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Parte I.

Introdução.

Há pelo menos dois modelos interpretativos, chamemos assim, sobre a


negação do Genocídio Armênio. O primeiro é o mais comum deles. Ele é ou ecoa uma
das versões nacionalistas negativas da negação, que se expressa também por meio da
denuncia. Ele foi produzido entre e agrupa trabalhos de intelectuais da diáspora armênia
e atravessa as lutas por reconhecimento e reparação que, além desses próprios
intelectuais, tem como sujeitos burocratas armênios, agentes da diáspora e agentes
ligados a organizações de direitos humanos e a organizações internacionais. Essa
interpretação é baseada na definição genérica da negação, aquela que trata do fenômeno
como um estágio dos genocídios ou como uma forma simbólica de atualização do crime
original, no presente, por meio de falsificação ideológica do passado1.

O outro, menos comum e mais recente, pertence a um campo dos estudos


sobre a política internacional que tem como objetos os discursos construídos como
narrativas sobre o passado ou como memórias coletivas sobre eventos-limite. Ele trata
da negação no conjunto genérico daquelas que seriam as narrativas oficiais pós-
genocídio. Sua ênfase é sobre o que seria uma narrativa única, de natureza invariável e
de princípios e conteúdos variáveis ao longo do tempo, segundo a influência de fatores
externos (diretrizes de política externa, pressões multilaterais etc.) e por determinação
de fatores internos (legitimidade, programas políticos, preocupações materiais e
territoriais, grau de liberdade democrática, etc.), i.e., uma narrativa de Estado2.

1
CRIMES against Humanity and Civilization – The Genocide of the Armenians. Brookline: Facing History
and Ourselves, 2004. Resource Book; CHARNY, I. W. Innocent denials of know genocides: a further
contribution to a psychology of denial of genocide. Human Rights Review, vol. 1, n. 3, p. 15-39,
abril/junho de 2002; _____. A classification of denial of the Holocaust and other genocides. Journal of
Genocide Research, vol. 5, n.1, p. 11-31, 2003;______; FROMER, Daphna. Denying the Armenian
Genocide: patterns of thinking as defence-mechanism. Patterns of Prejudice, vol. 32, n.1, 1998, pp. 39-
49; CHURCHILL, W. Denials of the Holocaust. In: CHARNY, I. (Org). Encyclopedia of Genocide. Vol I. Santa
Bárbara: Abc-Clio, 1999, p. 167-174. SMITH, R. Denial of the Armenian Genocide. In: CHARNY, I.
Encyclopedia of Genocide. Vol. 1. Santa Barbara: ABC-Clio, 1999, pp. 161-165; DADRIAN, Vahakn. The
Key Elements int the Turkish Denial of The Armenian Genocide. Cambridge: The Zoryan Institute for
Contemporary Armenian Research and Documentation, 1999; HOVANNISIAN, R. (Org.). Looking
backward, moving forward: confronting the Armenian genocide. New Brunswick: Transaction Books,
231-262; ______ (Org.) The Armenian Genocide. History, Politics, Ethics. Londres: Macmillan, 1992;
______. (Org.) Remembrance and Denial: The case of the Armenian Genocide. Detroit: Wayne State
University Press, 1999. ______. Denial: The Armenian Genocide as a prototype. In: ROTH, J.K.;
MAXWELL, E.; LEVY, M.; WHITWORTH, W. (Orgs.). Remembering for the future. The Holocaust in an Age
of Genocide. Vol. 1. Nova York: Palgrave, 2001, pp. 796-812.
2
DIXON, Jennifer M. Dark Pasts: Changing the State’s Story in Turkey and in Japan. Ithaca: Cornel
University Press, 2018.
Um dos principais proponentes desse que chamei de primeiro modelo
interpretativo sobre a negação do Genocídio Armênio é o historiador Richard G.
Hovannisian. É dele a tese de que a negação do Genocídio Armênio é um modelo, um
protótipo da negação. Para ele, este caso particular, por sua natureza extremamente
institucionalizada, teria se transformado numa espécie matriz discursiva e programática
replicável a qualquer caso, como se da negação do Genocídio Armênio tivessem
derivado tanto as estratégias retóricas produtoras da fraude histórica, quanto seus fins
gerais: enganar e confundir3.

Até agora, o único e bem construído exemplar da segunda interpretação está


em Dark Pasts: Changing the State’s Story in Turkey and in Japan, trabalho de Jennifer
Dixon que trata do que seriam as versões oficiais sobre passados de eventos-limite –
passados obscuros, problemáticos. Essas narrativas oficiais ou histórias (stories)
seriam, sobretudo, o resultado da agência de burocracias nacionais e de instituições
transnacionais. Elas seriam um modo de dar sentido global, um meio de configurar a
concatenação e a sequência de causas e efeitos desses eventos (storytelling) e, assim, se
configurariam como instrumentos para cristalizar ou projetar uma determinada imagem
(identity) de um país, geralmente em resposta a determinadas conjunturas nacionais e
sob a influência de pressões inter ou transnacionais4.

A primeira interpretação é inspirada naquelas que foram realizados


pioneiramente por Nadine Fresco e por Pierre Vidal-Naquet sobre a negação do
Holocausto entre os anos 1980 e 1990. Em ambos os casos, os procedimentos são
praticamente os mesmos: os textos da negação e os agentes da negação são examinados
para que se identifique neles a materialização e a prática de um tipo de falsificação
deliberada, ideologicamente motivada e executada por meio de recursos retóricos e
fraudes processuais. Assim, pelo caráter dos falsários e da falsificação, descobre-se a
negação um objeto em si mesmo ou um fenômeno relativamente autônomo5.

3
HOVANNISIAN, 2001.
4
DIXON, 2018.
5
C.f. exemplo: FRESCO, N. Les redresseurs de morts. Chambres à gaz: la bonne nouvelle. Comment on
révise l’histoire. Les Temps Moderns, n. 407, Jun. de 1980; ______. Les “revisionists negateurs de la
Shoah. Anti-Rev [Online]. Disponível em < http://www.anti-rev.org/textes/Fresco90a/> , acessado pela
última vez em 25/10/2018; ______. Rassiner, Paul. In: Maiton, J. (Org.). Dictionaire biografphique du
mouvement ouvrier français. Paris: Les Édtions Ouvrières, 1991; VIDAL-NAQUET, P. Os assassinos da
Memória: Um Eichmann de Papel e outros ensaios sobre o revisionismo. Campinas: Papirus, 1988.
A segunda interpretação é o resultado de um tipo de análise um tanto
diferente, mas que produz um resultado semelhantemente inverso. Aqui a negação
aparece como uma das variedades tipológicas dos conteúdos possíveis de uma narrativa
oficial posterior sobre eventos críticos. É em relação a um universo múltiplo de
conteúdos que ela é analisada como uma variante. Ao contrário da primeira
interpretação da negação, que inclui em sua definição as suas diferentes formas
discursivas (a relativização, a mitificação, a banalização, o silêncio etc.), aqui a negação
só toma forma através da negativa categórica – ela só pode ser expressa pelo “não
aconteceu”. Desse modo, em diversas conjunturas, ela pode ser sobreposta ou
atravessada por outros conteúdos. Ela é uma das formas possíveis de se dar sentido ao
passado – por meio de mentiras, é verdade, mas ainda assim: uma explicação. E uma
explicação oficial, de Estado com “e” maiúsculo6.

Apesar de a negação figurar como uma variante entre o conjunto dos


diversos conteúdos possíveis para uma narrativa oficial posterior aos eventos que toma
como objeto nessa segunda versão da intepretação, e de o contrário ser verdadeiro para
a primeira versão, no sentido de que a negação, ou pelo menos o discurso negador, é um
fenômeno em si, em ambas as interpretações o regime de transformação da negação é
praticamente o mesmo, ainda que descritos e descobertos de modos diferentes. No
primeiro caso, as estratégias retóricas mudam, variam de acordo com os produtores
individuais da negação, enquanto seus objetivos, fins e princípios permanecem
relativamente fixos7. Na segunda, a negação varia para outros tipos de conteúdos,
enquanto seu princípio, por dependência de trajetória (path dependence) ou por inércia,
permanece fixo ou serviria de esteio para sobreposições que são acionadas por seus
agentes como resposta a certas pressões externas e contingências internas8.

Há ainda outro ponto de encontro imprevisto entre essas interpretações. Em


ambas há uma continuidade e uma identidade suposta e inquestionada entre “o Estado”
e a negação e/ou narrativa oficial, como se desse sujeito coletivo universal emanassem
os conteúdos, as agências e as práticas da negação ou das narrativas pós-eventos-limite.

6
Dixon fornece uma escala que organiza os conteúdos possíveis dos discursos pós-genocídio em dois
grupos que seguem. Um deles é o grupo (A) dos conteúdos descritivos, em que se sucedem negação,
mitificação, reconhecimento do evento, pelo reconhecimento do dano/declaração de arrependimento,
pela admissão da responsabilidade. O outro é grupo (B) dos conteúdos reparadores, que incluem a
desculpa, a reparação e a comemoração. C.f. Dixon, 2018, p. 14-19.
7
C.f., por exemplo, HOVANISSIAN, 2001.
8
DIXON, pp. 21-31
Na primeira, é “o Estado” turco quem sujeita unilateralmente a negação e os negadores.
A negação seria produto do “Estado” onde quer que fosse e quer como fosse. Diferente
da falsificação que dá corpo à negação e que, por isso mesmo, precisa ser demonstrada e
explicada, sua relação unilateral com o estado é geralmente construída como um dado
previamente construído e em algum grau evidente9.

Na segunda, essa continuidade ou identidade é alguma coisa mais


acentuada. Na verdade, é ela que fundamenta e informa as relações entre “agências” (os
agentes e as agências de estado) e as estruturas (o próprio estado, as normas e as
organizações internacionais etc.) na produção e na mediação da narrativa oficial, como
quer que seja, quando quer que seja. Essas relações entre “agências” e “estruturas” se
dão, por sua vez, entre a produção e a mediação da narrativa oficial. Elas se dão por
meio de uma homologia entre “Estado”/ “Agências de Estado”/ Burocratas/ Intelectuais/
elites militares etc. que são, em todos os casos, tomados e amalgamados como se
fossem um único sujeito das narrativas, das normas, das pressões internacionais, das
demandas nacionais etc.: o Estado mesmo10.

Na primeira versão, ainda que a falsificação que realiza a negação não seja
auto-evidente e precise ser demonstrado, sobretudo por seu caráter institucionalizado, o
lugar do Estado é o mesmo, sempre: ele é um dado. Do mesmo modo, mas por outros
caminhos, a segunda intepretação realiza uma homologia entre “o Estado” e “as
Agências de Estado”, “o Estado” e “os burocratas”, “o Estado” e “os intelectuais”, “O
Estado” e “a narrativa oficial”, “o Estado e as normas internacionais” etc.11

Nesse nível, ambas as interpretações reproduzem um certo finalismo, ou


melhor, para falar como Pierre Bourdieu, duas formas de finalismo: uma que vê certa
razão finalista no desenvolvimento histórico e uma outra, que atualiza um certo tipo de
individualismo metodológico que supõe que os agentes, inclusive esses coletivos e
abstratos como o Estado, calculam racionalmente suas ações segundo fins igualmente
claros e estabelecidos12. A essencialização, a homologia e o finalismo fazem
desaparecer, segundo seus próprios modos, a diversidade e a complexidade dos espaços
sociais, dos sujeitos e das práticas da negação. Elas não deixam ver ou não explicam as
9
HOVANISSIAN, 2011, DADRIAN, 1999.
10
DIXON, 2018, p. 15 ss.; _______. Defending the Nation? Maintaining Turkey’s Narrative of the
Armenian Genocide. South European Society and Politics, vol. 15, n. 3, Set. 2010, pp. 467-485.
11
HOVANISSIAN, Op. Cit.; DIXON, 2008, 2018.
12
BOURDIEU, P. O oficial e o privado. In:______. Sobre o Estado: Cursos no College de France (1989-
1992). São Paulo: Cia. Das Letras, 2014, p. 190.
relações entre eles, uma vez que, segundo ambas as interpretações, haveria uma lógica
ou uma “razão de Estado” imanente e universal que governa desde sempre a negação ou
a negação entre os conteúdos da narrativa oficial, que, por mais que pareça óbvio, só é
oficial porque é de Estado.

Em algum grau, e de seu próprio modo, esse mesmo problema está presente
em algumas interpretações sobre a negação do Holocausto. Refiro-me a três e
importantes exemplares dessa interpretação, que, afinal, variam em relação aos seus
conteúdos, mas são invariantes no seu núcleo: a negação, uma versão atualizada do
antissemitismo, é uma atualização do Holocausto. Primeiro, faço menção ao modelo
abstrato e funcionalista de Israel Charny, que define e explica a complexidade
tipológica, as causas e os efeitos da negação em termos de seus fins mais ou menos
inconscientes e que, por sua vez, culminam na definição da negação como atualização
simbólica do crime original. Segundo, a interpretação histórica de Deborah Lipstadt,
para quem a negação consiste no ato de falsificação da história e no uso ideológico da
falsificação: uma forma do antissemitismo, que busca se apresentar legitimamente por
meio de conteúdos e referencias falsos. Terceiro, à lista de histórias de vidas oferecida
por Stephen Atkins para demonstrar que a negação do Holocausto seria, como
falsificação e forma atualizada do antissemitismo, um movimento internacional13.

No caso do modelo heurístico de Charny, o resultado é o produto da soma


de análises individuais que explicam a ação humana em termos de desejos,
oportunidades e escolhas conscientes ou não, ingênuas ou não 14. No caso da
interpretação de Lispstadt, os agentes e os conteúdos da negação se determinam
unilateralmente ao longo do tempo15. No trabalho de Atkins, essa determinação mútua
ganha corpo por meio da coleção de biografias ou histórias de engajamentos sucessivos
que constituem o seu resultado. A negação e o seu caráter formal são deduzidas como
consequência final ou como um desdobramento imanente e necessário das histórias de
vidas que se definem unilateralmente por aquilo que elas fazem enquanto negadoras ou
pelo fim mesmo da adesão: se elas são produtoras, ou divulgadoras ou apoiadoras16.

13
CHARNY, 1998, 2002, 2003; LIPSTADT, D. Denying the Holocaust: the growing assault on truth and
memory. Nova York: Plume, 1993; _______. History on Trial: my day in court with a Holocaust denier.
Nova York: Harper & Collins, 2004; ATKINS, S. Holocaust Denial as an International Movement.
Westport: Praeger, 2009.
14
CHARNY, 2002, 2003.
15
C.f., por exemplo, LIPSTADT, 1993, pp. 107-125.
16
ATKINS, 2003.
O potencial generalizável do modelo de Charny, baseado na relação causal
entre intenções individuais, hábitos mentais, gradientes e tipos de negação, depende dos
seguintes pressupostos: a) de que a negação possa acontecer em diversos terrenos ou por
indivíduos com motivações e fins diferentes; e b) que essas motivações possam ser
deduzidas onde quer que elas se materializem. Nas interpretações de Lipstadt e de
Atkins, o contrário é verdadeiro: o princípio e o fim da negação são sempre ideológicos,
o que quer que isso signifique em termos de adesão política. Em todos os casos, a
negação parece acontecer em um vazio social. Para ser mais exato, ainda que Charny
suponha a ocorrência da negação em diferentes espaços, de diferentes formas e segundo
diferentes fins, e que Lipstadt e Atkins a definam como algo imanente à extrema-direita
do pós-guerra, ficamos sem saber que espaços são esses e que extrema-direita é essa.

Este trabalho não tem o objetivo de questionar outra vez a falsidade do texto
negacionista, nem no caso do genocídio Armênio, nem no caso do Holocausto. Não se
trata também de suspender os lugares e os papeis da Turquia, para um caso, e da
extrema-direita do pós-guerra, para outro. Nessa parte do trabalho, e para os fins deste
exame de qualificação, trata-se, antes, formular e oferecer respostas a essas questões ou
a essas vagas que identifiquei entre essas interpretações.

Quais são os espaços sociais da negação do Genocídio Armênio? Quais são


os do Holocausto? Como eles se constituíram em relação à negação? Em que e como se
eles se assemelham e se diferenciam nesse processo? Pretendo pelo menos começar a
oferecer respostas para esses problemas nesta primeira parte. Tratarei de demonstrar a
hipótese de que, mesmo em se tratando da Republica Turca ou da extrema-direita do
pós-guerra, trata-se de espaços diversos e tensos, dos quais a negação é, ao mesmo,
produto e produtor, objeto e instrumento de lutas pela definição desses espaços, e de
maneira mais ampla, pela definição das fronteiras do mundo social.

Tratarei de momentos particulares dos processos de formação dos espaços


sociais e da negação do genocídio Armênio e do Holocausto. Os limites da análise se
estendem entre aos anos 1950 e 1980, um espaço temporal que, em ambos os casos,
permite a explicação e a comparação tanto dos processos de formação, quanto dos
processos de mudança. No capítulo 1, tratarei do caso do genocídio Armênio; no
segundo, da negação do Holocausto.
Capítulo 1 – A “questão armênia” e o “mito dos seis milhões”.

Em 1988 apareceu na Turquia uma tradução para o inglês de um livro que


havia sido originalmente publicado em 1950. Tratava-se The Armenians in History and
the History of the Armenian Question (Os armênios na história e a história da Questão
Armênia), baseada na segunda e expandida edição de Tarihte Ermeniler ve Ermeni
meselesi, de Esat Uras, que havia saído um ano antes17.

Ambas, segunda edição e tradução, foram o produto da cooperação entre


intelectuais e burocratas ligados a órgãos do estado turco. A segunda edição e a
tradução foram editadas por Tulay Duran18. O texto da tradução foi preparado por
Süheyla Artemel (1930-2018). A segunda edição expandida foi lançada em uma série
comemorativa dos 50 anos da República Turca; a tradução foi publicada pela editora da
Divisão de Pesquisa e Publicações Históricas, da Fundação para o Estabelecimento e
Promoção dos Centros de Pesquisa Histórica e Documentação, com a supervisão do

17
URAS, Esat. Tarihte Ermeniler ve Ermeni meselesi. Ankara: Yeni Matbaa; Belge, 1951 (1987); ______.
The Armenians in History and the History of the Armenian Question. Ankara: Documentary Publications,
1988. Trad. Süheyla Artemel. A segunda edição, matriz da tradução para o inglês, é uma edição
estendida. Ela conta com uma introdução, com um prefácio do autor e com o texto original e/ou
traduzido para o inglês. A versão do texto transformada em fonte para esta pesquisa é uma edição
digitalizada da tradução para o inglês, que mantêm a estrutura da segunda edição. Entretanto, ela não
contém a introdução que, ao que tudo indica, enquadra o conteúdo do livro em uma história do que
seria o terrorismo armênio. Em fichas catalográficas de bibliotecas que contém as versões físicas dos
livros e em resenhas, a introdução da segunda edição e da tradução é creditada a Cengiz Kürşat. C.f, por
exemplo: CATALOG. Item DS175 .U713. Library of Congress [Online]. Disponível em <
https://catalog.loc.gov/vwebv/holdingsInfo?
searchId=17848&recCount=25&recPointer=2&bibId=3420380>, acessado pela última vez em
14/02/2021; JOSIAH. Item DS175 .U713. Brown University Library Catalog [Online]. Disponível em <
http://josiah.brown.edu/search~S7/o?SEARCH=ocm21597807>; WALKER, Christopher J. The Armenians
in History and the Armenian Question. By Esat Uras. An English translation of the revised and expanded
second edition, pp. Xiv-1048. Ankara, Documentary Publications, 1988. Journal of the Royal Asiatic
Society of Great Britain and Ireland, n.122, vol. 1, 1990, pp. 165-170. Resenha; SONYEL, Salahi R. The
Armenians in History and the Armenian Question. Journal of Islamic Studies, vol 1, pp. 174-176, 1990.
Resenha.
18
A pesquisa encontrou poucos dados biográficos sobre Duran. Sabe-se que ela se graduou e doutorou-
se em História Pela Univesidade de Istambul entre os anos 1960 e 1970; que ela professora assistente na
mesma universidade até meados dos anos 1980, quando foi trabalhar no Ministério da Cultura e do
Turismo. Sabe-se ainda que ela é professora aposentada do Departamento de História da Universidade
de Bogazici. Além disso, desde 1993 ela dirige uma organização nacionalista turcomenistã, a Fundação
Ayaz Tahir Turkistan, por meio da qual produz e participa de conferências sobre temas históricos
diversos e, entre outros programas educacionais, se dedica a financiar pesquisas e estudos em nível
graduação e pós-graduação através da concessão de bolsas de estudo. Em um artigo reproduzido em
um portal de notícias nacionalista, Duran fala sobre sua carreira. O artigo foi reproduzido junto à notícia
de protestos pela remoção de um busto de seu orientador instalado em uma universidade russa. Esse
professor teria sido uma espécie de tutor de Duran. c.f.: HABERINIZ. Ord. Prof. Dr. Zeki Velidi Togan’ın
büstünün kaldırılmasına yönelik protestolar devam ediyor. [Online] Haberiniz, 08/02/2021. Disponível
em < https://haberiniz.com.tr/dunya/ord-prof-dr-zeki-velidi-toganin-bustunun-kaldirilmasina-yonelik-
protestolar-devam-ediyor-08022021>; acessado pela última vez em 10/02/2021; esse mesmo portal
noticia uma de suas atividades na Fundação Ayaz Tahir Turkistan, c.f: KURBAN, Roza. Millet Anaları.
[Online] Haberiniz, 13/12/2019. Disponível em < https://haberiniz.com.tr/kose-yazilari/millet-analari-
13122019>, acessado pela última vez em 10/02/2021. Um outro portal nacionalista notícia a ocasião em
que Duran recebeu da direção do Rotary Clube um prêmio por reconhecimento profissional. C.f.:
TOPPRAKAYA, Kadir. Tülay Duran ve Sedat Öztoprak’a Rotary Üstün Hizmet Ödülü. [Online] Anadolu
Yakasi, 02/03/2016. Disponível em <https://www.anadoluyakasi.net/tulay-duran-ve-sedat-oztopraka-
rotary-ustun-hizmet-odulu/> , acessado pela última vez em em 10/02/2021.
Centro de Pesquisa de Istambul, órgãos do Ministério da Cultura e do Turismo da
República da Turquia (MCT)19.

Artemel era professora de Inglês e de Literatura Comparada na


Universidade de Bogazici quando trabalhou na produção de Armenians in History...20.
Nesse mesmo período, entre meados e finais da década de 1980, ela realizou outros
trabalhos para o MCT. Além da tradução do livro de Uras, ela traduziu para o inglês
uma coleção de trabalhos de natureza institucional que, aparentemente, visava a
promoção de turismo histórico na Turquia21.

Duran, ao contrário, era funcionária da instituição. Quando Armenians in


History... saiu, ela já havia publicado volumes de uma História do Império Otomano
pela mesma divisão do Ministério da Cultura e do Turismo. Até meados dos anos 2000,
ela dividiu uma posição como professora no Departamento de História da Universidade
de Bogazici com a presidência de uma organização educacional nacionalista e a
produção e/ou coordenação de livros, artigos, coletâneas de documentos, atlas
geográficos, etc. para a Divisão de Pesquisa e Publicações Históricas do MCT22..

19
C.f. Uras, 1988, p. 1-5.
20
Süheyla Artemel graduou-se pelo Departamento de Língua e Literatura Inglesa da Universidade de
Istambul e obteve seu doutorado pela Universidade Durhan, na Inglaterra, em 1966. Logo após o
doutoramento, Artemel ingressou como professora na Universidade de Bogazici, de onde se aposentou
em 1997. Desde o período de formação, ela travou e manteve contatos com círculos de intelectuais
nacionalistas turcos. Depois de sua aposentadoria, ela passou a integrar o quadro da Universidade
Yeditepe, uma instituição fundada e gerenciada por meio de uma fundação privada. Praticamente todos
os cursos em Yeditepe são oferecidos em Inglês. Seu moto reproduz o nacionalismo kemalista,
informado por valores seculares e modernizantes; por meio dele, a universidade é identificada como “a
Universidade que continua o renascimento de Ataturk”. Artemel fundou e foi chefe o Departamento de
Língua e Literatura Inglesa e foi diretora da Faculdade de Artes e Ciências da instituição. Depois de sua
morte, ela foi homenageada com uma série de conferências que leva seu nome. C.f. obituário escrito
por Martin Vialon, professor da Universidade de Yeditepe, publicado no sítio eletrônico do jornal diário
BirGün: VIALON, Martin. Süheyla Artemel, bir Türk hümanisti gitti. BirGun, 12/05/2018. Disponível em <
https://www.birgun.net/haber/suheyla-artemel-bir-turk-humanisti-gitti-215572?>, acessado pela última
vez em 12/10/2020 [tradução: Google Tradutor]. Em 2018, professoras e um doutorando da
Universidade de Bogazici organizaram Festschrift em homenagem à Artemel. A coletânea foi publicada
em uma edição bilíngue pela editora da Universidade. C.f.: BURÇOGLU, Nedret Kuran; TEKINAY, Asli;
YAZICIOGLU, Ozlem O; SARIAKA, Cafer (Orgs.). Profesör Süheyla Artemel' e Armağan; Tribute to
Professor Suheyla Artemel. Istambul: Boğaziçi Üniversitesi Matbaasında Basılmıştır, 2019.
21
Me refiro à coleção Ottoman Empire in Drawnings, publica em cinco volumes entre 1985 e 1988. C.f.:
MINISTRY of Culture and Tourism. Ottoman Empire in Drawings. Ankara; Istambul: Historical Research
Foundation; Istanbul Research Center, 1985; 1988. [ 5 Volumes]. Trad.: Süheyla Artemel.
22
C.f., por exemplo: DURAN, Tuley. Padisah Portreleri: Portraits of Ottoman Empire’s Sultans. Istambul:
The Historical Research Foundation, 1999. Vol 1. _______. (Ed.) The Ottoman Empire in the Reign of
Suleyman the Magnificent. Istambul: The Historical Research Foundation, 1988; ______.
C.f. também: HAZAI, Gyorgy. (Org.). Archivum Ottomanicum XIII (1993-1994). Vol. 13. Wiesbaden:
Harrassowitz, 1994, p. 119.
Quando Duran e Artemel trabalharam na segunda edição e na tradução de
The Armenians in History..., o autor do livro original já havia falecido há pelo menos 30
anos. Tarihte Ermelier... foi um produto tardio da carreira de Uras, que era um
destacado burocrata e político turco.

Uras se graduou em Ciência Política pela Universidade Ankara, entre o final


do século XIX e o início do século XX. Nesse período, a Faculdade de Ciências
Políticas era, ao mesmo tempo, um centro formador de elites civis turcas para o serviço
público do Império Otomano e um espaço de sociabilidade entre jovens nacionalistas
que integrariam o governo do Comitê para União e Progresso (CUP) e que, mais tarde,
se tornariam destacados agentes da República da Turquia23.

No período do cataclismo do Império Otomano, durante a I Guerra Mundial,


como muitos de seus colegas, Uras entrou para o serviço público no governo do CUP.
Ele serviu como administrador de província, diretor do serviço policial de inteligência e
foi chefe do Diretório Geral para Tribos e Imigrantes (General Directorate for Tribes
and Immigrants - Aşâir ve Muhacirîn Müdüriyet-i Umûmiyesi), uma agência do
Ministério do Interior criada para tratar das minorias étnicas do Império Otomano, por
meio da qual foram executadas e coordenadas as deportações e os massacres contra
populações armênias, entre 1915 e 1916. Ainda nos anos finais do Império, durante a
Guerra de Independência Turca, Uras também foi presidente de província24.

Da posição de chefe do Diretório Geral para Imigrantes e Tribos, Uras


coordenou a produção de um relatório que justificava o tratamento do governo unionista
às minorias. Esse relatório alegava que as deportações de armênios da Anatólia teriam
sido um instrumento de defesa contra supostas insurgências, um modo de mitigar uma

23
C.f.: FOSS, Clive. The Turkish View of Armenian History: a vanishing Nation. In: HOVANNISIAN, Richard
G. (Org.). The Armenian Genocide: History, Politics. Londres: MacMillan, 1992, p. 258, Cap. 11;
BLOXHAM, Donald. The Great Game of Genocide: Imperialism, Nationalism, and the Destruction of the
Ottoman Armenians. Nova York: Oxford University Press, 2005, p. 213; SUNY, Roald Grigor. Writing the
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M. A question of Genocide: Armenians and Turks at the end of the Ottoman Empire. Nova York: Oxford
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Idem, pp. 47-49. UNGOR, Ugur Umit. Turkey for the Turks: Demographic Engineering in Eastern Anatolia
1914-1945. In: Ibdem, p. 296; MAMIGONIAN, Marc A. Academic Denial of the Armenian Genocide in
American Scholarship: Denialism as Manufactured Controversy. Genocide Stduies International, n. 9, vol.
1, 2015, pp. 61-82; KALIGIAN, Dirkan. Anatomy of Denial: Manipulating Sources and Manufacturing a
Rebellion. Genocide Studies International, n. 8, vol. 2, 2014, pp. 208-223. GURPINAR, Dogan. The
Manufacturing of denial: the making of the Turkish ‘official thesis’ on the Armenian Genocide Between
1974 and 1990. Journal of Balkan and Near Eeastern Studies, vol. 18, n. 3, 2016, pp. 217-240.
24
Idem.
espécie de quinta-colunismo de grupos nacionalistas conspirados com o Império Russo
contra o governo o governo do CUP e o Império Otomano25.

Com a instituição da república, Uras foi acolhido entre as elites kemalistas.


Ele foi deputado do parlamento e membro vitalício da importante Sociedade Histórica
Turca, fundada pelo próprio presidente Mustafa Kemal Ataturk a partir da dissolução de
uma igualmente importante organização intelectual nacionalista, em 1931, para sediar e
coordenar a produção e a mediação dos discursos históricos nacionais26.

The Armenians in History... é um título justo ao seu conteúdo. É um livro


estruturado em cinco partes que se seguem como: I) Background (Antecedentes); II)
Reform and the Armenian Question (Reformas e a Questão Armênia); III) Political
Committees and Revolts (Organizações Políticas e Rebeliões); IV) From 1908 to the
end of First World War (De 1908 até a o final da Primeira Guerra Mundial); e V)
Peace, Sévres and Lausanne Treats (Tratados de Paz, de Sévres e Lusanne) 27.

Na primeira parte, Uras apresentou uma história das formas pelas quais “os
armênios” apareceram na história. Ele fez isso listando uma série de historiadores e
sumarizando uma série de histórias, das quais produziu dados sobre a geografia, sobre a
população, sobre as crenças, sobre a cultura e sobre a política armênia entre a
antiguidade e o período pré-otomano28. Os historiadores que ele listou seriam cronistas,
bardos e/ou membros do clero que teriam criados narrativas mitológicas sobre a
Armênia e os armênios entre os séculos II a.C e XII d.C, além de orientalistas europeus
que atuaram entre os séculos XVII e XIX resgatando tais mitos. Segundo Uras, os
primeiros seriam falsários e/ou ingênuos, enquanto os segundos teriam reproduzido suas
mentiras segundo os interesses das potências a que serviam.

Uras fez isso para mostrar que “os armênios” seriam uma unidade singular e
negativa, sobretudo em relação “a(os) turcos”. “Os armênios” não teriam uma história,
25
UNGOR, 2011, p. 296; GURPINAR, 2016, p. 219-220.
26
C.f.: KALIGMAN, 2014, p. 210; GURPINAR, 2016, p. 219.
27
Refiro-me a URAS, 1988, em que as partes têm a seguinte paginação: Parte I, pp. 225-366; Parte II,
pp.369-668; Parte III, pp. 671-829; Parte IV, pp. 833-1028. Esta edição conta ainda com uma longa
introdução em que se apresenta uma história do que seria o terrorismo armênio. A edição digital
transformada em fonte para esta pesquisa foi acessada por meio de um repositório digital do
Departamento de História da Universidade de Louisville, Kentucky – EUA. Ela é composta pelo prefácio
do autor e pelo texto traduzido de URAS, 1987, sem a introdução que é creditada a em fichas
catalográficas de bibliotecas que contém a versão física e integral da edição, é . Dessa forma, o livro
pode ser acessado em < http://louisville.edu/a-s/history/turks/the_armenians_in_history.pdf>. Por
limitações linguísticas e por adequação ao problema, apenas a tradução é fonte desta pesquisa.
28
não teriam um território originário e, portanto, não poderiam formar uma nação. A
história que “eles” afirmariam ter seria uma falsificação, uma coleção de mitos pagãos,
pérsios e católicos; eles seriam um povo errante, sem uma cultura, sem uma raça, sem
uma língua e sem uma população concentrada e que os distinguisse. “A história” “d(os)
armênios”, segundo Uras, teria sido desde sempre a história de objetos de dominação,
nunca a de sujeitos autônomos de um destino.

No livro de Uras, é essa visão que fundamenta a explicação das origens, dos
desenvolvimentos e das consequências da “Questão Armênia”, como ficou conhecido o
conjunto das demandas por autonomia no contexto das reformas modernizantes e
centralizadoras do Império Otomano e do envolvimento de potências europeias nesse
processo, entre meados e finais do século XIX e o fim do império. A história da
chamada “Questão Armênia” ocupa as quatro e mais substantivas partes subsequentes
do livro. Elas são compostas, sobretudo, por transcrições de documentos (textos legais,
correspondência diplomática, documentos administrativos etc.) do Império Otomano,
que são inseridos e dão sentido a uma cadeia de desenvolvimentos. Nessas partes, esses
documentos são dispostos como se fossem autossuficientes na descrição dos eventos,
cabendo ao autor, na maioria dos casos, apenas observações contextuais.

Entre documentos e notas, nessas partes do livro a sequência dos


desenvolvimentos se desenrola em três grades grupos de acontecimentos. No primeiro,
os armênios viviam em paz e prosperidade durante boa parte do domínio do Império
Otomano, até que parte de suas elites resolveu se rebelar e o Império Russo capturou
essa rebelião nacionalista, que se radicalizou ao ponto da instauração de uma espécie de
guerra civil, que, inclusive, recrutava outras minorias. A seguir, esses conflitos ganham
outra dimensão, na medida em que os armênios teriam começado a formar milícias e a
se juntar às forças russas durante a I Guerra Mundial. O próximo momento seria o da
capitulação do Império, a intervenção das potências ocidentais, a propaganda anti-turca
e o reconhecimento de um estado armênio soberano na Anatólia. Por fim, há o avanço
do movimento republicano turco contra essa suposta propaganda e contra essa definição
anti-turca do estado armênio por meio de instrumentos, organizações e tratados
internacionais, e, por fim, a anexação da Armênia à União Soviética.

Os eventos de 1915-1916 que configuram o genocídio e, portanto, os


processos, os julgamentos e os expurgos de alguns membros do CUP responsáveis pelos
crimes não existem nessa história, apesar de Uras ter sido ele mesmo um sujeito dela.
Não há menção às deportações, apenas às “emigrações e realocações”, que, aliás, dão
título ao quarto e pequeno capítulo da quarta parte do livro, em que Uras sugere que
esse tipo de mobilidade era característico da história armênia desde antes do Império
Otomano, uma ideia que compõe e justifica a crença de que os armênios nunca teriam e
nem poderiam ter formado uma unidade nacional como povo-estado-território.

Uras falou de 1915 como o começo de um período drástico para “os


armênios”. O caráter dos eventos que se seguem, entretanto, teria sido responsabilidade
“dos armênios”: uma consequência negativa da associação “deles” com o Império
Russo contra “os turco-otomanos”. Na história de Uras, nessa altura da guerra, os
exércitos russos teriam avançado sobre os territórios otomanos, ocupando-os e
deixando-os em situação de terra arrasada.

Os territórios onde grupos armênios viviam teriam sido especialmente


objeto desse tipo de ação, não só pela sua proximidade fronteiriça, mas de acordo com
um projeto russo de criar uma Armênia sem armênios na região da Anatólia. Assim, as
ações militares do Império Russo teriam sido a causa das “emigrações e realocações”
mais ou menos espontâneas dos armênios no Império Otomano, não a política de
homogeneização étnica do CUP.

As tragédias também aparecem em outros lugares e tempos. Na parte final


do livro, que trata do pós- I Guerra Mundial, elas estão diluídas em uma situação que é
dada a ver como a de uma guerra civil no meio de uma guerra internacional. Depois, nas
conjunturas dos tratados e acordos de paz e de transição, elas aparecem como
propaganda armênia anti-turca, mobilizada para convencer os Aliados e as potências
ocidentais a aderirem ao projeto de construção de um estado armênio na Anatólia.

Em linhas gerais, a história que o livro de Uras conta é uma história de


conspirações e decadência. Conspirações por parte dos armênios, do Império Russo e
das potências ocidentais; decadência do Império Otomano, que teria sido incapaz de
implementar de modo eficaz as reformas que poderiam ter resolvido os problemas das
minorias. Mas essa história de conspirações e decadência não é única. Ela é, também,
uma história “dos turcos” e uma história da República Turca, cuja instituição coincide
com o marco final resoluto e com o fim do livro.

A ideia de que o passado ou um passado comum é uma das condições para


que uma nação exista como tal atravessa e dá sentido à sequência dos conteúdos do
livro. Ela supõe que um passado comum seria aquilo que, antes de tudo, legitima a
existência de um povo enquanto nação e de uma nação enquanto estado. E aqui está a
lógica do jogo entre ausências e presenças, reproduzido no par oposto “os turcos”/os
armênios” (portanto, não turcos) que atravessa a história de Uras: o que é negativo em
um, é positivo em outro; o que falta em um, existe, naturalmente, em outro.

Não há indícios de que Uras tenha sido comissionado para produzir esse
material. Ele certamente era portador de títulos que o autorizavam à empreitada, como o
fato de ele ter sido um conhecedor da língua armênia, de ele ter participado da execução
do genocídio como alto burocrata do império, ou de ele ter sido um nacionalista. Mas
talvez esses títulos não pesem mais sobre as circunstâncias de produção do livro do que
a posição de Uras na Sociedade Histórica Turca e seu diploma de cientista político.

É possível, ainda, que, ao contrário do que sugere a historiografia, a evasão de


responsabilidade pelo crime não tenha sido a única intenção ou sequer tenha existido
para Uras. É verdade que a inexistência do extermínio no livro parece ser adequada a
um expediente que caracteriza a negação: se não há crime, não há responsabilidade.
Mas seria preciso relativizar essa explicação, já que qualquer que tenha sido a intenção
de Uras, ela deve ter sido plural e contingente.

Os julgamentos e a condenação de alguns dos integrantes do governo otomano


do CUP pelos crimes de 1915, entre eles o próprio Uras, serviram menos para imputar
responsabilidade do que para marcar, pelo menos discursivamente, uma ruptura
profunda entre o Império Otomano e a república kemalista dos primeiros anos, entre o
antigo/decadente/cosmopolita do império e o moderno/progressita/nacional do novo
estado etnicamente unificado e definido.

Com essa ruptura simbólica, membros das elites otomanas ligadas ao CUP
puderam ser incorporados ao novo regime, como, aliás, mais uma vez, foi o caso de
Uras. Também por meio dessa ruptura, pelo menos até meados de 1930, o passado
otomano deixou de existir, e, com ele, o dos armênios e de outras minorias. Eles só
voltariam a aparecer depois da morte de Ataturk, quando começou a haver algum
interesse pela história do império e essa história passou a ser também uma história
nacional, uma história turca, dos turcos – uma história da qual o livro de Uras é um
exemplar. De todo modo, os anos 1915-16 não existiam nessa história como o massacre
e deportação forçada das populações armênias do território otomano.
Os massacres e as deportações de armênios foram muito denunciados enquanto
aconteciam. Veículos de imprensa ocidentais noticiaram as violações. Representantes
dos serviços internacionais dos países Aliados notificaram o Império Otomano
publicamente por “crime contra a humanidade e à civilização”, em 1915, quando a
categoria jurídica de crimes contra a humanidade ainda não existia como tal. O então
embaixador Henry Morguenthau, que foi chefe do serviço internacional estadunidense
no império, relatou extensivamente as violações. Arnold Toynbee, famoso historiador e
membro do parlamento do Reino Unido, documentou e acusou internacionalmente os
crimes dos membros do CUP. Durante os tratados e acordos do pós-guerra, em Paris,
em Versailles, em Sèvres ou em Lousanne, os crimes foram amplamente denunciados.

Entretanto, no pós- I Guerra Mundial, as denúncias cessaram e não se falou


mais sobre os crimes durante muito tempo. A Armênia se transformou em uma
República Socialista Soviética, na Transcaucásia, em 1920. A república kemalista foi
instituída em 1923 e, em 1932, entrou para a Liga das Nações, o que projetou
internacionalmente seu sentido modernizante e ocidentalizante.

E mesmo em 1944, quando Raphael Lemkin criou o conceito de genocídio


como crime internacional ou quando, em 1948, as Nações Unidas instituíram a
Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, o caso dos armênios do
Império Otomano era um anátema. De fato, pouco tempo depois, no mesmo ano em que
o livro de Uras saiu, a Turquia aderiu à Convenção. Em todo caso, não havia pressões
por reconhecimento, por responsabilidade ou por reparação. Os massacres e deportações
de 1915-1916 eram um não-evento e ainda não eram um genocídio: não havia crime
para que um perpetrador pudesse justificar ou furta-se de sua responsabilidade.

Estima-se que o livro de Uras tenha sido uma resposta às demandas soviéticas
por territórios entre a Anatólia e a Transcaucásia. Desde 1936, era da Turquia o controle
da navegação no Mar Morto e do tráfego marítimo pelo estreito de Bósforo. Um tratado
multilateral, a Convenção de Montreux sobre o Regime dos Estreitos, regulava a
situação. Países bálticos, França, Reino Unido, Turquia e União Soviética eram
signatários da Convenção. Em 1946, quando venceu o Tratado de Amizade e
Neutralidade celebrado entre Turquia e URSS em 1925, o governo soviético impôs
como condição para sua renovação a concessão de territórios da Anatólia que teriam
pertencido à Geórgia e à Armênia. Esses territórios permitiriam à União Soviética
acesso ao Mar Morto e ao Mediterrâneo, além da alocação de armênios da diáspora que
haviam imigrado para a Armênia Soviética.

O plano soviético de anexação de territórios turcos falhou. Os EUA interviram


e, em 1952, a Turquia assumiu uma posição entre os países membros da OTAN. De
qualquer forma, e ainda que o tema das demandas soviéticas não apareça no livro de
Uras, a história da questão armênia que se conta por meio dele parece antecipá-las,
atualizá-las e oferecer uma longa perspectiva histórica para enquadra-las. Talvez sej

a por isso também que as deportações e os massacres de 1915-1916 não


existam em Tarihte Ermelier....

De todo modo, em 1950, os eventos de 1915-1916 praticamente existiam como


esquecimento. Em 1987 e 1988, quando saíram, respectivamente, a segunda edição e a
tradução para o inglês do livro de Uras, a situação era outras. O passado dos massacres e
das deportações que integram os processos que deram no genocídio armênio eram,
agora, objetos de disputas.

Um caso que talvez seja a exceção que confirma a regra é o livro de Raphael
Lemkin, Axis Rule in Occuppied Europe,

De modo que, quando a convenção das Nações Unidas que definia e tornava o
genocídio objeto da justiça internacional, a Turquia foi uma das primeira a assinar.

Uras não tinha

. Certamente, o fato de que ele conhecia o idioma armênio era um título de


autoridade, junto ao fato de ele ter sido um dos oficiais do CUP na execução do
genocídio entre 1915-1916. Esses dados, entretanto, não aparecem, já que as
deportações que Uras coordenou não existem na história contada por ele. A inexistência
dessa história pode ter a ver com alguma necessidade de ele se eximir de
responsabilidades, mas seria preciso relativizar essa intenção se ela existir. Afinal, os
julgamentos dos integrantes do governo do CUP, mais do que outra coisa, tiveram entre
seus objetivos o de fundar uma ruptura radical entre o Império Otomano e a República
Kemalista. E além disso, depois dos julgamentos, quase nada se falava sobre a chamada
“Questão Armênia” na Turquia; até os anos 1980, quando armênios apareciam em
trabalhos históricos na Turquia, regularmente eles apareciam como uma ausência, e,
portanto, como não tendo condições de reclamar parte alguma na Anatólia e, portanto,
como impossibilitados de formar um povo-estado-território.

Talvez essa ausência se deva menos à aparência de neutralidade dos


escritos, e mais às circunstâncias, que integram também a distância temporal, mas não
só elas. Demandas soviéticas do pós-guerra – o que pode ser deduzido da ênfase sobre
as conspirações dos armênios com os russos – governo democrático dos anos 1950,
nova reaproximação com o passado otomano, que é turquificado, pertence a um
universo de trabalhos

Em 1950, governo democrático, nova demanda e novo tipo de escritas sobre

A pergunta sobre o porquê de eles terem sido produzidos na década de


1950, e não antes se impõe.

De qualquer modo, o livro de 1950 não é o mesmo da edição inglesa de


1980, assim como o mundo não o é.

É consenso entre os historiadores que tratam da negação do genocídio


armênio o argumento de que o livro de Uras é uma espécie cânone. Segundo esse
argumento, a negação deriva ou reproduz os seus temas e estratégias de Tarihte
Ermelier.../ Armenians in history....

e o estabelecimento da autonomia relativa das minorias por meio dos


millets. Nesse sistema, “os armênios” teriam vivido em paz e prosperidade até a guerra
entre o Império Otomano e o Império Russo de 1877-1878 e termina em 1908, ano em
que o CUP ocupa o governo. Nesse período,

período em que as conspirações por autonomia teriam começado a se


radicalizar, segundo Uras, por fraqueza da própria administração imperial, que não teria
previsto essa radicalização como consequência possível das concessões feitas por meio
de uma constituição que regulava a autonomia dos armênios em relação ao império, da
propaganda anti-turca/otomana feita pelos armênios no ocidente e pela influência da
Russia.

A história da Questão Armênia de Uras ocupa 4 partes do livro e tem vários


episódios. Ela começa com a conquista otomana e o estabelecimento da autonomia
relativa dos armênios por meio dos chamados milets

Assim, depois de terem vivido anos pacificamente sob domínio Otomano,


os armênios que formavam minorias espalhadas, começaram a reclamar por autonomia,
na segunda metade do século XIX. O império teria atendido a essas demandas, mas os
armênios, não satisfeitos, teriam envolvido, potências ocidentais, o Império Russo e
outras minorias no que se teria se tornado uma contenda, marcada por insurgências,
motins e conspirações que seriam expressões da radicalização das demandas por
autonomia supostamente orquestradas por Moscou.

À primeira vista, essas operações de sentido poderiam nos indicar duas


coisas distintas e/ou logicamente derivadas. A primeira é que Armenians in History...
seria uma versão erudita do relatório que justificava as deportações enquanto elas
aconteciam. A segunda é que elas seriam, como justificação, uma das etapas do
argumento de que governo do CUP e, portanto, os turcos, não teriam responsabilidade
sobre o que aconteceu com os armênios entre 1915 e 1916. Entretanto, esses não
parecem ser o caso.

Os temas da insurreição, da conspiração e do quinta-colunismo são


recorrentes. Eles aparecem de diversas formas ao longo do tempo, mas nesse caso eles
são informados por um princípio particularista do nacionalismo turco. Esse princípio
está na chamada Tese Histórica Turca, uma das visões do passado produzidas e
comunicadas que encontrou na Sociedade Histórica Turca o seu lugar de produção e
mediação ampla e coordenada por meio da educação formal, de associações intelectuais,
de órgãos do Estado, da imprensa e de publicações variadas.
A Tese Histórica Tuca foi apresentada pela primeira vez em 1932, no
Primeiro Congresso de História Turca, organizada pelo Ministério da Educação para
discutir a atuação por meio da Sociedade Histórica e para apresentar as diretrizes para o
ensino de história. A tese era uma narrativa, uma coleção de discursos fragmentários
que forneciam uma explicação global sobre o que eram a Turquia e o Turcos. Segundo
ela, os turcos eram raça ancestral da Ásia Central que deu origem a que num passado
remoto se expandi e civilizaram desde o sul asiático até o mediterrâneo.

Entretanto, não parece ser esse o caso, ainda que os temas da insurreição e
da conspiração sejam recorrentes e ainda que, em ambos os casos, a visão “d(os)
armênios” como um unidade singular e negativa seja informada por um princípio
nacionalista e particularista.

Com alguma segurança, talvez seja possível sugerir que a continuidade


desse princípio e a recorrência dessa imagem no livro de Uras sejam, na verdade,
atualizações de temas ou tropos do conjunto fragmentário e diverso dos discursos
kemalistas sobre o passado que definiam a “Tese Histórica Turca”. Segundo essa “tese”

que foi uma utopia de passado turco-centríca, um conjunto de discursos


variados e fragmentários que compunham uma visão global do passado da República
Turca no processo de nacionalização e formação do estado – uma visão definida
sobretudo em relações ao Império Otomano, às minorias étnicas que viviam na Ásia
Menor/Anatólia, e às identidades turcas que, sendo islâmicas ou não, pelo menos no
período kemalista, eram diluídas e homogeneizadas em uma definição racista, secular e
modernizante da nação como uma personalidade nacional definida incialmente contra o
cosmopolitismo do império.

Mais precisamente, talvez seja possível sugerir que o trabalho de Uras


pertence à uma das etapas do processo

Essa visão global do passado foi construída em relação ao passado do


Império Otomano, às minorias étnicas tidas como não turcas e às identidades turcas que,
fossem elas seculares, modernas, ocidentais ou islâmicas, eram dissolvidas em uma
ideologia nacional racista. Talvez o livro de Uras seja um dos acontecimentos que
marcaram um processo de turquificação da história do Império Otomano que tem lugar
a partir da segunda metade dos anos 1930 e que se institucionaliza no final da década de
1940, por meio de intelectuais que, como Uras, eram ligados à Sociedade Histórica
Turca. Se até a década de 1930 os princípios kemalistas supunham uma ruptura com o
Império Otomano, como se ele fosse o sinal do atraso em oposição ao progresso da
república, a partir daí, “os turcos” passaram a ser sujeitos da história do Império – Uras
fala em império turco em diferentes partes do livro.

De qualquer modo, ainda que as versões do nacionalismo dos unionistas e


dos kemalistas sejam diferentes e, sobretudo no caso da última, variem ao longo do
tempo, Uras participou com outros membros das elites políticas/intelectuais que se
formaram entre o cataclismo otomano e a instituição da república.

Intelectuais cujos círculos eram os mesmos que o de Uras,

é o que fundamenta a explicação das origens, dos desenvolvimentos e das


consequências das demandas de armênios por autonomia e/ou participação e garantias
de direitos civis no contexto das reformas (Tanzimat) do Império Otomano, que
envolveram pressões de potências europeias, entre meados e finais do século XIX – a
chamada “Questão Armênia”. A história da Questão Armênia de Uras ocupa 4 partes do
livro e tem vários episódios. Ela começa com a conquista otomana e o estabelecimento
da autonomia relativa dos armênios por meio dos chamados milets

Assim, depois de terem vivido anos pacificamente sob domínio Otomano,


os armênios que formavam minorias espalhadas, começaram a reclamar por autonomia,
na segunda metade do século XIX. O império teria atendido a essas demandas, mas os
armênios, não satisfeitos, teriam envolvido, potências ocidentais, o Império Russo e
outras minorias no que se teria se tornado uma contenda, marcada por insurgências,
motins e conspirações que seriam expressões da radicalização das demandas por
autonomia supostamente orquestradas por Moscou.

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