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CARTAS DE AMOR

DE FERNANDO PESSOA
E OFÉLIA QUEIROZ

edição de
M ANUEL a P ARREIRA DA S ILvA

ASSÍRIO & A LVIM


No tA I N T R O D U T Ó R I A

Pela primeira vez, as cartas de amor de Fernando Pessoa e de


Ofé- lia Queiroz são apresentadas em edição conjunta.
O acervo reunido consta de 185 documentos datados ou
datáveis, incluindo cartas, postais e telegramas. Para além de dois
telegramas en- viados a Ofélia, por ocasião do seu aniversário,
em 14 de Junho de 1934 e 1935, e de um outro desejando boas
festas, emitido de Évora, no início de 1931, contam-se 51 cartas
de Fernando Pessoa, escritas entre 1 de Março de 1920 e 29 de
Novembro do mesmo ano, na pri- meira fase do namoro, e
entre 11 de Setembro de 1929 e 11 de Janei- ro de 1930, na
segunda fase. Da autoria de Ofélia, o número é signifi-
cativamente maior, distribuindo-se também por um espaço de
tempo mais alargado: 129 no total, além de dois telegramas de
parabéns, em 13 de Junho de 1933 e 1934, sendo a carta
(incompleta) mais antiga de 1919 e a última datada de 25 de
Dezembro de 1932.
A apresentação obedece a um critério cronológico, sendo a
transcri- ção das cartas feita a partir de fotocópias dos manuscritos
originais, cedidas pelos familiares dos dois interlocutores, a quem
nas pessoas da Senhora
D. Manuela Nogueira e da Senhora D. Maria da Graça Queiroz,
respec- tivamente sobrinha e sobrinha-neta de Fernando Pessoa e
Ofélia Queiroz, se agradecem as facilidades concedidas e os

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esclarecimentos prestados.
Como é sabido, as cartas de Fernando Pessoa foram objecto de
uma primeira edição, intitulada Cartas de Amor de Fernando Pessoa,
com orga-

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nização, posfácio e notas de David Mourão-Ferreira, e preâmbulo e
esta- belecimento do texto de Maria da Graça Queiroz (Lisboa:
Ática, 1978). O preâmbulo contém um importante e expressivo
depoimento da desti- natária das cartas, que conta o modo como
conheceu Fernando Pessoa e evoca alguns episódios do namoro.
Por sua vez, as cartas de Ofélia Quei- roz (1900-1996) foram
apenas publicadas já perto da sua morte, com o título Cartas de
Amor de Ofélia a Fernando Pessoa (Lisboa: Assírio & Al- vim,
1996) e organização e apresentação de Manuela Nogueira e Maria
da Conceição Azevedo. Estas duas edições foram tidas,
naturalmente, na devida conta, constituindo também fontes
fundamentais para o pre- sente trabalho.
Saliente-se, contudo, que esta edição conjunta insere, no
corpo do texto, vários postais e cartas que, na edição anterior das
cartas de Ofélia Queiroz, surgem apenas reproduzidos em fac-
símile (a título ilustrativo). Publicam-se ainda duas cartas inéditas
de Ofélia, datadas de 2 e 3 de Julho de 1920.
A ortografia foi actualizada segundo a norma vigente até à
entrada em vigor do último acordo ortográfico, mas não
completamente uni- formizada, atendendo às diferenças inerentes
a duas formas de escrita significativamente personalizadas, sendo
corrigidos os erros óbvios. No que diz respeito às cartas de Ofélia,
foi mantida, no geral, a pontuação ou a sua ausência. Apenas nos
casos em que, nomeadamente, a falta de vírgulas (muito comum
na sua escrita mais apressada) poderia criar al- guma
ambiguidade ou perturbação de leitura, houve acrescentos.
A data, aposta por vezes no final da carta, foi sempre deslocada
para o início, tendo em vista uma melhor percepção da sequência
cronológica.
Acrescentam-se algumas notas de rodapé de natureza
informativa ou explicativa, relativamente a acontecimentos e
personalidades men-
cionadas pelos dois interlocutores, assim como a alguns termos
usados em jeito de código amoroso. Tem-se, assim, em vista um
melhor en- quadramento histórico-social de uma relação afectiva
que, sendo em- bora mantida quase secreta (pelo menos por
Fernando Pessoa), se de- senvolveu num tempo e num espaço
quotidianos bem definidos.

Uma edição conjunta é também, cremos, a forma mais


adequada para dar a ler uma correspondência, que pressupõe
sempre um diálogo, uma interacção, a existência concreta de dois
interlocutores. Cada carta é, em si mesma, ou a resposta a outra
carta ou pretexto para ela. Até quan- do o destinatário opta por não
responder, de algum modo, o seu silêncio se inscreve na carta
seguinte. Assim, uma relação amorosa, sustentada epistolarmente,
como a de Pessoa e Ofélia, só é, na verdade, entendível quando os
dois discursos se cruzam e mutuamente se reflectem.
Esta edição permite, pois, ter uma noção mais justa do
alcance e importância desta troca epistolar, lembrando ao leitor
que é, precisa- mente, de uma verdadeira troca que se trata.
As chamadas cartas de amor de Fernando Pessoa têm sido,
não ra- ras vezes, lidas e interpretadas unilateralmente, mesmo
depois da publi- cação das cartas de Ofélia Queiroz. É como se o
poeta tivesse escrito para si próprio ou para uma interlocutora
fictícia, e não para uma pessoa de carne e osso, interveniente activa
no processo, quando não mesmo cata- lisadora da própria relação.
Ora, as cartas de Pessoa ganham, quando confrontadas e lidas
alternadamente com as da jovem Ofélia, o seu sen- tido pleno.
Passagens consideradas metafóricas, exercícios de estilo ou simples
«desconversas» de namorado entediado, tornam-se transparen- tes e
objectivas. A ideia comum de que estaríamos perante um namoro
platónico, sem réstia de erotismo, desfaz-se por inteiro. O jogo
amoro-
so é descodificado e percebe-se que Fernando não foi apenas o
«amante visual» de uma qualquer personagem literária chamada
Ofélia. Vemos, enfim, surgir um Pessoa diferente do outro lado do
espelho. Um Pessoa não só sujeito e manipulador da escrita, mas
um Pessoa indefeso, objec- to do discurso (e do afecto) de outrem,
personagem de uma história real. A presente edição permite
acompanhar mais de perto o desenro-
lar dessa história a duas vozes e a duas mãos, e medir o ritmo
cardio- gráfico de uma relação intermitente e por vezes
acidentada, com os seus picos de ternura e conflitualidade, com
os seus momentos de en- tusiasmo e de frustração. Deixa
também claro que o diálogo entre os dois namorados se vai
tornando, progressivamente, num quase-mo- nólogo de Ofélia,
num discurso cada vez mais inconsequente e solitá- rio, ainda
que nas suas cartas se faça ouvir o eco de breves encontros ou dos
escassos telefonemas de Pessoa.
Na realidade, o namoro foi bem mais duradouro do que é
costu- me considerar. Se exceptuarmos o interregno entre
Dezembro de 1920 e Setembro de 1929, Fernando e Ofélia
mantêm contacto desde 1919, ano em que se conhecem, até 1935,
ano da morte do poeta. Epistolar- mente falando, a ruptura
assinalada é apenas a ocorrida em 1920, não havendo qualquer
carta, no segundo período, em que, formalmente, algum dos
intervenientes dê por terminada a relação. Na última carta
conhecida, de 25 de Dezembro de 1932, Ofélia agradece por
escrito as boas festas que Fernando Pessoa, como se percebe, lhe
dera por telefo- ne. Aí, lembra, com saudade, a visita que ele
fizera a sua casa (isto é, à residência da sua irmã e do sobrinho,
Carlos Queiroz) no primeiro dia desse ano, depreendendo-se que
tinham deixado, definitivamente, de se encontrar ou de falar. A
partir dessa data, não deixam, porém, os dois de se enviarem
telegramas no dia dos respectivos aniversários.
Estamos, no entanto, em presença de duas fases do namoro
bem distintas, como desiguais são também, na sua globalidade, os
discursos dos dois correspondentes.
Na primeira fase, as cartas sucedem-se a um ritmo diário (às
vezes, carta e respectiva resposta no mesmo dia; às vezes, duas
cartas, ou uma carta e um postal no mesmo dia). É de uma
autêntica conversa que se tra- ta, conversa por escrito que dá
continuidade à conversa falada dos (quase sempre breves)
encontros quotidianos. O que liga uma carta à seguinte é uma
espécie de canal aberto à necessidade premente e permanente da
presença do outro, própria, afinal, de um estado de paixão. De um
lado e de outro, parece haver a mesma pressa, o mesmo
comprazimento e ale- gria na descoberta da sensualidade. O código
usado para designar gestos eróticos (ir «ao Pombal» e/ou «à Índia»,
por exemplo) — que passou des- percebido durante muitos anos,
devido ao ineditismo das cartas de Ofé- lia, e que, ainda hoje, tende
a ser interpretado de forma distorcida — dá conta de um namoro
talvez pouco convencional para a época.
Contudo, o entusiasmo de Pessoa arrefece mais cedo, como o
texto das suas cartas e sobretudo o texto ofeliano vão, aos poucos,
evidencian- do. A carta de ruptura que o poeta escreve em 29-
11-1920, pela sua densidade, pela sua seriedade e dramática
sinceridade, antecipa em mui- tos anos a afirmação de uma
incompatibilidade radical entre os dois. Esta é a carta que poderia,
de facto, ser a de uma despedida definitiva. Mas é somente a um
longo compasso de espera que assistimos.
Na segunda fase, a partir de Setembro de 1929, há um curioso
reacen- der da chama, embora se tornem apenas mais desiguais
os discursos dos dois interlocutores.
Se na primeira fase, as cartas de Pessoa apresentavam já, sem
dúvi- da, uma maior contenção, uma maior serenidade na vivência
afectiva,
por oposição à transbordante efusão sentimental de uma Ofélia
muito jovem, algo ingénua, algo atrevida nos seus arroubos de
ternura e na ver- balização erótica, temos agora um Pessoa menos
transparente e talvez menos sincero nos seus protestos amorosos, por
vezes perverso na forma como deixa que Ofélia se iluda. A
ingerência, cada vez mais insistente (para desespero de Ofélia), da
figura fictícia do antipático Álvaro de Campos é apenas um
sintoma de que algo se degrada na relação a dois. É, de certo
modo, um sinal mais de uma separação inevitável.
Por isso, às escassas cartas de Pessoa, que passa a preferir o
telefo- ne como forma de contacto, denunciando o desejo de um
compro- misso menos formal e comprometedor, ou mesmo de
um não-com- promisso, respondem as inúmeras e extensas
cartas de Ofélia. A vivacidade do seu discurso descuidado
transforma-se, pouco a pouco, numa «tagarelice» de quem não
pode fazer mais do que preencher um vazio e enganar,
pateticamente, o destino anunciado desde 1920.
Ofélia, jovem burguesa, cujo ideal de vida fica bem expresso
nas cartas aqui reunidas (um casamento com um marido de classe
média, uma casa remediada, uma domesticidade sem sobressaltos, um
passeio, uma ida ao cinema, de vez em quando) é, no entanto,
uma mulher in- teligente, hábil negociadora de afectos. Percebe, a
dada altura, que a obra literária do seu Fernandinho é aquilo que a
ele verdadeiramente in- teressa. Por isso, parece aceitar, em troca
de um resquício de esperança, ficar em segundo lugar, e esperar /
rezar pelo «milagre» de uma união que nunca acontecerá. As suas
últimas cartas tornam-se, de resto, signi- ficativamente mais curtas,
deixando transparecer um cansaço, um pro- gressivo desalento. E
os telegramas de 1933, 1934 e 1935 são isso mes- mo, telegramas
— palavras breves, breves lembranças de um encontro afectivo,
marcante, sem dúvida, na vida dos dois interlocutores.
Aos bebés costumam-se torcer as vontades para não ficarem
mal educados, não é? E como me chama bebé, nunca faço, nem
tenho o que desejo, faço e tenho, em geral, só o que os outros
desejam.
Afinal não me pesei para me não demorar mais. Agora vou
tomar a minha farinha e vou-me deitar. Ai se eu pudesse ser-lhe
boa… Olhe, já não gosto [de] si, pronto… Nem devia escrever-
lhe. Se não fosse para lhe dizer isto mesmo, nem lhe escrevia.
Até para o ano.
Hoje é que sou e estou
«VESPA»

PS.: Influência do 5 de Outubro!!

9-10-1929

Terrível Bebé:

Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto


de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel,
que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o Bebé
deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é
sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim,
e também porque é que havia de gostar, e isso mesmo, e torna
tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e

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gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão

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e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá
es- condidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a
ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a
fingir, e tornar mui- tas vezes, e ponto final até recomeçar, e
porque é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e
de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás
e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e
exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive
sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e
eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia
como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto
parece impossível ser escrito por um ente humano, mas é
escrito por mim

Fernando

9-10-1929

VIVA O ÍBIS QUE É MENITO, E É «MAROTO» E EU


GOS- TO MUITO DELE! VIVA!!
E ELE TAMBÉM GÓTA DE MIM QUE NÃO SOU
MENI- TA NEM «MAROTA» SÓ SOU DOCE, ISSO SOU!!
Fez bem em escrever-me, meu amor, estava triste! Já havia
seis dias que não recebia cartinha sua, e ontem para cúmulo de
infelicidade, não escreveu nem telefonou ao seu bebé. Estava tão
triste e tão aborrecida que achei melhor não lhe escrever. Para quê?
Iria também aborrecê-lo, e
quem sabe se também não estaria aborrecido com assuntos da sua
vida, e ia eu ainda aborrecê-lo mais. Uma carta alegre e de boa
disposição não saberia escrever-lhe, porque quando passou as 8h
eu tive que me con- vencer que me não telefonava já, não imagina
como fiquei. O Fernan- dinho, pela sua saúde, não veja nisto, um
simples capricho, e que por mo não satisfazerem fiquei irritada,
ou que eu queira exigir que o meu amor tenha a obrigação de me
escrever ou telefonar, não, não veja por esse prisma. É porque
gosto muitíssimo de si, queria poder tê-lo ao pé de mim, para o
ver, para lhe falar, para o afagar, e como nada disto pode ser, (sabe
Deus a pena que eu tenho) ao menos queria lê-lo com frequência, e
ouvi-lo, saber através do telefone da sua boa ou má disposição.
Ora os dias têm tantas horas, assim ausentes um do outro são
multiplicadas, e quando não sei nada de si um DIA INTEIRO,
calcule como devem ser, são intermináveis! São dias que eu
queria que não existissem.
E que sobressalto em que ando todo o dia! Cada vez que a
cam- painha do telefone toca, o coração dá-me um pulo, depois é
claro te- nho uma destas desilusões, fico nervosa para todo o dia.
Com a porta a mesma coisa, por este andar arranjo uma doença
cardíaca com certe- za. Eu não queria ser assim mas não me
posso dominar, sou d’um ner- vosismo incomparável, por vezes
não sou eu que falo, não sou eu que ando, não sou eu que
governo em mim, e do dia 9 do mês passado (faz hoje
positivamente um mês) dia em que tive a alegria de receber das
mãos do Carlos, a sua «Abélica» fotografia, não consegui sequer
um dia, estar absolutamente serena. O Fernandinho desarranjou-me
d’uma tal forma que só um dia voltarei a arranjar-me.
Faz hoje um mês que recebi o seu retratinho; no dia 12 que
rece- bi a sua primeira carta, que me encheu de felicidade; no dia
13 que nos falámos, que me cumulou de alegria.
Olhe, eu sou muito, mas mesmo muito, devota de N.ª S.ª
de Fá- tima, e foi portanto para mim um bom presságio a sua
primeira carta vir acompanhada de um jornalzinho «A Voz de
Fátima» vindo directa- mente de lá, e a primeira vez que nos
falámos, depois de tantos anos, foi no dia 13, dia de Nossa S.ª de
Fátima. Teve graça não teve? Portanto confio muito que, n.º 1,
nos há-de proteger. — Já lá fui cinco vezes, este ano é que não
fui lá vez nenhuma, e tenho pena de já não poder lá ir, gostei
muito de lhe pedir por si, e por nós, mas peço de qualquer par- te,
porque, n.º 2, ouve-nos de qualquer sítio que se peça132.
É verdade, lembrei-me agora que tenho que ir amanhã ao
colégio do tal pequenito que fui visitar no Domingo, tenho
que ir buscá-lo para ir com ele comprar-lhe sapatos, depois
vou levá-lo.
Devo sair daqui à 1h pouco mais ou menos, e vou apanhar o
car- ro da Estrela/Avenida na paragem que fica quase em frente à
Loja do Povo do Rossio. Se o meu querido amor, pudesse
aparecer e ir comigo, isso seria o ideal, se não pudesse ir ao
menos sempre o via e apertava-
-lhe a mão, e dava-lhe um beliscão (o beliscão é para rimar).
Não reparou que eu hoje não parecia a mesma ao telefone?
Sabe porque foi? Eu vou explicar.
Vieram hoje para cá as «tais tias», e gostam imenso de fazer
per- guntas, perguntam tudo, e de todas as vezes que para cá vêm
fazem as mesmas perguntas.
Já são umas poucas de vezes que me perguntam: então
menina, quando te casas? A minha resposta: eu sei lá, tia, no dia
de S. Nunca à tarde. Ah! mas tens namoro… continua ela ou elas,
não tenho, respondo eu com os olhos muito abertos. Vê lá se não
nos queres dizer!, ora essa,

132 Ofélia escreveu no cimo da carta —, «(tantos lás!)».


então não lhes dizia, acrescento eu muito airosamente; e isto dá-
se umas e tantas vezes quantas elas cá venham. Hoje tinha sido a
última vez, então a mais velhota, que é levada da breca: hum, aí
já anda moi- ro na costa. Isso sim, disse eu, ninguém me quer, —
pois sim, tu é que não queres dizer . Ó tia então eu não lhe dizia
(com uma vontade de rir cá por dentro) e passado pouco tempo,
quando eu ia dar-lhes de lanchar, toca o telefone, quando a mais
nova ia a passar mesmo ao pé do apa- relho, julgando que me
fazia um grande obséquio, atendeu e depois voltou-se para mim
com certo ar: o teu namorado chama-te. É claro eu queria dar à
conversa um ar mais simples, pelo menos evitar aquelas patetices
que lhe costumo dizer, eu estava cheia de vontade de rir, por ser
tão depressa desmascarada. Não sei se chegou mesmo a perceber,
mas ficaram desconfiadas, e a mais velhota que é muito peluda, e
por nada se melindra, não me mostrou o resto da tarde o mesmo
modo do costume. Mas eu fazia-me desentendida. Depois de se
irem embora é que eu ri à vontade. Isto, as pessoas velhotas
custam muito a aturar, como o Fernandinho, nem sei como o
passo aturar.
E a sua carta de hoje?! Ai que maroto, meu Deus! Ainda
bem que não sou a tal boneca… lá dos jinhos e a cabeça descaída
para os «pom- binhos», vá lá, está bem, mas fazer de criança
com a boneca, isso não, é mais complicado. Não tem vergonha
seu marotinho! Mas eu gosto tanto dele, e das ventinhas menitas
dele! não diga isso, coisas feias do Fernandinho, não? Não
gosto de ler, nem de ouvir, ele é meu, não é bonequinho?
Então o Fernandinho góta das minhas cartas, góta? não o
maçam? Elas são tão incorrectas, tão mal redigidas! mas o meu
amor não faz caso disso pois não? são muito sinceras que é o
principal. Esta vai lon- ga de mais e naturalmente maça-o. Eu
gosto também muitíssimo das
suas, portanto não esteja assim tantos dias sem me dar o prazer
de as receber, não? O Fernandinho às vezes gosta de me fazer
sofrer… Esta noite já não dormi tão bem como as anteriores,
estava tão triste sem saber nada de si, e depois acredite que
também fico em cuidados, às vezes podia ter-lhe sucedido
qualquer coisa, dum momento para o outro, acontecem os
trabalhos.
A minha carta hoje trata de tudo o que faz gostar de lhe
escrever e de lhe contar tudo. Recebi uma carta do Carlos em que
me pede para lhe dar lembranças. E a sua Ofelinha vai já deixá-
lo, vai tomar a fari- nha e vai para a caminha, ver se faz óózinho.
Não tenho quem me em- bale e eu sou tão pequenina, nem
quem me acompanhe, e eu tenho medo do papão!….
Adeus amor querido, muitos beijinhos da muito e muito
sua Ofélia

9-10-1929

Bebé fera:

Peça desculpinha de a arreliar. Partiu-se a corda do automóvel


velho que trago na cabeça, e o meu juízo, que já não existia, fez tr-
tr-r-r-r-… Logo a seguir a telefonar-lhe, estou a escrever-lhe, e
naturalmen-
te telefonarei outra vez, se lhe não faz mal aos nervos, e
naturalmente será, não a qualquer hora, mas à hora em que lhe
telefonarei.

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