos o seu próprio Espírito para que nos vivifique
com a renovação e a plenitude da vida. Dá-nos a

139
A DIFICULDADE DE ORAR

sua mesma vida, visto que morreu por nós e por nós
ressurgiu de novo e vem viver a sua vida em nós.
Dá-nos os seus méritos, porque podemos em verdade
chamá-los nossos. Dá-nos a sua inocência, porq11e
tomou sobre si os nossos pecados. Dá-nos a sua
carne e o seu sangue para nosso alimento para que
possamos viver para Ele. Dá-se-nos ele mesmo,
unindo-nos a si dum modo tal que, sem perdermos
a nossa própria personalidade, nos «revestimos de
Cristo» e podemos viver, actuar e orar em seu nome
como Ele vive, actua e ora de verdade em nosso
nome. Tão estreita é a união, tão persist�nte, que
cada pecado que cometemos se acrescenta à sua
paixão, cada cruz que levamos pacientemente alivia
a sua. O nosso amor conforta-o no horto, assim
como o nosso desleixo ou deslealdade o faz sofrer
até suar sangue. Tão completa é esta união que
cada um de nós pode dizer, segundo as palavras de
S. Paulo : «Eu vivo, mas já não sou eu que vivo :
é Cristo que vive em mim».
Deve notar-se que estas verdades se não aplicam
apenas a uns poucos escolhidos e místicos ; são os
factos basilares da cristandade, e são verdade para
todas as pessoas baptizadas. O baptismo não é
apenas a destruição do pecado original, é também
a infusão duma vida nova. Os principais obstá­
culos dessa vida em nós são os desejos da carne, os
desejos dos olhos e a soberba da vida. Ora os três
votos que constituem o estado religioso, os de pobreza,
castidade e obediência, dirigem-se directamente a
destruir esses obstáculos e a dar um lugar amplo a
Cristo nas nossas vidas, ou melhor, na sua vida em
nós. Que religioso pode então dizer que a santi­
dade não é para ele ? Que direito tem um religioso
a sustentar que não é chamado a uma vida de ora­
ção ? Como pode um religioso crer que Deus pre-

140
BALANÇO

tende que ele ultrapasse o primeiro degrau da escada


da oração ? E ainda que sejam necessárias graças
especiais para as alturas da oração, como pode um
religioso, que está já pelo seu estado obrigado a
tudo quanto precisa fazer para se preparar para
essas graças - a quem Deus já se deu a si mesmo,
deu o seu Filho e o seu Espírito, - como pode Ele
recusar-se a esperar que Deus lhe há-de dar tudo o
que é necessário para viver uma vida de união com
seu Filho? Se recebemos tanto de Deus, por que
razão não poderemos esperar aquilo que - pelo
menos em comparação - é apenas um pouco mais,
em especial quando já recebemos o direito a pedir
em nome de seu Filho ? A pergunta sugere a sua
própria resposta, porque a única razão para temer­
mos uma recusa é que não estejamos realmente a
pedir em nome de Jesus. Se, no entanto, vivemos
em nome de Jesus, se pelo menos fazemos o máximo
por isso, se chegámos já ao ponto de desejarmos que
Ele viva em nós mais e mais, e se vemos que essas
graças de oração são o meio próprio para dilatar
a sua vida na nossa, então peçamos com toda a con­
fiança sem duvidar nada.
Antes que prossigamos para considerar um maior
progresso na oração, olhemos para trás um momento
ao longo da estrada que vimos a seguir. No prin­
cípio, se não nos tínhamos, pela educação e pelo
ambiente, familiarizado com as convicções da fé,
orávamos por «meditação». Isto é, recordávamos
alguma verdade e aplicávamos-lhe a nossa inteli­
gência para considerar diferentes pontos dela, ilus­
trando-a com figuras na nossa imaginação ; dedu­
zíamos certas conclusões, levávamos a nossa von­
tade a elaborar propósitos e voltávamos todas as
nossas faculdades para Deus num colóquio ou breve
conversa. Estas convicções tornaram-se habituais

141
A DIFICULDADE DE ORAR

à medida que passou o tempo, e a ideia de Deus


tornou-se-nos mais familiar ; em particular a nossa
imaginação não tinha grande dificuldade em tomar
uma ideia real do Senhor, e verificámos que se
tornava mais fácil falar-lhe, de modo que quando
famos orar não precisávamos de considerações
demoradas para achar alguma coisa que dizer-lhe.
Como dizem os livros, os afectos predomina\am na
nossa oração. Este contacto com o Senhor amadu­
receu em amizade, e a nossa compreensão mútua
t ornou-se tão grande que umas poucas de palavras
bastavam para a nossa conversa, e algumas vezes
podíamos passar inteiramente sem palavras e con­
tentávamos-nos em ajoelhar em silenciosa adoração
ou desejo inarticulado. A nossa oração simpli­
ficou-se. Tendo em conta a condição essencialmente
sobrenatural da oração e a sua consequente depen­
dência da graça, este progresso pode considerar-se
natural. É apenas o que · pode esperar-se se não
deixamos de fazer com que a nossa vida esteja de
acordo com a nossa amizade com Jesus. Desde
que lhe fomos leais e tomámos cuidado de que as
nossas acções estivessem em harmonia com os seus
ideais e, em particular, com as coisas que nos pedia,
uma compreensão íntima e uma silenciosa comunhão
seguiram-se muito naturalmente. As mesmas con­
dições se requerem para a amizade humana, e pode
esperar-se um resultado idêntico quando se realizam.
No entanto, houve muitos altos e baixos no nosso
progresso. Cada desvio na virtude reflectia-se com
um insucesso correspondente na oração. As dis­
tracções constituíam sempre uma ameaça à nossa
oração e frequentemente quase a destruíam. Em
alguns casos também o crescimento em simplicidade
era obscurecido por um hábito constante da oração
vocal, ou talvez por uma insistente devoção à medi-

142
BALANÇO

tacão metódica. Esta última, se se leva muito longe,


não é de modo algum o melhor caminho para as
alturas da oração, se bem que possa ser um bom
fundamento ; mas Deus é fiel, e a sua graça é toda
poderosa. Como diz o provérbio, Ele pode escrever
direito por linhas tortas.
Apesar de todas as provações e contratempos,
no entanto, houve talvez ocasiões em que provámos
a doçura da amizade de Jesus. Houve ocasiões em
que a oração brotava simplesmente nos nossos
lábios, em que o nosso coração se inflamava na
devoção, em que nos sentimos prontos para qualquer
sacrifício. Podíamos sentir a nossa oração. E tal­
vez então esta devoção sensível - pois que o era,
pelo menos em parte - diminuísse. Os mistérios
de Jesus deixaram de tocar-nos do mesmo modo,
o sobrenatural perdeu o atractivo que tinha para
nós, e a oração tornou-se um trabalho árido e maça­
dor de afastar as distracções sem termos nada que
pôr em vez delas. A nossa «devoção» estava morta,
e era difícil saber o que fazer a seguir. Uma íntima
convicção de um mundo que havia de chegar man­
teve-nos num caminho direito, e lançámo-nos à
obra com toda a tenacidade que pudemos reunir.
Uma vida de oração não era para nós - não éra­
mos chamados a servir a Deus desse modo. Assim
pareceu talvez a alguns. Teriam razão ?
Em primeiro lugar, esta evolução que esboçamos
poderia ser meramente natural. Fundava-se na
graça, é certo, mas no entanto poderia não ser mais
do que o que se podia chamar a actuação «natural»
da natureza auxiliada pela graça. Na realidade,
ainda que a natureza das coisas fosse uma explica­
ção suficiente, acontece muitas vezes que o Senhor
mesmo interferé no progresso natural, e fá-lo para
acelerar e dilatar o nosso avanço.

143
A DIFICULDADE DB ORAR

O modo como o faz, no entanto, é que deve ser


observado, porque, pelo menos nas suas últimas fases,
é bastante contrário àquilo que se poderia esoerar.
Nos pri1J1eiros tempos actua com frequência um modo
especial para intensificar a devoção sensível ; toma
mesmo l> sua pr::sença sensível e toca o nosso coração
tilo docemente qm.•, pelo menos nessa altura, fazemos
grande progresso no desapego. Mas, na nossa
reacção a estes favores, há muito amor próprio
- «amor de dispensa» corno costumavam chamar-
-lhe os antigos - e, em qualquer caso, os sen-
tidos não podem levar-nos longe na nossa estrada
para Deus. É certo que estes favores nos ajudam a
firmar-nos no caminho, mas não constituem a devo­
ção verdadeira - não fornecem a força motriz para
uma longa e fatigante jornada. A devoção autên­
tica está na nossa vontade, uma decisão de seguir a
Cristo custe-nos o que custar. Esta é a única espécie
de devoção que nos manterá em avanço no caminho
estreito que conduz ao Reino de Deus.
O Senhor, portanto, urna vez que orientou para
si os nossos corações, começa a purificar o nosso
amor e a nossa devoção. Mais tarde ou mais cedo
começa a afastar a devoção sensível e a nossa oração
torna-se «seca». Tendemos a tomar-nos melan­
cólicos e ressentidos ; mas, se somos generosos e
tentamos cooperar com a sua graça, havemos de ver
em breve que o que Ele quer de nós é uma completa
c generosa submissão à sua vontade. Isto é tudo o
que importa, e temos de aprender a achar toda a
nossa satisfação em cumpri-lo. Para isto é preciso
coragem ; é preciso fé ; é preciso graça É tão impor­
tante para nós que Ele se afaste, como o foi para
os apóstolos ; de outro modo continuaríamos a viver
pelos nossos sentidos em vez de por intermédio de
uma fé generosa. Ora os sentidos não podem

144
BALANÇO

unir-nos a Deus no sentido pleno da palavra; é na


fé que o Senhor nos desposa, e até que tenhamos
aprendido a viver pela fé não passamos de princi­
piantes na vida espiritual, por muito alto que tenha­
mos subido na devoção sensível. O embotamento
natural da reacção dos sentidos que vem da familia­
ridade e da repetição da mesma experi ência - a com­
preensão inconsciente, se assim se pode exprimir,
da inadequação de qualquer sentimento ou emoção
para satisfazer as mais profundas necessidades da
alma - acrescentado ao trabalho das purificações
de Deus, levou-nos a uma nova fase da vida espiri­
tual, em que a oração se torna matéria de grande
dificuldade. Apesar de que é geralmente nos últi­
mos passos da ascensão espiritual que este estado
se encontra numa duração constante e longa - pois
pode durar muitos anos - no entanto aparece com
frequência muito mais cedo em períodos curtos, e
só quando a apreciamos no seu devido valor é que
podemos formar qualquer verdadeira escala de
valores da oração. Porque este estado, não obs­
tante a sua aparente esterilidade e inutilidade, conduz
a uma oração de enorme valor, muito agradável a
Deus e que produz uma grande virtude e um rápido
avanço nosso. É um estado em que se tem de amar
e orar pela fé, e por essa razão usamos o termo
«oração da fé» para designar este tipo de oração.

145
A ORAÇÃO DE FÉ

Sob o termo «oração de fé» incluimos todas aque­


las formas de oração nas qu�is nem os sentidos nem
a inteligência encontram muita coisa em que se apoia­
rem ou que atraia os seus apetites naturais. Esta
oração centra-se bastante à volta de Deus tal corno
é visto à frouxa luz da fé, com os seus atractivos
esbatidos e ocultos. É uma oração que parece
consistir numa incapacidade para orar. Não é, no
enta n to, nosso propósito estreitar o significado do
nome tentando defini-lo. Pelo contrário, é prefe­
rível conservar-lhe uma aplicação tão lata quanto
possível, de modo a poder incluir-se no seu �:ratarnento
as dificuldades permanentes dos mais avançados,
bem corno as paralisias temporárias daqueles que
não chegaram ainda tão longe.
Há muitos leitores que não gostam de citações,
mas sentimo-nos obrigados a citar a descrição dada
por Santa 1 oana Francisca de Chantal, da sua ora­
ção, porque é um exemplo excelente, embora avan­
çado, do tipo de oração de que estamos a tratu, e
também porque pode servir de apresentação da
Santa para alguns que ainda a não conheçam. Depois
de Santa Teresa, é ela a grande autoridade do seu
sexo sobre a oração. É, além disso, o livro vivo que
S. Francisco de Sales «escreveU>>, porque foi ele o
seu director e formou a sua alma nas linhas da sua

147
A DmCULDADB DB OllAR

já clássica espiritualidade - urna espiritualidade que


dificilmente terá sido ultrapassada.
A Santa escreve : «Digo-lhe com toda a confiança
e simplicidade que há já quase vinte anos que Deus
me tirou todo o poder de fazer qualquer coisa na
oração com o entendimento e a consideração ou
meditação ; e que o mais que posso fazer é sofrer e
descansar o meu espírito muito simplesmente em
Deus, permanecendo nesta atitude por um inteiro
abandono a Deus sem fazer actos nenhuns, a não ser
que a isso seja convidada por sua iniciativa, espe­
rando ali o que seja do agrado da sua bondade
dar-me>>. Aqui temos uma oração sem «actos»,
sem capacidade para fazer nada mais além de sofrer
e abandonar-se a Deus. É este último ponto que
distingue esta oração dos meros devaneios ou da
inércia preguiçosa. Se a no�sa vida não está a ser
continuamente moldada de acordo com a vontade
de Deus não pode haver «abandono» real no tempo
da oração. A nota do sofrimento não é essencial
a esta oração, mas apesar disso a oração falha fre­
quentemente porque não a olhamos como um meio
pelo qual nos damos a Deus. Com demasiada fre­
quência andamos à procura de consolaçõe'>, bus­
cando-nos a nós mesmos na realidade, ainda que
seja num plano espirituaL Estamos a orar em nosso
nome em vez de em nome de Cristo.
Há várias fases de oração que podem ser i ncluídas
sob este título de «oração de fé». Algumas vezes
não podemos conceber que Deus está algures perto
de nós. Parece ter-nos abandonado por complefo,
ser indiferente às nossas necessidades. Nada daquilo
que possamos dizer ou fazer parece movê-lo . Outras
vezes são os nossos próprios esforços que parecem
estar ausentes. Não podemos formular nem um só
acto. As pahvras morrem-nos nos lábios logo

148
A ORAÇÃO DB ri

que nascem ; são completamente inadequadas. Que­


remos alguma coisa: não podemos dizer o que seja.
Como que só podemos soluçar e gemer. Algumas
vezes uma aguda consciência da nossa miséria mata
a nossa oração como, por exemplo, quando os nossos
protestos de amor são sufocados pela lembrança
da nossa infidelidade diária, da procura de nós mes­
mos ou da nossa falta de confiança.
Pode talvez ser que tenhamos consciência de que
Deus não está longe ; parece que Ele está detrás dum
cortinado grosso e pesado, em completa escuridão.
Mas cada esforço que fazemos para dele nos apro­
ximarmos só parece por-nos mais afastados dele.
É como um homem a nadar, que se levanta acima
da água para tentar ver mais longe, só para voltar
a cair ainda mais baixo. Algumas vezes estamos
por assim dizer em contacto com Deus, mas asse­
diam-nos as distracções, e cada esforço para liber­
tar-nos delas serve apenas para quebrar. Neste
estado, a que se refere Santa Teresa, não devemos
tentar eliminar as distracções. É um caso um tanto
semelhante ao de uma dona de casa que entretém
convidados no rés-do-chão enquanto os filhos fazem
barulho no andar de cima. Se sobe para fazê-los
sossegar tem de deixar a visita. Nesta fase parti­
cular da oração a acção de Deus está concentrada
no mais profundo da alma, e não só prescinde dos
sentidos e da imaginação como ainda não oferece
ao entendimento nada a que se agarre fàcilmente.
Estas potências começam então a trabalhar por sua
conta, e qualquer tentativa para segui-Ias só faz
com que a alma se afaste de Deus.
Este, no entanto, é apenas um caso particular.
Em todos os casos em que estamos desamparados,
incuràvelmente distraídos, paraliza<.los pela secura,
completamente incapazes de entrar em contacto

149
A DIFICULDADB DB ORAR

com Deus, em aparência um tanto indiferentes a


todas as coisas de Deus, e mesmo por vezes cheios
de tédio por elas, ou assediados pela estupidez,
espírito vago e mesmo com tentações, em todos
estes casos temos de recair num \<Seco» acto de fé
em Deus, na sua presença, no seu poder, na sua
bondade, na sua sabedoria, na sua infinita miseri­
córdia, no seu amor paternal. Este estado de ora­
ção consiste menos num longo e ininterrupto acto
do que numa disposição habitual e permanente de
evitar seja o que for que desagrade a Deus e de fazer
tudo aquilo que lhe agrade. Note-se que esta dis­
posição fundamental é bastante compatível com o
sentimento geral de pecabilidade e aparente má
vontade. Só termina quando tomamos consciência
duma decisão concreta deliberada de perseverar
em alguma coisa contrária à vontade de Deus. Mas
dada esta boa vontade podemos aplicar à nossa
oração o princípio que se acha na oração da Igreja
quando se d irige a Deus deste modo : « Ó Deus,
para quem todos os corações estão abertos e a quem
falamos com as nossas vontades . . . » Devemos,
portanto, orar com as nossas vontades.
Oramos com a vontade sempre que vamos à ora­
ção de acordo com a vontade de Deus, e nos dis­
pomos numa atitude corporal conveniente, afas­
tando o nosso espírito tanto quanto possível de
tudo o que não seja Deus, e tentanto perseverar
nessa atitude de alma e corpo. E isto é verdade
por muito longe de Deus que nos sintamos, por
muito que nos pareça que fracassámos ; porque,
apesar de tudo, estivemos orando com a nossa von­
tade. E só isso é que interessa. Podemos não
ter tirado satisfação absolutamente nenhuma dessa
oração, mas Deus foi duplamente louvado, e deve
notar-:se que nós próprios, ainda que o não saibamos,

150
A ORAÇÃO DE FÉ

nos tornamos mais santos e mais agradáveis a Deus.


Se as almas pudessem imaginar o valor desta forma
de oração, que nova coragem não sentiriam! Por­
que é a ideia de que todo o nosso tempo é perdido
em tais tentativas que nos faz desistir da oração
quando esta evolui para o estado que temos estado
a tentar descrever.
É para que possam ter uma noção verdadeira do
que significa reabnente o progresso na oração que
se põe esta descrição perante os olhos de todos,
mesmo daqueles que começam na vida espiritual.
A noção corrente do progresso é bastante oposta à
evolução deste género. E, no entanto, a noção
corrente é errada, porque julga a oração pela satis­
fação própria que proporciona. Este critério é
falso, pois a finalidade da oração é dar a Deus o
que lhe é devido, e não apropriar-nos daquilo a que
não ternos nenhum direito. Se agrada a Deus que
permaneçamos perante Ele como animais mudos
ou corno urna estátua não é conveniente, justo, certo
e adequado que o façamos ? Mas para isso tere­
mos de aprender a encontrar a nossa felicidade em
agradar a Deus, e não em agradar a nós mesmos.
Por outras palavras, temos de tornar a nossa
vida <<Cristocêntrica» em vez de egocêntrica. E então
contentar-nos-emas com a esperança de que os
minutos áridos que passámos na oração iluminarão
a sua cruz. Com muita frequência, se não fizésse­
mos mais do que resolver-nos a partilhar da sua cruz,
haveríamos de redescobrir o nosso Divino Amante,
que parece ter-nos abandonado. No entanto nem
sempre é este o caso. Ele pode ainda continuar
muito longe, apesar da nossa generosidade no sacri­
fício, e teremos de contentar-nos em servi-lo à nossa
custa até que lhe pareça bem voltar a lançar o fogo
no nosso coração.

151
A DIFICULDADE DB ORAR

É certo que Ele há-de voltar de novo se perseve­


ramos na oração, porque este estado árido não é
mais do que o deserto que guarda a proximidade
da terra prometida da contemplação. Há de facto
um paralelo muito próximo entre o progresso da
alma quando esta paralisia se tornou uma situação
permanente e o vaguear dos israelitas no deserto.
Apesar de tudo há, bem no fundo da alma, uma
vaga fome habitual por alguma coisa que pode ou
não reconhecer que é Deus. Nada na criação pode
dar-lhe uma satisfação sólida; e ainda que a alma
suspire pelas alegrias que antes conheceu na vida
espiritual, sabe no fundo do seu coração que estas
não mais poderão satisfazer as suas necessidades.
Abandonou o Egipto e a sua vida sumptuosa ; ainda
não alcançou a terra prometida. Entretanto tem
de aprender a contentar-se com o maná quotidiano
que Deus lhe dá. Também não receberá mais do
que a ração para cada dia, pois Deus só dá à alma a
graça bastante para satisfazer as necessidades do
momento, para que possa aprender que não pode
fazer nada por si mesma, mas que a sua graça é
sempre suficiente.
Quando uma alma nestas condições se sente
movida a ajoelhar diante de Deus, sem fazer nada,
excepto de um modo geral esperar por Ele, não deve
haver dúvida de que realmente ora, e de que Deus
a prepara para ulteriores graças de oração. Este
estado, ao qual se chama a noite escura dos sentidos,
não é de modo algum tão invulgar como muitos
julgam. A alina que está neste ponto precisa de
mais conselho do que o que se lhe pode dar aqui. Há
dois pequenos livros que tratam deste estado de
um modo muito prático, e que podem ser recomen­
dados a todas as almas que tentam viver urna vida
de oração. Um é «Ün Prayer» de Caussade ; o

152
A ORAÇÃO DE FÉ

outro é «The Science of Prayer», de Ludovic de


Besse. A matéria versada nestes dois livros deveria
ser familiar para todos os que sejam sacerdotes ou
religiosos há mais de seis anos. Ambos os livros
tratam dos tipos simplificados de oração e das difi­
culdades e dúvidas que deles surgem, e discutem
muitos outros aspectos da vida espiritual relacio­
nados com este estado de oração. O leitor encon­
trará grande encorajamento nas suas páginas, e
será muito ajudado a perseverar na oração, não
obstante as suas obscuridades e aridez. Mesmo o
principiante se sentirá animado a dispor-se ao pro­
gresso através de esforços generosos.
Será bom ler as obras de Santa Teresa, a quem
podemos chamar mestra oficial da oração, à luz
da colecta que se diz na sua missa. E não lhe falta
experiência nem compreensão com a fraqueza e as
repugnâncias da natureza humana. S. João da Cruz
assusta muitos que o não conhecem, mas duas das
suas obras «A Subida do monte Carmelo» e «A noite
escura da alma>> hão-de ser de grande ajuda para
muitos que têm falsas noções da oração. Foi ele
que deu à Pequenina Flor tanta luz e coragem.
A «Vida Espirituab>, de Tanquerey é, como já
se disse, uma inapreciável obra de referência em todos
estes problemas da vida espiritual. Há duas obras
extensas sobre a oração que podem ser l idas com
proveito : «The Graces of Interior Prayen> de Pau­
lain, e «The Degrees of the Spiritual Life>> pelo
Cónego Sandreau. Estes dois escritores represen­
tam escolas diferentes de pensamento, mas ambos
concordam em apresentar-nos os mais altos estados
de oração corno coisa que se há-de desejar e pedir,
e para a qual devemos dispor-nos. Já nos referi­
mos a «Holy wisdorn>> de Augustine Baker ; «A Bock
of spiritual instruction)) de Blosivs é uma obra

153
A DIFICULDADE DE ORAR

clássica da mesma escola. A obra de Vital Lehodry


«The ways of mental Prayer» é considerada como
um dos melhores manuais práticos sobre o assunto ;
por sua vez, o pequeno livro de Chautard, «A alma
de todo o apostolado» é um resumo eficaz de leitura
agradável da absoluta necessidade de uma vida inte­
rior em todas as formas da actividade espiritual.
Mas não basta apenas o saber. As três virtudes
teologais infusas da fé, esperança e caridade, assumem
uma importância crescente na vida de oração. No
entanto, o que aqui precisamos vincar é a necessi­
dade da fé - fé não só durante o acto de orar, mas
também durante toda a vida espiritual, porque como
vimos a oração à medida que progride, cada vez se
relaciona mais estreitamente com o resto da vida
espiritual. De um certo ponto de vista, poderia
resumir-se aproximadamente todo o progresso e
toda a purificação, nesta matéria, como urna subs­
tituição gradual do ver, sentir e conhecer, pelo crer.
Porque o homem sensual - que podemos aqui
tomar como o homem que vive pelo sentimento e
pelos sentidos - não apreende as coisas de Deus.
O homem justo, como nos diz S. Paulo, vive da fé.
Mais tarde ou mais cedo a alma que se aproxima
de Deus tem de viver duma fé nua, crendo, no meio
da escuridão, por um agudo esforço da vontade
auxiliada pela graça. Poderia mesmo dizer-se que
a alma terá de «acreditar» no seu próprio fervor ;
com certeza não será capaz de o «sentir».
Sem fé ninguém pensaria em entrar em religião;
sem fé ninguém daria valor aos Sacramentos ; sem
fé ninguém daria uma obediência sobrenatural a
um falível superior humano.
Toda a obediência religiosa assenta sobre a fé,
e uma fé que pode ter de exercer-se em face da oposi­
ção causada pelo espírito da independência humana

1 54
A ORAÇÃO DE FÉ

do súbdito, ou pela aparente fraqueza humana do


superior, porque mesmo que o superior seja um santo
em todas as suas obras os nossos olhos humanos
arranjarão maneira de descobrir alguma falha nas
suas palavras ou razões - algo que desperta a nossa
oposição e nos tenta a gritar : «Não servirei» - algo
que só pode ser vencido pela fé, que vê a mão e a
vontade de Deus em todas as obras oficiais dos que
designou como seus representantes.
S. Tomás de Aquino diz-nos que é pelos dois
canais da fé e dos Sacramentos que a Paixão de Cristo
se aplica às nossas almas. A Igreja pede fé para
o baptismo. O Senhor exige-nos fé quando ora­
mos. A fé é a respiração da vida espiritual, a subs­
tância das coisas que esperamos, a evidência das
coisas não aparentes. É portanto evidente a impor­
tância de viver pela fé, mesmo nos primeiros estados
da vida espiritual. «Sem fé é impossível agradar
a Deus». E como o progresso só nos conduzirá
a uma vida de pura fé, quanto mais tentarmos viver
pela fé tanto mais cedo e mais depressa avança­
remos.
Há uma circunstância em que a fé é de importân­
cia capital, a saber na recepção dos Sacramentos,
e em particular imediatamente antes de recebê-los.
Ainda que os sacramentos tenham o seu poder pró­
prio de acção, no entanto a medida da graça que eles
produzem em nós depende muito das nossas disposi­
ções, e em especial da nossa fé, esperança e caridade.
Estimulando e reavivando a nossa fé, assentamos
os fundamentos para um aumento de esperança e
caridade, e promovemos deste modo o nosso rápido
crescimento na vida espiritual.
Mas a principal importância da fé é que a fé nos
une a Deus nesta vida. Nem os nossos sentidos
nem a nossa razão podem apreender Deus, mas a fé

155
A DIFICULDADE DE ORAR

toca Deus e mantém-nos num contacto vitaJ com


Aquele que nos faz um Consigo. O uso dos nossos
sentidos e da razão pode mesmo tomar-se um obs­
táculo a esta união, e é assim que S. João da Cruz
insiste em que todas estas faculdades devem ser
completamente mortificadas, e que a alma deve
aprender a viver apenas pela fé, antes que possa
unir-se completamente a Deus. Como a união
com Deus é a essência de toda a vida espiritual, é
evidente a suprema importância da fé em cada fase
dessa vida; é, acima de tudo, indispensável para a
oração.

156
"MUITOS
SÃO O S C H A M A D O S ... "

Há mais wna razão que torna aconselhável, para


a alma que tenta viver uma vida de oração, a .con­
sulta da literatura sobre o assunto. Estivemos a
observar o seu progresso desde que abandonou a
vida sumptuosa do Egipto, seguindo-o através do
deserto da oração seca e árida, onde tem de aprender
a viver do maná da fé. Não é nossa finalidade tra­
tar do seu progresso futuro ; mas, uma vez que esta­
mos junto da fronteira da Terra Prometida, temos de
acautelar-nos para não cometer a falta original de
deixar a alma sob uma impressão falsa .e nublada
das grandes alegrias que a esperam naquela terra
onde correm o leite e o mel. No entanto, não pode­
mos tentar descrever as delícias e consolações das
diferentes espécies da oração contemplativa que
podem ser concedidas à alma que foi corajosa o
bastante para confiar na direcção de Deus e perse­
verar em segui-lo através do deserto da escuridão.
A bibliografia que já indicamos, ou testemunhos
originais como os que se encontram, por exemplo,
na vida de Santa Teresa, ajudarão a alma a com­
preender que tem diante de si um antegozo do céu
nesta terra.
É certo que, ainda que as povoações da alma não
tenham de modo algum terminado quando ela se
aproxima do cume da montanha da oração, não há

1 57
A DIFICULDADE DB ORAR

nesta vida alegrias que igualem as que podem pro­


porcionar as alturas da oração. Se todos são ou
não chamados a este alto estado, é uma questão
em que não precisamos deter-nos. É, entretanto,
bastante seguro afirmar que todos podem louvàvel­
mente orar e preparar-se para as mais elevadas
graças de oração, desde que seja por motivos justos
e fundamentem a sua esperança na misericórdia de
Deus, nos méritos do Salvador e na sua pró­
pria pobreza de espírito. Nada se perde em tra­
balhar deste modo para as graças de oração porque,
como dissemos, o trabalho de preparação é nada
mais do que o cumprimento generoso de tudo aquilo
que já é exigido pela natureza do estado religioso
ou pelo ministério sacerdotal. É claro que a con­
dição da alma que Deus normalmente espera antes
de lhe conceder as suas graças de oração contem­
plativa em algum estado elevado exige um não
pequeno grau de abnegação pessoal e de virtude.
Mas Deus não faz acepção de pessoas e, para os
fins da sua sabedoria, confere muitas vezes a sua graça
- mesmo a sua graça especial - aonde há pouco
ou nenhum mérito. Além disso, mesmo quando
espera por um estado estável de serviço generoso
antes de chamar a alma a um lugar mais elevado no
banquete do seu Amor, Ele próprio é o que mais
tenaz e energicamente actua no trabalho de pre­
parar a alma.
Em qualquer caso, este nível de fervor não é mais
elevado do que o que pode e deveria realmente ser
atingido na vida religiosa. A tragédia é que tantas
almas tenham andado bastante no caminno para
atingir este estado e façam quase todas, os sacrifícios
necessários, mas que consintam em ser impedidas
de chegarem ao seu termo por um apegamento a
descoloridos ouropeis que não querem tentar deixar.

158
<<MUITOS SÃO OS CHAMADOS »
...

De facto, se bastantes sacerdotes e almas em reli­


g:tao não conseguem alcançar a contemplação, é,
não tanto por ser pre:::iso um grau de perfeição dema­
siado elevada para atingi-la, mas antes por causa de
alguma recusa obstinada da sua parte em negar
algum pequeno apetite do amor próprio. «Um
pouco mais e oh! quanto!» Desde o momento em
que resolvemos decididamente per:.istir em recusar
algum pedido que sabemos que Deus nos faz, é des­
truída aquela nossa rendição que é o fundamento
da nossa união com Deus, e a oração contemplativa,
que é a rior e o fruto dessa união, está posta de parte.
Às vezes é o próprio dom de Deus que nós nos recusa­
mos a abandonar, agarrando-nos às suas consolações
como urna criança que se recusa a ser desmamada.
Esquecemos a exortação dos Apóstolos para sermos
zelosos por novos dons; esquecemos o grande prin­
cípio «Negociai até que eu venha», pois devemos
sempre usar os dons de Deus negociando com Ele
a sua misericórdia, até que Ele se nos dá a si mesmo
numa união tão estreita quanto possível. Por
isso é que a generosidade e o espírito de sacrifício
são tão essenciais para avançar na oração. Temos
de dar a Deus um cheque em branco sobre nós pró­
prios e sobre tudo quanto temos, confiando que na
sua graça e misericórdia nos dará todos os meios
para correspondermos a cada uma das suas exi­
gências no sentido de obter de nós o pagamento na
forma de abandono e sacrifício.
A este respeito poderia dizer-se que se alguém
tenta a experiência, se assim se pode chamar, de
não recusar nada a Deus durante o tempo de,
por exemplo, seis meses, ficará espantado com a
transformação na sua vida espiritual. Se nós tivés­
semos a coragem de abandonar-nos Àquele que
sabemos ser um Pai amoroso! Se pudéssemos

159
A DIFICULDADE DE ORAR

acordar a nossa fé e compreender que o Senhor


queria dizer aquilo mesmo que dizia - que o seu
jugo é suave e o seu peso é leve! Não é na verdade
extraordinário que não sejamos capazes de acreditar
na palavra de Deus tal qual é ?
É impossível atingir tais alturas na oração sem um
decidido espírito de mortificação. Temos de renun­
ciar em absoluto e de resistir vigorosamente aos
hábitos deliberados de pecar. A quebra deliberada
e habitual de qualquer regra, de qualquer ordem dos
superiores, ou um idêntico desprezo de qualquer
dever, também tem de ser eliminado. Além disso
não devemos nunca deixar que um certo espírito
de indulgência própria se aposse da nossa conduta;
o espírito que nos guia tem de ser de sacrifício.
À primeira vista, isto parece duro - demasiado
duro - mas torna-se mais leve e mais «razoável»
quando compreendemos que, nos pedem que nos
mortifiquemos, é para que Jesus possa viver em nós.
A nossa morte para nós mesmos pela mortificação
é a sua ressurreição em nós, e temos portanto de
aprender a tentar em todas as circunstâncias, actuar
por amor a Jesus, em vez de por amor à nossa própria
comodidade. Isto significa que temos de declarar
a guerra à busca de nós próprios, e fazer da busca
de Jesus o nosso objectivo constante. Significa
ainda que temos de tentar aceitar alegremente todas
as provações que Ele nos reserva, sejam de que género
forem - provações da alma, provações do corpo,
provações de dentro, provações de fora, provações
dos homens, provações do trabalho - e ver nelas
uma nova oportunidade para nos unirmos a Jesus
no sofrimento, para o aliviarmos da sua cruz e para
completarmos o que falta, pela Igreja, nos sofri­
mentos de Cristo. Hão-de servir como uma nova
ocasião de unir-nos na fé ao nosso amoroso Pai,

1 60
«MUITOS SÃO OS CHAMADOS .•. »

que governa todas as coisas docemente e faz com que


todas concorram para o nosso bem. Há-de ser
também uma ocasião para nos unirmos ao Espírito
Santo que mora em nós para dar força à nossa fra­
queza e iluminar a nossa cegueira, de modo que
possamos corresponder às necessidades de cada
momento.
Mas significará um espírito de penitência mais
do que isso ? Significará, talvez, que temos de
empreender um programa de penitência, em parti­
cular de penitência corporal. É uma questão um
tanto delicada, porque a resposta depende conside­
ràvelmente de circunstâncias particulares. É indu­
bitàvelmente verdade que se os homens fizessem mais
penitência, haveria muitas mais pessoas guindadas
à oração da verdadeira contemplação. Por outro
lado, as tentativas indiscretas e imprudentes de
infligir penitências a si próprios conduziram mais
de uma vez, ao desastre. Os motivos e os efeitos
devem ser salutares e o assunto é daqueles em que
o sujeito não é juiz competente do seu caso pessoal.
Nas ordens mais penitentes não deverá nunca, sem
conselho adequado, exceder-se a medida habitual da
mortificação praticada pelas almas ferverosas, e
mesmo nesse caso deveria ser controlada por pru­
dente autoridade, mesmo que isso só seja possível
com grandes intervalos.
Naquelas Ordens que não prescrevem muita peni­
tência na sua vida regular, e também na vida do
clero, há naturalmente mais lugar, e necessidade
mesmo, para a iniciativa pessoal. Mas ainda aqui
se não pode - a experiência demonstra-o exuberan­
temente - dispensar sem mais esse conselho e con­
trole, mesmo que se tenha de admitir a dificuldade
- que é ,em alguns casos, uma quase impossibili­
dade - de encontrar um conselheiro prudente e

161
A DIFICULDADE DE ORAR

competente, que tenha vagar e inclinação para a


direcção de almas. No entanto, a providência de
Deus deve ter atendido a estes casos, e o fervor
j untamente com a oração sempre hão-de encontrar
a pessoa indicada. Em geral pode dizer-se que
aqueles jejuns em que se compraz a nossa vontade
têm muita razão para ser reprovados. Aquelas
penitências que interferem com o cabal desempenho
dos deveres do nosso estado estão, por esse mesmo
facto, condenadas. Aquelas que podemos fazer
com urna «seca» mas genuína alegria e que nos não
preocupam demasiado, nem nos ensoberbecem e
fazem agradecer a Deus que não sejamos como o
resto dos homens, são todas salutares e boas.
A penitência deve fazer-se em espírito de con­
junção, para expiarmos pelos nossos pecados, mas
melhor ainda, deve também fazer-se em união com
o Senhor, para aliviar o peso da sua cruz e
para completar a solidariedade do seu amor e sofri­
mento.
Se tentássemos resumir as condições que se reque­
rem para a contemplação, seríamos obrigados a
alongar-nos muito, porque isso significaria fazer
um resumo completo da perfeição da vida espiritual.
Mas é preciso insistir em que, se o fizéssemos, não
teríamos de mencionar nem uma única di.>posição
ou empreendimento que qualquer religioso, tanto
activo como contemplativo, não esteja já obrigado
a procurar pelas obrigações do seu estado, ou se
espere que adquira para a sua perfeição. E, como
vimos, a função do sacerdócio faz exigências idên­
ticas aos seus membros. A tragédia está em que
haja tantos sacerdotes e religiosos que «observem
estas coisas desde a sua juventude» e que então,
quando o Senhor chama a atenção deles para
qualquer apegamento ao qual pretende que renun-

162
<oruiTOS SÃO OS CHAMADOS . • . ))

ciem, se afastam entristecidos, porque pensam que


têm muitos bens, muitos talentos, muitos sonhos,
muitas esperanças, demasiadas coisas a que renun­
ciar, e o que os prende é tão frívolo e mesquinho,
tão tràgicarnente desprezível, que os anjos devem
espantar-se de que os homens possam ser tão loucos.
Fidelidade cordial à vontade de Deus em seguir
os seus preceitos, na exacta observância das nossas
regras, dos nossos deveres quotidianos, do exercício
da vida comum ; generosidade em corresponder às
inspirações da graça, em decidir-se a não recusar
a Deus nada que Ele claramente peça, em abandonar­
-nos a todos os detalhes da sua providência; humil­
dade que desconfia da sua própria força e põe toda
a confiança apenas no misericordioso auxílio de
Deus; um desejo resoluto de cumprir todos os deta­
lhes dos preceitos de Deus, eis o que conduzirá a
alma a avançar ràpidamente e além de tudo o que
se possa esperar. Uma alma assim disposta, em
breve há-de verificar que Deus não será ultrapassado
em generosidade, que começa a dar-lhes os seus
auxílios especiais, que começa a tomar a seu cargo
uma parte maior do trabalho do progresso da alma,
e partilha com ela a sua própria força. Uma alma
assim reparará que se torna cada vez mais unida a
Deus nos pensamentos, no aspecto e nas acções, e
que a sua oração desenvolver-se-á paralelamente.
Mas há um erro que é um grande obstáculo a este
desenvolvimento e que, portanto, é preciso evitar,
ainda que seja preciso reconhecer que este errado
modo de ver é apoiado pelas obras de certos autores
que reagiram de modo excessivamente forte contra
os erros do seu tempo. Corno vimos, alguns pen­
sam que para além da meditação ordinária, em sen­
tido estrito, não há mais nenhum estado de oração,
senão os fenómenos extraordinários que em muitos

163
A DffiCULDADE DE ORAR

espfritos se associam aos cumes da santidade. É um


erro muito sério, e tudo quanto se escreveu aqui
acerca do desenvolvimento da oração segundo os
moldes da amizade humana deve ajudar o leitor a
evitá-lo e a ver que, pelo contrário, a oração deve
poder comportar infinitos graus · de progresso e pode
razoàvelmente esperar-se que conduza a uma união
do coração e da alma com Deus tão completa que
vem a converter-se em contemplação. Não se
pense que os êxtases extraordinários e as visões que
encontramos ao ler as vidas de alguns santos são
parte essencial, seja da santidade, seja dos mais
elevados estados da contemplação. Longe disso ;
não só não fazem parte da autêntica oração - pois
há alguns que subiram até ao cimo a escada da ora­
ção sem darem mostras de nenhum destes efeitos -
como são mesmo algumas vezes uma manifestação
da falta de uma perfeição completa no estado de
oração da alma, e podem ser devidos à fraqueza
humana; ainda que, é claro, possam também ser o
trabalho directo de Deus, destinado a realizar os
seus planos especiais a respeito duma determinada
alma. De qualquer modo, na prática, estão fora do
trilho essencial da oração, o qual nos conduz cada
vez mais longe para as profundidades da nossa alma,
para ali nos acharmos completamente unidos a Deus.
Por muito tarde que seja, quando uma alma vê
todas as possibilidades da vida espiritual ou encontra
o caminho recto da oração, é de grande importância
que a resolução de avançar até à estreita união com
Deus não seja dominada pelo receio de que nesta
altura é demasiado tarde. Ainda que o passado
tenha sido manchado pelo pecado, ou que se tenha
perdido o tempo com uma direcção errada ou com
um modo de orar inadequado, não pode haver nada
no passado - absolutamente nada, seja de que espé-

164
<<MUITOS SÃO OS CHAMADOS • • • »

cie for - que possa ser um obstáculo insuperável


para a santidade, desde que ergamos os nossos
corações para Deus. É o Salvador e esse é o
seu Nome. Fez-se homem para nos salvar dos
nossos pecados, e há-de portanto salvar-nos dos
nossos erros! «Para aqueles que amam a Deus,
todas as coisas concorrem para o bem», escreve
S. Paulo, e nisto se incluem mesmo os nossos peca­
dos. Deus tem um poder e uma misericórdia infi­
nitos ; pode servir-se de todo o nosso passado a tê-lo
em boa conta. Por avançada que seja a hora, ou
grandes os obstáculos, temos de volver-nos para
Deus com uma confiança ilimitada. De facto,
uma vez que a glória há-de ser toda dele, há-de
haver sempre da nossa parte alguma dificuldade
aparentemente insuperável ou alguma fraqueza.
Apesar de tudo, «todas as coisas são possíveis ao
que crê» ; apesar de tudo o que nos falta, seja tempo
ou méritos, «a nossa suficiência vem de Deus».

165
CON CLUSÃO

Muitos leitores hão-de, provàvelmente, sentir que


muito do que se escreveu nos últimos capítulos não
tem aplicação prática para eles, por este motivo não
podemos deixar de citar S. João da Cruz, que é a
autoridade por excelência neste assunto. No seu livro
A chama de Amor vivo, ao tratar do desenvolvimento
da oração de meditação, escreve :
«Ü estado dos principiantes é de meditação e
. . .

de actos de reflexão. E necessário prover a alma


neste estado com matéria de meditação, para que
possa fazer reflexões e actos interiores, e tirar pro­
veito do calor espiritual e fervor sensíveis, pois
isto é preciso a fim de habituar os sentidos e os dese­
jos às coisas boas de modo que, satisfazendo-se com
a doçura delas, se possam desapegar do mundo.
Quando isto se alcança em certo grau, Deus começa
imediatamente a introduzir a alma no estado de
contemplação, e isto muito depressa, especialmente
no caso de religiosos (o sublinhado é nosso) porque
estes, tendo renunciado ao mundo, depressa orde­
nam os sentidos e desejos de acordo com Deus ; têm,
portanto, que passar imediatamente da meditação
à contemplação. Esta passagem, então, tem lugar
quando falham os actos discursivos e a medita­
ção, quando cessam a doçura sensível e os primeiros
fervores, quando a alma não pode fazer reflexões

167
A DIPICULDADE DE ORAR

como antes, nem achar conforto sensível, mas caiu


na acidez, pois que a matéria principal se mudou
para o espírito, e o espírito não é cognoscível pelo
sentido. Como todas as operações da alma, que
estão sob o seu domínio, dependem apenas dos sen­
tidos, segue-se que Deus está agora a operar de um
modo especial neste estado, que é Ele que infunde e
que ensina, que a alma é o recipiente na qual Ele
deposita bênçãos espirituais pela contemplação, pelo
conhecimento e pelo amor de si mesmo ; isto é, dá-lhe
um conhecimento amável sem a instrumentalidade
dos seus actos discursivos, porque já não é capaz
de elaborá-los como antes.
Nesta altura, a direcção da alma deve ser total­
mente diferente do que era antes. Se antes se provia
de matéria para meditação, e meditava de facto,
agora a matéria deve ser suspensa e deve cessar a
meditação, porque, como disse, não pode a alma
meditar, faça o que fizer, e o resultado são distrac­
ções. Se antes buscava o fervor e a doçura e os
encontrava, que não mais os busque nem os desej e :
e se tentar buscá-los, não só os não encontrará como
ainda por cima deparará com a aridez, porque �e
desvia do pacifico e tranquilo bem que nela foi
secretamente depositado, quando tenta regressar
às operações do sentido. Deste modo perde o
último sem ganhar o primeiro, porque os sentidos
deixam de ser o canal do bem espiritual.
O principal objectivo de citar esta longa passagem,
é chamar a atenção para as palavras em que o santo
nos indica as disposições fundamentais para a pas­
sagem à contemplação, a saber; que tenhamos adap­
tado os nossos sentidos e desejos de acordo com
Deus, disposição que, com o seu resultado, ele pensa
encontrar ràpidamente alcançada - no caso do reli­
gioso. Mas citou-se toda a passagem porque resume

168
CONCLUSÃO

numa linguagem fecunda, com o peso de toda a


autoridade do Doutor de oração da Igreja, tudo
aquilo que estas páginas têm estado a tentar dizer.
A opinião do Santo doutor acerca do efeito que
pode naturalmente esperar-se da vida no estado
religioso, tanto da formação na virtude como do
progresso na oração, há-de reparar-se que é bas­
tante semelhante às esperanças expressas por Santa
Teresa nos seus escritos. A essência do estado reli­
gioso não mudou desde o tempo deles; é um estado
de tender para a perfeição. Ora, é impossível tender
conveniente e completamente para a perfeição sem
levar uma vida interior. Podemos ir mais longe e
dizer que sem uma vida interior é impossível a um
sacerdote ou religioso viver uma vida exterior que
não seja arruinada pela esterilidade, pela inutilidade
sobrenatural e pela ineficácia.
Se alguma coisa está errada nos nossos sacerdotes
ou religiosos de hoje, - se há mesmo alguma falha
da parte dos laicos em viver de acordo com a fé que
indubitàvelmente possuem - se a nossa resistência
à infiltração da civilização pagã, das atitudes pagãs,
e dos princípios pagãos nos nossos espíritos e cora­
ções, na nossa vida privada e pública, não é tão
resoluta, tão -expedita como deveria ser, - pode
com certeza encontrar-se a causa na falta de uma
vida interior e fundamentalmente na falta dessa vida
em grau adequado entre os sacerdotes e religiosos.
Nem com a melhor das boas vontades do mundo é
fácil afirmar que tudo é tal como deve ser. Não
faltam vozes - vozes competentes - bradando em
aviso ; não faltam os sinais - sinais iniludíveis ­
que os apoiem; diz-se mesmo que se ouvem avisos
sobrenaturais, todos deplorando a falta do necessário
fervor e vida interior na religião. Não nos compete
a nós dar sentença sobre o estado das coisas. Mas

169
A DIFICULDADE DE ORAR

cabe a cada um de nós examinar a sua condição


pessoal, e ver se sim ou não está em harmonia com
a maravilhosa bagagem espiritual que Deus deu a
cada um no baptismo. Porque o próprio Deus
veio viver nas nossas almas, para ser o nosso guia,
a nossa força, a nossa vida e o nosso amor.
A raíz autêntica do mal é que nós nem chegamos
a compreender (nem neles temos uma viva fé prática)
os efeitos do baptismo e as possibilidades da vida
cristã. Não compreendemos que a vida cristã é a
vida de Cristo vivida por Cristo em nós, e não ape­
nas a nossa existência miserável arrastando-se numa
fraqueza solitária. Não avaliamos a vida interior
com o seu valor adequado, nem lhe damos o seu
lugar devido na nossa escala de valores. Para mui­
tos de nós a vida espiritual, e especialmente a vida
religiosa, é uma sucessão de práticas e trabalhos,
nos quais a f!randeza e o êxito são medidos de modo
muito semelhante ao de qualquer outro caminho
da vida. Em consequência disto, o nosso programa
espiritual é ajustado e estreitamente limitado - limi­
tado pelo sentimento de que quando tivermos dito
e feito, todo o nosso processo depende apenas de
nós mesmos, da nossa força de carácter, da nossa
força de vontade, dos nossos remorsos ; e, como
sabemos que estes são tão pobres, não podemos
deixar de sentir que coisas como progresso na san­
tidade e avanço na oração, não são para nós.
É claro que esta é uma daquelas meias-verdades
que são o maior dos erros. É verdade que Deus
nos disse que sem Ele não podemos fazer nada, mas
não escreveu também o seu Esphito Santo, para
nossa consolação, que podemos tudo naquele que
nos fortalece ? É verdade que o mundo está em
nós e nos arrasta ao seu nível, mas não ouvimos
o Senhor assegurar que Ele venceu o mundo ?

1 70
CONCLUSÃO

Ora, haverá alguma união mais estreita do que a do


baptismo - em que o Espírito de Deus se une à
alma de tal modo que a toma um membro vivo do
corpo do Filho de Deus -, em que Deus diviniza
a alma nas suas forças · e nas suas possibilidades ?
Se os Sacramentos produzem aquilo que significam
- e essa é a expressão oficial para a sua actuação -
que conclusão havemos de tirar do facto de, no
sacramento da Sagrada Eucaristia, o corpo e san­
gue de Cristo nos serem dados como nosso alimento ?
Que limite podemos nós fixar às forças ou às possi­
bilidades duma alma que é alimentada pela carne
viva do próprio Deus ? A maravilha não está em
que um sacerdote ou religioso deva aspirar a uma
alta perfeição e às graças da oração, mas sim em que
um sacerdote ou religioso qualquer, ou mesmo qual­
quer católico, deixe não só de aspirar a estas coisas,
mas mesmo de as atingir!
Esta falta de compreensão dos talentos que estão
a deixar enterrados nas suas almas é talvez a razão
pela qual tantos religiosos têm uma visão tão defor­
mada da vida religiosa. Para muitos, o trabalho
diário compõe-se de qualquer tarefa especial - ensi­
nar, pregar, curar os enfermos, ou estudar, por
exemplo - como parte principal, e um certo número
de exercícios de devoção intercalados à maneira dum
colorido acidental, duma concessão necessária ao
próprio estado de vida, mas ao fim e ao cabo alguma
coisa que de modo algum tem uma importância
primordial - que é muitas vezes, uma desvantagem
considerável para a tarefa principal, e por vezes é
um incómodo "l'azoável ! E quanto à vida interior . . .
bem, dizem eles, essa é objecto duma vocação espe­
cial, que não tem nada que ver com o religioso cor­
rente. Estamos· perante uma inversão completa da
verdadeira escala de valores, conjugada com um

171
A DIFICULDADE DE ORAR

erro fundamental quanto à natureza e à finalidade


primordial e essencial do estado religioso, o qual,
seja qual for a natureza ou o fim específico duma
determinada congregação, é sempre a santificação
de cada um dos seus membros, e ao qual tudo o resto,
de modo geral, deve estar subordinado.
A estes dois erros se pode atribuir a maior parte
da surpresa que muitos leitores hão-de sentir ao
verem as palavras de S. João da Cruz, citadas há
pouco, aplicadas ao religioso moderno : de facto,
muito daquilo que se escreveu neste livro parecerá
a muitos rebuscado e impraticável, uma aplicação
errónea à vida religiosa em geral, daquilo que, dizem,
é na verdade peculiar à vida contemplativa. Este
ponto de vista é realmente, o resultado das opiniões
erróneas que acabamos de apontar. A natureza
essencial à vida cristã e ao estado religioso não
variam nem um ápice ; e todas as conclusões basea­
das nes�a natureza são tão válidas hoje como o
foram em todas as épocas da Igreja. A santidade é
ainda um dever primordial, e uma possibilidade prá­
tica. A exortação do Senhor para que seja­
mos perfeitos como o Pai do Céu é perfeito, é ainda
tão insistente e tão exequível como era no dia em que
a formulou.
Todas as almas cristãs podem dizer: Durante cada
momento da sua vida, Jesus pensou em mim e amou-me
em todos os seus sofrimentos, teve presentes ao seu
espírito e aos seus olhos as minhas necessidades ;
em todas as suas alegrias, o seu coração dirigia-se a
partilhar comigo essas alegrias ; em todos os seus
trabalhos, em todo o seu ensino, nunca deixou de
ter em vista a minha santidade ; uma das suas maio­
res torturas foi a sua ânsia da minha felicidade e do
meu amor. Ele sabia que tinha feito e sofrido mais
dum cento de vezes o bastante para me fazer per-

172
CONCLUSÃO

feito, para me santificar. Via claramente que o


único obstáculo para a consecução da finalidade que
me destinava, era a minha recusa em confiar nele,
em acreditar nele, em lançar sobre Ele todos os
meus cuidados, em tomar a sua palavra à letra, e
em submeter-me ao seu suave jugo, que é a carga
leve que tinha preparado especialmente para mim ;
porque, ao ver a minha pobreza tinha, como que
vivido a minha vida po mim com a sua perfeição
pessoal e suspirava pelo dia em que eu faria meu o
resultado do seu trabalho e sofrimento, fazendo o
que me pedia que fizesse».
Tudo isto não é exagero : Jesus mereceu tudo
para nós, mesmo o poder de fazer nossos os seus
méritos. Só precisa da nossa boa vontade e humil­
dade para nos fazer participar dos frutos dos seus
trabalhos.
E não pensemos que Jesus entre o enorme número
de fiéis nos perde individualmente de vista; é Deus
e tem toda a imensidade de Deus. O seu inteiro
amor por cada um de nós não é nem um ápice menos
extenso pelo facto de arder em amor por todos os
homens. Temos, de facto, uma visão mais ver­
dadeira do Coração de Jesus pensando que Ele me
amou, e se entregou por mim, do que considerando­
-nos como um entre os milhões que partilham o
seu coração.
Em cada acto da vida de Cristo houve um intenso
desejo e um amor apaixonado por mim. E esse
amor não abrandou na sua vida no sacramento do
altar. E posso estar ainda mais certo de que tam­
pouco diminuiu na sua vida na minha alma. Naquele
angustioso momento do horto, na profundidade
daquilo que em qualquer outro seria desespero,
quando lançou aquele grito de imensa agonia ao qual
o salmista se refere com as palavras : «Para que

1 73
A DIFlCULDADI! DI! ORAR

serviu o meu sangue ?» era com o meu fracasso em


corresponder à sua graça que Ele sofria ; eram os
meus pecados, a minha recusa em acreditar nele,
a minha rejeição das suas súplicas, a minha des­
confiança no seu amor, o meu descrédito do seu
poder e dos seus planos, a minha dureza de coração
e o meu egoísmo, a minha auto-suficiência e a minha
preguiça que estavam na sua mente e o fizeram ver­
ter o suor do seu precioso sangue. Ainda agora
continua a implorar-nos que deixemos o seu tra­
balho dar fruto nas nossas vidas, que demos algum
valor ao seu sangue precioso, que tenhamos alguma
confiança, alguma fé no seu poder e no S('U amor.
Com verdade, com demasiada verdade, pode
ainda dizer-nos : «Oh! homens de pouca fé, porque
duvidais ?» A caridade de Cristo urge-nos ; o amor
daquele que nos amou primeiro chama-nos ; revigo­
remos a graça, a fé, a esperança e o amor que estão
em nós pelos sacramentos da água, do óleo e do
corpo e sangue de Deus. Pensemos qual é o nosso
alimento quotidiano e vejamos quais haveriam de
ser a nossa força e a nossa vida. Cessemos de dizer
que estas coisas não são para unir, e lembremo-nos
que já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em
mim. Compenetremo-nos de que a nossa força é
a força de Cristo, que as nossas esperanças e as nos­
sas possibilidades são as possibilidades de Cristo,
que as nossas necessidades são as de Cristo, que os
nossos méritos são os méritos de Cristo, que o nosso
espírito é o Espírito de Cristo, o Paráclito, o «For­
tificador», o Espírito de Deus, e renovaremos a nossa
coragem e a nossa firmeza e, cheios de nova esperança
e confiança completa na palavra de Deus, lembrando­
-nos de que somos o Corpo de Cristo, lançar-nos-emas
de novo para o largo, onde há muito tempo temos
labutado sem sucesso, decididos agora a buscar

174
CONCLUSÃO

confiantemente aquela perfeição que o Coração de


Jesus anseia por encontrar em nós, produzir em nós
e connosco.
Em particular, que cada alma renove a sua espe­
rança e a sua intenção de penetrar na oração. Em
primeiro lugar, t em de resolver-se decididamente e
nunca, em circunstância alguma, desistir dos seus
esforços para progredir na oração. Que encare a
oração corno deveria encarar toda a vida espiritual,
corno um combate por Jesus, uma luta por uma
umao estreita com Jesus. Que medite tão longa­
mente quanto for preciso - durante a leitura espi­
ritual, se necessário - mas que passe a orar ao
Senhor com as próprias palavras assim que
possa e sempre que possa. Que não tenha receio
de falar com Deus sem palavras quando o possa
fazer, e assim cada vez se aproximará mais de Jesus.
Que faça, durante o dia, frequentes actos de desejo
de Jesus, os quais não precisam de ser longos nem
necessàriarnente orais ; basta um sorriso do coração.
Que procure Jesus em todas as coisas ; que se una a
Jesus fazendo o que lhe agrada, fazendo a vontade
de Deus. Este é o caminho para se apossar de
Jesus. No momento oportuno, quando possa sentir
Jesus mais próximo, que tire daqui pleno proveito ;
mas não deve estar tão apegado a esta presença
sensível de Jesus que se recuse a deixá-lo partir
quando o Mestre decide que é conveniente para a
alma que Ele a prive da sua presença sensível e lhe
mande um outro consolador.
Se todo o poder da oração parece perdido, se o
tempo da oração se torna um período de distracção
e aridez, que não perca o alento nem se desvie do
seu propósito. A sua oração então consistirá em
submeter-se à vontade de Deus tão completa e gene­
rosamente quanto possa. Não há-de ter receio de

175
A DmCULDADB DB ORAR

l ançar mão de qualquer expediente de que disponha


para o ajudar a combater as distracções, Muitos
encontram grande auxilio em usar um livro, mas
isto não deve ser feito de tal modo que se converta
a oração em leitura espiritual ; tem de parar-se fre­
quentemente e voltar o coração para Deus, e escutar
para ver se Ele não tem alguma coisa que dizer-nos.
A perseverança nesta pesada provação tem uma grande
recompensa, e toca o coração de Deus. A alma
deve tentar estar pronta a aceitar qualquer sofri­
mento que Deus lhe envia, porque a união com
Jesus sela-se na participação dos seus sofrimentos e
pela nossa resistência paciente nos tormentos parti­
cipantes da Paixão de Cristo. Mas o nosso objec­
tivo principal deve ser a humildade. O reino de
Deus está já dentro de nós, mas fazemo-lo nosso pela
nossa pobreza de espírito. Este é o nosso título
de união com Deus e é o primeiro princípio da
vida espiritual que o Senhor ensinou em público.
Portanto a alma não deve nunca, confiar em si
mesma e, acima de tudo, não deve nunca, em
circunstância alguma deixar de confiar absoluta­
mente em Jesus. Deus fez-se homem para salvar
os pecadores, para dar a vida por aqueles que mor­
rem eni pecado, para dar força aos fracos e frágeis,
para se dar aos humildes, aos pobres de espírito.
Tomemo-lo à letra, tomemo-lo com o seu nome,
submetamo-nos a Ele numa humilde obediência e
numa confiança amorosa, digamos-lhe, como Maria :
«Faça-se em mim, faça-se em mim segundo a tua
palavra». E então seremos cheios de Cristo, por
quem, com quem e em quem, na unidade do Espí­
rito Santo, se dá toda a glória de Deus.

176
APÊNDICE

Parece haver, ao longo da literatura sobre o assunto,


dois pontos de vista acerca da finalidade do exer­
cicio conhecido por meditação. Por vezes insiste-se
na sua natureza reflexiva, e considera-se como um
meio de elaborar uma ideia de Deus, da vida humana
de seu Filho, das verdades sobrenaturais, e de formar
convicções que hão-de constituir a mola real da nossa
vida espiritual. Noutras ocasiões a função das
reflexões é subordinada à produção de afectos, e a
insistência recai sobre os actos que se hão-de fazer.
Poderia dizer-se que para uns é um trabalho de
cabeça, enquanto que outros a encaram como um
trabalho do coração. Este contraste, no entanto,
seria incisivo demais. Apesar das reflexões serem
em teoria muito distintas dos afectos, ainda assim,
na prática não podem separar-se tão fàcilmente.
Na prática não pode pensar-se em objectos como
os que se nm propõem sem se ser movido a exprimir
afectos de qualquer género, mesmo que seja incons­
cientemente ; e tão pouco se pode falar com o
Senhor sem de algum modo pensar nele.
Há, no entanto, uma divergência quanto ao relevo
dos dois aspectos, e por esta razão alguns prefeririam
ser menos precisos do que nós fomos nos capí­
tulos III e IV, sobre a conveniência de pôr de parte
as considerações quando começam a chegar os afectos.

177
A DIFICULDADE DE ORAR

Ninguém pode pôr em dúvida o valor da reflexão


sistemática para a formação da vida espiritual, mas
há muitas almas que têm tal dificuldade em perse­
verar nela que correm o risco de desistir desse exer­
cício sem encontrarem nenhum sucedâneo para ele.
Para reduzir esse perigo fizemos sobressair o aspecto
afectivo da oração mental, e insistimos ao mesmo
tempo na importância da leitura espiritual. Estas
duas recomendações devem ser tomadas conjunta­
mente ; ambas são partes indispensáveis dum plano
para inverter a tendência para a compressão, e para
distribuir por diferentes partes do dia os exercícios
que por vezes se agrupam sob o nome de meditação.
Note-se também que frisámos em primeiro lugar
que não deve nunca abandonar-se a meditação, no
sentido daquela reflexão pouco formal e muitas
vezes espontânea ; e em segundo lugar qu« a alma
deve estar pronta a regressar ao uso de considera­
ções formais quando tal for possível durante o tempo
de oração, se e sempre que termina a facilidade para
formular actos. Este último ponto é válido não
só para uma determinada hora de oração, mas tam­
bém para todo um período da vida espiritual da
alma. Só nestas condições se pode com segurança
apreciar a concentração sobre o aspecto afectivo
da oração mental.
Na nossa opinião, tanto a oração mental como a
leitura espiritual são ambas normalmente essenciais
para uma vida espiritual sã. Pela leitura espiritual
e na reflexão espontânea a que esta conduz, procura­
mos atingir a formação daquelas ideias e convicções
para as quais se orienta a meditação sistemática.
Pode chegar um momento em que nem as consi­
derações nem os afectos sejam possíveis na oração.
e a aridez e as distracções são tais que se sente a neces­
sidade de algum auxílio. É consolador relembrar

178
APENOICE

que Santa Teresa, que já tinha avançado bastante


nos caminhos da oração durante os primeiros anos
da sua vida religiosa, se achou mais tarde incapaz
de orar sein um livro durante mais de catorze anos.
Um livro adequado pode, portanto, constituir urna
grande ajuda para almas nestas circunstâncias. Têm,
no entanto, de precaver-se não vão passar todo o
tempo da oração em simples leitura. Mas devem
fazer pausas frequentes, seja para fazer tentativas de
mover quaisquer afectos, com ou sem palavras, ou
pelo menos para permitir o desenvolvimento de
qualquer afecto ainda que imperceptível que possa
ter despertado da leitura. Às vezes sucede que o
único modo de manter a luta contra as distracções é
conservar aberto um livro e insistir neste método.
O melhor tipo de livro é o que contém bastantes
actos, mas a sua índole e a sua matéria hão-de estar
de acordo com a formação da alma, devendo pas­
sar-se por alto e que se revelar inadequado. Mesmo
que só se faça uma pausa para murmurar o nome
de Jesus ou o da sua santa Mãe, pode-se ficar muito
satisfeito com estas tentativas de oração.

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
179
1 N D I c E

Págs.
Prefâcio 9
Introdução . . . . . . . . • . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . ..• . .. . .. ... .. ... ... . .. . 17
As potências da alma • .. . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
Oração discursiva . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Mudança de método . .. . . ... ...... .. . . . . .. . .. . .. . . . . . . . . . . .. . . ... . . . 33
Origens das dificuldades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
O caminho da oração afectiva . . . . . . . .. . . . ... . . .. . . . . . . . .. . . . . . 47
Oração afecLiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Novos progressos . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. .. .. . . . . ... . . .. . ... . . . . . . . .. . 61
Rectidão de vida ... . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
Oração e vida espiritual . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . . . . . . . .
. 75
A senda do progresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
As dificuldades de não orar .. . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
A oração do Sacerdote .. . .. .. .... . . . . ..... . .. . . . . . . . .. . . . . • . . . .. . 97
O Espirito de Adopção . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . .... . ...... . . . . . .
.. 107
A nossa identificação com Cristo ••..... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
O crescimento de Cristo em nós . . . . . . . . . . .. . . . .. . . . . . . . . . . . . . 125
Emmanuel - Deus connosco . .. . . .. . .. . ... . . ... . . .. .. . . . . . . . . . .. 133
Balanço. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
A oração de fé . . . . . . . . . . . . .. . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. . ... . . . . . . . . . . .. .. 147
«Muitos são os chamados». . . .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 157
Conclusão . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .... . . . . . . . . . ...
. . . 167
Apêndice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
•. • 177
NIHIL OBSTA T : 15 DE SETEMBRO DE 1956,
CÓNEGO ANTÓNIO DE BRITO CARDOSO

IMPRIMATUR : 23 DE SETEMBRO DE 1956.


f ERNES T U S , A RC E B I S P O - B I SP O DE

COIMBRA

ACABOU DE SE IMPRI M I R ESTA EDIÇÃO

A 14 DE JANEIRO DE 1957, NAS OFICI­

NAS DA IMPRENSA DE COIMBRA, L.DA

LARGO DE SÃO SALVADOR, I A 3


COIMBRA

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br

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