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Cidades

ISSN 0102-0188

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^Revista Brasileira de História -Órgão Oficial da Associação Nacional de História.São Paulo,
ANPUH,vol. 27, 53,jan.-jun., 2007.
Semestral
Indexada em Bibliographie Latino-Americaine d^Articles, Historical Abstract, América:
History and Life e no Hispanic American Periodicals Index (HAPI)y publicado pelo Latin
American Center, University ofCalifórnia^ Los Angeles, USA.
ISSN:0102-0188
\CODEN:0151/RBHlEL ^
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Revista Brasileira de História

ANPUH fSÍCNPq
Revista Brasileira de História n- 53
Fundadora: Alice R Canabrava
Biênio agosto de 2005 a julho de 2007
Editor Responsável
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Publicação dirigida aos professores universitários, pesquisadores e alunos


de história,com o objetivo de promover o debate e incentivar a troca de
informações sobre temas de história e questões teórico-metodológicas.
SUMÁRIO

Apresentação 7

Dossiê: Cidades

Abertura - Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias 11


Sandra Jatahy Pesavento

A cidade como sentimento: história e memória de um


acontecimento na sociedade contemporânea - o incêndio
do Gran Circus Norte-Americano em Niterói, 1961 25
Paulo Knauss

Narrativas fotográficas sobre a cidade 55


Zita Rosane Possamai

A Belle Époque caipira: problematizações e oportunidades


interpretativas da modernidade e urbanização
no Mundo do Café (1852-1930) — a proposta do Cemumc 91
José Evaldo de Mello Doin, Humberto Perinelli Neto,
Rodrigo Ribeiro Paziani e Fábio Augusto Pacano

Espaço, paisagem e população: dinâmicas espaciais


e movimentos da população na leitura das vilas
do ouro em Minas Gerais ao começo do século XIX 123
Alexandre Mendes Cunha

Imagens sedutoras da modernidade urbana:


reflexões sobre a construção de um novo padrão de
visualidade urbana nas revistas ilustradas na década de 1950 159
Charles Monteiro

Táticas caminhantes: cinema marginal e flanâncias juvenis pela cidade 177


Edwar de Alencar Castelo Branco

Cajuína e cristalina: as transformações espaciais vistas pelos


cronistas que atuaram nos jornais de Teresina entre 1950 e 1970 195
Francisco Alcides do Nascimento
As cidades da juventude em Fortaleza 215
Francisco José Gomes Damasceno

O processo de urbanização paulista:


a medicina e o crescimento da cidade moderna 243
Mareia Regina B. da Silva

Carrosséis urbanos: da racionalidade moderna


ao pluralismo temático (ou territorialidades contemporâneas) 267
Maria Bernardete Ramos Flores e Emerson César de Campos

Limites da utopia: cidade e modernização no Brasil


desenvolvimentista (Florianópolis, década de 1950) 297
Reinaldo Lindolfo Lohn

Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem para o século XX 323
Valéria Guimarães
APRESENTAÇÃO

De uma cidade, não aproveitamos


as suas sete ou setenta e sete

maravilhas, mas a resposta


que dá ás nossas perguntas.
ítalo Calvino

Decorre da proposta de Calvino o esforço dos historiadores no sentido


de colocarem perguntas pertinentes ao mundo urbano. Assim, o presente
número da Revista Brasileira de História dedica-se a perscrutar algumas entre
as múltiplas acepções do tema em questão.
Os estudos históricos sobre as cidades vêm acompanhando as significativas
mudanças do seu objeto, ao mesmo tempo em que procuram desvendar o
crescimento das tensões urbanas.Desta forma,a produção historiográfica busca
decifrar as cidades e suas representações, recuperando múltiplas experiências
urbanas vivenciadas de forma fragmentada,diversificada e contrastante.
As cidades se impõem como desafios aos historiadores que visam entender
seus emaranhados de enigmas,de representações, de tempos,de espaços e de
memórias. Sob a sua materialidade fisicamente tangível, descortinam-se
'cidades análogas invisíveis', com tramas de memórias e de esquecimentos do
passado,contendo impressões recolhidas ao longo das experiências urbanas.
Nas cidades estabelecem-se conflitos e tensões,solidariedades e acolhimentos,
mobilidade e enraizamento, planificação e representações, tudo envolto em
confrontos infindáveis que redimensionam incessantemente o pulsar urbano.
É dentro desse universo de significados que a Revista Brasileira de Hilária,
em seu 53° número,pretende movimentar-se.
Dessa forma,os artigos do presente dossiê percorrem caminhos variados,
contando inicialmente um valioso texto introdutório de Sandra Jatahy
Pesavento,"Cidades visíveis, cidades sensíveis,cidades imaginárias", que nos
oferece reflexões sobre questões e perspectivas da produção historiográfica.
Os estudos em torno da modernidade,racionalidade e urbanização,que
tanto vêm envolvendo a historiografia,fizeram-se presentes em vários artigos:
"A Belle Êpoque caipira: problematizações e oportunidades interpretativas da
modernidade e urbanização no Mundo do Café (1852-1930)", de José Evaldo
Apresentação

de Mello Doin e Humberto Perinelli Neto; "Limites da utopia: cidade e


modernização no Brasil desenvolvimentista (Florianópolis, década de 1950)",
de Reinaldo Lindolfo Lohn;"Carrosséis urbanos: da racionalidade moderna
ao pluralismo temático (ou territorialidades contemporâneas)", de Maria
Bernardete Ramos Flores e Emerson César de Campos, e "O processo de
urbanização paulista: a medicina e o crescimento da cidade moderna", de
Márcia Regina Barros da Silva.
As sensibilidades urbanas emergem particularmente focalizadas em "A
cidade como sentimento: história e memória de um acontecimento na
sociedade contemporânea — o incêndio do Gran Circus Norte-Americano
em Niterói, 1961", de Paulo Knauss,e em "Os dramas da cidade nos jornais
de São Paulo na passagem para o século XX", de Valéria Guimarães, assim
como estiveram presentes nos relatos das crônicas da imprensa analisadas em
"Cajuína e cristalina: as transformações espaciais vistas pelos cronistas que
atuaram nos jornais de Teresina entre 1950 e 1970", de Francisco Alcides do
Nascimento.
Análises sobre imagens e paisagens da cidade aparecem na maioria dos
artigos, mas em especial nos de Zita Rosane Possamai,que privilegiou Porto
Alegre em "Narrativas fotográficas sobre a cidade", e de Charles Monteiro,
"Imagens sedutoras da modernidade urbana: reflexões sobre a construção de
um novo padrão de visualidade urbana nas revistas ilustradas na década de
1950",como também no enfoque das vilas do ouro por Alexandre Mendes
Cunha,em "Espaço,paisagem e população: dinâmicas espaciais e movimentos
da população na leitura das vilas do ouro em Minas Gerais ao começo do
século XIX".
Além dessas variadas experiências urbanas,'outras histórias' foram
focalizadas nas análises de Edwar de Alencar Castelo Branco e Francisco José
Gomes Damasceno, respectivamente em "Táticas caminhantes: cinema
marginal e flanâncias juvenis pela cidade" e "As cidades da juventude em
Fortaleza".

Conselho Editorial
ABERTURA

Cidades visíveis, cidades sensíveis,cidades imaginárias

As cidades fascinam. Realidade muito antiga, elas se encontram na ori


gem daquilo que estabelecemos como os indícios do florescer de uma civili
zação: a agricultura, a roda, a escrita, os primeiros assentamentos urbanos.
Nessa aurora do tempo, milênios atrás, elas lá estavam, demarcando um tra
çado,em formato quadrado ou circular; definindo um espaço construído e
organizado,logo tornado icônico do urbano — torres, muralhas, edifícios
públicos, praças, mercados,templos; a exibir sociabilidades complexas e inu
sitadas na aglomeração populacional que abrigavam; a ostentar a presença de
um poder regulador da vida e de outro ordenador do além, na transcendên
cia do divino.
Mas,sobretudo, a cidade foi, desde cedo, reduto de uma nova sensibili
dade. Ser citadino, portar um ethos urbano, pertencer a uma cidade implicou
formas,sempre renovadas ao longo do tempo,de representar essa cidade,fos
se pela palavra, escrita ou falada, fosse pela música,em melodias e canções
que a celebravam,fosse pelas imagens,desenhadas, pintadas ou projetadas,
que a representavam, no todo ou em parte,fosse ainda pelas práticas cotidia
nas, pelos rituais e pelos códigos de civilidade presentes naqueles que a habi
tavam. Às cidades reais, concretas, visuais, tácteis, consumidas e usadas no
dia-a-dia, corresponderam outras tantas cidades imaginárias, a mostrar que
o urbano é bem a obra máxima do homem,obra esta que ele não cessa de re
construir, pelo pensamento e pela ação,criando outras tantas cidades,no pen
samento e na ação, ao longo dos séculos.
Cidades sonhadas, desejadas, temidas, odiadas; cidades inalcançáveis ou
terrivelmente reais, mas que possuem essa força do imaginário de qualificar
o mundo.Tais representações foram e são capazes de até mesmo se imporem
como as'verdadeiras', as'reais', as'concretas'cidades em que vivemos. Afinal,
o que chamamos de'mundo real'é aquele trazido por nossos sentidos,os quais
nos permitem compreender a realidade e enxergá-la desta ou daquela forma.
Pois o imaginário é esse motor de ação do homem ao longo de sua existência,
é esse agente de atribuição de significados à realidade,é o elemento responsável

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Sandra Jatahy Pesavento

pelas criações humanas,resultem elas em obras exeqüíveis e concretas ou se


atenham à esfera do pensamento ou às utopias que não realizaram, mas que
um dia foram concebidas.
Muito se tem escrito sobre cidades, mas sua apropriação como tema, pe
los historiadores, não é assim tão recuada no tempo.
São antigas, contudo,as chamadas'histórias de cidades', muitas delas fei
tas'de encomenda',em que alguém é convocado a escrever e se dispõe a reu
nir dados sobre uma urbe e a ordená-los, dando a ver um tempo de origens,
um acontecimento fundador,acrescido da poesia de uma lenda, por vezes, e
freqüentemente de uma saga ocorrida nas épocas mais recuadas, realizada pe
lo povo fundador guiado por suas lideranças. Nessa linha ascensional desde o
passado até o presente da cidade, constrói-se o desfile ou a evolução cronoló
gica dos governos municipais com seus momentos marcantes e suas realiza
ções fundamentais. Nada muito diferente, enfim, de uma história política de
viés tradicional ou de um kit identitário aplicado à evolução de um núcleo
urbano. Tais histórias de cidades são antigas, continuam a existir nos tempos
atuais, e delas se valem os historiadores até hoje, à cata de algum dado espe
cial, que complemente sua pesquisa nos arquivos...
Poderíamos,talvez, entender tais histórias urbanas como escritas a par
tir de uma perspectiva quantitativa e evolutiva, ou seja, pertencendo a um ti
po de abordagem sem qualquer outro compromisso teórico maior,empenha
das na descrição do crescimento de uma cidade, retraçando a sua evolução
desde o passado até o presente, arrolando dados, nomes e fatos, retraçando
sua transformação urbanística, dando a ver as mudanças sofridas pela urbe.
Informativas,tais histórias de cidades não estabelecem reflexões maiores so
bre o fenômeno da urbanização em si,o que não ocorre dentro de outras abor
dagens realizadas, como aquelas de conotação marxista.
Mesmo sem se intitularem,especificamente,como'histórias urbanas', es
tudos de boa qualidade foram feitos no Brasil ao longo das décadas de 1960,
1970 e 1980, na linha de uma história econômico-social com inspiração no
materialismo histórico. Tais estudos, por certo, não fizeram da cidade seu ob
jeto de análise,sendo este, preferencialmente,o processo de acumulação de
capital e da formação da força de trabalho ou,ainda, da'desescravização' do
país e da contribuição dos imigrantes estrangeiros na formação de um mer
cado de trabalho livre.
Entretanto,é inegável que, nesse enquadramento problemático a cidade
era o lugar onde as coisas aconteciam',fosse pelo desenvolvimento daquelas
forças capitalistas, fosse pela expansão de um mercado de trabalho nos maio
res centros urbanos, para ondé acorriam os egressos do regime escravista, ou
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Revista Brasileira de História, vol. 27,n"53
Abertura

fosse ainda por um processo mais amplo,de modernização e de redefinição


das relações entre o campo e a cidade. Segundo essa postura, as cidades com
pareciam como o locus da acumulação de capital, como o epicentro da trans
formação capitalista do mundo.
Assim,a cidade era abordada com base em sua dimensão espacial, mas vis
ta através de um processo econômico-social preciso: ela era o território onde se
realizava um processo de produção do capital e onde se produziam as relações
capitalistas e, por força da opção teórica,onde se enfrentavam as classes sociais
e se podia apreciar o processo de dominação/subordinação em curso.
Como resultado de tais estudos, revelou-se a emergência de um fenôme
no urbano revelado na complexidade das transformações econômicas havi
das e no dinamismo de seus grupos sociais, sobretudo abordado de um ân
gulo classista, a enfocar a burguesia e o operariado. A cidade era, pois,cenário
desse processo, onde se apresentava também a renovação da esfera estatal e
das formas de ação política, no bojo de também novos movimentos sociais
urbanos.
E, sobre tal espaço privilegiado de transformação econômico-social,
criou-se um campo de pesquisa e discussão interdisciplinar, trabalhando so
bre a cidade não só historiadores como geógrafos,sociólogos, economistas,
urbanistas e antropólogos. A solidez da pesquisa de tais estudos permitiu que
se constituísse um enquadramento adequado para compreender a transfor
mação urbana ocorrida no país a partir da segunda metade do século XIX.
Ao longo da década de 1990,a emergência de uma história cultural veio
proporcionar uma nova abordagem ao fenômeno urbano. O que cabe desta
car no viés de análise introduzido pela história cultural é que a cidade não é
mais considerada só como um locus privilegiado, seja da realização da produ
ção,seja da ação de novos atores sociais, mas,sobretudo,como um problema
e um objeto de reflexão, a partir das representações sociais que produz e que
se objetivam em práticas sociais.
Sabemos, por certo,como já se assinalou no início deste ensaio, que a ci
dade é, sobretudo, uma materialidade erigida pelo homem,é uma ação hu
mana sobre a natureza. A cidade é, nesse sentido, um outro da natureza: é al
go criado pelo homem, como uma sua obra ou artefato. Aliás, é pela
materialidade das formas urbanas que encontramos sua representação icôni-
ca preferencial, seja pela verticalidade das edificações, seja pelo perfil ou si
lhueta do espaço construído,seja ainda pela malha de artérias e vias a entre-
cruzar-se em uma planta ou mapa.Pela materialidade visível, reconhecemos,
imediatamente, estar em presença do fenômeno urbano,visualizado de for
ma bem distinta da realidade rural.

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Sandra Jatahy Pesavento

Mas a cidade, na sua compreensão,é também sociabilidade. ela compor


ta atores, relações sociais, personagens,grupos,classes, práticas de interação e
de oposição, ritos e festas, comportamentos e hábitos. Marcas,todas, que re
gistram uma ação social de domínio e transformação de um espaço natural
no tempo. A cidade é concentração populacional, tem um pulsar de vida e
cumpre plenamente o sentido da noção do 'habitar', e essas características a
tornam indissociavelmente ligada ao sentido do'humano': cidade,lugar do
homem;cidade, obra coletiva que é impensável no individual; cidade, mora
dia de muitos,a compor um tecido sempre renovado de relações sociais.
É por isso que,ao lado das imagens icônicas da materialidade urbana, há
toda uma outra linha de representação que exibe a cidade através da sua po
pulação,com suas ruas movimentadas,o povo a habitá-la, a mostrar sua pre
sença e também a sua diversidade,em imagens ora ternas,ora terríveis de con
templar... Mesmo as 'cidades fantasmas' — aquelas de onde a população
retirou-se pelos efeitos da guerra, dos movimentos da história ou de catás
trofes naturais — são reconhecíveis para nós como 'cidades' porque guardam
as marcas,as pegadas, a alma — talvez possamos dizer — daqueles que um
dia as habitaram.
Mas a cidade é, ainda,sensibilidade, com o que retornamos ao início des
te texto. Cidades são, por excelência, um fenômeno cultural, ou seja, integra
das a esse princípio de atribuição de significados ao mundo. Cidades pressu
põem a construção de um ethos, o que implica a atribuição de valores para
aquilo que se convencionou chamar de urbano.
A cidade é objeto da produção de imagens e discursos que se colocam no
lugar da materialidade e do social e os representam. Assim,a cidade é um fe
nômeno que se revela pela percepção de emoções e sentimentos dados pelo
viver urbano e também pela expressão de utopias, de esperanças, de desejos e
medos,individuais e coletivos, que esse habitar em proximidade propicia.
Ê,sobretudo,essa dimensão da sensibilidade que cabe recuperar para os
efeitos da emergência de uma história cultural urbana: trata-se de buscar essa
cidade que é fruto do pensamento,como uma cidade sensível e uma cidade
pensada, urbes que são capazes de se apresentarem mais'reais' à percepção
de seus habitantes e passantes do que o tal referente urbano na sua materiali
dade e em seu tecido social concreto.
Sem dúvida,essa cidade sensível é uma cidade imaginária construída pe
lo pensamento e que identifica, classifica e qualifica o traçado,a forma,o vo
lume,as práticas e os atores desse espaço urbano vivido e visível, permitindo
que enxerguemos,vivamos e apreciemos desta ou daquela forma a realidade
tangível. A cidade sensívef é aquela responsável pela atribuição de sentidos e
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Revista Brasileira de História, vol. 27, n"53
Abertura

significados ao espaço e ao tempo que se realizam na e por causa da cidade. É


por esse processo mental de abordagem que o espaço se transforma em lugar-,
ou seja, portador de um significado e de uma memória; que passamos a con
siderar uma cidade como metrópole,realidade urbana que,desde o seu surgi
mento,causou uma revolução na vida, no tempo e no espaço; que criamos as
categorias de cidadão e de excluído para expressar as diferenças visíveis e per
ceptíveis no contexto urbano fazendo com que se criem novas identidades a
partir do gesto, do olhar e da palavra que qualifica; que falamos de progresso
ou de atraso, que distinguimos o velho do antigo; que construímos a noção
de patrimônio e instauramos ações de preservação,ou,em nome do moderno,
que redesenhamos uma cidade, destruindo para renovar. São ainda os pro
cessos mentais de representação da realidade que nos permitem inventar o
passado e construir o futuro, estabelecer as distinções entre rural e urbano,
classificar idéias e práticas como modernas ou arcaicas, e considerar certas ci
dades como turísticas, rentáveis,sustentáveis.
Assim, no desdobramento das abordagens que se fazem sobre o fenôme
no urbano no final do século XX e no início do novo século, não se estudam
apenas processos econômicos e sociais que ocorrem na cidade, mas as repre
sentações que se constróem na e sobre a cidade, ou seja, com o imaginário
criado sobre ela. Em outras palavras, os estudos de uma história cultural ur
bana se aplicam no resgate dos discursos,imagens e práticas sociais de repre
sentação da cidade. E o imaginário urbano,como todo o imaginário,diz res
peito a formas de percepção, identificação e atribuição de significados ao
mundo,o que implica dizer que trata das representações construídas sobre a
realidade — no caso, a cidade.
Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Essa abordagem
oferece um variado campo de investigação ao historiador. Cidades são, antes
de tudo, cronotopos, para usar a consagrada expressão de Mikhail Bakhtin:
elas são unidades de tempo e espaço. Todas essas construções imaginárias de
sentido que se estabelecem com relação à cidade são históricas, datadas,o que,
em última análise,implica dizer que sempre se dão em uma temporalidade e
uma espacialidade determinada.
A cidade é sempre um lugar no tempo,na medida em que é um espaço
com reconhecimento e significação estabelecidos na temporalidade;ela é tam
bém um momento no espaço, pois expõe um tempo materializado em uma
superfície dada.
Porém,em termos de cidade, esse tempo contado se dá sempre a partir
de um espaço construído,e não é possível pensar um sem o outro. Quando

junho de 2007 15
Sandra Jatahy Pesavento

se trata de representificar a memória — ou a história — de uma cidade, a ex


periência do tempo é indissociável da sua representação no espaço.
A cidade sempre se dá a ver, pela materialidade de sua arquitetura ou pe
lo traçado de suas ruas, mas também se dá a ler, pela possibilidade de enxer
gar, nela, o passado de outras cidades, contidas na cidade do presente. Assim,
o espaço construído se propõe como uma leitura no tempo,em uma ambiva
lência de dimensões que se cruzam e se entrelaçam.
Como historiadores, temos a tendência de buscar as cidades do passado
que cada urbe abriga,em palimpsesto, e que devem ter deixado traços para
serem recuperados mediante um trabalho de pesquisa. A rigor, todo historia
dor sabe que as marcas de historicidade deixadas no tempo se revelarão dian
te de si como fontes,a partir da pergunta que ele fará ao passado, questão es
ta iluminada pelos conceitos que presidem nossa posição diante do real.
Ora, no caso da cidade passada, por vezes esses rastros — para usar a fe
liz expressão de Ricoeur' — nem sempre estão aparentes, como pegadas a
guiar os passos e o olhar do historiador. Com freqüência, a transformação do
espaço foi de tal ordem,a modernidade implantada tão avassaladora que apa
gou do espaço materialidades e sociabilidades do passado. E,como de praxe,
o objeto da atenção do historiador passa por fora da experiência do vivido,
nessa tarefa de resgate das representações da cidade passada que se produz
por uma reconfiguração temporal — como mais uma vez assinala Paul Ri
coeur —,construído pela força do imaginário, que é capaz de dar a ver e ler a
temporalidade transcorrida.
Ligada a esse processo, a própria natureza das fontes se amplia,em le
que,oferecendo ao historiador possibilidades cada vez maiores de aborda
gem.A rigor, dependendo da pergunta dirigida ao passado para recuperar as
cidades de um outro tempo,não há limites para a descoberta das marcas de
historicidade.
Mas essa cidade do passado é sempre pensada através do presente, que
se renova continuamente no tempo do agora,seja através da memória/evocação,
individual ou coletiva,seja através da narrativa histórica pela qual cada gera
ção reconstrói aquele passado. É ainda nessa medida que uma cidade inventa
seu passado,construindo um mito das origens, recolhendo as lendas, desco
brindo seus pais ancestrais, elegendo seus heróis fundadores,identificando
um patrimônio,catalogando monumentos,atribuindo significados aos luga
res e aos personagens, definindo tradições,impondo ritos. Mais do que isso,
tal processo imaginário de invenção da cidade e de escrita de sua história é
capaz de construir utopias,regressivas ou progressivas,através das quais a ur
be sonha a st mesma.

Revista Brasileira de História, vol. 27, n® 53


Abertura

Assim,cada cidade é um palimpsesto de histórias contadas sobre si mes


ma,que revelam algo sobre o tempo de sua construção e quais as razões e as
sensibilidades que mobilizaram a construção daquela narrativa. Nesse curio
so processo de superposição de tramas e enredos,as narrativas são dinâmicas
e desfazem a suposta imobilidade dos fatos. Personagens e acontecimentos
são sucessivamente reavaliados para ceder espaços a novas interpretações e
configurações,dando voz e visibilidade a atores e lugares.
Ao inventar o passado,contando a história de suas origens e de seu per
curso no tempo para explicar seu presente,a cidade constrói seu futuro, atra
vés de projetos e visões de mundo que apontam para um depois, seja como
ficção científica, seja como planejamento urbano. A modernidade urbana
propicia pensar tais tipos de representação: aqueles referentes aos planos e
utopias construídas sobre o futuro da cidade,inscrevendo uma cidade sonha
da e desejada em projetos urbanísticos. Realizados ou não,eles são a inscri
ção de uma vontade e de um pensamento sobre a cidade e,logo,são matérias
da história, porque fazem parte da capacidade imaginária de transformar o
mundo.Assim como pensa o seu futuro,a cidade inventa o seu passado,sem
pre a partir das questões do seu presente.
Nesse processo imaginário de construção de espaço-tempo, na invenção
de um passado e de um futuro, a cidade está sempre a explicar o seu presen
te. Com isso, acaba por definir uma identidade, um modo de ser, uma cara e
um espírito, um corpo e uma alma,que possibilitam reconhecimento e forne
cem aos homens uma sensação de pertencimento e de identificação com a sua
cidade.
De certa forma, entendemos ser essa a questão que apresenta Calvino
quando nos diz que é preciso interrogar"os deuses da cidade'? Ê preciso, diz
ele, buscar os elementos comuns que distinguem uma cidade da outra.Tal
como os antigos, que buscavam o espírito da cidade invocando os nomes dos
deuses que presidiram a sua fundação,os homens modernos precisam exer
cer uma espécie de despojamento do olhar,identificando,simplificando e re
duzindo a multiplicidade de traços que uma cidade oferece para dizer quem
é. Como uma máquina que compõe,repõe e readapta suas funções,ou como
um organismo que,num mesmo espaço,carrega consigo e reatualiza relíquias
de um outro tempo,a cidade precisa ser descoberta pelo olhar. Uma cidade
se individualiza com relação às outras, ela personifica atitudes e modos de
existir, dos homens e do meio ambiente,transformando-se no tempo,alte
rando a superfície do seu espaço, mas,apesar de todas as transformações que,
inexoravelmente sofre, uma cidade deve encontrar seus deuses.

junho de 2007 17
Sandra Jatahy Pesavento

No entanto, muitas cidades convivem em uma mesma cidade,já alertara


Calvino em sua poética e já clássica obra/
Mas como chegar às cidades visíveis do passado,ou às cidades invisíveis,
quando o passado sonhava o seu futuro,senão a partir das marcas de histori-
cidade deixadas, que funcionam como pegadas ou rastros para o historiador
do presente? Nesse domínio,estamos diante de um vasto material, à disposi
ção de um olhar e de uma questão a ser formulada pelo historiador para que
eles se tornem detentores de significados e sejam elevados à categoria de fontes.
Principiemos, talvez, por aquelas formas de representação mais íntimas
ao trabalho do historiador: o discurso traduzido em texto. Sim, pois esse é o
tradicional terreno do historiador, que busca nas fontes escritas suas marcas
de historicidade preferenciais. O historiador é, por definição, um homem de
texto, e seu produto, a história, como bem se sabe, é uma narrativa sobre o
passado.
As cidades foram,desde há muito,objeto de variadas escritas,desde aque
las que se intitulavam histórias ou crônicas de uma urbe e que, portanto, ti
nham estatuto de veracidade, por construírem uma narrativa do acontecido,
de um passado ou de um presente de uma cidade, até as obras de caráter lite
rário, a celebrarem ou condenarem o urbano em prosa e verso.
Ao historiador do urbano cabe criar sobre tais narrativas as filigranas de
sua análise, exercendo sobre elas uma atitude hermenêutica e resgatando a ri
queza da intriga construída e do poder metafórico das palavras empregadas.
Ou,ainda,cabe divisar os artifícios da ficção,justo naquela narrativa que se
arvora em termos de veracidade, a mostrar que todo discurso sobre a cidade
é uma recriação de tempo e espaço dotada de sentido. Mesmo proclamando
ciência, o discurso histórico contém uma poética e se vale de recursos literá
rios. E, nesse sentido, as fronteiras entre as narrativas histórica e literária se
revelam mais porosas ou tênues,o que sem dúvida enriquece a leitura de uma
cidade...
Quem duvidaria, por exemplo,da capacidade de um Balzac,Zola, Mau-
passant, Eça de Queirós, Charles Dickens, Lima Barreto ou Machado de Assis
para falar de suas cidades pela via literária? As tramas são imaginadas,os per
sonagens são fictícios, mas o universo do social e a sensibilidade de uma épo
ca se revelam diante do leitor de maneira verossímil, convincente. Uma expli
cação da realidade,realista ou cifrada,realiza-se em comunhão entre o mundo
da escrita e o da leitura. Poder-se-ia pensar uma Paris da belle époque, por
exemplo,sem que o mundo de Proust fosse ativado? Ou uma São Petersbur-
go dos czares sem a escrita de ÍDostoiévski ou Tolstói? E, no terreno da poe-
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sia, como não invocar a Paris por Baudelaire, a Buenos Aires por Jorge Luís
Borges ou a Porto Alegre por Mário Quintana?
Mas para a recuperação de uma cidade há que ter em conta, ainda, essas
narrativas de fronteira entre o documental e a ficção que são as crônicas de
jornal que falam do urbano, ou os discursos de memórias que recompõem
no tempo presente reminiscências e experiências passadas,contando as cida
des do passado que as cidades de hoje encerram. Seria impensável mergulhar
nos valores, nas maneiras, no proceder de uma época sem ter em conta cro
nistas como João do Rio ou Bilac, para a Capital Federal de 1900.
Como não recorrer também aos diários e relatos de viagens,em que as
sensações são registradas e os detalhes anotados,dando ao leitor de hoje a ex
pressão do olhar de um outro no passado, visitante, viajante e passante de
uma urbe determinada? E, nesse ponto,temos olhares estrangeiros que ado
tam,como marcos de referência para o urbano,outras cidades,outros ethos,
outros ícones para avaliar uma cidade. Por vezes cruéis, por vezes deslumbra
dos,esses olhares que revelam uma alteridade contrastante fizeram parte da
construção de uma identidade nacional. Pois, como bem sabemos,um pouco
do que somos está escrito, de forma estereotipada, na visão do outro...
Uma cidade é objeto de muitos discursos, a revelar tais modalidades sen
síveis de leitura do urbano ou saberes específicos, perpassados pelo lustro da
ciência. Falam da cidade, para além da literatura e da história, os discursos
médicos,políticos, urbanísticos,policiais e jurídicos,todos carregados de con
ceitos e princípios de uma cientificidade acentuada,dando a ver o urbano sob
um aspecto técnico. Mas tampouco esses discursos deixam de empregar me
táforas para qualificar a cidade, partilhando assim,eles também,,essa possibi
lidade de qualificar o mundo e de senti-lo, desta ou daquela forma.
Assim,seja em documentação oficial — os processos-crime, os relató
rios de inspeção médica e de higiene, os códices policiais, os prontuários de
hospitais e asilos, os projetos de reformulação urbana e os pareceres de juris
tas —,seja nos comentários dos periódicos, nos artigos e nas crônicas do co
tidiano ou nos tão conhecidos'correios do leitor', os saberes se cruzam e se
defrontam,ao tomar a cidade como objeto de preocupação, de elaboração de
conceitos e execução de práticas.
Inspirados nas leis e nos preceitos das ciências, à luz das mais recentes
teorias e conceitos aplicáveis ao fenômeno urbano,a exibir números,fatos e
classificações, tais discursos têm sua contrapartida nos ditos'saberes popula
res', fruto de crenças ancestrais e tradições,expressando outras maneiras de
enxergar o espaço urbano,seus habitantes e suas práticas sociais. Nessa me
dida,o povo também identifica,julga, classifica e qualifica espaços, persona-

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Sandra Jatahy Pesavento

gens e ações, vaticinando destinos e promovendo também,por seu lado, mo


vimentos de aceitação e repulsa.
Códigos de valores e noções de honra, por exemplo, podem ser partilha
dos por elites ou populares em um contexto urbano,ou podem defrontar-se
em concepções e normas de conduta irreconciliáveis.
E, para além da palavra escrita, há aquela da oralidade, que implica ou
tra forma de dizer a cidade, através do som e das palavras ditas. Entram em
cena, assim, os recursos de uma história oral, recuperando depoimentos e re
latos de memória,que retraçam uma experiência do vivido e do possível de
ser recuperado pela reminiscéncia, transmitido no presente para aqueles que
não estiveram na cidade do passado. Fala-se e conta-se, então, dos mortos,
dos lugares que não mais existem, de sociabilidades e ritos já desaparecidos,
de formas de falar desusadas, de valores desatualizados. Traz-se ao momento
do agora, de certa forma,o testemunho de sobreviventes de um outro tempo,
de habitantes de uma cidade que não mais existe.
Essa é,sem dúvida alguma, uma história de fragmentos,de composição
em mosaico. Pouco fiável, dirão alguns, pois aquele que rememora não ape
nas reconta o que viveu a cada momento evocativo,como lida com o gap ine
gável existente entre o tempo do vivido e o tempo da narrativa. A história oral
de uma cidade é tecida e retecida continuamente. O depoente,no caso,é o se
nhor do tempo,refazendo o que diz sobre o passado da cidade em cada vez
que discorre sobre ele.
Mas tal fenômeno, bem sabem os historiadores, não é específico da ora
lidade. Pois já não se assinalou que toda história é continuamente reescrita, a
cada geração? E que no ato da composição narrativa intervém ingredientes
ficcionais, à semelhança da escrita literária,fazendo que mesmo a mais dedi
cada escrita da história, apoiada em arquivo e método,seja também ela uma
representação do passado? Assim,as cidades escritas e as cidades faladas são,
todas elas,cidades imaginárias,que um historiador da cultura busca recuperar.
E,em matéria de som e oralidade, há uma cidade musical que invade
nossos sentidos. Música e letra, canção e voz acompanham a vida das cidades
e falam delas de forma... irresistível, por certo! Pícaras e burlescas, românti
cas e melodramáticas,solenes e oficiais, as músicas da cidade nos permitem
construir imagens mentais do urbano,algumas mesmo tornadas icònicas, co
mo a de certa cidade maravilhosa.
Neste mundo do som,temos de admitir que a música é, por definição,
um agente propulsor de sensibilidade e com alto poder de fixação de signifi
cados. Escutar uma canção que se refere a uma cidade implica operações ima
ginárias de sentido qqe,de imediato, provocam o reconhecimento e mesmo a
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estereotipia da realidade urbana invocada. Uma cidade cantada se insere na


memória,ocupando um lugar no tempo.
Neste inventário de marcas sensíveis de historicidade que falam do ur
bano há ainda um tipo híbrido de fonte: um gênero que mescla o texto com
a sua argumentação expressiva,com a oralidade da fala,com a gestualidade
da performance,com o espetáculo do visual. Falamos do teatro, por certo. Co
mo não deixar de aludir às revistas do ano,que exibiam a mais crítica e debo
chada visão do Rio de Janeiro? Maneiras de ser e de agir, personagens e falas,
valores e regras,e também o seu inverso,tudo ali estava, a mostrar ao público
as muitas críticas — bem-humoradas — de uma cidade...
Mas as cidades nos chegam, enquanto representação, sobretudo pelas
imagens visuais. Já destacamos o poder icônico de referência das imagens pa
ra a identificação de uma cidade ou do fenômeno urbano em geral. Mas ca
beria dizer um pouco mais sobre o poder de retenção das imagens. Principie
mos por aludir às imagens mentais, no arquivo de memória que cada um
carrega consigo e que é acionado pelo pensamento, mas que permite ver o
mundo com a força da imaginação.
Não há memória que se efetive sem o recurso às imagens mentais. O que
vemos e que constitui imagem graças ao órgão da visão — a imagem visual,
portanto,fruto de um dos sentidos básicos do ser humano — entra de ime
diato em relação com o museu imaginário que possuímos,e que estabelece
relações,sobretudo de analogia,com outras tantas imagens mentais que pos
suímos. Ê a partir desse processo interativo que se realiza a percepção,ou se
ja, a qualificação da imagem observada.
No caso das cidades,o processo é nítido. Contemplar uma cidade pela
primeira vez, por exemplo, nos remete a outras tantas cidades que conhece
mos,por nossa experiência ou leitura, e das quais possuímos imagens. Ou,
no caso da cidade do passado, não mais passível de ser observada, mas cujas
imagens se acumulam em cadeia no pensamento,vistas ou imaginadas a par
tir de nossa bagagem cultural e de experiência de vida. Assim,é possível for
mar,a partir das cidades visíveis, cidades sensíveis e imaginárias, não experi
mentadas.Um historiador toutcourípoderia se indagar que grau de habilidade
essas cidades do pensamento teriam...
Mas as cidades representadas nas cartas geográficas, nas pinturas e dese
nhos,ou mesmo as projetadas por urbanistas com vista a serem construídas,
também guardam com as cidades concretas laços de aproximação complexos.
Aqui e ali, a ousadia da imaginação se combinando ao cálculo e à cientifici-
dade dos procedimentos da execução da imagem;lá e acolá, as exigências do
realismo documental a serem desafiadas pela força criativa da estética e da

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Sandra Jatahy Pesavento

sensibilidade. A imagem possui um fio terra com o seu referente, daí ser ima
gem de algo e não ser aquele'algo'concreto.
Imagens de cidade são representações, factíveis ou não, baseadas em ci
dades existentes, e elas descortinam para o historiador um panorama fasci
nante de rastros do passado. Elas são, todas elas, marcas de uma cidade sensí
vel que um dia se impôs ao olhar, à técnica e às emoções daqueles que as
traduziram em imagem.
O caso de Jean-Baptiste Debret, no Rio de Janeiro da primeira metade
do século XIX,é neste caso um exemplo admirável, tal como o daqueles que
deixaram registros das muitas urbes visitadas ou vividas, na segunda metade
do século, através da fotografia, como Terragno, Malta, Ferrez ou Callegari.
A partir do desenvolvimento da fotografia, é bem verdade, a história da
fabricação das imagens teve uma alteração significativa. Mesmo consideran
do a foto como um ato de criação, pelo qual se revela a criação do fotógrafo
entendido como artista, ela é resultado de um processo técnico que se inter
põe entre a realidade retratada e aquele que aciona a máquina fotográfica.
Nesse sentido, a foto é traço do objeto que um dia ali esteve diante do apare
lho,como uma marca ou pegada que foi possível captar. Dessa forma, as fo
tografias e, sobretudo, as de cidades,são dotadas de um valor documental:
historiadores delas se apropriam em busca de constatar a presença ou ausên
cia de determinados prédios, o estado das ruas,o trajar dos habitantes, os si
nais da modernização urbana — ou a sua falta, captando a vida presente em
um momento do tempo,congelado para sempre na imagem que se grava no
papel pelo efeito técnico de captação da luz.
Paisagens urbanas encontraram uma outra expressão, documental e fic-
cional, com a entrada em cena do filme. O cinema recompõe, pela imagem
em movimento,a expressão da vida na urbe, metrópole ou pequena cidade, a
exibir em composição as facetas da materialidade e da sociabilidade. Cidades
antigas,cidades modernas,cidades do futuro, cidades encantadas; o urbano é
palco e cenário desse espetáculo de imagem em movimento,som,luz e fala,
mas é também objeto de uma reflexão que põe a urbanidade com um centro
de reflexão. A obra do homem,expressão máxima da civilização, vai com ele
perecer? De Blade runner a Matrix,as imagens em ação fílmica discutem, pe
la via do fantástico, o futuro do urbano e da própria história.
Finalizando, retornamos àquela característica icònica do perfil das cida
des: a sua materialidade,tão bem conhecida. Cidades são pedra, aço,ferro,
vidro,barro,equipamento,traçado. Mas cidades de pedra podem ser lidas,já
dizia Walter Benjamin,e os pfòcedimentos dessa leitura, que fazem da arqui-
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Revista Brasileira de História,vol. 27, n® 53
Abertura

tetura uma narrativa, são quase os mesmos daqueles do discurso literário,


complementava Paul Ricoeur/
Assim, uma história cultural urbana vai se orientar pela possibilidade de
ver, na cidade, uma projeção dos imaginários no espaço,como bem assinalou
Bronislaw Baczko.^ A forma de um edifício, a função a que se destina, o uso
que efetivamente dele se fará, a sua inserção na vida de uma cidade e o signi
ficado que lhe serão atribuídos são elementos que se apresentam à deciffação
do simbólico desse espaço construído.
Não gostaria de encerrar com definições já tão banais, de que a cidade é
um microcosmo que contém o mundo. Mas estive todo o tempo, nesta dis
cussão sobre a cidade como um objeto privilegiado para o estudo do histo
riador, a falar e a pensar nos valores da cidade. E estes, se bem entendo,estão
situados no âmago da condição humana,na medida em que a cidade possi
bilitaria uma relação entre o espaço e o tempo na vida de cada um e de todos.
Ou,para dizer como Marco Polo ao Gran Khan da China, utilizando as pala
vras de ítalo Calvino sobre do que seria feita uma cidade:"das relações entre
as medidas de seu espaço e os acontecimentos do seu passado'1^
Que mais poderia desejar um historiador?

Sandra Jatahy Pesavento


UFRGS

'Cf. RICOEUR,Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1984/6. 3v.


^ CALVINO,ítalo. The gods of the city: monumentality and the city. The Harvard Archi-
tectural RevieWy Cambridge,v.4,1984, p.6.
'CALVINO,ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
'' RICOEUR,Paul. Architecture et narrativité. Urbanisme^ n.303, p.44-51, nov-déc., 1998.
^ Cf. BACZKO,Bronislaw. Les imaginaires sociaux. Paris: Payot, 1984.
^ CALVINO,ítalo. As cidades invisíveis^ cit., p.l4.

junho de 2007 23
Neste Sandra Jatahy Pesavento

Paulo Knauss
número
Zita Rosane Possamal
textos
José Evaldo de Mello Doln
de Humberto Perinelli Neto

Alexandre Mendes Cunha

Charles Monteiro

Edwar de Alencar Castelo Branco


Francisco Alcides do Nascimento
Francisco José Gomes Damasceno

Mareia Regina B.da Silva


Maria Bernardete Ramos Flores
Emerson César de Campos

Reinaldo Lindolfo Lohn

Valéria Guimarães

ANPUH

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