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34º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu – MG, 2010.

ST 28 – Redes ameríndias: sujeitos, saberes, discursos. Coordenação: Denise


Fajardo Grupioni (USP) e Edilene Coffaci Lima (UFPR).

Parentesco e memória: uma reflexão acerca das redes


genealógicas myky e irantxe

Ana Cecilia Venci Bueno


PPGAS USP-SP

O trabalho que apresento tem o intuito de dar início a uma reflexão que é o
tema de pesquisa que desenvolverei no meu doutorado, caminho longo pelo qual
começo a trilhar. Levantarei questões acerca de uma rede genealógica dos povos
ameríndios Irantxe e Myky, habitantes da região oeste do estado de Mato Grosso,
que apresentam um regime de aliança de tipo dravidiano. Inicialmente, para fins
analíticos, esta rede foi dividida em duas partes – redes irantxe e myky –, para que
uma comparação de suas características pudesse ser feita, tanto no plano do
parentesco formal, da regra, quanto no plano das práticas empíricas de aliança que
realizam. Em um outro momento as redes foram pensadas como uma única, tendo
em vista que relações matrimoniais e de parentesco – em sentido mais amplo –
recentes e passadas são verificadas. As razões que me levaram a pensá-los
analiticamente como duas redes, bem com o meu interesse por essas populações
serão esclarecidas na digressão que faço a seguir.
No início do século XX, época do primeiro ciclo da borracha, houve um
massacre em uma das aldeias que ficava nas proximidades do córrego Tapuru, no

1
vale do rio Cravari, em Mato Grosso. Promovido por seringueiros, que viam os índios
como um problema para os seus interesses extrativistas, esta carnificina resultou na
fuga de alguns indivíduos que conseguiram sobreviver, para uma outra região. Dois
contingentes populacionais, atualmente conhecidos como Irantxe e Myky foram,
então, formados, vivendo isolados um do outro por cerca de setenta anos. Os últimos
seriam inicialmente formados por parte dos sobreviventes da ocasião do massacre
que, em fuga, adentrou uma região de mata mais afastada. Outros que conseguiram
se salvar foram abrigados nas aldeias de parentes espalhadas pela região. Estes são
os que mais tarde ficaram conhecidos como Irantxe, e que viveram mais próximos da
Missão jesuítica que se instalou em Utiariti. Intimidados pelos ataques dos Rikbaktsa
e dos Tapayuna, além dos inúmeros surtos de doenças que os assolaram e
dizimaram, eles foram aos poucos se mudando para as proximidades de Utiariti, a
sudoeste da área dantes habitada, ocupando, dessa forma, a outra margem do rio
Cravari. Nessa época em que conviveram com os missionários foram proibidos de
falar a sua língua, homens e mulheres ficavam em ambientes separados, com tarefas
diferenciadas a serem realizadas e seus filhos, também separados de acordo com o
gênero, ficavam no internato edificado pela Missão Anchieta; as meninas em
companhia das freiras e os meninos com os padres. Crianças e adultos foram
batizados, e alfabetizados na língua portuguesa. Os Irantxe não eram os únicos que
viviam com os missionários jesuítas. Outros povos indígenas, inclusive seus inimigos
declarados (Rikbaktsa), dividiam o espaço e as tarefas. Induzidos pelos missionários,
todas essas populações indígenas (Irantxe, Rikbaktsa, Paresí, Nambikwara, entre
outros) passaram a se casar entre si, já que eram impedidos de realizarem alianças
matrimoniais no interior do próprio povo, como costumavam fazer.
O contato com os Myky se deu após uma série de expedições frustradas, em
parceria com índios Irantxe, Paresí e membros da Missão. Os Irantxe sabiam da
existência dessa parcela do povo que havia escapado do massacre, mas a
localização foi muito difícil e alguns anos se passaram até que obtivessem sucesso
na empresa. Desde o primeiro momento em que encontraram os Myky, houve o

2
reconhecimento mútuo da língua falada por ambos1. Foi combinado que um Irantxe
passaria a viver com eles, o que foi feito a seguir.
Atualmente eles se dividem em duas Terras Indígenas em uma região que
integra a bacia do rio Tapajós. A T.I. Myky, onde está localizada a única aldeia em
que vive este contingente que contava, em 20072, com 100 pessoas, possui 47.094
hectares em uma região de transição de cerrado e floresta. A área habitada por eles
é delimitada pela margem direita do rio Papagaio, chegando, ao norte, ao delta
formado por este rio e o rio do Sangue, localizado à direita, no município de
Brasnorte. Os Irantxe somavam em 2007 uma população de aproximadamente 430
distribuídas em sete aldeias. A T.I. Irantxe tem 45.555 hectares dentro de uma região
de transição de biomas amazônico e de cerrado, também no município de Brasnorte.
Atualmente Irantxe e Myky pleiteiam uma terceira T.I. em conjunto, denominada
Manoki, com área de 252.000 hectares, contígua à T.I. Irantxe. Sua demarcação foi
recentemente declarada pelo Ministério da Justiça3e compreende uma área que
coincide com aquela que diziam ocupar antigamente, antes do início dos intensos
contatos com os missionários, e onde encontram-se os enterramentos dos seus
parentes mortos.

Há subgrupos entre os Irantxe e Myky?


O uso dos termos ’irantxe’ e ’myky’ enquanto maneiras de diferenciação destes
dois agrupamentos é relativamente recente. O encontro entre eles se deu apenas na
década de 1970 e até essa época os Irantxe eram chamados, na escassa literatura
produzida a seu respeito, de Myky, comumente traduzido por ’gente’. Para diferenciá-
los desse grupo que estava ainda isolado, porém reconhecido, passaram a ser
conhecidos como ’Myky do Cravari’ em contraposição aos ’Myky do Escondido’4.
Pouco depois os Myky do Cravari passaram a ser chamados de Irantxe, termo que,

1
A língua Myky foi estudada pela lingüista Ruth Monserrat, que a classificou como uma língua isolada.
2
O trabalho de campo foi realizado nos meses de fevereiro e março de 2007.
3
Cf. Portaria nº 1429, de 4 de agosto de 2008, Diário Oficial da União, 05 de agosto de 2008
4
Referência à região denominada ‘Escondido’ pelos membros da expedição que buscavam estes
índios e tiveram muita dificuldade de encontra-los.

3
por sua vez, é atribuido a uma palavra dos índios Paresí para designar um tipo de
abelha.
Ao mesmo tempo em que Irantxe e Myky reconhecem uma mesma origem –
mítica, inclusive –, não mencionam uma habitação única entre eles no passado.
Penso que isso possa ser atribuido ao fato de que eles se distibuiam em uma
pluralidade de aldeias localizadas, sobretudo, próximas aos córregos da região que
ocupavam no passado. Reconhecem sim uma grande proximidade, relações de
parentesco mas, ao menos atualmente, não se vêem como um mesmo grupo, da
mesma forma que os Irantxe vêem os membros de todas as sete aldeias que se
encontram na T.I. Irantxe, e como os Myky consideram aqueles que moram em sua
aldeia. Entretanto, não se percebem tão distantes como se vêem em relação a outros
povos indígenas do entorno e em relação a brancos que moram em suas aldeias,
antropólogos e indigenistas, por exemplo.
Tenho ainda poucos elementos para tentar a contento uma reconstituição das
formas de agrupamentos no passado desses atuais contingentes. Mas uma
informação relevante que os une, para além da estreita aproximação linguística, cujas
diferenças são apenas dialetais, e dos laços de parentesco, sobre o qual falarei a
seguir, é o fato de eles se chamamarem uns aos outros empregando o termo manoki,
que pode ser traduzido por ‘visitante’. Entretanto, vale ressaltar, este não é um termo
utilizado para visitantes ‘de fora’, como outros povos indígenas ou visitantes brancos,
mas provavelmente entre aqueles que viviam no passado nessa pluralidade de
aldeias.
Estas questões referentes à onomástica, tipos de gente e a existência ou não
de subgrupos entre os Irantxe e os Myky, atualmente e no passado, deverão ainda
ser melhor exploradas, o que não poderei fazer aqui. Penso a análise dos dados de
parentesco como uma via privilegiada de acesso para este fim, bem como o trabalho
com os mitos (tendo uma variedade já coletada entre os Irantxe) e outras narrativas e
formas expressivas da vida cotidiana.

O dravidianato irantxe e myky

4
Voltemos à questão da construção de duas redes distintas. Diante de tal
história de uma recente cisão em que os diferentes agrupamentos passaram a
apresentar características e experiências proporcionadas pelo contato (com índios e
não índios) tão diferentes, procurei compreender como o regime de aliança
dravidiano que os Irantxe e os Myky apresentam se comportaria em ambas as
situações. Em outras palavras, como esse regime de aliança subsistiu à ausência,
ainda que parcial, de seu suporte lingüístico original (caso dos Irantxe), e como as
categorias semânticas adaptaram este novo esquema vocabular – tendo em vista que
os Irantxe falam predominantemente a língua portuguesa. Para este fim, a
terminologia de parentesco myky coletada pela antropóloga Gisela Pauli (1999) foi
tomada como parâmetro para as análises feitas acerca da terminologia irantxe.
Ao coletar os termos de parentesco na língua nativa e analisar os termos
empregados no material mítico que colecionei, pude perceber que a língua
portuguesa irantxe mantém a lógica da terminologia dravidiana ao destacar os
diferentes tipos de “tios” e “tias”, tal qual fazem os Myky na língua nativa. Ou seja, os
Irantxe usam termos diferentes em português para referirem-se à irmã da mãe (MZ) e
à irmã do pai (FZ). A primeira é chamada de tia e a segunda de titia. No caso do
irmão do pai (FB) e do irmão da mãe (MB), o primeiro é chamado de tio e o segundo
de titio. Em um sistema considerado elementar como o dravidiano, a diferenciação
dos parentes é feita a partir da dicotomia paralelo/cruzado, havendo uma aglutinação
dos termos dos parentes consangüíneos mãe e irmã da mãe (M e MZ) e pai e irmão
do pai (F e FB). O que se vê na esfera da terminologia dravidiana irantxe é, portanto,
a incorporação da diferenciação dos parentes paralelos e cruzados na língua
portuguesa falada por esses índios.
Grande parte d’As Estruturas Elementares de Parentesco (Lévi-Strauss, [1949]
1982) é dedicada às análises de sociedades com estruturas elementares de aliança,
ou seja, a povos que formulam uma regra positiva operante na busca de parceiros
matrimoniais possíveis. Em outras palavras, são sociedades dentre as quais a
escolha dos cônjuges é orientada geração após geração entre uma certa categoria de
parentes possíveis. O autor comenta também a existência de sociedades com

5
sistemas semi-complexos de aliança e as de sistemas complexos, nos quais a
determinação do cônjuge é formulada negativamente. Deixa claro, no entanto, que
uma teoria geral do parentesco será viável apenas quando todos os tipos de
sociedades humanas forem consideradas e quando for possível dar conta das
estruturas elementares e complexas de aliança.
Françoise Héritier (op.cit.), ao estudar sistemas classificados por Lévi-Strauss
como ‘semi-complexos’ – a saber, os sistemas que operam terminologias crow e
omaha, nos quais a filiação depende de uma estrutura elementar de parentesco, mas
com uma regra negativa que opera na escolha de cônjuges – busca mostrar que tais
sistemas, bem como os ‘complexos’, nos quais a escolha dos cônjuges se dá
aparentemente por meio de uma escolha individual dentro de um espaço delimitado,
mantém uma mesma estrutura. Esta seria, contudo, aquela revelada por Lévi-Strauss
nas sociedades de sistemas de aliança elementares. Para tanto a autora se apóia em
uma metodologia ainda pouco explorada, que utiliza as análises computacionais
como meio para atingir as realidades do funcionamento matrimonial das sociedades.
Observa que é justamente a superabundância de regras proibitivas de escolha do
cônjuge entre os Samo, grupo estudado por ela, associada à prática da poliginia5, que
permite o funcionamento de um sistema de aliança que conjuga as proibições
clássicas do sistema omaha6, que restringiria o número de cônjuges possíveis, com a
endogamia de aldeia.
Héritier conclui que nenhuma sociedade humana pode evitar o casamento
entre consangüíneos, ainda que seja dentro de uma consangüinidade considerada
afastada, como é o caso evidente das sociedades complexas. Se uma análise
exaustiva fosse feita, observaria-se que todos, no fundo, são parentes. Entretanto,
uma série de classificações é feita nas diferentes sociedades para que ela continue
se constituindo enquanto tal. Caso contrário, cada indivíduo teria um número muito
elevado de parentes com os quais o casamento seria inviável, e se fossem
observadas as gerações ascendentes destes indivíduos, o número de parentes seria

5
Prática de um homem contrair casamento com mais de uma esposa.
6
Sistema de aliança patrilinear, de casamento prescritivo aliado a proibições matrimoniais entre
algumas linhagens.

6
duplicado a cada geração (2 pais, 4 avós, 8 bisavós etc.) e todos os descendentes de
um lado ou do outro destes pares de avós seriam parentes em graus diversos (Augé,
1975:15). Ao operar com regras que possibilitam ou impossibilitam a aliança
matrimonial com certas categorias de pessoas, os casamentos dentro de um certo
grau de consangüinidade é, portanto, permitido, mas cada agrupamento social define
qual será a medida desse grau de afastamento e de proximidade.
De acordo com Héritier todas as sociedades humanas funcionariam, portanto,
a partir de um mesmo reduzido material que permite um número finito de figuras de
base: a da troca restrita, da troca generalizada e a do fechamento. Esta última figura
pode ou não ser acompanhada das modalidades de troca restrita ou generalizada, e
significa que dois diferentes grupos unidos por uma aliança matrimonial volta, ao
passar de algumas gerações, a se relacionar, produzindo um casamento dentro de
um grupo de consangüíneos, ainda que considerados distantes.

O uso de técnicas computacionais para os estudos de parentesco


As conclusões às quais Héritier chegou só foram possíveis por meio da
utilização de tecnologias computacionais em suas análises. Embora esse tipo de
metodologia se configure em um problema para grande parte dos antropólogos e
cientistas sociais até os dias de hoje, Lévi-Strauss, em 1952, já chamava a atenção
para a sua importância no texto Noção de estrutura em Etnologia, que integra o livro
Antropologia Estrutural (Lévi-Strauss, [1958]1975). Segundo o autor, os estudos
etnológicos priorizariam um modelo mecânico de análise, ou seja, aquele que está na
escala dos fenômenos, deixando o modelo estatístico à margem. O etnólogo, já
àquela época, destacou a importância e a imprescindibilidade do uso combinado dos
dois métodos de pesquisa, pois ele proporcionaria uma análise mais completa, que
pudesse dar explicações satisfatórias tanto sob o ponto de vista da norma e da teoria
– do vivido – , ou seja, do que ele chama de modelos conscientes, como sob a ótica
das práticas reais, os modelos inconscientes – o concebido. As próprias
representações conscientes dos indígenas, aquelas que perpetuam as crenças,
encobrindo assim a estrutura profunda, merecem total atenção por parte do

7
pesquisador, pois são justamente elas que oferecem uma melhor via de acesso à
categorias inconscientes, às estruturas mais profundas do pensamento. Assim,
utilizando a metodologia proposta por ele, os estudos, sobretudo os de parentesco
nos diferentes agrupamentos sociais, se desenvolveriam a passos largos. Seguindo
esta trilha, Héritiér mais tarde reforçou esta necessidade em seu trabalho,
desenvolvido sob esta temática, pontuando que nem sempre as regras são seguidas
à risca na prática (op.cit.). A observação do modelo pode, assim, ser apreendida por
meio de um modelo mecânico. Mas os usos reais e as práticas vividas só podem ser
verificados com um modelo estatístico.
Contudo, no que diz respeito ao desenvolvimento dos estudos do parentesco,
não foi isso o que aconteceu nos anos que seguiram às primeiras observações de
Lévi-Strauss, apesar de terem ocorrido algumas tentativas neste sentido com
Murdock (1949). Todavia, a antropologia do parentesco acabou por se constituir em
uma análise de regras e normas, e o tema das escolhas matrimoniais, sob o aspecto
das práticas reais de casamento – que fundamenta empiricamente os sistemas de
parentesco – foi, por muito tempo, negligenciado. Ainda que os chamados métodos
estatísticos tenham sido utilizados, eles o foram de maneira inadequada, pois
serviram, via de regra, para a realização de um simples recenseamento de uma rede
de parentesco (Hamberger, Houseman & Grange, 2008).
Observa-se então que, embora o uso de recursos computacionais não seja
uma temática absolutamente nova, o seu uso para o fim dos estudos do parentesco
não foi desenvolvida a contento e, como lamenta Lévi-Strauss, “algumas lacunas são
irremediáveis“ (op. cit.:341).
Inspirada por estas questões e, após refletir sobre os aspetos formais, passei a
analisar as práticas das alianças matrimoniais realizadas pelos Irantxe e Myky. Tal
feito teve como ponto de partida os dados genealógicos forjados durante e depois da
experiência de campo, questão que problematizo a seguir. Estas informações deram
origem a um corpus genealógico, processado no software denominado MaqPar7, que

7
Acrônimo de Máquina do Parentesco: software criado pelos antropólogos João Dal Poz (UFJF) e
Marcio Silva (USP) para o estudo de redes de parentesco.

8
possibilitou o estudo preliminar das redes de parentesco destes contingentes
populacionais.
Esta experiência tornou factível uma comparação do aspecto formal do
sistema de aliança dravidiano, tal qual apresentado por estes contingentes e
apresentado acima, com a rede empírica. Resumidamente, percebe-se que este tipo
de aliança de estrutura dravidiana não corresponde ao que em teoria se espera dela,
ou seja, que as práticas matrimoniais sejam entre parentes considerados cruzados,
preferencialmente. Contudo, o que os Irantxe e Myky têm levado em conta é uma
gradação de proximidade e distância entre os parentes na escolha dos cônjuges.
Assim, eles casam-se mais com parentes que consideram distantes do que com
aqueles considerados afins, segundo o âmbito da regra que caracteriza os sistemas
elementares de parentesco.
O que se pode inferir, portanto, é o fato de que no plano das práticas
matrimoniais, bem como no vocabulário, estes dois contingentes populacionais
apresentam características comuns. Embora tenham vivido apartados e com
experiências de contato diferenciados, Irantxe e Myky traçam caminhos semelhantes.
Isso mostra que o que fazem não é dar respostas a questões proporcionadas pela
contingência, pois neste caso apresentariam respostas diferentes, tendo em vista as
histórias particulares de cada agrupamento. Antes, os quadros que apresentam são
extensões de um sistema de aliança elementar, mas que reservam características de
um sistema de aliança complexo, pois têm formas estruturais homólogas, como
sustenta a antropóloga François Héritiér (1981) e, portanto, obedecem às mesmas
regras. Assim como os sistemas de aliança elementar, o apresentado aqui também
divide os parentes consangüíneos em ‘casáveis’ e ‘não casáveis’ mas, neste caso, é
o afastamento entre os possíveis cônjuges o que faz com que alguns sejam
preferidos em detrimento de outros.

Genealogia como método de pesquisa dos estudos de parentesco


Passo a falar do uso da genealogia como método de pesquisa antropológica.
Este não é um tema novo. Ao contrário, a primeira referência sobre sua importância,

9
sobretudo para o estudo de populações de tradição oral, data de 1910, e tem W. H.
R. Rivers como seu primeiro entusiasta. Embora ele não tenha sido o criador do
método, seu mérito está no fato de o ter transformado em ferramenta analítica da
disciplina antropológica e, sobretudo, para os estudos de parentesco; para o autor,
este seria o instrumento mínimo de trabalho nas variadas áreas da disciplina e o
alfabeto que permitiria a transcrição da linguagem do parentesco.
Tão importante, vale notar, que os métodos de coleta e organização de dados
genealógicos, tal qual proposto por ele, foram incorporados no Notes and Queries...,
o livro-cartilha, referência de todos os etnógrafos da primeira metade do século XX. A
utilização do método genealógico permitiria a investigação dos problemas abstratos
com os quais o pesquisador se depara, com uma base concreta. Ele proporcionaria,
assim, uma maior credibilidade aos estudos dos fatos observados, demonstrando sua
veracidade, o que elevaria a etnologia ao nível das outras ciências.
Inspirada por esta temática, no que diz respeito á construção do corpus
genealógico myky e irantxe, organizei um banco de dados, cujas informações foram
submetidas à MaqPar. Além desta, existem outras ferramentas que possibilitam a
análise de redes. Dentre elas, destaco o Pajek, programa que possibilita a
visualização de redes complexas, e o PUCK (Program for the Use and Computation
of Kinship data), desenvolvido pela equipe do projeto TIP – Traitement Informatique
de la Parenté (ANS-CNRS), composta por Houseman, Hemberger, entre outros –,
que há alguns anos vêm trabalhando com esta temática. Em uma verificação
preliminar, utilizando os três recursos disponíveis, foram extraídos alguns dados
acerca da consistência das redes, que neste momento foram unificadas e que
apresento a seguir. Estes dados passarão ainda por uma reflexão no que diz respeito
às suas potencialidades no âmbito sociológico.
A rede empírica de parentesco Irantxe e Myky mostrada abaixo é composta
por 618 indivíduos – vivos e mortos. Dentre eles foram identificados 324 homens e
294 mulheres. São 163 casamentos férteis, o que corresponde a 92% do total e 1003
relações de filiação em 15 componentes. O componente máximo da rede conecta
97% dos indivíduos, o que significa que para qualquer par de indivíduos que dele

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fazem parte, de um total de 597, há ao menos um caminho que pode ser percorrido
entre eles. Os 177 casamentos envolvem 157 homens e 149 mulheres; destes, 22
mulheres e 38 homens tiveram mais de uma aliança matrimonial. Os componentes
partilhados diferem um pouco: agnático = 1,89; uterino = 2,27. A rede tem
profundidade de 7 gerações e o tamanho médio das fratrias é 3,36 (agnática) e 3,42
(uterina). A figura abaixo corresponde a uma visualização do corpus Irantxe e Myky
produzida pelo aplicativo Pajek, a partir da conjunção de informações que deu origem
aos dados que foram submetidos à MaqPar e ao PUCK. Os triângulos e os círculos
vermelhos representam indivíduos masculinos e femininos, respectivamente, as
linhas azuis, as relações de casamento e as linhas pretas referem-se às relações de
filiação.

Figura 1: Visão geral da rede de parentesco Irantxe e Myky (Pajek)

Redes genealógicas e memória


A construção dos dados que originou o diagrama acima foi mais trabalhosa do
que imaginava, pois as fontes de informações eram muito variadas: os censos myky e

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irantxe, textos dos missionários, genealogias feitas por Elizabeth Rondon (missionária
jesuíta que vive há muitos anos entre os Myky) e pela antropóloga Gisela Pauli, além
das minhas próprias anotações de campo, oriundas de vários informantes diferentes,
indígenas e não indígenas. Todas estas fontes apresentavam dados muitas vezes
desencontrados. Colocar um ponto final nas tentativas de aprimorar o corpus forjado
com informações cada vez mais precisas não foi tarefa fácil.
A dificuldade em compreender que não se tratava necessariamente de um
engano foi grande. E grande também foi a curiosidade em entender qual a natureza
daquele material que eu tinha em mãos. O que ele me dizia? Por que o registro de
uma pessoa aparecia nas informações oriundas de uma e não de outra de uma
mesma família? E neste sentido, quais são os mecanismos aos quais recorrem uma
pessoa ou outra quando contam sobre o parentesco da sua família, da família do
outro ou de seus antepassados. Quais são os parentes privilegiados, ou quais são as
memórias envolvidas neste processo de escolha de pessoas que são levadas em
conta e aquelas que são descartadas? Por que algumas pessoas são
veementemente lembradas por uns e absolutamente esquecidas por outros? Quais
são as lembranças, os esquecimentos, os não ditos? Como é possível remontar um
passado a partir de tantos retalhos? E o que nos conta um estudo de parentesco
realizado a partir desta colcha de retalhos genealógica, que tem como resultado uma
rede de parentes que viveram em épocas distintas, selecionados pelas mais variadas
pessoas, pelas mais variadas razões? Ainda não tenho respostas a estas questões,
mas adianto algumas reflexões sobre o tema.
As informações oriundas de diferentes fontes, orais e escritas, são infletidas
pelo tempo presente e pelo sistema de parentesco, tal qual apresentado pelo grupo
social em questão. Sobre este aspecto Vansina, tomando como base os ogboni, da
nação Ioruba, na África, argumenta que “a profundidade temporal máxima alcançada
pela memória social depende diretamente da instituição que está ligada à tradição. A
história da família africana não remonta a um passado muito distante porque esta
conta apenas com gerações e porque, de modo geral, há pouco interesse em lembrar
acontecimentos anteriores” (1982:169). Alinhando-se a esta proposição, Woortmann

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(op. cit.), pesquisadora que fez um trabalho sobre a maneira dos colonos teuto-
brasileiros do Rio Grande do Sul pensarem o parentesco e construírem sua memória,
afirma ser esta ‘amnésia’ também uma construção da tradição.
Vansina também comenta a existência de uma tendência em regularizar as
genealogias para conformá-las às normas ideais da sociedade naquele dado
momento. Assim, algumas pessoas podem simplesmente desaparecer de uma
genealogia e sua lembrança, em tempos futuros, não existirá. Isso se deve ao fato de
que a genealogia não congela o tempo histórico. Ela não representa uma realidade
única, mas revela realidades múltiplas de diferentes momentos na história.
É importante ressaltar que “teoricamente os limites de tais redes tendem ao
infinito uma vez que para qualquer indivíduo que delas faça parte, seu pai, avô,
bisavô etc., por definição, dela faz parte também. Além disso, convém dizer que tais
redes quase sempre comportam dimensões de relacionalidade não redutíveis aos
fatos genealógicos stricto senso” (Silva, 2010: 13).
Portanto, uma genealogia não tem correspondência com a realidade total do
momento em um determinado local. Como sugerem Hamberger, Houseman e Grange
(op.cit.), “um corpus não representa nada mais que uma imagem lacunar e
incompleta da rede genealógica real. Tais lacunas não são, no entanto, distribuídas
de forma aleatória, mas favorecem certas relações de parentesco mais do que
outras”.
Esta obliqüidade é inevitável ainda que haja um esforço, por parte do
pesquisador, em obter os dados mais completos possíveis. No caso do meu trabalho
entre os Irantxe e Myky, procurei a fundo realizar a genealogia mais completa
possível e, para isso busquei referências entre as mais diversas pessoas, indígenas e
não indígenas, em uma conjunção de suas memórias particulares e coletivas,
pensando memória enquanto uma presença do passado e não como uma forma de
revivê-lo (Woortmann, 1994). Assim, a memória é pensada enquanto um agente
criador que opera por meio das lembranças e também dos esquecimentos, sejam
eles motivados pelas realidades múltiplas de diferentes momentos na história, ou
mesmo pelo fato dos ancestrais já se localizarem de forma imprecisa na memória.

13
Dessa forma, o corpus por mim coletado representa a construção de um
conjunto de experiências de cada um daqueles que me forneceram informações e
dados genealógicos. E, por sua vez, a experiência de cada um deles foi articulada a
partir da experiência de outros, que lhes foi narrada e experimentada em algum
momento de suas vidas. Isso se deve ao fato de que essas linhas de parentesco
acionadas não existem por si. Elas integram-se em uma rede de alianças em que
cada casamento articula-se com outros, relacionando-se às gerações precedentes e,
por certo, às futuras.
Esta rede a qual me refiro, que se parece com uma colcha de retalhos é,
portanto, formada por todas as linhas lembradas e narradas, presentes na tradição
oral, nas experiências da vida cotidiana ou na memória individual, mas também por
todas as outras que são esquecidas. Pois, estas também sofreram influências e
influenciam, de maneira direta ou indireta, as alianças que compõe a rede
matrimonial de um dado agrupamento social. Pode ser considerada uma bricolagem
de diferentes experiências, pois engendra outras absolutamente novas, e que
servirão de matéria-prima às que seguirão.
Neste sentido, a análise das memórias e das genealogias envolvidas pode ser
uma chave importante para a compreensão de como são feitas as escolhas
matrimoniais, quais são os interesses neste jogo em que há uma variedade de
possibilidades, de pessoas consideradas casáveis e apenas uma é escolhida,
influenciando, assim, as alianças futuras.

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