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Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Matheus Dias Bastos
abaixo assinada.
Ficha Catalográfica
154 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Departamento de Filosofia, 2016.
Inclui bibliografia
CDD: 100
Agradecimentos
Aos meus pais, Adalberto Parra Bastos e Elizabeth Pessoa Dias, por todo o apoio
que sempre me deram.
À professora Maura Iglésias, por ter aceitado gentilmente fazer parte da minha
banca.
À minha amada Maria Adriana, por sempre estar presente em todos os momentos,
os mais alegres e os mais difíceis.
A Wellton da Silva, Lauro Augusto e Gabriela Guedes, pelo auxílio concedido nas
fases decisivas do meu trabalho.
A André Luiz e Mariana Pinheiro, sua amizade e apoio foram muito importantes
para mim durante esse período.
A André Stock, Camila Lima, João Gabriel, Luiz Eduardo e Rhamon Oliveira,
pelas discussões filosóficas e pelo companheirismo.
Palavras-chave
Keywords
1 Introdução 10
1
Introdução
1
De qualquer modo, devemos ressaltar que a palavra akrasía não aparece no Protágoras de
Platão. A ausência do termo, no entanto, não significa que o fenômeno, designado posteriormente
por esse termo, não seja discutido no diálogo pelos interlocutores. Na sequência, observaremos
apenas algumas indicações significativas sobre isso.
11
2
Segundo Irwin (2008 p. 33), existem três aspectos que podem ser associados ao Sócrates do
Protágoras: (1) a negação da concepção dominante de que o conhecimento pode ser ‘dominado’
ou ‘arrastado’ por outras forças como um ‘escravo’ (352b-c); (2) a akrasía descrita como simples
ignorância (357c-d); e (3) o paradoxo ‘ninguém age contra o que pensa ser melhor’ que implica a
negação da concepção tradicional da akrasía (358c-d).
13
3
Gosling e Taylor, no livro The Greeks on Pleasure, elaboram uma grande análise da influência
e também da rejeição de Platão às doutrinas de sua época. É fundamental a observação inicial de
seu livro (1982, p. 09): “Com a possível exceção de Demócrito, nenhum escritor grego antes de
Platão parece ter feito do prazer um tópico central de discussão”. (tradução nossa)
4
Para alguns comentadores, como Rudebusch (1999a), Gosling e Taylor (1982), o hedonismo
exposto no Protágoras não é negado no Górgias. No entanto, outros comentadores, como Irwin
(1995) e Zeyl (1980), acreditam que o Sócrates do Górgias refuta a tese hedonista apresentada no
Protágoras.
5
Devemos ressaltar que aceitamos a cronologia estabelecida por Cornford que insere o
Protágoras dentro do grupo dos primeiros diálogos denominados de ‘socráticos’: Apologia,
Críton, Cármides, Laques, Lísias, Eutifron, Hípias Menor e Maior, Protágoras, Alcibíades I,
Górgias, Eutidemo, Íon, Mênon, Fédon, Menexeno, Crátilo, República, Banquete, Fedro,
Parmênides, Teeteto, Sofista, Político, Timeu, Crítias, Filebo, Leis.
14
6
Cf. 331d-e, 333c, 334a-c, 334d-335a, 338e, 348b-c, 350c-351b.
16
tratada de uma forma exclusiva, mas deve levar em conta o método de diálogo
através do qual se expressa o filósofo, defendido abertamente durante a discussão
com o sofista (1999, p. 170-171)8. Sendo assim, Sócrates defende,
prioritariamente, o diálogo durante a discussão, isto é, o exame dos argumentos
apresentados pelos interlocutores (Ibidem, p. 168). Durante grande parte do
diálogo, o filósofo mostra que sua preocupação central é analisar os argumentos
oferecidos por Protágoras acerca do ensino e da natureza da virtude e eliminar as
inconsistências de suas posições. Nesse sentido, apesar da discussão sobre o
7
Segundo a tradição interpretativa do diálogo, é controverso se Sócrates realmente defendeu o
hedonismo apresentado ou se ele o defendeu como um argumento ad hominem, isto é, apenas para
refutar as posições defendidas por Protágoras, os sofistas ou a opinião dominante. No primeiro
grupo, denominado de ‘hedonistas’, encontramos Gosling e Taylor (1982), George Rudebusch
(1999), Martha Nussbaum (1992), Terence Irwin (1995) e Fernando Muniz (2011). No segundo
grupo, denominado de ‘anti-hedonistas’, os intérpretes se dividem quanto ao comportamento de
Sócrates em relação a seus interlocutores, se ele é irônico ou simplesmente insincero. Como
defensores dessa corrente, podemos citar Gregory Vlastos (1969), W. K. C. Guthrie (1975),
Charles Kahn (1996), Donald Zeyl (1980), Roslyn Weiss (2006) e, recentemente, o próprio Taylor
(2008) que revisou seu ponto de vista e agora critica sua posição hedonista.
Com efeito, a controvérsia é extensa entre os comentadores platônicos. Ambas as correntes
ofereceram problemas tanto para a proposta hedonista quanto para a proposta anti-hedonista.
Dentro da corrente anti-hedonista, alguns comentadores, como Kahn e Weiss, colocam em xeque
mesmo a refutação da akrasía sob a alegação de que a tese é utilizada apenas contra as crenças de
seus interlocutores e não tem validade em si mesma. Como isso parece desconsiderar a força da
refutação da akrasía no diálogo, rejeitamos fundamentalmente essa corrente interpretativa. Na
verdade, sustentamos, com Julia Annas (1999), que essas correntes interpretativas são limitadas
porque desconsideram o método explicitado por Sócrates no próprio diálogo.
8
Cf. 331c-d, 333c-d
17
prazer e a akrasía não conter uma vinculação explícita com a discussão central
sobre o ensino e a natureza da virtude derivados das teses de Protágoras, ela
efetivamente preserva uma continuidade que está implícita. A tese do hedonismo
e a refutação da akrasía, portanto, não são sustentadas diretamente pelo filósofo,
mas emergem do exame dos argumentos construído com o sofista.
Sendo assim, precisamos analisar a discussão do prazer e da akrasía
levando em conta os temas discutidos durante o diálogo, se quisermos entender o
surgimento do problema da akrasía. Assim, elucidaremos as teses de Sócrates a
partir do contexto de sua enunciação. Por outro lado, teremos que encarar o
problema da akrasía em si mesmo da forma como ele é elaborado no diálogo.
Com isso, procuraremos entender as implicações da descrição tradicional da
akrasía e a formulação alternativa do fenômeno oferecida por Sócrates. Faremos,
portanto, uma integração desses elementos em nossa investigação, como veremos
no plano de desenvolvimento da dissertação a seguir.
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evidências dentro e fora dos primeiros diálogos que parecem contestar isso. Em
um segundo estágio, a formulação tradicional da akrasía no Protágoras é uma
clara alusão de Platão às convicções da opinião dominante grega de sua época,
uma experiência que tem profundas raízes na cultura grega. Sendo assim,
verificamos se a descrição tradicional da akrasía apresentada no diálogo pode ser
associada aos supostos casos de akrasía representados pelas personagens de
Eurípides em suas tragédias. Com base nessas evidências, tentamos mostrar que o
desafio da refutação da akrasía por Sócrates deve levar em conta a influência dos
desejos não racionais.
No capítulo 3, analisamos o papel do argumento hedonista na redução ao
absurdo da descrição tradicional da akrasía. A discussão sobre o prazer e a
akrasía é motivada, inicialmente, por um exame das crenças de Protágoras e, logo
em seguida, é retomada na investigação das convicções da opinião dominante.
Delimitamos, portanto, a continuidade entre o primeiro e o segundo diálogo com
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2
O surgimento do problema da akrasía no Protágoras- A
possibilidade do ensino da virtude
2.1
O problema da akrasía no contexto do diálogo
9
No contexto do diálogo, especificamente, os interlocutores utilizam esta palavra para se referir
às qualidades morais que tornam a vida de um homem admirável (TAYLOR, 1991, p. 74-75).
10
Durante a dissertação, seguimos prioritariamente a tradução de Carlos Alberto Nunes. Em todo
caso, tivemos que recorrer frequentemente à comparação com outras traduções inglesas e até
mesmo as francesas para preservar uma coerência ao texto original grego e eliminar algumas
obscuridades da tradução em português.
21
11
Este ponto também é ressaltado por Roslyn Weiss (2006, p. 50) e por Martha Nussbaum (2009,
p. 93; p. 394).
22
parece ser o único a defender uma tese que deveria ser, nesse ínterim, defendida
por seu interlocutor? De fato, o sofista, algumas vezes, interrompe, ou se indispõe
com, os argumentos apresentados por Sócrates, obrigando o filósofo a realizar
manobras estratégicas para preservar a discussão objetiva de cada tópico por meio
do diálogo. Em duas passagens (333c; 339c), o sofista revela que sua resistência
aos argumentos a respeito da unidade entre as virtudes é marcada pela defesa de
ideias tradicionais da maioria (ZEYL, 1980, p. 266, n. 15). Como ressalta Roslyn
Weiss, o sofista apresenta uma justificação do ensino da virtude que contempla
apenas virtudes cívicas comuns como temperança (sophrosýne), a justiça
(dikaiosýne) e mesmo a piedade (hósion), deixando de lado, deliberadamente, a
‘coragem’ e a ‘sabedoria’ (sophía) do conjunto das virtudes (2006, pp. 37-38)12.
Apenas através do diálogo com Sócrates ele vai indicar que essas virtudes são
qualitativamente diferentes das outras: ‘muitos são corajosos, mas injustos e
muitos são justos, mas não sábios’ (329e). Os argumentos apresentados por
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12
Apesar de concordamos com esse aspecto da interpretação de Weiss (2006), nós não apoiamos
seu retrato das posições de Sócrates e Protágoras em relação aos argumentos apresentados.
Segundo a intérprete, Protágoras esconde por meio de seus artifícios retóricos sua incapacidade de
ensinar a virtude e Sócrates, por outro lado, reconhecendo de antemão o caráter falho do ensino
sofístico das virtudes, busca provar a inconsistência das teses de seu interlocutor. Embora
possamos evidenciar alguns problemas que podem ser derivados de uma análise da personalidade
de Protágoras, talvez seja um exagero chegar ao ponto de considerar sua fundamentação do ensino
da virtude como totalmente incoerente. A representação dos personagens por Weiss (2006, p. 24-
26) se baseia na crença de que o objetivo de Sócrates nos diálogos de Platão é refutar as posições
inconsistentes dos sofistas e outros interlocutores proeminentes. Em sua interpretação, Sócrates se
transforma em um interlocutor cujo único propósito é fazer com que seus interlocutores aceitem
suas próprias teses. Como indicaram Wolfsdorf (2006) e Waterfield (2007), em suas respectivas
resenhas ao livro, Sócrates dificilmente se distinguiria dos sofistas se, em vez de realizar um
exame das teses dos seus interlocutores, acabasse por convencê-los por meio de argumentos
erísticos. Mais adiante, buscaremos demonstrar que Sócrates, efetivamente, defende outro tipo de
posição durante o diálogo, mais próximo de um investigador de argumentos do que alguém
tentando vencer na discussão. De outro lado, acreditamos que a fundamentação do ensino das
virtudes apresentada por Protágoras é realmente levada a sério no diálogo.
23
2.2
A refutação da descrição tradicional da akrasía e a unidade entre
virtude e conhecimento
13
De acordo com Irwin (1995, p. 79-80), essa concepção das virtudes, esboçada na passagem
329d-e, corresponde à tese da Unidade das Virtudes, isto é, a postulação de que todas as virtudes
correspondem a uma única coisa. É necessário ressaltar, no entanto, que o intérprete atribui essa
tese a Sócrates, mas consegue apenas indicar uma referência que o personagem utiliza para ilustrar
não a posição do próprio filósofo mas a posição de Protágoras. De acordo com Kahn (1996, p.
221), por outro lado, não há qualquer referência explícita da defesa de tal tese por Sócrates no
Protágoras: “A unidade da virtude nunca é expressamente defendida por Sócrates no Protágoras;
ele apenas argumenta contra as asserções de pluralidade e diversidade sustentadas por Protágoras.”
(itálicos do autor, tradução nossa). Todavia, acreditamos que a tese da Unidade das virtudes está
25
implicada na conclusão da discussão entre os interlocutores, ainda que o diálogo termine em aporia
(361a-e).
26
‘bem’ (334c). Nessa discussão, o personagem havia sustentado que nem todas as
‘coisas boas’ (agathà) são ‘vantajosas para o homem’ (toîs anthropoîs ophélima –
334a). De outro lado, na discussão sobre o prazer, Sócrates leva o sofista a admitir
a identidade entre as ‘coisas boas’ e as ‘coisas prazerosas’ (hedéa – 351c). Na
realidade, como fica mais claro posteriormente no diálogo, essa posição implicará
o reconhecimento de que as ‘coisas boas’, assim como as ‘coisas prazerosas’, são
‘coisas vantajosas’ (ophélimoi – 358b). Nesse sentido, a tese sustentada aqui pelos
interlocutores é contrária àquela sustentada por Protágoras anteriormente. Através
desse argumento, Sócrates consegue mostrar ao sofista que a ‘coragem’ é
‘sabedoria’ (sophía – 360d), o que implicará, posteriormente, a tese de que virtude
é conhecimento. Se Sócrates conseguisse a admissão direta de Protágoras a essa
tese, ele concederia ao próprio sofista a possibilidade de demonstrar que a virtude
pode ser ensinada, como é reconhecido no final do diálogo (361a-b). No entanto,
não é isso que ocorre. Em vez disso, o sofista sustenta que ‘algumas coisas boas
são dolorosas’ (aniarà agathà) e ‘algumas coisas ruins são prazerosas’ (hedéa
kaká), assumindo, sem o saber, crenças relacionadas à opinião dominante grega
(351c). De fato, sua posição é contraposta à unidade entre ‘bem’ e ‘prazer’
apresentada por Sócrates. Como a tese hedonista será utilizada para demonstrar a
unidade entre ‘bem’ e ‘vantajoso’ na sequência, podemos observar que a crença
do sofista na relatividade do ‘bem’ em 334a está, efetivamente, relacionada com
27
14
Essa palavra tem conotações morais e estéticas ao mesmo tempo e caracteriza ações
consideradas louváveis e honradas pelos gregos. Deve ser contrastada com aischron que significa
vergonhoso, indigno, desonroso (TAYLOR, 1991, p.165).
15
Cf. 317a, 352e, 353a
28
partir disso, Sócrates sustenta uma tese paradoxal: ninguém pode deliberadamente
(hekón) escolher coisas más ao invés das boas (358d). Com efeito, esse argumento
é utilizado posteriormente para demonstrar a unidade entre coragem e sabedoria
(360d). A refutação da akrasía, portanto, constitui uma parte fundamental do
argumento da unidade entre virtude e conhecimento.
A controvérsia em torno da descrição tradicional da akrasía, portanto, é
derivada do problema do ensino das virtudes e, também, da unidade entre virtude
e conhecimento. Assim, acreditamos que a discussão sobre a akrasía emerge em
um ponto crucial do diálogo: no momento em que Protágoras é obrigado a encarar
a incongruência de suas teses refletidas na opinião dominante grega. De fato, pode
ser observada, através da análise das discussões empreendidas pelos interlocutores
do Protágoras, a problemática vinculação entre o sofista e as concepções
correntes da opinião dominante acerca do ensino da virtude e da natureza da
virtude. Com o propósito de compreender a emergência desses problemas,
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2.3
A necessidade do ensino da virtude para Protágoras
para lhe examinar (diéskopoun), isto é, avaliar quais são as razões que
fundamentam sua atitude. As primeiras questões acerca da matéria do ensino
sofístico não são adequadamente respondidas por Hipócrates. De outro lado, os
problemas derivados por Sócrates a partir das repostas insatisfatórias do rapaz
continuam a se refletir nas primeiras observações do sofista a respeito de sua
técnica.
Embora Hipócrates alegue que o sofista é um hábil orador (310a), isso não
é suficiente para determinar o que é a sua matéria de ensino. Como mostra
Sócrates, o ensino buscado pelo jovem no sofista não é do mesmo tipo que o do
médico ou do pintor cujo propósito é ensinar o aluno a reproduzir o conhecimento
específico de sua área de saber16. (311b-e). Com efeito, é necessário determinar
sob que matéria seu aluno deve se tornar um bom orador (312e). Provavelmente
devemos apenas preencher as lacunas da primeira classificação da matéria de
16
O personagem quer chamar atenção para o fato de que é necessário justificar à sofística o
ensino de ´techné´, isto é, uma ´técnica´ da maneira como os gregos a compreendiam. Nessa
designação, Sócrates está exigindo, de forma implícita, uma definição do ensino sofístico que
contemple um conjunto de características fundamentais dos procedimentos e objetivos de uma
técnica. Essas características são especificadas claramente por Nussbaum (2009, p. 84): 1)
universalidade, pois este conhecimento deve oferecer um corpo teórico diante do qual se deriva o
elemento universal dos casos particulares; 2) possibilidade de ensino, na medida em que o
especialista nesse saber deve ser capaz de transmiti-lo para seus pupilos; 3) precisão, uma vez que
o procedimento adequado, em qualquer ocasião, deve garantir o mesmo resultado esperado pelo
especialista; 4) preocupação com a explicação, pois o técnico tem de oferecer mostrar as razões de
cada uma de suas operações.
30
ensino do sofista. Segundo Sócrates, talvez o rapaz não queira obter do sofista um
conhecimento em função da técnica (epì téchne), para adquirir qualidades
discursivas, mas em função da educação (epì paidéia), para a formação social,
como o professor de língua grega (312b). Nessa hipótese, Sócrates considera que
o ensino do sofista não se dirige a formar outros sofistas, que seriam reconhecidos
através de sua habilidade discursiva, mas apenas a desenvolver a formação
educacional do jovem sem capacitá-lo a nenhuma técnica específica.
A sofística acaba se inserindo no grupo das áreas de sabedoria que visam à
formação educacional de um jovem para se tornar um cidadão ateniense. Mais
adiante, Protágoras admite que seu objetivo como sofista é ‘educar os homens’
(paideúein anthrópous) e ele associa seu ofício ao dos antigos poetas e sábios,
base da formação educacional ateniense (317b). A relação entre o ofício do sofista
e as técnicas ancestrais da Grécia marca a ambiguidade que a palavra ‘téchne’
apresenta nesse contexto (KAHN, 1996, p. 213)17. Com efeito, os interlocutores
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17
É importante notar aqui que tanto Sócrates quanto Protágoras admitem que o ensino sofístico
deve ser comparado ao ensino da música, poesia e ginástica. Como já indicara Nussbaum, essa
espécie de técnicas apresenta um modo de operação bem diferente das técnicas especificadas
anteriormente por Sócrates. Nesse sentido, Nussbaum (2009, p. 86) recorre à análise das técnicas
oferecida por Aristóteles: “Aristóteles argumenta que há algumas artes em que a obra ou érgon é
um produto externo às atividades dos artistas – por exemplo, a construção de casas; e outras em
que as atividades são elas mesmas fins, por exemplo, a matemática, a execução da flauta, da lira.
As divisões helenísticas das tékhnai corroboram a mesma ideia.” (itálicos da autora)
31
18
Como assinala Taylor (1991, p. 71-72), todo cidadão livre ateniense tinha o dever cívico de
participar ativamente das deliberações públicas da cidade. Nesse sentido, a concepção moderna de
‘política’, ao substituir a participação direta dos cidadãos na vida pública pela representação
indireta por meio de representantes, estabelece uma distância inequívoca do que está sendo
denominado aqui de politikèn techné. Para os gregos, a especialidade da polítiké está diretamente
ligada aos cidadãos, denominado de polítas, além de exigir qualidades intelectuais e morais para a
administração da cidade. Apesar da diferença entre o significado grego e moderno da palavra,
decidimos manter a tradução por ‘técnica política’.
32
admite que os cidadãos possam apresentar sua opinião sem que seja
exigido nenhum conhecimento específico de sua parte ou que seja
indicado seu professor (didaskálou). Dessa forma, eles “não consideram
que [essa técnica] possa ser ensinada” (oûk didákton eînai). (319b-d)
2) No que concerne à esfera privada (idía), “os mais sábios e melhores
cidadãos (hoí sophótatoi kaì áristoi)” não conseguiram transmitir a virtude
para seus próprios filhos, nem por eles mesmos, nem por meio de outros.
Dessa forma, os pais os abandonam à própria sorte: “deixando-os soltos,
como animais sagrados, pastando livremente para ver se, por acaso
(autómatoi), venham a se deparar com a virtude” (peritúxosi tê aretê –
320a)19.
A técnica deliberativa defendida por Protágoras não parece se adequar aos
costumes da própria sociedade ateniense. Além disso, as objeções de Sócrates
levam a crer que a deliberação só poderia ser uma técnica se ela fosse ensinada
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19
Como ressalta Kerferd (2003, p. 48), uma das principais objeções à educação proposta pelos
sofistas era que qualquer tipo de pessoa consegue aprender o que os sofistas tem para ensinar.
20
O sofista diz que está iniciando seu argumento (lógos) em 324d, mas sua delimitação não é
coerente com o que ele efetivamente faz no diálogo. Na realidade, o lógos inicia antes. Para
Nussbaum (2009, p. 393), Protágoras não está sendo cuidadoso com suas palavras ou a forma de
exposição de seu discurso.
33
forma persuasiva o ensino das virtudes. Assim, o discurso ressalta, com fortes
fundamentos, a necessidade do ensino das virtudes para a preservação da
sociedade humana. De outro lado, a tradição interpretativa do diálogo tem razão
em apontar falhas nos argumentos de Protágoras, principalmente na sua resposta à
segunda objeção de Sócrates. Não podemos assegurar a transmissão da virtude, se
o conhecimento depender de fatores externos ao conhecimento humano. Dessa
forma, vamos nos voltar para a análise do Grande Discurso para compreender
mais detalhadamente as teses apresentadas.
No programa do discurso, o sofista deverá mostrar como as práticas
políticas atenienses, de fato, confirmam que as virtudes podem ser ensinadas, ao
contrário do que Sócrates supõe inicialmente. A partir do mito, será possível
explicar a origem da prática de deliberação ateniense, de forma que não a torne
incompatível com a crença de que a virtude se transmite através do ensino. A
narrativa conta a história dos titãs Prometeu e Epimeteu, encarregados pelos
deuses de conceder as ‘capacidades’ (dýnameis) às diferentes espécies de criaturas
mortais (320c-d)21. A divisão inicial foi incumbida a Epimeteu que adotou uma
divisão equânime às respectivas espécies, distribuindo os recursos necessários
21
É necessário ressaltar que essas ‘capacidades’ não são ainda as técnicas humanas, mas guardam
com elas alguma similaridade. Como ressalta Nussbaum (2009, p. 393), ambas são recursos
designados a cada um dos seres para que preservem a vida de sua própria espécie.
34
para que nenhuma delas se extinguisse (321a). Embora Epimeteu tenha tomado
suas precauções, ele não percebeu que havia concedido às ‘criaturas irracionais’
(tà áloga) todas as capacidades que dispunha e deixou a espécie humana
desprovida de recursos (321b-c). Constatando o erro de Epimeteu, Prometeu furta
dos deuses Hefesto e Atena ‘a sabedoria das técnicas e o fogo’ (tèn éntechnon
sophían sùn pyrí) com o propósito de assegurar ‘a salvação (soterían) do homem’
(321c-d). No entanto, enquanto Prometeu era severamente punido pelos deuses, os
homens permaneciam sem acesso à técnica política, ficando apenas com a
‘sabedoria necessária para a vida’ (perì tón bíon sophían ánthropos – 321d).
Apesar de os homens conseguirem articular uma linguagem e poderem erguer
altares aos deuses, eles não conseguiam se proteger nem dos outros animais nem
dos conflitos entre si mesmos22 (322b-c). Ao analisar o problema, Zeus constata a
necessidade de intervir diretamente para que o ser humano não se extinga por
completo:
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“Então Zeus (...) mandou que Hermes levasse aos homens o pudor (aidô)23 e a
justiça (dikè), para que houvesse ordem dentro das cidades (póleon kósmoi) e
laços de amizade (desmoì philías) para unir os homens.” (322c)
22
A interpretação da passagem pode causar alguma confusão: devemos crer que o surgimento de
uma linguagem e de uma religião já impõe por si mesma a existência de grupos sociais
rudimentares ou que esses elementos não podem emergir sem a presença da técnica política entre
os homens? Essa controvérsia foi fomentada entre os comentadores por conta da indicação de que
os homens viviam ‘dispersos’ (skedannúmenoi – 322c). Não é diretamente necessário que o mito
tenha de relatar ‘literalmente’ o que aconteceu. Segundo Nussbaum (2009, p. 90), somente com a
necessidade de preservação das prórprias espécies esses valores se tornaram fundamentais: “essas
instituições e esses sentimentos associados moldaram tanto a vida das criaturas que as possuem
que não podemos descrever sua natureza sem mencionar sua qualidade de membros dessas
instituições e o vínculo que tem com elas” (itálicos da autora)
23
Cf. BAILLY, 1957; LIDELL; SCOTT, 1996. A palavra aidôs representa sem dúvida um
desafio de tradução. Em geral, o termo é utilizado para designar o sentimento de honra e respeito
dirigidos aos outros homens em sociedade. Todavia, as conotações semânticas dessa palavra
evocam um sentimento claramente negativo, motivado principalmente pela vergonha e pelo medo
da retaliação da sociedade. Por essas razões, preferimos a palavra ‘pudor’.
35
24
Esse tipo de leitura é sustentada por Kerferd (2003, p. 243), por exemplo, em sua defesa à
coerência do mito do sofista. Para o comentador, a concessão de aidós e diké aos homens se
efetiva após estarem vivendo na terra e, portanto, tais capacidades devem ser possuídas apenas
através do ensino. Outra interpretação literal, mais recente, assume que todo o discurso de
Protágoras é direcionado para responder às objeções de Sócrates, mas não apresenta nenhuma
consistência em seus argumentos. Segundo Weiss (2006, p. 34-37), apesar de o mito indicar que a
técnica pode ser transmitida pelo ensino, o resto do discurso vai provar que a natureza humana já é
virtuosa por si mesma. As conclusões dos autores são diametralmente opostas, mas eles
evidenciam o problema implicado em tomar o mito como uma narrativa literal.
36
25
Como afirma Taylor (1991, p. 81): “não temos nenhuma justificação para que ele faça alguma
distinção entre o sentido psicológico de não-primitivismo, e o sentido cronológico (...)” (tradução
nossa).
37
26
Cf. SAUNDERS, Trevor. “Protagoras and Plato on Punishment” in: KERFERD, G. B. The
Sophists and their Legacy. Proceedings of the Fourth International Coloquium on Ancient Greek
Philosophy at Bad Homburg 1979, Wiesbaden, 1981, pp. 129-141.
27
É mencionado que eles têm que ‘aprender de cor’ (ekmanthánein) os poemas (325e). Temos aí
uma boa ilustração do tipo de ensino que Protágoras quer elogiar, conforme ficará mais claro na
discussão sobre o poema de Simônides adiante.
38
28
De acordo com uma corrente de comentadores, o sofista não propõe nada mais do que uma
habilidade rudimentar de condicionamento social (IRWIN, 1995, p. 79; KAHN, 1996, p. 217;
WEISS, 2006, p. 35-36). Segundo esses intérpretes, a proposta de ensino adotada pelo sofista não
visa nada mais do que a adequação dos cidadãos às normas sociais consideradas virtuosas pela
comunidade. De fato, Protágoras não pode pensar que as normas sociais de qualquer cidade podem
ser mais importantes do que os princípios instituídos para a preservação da própria cidade, diké e
aidós (Cf. KERFERD, 2003, p. 229). Por outro lado, Taylor (1991, p. 83-84) sugere que a técnica
deliberativa estaria associada ao suposto relativismo subjetivista de Protágoras. De acordo com tal
teoria (se é que ela pode ser derivada do texto), não existe uma verdade ou falsidade sem
qualificação. As opiniões de cada pessoa não podem ser julgadas por sua veracidade mas apenas
pela persuasão. Sem dúvida, Protágoras ressalta o valor democrático da deliberação, contudo não é
necessário que ele aceite o subjetivismo nem mesmo que a deliberação pública, envolvendo
questões de preferências, isto é, não factuais, exija algum tipo de subjetivismo (NUSSBAUM,
2009, p. 392).
39
cidade. O espaço público deve estar aberto à revisão de leis e costumes, sempre se
tendo em mente a preservação dos valores sociais mais importantes. Segundo o
sofista, a maioria das pessoas tem sua natureza orientada para receber o ensino das
virtudes que eles adquirem pela educação formal. Todavia, o ensino dos sofistas
ultrapassa o nível comum da educação formal. Como apenas os mais ricos têm
acesso a uma educação desse nível (326b-c), Protágoras teria que explicar como é
possível que uma elite formada pelos sofistas possa coexistir com o ambiente
democrático dos assuntos políticos, no qual todos os cidadãos possuem as virtudes
necessárias para a deliberação pública.
O Grande Discurso de Protágoras apresenta sérios problemas, não apenas
com relação a sua proposta de ensino elitista, mas também, no que concerne à
natureza das virtudes. Embora essas questões não sejam diretamente tratadas por
Sócrates, elas vão ficando em evidência à medida em que o filósofo questiona os
pressupostos do sofista. Para avaliar o impacto dos problemas às teses sustentadas
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2.4
A reciprocidade das virtudes
29
O tom do personagem é claramente irônico, pois o problema assumirá grandes proporções na
discussão subsequente (WEISS, 2006, p. 38).
30
Como afirma Taylor (1991, p. 103-108), não devemos supor que Sócrates esteja falando aqui de
qualquer tipo de identidade de sentido entre os nomes das diferentes virtudes, isto é, o pressuposto
de uma sinonímia ou correspondência de significado entre elas. O personagem platônico apenas
quer chamar atenção para o fato de que todas as virtudes podem ter simplesmente a mesma
referência, ou seja, indicar uma única e mesma ‘coisa’ em vez de se referir a ‘coisas’ diferentes
(Ibidem, p. 223). Cf. KAHN, 1996, p. 221
31
Como observa Taylor (1991, p. 110), a potência não deve ser associada a uma espécie de
disposição natural, mas sim a forças motoras cuja posse possibilita a execução de ações virtuosas.
43
“Logo, não sendo suscetível a piedade (hosiótes) de ser justa, nem a justiça
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(dikaiosýne) de ser pia, porém algo que não é piedoso; como seria a piedade algo
que não é justo, mas injusto (ádikon), e a justiça ímpia (anósion)? (...) De minha
parte, pelo menos eu lhe diria que a justiça é pia e a piedade justa.” (331a)
32
Consideramos, com Weiss (2006, pp. 41-43), que o argumento da unidade entre a temperança e
a justiça inicia na passagem anterior, mas só é concluído através do paradoxo estabelecido em
345d-e.
44
barreira que separava a sabedoria das outras virtudes comuns (WEISS, 2006, p.
39-40). Para colocar em xeque as posições do sofista, Sócrates vai partir do
princípio da correspondência entre ações e virtudes: se alguma ação virtuosa foi
motivada pela própria virtude, será executada de determinada maneira; caso a
ação tenha por base uma orientação oposta (ti enantíous), a ação será realizada da
maneira contrária (332b-c); Nessa perspectiva, ações executadas em função da
sabedoria ou da temperança são ações benéficas para o homem, ou melhor, ações
corretas (orthôs) e vantajosas (ophelímos – 332a). De fato, poderíamos dizer que
ações executadas de forma contrária são derivadas de princípios contrários a essas
virtudes, isto é, de forma insensata (aphrónos) e incorreta (ou orthôs - 332b).
Logo, ações contrárias a essas virtudes são geradas a partir do mesmo oposto, isto
é, da insensatez (aphrosýne). Como os interlocutores admitem que há somente um
oposto para cada coisa (332c-d) e que a sabedoria e a temperança apresentam o
mesmo oposto, é necessário reconhecer que ambas as virtudes se referem à mesma
coisa (333a). A referência à virtude cívica necessária para a deliberação pública, a
sophrosyne, possibilita uma relação direta com a sophía que também está
vinculada a um tipo de sabedoria prática33. A partir de agora, Protágoras deve
33
O contexto do diálogo de fato não exige o sentido restritivo que a palavra adquire com o tempo,
o domínio dos apetites corporais. Para termos uma melhor compreensão dos argumentos de
Sócrates, é necessário preservamos o sentido mais abrangente (TAYLOR, 1991, p. 123). Com isso
45
‘coisas boas’ (agathá – 333e). Sendo assim, a tese resulta em um paradoxo, isto é,
vai contra a crença comum de que os injustos podem conseguir efetivamente
coisas que são vantajosas. No que se segue, o argumento é interrompido
bruscamente por Protágoras. Como observa Weiss, o argumento de Sócrates
‘chega longe o bastante para que o leitor possa discernir a direção em que ele é
orientado’ (tradução nossa, p. 40). Para provar que a injustiça é incompatível com
a temperança, o filósofo alegaria que a injustiça promove coisas desvantajosas
para os homens, isto é, coisas ruins e, dessa forma, não proporciona benefícios
como a temperança. No entanto, como observamos anteriormente, o sofista não
concorda com a correspondência entre ‘bem’ e ‘vantajoso para os homens’,
elaborando um longo discurso acerca da relatividade das coisas consideradas boas
(334a-c). Após uma longa controvérsia a respeito de quais seriam os melhores
termos para retomar o diálogo, Protágoras exorta Sócrates a fazer a análise de uma
contradição no poema de Simônides.
Com efeito, a discussão sobre o poema oferece uma boa oportunidade para
que Sócrates retome o argumento interrompido. Enquanto Protágoras apresenta
uma contradição nos versos de Simônides, sobre a dificuldade de ‘tornar-se bom’
(génesthai agathòn), todavia não em ‘ser’ bom (emménai esthlòn), Sócrates alega
podemos associá-la, com mais plausibilidade, à virtude da sabedoria e sua relação aproximada com
um tipo de sabedoria prática (Ibidem, p. 122).
46
Sócrates, Simônides e a maioria dos homens sábios estão de acordo com a ideia
de que a ação má não pode ser escolhida deliberadamente, mas deve ser derivada
da ‘ignorância’ (amathía): “nenhum dos sábios (tón sophôn andrôn) é de opinião
que pode haver homem capaz de errar (examartánein) ou de praticar
deliberadamente (hekónta) qualquer ato mau ou vergonhoso (aischrá te kaì kakà)”
(345d-e). Nesse sentido, os homens sábios (inclusive Simônides) acreditam que
nem os maus nem os bons são capazes de deliberar livremente a favor de seu
próprio mal. Dessa forma, a afirmação não supõe que um ato pode ser feito
involuntariamente, de forma não deliberada, mas que um ato apenas pode ser
realizado de duas maneiras: de bom grado (hekón), com pleno consentimento do
agente, ou de mau grado (ákon), sob coação de fatores exteriores35. De acordo
com essa asserção, se um agente tiver clara consciência de que suas ações más não
resultarão nos benefícios realmente desejados, ele não irá realizá-las. Sendo assim,
os sábios não poderiam nunca, a partir de sua própria sabedoria e de forma
deliberada, cometer atos injustos quando, ao mesmo tempo, estão cientes que uma
alternativa melhor está disponível à sua escolha. Portanto, não pode haver sábios
que são injustos como Protágoras alegara anteriormente. Como ressalta Weiss
(2006, p. 43), Sócrates pode, enfim, terminar o argumento anterior: os injustos
34
Cf. TAYLOR, 1991, p. 145
35
Cf. TAYLOR, 1991, p. 146; WEISS, 2006, p. 43
47
não podem ser sábios e os sábios só podem ser justos. Portanto, a justiça só pode
ser sabedoria. A partir desse argumento, os interlocutores podem conceder com
mais evidência que quatro das virtudes mencionadas, a ‘piedade’, a ‘justiça’, a
‘temperança’ e a ‘sabedoria’ se correspondem por alguma semelhança e todas elas
se assemelham por conta da sabedoria. Aos olhos de Protágoras, isso seria o
mesmo que assimilar a sabedoria às virtudes tradicionais da maioria. No entanto,
o sofista ainda pode sustentar que a coragem deve ser distinta das demais virtudes.
Após Sócrates interromper a análise de poemas que, por ventura, havia
sido levada a cabo com Protágoras, os interlocutores concordam em retomar a
discussão sobre a relação entre as diferentes virtudes por meio do diálogo (348c-
349d). Neste momento, Protágoras sustenta que é possível ter a coragem, não
sendo necessária a existência de outras virtudes: “muitos indivíduos são injustos
em alto grau, ou por demais ímpios, ou intemperantes em excesso, ou
supinamente ignorantes, porém distintamente corajosos” (andreitótatous
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36
Devo a formulação da estrutura do argumento à Taylor (1991, p. 150) e Weiss (2006, p. 44).
48
constrói um argumento analógico àquele utilizado por Sócrates para mostrar que
as premissas não o comprometem com a afirmação de que ‘coragem é sabedoria’.
Segundo o sofista, é possível chegar a uma conclusão similar por outro caminho:
se fosse dito que os fortes (ischuroì) são capazes (dynatoì) e se alguém é mais
capaz de lutar se tem conhecimento da técnica de combate, então o saber é a força
(ischùs – 350d-e). Deixando de lado a controvérsia sobre a plausibilidade da
objeção do sofista ao argumento anterior37, podemos conceber melhor o que ele
tem em mente a partir do próprio argumento analógico utilizado para explicitar
sua posição. Com efeito, a capacidade (dýnamis) corresponde à audácia (e, por
implicação, à sabedoria), assim como a força corresponde à coragem. Do mesmo
modo que a força deriva da boa condição do corpo humano, a coragem também
necessita de uma boa natureza para se manifestar da forma apropriada. Dessa
forma, o sofista sustenta que a coragem não depende de conhecimento (351b).
37
Os intérpretes divergem sobre a plausibilidade da ‘falha’ encontrada nos argumentos de
Sócrates pelo sofista. Segundo Taylor (1991, p. 159), o argumento de Sócrates apenas mostra que
o conhecimento é necessário, mas não suficiente para que alguém possa ser considerado corajoso.
De outro lado, Weiss (2006, p. 45-46) acredita que Protágoras não reproduz fielmente o argumento
de Sócrates, mas apenas parte do argumento para indicar a falha mencionada. Provavelmente,
podemos conceder que o sofista não quer reproduzir o argumento fidedignamente mas reproduz
apenas a parte em que ele identifica uma falha (TAYLOR, 1991, p. 158). Além disso, acreditamos
que a divergência de Protágoras é influenciada por sua própria concepção de virtude. A objeção de
Protágoras também parece indicar, como fica claro no próximo argumento a respeito da coragem
(359c), que o conhecimento técnico não é um critério apropriado para determinar a natureza da
coragem.
49
Como mostramos anteriormente, esta tese reforça a concepção não cognitiva das
virtudes implícita nas posições anteriores do sofista (327c), o que faz com que
Sócrates evidencie a incompatibilidade entre as teses de seu interlocutor através
da discussão acerca do prazer e da crença da opinião dominante no fenômeno da
akrasía. Com efeito, a referência do filósofo à crença da maioria no fenômeno é
utilizada para explicitar as inconsistências das teses do sofista acerca da natureza
não cognitiva da virtude. Com base na refutação da descrição tradicional da
akrasía, Sócrates conseguirá eliminar, definitivamente, essa crença do sofista,
retomando então o argumento da unidade entre coragem e sabedoria. Sendo
assim, devemos restabelecer brevemente as conclusões da discussão sobre o
prazer e a akrasía a fim de esclarecer de que maneira o filósofo demonstra a
unidade entre a coragem e sabedoria.
Durante a discussão sobre o prazer e a akrasía, observamos que Sócrates
fez uma análise das crenças da opinião dominante para testar as teses assumidas
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observamos, Sócrates pode fazer com que o sofista reconheça a íntima relação
existente entre ‘prazer’, ‘nobre’ e ‘bem’.
Com esse passo garantido, Sócrates pode retomar o argumento da coragem
e convencer Protágoras a assumir a unidade entre coragem e sabedoria. Nesse
sentido, uma diferença considerável é marcada em relação ao argumento anterior.
Segundo Weiss (2006, p. 64-65), o argumento anterior supunha que era necessário
conhecimento técnico específico para se obter a coragem, enquanto este novo
argumento supõe que seja apenas necessário o conhecimento do bem e do mal. De
fato, isso parece indicar que a concepção de conhecimento técnico sustentada
anteriormente não era apropriada para explicar a natureza da coragem. Como
sustenta Taylor, a utilização de uma concepção diferente de conhecimento prova
que a sabedoria técnica não possibilita a posse da virtude da coragem, ao passo
que o conhecimento do bem e do mal é compatível com sua natureza. A partir
disso, os interlocutores reconhecem que não é mais possível dizer que os
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2.5
Considerações finais da integração entre a discussão do hedonismo
e da akrasía e a tese do ensino das virtudes
a alegação de que o ensino das virtudes é universal não comporta a ideia de que
apenas um grupo de pessoas pode efetivamente adquiri-las. A desvinculação
explícita entre Protágoras e a opinião dominante serve para manifestar as
contradições inerentes às suas próprias afirmações. A investigação conjunta da
opinião dominante grega permite compreender, portanto, os desdobramentos e as
implicações daqueles que defendem a tese de que o conhecimento não é suficiente
para a ação virtuosa. Tanto a análise da posição da opinião dominante a respeito
do prazer quanto a investigação de sua crença na akrasía, portanto, estão
profundamente conectada.
52
3
A descrição tradicional da akrasía
38
Por ‘desejos não racionais’ estou designando todo aquele grupo de desejos que é contrário ao
desejo racional pelo que é melhor, ou seja, pela ‘felicidade’ (eudaimonia). Todavia, precisamos
ressaltar que a expressão é vaga e imprecisa uma vez que a nomenclatura é retirada, na realidade,
da discussão entre os comentadores de Platão e não a encontramos efetivamente nos Diálogos.
Mais adiante, tentaremos esclarecer melhor essa distinção a partir da controvérsia acerca da
corrente de comentadores platônicos que sustentam a teoria do ‘intelectualismo motivacional’.
Como sustentaremos posteriormente, não acreditamos que exista qualquer evidência que de que o
Sócrates dos primeiros diálogos (em que incluímos aqui o Protágoras) efetivamente não
reconheça a influência dos desejos não racionais sobre a ação humana.
54
3.1
A etimologia da palavra akrasía
39
Cf. VERNANT, J-P. “Esboços da Vontade na Tragédia Grega” in: Mito e Tragédia na Grécia
Antiga. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 25-52.
40
No contexto contemporâneo, a ‘procrastinação’ pode ser reconhecida como um tipo de acrasia.
Na filosofia grega clássica ou nas tragédias, não há nenhuma preocupação explícita com esse tipo
de caso.
55
3.2
A akrasía segundo a opinião dominante (hoi polloí) no Protágoras
(352d-e): Sócrates quer negar a influência dos desejos não
racionais?
41
Cf. LIDDEL;SCOTT, 1996. Béltion é o adjetivo comparativo de agathós enquanto béltista é a
sua forma superlativa. Na passagem 355b, Sócrates se refere a um homem em akrasía que sabe as
coisas más (kaká) que está prestes a executar. Para manter alguma consistência em nossa
explicação vou me referir ao adjetivo comparativo kákion em oposição ao adjetivo béltion, da
mesma maneira que kakós está em oposição a agathós.
57
tradicional teríamos de admitir que uma pessoa sob o efeito deste fenômeno tem o
poder de fazer o que considera ser melhor e, ao mesmo tempo, age contra o que
pensa por influência dos impulsos mencionados. Ora, como o agente sob akrasía
delibera em função do que é melhor e, ao mesmo tempo, é levado a fazer o que é
pior no momento de agir? Será que ele realmente tem responsabilidade sobre sua
ação ou seria melhor dizer que ele não teve domínio real sobre o que fez?
Definitivamente, a descrição tradicional do fenômeno da akrasía apresenta alguns
problemas e necessita de maiores esclarecimentos. Sendo assim, uma explicação
alternativa para o fenômeno se faz necessária. Como podemos ver, Sócrates
reconhece que a formulação tradicional da akrasía é inadequada, tendo-se em
conta sua crença na superioridade do conhecimento.
Durante toda a passagem 352e-358d, Sócrates fará uma extensa análise da
concepção dominante sobre o fenômeno da akrasía. Na realidade, a análise
42
Cf. TAYLOR, 1991, p. 203. Com efeito, devemos lembrar que considerações morais foram
temporariamente excluídas da discussão entre os interlocutores desde o início da investigação
acerca do prazer. Apenas em 359e-360a, as considerações morais serão retomadas no último
argumento da unidade entre sabedoria e coragem.
43
Cf. LIDDEL;SCOTT, 1990. A maioria das traduções aqui consultadas propõe a palavra ‘amor’
como tradução para o termo grego ‘érota’. Acreditamos que a tradução por amor pode incorrer em
equívocos e optamos por uma tradução que corresponda melhor ao que os gregos designavam por
‘éros’. Érota se aproxima de ‘paixão’ ou ‘desejo sexual’ e implica desejos relativos ao ‘sexo’
(estreitamente ligado a ‘aphrodisíon’ em 353c). A sugestão de Taylor (1991) por ‘luxúria’ é mais
próxima do que o que está sendo designado pela palavra ‘érota’.
58
coisa que o bem, a dor a mesma coisa que o mal, assim como a deliberação
humana é orientada pelo prazer e repele o que é doloroso (354c-e). Nessa
perspectiva, Sócrates nos leva a aceitar que a ‘ignorância’ chamada de akrasía
nada mais é que o erro na escolha dos prazeres que são maiores, isto é, a falta de
conhecimento acerca das verdadeiras dimensões das ações e das coisas que
escolhemos. A partir dessas premissas, o filósofo deriva uma tese paradoxal que
parece estabelecer uma negação do fenômeno da akrasía. Com efeito, Sócrates
sustenta a seguinte afirmação com base na natureza humana (en athrópou phýsei):
fazer mais do que negar que o conhecimento possa ser submetido a algum
impulso ao prazer. As palavras do filósofo deixam claro que sua intenção é fazer
uma afirmação mais forte: negar que até mesmo a crença possa ser dominada
pelos impulsos. Assim, a passagem estabelece que ninguém se inclina
intencionalmente para as coisas ruins, por mais que ‘saiba’ (eîdòs) que as coisas
que fará são realmente ruins, isto é, tenha conhecimento, ou ainda meramente
‘considere’ (oíetai) que essas coisas sejam ruins. Com isso, podemos perceber que
Sócrates não apenas discorda da descrição tradicional da akrasía como submissão
de o conhecimento, mas também acredita que é necessário eliminar a
possibilidade do agente ter sua crença subjugada pelos impulsos (TAYLOR, 1991,
44
Há efetivamente outra formulação do paradoxo durante a discussão sobre o poema de
Simônides (345d-e), mas é importante ressaltar que a formulação da passagem 358c-d é uma
conclusão do exame direto das posições de Protágoras através da análise das crenças da opinião
dominante. Conforme esclarece Kahn (1996, p. 247-248), o paradoxo aparece nos diálogos de
Platão em duas formas diferentes, em uma formulação prudencial e em uma formulação moral. Na
primeira formulação, temos o paradoxo de que ninguém faz o que é mau de bom grado, isto é, agir
contra o que é bom não é do próprio interesse. Na segunda formulação, o paradoxo estabelece que
ninguém faz o que é injusto de bom grado. Segundo o autor (Ibidem, p. 247), a segunda
formulação pode ser derivada da primeira se acrescentarmos a premissa socrática S: ‘Nunca é do
próprio interesse agir injustamente (adikein)’ (tradução nossa). Nos diálogos, é frequente que um
dos interlocutores de Sócrates rejeite a proposição moral e leve o filósofo a recorrer a proposição
prudencial para demonstrar a consistência da primeira proposição. No Protágoras, identificamos
essa estratégia, particularmente, uma vez que a formulação prudencial em 358c-d sustenta a
identificação entre ‘bem’ (agathon), ‘prazer’ (hedone) e ‘nobre (kalon), o que implica na
formulação moral.
60
45
Como foi bem salientado em conversa particular pelo professor Fernando Muniz, a perspectiva
temporal sugerida por Penner para esclarecer os variados tipos de akrasía está fundamentalmente
amparada na distinção temporal dos prazeres de Sócrates no Protágoras de Platão (353c-354e).
61
que a crença não pode ser submetida pelos impulsos seria algo bem mais forte. Na
passagem 358c-d, parece que Sócrates está inferindo não somente que crença e
conhecimento não podem ser submetidos pelos impulsos, mas também que crença
e conhecimento tem o mesmo poder em relação aos desejos não racionais. Para
contornar esta dificuldade, alguns intérpretes elaboraram duas propostas diferentes
para compreender a afirmação de Sócrates. Através da primeira proposta,
intérpretes como Charles Kahn (1996, p. 228-243) e Roslyn Weiss (2006, p. 60-
61) sugeriram que a tese paradoxal apenas é válida enquanto dirigida contra os
interlocutores de Sócrates, isto é, de forma ad hominem. Os defensores dessa
posição admitem que Sócrates não está disposto a assumir a tese paradoxal em
própria pessoa, o que acreditamos ser totalmente contrário aos princípios do
diálogo defendidos pelo filósofo46. Com efeito, acreditamos que Sócrates não
pode se comprometer em sustentar crenças insinceras durante uma discussão com
seus interlocutores. Por outro lado, outro grupo de intérpretes, embora reconheça
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que o paradoxo é uma tese do próprio personagem, julga que é necessário fazer
uma emenda no texto para que a afirmação tenha consistência com relação às
teses sustentadas por Sócrates nos primeiros diálogos de Platão. Nessa
perspectiva, Vlastos (1969, p. 72) sustenta que o paradoxo da impossibilidade de
agir contra a própria crença deve ser interpretado com a inclusão de um elemento
condicional: ‘quando nós temos conhecimento’. Apesar de a proposta preservar a
preocupação de Sócrates em reforçar o poder do conhecimento, a condição
inserida no texto parece não condizer com o que efetivamente é afirmado. Em
outra proposta, Taylor (1991, p. 200; p. 202-203) indica que a referência à
‘crença’, na passagem, deve ser associada à ‘crença verdadeira’. De acordo com o
intérprete, Platão ainda não teria chegado a delimitar uma diferença explícita entre
conhecimento e crença verdadeira no Protágoras. Por essa proposta, deveríamos
compreender que a crença verdadeira pode, por vezes, prevalecer sobre os
impulsos, embora não com a mesma regularidade que o conhecimento
46
Os intérpretes anti-hedonistas sugerem que Sócrates não defende os argumentos hedonistas e as
conclusões derivadas desses argumentos, como a refutação da descrição tradicional da akrasía.
Esta corrente pressupõe ora que Sócrates esteja sendo insincero ora que ele esteja apenas
comprometido em refutar as crenças de seus interlocutores para demonstrar suas próprias teses. Ao
adotar esse ponto vista, a corrente avalia a consistência dos argumentos de Sócrates apenas
enquanto dirigidos contra seus interlocutores e não em si mesmos. De fato, acreditamos que essa
posição não é coerente com o método de diálogo defendido pelo filósofo. Na introdução,
esboçamos essa hipótese em linhas gerais e pretendemos elaborar melhor nossa proposta
interpretativa com base em indicações do próprio texto no próximo capítulo.
62
47
Com efeito, Penner (1997, p. 133-134) dirige duras críticas à posição de Taylor. Em geral, suas
críticas podem ser resumidas em dois pontos principais: (1) para interpretar 356c, Taylor assume
que não há qualquer diferença entre crença verdadeira e conhecimento, mas concede também que
o conhecimento é melhor que a crença na medida em que garante juízos corretos regularmente.
Devemos notar que a inserção do critério da regularidade aqui é uma estratégia do comentador
para explicar porque Sócrates fala de conhecimento nessa passagem e não de crença verdadeira; e
(2) as outras indicações que talvez pudessem comprovar a confiança do filósofo na regularidade
são tiradas de interpretações equivocadas do texto. Sendo assim, acreditamos que não temos
nenhum motivo para aceitar a hipótese de que a crença verdadeira seja tão valorosa quanto o
conhecimento.
63
48
Dentre os autores analisados em nossa investigação, Kahn (1996, cap. 2) é o único que coloca
em xeque a classificação dos primeiros diálogos de Platão e a suposição de que esses diálogos
constituem uma unidade filosófica distinta do pensamento do filósofo. No entanto, Brickhouse e
Smith (2010, cap. 1) oferecem uma defesa persuasiva da unidade filosófica dos diálogos socráticos
de Platão.
49
Seguimos a distinção sugerida por Brickhouse e Smith, mas devemos reconhecer que a
distinção é artificial já que os próprios intérpretes designados de ‘intelectualistas’ não diferenciam
tão claramente tais pressupostos. Como nosso interesse está voltado para a análise do pressuposto
motivacional, tivemos de encontrar a partir dos textos dos autores indicações mais claras de seu
alinhamento a tal posição.
64
suas crenças. Em linhas gerais, podemos dizer que as bases da corrente ortodoxa
denominada ‘intelectualismo motivacional’ podem ser reconhecidas nas palavras
de Penner51. Embora a maioria dos intérpretes assuma que Sócrates reconhece a
orientação dos desejos racionais para o que é melhor (a eudaimonia), isso não
implica, necessariamente, que ele chegaria ao ponto de negar a influência de
desejos não racionais na deliberação. Recentemente, alguns intérpretes indicaram
que Sócrates, efetivamente, testemunha e reconhece o poder dos desejos não
racionais nos primeiros diálogos.
Nos diálogos da fase da juventude de Platão, comentadores chamaram a
atenção para um conjunto de passagens que estabelecem uma distinção entre os
diferentes desejos humanos (KAHN, 1996, p. 232; WEISS, 2007, p. 96-100;
50
No artigo de Penner (1997, p. 129) acerca da força do conhecimento no Protágoras citado
anteriormente, o autor volta a mostrar que está comprometido com esta teoria.
51
Ver nota 38 acerca dos desejos não racionais. Os intérpretes calcados nos pressupostos
intelectualistas sustentam duas maneiras distintas pela qual o personagem Sócrates acredita que os
desejos não racionais podem ser reduzidos aos racionais: (1) alguns defendem uma tese forte de
que a personagem simplesmente nega a existência dos desejos não racionais. Nesse caso, tais
intérpretes se vêem no embaraço de ter de explicar o que leva Sócrates a se referir explicitamente
aos efeitos de desejos tipicamente não racionais; (2) outros, tendo consciência dos problemas
envolvidos na sustentação da tese forte, optam por conceder que Sócrates reconheça os desejos não
racionais, mas não considera que estes desejos possam influenciar a conduta de um homem. Em
todo caso, ambas as vertentes apontam para a mesma conclusão: Sócrates acredita que a existência
dos desejos racionais é suficiente para explicar a ação humana e, dessa forma, devemos esse tipo
de desejos servem para explicar mesmo os fenômenos aparentemente irracionais como a akrasía.
65
52
Em 337a-c, o personagem Pródico chama atenção para duas formas diferentes de se obter
prazer: em 337a-c, o sofista distingue entre a satisfação (euphraínestai) por aprendizado e pela
troca de sabedoria e o deleite (hédesthai) obtido por meio dos prazeres corporais.
66
53
Cf. Introdução.
67
mostrar que uma investigação minuciosa dessas referências poderá reforçar nossas
críticas acerca da posição do ‘intelectualismo motivacional’. Ao contrário do
‘intelectualismo socrático’, evidenciaremos que as críticas de Aristóteles dirigidas
às teses de ‘Sócrates’, sobre a virtude, não podem validar uma suposta
desconsideração da influência dos desejos não racionais pelo filósofo.
Em geral, algumas críticas de Aristóteles a ‘Sócrates’ em Ética a Eudemo,
Ética a Nicômaco e, mesmo na obra de autoria disputada, Magna Moralia são
usadas para mostrar que mesmo o próprio Aristóteles julgava que Sócrates não
acreditava na existência de desejos não racionais54. Com efeito, é provável que
Aristóteles esteja se referindo às doutrinas que o Sócrates histórico defendia.
Como nos faltam evidências seguras a respeito do que esta figura obscura
realmente defendia, teremos de nos reportar às teses defendidas pelo personagem
Sócrates dos primeiros diálogos platônicos por falta de uma fonte mais apropriada
(IRWIN, 2008, p. 24-25)55. Para avaliarmos se Aristóteles realmente se refere a
54
Em Plato’s Ethics, Irwin (1995, p. 75-76) revela sua confiança sobre o testemunho de
Aristóteles (ou, particularmente, em sua interpretação da posição do filósofo) para caracterizar
Sócrates como um ‘intelectualista’ que nega a existência dos desejos não racionais sobre a ação
humana. Para o comentador (Ibidem, p. 75), o personagem Sócrates dos primeiros diálogos
claramente corrobora esse ‘intelectualismo’: “Se Sócrates não acredita que haja quaisquer desejos
não racionais, então ele não pode reconhecer o desejo não racional como uma fonte de erro que
impede o uso correto do conhecimento.” (tradução nossa)
55
Segundo Irwin (2008, p. 25), as outras fontes que temos para reconstruir as ideias do Sócrates
histórico são pouco elaboradas para serem consideradas confiáveis: “nós não temos nada além dos
68
alguma negação da existência de desejos não racionais por Sócrates, vamos nos
referir a duas críticas realizadas por ele: (1) Na Ética a Eudemo, Aristóteles se
refere a alguns pensadores (incluindo provavelmente Sócrates) que sustentavam a
tese de que o autocontrole (enkrateia) é a mesma coisa que a virtude (areté). Esses
pensadores consideram que ter a ‘razão’ correta é condição suficiente para ser
virtuoso (1127b); e (2) Em Magna Moralia, o filósofo acusa Sócrates,
explicitamente, de defender que a virtude é constituída por ciência (epistéme) e
desconsiderar o papel da parte irracional da alma na constituição do caráter (êthos
– 1182a). No primeiro caso, poderíamos considerar que os pensadores em questão
acreditam que o conhecimento é suficiente para a ação virtuosa porque
provavelmente negam a existência dos desejos não racionais e o papel exercido
por eles na constituição do caráter. No entanto, para Aristóteles o ‘autocontrole’
(enkrateía) é uma condição contrária à akrasía. Enquanto o homem de
autocontrole é aquele que resiste a fortes desejos não racionais contrários à
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deliberação para realizar a ação correta, o homem que sofre de akrasía também
delibera sobre o que é melhor a se fazer, mas cede a seus fortes impulsos
contrários à sua deliberação. Em ambos os casos, o papel desempenhado pelos
desejos não racionais é fundamental para determinar cada uma das formas de
caráter. Nessa perspectiva, não encontramos a tal ‘evidência’ que comprovaria a
concordância de Aristóteles com a representação de um Sócrates ‘intelectualista’
(DEVEREUX, 1995, p. 383-384). Em Magna Moralia, no entanto, encontramos
uma posição muito mais incisiva a respeito da posição defendida pela corrente
intelectualista. Efetivamente, Aristóteles esclarece sua oposição às teses de
‘Sócrates’:
“Pois ele [Sócrates] fez das virtudes ciências (epistémas), mas isso é impossível.
(...) Então, de acordo com ele, todas as virtudes surgem na parte racional
(logistikôi) da alma. Ao fazer das virtudes ciências ele abandona a parte irracional
(tò álogon méros) da alma, e assim abandona tanto a paixão (páthos) quanto o
caráter (êthos). Claramente, esta não é a maneira correta de tratar das virtudes.”
(1182a15-20)56
diálogos socráticos de Platão para verificar as afirmações de Aristóteles sobre Sócrates, e nós
temos de confiar no testemunho de Aristóteles se nós fomos acreditar que esses diálogos nos falam
sobre o Sócrates histórico. (...) Se nós acreditarmos que Aristóteles está certo ao supor que alguns
dos diálogos platônicos nos falam sobre Sócrates, nós estamos certos em acreditar no que ele fala
sobre Sócrates; pois o que ele nos diz se ajusta aos diálogos platônicos relevantes.” (tradução
nossa)
56
Por falta de uma tradução em português da obra, tivemos de recorrer a uma tradução
comparativa a partir da tradução inglesa da Loeb (1935) em confronto com o texto original grego.
69
3.3
As raízes da crença da opinião dominante sobre o fenômeno da
akrasía
57
É importante notar que essa relação de oposição entre o Sócrates platônico do Protágoras e as
personagens trágicas de Eurípides já foi corroborada também por Muniz (2011, p. 46).
58
Conforme sustenta Kahn (1996, p. 232): “um grande dramaturgo como Platão estava tão
agudamente consciente do papel exercido pelo forte sentimento e temperamento nas vidas dos
seres humanos ordinários quanto Eurípides estava.” (tradução nossa). No entanto, justamente por
reconhecer que Platão reconhece a influência dos desejos não racionais na maioria dos diálogos,
ele não assume que a refutação da akrasía seja uma tese defendida em própria pessoa por Sócrates.
De fato, Kahn (Ibidem, p.232) acredita que “o autor do Protágoras não endossa por si mesmo o
racionalismo onipotente da passagem em questão” (tradução nossa). Na sequência, sustentaremos
que a tese da refutação da akrasía não significa uma negação do poder dos desejos não racionais.
Em nossa hipótese, portanto, as teses de Sócrates não sustentam a ‘onipotência’ da razão humana
frente aos impulsos, como supõe o intérprete.
71
59
A ate não é uma força que provém do próprio agente mas algo que vem ‘de fora’ da sua
deliberação e que o força a realizar uma ação que não condiz com seu caráter habitual, algo
extraordinário para sua condição. Segundo Dodds (1956, p. 5): “Sempre, ou quase sempre, ate é
um estado mental – um obscurecimento temporário ou confusão do estado normal de consciência.
Trata-se, de fato, de uma insanidade parcial ou temporária; e, como toda insanidade, é atribuída,
não a causas fisiológicas ou psicológicas, mas a uma atividade ‘daimônica’ externa” (tradução
nossa). Nessa perspectiva, os personagens homéricos se referem a ate quando reconhecem que
suas ações não podem ser atribuídas a causas diretamente perceptíveis. Eles julgam que são
orientadas pela interferência de uma divindade (daímon) ou qualquer tipo de potência sobrenatural.
72
psicológico caracterizado pela akrasía, já que não dispomos nem mesmo de uma
distinção mais precisa entre desejo racional e desejos não racionais60.
De acordo com Dodds, observamos uma mudança significativa da cultura
homérica do século VIII para a cultura da Grécia clássica envolvida pela tragédia
do século V: ocorre uma passagem progressiva da ‘cultura da vergonha’ para uma
‘cultura da culpa’61. Enquanto a ‘cultura da vergonha’ representava a interferência
divina como uma força externa exortando os personagens a controlarem sua
impulsividade e agirem em conformidade com os valores morais, a cultura arcaica
dá lugar a uma representação mais severa das divindades associando-as às forças
punitivas. Conforme defende Dodds (1956, p. 35), “o ‘Olimpianismo moralizado’
tendeu a tornar-se uma religião do medo, em uma tendência que se refletiu sobre o
vocabulário religioso” (tradução nossa). Dessa maneira, podemos constatar que há
uma alteração semântica na palavra áte na medida em que ela serve para designar,
no novo contexto, uma interferência divina cujo propósito específico é forçar os
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60
De acordo com Irwin (1986, p. 182-187), Homero não tinha uma visão estritamente cognitiva
da deliberação humana mas reconhecia uma visão ‘indiferenciada’ (cognitiva e emocional) da ação
humana. A partir disso, o comentador confere duras críticas a Dodds que sustenta uma concepção
cognitivista do mundo homérico (1956, p 16-17, p. 184). Com efeito, Irwin constata que Dodds
apresenta argumentos contraditórios a respeito da tradição grega.
61
Cf. DODDS, 1956, cap. 2
73
escolha. Todavia, não podemos dizer que esses personagens realizam deliberações
inteiramente corretas sobre o que é melhor para eles mesmos. Por mais que esses
agentes sejam responsáveis por seus atos equivocados, sem dúvida os ‘erros’
resultam da desconsideração de certos fatores ou de algum equívoco que
compromete o sucesso de suas deliberações (DODDS, 1956, p. 39). Desse modo,
considerando que os personagens realizam deliberações sem total consciência do
que é melhor para si mesmos nas suas escolhas, não podemos reconhecer
claramente casos de akrasía nas tragédias de Ésquilo e Sófocles62. Embora
motivações irracionais sejam mencionadas pelos personagens das tragédias em
situações de conflito, a ausência de deliberações estritamente corretas a respeito
do que é melhor a se fazer não permite que tomemos esses casos como casos de
akrasía. Nessa perspectiva, por conta do contexto aproximado que envolve o
Protágoras de Platão, a Medéia e o Hipólito de Eurípides, talvez possamos
encontrar nas obras do tragediógrafo formulações mais precisas do fenômeno
designado por akrasía.
Na sequência, tentaremos demonstrar que as peças de Eurípides
testemunham o poder do conflito entre deliberação e desejos não racionais em
formulações que são correspondentes à descrição da akrasía da ‘opinião
62
Cf. IRWIN, 1989, p. 188-189.
74
63
Cf. Charles Kahn (1996, p. 71- 100) Segundo o intérprete, não temos indicações absolutamente
claras do que o Sócrates histórico realmente tenha defendido durante sua vida. Embora os diálogos
platônicos realmente possam dar algumas pistas acerca da influência do mestre sobre Platão,
nenhuma delas é definitivamente conclusiva. Para Kahn (Ibidem, p. 88), no entanto, a obra
Apologia pode ser considerada ‘quase-documental’.
64
Cf. nota anterior. Embora rejeitemos a pretensão de que seria possível reconstruir a filosofia do
Sócrates histórico conforme acredita Dodds, é plausível supor que a descrença das personagens de
Eurípides no conhecimento humano devem ter sido particularmente controversas para o público
que tinha consciência da confiança dos sofistas no ensino da virtude.
75
tenho refletido, na duração arrastada da noite, sobre aquilo que destrói a vida dos
mortais. E o que me parece é que não é devido à natureza de sua compreensão (ou
katà gnómes phýsin) que praticam o mal; muitos pensam muitíssimo bem (ésti
gàr tó g’eû phroneîn polloîsin). Mas devemos considerar o seguinte: nós
conhecemos e compreendemos o que é bom (tà chrést’ epistámestha kaì
gignòskomen), só que não o pomos em prática; uns, por inércia (argías); outros,
porque põem à frente do que é nobre outra coisa, um prazer qualquer (hoi
d’hedonèn prothéntes antì toû kaloû állen tin’). (375-380)
É importante notar que neste momento Fedra não elabora uma reflexão
apenas sobre si mesma, mas generaliza o fenômeno descrito para a humanidade.
De fato, a generalidade com que Fedra trata o conflito entre a deliberação e a ação
se aproxima muito dos termos com que Sócrates se refere à concepção da opinião
dominante sobre a akrasía no Protágoras. Para verificarmos as correspondências,
observemos com cuidado alguns aspectos: (1) a destruição dos homens não se
deve à natureza do que acreditam. Ao contrário de Fedra, podemos plausivelmente
alegar que os graves erros cometidos comumente pelas pessoas se devem à
65
A tradução é de Frederico Lourenço. Algumas modificações tiveram de ser realizadas na
tradução para tornar mais clara a correspondência de alguns termos dessa passagem e a descrição
da akrasía da opinião dominante no Protágoras. Para realizar as modificações, confrontei a
tradução portuguesa com a tradução de David Kovacs.
77
resistir ao impulso sexual. De fato, devemos ter em mente que o ‘desejo sexual’
(éros) é uma manifestação divina do poder de Afrodite como revela a própria
deusa na cena de abertura (25-50). A personagem Ama reforça o poder da deusa
sobre os homens: “É impossível resistir a Cípris quando jorra num grande caudal”
(444). Devemos reconhecer que tanto Afrodite quanto Ártemis em Hipólito são
forças da natureza que controlam o destino dos personagens no contexto da
tragédia (KITTO, 1990, p. 35-36, DODDS, 1973, p. 87). Numa situação como
essa, esperaríamos que Fedra não conseguisse resistir ao poder da paixão sexual e
acabasse dizendo a Hipólito o que está sentindo, por mais que isso arruíne sua
vida. Em tal perspectiva, poderíamos concordar com Irwin (1983, p. 191) e
reconhecer Fedra como uma mulher sob akrasía, agindo contra o que considera
ser melhor por causa do desejo sexual. No entanto, não é isso que ocorre. Logo
após o início do discurso citado anteriormente, Fedra mostra qual foi sua atitude
com relação à paixão que lhe tomou o pensamento: primeiro, ela tentou se calar;
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em seguida, tentou vencer o impulso por uma reflexão sensata (tò sophroneîn); ao
fim, por não conseguir resistir à força do desejo, seu último recurso será a morte
ou, em outras palavras, o suicídio (390-400). Na ocasião em que seu desejo é
revelado (a contragosto seu) para Hipólito, Fedra leva a cabo o que antes era
especulação: suicida-se e acusa seu enteado de estuprá-la, preservando assim sua
honra. Em inúmeras ocasiões, Fedra defende o valor de manter uma vida com
honra (timé) e boa fama (eukleés) até o fim (325-330; 485; 680-730). Portanto, a
deliberação racional da personagem se orienta para a preservação de sua honra em
seu interesse e ao longo de sua vida. Nesse caso, sua atitude é um reflexo de sua
deliberação e não é contrária a ela. Ainda que Fedra seja vítima de um conflito
psicológico, não podemos afirmar que ela está sob akrasía, pois nos falta
precisamente a ação contrária à deliberação. Teríamos uma ocasião para a akrasía
caso a personagem deliberadamente se rendesse ao seu desejo por Hipólito, o que
não verificamos em momento algum. Sendo assim, devemos nos voltar para a
tragédia Medéia em busca de antecedentes do fenômeno da akrasía em sua
formulação tradicional.
Em Medéia, a personagem-título é movida, por sua cólera (chólos), a
destruir a vida do ex-marido que a abandonou, juntamente aos seus filhos, para
ficar com a filha do rei de Corinto. A ameaça do exílio pelo rei apenas agrava o
infortúnio da ultrajada mulher e seus filhos. As intenções de Medéia com relação
79
66
Eurípides apresenta de forma sutil no início da tragédia o aspecto selvagem da ira de Medéia
através das palavras de Nutriz: em duas ocasiões, ela menciona os verbos gregos taurouménen e
apatauroûtai que literalmente aludem a uma semelhança ou uma transformação em um touro
(90;185).
67
Seguimos a tradução de J. A. A. Torrano com pequenas alterações.
80
mísera, poupa os filhos! (...) Ó pelas fúrias vingativas (alástoras) de Hades, nada
será de modo que eu permita ultrajar os meus filhos! É de todo necessário que
morram, assim, nós os massacraremos, que os criamos. É de todo um fato, e não
há escapatória. (...) Eu irei por misérrima via, eu os enviarei por via mais mísera
ainda. (...) Não posso contemplar-vos mais, mas sou vencida por males (nikômai
kakoîs). Sim, compreendo quais males farei (mantháno drân méllo kaká). O furor
é superior68 às minhas decisões (thymòs kreísson tôn emôn bouleumáton), ele
causa os maiores males aos mortais (megíston aítios kakôn brotoîs). (1040-1080)
68
Com efeito, ‘superior’ aqui traduz kreísson que significa literalmente ‘mais forte’ ou ‘mais
poderoso’.
69
Devo a Irwin (1983, p. 192) a estrutura da divisão sugerida.
81
perspectiva do ultraje de seus inimigos aos seus filhos, não poderíamos dizer que
ela talvez tenha abandonado a deliberação de não matar seus filhos? Se nos
comprometermos realmente em analisar a situação de Medéia, tendo em conta
toda sua deliberação e o assassinato em si mesmos, talvez possamos hesitar em
atribuir-lhe uma experiência de akrasía. Na perspectiva da personagem, no
entanto, o conflito interno se mantém até o fim do drama. Quando está prestes a
cometer o assassínio, ela expressa ainda o amor que sente por seus filhos e chora
pelos cadáveres deles depois que o ato foi executado (1235-1250). Dessa forma,
ainda que Medéia considere a necessidade do assassinato, ela constata
simultaneamente que a própria ação não resultou de sua deliberação (em relação
ao que é melhor para si mesma), mas da força de seu impulso pela ira (thýmos).
Como ressaltamos anteriormente, as ações perpetradas por Medéia em toda a
tragédia são motivadas por seu próprio desejo de vingança. Embora o plano de
assassinar Jasão e a rainha lhe proporcionem realmente uma satisfação, assassinar
seus filhos lhe causa repulsa em relação ao seu próprio interesse. É necessário
ressaltar que seu impulso vingativo de arruinar a vida de Jasão por completo não
70
Em particular, o assassinato dos seus próprios filhos não é sob nenhum parâmetro benéfico na
perspectiva de Medéia. Se levarmos em conta o conceito de incomensurabilidade delineado por
Martha Nussbaum (como veremos adiante), diríamos que o assassinato é um ato
incomensuravelmente maléfico para a personagem, isto é, não há qualquer parâmetro sob o qual
essa ação pode ser considerada boa em contraposição a qualquer outra perspectiva.
82
3.4
A proposta de reformulação da descrição tradicional do fenômeno
no Protágoras.
71
Cf. DODDS, 1956, cap. V; DODDS, 1973, p. 78-79. Todavia, temos de ressaltar que
discordamos da direta associção de Dodds entre a suposta filosofia do Sócrates histórico e as teses
defendidas pelo personagem homônimo no Protágoras.
84
4
O argumento hedonista e a redução ao absurdo da
descrição tradicional da akrasía
4.1
A relação entre a opinião dominante e Protágoras: as teses acerca
do prazer e a descrição tradicional da akrasía
filósofo realizará uma reavaliação das crenças sustentadas pela maioria, a fim de
reformular a descrição comum do fenômeno nos termos em que ela é apresentada.
Para fazer isso, Sócrates conta com dois argumentos interdependentes: 1) uma
reavaliação das concepções correntes de ‘prazer’ (hedoné) e ‘dor’ (aniará) com o
objetivo de esclarecer o que exatamente significa ser ‘submetido pelo prazer’
(353c-354e). No curso dessa investigação, Sócrates chegará à conclusão de que a
opinião dominante está comprometida com um tipo de hedonismo, ao contrário do
que se acreditava anteriormente; e 2) a redução ao absurdo da descrição
tradicional através dos princípios hedonistas assumidos anteriormente (354e-
356a). A redução ao absurdo da descrição do fenômeno apresentada pela opinião
dominante depende, fundamentalmente, dos pressupostos hedonistas da discussão
precedente. É preciso verificar, no entanto, que o exame das crenças da ‘opinião
dominante’ se origina da relação velada entre essa personagem e o sofista
Protágoras.
Como mostramos anteriormente, Protágoras já havia sustentado teses que
podem ser indiretamente associadas às crenças correntes da sociedade ateniense
durante a discussão. A resistência do sofista aos argumentos apresentados por
Sócrates se baseia nesse comprometimento implícito com a opinião dominante.
86
72
É interessante notar que Protágoras em momento algum percebe que a crença tradicional na
akrasía não é incompatível com a natureza da virtude sustentada por ele mesmo. Como vimos, ele
concorda enfaticamente com Sócrates a respeito do poder do conhecimento para a deliberação
humana (352d).
87
“Para mim é a mesma coisa, respondi, uma vez que sejas tu quem respondes, quer
penses desse modo (dokeî soî taûta), quer não (eìte mé). Meu principal objetivo é
examinar o argumento (tón lógon eksetádzo), muito embora possa acontecer que
tanto eu, que pergunto, como tu, que me respondes, acabemos por ser examinados
(eksetádzesthai).” (333c)
Já tendo visto, pelo que disseste (hos phès), qual é a tua maneira de pensar a
respeito do bem e do prazer (écheis pròs tò agathòn kaì to hedú), precisarei
perguntar-te: ‘Vamos, Protágoras, revele teu pensamento (tês dianoías
apokálupson): o que entendes por conhecimento (pôs écheis pròs epistémen)? É o
teu parecer (soî dokeî) como o da maioria dos homens (hósper toîs polloîs
anthrópois) ou [tem] algum outro [parecer] (è àllos)? (352a-b)
indicações sobre seu objetivo, ao propor uma investigação das teses do sofista. De
acordo com Taylor, podemos dizer que a primeira análise do bem e do prazer
corresponde ao exame das mãos e da face, enquanto a investigação acerca do
conhecimento corresponderia ao exame completo do corpo (TAYLOR, 1991, p.
171)74. O primeiro exame é subsidiário ao segundo e ambos estão estreitamente
vinculados à investigação das crenças da opinião dominante. Na medida em que
Protágoras discorda da crença da maioria a respeito da akrasía, e da submissão do
conhecimento, ele se alia a Sócrates na tarefa de realizar um exame da posição da
opinião dominante a respeito do prazer, com a qual o próprio sofista parece estar
implicitamente comprometido (352c-d). Além disso, Sócrates ressalta que a
discussão com a maioria também é motivada pela elucidação da relação entre a
coragem e a virtude (353b). Como vimos, o sofista havia discordado de Sócrates,
alegando que a coragem não tem nenhuma relação com as outras virtudes.
A tese da natureza da coragem apresentada pelo sofista é o propulsor da
investigação a respeito de sua posição no que se refere ao prazer. Como já
73
Como ressalta Irwin (1995, p. 93), “o equívoco de Protágoras de não entender os métodos e os
objetivos de Sócrates o previnem de entender as implicações de suas próprias afirmações sobre a
virtude e sobre ele mesmo como professor da virtude. (...) Sócrates pode argumentar que se
Protágoras realmente afirma ensinar virtude, e não simplesmente ensinar uma habilidade que pode
ser bem ou mal utilizada, então ele tem de argumentar com a visão de Sócrates de que o
conhecimento é suficiente para a virtude.” (tradução nossa)
74
Cf. ZEYL, 1980, p. 253, p. 265
89
4.2
O argumento hedonista
(1) Socr. - Admites, Protágoras, que alguns homens vivem bem (eu dzeîn), e
outros mal (toús kakôs)? Prot. – Respondeu que sim. (2) Sócr. - E achas que vive
bem o homem se vive em dor (anióménos) e sofrimento (odunómenos)? Prot. -
Não, ele disse. (3) Sócr. – E se ele viver com prazer (hedéos bioùs) até o fim, não
te pareceria que teve uma vida boa? Prot. – Eu diria que [sim], (4) disse. Sócr. –
Então viver prazerosamente é bom (agathón) e viver de maneira dolorosa é mau
(kakôn)? (351b-c)75
75
É importante notar a presença dos verbos na segunda pessoa do singular (légeis, kaleîs)
fortalecendo a ideia de que as perguntas são dirigidas para esclarecer as posições de Protágoras.
91
76
Taylor (1991, p. 164) não acredita que as proposições 1,2 e 3 se comprometam com o
hedonismo em estrito senso. Apesar de conceder que o conjunto 1 a 3 possibilite a avaliação de
uma vida por um critério independente do prazer, este critério ‘não permite uma vida prazerosa ser
julgada pior que uma vida dolorosa por qualquer outro critério’. Como é muito difícil imaginar
uma vida sem prazeres ou dores, poderíamos supor que uma vida em que os prazeres e dores sejam
equivalentes pode ser considerada boa por outra razão. No entanto, 1, 2 e 3 não admitem essa
possibilidade (ZEYL, 1980, p. 265). De outro lado, 1, 2 e 3 são apresentadas por Sócrates e
admitidas por Protágoras sem qualquer questionamento. Além de Zeyl, Weiss (2006, p. 48-49) e
Annas (1999, p. 169) também reconhecem que essas premissas já constituem um tipo de
hedonismo.
92
77
É necessário salientar, no entanto, que não acreditamos na perspectiva anti-hedonista do
comentador. Segundo Zeyl (1980, p. 254-260), Sócrates está tentando ‘tomar vantagem’ da teoria
hedonista para fazer com que Protágoras reconheça a unidade entre conhecimento e virtude. Nós
realmente concordamos que Sócrates vê no hedonismo uma forma de sustentar a unidade entre
conhecimento e virtude. Contudo, acreditamos que para Sócrates a única forma de garantir o
ensino das virtudes defendido por Protágoras é admitir a unidade entre o conhecimento e a virtude.
Como o próprio sofista insiste em não reconhecer a consistência desse argumento, o filósofo
recorre à uma tese hedonista por supor que um tipo de hedonismo é compatível com o argumento
da unidade entre conhecimento e virtude.
78
Provavelmente, sua forma de considerar a teoria como uma proposta do filósofo reflete sua
dificuldade em compreender os métodos de argumentação de Sócrates além de sua insistência em
conceber o diálogo como uma forma de disputa verbal.
93
79
Cf. 352d
94
80
Cf. LIDDEL-SCOTT, 1996. Literalmente ‘aphrodisíon’ se refere às ‘coisas sexuais’. De fato,
encontramos alguma divergência entre as propostas de tradução do termo grego. Embora Carlos
Alberto Nunes sugira a tradução ‘amor’, acreditamos que ela não contempla o sentido do termo em
grego. Nas traduções de língua inglesa se sugere o termo ‘sexo’ que julgamos ser mais apropriado
para o que está sendo designado pela palavra em grego.
95
devemos supor que a maioria leva em conta apenas os efeitos resultantes dessas
coisas em vez de seus ‘prazeres imediatos’ (hedonês parachrêma) em sua
estimativa (353e). Seguindo os termos da própria opinião dominante, Sócrates
demonstra que o critério utilizado para fundamentar a classificação de certos
prazeres por ‘maus’ prova, na realidade, que tais prazeres são simplesmente dores.
Com isso, Sócrates propõe uma nova classificação dos prazeres a fim de depurar
os juízos da maioria:
“ao próprio prazer (autò tò chaíren) dizeis ser mau (kakòn), quando vos priva
(aposterêi) de maiores prazeres do que nele se contém (autò échei), ou quando
ocasiona (paraskeuázei) maiores dores do que seus próprios prazeres (ên autô
hedonôn).” (354c)
“Não dizeis que sofrer dor é um bem (tò lupeîsthai agathòn), quando nos livra
(apallátte) de dores maiores do que as que lhe são inerentes (tôn en autôn ousôn),
ou quando nos proporciona (paraskeuádze) prazeres maiores do que essas dores
(tôn lupôn)?” (354d)
função dos prazeres maiores ou as dores menores previstas para o futuro. Por
coerência lógica, a opinião dominante deve admitir que as coisas boas nada mais
são do que prazeres. Ora, se o homem comum evita prazeres maus porque são
efetivamente dores, ele também busca dores boas por serem prazeres. Nesses
termos, Sócrates descobre um fato sobre a própria deliberação humana82, a partir
de sua inquirição da maioria dos homens: “então, perseguis (diókete) o prazer
como um bem e fugis (pheúgete) da dor como um mal?” (354c). Com a
reavaliação das crenças da opinião dominante, Sócrates demonstra que os juízos
81
Taylor (1991, p.175) observa que o homem comum, na visão de Platão, não traça nenhuma
distinção entre um hedonismo do interesse próprio, egoísta, e um hedonismo voltado para um
conjunto de pessoas. Exemplos de prazeres que proporcionam ‘saúde e boa condição física’ são
apresentados conjuntamente com os que proporcionam ‘salvação da cidade e riqueza’ (354a-b).
82
Alguns intérpretes, como Gosling & Taylor (1982, p. 57), Santas (1979, pp. 206- 207), e
Rudebusch (1999a, p. 22) consideram que Sócrates sustenta aqui uma forma de hedonismo
psicológico. Todavia, o termo ‘psicológico’ é demasiado carregado para ser derivado desta tese já
que Sócrates não parece fazer nenhuma análise mais detalhada sobre a psicologia humana como
ele faz no Fédon, Górgias ou na República IV. De outro lado, a tese enunciada pelo filósofo parece
ser meramente uma conclusão dos argumentos desenvolvidos anteriormente. Nussbaum (2009, p.
96-97, p. 101) julga que o retrato da deliberação humana apresentado por Sócrates faz parte do
projeto maior de estabelecer uma técnica que elimine os problemas da contingência do acaso
(tyche) e da akrasía. Como observa Nicholas White (1988, p. 138-139), não há nenhuma indicação
que Sócrates queira eliminar a existência do fenômeno através dessa técnica. Além disso, devemos
acreditar que ele simplesmente quer construir um retrato da deliberação que possa explicar o
fenômeno de forma coerente.
97
“Pois o que eu digo (egò gàr légo)83 é que, enquanto são prazerosas (kath’ hò
hedéa estín), não são boas essas coisas (katà toûto ouk agathà), se não levarmos
em conta suas consequências (mè eí ti ap’ autôn apóbesetai); e, por outro lado,
com relação às coisas dolorosas (tà aniarà), enquanto dolorosas não são más
(kath’ hóson aniará, kakà)?” (351c)
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83
A presença de um pronome em grego tem um uso enfático. Os intérpretes hedonistas e anti-
hedonistas tem disputado veementemente a intenção de Sócrates ao enunciar egó. Dessa forma,
Taylor (1991, p. 166), por exemplo, afirma que a sentença é uma pergunta retórica e pode ser
utilizadas como uma confirmação de que Sócrates está defendendo uma tese em própria pessoa.
De outro lado, Zeyl (1980, p. 266) acredita que a sentença apenas introduz uma questão direta e
não é uma proposição indireta. Como mostramos anteriormente, somente Protágoras concebe que
a tese hedonista é uma posição do próprio filósofo por falhar em compreender a forma dialógica de
argumentação defendida por Sócrates. Dessa forma, sustentamos com Julia Annas (1999, p. 169-
170) que a presença do ego enfático apenas demonstra que o filósofo é o único a discutir a tese
quando, na realidade, quem deveria estar mais interessado em discuti-la deveria ser o próprio
sofista.
84
Para atenuar a força do argumento de Sócrates, Vlastos (1969, p. 76) propõe que o filósofo
defende um hedonismo moderado: ‘todos os prazeres são bons e todas as dores são más’ (Cf.
KAHN, 2006, p. 50-51). De acordo com essa interpretação, Sócrates ainda poderia conceder que
98
sua classificação do que é ‘bom’ e do que é ‘mau’ está fundada sobre um juízo de
valor acerca da quantidade de prazer e dor proporcionada por cada tipo de coisa.
Assim, o exame da opinião dominante estabelece que ‘prazer’ e ‘bem’ se referem
às mesmas coisas assim como ‘dor’ e ‘mal’. Portanto, esses termos são
intercambiáveis. Sendo assim, obtemos um quadro geral do hedonismo
apresentado por Sócrates.
Nas considerações anteriores, tentamos analisar os argumentos hedonistas
apresentados por Sócrates sem nos comprometer, no entanto, com as divergências
interpretativas que envolvem a tese hedonista. Dessa maneira, evitamos
considerar as controvérsias acerca da classificação do tipo de hedonismo proposto
por Sócrates e, consequentemente, os problemas do argumento que envolvem a
refutação da descrição tradicional da akrasía. Mesmo considerando que
precisaríamos tratar da descrição alternativa do fenômeno da akrasía oferecida
pelo filósofo, deixaremos isso para o próximo capítulo. Na sequência, tentaremos
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esclarecer alguns aspectos gerais do hedonismo proposto que não estão abertos à
controvérsia interpretativa. Com isso, pretendemos fornecer algumas orientações
preliminares para entendermos o hedonismo de forma geral.
nem todas as coisas boas são prazeres e nem todas as coisas más são dores. No entanto, como
mostra Taylor (1991, p. 168-169), esse tipo de hedonismo pode implicar na própria crença em
‘prazeres maus’ e ‘dores boas’, o que tornaria a posição de Sócrates muito semelhante à posição da
opinião dominante (Cf. GOSLING e TAYLOR, p. 47-48). Como essa proposta interpretativa
enfraquece os argumentos apresentados pelo filósofo, na medida em que atribuí a ele uma
confusão em seus propósitos, concordamos com Taylor que o melhor seja descartá-la.
99
‘prazer’ e ‘bem’. Além de fornecer uma tese valorativa do prazer para explicar a
deliberação, a tese hedonista também postula a permutabilidade entre os termos
‘bem’ e ‘prazer’ e também entre ‘dor’ e ‘mal’ (GOSLING; TAYLOR, 1982, p.
49-50). Como vimos anteriormente, o hedonismo estabelece que ‘bem’ e ‘prazer’
e, por outro lado, ‘dor’ e ‘mal’ são pares de termos intercambiáveis que tem a
mesma referência. Com efeito, Sócrates não implica que a tese hedonista postula a
necessidade de uma identidade semântica entre os pares de termos, mas apenas
uma identidade de referência, isto é, designam as mesmas coisas, respectivamente.
Contudo, para obtermos o conjunto dos princípios que compõem o hedonismo
proposto pelo filósofo precisamos retomar a relação entre ‘bem’, ‘prazer’ e
‘eudaimonia’ constituída nas três primeiras premissas do início da discussão com
o sofista.
Como pudemos ver anteriormente nas premissas iniciais de Sócrates, a
tese hedonista afirma que o prazer deve corresponder à satisfação completa de
uma vida ou, em termos gregos, à eudaimonia. (IRWIN, 1995, p. 83, 87-88;
PENNER, 1997, p. 128). Segundo Irwin (Ibidem, p. 83), Sócrates não toma o
hedonismo como uma alternativa à aspiração grega pela eudaimonia, mas como
uma explicação do fim último da eudaimonia. A tese hedonista estabelece,
portanto, um critério epistemológico: os juízos de ‘bem’ e ‘mal’ se fundam em
juízos de ‘prazer’ e ‘dor’ que determinam em conjunto o que promove a plenitude
100
4.3
A redução ao absurdo da descrição tradicional da akrasía
85
Cf. LIDDEL-SCOTT, 1996. Provavelmente, a exposição do ridículo da crença da maioria na
akrasía é uma exigência dramática do argumento dado que a opinião dominante precisa
reconhecer que a descrição tradicional é inconsistente e, ao mesmo tempo, deve buscar com o
auxílio de Sócrates outra descrição para o fenômeno. É notável que o próprio filósofo mostre que a
opinião dominante deve reconhecer a descrição alternativa do fenômeno, aproveitando a
oportunidade para relembrá-la do ridículo de sua própria descrição da akrasía (357d).
102
86
Devo essa formulação a Irwin (1995) e Weiss (2006). De qualquer maneira, reconheço que a
formulação lógica de Irwin tem suas limitações na medida em que depende fundamentalmente de
uma distinção qualitativa de prazeres que não corresponde ao hedonismo apresentado por Sócrates
(veremos esse problema no próximo capítulo). Por outro lado, a estrutura lógica do argumento
apresentada por Roslyn Weiss tenta seguir o texto original com mais fidelidade. Por essa razão,
minha própria formulação é muito inspirada na formulação lógica proposta pela autora.
87
De acordo com Vlastos (1969, p. 81-82), a formulação da akrasía não implica autocontradição
se for traduzida por ‘submissão aos prazeres’ em vez de ‘submissão ao prazer’. Segundo Vlastos, a
autocontradição se realiza no primeiro caso se utilizamos o princípio da substituição de nomes de
‘prazer’ por ‘bem’ e formos levados a afirmar que uma pessoa é ‘submetida pelo (desejo do) bem’.
No segundo caso, a ‘submissão pelo (desejo de) coisas boas’ requer uma explicação do absurdo tal
como é retratado no texto (o comentador segue o plural tàs hedonás em 355b). Todavia, como
observa Taylor (1991, p. 183-185), Vlastos está errado por 2 razões: (1) o substantivo hedoné é
utilizado de forma indiferenciada no singular e no plural, evidenciando que o texto não prevê
qualquer distinção entre ‘prazer’ e ‘prazeres’. De fato, quando a substituição de termos é operada
(em 355c) , Sócrates trata ‘prazer’ e ‘bem’ no singular. (2) a ‘submissão a um desejo por coisas
boas’ não é mais autocontraditória que uma ‘submissão a um desejo pelo bem’. Na verdade, Platão
trata o desejo por prazer como equivalente ao desejo por prazeres. Além disso, Vlastos (1969, p.
83) acredita que o argumento do absurdo termina no primeiro estágio, quando, na realidade, os
interlocutores concordam que o argumento está terminado apenas ao fim do segundo estágio.
103
“Acaso, ele dirá, os bens não merecem vencer (ouk axíon nikân) os males em
vossa estima (en hýmin)88, ou merecem (è axíon)? É evidente que teríamos de
dizer-lhes que não merecem, pois de outro modo não teria errado (exemártanen) a
pessoa que dissemos ser submetida por prazeres.” (355d)
também deve seguir o mesmo parâmetro. Desse modo, se os bens forem maiores
que os males, os bens serão escolhidos ao invés dos males (355d). De fato, esse
seria o raciocínio caso o agente tivesse realizado a ação correta; contudo, ele
cometeu um erro (exemártanen). Logo, teremos de assumir que os bens não valem
os males. Para esclarecer os passos do argumento, vejamos a continuidade de sua
estrutura lógica89:
88
Para essa tradução ver Vlastos (1969 p. 80).
89
Devo essa formulação a Roslyn Weiss (2006, p. 52-53).
104
inexplicável que P escolha y tendo consciência que os bens de y não tem maior
valor sobre os bens de x. Segundo o transgressor, teríamos de admitir uma
conclusão absurda: “É evidente, diria ele, que o que denominais ‘ser submetido’
(tò hettâstai) é escolher (lambánein) maiores males ao custo de (antì)90 pequenos
bens (355e)”. Nessa perspectiva, o agente opta pelos bens da pior alternativa
tendo consciência que sua escolha lhe acarretará males futuros. Como observa
Santas (1979, p. 205), a conclusão do transgressor nos leva a assumir que o agente
tem plena consciência de que a alternativa escolhida constitui-se tanto de
pequenos bens quanto de grandes males. Na realidade, o que deve se explicar é de
que maneira alguém pode escolher maiores males por conta de pequenos bens
dado que a ação é realizada de bom grado e, necessariamente, é o reflexo de uma
deliberação pelo que é melhor.
Para assegurar que a descrição tradicional da akrasía é realmente inviável,
Sócrates prossegue do primeiro para o segundo estágio do argumento utilizando a
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90
Para essa tradução ver Santas (1969, p. 204-205) e Taylor (1991, p. 186-187).
105
4.4
A necessidade de uma descrição alternativa para a akrasía
5
A refutação da descrição tradicional da akrasía
5.1
O desafio da refutação da descrição tradicional do fenômeno
aos impulsos humanos (352e-353c). Na verdade, é por conta desse segundo fator
que os interlocutores iniciam a investigação das crenças da opinião dominante a
respeito da akrasía como submissão da deliberação ao prazer.
Com base no hedonismo e nas inconsistências da opinião dominante em
sua crença na ‘submissão ao prazer’, o filósofo oferece uma formulação
alternativa do fenômeno como ‘ignorância’ (amathía – 357d). À medida que a
akrasía é reconhecida como ignorância, Sócrates pode equiparar o fenômeno a
uma ‘falta de conhecimento’ (epistémes endeía) e, assim, recomendar o
conhecimento como medida preventiva contra esse estado. Dessa forma, Sócrates
não só demonstra que o agente sob akrasía realiza ações que estão vinculadas às
suas próprias crenças como também assegura o poder do conhecimento para
determinar suas escolhas.
Como observamos no capítulo 2, Sócrates sustenta uma tese paradoxal que
constitui uma negação não apenas do conhecimento-akrasía, mas também da
crença-akrasía sincrônica, ou seja, uma experiência em que um agente age contra
o que acredita ser melhor no momento da ação (358c-d). De fato, a negação da
crença-akrasía é fundamental para que o filósofo possa redefinir o fenômeno
como ‘ignorância’ e possa sustentar o poder do conhecimento sobre a ação contra
a crença da opinião dominante na akrasía. Antes de estabelecer essas conclusões,
108
“nós concordávamos que não há nada mais forte (medèn eînai kreîtton) que o
conhecimento e que onde quer que ele se encontre sempre vence (aeî krateîn) o
prazer e todas as outras coisas.” (357c)
Esta tese afirma que o conhecimento não pode ser submetido pelo impulso
ao prazer em qualquer momento da ação. Com isso, obtemos uma refutação do
conhecimento-akrasía tanto em sua forma sincrônica, quanto em sua forma
diacrônica. Como observa Penner (1997, pp. 132-137), Sócrates tem o propósito
de defender que apenas o conhecimento pode assegurar a estabilidade do que se
acredita diacronicamente, isto é, antes, durante e após a ação executada. Ao
contrário do conhecimento, a crença pode vacilar durante o processo da ação e
pode permitir que a ação seja realizada contra o que se acreditava antes e depois
da ação. Como observamos, embora esta interpretação preserve a diferença que
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Sócrates quer estabelecer entre conhecimento e crença, ela não reconhece que o
filósofo tenha qualquer preocupação em negar a possibilidade da crença-akrasía
sincrônica91. Do mesmo modo que admite uma corrente de comentadores, no
entanto, julgamos que a tese paradoxal apresentada em 358c-d é uma explícita
negação da crença-akrasía sincrônica (SANTAS, 1979, p. 206-207; WEISS,
2006, p. 60-61; KAHN, 1996, p. 228-243). Conforme a descrição tradicional
postula que é possível agir contra o que se acredita ser melhor no momento da
ação, a tese paradoxal sustentada por Sócrates tem o papel de assegurar a
refutação dessa descrição comum do fenômeno. Por outro lado, a suficiência do
conhecimento para a ação virtuosa só é garantida enquanto a descrição alternativa
da akrasía, como ignorância, garante que os homens deliberem em função de suas
crenças, e não realizem suas ações através de seus impulsos. De fato, se a akrasía
for inteiramente o efeito das crenças equivocadas do agente em ignorância,
Sócrates consegue assegurar que o conhecimento seja definitivamente superior na
ação, eliminando quaisquer erros cognitivos provocados por essa experiência. É
com esse objetivo, portanto, que o filósofo apresenta sua própria formulação da
akrasía. Embora consigamos compreender a tese estabelecida, nos falta ainda
analisar os argumentos que a sustentam. Com efeito, os argumentos que
91
Cf. Ibidem, p 124-125
109
ocasionado por nossa percepção? Será que os desejos não racionais têm algum
papel a desempenhar nessa experiência ou será que Sócrates exclui qualquer
referência a eles? O que efetivamente causa o poder das aparências, e de que
maneira exerce sua influência sobre as crenças do agente durante a ação? Com
efeito, as dificuldades de interpretação consideradas aqui serão cruciais para tentar
compreender o que realmente é a descrição da akrasía por ignorância. A tese da
superioridade do conhecimento sobre a ação depende, essencialmente, da
demonstração da ignorância da akrasía. Como a interpretação do argumento de
Sócrates é fundamental para a avaliação do sucesso no que se refere à refutação da
descrição tradicional, os comentadores vão buscar analisar a consistência da tese
da ignorância em função da garantia da superioridade do conhecimento. Sendo
assim, faz-se necessário recorrermos às controvérsias de interpretação para
avaliarmos a formulação da akrasía oferecida por Sócrates.
Desde o último século, interpretações conflitantes do diálogo ofereceram
esclarecimento e, ao mesmo tempo, problematizaram a descrição da akrasía
92
Como salienta Muniz (2011, p. 75), a aparência não adquire neste diálogo o caráter
epistemologicamente negativo que se constituirá nos diálogos posteriores de Platão: “O texto não
nos permite supor a desqualificação da experiência sensória por alguma falha ontológica ou
qualquer outra razão metafísica que fundamente a atribuição de uma deficiência à natureza do
sensível.” Na realidade, o comentador (Ibidem, p. 68) demonstra que não há nos primeiros
diálogos qualquer indício da forma negativa com a qual a experiência sensível será retratada nos
diálogos da maturidade de Platão.
110
5.2
O poder da aparência (toû phaynoménou dýnamis) e a técnica da
medida (metretikè téchne)
para julgar o que é ‘bom’ além de ‘prazer’. As palavras ‘bom’ (agathon) e ‘prazer
(hedone) assim como ‘dor’ (aniara) e ‘mau’ (kakon) se referem às mesmas coisas
e são permutáveis. Ao admitir esse princípio, a opinião dominante deve
reconhecer que o homem realiza sua deliberação tendo sempre em vista obter o
prazer e evitar a dor (354c). Nessa perspectiva, o homem atribui maior valor ao
prazer em sua vida se comparado à dor. Como vimos, a conjugação entre o
princípio da permutabilidade entre bem e prazer, assim como a tese hedonista
valorativa, constituem o hedonismo apresentado por Sócrates. De acordo com essa
teoria, o homem comum realiza um cálculo em sua deliberação para alcançar
sempre o que considera ser mais prazeroso e, ao mesmo tempo, evitar o que é
mais doloroso para sua vida. A partir dos pressupostos hedonistas admitidos pela
opinião dominante, obteremos o descrédito da formulação tradicional da akrasía
pela redução ao absurdo, como foi observado. É notável, portanto, que o próprio
hedonismo que orienta a ação humana sirva de base para a redução ao absurdo da
crença tradicional na akrasía e ofereça o fundamento para a proposta de uma
formulação alternativa do fenômeno.
Para sugerir uma nova proposta de descrição da akrasía, é preciso ter em
conta o hedonismo em que se baseia a deliberação humana, como foi mostrado no
exame da opinião dominante. Se o homem valoriza o maior prazer e desvaloriza a
112
maior dor em sua deliberação, é preciso executar o cálculo correto para obter o
que se deseja. O fato de que o homem em akrasía, efetivamente, escolhe a
alternativa que tem ‘menor prazer e maior dor’ indica que seu cálculo deliberativo
não é correto. Ora, mas o que ocorre para que um agente realize um cálculo
incorreto em vez de um cálculo correto? O que diferencia o primeiro caso do
segundo? Com o objetivo de compreender o que ocorre com o homem que erra,
Sócrates recorre a uma imagem espacial para esclarecer o efeito dos prazeres
imediatos sobre nós: “as mesmas coisas não se vos afiguram (phaínetai) à vista (tê
ópsei) maiores, quando mais próximas e menores, quando mais afastadas?”
(356c)93. Da mesma maneira que a posição espacial provoca uma alteração na
percepção dos objetos a nossa volta, nossas ações também estão sujeitas a um
fenômeno que provoca uma ilusão com relação às nossas ‘perspectivas’ de ação.
Desse modo, esse efeito faz com que consideremos mais valorosas as alternativas
que nos proporcionam satisfação imediata do que aquelas em que apenas
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conseguiremos prazer no passar do tempo, mesmo que essas sejam realmente mais
prazerosas. Esse fenômeno que leva um homem a conferir maior valor ao prazer
que efetivamente tem menor valor por conta de uma forma de ilusão, Sócrates
denomina de ‘poder da aparência’ (toû phainómenou dýnamis). Com base neste
efeito, o filósofo vai sustentar que a akrasía é simplesmente uma forma de ‘erro
na escolha dos prazeres e dores’ (examártenein perì tèn tôn hedonôn aíresin kaì
lypôn), ou seja, ‘ignorância’ (357d-e). Porquanto as aparências inviabilizam a
possibilidade de vislumbrar os efeitos de nossas ações claramente, Sócrates
estipula a necessidade de se comportar ‘como um homem perito em pesagens’
(hósper agathòs istánai ánthropos – 356b). Ao colocar na balança os cursos de
ação possíveis, o homem é capaz de determinar o que irá lhe trazer maior prazer e
o que vai lhe proporcionar maior dor. Se o bem agir humano (eû pratteîn) consiste
em alcançar os maiores prazeres e não fazer o que causará as maiores dores, então
devemos nos orientar por uma ‘técnica da medida’ (metretikè téchne – 356d).
Com o auxílio da técnica da medida, Sócrates acredita que é possível superar o
efeito das aparências para revelar as ‘proporções’ das coisas. Em geral, a oposição
93
Para essa analogia, cf. ‘O paradigma da percepção sensível e o prazer’ (MUNIZ, 2011, 69-81).
Segundo Muniz (Ibidem, p. 78-80), a analogia nesse caso tem a função de esclarecer um domínio
obscuro, a deliberação e a temporalidade dos prazeres, a partir de um campo diretamente
conhecido, a percepção sensível e a espacialidade dos objetos. Sendo assim, o mecanismo da
ilusão da aparência só pode ser apreendido dentro desse contexto relacional da temporalidade e da
espacialidade.
113
Não nos ilude esta última [o poder da aparência], levando-nos muitas vezes a
tomar as mesmas coisas às avessas (áno te kaì káto), a mudar de ideia
(metalambánein) e nos arrepender (metamélein) nas ações e nas escolhas (en taîs
praxési kaì en taîs airésesi) das coisas grandes e pequenas? A técnica da medida
não tornaria essa aparência ineficaz (ákuron), ao mostrar a verdade não faria a
alma ter tranqüilidade (échein tèn psychèn hesuchían) sustentada pela verdade,
salvando, assim, a vida? (356d-e)
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94
Literalmente de ‘ponta cabeça’ ou ‘de cima para baixo’.
95
O exemplo apresentado foi inspirado no exemplo do glutão apresentado por Brickhouse &
Smith (2010, pp. 75-76), assim como na análise de Bobonich (2007, p. 49).
114
5.3
As divergências interpretativas
5.3.1
Interpretação de Gosling, Taylor e Irwin – Distinção temporal de
prazeres
na consistência dele. Os autores apresentam duas falhas que, segundo eles, deixam
em suspeita a refutação da akrasía por Sócrates:
(1) Sócrates não observa a distinção, realizada por ele mesmo, entre uso
padrão e extensivo de prazer. Sócrates mostra que a opinião dominante, a
partir da distinção apresentada, teria de sustentar que o homem em akrasía
é dominado pelos prazeres imediatos (355b). O filósofo opera, então, a
substituição de nomes possibilitada pelo hedonismo para refutar a akrasía:
ele troca ‘prazer momentâneo’ por ‘bem’. Para os autores, contudo,
Sócrates está equivocado nessa substituição de nomes, pois ele havia
sustentado que o ‘bem’ equivale ao ‘prazer de longa duração’96. A
substituição, portanto, é inconsistente e Sócrates parece não ter explicado
claramente sua distinção temporal dos prazeres (GOSLING; TAYLOR,
1982, p. 57);
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(2) os autores argumentam que o homem sob akrasía poderia negar que há
um desejo uniforme por um fim último que orienta todas as nossas ações.
Ele pode mostrar que, apesar de ele ter consciência dos efeitos de suas
ações, ele ainda é levado por seu desejo por prazeres imediatos (Ibidem, p.
57-58) Como observamos anteriormente, Taylor concorda com o
pressuposto motivacional da corrente intelectualista segundo a qual o
personagem Sócrates da fase da juventude acredita que só existe o desejo
racional pelo que é melhor (1991, p. 203-20497). Nessa perspectiva, a
crítica dos autores se dirige à suposta crença de Sócrates de que o homem
só possui um desejo uniforme racional pelo prazer de longa duração.
Conforme o homem em akrasía pode ter outros desejos que não esse
desejo único, a formulação de Sócrates comprova ser inadequada.
alcançar uma vida virtuosa, ou seja, uma vida feliz. A opinião dominante desafia
essa tese socrática quando enuncia que, em determinadas ocasiões, escolhemos o
que é mais prazeroso em vez do que é melhor. Para Irwin (1995, p. 115), Sócrates
será, então, obrigado a justificar o eudaimonismo psicológico contra a explicação
usual da akrasía que constitui uma forte objeção a esta teoria. Se o filósofo
acredita que a única forma de atingir a felicidade é agir de acordo com o que
sabemos ser melhor, o homem comum, por sua vez, reconhece a obtenção de
prazer como o principal objetivo da vida humana. É muito difícil determinar se
uma pessoa é realmente feliz, dada a variedade e particularidade que a concepção
de ‘eudaimonia’ tem para cada um – pois cada pessoa se refere a um conjunto
diferente de valores necessários para a obtenção da felicidade – ao passo que é
mais fácil e objetivo determinar se um indivíduo está aproveitando sua vida
prazerosamente (Ibidem, p. 91). O hedonismo, portanto, fornece um critério
objetivo a ser alcançado pelo exercício das virtudes: o prazer. Com essas
considerações, Irwin conclui que o hedonismo não pretende substituir o
eudaimonismo, mas apresenta o prazer como um critério objetivo para determinar
o bem que é o fim último de todas as nossas ações (Ibidem, p. 83). Segundo esse
autor, Sócrates defende que os juízos cognitivos que possuímos acerca do prazer
devem orientar nossas ações acima de qualquer outro juízo, inclusive os juízos
118
98
Podemos associar a classificação do hedonismo sugerida por Gosling, Taylor e Irwin com o
hedonismo de satisfação cognitivamente contrafactual apresentada por Rudebusch em seu artigo O
Hedonismo de Cálicles. De acordo com Rudebusch (1999b, p. 167-168), esta teoria sustenta que ‘o
bem de uma pessoa consiste na satisfação dos desejos que ela teria quando fosse cognitivamente
esclarecida, ou seja, tivesse informação factual completa e acurada e habilidade lógica e
conceitual’. De fato, as críticas de Rudebusch a essa teoria são bastante similares as críticas
dirigidas pelos próprios autores ao hedonismo de Sócrates (Ibidem, p. 168-169).
119
prazeres, tendo ou não a consciência dos efeitos futuros de suas ações. Nessa
perspectiva, Irwin, que também acredita no pressuposto motivacional99, e segue a
mesma distinção temporal dos prazeres, chega a uma conclusão similar à dos
autores. Assim como Gosling e Taylor, Irwin (1995, p. 115) também acredita que
há falhas nos argumentos apresentados por Sócrates para refutar a akrasía. Para
Irwin, particularmente, não são todos os homem sob akrasía que concordariam
com a descrição hedonista de Sócrates para este fenômeno. O agente influenciado
pela akrasía não tem que se comprometer, necessariamente, com qualquer
hedonismo para explicar sua submissão aos impulsos. Plausivelmente, ele pode
achar que determinada conduta pode ser pior ou mais dolorosa e, ainda assim, ser
atraído por ela. Embora a classificação do hedonismo oferecida por Irwin
reconheça o empenho do filósofo em encontrar um critério quantitativo que
oriente nossas ações, ele não percebe que a distinção temporal dos prazeres
inviabiliza o próprio projeto socrático. A diferença entre os prazeres próprios do
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99
Cf. IRWIN, 1995, p. 75-76
120
5.3.2
Interpretação de Rudebusch e Nussbaum – Preservação da
comensurabilidade
akrasía justifique seu erro em função de seu desejo pelo ‘prazer imediato’.
Contudo, na medida em que Sócrates estabelece que o prazer e a dor devem ser
avaliados objetivamente, ele inviabiliza a crença na incomensurabilidade do
prazer imediato. Como ressalta Rudebusch, o hedonismo assegura a
comensurabilidade das escolhas e fundamenta a ação correta com base no
conhecimento.
Rudebusch alega que o desenvolvimento do hedonismo por Sócrates se
funda sobre a ambição do filósofo em encontrar um critério comensurável que
assegure a deliberação humana contra o fenômeno da akrasía (Ibidem, p. 25).
Essa interpretação, efetivamente, encontra ecos na posição defendida por
Nussbaum em A fragilidade da bondade. De acordo com Nussbaum (2009, p. 97),
a tese hedonista é defendida por Sócrates não pelo interesse isolado no prazer,
mas com o objetivo de encontrar um fim singular para fundamentar sua técnica
prática : “Sócrates o adota [prazer], antes, por causa da ciência que ele promete, e
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entanto, é necessário que a deliberação humana não possa ser impedida pelo poder
dos impulsos como no fenômeno da akrasía segundo a crença tradicional. Dessa
forma, devemos elaborar uma classificação apropriada do hedonismo apresentado
por Sócrates para compreender qual é sua descrição alternativa para akrasía.
Como observamos, a única diferença à qual Sócrates chama atenção na sua
distinção entre os prazeres é a distinção objetiva de ‘prazer’ e ‘dor’ por sua
quantidade. Através desse hedonismo, o filósofo encontra um critério
comensurável que preserva a possibilidade de comparação entre alternativas
diferentes de escolha. No entanto, apenas isso não é suficiente para
compreendermos o hedonismo apresentado aqui. Durante a exposição dessa tese,
Sócrates recorre à necessidade de se determinar a extensão das ‘proporções’ de
nossas alternativas de escolha em prazer e dor (356b-c). De acordo com o filósofo,
a ‘ilusão’ da aparência presente nos leva a considerar que o prazer imediato de
nossas opções imediatas é mais valoroso do que o prazer contido em suas
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100
Como Rudebush (1999a, p. 27) supõe que Sócrates sustenta o mesmo tipo de hedonismo no
Protágoras e no Górgias julgamos que a classificação do hedonismo socrático nas duas obras é
contínua e complementar. Em outras palavras, acreditamos que a classificação do hedonismo
socrático do Protágoras apresentada em Ethical Protagoreanism é complementa pela classificação
do hedonismo de Sócrates no Górgias presente no artigo O Hedonismo de Cálicles. Neste segundo
artigo, Rudebusch (1999b, p. 171-172) ressalta que Sócrates no Górgias apresenta um hedonismo
do desejo verdadeiro. De fato, a teoria do desejo verdadeiro é compatível com o hedonismo de
magnitudes reais e aparentes do Protágoras. De acordo com Rudebusch, o hedonismo esclarecido
124
permite que o agente se dê conta do que realmente deseja embora não pudesse percebendo
enquanto se encontrava em um estado anterior de ignorância.
125
nenhum parâmetro objetivo para avaliá-la com outras alternativas possíveis. Dessa
maneira, a crença no valor qualitativo do objeto, ou atividade, faz com que o
agente sinta um impulso irresistível para obtê-lo. Para compreender como a
incomensurabilidade ocorre na akrasía, podemos julgar que um homem, sabendo
que y é pior que x, é levado escolher y porque julga, no momento da ação, que y
tem uma qualidade atraente que x não contém. Com efeito, ambas as
interpretações dos comentadores se apoiam sobre a relação intrínseca entre
incomensurabilidade e o fenômeno da akrasía na concepção tradicional.
As interpretações desses autores são amparadas em um conjunto de
exemplos que servem para ilustrar os argumentos hedonistas de Sócrates contra a
descrição tradicional do fenômeno. No entanto, precisamos salientar que as
interpretações explicam a crença da opinião dominante na incomensurabilidade da
akrasía de formas diferentes. Como notamos, Rudebusch (1999a, p. 22-24) atribui
o efeito da akrasía à crença na distinção qualitativa das opções de ação
disponíveis, o que acarreta a pluralidade heterogênea das alternativas e a
incomensurabilidade entre elas. Tendo em conta exemplos de aumento de salário,
ele mostra que a maioria das pessoas pode atribuir seus erros à influência de
desejos particulares, mesmo que utilize um padrão quantitativo para avaliar o que
é melhor (Ibidem, p. 22). De fato, as razões pelas quais a maioria alega escolher a
alternativa menos rentável ao invés da mais rentável – fetiche, prazer imediato,
126
101
Cf. PENNER, 1997, p. 132-133; DEVEREUX, 1997, p. 391
102
Minha formulação se inspira nos exemplos apresentados por Nussbaum (2009), Rudebusch
(1999a) e Penner (1997).
128
Nesta perspectiva, o diabético pode alegar que sua deliberação foi submetida pela
aparência suculenta da torta, pela iminência da satisfação imediata, por um desejo
repentino etc. De acordo com Rudebusch e Nussbaum, as inúmeras razões que um
homem em akrasía pode invocar para justificar seu erro são provenientes da
inserção de um critério qualitativo durante a deliberação do agente. Sendo assim,
podemos considerar que o diabético age apenas em função da crença no valor
qualitativo da torta, que impede qualquer consideração objetiva da perspectiva de
não comê-la em t2. Na sequência, em t3, o agente volta a julgar suas alternativas
sob a ótica hedonista e se repreende pelo que fez. Para manter a resolução da
deliberação durante a ação, é necessário, então, a técnica da medida que preserva
o critério comensurável das alternativas e inviabiliza o desenvolvimento de
motivações irracionais no momento da ação. Com isso, obtemos um retrato mais
detalhado da descrição tradicional da akrasía e da reformulação de Sócrates do
fenômeno no Protágoras.
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103
Como vimos anteriormente, Gosling, Taylor e Irwin assumem claramente sua vinculação ao
pressuposto motivacional. Sendo assim, eles também assumem que Sócrates não reconhece a
influência dos desejos não racionais. Por essa razão, os comentadores dirigem a descrição
alternativa de Sócrates justamente uma crítica que é direcionada, na realidade, ao próprio
pressuposto motivacional que eles atribuem ao filósofo. Segundo eles, o homem em akrasía ainda
poderia sustentar a descrição tradicional em função de seu desejo não racional pela satisfação
imediata. Contudo, em primeiro lugar, observamos que a objeção dos autores se fundamenta em
uma concepção equivocada do hedonismo socrático. Por outro lado, se supormos que Sócrates, na
realidade, reconhece a influência dos desejos não racionais na explicação da ação humana, como
veremos a seguir, essa objeção perde completamente seu sentido.
129
104
Cf. RUDEBUSCH, 1999a, p. 26; NUSSBAUM, 2009, p. 101
131
105
Em uma resenha do livro Socrates, Pleasure and Value, Taylor (2001) endereça críticas a
Rudebusch por sugerir uma teoria da natureza do prazer que não pode ser encontrada no
Protágoras.
106
Cf. IRWIN, 1995, p. 88-89. Verificamos esses pressupostos pelas próprias palavras de Irwin
(Ibidem, p. 88): “O hedonismo parece sustentar a versão fundacionalista do eudaimonismo. O
prazer parece ser um objeto de desejo autoexplicativo e final. (...) Pois o prazer parece ser um fim
indubitavelmente digno de escolha” (nossa tradução). De fato, esse aspecto da interpretação de
Irwin é explicitamente mencionado por Brickhouse e Smith (2010, p. 73).
132
5.3.3
Interpretação de Brickhouse e Smith – Desejo racional e desejo não
racional
107
Kahn (1996) e Weiss (2007) acreditam que Sócrates nos primeiros diálogos acredita no poder
dos desejos não racionais, mas negam, no entanto, que ele sustente essa crença especificamente em
sua refutação da descrição tradicional da akrasía. Segundos esses autores, Sócrates recusa
qualquer referência aos desejos não racionais porque seu interesse é levar as crenças de seus
interlocutores, Protágoras e a opinião dominante, à contradição com o propósito de fazer com que
eles possam assentir ao paradoxo em 358d e, consequentemente, reconhecer a tese de que virtude é
conhecimento. Como essa estratégia argumentativa, envolve a tese de que Sócrates está sendo
insincero acerca de suas verdadeiras crenças, acreditamos que a interpretação desses autores é
implausível. De outro lado, é realmente estranho, como observamos, que Sócrates reconheça o
poder das motivações irracionais em todos os outros diálogos mas apenas no Protágoras ele abra
mão de sua crença para efeitos retóricos. Sendo assim, estamos inclinados a buscar outra proposta
de interpretação que possa contemplar a presença desses tipos de desejos na descrição alternativa
da akrasía.
133
apropriada para o que a opinião dominante diz ser a ‘submissão pelo prazer’. Com
isso, podemos sustentar que o filósofo está disposto a analisar o mesmo fenômeno
que a opinião dominante reconhece. Porquanto a experiência é marcada por um
conflito de desejos, a tarefa de Sócrates será demonstrar que o conhecimento não
é subjugado durante esse processo. Aparentemente encontramos nosso caminho
livre para considerar a influência dos desejos não racionais na descrição
alternativa de Sócrates.
Todavia, seria possível considerarmos, ainda, uma objeção hipotética da
corrente intelectualista a nossa hipótese. Como indicam Brickhouse e Smith
(2010, p. 79), os defensores dessa doutrina poderiam alegar que a inserção dos
desejos não racionais no argumento de Sócrates torna a própria reformulação da
akrasía indistinguível da formulação da opinião dominante. Nesse caso, teríamos
que admitir, necessariamente, que o homem em akrasía é submetido por seus
impulsos e não por sua crença equivocada. No entanto, essa objeção não procede
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se considerarmos que desejo racional e desejos não racionais não são fatores
excludentes, mas complementares. Não há nenhuma contradição entre a tese do
eudaimonismo socrático, segundo a qual agimos de acordo com o desejo racional
pelo que é melhor para nós (em função da eudaimonia), e a existência de desejos
não racionais que se direcionam para a satisfação imediata. Com isso,
conseguimos preservar a tese de Sócrates, pois não temos que assumir que a
deliberação pode sofrer a intervenção direta dos impulsos, tal como julga a
opinião dominante. Na realidade, as implicações da refutação da akrasía nos
levam a sustentar que as paixões só podem interferir na deliberação através do
desejo racional, que é a única força motivacional responsável pela realização da
ação deliberada. A partir dessas evidências, somos levados a admitir que a
introdução dos desejos não racionais na descrição do filósofo pode nos auxiliar a
compreender o que Sócrates quer designar pelo ‘poder das aparências’ em sua
reformulação da akrasía. Sendo assim, nos propomos a explorar a hipótese
apresentada tanto por Devereux quanto por Brickhouse e Smith, no intuito de
analisar com mais profundidade a tese de Sócrates.
Com a introdução dos desejos não racionais no argumento do filósofo
poderemos reformular a experiência da akrasía como uma forma de ignorância.
Como observamos anteriormente no capítulo 2, o paradoxo socrático estabelece
que qualquer crença, seja ela verdadeira ou falsa, é suscetível à alteração, em
134
crença que os impulsos podem levar o agente a desacreditar no seu juízo anterior
acerca do que é melhor. Em termos formais, diríamos que um homem é capaz de
julgar que x é melhor que y e, no momento de agir, passar a considerar que y é
efetivamente melhor sob a influência das paixões. Dessa forma, podemos explicar
o poder das aparências apenas através da introdução dos desejos não racionais.
Nesses termos, a tese de Sócrates não pode mais ser tratada como um erro
puramente intelectual (Ibidem, p. 395). Devemos assim, buscar alternativas para a
leitura intelectualista da passagem.
Dando prosseguimento ao caminho aberto por Devereux, Brickhouse e
Smith levam mais adiante a sugestão de encontrar uma interpretação diferente da
passagem 356b-357e, que contemple a influência dos desejos não racionais. Com
efeito, por mais que o vocabulário utilizado por Sócrates, ao tratar do poder das
aparências e da técnica da medida, pareçam sugerir uma perspectiva espacial
(356c), provavelmente há algo mais em jogo. Segundo Brickhouse e Smith (2010,
p. 75), a perspectiva intelectualista interpreta a tese da ignorância da akrasía como
um tipo equívoco causado pela proximidade do objeto prazeroso, o que causa uma
série de problemas. Em casos de proximidade espacial, o que ocorre é o contrário
do que eles alegam. Com certa frequência, supomos que a proximidade do objeto
nos leva a ter uma percepção mais verídica do mesmo, e não mais enganadora.
Assim, Sócrates precisaria nos explicar porque o prazer se torna mais enganador à
135
108
Para sustentar sua tese, Devereux (1995) se detém sobre um conjunto de referências: (1) a tese
da suficiência do conhecimento contra qualquer outra coisa estabelecida por Sócrates no
Protágoras; (2) as referências do Górgias e do Laques a respeito de ‘resistência’ e ‘persistência’; e
(3) o testemunho de Aristóteles de que Sócrates acreditava no caráter denominado de enkratéia
que consiste na resistência da razão aos impulsos.
137
109
Segundo Bobonich (2007, p. 55), o akuron da aparência pela técnica da medida não significa
que ela deixou de existir, mas apenas que ela perdeu sua força motivacional sobre o agente.
Conforme sugere o intérprete, “uma aparência poderia estar presente mesmo em uma pessoa com a
técnica da medida, apenas não iria determinar como a pessoa age.” (tradução nossa)
138
5.3.4
Uma proposta interpretativa
cálculo deliberativo para obter o maior prazer, ocorre com frequência um erro de
cálculo, como na experiência da ignorância. Como vimos, esse fenômeno ocorre
pela inserção de um fator incomensurável na deliberação do agente, promovido
pela influência de um apetite em proximidade de seu objeto de desejo. Nessa
perspectiva, a incomensurabilidade impede que o agente possa comparar suas
alternativas de ação de acordo com um mesmo padrão de escolha. Tendo isso em
mente, Sócrates julga necessário encontrar um parâmetro comensurável para a
deliberação humana, conforme sustentam Nussbaum e Rudebusch. Se a admissão
dos princípios hedonistas revela a própria natureza comensurável da deliberação
humana, é necessário propor uma técnica deliberativa que assegure as proporções
do maior prazer para além das aparências. Nessa perspectiva, Rudebsuch oferece
uma classificação apropriada do hedonismo de Sócrates com base na distinção
entre magnitudes reais e aparentes de prazer. De fato, a intenção do filósofo é nos
proporcionar um parâmetro de medida que preserve a comensurabilidade da
deliberação orientada pelas magnitudes reais dos prazeres. Por outro lado, como
indica Irwin, o hedonismo depende de uma relação fundamental entre prazer e
eudaimonia. Para Sócrates, portanto, os prazeres realmente desejados são aqueles
que estão fundamentalmente vinculados ao desejo racional pela eudaimonia, isto
é, o que é melhor para si mesmo. O conhecimento dos prazeres leva o agente a
sempre considerar o que ele quer para sua vida como um todo. Em nossa
142
5.3.5
Problemas remanescentes
110
Como defende Muniz (2011, p. 51), por outro lado, isso pode ser atribuído a ausência de uma
análise mais profunda sobre o modo de operação da alma e sua relação com o corpo nos primeiros
diálogos como um todo.
145
6
Considerações finais
conhecimento rigoroso sobre o que é melhor e, ainda assim, fazer o que é pior
arrastado e subjugado pelos mais variados impulsos. A deliberação o direciona
para seu próprio benefício e, por suposto, ele não é forçado a realizar a ação por
forças externas, isto é, a agir de mau grado (ákon). De outro lado, a maioria supõe
que o conflito entre dois tipos de desejos, o desejo racional pelo que é benéfico e
o desejo não racional pela satisfação imediata, é fundamental para que ocorra a
akrasía. O conflito entre os desejos se fundamenta basicamente no pressuposto de
que existe uma força relativa entre os desejos humanos. Com base nessa
convicção, a opinião dominante reconhece em tal experiência a força superior das
paixões humanas sobre o conhecimento. Nesse sentido, consideramos que o
fenômeno constitui tanto um problema em si mesmo e uma dificuldade para as
teses defendidas pelos interlocutores do diálogo.
A formulação da akrasía atribuída à maioria representa um grande desafio
tanto em relação à determinação das condições da realização de uma deliberação
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Referências bibliográficas
1. Bibliografia primária
2. Bibliografia secundária
______. The socratic paradox and it’s enemies. Chicago: 2006. University
of Chicago Press. Review of The socratic paradox and its enemies.
WATERFIELD, R. in: Heythrop Journal, Vol. 48, Issue 4 (2007), pp. 615-
617.
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3. Dicionários