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Aos que lutam contra o “desencantamento

do mundo”.

Queria falar da exclusão,


dos crédulos e dos laicos,
dos ingênuos e dos mágicos,
dos pobres sempre trágicos.

Queria falar da terra,


da liberdade de expressão,
do homem subjugado,
do processo de alienação.

Queria falar do domínio,


da externalização da natureza,
dos sonhos e esperanças,
contrapondo a correnteza.

1
CONTRA A CORRENTEZA

Valter Casseti

2
SUMÁRIO

1. A NATUREZA EXTERNALIZADA

Desencantamento do mundo
O conceito faustiano da cultura ocidental e a doutrina utilitarista
A ciência no contexto da externalização da natureza
A ciência no contexto do desencantamento do mundo
A natureza externalizada na geografia
A geografia e o desencantamento do mundo
O relevo no contexto ideológico da natureza externalizada
A ciência como força produtiva

2. A DIALÉTICA DA NATUREZA

A reflexão dialética
A relação natureza e sociedade na dialética materialista
As leis da dialética
Os processos evidenciados na natureza e na sociedade
A dialética da natureza
O materialismo da natureza
A dialeticidade da relação homem e natureza

3. A GEOGRAFIA DA NATUREZA

A dialética da natureza como instrumento transformador


Pensar de outra maneira
A dialética da natureza na geografia
Pressupostos para a compreensão das relações processuais
A necessária interdisciplinaridade
O fim das verdades acabadas
A prática social na geografia

3
NOTAS PRELIMINARES

Este trabalho foi originalmente impresso pela Editora Kelps, em Goiânia, em 1999. Foi nossa
primeira e última experiência em publicação independente, dada a falta de estrutura para a
divulgação e distribuição, tornando-o praticamente restrito ao círculo interno da instituição
(Universidade Federal de Goiás).
Dez anos depois de sua elaboração, resolvemos disponibilizá-lo na Internet, considerando os
bons resultados obtidos com a divulgação de outro trabalho de nossa autoria, intitulado
“Geomorfologia”, através da página da FUNAPE (www.funape.org.br/geomorfologia).
Antes de apresentá-lo para uso, considerações e críticas, fizemos uma rápida revisão do texto,
procurando suprimir ou adicionar alguns parágrafos, sem a incorporação de novas pesquisas
bibliográficas. Mantivemos, contudo, a insistência em retomar constantemente os princípios
que constituem o núcleo central da análise.
Abaixo disponibilizamos nosso endereço eletrônico para troca de informações, envio de
sugestões, críticas ou possíveis esclarecimentos.

O Autor

Agradecimentos:
À Professora Carmem Nunes Guimarães Leite pela revisão de português.
À Professora Maria Amélia Nunes Guimarães Leite pelas sugestões.

Para citação deste texto:


CASSETI, Valter. Contra a Correnteza. [S.l.]: [2009]. Disponível
em: <http://www.funape.org.br/contracorrenteza/>. Acesso em: ....

Para críticas e sujestões:


vcasseti@bol.com.br

4
APRESENTAÇÃO

“A ciência é o reflexo do homem no


espelho da natureza”.
Pauli

O objetivo deste trabalho é o de resgatar o conceito de natureza dialética na


concepção engelsiana, que considera o homem como resultado do processo histórico de sua
evolução. Esta afirmativa deveria ser evidente por si mesma, não fossem mais de três séculos
de natureza externalizada pelo homem. A externalização da natureza se dá pela sua
conversão de sujeito, intrínseca ao homem, em objeto de apropriação, incorporado a categoria
dos meio de produção. Esse processo assume relevância com a perspectiva utilitarista que se
constitui em componente básico do sistema de produção capitalista.
Ao discutir tais conceitos, procura-se evidenciar as particularidades das leis que regem
os processos da natureza e da sociedade, que se articulam com base no princípio da dialética.
Tais relações, entre natureza e sociedade, são fundamentadas, na presente abordagem, nas
categorias do materialismo dialético, uma vez que evidenciam as estratégias ideológicas que
explicam a externalização da natureza: apropriação privada dos meios de produção legitimada
pela reprodução ampliada do capital. Nesse sentido tem-se como resultado a apropriação
espontaneísta da natureza, que levou a cultura ocidental à ideologização do
“desencantamento do mundo” induzido pela ciência. O resultado é materializado pelo
antagonismo de classes sociais, impactos ambientais e insustentabilidade do processo
produtivo imposto pelo sistema hegemônico do modelo de desenvolvimento.
A ideia, embora não seja nova, visa a uma pretensa contribuição centrada na
sistematização dos argumentos do materialismo dialético, na visão engelsiana, tendo como
elemento de crítica o “desencantamento” cartesiano. A discussão sempre será oportuna,
principalmente no momento atual, quando novos paradigmas são postos como conduta ao
pensamento hegemônico. O novo modelo de desenvolvimento produtivista e a revolução
científico-tecnológica dos meios de produção fundamentam-se na perspectiva de sustentação
do sistema de produção capitalista: os investimentos em uma base material orgânico-
renovável com a reedição ideológica do racionalismo teleológico, implica maior reflexão e
necessidade de encontrar uma nova forma de pensar, contrapondo a correnteza. Nesse
contexto insere-se a Geografia enquanto disciplina, apropriando-se de tendências, como a de

5
base fenomenológica, que busca através do “imaginário social” a compreensão das relações
espaciais, em detrimento da “cultura material”, valorizada pela corrente crítica.
Partindo do princípio de que a concepção externalizada da natureza tenha levado à
apropriação privada dos meios de produção -insiste-se propositalmente em tal argumento-, e
seus males resultantes (antagonismo de classes sociais, reprodução permanente da
alienação, problemas ambientais, entre tantos outros), é que se procura resgatar o conceito de
“dialética da natureza” preconizado por Engels. Torna-se assim imprescindível a
“internalização” da natureza como forma de recuperação da essência do homem enquanto
sujeito intrínseco à natureza, o que representa questionar as razões das diferenças
socioeconômicas, das imposições jurídico-políticas, da apropriação espontaneísta dos
recursos, da subjugação de povos e nações, enfim, de todo o processo de dominação.
Ao evidenciar a participação da Geografia nesse contexto, alerta-se para a
necessidade de se buscar uma nova prática social da Geografia enquanto formadora da
consciência social.
A tese central do presente trabalho fundamenta-se nos seguintes pressupostos:
a) a "externalização" da natureza constitui argumento ideológico ao promover a
apropriação privada dos meios de produção e por conseguinte de si mesma;
b) a apropriação privada da natureza, aliada ao processo produtivista, estimula o
espontaneísmo que implica antagonismo de classes sociais, sob a égide da
alienação, e conseqüentes impactos ambientais.
Para buscar respostas a tais argumentos estruturou-se o presente trabalho em três
partes assim constituídas:
1. A Natureza Externalizada: onde se procura explicar, a partir do método
gnosiológico, o processo de externalização da natureza, corroborado pelo conceito
faustiano da cultura ocidental e pela ideologia do utilitarismo. Nesse momento
procura-se evidenciar a participação da ciência, fundamentada na externalização da
natureza, no processo de alienação resultante e na investigação incessante dos
recursos naturais como forma de sustentação do sistema de produção capitalista.
Procura-se resgatar a particularidade da Geografia nesse processo de alienação e
apropriação, finalizando o tópico com a inserção da ciência no desenvolvimento
tecnológico e sua implicação ideológica.
2. A Dialética da Natureza: é colocada como perspectiva para compreender a
unicidade existente entre natureza e sociedade. Para tanto recorre-se aos conceitos
e categorias do materialismo dialético, seguidos dos argumentos da “dialética da
natureza” concebidos por Engels.
3. A Geografia da Natureza: São apresentadas algumas questões consideradas
relevantes para a Geografia, tanto no sentido de se resgatar a unicidade de seu

6
objeto, como no de insistir na recuperação das categorias do materialismo dialético
em sua fundamentação teórico-metodológica. A abordagem pretendida parte da
necessidade de se agir de outra forma (nível ontológico), resgatando os princípios
teórico-metodológicos do materialismo dialético (nível gnosiológico e
epistemológico), concluindo com a questão da prática social (nível da práxis) do
geógrafo.

Como foi observado inicialmente, não há aqui qualquer pretensão de inovar, mas de
insistir na necessidade de se pensar de maneira diferente, como forma de superação da
apropriação privada da natureza e seus desdobramentos.

7
PARTE I

A NATUREZA EXTERNALIZADA

“O ser humano não pode mover


montanhas sem primeiro emitir
um título de propriedade”
Isaiar Browman

8
O DESENCANTAMENTO DO MUNDO1

“Por que o ópio nos faz dormir?”, pergunta


o médico ao candidato em O Doente de
Moliére (1673). “Porque tem a virtude
soporífera e possui um determinado
componente entorpecedor”, responde.

Ao tentar compreender o processo de ideologização da natureza, forma de alienação


imprescindível à legitimação da apropriação privada dos meios de produção, necessariamente
recorre-se a Descartes, que é consagrado como precursor da filosofia moderna e idealizador
das condições necessárias ao “desencantamento do mundo”. Cria o método da ciência
moderna baseado na dedução usual da matemática, promovendo o desenvolvimento da razão
instrumental.
Descartes utiliza o método gnosiológico da modernidade2 para se despojar de “todos
os vestígios naturais” (Adorno e Horkheimer, 1986)3, estabelecendo a cisão corpo e alma, no
intuito de dominar o mundo, transformando-o em “objeto interno do pensamento, na forma de
sua abstração – as ideias claras e distintas” (Matos, 1990)4. A cisão corpo e alma têm por fim a
dominação da natureza interna do homem como forma de dominação da natureza externa.
Descartes aprofunda as relações entre o corpo e a alma em “As Paixões da Alma”
(1987)5, onde o corpo é representado como objeto de dominação do pensamento. A noção de
“corpo-máquina” pode ser constatada em seu Tratado do Homem, obra póstuma: “o corpo não
é outra coisa senão uma estátua ou máquina da terra, formada propositalmente por Deus”. A
“medicina-ficção” de Descartes é percebida ao comparar o organismo como uma grande
caldeira que move a corrente sangüínea: “as partes mais vivas, mais fortes e mais sutis do
sangue dirigem-se ao cérebro para nele introduzirem um determinado sopro muito sutil, ou
melhor, uma chama bem viva e bem pura chamada de espíritos animais. (...) Os pequenos
filetes que constituem a medula dos nervos são puxados com bastante força para se
romperem; o movimento causado no cérebro provoca na Alma, a interessada em conservar a
morada do cérebro, um sentimento de dor”. Para Descartes a alma se relaciona com o corpo,

1
Texto parcialmente extraído do artigo do autor “A Ideologia da Modernidade e o Meio Ambiente”. Bol. Goiano
de Geografia, Goiânia, 15(1):17-34, jan/dez, 1995.
2
O empirismo, e portanto, o positivismo, se limita ao primeiro passo: fazer ciência é conhecer o particular para se
chegar a conceitos gerais.
3
Adorno, Theodor W. & Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento. R.Janeiro: Zahar, 1989.
4
Matos, Olgária C.F. Desejo de Evidência, Desejo de Vidência. S. Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 284.
5
Descartes, René. As Paixões da Alma. S. Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 223-306 (Os Pensadores).

9
ou este com a alma, por intermédio da glândula pinel, localizada no cérebro, caracterizando
assim o contato entre o físico e o espiritual.
Com relação ao pensamento, Descartes o divide em dois tipos: as “ações da alma” e
as “paixões da alma”.
As “ações da alma” correspondem às vontades: as que nascem na alma e terminam na
alma e as que nascem na alma e terminam no corpo. As “paixões da alma” correspondem às
percepções ou conhecimentos: as que têm a alma como causa e as que têm o corpo como
causa. Ora são imaginações produzidas pelo curso fortuito dos “espíritos animais” (sonhos,
devaneios...), ora são percepções dependentes de tais imaginações com causas próximas
desconhecidas. Descartes (1987)6 considera o amor como “uma emoção da alma causada
pelos movimentos dos espíritos animais” que a incitam a unir-se voluntariamente aos objetos
que lhe parecem convenientes. A definição de amor pela ciência cartesiana não desagradaria
aos personagens libertinos de Sade, que, ao contrário, não conseguem atuar como sujeitos.
“Suas práticas libertinas, nas quais mostram o máximo autodomínio e desencantamento do
corpo e alma, coadunável com a ciência cartesiana, não os colocam como plenamente
emancipados e livres. Já não são criaturas que vivem, mas apenas sobrevivem. Não se pode
dizer que estiveram como sujeitos mesmo quando conseguiram o domínio das paixões”
(Ghiraldelli, 1994)7.
Para Descartes é imprescindível vencer as paixões diferenciando assim a “alma forte”
da “alma fraca”. Tal argumento tende a induzir o homem ao desencantamento do corpo e por
conseguinte, da alma, o que levou Descartes a se vangloriar de que “os homens não teriam
nada mais a admirar nos céus após suas pesquisas astronômicas e muito menos nas suas
almas e corpos após suas pesquisas psicológicas e fisiológicas” (apud Matos, 1990)8.
A separação entre uma substância (res) pensante (cogito) e uma substância (res) que
possui corpo, matéria (extensas), ao revelar o desencantamento do corpo, revela também
desencantamento da alma, iniciando o processo de dissolução do sujeito. O corpo, uma vez
isolado, mostra uma identidade duvidosa: a unidade da vida individual, na qual se baseia a
subjetividade. Assim se tem a “feliz apatia” que Adorno e Horkheimer (1986)9 entendem como
a dominação da natureza interna em prol da dominação da natureza externa. A paixão da
justiça que surge com o homem ao longo da história tem seus princípios pervertidos através
do processo de ideologização produzido pelo conceito de modernidade do iluminismo.

6
Descartes, op. cit.
7
Ghiraldelli Jr. Paulo. Arrancar o Véu. Seminário Nacional “Licenciaturas - O Desafio da Integração entre Ensino,
Pesquisa e Extensão”. Curitiba, 1994, p. 14.
8
Matos, op. cit.
9
Adorno e Horkheimer, op. cit. P.62

10
Conforme Peres (1994)10, “desencantar o homem” não significa desacreditá-lo. Pelo
contrário, os homens desencantados seriam aqueles aptos a buscar para si o compromisso
com a sua própria história, com um conhecimento racional liberto de princípios e verdades
preexistentes. Para o autor, a perspectiva da sociedade moderna estava fundamentada nos
seguintes princípios:
a) a racionalidade como guia da conduta humana, alterando a influência e o controle
da religião e de seus dogmas, levando à valorização da natureza e das chamadas
leis naturais;
b) a fé incontestável no programa da humanidade, associando-a a toda filosofia da
história, concebendo-a como tendência linear e automática;
c) a crença no indivíduo, exaltando o seu papel ativo em favor de seus semelhantes
como ”valor moral racional” e possibilitando a conciliação de interesses individuais
com o interesse coletivo (visão antropocêntrica do universo, tendo o homem como
objeto da ciência).

Colocar o homem como “senhor e possuidor da natureza” configura o núcleo do


programa do iluminismo e da modernidade. Adorno e Horkheimer (1986)11 observam que “todo
esclarecimento burguês está de acordo na exigência de sobriedade, realismo e avaliação
correta das relações de força; o desejo não deve ser o pai do pensamento”. No limite, é
preciso alcançar a “feliz apatia”. “Está em jogo o processo de desencantamento do mundo, o
poder de expulsar o elemento mítico e a esfera da imaginação (...) para, por meio de um
percurso sem barreiras, fundar o saber, vencendo a superstição e tudo o mais que possa
debilitar a atividade do entendimento” (Fabri, 1994)12.
Para Bacon, saber e poder coincidem, o que leva à superação de uma passividade
contemplativa do homem em relação à natureza, utilizando-se do argumento de “natureza
hostil”. “A natureza não é objeto passivo, mas matéria que resiste à nossa consideração e que,
13
portanto, necessita ser dominada e submetida” (Bacon, 1983) . O saber é, portanto, uma
ação prática e o verdadeiro fim da ciência não é um passatempo qualquer, mas sua utilidade.
“O que importa não é aquela satisfação que para o homem se chama verdade, mas a
operation, o procedimento eficaz”. (Adorno e Horkheimer, 1986)14

10
Peres, Maria Thereza M. A Modernidade na Marcha da Emancipação do Homem. Impulso, Piracicaba, 7 (14):27-
54, 1994.
11
Adorno & Horkheimer, op. cit, p. 62.
12
Fabri, Marcelo. Francis Bacon - Patologia dos Erros e Crítica do Saber Tradicional. Impulso, Piracicaba, 7
(14):115-132, 1994.
13
Bacon, Francis. Novum Organum. S. Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).
14
Adorno e Horkheimer, op. cit, p. 103.

11
O homem moderno é o Aufklärung na concepção de Weber15, que Ghiraldelli (1994)16
menciona como “silhueta que abriga um misto de cientista cartesiano e libertino altivo”. Ele
quer, como meio e meta, ou melhor, como meio que é meta, a “feliz apatia”. A analogia do
professor ao Aufklärung feita por Ghiraldelli é, no sentido de que este, o professor, ilumina,
esclarece, sem, contudo provocar a necessária desmitologização. Adorno e Horkheimer
(1986) alertam que “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por remeter à
mitologia”. Em um jogo de espelhos, o homem esclarecido, autônomo, aparece como
elemento da massa, que aceita a dominação e só se rebela no sentido de continuar sua
implementação. “A modernidade que produz a apatia precisa criar mecanismos para, pelo
menos por alguns momentos, reavivar esse homem, para que a sociedade, ou melhor, o
aglomerado de seres, continue a existir” (Ghiraldelli, 1994)17. Resumindo, o que o iluminismo e
o programa de modernidade querem é a substituição da imaginação pelo saber e por isso não
há espaço para a identificação. Não há espaço para qualquer processo de empatia que possa
levar um homem a mudar seus planos na medida em que se coloca imaginativamente no lugar
de outrem. Não há espaço para o processo de empatia, não há espaço para a compaixão
(Adorno; Horkheimer, 1986)18.
Para Adorno e Horkheimer (1986)19, o “desencantamento do mundo” não é um simples
processo de desmitologização: ”O fato de que ele tem origem no próprio mito e encontra seu
termo atual na mitologização do esclarecimento, sob a forma de ciência positiva, reflete o fato
de que o conhecimento pela dominação da natureza tem lugar pela assimilação dos processos
de conhecimento e controle dos processos naturais, e explica por que esse processo de
dominação da natureza pode resultar paradoxalmente numa mais completa naturalização do
homem totalmente civilizado”.
Fazendo um breve retrospecto com relação à ideia de natureza no iluminismo,
percebe-se nitidamente a influência das grandes descobertas da época como subsídio
ideológico a uma tendência de concepção externalizada da natureza: da concepção fisicista à
influência do darwinismo social; do conceito de natureza humana à concepção faustiana de
progresso dos economistas. Ainda, ou enaltecendo a natureza e suas relações como forma de
subjugação do homem, ou atribuindo à natureza um caráter hostil, como forma de legitimação
do processo de dominação20 partindo do princípio de que o homem é filho de si próprio,
desconectado do processo de evolução da natureza.

15
Para Weber (1997), Aufklãrung refere-se ao tipo de comportamento que se alastra por todas as esferas da
sociedade, gerando o “desencantamento do mundo”.
16
Ghiraldelli, op. cit, p. 18.
17
Ghiraldelli, op. cit., p. 19.
18
Adorno e Horkheimer, op. cit, p. 62
19
Adorno & Horkheimer, op. cit, p. 8.
20
Natureza produzida no dizer de Smith, ao contestar o conceito de “dominação” empregado pela escola
frankfurtiana.

12
A tradição naturalista da ciência nos dois séculos precedentes ao atual, além de tratar
a natureza de forma diferente e contraditória, reforçou a reprodução ideológica necessária ao
processo de desenvolvimento econômico do sistema de produção, amparado pelo utilitarismo.
A externalização da natureza ou externalização do homem em relação à natureza é
vista por Holbach (1723-1789), em Sistema da Natureza (1770), como a causa da infelicidade
humana. “O homem é obra da natureza, existe na natureza, está submetido às suas leis, não
pode libertar-se; não pode, nem sequer no pensamento, dela sair. Inutilmente o seu espírito
quer lançar-se para lá dos limites do mundo visível (...). Todos os atos que fazemos para
modificar o nosso ser não podem ser considerados senão como uma longa série de causas e
efeitos, que não são mais do que os desenvolvimentos dos primeiros impulsos que a natureza
nos deu”.
Lia Formigari (1981)21 mostra que “esta moral da felicidade e da tolerância está
diretamente ligada à nova visão laica da ciência, isto é, liberta de todo o condicionamento
teológico; uma ciência que se mantém nos limites da experiência e que não pretende
ultrapassá-los”. Holbach22 considera ainda que todas as desgraças do homem derivam do fato
de ele “ter querido fazer-se metafísico antes de se fazer físico”, ter desprezado as coisas reais
para se ocupar com seres imaginários.
A destituição do papel privilegiado de “filho de Deus”, assegurado ao homem pela
tradição religiosa, acaba se constituindo no principal fundamento de sua externalização em
relação à natureza. O homem não é mais filho de Deus; com certeza é filho de si próprio.
A teoria do progresso que o iluminismo transmitirá às filosofias do século seguinte
nasce desse processo de desdeificação da natureza. Em As Ruinas, de Volney, (1791) que
teve larga repercussão na época, o homem é tido como criador de si próprio e do ambiente
que o circunda, além de criador do próprio Deus.
A concepção do homem originário de si próprio passa historicamente por certo
processo de transformação gradativa, como constatado na História Natural de Buffon (1766)
quando esclarece que “o homem em suma é tal como é por que soube unir-se ao homem” ou,
na interpretação do estado pré-social do homem em Rosseau: “juntamente com o estado
social, pensamento e palavra são aquilo que na verdade distingue o homem dos seus
parentes animais (...)” 23.
Como argumento para uma cisão do homem como “obra da natureza” travam-se ainda
discussões sobre a negação da existência de princípios inatos (anti-inatismo), inicialmente

21
Formigari, Lia. O Mundo depois de Copérnico. Lisboa: 70, 1981, p. 43.
22
Holbach, Paul Henri T. Sistema da Natureza. Textos Escolhidos, 1940 (Os Grandes Clássicos do Povo).
23
Citado por Formigari, op. cit, p. 52-53.

13
defendido por John Locke (1690), criando-se o conceito de natureza humana. O anti-inatismo
tem em suma uma premissa teórica indispensável para se começar a considerar a constituição
intelectual e normal dos homens como produto de acumulação de cultura. Tem-se assim a
compreensão de duas naturezas no homem: a natureza primária, animal, e a natureza
secundária, adquirida. A linguagem e o pensamento pertencem, de modo particular, à
natureza adquirida pelo homem; não são atributos originários.
Considerando o homem como ser “progressivo” (conceito de Ferguson, 1792), devido a
sua capacidade de acumular cultura, é que se tem a legitimação de sua propriedade de
acumular riqueza, “um instinto fundamental e distintivo do homem entre todos os animais”.
Para Formigari (1981)24, “não é por acaso que, precisamente na Grã-Bretanha, onde o
desenvolvimento da economia burguesa estava mais avançado, os filósofos, para explicar a
natureza específica do homem, chamam mais freqüentemente à colocação fatores ligados à
atividade produtiva”. Cita Adam Smith (1776)25, que se tornou um clássico da economia
política, que considerava a especificidade do homem (burguês europeu) como a capacidade
de troca. Assim, o relativismo cultural, a consciência já adquirida pelos intelectuais europeus
da existência de uma multiplicidade de culturas diferentes, convivem perfeitamente com a
concepção eurocêntrica, com a ideia do centralismo da civilização européia.
A concepção faustiana de progresso, beleza e poder, embora anterior à discussão
filosófica acesa no iluminismo, assume a partir de então, a legitimidade social aliada à
implantação do sistema de produção capitalista. Para Berman (1986)26 Fausto tornou-se o
símbolo do excesso, da insatisfação e do inconformismo humano diante de sua “submissão”
frente à magnitude das forças da natureza. Representa o protótipo do homem moderno e de
sua sociedade a quem “promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e
transformação das coisas ao redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos,
tudo o que sabemos, tudo o que somos”.
O divórcio do homem em relação à natureza e conseqüente desfiliação divina levou-o,
como criador de si próprio e do ambiente, ao desenvolvimento de uma postura faustiana,
fundamentada na cultura da dominação, com forte tendência individualista, contribuindo
enormemente para o desenvolvimento do processo de alienação: alienação em relação à
natureza e à força de trabalho e em relação ao processo de produção, estiolando a
possibilidade da formação de uma consciência crítica e consequentemente de consciência de
classe social. A “desnaturalização” do homem levou ainda à ideologização do conceito de
natureza como forma de legitimação de ideias imprescindíveis à preservação dos interesses
das relações de produção ou de domínio hegemônico. Tal argumento pode ser constatado na

24
Formigari, op. cit, p. 69.
25
Smith, Adam. Riqueza das Nações. S. Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).
26
Bergman, Maschall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:Cia das Letras,
1986, p.15.

14
concepção ideológico-racial de Schelling, numa perspectiva eurocentrista, ou da “seleção
natural” difundida por Malthus, adotada por Rockfeller na perspectiva do darwinismo social.
Como se sabe, a lógica malthusiana fundamenta-se em controle populacional ”positivo”,
considerando o elevado índice de natalidade atribuída aos pobres, onde a seleção ”natural” se
constitui em argumento de triagem: “(...) se quisermos agir corretamente, devemos facilitar a
ação da natureza que produz a mortalidade, ao invés de nos esforçarmos inútil e totalmente
por impedi-la”. Enfatiza Malthus (1971)27 que “(...) em nossas cidades, deveríamos construir as
ruas mais estreitas, apinhar mais gente no interior das casas e provocar o retorno das pragas.
No campo deveríamos construir aldeias perto de poços de água estagnada, e sobretudo,
encorajar o estabelecimento de colônias em terrenos pantanosos e insalubres (...)”.
Também há uma evidente carga ideológica no discurso de John Davidson Rockfeller
(1839-1937), vinculado ao conceito de ’seleção natural’ como comprovação da “necessidade”
da acumulação do capital28:“O crescimento de uma grande empresa é pura e simplesmente
um caso de sobrevivência do mais capaz (...). A rosa da variedade American Beauty só pode
ser obtida com todo o esplendor e a fragrância que alegram quem a olha, sacrificando os
botões precoces que crescem à sua volta. Não se trata de uma tendência pérfida do mundo
dos negócios. Trata-se, pura e simplesmente, da aplicação de uma lei da natureza e de uma
lei divina”. Ressalta-se aqui que, embora externalizada, a natureza se constitui em argumento
de legitimação dos interesses das relações sociais de produção, numa perspectiva
determinista. Estas palavras expressam muito bem as razões que justificaram os domínios
imperiais e hegemônicos, as guerras, a submissão de raças e nações, além de constituírem
pressuposto básico para a legitimação do novo modelo de desenvolvimento.
Formigari (1983)29 fala ainda da variante psicobiológica do darwinismo, como
aconteceu na Inglaterra e nos Estados Unidos, com relação a demonstrações “científicas” da
inferioridade de certos grupos étnicos e da “naturalidade” da divisão da sociedade em classes.

O Conceito Faustiano da Cultura Ocidental e a Doutrina Utilitarista

Embora a ideologização do conceito de natureza externalizada tenha assumido maior


relevância no iluminismo, considerando o estágio inicial de desenvolvimento capitalista, a
concepção faustiana assimilada pela civilização ocidental parece retroagir à antiguidade.
Basta considerar o espírito bélico que norteou Esparta e Roma na construção do império,
numa perspectiva de dominação.

27
Malthus, Thomas Robert. Essay on the Principle of population. New York: Dutton, 1961.
28
Citado por Formigari, op. cit, p. 109.
29
Formigari, op. cit.

15
Falando da Geografia na Grécia antiga, Sodré (1984)30evidencia que “a justificação do
regime, no nível ideológico, conduzia necessariamente, a uma concepção determinista e
natural das desigualdades sociais, como a expansão mercantil militar despertava a
necessidade de legitimar a dominação e exploração. As contradições da sociedade grega
levaram, finalmente, ao declínio e à submissão ao domínio romano”. Lembra Topolski (1986)31
que os ingleses tiveram êxito como piratas contra os espanhóis: queimaram muitos católicos
nas fogueiras e patrocinaram as peças de Shakespeare.
O conceito faustiano aqui empregado apoia-se no romance-drama de Goethe32. Para
Barrento (1989)33, a história de Fausto é uma história que impõe respeito: primeiro pela
antiguidade do mito e segundo pelo número de pensadores que lhe têm feito referência.
Fausto surge no seio da sociedade feudal em decomposição, que tinha como sustentáculo os
valores da tradição, da linhagem e do sangue, e que reprimia toda e qualquer iniciativa
individual e coletiva de desenvolvimento. No início da segunda parte do romance-tragédia de
Goethe34, Fausto, depois da morte de Gretchem, sentado no alto de uma montanha ao lado de
Mefistófeles, olha o vazio e contempla a natureza. Nesse momento onírico-contemplativo
Fausto começa a mudar sua atitude, influenciado por Mefistófeles, que não pára de provocar
seu espírito aventureiro e empreendedor. De uma visão contemplativa passa a uma postura
enraivecida contra a natureza, questionando o potencial nela contido e que não é utilizado
para nenhum fim prático: “porque os homens têm que deixar as coisas serem como sempre
têm sido? Não é já o momento de o Homem afirmar-se contra a arrogante tirania da natureza.
De enfrentar as forças naturais em nome do livre espírito que protege todos os direitos?”.
Observando o mar abaixo da montanha, continua de forma ainda mais irritada: “É um absurdo
que, despendendo toda esta energia, o mar apenas se mova, para frente e para trás,
interminavelmente, sem nada realizar”. Para Weber (1987)35 essa indignação se alastra por
todas as esferas da sociedade, culminando no que denominou de “desencantamento do
mundo” (Aufklãrung).
Fausto representa, portanto, “o homem ocidental por excelência, o que há de mais
específico nele, os seus encantos, as suas desilusões, as suas ansiedades, as suas
angústias, a sua vontade de agir, o seu universalismo, enfim, o que há de mais representativo
na tradição ocidental” (Barrento, 1989, p.200-201). Como diz Dabezies (1967, p.515)36 “sem
dúvida veremos mais uma vez, Fausto surgir entre nós, sob uma máscara cada vez mais

30
Sodré, Nelson Werneck. Introdução à Geografia. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 17.
31
Topolski, Jerzy. Metodologia de la História. Madrid: Cátedra, 1985, 519 p.
32
Goethe, Johan Wolfgang Von. Fausto, Belo Horizonte:Itatiaia, 1987.
33
Barrento, João. Fausto, a ideologia fáustica e o homem fáustico. Fausto na literatura européia.
Lisboa:Apáginastantas, 1989.
34
Toethe, Jonhann Wolfgang Von. Fausto. Belo Horizonte:Itatiaia, 1987.
35
Weber, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:Pioneira, 1996, p.131.
36
Debezies, André, visages de Faust aux XX Siècle, Paris:PUF, 1967.

16
atual, para nos lembrar que é dado ao homem o poder de escolher a sua vida, de ser, com o
seu deus ou com o seu demônio, criador de si próprio; reside ai a sua grandeza – o seu
drama”.
A implementação do capitalismo fortaleceu e disseminou a ideologia faustiana como
cultura de progresso. Ferguson (1792) conceitua o homem como progressivo, incentivando-o à
apropriação dos recursos naturais e acumulação das riquezas, o que o distingue dos demais
animais. Enquanto Marx via a distinção do homem em relação aos demais animais pela
capacidade do trabalho, Ferguson os diferencia pela capacidade de acumular riquezas.
A ideologia faustiana, ao mesmo tempo em que estimula o domínio dos povos ou
nações, legitima o desenvolvimento das classes sociais e consequentemente dos detentores
dos meios de produção. O grau de apropriação é consagrado por diferentes argumentos
ideológicos, que vão desde os culturais, raciais, até a suposta atividade produtiva
representada pela acumulação do excedente e como resultado a produção da mais-valia. Os
novos argumentos ideológicos fundamentaram o processo de dominação do hemisfério sul
pelo faustianismo eurocêntrico. Já dizia Mackinder (1915)37 que a base da divisão espacial
encontrava-se fundamentada na dominação: “quem dominar a Europa Oriental dominará o
coração continental; quem dominar o coração continental controlará a ilha-mundo; quem
dominar a ilha-mundo controlará o mundo”.
Darcy Ribeiro38 ressalta que “a história humana nesses últimos séculos tem sido
principalmente a história da expansão da Europa Ocidental que, formando o núcleo de um
novo processo civilizatório, lançou-se sobre todos os povos em sucessivas ondas de violência,
cupidez e opressão. Esse movimento convulsionou e reordenou o mundo inteiro de acordo
com os planos europeus e em conformidade com os interesses europeus. Cada povo, até
mesmo cada ser humano, foi afetado e envolvido pelo sistema econômico europeu ou pelos
seus ideais de riqueza, poder, justiça e saúde”.
Como se sabe, diferenças culturais e determinismo ambiental se constituíram em fortes
argumentos para a expansão e domínio europeus, subtraindo os recursos proporcionados pela
natureza, subjugando os povos com vistas ao domínio hegemônico do capitalismo mercantil.
A ampliação do domínio hegemônico americano a partir da Segunda Guerra Mundial
reflete mais uma vez a concepção ideológica do faustianismo, que passa a presidir os
organismos de consulta e regulação econômica internacionais, apropriando-se inclusive do
direito de veto sobre as grandes questões mundiais. É nesse contexto que a concepção
faustiana apropria-se da natureza e dos povos, subsidiada pela herança cultural que exalta o
poder, a beleza, a riqueza e o saber, argumentos ideológicos imprescindíveis para a
sustentação do domínio de nações e consequentemente dos detentores dos meios de

37
Mackinder, H.J. Britain and the British Seas. Oxford, 1915.
38
Ribeiro, Darcy. The Americas and Civilization. N. York, 1971.

17
produção. No contexto da natureza, o faustianismo, ao mesmo tempo em que areforça a
ideologia da dominação, legitima consequentemente o direito de propriedade. Serres 1990)39,
ao discutir o direito de propriedade, utiliza-se do conceito de ”limites”, ratificando a
externalização da natureza contemplada pelo capitalismo: “a decisão a respeito dos limites e
fronteiras parece original; sem ela, não há oásis separado do deserto, e nem abrindo clareiras
na floresta onde os camponeses se entregam ao trabalho da agricultura (...)”. Observa ainda
que “a determinação de limites interrompe as contendas entre vizinhos; é o direito de
propriedade, o de cercar precisamente um terreno e de atribuí-lo, é o direito civil e privado".
Turner (1990)40 apresenta importante tese de que o mito – medo ou humildade e
submissão ao mistério incompreensível da vida – em seu estado mais primitivo, “é a prova de
que o homem já rompeu com o resto da criação; que sua capacidade de simbolização e
conceituar animais e outras formas de vida (embora estas estejam curiosamente ausentes na
arte parietal do paleolítico), até a concepção integral da vida, indicam que a unidade primal tão
ardentemente desejada foi perdida”41. Essa perspectiva leva à conclusão de que os homens
desejam controlar o mundo natural; alguns conseguiram desenvolver meios eficientes e
sofisticados para tal. Para o autor “o grau de impulso tecnológico não é diferente entre o
primitivo e o civilizado, pois ele é tão inerente à espécie humana quanto a capacidade de
fabricar símbolos”.
Para mostrar as investidas exploratórias do ocidente além de suas fronteiras
geográficas no século XV, Turner (1990) observa que “a civilização estava dominada por
atitudes profundamente enraizadas e muito antigas em relação à natureza indomada (...)”42. A
atitude herdada do mundo natural tem suas raízes no antigo Oriente Médio – os israelitas
compartilharam com sumérios, babilônios, caanitas e hititas um meio ambiente bastante
parecido e os desafios que lhes eram inerentes. “A principal via de transmissão dessas
atitudes para a civilização do oeste foi a história sagrada dos antigos israelitas, a matriz
espiritual da qual saiu o cristianismo e que acabou se transformando na primeira metade do
texto sagrado de toda civilização ocidental”. O efeito espiritual cumulativo dos excedentes
sempre maiores responde pela conexão entre as civilizações antigas em relação ao ocidente.
“Cada nova proteção contra o mundo natural ajuda um pouco a construir a ilusão de
independência da natureza, que com o tempo ajuda a erigir a maior das ilusões: a onipotência
do homem”43.

39
Serres, Michel. O Contrato Natural. R. Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 67-68.
40
Turner, Frederick.O espírito ocidental contra a natureza. R. de Janeiro: Campus, 1990. Trad. José Ajugusto
Drummond.
41
Turner, F. op. cit., p. 21.
42
Turner, F. op. cit, p. 22.
43
Turner, F. op. cit., p. 26.

18
Ao evidenciar a influência do texto sagrado na herança de um conceito de natureza
dominada, Turner (op. cit.) ressalta a valorização de tais atitudes pelo Ocidente, expresso em
uma das regras mais candentes: Crescei e multiplicai-vos, e renovai e conquistai a terra; e
dominai os peixes do mar, as aves do ar e todas as coisas vivas que se movem na superfície
da terra. Utilizando da ambivalência entre a concepção de Paraíso e Inferno, resgata o
conceito de castigo como forma de superação das restrições impostas pela natureza:
“amaldiçoado, o homem foi lançado num mundo de terras selvagens e rompeu para sempre
com a natureza que se tornou um adversário maldito, eternamente hostil aos esforços
humanos para sobreviver. Seu destino agora inclui também ser inimigo dos animais, de modo
que sua vida nesse mundo vira uma luta implacável contra a natureza, dentro da qual ele
trabalha duramente para cumprir a ordem divina de dominar a terra cheia de espinhos e ervas,
e de conquistá-la”44. Para Pedersen45: “Jeová se colocava fora e acima da vida comum,
separado da natureza, e ele não precisava ser radicalmente renovado. Assim, a criação
ocorrida em tempos remotos não se torna expressão mítica do que é repetido anualmente no
culto; ela se torna um evento colocado no tempo, que ocorreu no seu início. Aqui há o germe
de uma mudança na antiga maneira de encarar o tempo”.
Turner conclui que o efeito cumulativo de tudo isso é o de enfatizar os aspectos
destrutivos da natureza e de reforçar a atitude antropocêntrica e belicosa em relação ao
mundo natural anunciado no mito do paraíso. “Essa intenção antinatureza, conforme foi
destacado por Baron, Weber e Johannes Pedersen, se reflete no grande evento do
compromisso com Deus no monte Sinai, tanto no caráter especificamente histórico da religião
ali definida quanto no monoteísmo que a distingue dos politeísmos naturalistas de todos os
outros povos – na verdade, ela não apenas é diferente, ela é contrária às outras religiões,
numa luta mortal”46.

A Doutrina Utilitarista

John Stuart Mill (1806-1873) sistematizou a doutrina utilitarista47 em uma série de


obras. O utilitarismo é visto no sentido filosófico e ético, tendo a felicidade como princípio de
moral, condutor da vida humana. Procura apresentar na utilidade universal um princípio que
move a formação de juízos morais sobre as ações morais, e não sobre seus autores.
Jeremy Berthan (1748-1832) enumera todas as origens da doutrina utilitarista, desde
John Locke, passando por David Hume, até os seus contemporâneos como Alaude-Adrien

44
Turner, F. op. cit., p. 39, interpretando Genesis, 9:2.
45
Apud Turner, F., op. cit., p. 44.
46
Turner, F. op. cit., p. 42.
47
Doutrina que coloca a utilidade ou o interesse como valor supremo da ação moral, admitindo como útil tudo que
serve à vida e à sua conservação, mediante um acréscimo de felicidade e bem-estar

19
Helvétius (1715-1771) e Cesar Beccaria (1738-1794). Hume entende que o “princípio da
utilidade” deve ser para a filosofia moral o que é o princípio da atração universal para o mundo
físico. Helvétius defende uma ciência moral nos moldes da física experimental.
Embora o conceito de J.S. Mill se aproxime de um suposto socialismo reformista48, o
utilitarismo passa a ser caracterizado como uma ideologia da alienação. A economia utilitarista
treinou a humanidade para pensar que a terra e o capital produzem mercadorias da mesma
forma que o trabalho, e que diante disso, os proprietários da terra e os capitalistas merecem
receber o equivalente ao produto de seus fatores, da mesma forma que os trabalhadores
merecem seus salários.
Para Hunt (1989)49, “a visão utilitarista obscurece totalmente o fato, evidente por si só,
de que a produção nada mais é do que um processo de trabalho humano que transforma a
crosta da terra, antes inútil, em produto capaz de sustentar a humanidade e proporcionar
prazer”. O caráter obscuro mencionado por Hunt refere-se ao rebaixamento do trabalho
humano à condição de mercadoria na sociedade capitalista. Como se sabe, o aparecimento
do capital como relação social exigiu uma divisão do trabalho bastante generalizada, negando
ao trabalhador a capacidade de produzir para si, o que dá ao capitalista o poder de extorquir
parte do que é produzido. “Quase todas as rendas de uma sociedade capitalista classificadas
como lucros, juros ou aluguéis, são simplesmente frutos desta extorsão” (Hunt).
Marx descreveu o processo de industrialização capitalista como responsável por
mudança historicamente drástica da natureza da divisão do trabalho na produção. Antes do
capitalismo, divisão do trabalho correspondia às habilidades e aos conhecimentos necessários
à produção, o que foi rapidamente transformado com a separação entre o trabalho mental e o
físico. O trabalho repetitivo, desprovido de imaginação, era duplamente benéfico ao sistema:
ao mesmo tempo em que impunha uma disciplina severa: retirava os conhecimentos e
habilidades dos trabalhadores, reforçando sua dependência em relação aos detentores dos
meios de produção. Enquanto essa dependência é mantida, o trabalhador trava uma luta
interna que acaba se manifestando como resultado inevitável da “condição humana”, uma luta
individual e não uma luta de classe, o que reforça a alienação em relação ao processo
produtivo. A negação sistemática das necessidades humanas leva à repressão psíquica,
extremamente útil ao capitalismo, necessária à manutenção da fachada institucional e
ideológica de democracia, obscurecendo o funcionamento coercitivo e autoritário do sistema.
Alguns teóricos marxistas das décadas de 60 e 70 foram além da abordagem de Reich50,
procurando mostrar que muitos aspectos dos costumes culturais dominantes que governam a

48
Um social-democrata, uma vez que rejeitava o comunismo, pregando uma série de reformas e de medidas
concretas para a sociedade do seu tempo, visando indivíduos mais livres e sociais e economicamente iguais.
49
Hunt, E.K. História do Pensamento Econômico. R. Janeiro: Campus, 1989, p. 503.
50
Para Reich, a forma mais essencial de repressão era a sexual, responsável pela criação de um tipo passivo e
submisso de personalidade

20
vida familiar em uma sociedade capitalista, “tendem a criar uma personalidade alienada,
passiva e submissa, que é essencial para o funcionamento dos processos de produção
capitalista” (Brow)51. Igualmente importante à manutenção do domínio capitalista na formação
de atitudes são os meios de comunicação de massa, manipulando a opinião pública. Aronson
(1970)52 e Cirino (1971)53 são exemplos de trabalho que enfocam tais questões.
Para Hunt (1989)54, “a psicologia e a ética utilitarista se adaptam bem à tarefa de
proporcionar uma ideologia conservadora ao capitalismo”, observando historicamente o
enorme aumento do domínio do homem sobre a natureza, revolucionando a produção
humana, criando a possibilidade, pela primeira vez na história da humanidade, de todos
poderem viver com conforto e segurança material. Essa defesa intelectual idealizada pelo
utilitarismo tem duas razões: uma em que os sentimentos, as emoções, as ideias, os padrões
de comportamento e os desejos individuais são considerados como metafisicamente dados,
ficando fora de qualquer análise baseada na psicologia e na ética utilitarista; outra em que os
desejos humanos são vistos como independentes da interação social, identificando o bem-
estar humano como a satisfação desses desejos entendidos como o consumo de mercadorias.
A crítica ao utilitarismo apresentada por Hunt (1989)55 baseou-se na opinião de que “os
desejos humanos são, em grande parte, socialmente determinados e como tal, sua satisfação
pode ou não aumentar o bem-estar humano, e que a produção humana é um fenômeno social,
no qual nenhum indivíduo (e muito menos um objeto inanimado, como um terreno ou uma
máquina) pode ser julgado como sendo o único responsável por uma determinada quantidade
do que é produzido, e no qual o destino e o uso dos frutos da produção são socialmente
determinados, podendo ser benéficos ou prejudiciais ao bem-estar humano”.

51
Brow, Bruce. Marx, Freud, and the Critique of Everday Life. N. York, Monthly Review Press, 1973, p. 56.
52
Aronson, James. The Press and the Cold War. Indianapolis: Bobbs-Merrell, 1970.
53
Cirino, Robert. Don’t Blame the people. N. York: Vintage, 1971.
54
Hunt, op. cit, p. 513.
55
Hunt, op. cit, p. 513.

21
A CIÊNCIA NO CONTEXTO DA EXTERNALIZAÇÃO DA NATUREZA

“A ciência é o reflexo do homem no


espelho da natureza”.
Pauli

Pode parecer improvável qualquer relação sobre a responsabilidade da ciência para


com a externalização da natureza. Contudo, ao se procurar compreender o significado da
ciência como processo de alienação e o grau de subjugação desta aos interesses da
superestrutura ideológica, observar-se-á que tais relações não poderão jamais serem
refutadas.
Sabe-se que o processo de alienação como argumento de manutenção de
determinadas estruturas antecede à sistematização do conhecimento científico. Mas por outro
lado, sabe-se também, que através da sistematização é que se legitimou a referida
“externalização”, o que pode ser comprovado através do princípio baconiano de “conhecer a
natureza para dominá-la”. Em tais princípios estão contidos dois aspectos fundamentais,
impostos pelo sistema de produção capitalista: o de promover o desenvolvimento do
“conhecimento” sobre a natureza para atender os interesses econômicos vigentes e o de
“dominação” como forma de se legitimar a apropriação e utilização intensiva da natureza e dos
respectivos meios de produção.
Deve-se observar ainda que a sistematização do conhecimento implicou
especialização do conhecimento, também com duplo aspecto: separar o homem da natureza e
atender os interesses da divisão do trabalho nos diferentes níveis. A separação do homem em
relação à natureza é reforçada, se constituindo em estratégia ideológica para o processo de
alienação, que além de legitimar a apropriação privada da natureza como objeto de produção,
exclui, com o apoio da superestrutura, a participação da força de trabalho no resultado do
processo produtivo.
Como se sabe, o homem tem sua condição de vida determinada pelo modo de
produção, que para sobreviver como tal, recorre a argumentos ideológicos reprodutores da
alienação em diferentes níveis: (i) do produto do trabalho, (ii) da atividade de produção, (iii) de
sua própria e inerente “espécie” e (iv) de si próprio. No primeiro nível, quando assume a
“externalização” da natureza, momento em que esta passa a se caracterizar como simples
objeto universal do trabalho, portanto suscetível aos desejos insaciáveis dos que detêm os
meios de produção. No segundo nível, relativo às forças produtivas, quando legitima o direito
de propriedade dos meios de produção,sendo a força de trabalho um instrumento de mais-
valia. No terceiro nível, quando os seres humanos estão dissociados da natureza, detentores

22
de uma natureza própria, a natureza humana. Por último, quando se dá a alienação de si
mesmo, ao se constituir em regulador das condições impostas pelas relações de produção e
pelo próprio Estado, através da legislação, se submetendo às determinações salariais ou
compondo o exército de reserva que controla a própria condição do trabalho humano.
Assim, a ciência passa a se caracterizar como instrumento de legitimação do sistema
vigente, uma vez que se estrutura numa filosofia idealista, onde o positivismo e suas
derivações respondem pela articulação de uma lógica formal, responsável pela formação de
uma consciência social alienada. Exemplo pode ser constatado com relação à própria ciência
geográfica, que nasce de uma visão epistemológica dual, patrocinada pela desarticulação dos
componentes naturais (relevo, clima, vegetação,...) e sociais (população, circulação,
economia, ...). Nesse momento, a Geografia acadêmica assume a roupagem da neutralidade
científica, desconsiderando os dois caminhos da lógica, a formal e a dialética, para utilizar-se
de uma suposta terceira via, procurando mascarar a subjugação imposta pelo Estado, sob os
auspícios das relações sociais de produção. Ainda, a ciência, ao “externalizar” a natureza,
permite a discriminação dual entre as Ciências Naturais e as Ciências Sociais:
a) a “natureza” é estudada exclusivamente pelas ciências naturais, enquanto as
ciências sociais preocupa-se exclusivamente com a sociedade, a qual não tem
nada a ver com a natureza;
b) a “natureza” nas ciências naturais é supostamente independente das atividades
humanas, enquanto a “natureza” das ciências sociais é vista como criada
socialmente.
Permanece, portanto, uma contradição da natureza real que incorpora a separação
entre o humano e o não-humano. Tal subjugação acaba manifestada principalmente em outras
ciências consideradas “nobres”, através da pesquisa, diferenciando assim o trabalho
intelectual, que discute “como fazer”, do trabalho manual que materializa a produção. Mais
uma vez, tem-se a pesquisa subjugada aos interesses do capital, muitas vezes financiada
pelas próprias relações de produção ou até mesmo pela superestrutura (Estado), que mantém
estreita relação de interdependência com as relações de produção. Isso pode ser explicado
através da priorização na formação de centros de excelência ou mesmo de linhas de
pesquisas impostas por programas institucionais das agências de fomento.
Partindo do princípio de que a produção do conhecimento encontra-se subjugada aos
interesses do sistema de produção, o repasse do conhecimento, que nem sempre é o
produzido, também se encontra subordinado ao mesmo processo.
Sabe-se que as ciências sociais possuem um papel fundamental na estrutura vigente,
uma vez que respondem pela formação da consciência social. Para cumprir as determinações
do sistema, transferem, através do ensino formal, um conhecimento fragmentado,
fundamentado apenas na aparência, o que implica alienação em detrimento da formação de

23
uma consciência crítica. Assim, mantém-se a “ordem social” e a consequente subjugação,
sobretudo das forças-de-trabalho, às determinações das relações de produção.
Acredita-se que com tais argumentos não restam dúvidas quanto a responsabilidade
da ciência como instrumento de alienação, assim como não resta dúvida em sua subjugação
aos interesses da superestrutura (Estado), com consequente vinculação às relações sociais
de produção.
Como se sabe, o Estado, através das suas relações jurídico-políticas e ideológico-
culturais, ao mesmo tempo em que emancipa o homem, subjuga-o de acordo com os
interesses do modo de produção. Vale lembrar o Art. 27 da Declaração dos Direitos Humanos:
“Todo ser humano tem o direito de participar da vida cultural da comunidade, de fruir das artes
e de participar do progresso científico e de seus benefícios”.

A Ciência no Contexto do “Desencantamento do Mundo”56

Até aqui se constatou que a alienação do homem pela ciência, tem por objetivo
prescípuo, legitimar a separação do homem em relação à natureza, utilizando-se das
atribuições determinadas pelo Estado, caracterizadas pelas relações ideológico-culturais.
Também se constatou que essa estratégia fundamenta-se na necessidade de legitimar a
apropriação privada da natureza, com consequente subjugação da força-de-trabalho,
recorrendo o Estado às relações jurídico-políticas na pacificação dos conflitos.
O princípio baconiano de “conhecer a natureza para dominá-la”, induz,
ideologicamente, ao entendimento de uma natureza “hostil”, o que legitima a apropriação
intensiva antes comentada. Tal fato encoraja o processo de ocupação de espaços até então
desconhecidos, motivando diagnóstico dos recursos disponíveis pelas diferentes áreas do
conhecimento científico. Não resta dúvida que tal estratégia implicou evolução do
conhecimento científico e desenvolvimento tecnológico, embora tanto um como o outro
sempre estivesse subjugado aos interesses do capital.
Ainda, a conquista de novos espaços motivou a apropriação da natureza e seus
recursos pelos detentores dos meios de produção, não deixando de se apropriar também da
própria ciência. Observa-se aqui a consagração da ideia cartesiana do homem como algo que
se introjeta para alterar a natureza e ao mesmo tempo do homem que se apropria, entra e
participa da história da natureza. A produção da natureza através da conversão dos recursos
naturais em mercadoria se constitui em consequência natural da apropriação, fundamentada
na lógica capitalista, caracterizada pelo valor-de-troca. A partir de então, tem-se a apropriação
intensiva e indiscriminada da natureza, que vem respondendo pela crescente degradação do

56
Texto parcialmente extraído do artigo do autor “Ciência e Ambiente”. Boletim Goiano de Geografia, Goiânia,
13(1):1-10, jan/dez, 1993.

24
ambiente. Esse fato faz com que a humanidade procure se situar diante da natureza,
sobretudo a partir do final do século passado, assim como aconteceu no século XVIII, com
questões relacionadas à esfera política ou no século XIX, com uma maior preocupação social
(Serge Moscovici)57. Deve-se considerar que a ostensividade das contradições produzidas pelo
sistema não puderam ser desconsideradas nem mesmo pelas relações de produção,
responsáveis direta pela forma dilapidante da natureza. Portanto, a “externalização” da
natureza legitimada pela ciência, “desnaturalizou” o homem (homem abstrato), que passa a
ver e ter a natureza como “algo” a ser vencido, já que a ideologia da hostilidade estava
presente. Para Gerd Bornhein58, a vontade de dominação histórica justifica o seu conceito de
que “o homem não é um ser natural”.
Diante disso, ao legitimar a “dominação” da natureza, o homem está legitimando sua
própria dominação pelo sistema de produção, aceitando e se convertendo em mercadoria ao
vender sua força de trabalho, sem questionar o significado da natureza quanto à sua própria
existência; sem questionar a sua participação na produção resultante de seu próprio trabalho.
Essa atitude assemelha-se o mito de Sísifo que foi condenado a eternamente empurrar pela
encosta de uma montanha uma rocha que sempre caia antes de chegar ao cume.
A ideologia da natureza hostil, sistematizada no século XVII, não poderia continuar
mantendo essa postura contraditória ao lado da dinâmica da reprodução ampliada do capital,
principalmente a partir da crescente manifestação resultante da ostensividade responsável
pela amplitude intensiva e extensiva dos problemas ambientais. Como se sabe, toda
dominação é destruidora, o que justifica a possibilidade de ultrapassar os limites
indispensáveis à própria sobrevivência. É assim que a natureza passa a ser virtualizada, sem
deixar de ser externalizada.
Como se viu, a ciência moderna se sistematiza a partir do programa iluminista de
“desencantamento do mundo” e por sua vez, do programa global de produção. Portanto, a
ideologia reproduzida pela ciência passa a ter um duplo objetivo: disseminar a alienação como
forma de legitimação da apropriação privada da natureza e produzir conhecimento voltado aos
interesses do sistema capitalista, tendo a hostilização da natureza como argumento de
dominação.
O racionalismo teleológico se aprofunda à medida que o capitalismo se associa à
ciência moderna e, principalmente à técnica, que passa a impulsionar a produção e ser por
esta impulsionada (Weber, 1987)59. Weber60 ressalta o desencantamento do mundo como
autonomia das esferas de valor, estando a racionalidade reduzida à esfera do conhecimento,

57
Moscovici, Serge. Essai sur l’Histoire Humaine de la Nature. Paris: Flammarion, 1968.
58
Bornhein, Gerd. O Homem não é um ser Natural. Revista Ambiente, S. Paulo 4(1): 7-12, Cetesb, 1990.
59
Weber, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. S. Paulo: Pioneira, 1987.
60
Weber, Max. A ciência como vocação. In. Ensaios de sociologia . Trad. De Waltensir Dutra. Rio de Janeiro:
Livros Técnicos e Científicos, 1982.

25
ficando a moral e a estética no campo do não-racional: “O destino de nossos tempos é
caracterizado pela racionalização e intelectualização e, acima de tudo, pelo ‘desencantamento
do mundo”.
A nova Física, por sua vez, tem um significado filosófico que interpreta a natureza e a
sociedade em complementaridade com a Ciência Natural, promovendo a imagem mecanicista
do mundo do século XVII. O direito natural moderno torna-se o fundamento das relações
burguesas dos séculos XVII, XVIII e XIX, destruindo as antigas legitimações e dominações por
novos argumentos ideológicos. Habermas (1968)61 observa que o capitalismo define-se por um
modo de produção que oferece uma legitimação da dominação “que já não desce do céu da
tradição cultural, mas que surge da base do trabalho social”. Constata ainda a instituição do
mercado em proprietários privados, que trocam mercadorias, ao lado de pessoas privadas e
sem propriedades que trocam a sua força-de-trabalho como mercadoria. Esse fato promove a
justiça da equivalência nas relações de troca: “(...) a dominação política pode doravante
legitimar-se ‘a partir de baixo’, em vez de ‘a partir de cima’, apelando para a tradição cultural”
(Habermas, op.cit).
A perspectiva de uma “ordem natural”, distinta da “ordem divina”, também foi
contemplada por Adam Smith (1723-1790), tendo por base a divisão social do trabalho. Numa
posição liberal trata a divisão de trabalho como uma “consequência necessária, embora muito
lenta e gradual, de certa tendência ou propensão existente na natureza humana...” (Smith,
1983)62. A concepção de natureza como “ordem” é o grande paradigma que presidirá todo o
desenvolvimento da ciência moderna (Copérnico, Kepler, Ticho, Bruno). A “ordem única”
(Galileu) implica princípio de estabilidade, conforme expressou Bernard Tocanne63 : “o
pensamento antigo fez da natureza o elemento imutável no seio do devir; é o fundo que
permanece sob a superfície móvel dos fenômenos e produz a ordem imutável das coisas.
Princípio de produção e de fecundidade, a natureza antiga é imutável nas suas operações,
repete-se e não inventa. [...] o devir cósmico é um perpétuo recomeço, à imagem do ciclo da
vida”.
Em meados do Século XIX, “o modo de produção capitalista tinha se imposto de tal
modo na Inglaterra e França que Marx pode reconhecer o marco institucional da sociedade
das relações de produção e, ao mesmo tempo, criticar o fundamento próprio da troca de
equivalentes” (Habermas, 1968)64, o que o levou à crítica da ideologia burguesa na forma de
Economia Política.

61
Habermas, Jürgen. Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: 70, 1968. P.
62
Smith, Op. cit.
63
Tocane, Bernard. L’ idée de Nature en France dans la Seconde Moitié du XVIIe, p. 9-11.
64
Habermas, op. cit. P. 67

26
Essa racionalização penetra nas mais diversas instituições, como o Estado que
gradativamente vai intervindo no sistema. Já no último quartel do Século XIX observam-se nos
países de capitalismo avançado, duas tendências racionalistas (Habermas, 1968)65:
a) incremento da atividade intervencionista do Estado como forma de estabilização do
sistema;
b) crescente interdependência da investigação científica que transforma as ciências
na primeira força produtiva: a cientificação da técnica.
Além do significado econômico produzido com a “cientificação da técnica”, a ciência
continua promovendo a legitimação da dominação, utilizando-se de estratégias ideológicas
dissimuladas - a retórica do “tecnológico sublime” de Leo Marx66.
Para Habermas (1968)67, “a consciência tecnocrática é menos ideológica que todas as
ideologias precedentes, uma vez que não tem o poder opaco de uma ofuscação que surge
apenas na realização dos interesses. Justifica o interesse parcial da dominação de uma
determinada classe e reprime a necessidade parcial de emancipação por parte de outra
classe”. Afeta, portanto, o interesse emancipador do gênero humano, “vinculado às funções de
um suposto sistema de ação racional dirigida a fins”: o racionalismo teleológico. Portanto, a
despolitização das massas legitimada pela ideologia tecnocrática é uma autoprojeção dos
homens em categorias. As bases técnicas e a divisão do trabalho no processo produtivo
promoveram a criação do excedente de bens e sua distribuição desigual, legitimada pelos
interesses ideológicos do sistema, tendo a ciência como instrumento de alienação. Genro
Filho (1986)68 observa que “as pregações de retrocesso nos mecanismos responsáveis pela
mediação entre o homem e o mundo precisam ser substituídos pela busca de qualificação das
forças produtivas e pela crítica teórica e prática às objetivações técnicas e científicas que
expressam o particularismo histórico do modo de produção capitalista”.
A ciência “feitiço”, tecnificada, disseminará assim uma “ideologia de compensação”,
fundamentada na eliminação das diferenças entre práxis e técnica. “Eis a grande tarefa do
iluminismo: fazer o balanço e a divulgação dos enormes progressos já alcançados pela razão
teórica e prática (as ciências e as técnicas) e empreender a investigação das leis que dizem
respeito diretamente ao homem – individual e social” (Falcon, 1986)69.
Assim são produzidas as modificações na sociedade capitalista que Habermas (1968)70
exemplifica através de duas das categorias centrais da teoria “marxiana”:

65
Habermas, op. cit, p. 68.
66
Marx, Leo. The Machine in the Garden. New York, 1964.
67
Habermas, op. cit. P. 80.
68
Genro Filho, Adelmo. Marxismo e ecologismo: dois pesos e duas medidas. In. Marxismo, filosofia profana.
Porto Alegre: Tchê, 1986, p. 76.
69
Falcon, Francisco J. Calazans. O Iluminismo. S. Paulo: Ática, 1986.
70
Habermas, op. cit, p. 72-73.

27
a) a cientificação da técnica como primeira força produtiva, minimizando a importância
da teoria do valor-trabalho: “a força de trabalho dos produtos imediatos tem cada
vez menos importância”(Lobl, 1968)71;
b) a cientificação da técnica, ao produzir uma “ideologia de compensação”, promove a
pacificação dos conflitos de classe. As contradições existentes não podem ser
interpretadas como antagonismos de classes, mas como resultado de revalorização
do capital. Para Claus Offe72, “os interesses predominantes são aqueles que, em
virtude da mecânica estabelecida pela economia capitalista, estão na situação de
reagir à violação das condições de estabilidade com a geração de riscos
relevantes”.

A NATUREZA EXTERNALIZADA NA GEOGRAFIA

A Geografia, no curto espaço de tempo de sua existência, tem estado susceptível às


influências filosóficas e ideológicas que marcaram o pensamento científico, chegando a
imprimir tendências epistemológicas que macularam sua história. Como exemplo, o
“racionalismo ilustrado” e o “romantismo” de Goethe (1749-1832) difundido por Humboldt; o
“formalismo neoplatônico” de Ritter; o “positivismo” de Comte (1758-1857) na sua concepção
orgânica (Darwinismo Social) apropriado por Ratzel; o “funcionalismo” de la Blache; o
“intuicionismo” de Bergson; o “positivismo lógico” da Nova Geografia de Schaefer e Bunge; a
abordagem marxista no pós-guerra preconizada por Pierre George (materialismo histórico,
entendido como “estruturalismo marxista” - Dosse, 199473) e seus seguidores como Kayser e
Lacoste. Não que a Geografia seja a única ciência que tenha sofrido tais influências, embora
se torne necessário reconhecer sua maior suscetibilidade por tratar de conteúdos relativos às
ditas ciências naturais e sociais. Esse motivo acaba implicando dificuldades quanto a questão
epistemológica, sobretudo considerando a carga ideológica iluminista imposta à externalização
da natureza em relação ao homem.
Com relação ao processo de externalização da natureza, Moreira (1994)74 observa que
“ao importar os fundamentos epistemológicos do sistema de ideias dominantes no mundo da
ciência, a Geografia passou a ver o mundo como uma dissociação orgânica do homem em
relação à natureza, da natureza em relação ao espaço e do espaço em relação ao tempo,
impossibilitando-se de ter unidade dentro de si mesma. Refletiu para dentro e para fora a
noção de que o homem não é natureza e sim que está na natureza; de que a natureza não é

71
Löbl, E. Geistige arrbeit - die wahre Quelle des Reschtums. Citado por Habermas, op. cit.p. 73.
72
Offe, Claus, citado por Habermas, op. cit. P. 70-71.
73
Dosse, François. História do Estruturalismo-2. S. Paulo: Ensaio, 1994, p. 355. .
74
Moreira, Ruy. Um Mundo Experimentado por Inteiro. Anais do 5. Congresso Brasileiro de Geógrafos. Curitiba,
p. 571-578, 1994.

28
tempo e espaço e sim que está no tempo e no espaço, e de que a sociedade não é natureza,
espaço e tempo e sim que está na natureza, no espaço e no tempo. Uma concepção
desorgânica de tudo”.
A Geografia, que tem como objeto a relação homem-natureza, já nasce fragmentada,
tendo de um lado Humboldt (1769-1859), como precursor da Geografia Física, e de outro
Ritter (1779-1859), idealizador da Geografia Humana, que “se empenham em construir uma
descrição sistemática da superfície do globo, como repositório de valores de uso exploráveis
(tanto naturais como humanos) e como o locus de formas diferenciadas de reprodução
econômica e social” (Harvey, 1983)75.
Como já foi mencionada, a desumanização da natureza, ou sua “externalização”, se
constitui em argumento ideológico do sistema de produção capitalista, como forma de
legitimação da apropriação privada dos meios de produção, cuja reprodução implica
antagonismo de classes sociais. Portanto, a ideologia da dominação da natureza legitima sua
apropriação intensiva e extensiva, sob os auspícios da ciência, que além de proporcionar a
evolução dos conhecimentos concernentes aos necessários recursos naturais, se constitui em
importante instrumento de alienação, oferecendo subsídios ao processo de subjugação do
homem em nome do desenvolvimento.
É nesse panorama que a Geografia se constitui em instrumento ideológico da
superestrutura, contribuindo para a formação de uma consciência social alienada. Basta rever
a influência do darwinismo social na geopolítica ratzeliana, da suposta neutralidade científica
no possibilismo lablacheano, do neopositivismo da quantificação na lógica bergsoniana, e a
tendência atual fundamentada na fenomenologia frankfurtiana.
Com relação ao dualismo geográfico derivado do processo de externalização da
natureza, Lacoste76 observa que “enquanto proclamam quase unanimemente que a razão de
ser da Geografia é o estudo das interações entre ‘fatos físicos’ e ‘fatos humanos’, em sua
prática os Geógrafos não parecem preocupados com tais interações: uns só se preocupam
com a Geografia Física (...), enquanto outros se preocupam essencialmente com a Geografia
Humana. A prática da maioria dos Geógrafos aparece, pois, como a negação dos princípios
que eles afirmam”.
A Geografia, como as demais ciências, passa pelas diferentes etapas de reflexão
epistemológica conduzida pela própria evolução do pensamento, vinculado ao
desenvolvimento econômico e social.
Como pode se constatar em muitos manuais, na primeira metade do Século XIX, a
Geografia encontrava-se no estágio de uma reflexão genética, onde a teoria da descrição,
fundamentada em observações empíricas, assume total relevância. Com isso obteve

75
Harvey, David. Geografia. R. Janeiro: Zahar, 1983, p. 162-165 (Dicionário do Pensamento Marxista).
76
Lacoste, Yves, Geografia do Subdesenvolvimento. S. Paulo, 1986.

29
importante contribuição para o estabelecimento de um modelo erudito e genético de literatura
geográfica, constatando-se a influência etnocentrista, na definição conceitual de termos
geográficos instituídos na época como nação, povo, classe social e luta de classe. A base
“científica” era fundamentada nas leis da natureza ou forças “obscuras”, refletindo o caráter
metafísico que marcava o conhecimento da época.
A separação das ciências naturais e ciências sociais legitimou o caráter dual na
Geografia, refletindo o efeito da doutrina externalizante, difundida pelo Iluminismo.
Na segunda metade do Século XIX, uma série de mudanças ocorreu na Geografia,
como a ação política dos geógrafos, sob a influência predominante do Positivismo,
representado por duas principais versões: rechaçamento do idealismo e tratamento
desapaixonado dos fatos de natureza geográfica, a exemplo da Geopolítica de Ratzel.
A tendência positivista na filosofia e na ciência se inicia com Auguste Comte (1798-
1857) através de seu Cours de Phylosophie Positive (1830-1842), que se converte em ponto
de partida da escola positivista francesa. Na mesma época surge o Positivismo Empírico
Inglês, formulado de maneira plena por J.S. Mill (1806-1873), pai do utilitarismo, em que
rechaça todas as premissas e afirma a existência somente de fatos isolados ou individuais: o
indutivo precede o dedutivo. Comte considera ainda que apenas os objetos e fatos empíricos
podem ser matéria da ciência. A natureza neutralizada, senão dominada, torna-se subsidiária,
transformada em farrapos pelo positivismo científico, como em la Blache, onde a “fisionomia”
das combinações é explicada pelas partes, constatando-se a persistência do espírito
cartesiano.
Com a revolução ocorrida nas ciências naturais promovida por Darwin (1809-1882)
nasce o evolucionismo positivista, tendo Spencer (1820-1903) como precursor, onde a
sociedade é vista como organismo. O método dialético e a Economia Política de Marx
desempenham na época papel muito pequeno em relação ao domínio da doutrina positivista.
No início do Século XX tem-se o desenvolvimento da reflexão estrutural que se
caracteriza pela metodologia antipositivista e a negação do excepticismo77, ou seja, ideias
nascidas das dúvidas sobre os valores cognoscitivos, resultantes da acumulação indutiva dos
fatos: processo cognoscitivo analítico.
Foi principalmente a Filosofia que no final do Século XIX proporcionou o “renascer” da
gnosiologia e da metodologia como forma de contestação do modelo das ciências naturais, de
cunho positivista. Ao mesmo tempo em que a gnosiologia propunha o conhecimento intuitivo
em substituição ao empirismo indutivo (ideia desenvolvida pelo fenomenologista E. Husserl –
1859-1939, como reflexão lógica antiempirista), H. Bergson (1859-1942) desempenha

77
O excepticismo fundamenta-se no estudo da evolução constante dos valores intelectuais e morais dos homens,
seguindo supostamente as leis naturais do progresso. Assim, ao mesmo tempo em que a natureza é imposta pela
externalização, recorre-se com frequência às leis da natureza para justificar as relações sociais, como estratégia
ideológica para a reprodução da alienação, conforme se exemplificou através do malthusianismo.

30
importante papel apresentando o entendimento do mundo em sua totalidade, ao contrário dos
pressupostos fragmentários da doutrina positivista.
Embora as novas concepções antipositivistas sejam aceitas pela comunidade
científica, as técnicas de investigação tiveram muito pouca influência, o que pode ser
justificado pelo baixo nível de formação teórica e atmosfera política da época. Percebe-se,
contudo, um aprofundamento da iniciativa analítica, de uma melhor tomada de consciência
dos fenômenos biofísicos e de um desejo crescente de intervenção voluntária do homem
sobre a natureza.
A partir da década de 50 do século passado, as questões ontológicas e
epistemológicas que até então despertavam maior interesse passam por um processo
denominado de reflexão lógica, preparada ou favorecida pelo próprio estruturalismo. Alguns
autores, como Amorim Filho78, que utilizam o conceito demarcatório de Kuhn para ciência,
entendem que até a década de 50 a Geografia se caracterizava por uma epistemologia não
explícita, fundamentada claramente no empirismo.
O momento é o de proporcionar informações sobre o estado real da ciência, utilizando-
se das bases lógicas da matemática. Nascem assim novas disciplinas como teoria da
informação, cibernética, teoria do jogo e da decisão, semiótica, que têm por objetivo subsidiar
a ciência para uma nova realidade, caracterizada por metodologia moderna e purificação da
linguagem científica.
Na Geografia a influência lógica é conhecida como a Nova Geografia, de cunho
neopositivista, tendo a quantificação e a teoria geral dos sistemas como base de sustentação
metodológica, recuperando a “neutralidade científica” lablachiana.
Tem-se como consequência a incorporação dos positivistas lógicos, como M. Schilick
(1882-1936), fundador do Círculo de Viena, que tomou como ponto inicial os postulados mal
formulados por L. Wittgenstein em seu Tractatus Logicus Phylosophicus, 1922. Essa
tendência elimina toda a metafísica da filosofia. Entendem a totalidade das afirmações como
resultado de informações de natureza teórica ou de observações, cuja construção deve
fundamentar-se numa análise lógica da linguagem da ciência: análise das relações entre as
afirmações.
A existência da comprovação ou busca de uma confirmação completa, baseada na
observação ou nas afirmações teóricas, tem sido acompanhada da exigência do “falseamento”
proposta por K. Popper79. Ao invés de se construir novos paradigmas a partir de hipóteses
consagradas, os investigadores deveriam falsear as hipóteses, com o intuito de se obter novos
conhecimentos. Tais princípios se fundamentam em relações positivistas por dois motivos:

78
Amorim Filho, Oswaldo B. Las más recientes reflexiones sobre la evolución del pensamiento Geográfico. Cad.
Geografia, B. Horizonte, 7(9): 5-17, jul, 1997.
79
Popper, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. S. Paulo: Cultrix/Edusp, 1972.

31
emprego de bases metodológicas da natureza para a compreensão das relações sociais e a
obsessão por leis, mesmo que entendidas como verdades transitórias.
Essa política, fundamentada na “neutralidade científica”, evidencia o grau de alienação
até a década de 70 do século passado, após ter participado da “administração racional”, em
atividades de planejamento urbano e regional, dirigido para o controle social, mantido pelos
interesses capitalistas.
Na segunda metade dos anos 70 do Século XX, uma nova revolução é sentida na
Geografia, fundamentada em novo paradigma, de base marxista, que se poderia denominar
de reflexão dialética. Lacoste (1973)80, tendo como alvo a Geografia Universitária, torna
visível “as estratégias ocultas que têm o espaço”, proporcionando a dimensão política até
então escondida. Assim, a partir dos anos 70, com o “retorno à natureza” e a “redescoberta do
marxismo” é que se presencia certa mutação epistemológica na Geografia, embora
insuficiente para combater o enigma cartesiano e positivista.
Para Amorim Filho81, a adesão ao movimento radical” foi muito menos unânime e
massivo do que a mobilização constatada alguns anos antes com a Nova Geografia. Da
mesma forma a unidade do movimento não se consolida por surgirem consideráveis debates e
divisões internas que caracterizam a existência de propostas de difícil consolidação. Diante
disso surgem novas tendências, podendo-se perceber claramente a influência da
fenomenologia, quando se insiste no imaginário social como pressuposto para o entendimento
das relações espaciais, em detrimento da “cultura material” amplamente valorizada na
Geografia “marxista”.
Epistemologicamente parece ter lugar suficiente para várias tendências no novo
movimento humanístico, sem, contudo, buscar uma tendência consistente. Conforme o próprio
autor, Amorim Filho afirma, assiste-se inclusive a uma evidente recuperação de base
neopositivista na Geografia, com características muito mais flexíveis, explorando o potencial
riquíssimo da informática e da teoria dos sistemas, como pode ser constatado através de
propostas ligadas a conceituados epistemologistas, a exemplo de Mário Bunge. Para Bunge
(1983)82, a epistemologia é considerada “uma combinação de filosofia, psicologia e sociologia:
ela descreve e analisa as várias facetas dos processos da cognição humana, sucedidos ou
não, que estejam ou não relacionados com questões contraditórias”. Portanto, a Geografia
neopositivista não está morta, sabendo os doutrinários superar as críticas e promover
reformulações atrativas, sem, contudo, alterar seus princípios filosóficos ou objetivos básicos.

80
Lacoste, Yves. Le Géographie. Paris: Hachette, 1973 (Histoire de la Philosophie - La Philosophie des Sciences
Sociales).
81
Amorim Filho, op. cit.
82
Bunge, Mario. Treatise on Basic Philosophy. Dordrecht: Reidel, 1983.

32
As Relações da Geografia com o Sistema de Produção

A Geografia, desde sua concepção genética, assume um caráter dual, fruto do


processo de externalização da natureza, configurando o núcleo do programa iluminista e da
modernidade.
Nesse contexto a Geografia acadêmica estrutura suas bases epistemológicas no
positivismo, subordinada ao princípio baconiano de “conhecer a natureza para dominá-la”, o
que induz, ideologicamente, ao entendimento de uma natureza hostil, legitimando a
apropriação privada da natureza e, consequentemente, dos meios de produção. Ao mesmo
tempo em que legitima o processo de externalização da natureza, utiliza suas leis para tentar
demonstrar as relações sociais numa perspectiva positivista, tendo por objetivo promover a
ideologização e alienação da consciência social. É nesse contexto que surge o determinismo
ambiental da Geopolítica de Ratzel ou a neutralidade científica de la Blache, que tinha por
princípio refutar a estratégia da dominação estatal contida no primeiro.
Embora o estruturalismo anteceda a reflexão lógica na evolução do pensamento
científico, na Geografia surge tardiamente, quase concomitante à influência neopositivista da
Nova Geografia, assessorado pela quantificação. Mais uma vez a Geografia privilegia o
idealismo em detrimento do dialético.
Nos três séculos precedentes se constatou na ciência uma tradição naturalista, em que
pese um tratamento diferenciado e contraditório: o darwinismo, o organicismo, o romantismo,
o positivismo... No século atual a natureza parece se “apagar”. Bertrand (1978)83 analisa esse
reflexo como consequência da “fase triunfalista e agressiva de uma expansão técnico-
econômica aparentemente generalizada, benéfica e ilimitada. Neutralizada, senão dominada,
a natureza tornou-se então subsidiária, transparente, quase desprezível”. Considera ainda que
no pensamento idealista dos economistas liberais, os fatos naturais são subjugados ao
espontaneísmo da livre empresa humana. Hoje, o retorno à natureza toma a forma
revolucionária de uma contracultura, embora ideologizada pela “virtuosidade”, procurando
resgatar o pressuposto materialista de que o homem está na natureza, oportunizando
importante reflexão sobre o lugar e o papel da Geografia. É nesta perspectiva que Bertrand
(1978) lamenta o silêncio dos Geógrafos face à emergência da natureza e à expansão do
desenvolvimento sócioambiental: “trata-se de uma recusa científica motivada por desinteresse
epistemológico ou incapacidade metodológica?”. O resgate à dialética da natureza engelsiana,
sem sombra de dúvidas, oferece respostas para que a Geografia recupere o tempo perdido,
tendo como prática a justiça social.

83
Bertrand, Georges. La Géographie Physique contre Nature? Herodote n. 26, Paris: François-Masperó, 1978.

33
Com a reflexão dialética, sobretudo nas ciências sociais, a partir da década de 70 a
Geografia passa por uma verdadeira ruptura epistemológica, tendo o materialismo dialético
como sustentação científica.
Acredita-se que o baixo nível de formação teórica, a atmosfera política criada com o fim
do socialismo de estado soviético e a instituição do projeto produtivista liberal implicaram
diretamente na deficiência das técnicas de investigação e consequentemente na produção de
novos conhecimentos científicos.
Com o advento do novo modelo de desenvolvimento – produtivismo liberal – a
Geografia de base marxista perde espaço e busca novas alternativas paradigmáticas, quando
poderia estar se opondo principalmente às novas estratégias ideológicas responsáveis pela
pacificação dos conflitos, decorrentes da revolução científico-tecnológica assistida nas forças
produtivas. Embora mantendo a estrutura arcaica das relações sociais de produção, a
superestrutura ideológica assume uma forte tendência de dominação, em nome de um modelo
de desenvolvimento supostamente sustentável.
A participação da Geografia como instrumento ideológico da superestrutura dominante
parece ter sido mais eficiente que nas forças produtivas, onde a tecnificação foi mediada pelo
trabalho. A Geografia deixa assim de se caracterizou como “ciência tecnológica”, como têm
sido atribuído as engenharias e mais recentemente a biologia genética, sem, contudo
participar do processo: a Geografia Física, através de conteúdos especializados, tem tido uma
participação cada vez maior na prestação de serviços, destituída de uma crítica social. A
“administração racional” da década de 60, relacionada a projetos de planejamento, atualmente
encontra-se centrada nas questões ambientais.
A participação do geógrafo em estudos ambientais acabou sofrendo as consequências
dos interesses empresariais na prestação de serviços, aqui sintetizados (Casseti, 1991)84: (a) a
proliferação indiscriminada de empresas de prestação de serviços ambientais para atender
exigências legais quanto a concessões de licenças implicou regime concorrencial e
consequente degradação da própria qualidade dos trabalhos. Tais empresas assumiram uma
função cartorial, tendo por objetivo a intermediação junto aos órgãos licenciadores; (b)
limitações dos órgãos fiscalizadores quanto ao cumprimento das exigências contidas nos
referidos instrumentos, por carência de pessoal especializado e equipamentos indispensáveis.
Esse fato justifica o caráter emblemático do órgão, que carece de maior autonomia financeira
e política, o que não é desejo do sistema, ou mais especificamente da superestrutura, por
envolver interesses das relações de produção; (c) os interesses estratégicos do Estado, como
as questões energéticas, fazem dos órgãos de defesa ambiental simples licenciadores
desprovidos de instrumentos de contestação, reforçando o argumento emblemático
mencionado.
84
Casseti, Valter. A Essência da Questão Ambiental. Bol. Goiano de Geografia, Goiânia, 13 (1) p. 14, 1991.

34
Embora discordando do tratamento diferencial apresentado por Joly (1978)85 ao falar
da questão relacionada ao mercado profissionalizante e “especializações necessárias”, o perfil
profissional descrito pelo autor merece consideração: “... seu senso geográfico da repartição e
das interações entre os fenômenos é um precioso trunfo que não possui sempre seus
difamadores, os mais arrogantes. Suas tradições naturalistas de observação e de análise, na
sua prática da cartografia e da teledetecção lhes fornecem um instrumento perfeitamente
adaptado às finalidades geotectônicas. A dimensão ecológica de seus conhecimentos, seu
interesse permanente de integrar o homem e suas atividades na compreensão do meio natural
satisfazem, justificando sua participação em equipes mistas encarregadas dos planos de
ocupação e de valorização”.
Independentemente do grau do aproveitamento profissional do Geógrafo no
desenvolvimento das forças produtivas é imprescindível avaliar a prática social desempenhada
nos últimos anos, da mesma forma que se refuta a prática historicamente marcada pela
alienação.

A Geografia e o desencantamento do mundo

Assim sendo, a Geografia sistematiza-se a partir da concepção físico-mecanicista da


natureza, fundamentada no programa de modernidade afeito ao projeto de desencantamento
do mundo.
Ao longo de praticamente um século, a Geografia “preservou um misto de
cartesianismo (a natureza como sucessão de corpos geométricos), fisicismo (a natureza
limitada às leis do movimento mecânico), evolucionismo (a natureza reduzida a fator de
produção) e geopoliticismo (a natureza circunscrita à base territorial da história)” (Moreira,
1991)86. Considera-se acima de tudo, o efeito do desencantamento e a feliz apatia, condição
na qual a “natureza interna do homem está dominada em prol da dominação da natureza
externa” (Horkeimer, op.cit). Acrescentam-se ainda os efeitos do positivismo com a extensão
dos métodos científicos das Ciências Naturais nos estudos da sociedade, também conhecido
como darwinismo social.
Embora a tendência produzida pela escola germânica tenha promovido o
desenvolvimento de uma linhagem geoecológica, via Haeckel (1843-1916), a concepção
naturalista reforça essa externalização, contribuindo para o dualismo histórico. Também a
teologia de Ritter revive o racionalismo cartesiano ao tratar as manifestações humanas de

85
Joly, Fernand. La Geographie n’est-elle qu’une Science Humaine? Herodote n. 12, Paris: François-Masperó,
1978, p. 129-158.
86
Moreira, Ruy. O Conceito de Natureza na Geografia Física. Cad. Prudentino de Geografia. Presidente Prudente,
(13): 67-113, 1994.

35
forma subjetiva. Reflexos das referidas tendências promoveram o paradoxo entre forma e
conteúdo, manifesto tanto nas obras de Vidal de la Blache, como de Emmanuel De Martonne.
A partir da década de 60 do século passado, o retorno à natureza estimulado pela
intensa degradação processada pelo espontaneísmo, levou a uma rediscussão da temática
ambiental, que ocupou destaque no final deste século. Ainda deve-se ressaltar a redescoberta
do marxismo, que começa a tomar forma na ciência geográfica no início dos anos 70.
Conforme manifestou Soja (1990)87, “ao longo da década de 1970, a Geografia Marxista
continuou periférica ao marxismo ocidental, quase que inteiramente construída num fluxo de
ideias de sentido único, numa crescente marxificação da análise e da explicação geográficas”.
Apesar da origem naturalista da Geografia Física de tendência germanofônica e de
certa mutação epistemológica constatada no período, a Geografia não chegou a produzir
avanços. O combate aos enigmas cartesiano e positivista, sem apresentar alternativas, levou
Bertrand (1978)88 a evidenciar “a falta de um projeto físico global, tornando a natureza
incompreensível, ‘sonsa’ e transparente, contribuído para evacuar a natureza da Geografia e
das Ciências Sociais”.
Apesar da longa ruptura epistemológica em que se encontra a Geografia, a temática
ambiental deveria se constituir no viés imprescindível a uma rediscussão epistemológica,
restabelecendo a necessária unificação da relação homem e natureza. Assim, a Geografia
Física poderia produzir importante contribuição não pela herança ecológica da escola
germânica, mas por ter tido a histórica oportunidade de discutir a natureza e compreender as
suas facetas ideológicas. Portanto, a estratégia epistemológica seria a de discutir a questão
ambiental, que transcende os limites físicos, ou melhor, resulta da produção do espaço nos
diferentes modos de produção, a partir do conceito de natureza. Assim é possível buscar as
razões ideológicas da externalização da natureza produzidas pelo programa de modernidade
do iluminismo; passar pelas dissimulações ideológicas do domínio da cientificação da técnica,
até as novas estratégias ideológicas elaboradas a partir da década de 70, momento em que a
natureza se caracteriza pela virtuosidade, sem, contudo, deixar de legitimar os interesses das
relações de produção. Com relação à referida mutação Smith (1988)89 observa que a
Geografia serviu apenas para legitimar ainda mais a ideologia do processo de apropriação.
Nesse momento o autor utiliza da imagem da mulher para fazer analogia entre as diferentes
formas de concepção externalizada da natureza: “as mulheres são postas em pedestais
somente quando a sua dominação social está garantida; precisamente como se faz com
relação à natureza; a romantização é aí uma forma de controle. Mas as mulheres não podem
nunca ser completamente exteriores, uma vez que nelas reside a fertilidade e os meios

87
Soja, Edward. W. Geografias Pós-Modernas. R. Janeiro:J.Zahar, 1993.
88
Bertrand, Op. cit.
89
Smith, Neil. Desenvolvimento Desigual. R. Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 43.

36
biológicos de produção. Neste sentido, elas se tornam elementos de natureza universal, mães
e nutrizes, possuidoras de uma misteriosa intuição feminina”.
Qualquer iniciativa que tenha por objetivo promover as transformações desejadas deve
romper com o conceito ideológico da “externalização”, responsável pela legitimação da
apropriação privada da natureza e dos meios de produção. Tal estratégia tem por objetivo
apropriar-se de uma função que se pode qualificar de dialética, no sentido lato do termo, no
momento em que a natureza deixa de se constituir puro objeto universal dos meios de
produção. Quando o homem for entendido como natureza, esta se converterá em sujeito e
objeto ao mesmo tempo, numa estreita relação dialética e numa perspectiva histórica, onde o
modo de produção e suas contradições respondem pela sucessão de novo equilíbrio. Para
isso, torna-se imprescindível compreender que é o sistema de produção e as forças produtivas
que dão à natureza sua existência social.
Parece não haver dúvida quanto aos requisitos da Geografia para tratar as questões
ambientais em uma nova perspectiva. Lembrando Guerasimov (1983)90, a Geografia
contemporânea está mais preparada que as outras ciências para assumir os estudos
ecológicos, uma vez que “dispõe dos métodos necessários e, o que é mais importante, possui
uma imensa formação científica sobre o meio natural e seus recursos, assim como o grau e as
formas de sua potenciação e aproveitamento econômico”. Acrescenta-se ao dizer do autor,
que a Geografia possui os instrumentos que permitem a compreensão das categorias e
articulações que compõem as relações de produção e a superestrutura ideológica, as quais se
apropriam dos meios de produção e subjugam a força de trabalho aos interesses
espontaneístas.
A partir do momento em que forem superadas as limitações epistemológicas
produzidas pela ideologia do desencantamento do mundo, o que será possível através da
compreensão da natureza numa perspectiva dialética, estarão rompidas as amarras da
alienação. Será compreendido o significado da base técnica e de processos produtivos na
divisão do trabalho, na produção do excedente como fator de distribuição desigual,
responsável pela legitimação do antagonismo de classes sociais: de um lado os proprietários
dos meios de produção, e de outro, os mercadores da própria força de trabalho. Tudo isso
sem desconhecer as formas ideológicas dissimuladas pela cientificação da técnica,
responsável pela redução do significado da força de trabalho com consequente pacificação de
conflitos de classes. “Descobrir os mecanismos pelos quais se relacionam é decifrar os elos
da desalienação e fazer com que o homem deixe de ser vítima do real, para transformá-lo à
sua imagem e semelhança, para humanizar o mundo” (Sader, 2008)91.

90
Guerasimov, I. Problemas Metodológicos de la Ecologizacion de la Ciencia Contemporánea. Moscou: Progresso,
1983, p. 57-74 (La Sociedad y el Medio Natural).
91
Emir Sader. Pensar para transformar o mundo. Caros Amigos, dez, 2008.

37
92
O relevo no contexto ideológico da natureza externalizada *

A ideologização da natureza é tão antiga quanto a própria história, o que implica


conceito dual, fundamentado em filosofias artificialistas e naturalistas, as quais contêm em si
linhagens contraditórias, como as diferentes formas místicas naturalistas da falsificação, da
repressão e da transgressão (Rosset, 1973)93.
Duarte (1986)94, ao discutir o conceito de natureza, apresenta um retrospecto histórico,
partindo da concepção mágica de natureza como consequência da fragilidade da consciência
mítica. Para Lévi-Strauss, citado pelo autor, “o homem atribui à natureza traços humanos, para
poder se revestir, ainda que ilusoriamente, das forças da natureza. Na cosmologia grega, o
mundo é dotado de uma hierarquia funcional que o torna semelhante ao organismo biológico”.
Para Collingwood (1949)95, somente com a proposição copernicana da excentricidade
do universo é que a concepção organicista será abandonada pelo mecanicismo, onde a
natureza é, antes de mais nada, ‘ser-outro’. Portanto, com a revolução mecanicista dos
séculos XVII-XVIII, o conceito de natureza passa por uma mutação radical, correlativa às
grandes mudanças que se deram na própria evolução do conhecimento. Nesse momento, com
a sistematização do conhecimento científico, a natureza assume uma característica própria de
externalização, fundamentada na afirmação do poder humano sobre a natureza. Francis
Bacon, ao considerar o domínio da natureza como tarefa básica da ciência, assume a
condição de profeta dos novos tempos. Observa-se que o determinismo ambiental apresentou
função ideológica relevante como reação à natureza mecanicista, à qual se atribuía inclusive
participação no aprimoramento das raças. Até mesmo na literatura clássica brasileira o
determinismo pôde ser evidenciado, como em Os Sertões, de Euclídes da Cunha, onde se
destina um tópico específico sobre a “ação do meio na característica fisionômica das raças”.
Reiterando mais uma vez, a proposta de natureza externalizada se constitui no
argumento ideológico utilizado pelo sistema de produção capitalista que tem por objetivo
legitimar a apropriação intensiva e extensiva da natureza pelos detentores dos meios de
produção. Assim, além de legitimar a apropriação privada da natureza, ainda se constitui em
argumento de alienação, indispensável à manutenção do antagonismo de classes sociais e
consequentes impactos ambientais, tido como preço do desenvolvimento.

92
Texto parcialmente extraído do artigo do autor, “O Relevo no Contexto Ideológico da Natureza: Uma Nota.
B.Goiano de Geogrrafia, Goiânia, 14(1):103-115, jan/dez, 1994.
93
Rosset, Clément. A Anti-Natureza. R. Janeiro: Espaço e Tempo, 1973.
94
Duarte, Rodrigo A de Paiva. Marx e a Natureza em “O Capital”. S.Paulo: Loyola, 1986.
95
Collingwood, R.G. The idea of Nature. Oxford: Clarendon Press, 1949.

38
Nesse contexto a Geografia acadêmica estrutura suas bases epistemológicas
positivistas. A concepção dualista da natureza vai influenciar todo o pensamento geográfico:
de um lado, a natureza externa, realidade não humana, dada por Deus; de outro, a natureza
mais abstrata, incorporando tanto a esfera da realidade humana como não humana.
Portanto, a natureza concebida pela Geografia Física é o mundo das coisas
inorgânicas, expressas numa linguagem geométrico-materialista. Ao mesmo tempo em que
reflete a concepção mecanicista da natureza, tem por objetivo atender aos interesses do
sistema de produção capitalista, subjugando a força de trabalho às diferentes formas de
alienação e legitimando a apropriação privada dos meios de produção. Assim, os
componentes da natureza física constituem uma cadeia lógica da sucessão causal, assumindo
conteúdos da base territorial: a geologia como substrato do substrato; o clima como a alma da
natureza; a bacia fluvial como artéria do corpo territorial; o solo como útero da terra, e o relevo
como a própria base territorial (Moreira, 1991)96.
O relevo, como componente do quadro natural, assume expressividade como base
territorial, uma vez que se confunde com a base topográfica, considerado por De Martonne
como o “palco do desenvolver da história”.
A preocupação com o relevo nesse momento procura evidenciar o significado
ideológico, tanto pelo caráter geopolítico historicamente assumido, como pela condição
externalizada que o individualiza na abordagem positivista da teoria dos azares.

O Significado Geopolítico do Relevo

O conceito geopolítico do relevo, como base topográfica, já se constituía em


preocupação há mais de 2.500 anos, quando Sun Tzu escreveu a Arte da Guerra. Um capítulo
específico sobre o terreno compõe os treze artifícios tratados pelo autor, que os analisa como
estratégia de guerra. Define seis tipos de terreno: o acessível, o complicado, o retardado, os
desfiladeiros, os cumes escarpados e posições a grande distância dos inimigos.
Com relação ao acessível, observa que pode ser livremente atravessado de qualquer
lado. “Em terreno assim, derrota-se o inimigo pelo sol e protege-se cuidadosamente nossa
linha de abastecimento. Então, está-se em condições de combater com vantagem”. O terreno
complicado pode ser abandonado, mas é difícil de ser reocupado. “De uma posição dessas, se
o inimigo estiver despreparado para a nossa chegada, podemos investir e derrotá-lo”. No
terreno retardado, no sentido de chegada, é aconselhável não avançar e, sim, recuar, atraindo
por sua vez o inimigo. Nos desfiladeiros “torna-se possível a investida se o inimigo estiver
desguarnecido”. Quanto aos picos escarpados, “se precedermos nossos adversários,
devemos ocupar os locais claros e altos e esperar que eles cheguem”. No tocante à posição a
96
Moreira, op. cit. P. 71.76.

39
grande distância do inimigo, “se as forças dos dois exércitos forem iguais, não será fácil
provocar um combate. E lutar será desvantajoso”. Tzu97 atribui ao terreno importância
fundamental na arte da guerra: “a formação natural da região é o melhor aliado do soldado”,
observando, contudo que “às vezes, um exército fica exposto a calamidades não decorrentes
de causas naturais, mas de erros pelos quais o general é responsável”. Conclui que “se você
conhece o céu e a terra, pode torná-la completa”, referindo-se à vitória.
Também com relação à importância bélica do relevo, Tricart (1957)98 ressalta o
significado das pesquisas sobre os aplainamentos que dominaram as preocupações
geomorfológicas durante as duas grandes guerras: implantação de aeroportos.
Para Moreira (1991)99, o primado do relevo no processo de organização do espaço deu-
se ao cunho geopolítico, “fundamentado numa concepção teleológica da presença da natureza
no mundo, cuja origem é a escola alemã, onde la Blache foi beber seus conhecimentos, via
Durkhein”. Observa o autor que a origem e significado geopolítico do relevo podem ser
conferidos no dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, que o caracteriza como “aquilo que
sobressai por formar saliência sobre qualquer superfície relativamente plana”, ou “o conjunto
das diferenças de nível da superfície terrestre”. A noção de acidente, implícita na primeira
definição, relaciona-se à noção medieval de revanche da natureza; a segunda, noção
equivocada, advinda da primeira, o relevo se caracteriza como “altimetria”, popularizado pelo
ensino escolar, cujo propósito é o da utilização do relevo como critério de demarcação das
fronteiras territoriais.
Portanto, o relevo se define pelos critérios de acidentes e altimetrias, não passando de
uma deformação matemática do fenômeno geomorfológico, “fruto da confusão que nos leva a
fazer sobre a origem geopolítica da Geografia Física... “(Moreira, 1991)100. Observa o autor que
a definição dos diferentes compartimentos (planalto, planície, depressão) e respectivas
relações processuais (erosão, sedimentação) encontram-se subordinadas aos princípios
mecanicistas unificados na lei da gravidade.
A concepção mecanicista da natureza começa com a revolução copernicana (Séc. XVI)
em detrimento do geocentrismo aristotélico-ptolomaico, oferecendo sustentação às ideias de
Descartes (Séc. XVII) que separa o mundo do homem em res-extensa (o mundo dos corpos
externos) e res-cogitans (o mundo interno do ser pensante).
Com a descoberta da lei da gravidade por Newton (Séc. XVIII), o processo se completa
“uma vez que a unidade matemática do mundo agora se explicita no conteúdo de uma lei
única regendo todos os corpos do universo” (Moreira, 1991)101. Nasce nesse instante o

97
Tzu, Sun. A Arte da Guerra. S. Paulo: Record, 1983.
98
Tricart, Jean. Mise en point: L’evolution des Versants. L’Information Geographique, Paris (21):108-115, 1957.
99
Moreira, Op. cit. p. 69
100
Moreira, op. cit, p. 69 ss.
101
Moreira, op. cit, p. 79 ss.

40
‘mundo-máquina’ que substitui o ‘mundo-Deus’ da concepção medieval. “Nasce uma natureza
que, por ser mensurável e quantitativa, podemos conhecer e controlar”. Nasce, portanto, uma
nova dicotomia, onde a natureza é dessacralizada, excluindo assim o homem do mundo físico.
Essa externalização tem por fim legitimar o processo de dominação da natureza pelo homem,
ao mesmo tempo em que “o homem submete-se a esta lei externa aos corpos, pulverizando-
se também nessa individualidade radial das coisas do seu mundo” (Moreira, 1991).
Externalizando a natureza, o homem, enquanto força de trabalho, também se externaliza do
processo produtivo, ao mesmo tempo em que legitima a apropriação privada dos meios de
produção, se constituindo a natureza em objeto da base econômica.
O comprometimento da ciência moderna com o projeto histórico de construção técnica
do capitalismo, responde pela transferência de um conhecimento ideologizado, fundamentado
numa filosofia positivista, que tem por objetivo produzir a necessária alienação. É a fusão da
física com a fábrica, considerada por Moreira (1991)102.
Nos dois momentos anotados anteriormente, constata-se que o relevo apresenta a
função de ‘palco’, cujas características, sobretudo geométricas (Descartes), resultantes de
atividades gravitacionais (Newton), definem a estratégia apropriada ou proporcionam as
condições indispensáveis à determinação das fronteiras territoriais, evidenciando o caráter
geopolítico (Durkhein). Assim, ao mesmo tempo em que o relevo assume uma importância
geopolítica, constitui-se também em objeto universal de trabalho, necessário ao processo de
dominação. Reforça o argumento de legitimação do próprio direito de propriedade, tendo a
guerra como forma de dominação territorial (direitos estatais sobre territórios) ou a “acidentes”
geográficos como forma de demarcação desse domínio.
Com a formulação positivista-evolucionista darwiniana na contestação do modelo
mecanicista, o que se observou foi a simples mudança da estratégia ideológica capitalista. Na
Geomorfologia, a influência do evolucionismo darwiniano aconteceu com Davis (1909, 1912),
que atribui ao relevo uma evolução antropomórfica. Na segunda metade do Séc. XIX essa
influência é marcada nos esquemas clássicos de erosão torrencial de A. Surell, nos estudos
de morfologia glacial de J. L. Agassiz, no traçado dos rios de W.Jukes e no cálculo de arraste
e sedimentação dos materiais de J. Powell & C. Dutton. O excesso metafísico, a discutível
generalização do ciclo geomorfológico e a limitação temporal da geodinâmica, responsável
pelo estado final do equilíbrio hidrológico, se constituíram nos pressupostos básicos da teoria
davisiana, implicando uma concepção orgânica do relevo (modelo antropomórfico) e, ao
mesmo tempo, um reducionismo epistemológico. O método dedutivo e a prática desligada do
resto da Geografia são contestados pela corrente naturalista da escola alemã que se
fundamenta no método indutivo e na sua conexão com a Geografia.

102
Moreira, op. cit. P. 87.

41
O Relevo no Âmbito da Teoria dos “Azares”

Partindo do princípio de que o acaso, representado pela inércia absoluta, o artifício,


que qualifica a quase totalidade das ações do homem, e a natureza, que designa um conjunto
de atuações que transcende a inércia material, Rosset (1973), em sua abordagem ontológica,
conhecida desde Platão e Aristóteles, define a natureza como instância alheia, tanto à arte
103
(artifício) como ao acaso. Ao defender essa concepção naturalista, Rosset (1973) procura
estigmatizar o preconceito naturalista, afirmando que “é na natureza que o artifício retira sua
força” e que “a única autonomia que se reconhece na arte, com relação à instância natural, é o
poder de transgressão e degradação”.
Apesar de lúcida, a concepção retomada pelo autor não deixa de “tricotomizar” as
relações ontológicas, o que se constitui em importante argumento diante da lógica capitalista
e, por conseguinte, subsídio fértil à pesquisa do azar natural. Tais considerações se
aproximam dos argumentos dos defensores da Escola de Frankfurt, que se apropriam do
conceito de dominação da natureza, unidimensional e livre de contradições, atribuindo à
condição humana a responsabilidade pelos problemas ambientais. Portanto, está implícito o
conceito de ‘revanche, como resposta da natureza aos efeitos do artifício. O acaso (a matéria),
intrínseco às leis da natureza (lei da gravidade, relatividade generalizada), passa a se
constituir em aliado da revanche, numa estreita relação de causalidade.
Smith & O’Keefe (1980)104 definem os três principais caminhos da pesquisa dos azares,
fundamentados na concepção positivista de natureza: o evento do azar como processo
natural, a vulnerabilidade do homem frente aos eventos externos e a dissolução do homem na
natureza externa. Em todas as posturas consideradas, a revanche prevalece; ou o artifício,
também externalizado, se subjuga ao poder da natureza, que tem como interface o acaso. As
linhagens relativas à pesquisa dos azares se manifestam da seguinte forma:
Na primeira abordagem, assim como nas demais, o paradigma da Geografia
Física “julga a natureza como totalmente separada da atividade humana”. No evento do azar,
o resultado do processo é essencialmente natural (processos físicos internos), portanto, além
do domínio do homem (artifício), sendo caracterizado como “ato de Deus”. Como exemplo
geomorfológico pode-se considerar os deslizamentos de massa e as enchentes, dissociados
de uma intervenção do homem. Existem possibilidades de tais episódios, em condições de
biostasia, serem determinados exclusivamente pelas características intrínsecas aos
compartimentos, associados a anomalias pluviométricas. Contudo, deve-se observar a maior
possibilidade de tais eventos em condições resistásicas, ou seja, relacionados a intervenções
antropogênicas, que vão desde as disritmias pluviométricas até instabilidades de vertentes

103
Rosset, op. cit.
104
Smith, Neil & O’Keefe, Phil. Geography, Marx and the concept of Nature. Antipode V. 12, p. 30-39, 1980.

42
(cortes de taludes naturais) ou assoreamento de canais fluviais. Portanto, a ocupação de
áreas de risco pode implicar desastres, vinculados a derivações produzidas pelo homem,
mesmo que estes sejam alheios à sua vontade.
A segunda abordagem dos azares naturais, da mesma forma que a anterior, sustenta a
separação dos eventos naturais e sociais. “Entende a ocorrência dos desastres como uma
interface entre uma população vulnerável e um evento externo” (Smith & O’Keefe, 1980)105.
Aqui a vulnerabilidade ao desastre é vista como se a natureza fosse neutra, evidenciando que
o meio é ‘azarado’ somente quando “intersecta-se com o povo” (Burton et alii, 1978)106. Tal
conceito parece implícito na noção da trilogia ontológica comentada anteriormente, onde o
acaso, pela condição e inércia que possui, constitui-se no elemento de neutralidade. Tal
argumento difere do anterior ao se considerar o movimento de massa a partir da instabilidade
de talude. Dependendo do poder aquisitivo de quem ocupa as áreas de risco, os efeitos são
diferenciados: alternativas técnicas podem controlar os ditos azares naturais, o que caracteriza
a extensão da dominação humana (artifício) sobre a natureza, supostamente externa.
Contudo, a possibilidade de se romper o limiar de segurança poderá fazer com que o
componente da neutralidade (acaso) implique revanche, subjugando-se às relações
processuais da natureza. Normalmente as ocupações de áreas de risco são clandestinas ou
consensuais, por pessoas desprovidas de recursos, o que multiplica exponencialmente os
efeitos do desastre, considerando a precariedade das edificações. Com o desmatamento das
vertentes, cortes de taludes e aterros para a ocupação, têm-se uma mudança substancial nas
relações processuais, constatando-se além do domínio da componente paralela (escoamento)
em detrimento da perpendicular (infiltração), a instabilidade dos depósitos de cobertura com
consequente cisalhamento. A subordinação da população aos ditos azares naturais é
argumento fundamentado na suposição da autonomia da natureza, explicação plausível e
despolitizada para a compreensão dos efeitos dos desastres. A natureza passa a ser hostil
principalmente com os desapropriados.
A terceira abordagem dos azares equivale à “dissolução da natureza humana dentro da
natureza externa”. Para os autores (Smith & O’Keefe, 1980)107 essa abordagem apresenta uma
perspectiva virtualmente malthusiana, evidenciando que “o pobre é o mais afetado na maioria
dos desastres”. Atribui-se a isto não somente à falta de recursos, mas especialmente pela
tendência de o pobre contribuir significativamente com o aumento do índice de natalidade. A
lógica malthusiana, ao considerar importante o controle populacional positivo, a seleção
‘natural’ passa a se constituir argumento de triagem. Para Malthus (1961) “(...) se quisermos
agir corretamente, devemos facilitar a ação da natureza que produz a mortalidade, ao invés de

105
Smith & O’Keefe, op. cit, p. 36.
106
Burton, I. Kate, R.W. & White, G.F. The Environmentas Hazard. N. York: Oxford University, 1978.
107
Smith & O’Keefe, op. cit, p. 37.

43
nos esforçarmos inútil e totalmente por impedi-la”108. Assim, a vulnerabilidade ao desastre’ é,
conforme a própria abordagem malthusiana reconhece, uma relação de classe: “a natureza
não produz num lado proprietários do dinheiro ou de mercadorias, e, no outro, homens que
não possuem nada senão sua própria força de trabalho” (Marx,1967)109. Portanto, a
apropriação diferencial da natureza propicia a vulnerabilidade dos despossuídos aos azares,
onde “as vítimas devem ser socorridas depois do evento”. Ao mesmo tempo em que a
natureza é externalizada, se constitui em recurso ideológico para justificar os “desastres”
associados à ocupação diferencial do espaço. Atribui-se, portanto à natureza, a
responsabilidade dos efeitos catastróficos a que fica susceptível a população que ocupa áreas
de risco, legitimando o “natural” antagonismo de classes sociais e consequente acesso
diferencial do espaço de morada.
Menciona-se aqui, ainda, o argumento da natureza humana utilizado pelos defensores
de uma natureza universal, preconizada no positivismo, como um dos mais lucrativos
investimentos da ideologia burguesa. Mantém a externalização de uma natureza virtuosa em
detrimento de uma natureza hostil, conceito superado pela negação da negação.

108
Malthus, op. cit.
109
Marx, Karl. Capital. N. York: International Publishers, 1967, v. 1, p. 169.

44
CIÊNCIA COMO FORÇAS PRODUTIVAS

“Negar o que se vê porque o que se vê


não está de acordo com o que se pensa
é tapar os olhos”

Hubert Reeves

Sob a lógica da externalização da natureza que nasce no iluminismo, apesar de


dissimulada pela cientificação da técnica, constata-se a crescente apropriação intensiva e
extensiva dos recursos, promovendo a acumulação ampliada dos problemas ambientais.
O espontaneísmo de tais relações implica dilapidação das riquezas da natureza,
culminando com o domínio hegemônico do capitalismo muito bem representado pelo fordismo.
A lógica do fordismo, “mesmo infletida por preocupações ecológicas é implacável: mais vale
trabalhar para consertar e fazer consumir o conserto do que se abster de poluir e deixar as
pessoas respirarem gratuitamente o ar puro” (Lipietz, 1991)110. Contudo, o custo da
despoluição acrescido à produção agrava a crise da oferta, produzindo o dilema imbecil: o
emprego ou a ecologia, divisão que favorece o produtivismo liberal. “Na realidade, o
produtivismo que, por imitação ou sob pressão da dívida, difundiu-se por todo o planeta,
saturou nosso ecossistema e encurtou prodigiosamente o tempo disponível para adaptação
aos desajustamentos que nós mesmos provocamos” (Lipietz, 1991)111.
Com o fim do welfare-state uma nova estratégia de desenvolvimento é articulada pela
hegemonia do capital, com o intuito de pacificar os conflitos de classe, restringindo as
concessões do passado: esvaziar o poder econômico do Estado, que havia sido acumulado
nas últimas décadas e reestruturar a ordem mundial a partir da extinção das fronteiras
ideológicas.
Praticamente em poucas décadas o novo liberalismo, iniciado na Inglaterra e nos
Estados Unidos, triunfa em todos os organismos de consulta e de regulação econômica
internacional (OCDE, FMI, Bird). Estende-se por todo o espaço geográfico, imposto pelo poder
hegemônico do capital, permitindo o aparecimento do esboço de um verdadeiro modelo de
desenvolvimento a partir dos anos 80 do século passado.
O discurso do produtivismo liberal, em linhas gerais, procura livrar-se dos excessos
praticados pelo Estado e Sindicatos (desenvolvimento das empresas. Como se sabe, os
problemas com as grandes empresas legislação social, o Estado-providência, as normas
antipoluição...) bem como o bloqueio ao livre começaram no final do século XIX nos Estados

110
Lipietz, Alain. Audácia: Uma Alternativa para o Século 21. S. Paulo: Nobel, 1991, p. 79.
111
Lipietz, Op. cit, p. 81.

45
Unidos, com a lei anti-trust. “É somente com o advento do New Deal de Roosevelt e os
contratos coletivos conquistados pelos sindicatos nos anos 30 é que o poder das grandes
organizações parecia ter encontrado seus limites. Contornando as restrições impostas pela lei
e procurando formas mais adequada de capitalização capaz de diminuir os ressentimentos da
opinião pública e dos consumidores, surgiu em meados deste século a ‘democratização do
capital’, que transformaria todos em acionistas-proprietários e, destarte, declarou-se a
obsolescência da luta de classes”. (Rattner, 1995)112. A dispersão do capital e o controle de
conglomerados gigantescos via holdings imprimiram uma nova dinâmica, em que algumas
milhares de grandes organizações passaram a dominar mais da metade da produção e do
comércio mundial.
Com relação ao modelo em questão, Lipietz (1991)113 ironiza da seguinte forma:
“deixemos de subvencionar os claudicantes, os serviços públicos burocratizados e ineficazes,
imponhamos uma alta taxa de juros para dissuadir as atividades não-rentáveis. Assim, o livre
jogo do mercado ditará automaticamente um novo modelo de desenvolvimento compatível
com as novas tecnologias. Aliás, não são elas por essência ‘flexíveis’ por sua maleabilidade
de utilização? Não é sua vocação satisfazer uma demanda diversificada, individualizada,
impossível de ser enquadrada pelo Estado? . Não exigem elas, pela amplidão dos
investimentos em jogo, uma extensão diretamente mundial e, por isso, ingerenciável pelos
Estados, por maiores que sejam?” (Lipietz, 1991).
Ao mesmo tempo em que o Estado dispõe do patrimônio acumulado nas últimas
décadas do século XX, o que foi feito para atender os interesses hegemônicos internacionais,
constata-se a concentração-centralização do capital, fundamentada em padrões
transnacionais de organizações econômicas e sociais; o desenvolvimento dos meios de
comunicação e o despertar da consciência sobre o destino comum da humanidade.
Para Rattner (1996)114, “a atuação de conglomerados e empresas transnacionais não
se limita às esferas econômico-financeiras apenas. Suas decisões de investir e desinvestir
afetam em última análise, a prosperidade ou decadência das cidades e regiões, e o peso de
seus recursos econômico-financeiros influencia na composição e no funcionamento da
estrutura e das instituições públicas”. Como estratégia operacional tem-se o fim das reservas
de mercado e a alteração no tratamento discriminatório do capital estrangeiro.
As transformações dos meios de produção determinadas pelo fortalecimento das
relações de produção e inovações tecnológicas, alteraram a relação valor-trabalho, implicando
pacificação dos conflitos de classes, agravada com a síndrome do desemprego. Portanto, a

112
Rattner, Henrique. Globalização: Em direção a “um só mundo”?. Simp. Internacional “O Desafio do
Desenvolvimento Sustentável e a Geografia Política. R. Janeiro: UFRJ, 1995, p. 43.
113
Lipietz, op. cit, p. 82.
114
Rattner, Henrique. A Globalização e a situação da Indústria e Tecnologia no Brasil. Teleconferência Engenheiro
2001. R. Janeiro, 1996.

46
revolução científico-tecnológica determina uma nova divisão internacional do trabalho, com
forte reflexo social nas regiões em desenvolvimento, reformulando sutilmente as subjugações
do passado.
Com o fim do mundo bipolar renovam se os argumentos ideológicos sob o manto da
globalização. Conceitos como soberania nacional, burguesia, proletariado, socialismo,
revolução, reserva de mercado, além de outros, são banalizados e indexados em compêndios
“jurássicos”.
Uma nova forma de pensar é imposta pelo produtivismo liberal como estratégia de
manutenção dos interesses da globalização social. Interesses como a remodelação do poder
hegemônico a partir de novas bases materiais, sob o argumento da sustentabilidade
ambiental, são alguns dos requisitos utilizados pelo produtivismo liberal, legitimado por
mecanismos, como a Lei de Patentes Brasileira (Lei 9.279/96), decorrente do acordo Trips –
Trade Related Aspects of Intelecltual Property Right.
A estratégia da política de desenvolvimento sustentável afeita aos interesses do Banco
Mundial evidencia nítida intenção de apropriação de novas bases econômicas em nome da
defesa ambiental. Com relação à Amazônia Brasileira constata-se, nos últimos anos, um
interesse especial dissimulado pelo propalado efeito-estufa. Um verdadeiro paradoxo entre as
práticas do passado, adotadas pelo Banco Mundial com relação à região Amazônica (caso do
Polonoroeste na década de 70) em vista da política de desenvolvimento sustentado (A
Partnership of Environmental Progress). Ao mesmo tempo em que financia projetos de
preservação para a Amazônia Brasileira, estimula a ocupação do Cerrado.
Essa mudança de estratégia precisa ser analisada no contexto da revalorização do
capital, considerando a necessária busca de alternativas para uma tendência decrescente das
bases materiais convencionais, fundamentadas nos recursos inorgânicos não-renováveis.
Como se sabe, a Amazônia se caracteriza pela valiosa extensão de biodiversidade
remanescente, constituindo importante banco genético estratégico, capaz de permitir a
longevidade esperada pelo sistema a partir de novas bases tecnológicas. Tal fato justifica a
verdadeira revolução científico-tecnológica em transição, cujo centro das atenções
fundamenta-se na biotecnologia e na engenharia genética, hoje em franco desenvolvimento na
farmacologia, agricultura e alimentação – a biodiversidade como base econômica orgânica
renovável (Casseti, 1995)115.
Embora o estágio atual de desenvolvimento parece se caracterizar pela inovação,
fundamenta-se na lógica da repetição como forma de organização e controle do processo
produzido frente às diferentes relações de classe. Necessário se faz observar que as
repetições nunca se dão nas mesmas condições. “Nossa ordem econômica é repetitiva para

115
Casseti, Valter. A Ideologia da Modernidade e o Meio Ambiente. Bol.Goiano de Geografia, Goiânia, 15(1):30-
31, jan/dez, 1995.

47
que a produção e a competição possam interagir: o mercado possa organizar a produção e a
produção regular-se pelo fundamento da ordem econômico-social capitalista” (Moreira,
1993)116. É nesse contexto das contradições e repetições que se busca um novo paradigma.
Até os anos 80 o problema da crise paradigmática foi atribuído às questões ambientais,
reforçado pelo desencantamento do ‘socialismo real’, levando os intelectuais a deslocarem
suas ações para o campo da denúncia ecológica. O capitalismo apropria-se dessa temática e
em nome da preservação ambiental busca alternativas para uma nova base material, até
então concebida pelo campo físico-mecânico, para o campo aberto da biologia. Se a princípio
parecia uma contestação ao padrão, “a redescoberta da diversidade aparece não mais como
uma reinvenção da repetição para sob outras formas realizar os mesmos fins de padronização
e acumulação capitalista” (Moreira, op.Cit). Conclui o autor que o ponto de partida da recriação
da base material do capitalismo é o deslocamento do paradigma técnico-científico, dos velhos
conceitos físico-mecânicos para os novos conceitos de repetição e diversidade, advindos do
universo da Biologia, com o fito de reinventar a relação técnica do trabalho.
Portanto, o novo modelo de desenvolvimento, compatível com as novas tecnologias,
implica nova divisão territorial do trabalho: redução da força de trabalho com consequente
exigência de especialização motivada pelas inovações tecnológicas. Esse fato responde pelo
enfraquecimento das organizações sindicais que passam a adotar uma política de resultados
como forma de manutenção do emprego. Chega-se ao ridículo dilema entre “ou emprego ou
os problemas ambientais”; “ou o emprego ou a política salarial”; “ou o emprego ou a
manutenção das conquistas trabalhistas obtidas no welfare-state”...
Em síntese tem-se a implementação dos objetivos estabelecidos no produtivismo
liberal, orquestrado pela superestrutura ideológica. O poder executivo torna-se absolutista,
impondo através de atos ditos provisórios, respaldados pelas relações jurídico-políticas,
medidas privatizantes dos bens públicos, determinados, em última análise, pela hegemonia do
capital e seus organismos de regulação econômica internacional.
Conforme Rattner (1995)117, os agentes mais dinâmicos da globalização não são os
governos nem os representantes parlamentares dos países que formaram mercados comuns
à procura de integração econômica. “As forças mais ativas e poderosas no processo de
globalização são os conglomerados e as empresas transnacionais que dominam e controlam
efetivamente a maior parte da produção, do comércio, da tecnologia e das finanças
internacionais”. Se por um lado é praticamente impossível retornar ao passado, considerando,
sobretudo os avanços científicos, tecnológicos e informacionais obtidos nos últimos anos, por
outro, “a irracionalidade do sistema de competição selvagem aniquila os indivíduos e o

116
Moreira, Ruy. O Círculo e a Espiral. Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1990.p. 125.
117
Rattner, op. cit, p. 41-42.

48
convívio social” (Rattner, op. Cit), parecendo não oferecer qualquer perspectiva histórica à
tendência teleológica de um destino comum da humanidade.
O argumento teleológico de “fim comum da humanidade” sugere um futuro
sombrio, unidimensional e isento de contradições, o que se caracteriza como mais uma
categoria ideológica da subjugação, legitimando o modelo em desenvolvimento como única
alternativa. Essa perspectiva leva Rattner (1995)118 a questionar se “entre o paroquialismo
local primitivo e a acumulação poderosa em escala global não existiriam outros valores
capazes de mobilizar e motivar os membros da sociedade - elites e massas - para humanizar
as condições de existência para todos e, assim, restaurar a dignidade e o sentido da vida, da
superação do antagonismo entre cooperação e competição; entre o nacionalismo e o
capitalismo, instituições que garantam e ameaçam ao mesmo tempo, a sobrevivência da
espécie humana?”.
Como resposta é preciso compreender que “o mundo de hoje não é mais que um
momento ao longo do desenvolvimento histórico” (Sartre, 1980)119, o que sugere um futuro
determinado pelos eventos e forças políticas baseadas numa função econômica e social. Um
futuro fundamentado na contradição dialética, que implica superação de toda e qualquer
perspectiva mecanicista, ou até mesmo idealista, como estratégia de dominação. Com base
em tal possibilidade é que se entende oportuna a ideia de se pensar o mundo de forma
diferente da herança promovida pelo racionalismo iluminista.
Insiste-se no argumento de que o processo de desenvolvimento da humanidade,
fundamentado numa perspectiva externalizada da natureza, sobretudo a partir do século XVII,
respondeu pela apropriação privada dos meios de produção, pelo antagonismo de classes e
pelo uso espontaneísta dos recursos da natureza, implicando degradação ambiental. Se a
legitimação da apropriação privada fundamentou-se na externalização da natureza, nada mais
evidente que rediscutir o conceito de natureza numa perspectiva dialética - natureza e
sociedade - o que leva, até por princípio, à retomada do conceito de “dialética da natureza” na
visão engelsiana.

118
Rattner, op. cit, p. 47.
119
Entrevista ao jornal Le Nouvel Observateur de Paris em 1980.

49
PARTE II

A DIALÉTICA DA NATUREZA

“Para a dialética, não há nada de


definitivo, de absoluto, de sagrado...”.
Engels (LF)

50
A REFLEXÃO DIALÉTICA

A vida é uma flutuação da matéria,


no interior dessa flutuação, você tem
outras flutuações.

Ilya Prigogine

Para Engels (1976)120, “muito antes de saber o que era dialética, o homem já pensava
dialeticamente, da mesma forma que antes da existência da palavra escrita, ele já falava”.
Portanto, G.W. Hegel (1770-1831), nada mais fez que formular ou sistematizar nitidamente
pela primeira vez o entendimento da dialética, que adquire sua forma plena através das obras
de Karl Marx e Friedrich Engels.
Hegel121 parte do princípio de que o desenvolvimento histórico é o desenvolvimento do
pensamento, o desenvolvimento da ideia absoluta, e não uma coleção de fatos casuais. Ao
indicar o caminho para a busca de solução para o desenvolvimento em curso, não deixou de
considerar o conceito metafísico de espírito absoluto. Sua tese principal dessa lógica era o
princípio dialético que estabelece que “toda premissa verdadeira tem como correspondente
sua não menos verdadeira, a negação (...) A natureza é assim também, alienação do conceito
ou da razão, no sentido em que nela o conceito está como simples essência, e a razão como
simples entendimento; quer dizer, sob a forma de negação de si. A natureza é, por essa
negatividade dialética, o processo da contradição de si. Contradição essa que não pode ser
resolvida na natureza como natureza, já que o próprio da natureza é ser essa contradição; só
pode ser resolvido na negação da natureza”]122.Hegel, embora entenda a natureza como
processo contraditório, coloca a ideia do conceito como espírito, numa perspectiva idealista.
A maioria dos princípios da dialética foi apresentada por Hegel, se constituindo em uma
série de regras metodológicas: o tratamento do todo como unidade dos contrários; a relação
mútua dos elementos de um mesmo todo e de diferentes todos; a aceitação das contradições
internas de um todo como fonte do movimento autodinâmico; a consideração do movimento e
o desenvolvimento como processo não contínuo, nas quais as mudanças quantitativas
produzem novas qualidades (Topolski, 1973)123.

120
Engels, Friedrich. Anti-Düring, p. 121.
121
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio: 1830. I A Ciência da
Lógica. S. Paulo: Loyola, 1995.
122
B. Bourgeois. Apresentação na edição francesa da obra de G.W.F. Hegel, Enciclopédia das Ciências
Filosóficas. I-A Ciência da Lógica, reproduzida sob a forma de apêndice na edição brasileira, p. 421-422.
123
Topolski, Jerzy. Metodologia de la História. Madrid: Cátedra, 1985, 519 p.

51
Como se mencionou anteriormente foram Marx e Engels que transformaram a dialética
idealista de Hegel em dialética materialista. Para Hegel, o universo é a ideia materializada, e,
antes do universo existe primeiramente o espírito, subordinando assim a dialética ao
idealismo. “Deste modo a própria dialética dos conceitos se converteu simplesmente no
reflexo consciente do movimento dialético do mundo real, e assim a dialética de Hegel se
situou em sua cabeça; ou melhor, desviou da cabeça sobre a qual se apoiava e se colocou
sobre seus pés” (Engels, 1949)124.
Ao propor uma concepção materialista à dialética idealista hegeliana, Marx e Engels
necessitaram também rever o ponto de vista epistemológico do materialismo mecanicista, que
na realidade era mais primitivo que o idealismo dialético, uma vez que interpretava o mundo
de forma passiva, sem assumir o papel ativo da matéria cognoscitiva. Ao criticar o
materialismo de Feuerbach, Marx (1949)125 escreveu que “o principal defeito de todo
materialismo existente até agora – inclusive o de Feuerbach – é que a realidade,
sensualidade, só é concebida em forma de objeto ou de contemplação, porém, não como
atividade sensível humana, não subjetivamente. Assim ocorria que o lado ativo, em
contraposição ao materialismo, foi desenvolvido pelo idealismo – porém só de forma abstrata,
pois que, desde logo, o idealismo não conhece a atividade real, sensível como tal”.
Para Engels, não se podia aceitar essa percepção do mundo como algo ossificado,
imutável, ou como sistema imóvel de corpos em movimento (DN). Repudia-se então qualquer
versão teleológica para a explicação da realidade objetiva, evidenciando as duas grandes
características do mecanicismo: o antifinalismo e o determinismo. O antifinalismo deve ser
abandonado por ser inútil e destituído de sentido; quanto ao determinismo observa-se que
Engels não o nega porque conscientemente não o pretende negar; nega sim a forma linear e
unidimensional de entender a causalidade.
Assim, o materialismo dialético, ao unir integralmente o materialismo com a dialética,
uniu em um mesmo sistema a tese sobre a realidade material, como objeto do conhecimento.
A tese sobre o papel da realidade material cognoscitiva “configura” o objeto de conhecimento
no curso do processo cognoscitivo (Topolski, 1973)126.
Para ilustrar o processo em questão recorre-se à concepção sistêmica apresentada por
Mao Tsé-Tung, Sobre a Prática, resgatado por Oliveira (1985)127, onde esquematicamente
demonstra que enquanto para o idealismo o conhecimento é elaborado pelo pensamento (o
que explica o artifício obscurantista), no materialismo dialético a prática é que condiciona o
pensamento, o qual elabora o conhecimento.

124
Engels, Friedrich. Selected Works V. II, 1949, p. 350.
125
Marx, Karl. Selected Works, V.II, 1949, p. 352.
126
Topolski, op. Cit, p. 164.
127
Oliveira,Ariovaldo Umbelino. “Na prática a teoria é outra... in Seleção de Textos – Teoria e Método n. 11,
AGB, S. Paulo, ago 1985.

52
Elabora Condiciona Elabora

Pensamento Conhecimento Prática Pensamento Conhecimento

Informa Dirige Informa

IDEALISMO MATERIALISMO DIALÉTICO

Para o materialismo dialético o conhecimento é um processo permeado por


contradições constantes entre o sujeito e o objeto, contradições que são a fonte do
desenvolvimento do processo cognitivo. Portanto, o conhecimento da realidade objetiva em
um dado momento é um estímulo para empreender uma atividade cognoscitiva, se
constituindo, por conseguinte, em critério sobre a validade dos atos de conhecimentos
anteriores. Tal fato demonstra a inexistência das verdades absolutas, decretando o fim das
certezas.
Para Topolski (1973)128, a ideia dialética da superação das contradições, como fonte de
movimento e desenvolvimento tem permitido, no nível ontológico, “mudar totalmente o modelo
de explicação da história como resultado de uma nova interpretação dos fatos passados e
assim explicar o enígma do desenvolvimento”. No nível epistemológico tem permitido “evitar
os erros do inducionismo mecanicista e do deducionismo à priori, preparando assim o caminho
para uma aproximação integral que combine a indução com a dedução”. Como consequência
o nível prático é marcado pela ação transformadora do homem na reprodução das forças
sociais.
Também o materialismo dialético tem estabelecido laços entre as relações entre
natureza e sociedade o que pode ser buscado em Engels (1976) quando das críticas a
Dühring: uma visão uniforme do desenvolvimento da natureza e da sociedade ao longo do
processo histórico. “Quando submetemos ao exame do pensamento, a natureza ou a história
da humanidade, ou a nossa própria atividade mental, o que nos oferece, em primeiro lugar, é o
quadro de uma confusão infinita de relações, de ações e reações, onde nada permanece o
que era, onde era, como era, onde tudo se move, se transforma, vem a ser e passa”129.
Portanto, o que se vê na natureza, na história, no pensamento, é a mudança e o movimento.

128
Topolski, Op. Cit, p. 164.
129
Engels, Friedrich. Anti-Dühring. R. Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 52.

53
A Relação Natureza e Sociedade na Dialética Materialista

A relação entre natureza e sociedade em Marx e Engels fundamenta-se no princípio


materialista dialético, onde os homens aparecem como resultado material do processo
evolutivo da natureza. Quanto mais se afastam dos animais, mais se afastam da natureza,
sem, contudo se “desnaturalizarem”, por ser esta a base de sustentação de suas
necessidades. Portanto, existe uma permanente contradição que se materializa em realidade
objetiva ao longo do processo histórico.
Engels (1979)130, no prefácio de sua obra Dialética da Natureza, apresenta importante
retrospecto da moderna investigação da natureza, que sem dúvida teria fundamentado o seu
trabalho. Ao demonstrar através da ciência a vinculação do homem com a natureza, reporta-
se ao desenvolvimento da Química, a partir de Lavoisier e Dalton, quando a Física, até
meados do Século XVIII, assumia domínio absoluto com relação às concepções sobre a
natureza. A Química transpõe em grande parte o abismo que existia entre a natureza orgânica
e inorgânica, proporcionando com isso os sensíveis avanços da investigação biológica através
do método comparativo. Observa Engels131 o importante papel desempenhado pela Geografia
Física no estudo comparativo entre as condições de vida “das diferentes floras e faunas”.
“A nova concepção de Natureza ficava assim configurada em suas linhas gerais: tudo
aquilo que se considerava rígido havia se tornado flexível; tudo quanto era fixo foi posto em
movimento; tudo quanto era tido por eterno tornou-se transitório; ficara comprovado que toda a
Natureza se movia num eterno fluxo e permanente circulação” (Engels, 1979)132. Recupera,
portanto, as concepções dos grandes fundadores da filosofia grega: “em toda Natureza, desde
o menor ao maior, do grão de areia aos sóis; dos protistas ao homem, há um eterno vir a ser e
desaparecer, numa corrente incessante, num incansável movimento de transformação”.
Após ter se tornado diferente do “mono”, desenvolvido a linguagem articulada e obtido
a formidável expansão do cérebro, o homem imprime seu “selo” sobre a natureza, “não só
transladando plantas e animais, mas também modificando o aspecto, o clima de seu lugar de
habitação; e até transformando plantas e animais em tão elevado grau que as consequências
de sua atividade só poderão desaparecer com a morte da esfera terrestre” (Engels, 1979)133.
Continuando, Engels (1979)134 evidencia que, “com o homem entramos na história (...) quanto
mais se afastam do animal, entendido limitadamente, tanto mais fazem eles próprios sua

130
Engels, F. Dialética da Natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
131
Engels, DN, p. 22.
132
Engels, DN, p. 23.
133
Engels, DN, p. 23.
134
Engels, DN, p. 26.

54
história, correspondendo, cada vez com maior exatidão, o resultado histórico aos objetivos
previamente estabelecidos”.
A relação dialética entre o homem e a natureza é tratada também por Marx e Engels
(1991)135 em vários momentos, como ao contestarem Bruno136 ao considerar “as oposições
entre natureza e história (...) como se as duas ‘coisas’ fossem separadas uma da outra; como
se o homem não se encontrasse sempre em face de uma natureza histórica e de uma
natureza natural”.
Essa relação dialética é expressa ainda da seguinte forma (Marx e Engels, 1991)137: “A
relação limitada dos homens com a natureza condiciona a relação limitada dos homens entre
si, e a relação limitada dos homens entre si condiciona a relação limitada dos homens com a
natureza”. Esse fato leva Marx e Engels a entenderem a existência de uma única ciência: “a
ciência da história. A história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e
história dos homens. Os dois aspectos, contudo, não são separáveis; enquanto existirem
homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionarão reciprocamente (...)”.
Mais à frente observam que “toda historiografia deve partir destes fundamentos naturais e de
sua modificação no curso da história pela ação dos homens”.
Para Moreira (1994)138 o homem se vincula à natureza por ser esta vital, “e se a vida é
o elo que liga o homem à natureza, é impossível dissociar a história da vida do homem da
história da natureza”.
Conforme Engels (1976)139, “o que é certo na natureza (...) é certo do mesmo modo na
história da sociedade em todos seus ramos (...) A história do desenvolvimento da humanidade
demonstra ser essencialmente diferente da história da natureza. Na natureza – na medida em
que ignoramos a reação do homem sobre a natureza – só há agentes cegos, inconsistentes,
atuando um sobre o outro, com uma lei geral que opera fora de sua interação. Nada de tudo
que ocorre – seja nos inumeráveis acidentes aparentes que podemos observar na superfície
ou nos resultados finais que confirmam a regularidade inerente a estes acidentes – ocorre
como um objetivo desejado conscientemente. Na história da sociedade, pelo contrário, os
atores estão todos dotados de consciência; são homens que atuam com deliberação ou com
paixão, trabalhando para conseguir metas definidas; nada ocorre sem um propósito
consciente, sem um objetivo projetado. Porém esta distinção, sendo importante para a
investigação histórica, particularmente sobre fatos e épocas particulares, não pode alterar o
fato de que o curso da história está governado por leis internas gerais”. Embora a natureza

135
Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. S. Paulo: Hucitec, 1991. P. 68.
136
Bauer, Bruno. Charakteristik Ludwing Feuerbachs, p. 110.
137
Marx & Engels, IA, p. 44.
138
Moreira, Op. Cit, p. 574.
139
Engels, AD, p. 17 ss.

55
apresente uma dinâmica regida por processos próprios, ela é produzida socialmente,
considerando os interesses do sistema vigente.
Como observou Engels (1981)140 “os homens fazem a sua história, seja qual for o
caminho que tome, perseguindo cada um os seus próprios fins, conscientemente desejados, e
são, precisamente, os resultados dessas numerosas vontades, atuando em sentidos
diferentes, e as suas variadas repercussões sobre o mundo exterior que constituem a história.
Trata-se, também por conseguinte, do que querem os numerosos indivíduos, tomados
isoladamente. A vontade é determinada pela paixão ou pela reflexão... Mas, as alavancas que,
por sua vez, determinam diretamente a paixão ou reflexão, são de natureza muito diversa...
Ainda pode perguntar-se quais as causas históricas que, nos cérebros dos homens que agem,
se transformam nesses motivos”.
De acordo com os princípios da dialética, a história da sociedade é considerada, em
última instância, como a história da natureza. Com relação à ideia, Topolski (1973)141
considera que os métodos de estudar a história da sociedade não necessitam diferir
essencialmente dos que se utilizam para estudar a natureza, evidenciando os ensinamentos
de Marx (1955)142 de que “no futuro, a ciência natural absorverá a ciência humana do
mesmo modo que a ciência humana absorverá a ciência natural: se converterão em
uma só disciplina”.
As obras dos fundadores do materialismo dialético mostram que o que é novo na teoria
e no método da dialética é a solução do problema do movimento e desenvolvimento. Isto
significa que o princípio do autodinamismo, que diz que o movimento e o desenvolvimento têm
lugar através das contradições, e o princípio do holismo saltam ao primeiro plano (Lenin,
1958)143. Os princípios do autodinamismo e do holismo, estreitamente relacionados, mostram
que “o todo” se move e desenvolve como resultado de contradições internas, partindo do
princípio de que “o todo” contém “partes” contraditórias (subsistemas, elementos), que se
condicionam reciprocamente à existência. Tais contradições causam o movimento e o
desenvolvimento, processo esse considerado como unidade dos contrários. Para Topolski
(1973)144, os princípios do autodinamismo e do holismo dão lugar diretamente a outro princípio,
que no curso do movimento e desenvolvimento as mudanças quantitativas produzem
mudanças qualitativas, ou seja, a origem de novas qualidades. “Se aceitamos o
autodesenvolvimento como princípio, assumimos que os fenômenos nascem, tomam forma e
se desvanecem; portanto, assumimos que em certo momento um fenômeno que toma forma

140
Engels, Friedrich. Ludwig Feuerbach et la Fin de la Philosophie Classique Allemande. Paris: Éd. Sociales, 1946,
p. 38-39.
141
Topolski, op. Cit.
142
Marx, Karl. Kleine ökonomische Scriften. Berlin, 1955, p. 38.
143
Lenin, Vladimir I. Filosofkie tetradi. Moscú: Socinenya, 1958, V. 38.
144
Topolski, op. Cit, p. 161.

56
alcança um estado em que é totalmente formado e aparece como uma nova qualidade”. Essa
nova qualidade pode ser a negação da qualidade anterior e a negação dessa nova qualidade
pode conter, de algum modo, a qualidade anterior.

As Leis da Dialética

As leis da dialética fundamentam-se no princípio da contradição da matéria, discutida


145
por Engels (1976) ao refutar Dühring, apresentando a primeira e mais importante das teses
sobre as propriedades lógicas fundamentais do ser: a “exclusão da contradição”. “Certamente,
desde que nos limitemos a focalizar as coisas como se fossem estáticas e inertes,
contemplando-as isoladamente, cada uma de per si, no tempo e no espaço, não
descobriremos nestas coisas nenhuma contradição”. Continuando, constata que “a vida não é,
pois, por si mesma mais que uma contradição encerrada nas coisas e nos fenômenos, e que
se está produzindo e resolvendo incessantemente: ao cessar a contradição, cessa a vida e
sobrevém a morte”. Necessário se faz observar aqui que a vida implica todos os níveis da
146
realidade, o que leva a admitir que a morte (indizível na concepção de Bobbio, 1997) , nada
mais é que um estágio da transformação (recorrendo ao princípio materialista lavoisieriano).
Essa observação fica implícita um pouco mais à frente, na obra de Engels (1976)147, quando
refere-se à negação da negação: a vida como negação da morte e vice-versa. Ou ainda com
relação a vida e a morte, quando Politzer (1986)148 demonstra que “as coisas não só se
transformam uma nas outras, mas, ainda, uma coisa não é apenas ela própria, mas outra que
é a sua contrária, porque cada coisa contém a sua contrária”.
As reflexões apresentadas constituem as três grandes leis da dialética desenvolvidas
por Hegel, à sua maneira idealista, que para ele eram puras leis do pensamento. Com a
apropriação materialista das leis da dialética, foi possível a compreensão da unidade do real.
São as seguintes:

1. lei da passagem de quantidade à qualidade;


2. lei da interpenetração dos contrários;
3. lei da negação da negação.

A primeira lei estabelece mudança proclamando que o transitório se estende a tudo o


que existe por tudo estar sujeito ao processo ininterrupto do vir a ser (Engels, 1949)149. Em

145
Engels, AD p. 102 e109.
146
Bobbio, Norberto. O tempo da Memória. R. Janeiro: Campus, p. 38.
147
Engels, AD, p. 116 e 153.
148
Politzer, Georges, Princípios Elementares de Filosofia. S. Paulo: Moraes, 1986, p. 150.
149
Engels, LF, p. 35.

57
Dialética da Natureza, Engels assim se expressa com relação a esta lei: “nós podemos, no
quadro do nosso objetivo, exprimir esta lei dizendo que na natureza, de uma maneira
claramente determinada para cada caso particular, as transformações qualitativas só podem
ter lugar por adição ou subtração quantitativas de matéria ou de movimento (a chamada
energia)”. Tais transformações podem ser exemplificadas tanto nas leis da natureza como da
sociedade: a adição de umidade absoluta para uma determinada temperatura ou a redução da
temperatura para uma determinada umidade absoluta (quantidade) podem responder pela
saturação e consequente precipitação pluviométrica (qualidade); a ação prolongada de
deficiência hídrica e grande amplitude térmica (quantidade), como nos climas semiáridos,
implica desagregação mecânica com consequente recuo paralelo das vertentes (modelado de
relevo), com tendência à pediplanação (qualidade); o desmatamento progressivo de
determinada área (quantidade) implica alteração ambiental (qualidade); ou ainda, a
concentração de edificações em determinado espaço (quantidade) responde pelo processo de
urbanização e suas consequências, como derivações ambientais, conforto térmico, fluxo
concentrado de veículos... (qualidade de vida). Portanto, a evolução das coisas não pode ser
indefinidamente quantitativa; transformando-se sofrem uma mudança qualitativa. Embora toda
transformação qualitativa represente saltos na história (o que a referida lei denomina também
de “progresso por saltos”), na realidade resulta da adição ou subtração de elementos
quantitativos do movimento da matéria. Engels150, ao criticar Dühring, observa que a
151
quantidade como elemento de transformação em qualidade expressa por Marx (com
relação à “mais-valia”), não se refere necessariamente a uma “quantidade aumentada”
qualquer, “quando na realidade, se trata, concretamente, de uma quantidade invertida em
matérias-primas, instrumentos de trabalho e salário”.
Branco (1989)152, ao tratar da segunda lei da dialética refere-se à importância da ação
recíproca no encadeamento dos processos, ressaltando a inexistência de fenômenos
absolutamente isolados na natureza. “Nisto se fundamenta a unidade das ciências como
corolário da unidade estrutural dos fenômenos naturais”. Em Geomorfologia percebe-se
claramente a interpenetração dos contrários: utilizando como exemplo as implicações
climáticas na elaboração do relevo: nos climas secos a desagregação mecânica, num tempo
geológico prolongado, tende a elaborar extensos pediplanos (horizontalização dos
modelados), ao passo que no clima úmido, com a reorganização da drenagem fluvial, a
incisão dos talvegues responderá pela dissecação do relevo (verticalização dos modelados). O
resultado pode ser observado na natureza através da associação de formas, com clara
tendência de destruição das produzidas em condições preexistentes, sabendo que a mudança

150
Engels, AD, p. 106.
151
Karl Marx. O Capital I
152
Branco, João Maria de Freitas. Dialéctica, Ciência e Natureza. Lisboa: Caminho, 1989, p. 92.

58
climática futura implicará destruição gradativa das formas atuais, sobretudo se comandada por
processos morfogenéticos opostos. Com relação à questão socioeconômica, Politzer (1986)153
dá como exemplo o proletariado que se contrapõe ao capitalismo, sabendo ser este fruto do
próprio sistema econômico que leva à divisão da sociedade em classes.
Finalmente, a terceira lei refere-se à importância da contradição existente das coisas,
que constantemente se apresenta e se resolve na generalidade dos fenômenos da natureza e
da vida (Engels, 1976)154. Continuando o exemplo do relevo, determinada forma “nega” a
outra, em função das novas relações processuais, sem, contudo destruir por completo a
“forma negada”, ou seja, a nova forma contém parte de forma antiga. Na história, Politzer
(1986)155 lembra que o feudalismo foi a negação do escravagismo e o capitalismo a negação
do feudalismo (negação da negação), contudo, alguns aspectos, mesmo que de natureza
arquitetônica, permanecem ou continuam incorporando a paisagem. “Para resumir, e como
conclusão teórica, as coisas mudam, porque encerram uma contradição interna (elas próprias
e as suas contrárias); as contrárias estão em conflito, e as mudanças nascem desses
conflitos; assim a mudança é a ‘solução’ do conflito”.
Politzer (1989)156 trata da mudança e da ação recíproca como primeira e segunda leis
da dialética, considerando-as pré-requisitos para a compreensão das leis da contradição. Na
lei do movimento dialético é mostrada a importância do processo como fator de transformação,
resgatando o autodinamismo como essência. Engels (LF), ao refutar o mecanismo teleológico,
evidencia que “para a dialética não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado...”. A ação
recíproca é tratada na perspectiva do encadeamento de processos, onde tudo influi sobre
tudo, o que rechaça todo e qualquer argumento metafísico.
Em síntese, o conceito de contradição é a chave para a compreensão da unidade do
real, bem como do movimento. Tal fato remete à necessidade de se rever o conceito de
“equilíbrio”, que para os ecologistas ortodoxos seria representado com a manutenção das
relações processuais em sua essência. Tragtenberg (1982)157 desperta para a necessidade de
se compreender que não há equilíbrio natural, uma vez que todos os elementos da natureza
foram reciclados pelo trabalho. É necessário situar que cada modo de produção assenta-se
numa forma de equilibração. Da mesma maneira que a ação humana destrói um equilíbrio, ela
cria novas formas de equilíbrio. Portanto, é necessário compreender que a relação homem e
natureza é histórica e que “cada novo equilíbrio resulta da organização das contradições
sociais internas, inerentes aos modos de produção fundantes de estruturas de classes”.

153
Politizer, op. Cit., p. 151-152..
154
Engels, AD p. 111 ss.
155
Politizer, Op. Cit, p. 160.
156
Politzer, op. Cit, p. 129-144.
157
Tragtenberg, N. Ecologia e Desenvolvimeno. S. Paulo: Cortez, 1982.

59
Mesmo com a degradação ambiental, novos equilíbrios podem ser produzidos,
acrescentando-se aqui alguns exemplos de degradação assistidas na atualidade, que
implicam ação de processos que, embora entendidos como destrutivos, podem corresponder à
recuperação de um novo equilíbrio. Em ambiente antropo-resistásico158 constata-se com
frequência problemas erosivos de grande intensidade, decorrentes do desmatamento ou
ocupação de áreas de risco, como encostas ou áreas de alta susceptibilidade erosiva. O
desenvolvimento de processos erosivos, que normalmente culminam em boçorocamentos ou
deslizamentos de massa, indica reação às rupturas de equilíbrio pré-atuais, que tem por
objetivo buscar um novo equilíbrio, determinado pelas novas condições impostas pela ação do
homem. Esse novo equilíbrio tende a ser alterado por novas intervenções com respostas
processuais que novamente alteram a configuração apresentada.
Neste exemplo ficam contempladas as três leis da dialética onde a intensidade
pluviométrica em condições resistásicas implica mudanças na paisagem (passagem da
quantidade em qualidade), buscando o “equilíbrio” resultante de novos processos, sem deixar
de manter formas pré-atuais (a interpenetração dos contrários). Uma nova mudança tende a
“negar” a situação anterior, que havia alterado a antecedente (negação da negação). O
referido estágio apresenta estreita analogia com a teoria do “atualismo” de Hutton (1797), em
que “o presente é a chave do passado”, partindo do princípio de que conhecendo as relações
processuais evidenciadas nos diferentes ambientes, torna-se possível entender as condições,
como as climáticas, em que foram originados determinados depósitos correlativos,
preservados na morfologia atual. Com o advento de novas relações processuais, a
configuração atual será alterada, deixando marcas que denunciam a sua existência ao longo
do tempo.

Os Processos Evidenciados na Natureza e na Sociedade

Partindo do princípio engelsiano de que “a história do desenvolvimento da humanidade


demonstra ser essencialmente diferente da história do desenvolvimento da natureza”, torna-se
plausível admitir a existência de processos ou leis distintas que explicam o estágio de
desenvolvimento da realidade objetiva. O conceito de estágio aqui empregado refere-se ao
instante que ‘não é mais do que um momento no longo desenvolvimento histórico’, seja da
natureza, seja da sociedade. Caso não tratadas como processos distintos, implicariam um
modo de pensar positivista. Uma primeira diferença reside na própria escala do tempo:
enquanto na natureza as transformações resultantes das relações processuais são

158
Conceito proposto por Erhart (1956) para designar a retirada da cobertura vegetal preexistente, permitindo a
ação direta dos processos morfogenéticos sobre o solo. Embora utilizado como modificação comandada por
mecanismos naturais, tem sido adotado para alterações de natureza antropogênica.

60
evidenciadas numa escala de tempo geológico, as transformações na sociedade são
praticamente instantâneas, numa escala de tempo histórico, principalmente a partir das
grandes revoluções científico-tecnológicas. Esse descompasso normalmente promove um
evidente retardo nas reações da natureza, considerando a diferença temporal entre a
velocidade das transformações produzidas pelo homem, o que seria justificado pelo tempo
necessário para a incorporação desses novos atributos nas ditas relações processuais e os
ajustamentos ou respostas promovidas pela natureza (regularidades diacrônicas)159. Diante
disso, ao mesmo tempo em que as transformações produzidas pela sociedade aparentemente
não afetam as relações processuais da natureza, constata-se, com frequência, a presença de
determinados espasmos ou episódios entendidos como essencialmente naturais, em parte
não contestados em função das limitações dos conhecimentos científicos.
Tal relação pode ser exemplificada de diferentes formas, como os efeitos na destruição
da denominada “camada de ozônio”, pela emissão dos clorofluorcarbonos cuja constatação se
deu principalmente a partir da década de 80, embora os referidos gases têm sido lançados na
atmosfera desde a década de 30; ou ainda, numa relação temporal mais próxima, a ocupação
de encostas, desmatamentos e cortes de taludes, que podem desencadear deslizamentos de
massa alguns anos depois das derivações antropogênicas, uma vez que dependerá das
condições apropriadas para o cisalhamento em questão.
Também os componentes dos processos evidenciados na natureza e na sociedade
devem ser conhecidos independentemente, mesmo considerando a dialeticidade entre ambas,
evidenciada por interações e contradições que resultam mudanças, sobretudo de qualidade.

Os Processos Naturais

Com o intuito de se demonstrar o significado das leis da dialética nos processos


da natureza, fundamentadas nos princípios da mudança, da ação recíproca, da contradição e
da transformação, utilizar-se-á da sistematização apresentada por S.V. Kalesnick, denominada
de leis da landschaft-esfera.
Kalesnick (1958)160, ao procurar definir o objeto da Geografia como o estudo da
Landschaft-esfera, apresenta as “leis” características da sua existência e evolução, assim
enumeradas: da integridade da Landschaft-esfera, dos processos circulares da matéria, dos
fenômenos rítmicos, da zonalidade e da continuidade da evolução.
1. Com relação à integridade da Landschaft-esfera, o autor observa que os
componentes da natureza estão sujeitos às suas próprias leis. Como exemplo, “as

159
Regularidades diacrônicas referem-se ao espaço de tempo necessário para que chegue um estímulo de um
elemento ou sistema, provocando uma resposta a outro elemento ou sistema.
160
Kalesnick, S.V. La Géographie Physique comme Science e les lois Géographiques Génerales de la Terre. Na.
Géographie, Paris, 67 (363):385-403, sept/oct, 1958.

61
(leis) da formação do solo não são as mesmas dos processos climáticos, as leis do
desenvolvimento da matéria inorgânica diferem das do mundo orgânico”, mas a
interação dos diferentes componentes determina a existência de um sistema único
e integral. A referência do clima no seu conjunto ou em seus diversos elementos
permite compreender as relações evidenciadas entre o clima e o relevo, o clima e a
formação dos solos, o clima e o mundo orgânico, assim como o mundo orgânico ou
o relevo sobre o próprio clima... Exemplo de evidentes transformações num tempo
relativamente curto, considerando que a escala do tempo geológico pode ser
observada com as oscilações climáticas registradas no pleistoceno, ou seja, entre 2
milhões a 13 mil anos antes do presente, que coincide com o aparecimento do
homo-sapiens: enquanto o clima semiárido da fase glacial implicava domínio da
vegetação xeromórfica sobre a tropófita, desagregação mecânica, dessoloagem e
recuo paralelo das vertentes, promovendo tendência localizada de horizontalização
do relevo, o clima úmido da fase interglacial alterou as relações processuais
proporcionando uma nova estruturação da paisagem: predomínio da vegetação
tropófita sobre a xeromórfica, entalhamento de talvegues pela reorganização do
sistema hidrográfico, desenvolvimento de solos... Tudo isso relacionado ao
aquecimento ou resfriamento hemisférico, com formação ou fusão das calotas
polares e consequentes efeitos de regressão ou transgressão marinha, sem falar
das implicações de natureza eustáticas.
2. Quanto aos processos “circulares” da matéria, observa Kalesnick (1958)161 que
os componentes da Landschaft-esfera apresentam movimentos que obedecem ao
princípio da circularidade. Basta lembrar os processos circulares das massas de ar,
entre o Equador e os trópicos, o efeito de Coriolis na deflexão dos ventos alísios, ou
o processo convectivo de natureza termal que explica a formação de nuvens e
ocorrências pluviométricas. O mesmo fenômeno é observado no ciclo hidrológico,
no processo de aquecimento das águas pela radiação solar, nos movimentos
circulares do manto da terra, que embora vinculados a uma escala de tempo
geológico, implicam compensação isostásica, emanações magmáticas e efeitos
tectônicos.
Observa ainda Kalesnick (1958)162 que “os processos circulares existentes por toda
a parte da Landschaft-esfera” são facilmente observados “tanto no metabolismo
quanto na interação dos solos e das plantas, bem como em mil outros processos".
Embora aparentemente fechados, os processos circulares são abertos, contrariando
a concepção mecanicista. “Seria preferível representá-los simbolicamente como

161
Kalesnick, op. Cit, p. 397.
162
Kalesnick, op. Cit. P. 398.

62
uma curva traçada em pontos da circunferência de uma roda que gira em linha reta”.
Como exemplo, a translação feita pela terra, “não voltará ao mesmo lugar em que
havia iniciado a rotação anual, porque todo o sistema solar se move no espaço com
a velocidade de vinte quilômetros por segundo, em direção a um ponto que se situa
entre a constelação de Hércules e da Lira”. Conforme Engels (1976)163, “mesmo
quando ocorrem as repetições, não se dão nunca exatamente nas mesmas
condições”, o que já havia sido observado por Heráclito (540-470 aC)164.
3. A Landschaft-esfera também é representada por diversas transformações
rítmicas como as diferenças internas das paisagens durante as diversas horas do
dia e da noite, das variações sazonais que implicam alterações nas biocenoses, no
regime dos rios e mesmo no regime dos mares. O ritmo pode ser constatado com
relação ao processo de decomposição das rochas e consequente formação dos
solos, além das reações adaptativas do zooplancton, que também apresentam um
ritmo em função das faixas de concentração de nutrientes pelo efeito da luz.
Mesmo admitindo certa linha de continuidade na interação dos componentes, que se
exerce e se organiza no tempo, o ritmo, embora imperceptível, também se distingue
por seus resultados, o que pode ser explicado pelas particularidades da Landschaft-
esfera.
4. Como se sabe, a terra é representada por parâmetros zonais determinados pela
própria forma em relação ao sol, que se caracteriza como determinante do poder
radiante. Contudo, “a natureza não se parece com as matemáticas” (Kalesnick,
1958), o que explica a existência de diferentes domínios nas diferentes zonas bem
como em uma mesma faixa zonal, determinados pelas mais diversas implicações
geográficas, como efeitos das correntes marítimas, continentalidade ou
165
maritimidade, posição altimétrica, dentre outras. Para Kalesnick “os componentes
da Landschaft-esfera movimentam-se em altitude e em latitude, segundo um ritmo
diferente”, admitindo que a graduação vertical é mais especial que a zonalidade.
Esclarece que “os degraus verticais não são cópia das zonas latitudinais que lhes
correspondem, não sendo sequer as variantes particulares destas últimas, porque
temos causas diferentes na origem dos degraus verticais e horizontais”. (Lembre-
se aqui Pedelaborde, 1972166, ao afirmar que a altitude corrige a latitude). Conclui o
autor dizendo que a zonalidade não faz sentido em toda espessura da Landschaft-
esfera, o que pode ser comprovado nas profundidades oceânicas, nas camadas
superiores da troposfera ou nas camadas internas da terra, onde a zonalidade “é

163
Engels, AD, p. 75.
164
“Nenhum homem toma banho duas vezes em um mesmo rio.”
165
Kalesnick, op. Ci, p. 400.
166
Pedelaborde, Pierre. Introduction à l’étude scienifique du climat, Paris, CDU, 1959.

63
criada pela reação da superfície terrestre, por sua estrutura, por sua rigidez, ou por
sua maleabilidade...”.
5. Na continuidade da evolução, Kalesnick (1958)167 mostra que “a íntima unidade,
o intricamento profundo e estreito das partes componentes da Landschaft-esfera
fazem com que ela se desenvolva como formação integralmente unida”. Diante
disso conclui que o processo de evolução da Landschaft-esfera é um processo
complexo e internamente contraditório, numa perspectiva dialética, onde a evolução
parcial de seus componentes não se realiza sem acarretar a evolução de todas as
outras partes integrantes do conjunto. Assim, a continuidade é revelada pela
inexistência do isolamento absoluto entre os componentes da Landschaft-esfera,
constatando-se a existência permanente de um elo de ligação espacial e outro de
ligação temporal.
Conclui Kalesnick (op.Cit) que “a Landschaft-esfera desenvolve-se pela força de
suas contradições internas”, o que pode ser constatado nos diferentes exemplos
relativos às leis da dialética, como as formas diferenciais vinculadas a processos
morfogenéticos opostos, que embora contraditórios, se interpenetram na
composição da paisagem .

Embora se torne evidente que o desenvolvimento da sociedade fundamenta-se em leis


próprias, deve-se, contudo ressaltar a necessidade de se conhecer melhor os processos
específicos da natureza. Deve ser lembrado aqui que o conhecimento humano das leis da
natureza é que permitiu o desenvolvimento da própria história da sociedade, resgatando-se o
conceito de segunda natureza preconizada por Marx e Engels. Engels (1979)168, ao
demonstrar a diferença entre o animal e o homem em relação à natureza, observa que aquele
a utiliza, enquanto este a domina. O processo de dominação, muitas vezes entendido como
vitória sobre a natureza, deve ser visto com certa preocupação: cada uma (dessas vitórias, “na
verdade, produz em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar; mas, em
segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre
anulam essas primeiras consequências”. Embora Engels, na referida passagem, valorize a
questão ambiental, sua obra Dialética da Natureza procura resgatar o homem como ser
natural, como forma de superação da subjugação de classe imposta pelo sistema de produção
capitalista. Ao citar o exemplo dos agricultores espanhóis, estabelecidos em Cuba, que
queimaram as matas das encostas das montanhas para obter melhores lucros com a
plantação do café, independentemente dos impactos erosivos dos solos que mais tarde
aconteceriam, expressou-se da seguinte forma: “Em face da natureza, como em face da

167
Kalesnick, op. Cit, p. 401.
168
Engels, DN, p. 223-224.

64
sociedade, o modo atual de produção só leva em conta o êxito inicial e mais palpável...”.”169.
Acredita-se, portanto, que na medida em que o homem produz matéria e energia no
interior desse amplo sistema, e esse produto deixa de ser incorporado ou reciclado, surgem as
formas de degradação que são lembradas por Souza e Amaral (1984)170:
• se produzem em oposição às leis do sistema, no que tange à reciclagem; sua
ação é deletéria, perversa, enfim, biocida. “Devemos, pois, adotar uma posição
contrária a tudo o que nos tem sido ensinado, fundamentalmente desde há dois
séculos: o culto pelo progresso científico, a crença nas vantagens da
urbanização e o fervor pelo progresso industrial”;
• se produzem com pleno conhecimento das inter-relações do sistema biosfera,
no que se refere à reciclagem e seu equilíbrio. “A noção de poluição transforma-
se, passa a ser a noção de algo fora de lugar”.
Tais considerações resumem-se nas seguintes contradições apresentadas pelos autores:
a) do homem em relação à biosfera. Por um lado se reconhece que estes
estejam inseridos nela por serem seres vivos; por outro, quando visto como um
sistema em funcionamento, “dela são excluídos, justamente por que podem agir
em oposição a ela”;
b) da ação do homem em oposição à biosfera, “considera-se implicitamente
a práxis produtiva humana, o conhecimento humano, a ciência, abordagem
muito coerente com a concepção da queda do pecado capital”;
c) da separação absoluta entre a natureza e o homem, vendo-se a parceria
como uma categoria em si, como se a natureza existisse à margem do homem
ou como se o conhecimento humano existisse à margem da natureza;
Para Marx171 “a natureza, tal como se forma na história humana, é a natureza real do
homem; daí que a natureza, ao ser formada pela indústria, ainda que seja em sua forma
alienada, é a verdadeira natureza antropológica”. A natureza sem a presença do homem não é
nada para ele, reforçando o argumento de que é o sistema de produção e as forças
produtivas que dão à natureza sua existência social. A terra poderia muito bem existir sem
o homem, contudo não existiria quem a concebesse enquanto tal. A partir do momento em que
o homem integra a natureza ao seu mundo, acaba por dar um sentido humano a esta, a partir
do qual se revela sua prioridade ontológica.

169
Engels, DN, p. 226.
170
Souza, Ailton B. de & Vieira, R.A Amaral. Poluição alienação ideologia. R. Janeiro: Achiamé, 1984, p. 22-23.
171
Marx, Karl. Manuscrios de 1844.

65
As Categorias do Desenvolvimento Social

172
Topolski (1976) , analisando o mundo real como um todo, entende que na relação
natureza e sociedade pode-se conservar o conceito de “autodinamismo”, onde todo o sistema
trabalha “independentemente”. O desenvolvimento da sociedade através das contradições só
pode ter lugar em condições naturais específicas: embora não sejam constantes, estão em
processo constante de movimento e desenvolvimento; processo que neste caso também tem
lugar pela superação das contradições. Para Marx e Engels, o todo compreendido pelas
relações entre a natureza e a sociedade encontra-se mutuamente integrado. Junto com a
soma das contradições que “põem a natureza em movimento”, e a soma das contradições que
“põem a sociedade em movimento” deve haver um ponto de contato desses dois subsistemas
que se constitui no estímulo básico da história da humanidade.
Ainda Topolski (1972) observa que “a principal contradição que condiciona o
desenvolvimento social está situada justamente no limite entre a natureza e a sociedade. É a
contradição entre o homem e a natureza a solução que dá lugar ao desenvolvimento das
forças produtivas”, assim esquematizada por ele.

Desenvolvimento das Forças


Natureza Homem Produtivas

Marx173 explica o processo de trabalho (a atividade do homem) como, em primeiro


lugar, um processo em que participam tanto o homem como a natureza, no qual o homem, por
sua própria decisão, descobre, regula e controla as reações materiais entre ele e a natureza.
Enfrenta a natureza com uma força pertencente a ela, colocando em movimento braços e
pernas, cabeça e mãos e as forças naturais de seu corpo, para utilizar o produto da natureza
de uma forma adequada aos seus próprios desejos. Com essa atuação sobre o mundo
externo e transformado, muda ao mesmo tempo sua própria natureza. “Desenvolve seus
poderes adormecidos e os obriga a atuar obedecendo a seu poder”. A contradição resultante
da relação homem e a natureza é dinâmica, tendo como resultado as forças produtivas
responsáveis pelo desenvolvimento continuado.
A segunda contradição que justifica o desenvolvimento social encontra-se
dialeticamente vinculada à primeira, correspondendo às relações entre as forças produtivas e
as relações de produção. Para Marx174 “na produção social os homens entram em relações

172
Topolski, op. Cit, p. 169.
173
Marx, Karl, O Capial I.
174
Marx, SW.

66
definidas que são indispensáveis e independentes de seu desejo; relações de produção que
correspondem a um estado definido de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais”.
Dessa relação surge uma contradição entre as forças produtivas, que são mais dinâmicas, e
as relações de produção, que são mais inertes, uma vez que são representadas por aqueles
que se apropriam dos meios de produção, determinando assim a natureza da referida
produção.
Topolski (1973)175 ressalta que a superação dessa contradição dá lugar ao
desenvolvimento das relações de produção (I) que, ao se adequar ao nível das forças
produtivas, se convertem em novas relações de produção (II), conforme esquema apresentado
por ele.

Forças Produtivas Relações de Produção (I) Relações de Produção (II)

Como se sabe, as relações de produção referem-se às relações produzidas pelos


próprios homens, considerando o sistema de produção. Nas relações de produção são
definidas, a partir de um determinado modo de produção, as formas de apropriação da
natureza/meios de produção, as relações de trabalho e a distribuição e troca dos produtos, o
que implica diretamente no comportamento das forças produtivas. Como se sabe, o sistema
de produção capitalista é caracterizado pela apropriação privada da natureza/meios de
produção e por uma relação de trabalho assalariada, estrutura essa que permite a acumulação
progressiva da mais-valia e consequente antagonismo das classes sociais. É evidente que a
estrutura das relações de produção encontra-se amparada pela megamáquina
176
antropossocial, ou superestrutura ideológica, com a qual se dá a terceira contradição desse
macrossistema.
A superestrutura é representada pelo Estado, onde as relações jurídico-políticas e
ideológico-culturais respondem pela ordem legal e política que induzem à formação da
consciência social. Marx (1944)177 escreveu que o estado das instituições, opiniões e ideias, tal
como existe em uma sociedade dada, ou estado da consciência humana, “deve explicar-se
mais pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas
sociais e as relações de produção”. Topolski (1973)178 discorre sobre as mudanças nas
relações de produção que dão lugar a mudanças de adaptação na superestrutura, “porque a

175
Topolski, Op. Cit, p. 170.
176
Conceito empregado por Morin (MORIN, E. O Método: a vida da vida. Portugal: Publicações Europa-América,
1980) em analogia ao conceito marxista de Superestrutura Ideológica.
177
Marx, SW
178
Topolski, op. Cit, p. 170-171.

67
velha superestrutura (I) impede as transformações das relações de produção. Assim há um
conflito em nível superestrutural, entre os que se servem das relações de produção existentes
e aqueles que favorecem as mudanças. Isto dá lugar à formação de uma nova superestrutura
(II), que, sem dúvida, conserva muitos elementos da velha”. Tais relações são expressas da
seguinte forma:

Relações de Produção Superestrutura (I) Superestrutura (II)

Estas três contradições podem ser interpretadas como as leis básicas do


desenvolvimento social, considerando o intento de tratá-las numa perspectiva metodológica,
dada a abrangência explicativa para a compreensão da realidade objetiva, resultado das
relações entre a natureza e a sociedade.
A ciência geográfica se caracterizou, sobretudo a partir da década de setenta do século
passado, por um movimento identificado como “Geografia Crítica”, em oposição ao paradigma
neopositivista dos teóricos quantitativos, tendo como princípio os fundamentos filosóficos
marxistas. Contudo, divergência entre intelectuais tem dificultado a consolidação de uma
perspectiva radical como novo paradigma da Geografia, o que de certa forma tem contribuído
para o desenvolvimento de uma tendência humanista, de base fenomenológica, fundada no
imaginário social.
A tendência crítica à ortodoxia marxista, principalmente em relação à cultura material,
tem implicado certo desprezo ao significado das leis da dialética, bem como das categorias do
desenvolvimento social. Esse fato torna-se mais grave quando se trata da Geografia, que tem
como objeto as relações entre a natureza e a sociedade. Hoje, mais do que nunca, é
imprescindível a compreensão dessas contradições para a formação de uma consciência
crítica.
Como se procurou demonstrar, o novo modelo de desenvolvimento produtivista, ao
mesmo tempo em que leva à privatização do público, reduz o relativo poder da força de
trabalho, obtido no welfare state, através da imposição tecnológica. Esse fato reforça o
significado ideológico da ciência, que ao promover o desenvolvimento tecnológico, ofereceu
ao Estado as bases para a pacificação dos conflitos, levando o trabalhador ao risco iminente e
ao dilema absurdo de submeter-se ao jogo de interesses dos detentores dos meios de
produção, em troca da manutenção do emprego. Assim a ciência assume cada vez mais uma
maior vinculação com as forças produtivas, desconsiderando o papel que apresenta como
componente da superestrutura ideológica, reforçando a histórica alienação. A nova revolução
científico-tecnológica nas forças produtivas, embora mantendo a velha estrutura das relações
de produção (apropriação privada dos meios de produção e preservação da mais-valia com

68
base de sustentação), conta com os auspícios da superestrutura ideológica através da
flexibilização da legislação trabalhista, da política permanente de privatização do público e da
manipulação de índices de desenvolvimento, dentre outros.
É nesse contexto que se espera resgatar as categorias do desenvolvimento social
como alternativa imprescindível à compreensão do espaço em sua essência, fazendo da
Geografia um conhecimento mais do que necessário para a superação da alienação; tratando
a existência humana como consequência do processo histórico da natureza, questionando a
apropriação privada da terra e consequentemente dos meios de produção.
Como se viu até aqui, o que a ciência moderna continua querendo, através do
“desencantamento do mundo”, é a teorização sobre as regras de conduta, as construções
pedagógicas e políticas, as construções normativas, cujo objetivo é tornar o homem eficaz e
eficiente. Repetindo, “o homem moderno, o cidadão, é, portanto, o Aufklärer, silhueta que
abriga um misto de cientista cartesiano e libertino altivo. Ele quer, como meio e meta, ou
melhor, como meio que é meta, a ‘feliz apatia” (Ghiraldelli, 1994)179. Para o autor, “também o
professor deve arrancar o véu. Ele deve descortinar, desnudar, desmitologizar, desideologizar,
desanalfabetizar, desinfantilizar, desencantar. Deve averiguar, experimentar (no sentido de
experimento, e não de experiência), nominar, educar (que de certo modo é ‘puxar para cima’,
pelos cabelos! )... profanar. Deve fazer intervir o logos, a palavra, a palavra que enumera, que
classifica, que logiciza, que racionaliza, que quebra o ritmo do corpo de modo a impedir os
fluxos normais que possam dar continuidade à imaginação”.
A analogia do professor ao Aufklärer, feita por Ghiraldelli (1994) é no sentido de que
esse ilumina, esclarece sem, contudo, provocar a necessária desmitologização. Adorno e
Horkheimer (1986)180 observam que “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por
remeter à mitologia”. Em um jogo de espelhos, o homem esclarecido, autônomo, o cidadão
aparece como elemento da massa, que aceita a dominação e só se rebela no sentido de
continuar sua implementação. “A modernidade que produz a apatia, precisa criar mecanismos
para, pelo menos por alguns momentos, reavivar esse homem para que a sociedade, ou
melhor, o aglomerado de seres, continue a existir” (Ghiraldelli, 1994)181.
Tal fato leva a concluir que a educação só tem sentido ao proporcionar a autorreflexão
crítica, embora sabendo que as diversas forças – como o produtivismo lilberal – jamais
patrocinarão qualquer crítica. Só resta a expectativa apontada por Adorno e Horkheimer
(1986)182, de que embora o sistema procure “proteger pela negação a união indissolúvel da
razão e do crime, da sociedade burguesa e da dominação”, não consegue distorcer as
consequências do esclarecimento, o que justifica a necessária insistência de “proferir

179
Ghiraldelli, op. Cit, p. 18.
180
Adorno & Horkheimer, op. Ci.
181
Ghiraldelli, op. Cit, p. 15.
182
Adorno & Horkheimer, op. Cit p. 111.

69
brutalmente a verdade chocante”. Nesse contexto, a Geografia, que foi intensamente
abalada pela “feliz apatia” do iluminismo, deve rever seus conceitos e promover um conteúdo
que possa desmitologizar e desalienar o homem abstrato, transformando-o em verdadeiro
cidadão.
Assumindo a Geografia uma nova postura epistemológica, fundamentada na
dialeticidade da natureza, ao mesmo tempo em que deixará de tratar o espaço como soma de
conteúdos distintos, aparentemente desconexos, assumirá efetivamente uma postura política,
capaz de oferecer a formação de uma consciência crítica, imprescindível a uma nova prática
social, produzindo uma geografia que “desvende o véu”.

A DIALÉTICA DA NATUREZA

João Maria de Freitas Branco183, em Dialética, Ciência e Natureza, procura “provar a


justeza de uma intuição de Engels que se pode traduzir na seguinte asserção: para as
ciências da natureza a dialética é a mais importante forma de pensamento”.
O trabalho busca com isso pôr em evidência, no quadro atual do pensamento científico,
a necessidade de recuperar uma concepção de natureza nas próprias ciências. “O grande
dilema que a nova ciência nos coloca é o da necessidade de pensar de outra maneira”, o que
justifica o enorme valor dessa obra que propõe a concepção do mundo de forma analítica e de
o pensar dialeticamente. A intenção aqui é a de seguir, mesmo que de longe, os passos dados
por Branco (1989), considerando a dimensão de sua obra, procurando num primeiro momento
apresentar o significado da concepção dialética da natureza, para posteriormente apresentar
os pressupostos materialistas como alternativa ontológica e epistemológica para a Geografia.
A intenção de Engels foi o de cooperar na reificação do corpo teórico do marxismo,
uma vez que Marx nunca teria a disponibilidade de tempo suficiente para se ocupar das
implicações teóricas da sua obra e do seu pensamento nos mais diversos domínios do saber
humano.
A intenção inicial de Engels foi a de realizar uma crítica ao materialismo vulgar de
Büchner, considerando a dialética como “a forma mais importante do pensamento para a
moderna ciência da natureza, já que é a única que nos oferece o “análogo” (analogon),
portanto, o método para explicar os processos de desenvolvimento da natureza, as conexões
nos seus traços gerais, as transições de um domínio e outro” (MEW 20, 330-31)184. Engels é
claro na declaração de intenções para o seu projeto de apresentar “uma concepção da
natureza ao mesmo tempo dialética e materialista”. Branco (1989)185 observa que a referida

183
Branco, DCN, p. 35.
184
Citado por Branco, DCN, p. 54.
185
Branco, DCN p. 55.

70
passagem permite concluir que “ser dialética significa deixar de ser não-dialética: e ser
materialista significa não ser idealista”, expressão esta que se manifesta numa dupla
oposição: a) o antiIídealismo, ou seja, a ideia exteriorizada que se impõe à mesma: e b) o
antimecanicismo que se refere ao combate crítico ao materialismo vulgar (metafísica) presente
no interior das ciências exatas. Em síntese, a intenção é a de superar as contradições entre
ciência e filosofia da natureza.
O projeto engelsiano fundamenta-se nas “três grandes descobertas” da época que são:
1. a transformação da energia (R. Mayer, Joule e Colding), um verdadeiro golpe
aplicado no espírito metafísico;
2. a descoberta da célula orgânica (Schwann e Schleiden), superando o “fixismo”
como base do raciocínio;
3. a descoberta da teoria da evolução (Charles Darwin), onde todos os produtos da
natureza (inclusive o próprio homem), resultam de um longo processo de
desenvolvimento, tendo como origem a célula.

Portanto, tais descobertas representam novas concepções científicas que se revelam


incompatíveis com as categorias metafísicas, impondo a necessidade de um método de
pensamento diferente: o dialético. Às três descobertas, Engels acrescenta uma quarta: “Assim
como Darwin descobriu a lei da evolução da natureza orgânica, Marx descobriu a lei da
evolução da história humana” (MEW 19, 335)186.
Após introduzir a noção de tempo na natureza, Engels (DN) concebe-a como processo,
em última instância dialético, como pode ser observado em sua crítica a Bacon e Locke: “(a
ciência natural provou) que a natureza, em última instância, as coisas se processam dialética
e não metafisicamente, que ela não se move na monotonia eterna de um ciclo
permanentemente repetido, que passa, antes, por uma verdadeira história...”(SU, MEW, 19,
205)187.
Portanto, a natureza entendida como processo, compreendendo-o como conjunto
contínuo de mudanças no tempo, oferece a ideia central e revolucionária da passagem da
história natural à história da natureza, onde se dá a incorporação do homem como
consequência do processo evolutivo. Para Engels188, “nada na história da natureza ocorre
isoladamente”. É nessa trajetória que Engels (DN) enuncia as três leis da dialética
desenvolvidas por Hegel, que eram apenas do pensamento, para uma dialética da natureza
numa perspectiva materialista.

186
Citado por Branco, DCN p. 57, referindo-se ao discurso de Engels junto ao túmulo de Marx.
187
Citado por Branco, DCN p. 85.
188
Engels, DN p. 20.

71
Para Politzer (1989)189 deve-se insistir que “a ciência, a natureza e a sociedade devem
ser vistas como um encadeamento de processos, e o motor que trabalha para desenvolver tal
encadeamento é o autodinamismo”
Engels (DN), ao mencionar que “nas ciências da natureza, através do seu próprio
desenvolvimento, tornou-se impossível a concepção metafísica”, faz-se acompanhar da
convicção de abandonar o horizonte do idealismo em detrimento do materialismo filosófico,
abreviando o regresso à concepção materialista da natureza (Branco, 1989)190.

O Materialismo da Natureza

Branco (1989)191, ao tratar da questão ontológica no materialismo da natureza, recorre


ao conceito de unidade do real, utilizado por Hegel, resgatado de Spinoza: “A asserção
fundamental que se pretende justificar é a da unidade imanente do próprio ser”. Se para Hegel
o fundamento da unidade do real é a matéria como “criação do pensamento e pura abstração”,
em Engels (DN), fica clara a necessidade da “unidade matéria-forma no plano da existência
sensível”. A matéria deixa de ser entendida como conjunto de propriedades imóveis, absolutas
e finitas, da concepção materialista mecanicista, assim como substrato, matéria universal
constitutiva dos seres particulares, para se tornar o “real objetivo que se dá através da
aparelhagem sensitiva, existindo independentemente da nossa consciência, e neste sentido
identifica-se com a própria natureza” (Branco, 1989)192. Lenin (1962)193 evidenciou que “a
noção de matéria exprime apenas a realidade objetiva que nos é dada pela sensação”.
. Conclui-se que o conceito de natureza se identifica integralmente com os conceitos de
“matéria” e de “realidade objetiva, o que leva a admitir que a natureza em sua integridade,
representada pela categoria da matéria, compreende não apenas os fenômenos da natureza,
mas também os da sociedade (o ser social).Trata-se aqui da categoria filosófica de matéria e
não do conceito científico da matéria. Constata-se ainda, que a matéria entendida em sua
dialeticidade, é essencialmente móvel e dinâmica, o que leva a concluir que “a matéria, sendo
o fundamento da unidade do real, é consequentemente o fundamento ontológico da dialética”,
numa posição monista194.
“A natureza, entendida como sinônimo de realidade objetiva precede a atividade
cognitiva: nisto consiste o primado do ser em relação ao pensar”. Com esse parágrafo, Branco

189
Politzer, op. Cit., p. 141.
190
Branco, DCN p. 131.
191
Branco, DCN p. 132 ss.
192
Branco, DCN p. 136.
193
Lenin, Vladimir I. Matérialisme et Empiriocriticisme. Paris: Éd.Sociales, 1962, p. 230 (Oeuvres, T.14).
194
A palavra "monismo" é usada para indicar toda doutrina ou sistema de pensamento que afirme certa unidade de
explicação (redução a um só princípio, a uma só causa, a uma só tendência ou direção) para um domínio limitado
de ideias ou de fatos (JACOB, 1990).

72
(1989)195 consegue demonstrar que é através da existência da matéria, enquanto realidade
objetiva, constatada através dos órgãos sensitivos e independentemente da nossa
consciência, que se elabora o conhecimento, ao contrário da concepção idealista, onde a
matéria é concebida no pensamento, independentemente de ser sentida como realidade
objetiva.
Acrescente-se que a matéria só é cognoscível através do movimento, portanto torna-se
necessário entendê-la também na sua dialeticidade, ou seja, por essência, não-repetitiva.
Nega-se ainda a finitude do conhecimento, acompanhando o desenvolvimento da própria
ciência da natureza. ”Nunca, em parte alguma, existiu, nem pode existir, matéria sem
movimento” (Engels, 1976)196. Aristóteles, nos Livros II e III da Física já considerava o
movimento como princípio intrínseco à matéria, dando a ela uma existência infinita.
Engels (1976)197 afirma que a unidade do real consiste na sua materialidade, tem-se,
então, a prova de que essa materialidade é dada pelo progresso do conhecimento vulgar e do
conhecimento científico, em particular.Toda discussão fundamenta-se no primado da natureza,
na preexistência da natureza (da realidade material objetiva) em relação ao pensamento
humano, o que levou a pensar que o desenvolvimento da vida biológica apresenta-se como
um fenômeno moderno, portanto, uma fração de tempo ao longo da história da natureza. Essa
relação é discutida também por H. Reeves, 1986198 .
A ciência moderna tem proporcionado evidências sobre a existência de uma base
molecular e química que viabilize o pensar, o que torna mais clara a unidade homem-natureza
na óptica de Engels (DN), provando a impossibilidade de se estabelecer qualquer tipo de
oposição entre espírito e matéria. Assim sendo, “o conhecimento é um processo de
assimilação (termo biológico) e não de transposição; processo dialético e não mecânico”
(Branco, 1989),199 ou melhor, não-idealista.
O reconhecimento de que a prática humana sensível é a base do processo cognitivo,
contido nas concepções de Engels (DN), é a clara negação da clássica dicotomia
conhecimento-atividade prática. “A instauração da Práxis como elemento mediador inviabiliza
a oposição sujeito-objeto, sendo aquele entendido em todas as circunstâncias como
transindividualidade dinâmica”.
Torna-se ainda necessário compreender que se a matéria existe fora da consciência
humana, o que refuta a concepção idealista da matéria e consequentemente da realidade
objetiva, necessariamente ela existe no tempo e no espaço. Enquanto os idealistas pensam
que o tempo e o espaço são ideias nascidas no espírito do homem, defendida por Kant, os

195
Branco, DCN p. 141.
196
Engels, AD, p. 51.
197
Engels, AD p. 52 ss.
198
Reeves, Huber. Um Pouco mais de Azul. S. Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 99ss.
199
Branco, DCN p. 145.

73
materialistas afirmam o contrário, ou seja, que o homem está contido no espaço e que o
tempo é uma condição indispensável ao desenvolvimento da própria vida. Conforme Engels
(1976)200 “... as formas fundamentais de todo o ser são o espaço e o tempo, e um ser fora do
tempo é um absurdo tão grande como um ser fora do espaço”.
Conclui-se, portanto, que não há uma realidade independente da consciência. Mesmo
antes de o ser humano existir o mundo ou a natureza já existia. Mesmo não conhecendo ou
não pensando em determinado lugar, ele não deixa de existir. Para Lenin (1962)201 “as
ciências da natureza afirmam positivamente que a terra existiu em estados tais que nem o
homem, nem nenhum ser vivo a habitava, nem podia habitar. A matéria orgânica é um
fenômeno tardio, o produto de uma evolução muito longa”.

A Dialeticidade da Relação Homem e Natureza

Ao entender o homem como resultado do processo evolutivo da natureza, torna-se


evidente, e ao mesmo tempo banal, afirmar que este não deixa de ser natureza, mesmo
considerando as diferenças entre ambos. Embora trivial, essa afirmação tem se constituído em
objeto de críticas e discussões que passam a ser brevemente apresentadas.
Com relação à crítica à Dialética da Natureza engelsiana, a posição de Schmidt em
relação à noção de natureza, contida na referida obra, é simplesmente incompatível com o
marxismo. Diz Schmid (1978)202 que “em Engels, a natureza e o homem não se unem
primariamente através da práxis histórica; o homem aparece apenas como produto evolutivo e
espelho passivo do processo da natureza, não como força de produção”. Também Lukács
(apud Prestipino, 1977) contesta o conceito de natureza engelsiano como realidade. Para
Lukács (1979)203 considera dois tipos distintos de dialética: a primeira posta e objetivada pelo
ser genérico social e a segunda independentemente deste, correspondente ao próprio
movimento da natureza. Assim como há dois movimentos da dialética, há também dois
movimentos de objetivação: o movimento do ser social e o movimento da natureza. Apesar de
serem movimentos dialéticos de objetivações distintas, pode-se notar uma conexão, uma
relação umbilical entre ser social e inorgânico.
Essa interpretação subverte o pensamento engelsiano, ficando claro que falar de
dialética da natureza significa, entre outras coisas, a associação da história à natureza,
estando o homem sempre associado a esta pelo processo social do trabalho. Conforme

200
Engels, AD p. 84.
201
Lenin, op. Cit, p. 52.
202
Schmidt, Alfred. Der Begriff der naur inder Lehre von Marx. Frankfurt: Basis, 1978, p. 51.
203
Lukács, Gyorgy. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. Trad.Carlos Nelson
Coutinho. São Paulo:Ciências Humanas, 1979.

74
Branco (1989)204, “há uma relação ela própria dialética entre o mundo natural e o histórico-
humano. É isso mesmo que o conceito-chave de produção nos dá a conhecer. A natureza é-
nos apresentada invariavelmente como a base real da história. Mas o fato de se considerar
que natureza e história se unem numa totalidade não significa que se estabeleça uma
completa indiferenciação entre ambas. A unidade dialética reafirmada a cada passo não quer
dizer que os dois elementos se confundem”. Conclui dizendo que “em face desses abusos
interpretativos não será demais voltar a repetir que no plano gnosiológico, o sujeito do
conhecimento não é nunca entendido como ‘espelho passivo’. Ao contrário do que Alfred
Schmidt afirma, o pensar não se esgota no reflexo do factual”.
Ao demonstrar a “dialeticidade” da natureza, Schmidt (1978)205 apresenta o homem
como sujeito transformador. Observa Branco (1989)206que na concepção não-engelsiana” de
Schmidt, a dialética da natureza passa a ser “mera consequência da interação do homem (...)
É o homem que introduz a dialética na natureza” deixando de ser da natureza, perdendo seu
fundamento objetivo, ficando a um passo da separação dialética e materialismo. Mais à frente
(Branco, 1989)207, rebatendo as críticas de Sartre208, que qualifica a dialética da natureza como
“hipótese metafísica”, conclui que a razão dialética se fundamenta em si própria: “Não
encontramos na natureza senão a dialética que aí introduzimos”, o que mostra que “a
objetividade da dialética só é passível de percepção em termos corretos se conseguirmos
compreender que a afirmação – aliás não discutida – da unidade do homem com a natureza é
conducente à tese fundamental de que o processo do pensamento é ele próprio elemento da
natureza, processo natural. Por isso o movimento do pensamento não está isolado do
movimento da matéria”. Acrescenta ainda que no quadro da dialética, o subjetivo e o objetivo
não são passíveis de separação, razão pela qual a dialética não se resume à função de
método, ganhando uma concepção gnosiológica materialista.
Assim, a dialética da natureza ao mesmo tempo em que traz consigo uma profunda
crítica à filosofia como domínio reservado, exclusiva do “pensamento”209, reveste-se de um
caráter científico, proporcionando a possibilidade de diálogo com as ciências da natureza. As
ciências da natureza apresentam a interdisciplinaridade como necessária, partindo do princípio
da inexistência de sistemas absolutamente isolados, o que requer, portanto, o diálogo entre as
ciências e cada uma delas com a filosofia, o que pode ser resumido por Morin (1986)210: “de

204
Branco, DCN, p. 261.
205
Shmidt, Op. Ci, p. 58.
206
Branco, DCN p. 263.
207
Branco, DCN, p. 265.
208
Sartre, Jean Paul. Critique de la Raison Dialecique. Paris: Gallémard, 1968, p. 127-129.
209
Conforme Hyppolite (1972)209, sempre houve entre os filósofos o desejo de que a filosofia se tornasse “saber do
saber científico, a sua consciência em si”
210
Morin, Edgar. O Méodo III. Portugal: Publ. Europa-América, 1986, p. 23-24.

75
fato as grandes questões científicas tornaram-se filosóficas porque as grandes questões
filosóficas tornaram-se científicas”.
A dialética da natureza leva ainda a ausência de um sistema doutrinário, pondo fim “a
todas as ideias de uma verdade absoluta e definitiva, e a um consequente estágio absoluto da
humanidade. Diante dela nada é definitivo, absoluto, sagrado; ela faz ressaltar o que há de
transitório em tudo que existe; e só deixa de pé o processo ininterrupto do vir-a-ser e do
perecer, uma ascensão infinita do inferior para o superior cujo reflexo no cérebro pensante é
esta própria filosofia (...). O conservantismo desta concepção é relativo; o seu caráter
revolucionário é absoluto – o único absoluto que ela deixa de pé” (LF, MEW 2l, 267-268)211.
Embora aparentemente absolutista, a dialética se caracteriza pela inexistência de
conceitos ou verdades acabadas, de uma natureza portadora de uma ordem variante. A razão
dialética demonstra a insuficiência do senso cartesiano face a um inimigo que não pode mais
ser descrito como um gigantesco relógio funcionando de forma regular, “o discurso
entusiástico anunciador do fim da história converteu-se na declaração de que atravessamos
ainda uma fase pré-histórica” (Branco, 1989)212.
O exercício de definir conceitos, leis, é relegado para um plano de menor relevância
científica. “Falar de dialética envolve pensar no movimento, na contradição e na sua
integração numa totalidade. A sua autêntica vocação é a de ser instrumento para um diálogo
sempre aberto com o real (...). O pensamento dialético materialista recusa por princípio a
atitude de se munir de uma cartilha estabelecida a priori para encetar o diálogo com a
natureza” (Branco, 1989213). Para Reeves (1986)214, “a natureza não tem de se adaptar à nossa
maneira de pensar. É a nós que cabe mudar a maneira de pensar para que ela se adapte à
natureza”. “O imperativo que nos coloca não é, portanto, o de ‘mudar de mundo’, como diz
Edgard Morin (‘il nous faut changer de monde’) , mas sim o de mudar a maneira de pensar o
mundo, de forma a ajustá-lo às novas faixas do real...”(Branco, 1989215).
Portanto, a concepção dialética implica contradição das relações processuais que
integram a natureza, imprescindível à compreensão da unidade do real, ou seja, “pensar a
contradição como passo para a intelecção dos processos do universo” (Lenin, 1976)216. Nesse
contexto incorpora-se o conceito de matéria e movimento como interdependência absoluta,
partindo do princípio de que “na natureza o movimento é sempre movimento de alguma coisa,

211
Citado por Branco, DCN p. 271.
212
Branco, DCN p. 279.
213
Branco, DCN, p. 273-274.
214
Reeves, Op. Cit, p. 161.
215
Branco, DCN p. 276.
216
Lenin, Vladimir I. Sur la quesion de la dialeique. Cahiers Philosophiques. Ouvres. 38. Paris: Sociales, 1976 p.
343-344.

76
e não há fenômenos naturais observados que nos revelem uma matéria isenta de movimento”
(Branco, 1989)217.
Branco (1989)218 retoma a discussão do em si ao para nós contida em Kant, numa
perspectiva materialista, como vital para a inteligibilidade do pensamento engelsiano. Nesse
sentido busca explicar que a expressão “dialética da natureza” não exclui o caráter subjetivo
do reflexo constitutivo do conhecimento, estando, portanto, bem patenteado no imperativo da
transposição do em si no para nós. “Este considerar da ligação cognoscitiva entre o ‘subjetivo’
e o ‘objetivo’ afigura-se condição necessária para a correta compreensão do sentido preciso
da expressão dialética da natureza” (1989)219.
Quando se fala da natureza e se diz que a dialética é da natureza, torna-se evidente
em Engels (DN) de que natureza está se falando: realidade objetiva, refletida pela consciência
humana já que o reflexo cognitivo está objetivamente limitado pela situação histórica,
resultante do intercâmbio entre o homem e a natureza. Embora “o projeto da dialética da
natureza tenha permanecido inconcluso, sou tentado a supor que se pretendeu ter em
consideração essa dupla manifestação do Natural”, afirma Branco (1989)220. Essa intenção,
ainda que não tratada de forma evidente, parece estar clara em Engels (1979)221 quando diz
que “é precisamente a transformação da natureza pelo homem e não apenas a natureza
enquanto tal, que constitui o mais essencial e direito fundamento do pensamento humano”.
Engels deixa claro que “o principal fundamento objetivo da nossa consciência não é apenas a
natureza em si, mas uma natureza transformada e a própria ação transformadora que sobre
ela se exerce” (Branco,1989)222, tornando absurda a ideia da dicotomia entre pensamento
humano e o real, entre o espírito e a matéria, e em última instância, entre a natureza e a
sociedade.
Portanto, a dialética da natureza implica apropriação ou reapropriação das forças
produtivas (Badaloni, 1976)223 ao estabelecer uma relação entre a prática social e o trabalho
prático das ciências. “Se a ação prática transformadora da natureza fundamenta o próprio
pensar, este, por sua vez, viabiliza novas formas de intervenção do homem junto à natureza, e
desse modo a ciência pode concorrer para uma definição contínua da relação do homem com
o mundo” (Branco, 1989)224.
Para compreender tal relação, Engels (DN) aponta para a impossibilidade de basear o
momento do pensamento apenas no interior do próprio pensar. O fundamento não se encontra
217
Branco, DCN, p. 100.
218
Branco, DCN p. 102-107.
219
Branco. DCN, p. 107.
220
Branco. DCN p. 109.
221
Engels, DN, p. 20.
222
Branco, DCN, p. 110.
223
Badaloni, Nicola. Sulla Dialettica della Natura di Engels e sull’aualià di una Dialeica Materialista. Annali
V.XVII. Milano: Feltrinelli, 1976, p. 53.
224
Branco, DCN, p. 111.

77
só no plano interno, ou seja, nas leis do pensamento, mas na necessidade de se externalizar,
situando-se também nas leis da natureza. Tal fato demonstra que a atividade prática humana
através da qual transforma a natureza é que constitui o fundamento do pensar, e não apenas
a natureza intransformada. Essa reflexão evidencia que é através da prática que se condiciona
o pensamento, o qual elabora o conhecimento, e não partindo do pensamento em si, conforme
concebe o idealismo.
A propugnação feita por Engels da dialética da natureza como ciência das conexões, o
velho princípio da estabilidade e o conhecimento da natureza como algo de separado (em si)
são banidos, observando que “enquanto houver homens a história da natureza permanecerá
inseparável da história desses mesmos homens, dado que se condicionam mutuamente”
(Marx & Engels, 199)225. Ao entender o homem como natureza, esta passa a caracterizar-se ao
mesmo tempo como sujeito e objeto, sem implicar necessariamente que as realidades
naturais, enquanto tais sejam consideradas puramente “recursos humanos”.
Torna-se aqui imprescindível apresentar, mesmo que de forma sintética, os diferentes
planos filosóficos que implicam necessária compreensão da importância da dialética da
natureza, numa perspectiva engelsiana.
No plano ontológico a unidade do real consiste em sua materialidade. A dialética da
natureza implica conceito de matéria ontologicamente aberta, partindo do princípio de que a
realidade objetiva existe independentemente da consciência que a reflete, onde “a categoria
da matéria abarca não apenas os fenômenos naturais (fenômenos da natureza, o ser físico),
mas também o ser social, aspecto fundamental que exprime a originalidade contida nesta
definição categorial” (Branco, 1989)226. Propõe o retorno à evidência, à compreensão da
natureza tal qual se apresenta, pondo fim aos sucessivos idealismos vividos ao longo dos dois
milênios.
No plano gnosiológico a natureza é entendida como sinônimo de realidade objetiva,
precedendo a atividade cognitiva: o primado do ser em relação ao pensar, ou seja, apenas se
pode conhecer o que existe. Assim, o conhecimento se caracteriza também como um
fenômeno aberto, não limitado, que além de refutar os caracteres da metafísica, contrapõe-se
à concepção de verdades acabadas. Conforme Engels (1976)227, se a unidade do real
consiste na sua materialidade, a prova dessa materialidade é dada pelo progresso do
conhecimento em geral e do conhecimento científico em particular. Portanto, ao mesmo tempo
em que o sujeito busca a compreensão da realidade objetiva, que se converte em
conhecimento, também se constitui objeto desse complexo processo natural. Isto quer dizer
que “a estrutura do sujeito é inseparável, desde a sua origem, da realidade objetiva. O sujeito

225
Marx, Karl & Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). S. Paulo: Hucitec, 1991, p. 27.
226
Branco, DCN, p. 138.
227
Engels, AD.

78
do conhecimento integra essa própria objetividade de que pretende dar conta” (Branco,
1989)228. Afirma Piaget (1969)229 que “... não há mais um direito de fronteira entre o sujeito e o
objeto”. A ruptura das concepções duais implica a urgência da transdisciplinaridade como
progresso do conhecimento da realidade objetiva.
No plano da práxis tem-se a prática social, que constitui a base do processo cognitivo,
negando a clássica dicotomia entre conhecimento e atividade prática. A instauração da práxis
como elemento mediador se caracteriza como atividade transformadora do mundo natural e
social, ou seja, da realidade objetiva.
Com base em tais pressupostos, torna-se possível superar a concepção externalizada
da natureza (plano gnosiológico) e entender a materialidade da realidade objetiva, desprovidas
das tradições mistificadoras, expressas tanto pelo idealismo quanto pela metafísica (plano
gnosiológico e, por conseguinte, epistemológico), para, através da prática social, tendo a
práxis como mediadora, proporcionar a necessária transformação com vistas a uma
apropriação social da natureza, em busca da justiça social.

228
Branco, DCN, p. 144.
229
Piaget, Jean. Logique et Connaissance Scientifique. Paris: Gallimard, 1969, p. 1244 (Enciclopedie de la Pleiade
n. 22).

79
PARTE III

A GEOGRAFIA DA NATUREZA

“Os homens sempre elaboraram


falsas concepções de si mesmos,
daquilo que fazem daquilo que
devem fazer e do mundo em que
vivem”.
Marx e Engels (IA)

80
A DIALÉTICA DA NATUREZA COMO INSTRUMENTO TRANSFORMADOR

“O mundo natural é anterior e casualmente


independente de qualquer forma de
espírito ou de consciência, mas não o
inverso”.
Engels

Como se pôde ver anteriormente, o sistema de produção capitalista, ao longo da sua


história evolutiva, tem se utilizado estrategicamente de argumentos ideológicos com o objetivo
de manter a própria existência, o que pode ser lembrado desde a externalização da natureza
como forma de legitimação da apropriação privada dos meios de produção, passando pela
concepção positivista de sociedade, deslocando a ciência do âmbito da superestrutura para as
forças produtivas (dando a ela um sentido tecnológico), deslocando o limite da natureza do
campo físico-mecanicista para o biológico como estratégia de sustentação da base material
(do inorgânico não renovável para o orgânico renovável)... Assim o sistema tem se
caracterizado: pela lógica da repetição como forma de organização e controle do processo
produzido, hoje de âmbito globalizado.
Nesse contexto de contradições e repetições é que se inserem as ciências que, ao
serem cada vez mais empurradas para as forças produtivas, deixam de discutir as questões
de natureza epistemológica e ontológica, para produzir uma natureza cada vez mais
tecnificada e reproduzir a alienação desejada pelo sistema de produção. Assim, as ciências,
embora tendam a modernizar seus discursos teóricos e tecnificar suas bases metodológicas,
pouco tem feito para mudar a forma de pensar. Consequentemente, a ciência, da mesma
forma que o sistema, passa a se caracterizar pela lógica da repetição sob os auspícios da
neutralidade, sabendo que as repetições nunca se dão nas mesmas condições. .
Também nesse contexto a Geografia tem se caracterizado por uma tendência de
contradições e repetições, bastando observar as transformações ocorridas a partir da
Segunda Guerra Mundial, quando se propõe a questionar a Geografia Tradicional sem,
contudo mudar a forma de pensá-la. A Nova Geografia resgata o positivismo a partir da
década de 60 do século passado, utilizando uma roupagem modernizada, caracterizada pela
teoria dos modelos e da quantificação, subsidiada pelos recursos informacionais. A partir da
década de 70, aproveitando-se da tendência de pacificação do mundo – enfraquecimento do
macartismo – a Geografia e as demais ciências sociais “redescobrem” o marxismo,
apresentando uma proposta revolucionária no sentido de repensar o mundo, privilegiando as
relações sociais. Contudo, a nova crise paradigmática dos anos 80, marcada pelo

81
desencantamento do “socialismo real”, a nova revolução científico-tecnológica nas forças
produtivas e a massificação do modelo produtivista liberal como fim comum enfraqueceram o
corpo teórico-metodológico da Geografia Crítica. Esse fato levou ao desenvolvimento de
várias tendências, dentre as quais se destaca a de cunho fenomenológico que promoveu uma
apologia ao “imaginário social” em detrimento da “cultura materialista”. Mais uma vez percebe-
se o rondar do neopositivismo, aproveitando a crise das ciências sociais, com nova roupagem.
Como se pode perceber, ao longo da trajetória do capitalismo a ciência sempre se
constituiu numa aliada do sistema, seja como instrumento da superestrutura, reproduzindo a
desejada alienação, se caracterizando assim como instrumento ideológico na formação da
consciência social, seja como suporte às forças produtivas, através da cientificação da técnica,
contribuindo para o desenvolvimento da sua base econômica. Ainda hoje se constata uma
forte tendência de a ciência se voltar cada vez mais aos interesses econômicos do sistema de
produção, sem deixar de exercer o “dever” ideológico, aproveitando-se do respeito que lhe foi
confiado. Este fato pode muito bem ser exemplificado através dos avanços tecnológicos
proporcionados pela ciência, que no momento atual promove uma verdadeira revolução nas
forças produtivas, utilizada pelo produtivismo liberal como forma de “pacificação de conflitos”
da classe trabalhadora. Assim subjuga o trabalhador aos interesses das relações sociais de
produção, utilizando como “arma” a tecnificação dos instrumentos de trabalho, capaz de
substituir, tanto em nível de eficiência quanto em custo operacional, a força de trabalho.

Pensar de Outra Maneira

Embora não desconhecendo o suposto cunho utópico que a proposta de se “pensar de


outra maneira” implica (a visão teleológica destrói o mito da utopia) e sabendo que as forças
econômicas jamais patrocinarão qualquer crítica ao sistema, resta a expectativa apontada por
Adorno e Horkheimer (1986)230 de que apesar de o sistema “procurar proteger pela negação a
união indissolúvel da razão e do crime, da sociedade burguesa e da dominação”, não
consegue distorcer as consequências do esclarecimento, sendo necessário insistir e “proferir
brutalmente a verdade chocante”. Nesse contexto, a Geografia, que foi intensamente abalada
pela “feliz apatia” do iluminismo, deve rever seus conceitos e promover um conteúdo que
possa desmitologizar e desalienar o homem abstrato em verdadeiro cidadão. É oportuno
lembrar mais uma vez a entrevista de Sartre (1980) ao Nouvel Observateur de Paris,
demonstrando o sentimento de angústia diante da crise mundial: “eu resisto e sei que morrerei
na esperança, mas essa esperança temos de fundá-la. É preciso tentar explicar por que o
mundo de hoje, que é horrível, não é mais do que um momento no longo desenvolvimento

230
Adorno & Horkheimer, op. Cit. P. 111.

82
histórico; que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das resoluções e das
insurreições. Eu sinto ainda profundamente a esperança como minha concepção do futuro”.
Torna-se um dever das ciências, sobretudo as que possuem compromisso com a
formação da consciência social, onde se inclui a Geografia, promover uma ampla discussão
no sentido de pensar de outra maneira. Conforme Morin (apud Branco, 1989)231, pensar de
outra maneira não significa mudar o mundo, mas sim pensar o mundo. Nessa afirmação
encontra-se contida a grande premissa: o reassumir da responsabilidade científica com o
intuito de proporcionar o desenvolvimento de uma consciência social crítica, desvendando a
essência da realidade objetiva como alternativa de mudança do mundo. Embora o pensar o
mundo não signifique necessariamente ‘mudar o mundo’, não deixa de oferecer a expectativa
histórica para que tal aconteça. Essa perspectiva se constitui no objetivo maior do
materialismo dialético, que aplicado à “dialética da natureza”, no conceito engelsiano, deverá
promover uma nova visão geográfica de pensar o mundo, promovendo a revolução
epistemológica desejada.
Embora a dialética da natureza tenha sido pensada no contexto das ciências naturais,
parte-se do princípio de que sendo o homem parte dessa natureza, uma vez que resulta do
seu processo evolutivo, se insere nesse contexto. Não se trata de resgatar o neopositivismo
como fez o darwinismo social. A dialética incorpora a necessidade do tratamento diferenciado
entre as relações sociais e naturais. Assim, natureza deve ser entendida ou associada à
história, estando o homem associado a esta pelo processo social do trabalho. Citando
Heisenberg232, “a ciência da natureza não pode falar simplesmente da natureza ‘em si’. A
ciência da natureza pressupõe sempre o homem e não devemos esquecer o que disse
Bohr233, que no espetáculo da vida, nunca somos apenas espectadores, mas também,
constantemente, actores”. Trata-se de resgatar o conceito de physis dos pré-socráticos, assim
definida por Bornheim234: “(...) é a totalidade de tudo o que é. Ela pode ser apreendida em tudo
o que acontece: na aurora, no crescimento das plantas, no nascimento de animais e homens.
E aqui convém chamar a atenção para um desvio em que facilmente incorre o homem
contemporâneo. Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito mais
estreita e pobre que a grega, o perigo consiste em julgar a physis como se os pré-socráticos a
compreendessem a partir daquilo que nós hoje entendemos por natureza: neste sentido, se
comprometeria o primeiro pensamento grego com uma espécie de naturalismo. Em verdade, a
physis não designa principalmente aquilo que nós, hoje, compreendemos por natureza,
estendendo-se secundariamente ao extra natural”.

231
Branco, DCN p. 276.
232
Heisenberg, Werner. A imagem da natureza na física moderna. Lisboa:Livros do Brasil, 1980, p. 14.
233
Referência a Niels Henrick David Bohr, físico dinamarquês, cujos trabalhos contribuíram decisivamente para a
compreensão da estrutura atômica e da física quântica.
234
Bornheim, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo:Cultrix, 1982.

83
Reafirmando as palavras de Branco (1989)235, no plano gnosiológico o sujeito do
conhecimento não é nunca entendido como “espelho passivo” (crítica à referência feita por
Schmidt ao conceito de dialética da natureza de Engels), observando que “o pensar não se
esgota no reflexo do factual”. Entendendo a natureza associada à história, estiola-se ou se
contrapõe à perspectiva da divisão clássica das ciências estabelecida pelo positivismo.
Partindo do princípio de que a Geografia tem como objeto de estudo as relações entre
a natureza e a sociedade, numa perspectiva histórica, imprescindível ao entendimento do
espaço em sua integridade, e considerando os desvios interpretativos e desagregadores
promovidos fundamentalmente pelo positivismo, a dialética da natureza aparece como
alternativa máxima, na busca da esperada unificação. O pressuposto a ser combatido
fundamenta-se no princípio da externalização da natureza, desenvolvido no iluminismo, como
forma de legitimação da apropriação privada dos meios de produção, base de sustentação
econômica do sistema capitalista. Se a externalização levou ao desenvolvimento de uma
Geografia dual – a Geografia Física e a Geografia Humana - parece mais que plausível rever o
conceito de natureza e utilizá-lo como elemento unificador. É nessa perspectiva que se propõe
o resgate do conceito de dialética da natureza, numa visão engelsiana, como fundamento para
a compreensão das relações sociais de produção da natureza: a natureza como realidade
objetiva, refletida pela consciência, resultante do intercâmbio entre o homem e a natureza:
uma dupla manifestação da natureza.
Assumindo a dialética da natureza como pressuposto teórico para o novo
pensar da Geografia, acredita-se na possibilidade de se resgatar a dialeticidade entre natureza
e sociedade, pondo fim à externalização da natureza em relação ao homem, que na verdade
refere-se à externalização da natureza para muitos, em detrimento de uma apropriação
espontaneísta desta, por poucos, apropriação essa representada por aqueles que detêm a
privatização dos meios de produção e consequentemente da própria natureza.
É evidente que assumindo a dialética da natureza como pressuposto epistemológico e
ontológico, a Geografia estará também se apropriando dos fundamentos do materialismo
dialético, aqui sintetizados:

a) o materialismo em oposição ao idealismo, partindo do princípio de que o


conceito de natureza identifica-se em absoluto com os conceitos de “matéria” e
“realidade objetiva”. Assim, torna-se necessário compreender a natureza como matéria
em sua integridade, não apenas como os fenômenos da natureza, mas também os da
sociedade, resgatando-se o conceito filosófico da “matéria” e não o conceito
“científico”, embora este, cada vez mais se aproxime do filosófico. Se o orgânico é
“matéria”, consequentemente o pensamento, como resultado deste, também é. Torna-
235
Branco, DCN, p. 261.

84
se claro, através do materialismo na sua concepção dialética, que o conhecimento
resulta da assimilação da realidade objetiva, tendo a prática humana sensível como a
base do processo cognitivo. A natureza enquanto sinônimo de realidade objetiva
precede a atividade cognitiva, que consiste no primado do ser em relação ao pensar: o
primado da natureza em relação ao pensamento humano. Portanto, o conhecimento
resulta da prática, ou seja, da assimilação da existência da matéria pelos órgãos
sensitivos, de onde se conclui que o conhecimento só é possível a partir da existência
da “matéria”, que por sua vez justifica a existência da “realidade objetiva”. Sem a
prática percepcional da matéria não existe conhecimento, o que leva a refutar a
existência de supostos conhecimentos ou fatos de natureza obscurantista, como as
explicações extrassensoriais ou não possíveis de serem materializadas.
Tanto a natureza quanto a sociedade devem ser vistas pela Geografia como matérias
constitutivas da realidade objetiva, cujo conhecimento produzido deve fundamentar-se
nessa essência material, contribuindo para a formação de uma consciência social
isenta de explicações obscurantes, disseminadas pelo idealismo, utilizado como
instrumento ideológico para a reprodução da alienação e consequente subjugação do
homem pelo capital.

b) a dialética, em oposição à metafísica, tem por princípio a não existência da


matéria desprovida de movimento (princípio da identidade), movimento esse por
essência, não repetitivo, contestando a interpretação dos movimentos circulares
permanentemente cíclicos ou fechados da matéria e energia. Contrapõe-se de forma
veemente o “isolamento das coisas”, partindo do princípio de que há uma dialeticidade
imanente, a unidade é indeclinável. Refuta as “divisões eternas e intransponíveis”,
considerando a historicidade da matéria, ao mesmo tempo em que se opõe ao “horror
da contradição”, admitindo a existência dos contrários como resultado do processo.
Nega-se ainda a finitude do conhecimento; resgatando mais uma vez Engels (AD) ao
afirmar que a unidade do real consiste na sua materialidade, cuja prova é dada pelo
progresso do conhecimento em geral e do conhecimento científico em particular.
Engels (1976)236, ao demonstrar que “a dialética é apenas a ciência das leis gerais do
movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do
pensamento”, refuta a metafísica em tais dimensões.
A concepção metafísica da natureza é de que esta se caracteriza como um conjunto
de coisas definitivamente fixas, sendo o movimento entendido como “ilusão dos
sentidos”. Embora admitindo que a natureza se mova, a metafísica afirma que se
encontra animada por um movimento mecânico. “... admitir o movimento (da terra),
236
Engels, AD, p. 172.

85
mas fazer dele um puro movimento mecânico é uma concepção metafísica, porque
este não tem história” (Politzer, 1986)237.
A concepção metafísica da sociedade, da mesma forma que da natureza, admite
mudanças em nível de produção, sucessão de governos, sem, contudo alterar o regime
capitalista (manutenção das relações sociais de produção, do antagonismo de classes,
privilégios...). Parte do princípio que a história é uma contínua repetição, embora não
se negue o movimento, falsifique-o, transforme-o em simples mecanismo.
Por último, a concepção metafísica do pensamento parte do princípio de que este não
evolui, deixando de oferecer qualquer perspectiva histórica. A sociedade não pode ter
outra base senão o enriquecimento individual e egoísta. “... esta maneira de pensar,
que nos parece, à primeira vista, extremamente plausível, porque é a do que se chama
o senso comum” (Engels238]. Conforme Politzer (1986)239, “chamamos à maneira como
vemos o universo de uma concepção; a maneira como procuramos as explicações de
um método. (...) a concepção inspira e determina o método muito evidentemente; uma
vez inspirado pela concepção, o método reage sobre esta, dirigindo-a, guiando-a”.
Com base em tais pressupostos, a dialética da natureza (método), entendida como
integridade das relações da natureza e da sociedade, proporciona a superação da
relação dual mantida na Geografia (concepção), deixando a natureza de ser
compreendida como puro objeto universal do trabalho, para ser compreendida ao
mesmo tempo como sujeito e objeto. A instauração da práxis como elemento mediador
inviabiliza a oposição sujeito-objeto, pondo fim não apenas à clássica dicotomia
conhecimento-atividade prática (Engels), mas também a do homem em relação à
natureza em suas derivações deterministas, mantida como forma de legitimação dos
interesses do sistema de produção. Não se pode excluir o cognoscente do seu próprio
conhecimento, uma vez que o seu próprio objeto emana de um sujeito. Conforme Morin
(1986)240, é necessário “reintegrar e conceber o grande esquecido das ciências (sujeito-
vivo) e da maior parte das epistemologias, e enfrentar, sobretudo aqui, o problema a
nosso ver incontornável da relação sujeito/objeto”. Trata-se de “enfrentar esse
problema complexo em que o sujeito cognoscente se torna objeto do seu
conhecimento ao mesmo tempo em que permanece sujeito”.

237
Politzer, op. Cit, p. 107-108.
238
Engels, AD, p. 53.
239
Politzer, op. Cit. P. 110.
240
Morin, op. Cit, p. 25.

86
A DIALÉTICA DA NATUREZA NA GEOGRAFIA

Habermas (1968)241 reconhece a emergência de uma solução sobre a


reestruturação do Estado e da sociedade sobre outras faces, diante das crises atuais de
racionalidade e legitimação. Rouanet (1989)242, quando se aproxima da realidade nacional,
destaca o populismo espelhado na condução política do Brasil, onde as ideias
desenvolvimentistas a partir dos anos 50, abrem espaços cada vez maiores para a
tecnocracia, aliada aos interesses empresariais, estimulando a modernização desejada pelas
oligarquias socioeconômicas – denominada pelo autor de “atitudes irracionalistas”.
Nesse contexto a ciência precisa livrar-se dos discursos irracionais, em nome da
eficiência e da modernização, captando a dimensão histórica das sociedades em busca da
liberdade do homem.
Como ponto de partida para uma discussão epistemológica na Geografia, é
imprescindível romper com a alienação patológica resultante do modelo de racionalidade do
pensamento iluminista, insistindo na necessidade de:

a) romper o antinaturalismo, fundamentado na ideologia do “desencantamento do


mundo”, que tem por objetivo a substituição da compaixão pelo saber, da
“externalização” da natureza interna e externa do homem como forma de
legitimação da apropriação privada dos meios de produção. Necessário se faz
considerar que quanto mais o homem se afasta da natureza, mais longe fica de sua
essência, reforçando sua própria alienação;
b) utilizar o “viés” ambientalista como estratégia epistemológica, proporcionando a
necessária rediscussão do conceito de natureza, apropriando-se de uma função
que se possa qualificar de dialética. Nessa perspectiva as relações processuais da
natureza devem ser entendidas numa relação dialética, onde as relações sociais de
produção e respectiva superestrutura ideológica legitimam a apropriação privada da
natureza, produzindo o antagonismo de classes em nome do “desenvolvimento”. É
preciso compreender que é o sistema de produção e as forças produtivas que dão
à natureza sua existência social.

A Geografia, em sua nova postura epistemológica, ao buscar a compreensão dialética


da natureza (natureza-sociedade), procura superar todas as formas de determinismo e
consequentes relações duais. Assim agindo, resgata não apenas o valor científico

241
Habermas, op. Cit., p.
242
Rouanet, S.P. As razões do Iluminismo. S. Paulo: Cia. das Letras, 1989.

87
fundamentado nos postulados histórico-materialistas, como a participação política, negada até
então pela roupagem da neutralidade científica, que tem sido indispensável ao processo de
desalienação do homem abstrato. Portanto, levar o homem à compreensão de que é um ser
natural permitir-lhe-á ao mesmo tempo entender que a natureza lhe pertence, não apenas
como substrato material, mas, sobretudo como recurso necessário à sua sobrevivência.
Assim, contestar-se-ão todas as formas de alienação, o que sem dúvida implicará
rediscussão do conceito de propriedade dos meios de produção, estiolando o crescente
antagonismo de classes, buscando a desejada justiça social e levando à necessária
compreensão da essência ambiental.

Pressupostos para a Compreensão das Relações Processuais

A dialética é representada por leis gerais sistematizadas por Hegel, que foram
apropriadas e compreendidas numa concepção materialista por Marx e Engels. As três leis
anteriormente apresentadas são aqui retomadas, com o intuito de se demonstrar os seus
significados para a Geografia:

- lei da passagem da quantidade em qualidade


- lei da interpenetração dos contrários
- lei da negação da negação

Tais leis assumem importância fundamental, tanto para a compreensão das


relações processuais na natureza como na sociedade, devendo ser entendidas na perspectiva
da unidade do real. Alguns exemplos geográficos foram anteriormente apresentados,
devendo-se destacar aqui a evolução qualitativa da matéria e sua passagem quantitativa, ou
vice-versa, evidenciada ao longo da evolução histórica da natureza, como a própria mutação
biológica e origem do novo ser, ou das transformações processadas no tempo e espaço, como
resultado do trabalho ininterrupto dos processos modeladores. As mudanças dos
componentes do potencial ecológico e consequentemente da exploração biológica, hoje são
percebidas mais rapidamente, com a presença do homem motivada pelo processo de
ideologização representado pela “dominação da natureza”.
Nessa mesma linha tem-se a interpenetração dos contrários. Partindo do
princípio de que o movimento da matéria é por essência não-repetitivo, é natural que
apresente alternâncias de natureza quantitativa, e, por conseguinte, qualitativas. Nesse
contexto as diferenças quantitativas se caracterizam como forças contrárias, que ao longo do
tempo se interpenetram, gerando novos equilíbrios transitórios ou “equilíbrios dinâmicos” no

88
conceito de Hack (1960)243. As forças contrárias, responsáveis pelas transformações, não
deixam de contemplar as marcas do passado. Isso pode ser observado na natureza, entre os
processos endógenos e exógenos da terra, que explicam a evolução dos modelados, ou na
sociedade, onde as forças produtivas implicam alterações nas relações de produção com
consequentes reflexos na superestrutura ideológica. Portanto, as mudanças qualitativas
resultam de ações processuais quantitativas para gerar mudanças, as quais não deixarão de
preservar parte do que foi mudado, prova da interpenetração dos contrários. Na natureza, tais
alterações se dão ao longo do processo geológico, comandado pelo jogo de forças contrárias:
endógenas e exógenas. Na sociedade tais alterações ocorrem ao longo do processo histórico.
Nesse caso, sobretudo a partir do Século XVII, as mudanças têm sido muito mais na
aparência (paisagem) que em sua essência (espaço).
Constata-se a importância da contradição existente das coisas, manifesta na
terceira lei, que segundo Engels (AD) constantemente se apresenta e resolve a generalidade
dos fenômenos da natureza e da vida. Retomando Politzer (1986)244, com relação à negação
da negação “as coisas mudam porque encerram uma contradição interna (elas próprias e suas
contrárias); as contrárias estão em conflito e as mudanças nascem desses conflitos; assim a
mudança é a ‘solução’ do conflito”. Marx, em relação à negação da negação afirma que no
regime capitalista “a propriedade privada capitalista é a primeira negação da propriedade
privada individual, baseada no trabalho do próprio produtor. A negação da produção capitalista
surge dela própria, pela necessidade imperiosa de um processo natural. É a negação da
negação”. Ao encarar tal fenômeno como um caso de negação da negação, Marx não tem em
mente demonstrá-lo como um fenômeno de necessidade histórica, “pelo contrário; somente
depois de haver provocado historicamente o fenômeno (...) que terá necessariamente que se
desenvolver daqui por diante, é que o define como um fenômeno sujeito em sua realização, a
uma determinada lei dialética” (Engels, 1976)245.
Conforme Politzer (1986)246, para se compreender as leis das contradições
torna-se necessário entender o princípio da mudança dialética e da ação recíproca. O primeiro
refere-se à força que move a matéria, o que se denomina de movimento dialético. O segundo
princípio caracteriza-se pelo encadeamento dos processos, o que permite compreender o
desenvolvimento histórico movido pelo autodinamismo, o que oferece uma perspectiva de
evolução continuada. Tais princípios rechaçam os argumentos da metafísica, fundamentados
no caráter da “identidade”, marcado pelo imobilismo, e pela “oposição às contrárias”,
afirmando que duas coisas contrárias não podem existir ao mesmo tempo.

243
Hack, J.T. Interpretation of Erosional Topography in Humid-Temperate Regions. Amer. Journ. Sci. New Haven,
258-A, 1960, p. 80-97.
244
Politzer, op. Cit, p. 160.
245
Engels, AD, p. 115.
246
Politzer, op. Cit,

89
Reafirma-se aqui a dimensão da importância das referidas leis, sistematizadas
por Engels (1976)247 da seguinte forma: “a dialética é apenas a ciência das leis gerais do
movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento”. Fica
demonstrada, portanto, a imprescindibilidade que apresentam como pressupostos teórico-
metodológicos para a compreensão dos fenômenos geográficos.
Partindo dos pressupostos teórico-metodológicos do materialismo dialético, Joly
(1968)248 apresenta os grandes avanços da Geografia Física em relação aos princípios
mecanicistas: a) dos processos circulares aos espirais, o que rompe a concepção de eventos
repetitivos, não-diferenciados, oferecendo a necessária perspectiva histórica da mudança,
contidas nas leis da dialética; b) dos movimentos lineares aos dinâmicos, estiolando a rigidez
causal e seus argumentos teleológicos (observa Joly que os argumentos teleológicos ainda
rondam os princípios da Geografia Física, ressaltando sua negatividade); c) a função como
pressuposto da estrutura, momento em que as relações processuais assumem importância
para a compreensão dos fenômenos da natureza; e d) a concepção do movimento no tempo e
espaço, que ao serem relativizados, rompem a rigidez das relações causa-efeito.
Neste momento torna-se imprescindível chamar atenção para a importância da
lei da macroestrutura desenvolvida por Marx e Engels, que Topolski (1973)249 incorpora nas
regularidades sincrônicas do método histórico. A discussão que se trava ao conceber as
categorias do modo de produção ou da formação econômico-social vinculada ao materialismo
histórico parece desnecessária, uma vez que o conceito de materialismo dialético fundamenta-
se no processo histórico. Branco (1989)250 ao criticar Stalin com relação ao tratamento
diferencial entre “materialismo histórico” e “materialismo dialético” observa que parece
indiscutível que “o materialismo é histórico por ser dialético e é dialético por ser histórico”. A lei
da macroestrutura refere-se ao sistema mais amplo, tendo os seguintes elementos: as forças
produtivas, as relações de produção e a superestrutura ideológica, já considerados
anteriormente. Enquanto as forças produtivas têm a materialização do processo produtivo
através do trabalho, as relações de produção (relações dos homens entre si) determinam as
formas das relações entre o homem e a natureza (forças produtivas) caracterizadas pela
cooperação ou divisão do trabalho, forma de propriedade, forma de distribuição e troca dos
produtos... A necessária coexistência das forças produtivas e as relações de produção se
refletem na categoria do modo de produção introduzida por Marx251.
Observa-se que a Geografia, enquanto paisagem (aparência) se preocupou por
um bom tempo exclusivamente com as relações homem e natureza, representadas pelas

247
Engels, AD, p. 172.
248
Joly, op. Cit.
249
Topolski, op. Cit. P.
250
Branco, DCN, p. 262.
251
Marx, SW p. 329 (Contribuição à Crítica da Economia Política).

90
forças produtivas, desconsiderando que tais relações estivessem vinculadas ou determinadas
pelas relações de produção, e consequentemente amparadas pela superestrutura ideológica.
[veja esquema adiante].
A superestrutura é concebida como o próprio Estado, que apresenta papel
fundamental no sistema de produção, funcionando como regulador das relações sociais,
conservando a ordem social que por sua vez encontra-se definida pelos interesses das
classes dominantes. Representa, portanto, a ordem legal e política, bem como ideológica e
social, as quais formam a consciência social. Observa-se assim o significado ideológico
representado pela educação, pela mídia, pela religião e pela própria ciência, na formação da
consciência social. Tais componentes apresentam importante papel na manutenção de
interesses ou valores a serem apreciados, sejam eles de caráter econômico, legal, filosófico,
religioso, artístico... Nesse contexto é que se entende a função ideológica da ciência e do valor
que apresenta como maneira de pensar o mundo para transformá-lo.

SUPERESTRUTURA

Instituições aparte do
Ciência Ideologia Estado

Formação Econômico-Social
Estado (fator regulador)

RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

Luta de Classes Modo de Produção

Classe dos Proprietários dos Meios de Produção Classe Exporada

FORÇAS PRODUTIVAS

Homem

Natureza

91
É nesse sentido que se conclama para um novo pensar da Geografia, fundamentado
na dialética da natureza, pondo fim ao processo de externalização da natureza e do próprio
homem, proporcionando a formação de uma consciência social crítica, que supere o jugo da
dominação, o peso da alienação. Portanto, a Geografia, entendida em sua essência, ou a
natureza entendida em sua integridade, carece de fundamentar o conceito de paisagem,
materializado nas forças produtivas, considerando o papel determinante das relações sociais
de produção e consequentemente da superestrutura, que além de legitimar o processo de
dominação, apropria-se dos instrumentos ideológicos para exercer a pacificação dos conflitos
sociais.
Em síntese pode-se afirmar que nenhum elemento da macroestrutura pode existir
independentemente, o que justifica o conceito de regularidades sincrônicas empregado por
Topolski.

A RELAÇÃO TEMPO E ESPAÇO

Necessário se faz ainda considerar a questão do tempo e espaço252. Conforme


demonstrou Reeves (1986)253, “o tempo e o espaço são quadros inertes e independentes, que
se preenchem em uma dada ordem. Seu único vínculo com os conteúdos (as coisas, os
acontecimentos) é (...) o fato de os conterem”. Portanto, “o espaço não está em nós, nós é que
estamos nele”, e (...) “o tempo é uma condição indispensável ao desenvolvimento da nossa
vida (...), por conseqüência, o tempo e o espaço são inseparáveis do que existe fora de nós,
isto é, da matéria” (Politzer, 1989)254. Engels (1976)255 observa ainda que “(...) as formas
fundamentais de todo o ser são o espaço e o tempo, e um ser fora do tempo é um absurdo tão
grande como um ser fora do espaço”.
Engels (1976)256, ao refutar a concepção de tempo e espaço utilizada por Dühring,
apropriada de Kant (a antinomia de Kant sustenta que o mundo não tem começo no tempo
nem limite no espaço: eternidade no tempo e infinidade no espaço), apresenta a tese de que
“o mundo teve um começo no tempo”, sustentada pelo seguinte argumento: “admitamos, com
efeito, que o mundo não tem começo no tempo, uma eternidade se teria escoado até chegar a
um momento dado, fluindo portanto, no mundo, uma série infinita de estados de coisas
sucedidos uns aos outros”. Tal fato demonstra que a infinidade de uma série não pode ser
entendida sem que tenha um começo. Portanto, um começo para o mundo é uma condição
necessária para a compreensão da sua existência.

252
Não se refere aqui ao conceito de “espaço geográfico”.
253
Hubert Reeves. Um Pouco mais de Azul. São Paulo:Martins Fontes, 1986, p.149-150.
254
Politzer, op.Cit, p.66.
255
Engels, AD, p.84.
256
Engels, AD, p.42-43.

92
Na Geografia, a história da natureza começa com a origem da terra, sem
desconsiderar que esta integra o movimento de expansão que vem ocorrendo no universo há
cerca de quinze bilhões de anos. É nessa dimensão que aparece o homem como resultado do
processo evolutivo da natureza – da origem das células à grande árvore darwiniana.
Sabe-se que o mundo, no seu estado atual, é o resultado do processo histórico
evolutivo. “O universo é apenas matéria em movimento, e esta matéria em movimento só se
pode mover no espaço e no tempo” (Lênin, 1962)257.

A RELAÇÃO HOMEM E NATUREZA

A conversão da natureza em propriedade pelo homem, implicou reificação que consiste


nas relações e ações de coisas produzidas por ele, que se tornaram independentes dele, e
governam sua vida.
A tarefa consiste em “saber administrar essa sujeição”, que na concepção dialética da
natureza implica destruição do modo de produção capitalista, como única forma de defender o
desenvolvimento das forças produtivas. Para tal, torna-se imprescindível superar as
contradições manifestas no tempo entre as relações de produção e as forças produtivas.
“Encerra-se assim todo um vasto programa que aponta para a reconciliação da
humanidade com a natureza (expressão usada pelo jovem Engels) em consequência da
reconciliação do homem com o próprio homem” (Prestipino, 1977) . Para Gurvitch (1977) ,
afirmar a possibilidade de reconciliação da humanidade consigo mesma e apresentar a via de
sua concretização histórica não é o mesmo que dizer ser essa a função da dialética. “Não me
parece difícil concluir que a visão dialética da natureza significa a destruição da dicotomia
natureza/cultura, e do mesmo passo a recusa de qualquer tipo de sociologismo, biologismo ou
antropologismo” (Branco, 1989) .
Partindo do princípio de que toda produção marxista fundamenta-se na preocupação
em determinar as condições de liberdade real do homem, tem-se a Dialética da Natureza
como pano de fundo para o projeto da emancipação humana. “Se a humanidade do homem,
como diz Heidegger, ‘repousa em sua essência’, então, no quadro da dialética da natureza
entronca o projeto humanista de melhorar o conjunto das relações sociais” (Branco 1989).

A Necessária Interdisciplinaridade

Ao entender a dialeticidade entre o mundo natural e o mundo histórico-humano, a

257
Lênin, op.Cit, p. 145..
258
Prestipino, op. Cit. P. 155.
259
Gurvitche, G. Dialectique e Sociologie. Paris: Flammarion, 1977, p. 201.
260
Branco, DCN, p. 124.

93
dialética da natureza, pela própria necessidade de conhecer a realidade objetiva em sua
integridade, aproxima os diferentes ramos do conhecimento humano, divididos arbitrariamente
pela metafísica e também utilizada pela doutrina positivista, proporcionando a verdadeira
interdisciplinaridade. É claro que a especialidade deve ser entendida como uma necessidade
de evolução do próprio conhecimento, mas sem perder a perspectiva de estar contextualizada,
o que com certeza promoverá uma maior responsabilidade da ciência com o novo pensar e
consequentemente com uma prática comprometida com os interesses da sociedade. A
dialética visa portanto, uma maior justiça social a partir da libertação do homem da alienação,
imposta como forma de dominação ou legitimação de “verdades” que interessam
exclusivamente aos detentores dos meios de produção. É nesta perspectiva que se reafirma a
importância de repensar o mundo como maneira de mudar o mundo, princípio primeiro da
dialética da natureza. Marx (1981) afirma que “... não devemos apenas explicar o mundo, mas
transformá-lo”.
Conforme Morin (1986) , “a rarefação das comunicações entre ciências naturais e
ciências humanas, a disciplinaridade fechada (pouco ou nada corrigida pela insuficiente
interdisciplinaridade), o crescimento exponencial dos saberes separados, fazem com que cada
qual, especialistas ou não-especialistas, se torne cada vez mais ignorante do saber existente.
O mais grave é que tal estado parece evidente e natural”, o que foi denominado de “patologia
do saber” por Gusdorf (1960)262.
Com relação à Geografia, só a integração entre as disciplinas que compõem os
conteúdos físicos e humanos já responderia por um salto de qualidade que com certeza, além
de superar as expectativas, ofereceria um sentido crítico à formação da consciência social.
Com relação a esse aspecto, Casseti em 1993 procurou demonstrar a importância de um
novo pensar da Geografia Física numa perspectiva dialética, e em 1996 apresentou as
perspectivas para uma Geomorfologia integrativa, ultrapassando a transdisciplinaridade da
visão holística, na busca da dialeticidade da natureza.. “[...]. A partir do momento em que a
Geografia Física abandonar gradativamente a roupagem positivista e buscar a compreensão
dialética da natureza, tende a se aproximar cada vez mais do objetivo de converter a
Geografia em uma única ciência”. Assim sendo, ao mesmo tempo em que materializa, através
da compreensão da produção da natureza, o conceito de espaço resolve o nó górdio do
dualismo histórico, resgatando a necessária postura política em detrimento da ‘neutralidade’,
corroborando assim para uma prática social transformadora. Portanto, parece estar mais afeto

261
Morin, Op. Cit. P. 16.
262
Gusdorf, G. Tratado de metafísica. S. Paulo: Cia.Ed.Nacional, 1960.
263
Casseti, Valter. A Geografia ainda “Física” e a Prática Social. Anais do V Simpósio de Geografia Física
Aplicada. S. Paulo, USP, 1993, p. 9-12.
264
Casseti, Valter. Abordagem sobre os Estudos do Relevo e suas Perspectivas (Notas Preliminares). I Simpósio
Nacional de Geomorfologia.Uberlândia. Sociedade & Natureza, 3(15):37-43, 1996.

94
à Geografia Física a possibilidade de uma articulação integral entre os componentes
antropossociais e os naturais, principalmente a partir do momento que as preocupações
ambientais desse final de século implicam retomada do conceito de natureza, o qual, em sua
essência, leva à necessária busca da compreensão dialética. Entende-se que o estágio
atual se diferencia fundamentalmente da concepção de ‘ecologia humana’ apropriada pela
Geografia no século XIX, ou do caráter positivista da Nova Geografia, levando-a a aceitar que
as regularidades que existem na natureza física se encontravam também na realidade social.
A Geografia, ainda que ‘física’ num primeiro momento, aos poucos vai encontrando seu
caminho, partindo do princípio de que as relações de produção e a respectiva superestrutura,
incorporando as forças produtivas, é que dão à natureza sua existência social. A partir da
compreensão dialética da natureza (natureza-sociedade), a natureza deixa de ser considerada
objeto universal dos meios de produção para assumir, reciprocamente, a condição de sujeito,
o que sem dúvida implicará maiores reflexões quanto á apropriação privada, responsável pelo
antagonismo de classes, e que até então tem respondido pela forma dilapidante da produção.
“O ‘viés’ ambientalista se constitui na estratégia indispensável à verdadeira revolução
epistemológica, necessária a uma prática social que resgate os erros do passado” (Casseti,
1993) .
Sobre a abordagem da Geomorfologia o autor considera: “partindo do princípio de que
a base de sustentação teórica para a necessária abordagem ambiental fundamenta-se na
dialeticidade da natureza, fica claro que a Geomorfologia, ao mesmo tempo em que deve se
preocupar com a própria fundamentação teórica (a Geomorfologia em si) carece de uma
rediscussão epistemológica em busca de uma ‘Geografia Global’”266”. Conforme Branco
(1989), “torna imperativo pensar dialeticamente para apreender as novas paisagens da fisis
(objetos disciplinares unidos por um traço comum: a dialeticidade). Essa compreensão só se
torna possível ao resgatar o conceito de natureza. (...) Compreender a dialeticidade da
natureza significa compreender a unidade entre processo histórico natural e a história do
homem, o que permite concluir que o processo do pensamento é, ele próprio, elemento da
natureza: o movimento do pensamento não está isolado do movimento da matéria, o que se
contrapõe ao dualismo psico-físico descarteano – substância pensante e substância
meramente extensa – que fundamentou o princípio de que a natureza interna está dominada
em pról da dominação da natureza externa.” Assim sendo, preocupar-se com a perspectiva
ambiental da Geomorfologia implica preocupar-se com a compreensão dialética da natureza,
numa visão engelsiana, o que demonstra ser responsabilidade de todos, em busca da
‘unidade dialética’, que tem sido parcialmente entendida.

265
Casseti, op. Cit nota 169, p. 11.
266
Conceito apropriado de HAMELIN, L.E. Géomorphologie. Géographie Globale – Géographie Totale. Cahiers
de Géographie de Québec, 8 (16):199-218, 1964.

95
A tendência ambiental da Geomorfologia267, conforme se tentou demonstrar ao buscar
a necessária visão holística, pode subsidiar-se metodologicamente dos recursos oferecidos
pela transdisciplinaridade, ao mesmo tempo em que se deve repensá-la epistemologicamente,
numa perspectiva dialética. “Assim, acredita-se não apenas no necessário avanço da
Geomorfologia em si, como também na sua participação para a compreensão da natureza em
sua integridade, caracterizando-a como uma Geomorfologia para nós” (Casseti, 1996) .
Ao se promover o diálogo entre as ciências na perspectiva da dialética da natureza,
torna-se evidente e natural a aproximação cada vez maior das questões científicas às
questões filosóficas. Para Morin (1986) , “a crise dos fundamentos do conhecimento científico
liga-se à crise dos fundamentos do conhecimento filosófico, convergindo uma e outra na crise
ontológica do Real”, para nos confrontar com “o problema dos problemas [...] o da crise dos
fundamentos do pensamento” (Pierre Cornaire citado por Morin, 1986). Observa o autor que
sempre houve uma reflexão filosófica sobre a ciência “(...) há, no estado atual, insuficiência da
filosofia sozinha, insuficiência da ciência sozinha para conhecer o conhecimento” .
Embora sem a pretensão de entender a dialética da natureza como fundamento da
epistemologia ou hermenêutica271, torna-se possível entendê-la como imprescindível à
necessária integração entre ciência e filosofia, partindo do princípio de que “falar de dialética
envolve pensar no movimento, na contradição e na sua integração numa totalidade” (Branco,
1989) ; portanto implica partir de pressupostos filosóficos para entender a materialidade do
conhecimento científico em sua essência.
Entende-se que a partir do momento em que a dialética da natureza passar a
induzir a nova maneira de pensar na Geografia, sem dúvida já se estará aproximando dos
conhecimentos científicos produzidos ao longo dos anos em suas diferentes especialidades,
tendo as concepções filosóficas representadas pela categoria espaço e consequentemente
natureza.

O Fim das Verdades Acabadas

Partindo do princípio de que o conhecimento é infinito, uma vez que o movimento da

267
Utiliza-se constantemente a Geomorfologia como exemplo, pela especialidade do autor.
268
Casseti, Op. Cit, p. 42-43.
269
Morin, op. Cit, p. 19.
270
Morin, op. Cit, p. 24.
271
Com relação à discussão entre epistemologia e hermenêutica, Rorty apresenta algumas considerações
interessantes. Após estabelecer diferenças básicas entre as mesmas – “A hermenêutica encara as relações entre
discursos variados como as relações entre partes integrantes de uma conversação possível, uma conversação que
não pressupõe nenhuma matriz disciplinar que una os interlocutores, mas onde a esperança de concordância nunca
é perdida enquanto dure a conversação (...). A epistemologia vê a esperança de concordância como um sinal da
existência de um terreno comum que, talvez desconhecido para os interlocutores, os une numa racionalidade
comum” (Rorty, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. RJaneiro:Relume-Dumará, 1995.
272
Branco, DCN p. 273.

96
matéria não é repetitivo em sua essência, conclui-se não existem verdades absolutas ou
definitivas. Este princípio parece ter norteado a concepção popperiana de ciência, sem
considerar aqui as ligações de Popper com as concepções positivistas, que busca através do
falseamento de hipóteses a obtenção de novos conhecimentos.. Mesmo se admitindo
sazonalidade na natureza ou comportamentos supostamente repetitivos na sociedade, sempre
se constatará alguma mudança (primeira lei da dialética), partindo do princípio de que, por ser
dialético, o movimento da matéria nunca representará estágio idêntico num determinado
percurso, respeitando-se as diferenças temporais que respondem pelo processo evolutivo da
natureza e da sociedade. Lembre-se aqui as palavras de Heráclito: “não podemos tomar
banho duas vezes no mesmo rio”. Tal fato demonstra que o consenso científico de certa
verdade no presente momento não significa a sua permanência enquanto tal ao longo da
existência.
Observa Engels (1976) , que “desse modo, quem sair por esses domínios à caça de
verdades definitivas e em última instância, de autênticas verdades verdadeiramente imutáveis,
não conseguirá reunir grandes despojos, desde que não se contente com vulgaridades a
lugares comuns da pior espécie, como, por exemplo, o de que os homens não podem viver,
em geral, sem trabalhar, o de que os homens, até a nossa época, têm estado divididos, quase
sempre em dominantes e dominados (...)”. Politzer (1986) chama atenção para “não
considerar nunca a verdade sem o erro, a ciência sem a ignorância”, o que nos faz lembrar
das discussões sobre o “o fim das certezas” em Prigogine275.
Em transcrição do programa “Noms de Dieux”276, Prigogine retoma o conceito
bergsoniano277 de tempo (a flecha do tempo) e faz esclarecimentos sobre as estruturas
dissipativas: “a vida é uma ‘flutuação’ da matéria e, no interior dessa flutuação, você tem
outras flutuações”, contestando as concepções deterministas e atemporais da física
newtoniana e do universo estático da física quântica.
Existem, portanto, verdades relativas mais ou menos duráveis, de acordo com a
velocidade das mudanças decorrentes do movimento da matéria, o que implica refutação de
verdades absolutas e definitivas, ao mesmo tempo em que implica infinitude tanto do
conhecimento quanto dos processos que integram a realidade objetiva. Nesse contexto
aproveita-se para considerar a perspectiva histórica proporcionada pela dialética, o que
justifica o caráter não finalisticamente utópico da presente proposta. Já que o antifinalismo por
ser histórico é dialético oferece uma perspectiva de mudança; ratifica-se a expectativa de
pensar o mundo de maneira diferente como forma de mudá-lo.

273
Engels, AD p. 75.
274
Politzer, op. Cit, p. 159.
275
Prigogine, I. O fim das certezas, Tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo:Editora UNESP, 1996.
276
Prigogine, Ilya. Do ser ao devir. Pará:Ed.UNESP-UEPA, 2002.
277
H. Bergson, "Durée et Simultaneité. À propos de la theéorie d'Einstein", Paris, 1922.

97
A Geografia, ao apresentar como objeto de estudo as relações entre a natureza e a
sociedade, trabalha com uma perspectiva temporal diferenciada, o que permite inclusive.
melhor entendimento das transformações produzidas ao longo da história da natureza. Este
fato, por si só, oferece a perspectiva de um melhor entendimento da dialética da natureza e da
infinitude processual. Com relação à perspectiva temporal, o simples entendimento da
evolução da terra, da evolução da potencialidade biológica e da exploração biológica
(conceitos de Bertrand, 1978) , do surgimento do homem como resultado desse processo
histórico, demonstra a estreita relação entre o mundo natural e o histórico-humano que
fundamenta a concepção da dialética na natureza. Com relação à realidade objetiva, conclui-
se que o estágio atual de desenvolvimento da natureza (no conceito dialético) resulta de uma
série de transformações fundamentadas em processos complexos e internamente
contraditórios, onde a evolução parcial de seus componentes não se realiza sem acarretar a
evolução de todas as outras partes integrantes. Como exemplo, os dobramentos modernos
resultaram de intenso processo de sedimentação em depressões oceânicas, soerguidas por
colisão de placas. Da mesma forma, o intenso processo de colmatação em espaços
oceânicos, resultante em grande parte de atividades erosivas dos dobramentos modernos,
deverão, num futuro geológico, representar novos dobramentos, com certeza, diferentes dos
anteriores. Assim, ao mesmo tempo em que se contrapõe ao finalismo mecanicista, se
demonstra a infinitude oferecida pela perspectiva histórica, o que destrói o “mito da utopia”.
Lembrando Branco (1989) , “libertamo-nos da crença do saber definitivo. Progredimos
saltando da ‘fé’ em uma inexistente Verdade absoluta das coisas e da visão do cosmos
perfeito para o reino da verdade relativa e do universo quente. É necessário agora aprender a
viver nesse imenso heteróclito abandonado por Deus”.

A Prática Social da Geografia

Como se observou em outro momento, a Geografia nasce dualizada, sob a


ideologização do conceito de uma natureza externalizada de interesse capitalista,
reproduzindo a alienação ao legitimar a apropriação privada dos meios de produção. Portanto,
a Geografia sempre colaborou com esse sistema de produção, exercendo importância
fundamental na formação da consciência social, ligada diretamente à superestrutura como
instrumento de ideologização. Harvey (1988)280 ao falar da Geografia “burguesa” enquanto
campo formal de conhecimento, cita Alexandre von Humboldt (1769-1859) e Carl Ritter (1779-
1859) que, trabalhando na tradição da filosofia natural, “empenham-se em construir uma

278
Bertrand, Georges. La Géographie Physique Contre Nature?. Herodote 26. Paris: François Maspero, 1978.
279
Branco, DCN p. 287.
280
Harvey, David, Geografia. R. de Janeiro:Jorge Zahar, 1988, p. 162 (Dicionário do Pensamento Marxista)

98
descrição sintética da superfície do globo como repositório de valores de uso exploráveis
(tanto naturais como humanos) e como o ‘locus” de formas diferenciadas de reprodução
econômica e social”. Mostra ainda o engajamento da prática do pensamento geográfico em
fins do Século XIX no processo de exploração de oportunidades comerciais na perspectiva da
acumulação primitiva do capital e de mobilização de reservas de forças de trabalho. Na divisão
do mundo em potências imperialistas, a perspectiva geopolítica, tendo F. Ratzel (1844-1904) e
H. Mackinder (1861-1947) como precursores, procurou evidenciar a necessária luta pelo
controle do espaço, o acesso às matérias primas, ao abastecimento de mão-de-obra e à
conquista de mercados, em termos diretos de controle geográfico”.
A Geografia não deixou também de prestar importante colaboração ao sistema como
força produtiva, ao integrar a “administração racional” (racional quase sempre do ponto de
vista da acumulação), participando do planejamento territorial, ao apropriar-se de modelos
externos e recursos informacionais, que lhe deu, supostamente, o status sonhado, oferecido
pela lógica formal. Se a postura crítica dos anos 70 do século passado “nublou” as
expectativas de um engajamento à lógica do mercado, por outro, as perspectivas do
produtivismo liberal, decorrentes do desencantamento do “socialismo real”, levaram os
geógrafos para o campo das questões ambientais, hoje mais uma vez assumindo funções
análogas à da “administração racional” da década de 60, emblematizadas nos zoneamentos
ecológico-econômicos e outros instrumentos relacionados à concessão de licenças
ambientais.
Portanto, há uma tendência cada vez maior na ciência, que também se manifesta na
Geografia, de deslocar a prática científica, que antes se fundamentava na formação da
consciência social, vinculada à superestrutura, para uma inserção maior no rol das forças
produtivas, através da geração de conhecimentos, sobretudo tecnológicos, como forma de
desenvolvimento dos meios de produção. Assim, contribui-se para a subjugação da força de
trabalho aos interesses do capital: ao mesmo tempo em que estimula o desenvolvimento de
novas tecnologias, não deixa de exercer a influência ideológica necessária para a pacificação
dos conflitos de classes, não apenas como forma de elaboração do pensamento, mas
materializada pelos novos argumentos incorporados às forças produtivas.
Para Habermas (1968)281, a cientificação da técnica se dá a partir do último quartel
do Século XIX, com a intervenção gradativa do Estado na economia, como forma de
estabilização do sistema. Desta feita, a crescente interdependência da investigação científica
transforma as ciências na “primeira força produtiva”. Ao mesmo tempo em que enfraquece a
teoria do valor-trabalho, uma vez que a força de trabalho vai perdendo sua importância, a
cientificação da técnica reproduz a “ideologia da compensação”, promovendo a pacificação
dos conflitos de classes, decorrente da revalorização privada do capital.
281
Habermans, op.cit.

99
Conforme Prestipino (1977)282, até que não se solucione o desequilíbrio promovido
pelas relações de produção em relação às forças produtivas, as ciências humanas,
reguladoras das relações com a natureza, será uma fonte de miséria para o homem, em
particular para o trabalhador. Para Engels, “nas atuais relações, também a ciência está dirigida
contra o trabalho”. Marx preocupa-se mais com a ciência enquanto força produtiva e como
meio de controle da força de trabalho: “as ciências naturais penetram de forma prática na vida
humana por meio da indústria e, com isso, transformaram a vida humana (...)”283..
Observa-se com clareza o status das ciências na prestação de relevantes serviços às
forças produtivas através do desenvolvimento tecnológico. Hoje, com a ideologização da
sustentabilidade, tendo como perspectiva a substituição da base material inorgânica, valoriza-
se a Biologia (Biotecnologia) com o intuito de reinventar a relação técnica do trabalho. Com
isso, a ciência de base físico-mecanicista, que ofereceu a sustentação tecnológica (base
inorgânica não-renovável) ao desenvolvimento do sistema, se sente cada vez mais ameaçada,
uma vez que não tem muito mais o que oferecer na mudança do paradigma técnico-científico
fundamentado na diversidade biológica (base material orgânica-renovável).
Sem desconsiderar a participação da ciência como suporte ao desenvolvimento das
forças produtivas, torna-se necessário evidenciar o compromisso que deve assumir na
formação da consciência social. E é com tal expectativa que se insiste na mudança do pensar,
sob as novas bases filosóficas da dialética na natureza, como alternativa de mudança das
próprias relações sociais de produção, e consequentemente, da superestrutura ideológica.
Sabe-se das dificuldades de se conciliar essa prática com os interesses do sistema, o
que implica consequências em relação ao mercado de trabalho. Contudo, torna-se
imprescindível manter o espírito crítico voltado às possibilidades de transformações, partindo
do pressuposto de que as mudanças qualitativas implicam luta de forças opostas (luta das
contrárias), resultantes por transformações quantitativas ao longo do processo histórico.

O ‘Entrecrise’ e a Razão Dialética284

“Vivemos no interior de um universo paradoxal, espaço de saberes múltiplos, de


verdades relativas, de indeterminações, nebulosidades, ambivalências e contradições
multimodais (...). O desafio parece ser imenso. É deste convívio com o mundo real, que até
aqui sempre nos tenha parecido impossível – irreal, fabuloso, fictício – que nasce o homem
moderno, que é, por excelência, o ente em crise. O ‘homem novo’ tão apregoado ao longo de
várias gerações, é afinal um ser mergulhado em profundo estado de crise; não por acidente,

282
Prestipino, op.cit, p. 156.
283
Manuscritos econômicos e filosóficos, Terceiro manuscrito.
284
Branco, DCN, in Conclusão, p. 283-287.

100
mas por essência” (Branco, 1989)285. É o ‘entrecrise’ em duplo sentido; negativo e positivo. O
‘entrecrise’ negativo, decorrente do desmonte irracional, associado ao desequilíbrio psíquico e
o ‘entrecrise’ positivo que assume a própria existência da crise através do recurso de um
pensar diferente.
“Para que possamos aceitar o pensar em nosso existir moderno como crise, torna-se
indispensável alterar o estilo arquitetônico do nosso intelecto” (Branco, 1989286, o que leva a
“uma razão dialética capaz de praticar o paradoxo, de pensar o complexo, de se equilibrar no
oceano agitado da nova ordem, de se habituar à presença constante do contraditório” (Branco,
1989) : requer aprendizagem. Da mesma forma que o salto qualitativo do Homo credulus
para o Homo sapiens requereu aprendizagem, a passagem do Homo sapiens ao Homo
dialecticus implica dificuldade suplementar: o da dogmatização da dialética.
Repetindo, “libertamo-nos da crença do saber definitivo. Progredimos saltando da ‘fé’
em uma inexistente Verdade absoluta das coisas e da visão do cosmos perfeito para o reino
da verdade relativa e do universo quente. É necessário agora aprender a viver nesse universo
heteróclito abandonado por Deus”(Branco, 1989)288.
Ao compreender a relação dialética entre a natureza e a sociedade, não existirão mais
motivos para o antagonismo de classes e nem mesmo para uma apropriação espontaneísta e
dilapidante da natureza, nos moldes observados no sistema de produção capitalista. Para isso
torna-se imprescindível a desalienação do homem ou a conversão do homem abstrato no
homem real, que para Marx significa a compreensão das relações histórico-dialéticas,
representadas pelas forças produtivas, relações sociais de produção e pela superestrutura
ideológica.
Num primeiro momento, o homem tem necessidade de se conscientizar de que é
natureza, o que romperá a concepção da natureza como objeto universal do trabalho. A partir
de então, a natureza (com a incorporação do homem) entendida como sujeito e objeto ao
mesmo tempo, permitirá a compreensão da existência da dialética. Só assim será possível pôr
fim à histórica dicotomia que se constitui em argumento ideológico para a manutenção dos
antagonismos de classes (burguesia e proletariado), de crenças (greco-romana e hebraico-
cristã) e de raças (apartheid e as diferentes formas de discriminações), além de desmistificar a
questão ambiental tida como intrínseca ao desenvolvimento (progresso).
Quando o homem se sentir parte da natureza, não existirão mais motivos para se
subjugar aos interesses de uma minoria privilegiada, detentora dos meios de produção.
Entenderá a natureza como sua casa, não apenas substrato da sua existência corporal, mas
recurso indispensável para as suas necessidades inatas e sociais. Não se submeterá aos

285
Branco, DCN, p. 285-286.
286
Branco, DCF, p. 286.
287
Branco, DCF, p. 286.
288
Branco, DCF, p. 287.

101
desejos insaciáveis das relações de produção, permitindo a reprodução ampliada do capital.
Não permitirá a privatização dos meios de produção e nem se submeterá às condições
humilhantes como a produzida pela alienação do próprio ser.
Diante disso, torna-se evidente, que a relação com a natureza se dará de forma
harmônica, racional; que a produção de excedente como sustentação do acúmulo de capital
não mais se justificará, e, por conseguinte, a dilapidação da natureza para obtenção dos
recursos será desnecessária, dada a extinção do mercado concorrencial.
Quando o trabalhador entender que é um ser natural e que, portanto, a natureza lhe
pertence, tornar-se-á evidente a superação da forma de propriedade vigente, com a
consequente extinção do antagonismo de classes. Para isso, se faz necessário, num primeiro
momento, que o trabalhador assuma a consciência de classe, o que é possível a partir de sua
própria desalienação.
É natural que o atual estágio cultural depende de mudanças substanciais dos
instrumentos responsáveis pela formação da consciência social (religião, ensino formal,
mídia...), e de um momento para que a ciência assuma a importância de seu verdadeiro papel,
procurando através de uma postura crítica, resgatar o erro histórico que legitimou os
interesses do sistema de produção. Assim, a ciência precisa abandonar a roupagem da
“neutralidade” científica, que sempre se constituiu em argumento de isenção, o que corroborou
para a manutenção do sistema. Como se sabe, só existem dois caminhos na lógica,
parafraseando Álvaro Vieira Pinto in Ciência e Existência, 1985289, assim como só existem
duas classes sociais distintas e antagônicas. Mantendo esse estado de coisas, manter-se-ão
todas as formas de dualismo que implicam diferença de classes. .
Com o abandono da propalada neutralidade, a ciência deve assumir uma posição de
classe, fundado na lógica dialética, procurando evidenciar a relação homem-natureza num
processo histórico, onde os diferentes modos de produção respondam pelas formas
diferenciadas de apropriação da natureza. Posto isso, as relações processuais serão
analisadas em sua integridade, onde o homem passa a integrar a natureza de forma “natural”,
justificando as razões de totalidade da lógica dialética e da importância do processo de
desalienação para a verdadeira libertação. Libertação não apenas do jugo da alienação, que
determina a condição de homem abstrato, mas a de levá-lo ao reconhecimento de ser natural-
social e como tal, partícipe de todo processo de materialização da realidade objetiva.
Só assim a ciência proporcionará o avanço necessário para assumir um caráter social
irrestrito. Essa é a expectativa que precisa ter estimulada na Geografia, há mais de duas
décadas em processo de ruptura epistemológica. Mesmo longa, tal ruptura torna-se
imprescindível à transformação desejada.

289
Pinto, Álvaro Vieira. Ciência e Existência. R. Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 61ss.

102
Por uma Prática Social Desalienada

Ao concluir entende-se que alguns pontos devam ser ratificados como


argumento de sustentação científica vinculada a uma prática social fundamentada na
necessária desalienação:

1. Compreender as razões da ideologização do conceito de “Natureza Externalizada”


como forma de superação da apropriação privada dos meios de produção (tendo a natureza
como substrato). Só assim será possível resgatar o conceito de uma natureza unificada,
dialética, tendo o homem como resultado do processo de desenvolvimento histórico;

2. Compreender o significado da ideologia como forma de subjugação de povos e nações,


quando se torna evidente o papel da superestrutura no processo de alienação. O Estado,
através dos seus instrumentos ideológicos (relações jurídico-políticas, científico-culturais...)
pereniza a alienação como forma de legitimação da apropriação privada dos meios de
produção e suas resultantes (inclui-se aqui a ideologização cultural e racial como forma de
colonização e dominação, determinada pelos interesses hegemônicos do capital);

3. Compreender as razões que justificam a apropriação espontaneísta da natureza. A


privatização da natureza e a sua ideologização como forma de legitimação da propriedade
justificam a degradação ambiental em nome do desenvolvimento econômico-social (suposto
progresso de toda humanidade);

4. Compreender as razões que justificam a subjugação da força de trabalho aos


interesses das relações de produção. Enquanto no passado a força de trabalho assumia
relevância no processo produtivo, embora não deixando de se constituir em mais-valia, hoje,
com o desenvolvimento científico-tecnológico, tem-se uma nova revolução nas forças
produtivas que aliena o trabalhador em nome da obsolescência da luta de classes (a
tecnologia como forma de opressão);

5. Compreender as relações entre a superestrutura ideológica e as relações sociais de


produção como forma de dominação. Essa relação dialética mantém o jogo de interesses, o
que pode ser comprovado na atualidade, “quando as forças mais ativas e poderosas no
processo de globalização são os conglomerados e empresas transnacionais” (Rattner,
1995)290, sustentadas por um, modelo de desenvolvimento instituído pelo Estado neoliberal. O
poder ideológico da superestrutura e o apoio jurídico-político garantem a implementação do
290
Rattner, op. Cit.

103
modelo de desenvolvimento de interesse dos grupos hegemônicos de produção, ao mesmo
tempo em que garante sua própria sobrevivência enquanto instituição;

6. Compreender que “o mundo de hoje não é mais que um momento ao longo do


desenvolvimento histórico” (Sartre, 1980)291, refuta o argumento teleológico produtivista liberal
de um destino comum da humanidade. Torna-se imprescindível compreender o mundo na sua
dialeticidade, o que sugere um futuro histórico marcado pelos eventos e forças políticas
(necessidade de superação do finalismo mecanicista, aqui utilizado ideologicamente como
forma de pacificação de conflitos e reprodução da histórica alienação como forma de
subjugação de povos e nações). Como afirma Engels (LF), “o mundo não deve ser
considerado um complexo de coisas acabadas”. Reforça-se tal argumento com o fim das
verdades acabadas ou o fim das certezas (finalismo mecanicista), que destrói o mito da utopia.

7. Compreender a necessidade de se “proferir brutalmente a verdade chocante” (Adorno


e Horkheimer, 1986)292. Partindo do princípio de que as forças do poder jamais patrocinarão
qualquer crítica ao sistema, torna-se necessário esclarecer, desalienar, desmitologizar,
desencantar, desnudar, descortinar, desanalfabetizar (Ghiraldelli, 1994)293, enfim, difundir a
essência das relações que compõem as categorias do desenvolvimento social, partindo da
compreensão da existência do próprio homem enquanto ser natural.

Enfim, torna-se necessário mudar a maneira de pensar o mundo, de forma a ajustá-la


às novas faixas do real, como afirma H. Reeves em Um Pouco mais de Azul..
Essa perspectiva necessariamente remete a um futuro diferente do atual, e aqui cabe
lembrar a arte poética preocupada com o mesmo tema no trecho da música Sonho
(Im)possível294, na versão de Chico Buarque::
“(...) e assim, seja lá como for,
vai ter fim a infinita aflição,
e o mundo vai ver uma flor,
brotar desse impossível chão”.

291
Sartre, entrevista citada.
292
Adorno & Horkheimer, op. Cit.
293
Ghiraldelli, op. Cit.
294
Música de J. Dorion e M. Leigh.

104
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111
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AD Anti-Dühring
IA A Ideologia Alemã
SW Selected Work
DCN Dialética, Ciência e Natureza
LF Ludwig Feuerbach e a proposta da filosofia clássica alemã (Ludwing Feuerbach
und der Ausgang der Klassischen deutschen Philosophie)
SU Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico (Die Entwicklung des
Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft)
MEW Marx - Engels Werke

112
CONTRA-CAPA

O presente trabalho baseia-se no princípio de que a externalização da natureza se


constitui estratégia ideológica para a legitimação da apropriação privada dos meios de
produção e, por conseguinte, da própria natureza. Discute a participação da modernidade
iluminista na articulação estratégica, tendo a ciência como instrumento de disseminação das
diferentes formas de alienação, considerando os interesses do sistema de produção
capitalista.
Ao mesmo tempo em que a externalização permite a ocupação diferencial do espaço,
fundamentada no poder aquisitivo, legitimando o espontaneismo e por conseguinte os
impactos ambientais, o conceito de natureza “hostil” estimula a "dominação" como forma de
obtenção de novos conhecimentos para a sustentação material do processo produtivo,
expansão territorial e reprodução ampliada do capital.
O despertar ambiental, assistido a partir da década de setenta do século passado,
implica mudanças de paradigma do capitalismo, que responde investindo na base orgânica
renovável, com estratégia à manutenção do sistema vigente: utiliza do argumento produtivista
como forma de superação da crise ambiental. O desenvolvimento tecnológico de base
científica, responsável por tal revolução, além de implicar na pacificação de conflitos das
forças produtivas, agrava o antagonismo de classes. Tudo isso sob a égide da teleologia da
globalização.
A proposta de romper o argumento do "fim comum da humanidade" é feita a partir do
resgate da dialética da natureza na concepção engelsiana, apresentada como perspectiva
transformadora.
Sem qualquer preocupação em inovar, o trabalho procura despertar para a
necessidade de se pensar o mundo de forma diferente, contra a correnteza estabelecida.

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