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Claves n.° 5 - Maio de 2008


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© 2008 Programa de Pós-Graduação em Música da UFPB
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

CLAVES. – n.º 5 (maio 2008) – – João Pessoa: Programa de


Pós-Graduação em Música da UFPB, 2008 –.

Semestral.
ISSN 1809-9300

1. Música. I. Universidade Federal da Paraíba /Departamento


de Música.
3

SUMÁRIO

O tempo rubato na Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone


Fredi Vieira Gerling .............................................................................................................. 07

O piano a quatro mãos no Brasil


Marcelo G. Thys ..................................................................................................................... 20

A sonoridade vocal e a prática coral na Renascença: subsídios para a performance


Angelo José Fernandes e Adriana G. Kayama ...................................................................... 35

A performance falada de textos como ferramenta para o desenvolvimento da comunicação


e interpretação na regência coral
Rita de Cássia F. Amato ........................................................................................................ 52

A questão do ritmo em fontes portuguesas pós-tridentinas de cantochão


Tadeu P. Moreno .................................................................................................................... 63

Polytope de Persepolis: cenário sonoro anti-espetáculo


Namur M. Rocha ................................................................................................................... 75

Um exercício de paráfrase estrutural com base no Quarteto Op. 22 de Anton Webern


Liduino Pitombeira ............................................................................................................... 88

Resenha ......................................................................................................................................... 101

Normas para submissão de artigos ............................................................................................... 104

Guidelines to submit articles ......................................................................................................... 105


Claves n.° 5 - Maio de 2008
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EDITORIAL

Prezado leitor:
O conteúdo deste número se apresenta como um painel multifacetado em várias instâncias. Em primeiro
lugar, podemos citar a variedade de temas que contemplam as distintas subáreas da Música (composição,
educação, musicologias e práticas interpretativas): interpretação do ritmo no cantochão, sonoridade vocal e
prática coral na Renascença, análise da performance (aplicada à música brasileira), repertório brasileiro para
piano a 4 mãos, os Polytopes de Xenakis e uma proposta metodológica para o ensino de composição.
Assinam os artigos jovens autores e pesquisadores de carreira, desta vez com ênfase nos primeiros.
O artigo de abertura, do violinista e professor da UFRGS Dr. Fredi Gerling, se insere numa linha de
pesquisa recente e importante: a análise da performance. Visando à compreensão da modelagem do tempo
por diferentes intérpretes, o artigo se concentra na Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone.
Em “O piano a quatro mãos no Brasil”, o jovem pianista Marcelo Thys apresenta um panorama do
gênero na literatura musical brasileira, a partir da segunda metade do século XIX (época em que, segundo
ele, “a produção do gênero tornou-se mais significativa”). O autor apresenta 91 obras de 40 compositores,
dentre peças escritas originalmente para a formação, arranjos e transcrições.
Focalizando a sonoridade vocal e coral na música renascentista, o artigo assinado por Adriana Kayama
e Angelo José Fernandes tece considerações sobre o “ideal sonoro” vocal renascentista – a cor sonora, a
técnica de produção do som, os tipos de voz – para, finalmente, fazer sugestões pertinentes à construção da
sonoridade coral renascentista (abordando questões de dinâmica, fraseado e pronúncia).
É Rita de Cássia F. Amato, professora da Faculdade de Música Carlos Gomes e membro do grupo de
pesquisa “Música, Corpo e Ciência” (CNPq/ UFG), quem assina o artigo sobre “A performance falada de
textos como ferramenta para o desenvolvimento da comunicação e interpretação na regência coral”, no qual
relata e avalia uma experiência no ensino de Regência Coral.
“A questão do ritmo em fontes portuguesas pós-tridentinas de cantochão” é o assunto desenvolvido
por Tadeu Moreno, graduando do curso de Música – Produção Sonora na Universidade Federal do Paraná,
onde vem trabalhando com acervos de música sacra paranaense sob a orientação de Rogério Budasz. No
artigo, o autor demonstra a possível coexistência de diferentes abordagens rítmicas no cantochão em Portugal,
no período que se estende entre e 1618 e 1817. Seu estudo tem base em fontes dirigidas à prática litúrgica
do cantochão, que recomendam uma forma de cantar, a qual parece ser relativamente unívoca, no que diz
respeito ao ritmo.
Namur Rocha, mestrando em Música no Instituto de Artes da UNESP, desenvolve atualmente uma
pesquisa sobre “Relações estético-estruturais entre Música e Arquitetura (área de sua graduação), sob a
orientação de Flô Menezes. Em seu artigo “Polytope de Persepolis”, o autor aborda o espetáculo multimídia
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de Xenakis sob o prisma dos conceitos de M. Schafer e G. Debord sobre, respectivamente, “paisagem
sonora” e “espetáculo”.
O artigo final – “Um exercício de paráfrase estrutural a partir da análise do Quarteto Op. 22 de Anton
Webern” – é assinado pelo compositor Liduíno Pitombeira, recentemente integrado ao corpo docente do
Departamento de Música da UFPB. O objetivo maior desse texto não se encontra na análise parcial do
Quarteto Op. 22 de Webern, mas na demonstração de como a modelização parafrásica pode ser uma
ferramenta metodológica aplicável tanto em cursos de composição quanto de análise, possibilitando ao aluno
vivenciar, empiricamente, a estruturação musical.
Fechando o volume, a professora da UFPB Maria Guiomar de C. Ribas resenha o livro Educação
Musical no Brasil,1 um trabalho coletivo, no qual participam setenta e cinco autores de todos os estados
brasileiros e do Distrito Federal. Em cinqüenta e sete capítulos, o livro traça a trajetória da Educação Musical
no Brasil em épocas, espaços e contextos sócio-culturais distintos.
Esperamos que este painel eclético seja estimulante a futuros debates sobre os assuntos que deixamos
aqui em pauta.
Ilza Nogueira
Editor

1
OLIVEIRA, Alda; CAJAZEIRA, Regina (Orgs.). Educação Musical no Brasil. Salvador: P&A, 2007, 404 p.
Fredi Vieira Gerling - O tempo rubato na Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone (p. 7 a 19)
7

O tempo rubato na Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone1

Fredi Vieira Gerling (UFRGS)

Resumo: Com o intuito de compreender o processo de moldagem do tempo, o presente trabalho compara oito
gravações da Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone (1898-1986), concentrando-se na observação da
interpretação do tempo rubato.
Palavras-chave: Rubato. Moldagem do tempo. Análise da execução musical.

The tempo rubato in Francisco Mignone’s Valsa de Esquina N.2

Abstract: This article compares eight recordings of Francisco Mignone´s (1898-1986) Valsa de Esquina N. 2 in
order to study the tempo design employed to shape rubato by various performers.
Keywords: Rubato. Tempo design. Performance analyses.

Introdução
A escuta de gravações como parte da preparação de uma execução não é uma atividade fora do
comum; ao contrário, trata-se de uma prática bem disseminada. Certa vez ouvi uma renomada professora de
piano recomendar a seus alunos que ouvissem o maior número de gravações de uma peça para então copi-
arem aquilo que mais gostavam em cada uma delas, assegurando assim a originalidade do resultado. Tenho
certeza que a professora queria guiar seus alunos para algo mais do que uma colcha de retalhos de ritardandos
à Rubinstein e fermatas à Horowitz, que provavelmente não estariam presentes na partitura. No entanto, a
recomendação ilustra um método corriqueiro ao comparar gravações e utilizar os resultados observados.
Atualmente, existem vários pesquisadores trabalhando com alternativas bem mais sofisticadas do que
a abordagem ingênua descrita acima. O filósofo Peter Kivy, ao escrever sobre as características individuais
de cada interpretação diz:

Sabemos, no entanto, que o número de diferenças é muito superior do que as diferenças de dinâmica entre
uma execução de Casals e uma de Janigro, uma execução de Serkin e uma de Horowitz, uma de Toscanini e uma
de Bernstein: diferenças no agrupamento das notas, no fraseado, na respiração, na articulação, no valor da
pausa, no valor da nota.2 (KIVY, 1955, p. 133, tradução do autor)

Essas diferenças constituem a essência do que percebemos como interpretações singulares. Escuta-
mos gravações para entendermos como outros músicos, ao interpretarem a mesma partitura, atingem resul-
tados diferentes. Se isto é verdade, então por que não deveríamos copiar os aspectos singulares das execu-
ções de artistas tão renomados? Por que não podemos selecionar o que mais gostamos para criar a nossa
execução original?
1
Este artigo é um desdobramento da tese de doutorado do autor (GERLING, 2000).
2
“We know, however, that there are many differences other than those of dynamics between a performance by Casals and
one by Janigro, a performance by Serkin and one by Horowitz, a performance by Toscanini and one by Bernstein: differences
in note grouping, in phrasing, in breathing, in articulation, in rest value, in note value.”
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Ao discutir a autenticidade e a arte da execução, Kivy, argumenta com eloqüência que uma execução,
para ser artística, deve emanar

como uma “extensão” direta (por assim dizer) da personalidade do próprio artista, e não como uma imitação
derivativa do trabalho de outro artista. E [...] é somente através desta autenticidade pessoal que o artista pode
atingir duas das qualidades mais admiradas no trabalho artístico: estilo e originalidade. Se um artista [...] se
mantém verdadeiro aos seus próprios valores, gostos e intuição estética, [e...] se seus valores, gostos e
intuições forem interessantes e viáveis, seu trabalho pode resultar em um estilo individual, inconfundivel-
mente próprio, e também original. Mas se o artista segue as idéias alheias como um escravo, sejam quais
forem as qualidades admiráveis que sua arte possa ter, seu estilo será derivativo e suas obras não terão
originalidade.3 (Ibid, p. 123, tradução e ênfases do autor)

Se aceitarmos a posição de Kivy, ou seja, concordarmos que a cópia não produz nada além de uma
arte derivativa, porque deveríamos ouvir gravações? O que um executante pode aprender da gravação que
não pode ser aprendido na análise da partitura?
Esta pergunta nos leva a questões como: O que é uma partitura? Qual o tipo de dado que é codificado na
partitura? A partitura é uma prescrição para uma única execução verdadeira ou uma receita para múltiplas versões?
Cook responde a primeira destas perguntas afirmando que:

A partitura de uma obra musical, então, não é em sentido algum uma representação direta do seu som
musical, mas sim uma combinação de certas características do estímulo musical com aquelas elicitadas pela
resposta do ouvinte, e esta combinação se processa de maneira bastante informal.4 (1989, p. 154, tradução
do autor)

A discussão de Cook sobre partitura inclui, portanto, a resposta do ouvinte. Se uma partitura expressa
“certas características do estímulo musical” para o ouvinte, gravações como mídia têm a mesma função. A
questão aqui não é se o ouvinte gosta da interpretação de um artista mais do que a de outro; ao invés disto,
o que nos interessa nas gravações é que, sendo “uma representação do som musical” de uma obra, também
podem ser usadas como ferramenta complementar para a leitura da partitura. Cook questiona o real valor da
informação obtida em textos. Para ele, partituras não são

uma representação objetiva dos dados musicais. Por um lado [partituras] não podem ser relacionadas ao som
físico da música, a não ser por meio de algum tipo de análise contextual que envolve atribuições psicológicas
de alturas; mas por outro lado não são mais do que um guia aproximado dos julgamentos de alturas que
ouvintes e executantes na realidade fazem, de forma que uma análise dedutiva da partitura revela mais sobre
as propriedades da notação do que sobre dados específicos da música em questão.5 (Ibid., p. 207, tradução
do autor)
3
“As a direct ‘extension’ (so to say) of the artist’s own personality, rather than a derivative imitation of some other artist’s
work. And . . . only through such personal authenticity can the artist achieve two of the most admired qualities of works of
art: style and originality. If an artist. . . is true to her own values and tastes and aesthetic intuitions, [and] . . . her values and
tastes and intuitions are interesting and viable ones, her works may turn out to have an individual, unmistakable style all
their own, and be original ones as well. But if she slavishly follows the works of others, whatever other admirable qualities
her artworks might have, their style will be derivative, and they will be unoriginal works.”
4
“The score of a piece of music, then, is in no sense a direct representation of its musical sound but rather combines certain
characteristics of the musical stimulus with those of the listener’ s response, and combines them in a quite informal manner.”
5
“an objective representation of musical data. On the one hand they cannot be related to the physical sound of music
except by means of some kind of contextual analysis involving psychological attributions of pitch; but on the other hand
they are no more than an approximate guide to the judgments of pitch performers and listeners actually make, so that the
deductive analysis of a score probably reveals more about the properties of notation than the particular music in question.”
Fredi Vieira Gerling - O tempo rubato na Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone (p. 7 a 19)
9

Se é verdade que as partituras oferecem apenas uma guia para as execução de ritmos e alturas,
também é verdade que elas contêm informações fixas, que nos permitem estudar como esses parâmetros são
executados por diferentes intérpretes. Por exemplo, podemos entender muito mais sobre as concepções de
ritmo e afinação de Heifetz através de suas gravações do que por meio de um exame de suas partituras pessoais.
As possibilidades do estudo de gravações ampliam-se quando consideramos outros parâmetros musi-
cais. Para Cook,

quando um compositor escreve música, ele está se colocando em uma posição de forte dependência do
ouvido musical e da imaginação de seu leitor, que irá suprir com precisão os valores intervalares, rítmicos e
dinâmicos que a notação omite, assim como ele precisa contribuir para os valores sonoros, dramáticos e
emocionais que não podem de forma alguma serem especificados na partitura.6 (Ibid., p. 227, tradução do autor)

Para que possamos detectar e compreender as sutis diferenças na leitura da partitura que resultam em
diferentes interpretações descritas por Kivy, precisamos ter em mente que a comparação de gravações não
irá garantir respostas definitivas – a não ser que queiramos copiá-las – mas podem oferecer apoio valioso na
compreensão da mudança de gostos e convenções no decorrer do tempo. Podemos também estudar as
características individuais de um executante, ou os elementos comuns de estilo de um período ou de uma
escola de execução. Compreender o que faz uma execução “original”, ao invés de copiar, pode contribuir
para que um executante formate seus valores, gostos e informe sua intuição estética, que, por sua vez, poderá
levar a um estilo individual.
O número crescente de estudiosos que comparam gravações indica que existe, de fato, um vasto
conhecimento a ser ganho através deste recurso. Seus artigos não se constituem apenas em críticas para
revistas especializadas em CDs. A análise de gravações desenvolve e aprofunda assuntos tais como: Por que
executantes devem estudar gravações? As indicações metronômicas de tempo na partitura devem ser segui-
das tão fielmente quanto as indicações de valores e alturas?
O estudo das diferenças estilísticas através do tempo, o que coloquialmente chamamos de “estar na
moda”, e o estilo específico sugerido por um gênero musical ou por títulos sugestivos são duas áreas que
considero ricas em oportunidades para o pesquisador. Títulos como Valsa de Esquina, Tango Brasileiro,
Impressões Seresteiras, Choro Torturado entre tantos outros, sugerem estudos para localizarmos se há
alguma influência destes adjetivos modificadores do núcleo do título na execução. A valsa de esquina tem
semelhança com a valsa vienense de Strauss ou com as valsas de Tchaikovsky? Melhor dizendo, o que a faz
uma valsa ser brasileira?
Elementos como articulação e dinâmica são difíceis de quantificar, mas as variações de tempo são
mensuráveis com bastante facilidade com um computador. Segundo Bowen (BOWEN, 1996b), torna-se
difícil avaliar os aspectos singulares de uma execução, porque muitas decisões são influenciadas por conven-
ções de estilo e tradição, não por escolha individual. A decisão de iniciar um a tempo antes ou depois do
ponto indicado, por exemplo, pode estar baseada em múltiplas opções interpretativas ditadas pela tradição

6
“When a composer writes down music he is relying heavily on the reader’s musical ear and imagination in supplying the
precise intervallic, rhythmic and dynamic values that the notation omits, just as he has to contribute sonorous, dramatic and
emotional values that cannot possibly be specified in the score.”
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daquela passagem em particular. Ele propõe que pesquisas devam focalizar mais nas práticas de execução e
menos no texto, em outras palavras, o que os contemporâneos de uma obra valorizaram na execução. Ele
aborda a questão da variabilidade de execuções num determinado período estilístico com uma analogia do
sotaque que caracteriza a linguagem de uma região específica, ou ainda o sotaque que identifica o estrangeiro
(BOWEN, 1996a). Podemos entender isto se considerarmos que nosso próprio sotaque soa natural para
nós – os outros é que soam estranhos. Por isto, os executantes de nossa época soam naturais, enquanto
percebemos nos mais antigos variados graus de “sotaques”. Ao estudar textos musicais, nós dificilmente
podemos determinar o “sotaque” particular que teria matizado uma execução, mas as gravações antigas ou
de diferentes épocas e culturas oferecem uma variedade de “sotaques” para comparação. Continuando com
a analogia da linguagem, Bowen nos lembra que o aprendizado de uma nova língua abre portas em ambas as
direções. Aprende-se que existem maneiras alternativas para a expressão de idéias.
Esta questão do “sotaque” é muito apropriada ao estudo de obras com características nacionalistas,
pois podemos estudar como vários interpretes imprimem “sotaques” diferentes, dependendo de sua forma-
ção ou de estilos próprios. O trabalho aqui apresentado é um estudo comparativo de oito interpretações da
Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone. Através da observação das variações de tempo,7 procurei
entender como o “sotaque” dos diferentes executantes colore a realização desta obra, cuja partitura tem
fartas indicações de rubato e caráter. Que o rubato é decisivo na execução desta valsa fica evidente assim
que ouvimos mais de uma interpretação. Foi a curiosidade de ver como cada interprete molda sua concep-
ção temporal que me levou a considerar esta obra como o objeto deste estudo.
Epstein considera que o pulso estável é também um fator no tempo rubato. O fraseado aparentemente
livre do rubato é justaposto a uma matriz periódica estabelecida pelo pulso. O rubato na frase, então, é
ouvido e compreendido a partir do desvio do pulso e subseqüente retorno em fase com o pulso; o processo
é duplo, portanto, com sistemas temporais acoplados que correm em paralelo.8
As interpretações estudadas da Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone são uma excelente via
para estudarmos este processo. Não é meu objetivo escolher a melhor ou a mais fidedigna realização da
partitura e sim observar a moldagem do tempo de cada intérprete, verificando os graus de desvio entre as
interpretações. Acredito que este procedimento é uma ferramenta poderosa para a tomada de decisões
interpretativas em questões de tempo. No caso da Valsa de Esquina N.º 2, pode-se ainda constatar que
grande parte do “sotaque”, especialmente na versão do compositor, está ligada a elementos de articulação
que, embora difíceis de quantificar, podem ser facilmente assimilados quando colocados vis-à-vis com os
gráficos da estrutura de tempos de cada versão.
Quando músicos se reúnem para tocar em conjunto, a primeira pergunta, geralmente, é: Qual o seu
andamento para esta peça? Esta pergunta evidencia a importância que atribuímos ao tempo na execução
musical. O tempo é a tela do músico. É o nosso espaço. Podemos mudar de maneira dramática o caráter de
uma idéia musical ao mudarmos seu andamento e, conseqüentemente, o segmento temporal que ocupa.

7
Prefiro o termo tempo e não andamento, pois considero que a idéia musical existe em um segmento do tempo real, enquanto
andamento é apenas uma indicação da velocidade do pulso.
8
EPSTEIN, 1995, p. 449.
Fredi Vieira Gerling - O tempo rubato na Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone (p. 7 a 19)
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Como a manipulação do tempo determina a nossa percepção do caráter da obra? Esta é pergunta que
motiva o estudo desta Valsa de Esquina.
Num primeiro momento, ao ouvirmos uma série de versões de uma mesma obra, formamos uma
opinião subjetiva. Algo como “gosto mais de A do que de B”. Se conhecermos bem a obra, esta visão é
sempre tendenciosa: gostamos mais daquela que melhor se aproxima da nossa idéia. Este é o cenário dos
leigos que, ao ouvirem um concerto ao vivo, gostam se a versão apresentada é parecida com a do disco que
têm em casa. Acredito que nós, como músicos e, portanto, profissionais do tempo, temos que ser mais
objetivos. Ao gostarmos mais de A do que de B, devemos buscar as razões do porquê isto acontece e, ainda
mais adiante, se estamos corretos em gostar mais de A ou estamos partindo de um pré-conceito sem funda-
mento adequado. É neste contexto que, ao estudarmos diferentes versões e cotejá-las com a partitura,
podemos buscar o aprimoramento de nossas ferramentas analíticas e concepções críticas. Como disse ante-
riormente, não pretendo estabelecer a melhor realização desta obra e sim as bases de como comparar as
execuções para que cada ouvinte possa fazer suas escolhas. Não estou dizendo com isto que qualquer
versão é correta. Apenas reconhecendo que existe uma latitude para a realização temporal de uma partitura
e que existem critérios objetivos, pelos quais podemos dizer por que preferimos esta ou aquela versão.

Análise das gravações


A Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone, originalmente escrita para piano, é composta na
forma ABA. Neste estudo apresento apenas a seção A da versão para violino e piano realizada pelo compo-
sitor. Embora as sutilezas e nuances presentes na seção B e as possíveis diferenças no retorno da Seção A
também sejam de interesse, abordá-las neste trabalho seria fugir do escopo de um artigo.
A Seção A tem 32 compassos repetidos. Nas gravações aqui comparadas, o compositor e um dos
intérpretes não realizam a repetição. Embora o foco das comparações sejam as versões para violino e piano,
incluímos a execução do compositor, pois consideramos que uma versão do próprio autor, embora não
prescritiva para futuras leituras, é sempre uma fonte relevante de informação.
As gravações utilizadas são de violinistas em recitais ou em gravações comerciais. Embora a qualidade seja
desigual, é perfeitamente possível comparar as flutuações de tempo e a variedade de articulação – em especial dos
pianistas. Neste estudo as gravações são identificadas apenas por letras. Uma vez que a versão do compositor é a
única de piano solo, não há porque manter o anonimato; nos gráficos a seguir, é identificada pela letra E.
Os gráficos apresentados a seguir foram obtidos com o programa Tempo © 1994 de James Davis.
Este programa tem a vantagem de ser utilizável por músicos sem grande conhecimento de computação. Os
dados são obtidos pela técnica de regência reversa, ou seja, marcando o tempo em uma tecla do computa-
dor enquanto ouvimos a gravação. Há sempre a necessidade de algumas tentativas de ensaio para reagir
corretamente às mudanças de andamento de cada gravação em processo semelhante a um ensaio de música
de câmara. Os dados são obtidos em um arquivo de texto, com valores que expressam cada pulso do
compasso e a média do tempo por compasso. Os dados por pulso são utilizados para entender a flutuação
do rubato dentro de cada compasso, enquanto a média de tempo por compasso é útil para uma visão da
concepção de tempo na projeção da estrutura formal.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
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O gráfico a seguir oferece uma visão geral do tempo por compasso da seção A das oito gravações compa-
radas da Valsa de Esquina N.º 2.

Gráfico 1 – Análise do Tempo da seção A, por compasso, de todas as gravações.

A partitura da Valsa de Esquina N.º 2 para violino e piano traz entre parênteses a indicação de semínima =
108. Podemos constatar no gráfico acima que nas gravações comparadas o tempo inicial varia de aproximada-
mente semínima = 50, do próprio compositor (intérprete E), até por volta de semínima = 100 no caso dos
intérpretes H e D. Estas gravações são as que mais se aproximam do tempo indicado. Podemos questionar que,
se o próprio compositor não segue esta indicação de tempo, existe a probabilidade de que ela seja espúria. Esta
valsa tem várias indicações de acelerando que podem ser nitidamente visualizadas no gráfico acima. Se compa-
rarmos o tempo mais lento e o mais rápido de cada versão, vemos que o compositor é o que tem maior latitude,
atingindo a marca de semínima = 230 no compasso 27. Por outro lado vemos que a versão F é a que tem a
menor flutuação. Outra observação é que à exceção do compositor, todos os demais atingem por volta do
dobro da velocidade inicial no ponto mais rápido. O acelerando do compasso 27 é o único em que todas as
versões coincidem. É digno de nota que, entre aqueles intérpretes que repetem este trecho, não há a mesma
unanimidade na segunda execução. As versões A, B, C e H atingem o ápice no compasso 59 enquanto D e G
(que não realizam a repetição) alcançam-no um compasso depois. Considero que esta diferença está relaciona-
da com a continuação da peça, mas só um exame detalhado da seção B poderia confirmar esta hipótese.
A superposição dos gráficos mostrada acima é importante para vermos com clareza os pontos extre-
mos da concepção de cada versão. Uma visualização mais detalhada pode ser obtida examinado os gráficos
por seções de oito compassos em comparação com os respectivos exemplos musicais.
Fredi Vieira Gerling - O tempo rubato na Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone (p. 7 a 19)
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Exemplo 1 – Valsa de Esquina N.º 2, comps. 1 – 8.

Gráfico 2 – Tempo por compasso, comps. 1 - 8.

No gráfico acima podemos ver como a indicação de rubato no compasso 4 é interpretada como
acelerando em A e como ritenuto pelos demais. Podemos ver com clareza que A, D e E aceleram em
direção ao compasso 9, enquanto os demais diminuem o andamento. É digno de nota que o compositor
antecipa o affrettando indicado no compasso 10 da partitura para piano já para o compasso 8, o que
explica o grande ímpeto de seu acelerando. A partitura para violino e piano tem a indicação de affrettando
no compasso 11, o que poderia explicar porque a maioria dos violinistas termina a frase mais lentamente.

Exemplo 2 – Valsa de Esquina N.º 2, comps. 9 – 16.


Claves n.° 5 - Maio de 2008
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Gráfico 3 – Tempo por compasso, comps. 9 - 16.

Na seção que vai do compasso 9 ao 16 podemos ver que A e E consideram o compasso 11 como o
mais rápido, enquanto B, C, D, F e H atingem o clímax do affrettando no compasso 13. G é o único a atingi-
lo no compasso 12. Onde encontramos unanimidade é na diminuição do andamento para realização do
crescendo. Outros fatores dignos de nota são a pausa de semicolcheia e o cedendo e allargando no com-
passo 15 e o rubato no compasso 16. A tabela abaixo mostra os compassos 15 e 16 pulso a pulso.

Tabela 1 – Compassos 15 e 16, pulso a pulso.

No gráfico acima podemos visualizar a cesura no 1º tempo do compasso 15 quando vemos que os
valores na coluna correspondente ao 2º tempo são bem mais altos. Há, portanto, uma retomada do tempo
para o subseqüente rallentando. Constatamos também que D e G têm a maior diferença entre o 2º e 3º
tempo do compasso 16, sendo que a diferença de semínima = 140 para semínima = 24 de D decorre de uma
grande respiração antes da volta do tema.
Fredi Vieira Gerling - O tempo rubato na Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone (p. 7 a 19)
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Exemplo 3 – Valsa de Esquina N.º 2, comps. 17 – 24.

Gráfico 4 – Tempo por compasso, comps. 17 - 24.

Os compassos 17 a 24 contêm a volta do tema inicial. É interessante, portanto, compararmos se há


diferenças entre as duas apresentações do mesmo material temático. Ao compararmos os gráficos, vemos que
embora a direção rítmica da frase seja a mesma, há uma variedade significativa de nuances. Para visualizar mais
claramente estas diferenças, colocamos lado a lado os tempos de cada versão na tabela abaixo. Para cada
intérprete, a coluna esquerda se refere à primeira execução (comps. 1 - 8) e a segunda coluna, à repetição
(comps. 17-24). Podemos constatar que nenhum dos intérpretes executa as duas frases nos mesmos tempos.
Chama a atenção que Mignone (E) acelera de semínima = 51 para semínima = 65 do 1º ao 2º compasso da
primeira vez, mas diminui a velocidade de semínima = 54 para semínima = 43 na repetição. Todos os demais
mantêm um aumento de velocidade do primeiro para o segundo compasso do tema na segunda vez.

Tabela 2 – Comparação dos tempos dos compassos 1 - 8 e 17 – 24.

O Gráfico 5 mostra o tempo nos compassos 25 a 32. Podemos ver que apenas A e B diminuem o
tempo no final da frase. No entanto, como estes tempos são a média dos três pulsos do compasso e há a
indicação bem arrastado na partitura, temos que examinar estes compassos em maior detalhe.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
16

Exemplo 4 – Valsa de Esquina N.º 2, comps. 25 – 32.

Gráfico 5: Tempo por compasso, comps. 25-32.

No Gráfico 6, podemos ver que o ponto mais lento nas interpretações dos violinistas é o primeiro
tempo da casa 1 no compasso 31, a exceção sendo F, que o atinge no 3º tempo do compasso 30. Para
Mignone o ponto mais lento acontece no 3º tempo do compasso 31. Vemos que nesta seção o tempo rubato
é bem variado com acelerandos e ralentandos utilizados por todos os intérpretes. A grande diferença que
podemos constatar entre as versões E e F decorre do fato de estes intérpretes não repetirem este trecho ––
este último compasso é na realidade a casa 2.

Gráfico 6 – Tempo pulso a pulso, comps. 30 - 32.


Fredi Vieira Gerling - O tempo rubato na Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone (p. 7 a 19)
17

Como mencionamos acima, Epstein considera que o pulso estável é parte integrante do rubato. É a
partir da percepção de um tempo estável que percebemos os desvios do pulso que então classificamos como
rubato quando são adequados à música e como descontrole, quando a atrapalham.
Nos gráficos até aqui apresentados fica evidente que há uma flutuação constante do pulso em todas
as versões. A pergunta que cabe neste momento é como se comporta a nossa percepção de pulso estável
nestas circunstâncias. Para termos uma idéia mais clara deste parâmetro, apresento a seguir os gráficos
individuais por pulso de cada versão separadamente. No Gráfico 7 podemos ver nitidamente que as grava-
ções A, B e C apresentam um pulso mais constante entre os acelerandos enquanto em G as flutuações são
mais constantes e mais amplas.

Gráfico 7 – Tempo por pulso de todas as gravações.


Claves n.° 5 - Maio de 2008
18

Conclusão
A escolha do tempo é determinante para o caráter de cada uma destas gravações, como fica evidente
ao ouvirmos mesmo que só o inicio de cada uma delas, mas não podemos deixar de mencionar que fatores
como articulação, dinâmica e sonoridade têm uma influência muito marcante na nossa avaliação de cada execu-
ção estudada. Se, de um lado, a concepção da peça e os valores estéticos do artista determinam sua execução,
no lado oposto, o ouvinte baseia sua apreciação no seu próprio conhecimento musical e valores estéticos.
Sempre me recordo de Esther Scliar que ensinava que o “gosto depende da informação que se tem”.
Ao ouvirmos as diferentes gravações desta obra, o caráter de cada versão é percebido com nitidez.
Isto se dá pela aplicação dos valores estético-musicais mais significativos para cada intérprete. Podemos
perceber que há uma preocupação maior em estabelecer um equilíbrio do tempo nas versões A, B, C e H.
Podemos ver que D imprime um caráter mais leve, jocoso, com tempos mais rápidos e é relevante mencionar
a adição de ornamentos que não estão presentes na partitura. Já as versões F e G valorizam o aspecto mais
livre da obra, explorando a sonoridade do violino através dos glissandos e vibrato. Chama atenção a
maneira característica com que Mignone (E) executa as tercinas no baixo do 1º compasso. Sua inflexão
lembra o dedilhar do violão acompanhando uma seresta – um exemplo claro de “sotaque” característico que
não pode ser notado na partitura e que é assimilado ao ouvirmos gravações. Um estudo poderia ser feito só
das articulações dos pianistas em cada versão, assim como dos estilos de vibrato e produção sonora dos
violinistas.
Diante do acima exposto, seria muito interessante saber se, após estudarmos a partitura e depois de
um estudo desta natureza, a gravação preferida na audição inicial continua sendo a mesma. Ao nos atermos
a uma análise do tempo, procuramos mostrar que, embora esta peça seja de caráter livre e rubato, a maioria
dos intérpretes tem um tempo básico que nos permite avaliar o grau de desvio expressivo. Acho temerário,
neste momento, postular o que seja a inflexão rítmica característica de uma valsa de “esquina”. Podemos, no
entanto, constatar que a Valsa de Esquina N.º 2 é executada muito livremente e com fortes desvios expres-
sivos. Há uma predominância de tempos mais lentos no 3º pulso da frase inicial, mas isto não é uma unanimi-
dade entre os intérpretes e há variações de execução na repetição.
Acredito que o melhor uso deste tipo de estudo é sensibilizar o ouvinte para a riqueza de detalhes a
serem percebidos. Tenho utilizado atividades baseadas nesta metodologia para aumentar o envolvimento de
alunos no processo de audição das músicas que estão estudando. Quando entendem que existem várias
alternativas possíveis, estes passam a ter uma maior flexibilidade na busca de sua própria forma de expres-
são. Em um processo semelhante, utilizo a análise de partituras seguida da comparação de gravações, o que
permite discussões muito significativas sobre valores estéticos aplicados à execução musical.

Referências bibliográficas

BOWEN, José. Performance practice versus performance analysis: Why should performers study performance? Perfor-
mance Practice Review Vol. 9/1, 1996a, p. 16-35.

___________. Bowen, José. Tempo, duration, and flexibility: techniques in the analysis of performance. The Journal of
Musicological Research XVI/2 (1996b), p. 111-156.
Fredi Vieira Gerling - O tempo rubato na Valsa de Esquina N.º 2 de Francisco Mignone (p. 7 a 19)
19

COOK, Nicholas. Musical analysis and the listener. New York: Garland, 1989.

EPSTEIN, David. Shaping time. New York: Schirmer Books, 1995.

GERLING, Fredi Vieira. Performance analysis and analysis for performance: A study of Villa-Lobos’s Bachianas
Brasileiras N. 9. D.M.A Essay, University of Iowa. 2000.

KIVY, Peter. Authenticities. Ithaca: Cornell University Press, 1995.

Fredi Gerling é Doutor em Violino (“Doctor of Musical Arts”) pela University of Iowa (2000). A sua tese versou
sobre análise para interpretação e a análise de interpretações gravadas, sendo a Bachiana Brasileira N.º 9 de
Heitor Villa-Lobos a base do trabalho. Foi Regente Titular e Diretor Artístico da Orquestra de Câmara Theatro São
Pedro (1989 a 1995), tendo liderado o grupo em três tourneés internacionais e gravado dois CDs. Nos Estados
Unidos da América, foi regente da orquestra de cordas da prestigiosa Preucil Music School, referência internaci-
onal no ensino de cordas, e atuou como solista, camerista e professor em várias outras escolas e orquestras,
destacando-se entre estas Tufts University, New England Conservatory Preparatory School e Boston Concert
Arts Orchestra. É professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e tem atuado como professor convidado
e/ou regente em festivais e cursos extraordinários em Belo Horizonte, Campos do Jordão, Curitiba, João Pessoa,
Londrina, Brasília, Uberlândia entre outros.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
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O piano a quatro mãos no Brasil

Marcelo Greenhalgh Thys

Resumo: Este artigo visa trazer à luz o repertório brasileiro para piano a quatro mãos (em um piano), que apesar de
sua importância, permanece, em grande parte, negligenciado. Foi realizado um levantamento de peças brasileiras
escritas para a formação a partir da segunda metade do séc. XIX (época em que a produção do gênero tornou-se
mais significativa) aos dias atuais.
Palavras-chave: Música brasileira. Piano a quatro mãos.
Piano four hands in Brazil
Abstract: This article brings to light the Brazilian repertoire for piano four hands (one piano) which, despite its
importance, remains largely neglected. A survey was made including the Brazilian pieces written for the medium since
the second half of the 19th century (period in which its production became more significant) to the present day.
Keywords: Brazilian music. Piano four hands.

Aliar o útil ao agradável nem sempre é tarefa das mais simples. Certamente, um músico profissional
goza do privilégio de fazer o que gosta. Mesmo assim, sempre surgem dificuldades a serem superadas no
árduo caminho de busca da perfeição artística. E é com confiança que dizemos que uma das mais prazerosas
e proveitosas maneiras para um pianista evoluir artisticamente é a prática do piano a quatro mãos, seja no
aprimoramento técnico-artístico, no amadurecimento do coleguismo musical, na consolidação de sua carreira,
sem contar com seu uso como ferramenta pedagógica. A proximidade, a intimidade, o camerismo, entre
outros aspectos, conferem a esta formação um caráter que difere em muito da execução solo e de sua
parente mais próxima, a versão para dois pianos. Apesar de sua importância, este fascinante meio de fazer
música teve altos e baixos em sua história e grande parte da literatura específica ainda permanece negligenci-
ada. As pesquisas sobre o assunto encontram-se em quase sua totalidade em língua estrangeira e, apesar de
serem muito úteis, estão desatualizadas e praticamente não incluem repertório brasileiro.
Ao contrário do que muitos pensam, o repertório brasileiro para piano a quatro mãos é vasto e diver-
sificado. Muito desse desconhecimento se deve à insuficiência de catálogos completos e atualizados dos
nossos compositores, bem como à enorme dificuldade de acesso às partituras, seja em estabelecimentos
comerciais, ou na maioria de nossas bibliotecas. Preencher esta lacuna do conhecimento é uma necessidade
e, logo, tornou-se o propósito do levantamento aqui apresentado.
Pesquisamos por compositores brasileiros que tivessem algum reconhecimento, ou seja, aqueles cujos
nomes constassem em bienais, trabalhos acadêmicos, artigos e matérias de jornais e revistas impressas ou da
rede mundial de computadores, programas de recitais e gravações em CD. Tratamos das peças escritas
originalmente para a formação, fazendo exceção para alguns arranjos e transcrições que julgamos significa-
tivos, especialmente aqueles escritos pelos próprios autores. Após ampla pesquisa, encontramos cerca de 90
peças de 40 compositores, dos quais 24 ainda estão vivos. São exemplares de diferentes estilos e linguagens,
nos mais variados níveis de proficiência técnica: hinos pátrios, peças românticas, obras didáticas, sérias ou
Marcelo Greenhalgh Thys - O piano a quatro mãos no Brasil (p. 20 a 34) 21

humorísticas, em texturas simples de melodia acompanhada ou densas e polifônicas, além daquelas represen-
tantes das mais complexas tendências da música moderna e contemporânea, como novas explorações rítmi-
cas, harmônicas e timbrísticas. Sempre que possível, foram fornecidas as datas de nascimento e morte dos
compositores, ano de composição, editoras e comentários históricos, analíticos e/ou críticos das obras.1
Na História da Música, é muito curiosa a rápida ascensão e declínio do uso do piano a quatro mãos.
Os primeiros vestígios do gênero quatro mãos em um teclado remontam ao início do séc. XVII, na Inglaterra,
onde apenas duas obras sobreviveram, de Nicholas Carlton (?-1630) e Thomas Tomkins (1572-1656). No
séc. XVIII, a Europa viu o florescimento dessa nova forma de fazer música, impulsionado pelas Sonatas de
J. C. Bach (1735-1782), Mozart (1756-1791), e pelos textos elucidativos de Charles Burney (1726-1814)
sobre a importância da prática de piano a quatro mãos na formação dos pianistas. No Romantismo, o gênero
atinge seu apogeu, tornando-se, inclusive, uma das principais práticas sociais da Europa, para as quais Schubert
(1797-1828), Brahms (1833-1897) e Dvorak (1841-1904), deram uma contribuição significativa. Entretan-
to, considerando os períodos históricos seguintes, poderíamos citar outros vários compositores que são, em
sua maioria, desconhecidos do grande público.2 A burguesia do séc. XIX também viu o piano a quatro mãos
como um mercado lucrativo, dada a possibilidade de obras sinfônicas serem apresentadas em recintos
menores, através da publicação de arranjos e transcrições, que foram amplamente divulgados pelo conti-
nente europeu, ainda que alguns de qualidade duvidosa. Com o aparecimento do rádio e do gramofone na
virada do séc. XIX e seu desenvolvimento no séc. XX, o gênero perde parte de sua razão original de
existência, saindo de moda e desaparecendo quase tão rapidamente quanto foi sua ascensão. Frisamos
que a prática começou a ser menos difundida, o que não quer dizer que os compositores tivessem deixa-
do de escrever para a formação; mas ela já não era mais o centro da vida sócio-cultural, como em meados
do século XIX.
Segundo o português César Luís Vila Franca Gonçalves (2005), em meados do séc. XVIII, quando se
dá o desenvolvimento do gênero na Europa, os compositores portugueses estavam mais voltados para o
teatro lírico, por influência dos compositores italianos que lá residiam, de modo que o interesse por uma
“música de câmara de alto nível” (p. 2) estava em segundo plano. Visto que nos séc. XVIII e XIX ainda
mantínhamos fortes laços com Portugal, assim como eram portugueses grande parte dos compositores no
nosso país, é natural que a prática de escrever para piano a quatro mãos no Brasil tenha chegado com um
considerável atraso. De acordo com Sylvia Maltese (1995), a produção para piano a quatro mãos no Brasil,
portanto, começa a se tornar mais intensa e significativa a partir da segunda metade do séc. XIX, principal-
mente após 1870.
Começamos mencionando dois compositores portugueses radicados no Brasil: Arthur Napoleão (1843-
1925) e José Domingues Brandão (1865-1941). O estilo brilhante e virtuosístico de Napoleão pode ser
observado nas peças: Estrella chilena op. 73 (Valsa brilhante), Teus lindos olhos e Première suite
d’orchestre op. 62, esta última de maior envergadura, com três movimentos – Marche et cortège; Thème
1
Em “Anexo” encontra-se a listagem completa das peças citadas no presente artigo.
2
Recomendamos o trabalho de Mcgraw (1980), que reúne cerca de 3200 peças originais para piano a quatro mãos de 1700
compositores, escritas entre 1760 e 1980.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
22

avec variations; e Final (Alla polacca), que contrastam com sua mais calma Balada romântica. Radicado
em Belém do Pará, Brandão escreveu O dia paraense (Poema sinfônico das coisas do Pará), obra des-
critiva do texto que a acompanha:

É madrugada. Começa a despertar a natureza. Cantam os galos e a Saracura. Toca a alvorada no quartel e na
igreja, o que faz despertar a “Maria já é dia” e os outros passarinhos. Começam então, os labores da cidade
numa animação crescente até ao meio-dia.
Depois vem a tarde melancólica, o Ângelus, o crepúsculo, a noite, e finalmente, o cansaço traz o sono e...
dorme-se. (apud MALTESE, 2000) 3

Por ocasião do grande festival 3º Centenário de Luís Vaz de Camões, foram compostas (segundo o
que dizem as partituras impressas pelo Imperial Estabelecimento de Piano e Músicas – Narciso, Arthur
Napoleão e Miguez) duas obras a quatro mãos – Hino Triunfal “a Camões”, de Carlos Gomes (1836-
1896), e Marcha Elegíaca “a Camões”, de Leopoldo Miguez (1850-1902) –, ambas apresentadas no
Imperial Theatro D. Pedro II do Rio de Janeiro, em 10 de junho de 1880 (MALTESE, 2000). Miguez
escreveu outras obras do gênero, todas muito ricas harmonicamente, como a Marche nupciale op.2, a
Scena dramática op.8 e o Prélude em Sib majeur (à l’antique) op. 25 (pesquisando o acervo da Biblio-
teca Nacional, deparamo-nos com a partitura da última, sem indicação de data).
Dos nossos compositores “românticos”, ainda podemos citar Alexandre Levy (1864-1892), que apesar
de sua morte prematura, aos 28 anos, deixou uma contribuição ao gênero: a peça En mer (Poème musical),
divida em três movimentos, sem interrupção – Depart. Mer calme; Le ciel s’assombrit. Tempète; Clair
delune. Idylle fugitive – na qual está indicado um final, Arrivée – Danse, que não chegou a ser composto.
O autor do nosso Hino à Bandeira, Francisco Braga (1868-1945), escreveu dois hinos para piano a
quatro mãos. Em 1908, quando foi anunciada a visita do rei de Portugal ao Brasil (posteriormente não
realizada), Braga decide homenageá-lo com o Hino da Confraternização Luso-Brasileira, que une o Hino
da Carta Constitucional Portuguesa, de D. Pedro IV (nosso D. Pedro I) com o Hino Nacional Brasileiro
de Francisco Manuel da Silva (1795-1865). Em 1940, por ocasião das Comemorações Centenárias de
Portugal, o compositor novamente une o Hino Nacional Brasileiro, desta vez com o Hino Nacional Portu-
guês “A Portuguesa”, de Alfredo Keil (1850-1907), intitulando a peça de Hino Marcha Portugal-Brasil.
As duas peças permaneceram inéditas, em manuscritos, até 1998, quando foram estreadas pelo Duo Maltese.
Heitor Villa-Lobos (1887-1959) deixou uma pequena contribuição ao repertório. Trata-se da peça A
Folia de um bloco infantil, que encerra o ciclo de oito peças intitulado Carnaval das crianças, concluído
em 1920, e que serviu de matéria-prima para umas de suas peças mais significativas para piano e orquestra
– a fantasia Momoprecoce. O ciclo faz alusão aos desfiles de carnaval do início do século XX, em especial
aos blocos das crianças, que imitavam os adultos, com fantasias coloridas e luminosas (ABREU e GUEDES,
1992, p. 121). A Folia de um bloco infantil foi originalmente composta para piano a quatro mãos e, mais
tarde, condensada para versão solo por H. Lagna Fietta (ESCOBAR, 1998, p. 6). A peça, apesar de curta,
é impactante e, tecnicamente, é razoavelmente exigente, um pouco mais para o primo que para o secondo,
especialmente na parte final.

3
Agradecimentos à autora, pelas demais informações fornecidas através de comunicação por e-mail.
Marcelo Greenhalgh Thys - O piano a quatro mãos no Brasil (p. 20 a 34) 23

Oito anos depois, em 1928, Luciano Gallet (1893-1931) publicou seus Doze exercícios brasileiros
para piano a quatro mãos, ciclo que ocupa lugar de importância em sua produção, por explorar o campo
didático a partir de elementos folclóricos nacionais. A propósito das peças didáticas, o compositor austríaco
Martin Braunwieser (1901-1991), radicado no Brasil desde 1928, compôs suas Nove peças fáceis a 4
mãos. A obra foi primeiramente editada em 1933, e quando o compositor completou 90 anos de idade, seus
familiares, alunos e admiradores organizaram festividades, que incluíram a realização de uma nova edição
(CARLINI, 1999, p. 340).
Francisco Mignone (1897-1986) também deixou contribuições para o piano a quatro mãos com
alguns arranjos, apesar de ter demonstrado interesse maior nas composições e arranjos para dois pianos,
freqüentemente executados por seu duo com a esposa Maria Josephina. A Congada, composta originalmente
para orquestra em 1921, e transcrita em 1928 para piano solo e a quatro mãos, é de inspiração africana,
especialmente de Angola (cf. ABREU e GUEDES, 1992, 194). Já a peça Lundu, composta em 1948, “se
reveste de encantadora simplicidade, com sua textura que reflete requintada polifonia” (MIRANDA, 2002,
p. 2). Ainda vale mencionar o arranjo para piano a quatro mãos feito pelo próprio compositor da peça No
fundo do meu quintal (1953), que se caracteriza pela “alternância de dois motivos de caráter contrastante”
(ABREU e GUEDES, 1992, p. 200), um bem ritmado e outro mais expressivo.
O gaúcho Radamés Gnattali (1906-1988) desde cedo impressionava pelo virtuosismo ao piano e,
com a irmã Aída, gravou peças históricas a quatro mãos (cf. NASSIF, 2006). Para o gênero, escreveu a
lírica valsa Graciosa (sem data). O mestre Lorenzo Fernandes (1897-1948) também deixou sua contribui-
ção ao gênero com a Suite Infantil O Cavaleiro fantástico (1945), editada pela Peer International e pela
Irmãos Vitale.
A partir da década de 1950, a produção brasileira para piano a quatro mãos começa a crescer signi-
ficativamente. Vamos iniciar com Alencar Pinto (1911-2007), que escreveu o Sarau de sinhá para piano a
quatro mãos, talvez sua obra mais representativa, que se tornou muito popular e impulsionou sua carreira.
Segundo o compositor, a peça foi escrita com “a intenção de se fazer um balé acompanhado”, com “algumas
peças de quando minha [sua] mãe era criança”,4 seguindo um enredo de Guilherme de Figueiredo (1915-
1997), que pode ser resumido assim: um grupo de motoqueiros invade uma mansão abandonada do início do
século; eles encontram roupas da época e uma antiga partitura sobre um velho piano; dois deles sentam ao
piano para tocar a música, enquanto os outros, vestindo as velhas roupas, se divertem dançando (KAPLAN,
1999, p. 163-164). Esta suíte (com 30 minutos de duração) contém danças da época do Segundo Reinado
(1840-1889) – Galope, Capricho, Schottish, Contradança, Polca, Valsa, Recitativo, Noturno, Lundu,
Romance e Galope –, pesquisadas por Alencar Pinto, fazendo uso de obras de J. Garcia Cristo (1867-
1919), Liebich (s.d), J.M. Lopes (s.d), A. Margis (1874-?), C. Galos (s.d) e L. Gobbaerts (1835-1886).
Em comunicação informal, o compositor preferiu não atribuir data para a composição da peça, alegando que
a escreveu num período de cerca de 20 anos. Em 1980, ela foi orquestrada por F. Mignone e apresentada no
Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Alencar Pinto faleceu no dia 06 de outubro de 2007, aos 96 anos.
Felizmente tivemos a oportunidade de conversar (informalmente) com o compositor, um dos poucos ainda
4
Citação extraída de comunicação informal ao autor do presente artigo.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
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vivos de sua geração, e indagamos sobre o que o motivou a escrever a obra. Sua resposta aponta que, assim
como ocorrera na Europa, a prática de se tocar duetos tinha caído em desuso no Brasil: “Tocar piano a
quatro mãos parece que tinha se tornado ‘cafona’. Ninguém mais tocava piano a quatro mãos”,
complementando que apreciava a formação por que ela “mantém a pessoa dentro da casa; mantém o ‘acon-
chego’”. Sua segunda peça para duo, TV Series suite [s.d.], que alude a seriados de televisão das décadas
de 60 e 70, teve sua estréia somente após seu falecimento.
Ernst Mahle (1929-) parece ter especial apreço pelo duo pianístico, já que escreveu quatro peças
para a formação. As três peças modais, compostas em 1955, fazem uso de modos específicos para cada
peça, como o título sugere, apresentando diversas configurações rítmicas que dificultam o entrosamento. A
Toccata (1956) retrata bem o impulso rítmico que o nome sugere, fazendo uso de escala de tons inteiros,
trinados e trêmolos escritos em forma de semicolcheias. Apresenta caráter virtuosístico, semelhante ao Tango
de Ronaldo Miranda, porém com uma textura menos densa. As outras duas obras são de maior envergadura:
Suíte nordestina (1977) e Carimbó (1986). A primeira é divida em três movimentos - Allegro moderato,
Andantino e Vivo – e explora relações rítmico-harmônicas características da música nordestina, em uma
linguagem predominantemente modal. A segunda, dividida em nove pequenas peças, foi composta a partir de
cantos e danças populares, onde predominam o uso da textura homofônica e das funções tonais, além de
exigir, como em todas as demais peças para duo do compositor, razoável proficiência técnica.
O compositor catarinense Edino Krieger (1928-) deixou sua contribuição para duo pianístico em
1953, com sua Sonata, época que marcava o seu rompimento com os princípios seriais-dodecafônicos. A
peça é representativa de sua nova linguagem tonal-modal, observada em algumas de suas obras para piano
solo, como sua Sonata N.o 2 e Sonatina. A peça tem caráter lírico, com predomínio de acordes arpejados
e acentos deslocados. É fato interessante que Krieger ainda escreveu uma peça para seis mãos – Os três
peraltas (1962) –, uma divertida composição para estudantes iniciantes com diferentes níveis técnicos entre
as partes.
A delicada Cirandinha (1957), de Octavio Maul (1901-1974), e Brincadeira (1962) de Cláudio
Santoro (1919-1989), parecem seguir a tradição francesa de escrever com temática infantil, embora apre-
sentando tendências nacionalistas. Ainda em 1962, o paulista Vasconcellos Correa (1934-) escreve a Valsa
(da Suíte Piratininga), que lembra o ambiente seresteiro, com predomínio do toque legato cantabile, em
uma textura polifônica aberta e nível técnico avançado. Integrando a mesma Suíte, em 1978 o compositor
escreve o Baião. A peça apresenta ostinato rítmico, com maior incidência na parte do secondo e explora o
sincronismo e a diferenciação dos planos sonoros (GANDELMAN, 1997, p.69). Ainda do princípio da
década de 60, podemos citar a peça Regional N.o 1, ob. 13 (1963) de Jorge Antunes (1942-), que procura
retratar o ambiente da música popular urbana no cenário carioca, apresentando inovações inusitadas em
peças brasileiras para piano a quatro mãos, como clusters e efeitos percussivos na estante do piano (Ibidem,
p. 52).
Também com enfoque na temática infantil, Almeida Prado (1943-) escreve em 1967 as IV peças para
piano a quatro mãos, dividida em quatro partes: Ciranda – criada a partir da cantiga Você diz que sabe
tudo; Jogo – jogos de registros e dinâmica; Cantiga – tema que perpassa as partes do primo e secondo;
Marcelo Greenhalgh Thys - O piano a quatro mãos no Brasil (p. 20 a 34) 25

Passeando – mudanças de movimentos aludindo as mudanças de velocidade dos passos. Os VI Episódios de


animais, compostos em 19795 para piano a quatro mãos, pertencem à fase na qual Almeida Prado explora
temática ecológica. A peça lhe fez valer o Prêmio Especial Max Feffer, em 1993, e foi gravada pelos irmãos
Alexandre e Maurício Zamith por ocasião do Concurso Nacional de Música de Câmara de São Paulo.6
A obra é constituída de seis peças: Bem-te-vi, Marimbondos, Guaiamú (caranguejo), Libélula,
Boicininga (Cascavel) e Xauim (Sagüi); apesar de cada uma delas ser musicalmente independente, o con-
junto é importante, pois a última faz referência às demais, ridicularizando os animais de maneira genial. A
música tem caráter descritivo, evocando os animais (incluindo a simulação de suas emissões sonoras, movi-
mentos e habitat), apresentados na linguagem característica do compositor. Em todos os animais da obra,
Almeida Prado constrói o que chama de “jogos rítmicos”. O autor nos informou (em comunicação informal)
que usou diversos processos rítmicos constantes em sua Cartilha rítmica para piano (década de 90), que
foram explicados por Cohen e Gandelman (2006) em estudo sobre ela. Dentre os processos rítmicos pre-
sentes nos VI Episódios de Animais, além daqueles usuais à música tonal, podemos destacar: polirritmia,7
polimetria,8 mudanças de fórmula de compassos, assincronia9 e efeitos de aceleração e desaceleração. A
peça é idiomática para o piano a quatro mãos, ou seja, as partes têm equivalência de importância, são
dispostas de modo a minimizar a colisão, proporcionando maior conforto e evitando a necessidade de
redistribuição de partes, além de ser escrita de maneira a facilitar o equilíbrio sonoro, através da cuidadosa
utilização dos registros do instrumento.
Osvaldo Lacerda (1927-) teve o nacionalismo como uma de suas fontes inspiradoras, e não foi dife-
rente quando escreveu suas três obras para piano a quatro mãos – Brasiliana N.o 4 (1968) Brasiliana N.o
8 (1978), e Brasiliana N.o 12 (1999). A primeira delas compõe-se de quatro gêneros distintos: Dobrado,
Embolada Seresta e Candomblé. A segunda segue a mesma linha e apresenta os títulos: Canto de trabalho –
cantos dos trabalhadores da roça do interior de São Paulo; Frevo – ritmo binário característico da dança,
andamento rápido, efeitos percussivos com 2as e acentos deslocados, e uso de apojaturas curtas, principalmen-
te no primo; Abôio – canto entoado pelo boiadeiro à maneira de vocalise, com intuito de fazer andar e acalmar
o gado – tempo flexível, de difícil sincronismo; Terno de Zabumba – sugestão de dois pífanos (flautas) no primo
e de acompanhamento de tambor no secondo (LACERDA, 1978).10 A terceira peça (Brasiliana N.o12)
mantém o padrão nacionalista nos movimentos Cateretê, Canto de Bebida, Canção e Maracatu.
Outro paulista, de Campinas, José Penalva (1924-2002) escreveu em 1969 uma versão para piano a
quatro mãos de sua peça dodecafônica Mini-suíte N.º 2, ampliando o uso dos registros e distribuindo os

5
Em algumas fontes consta, erroneamente, o ano de 1977 como data de composição. Mas o catálogo pessoal do compositor
confirma o ano de 1979.
6
CD: V Concurso Nacional de Música de Câmara – São Paulo - Vencedores de 1993. São Paulo: FASM/ CDA, CDA-
950218, 1993 (1 CD), faixas 6 - 11.
7
Superposição de dois ou mais ritmos “não facilmente percebidos como derivados um do outro”, como 2 articulações
contra 3, 5 contra 4, etc. (COHEN e GANDELMAN, 2006, p. 27).
8
“Simultaneidade de duas ou mais métricas.” (Idem)
9
“Defasagem entre planos em qualquer dos níveis da hierarquia métrica.” (Ibidem, p. 28).
10
Prefácio nas partituras da editora Irmãos Vitale.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
26

desenhos mais complexos pelas duas mãos de cada executante (cf. GANDELMAN, 1997, p. 216). É
formada por três partes: Cana-verde, Ponteio e Sincopado.
A partir da década de 70, tal como em outros países, tanto a prática do piano a quatro mãos como
música de concerto, antes pouco comum, como o repertório nacional, pouco divulgado, gradualmente de-
senvolveram-se no Brasil. O duo Kaplan-Parente foi um dos duos pioneiros no sentido de resgatar e divulgar
nossas obras. José Alberto Kaplan (1935-) argentino radicado no Brasil, tinha o desejo de incluir obras
nacionais em suas apresentações em duo e, por desconhecer a produção brasileira, transcreveu para quatro
mãos, em 1973 (um ano após a formação do duo), o Azulão, de J. Ovalle (1894-1955) e a Casinha
pequenina (anônimo), como sugerido por seu colega, Gerardo Parente. Em 1974, Kaplan visita Alencar
Pinto (ex-professor de Parente), que o informou sobre a grande produção brasileira no gênero e recomen-
dou que procurasse Mercedes Reis Pequeno, então diretora da Seção de Música da Biblioteca Nacional.
Na ocasião, Alencar Pinto e sua amiga Irany Leme tocaram para Kaplan o Sarau de sinhá, que o impressi-
onou enormemente. A experiência mudou os rumos do duo, que passou a pesquisar e divulgar o repertório
nacional do gênero pelo país, culminando na gravação do LP “Piano Brasileiro a 4 Mãos” (1977, selo
Marcus Pereira).

Sem falsa modéstia, contribuímos, de maneira expressiva, para divulgar no País e no exterior, um repertório
que, apesar da qualidade e riqueza, estava praticamente esquecido. Ao mesmo tempo, serviu de exemplo,
pois, após o sucesso alcançado pelo disco, apareceram outras duplas que deram continuidade à pesquisa,
trazendo a luz um material tão valioso quanto o que tínhamos revelado. (KAPLAN, 1999, p.171)

Kaplan realizou mais três transcrições para quatro mãos – Escorregando (1976) e Duvidoso (1983)
de E. Nazareth (1863-1934), e Noite Feliz (1978) de F. Gruber (1787-1863) –, bem como escreveu uma
obra original, a Dança da Graúna (1979).
Como alude o título, em Estruturas Gêmeas, Ricardo Tacuchian (1939-) faz um trabalho de imita-
ção e complementaridade entre o primo e o secondo, perpassando andamentos, registros, ressonâncias e
intensidades contrastantes. A obra apresenta uma seção peculiar, em notação proporcional, de difícil exe-
cução em conjunto. Já a “simples e despretensiosa” (ESCOBAR, 1998, p.6) Seresta Opus Um (1970)
de Aylton Escobar (1943-) apresenta uma diferença considerável de dificuldade entre as partes do primo
(elementar) e secondo (intermediário). Ela demonstra “óbvios sinais da cantilena urbana brasileira exibi-
dos por esta curta serenata (uma flauta soprada com timidez de amador e um violão chorado, quem sabe)”
(ESCOBAR, 1998, p.6).
O paranaense, Henrique Morozowicz (1934-2008), conhecido por Henrique de Curitiba, escreveu
três peças para a formação. A primeira delas – Suíte de Natal – são arranjos, em sua maioria, de melodias
tradicionais alemães e polonesas, e tem como destino o entretenimento familiar, podendo, portanto, ter tam-
bém fins didáticos. A segunda obra – Suíte abajour (1983) – já exige um nível razoavelmente avançado de
proficiência técnica, apresentando “freqüente jogo de teclas brancas e pretas” e “alternância de mãos”
(GANDELMAN, 1997, p. 192). A terceira, Capricho no. 1 “Corre... corre p’ra Goiania” (2000),
segundo o compositor (prefácio à partitura, 2000), é uma obra bem humorada e “jovial”, “como Goiania”,
evocando os dias galantes do século XIX. A peça é construída em movimento rápido e leve, rico em figuras
Marcelo Greenhalgh Thys - O piano a quatro mãos no Brasil (p. 20 a 34) 27

curtas (semicolcheias) dispostas em intervalos cromáticos e diatônicos. “Sua execução pede leveza de toque,
matizes timbrísticos diferenciados e dinâmica variada, num movimento que é rápido, luminoso e elegante”
(CURITIBA, 2000).
Em 1979, o mineiro Villani-Cortes (1930-) escreveu duas pequenas peças originais para duo: Beiráceas
e Belibá, e ambas correspondem bem ao que o compositor considera como “a composição ideal: dotada de
poucas notas; fácil de executar; bonita; profunda” (apud LIMA, 1999). Certamente merecem maior divulga-
ção. As peças de Villani-Cortes freqüentemente são inspiradas em fatores extra-musicais, como experiências
vividas pelo compositor. Belibá, por exemplo, é o nome de um pássaro muito estimado que ele ganhou de
presente numa visita a um de seus familiares, o qual escapou de um ataque de um gambá, fugindo para
sempre de seu viveiro. É uma obra de atmosfera saudosa, suave, predominando a tradicional textura de
melodia acompanhada, onde o primo evoca o lirismo de seu canto em 6as, acompanhado pelo constante
ritmo sincopado ( ). Em 2002,12 o compositor escreveu versões a quatro mãos de três de suas obras:
Djopoi (1993), para orquestra de sopros; Chorões da Paulicéia (1997), para grupo instrumental de choro;
e Poranduba (1995-1998, revisada em 2007), ópera com libreto de Lúcia Pimentel Góes.
A partir da década de 80 podemos citar o nome de Roberto Victorio (1959-), que escreveu para
piano a quatro mãos a peça Iks (1988), palavra do idioma maia que significa Vênus. Segundo Gandelman
(1997), a obra apresenta nível de dificuldade avançado, e ampla exploração de ritmo, registros, intervalos,
saltos e dinâmica. Possui duas seções contrastantes, com notação dos compassos em segundos na primeira,
e convencional na segunda, com freqüentes mudanças de tempo e fórmula de compasso. De acordo com o
compositor (em comunicação informal), o extenso cruzamento, do primo sobre as duas mãos do secondo,
se deve ao seu freqüente apreço pela exploração de registros; mas por resultar num grande entrelaçamento
de mãos, confessa que, conseqüentemente, se adequou muito bem às “características intimistas” do piano a
quatro mãos, já que foi composto para um casal (Rosangela Barbosa e Marcus Wolf).
Entre os anos de 1986 e 1989, o compositor e sociólogo paulista, Eduardo Seincman (1955-), escre-
veu um conjunto de peças de câmara chamado A Dança dos Duplos. As cinco obras do ciclo, todas com
mais de dez minutos de duração, foram designadas para diferentes instrumentos, incluindo piano, flauta contralto,
marimba, vibrafone e glokenspiel, podendo cada uma ser executada separadamente. A quarta peça – A Dança
de Dorian (1988), para piano a quatro mãos – foi inspirada no livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar
Wilde (1854-1900), cujos extratos de texto acompanham a partitura em vários momentos da peça. São feitas
criativas alusões a Schumann, Puccini (1858-1924), Wagner (1813-1883), Tchaikovski e Chopin, composito-
res que Dorian Gray tocava ou ouvia em concertos. Como exemplo da aplicação de quatro mãos de modo
não usual, o compositor também escreveu a obra Densidades (1980), para dois pianos e oito mãos.
A enorme produção para piano a quatro mãos de Amaral Vieira (1952-) – 23 peças, incluindo obras
originais, transcrições e combinações com outros instrumentos – mostra porque ele é um dos compositores
mais prolíficos do Brasil. O compositor também atua como pianista, tendo estreado e gravado grande parte
dessas peças (muitas das quais, ainda em manuscrito) com Yara Ferraz. Os títulos são:
12
Informações extraídas do site do compositor (http://villani-cortes.tom.mus.br/index.php), de comunicação informal, e da
análise da partitura do Belibá. O compositor nos afirmou que as datas de composição não são precisas, uma vez que ele está
constantemente revisando seus trabalhos.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
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a) Peças originais – Andante e Mazurka Tempestuos (1975); Cinco Fantasias sobre “My Favorite
Things” (1976); 13 Rituais (Ritual do Amanhecer - Ritual do Fogo - Ritual da Paz - Ritual da Purifi-
cação - Ritual da Chuva Ritual do Vento - Ritual da Terra - Ritual Fúnebre - Ritual Iniciático - Ritual da
Guerra - Ritual da Fertilidade - Ritual dos Antepassados - Ritual do Sol) (1982); Reminiscências de
Adriano (Introduzione - Inno - Animula Vagula Blandula - Varius Multiplex - Multiformis - Tellus
Stabilita - Intermezzo 1 - Saeculum Aureum - Intermezzo 2 - Disciplina Augusta – Patientia) (1983);
Grande Sonata Sinfônica (Allegro Molto Maestoso - Adagio non Troppo Lento - Presto - Allegro
Molto) (1984); Natus Christus in Bethleem Judae - 9 Liturgias para o Natal (Magnificat - A Gruta
de Belém - A Natividade - A Estrela do Oriente - O Anjo de Deus – Os Pastores no Campo -
Benedictus - Os Magos - O Messias) (1984);
b) Transcrições – 8 Melodias Folclóricas Russas nº 1 (1975) 13 ; Zênite, Confidências, Escorregan-
do, Ameno Resedá, Faceira, Odeon e Apanhei-te Cavaquinho, de E. Nazareth (1863-1934), (1979);
Tico-Tico no Fubá de Zequinha Abreu (1880-1935) (1979); Himno Nacional da Bolívia, de L.
Benedetto Vincenti (1815-1914) (1987); Coro Jauchzet, Frohlocket, auf Preiset die Tage, do Oratório
de Natal BWV 248 Feria 1 Nativitatis Christi de J. S. Bach (1685-1750) (1989); Hallelujah Chorus
– do Oratório Messiah de Handel (1685-1759) (1989); Haha (melodia japonesa) (1994);
c) Combinações – Concerto para 4 mãos e orquestra (1976); Divertimento (1976), para quinteto
de sopros e piano a quatro mãos; Concerto da Câmera (versão de sua Tecladofonia para conjunto
de câmara) (1978), para duas flautas, dois clarinetes, trombone, fagote e piano a quatro mãos; Sinfonieta
Concertante (1978), para flauta, oboé, clarinete, fagote e piano a quatro mãos.
Nascido no Rio de Janeiro, Ronaldo Miranda (1948–) é um dos compositores brasileiros mais
populares entre os duos de piano a quatro mãos. Sua explosiva peça, Tango para piano a quatro mãos,
escrito em março e abril de 1993, segundo o compositor, reafirmou sua “paixão pelo teclado – pois, afinal
14
de contas, [é] um pianista por formação” –, e foi dedicado ao duo Zaida Valentim e Marcelo de
Alvarenga. Este último nos conta (em comunicação informal) que teve oportunidade de acompanhar parte
do processo de composição, quando já podia prenunciar o sucesso da sua estréia, realizada por seu duo
em 24 de junho de 1993, na Sala Cecília Meireles. A peça ganhou tamanha popularidade que se tornou
parte do repertório “obrigatório” dos duos brasileiros. Dentre os elementos composicionais que podemos
destacar estão o uso do ritmo, incisivo e vigoroso, e das escalas octatônicas descendentes, reluzindo
“certas fagulhas da estética musical soviética” (ESCOBAR, 1998). O grande contraste de caráter é atin-
gido através da tradicional estrutura formal A-B-A’, claramente delimitada pelas sessões Enérgico / Ex-
pressivo / Enérgico.

É uma obra que pretende explorar o instrumento com vigor e energia, usando como base de sua coloração
harmônica as escalas octatônicas, amplamente empregadas por Stravinsky, Debussy e Bartók. Delas fiquei
impregnado em 1992, durante meu doutorado na ECA-USP, ao dissecar com Marcos Branda Lacerda as
tendências harmônicas do século XX. (...) as utilizei fragmentadamente e sem rigidez, por quase todos os
momentos da obra. (MIRANDA, 2000).

13
Datas relativas às transcrições, e não às peças originais.
14
MIRANDA, 2000.
Marcelo Greenhalgh Thys - O piano a quatro mãos no Brasil (p. 20 a 34) 29

Dentre as variações quanto ao emprego dessas escalas, estão: fragmentação de quatro em quatro
sons, incluindo repetição de pequenas células melódicas; sucessão ou sobreposição de quartas justas e
aumentadas; e sons ásperos resultantes do emprego de segundas menores e sétimas maiores. Observamos
ainda inclusão de passagens e/ou notas cromáticas ornamentais e desenvolvimento produzido pela repetição
de modelos em várias alturas.
Suas Variações sérias sobre um tema de Anacleto Medeiros foram compostas originalmente em
1991 para quinteto de sopros e reescritas para piano a quatro mãos em 1998, versão dedicada ao duo
Bretas-Kevorkian. Segundo o compositor, a abrangência expressiva do tema de Anacleto “permitiu projetar
uma grande variedade de abordagens e atmosferas, da música carioca urbana de sabor seresteiro (e origens
lusitanas) ao espírito lúdico, quase circense, das bandas de coreto do interior do país” (MIRANDA, 2002);
e na opinião de Tugny (2004, p. 6) é “um refinado panorama das possibilidades musicais do gênero ‘piano a
quatro mãos’”. Miranda ainda compôs uma peça curta para duo intitulada Frevo (2004), dedicada ao duo
de Sonia Maria Vieira (entrevistada) e Maria Helena Andrade, apresentando vigor e forma (A-B-A) seme-
lhantes ao Tango.
A peça Mutações, da também carioca Marisa Rezende (1944-), reflete uma constante de sua produ-
ção: o estímulo ao imaginário musical. A obra foi originalmente composta para dois pianos em 1991, e
arranjada para quatro mãos em 2002, segundo a compositora,15 pela dificuldade de se encontrar dois pianos
nas salas de concerto brasileiras. Marisa utilizou, na peça, o gênero toccata, aplicando diversos procedi-
mentos relacionados às técnicas de variação. “A trama se desenvolve no âmbito de simples estruturas esca-
lares diatônicas que tendem a originar um elevado grau de redundância harmônica” (NOGUEIRA, 2003, p.
6), o que contribui para a atmosfera difusa da peça.
A Batuccata, do mineiro Calimério Soares (1944-) foi composta em 1998 por encomenda do duo
americano Karen Kushner e Igor Kipnis. Como o título sugere, a peça tem características rítmicas do gênero
toccata, fazendo uso de elementos afro-brasileiros e de melodias folclóricas, como o tema Senhora Dona
Sancha.
A Pequena suite cinematográfica (2002) de Dawid Korenchendler (1948-), dedicada ao duo Caldi-
Barancoski, é uma das peças brasileiras mais humorísticas para a formação. Trata-se de paródia de filmes
hollywoodianos, num clima divertido, que pode ser prenunciado pelo subtítulo: “Um recado demonstrativo
para Steven Spielberg, na esperança de que, em breve, contrate o compositor desta obra”. É dividida em
sete movimentos, cada qual ironizando um estilo de filme diferente, como por exemplo: “2. De múmias,
mistérios, mortos-vivos e congêneres... – Um filme com roteiro, direção e talvez até música... de Agatha
Hitchcock”; “6 – The dramatic Bang-bang Final Battle – Tony the Kid & Leo the Boy vs. BigBenny, the
Chief”, onde até efeitos de bater os pés no chão para imitar disparos de arma são aplicados. Ao ser pergun-
tado sobre sua experiência de escrever para duo, Korenchendler, em comunicação informal, diz que “escre-
ver para piano a quatro mãos sempre é um desafio”, se comparado ao piano solo ou a dois pianos, em face
das limitações da formação, como o uso do pedal, por exemplo. Como vimos, compositores de qualidade,
como ele, felizmente, continuam a contribuir para a literatura do gênero, superando tais dificuldades.
15
Em comunicação informal.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
30

Recentemente foram escritas mais três peças por compositores do estado do Rio de Janeiro: Lar doce
lar – Divertimento urbano (1995-2005), de Nestor de Hollanda Cavalcanti (1949-); Toccata (2002), de
Sérgio di Sabbato (1955-); e Suite infantil (novembro e dezembro de 2004) de Murilo Santos (1931-).
Esta última é divida em quatro movimentos – Introdução-Folguedos, Marcha dos brinquedos, A Boneca
sonhadora e Corrida final –, demonstrando o habitual apreço do compositor pelo caráter rítmico.
O título da peça Reflexos de bruma e luzes (2004, dedicada ao duo Celina Szrvinsk & Miguel
Rosselini), do mineiro Oiliam Lanna (1953-), demonstra a preocupação do compositor com a variedade das
matizes sonoras. Numa atmosfera que nos remete ao impressionismo, as possibilidades acústicas do piano
são exploradas através do uso de ressonâncias, trinados, arabescos e contrastes de intensidade e registro.
Concluímos nossa lista citando dois compositores gaúchos: Fernando Lewis de Mattos (1963-) e
Dimitri Cervo (1968-). Mattos escreveu, a partir do segundo movimento de seu Concerto N.º 2 para violão
e orquestra, a peça Milonga(s) (2005) para piano a quatro mãos, considerando ambas originais por ter
modificado e acrescentado seções na última.16 O motivo do plural (s) no final do título é a alternância entre as
particularidades da milonga de três países: Brasil (sul), Argentina e Uruguai. Nela, o compositor constrói uma
série de 12 sons, sem ser ortodoxo ou totalmente atonal, usando e elaborando o padrão da milonga (ritmo, em
4/4, com baixos em seqüência de 6ª menor ascendente-2ª menor descendente), trazendo a dança para sua
própria linguagem.
Cervo escreveu duas obras para piano a quatro mãos: Brasil 2000 – cujas primeiras versões foram
para dois pianos e piano a quatro mãos e depois arranjadas para piano solo, todas de igual relevância,
segundo o compositor.17 A obra foi desenvolvida entre 1997 e 2005 e, durante este período, passou por
quatro modificações. A segunda obra, Toccata (2004), foi escrita a partir de uma versão para piano, clarinete
e flauta, para ser a peça de confronto do Concurso de Piano de Ituiutaba em 2004.
Algumas das peças aqui expostas tiveram sua estréia recentemente, e muitas ainda são desconhecidas
entre os estudantes de música, e até frequentemente entre pianistas brasileiros consagrados. Em nível mundial,
também falta um catálogo abrangente sobre o assunto, de fácil acesso, e que esteja atualizado. Esperamos
que esta pesquisa estimule o leitor a percorrer este surpreendente repertório do gênero, que por sua qualida-
de e riqueza, certamente merece melhor divulgação.

Referências bibliográficas

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CARLINI, Á. 60 anos da Missão de Pesquisas Folclóricas (1938-1998): conversas com Martin Braunwieser. Anais do II
Simpósio Latino-Americano de Musicologia, Curitiba, 21-25 de janeiro de 1998. Curitiba, Paraná: Fundação Cultural de
Curitiba, vol. 2, p.333-348, 1999.

COHEN, S; GANDELMAN, S. A cartilha rítmica para piano de Almeida Prado. Rio de Janeiro [s.e.], 2006.

CURITIBA, H. Prefácio à partitura da peça Corre... corre p’ra Goiânia. Documento manuscrito, 2000.

16
Comunicação por e-mail.
17
Comunicação por e-mail.
Marcelo Greenhalgh Thys - O piano a quatro mãos no Brasil (p. 20 a 34) 31

ESCOBAR, A. Encarte do CD: Celina Szrvinsk e Miguel Rosselini – Schumann, Krieger, Miranda, Brahms, Villa-Lobos,
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GANDELMAN, S. 36 compositores brasileiros: obra para piano (1950 – 1988). Rio de Janeiro: Funarte/Relume Dumará,
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GONÇALVES, C. L. V. F. Obras para a infância – de Eurico Thomaz de Lima: os duetos para Piano. 2005. Dissertação de
Mestrado (Estudos da Criança – Especialização em Educação Musical). Instituto de Estudos da Criança, Universidade do
Minho.

KAPLAN, J. A. “Caso me esqueça(m)”: memórias musicais – volume I (1935-1982). João Pessoa: Quebra-Quilo, 1999.

LACERDA, O. Prefácio à partitura do Terno de Zabumba, integrante da Brasiliana N.º 8, edição Vitale.

OLIVEIRA LIMA, V. de. Edmundo Villani-Côrtes. 1999. Disponível em <http://villani-cortes.tom.mus.br/


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_______________ Encarte do CD: Piano Luso-Brasileiro a quatro mãos – repertório do séc. XIX e início do séc. XX.
Intérpretes: Duo Maltese (Ida e Sylvia Maltese), [s.e.], DMCD 001, 2000.

MCGRAW, C. Piano duet repertoire – music originally written for one piano, four hands. Bloomington e Indianápolis:
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MIRANDA, R. Encarte do CD: Trajetórias. Rio Arte Digital, RD-020, 2000.

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TUGNY, R. P. Encarte do CD: Celina Szrvinsk e Miguel Rosselini – piano a 4 mãos –Fauré, Ravel, Albéniz, De Falla,
Escobar, Soares, Lanna, Miranda. [s.e], AA 9.000, 2004.

Marcelo Thys (Florianópolis-SC) é Bacharel em Piano pela UFRJ, onde estudou com Luiz Senise, e Mestre em Música
pela UNIRIO, sob a orientação de Salomea Gandelman, quando escreveu sua dissertação “A prática do piano a quatro
mãos: problemas, soluções e sua aplicação ao estudo de peças de Almeida Prado e Ronaldo Miranda”. É detentor de
38 premiações em concursos, incluindo primeiros lugares e diversos prêmios especiais de melhor intérprete de Música
Brasileira. Destaca-se o segundo lugar na 6th Sakai International Piano Competition, realizada em Osaka – Japão.
Gravou para rádio, televisão, e um CD sob produção da Littlestar Cop. Apresenta-se freqüentemente como recitalista
e camerista, em diversos estados brasileiros. Como solista, atuou com a Osaka Chamber Orchestra, Orquestra Sinfônica
da Bahia, Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ e com a Camerata
Florianópolis. Seu duo pianístico com Luciano Magalhães obteve primeiro lugar no XIV Concurso Nacional ArtLivre
– Duo Pianístico (SP), II Concurso Nacional de Piano Maria Tereza Madeira – Duos Pianísticos (Campos –RJ), XIX
Concurso Nacional de Música de Câmara Cidade de Araçatuba e, recentemente, esteve em tournée pelo Japão.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
32

Anexo – Lista de peças brasileiras para piano a quatro mãos


Marcelo Greenhalgh Thys - O piano a quatro mãos no Brasil (p. 20 a 34) 33
Claves n.° 5 - Maio de 2008
34
Angelo José Fernandes e Adriana Giarola Kayama - A sonoridade vocal e a prática coral... (p. 35 a 51)
35

A sonoridade vocal e a prática coral na Renascença: subsídios para a


performance da música renascentista

Angelo José Fernandes (Unicamp)


Adriana Giarola Kayama (Unicamp)

Resumo: Este trabalho é uma pequena parte de uma ampla pesquisa sobre prática e sonoridade de diversos estilos
de música coral. A partir de uma investigação bibliográfica sobre autores do período renascentista, neste artigo
temos como objetivos: a descrição da sonoridade vocal e coral ao longo do período renascentista; a abordagem
dos tipos vocais da época; a análise de alguns procedimentos técnico-vocais; a descrição de características
importantes da prática coral no período; e, por fim, uma apresentação de sugestões técnicas e estilísticas para a
prática da música coral renascentista.
Palavras-chave: Renascença. Música vocal. Regência coral. Técnica vocal. Práticas interpretativas.

The vocal sonority and the choral practice in the Renaissance period: guidelines for the performance of Renais-
sance Music

Abstract: This paper is a small part of a large study about the practice and sonority of many choral music styles.
Through bibliographical investigation of works written by authors from the Renaissance, our goals in this article
are: the description of the vocal sonority in the Renaissance; the presentations of the vocal types in the period;
the analysis of some vocal techniques; the description of important aspects of the choral practice; and finally, the
presentation of some technical and stylistic suggestions for the practice of Renaissance choral music.
Keywords: Renaissance period. Vocal music. Choral conducting. Vocal technique. Performance practice.

Também conhecida como a “era do Humanismo”, a Renascença foi um tempo de redescoberta da


dignidade e dos interesses do homem. De fato, o Humanismo é o coração e a alma do período renascentista.
Seu espírito se refletiu até na mudança do ideal sonoro. O som impessoal, distante, desumanizado e abstrato
da Idade Média foi aos poucos deixando de existir, na medida em que o ser humano individual se tornava
mais importante. Essa mudança do ideal sonoro vocal aconteceu durante o século XV. Antes do final do
século, a aparência forçada das faces dos cantores que apareciam nas pinturas medievais já tinha perdido tal
aspecto. As imagens dos cantores nas pinturas renascentistas apresentavam um aspecto mais natural e agra-
dável. “A técnica vocal mudou, tornando o som mais próximo do que chamamos natural, embora ainda com
um mínimo de vibrato e sem o intento de desenvolver mais potência além da atingida naturalmente” (NEWTON,
1984, p.16).
O som da música renascentista cantada é um de seus elementos mais característicos. A estética de
qualidade sonora freqüentemente associada a essa música tem, em sua “pureza” e “delicadeza”, um podero-
so apelo aos ouvidos modernos. Entretanto, descrever ou reconstruir esse “som” é uma tarefa árdua por
razões como: a natureza subjetiva do som, o desafio de transformar “entidades” não verbais em palavras,
além da ausência de uma “voz histórica” como um recurso sonoro, um artefato sônico sobrevivente ao longo
da história. Descrever características da sonoridade renascentista vai exigir considerações e reflexões a
respeito do que se sabe sobre coros da época, timbres, técnica de produção vocal, dicção dos idiomas,
fraseado, textura e dinâmica.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
36

1. Sobre qualidade sonora, timbre e técnica vocal


1.1. A “cor sonora” da música vocal renascentista
Apesar de não haver unanimidade entre os estudiosos, a qualidade sonora da música vocal renascentista
consegue reunir grande quantidade de opiniões convergentes. Para descrever tal sonoridade bem como as
técnicas de produção vocal do referido período, recorremos a vários autores atuais e a tratadistas da época
como Nicola Vicentino (1511-c.1576), Ludovico Zacconi (1555-1627), Giovanni Camillo Maffei (segunda
metade do séc. XVI), Gioseffo Zarlino (1517-1590), entre outros.
Newton observa que “os cantores esforçavam-se para obter um som puro, claro que fosse suave e
charmoso.” (NEWTON, 1984, p.16). Ele ainda ressalta que:

Claramente, uma voz assim cultivada terá um espectro de dinâmicas relativamente pequeno, com possibilida-
des expressivas limitadas. Talvez tivesse delicadeza, talvez tivesse ternura, talvez tivesse brilho; mas sem um
maior volume, grande parte da qualidade expressiva que nós tomamos como certa não poderia existir. [...] Os
cantores descobriram uma técnica vocal particularmente apropriada para o canto florido. Este foi o começo do
que Garcia, três séculos depois chamou de timbre claro. O som devia ser bem leve, bastante direcionado para
a frente [(focado)], mais livre na garganta do que o que os cantores anteriores haviam experimentado, e ainda,
quase sem vibrato. Esse tipo de som devia exigir pouca respiração, tornando possíveis as longas e rápidas
divisões (Idem).

De fato, grande quantidade de escritores sobre música renascentista afirma que uma boa voz devia ser
aguda, suave e sonora, sendo a suavidade a virtude unânime entre comentadores da época e das gerações
posteriores. Citando Tinctoris, Plank comenta que:

Ao exaltar as qualidades da música renascentista, Tinctoris ressalta a suavidade repetidamente. Para ele, a
suavidade é a qualidade do novo contraponto consoante que emergia no século XV, e também, presume-se,
está ligada à qualidade com a qual este contraponto é cantado. (2004, p.17)

Ao apontar a suavidade como uma das características do canto renascentista, devemos, pois, abordar
a existência de dois tipos de canto no período. Segundo Zarlino:

Nas igrejas e nas capelas públicas canta-se de um modo, e nas câmaras [ou salas] privadas [canta-se] de
outro. Nas [primeiras] canta-se com a voz potente, mas com discrição [...] enquanto que nas câmaras canta-
se com uma voz mais delicada e suave, sem nenhuma estridência. (apud UBERTI, 2000, p. 19)

Entendemos, portanto, que ao canto de capela era atribuída a percepção de uma sonoridade mais
potente em volume, enquanto que ao canto de câmara mais leveza e suavidade. Uberti observa que, assim
como Zarlino, Zacconi distinguiu entre a suavidade do canto de câmara e a abundância sonora do canto de
capela:

Quem diz que uma voz se faz gritando forte está enganado [...] porque muitos aprendem a cantar suavemente
e na câmara (onde cantar forte é abominado) e não são, necessariamente, obrigados a cantar em igrejas e em
capelas onde cantam os cantores pagos. (Ibidem, p. 20)

Zacconi critica a suavidade excessiva e o canto forte excessivo, mas parece ser particularmente sensí-
vel ao timbre mais brilhante se este for produzido convenientemente:
Angelo José Fernandes e Adriana Giarola Kayama - A sonoridade vocal e a prática coral... (p. 35 a 51)
37

Deixe-o aprender como requintar a voz de modo que não abafe os outros; porém, por mais que seja permitido,
sem cantar tão suavemente de modo [a deixar] que a música na qual ele é introduzido a cantar pareça vazia, ou
sem aquela parte vocal; porque ambos são defeitos intoleráveis. [...] Esteja alerto também para não seguir
aquele estilo, condenado pelos bons cantores, de cantar tão forte de forma que não se consiga cantar mais
forte. […] Muitos têm o que é chamado de voz de cabeça, a qual é produzida por cantores com um evidente
som frágil, e a quebra [ou passagem] é algo [também] evidente que quase sempre é ouvido; e ainda, deixe-os
serem recomendados a moderarem isso para que não ultrapassem os outros e também porque esta voz de
cabeça é geralmente ofensiva. [...] E deixe aqueles, que se encontram num lugar onde há o interesse de gritar,
tomar cuidado e cantar as notas corretamente e alegremente e com uma voz nem forçada nem lente; mas com
a força que a natureza os garante, pois uma voz forçada, estando defeituosa, sempre agride. [...] Da mesma
forma, ao cantar notas agudas quietamente não se deve forçá-las se elas não saem convenientemente;
porque é melhor fingi-las ou omiti-las. (Idem)

Observamos que, o canto de câmara, realizado em espaços não eclesiais, estava mais próximo da
suavidade citada e, provavelmente, exigia uma produção vocal diferenciada. Em ambientes mais íntimos, a
música vocal de câmara era executada com certa variedade de instrumentos e buscava a maior flexibilidade
sonora e a melhor comunicação dos textos. O excesso de volume não era apenas desnecessário, mas alta-
mente indesejável.
A respeito da sonoridade nos dois tipos de prática vocal da Renascença e de aspectos técnicos vocais
para se atingi-la, Hargis conclui que:

A música renascentista exige a pureza do som, um som claro e focado sem vibrato excessivo, a habilidade de
se cantar leve e com agilidade, e o controle de um amplo espectro de dinâmicas: canto alto [ou seja, com
intensidade dinâmica] particularmente para a música de igreja, e canto de médio a suave, para a maioria dos
instrumentos acompanhantes. [...] Os elementos essenciais incluem o bom apoio respiratório, vogais resso-
nantes bem formadas, e o som focado. [...] É importante ressaltarmos que cantar leve não é cantar fraco, e que
um som plenamente sustentado, firme e ressonante é sempre um bom estilo! (1994, p. 04)

Outro caminho para se entender a qualidade sonora vocal renascentista é tentar formular sons vocais
com base no que conhecemos da qualidade sonora dos instrumentos da época, já que os instrumentistas
daquele tempo aspiravam imitar a voz humana. De forma geral, podemos dizer que tais instrumentos tinham
uma qualidade sonora focada, “estreita”, em muitos casos brilhante e sempre acompanhada por um alto grau
de qualidade vocálica no som. Quanto ao volume, devemos ressaltar que seu alcance era significativo. A
comparação entre o som vocal com o som dos instrumentos já era comum no período renascentista. Alguns
escritores chegavam a sugerir que, como o órgão, a voz humana deveria buscar uma diversidade de sons de
acordo com o registro vocal: no registro grave deveria se produzir um som pleno e abundante, no registro
médio, um som moderado e no agudo, o som deveria ser suave. Deste modo, a uniformidade de som em
toda a extensão vocal seria evitada em favor da variedade de dinâmica e cores sonoras. Plank ressalta que:

A variedade de timbre é um componente do que podemos chamar de uma ‘estética da diversidade’, que tem
várias manifestações na música da Renascença. A variedade de articulação e o comum uso de ornamentação
também vêm, imediatamente, à mente. (2004, p. 15)

Se por um lado a diversidade é defendida por muitos comentadores da época, por outro, ela parecia
ser um tanto crítica para a execução de alguns repertórios. Na música coral a questão timbrística está intima-
mente ligada à mistura sonora das vozes que formam o coro. No contraponto imitativo do século XVI, por
Claves n.° 5 - Maio de 2008
38

exemplo, a igualdade das vozes era fundamental. No discurso contrapontístico as vozes possuem uma mesma
importância e, embora esta igualdade apareça de forma mais clara melodicamente, não se pode deixar de
buscá-la através da dinâmica e do timbre. Por outro lado, determinados estilos privilegiam determinadas
linhas vocais que necessitam de certo destaque e, portanto, devem ser cantadas com maior volume. Além
desta distinção de dinâmica entre as vozes, a distinção de timbres também pode ser um recurso apropriado
para possibilitar essa hierarquia.
Outra importante questão associada à qualidade sonora vocal da Renascença é o uso do vibrato. Para
Blachly, o canto renascentista era caracterizado por uma sonoridade leve, clara com pouco ou nenhum
vibrato. Citando uma passagem de Gaffurius, ele relata que:

O tipo de canto que é mais compatível à natureza do repertório renascentista é leve, porém claro, ainda notável
por sua pureza de som e força expressiva. Gaffurius, em uma das poucas observações explícitas sobre a produ-
ção vocal anterior a era barroca, diz em sua Pratica musicae de 1496 que os cantores não deviam deixar suas
vozes trêmulas porque isto obscurece o contraponto. Mais adiante, ele critica ‘os sons que têm um vibrato
grande e alarmante, já que estes sons não mantêm uma verdadeira afinação’. (1994, p. 14)

Uberti supõe que no canto religioso mais sonoro é possível que o vibrato fosse um elemento mais
constante, porém, não tão notório quanto na música romântica do séc. XIX. Por sua vez, baseado numa
análise histórica e em estudos modernos, Plank ressalta que opiniões e comentários sobre vibrato são crono-
logicamente diversificados. O autor confronta opiniões daquele tempo com opiniões de músicos atuais e
conclui que:

Os vários tipos de vibrato oferecem atrações diversas e apresentam problemas diferentes. Em repertórios
mais antigos, o vibrato [que altera] a afinação, isto é, a variação trinada da afinação, é problemático num estilo
que se favorece da clareza do contraponto e da pureza da entonação. Um vibrato intenso, porém, produzido
pelo diafragma, pode enriquecer o som e, usado com discrição, ser uma parte criativa do vocabulário expres-
sivo. (op. cit., p. 22)

Na verdade, o uso controlado do vibrato favorece a clareza da afinação e do timbre. A “estreiteza”, e


a frontalidade do som ficam mais expostos com o controle do vibrato. Fisiologicamente falando, essa clareza
pode ser conseguida pela posição elevada da laringe que, combinada com a diminuição da pressão subglótica,
produz um som leve e uma rica distinção dos sons vocálicos. O resultado não só propicia a articulação mais
clara do texto, como também, uma variedade timbrística expressiva com a diferenciação das vogais.

1.2. A técnica de produção vocal na Renascença


Muitos cantores atuais têm buscado um maior conhecimento sobre a produção vocal dos períodos
renascentista, barroco e clássico. Contudo, ainda se formam vozes “pré-românticas” a partir de critérios bem
menos seguros do que os utilizados para a reconstrução de instrumentos dos citados períodos. Para Uberti,
há uma distinção entre a técnica de produção vocal “antiga” – renascentista, barroca e clássica – e a român-
tica. Tal distinção pode ser observada a partir: da forma de manipulação da tensão nas pregas vocais, do
método de passagem do registro médio para o agudo e da posição da laringe.
O autor ressalta que, sendo músculos, as pregas vocais têm a capacidade de contrair-se ativamente, e
quando se fala forte e de forma emocional, elas se tornam rígidas numa contração isométrica contínua que é
Angelo José Fernandes e Adriana Giarola Kayama - A sonoridade vocal e a prática coral... (p. 35 a 51)
39

marca da técnica vocal romântica. Essa rigidez das pregas permite que os pulmões ajam sobre elas com
maior pressão, produzindo um som correspondentemente mais potente. Ao mesmo tempo, porém, elas se
tornam menos ágeis, necessitando de um maior esforço para resolver problemas de passagens e similares. O
autor observa que na produção vocal renascentista elas eram estendidas por outros músculos no interior da
laringe, que as puxava indiretamente por meio de um movimento lateral das pequenas cartilagens em forma
de funil às quais elas estavam unidas na parte posterior. Sua própria contração ativa ficava então limitada ao
controle da entonação. Essa técnica, combinada com a técnica de passagem para o registro agudo, permitia
às pregas vocais um maior alcance e uma maior flexibilidade; elas eram ainda capazes de se contraírem até
certo grau a fim de alterar o timbre para se conseguir refinadas nuances de expressão. Segundo Uberti,
provavelmente este tipo de técnica foi utilizada pelos cantores de câmara, pois de outra maneira eles não
teriam conseguido improvisar as passagens elaboradas e ornamentadas prescritas nos tratados da época.
Potter completa dizendo que:

Uma observação comum é que as passagens rápidas se originam na garganta. Isto não é exatamente o truísmo
que parece ser, mas sim, o canto extremamente rápido, que pressupõe uma virtuosidade que vem de um cantar
leve, ágil e quieto com a energia concentrada na garganta e que deixa que a respiração cuide de si mesma.
(1992, p. 315)

No tocante à passagem do registro médio para o registro agudo, Uberti observa que tanto na técnica
antiga quanto na romântica, o pomo de Adão – parte frontal da tireóide – é inclinado para frente por múscu-
los do lado de fora da laringe – cricotireóideo reto – e por meio disso, estende as pregas vocais. Na técnica
renascentista tal processo é alcançado trazendo para frente as pontas corniculadas superiores da tireóide,
enquanto que na técnica romântica o pomo de Adão é abaixado. “Para realizar o mecanismo fonatório menos
dinâmico da técnica vocal antiga, a inclinação anterior do pomo de Adão poderá ser facilitada adotando-se
uma posição da mandíbula para frente” (UBERTI, 2000, p.15).
No que diz respeito à posição da laringe, o Traité complet de l’art du chant de Manuel Garcia
apresenta sistemática e detalhadamente a “nova” técnica. Garcia relata na técnica do século XIX a laringe
devia ser mantida constantemente baixa. Uberti observa que esta posição mais baixa [...] escurece a voz
através do aumento do trato vocal. A regra de Garcia de manter a laringe baixa favorece um timbre homogêneo
que ele e seus contemporâneos chamavam de voix sombrée. Uberti observa que neste timbre, o mais
difundido no Romantismo, todas as vogais têm um formante da garganta que corresponde ao do som do [u]
(como em sul), que um ventríloquo poderia fazer se quisesse produzir um grunhido o mais grave possível sem
alterar seu sorriso. Por outro lado, como a laringe permanece baixa, a língua acaba por ter menos liberdade
para diferenciar as formas de cada vogal, uma vez que sua base está presa a um osso cuja posição é deter-
minada pela posição da laringe. Diferentemente da qualidade sonora da voix sombrée era o timbre resultante
da técnica antiga: o timbre clair. Neste caso, a laringe posicionada mais alta, proporcionava um timbre mais
claro e brilhante, e facilitava a enunciação dos textos.
Baseado nas comparações entre as técnicas de produção vocal, Uberti ainda discute o relacionamento
entre a homogeneidade do timbre e a inteligibilidade das vogais e, em seguida, trata da questão do vibrato.
Sobre o primeiro assunto, o autor ressalta que:
Claves n.° 5 - Maio de 2008
40

Nós tendemos a considerar uma voz homogênea em timbre quando a afinação do primeiro formante permane-
ce bastante constante durante a pronunciação das diversas vogais. Quando a dimensão da cavidade da
garganta muda perceptivelmente a cada vogal, o efeito é de aumento da claridade e de perda da consistência
no timbre vocal. Quando a mandíbula é mantida para frente (como no canto renascentista), o tamanho da
cavidade da garganta é levemente aumentado [e assim estabilizado], e as vogais são, de certo modo, arredon-
dadas. No entanto, quando a garganta é alargada uniformemente com o abaixamento da laringe, o timbre se
torna muito homogêneo e, de fato, todas as vogais ficam com a cor do [u]. (Ibidem, p.16)

Quanto ao vibrato, Uberti diz que o efeito deste sobre a voz é mais perceptível entre os harmônicos
mais agudos, e uma vez que as técnicas modernas tendem a concentrar certa energia nos harmônicos agudos,
o vibrato parece ser mais notável do que ele é realmente. O som metálico dos harmônicos agudos e o vibrato
acentuado estão tão intimamente associados que, hoje quando se escuta uma voz não metálica, provavel-
mente esta apresenta um moderado ou nenhum vibrato. Ele completa dizendo que:

É possível, do ponto de vista da emissão, reduzir o vibrato da voz ao ponto de torná-la fixa, mas eu não
conheço nenhum autor que tenha feito tal pedido. Ao contrário, a prática de firmar ou vibrar a voz segundo
exigências expressivas está bem documentada no canto de câmara renascentista e barroco, ao passo que,
penso ser razoável, deduzir que no canto mais sonoro de cappella, o [vibrato] fosse um elemento constante,
ainda que não da maneira evidente como no mais tardio canto do teatro romântico. (Ibidem, p. 18)

Por fim, a respeito de respiração pouco se pode afirmar. Uberti observa que Zacconi, em sua discus-
são, inclui a seguinte referência sobre técnicas de respiração:

Duas coisas devem ser buscadas por todos que desejam seguir essa profissão: peito e garganta; peito
para poder [...] conduzir um grande número de figuras [ou notas] ao seu término; a garganta então, para
poder reproduzi-las facilmente; uma vez que muitos não possuem nem peito nem flanco, em quatro ou
seis figuras [ou notas] julgam conveniente interromper seu desenho melódico. (ZACCONI apud UBERTI,
2000, p. 20).

Para Uberti o termo petto1 refere-se claramente à capacidade respiratória do cantor. Por outro lado,
o autor ressalta a utilização do termo fiancho,2 através do qual Zacconi estaria se referindo à sensação que
é sentida na região dos últimos pares de costelas quando os músculos do abdômen dão sua real contribuição
ao controle da respiração no canto.

2. Os coros da Renascença
2.1. Tamanho dos coros
Os estudos realizados concluem que o tamanho dos grupos corais renascentistas era relativamente
pequeno se comparado aos atuais. Dificilmente os estudiosos concordam a respeito de números precisos,
mas, propõem questões significativas sobre o tema.
A primeira questão a ser analisada é o número de cantores que cantavam em cada parte. Se por um
lado existem documentos que nos levam a crer que alguns coros tinham dois, três ou mais cantores por parte,
por outro há documentos que confirmam que determinadas composições foram escritas para serem executa-
das por um único cantor em cada parte. Plank (2004, p. 32) observa que “em Roma, Palestrina escreveu os
1
Lit.: peito
2
Lit.: flanco
Angelo José Fernandes e Adriana Giarola Kayama - A sonoridade vocal e a prática coral... (p. 35 a 51)
41

nomes dos oito cantores que cantariam uma composição a oito vozes da Improperia3 na Cappella Giulia,
uma indicação clara de um cantor por parte”. O autor também relata que:

[…] Em Roma, no Colégio Alemão em 1589, há uma referência sobre um cantor estar impossibilitado de cantar
na capela e trazerem um trombonista como seu substituto. Em primeiro lugar, por que um substituto seria
necessário se mais de um cantor estivesse cantando a parte? Além disso, um trombonista ser trazido ao invés
de outro cantor reforça [o argumento] que as notas precisavam ser representadas – por quem quer que fosse.
(Idem)

Esta questão da utilização de grupos vocais solistas é um fato, não só na música religiosa, mas princi-
palmente na secular. Contudo, apesar da imprecisão dos números, há também uma vasta documentação e
uma série de evidências que dão suporte à idéia da existência de coros com mais de um cantor por parte. Em
1630, por exemplo, decidiu-se que os cantores da Capela Papal deveriam ser três por parte. Plank ainda
comenta que:

[…] Pode-se também levar em conta a freqüência com a qual compositores como Palestrina adicionam uma
parte vocal extra na seção final do Agnus Dei das missas. Se a missa é executada por solistas, quem canta a
parte adicionada? Alguém cuja única tarefa é aquela seção final? [...] Peças policorais eram geralmente
executadas com um coro desdobrado, fornecendo um contraste tanto de volume quanto de qualidade do
som. Por exemplo, em Syntagama Musicum III, Praetorius usa as palavras ‘omnes’ e ‘solus’ para designar
números de cantores em uma parte. [...] Similarmente, em seus Salmos de Davi de 1669, Heinrich Schütz
designa alguns dos coros em texturas policorais como cori favoriti, formado por aqueles [cantores] prefe-
ridos pelos mestre de capela. Apesar de não ser explicito em suas observações prefaciais, aqueles favori-
tos têm sido geralmente interpretados como solistas. Schütz aprendeu sua escrita policoral em Veneza sob
a instrução de Giovanni Gabrieli. [De maneira] reveladora, num trabalho como o grandioso moteto policoral
‘In ecclesiis’ de Gabrieli, um coro é designado ‘voce’ e recebe linhas floridas, apropriadas a solistas.
(Ibidem, p. 33)

Diante das evidências sobre a existência de coros e grupos vocais solistas é coerente pensar na
existência de ambos, principalmente na execução da música religiosa. Grande parte dos documentos que
indicam a existência de coros se refere aos grupos mantidos pela Igreja. Na verdade, o que se pode afirmar
é que por volta de 1430 a polifonia religiosa deixou de ser cantada exclusivamente por grupos solistas e
passou a ser também executada por grupos corais. Na medida em que os compositores de música sacra
passaram a explorar as capacidades do coro, aconteceu um rápido progresso no desenvolvimento do coro
como veículo para a performance da música polifônica. Com o passar dos anos, os coros eclesiais se torna-
ram maiores. Bukofzer relata que a Capela Papal tinha apenas nove cantores em 1436. Esse número foi
gradualmente crescendo de 12 para 16, e finalmente para 24 cantores na segunda metade do século. Na
Inglaterra, coros como o coro do King’s College de Cambridge em 1448 e o coro do Magdalen College de
Oxford em 1484, chegaram ao número de 32 cantores, sendo 16 meninos e 16 homens adultos. Plank ainda
relata que:

Por volta da virada do século XVI, os coros italianos parecem ter vivido uma época de crescimento. A catedral
em Milão foi de sete cantores adultos em 1480 para quinze em 1496; da mesma forma a catedral de Florença
cresceu de cinco ou seis adultos em 1480 para dezoito em 1493. Este nível também seria característico cem anos
depois. Em 1603, Santa Maria Maggiore em Bérgamo teve dezoito cantores (a disposição de soprano a baixo era
4, 5, 6, 2 com um cantor não identificado quanto a parte vocal); em 1610 tiverem dezesseis (2, 3, 5, 4 e dois

3
Improperia é o conjunto de textos de caráter repreensivo que Jesus teria proferido contra os judeus. Esses textos são
utilizados na liturgia da sexta-feira da Semana Santa durante a cerimônia de adoração da cruz.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
42

cantores não identificados quanto a parte vocal). Este seria o tamanho [do coro] da Capella Giulia no século
XVII, apesar da Capella Sistina, possivelmente refletindo seu exclusivo prestígio papal e a magnificência
ligado ao mesmo, somava um número de trinta. Grupos da França e dos Países Baixos também viveram
crescimentos por volta da virada do século XVI. Por exemplo, os grupos de doze homens em lugares como a
Capela Real Francesa, Cambrai, e a Capela de Borgonha na última parte do século XV, cresceriam em breve
para 16, como em Cambrai em 1516 e Conde em 1523. (Ibidem, p. 35)

É fato que a maioria dos coros do período não ultrapassava os números citados, embora existam
exceções importantes como o Hofkapelle de Munique dirigido por Orlando di Lasso, que por volta de 1570
atingiu o número de 92 membros sendo 16 meninos, 6 castrati, 13 falsetistas (alto), 15 tenores, 12 baixos e
30 instrumentistas.
Garretson ressalta que, curiosamente, no século XV o número de cantores no coro também dependia
do tamanho do manuscrito da partitura. O autor observa que no princípio da Renascença os manuscritos
musicais possuíam um tamanho suficiente para três ou quatro pessoas o seguirem enquanto cantavam. Por
volta do meio do século XV, os manuscritos se tornaram maiores, e passaram a existir os então chamados
livros corais gigantes, que podiam ser lidos de uma distância relativamente grande por um grupo maior.
Outra questão importante quanto ao tamanho dos grupos é a distinção entre o canto de cappelle e o
canto de camere, fato claramente afirmado por importantes tratadistas. Vicentino menciona que “nas igrejas
se cantará com vozes cheias e com grande número de cantores.” Sua expressão “moltitudine de Cantanti”
é a forma que o autor usa para distinguir entre o canto-coral e a prática de madrigais na qual se usava um
cantor por parte.
No tocante à prática da música secular, incluindo madrigais, chansons e frottolas, Garretson observa
que nos séculos XV e XVI, as evidências, principalmente pinturas do período, indicam que apenas um
pequeno número de executantes solistas era usado e nunca coros. Swan ainda afirma que como os madrigais,
as chansons, os lieder e semelhantes eram muito subjetivos em seus textos, eles eram cantados por um número
pequeno de pessoas, normalmente uma ou duas vozes para cada linha vocal da canção. Nas cortes e nas casas
de aristocratas da época, os madrigais, as canções e todos os outros tipos de música secular eram executados
por cantores e instrumentistas amadores, às vezes orientados ou liderados por músicos profissionais. Tanto
homens quanto mulheres cantavam e os instrumentos eram livremente utilizados com as vozes.

2.2. Os tipos de vozes


Conforme relatamos anteriormente, o repertório secular era executado por grupos vocais de câmara,
formados por cantores solistas de vozes mistas. A execução da música religiosa ficava a cargo dos coros que,
na Renascença, eram formados por homens. Plank (Ibidem, p. 41) ressalta que “temendo que a voz feminina
se tornasse um elemento de instigação, sedução e distração, a igreja tradicionalmente permaneceu fiel ao
dito4 de São Paulo, mulieres in ecclesiis taceant”.5 Com base neste fato e no que foi anteriormente relatado
sobre técnicas de produção vocal do período, cabe-nos, pois, a tentativa de descrever os tipos de vozes que
formavam os grupos corais renascentistas.
4
1Cor, 14:34-35
5
Lit.: mulheres na igreja silenciam.
Angelo José Fernandes e Adriana Giarola Kayama - A sonoridade vocal e a prática coral... (p. 35 a 51)
43

Nos coros masculinos, as partes agudas eram cantadas por meninos. Essas linhas podiam, em alguns
lugares, serem cantadas por castrati, pela combinação de meninos e castrati, ou ainda, por falsetistas –
homens adultos treinados para cantar em falsete. Evidentemente, as partes destinadas às vozes de tenor e
baixo eram cantadas por homens adultos. É importante ressaltar que tanto os meninos quanto os tenores e
baixos usavam o registro de peito até o mais extremo possível. Um pouco mais problemática era a execução
da linha de extensão média, escrita na clave de dó na terceira linha, que hoje chamamos de contralto. Essas
linhas eram agudas para os tenores e graves para os falsetistas, e por isso, exigiam tenores capazes de cantar
fácil e levemente as notas mais agudas e, ainda assim, com a habilidade de usar o falsete, já que cantar todo
o tempo numa tessitura tão aguda devia ser exaustivo para a musculatura vocal. Wistreich acrescenta que:

Se partirmos do que sabemos sobre os cantores de igreja nos séculos XVI e XVII, várias outras possibilida-
des se tornam aparentes. As linhas vocais na música sacra renascentista e barroca escritas na clave de dó na
terceira linha e que subiam até o sol 3 [sol agudo de tenor] ou mais agudo podiam bem ser cantadas no
registro de peito por cantores [capazes de evitar] a quebra [ou seja, a passagem] para o falsete, mas talvez,
com uma intensidade e dificuldade de qualidade de som não normalmente associada a esta música atualmente.
Da mesma forma, as linhas poderiam ter sido cantadas por vozes sem quebra, cujos registros de peito eram
potentes até as notas mais graves da extensão através de exercício consciente. Vale a pena lembrar que muitas
das polifonias renascentistas estão escritas em chiavette, claves que implicam um grau de transposição
descendente. (2000, p. 181)

A presença de meninos cantores proporcionou aos coros renascentistas um som bastante marcante
desse tempo. Quanto à seleção desses meninos, Garretson diz que:

“Tradicionalmente, a Igreja acolheu, abrigou e educou órfãos. Como parte de seu treinamento, algumas
destas crianças foram preparadas para participar em ritos solenes e serviços de suas igrejas. [...] Os meninos
mais talentosos musicalmente recebiam instrução intensiva de música e participavam junto aos homens na
apresentação da música sacra no começo da Renascença.” (1993, p. 08)

Outro aspecto marcante da sonoridade renascentista foi a presença de castrati, contratenores e


falsetistas. A utilização do falsete foi fundamental, principalmente como um recurso para a execução das
linhas de soprano, já que muitas vezes era necessário substituir ou reforçar as vozes dos meninos. Na execu-
ção das linhas de contralto e de tenor tal utilização é justificada pela tessitura aguda. A respeito do falsete
Garretson relata que:

No começo da Renascença, homens cantando com suas vozes de falsete eram geralmente usados para
reforçar as vozes dos meninos. Como podia ser esperado, surgiram problemas, já que os meninos ocasional-
mente eram desordeiros e suas vozes mudavam muito cedo depois de serem propriamente treinados. Durante
a segunda parte do século XV, a extensão da música polifônica cresceu para além daquela que os falsetistas
italianos podiam cantar. Entretanto, a Espanha desenvolveu um sistema especial para treinar a voz de falsete
que melhorou ambas, a qualidade e a extensão. Durante o século XVI, muitos falsetistas espanhóis foram
exportados à Itália, e muitos foram empregados no Coro Papal, no qual cantavam a parte mais aguda ou as
duas partes mais agudas dos motetos e missas. Deve ser entendido que a voz de contralto masculina é
desenvolvida a partir da voz natural de barítono enquanto o falsete de soprano é desenvolvido a partir de
uma voz de tenor naturalmente aguda e leve. Eventualmente, falsetistas substituíam os meninos cantores nas
catedrais. (Idem)

O som agudo e claro associado ao falsete masculino continuou crescendo em popularidade, e durante a
última metade do século XVI alguns meninos foram substituídos por cantores adultos que se submeteram ao
treinamento ‘secreto’ na Espanha. (KRAMME, 1971 apud GARRETSON, ibidem, p. 21)
Claves n.° 5 - Maio de 2008
44

Apesar do comprovado uso do falsete, não se pode esquecer que a utilização da voz de peito até seus
extremos agudos era preferida. Mesmo considerando que grande parte da polifonia religiosa renascentista
não exigia vozes individuais para cantar especialmente em seus respectivos registros agudos, o som do canto
de meninos e de homens adultos até o limite agudo de seus registros de peito devia ser inevitavelmente
estridente. Na música executada por coros masculinos, os cantores podiam optar em cantar em alturas mais
graves, a fim de evitar a utilização do falsete. Wistreich conclui que:

Nós devemos assumir que grande parte da música escrita da Renascença e do Barroco se ajustava às
extensões normais de voz de peito da maioria dos cantores sem recorrer às modificações especiais como a
‘voz de cabeça’, e que toda a prática de execução da polifonia renascentista não dependia da disponibilidade
de tipos de vozes extremamente raras. (op. cit., p. 182)

2.3. A utilização de instrumentos


O canto a cappella foi, certamente, muito utilizado no período renascentista, contudo, em uma pro-
porção muito menor que muitas fontes musicais sugerem. Na verdade, muitos documentos provam que a
utilização de instrumentos acontecera de fato, mas esta prática variava muito nos vários contextos. Em muitos
casos, como na Capela Papal, a música litúrgica era tradicionalmente executada a cappella. Neste caso, a
ausência dos instrumentos “favorecia uma aura de pureza natural, uma auréola musical para envolver a liturgia
do papa” (PLANK, 2004, p. 38). A utilização de instrumentos foi uma prática que objetivava a duplicação
ou a substituição de uma ou mais vozes, bem como acompanhar vozes solistas ou grupos vocais solistas.
Através da iconografia, por exemplo, observa-se a existência de várias pinturas de celebrações litúrgicas nas
quais cantores e instrumentistas aparecem juntos, num tempo no qual a duplicação ou a substituição de uma
voz ou mais vozes teriam sido as únicas possibilidades de colaboração entre tais cantores e instrumentistas.
Plank cita uma “gravura frequentemente reproduzida de Adrian Collaert – Encomicum musices, 1595 – que
mostra uma missa pontifícia em progresso”:

Uma esplêndida imagem de uma esplêndida ocasião, a figura mostra o bispo como celebrante com o diácono
e o subdiácono ajudando com o turiferário e segurando velas do lado do altar da capela. Atrás deste grupo de
tamanho considerável estão os músicos: cantores e instrumentistas (cornetistas e trombonistas), todos
lendo uma mesma estante sobre a qual um grande livro do coro foi colocado. Atrás do altar, na parte da
epístola (sul) está um outro grupo de músicos reunidos em torno de outra estante comum à todos. Apesar de
menos claro na gravura, pode-se enxergar nela um cornetista atrás de um cantor. O contexto é claramente de
esplendor, com a colaboração de instrumentos e vozes combinando para aumentar a qualidade. As estantes
comuns – todas lidas a partir da mesma página – assim como o estilo predominante no final do século XVI
sugere fortemente que todos os músicos estavam executando as mesmas partes. (Ibidem, p. 37)

Quanto aos tipos de instrumentos utilizados na prática de duplicação ou substituição das vozes do
coro, há evidências que sugerem que os instrumentos de sopro eram preferidos, principalmente na execução
da música religiosa. “Certamente seu uso da respiração e vogal dá [a esses instrumentos] a vocalidade que
funcionava especialmente bem com os grupos vocais. E certos instrumentos de sopro, como o cornetim,
eram particularmente conhecidos pela congenialidade da qualidade de seu som entre vozes” (Ibidem, p. 39).
O grupo de sopros mais comum era o coro de trombones acrescido de um cornetim que executava a voz
aguda. De qualquer forma, é importante ressaltar que a prática instrumental variava muito de um estilo para
Angelo José Fernandes e Adriana Giarola Kayama - A sonoridade vocal e a prática coral... (p. 35 a 51)
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outro, de um ambiente acústico para outro e até entre os países. Ao contrário do canto religioso, por exem-
plo, no canto de câmara executado em ambientes mais íntimos havia quase sempre a participação de instru-
mentos como harpas, violas da gamba, clavicórdios e alaúdes. Segundo Dart (2000, p.175), os registros das
celebrações e festas realizadas em Florença e Veneza revelam que a sonoridade apreciada pelo homem
italiano renascentista incluía órgãos brilhantes levemente soprados, conjuntos de um só timbre e conjuntos de
timbres contrastantes.

2.4. O espaço físico para a performance


Não é muito difícil entender a influência do ambiente físico numa performance musical, uma vez que ele
modela o som, aumenta a recepção, permite variações na interpretação e o faz sempre de forma considerá-
vel. Entretanto, a tentativa de fazer generalizações a respeito de locais para a música coral renascentista seria
em vão. Plank (2004, p.43) observa que os motetos litúrgicos não eram executados somente em ambientes
litúrgicos, mas também ao ar livre, em salas de banquetes, dentre outros. E, ainda que considerássemos
somente as igrejas, teríamos que lembrar que parte dessas construções em uso em 1600 deveriam ser espa-
ços góticos que sustentavam 400 anos de uso contínuo, ou talvez, construções em estilos modernos com
apenas 50 anos de existência. Poderiam ser grandes catedrais ou pequenas capelas. Elas ainda poderiam ter
um espaço apropriado só para o coro ou não. Além disso, qualquer que fosse o espaço, ele poderia ter sido
ajustado com materiais capazes de alterar a acústica. Assim, realidades históricas neste caso são muito
variáveis e impossíveis de serem generalizadas em detalhes. Há construções como igrejas, por exemplo, que
apresentam fenômenos acústicos interessantes como o atraso na recepção do som por parte do público; este
atraso ainda pode ser variante dependendo da dinâmica utilizada pelo coro. Coros renascentistas que canta-
vam em espaços assim tinham que, por muitas vezes, limitar sua faixa de variação de dinâmicas, cantar com
uma articulação mais precisa e diminuir os andamentos executando as obras em andamentos mais lentos.
Evidentemente, isso tem importância histórica. É preciso assumir que os cantores deviam ser sensíveis a
aspectos deste tipo e que, provavelmente, adotavam uma atitude flexível em resposta às características
acústicas de cada ambiente.

3. Sugestões para a construção da sonoridade coral renascentista nos dias atuais


Nossa função atual é um tanto delicada. Até aqui nos limitamos a descrever prováveis sonoridades e
procedimentos de produção vocal da Renascença. Entretanto, não poderíamos nos isentar da função de
refletir, concluir e até mesmo sugerir caminhos para a construção de uma sonoridade adequada para a
performance da música renascentista na atualidade. É preciso estar ciente de que reconstruir “vozes perdi-
das” é uma utopia. Tudo é diferente: desde a técnica até a mentalidade do público que assiste ao concerto.
Uma das conclusões mais fáceis de se chegar em relação à música renascentista é o fato de que o som
claro, leve e brilhante é, se não o “ideal”, o mais adequado para as vozes. Assim sugerimos aos regentes que,
independente da natureza da obra – se sacra ou secular – trabalhem para conseguir dos cantores essa clareza
e leveza do som.
Um pouco mais complexo é definir um procedimento apropriado de produção vocal, uma vez que a
Claves n.° 5 - Maio de 2008
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técnica vocal utilizada hoje é bastante diferente da técnica utilizada na época. O primeiro caminho, embora o
mais difícil, é a conscientização dos cantores do coro a respeito dos dois tipos de produção vocal citadas
anteriormente: a “antiga” e a “romântica”. A partir de uma metodologia adequada o regente pode ensinar os
cantores a produzir uma vasta gama de “cores sonoras”, do timbre mais claro ao mais escuro. Pode-se ainda,
a partir das ferramentas da técnica vocal atual, trabalhar um som mais frontal e focado, além da pronúncia
mais “pura” das vogais. Neste caso é importante que, mesmo buscando o relaxamento da região da laringe,
esta não permaneça muito baixa, e que o som seja todo direcionado para frente. A leveza ainda pode ser
alcançada a partir de dinâmicas mais suaves, principalmente na pronúncia dos sons vocálicos, e da articula-
ção consonantal ritmicamente precisa e pouco acentuada, evidentemente sem que se perca a fluência do
texto. Ressaltamos que é preciso tomar o devido cuidado de não permitir que as vozes se tornem brancas na
tentativa de conseguir a clareza do timbre e a leveza da voz.
Outro aspecto apropriado é o uso reduzido do vibrato. Na verdade, nossa posição é moderada uma
vez que existem vários tipos de vibrato, mas acreditamos que sua utilização exigirá cuidado e discernimento
por parte dos cantores e dos regentes.
Outra questão a se analisar é o número e o tipo de cantores adequados. Entendemos que nossa função
não é indicar números exatos, entretanto, consideramos relevantes as opiniões de autores que, ao escreve-
ram sobre práticas interpretativas, abordaram números “ideais” para se obter uma maior flexibilidade vocal.
Blachly (1994, p.14) acredita que “ter mais de quatro ou cinco vozes por parte também tem suas desvanta-
gens, marcadamente na perda de flexibilidade que tende a vir com forças maiores.” Para o autor, um grupo
de oito a vinte cantores no total é o ideal para a prática da música renascentista. Planchart também cita
números “ideais”, mas os relaciona com algumas características do perfil dos cantores:

Com cantores jovens e estilisticamente inexperientes, três ou quatro vozes numa linha permitem ao grupo
produzir um som bonito sem perder muita flexibilidade e leveza. Quando digo sem perder muita flexibilidade eu
digo em relação ao que tais cantores fariam se cantassem um por linha. (1994, p. 27)

O autor ainda estende sua reflexão sobre tipos diversos vocais e se dirige ao regente coral afirmando que:

Lidando com cantores jovens, o regente de música antiga estará geralmente diante de três tipos: 1) a voz sem
estudo, geralmente sem vibrato e igualmente sem foco; 2) a voz com estudo e com um pequeno vibrato; e 3)
a voz treinada onde se pode ouvir o vibrato e uma constante produção de som com bastante pressão de ar.
Esta última categoria não tem lugar num grupo de música antiga, mesmo quando o grupo está fazendo música
mais tardia como Mozart ou Haydn. Quanto os outros dois, uma voz sem treino não focada acrescenta muito
pouco ao grupo, mas pode ser usada se a pessoa lê muito bem e tem um bom senso de afinação e ritmo.
Geralmente, amadores conseguem aprender relativamente rápido como focar suas vozes (e o regente de
música antiga deve lhes encorajar a procurar instrução quanto a isso) e se tornam boas vozes para o coro. A
voz bem focada, mas não treinada e a voz treinada com um vibrato pequeno e discreto serão as melhores
vozes que um regente de música antiga poderá ter. Na falta de um grupo especialista, uma combinação de tais
vozes produzirá bons resultados na prática. (Ibidem, p.29)

Sobre os tipos de vozes para formar um grupo de música renascentista, Blachly ressalta que as vozes
mais necessárias para a execução da música renascentista são os tenores agudos. Para o autor, um grupo
vocal cujos tenores são limitados em suas extensões na região aguda, é quase impossível de funcionar.
Assim, na falta de tenores agudos, sugerimos aos regentes que trabalhem o falsete dos tenores de forma
Angelo José Fernandes e Adriana Giarola Kayama - A sonoridade vocal e a prática coral... (p. 35 a 51)
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sistemática em busca de uma maior uniformidade sonora em toda a extensão vocal. Quanto aos baixos o
autor afirma que eles devem possuir vozes ricamente ressonantes nos graves, porém não “entubadas”, e, bem
leves na região aguda. Blachly também menciona que a presença de contratenores é extremamente útil para
este tipo de agrupamento vocal. Para ele a combinação de contraltos mulheres e contratenores para a execu-
ção da linha de contralto cria um timbre agradável e apropriado. Finalmente, quanto aos sopranos, o autor
afirma que devem possuir a habilidade de cantar tessituras agudas sem esforço e com grande controle do
volume.
Para concluir essa etapa de nosso trabalho devemos ressaltar que a música vocal renascentista pode
ser executada com acompanhamento instrumental. Embora coros sacros tradicionais prefiram executar as
obras a cappella, vozes e instrumentos eram e podem ser combinados de várias formas. O uso de instru-
mentos de sopro e cordas, dobrando ou substituindo vozes, empregado prudentemente, pode acrescentar
muito à performance.

4. Reflexões sobre a performance da música coral renascentista nos dias atuais: aspectos
interpretativos e expressivos

4.1. Interpretação e expressividade


Uma das metas da interpretação de uma obra é reconstruir suas propriedades palpáveis e presentes no
momento da performance. Na música renascentista tal meta pode originar-se na ornamentação, mas igual-
mente na instrumentação, no fraseado, no gesto expressivo e na variação de dinâmica. Já que tais proprieda-
des a serem fornecidas são tão variadas quanto os executantes, um guia das propriedades da época poderia
ser a forte percepção das várias emoções e suas conseqüências musicalmente naturais. Plank comenta que a
idéia de “modos” afetivos é uma idéia antiga, assim como a idéia de que a música incita reações afetivas
variadas. O autor cita associações emocionais de modos afetivos individuais que Zarlino detalha, em seu Le
Intitutioni harmoniche:

Modo 1 – ‘tem certo efeito entre o triste e o contente’; ‘Podemos melhor usá-lo com palavras que são cheias
de gravidade e que tratam com coisas altas e edificantes.’
Modo 2 – Alguns o chamam de ‘um modo lamentoso, humilde e diminuído.’ ‘Eles diziam que se tratava de um
modo adequado para palavras que representam choro, tristeza, solidão, cativeiro, calamidade e todo tipo de dor.’
Modo 3 – ‘Alguns são da opinião de que o terceiro modo leva alguém ao choro. Portanto eles o forneceram
palavras que são chorosas e cheias de lamentos.’
Modo 4 – ‘Este modo é dito [...] de ser maravilhosamente apropriado às palavras lamentosas ou aos assuntos
que contêm tristeza ou lamentação suplicante tais como questões amorosas, e às palavras que expressem
languidez, quietude, tranqüilidade, adulação, decepção e blasfêmia.’
Modo 5 – ‘Alguns declaram que, no canto, este modo traz à alma modéstia, felicidade e alívio de preocupa-
ções aborrecedoras. Entretanto, os povos antigos o usavam com palavras ou assuntos que tratavam de
vitórias e por causa disso, alguns o chamaram um modo alegre, modesto e agradável.’
Modo 6 – Eclesiásticos ‘o nomearam um modo devoto e choroso, para distingui-lo do segundo modo, que é
mais fúnebre e calamitoso.’
Modo 7 – ‘As palavras que são apropriadas a este modo são aquelas são lascivas ou que tratam com a
sensualidade, aquelas que são contentes e faladas com modéstia, e aquelas que expressam ameaça, perturba-
ção e raiva.’
Modo 8 – ‘Intérpretes de música dizem que este oitavo modo contém certa suavidade natural e uma doçura
abundante que enche os espíritos dos ouvintes com alegria combinada com grande felicidade e doçura.’
Claves n.° 5 - Maio de 2008
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Modo 9 – ‘Possui um rigor agradável, misturado com certa animação e doce suavidade.’
Modo 10 – ‘Podemos dizer que a natureza do décimo não é muito diferente das do segundo e quarto modos.’
Modo 11 – ‘O décimo primeiro modo é, por sua natureza, muito adequado para danças [...] Em função disso
alguns o chamavam de um modo lascivo.’
Modo 12 – ‘Todo compositor que deseja escrever uma composição que é contente não parte deste modo,
[que em salmodia] é lamentoso’. (ZARLINO apud PLANK, op. cit., p. 90)

É importante esclarecer que as características afetivas citadas variam de autor para autor. Não preten-
demos, no âmbito deste trabalho, entrar em tal discussão. Acreditamos que tais citações podem guiar o
intérprete, e assim fortificar a qualidade afetiva dos textos através de signos musicais. Plank, respeitando a
questão das escolhas interpretativas na performance, sugere que a citada suavidade seja refletida através de
dinâmicas leves; a vivacidade conduza a andamentos mais rápidos e, talvez, ao vigor da articulação; a melan-
colia e o lamento sugiram um menor número de cantores, tonalidades mais graves, certa escassez de orna-
mentos, e maior contorno das notas longas; e, devoção e seriedade indiquem igualmente um andamento mais
lento. Assim, concluímos que o texto é o guia natural e evidente do contexto afetivo de uma obra. Nas citadas
descrições de Zarlino é possível se observar o quanto ele se refere à conexão modo-texto. Garretson apre-
senta uma visão parecida, entretanto, um pouco diferenciada da visão de Plank baseada em Zarlino, em
função da natureza da obra – se sacra ou secular. Para o autor, missas e motetos da Renascença são impes-
soais em sua natureza e devem ser executados com a atmosfera de uma reflexão silenciosa e com sinceridade
de sentimentos, como uma prece a Deus e não como um concerto. Independente do caráter do texto religi-
oso deve-se manter a qualidade sonora leve, nunca intensamente dramática e sem vibrato excessivo. Por
outro lado, Garretson propõe uma maior liberdade interpretativa para a execução dos estilos seculares.

4.2. Dinâmica
Naturalmente que as intenções de expressividade de um intérprete influenciam as dinâmicas utilizadas
na performance. No tocante ao período renascentista, podemos afirmar que extremos em dinâmicas são
inapropriados para a fluência das obras. Contudo, acreditamos que crescendos e decrescendos sutis são
essenciais para modelar o fraseado. Outros elementos musicais também interferem na dinâmica. Um motivo
melódico imitativo, por exemplo, deve ser apresentado numa gradação de dinâmica mais forte para ser
reconhecido. As suspensões, por sua vez, deveriam receber uma leve ênfase.
As dinâmicas ainda estão relacionadas com as mudanças dos modos expressivos presentes nos textos.
Garretson entende que as dinâmicas devem ser moderadas e as mudanças de dinâmicas devem acontecer
apenas como as mudanças de andamento – isso é, como contraste de modos entre as seções da música.

4.3. Acentuação e fraseado


A música renascentista era fundamentalmente contrapontística e tinha, como ferramenta, o processo
de imitação que foi utilizado, ao longo de todo o período, por compositores desde Dufay. Como já foi
anteriormente ressaltado, os pontos de imitação devem ser sutilmente enfatizados. As entradas precisam ser
bem definidas e precisas, mas é preciso tomar cuidado para não se fazer acentos muito vigorosos. A ênfase
precisa acontecer, mas nunca deve ofuscar o movimento das outras linhas do contraponto.
Angelo José Fernandes e Adriana Giarola Kayama - A sonoridade vocal e a prática coral... (p. 35 a 51)
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Um processo de realçar palavras ou sílabas importantes deve controlar toda a acentuação que, por
sua vez, pode ou não permitir um padrão rítmico regular. Não podemos nos esquecer de que na Renascença
não existiam barras de compasso. Qualquer tentativa de reger obras deste período com um padrão tradici-
onal de regência pode resultar em acentos métricos padronizados ritmicamente, o que pode destruir as linhas
como elas foram concebidas. Assim, é preciso desenvolver um senso rítmico das frases do texto para que se
atinja o fraseado correto e se crie um senso de direção linear.
Mais uma vez, cabe-nos chamar a atenção para a naturalidade da execução da música renascentista.
Existem vários tipos de abusos relacionados à acentuação e ao fraseado que não condizem com as exigênci-
as estilísticas. Planchart (1994, p. 36) observa, por exemplo, que há um abuso de messa di voce na execu-
ção de obras polifônicas do século XVI. O autor ressalta que tal procedimento é até apropriado para o
repertório solista, mas, segundo ele, houve um tempo em que a utilização desta técnica se tornou uma moda
na execução de madrigais a 5 ou 6 vozes de compositores como Marenzio e Wert. Planchart afirma catego-
ricamente que o resultado destrói a polifonia.
A fim de prestar maiores esclarecimentos sobre procedimentos adequados para a realização do fraseado
na obra renascentista, mais uma vez, recorremos a Blachly. Ele acredita que na música composta antes de
Willaert questões referentes ao fraseado devem ser resolvidas a partir de decisões subjetivas do regente e,
baseado em sua experiência, descreve cinco regras que ele próprio utiliza para a performance da música do
século XV:

A regra número um é aliviar ou suspender no ponto das notas pontuadas; isto ajuda as notas menores
seguintes, ou a próxima nota sincopada, a serem cantadas de forma audível, ainda que, levemente. A regra
número dois é cantar em legato qualquer sucessão de duas ou mais notas de mesma duração, mesmo sendo
estas semibreves, mínimas ou semínimas. A regra número três é crescer nas notas longas e cantar a nota
subseqüente no nível de volume que a nota longa iniciou. A regra número quatro é observar toda pontuação
com leveza, ou se não, com uma pausa completa, no som. A regra número cinco é trabalhar as ligaduras como
guias úteis na articulação. Interpretá-los como se fossem sinais de ligação, com a segunda nota mais suave
que a primeira, ajuda a dar à linha um contorno convincente. (BLACHLY, 1994, p.18)

Para o autor, na música vocal da geração de Willaert em diante, muitos dos problemas de fraseado
podem ser resolvidos pela pronúncia correta das palavras. Segundo ele, isso acontece pela simples razão de
que depois de 1550 grande parte da música vocal era escrita predominantemente com uma nota por sílaba.
Ele ainda ressalta que:

O problema que se coloca diante do regente de um coro […] nem é sequer conseguir que os cantores de uma
linha individual fraseiem musicalmente de forma isolada das outras linhas, mas sim, treiná-los para manterem
sua independência, especialmente quando a linha requer um declínio, enquanto outras linhas estão cantando
outros motivos ou outras palavras. (Idem)

Enfim, a respeito das passagens melismáticas, o autor afirma que:

Estas são normalmente melhor conduzidas usando-se as regras esquematizadas acima para a música do
século XV. Mais importante, [é observar que] as barras de compasso das edições modernas geralmente
sugerem uma acentuação incorreta, visto que o fraseado da música renascentista é diferente da música de
tempos após, especialmente em relação aos últimos dois séculos. [...] Num tempo relativamente curto, é
possível se ensinar a um coro que as palavras são os guias corretos dos padrões de acentuação. (Idem)
Claves n.° 5 - Maio de 2008
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4.4. Pronúncia dos vários idiomas


Muitos executantes de música medieval e renascentista acreditam que para recriar tal música adequa-
damente é preciso ser o mais fiel possível às intenções dos compositores, e assim, tentar realizar a performance
procurando reconstruir os sons que os compositores esperam ouvir. Como já foi anteriormente abordado,
considerando que muitos estudiosos da área bem como construtores de instrumentos têm estado envolvidos
na reprodução de instrumentos musicais autênticos, muitos cantores especialistas nestes períodos têm busca-
do maior conhecimento sobre sua produção vocal e isso inclui aspectos da dicção, como a pronúncia correta
dos textos utilizados pelos compositores de tal tempo.
Evidentemente que a pronúncia correta não irá, por si mesma, garantir uma performance vocal histori-
camente correta. Entretanto, pronunciar corretamente as palavras utilizadas numa composição renascentista
é, definitivamente, um passo na direção certa, além do que, a pronúncia correta irá também influenciar alguns
outros aspectos vocais como a qualidade sonora. A substituição da pronúncia de época por pronúncias
modernas pode resultar na alteração da fluência da métrica das linhas poéticas e num ajuste diferente dos
ritmos, aspectos que podem mudar propriedades sonoras da linha musical. Assim, embora não seja nossa
intenção descrever um guia sobre a pronúncia dos vários idiomas na Renascença, devemos chamar a atenção
para o fato de que a pronúncia historicamente correta pode afetar positivamente o resultado sonoro de uma
obra na performance.
Para maiores esclarecimentos sobre os vários idiomas utilizados na composição renascentista, reco-
mendamos a leitura da obra Singing Early Music: the pronunciation of European languages in the late
middle ages and Renaissance, editado por Timothy J. McGee, A. G. Rigg e David N. Klausner. Este guia
de pronúncia apresenta duas dimensões: a geográfica e a cronológica. Segundo os autores, todas as
línguas apresentavam diferenças de localidade e seu desenvolvimento se deu através dos séculos. A
pronúncia da língua francesa, por exemplo, apresentava diferenças entre o norte e o sul, e certamente em
áreas localizadas em pontos geográficos específicos: ao sul, provavelmente existia diferentes influências
em função da proximidade com a Espanha, ou com a Itália, ou ainda com a Alemanha. Quanto ao aspecto
cronológico, podemos citar como exemplo, a influência do Francês e do Latim sobre a língua inglesa, cuja
pronúncia ao longo dos séculos foi perdendo sua forte acentuação e adquirindo sons mais suaves. Algu-
mas mudanças e variações na pronúncia das diversas línguas aconteciam também como reflexo da própria
ortografia das palavras, muitas vezes alterada por razões geográficas e/ou cronológicas. É importante
ressaltar que, segundo os citados autores, não se pode afirmar que não aconteceram mudanças na pro-
núncia das várias línguas nos últimos três séculos, contudo, as mais significativas aconteceram principal-
mente durante a Renascença e o Barroco.

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Angelo José Fernandes e Adriana Giarola Kayama - A sonoridade vocal e a prática coral... (p. 35 a 51)
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Angelo José Fernandes é mestre em Práticas Interpretativas (regência) pelo Programa de Pós-Graduação em Música
do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, especialista em regência coral e bacharel
em piano pela Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Atualmente é doutorando em
Práticas Interpretativas (regência) pelo mesmo programa, tendo como orientadora a Profa. Dra. Adriana Giarola Kayama.
Atua intensamente como regente coral, tendo alcançado destaque por sua atuação à frente do Madrigal Musicanto
de Itajubá, recentemente premiado no 10th Athens International Choir Festival, na Grécia, onde conquistou a
medalha de prata na categoria Chamber Choirs (coros de câmara) e a medalha de bronze da categoria Mixed Choirs
(coros mistos).

Adriana Giarola Kayama é Doutora em Performance Practice pela University of Washington, EUA; docente da
UNICAMP, atuando nas áreas de canto, técnica vocal, dicção e música de câmara; coordenou os cursos de Gradua-
ção e Pós-Graduação em Música da UNICAMP.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
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A performance falada de textos como ferramenta para o desenvolvimento da


comunicação e interpretação na regência coral

Rita de Cássia Fucci Amato (FMCG)

Resumo: O presente artigo visa relatar o processo de ensino-aprendizagem desenvolvido nas disciplinas Regên-
cia coral I e Regência coral III, na Faculdade de Música Carlos Gomes (FMCG), em São Paulo-SP, em que foi
adotada a prática da interpretação falada de textos como meio para o exercício e aperfeiçoamento de técnicas de
expressão/ comunicação e performance na regência. Tal prática foi avaliada por meio da aplicação de um questio-
nário semi-estruturado aos 16 (dezesseis) discentes das disciplinas, que buscou avaliar a relevância da dinâmica
para a incorporação de uma melhor atuação performática na direção de um grupo musical.
Palavras-chave: Ensino de regência coral. Regência coral. Performance musical. Relação texto-música.

The spoken performance of texts as a tool to the development of communication and interpretation in choral
conducting

Abstract: The present paper aims to discuss the teaching-learning process developed in the subjects Choral
conducting I and Choral conducting III, in the Carlos Gomes Musical College (FMCG), in São Paulo-SP, where it
was adopted the practice of spoken interpretation of texts as a mean to the exercise and improvement of the
techniques of expression/ communication and performance in conducting. This practice was evaluated by means
of the application of a semi-structured questionnaire to 16 (sixteen) students of the subjects, aimed at evaluating
the relevance of the dynamics to the consolidation of a better performance in the direction of a musical group.
Keywords: Choral conducting teaching. Choral conducting. Musical performance. Text-music relationship.

1. Introdução
A regência coral é uma atividade que reclama de seu praticante uma série de saberes e habilidades,
tanto no campo estritamente musical – como o conhecimento de harmonia, teoria, solfejo, contraponto,
piano, canto, entre outros – quanto em sua interface com as mais diversas áreas do conhecimento – caso da
educação, da filosofia (estética), da administração, da comunicação e de muitos outros campos. Nesse
sentido, mostra-se como uma atividade artística eminentemente multidisciplinar.
Conforme comenta Santiago (2007), a pesquisa em interpretação musical se revela como um campo
emergente e aberto ao desenvolvimento de subsídios que avaliem o processo da pedagogia da performance,
área para a qual o presente trabalho visa contribuir.
O foco deste artigo se delineia na perspectiva do desenvolvimento das habilidades de comunicação e
análise literária do regente coral. Para tanto, apresenta e discute a prática da interpretação falada de textos
em verso e prosa desenvolvida no ensino das disciplinas Regência coral I e Regência coral III, componente
curricular dos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Música da Faculdade de Música Carlos Gomes
(FMCG), instituição privada de ensino superior localizada na cidade de São Paulo-SP. Os objetivos de tal
atividade apresentados aos discentes foram:
• Desenvolver postura, padrões de fala e técnicas de apresentação adequadas para o exercício da regência
coral, trabalhando a desinibição e a eficácia da comunicação do regente frente a seu coro e ao público;
• Trabalhar a interpretação falada de textos como recurso para a análise de textos musicais.
Rita de Cássia Fucci Amato (FMCG) - A performance falada de textos como ferramenta... (p. 52 a 62)
53

A pesquisa caracteriza-se assim como um estudo de caso único1 e uma investigação-ação com obser-
vação participante (já que a pesquisadora atuou como docente das disciplinas), buscando explorar o processo
de ensino/ aprendizagem em uma situação de sala de aula (MIZUKAMI, 1986). Para avaliar os impactos das
estratégias de ensino desenvolvidas sobre a aprendizagem da matéria, foram aplicados a todos os 16 (dezesseis)
educandos questionários semi-estruturados, respondidos entre os anos de 2006 e 2007. Esses instrumentos de
pesquisa contiveram questões abertas, visando investigar a opinião dos discentes acerca de cinco aspectos:
• 1) Se a performance falada teve relevância para a incorporação de uma melhor atuação na condução
de coros, aperfeiçoando a comunicação do regente;
• 2) Se foi possível notar a importância da análise de textos musicais para o desenvolvimento da
performance coral;
• 3) Qual texto foi interpretado pelo aluno;
• 4) Se a continuidade dessa atividade é recomendada para os próximos semestres da disciplina;
• 5) Comentários gerais.
Dessa forma, o presente estudo se situa no campo de metodologias de ensino musical e visa contribuir
para a pesquisa acerca do ensino de regência coral, podendo servir de referência tanto para o ensino supe-
rior quanto para outros níveis de educação (cursos livres, conservatórios e ensino particular). A análise dos
questionários aplicados foi conjugada a uma revisão bibliográfica envolvendo basicamente as subáreas musi-
cais de práticas interpretativas, educação musical e regência coral e as áreas de administração (trabalho e
comunicação em grupo) e teoria da comunicação e informação.

2. Sobre o ensino da regência coral


É consenso entre diversos autores e pesquisadores da regência coral que o exercício da atividade de
regente – ao mesmo tempo intérprete e educador – exige de seu praticante uma série de habilidades e
competências. Nesse sentido, são destacados, entre outros aspectos, o conhecimento teórico e prático musical
e vocal, a aptidão física e a ciência de conceitos de áreas diversas (administração, psicologia, sociologia, peda-
gogia, filosofia, fonoaudiologia e outras). Para McElheran (1966, p. 3), “o mais importante requerimento em um
regente é a habilidade para inspirar os intérpretes” e este deve ter “liderança, poder hipnótico, entusiasmo
contagiante, ou simplesmente boa habilidade didática”. Já Max Rudolf (1950, p. 1) coloca que um regente “tem
que saber trabalhar com pessoas em grupo”; nesse sentido, como destacam Amato Neto e Fucci Amato (2007),
a liderança, a motivação, a organização do trabalho e a gestão de recursos humanos é fundamental. Para Ramos
(2003), um regente deve ter amplo conhecimento de técnica vocal, audição apurada para perceber as nuances
de afinação, timbre e precisão rítmica, saberes analíticos e musicológicos, domínio do repertório e de questões
interpretativas da música, além de saber administrar seu grupo. Os conhecimentos do regente coral são essen-
ciais para que o conjunto musical efetive um processo de geração e difusão de diversos benefícios dentro da
prática coral, tais como a aprendizagem musical, o desenvolvimento vocal, a integração interpessoal (sociabilização)
e a inclusão social (FUCCI AMATO, 2007, FIGUEIREDO, 1989).

1
Segundo Yin (2001, p. 32), o estudo de caso é um tipo de investigação focada no estudo de um “fenômeno contemporâneo dentro
de seu contexto na vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos”.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
54

O que se tem notado, entretanto, é uma crescente desqualificação dos regentes corais, que, carecendo
de formação específica, abrangente e sistemática, são ineficientes nos aspectos técnico-musicais, pedagógicos,
vocais e até mesmo psicológicos de sua atuação (SILVA, s./d.). Dessa forma, buscar novas estratégias para
o aperfeiçoamento do ensino de tal matéria é indispensável, considerando-se a projeção de um cenário
futuro com profissionais mais qualificados e competentes.
Ressalta-se, ainda com relação ao ensino da regência, a necessidade de se buscar, sob uma visão
sócio-cultural, desenvolver atividades que coloquem o educando não só como alvo, mas também como agente
de seu processo de ensino-aprendizagem; urge uma abordagem interacionista onde sejam trabalhadas atividades
que desenvolvam o sentido crítico e a criatividade do aluno (MIZUKAMI, 1986). A realização de tais atividades
dialógicas – que proporcionem interação entre o aluno e sua própria atividade de aprendizagem – releva ainda
um outro aspecto de valor na educação regencial: a superação da dicotomia entre teoria e prática:

Nas escolas (que no caso serão exemplos) – é fácil identificar – sempre há um lugar específico para a teoria e
um outro (generalizadamente é um outro) que se reserva para a prática. [...] em alguns momentos, “estuda-
se”, em outros, “pratica-se”. [...] o primeiro é o das salas de aula, o segundo é o dos laboratórios, oficinas, o
dos estágios supervisionados... O importante é que, via de regra, eles são distintos, como se fossem opostos,
quase antagônicos. Dicotômicos, certamente. (BOCHNIAK, 1992, p. 21)

Assim, a aula de regência não deve se restringir a momentos de exclusiva atividade prática – como a
técnica gestual – e instantes de reflexão puramente teórica sobre os outros diversos aspectos adjacentes ao
trabalho com o coro. É nessa perspectiva que o alunado necessita não só discutir, mas também praticar as
outras dimensões comunicativas na regência, pesquisar e apresentar debates sobre as questões pedagógicas
e sociais envolvidas no cerne do canto coral, entre outros exercícios.
Nesse sentido, o desenvolvimento de atividades práticas que contem com a participação intensiva do
alunado pode promover a independência de pensamento e a motivação dos discentes, culminando em um
processo de ensino-aprendizagem mais proveitoso, espontâneo e criativo (LOWMAN, 2004). Em relação
ao último aspecto, vale lembrar que o desenvolvimento da criatividade dos discentes efetiva-se por meio do
convívio e do debate entre o grupo, já que, cada vez mais, as descobertas científicas e as realizações e
criações artísticas vêm sendo realizadas por grupos, equipes, conjuntos (DE MASI, 2003).
Quanto à regência coral, o desenvolvimento de atividades práticas durante o processo de ensino-
aprendizagem também se mostra eficaz: Fucci Amato (2006) investigou as influências da apresentação de
seminários e laboratórios de prática de ensaio em classes de regência coral de cursos de graduação, conclu-
indo que tais dinâmicas proporcionaram diversos benefícios ao alunado, como o desenvolvimento da
propriocepção, da capacidade de ensino de cada um, o treino para futuras e presentes atuações como
educadores musicais e regentes, a prática da teoria estudada e a aprendizagem de novas dinâmicas de ensino
musical. Ainda no caso estudado, os métodos de ensino participativo investigados foram aprovados pela
unanimidade dos alunos.

3. A interpretação falada de textos como recurso para o desenvolvimento da comunicação


O processo comunicativo é de vital relevância para uma eficácia do trabalho do regente nos
ensaios cotidianos com seu grupo e em apresentações, tanto no âmbito dos coralistas quanto na
Rita de Cássia Fucci Amato (FMCG) - A performance falada de textos como ferramenta... (p. 52 a 62)
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perspectiva do público. Assim, a direção de coros se encontra intimamente ligada aos processos comu-
nicativos interpessoais.

Regência é matéria da Interpretação que, por sua vez, é da Comunicação. Considerando que esta não é o que
se diz, mas principalmente aquilo que se entendeu do que foi dito, o sucesso da relação entre emissor e
receptor só se dará se houver clareza e verdade do pensamento e do sentimento do primeiro no processo de
transmissão de mensagens para o segundo. (ROCHA, 2004, p. 35)

Sob esse aspecto, a prática da performance falada de textos em verso e prosa contribui para desen-
volvimento de posturas, padrões de fala e técnicas de apresentação adequadas para o exercício da regência
coral, trabalhando a desinibição e a interpretação eficaz do regente frente ao coro e ao público. Nesse
sentido, permite que o educando possa obter um padrão de propriocepção, percebendo quais são as atitu-
des adequadas frente a tais indivíduos na condução de seu trabalho.
Uma boa comunicação entre o regente e os coralistas revela a necessidade de haver “interpretantes”
dos sinais que um transmite ao outro: “o interpretante não é o intérprete, isto é, quem recebe o signo [...].
O interpretante é aquilo que garante a validade do signo mesmo na ausência do intérprete” (ECO, 1976, p.
115). Segundo Pignatari (1977, p. 29-30):

Embora a expressão peirceana interpretant seja usualmente traduzida por “intérprete”, convém esclarecer
que o interpretante não designa tão somente o intérprete ou usuário do signo, mas antes uma espécie de
Supersigno ou Supercódigo, individual ou coletivo, que reelabora constantemente o seu repertório de sig-
nos, em última instância, o seu significado real, prático. O interpretante, assim, não é uma “coisa”, mas antes
o processo relacional pelo qual os signos são absorvidos, utilizados e criados.

Sob esse sentido, é evidente na literatura de regência que se costuma dar uma ênfase maior à economia
gestual. Sergiu Celibidache, citado por Oliveira e Oliveira (2005, p. 49), dizia que reger “é a arte de dirigir um
grupo de instrumentistas ou de cantores através da linguagem universal do gesto”. Rudolf (1950) coloca que,
por meio dos gestos, o condutor deve ser capaz de comunicar nuances de dinâmica, detalhes do fraseado,
articulação (legato, staccato) e expressões gerais. Contudo, também há outras formas de expressão por
meio das quais o regente pode transmitir suas intenções interpretativas e o código musical, elencadas por
Muniz Neto (2003, p. 48): além do gesto, a mímica expressiva e a palavra. O autor destaca ainda o poder
comunicativo das expressões faciais, que, por meio de contrações e distensões musculares, pode tanto
constituir uma contribuição para a melhor comunicação entre regente e coro como pode promover, quando
aplicada de forma inadequada, por exemplo, com exageros, ruídos no processo de comunicação. Nas pala-
vras de Ramos (2003, p. 1), a regência se vincula, “por um lado, a um conjunto de atitudes técnicas que
busca clareza e comunicabilidade no contato com os músicos e coralistas e, por outro, a uma capacidade de
estabelecer contato emotivo direto através da utilização do corpo e da expressão facial”.
Dessa forma, uma boa postura corporal, clareza gestual e de expressões faciais, capacidade e rapidez
na correção de erros de interpretação (principalmente durante o concerto) e segurança ao transmitir as
mensagens musicais – sonoras ou visuais – ao grupo são essenciais. Uma eficiente comunicação também é
necessária para que sejam evitados problemas pessoais dentro do coro por ruídos nas mensagens transmiti-
das entre coralistas e regente.
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Assim, no âmbito da comunicação oral, que constitui o foco principal da presente pesquisa, a regên-
cia pode encontrar contribuições no estudo da psicodinâmica vocal e na programação neurolingüística.
A psicodinâmica vocal considera que a voz é o principal meio de comunicação inserido na realidade
social e, portanto, é capaz de expressar uma grande gama de intenções de seu emissor, tendo as funções
básicas de representação, expressão e apelo, assim classificadas por Bühler (citado por BEHLAU e ZIEMER,
1988). Nesse sentido, a freqüência e intensidade da emissão vocal manifestam também outros conteúdos
intrínsecos à mensagem que o regente transmite ao seu grupo musical.
Já a programação neurolinguística enuncia que o processo comunicativo se dá pela simbiose entre a
palavra falada (conteúdo da mensagem em si), o tom de voz, a dinâmica fonatória, e a expressão corporal
(ROCHA, 2004; BANDLER e GRINDER, 1982). O estudo dessa área como forma de transmissão mais
eficaz de mensagens entre os intérpretes corais – regente e coralistas – revela assim uma notável contribuição
para a interpretação e educação que se processam no âmbito desse grupo musical.
Nesse sentido, para Fernandes, Kayama e Östergren (2006, p. 35):

[...] o processo interpretativo é um pouco mais complexo. Antes de comunicar a obra ao público, o regente-
intérprete precisa comunicá-la aos seus cantores. Assim, na re-criação da música coral existem quatro agen-
tes essenciais: compositor, regente (intérprete), cantores (executantes) e público.

Nota-se, finalmente, a especificidade do trabalho do regente – e aí a importância deste saber se


comunicar com precisão e clareza – quando se observa que ele trabalha com mais intérpretes – os coralistas
– do que a maioria dos cantores e instrumentistas e, mesmo em uma situação de concerto com outros
músicos além do coral, é o principal responsável por obter a sinergia de todo o conjunto de performers. “O
regente de coros, como músico, é responsável pela vida coral e pelo ambiente humano” (ZANDER, 2003, p.
147). Nesse sentido, o trabalho do regente se assemelha ao de um gerente, para quem um alto nível de
capacidade de comunicação é fundamental em suas tarefas de liderança, motivação, delegação, orientação
dos músicos e avaliação do desempenho do grupo (MAXIMIANO, 2006).

4. A interpretação falada de textos como recurso para a análise de textos


O texto constitui uma parte essencial na interpretação da música vocal e carrega um sentido que,
conjugado ao poder do som, leva à compreensão da obra executada. Segundo o conceito de polifonia –
ferramenta de análise do discurso –, o texto carrega um sentido próprio, a melodia traz outras significações e
a interação entre estes produziria, então, um terceiro significado (ORLANDI, 2001). Desse modo, somente
a apreensão da semanticidade imbuída no texto poderia trazer uma real interpretação da obra musical.

Na perspectiva da análise de discurso, porém, a leitura não é apenas decodificação, mas apreensão de um sentido,
de uma informação que está dada no texto. O texto não é apenas produto, mas significação. Assim, o leitor não
apenas apreende o sentido que está no texto, mas atribui sentidos a ele (cria, faz associações), compreende o texto.
A leitura é o momento crítico da constituição de um texto, um momento privilegiado do processo de interação
verbal, uma vez que é nele que se desencadeia o processo de significação. (MANOEL, 2003, p. 68)

Sob esse foco, a atenção do regente ao texto da música se faz essencial para que este seja capaz de
transmitir aos coralistas a significação intrínseca à peça musical e, por conseguinte, haja uma melhor execução da
Rita de Cássia Fucci Amato (FMCG) - A performance falada de textos como ferramenta... (p. 52 a 62)
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obra, atingindo o poder da comunica som, “capaz de comunicar o concreto do mundo dos sons, o abstrato da
beleza da harmonia, e a plenitude do transcendental” (MATHIAS, 1986, p. 15), além da significação literária.
Ainda a partir desse ângulo, é possível estabelecer uma conjugação da interpretação textual com o
conceito de música enquanto metáfora, apresentado por Keith Swanwick (2003, p. 23), que concebe a
metáfora como um fenômeno dinâmico composto por quatro elementos principais de figuração na música: a
imaginação (representação interna de eventos e ações), o reconhecimento das imagens e as relações produ-
zidas entre estas, o emprego de um sistema de sinais compartilhados para atingir a comunicabilidade das
idéias e a negociação e troca de pensamentos entre os indivíduos. Assim, a compreensão do texto, ao
vincular outros aspectos semânticos ao discurso musical, pode contribuir na implementação do código e das
representações utilizadas pelos intérpretes – regente e coralistas.
O trabalho técnico-musical com um coro se reveste de diversas facetas, com cuidados estilísticos e
trabalho de correção em passagens difíceis da partitura e é nesse sentido que também se insere a noção de
compreensão textual. Nas palavras de Fernandes, Kayama e Östergren (2006, p. 35-7):

Conseguir uma sonoridade adequada e única no processo de interpretação de uma obra coral vai exigir do
regente e dos cantores um domínio e uma flexibilidade vocais capazes de possibilitar a melhor emissão, um
bom entendimento do texto a ser executado, além do conhecimento sobre práticas interpretativas (grifos da
autora).

Desse modo, a interpretação musical requer do executante uma avaliação consciente inclusive do
conteúdo literário inserido no texto em verso ou prosa que acompanha determinada melodia.

A execução musical pressupõe, por parte do executante, a aplicação de padrões cognitivos que extrapolam
um fazer inconseqüente. Ela traz à tona o próprio sentido do verbo latino facere (criar, eleger, estimar, ser
conveniente), exigindo do intérprete escolhas pré-avaliadas que subsidiarão e legitimarão a sua exposição.
(LIMA, APRO e CARVALHO, 2006, p. 13)

Na opinião de Dart (2000, p. 214): “[...] o texto escrito nunca deve ser considerado como um
espécime morto de laboratório – está apenas adormecido, embora seja preciso amor e tempo para acordá-
lo. [...] E isto não se pode herdar nem é fácil adquirir”.
Já Lima (2005, p. 56), citando Palmer, coloca que “a interpretação oral de um texto literário é tarefa
filosófica e analítica que nunca pode se divorciar da pré-compreensão”.

A interpretação oral tem duas vertentes: é necessário compreender algo para podermos exprimir e, no entanto,
a própria compreensão vem a partir de uma leitura-expressão interpretativa [...] não é verdade que muitas
vezes (e com toda a justiça) imaginamos os sons à medida que o lemos? (PALMER apud LIMA, 2005, p. 56)

Ressalta-se, enfim, a visão de Pareyson (1989, p. 161), o qual coloca que a música é entendida por
seu compositor “como realidade sonora, de modo que o seu sentido espiritual se [concretize] como todos os
componentes físicos da voz e do gesto”. Nesse sentido, a complexa relação música-texto revela ao intérprete
as reais intenções do compositor ao escrever determinada peça, contribuindo sobremaneira para uma boa
execução: “A coincidência do discurso musical com o texto deve ser uma das primeiras preocupações do
regente. O cantor tem que saber em tempo real o que está cantando. Isto [lhe] facilita [...] a interpretação
musical e portanto o trabalho do regente” (OLIVEIRA e OLIVEIRA, 2005, p. 57).
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5. Resultados e discussão
A pesquisa-ação realizada junto aos discentes das disciplinas Regência coral I e Regência coral III
foi realizada em três etapas: leitura de textos, avaliação oral e aplicação dos questionários.
Na leitura, foram interpretados dramaticamente textos de músicas – como Mille regretz de vous
abandonner…, de Josquin Desprez, Apesar de você e Paratodos, de Chico Buarque, Herdeiros do futu-
ro, de Toquinho e O Cantador, de Dori Caymmi e Nelson Motta – e de obras literárias em verso e prosa –
como um conto do livro Tia Zulmira e eu, de Stanislaw Ponte Preta, e o Soneto 11, de Luís Vaz de Camões.
Esses textos foram escolhidos livremente pelos alunos, a fim de que estes desenvolvessem uma melhor
expressividade diante de produções literária com as quais se identificam.
Cabe salientar que essa atividade também pode ser entendida na perspectiva de um jogo de papéis,
“onde, em situação de dramatização, cada um é levado a conhecer a medida exata pela qual lança no
contexto de trabalho papéis bem ou mal desenvolvidos […]”. (BERGAMINI, 1988, p. 64)
Em seguida, foi efetuada uma estratégia de avaliação coletiva, por meio da qual os discentes comentaram
sobre os pontos positivos e negativos das interpretações individuais e de seus colegas, observando os parâmetros:
• Estudo e preparação;
• Atividade corporal (postura, olhos e mãos);
• Texto escolhido - afinidade;
• Performance - clareza/ articulação;
• Intensidade vocal - adequação;
• Flexibilidade vocal;
• Capacidade de envolvimento emocional;
• Interferências2 - capacidade de reação e correção de erros.
Após a avaliação oral das atividades, as opiniões do alunado foram registradas em questionários semi-
estruturados a estes aplicados.3 Os resultados apontam que aproximadamente 94% dos discentes atribuem
importância à prática da performance falada de textos como ferramenta para o desenvolvimento de recursos
expressivos e comunicativos para a regência coral, como ilustra o gráfico a seguir.

Figura 1 – Importância da prática para o desenvolvimento da comunicação do regente na visão dos alunos.
2
Consideramos aqui interferência como desvios na atenção do intérprete (e.g. ruídos). Para maiores considerações, confira Ray (2005).
3
Para a citação dos depoimentos dos discentes, adotou-se a numeração dos mesmos de acordo com a ordem alfabética de
seus nomes. Para Regência coral 1 os números são sucedidos pela letra a, e para Regência coral III os números são
sucedidos pela letra b.
Rita de Cássia Fucci Amato (FMCG) - A performance falada de textos como ferramenta... (p. 52 a 62)
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Quanto aos aspectos desenvolvidos pela interpretação dos textos, os alunos colocaram que a
performance contribuiu para que se acostumassem a expor-se e apresentar-se diante de um público, para a
desinibição e adoção de uma melhor postura corporal. O aluno 1b comentou que “A performance falada
abrangeu vários aspectos que um regente deve ter diante de seu coro”. Já o discente 2b disse: “Será ótimo
para a vivência musical de cada um, independente da área escolhida”. Além disso, os alunos destacaram que
essa estratégia permite que se desenvolva uma regência com naturalidade, que se acostume estudar o texto
das peças musicais e que se adote padrões expressivos. O aluno 4b colocou: “Senti-me desafiado a atentar
rigorosamente para certos aspectos envolvidos na realização de uma comunicação, com os quais, de modo
geral, não me sinto muito confortável”. A adoção de uma maior consciência corporal e proprioceptiva tam-
bém se delineou, conforme o depoimento da aluna 3b: “a performance falada me fez prestar atenção a minha
postura e atitude frente ao coro e ao público”. Sua fala é reiterada pelo discente 5b, que afirmou:

Este é um trabalho básico e elementar que as pessoas não consideram talvez de tanta importância. Depois
deste curto estudo que realizamos, tive uma melhora significativa na minha fala (no que diz respeito ao
português também), na apresentação como um todo (preparo da fala, confiança, comunicação, etc.)

O aluno 5a ainda destacou: “Acredito ser de suma importância para o regente a plena consciência
corporal, isto é, o regente transmite a seu grupo, através de movimentos corporais, as transformações e
nuances da obra a ser conduzida”. Nesse sentido, a performance permitiu que, na convivência com vários
modelos vocais, fossem desenvolvidas técnicas de propriocepção e imitação, altamente eficazes para uma
produção de música coral.
Outros discentes também relataram suas experiências: a aluna 1a, por exemplo, colocou que “sem
dúvida é importante e devia ser um hábito porque devemos aprender a segurar a atenção e concentração de
um grupo. Além de tudo a fluência de uma comunicação é fundamental, para que possamos passar aquilo que
queremos sobre a música ou qualquer outro trabalho”. Já o discente 6a declarou:

[...] a retórica, a interpretação, a postura, a dicção, o domínio do grupo, a visualização, a desibinição são
características que foram trabalhadas e desenvolvidas. Um bom regente tem não só a natureza e talentos
musicais, mas estas habilidades devem sempre ser trabalhadas [...]. [Destaco] o fato de saber declamar o texto
de forma clara, passando a mensagem de forma que envolva, criando várias situações no mesmo texto,
exemplificando: tensão, humor etc. [...] Foi muito gratificante e proveitoso você ter que induzir o grupo, e com
a boa aplicação destes elementos pode-se dizer que para mim eu aprendi muito e já estou aplicando [a prática
da performance] com meus alunos.

Quanto à segunda questão investigada – a importância da prática da performance falada para a per-
cepção da importância da análise de textos inseridos em peças musicais –, obteve-se 100% de aprovação
do alunado a respeito da eficácia da atividade. A aluna 3b, referindo-se à relevância do texto na música,
considerou que “é preciso chamar a atenção do público e do coro primeiro para o texto da música, fazê-los
entendê-lo e admirá-lo, para então apreciar a obra ouvindo ou cantando”. Outros discentes também desta-
caram que nunca haviam se deparado com algo do tipo, ou seja, nunca lhes havia sido indicada a relevância
semântica do texto na performance musical. O aluno 4b declarou: “Por meio da performance falada, foi-me
possível perceber a relevância de uma análise cuidadosa dos textos musicais. Esta atividade revelou-se como
Claves n.° 5 - Maio de 2008
60

uma rica ferramenta para o trabalho rigoroso de prosódia e interpretação musicais”. Já o discente 5b, que
interpretou um texto de sua autoria, considerou:

Um dos textos que interpretei foi escrito por mim, isto facilitou meu trabalho. No entanto, nas aulas que
[trataram] sobre o assunto, pude perceber que quanto mais você desenvolve sua performance, mais nos
apropriamos do texto e, mesmo sendo o autor, talvez [a interpretação deste] exija maior atenção!

Referindo-se à continuidade do desenvolvimento da performance vocal falada como dinâmica de ensino


para os próximos semestres das disciplinas de Regência coral I e III, 80% dos alunos responderam positi-
vamente, como ilustra o gráfico a seguir.

Figura 2 – Recomendação da continuidade da atividade pelos discentes.

Com relação a essa questão, os alunos declararam que a vivência foi bastante proveitosa e é de real
importância para todos os músicos. Essa idéia foi colocada, por exemplo, pelo aluno 5b: “considerando o
quanto foi trabalhado e a contribuição que esta atividade deu ao meu ver [ao] aprendizado não só [da]
prática [do] regente, mas também em aspectos como postura e comunicação, este estudo deve ser
aprofundado e contínuo”. Já o discente 4b declarou: “Por meio da performance falada parece-me auto-
evidente, porquanto simples vivência deste exercício proporciona, de fato, um resultado positivo imediata-
mente visível àquele que a realiza com seriedade e empenho”.
Dessa forma, além de apontarem para a continuidade da dinâmica, os alunos sugeriram que a prática
seja implementada, futuramente, com estudos das letras de obras em outros idiomas e de peças corais
diversas. “Claro, pois é através de prática que aperfeiçoamos todo o trabalho, assim esse tipo de exposição
fica familiar e deixa de ser um desafio” (ALUNA 1a).

6. Conclusões
O presente trabalho visou analisar uma dinâmica de ensino que desenvolvesse uma melhor capacidade
de comunicação do regente – frente ao seu coro e ao público – e, concomitantemente, voltasse a atenção
deste para a relevância da análise literária semântica do texto musical, ou seja, da compreensão da relação
texto-música para uma melhor performance musical. Analisando a bibliografia compulsada em diversas áreas, foi
possível delinear o grau de relevância que a performance falada pode ter no desenvolvimento técnico-interpretativo,
induzindo ao desenvolvimento de caracteres de expressividade e comunicabilidade do regente coral.
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Portanto, levando-se em conta os resultados apresentados na consulta à opinião dos alunos e na


observação empírica das classes, pode-se inferir que a prática da performance falada de textos esteja con-
soante ao ensino da interpretação musical e, especialmente, à incorporação de um padrão performático do
regente coral. Entende-se que o regente é um intérprete do qual se espera uma ampla compreensão do
discurso musical – incluindo aí o texto – e um grande número de habilidades relacionais e expressivas em seu
trabalho cotidiano, dentre estas, a habilidade de uma boa comunicação. Conforme comentou o aluno 5b:
“Ser um regente exige muito estudo, dedicação e sobretudo amar, pois é preciso ter paciência, perseverança
e confiança em si mesmo”.

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Rita de Cássia Fucci Amato é Doutora e Mestra em Educação (Fundamentos da Educação) pela Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar), especialista em Fonoaudiologia pela Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de
São Paulo (EPM-UNIFESP) e Bacharel em Música com habilitação em Regência pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Aperfeiçoou-se com Lutero Rodrigues (regência) e Leilah Farah (canto lírico). Atuou profis-
sionalmente como regente coral, professora de técnica vocal/ voz cantada e cantora lírica. Foi pesquisadora nas áreas
de pneumologia e fonoaudiologia na UNIFESP. Atualmente é professora da Faculdade de Música Carlos Gomes
(FMCG) e membro do grupo de pesquisa “Música, Corpo e Ciência” (CNPq/ UFG). É autora de artigos publicados em
anais de eventos e periódicos científicos nacionais e internacionais, nas áreas de Música, Educação e Filosofia.
Tadeu Paccola Moreno - A questão do ritmo em fontes portuguesas... (p. 63 a 74)
63

A questão do ritmo em fontes portuguesas pós-tridentinas de cantochão

Tadeu Paccola Moreno (UFPR)

Resumo: A prática de cantochão apresenta um problema ligado à sua ancestralidade. Muito já se pode aferir a partir
de fontes primárias de notação. A questão do ritmo, porém, ainda permanece em discussão. Muitas propostas
distintas foram adotadas até as primeiras décadas do século XX, quando, de forma geral, a prática parece ter-se
padronizado na Igreja Católica. O presente artigo demonstra a possível coexistência de diferentes abordagens em
relação ao ritmo no cantochão em Portugal no período entre o concílio de Trento e o início do Século XIX.
Palavras-chave: Cantochão. Ritmo. Notação gregoriana.

The rhythmic issue in post-tridentine Portuguese plainchant sources

Abstract: The plainchant practice presents a problem concerning its earliness. Much has been accomplished in
terms of interpreting ancient sources; however, rhythm still stands as a controversial issue. Many distinct proposi-
tions were adopted until the twentieth-century’s first decades, when generally the plainchant rhythm practice seems
to have been standardized in the Catholic Church. This article discusses a possible coexistence of different plainchant
rhythm practices in Portugal in the period between the Council of Trent and the early nineteenth-century.
Keywords: Plainchant. Rhythm. Gregorian notation.

Introdução
O ritmo na notação do cantochão de diferentes períodos tem-se mostrado uma questão complexa na
pesquisa musicológica. Associações entre sinais gráficos e duração das notas podem ser encontradas em
algumas fontes, porém há casos em que pouco se pode determinar nesse sentido. A complexidade da ques-
tão é ainda agravada, uma vez que o material de estudo é compartilhado por alguns estudiosos com objetivos
práticos de execução – que demandam uma solução para a decodificação de manuscritos – e por outros com
objetivos investigativos que não servirão necessariamente de suporte à música prática.
A abordagem de algumas fontes portuguesas de cantochão da época subseqüente ao Concílio de
Trento (1545 - 1563) constitui não só um material relevante para o estudo da questão rítmica acima menci-
onada como também para as relações entre teoria e prática, uma vez que os autores, apesar de apresentarem
aparentemente uma mesma fundamentação teórica, chegam a sugestões práticas distintas. A pluralidade de
práticas de cantochão adentrou as primeiras décadas do século XX para que fosse posteriormente suprimida
pelos padrões de Solesmes, o que parece ter facilitado seu uso litúrgico.
Durante o período de permanência do rito de 1570 (rito tridentino) – o qual durou até 1970 – o
cantochão passou por movimentos de reforma e restauração:

Após o período de constante revisão e novas composições [reforma] era talvez inevitável que a idéia de
retorno ao cantochão como tenha sido ‘originalmente’ [restauração] devesse emergir. Diversos fatores
determinaram o curso que os eventos tomariam.
Primeiramente, o liberalismo, na igreja como um todo, era refutado [...] Em segundo lugar, a tendência perene
da igreja de renovar a si mesma pelo retorno a um estado anterior e possivelmente ‘mais puro’ coincidia com
a tendência romântica mais ampla de idealizar o passado. [...] Em terceiro lugar, as técnicas de estudo de
manuscritos, as quais eram essenciais para revelar os segredos das fontes medievais, já haviam progredido
[...]. (HILEY, 1993, p. 622, tradução do autor)
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Assim, a partir da difusão desta intenção de restauração do cantochão, houve uma busca pelo
embasamento da estruturação musical das melodias em um retorno às fontes primárias. Encontram-se neste
extenso período de tempo, do século XVI até hoje, abordagens ao ritmo do cantochão, musicológicas ou
presentes em manuais práticos de canto, que variam da negação de diferença de duração entre as notas à
utilização de transcrições mensuradas (utilizando-se barras de compassos) para as melodias, todas, porém,
sempre numa tentativa do citado “retorno a um estado anterior”.

1. Algumas abordagens em relação ao problema do ritmo no cantochão

O maior e ainda não resolvido problema – e talvez insolúvel – sobre o Canto Gregoriano diz respeito à sua
interpretação rítmica. Por mais atrativas que possam ser as performances dos monges de Solesmes, a solução
deles não é nem a única possível nem aquela embasada em maior peso por provas históricas. (HOPPIN, 1978,
p. 88, tradução do autor)

O comentário acima sobre as interpretações rítmicas assumidas pelas publicações a partir de Solesmes
evidencia um fato determinante para o tratamento rítmico do cantochão: a diferença entre abordagens de
ordem teórica e prática.
Repertórios de cantochão são tão imprescindíveis a funções litúrgicas como à musicologia histórica.
Enquanto a Igreja Católica aponta o repertório gregoriano de cantochão como tendo a mais alta distinção entre
gêneros de música sacra, a musicologia tem este repertório como um dos pontos de partida para o estudo da
música ocidental. Para tais fins, teóricos e práticos, os autores têm baseado seu trabalho na ancestralidade.1
A citação acima, de Hoppin, portanto, indica que em relação a um mesmo material – as melodias de
cantochão – e segundo um mesmo parâmetro – a ancestralidade – existem dois objetivos de trabalho dife-
rentes (teórico e prático), com soluções distintas.
Algumas publicações musicológicas sobre a prática do cantochão demonstram uma tendência por não
assumir nenhuma resposta definitiva a respeito da duração das notas no cantochão. As transcrições feitas a
partir das fontes primárias do repertório tomam, via de regra, o seguinte formato:

Figura 1 – Transcrição de melodia de cantochão (HOPPIN, 1978, p. 75).

O formato acima apresentado, por não mostrar informação alguma sobre a duração de cada nota,
pretende se manter neutro em relação a esta problemática. Tal indeterminação pode servir como ferramenta
ao pesquisador que queira abordar detalhes como os modos empregados, intervalos melódicos ou a relação

1
Apesar de possível, uma discussão sobre a ancestralidade como valor litúrgico e musicológico do cantochão foge ao
escopo deste estudo. Sobre a ênfase em fontes primárias de cantochão na musicologia, consultar os trabalhos de Levy
Kenneth, Richard Crocker, David Hiley entre outros. Quanto ao valor litúrgico do aspecto de tradição, consultar documen-
tos eclesiásticos como a Musicae sacrae disciplina (1955), Instructio de musica sacra et sacra liturgia (1958), Sacrossantum
Concilium (1962), entre outros.
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entre alturas e texto, por exemplo. A segurança trazida por tal abordagem se depara, porém, com a própria
natureza do material estudado:

O sistema musical deve ser ouvido para que tenha significado, pois, embora os símbolos escritos possam ser
compreendidos visualmente, não passam de mera representação altamente estilizada da música, e não música
propriamente dita.2 (DART, 2000, p. 4)

Não assumir respostas objetivas no campo do ritmo deve ser, segundo a perspectiva apontada acima,
uma postura temporária para a solução de problemas diferenciados. Encontra-se na literatura musicológica
resoluções possíveis, porém tão numerosas que limito a discussão a alguns exemplos ilustrativos.
Uma delas diz respeito à aplicação do conceito de compasso ao cantochão. Segundo Bonvin (1929),
formas melódicas recorrentes aplicadas a diferentes textos teriam indicações de acentos, demonstrando uma
intenção de possível métrica inerente às formulas:

Figura 2 – Fórmula melódica em diferentes textos (BONVIN, 1929, p. 24).

Há ainda outro exemplo trazido por Hiley (cf. Fig. 3) de uma transcrição em compasso fixo, do final do
século XIX, em que o responsável pela transcrição trata alguns símbolos existentes em fontes primárias como
se fossem ornamentos melódicos:

Figura 3 – Melodia de cantochão em compasso fixo (HILEY, 1993, p. 380).

Oposta a tais abordagens, há a possibilidade de aplicar a todas as notas a mesma duração. Tal prerro-
gativa norteou muitas transcrições, em que as notas são todas escritas como colcheias, com o objetivo de
oferecer suporte para fins práticos, principalmente do cantochão gregoriano. O exemplo a seguir se deriva de
um conjunto de acompanhamentos para órgão de melodias de cantochão, de 1992.
2
O autor trata de práticas musicais que em muito diferem de nosso objeto de estudo, porém mantém-se a dualidade teoria /
prática em abordagens de música do passado.
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Figura 4 – Acompanhamento do hino Asperges me (SAYLES, 1992, p. 5).

Segundo Bonvin, Hiley e Rastall, porém, diferenças de duração eram indicadas nas fontes primárias de
cantochão (como o manuscrito de St. Gall), seja com letras representando uma sílaba curta ou longa sobre a
nota ou por meio da diferenciação gráfica dos símbolos. Se o parâmetro para a estruturação musical das
melodias tem sido a ancestralidade, as fontes primárias negariam a prática de execução em notas de igual
duração, a qual, por este motivo, é refutada por Hoppin na citação que abre este tópico e, também, por Bonvin:

É de se lamentar que a escola beneditina de Solesmes, a qual atualmente praticamente monopoliza as institui-
ções e revistas de canto gregoriano, mantenha-se nesta plataforma de notas iguais; [...] A edição Medicéia,
até recentemente a publicação oficial da Igreja, com sua longa, brevis e semi-brevis, ainda tratava as notas
como tendo valores diferentes, mesmo que de duração indeterminada [...]. (BONVIN, 1929, p. 16-17, tradução
do autor)

Os exemplos, como já citado, são trazidos neste trabalho com a intenção de ilustrar algumas soluções
apresentadas por abordagens práticas e teóricas em relação ao problema do ritmo no cantochão. A musicologia,
segundo Hiley, “[...] é madura o bastante como disciplina para distinguir entre considerações acadêmicas e práticas
no resgate da música antiga” (HILEY, 1993, p. 629). Esta distinção é necessária para o que pretendo apresentar
a seguir: uma abordagem musicológica sobre soluções práticas antigas ao problema rítmico do cantochão.

2. O ritmo no cantochão em fontes portuguesas pós-tridentinas


O Concílio de Trento foi

[...] a principal reação da Igreja às reformas protestantes iniciadas na Alemanha em 1517. O Concílio procurou
reformar e uniformizar as práticas litúrgicas então em uso, para fortalecer o culto romano e, com isso, evitar
novos rompimentos e mesmo o avanço do protestantismo. (CASTAGNA, 2000, p. 285)

Portanto, apesar de algumas liturgias específicas se manterem inalteradas, a partir do Concílio foram
impressos livros com três tipos de repertório – liturgia sacrificial, laudativa e sacramental – referentes, res-
pectivamente, a celebrações eucarísticas, a ofícios e a sacramentos específicos, como batismo ou outros.

A proliferação do canto polifônico e a invasão dos estilos derivados da ópera na música sacra (sobretudo a
ária a solo) foram os principais fatores responsáveis pela diminuição das atenções da Igreja em relação ao
cantochão a partir dessa época, transferidas, agora, para o conflito entre o cantochão e o canto a várias
vozes. De acordo com Luís Rodrigues, “pode dizer-se que no século XVII estava perdida a tradição
gregoriana”. A reforma do cantochão seria retomada pela Igreja somente no século XIX (tornando-se então
conhecida como restauração), ocupando-se esta, nos séculos XVII e XVIII, em divulgar as versões tridentinas
mas, principalmente, em regular a utilização do coro polifônico e dos instrumentos musicais nas igrejas.
(Ibidem, p. 294)
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Nos séculos XVII e XVIII, a base para que ocorressem tais reformas constituía-se, porém, de escri-
tos “[...] de caráter extremamente geral; [...] que se deveria evitar tudo o que fosse ‘impuro ou lascivo’”
(GROUT, 1992, p. 326). Além disso, também havia a intenção, de caráter não menos geral, de que se
pudesse compreender o texto sem esforço, na execução de peças polifônicas; os reflexos dessa intenção de
inteligibilidade também se percebem no cantochão:

Os textos litúrgicos foram revisados para ‘melhorar’ a qualidade e caráter do latim, padrões cadenciais foram
remodelados, certas figurações melódicas foram associadas a certas palavras, clichês melódicos foram intro-
duzidos para ‘explicar’ palavras, as melodias foram tornadas mais tonais pela introdução do Si bemol, melismas
foram abreviados e declamações acentuadas foram introduzidas para melhorar a inteligibilidade dos textos
cantados. (LEVY e EMERSON, 1980, p. 826, tradução do autor)

Neste contexto inserem-se as fontes sobre as quais se pretende discutir a questão do ritmo no cantochão.
Hiley indica uma edição de cantochão, a qual traz a inovação de proporção entre notas. O Directorium
chori de 1582, de Giovanni Guidetti, discípulo de Palestrina, trazia quatro valores distintos e proporcionais.3
Em relação a essa época, Rastall também se refere ao uso de figuras rítmicas distintas.

Em meados do século XVI os livros litúrgicos utilizavam por vezes uma notação quase mensurada, na
qual a virga e o punctum tinham valores longo e curto [...] com o punctum losangular para as sílabas
menos importantes. Do início do século XVII em diante, a notação quase mensurada era normal em livros
litúrgicos e assim se manteve até as edições de Solesmes do final do século XIX.4 (RASTALL, 1982, p. 36,
tradução do autor)

Figura 5 – Exemplo de notação quase mensurada de cantochão (RASTALL, idem).

São quatro as fontes às quais pude ter acesso até o momento e que uso como material de discussão:
Arte de canto chão com huma breve instrucção para os sacerdotes, diaconos, subdiaconos e moços do
coro, conforme ao uso romano de Pedro Talesio (1618); Arte de mvsica de canto dorgam e de canto
cham, & proporções de musica divididas harmonicamente de Antonio Fernandes (1626); Acompanha-
mento de missas, sequencias, hymnos e mais cantochão: que he uso e costume acompanharem os
orgãos da Real Basilica de Nossa Senhora e Santo António junto à Villa de Mafra de José de Santo
Antonio (1761) e o Theatro ecclesiastico de Domingos do Rosário (1817).
As fontes têm como fator de coesão o fato de serem todas dirigidas à prática litúrgica do cantochão,
mesmo que embasadas em argumentos teóricos. Isto se mostra relevante uma vez que, ao invés de discus-
sões acerca de diferentes possibilidades, os autores trazem uma forma de cantar as melodias, a qual, no que
diz respeito ao ritmo, parece ser relativamente unívoca.

3
Cf. HILEY, 1993, p.616
4
Punctum: ; punctum losangular: ; virga:
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As instruções dos autores parecem também compartilhar de fontes teóricas similares, as quais ora são
citadas diretamente, ora estão perceptivelmente presentes no discurso. A abordagem destes autores, porém,
mostra-se passiva de um olhar crítico, sobretudo em relação à utilização prática dos preceitos teóricos adotados.

2. 1. Arte de canto chão com huma breve instrucção para os sacerdotes, Diaconos, Subdiaconos e
moços do coro, conforme ao uso romano de Pedro Talesio (Coimbra, 1618)

Tais são os símbolos (pontos) presentes no tratado de Talesio (cf. Fig. 6). As diferenças entre a
utilização destes vêm descritas a seguir (Cf. TALESIO, 1618, p. 12):

Figura 6 – Notação de cantochão (TALESIO, op. cit., p. 12).

Nos pontos alfados, atados, dobrados, e muitos outros em ligaduras não se põe letra, senão no primeiro
ponto. Nos pontos soltos, como são longos ou breves, nos longos com alguma detença mais que nos breves.

Não se põe letra em todos os semibreves soltos, por que servem para adornar, senão quando se cantar ponto
por letra, como no Gloria, Credo romano, e nos hinos Pange língua, Sacris solemnis e outros semelhantes.

A descrição da utilização dos símbolos não indica exatamente as proporções de duração entre um e
outro. Da recomendação de que se cante “nos longos com alguma detença mais que nos breves”, deduz-se
que uma interpretação de mesma duração para todas as notas também seria descabida.
Há adiante, no texto de Talesio, algumas instruções aos que regem o coro. Há avisos para que não
deixem que o canto perca afinação ou se faça em andamento acelerado demais. Também há uma descrição
de três ‘compassos’ a serem utilizados em diferentes gêneros de canto litúrgico:

O compasso seja levantar e abaixar a mão, com muita modéstia e consideração e não dando palmadas, fazendo
estrondo e ostentação com arrogância, e presunção por não dar motivo a murmurar-se [...]
É o compasso de três maneiras: gramatical, igual, desigual ou ternário.
Gramatical é o que se guarda no psalmear e mediação dos versos, observando os acentos e nas lições do
coro, profecias, glorias, credos, seqüências, prefácios, epístolas e evangelhos da missa.
Igual, no cantochão ordinário dos responsos, intróitos, tractos, graduais, aleluias, ofertórios, pós-comu-
nhões, antífonas etc., em que se dá igual valia às figuras conforme a definição ambrosiana e gregoriana [...]
Ternário é o compasso que se usa em alguns hinos e como são Conditur alme syderum; Ad coenam agni;
Pange lingua, Sacris solemnis, etc.. Os hinos Ave maris stella, Veni creator e outros semelhantes, se cantam
um ponto em um compasso [...]. (Ibidem, p. 66-67)
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Estes conceitos, gramatical, igual e ternário, serão recorrentes sob formas distintas nas fontes que
apresento a seguir. Citada como possibilidade presente no cantochão, a “igual valia às figuras conforme a
definição ambrosiana e gregoriana” aparece em texto semelhante no Theatro ecclesiastico atribuído a “dou-
tor Franchino”, se tratando de Franchino Gaffurio, autor do norte da Itália, do final do século XV.5
A interpretação das melodias com ou sem distinção de duração entre as notas dependeria, portanto,
do gênero de canto. A distinção seria, talvez, guardada a cantos menos freqüentes, enquanto as notas no
cantochão ordinário teriam igual valor.
O compasso ternário aparece, dentre as fontes já consultadas, somente em uma missa presente no
Theatro ecclesiastico (Figura 8), apesar de conceitualmente, como se verá, refutado por seu autor.

2. 2. Arte de mvsica de canto dorgam e de canto cham, & proporções de musica divididas
harmonicamente de Antonio Fernandes (Lisboa, 1626),

E portanto tornando à primeira parte digo que a música do cantochão se chama aquela harmonia que nasceu de
uma simples e igual prolação na cantoria; a qual se faz sem variação alguma de tempo demonstrado com algum
caractere ou figura simples que os Músicos práticos chamam Notas: as quais nem se acrescentam nem se diminuem
de sua valia, por que nessa se põem o tempo inteiro e indivisível, e dos Músicos vulgarmente é chamado cantochão,
ou canto firme, o qual é muito usado dos Religiosos nos ofícios divinos. (FERNANDES, 1626, p. 2)

Tal é a definição pela qual se diferencia, segundo o autor, o canto de órgão e o cantochão. A diferen-
ciação dos símbolos também seria desvinculada da idéia de tempo, uma vez que se aplicava o tempo indivisível
a todas as notas. O conceito de que as notas “não se acrescentam nem se diminuem” aparece no Theatro
ecclesiástico atribuído a Gioseffo Zarlino, autor italiano do século XVI.

Figura 7 – Notação de cantochão (FERNANDES, op. cit., p. 55).

Assim como em Talesio, a descrição acima (Fig. 7) referente às figuras se limita a especificar em quais
figuras há texto e quais não o têm.6 Os nomes empregados aos símbolos por Talesio são utilizados por
Fernandes para aqueles do canto de órgão e, portanto, referem-se a notas de duração não só diferenciada
como também proporcional.

5
Se comparado com os exemplos aqui trazidos, o tratado de Gaffurio contém pouca distinção de figuras empregadas, com
algumas utilizações esporádicas de punctum losangular.
6
“A letra se mete em todos os pontos quadrados soltos e nos primeiros dos ligados se tiverem letra ao pé e nos pontos
longos e nos primeiros dos alphados: nos triangulados não se mete letra salvo nos Credos romanos que em todos os pontos
triangulados se mete letra.” (FERNANDES, p. 55)
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2. 3. Theatro ecclesiastico de Domingos do Rosário (Lisboa, 1817)


Fernandes afirma a existência do cantochão em notas iguais, porém aponta outras formas de interpre-
tação (gramatical e ternária). Talésio demonstra a escolha do símbolo a ser empregado na notação musical a
depender da relação entre a melodia e o texto e, apesar de breve no assunto, assume a interpretação em
notas iguais. A abordagem trazida por Rosário, apesar de dois séculos distante das primeiras, demonstra
relações com elas principalmente no que diz respeito às fontes teóricas adotadas.
O texto a seguir demonstra o problema da distinção entre prática e teoria, uma vez que, apesar de
afirmar que “aqueles que costumam executar o cantochão com tanta variedade de figuras, não cantam bem”,
o autor cita o Directorium chori, demonstrando três diferentes figuras com valores diferenciados e propor-
cionais.
Documento dois

Das figuras, ou notas, que devemos usar no cantochão

Em este documento mostraremos a pouca necessidade que há para usarmos de tanta variedade de figuras, ou
notas, quantas achamos no cantochão; por que há alguns livros que as trazem; para que os vigários do coro
não se embaracem com tanta variedade, e conheçam o que os autores sobre esta matéria disseram, usando só
das que apontamos. Acham-se no cantochão várias formas de pontos, ou notas, do modo seguinte: pontos
alfados, semi-breves triangulados, pontos dobrados, pontos ligados, longos, breves, semi-breves ligados,
mínimas e semínimas. De todas estas se encontram nos livros. Mas antes que passemos a declarar esses
pontos, observemos a sua grande variedade que no cantochão se acha sendo ociosa tanta multiplicidade.
Admiramos muitos corpos de formas diferentes, mas uniformes no valor. Desde o seu princípio teve o
cantochão suas figuras de igual valor: o contrário foi abuso de alguns escritores curiosos que quiseram
lisonjear os ouvidos dos cantores, não advertindo ser esta multiplicação de entes, sem necessidade, pernici-
osa; por que se consultarmos os melhores autores, nos dirá primeiramente o doutor Mellifluo, que o cantochão
é uma simples prolação de figuras, ou notas, as quais não se podem nem aumentar, nem diminuir: Musica
plana notarum simplex, et uniformis prolatio, quae nec augeri, nec minui potuit. Esta é a diferença que tem
a música uniforme, a que chamamos cantochão da música multiforme, ou mensural [...].

Claramente se manifesta do que temos dito que aqueles que costumam executar o cantochão com tanta
variedade de figuras, não cantam bem. Não fiquem os escrupulosos menos satisfeitos, imaginando que nós
sem autoridade, pretendemos dar nova definição: ouçam o que neste particular diz doutor Franchino, decla-
rando na sua prática por que os Gregorianos e Ambrosianos chamam a este cantochão: Quoniam simpliciter,
et de plano singular notas [...] brevi temporis montura pronuntiant.(franc. Lib. I. c. I) E em outra parte
afirma que achando-se Figuras diversas no cantochão, todas se devem pronunciar com igual medida [...]. Por
esse motivo serão excluídos os semibreves, [...] O doutor Zarlino, definindo o cantochão, diz que é uma
harmonia, a qual nasce de uma simples e igual prolação, demonstrada com algumas figuras simples, a quem os
músicos práticos chamam notas, as quais não se aumentam nem diminuem. João Maria Lanfranco, em a sua
prática musical, (part. I) diz que o cantochão é uma prolação de notas simples, e uniformes, que não se podem
nem aumentar nem diminuir, por que o seu tempo é inteiro, e indivisível. Mas nas cantorias onde as palavras
são ordenadas com metro, como são as Seqüências, Glorias, Credos, Hinos, Prefácios e outras coisas, que por
este estilo se houverem de cantar, poderão usar das três notas, que traz o Directorium chori, Que são longa,
breve e semibreve: as longas de compasso e meio, as breves um compasso e as semibreves meio compasso.
Deste modo se cantará nos coros com decência. (ROSARIO, 1817, p. 33-34)

A citação dos gêneros aos quais caberia a utilização da notação diferenciada, como seqüências, glórias,
credos e prefácios, assemelha-se à indicada no tratado de Talesio, em que se utilizaria o compasso gramatical
(outra indicação de possível referência teórica compartilhada entre os autores).
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Enfatizo esta semelhança entre a base teórica adotada pelos autores como fator de coerência nas
considerações sobre o ritmo encontradas nos tratados. Rosário também indica os mesmos nomes de notas
referidos pelos dois autores anteriores, os quais “acham-se no cantochão”. Assumindo esta coerência em
relação a autores pós-tridentinos portugueses, pode-se utilizar tal referência teórica como base para que se
aborde o exemplo de acompanhamento do cantochão de José de Santo Antonio (item 2.4), no qual não há
esclarecimentos sobre a questão rítmica, mas que se trata, porém, de uma fonte sobre a prática do cantochão
em Portugal do ano de 1761 ou seja, presente no mesmo contexto destas, as quais citei até o momento.
Apesar do autor argumentar em favor de uma execução em notas iguais e que símbolos distintos têm o
mesmo valor, o exemplo da Figura 8 ilustra, no mesmo tratado, o uso, em notação quadrada, de uma melodia
que traz não só o ritmo ternário como também elementos melódicos estranhos ao cantochão, como arpejos
com tessitura de oitava e imitação.

Figura 8 – Glória em compasso ternário, Theatro ecclesiastico (ROSARIO, op. cit., p. 545).

2. 4. Acompanhamento de missas, sequencias, hymnos e mais cantochão: que he uso e costume


acompanharem os orgãos da Real Basilica de Nossa Senhora e Santo António junto à Villa
de Mafra de José de Santo Antonio (Lisboa, 1761)
A notação utilizada para o manual é quase idêntica àquela encontrada no Theatro ecclesiastico. As
melodias são, porém, transpostas para a clave de fá num pentagrama, não no tetragrama. A própria melodia
serve como linha de baixo sobre a qual os acordes são escritos.
O Kyrie abaixo, primeiro em sua versão no Theatro ecclesiastico e em seguida no acompanhamento
de Santo Antônio, tem poucas diferenças com respeito à notação. Em relação às figuras empregadas, algu-
mas virgae do Theatro aparecem como puncta no acompanhamento. Há também a utilização de alterações
nas notas Sol do acompanhamento.

Figura 9 – Kyrie publicado por Rosário (esq., p. 557) e Santo Antonio (dir., p. 19).
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Em relação ao ritmo, o autor faz um breve comentário:

Recomenda-se muito aos organistas que em todo o cantochão que acompanharem levantem sempre as mãos
do órgão nas vírgulas ou pausas que encontrarem pelo meio das missas, hinos ou qualquer outra cantoria
para irem juntos e conformes com o coro (SANTO ANTONIO, 1761, advertência XXIII).

Talesio e Rosário fazem a distinção de ritmo entre diferentes gêneros de cantochão. Na notação dos
cantos, tal distinção pode ser aferida na relação entre acompanhamento e melodia, uma vez que há uma diver-
sidade de símbolos empregados – virga, punctum e puncum losangular – maior em missas do que em hinos.
Há uma recorrência relevante de cantos nas missas que apresentam uma mesma seqüência de acordes
(Fig. 5) que ora são notados sobre uma virga, ora sobre dois puncta. Há outros exemplos em que há mais
de um acorde notado para a mesma nota. Estes, porém, apesar de uma visível maior recorrência em virgae,
aparecem também em puncta.

Figura 10 – Virga e punctum no acompanhamento de José de Santo Antonio (op. cit., p. 1-2).

Figura 11 – Transcrição da primeira seqüência de acordes da Figura 10.

Esta seqüência, apesar de largamente utilizada nas missas, não é encontrada em hinos. O exemplo
abaixo (Fig. 12) demonstra que mesmo pouco recorrente, a utilização da virga e do punctum losangular em
hinos não difere do punctum em relação à utilização de acordes, inclusive pelo fato de, na penúltima nota, a
qual seria de duração mais breve, haver uma resolução da dissonância de sétima. Não se pretende aqui
entrar em detalhes da condução de vozes empregadas, porém a duração de notas para as quais a notação
indica dois acordes diferentes é possivelmente maior do que a daquelas em que não há essa indicação.

Figura 12 –Acompanhamento de hino (SANTO ANTONIO, op. cit., p. 62).


Tadeu Paccola Moreno - A questão do ritmo em fontes portuguesas... (p. 63 a 74)
73

Conclusão
Observam-se duas frentes de significado para a diferenciação de figuras na notação musical
empregada nos exemplos acima. Pode-se ponderar que as figuras diferenciem-se em virtude do texto ou
da duração. As duas ponderações podem funcionar em conjunto, de forma que o texto seja o determinador
das durações no cantochão desse contexto. Uma resposta objetiva em relação a este problema particular
é tão distante de ser seguramente encontrada quanto de ser necessária neste artigo.
Dart, sobre a música do século XVI, anterior, portanto, ao contexto aqui investigado, comenta:

As entonações e as interpolações do cantochão eram geralmente omitidas [das peças polifônicas


sacras] uma vez que também variavam de país para país e, mesmo, de diocese para diocese
(DART, 2000, p. 173).

Assim se observa que embora haja em relação ao cantochão, por sua ligação com ritos católicos, uma
intenção de unicidade, a pesquisa musicológica tem atualmente apontado para a pluralidade de práticas no
período anterior ao século XX. Como citado na introdução, é particularmente interessante a relação entre
teoria e prática. Os tratados de Talesio e Fernandes, apesar de próximos em espaço e tempo, dão noções
completamente distintas em relação à nomenclatura e significado das figuras do cantochão, o que reforça
essa visão pluralista.
As argumentações de Rosário, de que se utiliza no cantochão figuras desnecessárias e de que cantar
notas com durações diferentes seria descabido também corrobora para a visão de que, diferente do que
ocorre hoje, havia em épocas anteriores concomitantes práticas de cantochão distintas em alguns pontos. O
próprio título do manual de acompanhamentos que trago neste trabalho indica que aquela forma era uso e
costume especificamente da Real Basílica de Nossa Senhora e Santo Antonio na Vila de Mafra.
Hoje, a pluralidade de práticas de cantochão se encontra distante, uma vez que já há mais de cem anos
as pesquisas paleográficas de Solesmes apresentam uma forma única de uso litúrgico do repertório Gregoriano
do cantochão. No entanto, a volta do uso do rito tridentino, oficializada a partir de julho do ano passado pelo
Papa Bento XVI, traz a possibilidade de que tal prática se prolifere por diferentes coros leigos que têm
disponíveis não só os manuais de canto e acompanhamento de Solesmes, mas também todo um conjunto de
outros suportes escritos, de cunho prático ou teórico, que podem servir de base para a prática do cantochão,
tanto em ações litúrgicas quanto artísticas.

Referências bibliográficas

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Claves n.° 5 - Maio de 2008
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coro, conforme ao uso romano. Coimbra: Impressão de Diogo Gomez de Loureyro, 1618.

Tadeu Paccola Moreno cursou composição musical na Faculdade de Artes Alcântara Machado (FAAM), onde
desenvolveu a pesquisa “O papel da música no Mosteiro de São Bento na Sociedade Paulistana”, com enfoque na
música para órgão, sob a orientação de Rogério Zaghi. Atualmente é graduando do curso de Música - Produção
Sonora na Universidade Federal do Paraná, onde participa do grupo de pesquisa “Música brasileira: estrutura e estilo,
cultura e sociedade” na linha de pesquisa “Patrimônio Musical: arquivística e organologia”, na qual atualmente
trabalha com acervos de música sacra paranaense sob a orientação de Rogério Budasz.
Namur Matos Rocha - Polytope de Persepolis: cenário sonoro anti-espetáculo (p. 75 a 87)
75

Polytope de Persepolis: cenário sonoro anti-espetáculo

Namur Matos Rocha (Unesp)

Resumo: Este trabalho é uma breve análise da obra Polytope de Persepolis de Iannis Xenakis pelos conceitos de
paisagem sonora de Murray Schafer e espetáculo de Guy Debord. O termo paisagem sonora é definido por
Schafer como o ambiente sonoro natural ou construído de um determinado lugar. A noção de espetáculo, como
definida por Debord, é o desenvolvimento da economia para si própria e que submete totalmente os seres huma-
nos à sua lógica. Ver-se-á que o ambiente sonoro engendrado pela II Guerra Mundial; a paisagem sonora natural,
e a história da formação do Irã figuram entre as principais fontes de inspiração composicional de Xenakis. E, por
fim, que devido às suas características estéticas, Polytope de Persepolis pode ser interpretado como um anti-
espetáculo.
Palavras-chave: Xenakis. Polytope de Persepolis. Paisagem sonora. Espetáculo.

“Polytope of Persepolis”: anti-spectacle sonorous scene

Abstract: This work is a short analysis of Iannis Xenakis’ “Polytope of Persepolis” through the concepts of
Murray Schafer’s Soundscape and Guy Debord’s Spetacle. The term Soundscape is defined by Schafer as the
natural, or constructed sonorous environment of a determined place. The concept of Spectacle, as defined by
Debord, is the development of the economy for itself that submits the persons to its proper logic. This work will
show that the sonorous environment produced by World War II; the natural soundscape, and the history of the
formation of Iran are among the main sources of Xenakis’ compositional inspiration. Finally, because of its
aesthetic characteristics, the “Polytope of Persepolis” can be interpreted as an Anti-spectacle.
Keywords: Xenakis. “Polytope of Persepolis”. Soundscape. Spectacle.

Introdução
A evolução tecnológica a partir do final da idade Média possibilitou inúmeras transformações no processo de
transmissão e armazenamento de conhecimento. A partir desse período ocorre uma progressiva amplificação
e complexificação dos sistemas de comunicação humanos, pois, a informação passa a ser reproduzida por
procedimentos analógicos, criando assim a separação entre a produção e a recepção das informações. O
aperfeiçoamento da tecnologia da prensa móvel (1440 por Guttenberg) e a invenção do fonógrafo (1887 por
Thomas Edison) foram fundamentais para que o conhecimento pudesse ser transmitido a sociedades muito
distantes no espaço e no tempo, como comenta Fernando Iazzeta, pois o suporte material passou a garantir
a preservação da informação (IAZZETA, 2000, p. 202)
A partir década de 50 ocorre outra evolução tecnológica que engendra uma transformação ainda mais
radical na dinâmica de produção, armazenamento e transmissão do conhecimento: a revolução digital. Com o
desenvolvimento dos meios digitais, a transmissão e o armazenamento do conhecimento passaram a ser relati-
vamente independentes dos meios materiais, pois, a eletricidade permite a transmissão das informações sem a
necessidade do transporte de um único suporte físico ou do próprio corpo. Como expõe Timothy Binkley:

O que as redes digitais transmitem não são representações físicas da informação, mas apenas abstrações que
podem ser codificadas. Cada cópia do original não significa uma nova transcrição dos traços analógicos, mas
uma inscrição de símbolos abstratos. (Apud IAZZETA, 2000, p.205)
Claves n.° 5 - Maio de 2008
76

Atualmente, portanto, a dinâmica de produção, transmissão e armazenamento digitais do conhecimento


pode ser entendida como uma das características que mais profundamente definem e influenciam a relação
entre o ser humano e a cultura na pós-modernidade. O acúmulo de informações e a imensa possibilidade de
acesso a elas caracterizam as sociedades atuais como uma imensa rede de comunicações, em que as infor-
mações não são mais um privilégio de grandes corporações, mas de uma gama imensamente maior de indi-
víduos. É, então, nesse momento que podemos experimentar, talvez, uma das características mais impressi-
onantes e aterrorizantes da era digital no que diz respeito à transmissão de informações: a transmissão de
guerras em tempo real.

1. Decomposição: espetáculo como alienação


Antes de prosseguir é necessário fazer a breve introdução de um conceito fundamental para o entendi-
mento desse trabalho, a saber: o conceito de espetáculo. A palavra espetáculo tem origem no termo latino
“spectaculu” e pode significar tudo o que atrai a vista, que prende, que chama a nossa atenção; perspectiva;
contemplação; representação teatral, ou diversão pública em circos, bem como cena ridícula ou escândalo.1
Dentro do contexto filosófico, o conceito de espetáculo é definido por Debord (1967, Cap. 1, § 16) como “a
economia desenvolvendo-se para si própria” e que “submeteu totalmente” os seres humanos. Segundo ele:

O trabalhador não se produz a si próprio, ele produz um poder independente. O sucesso desta produção, a sua
abundância, regressa ao produtor como abundância da despossessão. Todo o tempo e o espaço do seu
mundo se lhe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos alienados. O espetáculo é o mapa deste
novo mundo, mapa que recobre exatamente o seu território. As próprias forças que nos escaparam mostram-
se-nos em todo o seu poderio (Op. cit., § 31).

Marilena Chauí2 expõe que espetáculo possui a mesma raiz da palavra especulação, e que, portanto,
ambos os conceitos “estão ligados à idéia de conhecimento como operação do olhar e da linguagem. [...] A
questão não se coloca diretamente sobre o espetáculo, mas com o que lhe sucede quando capturado, produ-
zido e enviado pelos meios de comunicação de massa”.
O espetáculo, portanto, se configura como um princípio que rege as relações entre os seres humanos
e os mundos material e imaterial. Isto é, ele é a lógica que determina a maneira pela qual o ser humano se
apropria da, se relaciona com, e se manifesta pela cultura. Dessa maneira, pode-se compreender que o
conceito de espetáculo, tal como exposto por Debord e Chauí, mantém íntima relação com o fenômeno da
alienação-estranhamento.3 O espetáculo se configura, sob esse ponto de vista, como a própria manifesta-
ção da alienação. Isto é, nos termos de Debord, uma manifestação em tal concentração que se transforma em
representação: imagens virtuais. Pode ser entendido, portanto, como a decomposição dos valores humanos
efetuada por sistemas de pensamento elaborados pela própria mente humana, e que teriam a finalidade de

1
Segundo o “Dicionário da Língua Portuguesa On-line” Priberam. Diponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/
definir_resultados.aspx>. Acesso em 27 de julho de 2007.
2
CHAUÍ, Aula Inaugural, FFLCH-USP, 1992 apud MATOS, O. Sociedade: tolerância, confiança, amizade. Biblioteca Virtu-
al de Direitos Humanos, USP, Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Biblio/txt/olgaria.html>. Aces-
so em: 26 jul. 2007.
3
Neste trabalho, o conceito de “alienação-estranhamento” se deriva de Jesus Ranieri (1995, p. 3).
Namur Matos Rocha - Polytope de Persepolis: cenário sonoro anti-espetáculo (p. 75 a 87)
77

possibilitar um maior controle sobre a realidade, mas que, paradoxalmente, submetem as pessoas à sua
própria lógica repressiva!

A guerra como espetáculo

O ruído era ensurdecedor dentro do hospital: crianças gritando, chorando. Algumas das
mães que as acompanhavam também estavam feridas. Havia crianças que haviam perdido
suas mães. A cena era assustadora, não tenho palavras para descrevê-la. (Sobhi Haddad4)

Há cerca de uma década e meia pôde-se assistir ao início da Guerra do Golfo através das transmissões
ao vivo, pela CNN, dos bombardeios norte-americanos à capital do Iraque. Era o início da primeira guerra
transmitida em tempo real.5 O fato de se transmitir bombardeios ao vivo tem causado uma mudança brusca
no significado da guerra para as sociedades contemporâneas. Como as informações sobre os acontecimen-
tos bélicos – as quais antigamente só poderiam ser acessadas semanas ou até meses mais tarde – podem hoje
ser transmitidas quase ao mesmo instante em que ocorrem, as mesmas informações que antigamente carrega-
vam um significado trágico parecem estar sendo possuídas por um sentido espetacular.6
Isso deriva do fato de que o avanço tecnológico permite que não somente os fatos sejam informados
ao mundo, mas também que a propaganda promocional de uma determinada nação seja dirigida a uma
grande parte da população da terra. Isto é, a revolução tecnológica do século XX permite que uma sociedade
faça uso das mídias para influenciar o imaginário das sociedades através da demonstração, em tempo real, de
seu poderio bélico.7 Tal qual ocorreu quando dos bombardeios feitos pela Força Aérea Norte Americana
sobre Bagdá, bem como pelo o uso que grupos terroristas fazem da mídia para veicular a imagem de uma
organização ameaçadora, potente, e indestrutível. Outros exemplos desse tipo de manipulação podem ser
encontrados nas diversas demonstrações de poderio bélico feitas pelos países que desenvolveram recente-
mente armas atômicas, tais como, a China e a Índia.
Estes fatos demonstram, por um lado, uma apropriação ideológica da imagem da guerra e dos meios
de comunicação pelos sistemas políticos, e paralelamente, uma utilização dessas imagens pelas mídias de

4
Trecho de depoimento veiculado na matéria Morador de Bagdá fala de cenas ‘assustadoras’ em hospital. In: BBC Brasil.com,
1/4/ /2003 (http://www.bbc.co.uk/portuguese/iraque/030401_testemunharg.shtml). Acesso em 2 de agosto de 2007.
5
“Pela primeira vez, um conflito era mostrado em tempo real por uma rede que tinha alcance planetário (CNN), graças a um
satélite retransmissor estrategicamente colocado em órbita polar estacionária.” (JUNIOR, 2003).
6
“A televisão adquiriu um enorme poder de transformar quase tudo em show, espetáculo, diversão. Assim, por exemplo, nos
vários episódios de invasões e guerras civis ao longo dos anos 90 (Somália, Haiti e Bósnia, apenas para citar alguns), as
câmaras de TV chegaram aos locais de combate antes dos soldados. Em nossas casas, vemos tudo pela televisão, e temos
a impressão de estar testemunhando ‘a’ verdade dos fatos, e não apenas ‘uma’ verdade, isto é, uma simples versão que
alguém filmou, editou e veiculou. O imenso poder adquirido pela televisão foi evidenciado durante a primeira Guerra do
Golfo (que nunca foi uma guerra propriamente dita, pois não havia o menor equilíbrio entre o poder dos dois lados em luta),
em janeiro de 1991, quando o mundo acompanhou a cobertura feita ao vivo e em cores, 24 horas por dia.” (Idem, Ibidem).
7
“As imagens são eletrizantes: imagens em tempo real de jatos e mísseis despachados de porta-aviões americanos, e de tanques e
helicópteros movimentando-se rapidamente através do deserto iraquiano, todas disponíveis no canal a cabo mais perto de você.”
“Mas, a estratégia de ‘encaixe’ do Pentágono não é para transformar a guerra em espetáculo do horário nobre, com
comentários intercalados de generais famosos. Os informes dos ‘encaixados’ visam dois alvos importantes: as mentes de
comandantes iraquianos e a opinião pública interna dos EUA.” (CORNWELL, 2003)
Claves n.° 5 - Maio de 2008
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massa com um propósito mercantil e acrítico. Entretanto, tanto a forma de apropriação da imagem de guerra
feita pelas emissoras comprometidas com a ideologia de massa, quanto aquela feita pelos sistemas político-
ideológicos, ocorrem pelo mesmo princípio, a saber: o de que os produtos jornalísticos, científicos ou artís-
ticos têm seu valor medido pelo potencial de geração de capital. Apesar de aparentemente distintas, portanto,
essas duas instâncias de utilização da imagem da guerra (política e mercantilista) revelam uma finalidade
fundamental: a obtenção de poder sócio-econômico e sócio-político. Dessa maneira, nota-se a existência de
uma acentuada decomposição do potencial crítico dentro do contexto ideológico que rege as sociedades
massificadas; pois, as informações sobre os conflitos dramáticos que definem e traumatizam a história exis-
tencial dos seres humanos têm sido apropriadas e transmitidas, paradoxalmente, tanto como um meio de
entretenimento, quanto como um veículo de intimidação e manipulação. Manifesta-se, assim, o espetáculo da
alienação.8 Como expõe Debord:

O espetáculo que inverte o real é efetivamente produzido. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmen-
te invadida pela contemplação do espetáculo, e retoma em si própria a ordem espetacular dando-Ihe uma
adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. Cada noção assim fixada não tem por
fundamento senão a sua passagem ao oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Esta
alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente. (1967, § 8.)

O pensamento a que se conduz aqui, portanto, é a compreensão da alienação manifesta sob a forma
de espetáculo. Isso ocorre a partir do momento em que a linguagem, a arte, as formas de produção e
transmissão do conhecimento e informação, isto é – a livre manifestação de vida dos seres humanos – são
apropriadas por uma lógica distinta de sua própria qualidade: a lógica da quantidade.

2. Polytopes
Polytopes são eventos multimídia desenvolvidos por Xenakis entre os anos de 1967 e 1985. Estes
eventos foram projetados em resposta a encomendas feitas por representantes de festivais de arte, ciência e
tecnologia, e se configuram pela utilização da tecnologia como uma ferramenta para a interação entre diver-
sas mídias, tais como: arquitetura, música, literatura e iluminação, e pela íntima relação que mantém com o
lugar em que são realizados.9 O termo Polytope está diretamente associado à noção de que, para Xenakis,
o lugar é caracterizado pela interação dos diversos parâmetros acústicos, lumínicos, térmicos, espaciais e
temporais que o definem. A idéia central dos Polytopes está fundada na busca por uma arte inspirada nas

8
Segundo Guy Debord, na forma suprema da alienação “o indivíduo acha-se separado de tudo quanto lhe diz respeito e pode relacionar-
se com ele somente através da mediação de imagens escolhidas por outros e falseadas de modo interessado.” (Apud JAPPE, 1995)
9
Segundo expõe Sven Sterken, “da mesma maneira que a maioria dos títulos das peças de Xenakis, ‘Polytope’ é derivado
de duas palavras gregas existentes: poly (muitos, numerosos) e tope (lugar, local, sítio, terreno, região, território). Como
observa Revault d’Allones (1975, p.10), no uso que Xenakis faz a palavra, há polissemia: por um lado a idéia de ‘inúmeros
lugares’, por outro lado, a de ‘muito espaço’. Maria Anna Harley (1998, p. 59) define a idéia de Polytope como ‘um
espetáculo audiovisual complexo e automatizado que pode ser representado repetidamente - graças à tecnologia de grava-
ção do som e a automação da exibição visual’, excluindo, assim, os espetáculos de Persépolis e Mycènes da série); Philipp
Oswalt (para quem o termo designa ‘o ato de sobrepor vários espaços sonoros, luminosos e arquiteturais no mesmo lugar’), e
Makis Solomos (que acentua a específica relação que esses espetáculos mantêm com o lugar onde são instalados; de acordo
com ele, os Polytopes constituem ‘realizações multimédia onde o lugar é importante: cada uma é concebida em relação a um
lugar específico, que é ocupado visualmente, auditivamente e espacialmente’).” (STERKEN, 2004, p. 83, tradução nossa)
Namur Matos Rocha - Polytope de Persepolis: cenário sonoro anti-espetáculo (p. 75 a 87)
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manifestações da natureza. Xenakis busca uma manifestação artística que se distancie do antropomorfismo e
que se aproxime das manifestações luminosas e sonoras da natureza.10
Xenakis idealizou diversos projetos para a realização de Polytopes, porém, alguns deles não puderam
ser concretizados, tais como o Polytope de México e o Polytope de Atenas, ora devido à falta de recursos
financeiros e tecnológicos, ora devido à recusa do projeto pelos organizadores dos eventos. Os que chega-
ram a ser realizados foram: Polytope de Montreal (1967), Polytope de Persepolis (1971), Polytope de
Cluny (1972), O Diatope (1977-78) e o Polytope de Micenas (1978).

2.1 Polytope de Persepolis


O Polytope de Persepolis foi encomendado pelo Festival de Artes e Música da cidade de Chiraz no
Irã, por intermédio de Farokh Ghaffari, cineasta e diretor associado ao festival (STERKEN, 2004, p. 429).
Naquela época, o país era governado pelo imperador Mohammad Reza Pahlavi, cuja intenção com o festival
era consolidar o seu regime através da exaltação da cultura aristocrática persa pré-islâmica com a celebração
dos 2.500 anos da criação do Irã por Ciro o Grande.11 A participação do público na obra se deu de forma
livre, sem locais preestabelecidos para a sua locação, pois, não havia uma polarização espacial das fontes
sonoras e luminosas. Segundo Sterken:

Não há sedes; as fontes sonoras são repartidas por toda parte nas ruínas, os espectadores são convidados
a passear-se livremente. Xenakis dirige o espetáculo através de um simples walkie-talkie a partir de um
console central que se encontra no tribunal central, entre os palácios de Darius e de Xerxes, o Apadana (a
antiga sala de audiência) e a Câmara do Conselho. (2004, p. 430-31, tradução nossa).

Figura 1 – Planta baixa do sitio arqueológico de Persépolis.


(Fonte: <http://oi.uchicago.edu/museum/collections/pa/persepolis.html>)

10
Eis o porquê da relação entre os Polytopes e Paisagem Sonora. A busca central dos Polytopes é exposta por Xenakis da
seguinte forma: “Ser sensível aos fenômenos luminosos, sobretudo os naturais: raio, nuvens, fogos, mar, céu, vulcões…
Ser bem menos sensível aos jogos luminosos dos filmes, mesmo abstratos, às decorações de teatro, de ópera. Preferir os
espetáculos naturais fora do homem. Preferir a vertigem que cria o abismo oceânico do céu estrelado, quando se mergulha
a nossa cabeça esquecendo a terra onde descansam os nossos pés.” (Apud STERKEN, 2004, p. 484, nossa tradução)
11
Como expõe Sven Sterken, “colocado sob o elevado patrocínio da Imperatriz Farah Diba, o Festival de Chiraz era um dos
maiores festivais de arte do mundo no fim dos anos 60 (em termos de escala e de orçamento, pelo menos). Tinha por vocação
incentivar o intercâmbio artístico entre o Oriente e o Ocidente. A programação estava à escala das ambições; todos os
grandes nomes da cena artística ocidental da época passaram à revista. Considerado retrospectivamente, o valor artístico
do festival é eclipsado pelo fato de que, finalmente, servia para fins políticos. Tratava-se nomeadamente de consolidar o
regime Shah, fornecendo-lhe um fundamento histórico, além da cultura muçulmana. Reza Shah declarava-se nomeadamente
como herdeiro do império persa de 600 anos antes de Cristo. Ironicamente, o festival teve o efeito oposto daquele que se
visava; muito rapidamente, ficou o símbolo da ocidentalização política de Shah.” (2004, p. 429, tradução nossa).
Claves n.° 5 - Maio de 2008
80

Figura 2 – Vista aérea do sítio arqueológico de Persépolis.


(Fonte: <http://en.wikipedia.org/wiki/Persepolis>)

2.1.1. Memorial descritivo


Arquitetura: Ruínas de Persépolis, Irã (Fig. 2).
Apresentações: Apresentação única em 26 de Agosto de 1971, como abertura na quinta edição do
festival de artes de Chiraz, na presença de numerosas celebridades, entre as quais, Farah Diba, Imperatriz de
Irão. (STERKEN, 2004, p. 429).
Lugar: Do palácio em ruínas de Darius I estendendo-se até às colinas onde se situam os túmulos de
Dario II e de Artaxerxes (Fig. 1).
Iluminação: Segundo Anna Maria Harley (1998, p. 66) a cópia heliográfica do esquema de ilumina-
ção do espetáculo indica a locação de 91 circuitos para efeitos de luz colocados entre as ruínas do palácio.
Foram usados 2 raios laser, 6 projetores antiaéreos, 3 conjuntos de 12 spots luminosos cada um (para
iluminar as ruínas), 20 tanques de fogo, 150 tochas (carregadas por crianças vestidas de preto), 5 grandes
fogueiras de petróleo.12
Música: Os eventos sonoros começam com o prelúdio de Diamorphoses (1957, 7'), para fita mag-
nética. Após a apresentação de Diamorphoses, segue-se Persepolis, música para fita magnética de 8 pistas
(56'), composta nos estúdios Acousti (Paris) a partir de sons gravados e manipulados. As duas peças são
espacializadas nas ruínas por meio de 60 auto-falantes dispostos segundo a geometria de três círculos.13
James Harley (2002, p. 46) descreve a música de Persepolis, a partir da análise dos rascunhos de
Xenakis. Segundo ele as sonoridades são provenientes de diversas fontes, sendo que nenhuma é pura ou
simples. Dentre as reconhecíveis, pode-se destacar: multifônicos de clarinetes, complexos de harmônicos de
instrumentos de cordas, gongos, distorções de tímpanos, sons cerâmicos, fricções de cartões, rajadas de
12
Apud STERKEN, 2004, p. 429, tradução nossa. A respeito dos componentes luminosos, Sterken faz referência à caderneta
de notas de Xenakis da época; entretanto, segundo o primeiro, não se sabe se todos esses elementos foram realmente
integrados ao espetáculo. Nas suas notas, o compositor se refere ainda a 5.000 peças de alumínio de 15 x 15 cm (para refletir
a luz desde a colina), 1.500 taças de fogo, 170 espelhos e 4 malabaristas do fogo.
13
Idem.
Namur Matos Rocha - Polytope de Persepolis: cenário sonoro anti-espetáculo (p. 75 a 87)
81

vento tratadas com módulo de distorção, sons metálicos e ruídos diversos. Por último, Harley comenta que
ouvir a música no lugar para o qual ela foi composta – nas escuras ruínas de Persépolis – deve ser uma
experiência magnífica, pois os materiais sonoros são desenvolvidos durante a execução da peça, criando
uma violenta paisagem sonora. Devido ao número reduzido de informações visuais sobre Polytope de
Persepolis, tais como fotos e vídeos, uma vez que, segundo Sterken (2004, p. XX), as únicas fotografias se
encontram em Revault d’Allonnes (1975, p. 22-27), tomamos a liberdade de usar de uma citação literal de
Maurice Fleuret, a exemplo de Sterken, para elucidar imaginativamente a evolução dos eventos do Polytope
de Persepolis:

Percebe-se primeiro, na obscuridade, Diamorphoses, uma espécie de longo prelúdio geológico que parece
surgir da Terra anunciando estridências, cataclismas, tal como a enorme e viva tapeçaria sonora de Persepolis.
Na seqüência, sobre a montanha oposta, muito perto dos dois grandes túmulos, os fogos dos projetores
lançam-se para o céu, enquanto dois raios laser agitam febrilmente o seu fio de sangue sobre as ruínas que a
noite dissolveu. Aparecem então, nos cumes, luzes em degrau, cintilando, divergentes, investigadoras. Dois
imensos fogos, exacerbados pelo vento, abraçam o caos das pedras. Linhas de pontos luminosos traçam ao
flanco da montanha uma geometria ímpar. Lentamente, as luzes progridem, desenhando a curva da crista. De
repente, estouram, dispersam-se e descem a inclinação da montanha. A colina inteira está como um reflexo do
céu estrelado. Mas, uma a uma, as lâmpadas elétricas são carregadas como tochas para modelar sobre o preto
profundo um arabesco de uma frase persa: “Nós somos a luz da Terra”. Por último, num rompimento final
cento e cinqüenta crianças portadoras de tochas cruzam o barranco, racham a multidão e desaparecem pelas
colunas: Persepolis recai no seu silêncio mineral. (FLEURET apud STERKEN, 2004, p. 430)

Figura 3 – Xenakis e alguns técnicos de som no sítio de Persépolis (Fonte: Sterken, 2004, p. 428).

3. Composição: cenário sonoro


O conceito de paisagem está intimamente associado às características visuais do ambiente que nos
cerca. Tal fato deriva do papel primordial que a visão desempenha no pensamento ocidental. É um erro,
porém, interpretar a paisagem como um aspecto da realidade percebido exclusivamente através da visão,
pois isto exclui diversos outros parâmetros perceptivos importantes para a nossa interação com o meio
Claves n.° 5 - Maio de 2008
82

ambiente, entre os quais o som. É neste contexto que se revela a importância do conceito de paisagem
sonora, o qual é definido por Schafer (2001, p. 366) como o ambiente sonoro natural ou artificialmente
construído de um determinado lugar. Em seu livro “A afinação do mundo”, Schafer expõe diversos aspectos
da paisagem sonora, tais como: som fundamental, sinais e marcas sonoras. A paisagem sonora é, portanto,
a contra-face auditiva da paisagem visual, cuja determinação ocorre através da produção sonora humana e
pela natureza, e cuja caracterização se dá auditivamente num determinado ambiente. Apesar de o conceito
paisagem sonora englobar ambientes naturais e artificiais,14 ele carrega em si uma significação que remete a
ambientes relativamente duradouros, fixos e realísticos, mesmo no caso de ambientes artificiais, como é o
caso das paisagens das cidades em que houve uma imensa parcela de contribuição dos seres humanos para
a sua construção. Tal conotação deriva do fato de o conceito de paisagem estar diretamente ligado à natu-
reza e às construções arquitetônicas, ambas eminentemente fixas no espaço, duradouras no tempo – apesar
de suas transformações durante a história – e com as quais as pessoas mantêm uma relação marcada pela
funcionalidade cotidiana. Desse modo, com o objetivo de se estabelecer uma relação mais apropriada entre
o Polytope de Persepolis e a paisagem sonora, toma-se a liberdade de lançar mão do conceito de cenário
sonoro, o qual certamente deriva do conceito de Schafer, mas que carrega em si um significado mais consonante
com três das características fundamentais dos Polytopes, a saber: a efemeridade, a transitoriedade e o sim-
bolismo. Nos dois primeiros sentidos o termo cenário sonoro corresponde a uma paisagem sonora artifici-
almente criada e que tem como características fundamentais o fato de ser construída para não durar no tempo
e não permanecer no espaço. E no terceiro sentido, a expressão cenário-sonoro foi escolhida para evocar a
significação de uma composição que extrapola os aspectos ambientais, almejando carregar dentro de si a
representação simbólica de uma dada cultura.

3.1. Simbolismo: o testemunho áudio-visual da guerra


O conceito de testemunha auditiva é definido por Schafer (2001, p. 368), como “a pessoa que
atesta ou pode atestar o que ouve”. A testemunha auditiva se fundamenta na memória auditiva e, portanto, na
experiência. Sendo assim, o mesmo raciocínio pode ser estendido para o plano visual, pois, também a
memória visual é adquirida pela experiência. Pode-se propor, então, o conceito de testemunha visual como
similar ao conceito de Schafer. Seguindo esse raciocínio tem-se que a testemunha áudio-visual de um
determinado evento é aquela que atesta ou pode atestar o que ouve e vê. Por isso, como o verbo atestar
significa expor; certificar por escrito; asseverar; provar, a testemunha audiovisual é aquela que pode testemu-
nhar sobre aquilo que ouve e vê com experiência de causa. A testemunha audiovisual, portanto, emite um
testemunho audiovisual. É nesse sentido que se aplica aqui o conceito aos Polytopes de Xenakis, e especifi-
camente, ao Polytope de Persepolis.

3.2. Ruínas e ruídos da História


O testemunho audiovisual de Xenakis é dado através das características estéticas do Polytope de
Persepolis, as quais evocam o histórico de guerras do Irã. A história da construção do império islâmico está
14
Segundo Schafer (1997, p. 366) o termo paisagem sonora pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas,
como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente.
Namur Matos Rocha - Polytope de Persepolis: cenário sonoro anti-espetáculo (p. 75 a 87)
83

intimamente associada às características estéticas escolhidas por Xenakis para a produção dessa obra. Essa
afirmação pode ser confirmada pelas declarações do próprio Xenakis quando, em documentos relativos ao
Polytope de Persepolis, afirma:

Símbolo dos ruídos da história; rochas indestrutíveis que enfrentam o assalto das ondas da civilização.
A história do Irã, fragmento da história do mundo, assim é representada elíptica e abstratamente por
meio dos choques, das explosões, das continuidades e das correntes subterrâneas do som. (STERKEN,
2003, p. 487)

Entretanto, não se trata de uma representação literal ou figurativa da história. O Polytope de Persepolis
representa características abstratas que apenas remetem o espectador a uma dada interpretação sem, contudo,
defini-la. A característica mantém relação direta com a idéia de obra aberta, tal como definida por Eco,15 na
medida em que se configura abstratamente como um “campo de possibilidades interpretativas” que induzem
o espectador a diversas interpretações em virtude da sua natureza indeterminada. Tal característica pode ter
sido responsável pelos incidentes interpretativos ocorridos em Persépolis quando da apresentação do Polytope.
Naquela época, diversas pessoas interpretaram os eventos com tochas e fogueiras como representativos da
conquista de Persépolis por Alexandre o Grande. No entanto, a idéia de Xenakis ao utilizar o fogo foi evocar
a transmissão da tradição iraniana durante a história.16
A despeito da diversidade de interpretações, o que interessa aqui é notar que Xenakis intentou expres-
sar o movimento histórico da formação do Irã através de elementos estéticos abstratos. A luta pela indepen-
dência, a disputa por terras, as batalhas e colisões presentes no processo de formação da nação são evocadas
através da criação de um cenário-sonoro ruidoso e estridente. Tais características indicam que Xenakis teve
como uma de suas fontes inspiradoras a história da composição e decomposição do império persa, o qual,
como todo processo de construção de impérios, fora pontuado por diversas guerras e atrocidades contra os
direitos naturais dos seres humanos, entre as quais se pode citar a escravidão.
Além das referências ao histórico de guerras do Irã o Polytope de Persepolis também carrega em sua
estrutura referencias à própria história de Xenakis. As experiências de guerra vividas pelo compositor – o
testemunho audiovisual da guerra – lhe deram base sólida para evocar abstratamente aspectos similares à
história do Irã. Segundo Matossian, de maneira genérica, os Polytopes mantêm íntima relação com as expe-
riências vividas por Xenakis durante a II Guerra. Para ela, os fenômenos sonoros e luminosos produzidos
pelos eventos bélicos causaram grande impacto sobre o pensamento estético de Xenakis.17 O próprio com-
positor também tece comentários a esse respeito quando comenta sobre as relações entre os eventos da
guerra e seu método de composição.18 Portanto, os Polytopes são espetáculos multimídia que mantêm

15
ECO, 1991, p. 279-281.
16
Segundo Sterken, “posteriormente, o triunfo de Xenakis em Persépolis foi um tanto eclipsado por interpretações
deliberadamente políticas do seu espetáculo. Acusa-se o compositor de ser nomeadamente o segundo grego a pôr fogo em
Persepolis, após Alexandre (o qual queimou a cidade imperial em 330 antes de Cristo para selar o fim do império persa)”.
(2004, p. 431, tradução nossa)
17
“Mais tarde, durante seus últimos dias como um recruta, ele assiste, de cima de um telhado da cidade, como a R.A.F.
bombardeou um aeroporto alemão, fascinado e horrorizado com o soberbo show de luz e som que tragicamente usava
Atenas como seu teatro”. (MATOSSIAN, 1990, p. 131-132, tradução nossa).
Claves n.° 5 - Maio de 2008
84

íntima relação com as cenas da guerra, na medida em que os cenários sonoros construídos pelo compositor
fazem menção direta às imagens auditivas e visuais que ele testemunhou nos bombardeios. Sendo assim, é
possível interpretar o Polytope de Persepolis como um testemunho audiovisual de Xenakis sobre os cená-
rios audiovisuais da guerra e como um simbolismo estético da história do Irã, através duma evocação abstrato-
figurativa (pelo som e pela luz) das lutas e batalhas engendradas durante a formação do império iraniano, isto
é: cenário sonoro das ruínas e ruídos da história.

4. Recomposição: cenário sonoro anti-espetáculo


O conceito de cenário sonoro foi empregado também pelo fato de carregar em si uma relação direta
com a noção de espetáculo como exposto por Debord, uma vez que o conceito de cenário remete diretamente
às idéias de cena, teatro e representação. Sendo o espetáculo a manifestação da alienação nas diversas
áreas que compõe a experiência humana, pode-se compreender que as esferas da criação e produção
artísticas também sofrem sua influência. Nos contextos sociais em que a produção e transmissão do conhe-
cimento se encontram gerenciados pela lógica de mercado, os seres humanos e, portanto, os compositores,
encontram grandes dificuldades para fugir da manipulação e condicionamento de sua criatividade. Pois, neste
contexto sociológico, ou se aliena da imensa produção massificada, condenando-se a certa marginalização
de sua atividade, ou se aliena na imensa produção de ordem massificada, condicionando-se à auto-
marginalização da consciência em relação à sua própria identidade.19
É neste contexto que surge a especulação filosófica sobre o fim da arte, o que atinge a própria razão
de ser da arte enquanto produto do conhecimento que tenha uma qualidade indispensável para o desen-
volvimento da humanidade. Para Debord, o fim da arte se coloca pelo fato de que no contexto da socie-
dade do espetáculo, momento histórico em que a arte deveria suprir a necessidade do diálogo, ela se
recusa a desempenhar o papel comunicativo.20 Para ele, após o período de anti-racionalismo efetuado
pelas vanguardas estéticas modernas, tais como Dada e o Surrealismo, a arte deveria desempenhar um
papel prático-comunicativo, porém, nega-se à comunicação.21 Para Adorno, contrariamente, é justamente

18
“Todos já observaram o fenômeno sonoro de uma manifestação política com centenas de milhares de pessoas. O rio
humano grita um slogan com ritmo uniforme. Então um outro slogan nasce da frente da manifestação e se espalha até a parte
de trás, substituindo o primeiro. Uma onda de transformação então passa da frente para a parte de trás da multidão. O clamor
enche a cidade e a inibidora força da voz e do ritmo atinge um clímax. É um evento de grande poder e beleza em sua
ferocidade. Então o impacto entre os manifestantes e o inimigo ocorre. O ritmo perfeito do último slogan se quebra num
grande aglomerado de gritos caóticos, que também se espalha até a parte de trás da multidão. Imagine, ainda, os estampidos
de dezenas de metralhadoras e o assobio de balas se dispersando, adicionando suas pontuações a essa total desordem. A
multidão então se dispersa rapidamente e o inferno sonoro e visual segue uma calma detonante (...) As leis estatísticas
desses eventos (...) são as leis de passagem da completa ordem à total desordem de um modo contínuo e explosivo. São as
leis estocásticas.” (XENAKIS, 1971, p. 9. tradução nossa)
19
“Na redução dos seres humanos a agentes e portadores da troca de mercadorias, esconde-se a dominação de alguns seres
humanos sobre outros [...]. O sistema total assume esta forma: ‘todos devem submeter-se à lei da troca se não quiserem
perecer’”. (JAPPE, 1995)
20
“Justamente enquanto deve suprir o que falta à sociedade - o diálogo, a unidade dos momentos da vida -, a arte deve
recusar-se a realizar o papel de simples imagem disso. A sociedade havia relegado a comunicação à cultura, mas a dissolução
progressiva das comunidades tradicionais - da ágora aos bairros populares - levou a arte a constatar a impossibilidade da
comunicação.” (Ibidem)
Namur Matos Rocha - Polytope de Persepolis: cenário sonoro anti-espetáculo (p. 75 a 87)
85

na negação de sua instrumentalidade que reside o potencial crítico da arte moderna.22 Dessa maneira, a
contraposição entre o pensamento de Adorno e Debord reside no fato de que o último questiona o potencial
crítico das manifestações artísticas após a década de 30 por não terem acompanhado a transformação da
sociedade. Pois, para Debord, a sociedade pós década de 30 já havia incorporado o irracionalismo como um
fundamento de sua prática. Sendo assim, a arte, para garantir sua função crítica, haveria de se manifestar contra
essa característica, o que na opinião dele se daria pela racionalização, instrumentalidade e comunicação. Porém,
como expõe Jappe, tal racionalização “não se trata de um retorno às formas pretensamente ‘corretas’ da
época pré-burguesa”, mas da necessidade de uma revisão sobre o potencial crítico das vanguardas estéticas,
e pela utilização da arte como um meio de comunicação.23 A despeito dessa oposição de opiniões, importa
aqui constatar que Debord e Adorno interpretavam a postura estética da arte moderna até a década de 30
como uma contraposição às forças gerenciadoras da alienação nas sociedades:

Tanto Adorno como Debord aplicam à análise da arte moderna o conceito de contradição entre o uso possível
das forças produtivas e a lógica da auto-valorização do capital. Ambos vêem na arte moderna - e exatamente
em seus aspectos formais - uma oposição à alienação e à lógica da troca. (JAPPE, 1995)

Neste sentido, os aspectos formais da arte moderna são entendidos como uma posição estética contra
a ideologia do espetáculo e a industria cultural. Tal oposição se dá a partir da transgressão dos padrões
estéticos vigentes na sociedade, gerando a relação de estranhamento entre obra de arte e receptor. Assim, a
arte moderna se configura como uma crítica à inversão dos valores na sociedade, pois se contrapõe à lógica
de troca que fundamenta as relações entre as pessoas no contexto ideológico de mercado. Esse mesmo
princípio fica explicito novamente na obra aberta de Eco:

21
“Em Potlatch, o boletim do grupo de Debord, afirma-se [sic], por volta de 1955, que a pintura abstrata depois de
Malévitch só rompeu portas que já estavam abertas (p.187), que o cinema esgotou todas as suas possibilidades de
inovação (p. 124) e que a poesia onomatopéica, por um lado, e a neoclássica, por outro, indicavam o fim da própria poesia
(p. 182). Essa ‘evolução vertiginosamente acelerada agora gira no vazio’ (p. 155), isto é, o desenvolvimento das forças
produtivas estéticas chegou à sua conclusão porque o desdobramento paralelo das forças produtivas extra-estéticas
transpôs um patamar decisivo, criando a possibilidade de uma sociedade já não inteiramente dedicada ao trabalho
produtivo, uma sociedade que teria tempo e meios para ‘brincar’ e entregar-se às ‘paixões’. A arte, enquanto simples
representação de tal uso possível dos meios, a arte enquanto sucedânea das paixões, estaria, portanto, superada.”
(Ibidem)
22
“Adorno e Debord representavam, na década de 60, duas posturas diametralmente opostas em relação ao “fim da arte”.
Adorno defendia a arte contra os que pretendiam ‘superá-la’ em favor de uma intervenção direta na realidade e contra os
partidários de uma arte ‘engajada’, enquanto Debord anunciava, no mesmo período, que havia chegado o momento de
realizar na própria vida o que até então só se havia prometido na arte, concebendo, contudo, a negação da arte - mediante
a superação de sua separação dos demais aspectos da vida - como uma continuação da função crítica da arte moderna.
Para Adorno, ao contrário, exatamente o fato de a arte estar separada do resto da vida é que garante tal função crítica.
(Ibidem)
23
“A decomposição da arte continua após 1930, porém mudando de significado. A autodestruição da linguagem antiga,
uma vez separada da necessidade de encontrar uma nova linguagem, é recuperada pela ‘defesa do poder de classe’ (Sde,
§ 184). A impossibilidade de qualquer comunicação é, então, reconhecida como um valor em si que deve ser recebido com
júbilo e assumido como um fato inalterável. A repetição da destruição formal no teatro do absurdo, no novo romance, na
nova pintura abstrata ou na pop-art, não expressa mais a história que dissolve a ordem social: já não é outra coisa senão
a monótona réplica do existente, com um valor objetivamente afirmativo, ‘simples proclamação da beleza suficiente da
dissolução do comunicável’” (Sde, § 192). (Ibidem)
Claves n.° 5 - Maio de 2008
86

O discurso aberto, que é típico da arte, e da arte de vanguarda em particular, tem duas características: 1ª.
Acima de tudo é ambíguo: não tende a nos definir a realidade de modo unívoco, definitivo, já confeccionado [...].
O discurso artístico nos coloca numa condição de “estranhamento” [...], apresenta-nos as coisas de um modo
novo, para além dos hábitos conquistados, infringindo as normas da linguagem, as quais havíamos sido
habituados. As coisas de que nos fala aparecem sob uma luz estranha, como se as víssemos pela primeira vez;
precisamos fazer um esforço para compreendê-las, para torná-las familiares, precisamos intervir com atos de
escolha, construir-nos a realidade sob o impulso da mensagem estética, sem que esta nos obrigue a vê-la de um
modo pré-derminado. Assim, a minha compreensão difere da sua, e o discurso aberto se torna a possibilidade de
discursos diversos, e para cada um de nós é uma contínua descoberta do mundo. (ECO, 1991, p. 279-281).

Dessa maneira, pode-se sugerir que os Polytopes mantêm uma relação direta com a noção de anti-
espetáculo; pois a apropriação da paisagem sonora da guerra no processo de composição artística carrega
em si um sentido diametralmente oposto ao da produção cultural de massa, uma vez que se opõe aos pa-
drões estéticos vigentes no contexto mercadológico. A opção pela fragmentação, pelo horror, e pela violência
fenomenologicamente representados na utilização dos ruídos como som fundamental24 das composições pode
ser interpretada como uma recomposição da postura crítica da arte pela idéia de anti-espetáculo; pois cumpre
um papel de oposição radical ao sistema desumanizador que caracteriza o processo de alienação das socieda-
des de massa. Isto é, o uso de imagens fragmentárias engendra efetivamente uma relação de estranhamento
entre o receptor e a obra artística, rompendo o processo de comunicação pragmática e a instrumentalidade
que, segundo Adorno, caracterizam a produção de massa no contexto da indústria cultural.25
Pode-se sugerir aqui, entretanto, a existência de uma contradição entre o uso das imagens da guerra
em composições sonoro-visuais e o ponto de vista estético de Debord, posto que, para este, como exposto
anteriormente, no contexto sociológico após 1930 a postura anti-alienação se daria pela racionalização da
sociedade, o que pressupõe uma atitude comunicativa. É neste contexto que se evidencia um dos aspectos
fundamentais dos Polytopes, a saber: o aspecto multimídia definido pelos intercâmbios significativos entre
diversas mídias, tais como: textos, arquitetura, música e iluminação. Essa característica qualifica os Polytopes
a realizar uma espécie de hibridização entre abstração e figuração.26 Isto é, sob este ponto de vista espe-
cífico, os Polytopes, mesmo sendo obras compostas após 1930, mantêm relação com o pensamento de
Debord, pois, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que estabelecem a relação de estranhamento, rompen-
do com a instrumentalidade e o pragmatismo da sociedade de consumo, permitem o estabelecimento de uma

24
Murray Schaffer define o som fundamental como “sons ouvidos continuamente por uma determinada sociedade ou com
constância suficiente para formar um fundo contra o qual outros sons são percebidos.” (1997, p. 368)
25
“Adorno admite que a arte, ao tornar-se autônoma e desvincular-se das funções práticas, já não é imediatamente um fato
social e separa-se da ‘vida’. Mas, só desse modo a arte pode, de fato, opor-se à sociedade. A sociedade burguesa criou uma
arte que é, necessariamente, seu adversário, inclusive além de seus conteúdos específicos. [...] Tanto a indústria cultural
como o espetáculo baseiam-se na identificação do espectador às imagens que lhe são propostas, o que equivale à renúncia
a viver em primeira pessoa.” (JAPPE, op, cit.)
26
Apesar de o seguinte texto se referir especificamente ao Diatope, as mesmas relações entre som e imagem podem ser
encontradas já em Persepolis: “Há, em primeiro lugar, uma relação específica entre abstração e figuração, que vale para cada
um dos meios (música e espetáculo visual). Os nomes poéticos que recebem várias das configurações luminosas são
significativos: o que Xenakis comanda é uma poesia dos elementos, uma espécie cosmogonia que, ao nível sonoro, La légend
d’Eer magnifica. Num certo sentido, estamos aqui num quadro figurativo. No entanto, estas mesmas configurações podem ser
apreendidas de uma maneira totalmente abstrata: Xenakis diz-nos que são criadas a partir ‘de pontos (flashs eletrônicos) e de
retas (raios laser)’ (1978: 11). E é invocando a abstração que ele define a correspondência entre som e imagem, assim como o
espetáculo visual resultante. [...] Aliás, [...] assim como a música foi derivada de sua sonoteca, várias das configurações visuais
já tinham sido desenhadas para o Polytope de Cluny.” (SOLOMOS, 2005, p. 25-27, tradução nossa )
Namur Matos Rocha - Polytope de Persepolis: cenário sonoro anti-espetáculo (p. 75 a 87)
87

via comunicativa entre obra e receptor, isto é: uma comunicação aberta. Portanto, por este ponto de vista
específico, a atitude de se apropriar da paisagem sonora e luminosa da guerra como estética composicional dos
Polytopes pode ser interpretada como uma atitude criativa de resistência em relação aos meios homogeneizantes
e banalizadores da atividade humana. O que está, paradoxalmente, em consonância com o pensamento de
Adorno e Debord, como uma produção artística que se funda na noção de anti-espetáculo a partir do
estranhamento estético, como forma de recomposição do potencial crítico da arte, como oposição às forças
ideológicas que manipulam as diversas áreas da atividade e produtividade humanas.

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STERKEN, S. Iannis Xenakis, Ingénieur et Architecte. Une analyse thématique de l’œuvre, suivie d’un inventaire critique de
la collaboration avec Le Corbusier, des projets architecturaux et des installations réalisées dans le domaine du multimédia.
Tese de doutorado para a obtenção do grau de PhD em História da Arquitetura na Universidade de Ghent, 2004.

XENAKIS, I. Formalized music: thought and mathematics in composition. Bloomington: Indiana University Press, 1971.

Namur Matos Rocha é Arquiteto e Urbanista formado pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e Mestrando
em Música no Instituto de Artes da Unesp, São Paulo. Atualmente desenvolve a pesquisa “Relações estético-
estruturais entre Música e Arquitetura: Polytopes, uma análise sobre a obra multimídia de Iannis Xenakis”, sob a
orientação do compositor Prof. Dr. Flo Menezes e com o apoio da FAPESP.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
88

Um exercício de paráfrase estrutural a partir da análise do


Quarteto Op. 22 de Anton Webern1

Liduino Pitombeira (UFPB)

Resumo: Neste artigo, analisa-se o primeiro movimento do Quarteto Opus 22 de Anton Webern, a partir de três
níveis de observação: 1) nível superficial, que consiste em observar a textura segmentada em conjuntos de classes-
de-notas, especialmente tricordes, e como estes conjuntos se relacionam sob o ponto de vista de operações de
transposição e inversão; 2) nível intermediário, que consiste em observar como a simetria inversional dá coerência a
alguns conjuntos de classes-de-notas, e 3) nível profundo, que consiste em observar como uma série dodecafônica
é a estrutura de base que dá sustentação a toda a obra. Segue-se a esta análise, um exercício de paráfrase estrutural.
Palavras-chave: Webern. Quarteto Opus 22. Simetria inversional. Paráfrase estrutural.

An exercise of structural paraphrasis based on the analysis of Webern’s Quartet Op. 22

Abstract: In this article, the first movement of Webern’s Quartet Opus 22 is analyzed with respect to three levels
of observation: foreground, which consists of observing the texture segmented into pitch class sets, especially
trichords, and how these sets relate one to another in terms of transpositional and inversional operations;
middleground, which consists of observing how inversional simmetry confers coherence to some pitch class sets;
and background, which consists of observing how a twelve-tone row is the basic structure that supports the
entire work. This process is followed by an exercise on structural paraphrasis.
Keywords: Webern. Quartet Opus 22. Inversional symmetry. Structural paraphrasis.

Parte 1: Análise
O trecho mostrado na Figura 1 é o início do primeiro movimento do Quarteto Op.22 para violino,
clarinete, saxofone tenor e piano, de Anton Webern (1883-1945). É possível encontrar, já a partir do seu
Op.17, uma utilização consistente da técnica dodecafônica, o que nos convida, de imediato, à identificação
de uma série de doze classes-de-notas.
No entanto, a distribuição das doze classes-de-notas não foi feita de forma visivelmente óbvia, ou seja,
agrupando notas contígüas ou mesmo pensando numa dicotomia piano versus demais instrumentos. Como se
pode observar, ambos os critérios produzem a repetição ou a insuficiência de classes-de-notas, inviabilizando,
assim, a configuração apropriada ou integralizada de um contexto dodecafônico.
Numa tentativa inicial de buscar elementos unificadores, identificam-se, tanto visual quanto auditivamente,
os conjuntos de classes-de-notas isolados e classificados na Figura 2. O tricorde 014 é um dos favoritos de
Webern e o acompanhou durante toda a vida composicional, desde o Quarteto de Cordas de 1905, onde é
a primeira sonoridade a ser ouvida (uma referência ao “Muβ es sein?” do último movimento do Quarteto
Op.135 de Beethoven?). O tricorde 016 é amplamente discutido por Flo Menezes, que o denomina de
“arquétipo weberniano do primeiro tipo”, no quinto capítulo de A Apoteose de Schoenberg (MENEZES,
2002, p.115). O tricorde 012, pela própria estrutura cromática, que o torna um ícone da música pós-tonal,
também é uma sonoridade sempre presente em Webern.

1
Este artigo, de certa forma, acrescenta e complementa informações sobre este procedimento composicional descrito em
“Simetria Axial como Elemento de Coerência no 2º Movimento de ‘Cinco Movimentos para Quarteto de Cordas’ de Anton
Webern”, publicado na Revista Claves N.º 2.
Liduino Pitombeira - Um exercício de paráfrase estrutural... (p. 88 a 100)
89

Figura 1 – Compassos iniciais do primeiro movimento do Quarteto Opus 22 de Webern.2

Figura 2 – Identificação de estruturas de superfície na introdução.

Poderíamos, então, afirmar que, no nível mais claramente perceptível, estes cinco compassos do
Quarteto Op. 22 correspondem ao diagrama da Figura 3, a qual mostra, dentro das elipses, as formas
normais dos conjuntos bem como suas relações com as formas primitivas.3 As setas indicam as operações
que conectam os conjuntos equivalentes.
2
Os sons mostrados em todos os exemplos deste artigo são reais, isto é, não transpostos.
3
Dentro das elipses, temos, na parte superior, a forma normal dos conjuntos e, na parte inferior, a operação que relaciona a
forma normal com a forma primitiva. Por exemplo, o primeiro gesto executado pelo saxofone (Ré bemol, Si bemol e Lá) tem
forma normal 9A1 (onde A=Si bemol) e forma primitiva 014. A forma primitiva se relaciona com a forma normal, neste caso,
através de uma transposição da ordem de nove semitons, ou seja, T9.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
90

Figura 3 – Identificação das relações entre as estruturas de superfície na introdução.

Como o trecho tem 24 classes-de-notas e o piano e demais instrumentos possuem classes-de-notas


repetidas, pode-se inferir que duas formas da série podem estar sendo simultaneamente mostradas, mas
ainda não sabemos como elas estão distribuídas em todo o conjunto instrumental. No entanto, ao eliminarmos
a defasagem entre os tricordes equivalentes e visualizarmos a passagem sob o ponto de vista de um sistema
cartesiano (Figura 4), onde o eixo das ordenadas é formado pelas classes-de-notas e o eixo das abscissas se
constitui apenas em uma contagem temporal uniforme, sem a preocupação de expressar a realidade temporal
da obra, revela-se claramente uma construção simétrica, espelhada com relação ao eixo das abscissas, ou
eixo 0 (classe-de-notas ausente no violino, clarinete e saxofone e repetida no piano).4

Figura 4 – Distribuição cartesiana. Figura 5 – A série dodecafônica.

Uma outra forma de visualizar estas classes-de-notas, mostrada na Figura 5, revela finalmente que
Webern construiu a série a partir da alternância de tricordes entre o quadrante superior e inferior do gráfico
cartesiano. Observe-se que a outra possibilidade de seleção dos tricordes, isto é, iniciando pelo tricorde do
quadrante inferior, gera uma série invertida em relação à primeira, e, portanto, ambas integram a mesma
matriz dodecafônica. Esta distribuição torna evidente uma simetria inversional com relação ao eixo 0, uma
vez que a soma dos elementos correspondentes em ambas as linhas resulta em 0 para todas as colunas.
Mesmo não sendo tão perceptível quanto os conjuntos de classes-de-notas de superfície, poder-se-ia dizer
que a simetria inversional desta passagem torna-se aparente pela eliminação da defasagem entre os conjuntos
e também pela escolha dos registros, a qual um olhar mais atento, partindo do pressuposto da existência de
4
Uma construção similar com relação ao eixo 6 revelaria também uma simetria com relação a esta classe-de-notas, a qual é
ausente no piano e se repete no clarinete.
Liduino Pitombeira - Um exercício de paráfrase estrutural... (p. 88 a 100)
91

um eixo, consegue perceber na própria superfície.5 A simetria inversional se situa, portanto, em um


nível intermediário de percepção. O “embelezamento” no nível superficial se constitui na distribuição
métrica irregular das estruturas simétricas, e, portanto, o ritmo se estabelece como elemento composicional
importantíssimo, uma vez que é o acabamento, a arte-final do texto, por assim dizer. O ritmo é, desta forma,
um parâmetro essencial para a percepção estrutural, não só da elaboração contrapontística notoriamente
fundamentada na tradição, como também do próprio princípio inversional aplicado pelo compositor, uma
vez que os conjuntos relacionados por inversão estão organizados dois-a-dois por um critério de similaridade
rítmica (fato revelado na Figura 2 e também nas operações mostradas na Figura 3).
Em um nível estrutural mais profundo, encontramos a série dodecafônica, mostrada na Figura 6,
totalmente entrelaçada entre as diversas vozes e, portanto, de difícil observação visual e auditiva. Isto pode
nos levar a conjeturar que a série funcionaria aqui como uma estrutura arquetípica ou de fundo, que tem a
função de garantir a essência cromática, sem, no entanto, se mostrar claramente, até mesmo para não obscurecer
o ponto focal da composição, que é a simetria inversional, a qual, aliás, se manifesta em nível de contiguidade
segmental, ou seja, nos segmentos agrupados por uma proximidade visual na partitura, proximidade esta que
transparece auditivamente sob os pontos de observação métrica e timbrística e dá coerência às estruturas de
superfície mostradas no início (Figura 2). Nota-se, na Figura 7, como todos os conjuntos de classes-de-
notas isolados na Figura 2 são simétricos com relação ao eixo 0-6.6

Figura 6 – A distribuição dodecafônica.

5
É importante, neste ponto, introduzir o conceito de simetria inversional. Um conjunto é inversionalmente simétrico quando
tem a capacidade de se transformar nele próprio através de uma operação de inversão (STRAUS, 2000, p.78).
6
Observa-se que a denominação axial no espaço circular necessita de dois pontos. No espaço cartesiano, mostrado
anteriormente, um ponto é suficiente porque traz consigo a indicação de uma linha horizontal.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
92

Figura 7 – Simetrias inversionais.

Esta simetria inversional em torno do eixo 0-6 continua consistentemente presente durante toda a
peça, apenas no piano, com exceção do trecho correspondente ao final do compasso 22 e início do compasso
23, onde a obra atinge um nível de máxima densidade textural (grande atividade instrumental e grande concen-
tração de formas da série), máxima dinâmica (todos os instrumentos estão com a dinâmica ff) e maior âmbito
registral (o piano toca a nota mais grave – Dó2 – e o violino a nota mais aguda –Dó7 – do movimento, nota
esta que corresponde ao eixo de simetria 0-6).7 Nessa passagem, o eixo se desloca primeiramente para um
valor intermediário entre 0 e 1 e 6 e 7 e depois assume o valor 1-7, ou seja, é deslocado em um semitom no
sentido horário, como uma reação quase mecânica ao distúrbio provocado pela sobrecarga nos parâmetros
(veja-se a Figura 8). Logo imediatamente, no compasso 24, após esta sobrecarga energética, o eixo do
piano retorna à sua posição original (0-6) e continua assim até o final da peça. Este fato tem uma repercussão
estrutural impressionante, que confirma a importância da simetria inversional como elemento de coerência
composicional do Quarteto.

Figura 8 – Deslocamento axial.

Enquanto a simetria inversional governa o nível intermediário da composição e é afetada (ou afeta)
diretamente flutuações perceptíveis nos parâmetros musicais, a série tem, além da função mantenedora da
coerência cromática, um papel decisivo na macro-estrutura da obra. Se somarmos os índices de todas as
formas da série utilizadas, observaremos um perfeito paralelismo entre este resultado e os trechos formais
delimitados pelo próprio compositor com o uso de barras duplas, o que confirma uma macro-estrutura ABA’
acrescida de introdução e coda.8 A Tabela 1 explicita esta estrutura mais claramente.

7
Neste trabalho, consideramos Dó4 como o Dó central do piano.
8
Observa-se, na Tabela 1, como Webern utilizou, na maioria dos casos, duas formas da série. Somente em A e A’ aparecem
três formas. Ao selecionar as formas da série, Webern teve o cuidado de escolher aquelas que se relacionassem simetri-
camente com relação ao mesmo eixo 0-6, que atuou como elemento de simetria em outras instâncias. Por exemplo, P7 e I5
são inversionalmente simétricas em torno do eixo 0. A simetria, portanto, também se revela como fator estrutural nessa
escolha.
Liduino Pitombeira - Um exercício de paráfrase estrutural... (p. 88 a 100)
93

Tabela 1 – Estrutura do movimento.

As Figuras 9, 10 e 11 demonstram os mesmos procedimentos de observação na Coda do movimento


(compassos 38-41),9 ou seja, dos pontos de vista de conjuntos de classes-de-notas (Figura 9, nível super-
ficial), eixos de simetria (Figura 10, nível intermediário) e distribuição serial (nível profundo). Nota-se, pela
segmentação escolhida, o aparecimento de um tricorde não utilizado na introdução: 013. Talvez, neste mo-
mento, Webern estivesse preocupado apenas em dissolver a textura musical, ao mesmo tempo em que
sustentava a integridade dodecafônica e, principalmente, a simetria inversional (que é totalmente estável e
aplicável a toda a textura da coda), e por isso se explica a redução da quantidade de classes-de-notas dos
segmentos que passam de tricordes para díades, as quais são subconjuntos transpostos do tricorde 012
(mostrado nos compassos iniciais da obra): Mi bemol – Ré (01), Lá-Si bemol (01) e Si-Dó sustenido (02).

Figura 9 – Segmentação da Coda.

Figura 10 – Eixos de simetria na Coda.


9
O último compasso da seção A’ é incluído nas figuras porque a série dodecafônica da coda inicia-se neste compasso, no
violino e no saxofone.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
94

Figura 11– Distribuição serial na Coda.

Parte 2: Paráfrase estrutural

Tendo em mãos a análise desses dois trechos do Quarteto Op. 22 de Webern, demonstramos abaixo,
para fins pedagógicos, a realização de uma reconstrução parafrásica utilizando o mesmo planejamento
composicional, isto é, partindo da prévia determinação dos níveis profundo, intermediário e superficial. Esta
é uma ferramenta composicional que pode ser aplicada tanto em cursos de composição como de análise de
música pós-tonal, para possibilitar que o aluno vivencie, empiricamente, as fases e os níveis de construção de
uma obra musical.
Escolhemos como meio instrumental o violino e o piano, e como estrutura profunda o hexacorde
014589, o qual é um conjunto de transposição limitada.10 Aliás, isto faz com que 014589 seja um dos seis
hexacordes totalmente combinatoriais (BABBITT, 1974, p.16).11 Mesmo sendo a combinatorialidade, espe-
cialmente a inversional, uma característica composicional de Schoenberg (STRAUS, 2000, p.184), a escolha
deste hexacorde também guarda certa relação com Webern, já que ambos os tricordes que o compõem têm
forma prima 014, a qual é uma das sonoridades preferidas de Webern, como vimos anteriormente.12 Não
sendo nossa estrutura profunda dodecafônica, iremos tratá-la composicionalmente de forma serializada. No
entanto, para guardar uma analogia com os procedimentos utilizados por Webern, o hexacorde será tratado
como uma estrutura ordenada e deverá ser detectável na textura de forma velada. A Tabela 2 mostra as
formas da série que poderão ser nosso material de construção. Nota-se que, ao combinarmos, por exemplo,

10
Pode-se transpor este hexacorde somente mais três vezes antes que seu conteúdo se reproduza integralmente, ainda que de
forma desordenada. Este hexacorde portanto é um conjunto de transposição limitada.
11
A combinatorialidade hexacordal é uma propriedade pela qual um hexacorde, justaposto a uma de suas formas transpostas ou
invertidas, produz doze classes-de-notas distintas (Cf. STRAUS, 2000, p.184).
12
Este hexacorde integra, por exemplo, a série de seu “Concerto para Nove Instrumentos”. Veja a série em STRAUS, 2000, p. 179.
Liduino Pitombeira - Um exercício de paráfrase estrutural... (p. 88 a 100)
95

P0 com P2, P6 e PA produzimos agregados, ou seja, doze classes-de-notas distintas (STRAUS, 2000, p.184).13
Observa-se ainda, na Tabela 2, como todas as inversões reproduzem as retrogradações de P0 a PB, isto é,
R0=I9, R1=IA etc. Isto ocorre em virtude das qualidades geométricas intrínsecas deste hexacorde (014589),
o qual divide simetricamente o círculo de doze classes-de-notas em três grupos de dois, formando um triân-
gulo equilátero. Observa-se que, como o número de transposições é limitado, para certos valores teremos
coincidência entre retrogressões e inversões, uma vez que a configuração geométrica do hexacorde não se
deforma com estas operações, dada sua própria distribuição espacial simétrica. Este fenômeno ocorre em
qualquer série que divida o círculo de classes-de-notas em partes simétricas (por exemplo, qualquer um dos
modos de transposição limitada de Messiaen).
O critério de escolha dos hexacordes utilizados na obra paráfrasica foi a combinatorialidade. Ao
observar-se a Figura 15, verificar-se-á que inicialmente são utilizadas as formas P0 e P2 e, em seguida, I6, PB,
IA e P7 simultaneamente. Veja-se, na Tabela 3, que P0 + P2, I6 + PB e IA + P7 produzem agregados, e que
partições irregulares das formas I6, PB, IA e P7, consideradas simultaneamente, também produzem agregados,
os quais são identificados pela zona sombreada e seu complemento não-sombreado.

Tabela 2 – Transposições, inversões e retrogressões do hexacorde 014589.

13
Observa-se que não construímos uma matriz quadrada hexatônica, porque isto eliminaria a possibilidade de utilização de
algumas classes-de-notas, seja pela inexistência de linhas e colunas suficientes (no caso de se considerar a base cromática
12), seja pela própria inexistência destas classes-de-notas em um sistema de contagem de base 10, considerando-se a
classe-de-notas Lá como o valor mais alto. Veja-se, na Tabela 5 (Apêndice), como seria a configuração de uma matriz
quadrada hexatônica para o hexacorde 014589 considerando-se a base 12 e, na Tabela 6, considerando-se a base 10. Nota-
se que, neste último caso, não existem as classes-de-notas Si bemol (A) e Si natural (B), as quais por definição não existem
em um sistema com apenas 10 classes-de-notas, e que a estrutura simétrica do hexacorde foi deformada. A técnica de
construção de matrizes não-dodecafônicas – ferramenta útil na construção de matrizes para outros parâmetros musicais,
como dinâmica e articulação, que podem ser limitados a um número menor que doze – é, no entanto, um tópico que foge ao
escopo deste artigo.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
96

Tabela 3 – Hexacordes utilizados na seção A da obra parafrásica.

Como recurso estrutural de nível intermediário, utilizaremos eixos inversionais e, diferentemente da


obra de Webern, onde a macro-estrutura se definiu pelas formas da série empregadas em cada seção estru-
tural, a estrutura em nosso exemplo, que também será ABA’, definir-se-á pela contraposição de dois eixos.
Assim sendo, para a seção A utilizaremos o eixo 2/3-8/9 e para a seção B o eixo 0/1-6/7, conforme é
mostrado na Figura 12.

Figura 12 – Eixos estruturais das Seções A e B.

A Figura 13 mostra a seção A da obra parafrásica com a textura segmentada em conjuntos de classes-
de-notas.14 Observa-se que, embora se possa imaginar que o tricorde 014 tenha que aparecer abundante-
mente no trecho, em virtude do hexacorde gerador ser formado pela justaposição de dois tricordes 014, o
planejamento composicional para o nível intermediário, onde predominam as simetrias inversionais, traz à
tona tricordes e tetracordes que não são subconjuntos do hexacorde 014589, como por exemplo, 013,
0167 e 0123. Na Figura 14, vemos como os segmentos são totalmente simétricos com relação ao eixo 2/3-
8/9. Na Figura 15, logo após os quatro primeiros compassos, vemos como o hexacorde é distribuído de
maneira entrelaçada na textura. Esta distribuição guarda relação íntima com a dinâmica e o registro: nota-se
que, no violino, PB está associada à dinâmica pp e registro grave e I6 à dinâmica mf e registro agudo. Para o
violino, consideramos como registro agudo as notas acima do Dó5, inclusive. Para o piano, também são

14
Somente a Seção A será mostrada neste artigo, uma vez que os procedimentos aplicados no restante da obra são similares.
Liduino Pitombeira - Um exercício de paráfrase estrutural... (p. 88 a 100)
97

utilizadas duas formas hexacordais: IA apresenta um contorno p-pp-p, no que ser refere à dinâmica, e agudo-
grave-agudo-grave, com respeito ao registro; P7 apresenta um contorno mp-mf-mp, com relação à dinâmica,
e grave-agudo-agudo-grave, com respeito ao registro. Consideramos Dó4 como o referencial delimitador
das zonas grave e aguda, para o piano. A Tabela 4 ilustra a associação da dinâmica e do registro às formas do
hexacorde utilizadas para o piano e para o violino, como aparecem na obra a partir do compasso 5 (para
uma melhor visualização sugere-se observar concomitantemente a Figura 15). 15

Figura 13 – Segmentos da Seção A.

Tabela 4 – Associação de dinâmica e registro às formas hexacordais.

15
Com exceção desta associação simples entre dinâmica e formas da série, os demais parâmetros musicais foram escolhidos
sem interferência do sistema composicional, ou seja, foram improvisados. Optou-se assim, para não sobrecarregar o sistema
de múltiplas camadas e para que não se fizesse uma associação inadequada com o serialismo integral pós-weberniano.
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Figura 14 – Eixos de simetria da Seção A.

Figura 15 – Distribuição serial na Seção A.


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99

Conclusão

Neste artigo, analisou-se o primeiro movimento do Quarteto Opus 22 de Anton Webern, a partir de
três níveis de observação: 1) nível superficial, que consistiu em observar a textura segmentada em conjuntos
de classes-de-notas, especialmente tricordes, e como estes conjuntos se relacionavam sob o ponto de vista
de operações de transposição e inversão; 2) nível intermediário, que consistiu em observar como a simetria
inversional deu coerência a alguns conjuntos de classes-de-notas, e 3) nível profundo, que consistiu em
observar como uma série dodecafônica foi a estrutura de base que deu sustentação a toda a obra. Os
parâmetros de observação condizem com o que análise detectou serem as características determinantes dos
três níveis da hierarquia estrutural da obra.
Seguiu-se a esta análise um exercício de paráfrase estrutural (elaborado pelo autor) onde qualidades
distintas de material de base determinaram a elaboração composicional, também em 3 níveis estruturais hierár-
quicos: 1) tricordes e tetracordes atuam no nível superficial, 2) dois eixos de simetria, no nível intermediário,
atuam como delimitadores formais, e 3) um hexacorde totalmente combinatorial determina o nível profundo.
Constata-se que este método de vivenciar uma obra musical a partir da aplicação concomitante de
métodos analíticos e composicionais, quando empregado em cursos de composição e análise, gera um
aprofundamento mais consciente dos aspectos técnicos das obras, ao mesmo tempo em que desperta nos
alunos a possibilidade de criar. O autor vem utilizando, com sucesso, esta metodologia em diversas discipli-
nas, desde 1996 (harmonia, contraponto, análise, composição, práticas composicionais contemporâneas e
orquestração), tanto em sistemas curriculares brasileiros como estrangeiros (nos cursos de graduação da
Universidade Estadual do Ceará, de 1996-1998 e de 2007-2008, e, na graduação e pós-graduação da
Louisiana State University, Baton Rouge, Estados Unidos, de 2002 a 2006).
Além do procedimento de desconstrução (análise) e reconstrução (paráfrase), que pode ter ênfase no
parâmetro altura, como foi aqui empregado, outras técnicas e outros enfoques paramétricos podem ser utiliza-
dos para gerar um texto musical a partir de outro(s). Ainda focalizando o parâmetro altura, temos, por exemplo,
a filtragem e a conversão. Estas duas técnicas, oriundas da música eletroacústica, podem ser aplicadas para a
reconstrução de alturas, de forma bastante eficiente. Observa-se como a linha melódica da Figura 16a pode ser
filtrada (as notas que não pertencem ao filtro pentatônico são substituídas por pausas ou alongadas) ou conver-
tida (na Figura 16b, onde as notas são convertidas às mais próximas, a partir deste mesmo filtro).

Figura 16a - Filtragem.


Claves n.° 5 - Maio de 2008
100

Figura 16b - Conversão.

Referências bibliográficas

BABBITT, M. Since Schoenberg. Perspectives of New Music. Vol. 12, No. 1/2 (Autumn,1973- Summer, 1974), p. 3-28.

MENEZES, F. Apoteose de Schoenberg. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

STRAUS, Joseph. Introduction to Post-Tonal Theory. 2.ed. Uppler Saddle River, New Jersey: Prentice Hall, 2000.

Leitura Recomendada

Revista Claves N.º 1

Liduino Pitombeira é compositor. Suas obras têm sido executadas pelo Quinteto de Sopros da Filarmônica de Berlim,
Louisiana Sinfonietta, Orquestra Filarmônica de Poznan (Polônia) e Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, e
publicadas pelas editoras Peters, Conners, Cantus Quercus, Alry, Bella Musica, RioArte, Filarmonika L.L.C. e Irmãos
Vitale. Atualmente é professor do Departamento de Música da UFPB.
Maria Guiomar de C. Ribas - Resenha (p. 101 a 103)
101

RESENHA

EDUCAÇÃO MUSICAL NO BRASIL

Maria Guiomar de C. Ribas (UFPB)

Educação Musical no Brasil1 é uma obra de obra aberta, assumidamente parcial, que dá plena
impacto para a área, representando uma cartografia voz a interpretações locais e singulares. Brindando-
do campo educativo musical. A história da Educação nos com essa publicação, constroem um modo pelo
Musical brasileira é contada de forma plural, sendo qual a história da Educação Musical pode ser
esse um aspecto que imprime ao livro característica descrita, analisada, entendida, problematizada, e/ou
própria, possibilitado pela multiplicidade de temáticas transformada.
e perspectivas conceituais. Isso ocorre pela partici- O livro está estruturado em três partes: “O
pação de setenta e cinco autores e autoras oriundos Ensino de Música no Brasil”, “Educação Musical nos
de todos os estados brasileiros e do Distrito Federal, Estados” e “Perspectivas da Educação Musical no
que escrevem, uns sozinhos outros em parceria(s), Brasil”. Fases da Educação Musical são apresentadas
cinqüenta e sete capítulos sobre a trajetória da Edu- na Parte I - “O Ensino de Música no Brasil”,
cação Musical, em vários tempos, espaços e con- composta por sete artigos. Dois deles abordam o
textos sócio-histórico-culturais brasileiros. ensino e a aprendizagem de música no contexto
Tecendo o diálogo entre as muitas vozes dos/ político educacional da Era Vargas: “A Educação
as autores/as convidados/as, as organizadoras, Alda Musical no Brasil dos Anos 1930-45”, escrito por
Oliveira e Regina Cajazeira, rompem com posições Jusamara Souza, e “A Educação Musical da era
favoráveis ou contrárias em relação às diferentes Vargas: seus precursores”, cuja autora é Rosa Fuks.
abordagens analíticas desse material, em prol de uma Embora tratem de uma mesma temática, enquanto
1
Souza elege como foco a institucionalização do ensino
OLIVEIRA, Alda; CAJAZEIRA, Regina (Orgs.). Educação
Musical no Brasil. Salvador: P&A, 2007, 404 p. de música no período Vargas (estudada a partir da
Claves n.° 5 - Maio de 2008
102

relação entre o político-social e o ensino de música música e a extinção do ensino de música nas escolas.
nas escolas), Fuks se detém em problematizar como Associado a isso, o autor considera que a pós-
o modernismo dos anos 20 e reformas educativas graduação em música está se transformando em
estaduais formuladas nessa década influenciam a “extensão compensatória da graduação”. Considera,
práxis pedagógica-musical dos anos 30. ademais, que as especialidades e linhas de pesquisa
“Aspectos históricos da Educação Musical no em música estão indefinidas e confusas. “A pesquisa
Brasil e na América do Sul” artigo de autoria de Alda em Educação Musical no Brasil – Teses e
de Jesus Oliveira, traça um percurso histórico da Dissertações: diversidade temática, teórica e
Educação Musical nos países da América do Sul, metodológica” de autoria de José Nunes Fernandes,
detendo-se mais detalhadamente no contexto músico- analisa a produção discente da pós-graduação
educacional brasileiro. Ao tratar sobre a formação brasileira no campo específico da Educação Musical.
em Música, aborda a história desde as missões jesu- Os dados foram obtidos a partir dos portais da
ítas, onde a música era utilizada como meio de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
catequizar os indígenas, mostrando que essa pers- Nível Superior (CAPES), Associação Nacional de
pectiva doutrinária religiosa permaneceu no ensino Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM);
musical até meados do século XVIII. No século XX, e Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
destaca o crescimento do multi-culturalismo e a cria- em Educação (ANPED), além da solicitação da
ção e aprofundamento da pós-graduação e organi- produção discente junto aos cursos de pós-
zações musicais, como Associação Nacional de Pes- graduação stricto sensu em Artes e Música. O artigo
quisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM) e a apresenta um minucioso trabalho sobre o campo de
Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM), pesquisa na subárea da Educação Musical no país.
como fatores que refletem um cenário político edu- Essa primeira parte do livro se encerra com o
cacional latino-americano favorável a mudanças. Tece artigo intitulado “A Associação Brasileira de
ainda comentários sobre o que considera Educação Musical – ABEM: 15 anos de história”,
[in]consistências da Educação Musical no Brasil. realizado a “quatro mãos” por Sérgio Luiz Ferreira
Regina Cajazeira escreve sobre “A importân- de Figueiredo e Alda de Jesus Oliveira. Esse texto
cia das bandas na formação do músico brasileiro”. celebra os 15 anos da Associação, informando sobre
Trata dos vários sentidos e representações como, quando e em que contexto a ABEM foi criada,
socioculturais atribuídos às bandas em nosso país, bem como seus objetivos, princípios e realizações.
mostrando como, desde o período colonial à Como afirmam o autor e a autora: “A ABEM tem
atualidade, as bandas fazem parte da nossa cultura. cumprido um importante papel na produção e
Ademais, a autora discorre sobre as características disseminação do conhecimento em Educação
da formação do músico de banda, analisando pro- Musical. Os encontros oportunizam debates e as
cessos de apropriação e transmissão musical desses/ publicações são referências não apenas para o Brasil,
as instrumentistas, bem como o significado da banda mas para toda a América Latina.” (Op. cit., p. 63)
enquanto agente de formação musical. A segunda parte de Educação Musical no
O quinto e o sexto artigo abordam a pesquisa Brasil traz estudos organizados por regiões geográ-
como tema. “A pós-graduação em Música no Brasil”, ficas, contemplando quarenta e oito artigos.2 Es-
escrito por Régis Duprat, estabelece uma estreita
2
relação entre problemas atuais da pós-graduação em Sobre essa segunda parte do livro, esclareço que optei por
não comentar cada artigo, já que isso seria exaustivo.
Maria Guiomar de C. Ribas - Resenha (p. 101 a 103)
103

ses textos são referentes a cada um dos vinte e seis 386). Coelho de Souza reflete ainda sobre iniciativas
estados brasileiros e o Distrito Federal. Emerge as- e perspectivas para a Educação Musical a distância
sim, de forma pioneira, uma história da Educação Mu- na atualidade, e destaca o consórcio promovido pela
sical a partir das vozes estaduais. UFRGS, envolvendo a UFBA, UFES, UFSC,
Certamente essa não deve ter sido uma tarefa UFMG, UFAL e UNIR. Conforme relata a autora,
fácil para as organizadoras. Uma dificuldade superada trata-se da experiência pioneira de um curso de
refere-se ao fato de que a polissemia de interpreta- Licenciatura em Música a distância, que terá um
ções e recortes passíveis de se elaborar acerca de modelo integrado à Rede Nacional de Formação
um mesmo assunto é ilimitada, enquanto, Continuada de Professores. O segundo e último
paradoxalmente, a nossa capacidade de capítulo dessa parte final, é feito pelas organizadoras,
compreensão da dita realidade é parcial, limitada. Alda Oliveira e Regina Cajazeiras, que escrevem as
Diante da complexidade do mundo social, nos “Conclusões e Perspectivas” para o campo da
instrumentalizamos, teórica e metodológicamente, Educação Musical.
para nos aproximarmos da “realidade”, que é sempre Dúvidas, perspectivas e limites em torno da
dinâmica e complexa, a tal ponto que o registro é Educação Musical brasileira são externados,
algo circunscrito ao seu tempo e espaço social, e, no documentados, compartilhados nesse livro. Sem
entanto, imprescindível para a nossa busca de dúvida, a obra sugere possibilidades, e certamente
compreensão maior dessa dita realidade. Nesse se constituirá em referência na literatura sobre a
sentido, sem dúvida esse livro repre-senta uma valiosa Educação Musical no Brasil.
contribuição para o campo da Educação Musical
brasileira, e como ressaltam as organizadoras:

Os textos dos setenta e cinco autores sobre


as cinco regiões do país tecem uma realidade
surpreendente, onde muitas facetas da edu-
cação musical foram descobertas e reveladas.
A realização dessa edição possibilita a expan-
são do conhecimento musical sobre o país e
aumenta as oportunidades de relacionamen-
to entre professores de todos os Estados.
(Op. cit., p. xvii)

A terceira parte do livro, denominada


“Perspectivas da Educação Musical no Brasil” é
constituída por dois artigos. “Educação Musical a
Distância no Brasil”, escrito por Cássia Virgínia
Coelho de Souza, defende que essa modalidade de
ensino, ao não contar com a presença do professor
ou da professora em sala de aula, modifica o processo
de aprendizagem no sentido de “uma maior abertura
para o desenvolvimento do aluno a partir de uma
postura menos diretiva do professor” (op. cit., p.
Claves n.° 5 - Maio de 2008
104

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3. Formatação do corpo do texto: Fonte - Times New Roman 12. Parágrafo - entre linhas 1,5, alinhamento justificado, com
recuo especial de primeira linha por 1 cm.

4. Primeira página: A primeira página deve conter: título (Times 14, caixa alta e baixa, negrito, alinhamento centralizado);
autor (instituição) (Times 12, caixa alta e baixa, negrito, alinhamento direito); resumo com cerca de 6 linhas (Times 10, entre
linhas simples, alinhamento justificado); palavras-chave (Times 10). Em seguida, o título em inglês (Times 10, caixa alta e
baixa, entre linhas simples, espaçamento antes 18 pt e depois 12 pt) seguido de abstract (Times 10, entre linhas simples,
alinhamento justificado) e keywords (Times 10).

5.Títulos de seções: Times 12, alinhamento esquerdo, caixa alta e baixa, negrito, entre linhas 1,5 cm, espaçamento antes 18 pt.
Subseções: na mesma formatação, com recuo esquerdo de 1 cm.

6. Ilustrações: Exemplos musicais (Ex.) e Figuras (Fig.) devem ser apresentados no texto e em arquivo separado, como
imagem no formato .tif ou .jpg, com resolução mínima de 300 dpi, com a melhor qualidade possível. Todas as ilustrações,
incluindo Quadros e Tabelas (Tab.), devem ser centralizadas na página, numeradas, acompanhadas de título centralizado
sob a ilustração (Times 10, entre linhas simples, espaçamento antes e depois de 12 pt). Não serão aceitas ilustrações
coloridas.

7. Nomes das notas/modos/tonalidades/etc: As iniciais dos nomes das notas musicais, dos modos, e outras denominações
importantes deverão vir sempre em maiúsculas: Dó maior, Mi menor, Sib, Fá#, Mixolídio, Opus, etc.

8. Abreviaturas padronizadas: compasso(s): comp(s).; movimento (mov.).

9. Referências bibliográficas: No texto, utilizar referências simples com indicação de sobrenome em caixa alta, ano de
publicação e página: (ANDRADE, 1999, p.183). No final do artigo, sob o título Referências bibliográficas (Times 12, entre
linhas 1,5 cm., espaçamento antes 18 pt.), relacionar de forma completa somente as obras referidas no artigo, de acordo com
as normas atuais da ABNT: NBR-6023 (Times 10, entre linhas simples, espaçamento depois 12 pt).

10. Notas: Deverão ser numeradas seqüencialmente e apresentadas no rodapé (Times 10, entre linhas simples, espaçamento
depois 6 pt).

11. Citações com até três linhas devem ser inseridas no corpo do texto, entre aspas. As citações com mais de três linhas
devem vir como um novo parágrafo, com recuo de 1 cm à esquerda e à direita em relação às margens (Times 10, entre linhas
simples, espaçamento antes 12 pt e depois 18 pt).

12. Dados do autor: Ao final do artigo, incluir um breve currículo (até 10 linhas em Times 10, entre linhas simples).

13. Submissão: Antes de submeter o artigo, o autor deverá realizar uma rigorosa revisão gramatical e normativa e remetê-lo
à Revista Claves, em arquivo de mídia (CD ou disquete) acompanhado de uma cópia impressa.

14. Autorização: Será imprescindível que o autor anexe uma carta assinada autorizando o processo editorial e concedendo
os direitos autorais do referido artigo à Revista Claves. Nesta carta deverão constar o título do trabalho e o(s) nome(s),
endereço(s), telefone(s) e e-mail(s) do(s) autor(es).
Claves n.° 5 - Maio de 2008
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Guidelines to submit articles

1. General. The articles must be submitted in Word for Windows (.doc) or in Rich Text (.rtf) format with an extension between
10 and 20 pages including title, author’s name, abstract and keywords, examples, notes, references and bibliography, and a
brief author’s résumé.

2. Page setup. A4 size; all margins with 2,5cm, except the left, with 3,0cm; page number must be inserted on the upper right
side.

3. Text format. Font - Times New Roman 12. Paragraph - 1,5 between lines, justified and 1cm indented on left at the first
line.

4. First page. It has to include: title (Times 14, capital and small letters, bold, centralized); author (institution) (Times 12,
capital and small letters, bold, and right alignment); abstract within 6 lines (Times 10, single spacing between lines, and
justified); keywords (Times 10).

5. Heading and sections. Times 12, left alignment, capital and small letters, bold, 1,5cm between lines, 18 pt before. Subsec-
tions (if any), with the same format, indented 1cm from the left margin.

6. Illustrations. Musical examples (Ex.) and Figures (Fig.) must be presented in the text itself as well as in a separate file as
image format (.tif or .jpg) with high quality resolution (300 dpi, at least). All illustrations, including Maps, Charts or Tables
(Tab.), must be page centered, numbered, and followed by its title centered under the illustration (Times 10, single spacing
with 18 pt before and 12 pt after). Illustrations in collors will not be accepted.

7. Musical notes/modes/tonalities/etc. Initials of all important designations should be written with capital letters, such as
musical notes, modes, or tonalities: C major, E minor, F#, Mixolydian, Opus, and so on.

8. References. Simple references should be stated with capital letters presenting family name, year and page number, all
within brackets: (ANDRADE, 1999, p.183). The References section (Times 12, 1,5cm spacing with 18 pt before) will appear
at the end of the article. In this section, present full references only of those works cited in the article (Times 10, single
spacing, 12 pt after).

9. Quotation with at most three lines must be inserted in the body of the text, within quote signs. Quotation with more than
three lines must be presented as a new paragraph, 1cm indented on both left and right sides in relation to the margins (Times
10, single spacing with 12 pt before and 18 pt after).

10. Notes. They must be numbered in sequence and presented as footnotes (Times 10, single spacing, 6 pt after).

11. Author’s data: At the very end of the article, include a brief résumé (no more than 10 lines, Times 10, single spacing).

12. Submitting: Before submitting the article, the author should review both the grammar and the form, and send it to
Revista Claves, in a media file (CD or disk) with a printed copy attached. If submitted electronically, please observe item 13
(Publishing Permission).

13. Publishing Permission: It is necessary that the author attach an authorization letter giving the copyright permission
of his/her article to Revista Claves in order to assure the publishing process. In this letter should be also included the
article title and author’s name, address, phone number and e-mail.
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Foto da Capa
Cássio Costa Nogueira

Capa e Diagramação:
José Hertz da Cruz

Impressão e Acabamento:
Imprell Editora

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