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2006 - Reinventar o Brasil - Gilberto Freyre Entre Historia e Ficção
2006 - Reinventar o Brasil - Gilberto Freyre Entre Historia e Ficção
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Gilberto Freyre
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Antonio Dimas
Jacques Leenhardt
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UNIVERSIDADE [ESP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
federal DO RIO
GRANDE DO SUL Reitora Suely Vilela
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EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
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Klüsener; suporte administrativo: Janer Bittencourt • Apoio: IdalinaLouzada e Laércio Fontniir.i
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Gilberto Freyre
enff^ Aòstório e fíccâo
Antonio Dimas
Jacques Leenhardt
Sandra Jatahy Pesavento
Oi-ganizadores
UFRGS edusp
EDITORA
© dos autores
P edição; 2006
Inclui imagens
CDU 306:901(81)
ISBN 85-7025-879.R
Sumálio
Apresentação / 7
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Iia/n/ra í^e.yaoc/ifo
Escrita e recepção
Casa-Grande & Senzala
Ingleses na costa / 67
ii<ifi(/r(r ^•/.veira 'fh.yco/wc/o.y
Amores inteligentes / 75
'//Kiirc
Imagens / 313
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de documentação preciosa, conservada na Fundação Gilberto
Freyre, em Apipucos, e que, aos poucos, começa a ser trabalha
da por pesquisadores profissionais. Consiste essa documentação
em correspondência passiva, recortes dejornal, álbuns de recor
tes, etc. A utilização desse acervo precioso, que abre caminho
para pesquisas sobre os bastidores da obra de Gilberto Freyre,
para muito além daquelas limitadas às obras publicadas, pois que
investe nos arredores da criação e da vivência profissional de seu
criador, tem o dom de expor a recepção segundo o ponto de
vista do autor, uma vez que o material documental em torno da
repercussão dessa obra passou sempre pelo crivo atento dos res
ponsáveis - atuais ou do passado -, pela organização daquela
memória, daquele acervo. Importante, no caso do artigo de Ria
Lemaire, é observar como o material selecionado dá ensejo a
uma visão de dentro, isto é, do ponto de vista do pivô do material.
Exemplo disso, dessa perspectiva autoral, é uma das conclusões
de Ria, reveladora das preferências de Gilberto Freyre, que, se
gundo ela, não gostava da tradução de Casa-Grande & Senzala,
elaborada por Roger Bastide e publicada pela Gallimard em 1952.
Em vez dela, Gilberto Freyre preferia a tradução de Nordeste, rea
lizada por Jean Orechionni e publicada, em 1956, com o título
de Terres du sucrepela Gallimard também.
Ora, a preferência por esta ou por aquela tradução, mes
mo que se trate de obras diferentes, não é problema de some-
nos se se pretende a avaliação apurada da obra de um autor.
Como adianta a professora de Poitiers, "a diferença que o leitor
enxerga entre as duas traduções dos livros de Freyre existe tam
bém entre as cartas dos dois tradutores. A carta de Bastide, cujo
destinatário é brasileiro (!), está redigida em francês; a de Ore
chionni num belo português. Cada uma ilustra assim uma das
opções que, hoje em dia e graças a uma reflexão cada vez mais
crítica sobre as práticas de comunicação intercultural, se ofere
cem ao ser humano que vai ao encontro do Outro. A primeira
que consiste em ficar na sua, na sua própria língua, em não falar
a língua do Outro para não se expor e manter, de antemão a
distância que permite segurar, controlar os eventos."
//
Outra é a perspectiva de Jacques Leenhardt quando se de
tém na recepção francesa, mas a partir de levantamento minucio
so que vai de 1939 a 1962.
Em 1939, Roger Bastide discute a linhagem metodológica
de Gilberto Freyre em um dos números da Revue Intemationale
deSociologier, em 1962, é a vez de Jean Duvignaud, que se detém
naquilo que chama de hiperempirismo dialético de Gilberto Freyre.
Entre os dois extremos, um elenco respeitável de outros artigos,
assinados por intelectuais do peso de um Paul Arbousse-Bastide,
Fernand Braudel, Lucien Febvre, Roland Barthes,Jean Pouillon,
Georges Balandier e outros, cuja tônica, segundo Jacques Lee
nhardt, balança entre: a) a querela acadêmica e formal de trans
gressão de fronteiras disciplinares e das estratégias metodológi
cas; b) a questão do estilo narrativo nas Ciências Humanas; c) a
questão mais prática de um país como a França, mal recuperada
de Vichy e de Auschwitz e já animada com as guerras coloniais
dos anos 50 e 60, no sudeste asiático e no norte da África. Nesse
sentido, a conclusão do artigo de Roland Barthes é exemplar:
/2
passível de ser saciada através dessas bodas transoceânicas e gar--
gantuescas. De nossa parte, forneceríamos aos europeus, a ener
gia, o erotismo, a sensualidade, o ludismo e a criatividade do
negro para cá transplantado à força, em ação que desse "funda
mento intelectual a um imaginário francês sobre o Brasil". Em
troca, a recepção francesa reconheceria a universalidade da con
tribuição de Gilberto Freyre, detectando muito bem o que há de
universal no exótico e depermanência nas audácias dos inovadores. E,
engastada nesse reconhecimento, estaria também a possibilida
de de uma articulação do regional com o universal, na medida
em que a aceitação de Casa-Grande & Senzala na França funcio
naria como legitimação das peculiaridades regionais como ins
tância de reconhecimento de uma nacionalidade, cujos indícios
não estariam sendo proclamados, necessariamente, pelos cen
tros de decisão intelectual do país - isto é. Rio e São Paulo - mas
por uma capital regional e nem por isso menos inteligente.
Já Antonio Dimas, enfoca, de maneira inovadora, a partici
pação freyriana no projeto cultural da UNESCO pós-Segunda
Guerra, em ensaio que, de maneira provocadora, intitula "Nas
ruínas, o otimismo". Diante de um grupo qualificado - Georges
Gurvich, Max Horkheimer, entre eles - Gilberto Freyre defende
aquilo que se convertera no fulcro inovador de suas teorias: a
conviviabilidade entre as raças e etnias, para o que "defendia a
aplicabilidade das Ciências Sociais com o intuito claro de con
tornar ou de aplacar as eventuais tensões sociais, nacionais ou
internacionais, decorrentes da instrumentalização ideológica do
ensino da História, da Geografia, da Antropologia, cujo objetivo
fosse o enaltecimento da raça ou da nação". Freyre não só postu
lava a consideração do caso Brasil como modelo histórico a ser
apreciado perante os intelectuais de uma Europa em escombros
e conflitos raciais, como pregava um método multidisciplinar
de trabalho para as análises do social, tal como pusera em práti
ca em suas obras. Com propriedade, Dimas contrapõe o estilo
circunspecto e objetivo da escrita de Freyre para o conclave fran
cês e aquele que resulta da sua posterior apresentação em terras
brasileiras, onde retoma o amplo uso de metáforas, marcando o
emprego de uma linguagem mais solta e subjetiva. O texto de
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Dimas revela-nos quão inesgotável é o potencial de análise que a
escrita de Gilberto Freyre oferece ao pesquisador, a desvelar novas
e inusitadas inserções deste autor no plano internacional.
E por essa trilha de audácia inovadora de Gilberto Freyre
que Sandra Vasconcelos prefere abordar a sua contribuição, des-
viando-se da trilogia famosa e detendo-se em obra pontual, que
avalia os aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a
cultura do Brasil, conforme se lê o subtítulo de Ingleses no Brasil
Em causa, neste ensaio, a cultura material como fator de trans
formação social ou, nas palavras da autora, "como as condições
materiais, assim como as relações econômicas, determinam no
vos comportamentos, novos estilos de vida, mudanças e sofisti
cação de hábitos e até mesmo alterações na paisagem".
Quando publicou Inglesesno Brasil, em 1948, Gilberto Freyre
tinha em mente uma técnica mista, que desse conta de dimen
sões irreconciliáveis segundo as convenções metodológicas do
momento. Diz ele, no prefácio, sem nenhuma modéstia:
/é?
cer essa diferença de tom entre os dois primeiros volumes da
trilogia famosa de Gilberto Freyre, Jacques Leenhardt. abre ca
minho explícito para o paralelo entre Gilberto e Erico Veríssi
mo, a ser mais explorado no úlümo conjunto de ensaios.
Antes deles, porém, Sandra Pesavento alerta-nos para as ar
madilhas da memória social coletiva lastreada na individual e para
os efeitos inquietantes que resultam desse casamento convulso,
no qual sensibilidade e inteligência disputam o leito em steeple
chaseàráuo [árdua corrida de obstáculos]. A pretensão de Gilber
to Freyre era bem alta, bem dissonante, bem atrevida. Seduzia a
ele "tocar no íntimo de cada um, que reconheceria no seu texto
um pouco de sua própria vida. Ao entrar por dentro da intimida
de das casas, ao vasculhar nos baús dos segredos das famílias, ao
entrar por dentro das cozinhas, dos porões, dos quintais e dos
Jardins, ao sair à rua, para as brincadeiras, para os passeios e as
festas, ao participar de batismos, namoros, noivados, casamentos
e enterros, a escrita de Freyrejustifícava a sua inserção na memó
ria social. As lembranças do autor se confundiriam com as do lei
tor, ganhando a sua verdade simbólica de reconhecimento".
Por fim, no segundo bloco, com a predominância dos en
saios em torno do "simbólico", levanta-se, imponente, o sobrado
- pernambucano ou gaúcho, não importa - e o paralelismo en
tre Gilberto e Erico se ergue sem rebuços, como a provocar os
que consideram os dois autores como meramente regionais e
não o que efetivamente são: nacionais, mas com um pé em suas
querências respectivas, cada uma dotada de desenvolvimento
histórico próprio e peculiar, sem submissão a hegemonias ou
veleidades centralizadoras.
/7
tendido o ponto defendido por Sandra Pesavento, Gilberto
Freyre estava, nesse momento, preocupado com a "necessidade
de inventariar as obras de arte existentes no país, para que [nele]
se pudesse ver a marca lusitana de [nossa] origem", em flagran
te contraste com o modernismo paulista, que só tinha olhos para
as vanguardas estrangeiras. Em texto jornalístico, em boa hora
recuperado por Ria Lemaire e por Sandra Pesavento, uma ad
vertência de Gilberto Freyre é de forte significado nesse sentido.
Diz Sandra: "Em novembro de 1949, ao comentar a visita do
professor francês E. Coornaert ao Brasil, Gilberto Freyre referia
que [o visitante] fora 'tão envolvido pela bruma paulista' que o
resto dos brasileiros ignorava a sua presença no país. No seu
entender,Coornaert devia fazer tal como Lucien Febvre e ir tam
bém ao extremo sul e ao norte: 'Que conhecesse o Rio Grande
do Sul, o Paraná, a Bahia, Pernambuco. E não apenas São Paulo,
o Rio e Minas."'
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tros ensinamentos. Porque, "ao opor uma história social que faz
justiça aos fantasmas angustiados dos espíritos a uma história
que se interessa apenas pelas revoluções maiúsculas, ele [Gilber
to Freyre] milita por uma história que abre sua porta ao imagi
nário, e os 'espíritos' que assombram as casas do velho Recife
são formas imaginárias do passado. Ele luta, igualmente, para
que os fenômenos ditos marginais, tal como a feitíçaria, não se
jam abandonados a considerações de ordem pitoresca. Aquilo
que nossa cultura racionalista desvaloriza enquadrando na cate
goria do 'pitoresco', a pobreza, os fantasmas, em suma, tudo
aquilo que se desenvolve à margem dos processos dominantes,
Gilberto Freyreempenha-se em fazerfigurar plenamente no qua
dro. Como dizem os tipógrafos, é a margem que faz a página."
Enfim, ao enfocar as reinvenções do Brasil nos cruzamen
tos entre a história e a ficção, esta obra quis contribuir para o
debate, sempre renovado, deste autor, inesgotável e complexo,
que foi Gilberto Freyre.
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Casa-Grande & Senzala
A consagração na França
de um pensamento heterodoxo
36^
pouco resultado, salvo o notável estudo do folclorista Mário
de Andrade, A Calunga dos Maracatus. Arthur Ramos repre
senta o método etnológico fundado nas raízes culturais afri
canas das populações negras do Brasil. A sociologia, finalmen
te, leva em consideração, sobretudo, as relações sociais no
Brasil, as relações de poder entre senhores e escravos, e é Casa-
Grande & Senzala que ilustra este método, aliás, obra que o
próprio Bastide traduzirá sob o título: Maitres ei esclaves. A
questão metodológica entre etnologia e sociologia deve-se ao
fato que, para a primeira, a escravidão é somente destruição
de uma cultura de origem, objeto da etnologia, ao passo que
para a segunda, as relações internas à família patriarcal, jun
to da qual vive o escravo, cortado de sua tradição, tornam
possível a criação de novas sínteses onde se misturam contri
buições de bantos, árabes, nagôs e, certamente, portugueses.
Tudo parece ter sido dito desde o enunciado dos méto
dos. Existe, no entanto, um ponto essencial sobre o qual Bas
tide vai insistir tão logo iniciada a parte consagrada a Freyre:
a diferença das escritas. Em O Negro Brasileiro (1934), Ramos é
clássico na argumentação; Freyre, ao contrário, é rico em re
gistros de escrita, e Bastide aproxima seu estilo daqueles de
Taine em Origines de Ia France contemporaine e de Proust na Re-
cherche du íemps perdu, quando este último utiliza "longos ca
minhos, transições sutis e agitações do pensamento". No en
tender de Bastide, a densidade narrativa de Freyre é o que
permite a ressurreição de um clima desaparecido, aquele do
velho Brasil.
â7
A perspectiva da sociologia é totalmente diferente. Ela
não parte de um passado dado como conhecido, mas sim de
um presente do exílio escravista, e constrói seu devir. Ora,
constata Freyre, esse devir é, essencialmente, paradoxal e con
traditório. Na oposição entre a Casa-Grandee a Senzala, lê-se a
distância entre senhores e escravos na época do latifúndio e
da cultura extensiva da cana-de-açúcar. Em compensação, nas
circunstâncias humanas deste isolamento, aparece uma cau
salidade segunda e contrária que aproxima aquilo que a eco
nomia separa. A falta de mulheres disponíveis e, conseqüen
temente, a exploração das negras como amantes ou amas-de-
leite, cria uma proximidade inversa, feita de poligamia e de
contatos constantes entre a criança branca e as características
fundamentais da cultura negra transmitida pelas amas-de-lei-
te. Quando a urbanização tiver tornado caduco o mundo se
parado do engenho, a exploração rural tradicional, daí então
a cidade e a rua constituirão um meio novo onde, sob a pres
são dos mulatos nascidos na época anterior, uma mistura iné
dita aparecerá dando ã sociedade mestiça um dinamismo ra
cial e social característico do novo Brasil.
VJ
imediatamente, os valores passam a ocupar seus lugares. Essa
postura teórica poderia ser chamada: a ecologia humana e
social. A ecologia é um estudo sistemático do meio, geográfi
co, demográfico e econômico, em que o representa um
papel particular. Disto resulta que a sociologia de Freyre não é
"geral", mas "regional" e concreta. Por essa razão, a monogra
fia, método de exposição escolhido por Freyre, adquire um valor
geral. Sem querer transformá-la em uma norma absoluta,
Arbousse-Bastide cita então Durkheim, em cuja obra ele en
contra uma maneira de justificar o método de Freyre. Melhor
ainda, Freyre é bem-sucedido lá onde Durkheim falhou, dian
te de seus próprios princípios, limitando-se a uma visão mui
to abstrata sobre o social.
.V/
res da disciplina. Ao contrário, Braudel nos ensina que
Freyre goza de uma ascendência de onde ele pode, à von
tade, buscar informações de primeira mão. Ele pertence à
família dos Wanderley, dos Albuquerque, dos Cavalcanti,
olhos azuis e francos bebedores. Freyre é historiador, por
que ele é daqueles que, no Brasil, fizeram a história. Ob
servação ambivalente.
Uma vez instalados o autor e seu texto, Braudel dedica-
se a estabelecer, para o leitor francês, um quadro da história
brasileira. Desfilam os três tempos - colonização, império e
república - e, posteriormente, os ciclos econômicos - madei
ra, açúcar, ouro, borracha, algodão, café - que cadenciam a
história brasileira. Braudel elogia, então, o fato de Freyre não
ter cedido à tentação, sempre presente entre os historiado
res, da explicação única, seja ela política, econômica ou ra
cial. A esse respeito, ele lembra a tese de Manuel Bomflm so
bre o papel do índio. Surge, então, a verdadeira definição
braudeliana do método de Gilberto Freire: "Lá onde se dizia:
os governantes, as capitanias, o açúcar, as raças, ele vê ho
mens, famílias, meios sociais, aristocracias, populações escra
vas... O progresso é imenso".
Após o cumprimento dirigido ao historiador cujas orien
tações estão próximas daquelas dos Annales, a alfinetada. O
Brasil é uma terra de migrantes, de nômades, de sertanejos,
de bandeirantes, de tropeiros, de mascates e, apesar de tudo
isso, Gilberto Freyre fala apenas dos sedentários das Gasas e
dos Sobrados, das Senzalas e dos Mocambos. Generoso, após
ter dado sua lição, Braudel tenta fazer, em seguida, um longo
resumo, muito pensado e o mais fiel possível, das análises de
Casa-Grande 8l Senzala, e de Sobrados e Mucambos, obra esta que
parece ser a sua preferida. Mas isso não o impede de achar
que a referência arquitetônica escolhida por Freyre simplifi
ca, exageradamente, o quadro. Inicialmente, ele critica o es
quecimento de Salvador da Bahia, capital rica por suas igre
jas, por seu direito e seus funcionários. Em resumo, Freyre
negligenciou o poder em sua forma clássica.
Para terminar, Braudel destaca que se o Brasil de Freyre
é incompleto, ao menos ele é brasileiro. Trata-se de uma ou
tra maneira de dizer que ele é incompleto, pois, para Brau
del, existe um outro, aquele dos historiadores europeus, para
quem a América Latina é uma Europa americana e o Brasil
um país oceânico, europeu e mundial. Navios à vela e navios
a vapor também construíram o Brasil.
Dez anos depois do artigo de Braudel, Casa-Grande 8l Sen
zala aparece traduzido para o francês, com uma introdução
de Lucien Febvre. O título da introdução Brésil, lerre d'Hisloire,
lembra o título do artigo de Braudel e destaca uma continui
dade na atenção dada pelo grupo dos Aniialesà. obvdi de Freyre.
A primeira observação é sobre o título dado a essa edição.
Nela Febvre percebe uma espécie de eco envelhecido de um
título de romance russo do início do século. Crítica indireta
ao tradutor? Não se sabe. A única certeza é que Febvre tece
comentários críticos a respeito dessa tradução.
A segunda observação estende-se sobre todo o início do
texto e refere-se à diversidade brasileira. Febvre torna-se líri
co. Mais ainda, causando espanto a prosa animada que sai de
sua pluma, o comentador torna-se escritor "para homenagear
a escrita do brasileiro. Uma frase deste tipo é a prova: Mas
como os olhos dos animais luziam sob o jato das frases!".
A diversidade brasileira, bastante exótica, é um convite à
narração, à acumulação dos detalhes, à abundância. Existe
uma espécie de mimetismo literário que toma conta do pre-
faciador. Existem Brasis geográficos e naturais, mares e flo
restas, mas também Brasis humanos, de norte a sul, como gosta
de lembrar Febvre para melhor destacar a carência de Freyre
neste domínio. Já observada por Braudel.
Mas o essencial não está aqui. Ele está na capacidade que
a prosa de Freyre tem de criar mundos: e naquela de Febvre
de resumir as grandes linhas da demonstração.
Entretanto, o tema da diversidade conduz Febvre a um
terreno que nenhum outro crítico havia explorado: a ques-
.y.v
tão do colonialismo. Sob o pretexto da tentativa abortada dos
jesuítas de ensinarem os indiozinhos, ou os negros, a serem
bons cristãos à moda européia, Febvre coloca, em 1952, a
questão da revolta dos povos colonizados, de uma atualidade
muito delicada para a França: Uma civilização única (suben
tendida européia), onde todos os homens possam encontrar
sua pátria é possível?. O fracasso do aprendizado da proprie
dade, segundo o direito romano, ou a exigência da castidade,
segundo o cristianismo, fazem pensar que uma tal unificação
não é possível sem violência. Entretanto, prudentemente,
Febvre não conclui.
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de uma economia colonial, de monocultura e exportadora,
fortemente dependente das flutuações dos mercados mun
diais, cujo centro econômico e político é o Rio de Janeiro e,
em uma proporção menor, de uma economia de transforma
ção, preparando a autonomia econômica do país, essencial
mente instalada em São Paulo. Desde então, não se fala mais
de Freyre, salvo a propósito do papel econômico do "jogo de
bicho", sobre o qual Mende, Caillois e Freyre apresentam hi
póteses mais ou menos convergentes. Está claro que Fiel foi
um leitor entusiasta de Freyre, mas parece que seus interesses
vão além, na direção das transformações contemporâneas do
país que estão no centro da obra de Tibor Mende.
As Letires Nouvelles, sob a pluma de Roland Barthes
(1953), também tomam nota da publicação de Maitres et Es-
claves. A análise de Barthes dirige-se claramente aos france
ses, designados como um povo radicalmente mestiço, mas
que esquecera um pouco esta origem. A lição de Gilberto
Freyre, o vigor de sua obra, devem-se ao fato que ele mani
pula conjuntamente as grandes teorias históricas, sociológi
cas, psicanalíticas ou dietéticas, permanecendo, porém, no
imediatismo dos fatos, o mais próximo do corpo. Livro ma
terialista, portanto, Maitres et Esclaves inscreve-se na linha
gem prestigiosa dos Marc Bloch, dos Lucien Febvre ou dos
Fernand Braudel, com a vantagem, todavia, de construir uma
história total imediatamente a partir do corpo humano, da
saúde, dos temperamentos, em um estilo obsessivamente li
gado à substância. Com relação aos seus antecessores ou
colegas, Freyre inova, ainda, ao dar uma nova importância à
sexualidade, no espaço fechado da casa, desenvolvendo uma
psicanálise sem ambiente burguês.
Mas é a respeito da questão da raça que Barthes quer
prestar, da forma mais vibrante, sua homenagem a Freyre. Sua
exposição é científica e inteligente, mas ao criticar a mistifi
cação que é a noção de raça, Freyre trava um verdadeiro e
corajoso combate: o próprio combate do intelectual, que con
siste em introduzir a explicação nos vapores do mito. O autor
.y.i
das Mythologies acredita reconhecer um irmão no sociólogo
dos contatos de raça no Brasil.
Como na maior parte dos outros artigos, aquele de Jean
Pouillon (1953), em Temps Modemes, começa com uma obser
vação de tipo metodológica, Freyre estuda a "formação" étni
ca e social do Brasil, não sua "composição". Seu objetivo é,
portanto, histórico, ele visa o processo de constituição de uma
unidade social.
.y.v
da, segundo a qual a freqüentação de sua intimidade escla
receria o erudito. Esse desvio serve para estabelecer um con
traste entre o sociólogo do nordeste e o sociólogo do Rio
(Alberto Guerreiro Ramos), sob o tema: Brasil agrário e Bra
sil industrial. A sua maneira, Duvignaud previne seu leitor
que a fascinação que exerce o Brasil rural de Freyre não deve
fazer esquecer o Brasil urbano.
Como havia anunciado, não tentarei concluir. A partir
da leitura dos principais textos da recepção, na França, de
Casa-Grande Sl Senzala, ficou claro que essa obra se beneficiou
de uma atenção cuidadosa no meio intelectual francês, parti
cularmente porque ela tinha fortes implicações em três do
mínios: a querela acadêmica das disciplinas, o estatuto da es
crita nas ciências humanas e as questões políticas relaciona
das ao problema das raças e do colonialismo. Gilberto Freyre
oferece, e todos os seus leitores estão de acordo, uma pers
pectiva teórica e metodológica, não desprovida de implica
ções políticas, fundamentalmente nova. Assim, ele permite aos
seus comentadores franceses engajarem-se nas principais ques
tões do momento.
Referências
'19
BARTHES, Roland. Maítres et Esclaves de Gilberto Freyre. Traduit du
portugais par Reger Bastide (Gallimard), Leltres Nouvelles, Vol. I, mars
1953, p. 107-108.
BASTIDE, Roger. État actuel des études afro-brésiliennes. Le problè-
me du contact des races. RevueIntemationale de Sociologie, 47^'"'' année,
n. I-II, jan.-fév, 1939, p. 77 - 96.
BRAUDEL, Fernand. A travers un continent d'Histoire. Le Brésil et
Toeuvre de Gilberto Freyre. In: ANNALES CHISTOIRE ECONOMI-
QUE ET SOCIALE, reproduzido em Mélanges d'Histoire Sociale, Tome
IV, 1943.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala-, formação da família brasi
leira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 1933.
_. Maítres et esclaves, traduction de Roger Bastide. Préface de Luci-
en Febvre, Gallimard, La Croix du Sud, 1952, 550p.
PIEL.Jean. Genèse et contrastes du Brésil. Critique, n. 71, avril 1953, p.
357-367.
'^6
Io Prado, o sociólogo francês Paul Arbusse Bastide se incumbiu
de escrever o prefácio da nova obra.
Comentando o livro, Manoel Diegues Jr. (1940) destacou
que Gilberto Freyre resgatava a até então pouco estudada influ
ência francesa na vida do Brasil. Essa preocupação seria ressalta
da pelo próprio Freyre (1944b), ao declarar que era preciso re-
aproximar-se da contribuição cultural francesa, o que poderia
servir de "anteparo não só intelectual como político aos exces
sos de influência norte-americana".
.iO
De Roger Bastida, um dos franceses sobre os quais escre
vera de maneira elogiosa, destacando a universalidade da sua
postura intelectual, Freyre (s. d., p. 6) diria que ele teria tido a
"capacidade de fraternizar com os brasileiros" e que soubera
"entender os diferentes saberes" que provinham do povo, do
folclore.
.>/
conjunção surgira uma possibilidade de entendimento e com
preensão. Diferentemente dos anglo-saxões, "donos da verda
de", os franceses aceitavam a diferença e com isso podiam en
tender a especificidade do Brasil luso-tropical.
Note-se que Gilberto Freyre trabalha com a dimensão de
um conhecimento extracientífico, que é esta sensibilidade e aber
tura do olhar que permite ver o ainda não visto, indo ao encon
tro da situação psicossocial de um povo. Essa sensibilidade "fina"
seria o fundamento do próprio saber que consegue apreender o
real para além das verdades estabelecidas. Espécie de historia
dor avant Ia lellreá'3& mentalidades - contemporaneamente tal
vezse falasse em imaginário... -, os caminhos abertos por Freyre,
ousados para o seu tempo, parecem ter realmente seduzido os
franceses.
' Interesse cia França pelas coisas do Brasil. DiáriodePernambuco. Recife 19set
1951.
•'Crescente interesse da França pelaobra de Gilberto Freyre. Diárío de Pernam
buco. Recife, 23 abr. 1954.
"Gilberto Freyre eni Cerisy. /orxrt/ do Comércio. Recife, 29 jul. 1956.
fíiV
gabava-se de contar, por ocasião de suas conferências no exte
rior, com um numeroso público francês, deplorando aqueles
que iam ao estrangeiro para falar para escassos ouvintes con
terrâneos.
•'O julgamento de Casa-Grande & Senzala pela crítica francesa. O Cruzeiro. Rio
de Janeiro, 1968.
Para os franceses, diriam os jornais de Pernambuco, Gilber
to Freyre construíra, com a sua análise da família patriarcal de
Casa-Grande & Senzala, um modelo reduzido da sociedade brasi
leira.^" Para os leitores estrangeiros, o Brasil seria visualizado, no
seu conjunto, pela consagrada imagem tropical e nordestina.
Quer parecer ainda que, para efeitos de instrumentaliza
ção política, os novos detentores do poder no pós-30 haviam
feito uso, com sucesso, dessa imagem metonímica.
Entretanto, Freyre articulava ainda uma outra proposta, ao
destacar a articulação íntíma entre as instâncias do regional com
o universal.
,hV
trastava com a recepção de sua obra e os debates que em torno
dela se haviam travado em Cerisy e na Sorbonne, denotando um
reconhecimento incomum para um estrangeiro e, sobretudo,
latino-americano, em terras européias e francesas...
Além disso, ao destacar que não fora ao exterior em missão
oficial, Freyre comentaria que o governo brasileiro era "hoje tão
desatento a assuntos da cultura, quando autêntica".'-
A mágoa se acentuaria por ocasião da concessão do título
de doutor honoris cama pela Sorbonne, em 1965. O governo bra
sileiro não pagara a passagem, e mesmo o embaixador do Brasil
em Paris não quisera comparecer à cerimônia na Sorbonne, re
cebendo por ele a honraria.
"O governo tem faltado com a cultura e a boa educação no
seu trato com a Europa", disse Freyre (1972, p. 10) sobre o la
mentável incidente, anos depois.
Na época do incidente, Freyre foi mais comedido. Enquan
to osjornais de Pernambuco se escandalizavam com o episódio,
perguntando-se quem, no século XX, seria no Brasil maior do
que Gilberto Freyre,'^ o escritor agradecia o apoio recebido da
imprensa, mas declarava que o governo não tinha nenhuma obri
gação de pagar-lhe a passagem, pois recebera um convite indivi
dual, e não em nome da cultura brasileira. No mesmo artigo
publicado no Diário dePernambuco, hipotecava seu apoio ao Ato
Institucional n- 2, entendendo que os militares no poder agiam
segundo a vontade popular (Freyre, 1965a).
Freyre (1966) se dizia, nessa época, combatido no Brasil
por sociólogos e por literatos. Isso se dava, na opinião de alguns,
pelo fato de ele não representar bem a cultura brasileira, versão
esta que ele, ironicamente, dizia que até poderia concordar...
Mágoas e ironias à parte, esses episódios revelam um certo
desconforto do escritor com relação a atitudes "nacionais" com
'ff
relação a sua pessoa e obra, ou talvez ressentimentos com rela
ção a expectativas de apoio ou reconhecimento não efetivadas
de acordo com planos pessoais. Entendemos, contudo, que tais
vieses de suas opções políticas ou projetos individuais são ape
nas um dos possíveis elementos que podem contribuir para este
seu "retorno" ao regional, "passando por cima" do nacional.
Outros vieses que podem ser acrescentados para explicar
essa atitude seriam dados pela própria conjuntura pós-30, assi
nalada pelo desenvolvimento industrial do centro-sul e pelo de-
sabrochar da Universidade de São Paulo como o grande centro
cultural do país, com um recuo de prestígio do Nordeste.
Desde os anos quarenta que Freyre comparece aosjornais,
em uma série de artigos, ora para enfatizar a intensa ligação de
Recife com Paris, ora para defender o Nordeste contra a "cen
tralização" da cultura no eixo Rio-São Paulo. Em ambas as situa
ções, o que se encontra em jogo é a aludida articulação cultural
da região com a França, sem intermediações da hegemonia pau
lista/carioca.
Para tanto, Freyre (1949c) ora destacava que Recife teria
sido a cidade brasileira que maior ligação teria tido com Paris,
ora suavizava a afirmação, dizendo que a capital pernambucana
era quase tão afrancesada quanto o Rio (Freyre, 1976a), mas
seguramente era "mais francesa" que as outras cidades brasilei
ras... (Freyre, 1976b). Recife, dizia Freyre (1957b), era tão cos
mopolita que Nina Rodrigues deveria lá ter escrito sua obra, e
não na tradicional Salvador!
^}}}
sua obra no exterior, assim como os reiterados artigos que
exibiam os fortes laços entre as duas partes, acabavam por
deixar perceber que o diálogo era possível: Recife falava para
o mundo, e o mundo lá estava contido. Era possível ao "ou
tro", europeu, lá se encontrar e se reconhecer, assim como
tudo o que da França viesse ou fosse dito encontraria eco na
quele Nordeste.
Mas era difícil contornar a hegemonia do eixo Rio-São Pau
lo, principalmente da rica e agitada capital paulista... Freyre ar
gumentava que os franceses em visita ao Brasil não deviam de-
ter-se só no "centro", em São Paulo, na USP, ou no Rio, na cha
mada "Universidade do Brasil": era preciso conhecer as provín
cias, como estava fazendo Lucien Febvre (Freyre, 1949a). Era
preciso tomar mate no Rio Grande do Sul, água de coco na Bahia,
para conhecer verdadeiramente o Brasil...
6/
Portanto, é com desconforto que Freyre manifesta a sua
opinião quanto ao livro de Roger Bastide sobre os contrastes
do Brasil, que opunha a um sul progressista um nordeste atra
sado, e que encontrava eco na obra de Jacques Lambert. Gene
ralizações perigosas, ponderava Freyre, evidenciando que não
tinham conseguido se desembaraçar da influência dos intelec
tuais paulistas (Freyre, 1958b). Lamentavelmente, dizia Gilberto
Freyre (1958a), tratava-se de uma experiência francesa exclusi
vamente paulista. E, na sua opinião, era Recife quem falava para
o mundo...
6',i
FREYRE, Gilberto. A propósito do 14 de Julho. Diário de Pemambiico.
Recife, 18jul. 1954a.
. Aspectos das influências no Recife. Diário de Pernambuco. Reci
fe, 8 dez. 1957b.
. Doutor na Sorbonne. Diário dePernambuco.Recife, 20 nov. 1965b.
. Em torno de um livro do prof. Roger Bastide. Diário de Pernam
buco. Recife, 17 maio 1958b.
. Entrevistado na capital francesa O Cruzeiro. Rio de Janeiro,
1957c.
' Há, é evidente, o livro de Alan Manchester, British Preêminense in Brazil, qiie é
de 1933, mas Manchester privilegia as questões políticas e diplomáticas.
trabalhadores que, apesar de personagens obscuros e secundá
rios, a seu modo contribuíram para com a modernização da in
cipiente sociedade brasileira.
É a petite histoire antecipada por Gilberto Freyre, um prati
cante avant Ia lettreáa nova história, como demonstra Peter Burke
(1997), ao enveredar pelos caminhos que os historiadores só
tornariam moeda corrente a partir da década de 60. Inovadores
também são seus métodos e a documentação de que se vale para
restaurar a participação dos ingleses na vida cotidiana do Rio,
Pernambuco e Bahia. Essa participação foi material, através da
introdução de artigos de consumo, objetos, alimentos e bebi
das; foi lingüística, através da incorporação de numerosos vocá
bulos ingleses ã língua portuguesa (gol, uísque, pudim, esporte,
futebol, iate, cheque, etc); mas ela se deu também através da
introdução de novos hábitos e costumes no dia-a-dia brasileiro;
a casa de subúrbio, a ingestão do chá, o veraneio na serra.
Os ingleses promoveram a modernização da vida brasilei
ra, construindo nossas primeiras estradas de ferro, substituindo
as diligências a cavaloque funcionavam como ônibus - eles tam
bém iniciativa inglesa -, abrindo poços artesianos. Menos cons-
pícuos que as marcas francesas em nossa cultura, os rastros dei
xados pela presença inglesa no Brasil passaram ainda pelos inú
meros Nelsons, Walters, Marys, Elizabeths, que nomearam crian
ças brasileiras e pelos pseudônimos adotados no final do século
passado, sob os quais se escondiam aqueles que desejavam dis
cutir publicamente suas idéias abolicionistas ou liberais.
Gilberto Freyre vai anotando, ao longo de sua exposição,
como os negócios ingleses no Brasil acabam por modificar até
mesmo a arquitetura doméstica, com a incorporação do hall e
do VE C. e a substituição das gelosias por Janelas de vidro e va
randas de ferro.^ Mostra ainda como seu modo de vida introdu-
- Isso, segundo Freyre, foi feito por ordem do novo governo, sob o pretexto de
que elas podiam esconder assassinos, sugerindo uma certa relação entre o edi
to e a "abundância de vidro inglês nos armazéns e nas lojas do Rio de Janeiro e
de Pernambuco, revelada pelos anúncios de jornal." (Freyre, 1948, p. 197).
ziu alterações também na paisagem, com seus gramados, seus
jardins, suas ferrovias, pontes e viadutos. Igualmente, pontua o
papel central desempenhado pelos engenheiros e técnicos bri
tânicos na melhoria e na modernização das condições materiais
de vida em áreas tão diversas e essenciais como a iluminação, o
transporte ou a comunicação.
Nesse compasso, vão surgindo retratos de homens que, ani
mados pelo espírito de aventura, às vezes inspirados em perso
nagens romanescos como Robinson Crusoe, não se contenta
ram em apenas arranhar as costas brasileiras, mas se embrenha
ram pelo interior do país, seja em expedições científicas, como
a do botânico George Gardner, seja a serviço, como o engenhei
ro James W. Well.
Assim como soube destacar da massa anônima de trabalha
dores aqueles cujo interesse resultou em obras concretas, fos
sem elas livros sobre o Brasil - como foi o caso de inúmeros
relatos de viajantes -, fossem elas ferrovias, Gilberto Freyre igual
mente soube enxergar os antagonismos sociais que não só divi
diram os ingleses entre si, mas também levaram muitos deles a
sejactar de sua superioridade "em face da população proletária
de cor dum país pobre como o Brasil" (Freyre, 1948, p. 100),
superioridade essa muitas vezes traduzida em insolência ou ar
rogância por parte dos operários estrangeiros brancos diante da
e n o r m e m a s s a escrava.
70
porta de que tamanho, significaram enquanto "pequenos cen
tros de civilização européia, ou norte-americana, no Brasil arcai
camente agrário e pastoril de Pedro 11" (Freyre, 1948, p. 118).
Encarece também a melhoria nas condições e relações de traba
lho, favorecidas pela construção e funcionamento das ferrovias
no Brasil, fator inegável de progresso e desenvolvimento pela
insistência das companhias inglesas em utilizar apenas mão-de-
obra livre e pela ligação que ajudaram a estabelecer entre o lito
ral e o interior do país,
Das gazetas coloniais e do tempo do Império, tirou Gilber
to Freyre as notícias que dão conta das atividades de outros bri
tânicos no Brasil, como, por exemplo, aqueles que, pela dança,
arte dramática ou mágicas, divertiram os habitantes do Rio, Re
cife e Salvador. Graças aos anúncios de jornal, Freyre incorpora
a seu relato outras vozes, as vozes dos atores diretamente impli
cados na construção dessas novas práticas sociais e culturais, fa
zendo-os falar não pelo pitoresco da coisa, mas pelo que reve
lam da vida comum de seu tempo.
Gilberto Freyre faz de anúncios em jornais, como o Diário
de Pernambuco, a Gazeta do Rio deJaneiro, o Jornal do Commércio, a
IdadeD'OurodoBrazil, verdadeiros mananciais de informação para
a reconstituição desse passado. São fragmentos que o sociólogo
recolhe e vai juntando aos poucos, como colcha de retalhos ou
quebra-cabeças, inquirindo o passado e tornando quase palpá
vel esse Rio de Janeiro onde circulavam os negociantes e leiloei
ros ingleses que enchiam as lojas e armazéns de tecidos, louças,
cristais, chapéus, brinquedos. Podemos quase ver o centro da
cidade se encher de cor e movimento, alterando a paisagem ur
bana e o cotidiano da então sede do Vice-Reinado e depois capi
tal do Império. As notícias e anúncios permitem-lhe inclusive
reconstruir a distribuição espacial desse comércio, em que os
ingleses se encarregavam dos negócios atacadistas e das merca
dorias pesadas, concentrando-se em torno da Rua Direita, da
Alfândega e dos Pescadores, e em que os franceses, reunidos na
Rua do Ouvidor e dos Ourives, negociavam artigos de luxo, miu
dezas e moda feminina, encarregando-se do comércio elegante.
7/
Por outro lado, era natural que vicejassem em nossa terra,
metaforicamente descrita por Freyre (1948, p. 164) como "vir
gem, gorda, madura para a penetração pelo comércio dos súdi
tos de S. M. B.", o ódio e o ressentimento contra os perpetrado
res dessa versão do imperialismo britânico - o "Don Juan de
mercados" -, que sabia como ninguém conquistar novos espa
ços para exploração e desfrutar de vantagens econômicas arran
cadas através de tratados e acordos. Não é de se estranhar, por
tanto, que um dos personagens de Memórias Póstumas de Brás
Cubas (1881), de Machado de Assis, expresse seu descontenta
mento com a atuação dos ingleses e torça pela expulsão daque
les a quem chama pejorativamente de godames, apelido corrente
originário de God damn pelo qual eram conhecidos.
Por trás de toda a modernização estimulada pelos negócios
ingleses, por trás das medidas humanitárias, tais como a exigên
cia de proteção ao trabalhador e de assistência médica e religio
sa nos navios luso-brasileiros, por trás da imposição da interrup
ção do tráfico de escravos, escondiam-se interesses econômicos
claros que visavam ã redução da concorrência e à conquista de
novos mercados. Para além das câmaras palacianas e negocia
ções diplomáticas, porém, Gilberto Freyre chega a sugerir que
os britânicos operaram uma pequena revolução através da tinta
de imprensa, usando os anúncios como instrumento de sedução
de seus produtos para uma parcela da população sedenta de
novidades européias.
Ingleses no Brasil constitui-se em um claríssimo exemplo
de como as condições materiais, assim como as relações econô
micas, determinam novos comportamentos, novos estilos de
vida, mudanças e sofisticação de hábitos e até mesmo altera
ções na paisagem. São as marcas que os britânicos imprimiram
em nossa cultura.
Referências
7.y
Amores inteligentes
^^eniaíf^
Leituras posicionadas
A minha proposta^ foi, naquela altura, a de uma leitura de
Casa-GrandeSc Senzalacomo mito fundador - ou mito das origens -
70^
Kp^ ^oeeajici» vtji/b •^õt/ía-^i^^e^t/tKii
"JEfliBE 0'flRC" ^ "DOÜDÜHÍ ^ UGREE" ^ ^
r4 yrfUr ^ajtpafJc ^
a/ r// yiirJ«*tr« á6 c/.
àíi x^ta/»rr att
77
tores, histórica e geograficamente posicionados, que produzi
ram uma leitura relacionada com os eventos e necessidades da
contemporaneidade deles.
O estudo crítico da posição não só histórica - no tem
po - mas também geográfica - no espaço nacional brasilei
ro - desses leitores é, no caso da recepção de Freyre, indis
pensável, sendo que durante longos anos as discussões teóri
cas sobre Casa-Grande&. Senzalasc concentraram em torno de
um questionamento que tinha a ver muito mais com posicio
namentos políticos no seio da sociedade brasileira da época
do que com uma discussão científica da própria obra. Esses
posicionamentos, na época ainda flutuantes e em vias de ins
talação, hoje em dia estão definitivamente instaurados e qua
se "naturalizados" sob a forma bem hegemônica da antítese:
Centro versus Margem, ou seja: São Paulo que eqüivale a Na
cional versus Regional; clivagem que o estudioso crítico que
vem de fora encontra na base da crítica e historiografia da
literatura brasileira.
7iV
A busca da consagração francesa
Quem for à procura de novos dados e argumentos para a
tese da "consagração francesa" e para uma possível explicação
do fenômeno, encontrará, reunidos na Fundação Gilberto
Freyre, na Casa-Museu Madalena e Gilberto Freyre, ou Casa de
Apipucos, uma variedade de fontes e documentos capazes de
fornecer provas complementares e algumas respostas às suas in
dagações. O pesquisador consultará:
- um site na Internet, já com seção francesa;
- a biblioteca de Gilberto Freyre;
- um centro de documentação que conserva os microfil
mes de artigos e outras publicações da mão de Freyre e inúme
ras publicações sobre o autor e a sua obra;
- um centro de documentação que começou a organizar a
imensa correspondência que chegou na Casa de Apipucos;
- os álbuns de dona Madalena, esposa de Gilberto Freyre,
uma fonte inesgotável de informação sobre as relações que man
tinha Freyre com pessoas, instituições e a imprensa.
Tive a sorte, graças à amabilidade da família Freyre,' de ter
acesso á correspondência em língua francesa, ainda não organiza
da, guardada na Casa de Apipucos. Separei, primeiro das outras, as
cartas redigidas em francês, vindas de dezoito países do mundo,
mas que não eram cartas de franceses. Ficou como resultado um
corpusyk um pouco maishomogêneo: as cartas dos próprios france
ses. Desde asprimeiras quedatam de 1922 e foram enviadas a Freyre
depois da primeira viagem que ele fez à França, até à última, que é
uma carta-telegrama,® datada de 1987, o ano da morte de Gilberto
' Os meus agradecimentos especiais vão à Dra. Sônia Maria Freyre Pimentel,
presidente da Fundação Gilberto Freyre, que deu a autorização para copiar
certas cartas e utilizá-las para esta publicação.
®O telegrama foi enviado pelo sociólogo Jean Duvignaud que nela convida
Freyre para uma homenagem que ia ter lugar em Paris, no Salão do Livro do
mesmo ano.
Z9
Freyre, essas cartas cobrem grande parte do século XX. Elas ofere
cem no seu conjunto um balanço muito rico, multifacetado e, so
bretudo, revelador de quase um século de relações diplomáticas e
científicas franco-brasileiras e permitem, ao mesmo tempo, funda
mentar um pouco mais a tese da importância da "consagração fran
cesa" para a história da recepção da obra e da sua reputação mun
dial. Uma primeira classificação, ainda rudimentar, das cartas fran
cesas permitiu distinguir sete categorias:
1 - reconhecimento, honras, distinções, prêmios;
2 - contatos com intelectuais franceses, tais como Braudel,
Febvre, Coornaert, Monbeig, Gurvitch, Bastide, Simon, Duvig-
naud, Arbouste-Bastide, Orecchioni entre os quais alguns se tor
naram amigos;
3 - as cartas de agradecimentos, redigidas por intelectuais
franceses que foram recebidos na Casa de Apipucos, geralmen
te convidados pelos Freyre à iniciativa do Consulado ou da Em
baixada de França no Brasil;
4 - cartas de diplomatas que viveram alguns anos no Brasil e
se tornaram amigos dos Freyre;
5 - as cartas-convite para participação em colóquios, con
gressos, revistas e a organização das mesmas;
6 - contatos com os tradutores e as respectivas editoras;
7 - diversos.
iVO
todos deslumbrados pelo encanto do ambiente e dos anfitriões,
evocam nos seus agradecimentos e contatos ulteriores a beleza
da casa, o luxo e refinamento com os quais nela foram recebi
dos, o charme de uma vida intelectual, cultural e emocional re
quintada, de um anfitrião carismátíco e perfeito. Charutos fi
nos, bebidas preparadas pelo próprio anfitrião, comidas locais e
pratos típicos acompanhavam noturnas conversas fascinantes,
em que o anfitrião aliava uma impressionante erudição a uma
espontaneidade sedutora. Passeios bonitos na região e visitas a
monumentos históricos e culturais do Velho Recife completa
vam a recepção na Casa de Apipucos.Todos lembram comovi
dos o carinho da recepção, o calor humano e o amor dos anfi
triões, dona Madalena e os filhos: uma famflia-modelo, num pa
raíso tropical e intelectual. O deslumbramento é tal que as car
tas misturam tudo: a admiração pela obra do autor Freyre, o
encanto da Casa de Apipucos, a sedução e o fascínio exercidos
pelo personagem Freyre, a saudade da terra pernambucana, o
amor-paixão pelo Brasil e pelo povo brasileiro. Todos soiis lechar
me, como diz a expressão francesa, e muitos deles de maneira
duradoura. Só um exemplo: François Bourricaud, professor da
Universidade de Bordeaux, que numa carta datada de 19 de no
vembro de 1955 escreve:
iV/
as suas formas e práticas. As visitas importantes são anunciadas
pelo próprio Freyre em artigos no Jornal de Pernambuco e nele
comentadas depois; mais tarde citações das cartas recebidas
aparecem em outros artigos. No enorme volume de cartas, apa
rentemente caótico, descobri de repente pastas cuidadosamente
separadas: uma carta de lonesco, as cartas de Lucien Febvre, as
de Braudel...
(2feuXJu:<rt>,
Pessoas, coisas e animais oiuoerto frevre
tf -
Com Gabriel Mareei em Cerisy
A8810T1 no Castelo de Cerisy na França, no ver&o de 1D50, ao
encontro de dois Intelectuais europeus que cordialmente se
detestam: Oeonccs Ourvitch o Oabriet Mareei. Ounrltch presidira
alguns dos debates em tdmo dos meus trabalhos, no seminário
promovido em Cerisy. por Mme. Hourgon-Desjardins, atendendo
a uma sugcstdo do Professor Henrl aouhier, mestre de Filosofia
da Sorbonno. Mareei desejara participar do seminário. Mas a pre
sença — segundo parece — do inflomável Ourvitch lhe arrefecera
o desejo. Decidira vir a Cerisy imediatamente depois de encerrado
o seminário, com a esperança — segundo me Informou — de con
viver algum tempo comigo, á sombra da hospitalidade que todo
veráo lhe estendia a ilustre castelá, sua velha amiga, assim como
de André Gide e de Roymond Aron. Sucedeu, porém, atrosar^se
3 amigo que devia levar Ourvitch do severo Castelo á sua doce
casa dc campo, também na Normondla. onde estava combinado que
minha mulher e eu passaríamos com éle c Mme. Ourvitch alguns
dias de repouso. l,amentável atraso ésse. porque o aposento que
Ourvitch ocupava no Castelo era precisamente o destinado ao seu
Inimigo Gabriel Mareei: motivo de Irritação para um tempera-
'mentai como o grande russo. Mesmo assim, iiortaram-se os desa
fetos como dois períeilos cavalheiros — de acérdo, aliás, com o
ambiente: o de um velho e fidalgo castelo normando. Cxunpri-
mentaram-se. o francês chegou o sorrir para o russo, qtravés ^
dos seus bigodes á ia Flaubcrt. O russo, hoje parisiense e pro
fessor da Sorbonne, quase sorriu para o francês. E em face
désse "térmo de bem viver" pude'conversar sem constrangimento
com o riiúsofo Oabriel Mareei na presença do sociólogo Oeorgea
Ourvitch. Conversa que me fés lamentar a ausência do existen
cialista católico no seminário que acabara de enccrrar-se em tór-
no dos tneus trabailios. Mareei teria trazido para é«e semirultla
um crltéiío de interpretação da história como vida que nenhum
dos outros mestras, que "honraram com seus comentários de altos
pensadores europeus minhas pobres idéias e minhas modestas
rcailzaçóes de sul-amertcano, havia exprimido de modo idêntico.
Uma análise mais sistemática das cartas revela alguns fatos
surpreendentes. Na verdade, poucas são as cartas nas quais se
constróem um diálogo e uma amizade que permanecem no de
correr dos anos. Uma exceção são as de Georges Gurvitch (Freyre,
1972), professor na Sorbonne e padrinho do doutorado honoris
causa de Freyre na mesma universidade, cujas cartas - datadas
entre 1942 e 1966, ano da morte do professor Gurvitch - che
gam regularmente na Casa de Apipucos. A primeira carta data
de 18 de maio de 1942. Vinda da Philosophical Library de New
York, ela convida Freyre para o conselho editorial áo Joumal of
Legal and Political Sociolog^. Os dois homens se encontraram em
Paris em 1948; em 1950 Gurvitch enviou a Freyre um curriculum
abreviado. A correspondência regular começa em 1952; ela
tem um caráter muito cordial, mas limita-se geralmente a coisas
práticas da vida acadêmica: convites que recebeu Gurvitch, con
vites para Freyre proferir conferências na França, a organização
das visitas, de encontros, das conferências, traduções, bolsas, es
tágios, convites para colegas, amigos ou estudantes, o doutora
do honoris causa... O pesquisador que está à procura de uma tro
ca de idéias ou de uma discussão científica sairá insatisfeito.
A consagração francesa
A primeira categoria de cartas, "reconhecimento, honras,
distinções e prêmios", constitui a parte da correspondência que
permite reconstruir as etapas, digamos, oficiais, do fenômeno
que recebeu o nome de "consagração francesa". Começa com
uma carta de Alfred Métraux, antropólogo e especialista em ín
dios do Brasil. Sem data, ela foi escrita provavelmente no ano de
(V.y
1938 e redigida em inglês pelo autor - prova, talvez, de que ele,
a esta altura, não conhecia ainda Freyre e que não sabia que este
falava francês. A carta, desde as primeiras linhas, estabelece o
tom e o teor das críticas futuras:
Esse Conclave dos Oito foi organizado pelo presidente da Unesco, Julian
Huxley, com o objetivo de estudar as tensões internacionais da pós-guerra.
Gilberto Freyre (1972, p, 5-7) dá uma descrição do encontro em Meu amigo
Gurvitch.
caclo a um grande erudito e à sua obra: Gilberto Freyre, um maítre
de Ia sociologie brésilienne. Entre outros, participaram dele Ar-
bouste-Bastidc, Roger Baslide, Ferdinand Braudel, Roger Cai-
llois,Jean Duvignaud, Georges Gurvitch, Clara Malraux e Jean
Orecchioni.
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u .'-Tr*:. .1, MM p«.,i A«i'oi;s<r nisiinr. r.jcí bistiüi: i—- noitRooN.
Fara^U DH AUni.l. R»m»C MI.1 Oi^. P<Jn CAtlSi:! HU. llcariCOl-IIIF A.R.d.ccu FACrRE.
r.vRvncii « m aui simon
(VtV
Le sociologue nord américain, fils d'une société qui n'est pas
sans rapports avec Ia société brésilienne apporte, quand il abor
de les rives et les problèmes sud-américains, une forte prépa-
ration à rincohérence, si j*ose dire. D'abord, il n'a aucune
peine à faire commencer ia sociologie à Tétude des problè
mes les plus concrets et les plus pratiques, à ce travail d'inven-
taire et d'aménagement que le sociologue européen ne veut
pas honorer du nom de sociologie [...] mais qui constitue bien,
en fin de compte, le seul travail, sinon sociologique du moins
social, qui soit possible dans des sociétés de formation relati-
vement récente.
Ora, foi essa mesma a formação que Freyre teve nos Estados
Unidos e da qual ele ainda fala com orgulho no prefácio da pri
meira edição de Casa-Grande& Senzalaem 1933! E foi exatamente
essa abordagem, esse método - ponto forte da obra, que por cau
sa dos rumos, pressupostos e posicionamentos tomados pela críti
ca brasileira contemporânea {Casa-Grande & Senzala é uma obra
nordesüna e não brasileira!), se transformou em ponto fraco e
criticável. Arbouste-Bastíde, no já referido prefácio para Uvi Enge
nheiro Francês no Brasil, resume bem o que aconteceu:
" Roger Baslide estava em São Paulo, na USP, onde substituía Claude Léxy-
SimiiQç
— <5V
com data de 24 de setembro de 1939. Nessa carta Bastide tenta
explicar que ele não teve a intenção de atacar ou criticar Gil
berto Freyre que, entretanto, já se defendeu contra o que con
siderou um "ataque" num artigo publicado no Correio da Ma
nhã. Escreve Bastide:
.90
francês, Professor Roger Bastida, desembaraçar-se da influência
dos intelectuais paulistas com os quais conviveu durante sua lon
ga residência no Brasil, sobre ò seu modo de considerar e inter
pretar a situação brasileira. Daí generalizações que por vezes pre
judicam o seu valioso livro no sentido desta constante deforma
ção da realidade: a deformação do Brasil num Sul em tudo pro
gressivo, dinâmico, porém em contraste com um Norte apenas
pitoresco e folclórico, perdido na sua rotina e no seu apego às
tradições luso-africanas ou luso-ameríndias.
.9/
ciai que manteve Freyre a vida toda com a França e os franceses
e/ou inversamente? E com a diferença, já constatada, entre o
tom geral das cartas dos franceses e as de Bastide?
Existem, no acervo da Fundação Gilberto Freyre, várias cartas
dos dois tradutores que podem dar uma idéia, tanto do tipo de
relacionamento que eles tinham com o autor Freyre, quanto das
suas concepções, bem diferentes, do que seria uma boa ou autênü-
ca tradução. Vejamos primeiro a carta de Bastide, redigida no dia
28 de dezembro de 1952, no final do ano em que saiu a tradução:
Jean Orecchioni
—
contro do Outro. A primeira que consiste em ficar na sua, na
sua própria língua, em não falar a língua do Outro para não se
expor e manter, de antemão, a distância que permite segurar,
controlar os eventos. A segunda, a de Orecchioni, fundada na
vontade de superar as barreiras, lingüísticas e outras, de falar a
língua do Outro, numa tentativa de aproximação, de compreen
são de dentro, de fusão; atitude muito mais aberta e, sobretudo,
mais corajosa, no sentido em que ela torna mais vulnerável a
pessoa que decide abandonar a sua língua materna e quer to
mar o risco de falar a língua do Outro.
Subjacentes às duas opções dos tradutores existem, nesse
sentido, duas concepções da comunicação intercultural: de um
lado a que se baseia num exotismo novecentista, convencido da
incompatibilidade das culturas, e subjacente a ela: o pressupos
to implícito da superioridade da cultura do tradutor; do outro
lado a que tenta superar as barreiras pela compreensão de den
tro, pela decisão de querer estar com o Outro num pé de igual
dade, cuja base é falar a mesma língua.
E opõem-se duas concepções bem diferentes do que é, do
que deveria e poderia ser a ciência.A que baseada no ideal da obje
tividade, da racionalidade, que Bastide chama de cartesianismo, e
que pressupõe uma relação fundamentalmente desigual entie o
pesquisador/sujeito e o seu "objeto" de pesquisa. E a que tentou
tomar Orecchioni: a de um sujeito/pesquisador que quer encon
trar outros sujeitos; aprender com eles pela comunicação, adquirir
um saber que seja o resultado de uma combinação de razão e cora
ção, sensibilidade e intuição; um pesquisador que tenta cultivar uma
inteligência que seja ao mesmo tempo racional e emocional.
Conclusão
y.í
dos documentos disponíveis: o acervo da Casa de Apipucos con
tém as cartas cujo destinatário era Gilberto Freyre, mas não con
tém as que o próprio Freyre redigiu para os seus destinatários
franceses. Em compensação, o serviço dos microfilmes da Fun
dação e os álbuns de dona Madalena permitem fazer um balan
ço bem completo do que Freyre, no decorrer dos anos, pensou
e escreveu sobre a França. Os documentos disponíveis até agora
têm como característica dominante uma grande admiração re
cíproca em que se misturam razão e coração, intelecto e sensibi
lidade, indivíduo e ciência, indivíduo e nação.
A correspondência e a entrevista com Edson Nery da Fon
seca confirmaram a impressão deixada pelos prefácios de Casa-
Grande & Senzala: foi a crítica francesa que desempenhou um
papel determinante na leitura/interpretação universalista que
Freyre iria propor aos leitores de Casa-Grande & Senzala a partir
do prefácio da nona edição.
Quanto à questão da "consagração francesa" - a maior? a
melhor? - a comparação dos dados relativos aos contatos de
Freyre com os de outros países levantou um questionamento
intrigante: se essa consagração francesa não foi a melhor, nem
em termos quantitativos nem em termos qualitativos, como ex
plicar a tese de Freyre, tantas vezes repetida por ele? Descobri
mos na base da tese as grandes controvérsias da época e, pode
mos dizer, hoje em dia, do século: a que opunha um São Paulo
que se pretendia "nacional" aos outros, relegados a "regionais",
a que opõe, no século vinte, a sociologia americana à francesa.
Foi a sociologia francesa que ofereceu a Freyre a consagração
que ele precisava: no sentido em que a leitura francesa da sua
obra lhe permitiu distanciar-se mais da sociologia americana,
prática, precisa, concreta, que recusa as generalizações rápidas
e universalizantes. Foi exatamente esse lado experimental, con
creto, que começou a se transformar em perigo para Freyre, que
quis a sua obra brasileira e não só nordestina, mas não teve argu
mentos suficientes contra os ataques dos seus compatriotas.
Essa sociologia, tipicamente francesa, permitiu a Freyre
transformar o seu estudo sobre a sociedade colonial nordesti-
na numa teoria universalmente humana e humanista da mis
cigenação harmoniosa das raças humanas. Tornou ele pró
prio, a sua obra e o seu país, como diz o texto da laudatio do
doutorado honoris causa da Sorbonne: "o modelo entre os
países nos quais a humanidade busca a imagem futura de uma
civilização na qual todos os homens possam encontrar sua
pátria espiritual." "
Referências
<J7
FREYRE, Gilberto. Um engenheirofrancês no Brasil. Com prefácio de Paul
Arbouste-Bastide. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940. Coleção Docu
mentos Brasileiros, v. 26.
Un sociologue français particulièrement lié aux études socia-
les du Brésil. In: Uautre et Vailleurs - Hommages à Roger Bastide. Paris:
Berger-Levrault, 1974.
LEMAIRE, Ria. Héros littéraire et historien: chemins croisés dans les
préfaces de Casa-Grande&. Senzalaúg Gilberto Freyre. In : MATTOSO,
Kátia de Queiroz (Ed.). Litíéralure/Hisíoire: regards croisés. Paris: Centre
d'Études sur le Brésil, Presses de TUniversité de Paris-Sorbonne, 1996.
p. 71-91.
MATTOSO, Kátia de Queiroz (Ed.). Littérature/Histoire: regards croisés.
Paris: Centre d'Études sur le Brésil, Presses de TUniversité de Paris-
Sorbonne, 1996.
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre e a Inglater
ra: uma história de amor. Tempo Social, São Paulo, USP, n. 9, vol. 2, p.
13-38, outubro de 1997.
SLOTKIN, Richard. Regeneration through Violence, tlieMythology oftheAme-
rican Froníier. 1600-1860. Middletown: Wesleyan U. P, 1973.
-—
Nas ruínas, o otimismo
^Oitonio Q)imaS'
' "[...] the new organization must establish the 'intellectual and moral soli-
dariiy of mankind' and, in so doing, preveni the outbreak of another world
war," (wvw.unesco.org).
^UNESCO's Constitution believed "in full and equal opportuniiies for educa-
tion for ali, in the unrestricted pursiiit of objective truth and in the free ex-
change of ideas and knowledge." (\wvw.unesco.org).
nal, entre eles o Brasil, definiam seus objetivos, que eram os de
"contribuir para a paz e segurança, promovendo a colaboração
entre as nações por meio da educação, da ciência e da cultura, a
fim de alimentar o respeito universal pelajustiça, pelo império da
lei, pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais que
são asseguradas aos povos do mundo, sem distinção de raça, de
sexo, de língua ou de religião, pela Carta das Nações Unidas".'^
Sob essa perspectiva de otimismo e de boa vontade, a UNESCO
montou um comitê de grande envergadura, composto por oito in
telectuais ligados à Psicologia, à Filosofia, à Sociologia, à Psicanáli
se, à História e ao Direito, destinado a se ocupar de um projeto
bastante ambicioso, denominado "Tensões que afetam a compreen
são internacional". Coube a Hadley Cantril, professor de Psicologia
na Universidade de Princeton, onde dirigia o Office of Public
Opinion Research, o gerenciamento inicial da tarefa, para a qual
foi convidado Gilberto Freyre em nome da UNESCO, naquele mo
mento conduzida porJulian Huxley, seu primeiro diretor.
Data de 30 de março de 1948 o primeiro convite formal
assinado por Hadley Cantril, no qual algumas explicações preli
minares devem ser recortadas:
^As clefined by lhe Constilution, lhe purpose of lhe Organizalion is: "lo con-
iribuie lo peace and securiiy by promoling collaboralion among nalions
ihrough educaiion, science and culiure in order lo furlher universal respecl
for jusiice, for lhe rule of law and for lhe human righls and fundamenlal
freedoms which are affirmed for lhe peoples of lhe world, wlihoui disiinciion
of race, sex, language or religion, by lhe Charier of lhe Uniled Nalions."
(wvAv.unesco.org).
/OO
faz parte do "Projeto Tensões" diz o seguinte: "Um questíonário
sobre as influências cotidianas que predispõem à compreensão in
ternacional, de um lado, e ao nacionalismo agressivo, de outro."
Diante da extraordinária quantidade de pesquisa e de refle
xão que tem sido suscitada por este problema da influência coti
diana que modela atitudes, parece-nos que seria extremamente
valioso se pudéssemos reunir, num grupo seleto, indivíduos ex-
ponenciais de diferentes disciplinas e de diferentes nações para
uma conferência extensa e, espero, descontraída, com o propó
sito de se obter a mais alta integração de evidências sobre este
tema, apontando para os denominadores comuns de um acordo
a ser alcançado por especialistas de diferentes disciplinas. Nossa
idéia é a de que, no final da conferência, seja preparada, por este
grupo de peritos, uma declaração relativamente curta que indi
que quais as condições a serem encontradas para se evitar a cria
ção, a continuação ou o agravamento de atitudes que conduzem
às agressões nacionais. Este documento poderia ser escrito com
ilustrações concretas e apontar exemplos do que deve ser feito.
[...] seria recomendável que, nos últimos dias da reunião, cada
participante redigisse, com suas próprias palavras, um documen
to curto, com cerca de 5.000 palavras, no qual fique consignado
seu ponto de vista a respeito do tema.
[...]
Estamos propondo que a reunião se realize na Casa da Unes-
co em Paris, começando em 28 dejunho e continuando até 9 de
julho. As pessoas a serem convidadas, além do Senhor, são:
' Para o convite original e a resposta de Gilberto Freyre, ver, no final deste
artigo. Doe. 1 e 2. O acesso e a agilidade desta pesquisa nos arquivos da
UNESCO, em Paris,muito devema M. Jean Boêl,arquivistadaquele órgão. A
ele, nossos agradecimentos, extensivos também à Maison Suger, que nos aco
lheu em diversas oportunidades.
/(f/
o convite de Hadley Cantril foi encaminhado para o Rio
deJaneiro, onde Gilberto Freyre atuava nos trabalhos da Consti
tuinte de 1946, como deputado eleito por Pernambuco. Sua res
posta não se fez esperar. Em 19 de abril de 1948, carta manuscri
ta do escritor, enviada do Rio de Janeiro e hoje arquivada na
UNESCO, dizia:
/02
of Life", "The Nonvegian Wayof Life", "The Polish Way of Life" e
"The Swiss Way of Life" (Cantril, 1948, p. 237).
A segunda resolução dispunha sobre a necessidade de se
elaborar um outro questionário que se ocupasse da imagem que
os países desenvolviam a respeito de outras nações e da auto-
imagem nacional.
A terceira resolução levantava a hipótese de se questionar a
maneira como as técnicas modernas - desenvolvidas pela Edu
cação, pela Ciência Política, pela Filosofia e pela Psicologia -
estariam contribuindo para a mudança de atitudes mentais e
para a descoberta dos processos e das forças atuantes nas socie
dades em conflito.
/í).y
COS de Paris; Max Horkheimer, Diretor do Instituto de Pesquisa
Social de New York; Arne Naess, professor de Filosofia da Univer
sidade de Oslo;John Rickmam, editor do BritishJoumal ofMedicai
Psychology', Harry Stack Sullivan, presidente do Conselho da
Washington School of Psychiatry e editor do Psychyatry, Joumalfor
lhe Operaíional Síaíement ofInterpersonal Relations e Alexander Sza-
lay, professor de Sociologia da Universidade de Budapeste e pre
sidente do Instituto Húngaro de Relações Exteriores.
Sem dúvida nenhuma, tratava-se de comitê diversificado do
ponto de vista ideológico e de atuação profissional, se tivermos em
conta a identificação de seus participantes até aquele momento.
Gordon W. Allport (1897-1967): professor de Psicologia em
Harvard e especialista em interpretação psicológica da personali
dade. Suas pesquisas levaram-no a trabalhar, no final dos anos 30
e no começo da Segunda Grande Guerra, com refugiados euro
peus e a se interessar por um projeto dedicado a preconceitos e a
conflitos grupais nos Estados Unidos e em países estrangeiros.*^
Georges Gurvitch (1894-1965): nascido na Rússia, Gurvitch
transferiu-se para a França em 1925, depois de se opor ao regi
me soviético em fase de implantação. Com sua sólida formação
jurídica e filosófica, Gurvitch dedicou-se ao estudo da sociologia
do Direito, da qual continuou se ocupando depois de abando
nar a França, em 1940, para se refugiar nos Estados Unidos, onde
ajudou a criar a Escola Livre de Altos Estudos de New York. De
volta à França e ã sua universidade em Strasbourg, onde suce
deu a Maurice Halbwachs, Georges Gurvitch ainda ajudou a criar
a Associação dos Sociólogos de Língua Francesa, nos anos 50,
depois de ter-se transferido de Strasbourg para Paris, onde atuou
como professor da Sorbonne e da Ecole Pratique des Hautes
Études e onde ainda favoreceu a expansão das ciências sociais, com
a criação dos Cahiers Internationaux de Ia Sociologie, em 1946
(Cramer, 1986, p. 457-467).
/oí
Max Horkheimer (1895-1973): sociólogo e filósofo, Horkhei-
mer estudou Psicologia e Filosofia em Munique, Freiburg e Frank
furt, onde criou, em 1930, o Institut für Sozialforschung, na com
panhia de Erich Fromm e de Herbert Marcuse. Em 1934 fugiu
para os Estados Unidos, onde deu continuidade aos trabalhos do
Institut für Sozialforschung, na Universidade de Columbia, em
New York. Entre 1942 e 1944 trabalhou com Adorno na Dialética
do lluminismo e em 1949 retornou para a Alemanha, onde, um
ano depois, reabriu seu Instituto. Seu Studies in pr^udiceé o resul
tado de extensa pesquisa sobre o anti-semitismo na sociedade
norte-americana, mas vai mais além disso, porque não só descrevia o
anti-semitismo, como também contribuía parafazê-lo desaparecer, através
de uma compreensão melhor dessefenômeno.^
Arne Naess (1912-): filósofo norueguês, professor da Uni
versidade de Oslo, autoridade respeitada em ecologia e co-fun-
dador, em 1958, do Inquiry, An InterdisciplinaryJoumal ofPhiloso-
phy, revista dedicada às vinculações entre a Filosofia e as Ciên
cias Sociais, bem como às eventuais conexões entre questões fi
losóficas fundamentais e os problemas derivados do desenvolvi
mento contemporâneo.'
John Rickman (1891-1951):Secretário Honorário do Insti
tuto de Psicanálise de Londres,John Rickman publicou, em 1928,
pela Hogarth Pressde Leonard e VirginiaWoolf, um Index Psycho-
analyticus 1893-1926, catálogo de artigos e de autores sobre psi
canálise, dedicado a Sigmund Freud. Embora modesto em sua
bibliografia, seu On the bringing up ofchildren byfivepsychoanalysts
(1936) tornou-se referência pioneira em psicanálise infantil, gra
ças aos cinco ensaios assinados porSusan Isaacs, Melanie Klein,
Merell P. Middlemore, NinaSearl e Ellen F. Sharpe. No prefácio
ao livro, Rickman advoga a interferência clara do conhecimento
científico na educação infantil, alegando que a experiência his
tórica e familiar não bastam para educar uma criança. Seu pre
fácio defende, com ênfase, a necessidade do enfoque individua-
/o.i
lizado em vez da educação com base na tradição coletiva e mera
mente consuetudinária.®
/Oó'
cerradas em 1949, com a prisão de seu criador, reabilitado
apenas em 1957. Deste momento em diante, Szalai tornou-se
professor universitário em instituições húngaras de renome,
como a Universidade Eõtvòs Loránd.'®
/(>7
nação política e mental, denominado Soviet Leaders and Mas-
tery over Man}^
Com a assinatura desse grupo de intelectuais, veio a públi
co, em 13 de julho de 1948, um "Statement by eight distingui-
shed social scientists on the causes of tensions which make for
war",^^ no qual eram alinhados doze possíveis causas determi
nantes da guerra. Antes de listá-las, no entanto, uma ressalva
significativa: segundo os signatários do documento era a primei
ra vez que uma organização internacional apelava para o con
curso de cientistas sociais como agrupamento profissional res
ponsável pela reflexão a respeito de problemas relevantes de nosso
tempo. Naquele contexto preciso, a ressalva abria espaço para uma
segunda proposta, a ser publicada dias depois, e que lançava a
idéia de um "International Social Science Institute".
/(hV
5. a educação, em todas as suas formas, deve combater a presunção
das certezas nacionais inabaláveis e favorecer a autocrítica sobre
nossas formas de rída social, assim como sobre as formas alheias;
/oo
todos e que o mundo não precisa ser um lugar onde os homens
matem ou sejam mortos.
//O
o solapamento dos mitos nacionais ou a erosão das crenças que
estimulam a distinção arbitrária entre povos superiores e inferio
res estavam também entre as preocupações de seu artigo. Bem
como o temor de certos determinismos biológicos, geográficos
ou econômicos ou dos desvios inspirados pelo fervor religioso e
pelos desníveis econômicos pronunciados. Do ponto de vista de
Gilberto Freyre, esses eram alguns dos motivos, entre outros, ca
pazes de provocar a instabilidade social, a tensão grupai e intra-
grupal, cujo remédio, preconizava ele, seria a focalização múlti
pla do mesmo fenômeno através de lentes diversificadas e oriun
das de ciênciasdiversas, em clara defesados estudos multidiscipli-
nares com perspectiva totalizante. O exemplo histórico final que
ilustra sua tese e que pouco repercutiria naquela platéia seleta de
eruditos europeus, provavelmente muito afastados de nossa reali
dade cultural, não deixa margem de dúvida sobre sua metodolo
gia polimórfica e polivalente, pois é com um dos conflitos sul-
americanos que Gilberto Freyre materializa sua proposta:
///
volume. É, portanto, com o mero intuito de ampliar a documen
tação sobre este episódio que as transcrevemos na íntegra.'®
Alexander Szalai, o sociólogo húngaro, admitia o perigo
da distorção da sociologia com caráter nacional e alertava tam
bém para o risco adicional da subordinação dessa mesmá so
ciologia aos interesses de classe de quem a praticava. Gordon
Allport, por outro lado, elogiava a análise aguda de Freyre,
mas se perguntava: será que o critério regional para monta
gem de grupos com vistas ao estudo de certos problemas não
determinaria um diagnóstico distorcido? E, na esteira da sua
própria pergunta, complementava com a sugestão de que tal
risco poderia ser bem minimizado se especialistas de proce
dências nacionais diferenciadas atuassem de forma conjunta.
Max Horkheimer, mais extenso e mais denso, questionava-se,
entre outras coisas, sobre a proposta de um livro-modelo de
história. Quais seriam os especialistas a quem se delegaria essa
tarefa, se considerarmos que seria preciso que estivessem in
teiramente despidos de qualquer tipo de preconceito? Ou,
por outro lado, como superar a atitude humana de reificação
permanente? Ou ainda, como distinguir a verdadeira autori
dade da autoridade embusteira?
Ver Doe. 5.
f/3
2) promoverestudosepesquisas destinados à compreensão da rea
lidade sócio-econômica e cultural das regiões norte e nordeste,
3) contribuir para o aceleramento do processo de desenvolvimento
empresarial brasileiro-,
4) prestar assistência técnica em assuntos relacionados com suas
atividades e
Ver Freyre [1948]. Mais tarde, esse texto, com o mesmo título, foi recolhido
por Gilberto Freyre (1965) em 6 conferências em busca de um leitor. Por uma
questão de facilidade relativa de aces.so, cito esta edição, quando necessário.
//.¥
que Gilberto Freyre apresentara em Paris. São diferentes no tom,
na forma, nos objetivos, o que uma análise minuciosa e concen
trada demonstraria com facilidade.
///
Gilberto Freyre ilustrava seu ponto de vista, ao mencionar que o
desdobramento prático do conhecimento social científico já ti
nha produzido resultado expressivo, em um caso, pelo menos:
quando se revelara que a constituição social brasileira decorria
de um sistema de organização social fincado no latifúndio, na
monocultura, no patriarcalismo, na escravidão e na miscigena
ção (Freyre, 2003, p. 64). Pois não fora graças a uma pesquisa
social bem aplicada e bem dirigida que a tensão intranacional
brasileira se atenuara? Não fora graças a uma pesquisa sistemáti
ca e inovadora, publicada no Rio de Janeiro em 1933, que o
convívio de epidermes se transformara de "hipoteca em lucro"
(Mello, 2001, p. 20), para usar formulação sucinta e certeira de
Evaldo Cabral de Mello?
//.)•
ga-se de definir como "descrição, notícia, informação, relação,
relatório (de um fato, de um estado de espírito)", no qual se
abre espaço para a inserção da subjetividade, controlada ou não.
Diante de diplomatas e de militares brasileiros, o tom é ou
tro, a fala é outra, porque o objetivo é outro. Portanto, a retórica
que se mobiliza é outra, montada em cima de recursos para cap
tação do auditório, que não precisa ser convencido das qualida
des e da ciência do orador, uma vez que sua presença ali decor
ria de prestígio intelectualjá reconhecido e sancionado pela in
teligência nacional.
Como não se trata de platéia de especialistas, como não
fala com pares, como se sente à vontade, em território cuja lín
gua domina de forma soberana, a exposição ganha coloquiali-
dade colorida, recuperando um estilo que dera, anos antes, pro
jeção ao seu autor. Desaparece de cena o "estudantejá antigo de
Sociologia" (Freyre, 1965, p. 54), que se apresentara na UNESCO
e, em seu lugar, reaparece, de pronto, o perito manipulador do
verbo, que sabe muito bem rechear seu discurso com frases cur
tas, nominais ou entrecortadas como que espichando, habilido
so, a continuidade discursiva por meio de uma lembrança furti
va, que se esquivava, ou da complementação ágil do pensamen
to, ainda à espera de um golpe final, curto e na mosca. Com o
enxerto de expressões coloquiais e de digressões pessoais, ao
lado de exemplos caros à platéia preparada, que as reconhece
rápido, o discurso de Gilberto Freyre torna-se persuasivo e car
regado de alto potencial de identificação, porque está vazado
em pretensa informalidade, traço tão do agrado de nossa cultu
ra, sempre avessa àquele convencionalismo que lembra esfera
superior de autoridade.
A informalidade pretendida peleja para se manter, no en
tanto, quando se nota, por exemplo, que o orador insiste em
acentuar o privilégio de uma reunião internacional, patrocina
da por um órgão mundial, realizada numa cidade de sedução
universal e em meio a sumidades escolhidas a dedo, com a ênfa
se recaindo de modo assinalado sobre a singularidade do even
to. Evento que, segundo Gilberto Freyre, tornou-se marcante pelo
//6'
seu experimentalismo expositivo e pelo seu anticonvencionalis-
mo, muito distante de qualquer academicismo. Ademais, com a
manobra ágil de trocar, quando convém, a exposição em pri
meira pessoa - vinculada ao presente - por uma passagem em
terceira pessoa - que remete a um passado próximo - confor
ma-se melhor a sedução do orador, porque seqüencia-se o tem
po e se atenua a autoridade de quem veio para ensinar e não
para dialogar, como lhe faculta a condição inerente ao convite.
Em casa, diante de público cativo e ciente do seu prestígio inte
lectual em terras brasileiras, Gilberto Freyre ultrapassa a presta
ção de contas e resvala pelo rubor fingido, intrometendo, vez ou
outra, uma terceira pessoa do singular, que simula modéstia e
distanciamento.
//7
Ao evocar como arremate final de sua fala os elementos
que compõem o cerne mesmo de um universo bipolar, no qual
Ciência e a Fantasia travam disputa aguerrida, o orador finge
abandonar a pompa da investidura que o conduzira à capital
européia dos intelectuais e restaura fragmentos do universo
mágico infantil, que contrastam com a austeridade da discus
são adulta, tudo subitamente compactado e convertido, de
novo, em simbolismo radical, antitético e, por conseguinte, de
fácil compreensão. Para uns, a Branca de Neve; para outros, a
Moura Torta. De um lado, as serpentes; de outro, as pombas.
Em cena, de novo, as polaridades que tanto aprecia e que, anos
antes, já nos dera Casa-Grande & Senzala ou Sobrados e Mucam-
bos. E que ainda nos daria Ordem e Progresso e a promessa não-
cumprida de Jazigos e Covas Rasas.
A beleza irretocável e alva da donzela européia contrapõe-
se o desengonço da figura morena e mestiça. As serpentes, frias
e escamosas, que rastejam e se infiltram, opõem-se as pombas,
alvas e fofas, que se libertam no vôo alto e livre. Simbologia mais
transparente, mais universal e mais brasileira, impossível!
Confortável e à vontade em seu território, Gilberto Freyre
dispensa-se da necessidade de demonstrar gabarito profissio
nal. Escorado por cinco edições nacionais de Casa-Grande &
Senzala (1933/1936/1938/1943/1946), por três estrangeiras
(Argentina: 1942; Estados Unidos: 1946; Inglaterra: 1947), por
uma outra de Sobrados e Mucambos (1936) e por outros 17 títu
los, alguns dos quais substantivos, como Nordeste (1937), O mun
do que o português criou (1940), Região e Tradição (1941), Brazil,
an Interpretation (1945) e Sociologia (1945), por exemplo, não
era o caso de se assegurar pelo discurso austero. Com essa reta
guarda bibliográfica, Gilberto Freyre prefere, então, o cami
nho da prestação de contas em tom mais informal e menos
opinativo, o que o leva a informar a platéia sobre as marcas
gerais da reunião em Paris, que, segundo ele, foram: 1) a diver
sidade do grupo de especialistas internacionais; 2) o experi
mentalismo corajoso da técnica das apresentações pessoais; 3)
o caráter mais sintético que analítico das exposições; 4) a estra-
//<i'
nha ausência de representantes das ciências sociais elaboradas
no Oriente. E antes de encerrar sua exposição, Gilberto Freyre
ainda lembra sua contribuição concreta ao Conclave dos 8, ao
mencionar os quatro itens de sua autoria, que foram introduzi
dos no "Common statement":
^<9
dois ensaios biobibliográficos sobre Gilberto Freyre já tinham
sido publicados em inglês e em espanhol —GilbertoFreyre, viday
obra de Lewis Hanke, em 1939, e Gilberto Freyre y Ia sociologia
brasilenaáe Eduardo J. Couture, em 1947 - o que deve, eviden
temente, ter contribuído para divulgação do nome do estudio
so em outros setores acadêmicos que não o brasileiro. E é por
intermédio dessa rica bibliografia que se fica sabendo das pri
meiras traduções de Casa-Grande, realizadas antes de 1948, em
línguas de alcance extenso e de distribuição acadêmica siste
mática. Em espanhol, haviam saído duas edições na Argentina,
em 1942 e 1943: a primeira patrocinada pelo governo federal,
através do Ministério da Justiça e de Instrução Pública; a se
gunda, através da Emecé, uma editora particular. Em inglês,
haviam saído duas outras: a primeira, nos Estados Unidos, em
1946, pela Alfred A. Knopf de Nevv York, e a segunda, em 1947,
por Wendenfeld Sc Nicholson de Londres. Portanto, às viagens
internacionais, de cunho acadêmico ou Jornalístico, acrescen
te-se ainda que sua obra inaugural Já se difundira por meio de
línguas de circulação internacional, com penetração e visibili
dade intelectuais garantidas. Seriam essas algumas das razões,
tudo indica, que provocaram o convite a Gilberto Freyre.
Em tom especulativo, quando menciona a bibliografia de
Gilberto Freyre, ou documental, quando vai em busca de cor
respondência específica em Apipucos, Marcos Chor Maio lem
bra que Hadley Cantril chegara a convidar Gilberto para as
sumir a direção do Departamento de Ciências Sociais da
UNESCO, logo depois do encerramento do Conclave dos 8. Mas
que Gilberto Freyre recusara o convite, apesar de Cantril ten
tar convencê-lo com o argumento de que se cogitava, para aque
le posto, de um especialista dotado de a melloiu xuisdom, isto é,
de sabedoria madura. No rodapé, onde Marcos Maio inseriu a
informação, fomos buscar a carta datada de 21 de agosto de
1948, que diz o seguinte:
Conversei nos últimos dias com aqueles que são os mais res
ponsáveis pela direção da UNESCO. Eles se mostraram simpáti-
/20
COS o bastante para me pedir conselhos sobre um candidato que
servisse como Diretor do Departamento de Ciências Sociais aqui.
Brodersen é o Diretor Executivo. Como o nosso programa se ex
pande e se afirma, torna-se cada vez mais necessário um diretor
que tenha solidez na área, um conhecimento maduro, e todas as
demais qualificações que o Sr. saberia melhor que eu.
Mencionei seu nome e pediram-me que lhe escrevesse de
modo informal para lhe perguntar se o Sr. estaria interessado na
posição. Precisaria ser, pelo menos, um ano, na esperança, é cla
ro, de que o Sr. se interessasse por tempo mais longo.
/iV
cia mais alta e mais suscetível de alcance internacional, porque
poderia ser voz ouvida em círculos políticos de maior enverga
dura, muito além das esferas acadêmicas, a opinião de Gilber
to Freyre viria ainda arrodeada de outras, emitidas por es
pecialistas de prestígio, como Gurvitch, por exemplo, ou
Horkheimer, cujos destinos intelectuais só fariam crescer, den
tro e fora da academia.
H*
/3â
Em maio de 1949, ano seguinte ao do Conclavedos 8, deu-se
uma outra reunião em Paris, dedicada ao estudo da democracia
e denominada "Democracy in a world of tensions". Reunido sob
a presidência de Edward H. Carr, um grupo de cinco intelec
tuais - Chaim Perelman, Richard McKeon, Pierre Ricoeur, Alf
Ross e Sérgio Buarque de Holanda - elaborou três documentos
básicos, cujos títulos sumariam seu conteúdo:
1) "The UNESCO questionnaire on ideological conflicts
concerning democracy";
2) "Statement of the members of the Committee concer
ning the importance of the problem";
3) "Report of the committee on the philosophical analysis
of fundamental concepts".^®
Depois desses dois encontros de caráter exploratório e prepa
ratório, a UNESCO, em 1950, deu início a um projeto sistemático e
prolongado sobre as tensões que provocam as guerras, como recurso
para compreendê-las em escala mundial e como iniciativa para ali
viá-las. Nessa nova etapa, o foco fecha-se sobre a questão racial.
A contribuição brasileira para essa agenda foi muito bem
historiada e analisada com esmero por Marcos Chor Maio em
seu trabalho de doutoramento, cuja proposta central é "analisar
a interface entre os estudos raciais e o desenvolvimento das ciên
cias sociais no Brasil, a partir do exame de um projeto patroci
nado pela UNESCO, no início dos anos 50, que mobilizou cien
tistas sociais brasileiros e estrangeiros em torno da investigação
das relações raciais no Brasil." (Maio, 1997, p. VI).
Segundo Chor Maio, em suas origens, a UNESCO abriu-se
para duas tendências básicas, no enfrentamento das questões
que lhe competiam.
/2,i
No início, sob a orientação de Julian Huxely, abriu-se espa
ço para uma corrente de caráter idealista e mais utópica. De
pois, com os duros limites da Guerra Fria se impondo, foi a vez
de uma tendência mais pragmática e mais atenta às exigências
geopolíticas em emersão. Nas palavras do autor,
r> f
UNESCO e a Reitoria da Universidade de São Paulo" (Bastide;
Fernandes, 1959, p. VII).
Com esse projeto mais ambicioso e mais vertical, devida
mente historiado por Marcos Chor Maio, dava-se continuidade
e complementaridade às duas linhas de ação inicialmente em
confronto na UNESCO: a mais utópica e a mais realista.
A tendência "iluminista e universalista", dentro do qual "a
UNESCO pudesse contemplar um pluralismo ideológico e polí
tico alicerçado numa solidariedade moral e intelectual" (Maio,
1997, p. 17) estava por trás das reuniões de que participaram
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Sua tônica era a
da harmonização e a da visão conjunta, numa perspectiva mais
integradora, mais utópica e menos belicosa. A outra, mais des
confiada e mais atenta aos efeitos incipientes da Guerra Fria,
por ela moldada e, por conseguinte, atenta aos antagonismos
dela decorrentes, preferiu o caminho da tensão e do embate.
Referências
/i>.j
celona; La Habana; Lisboa; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo;
Lima; Guatemala; San José: ALOV XX, 2002.
.. Guerra, paz e ciência. Ministério das Relações Exteriores. Serviço
de Publicações. [Rio]: [Imprensa Nacional] [1948].
. Palavras repatriadas. Organização, notas e prefácio de Edson
Nery da Fonseca. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Esta
do, 2003.
.. 6 conferências embusca de um leitor. Rio de Janeiro: José Olympio,
1965.
Sites
http://wcb.lcmoyne.edu/~hevern/nr-theorists/allport_gordon_w.
html#biography
http://www.icdc.com/~paulwolf/colombia/americanuniversitymay
1963.htm
http://www.transparencynow.com/welles.htm
\wwv.caesar.elte.hu/elte/sociology/SHISTORY.htm
\vw\v.dhm.de/lemo/html/biografíen/HorkheimerMax/
wvw.sum.uio.no
ww^v.tandf.co.uk/journals/titíes/
wv\v.u nesco.org
{/)ocatne/ifo /
i>
l;ear profesoor Pro^,
1 aa nrlting you to aek if it mnilâ be pcssibl» for you to
attenã a bcmiU cooforane# belng plaxmed hare trca Juno 2â thrBUs)^ Jul/ 9,
'ilils in>iuiry Is praliotiaary to a. ^ra fonoal Invltatlon Tvbich -sould be
exteoded as aecn aa tbe confere&ca hao heen offlclolly authorlzad.
(cont.)
(com.)
-2-
iV3^.05 Contd,
TraESCO/SS/TAHT/3
PAEIS, 13 JuOy 19W
(cont.)
/<y/
(conl.)
üHESCO/SS/TAIU/3
13 July 1948
Uan haa notr reached a stage in hia history \rtiere he can atudy
sdeiitifically the oausea of toialcaia that oake for var. The meeting of
thia little groiqp ia itaelf ayn^tOoiatic, representing eis it doea the flrst
tine the people of many landa, thrcugh an intemational organization cf
their onn creation, have a^ed aooial aciendata to apply their Imoirledge
to aome of lhe na;]or problena cf our dme. Althou^ t» di^er in lhe
j$haaea «e «oold give tp varioua parta of cur atatement and in our viena
aa to ita cocprefaanaiveneaa and inçleoezitation, no ene of ua \rould deny
the iiqportanoe of any part of it.
(B) The pròblem of peaoe ia the problem of keeping group and national
tensiona and agreaaiona wi-tíiin manageable proportions and of direoting
them to enda that are at the aame time personally and aooially construotive,
ao that man wiU no longer aeek to eaploAt man. Thia goal cannot be aobieved
by surfaoe refcxna or iaolated sffcrta. Fundamental ohangea in aooial
organiaation and in our «ays of are eaaential.
(c) If vi9 are to avoid the Idnd of aggreaaion that leads to armed
oonfliot, ve muat among other things, ao plan and «unange the use of
modem productive potrer and reaouroea that there will be nwritnum aooial
justice. Econocdc inequalitLes, inseouritiea and fzustrationa oreate
gra;^ and national oonflicts. AH thia is an ia^rtant source of tensiona
wbioh have often wrongLy led one group to see anc^er group as a menaoe
thxough the aooeptanoe of false images and ovei>-aiiiplified solutions and
by making people susoeptible to the soapegoating appeals of demagogues.
(cont.)
/.Vi»
(cont.)
SS/mü/3 - page 2
13 July 13W
(d) Modeoni •wars betwean nations and groups of nations are fosteared by
many of tiie ayths, txaâltions and syuibols cf natlonal pride banded. dosm from
ene generation to cknothez*. A great many current social fiyid>ols are still
nationaUstio, hindexing the free movemoit of thought acros s political
bcundariea of what ia, in faot, am inteidopendent worM.
(f) 7he devel<^msnt of modem means of snift and tilde range caimunl-
cation is potentially a great aid to trorld solidarity. 7et this develqpoent
also inoreases the danger that distortions of truth trill reach a great many
people who are not in a poaition to disoriminatê true from false, or to
pezceive that tbey are baing beguiled and ndsled. It must be a special
respcoQsibility of ܻN. organisatians to utilize these meana cf nass cocmuni-
cation to enoouzage an adeqjaate understanding of the people in other countrles.
This must al»;^ be a ti70-«ay traffio. It will aid the cause of peace if
nations are enable see themselves as other see thos.
(H) Uany social soientists are studylng these problema. But social
soientists are still separated tgr national, ideologioal and class differences.
These differences have made i t difficult for social soientista to resist
effectively the asergenoe of pseudo-soientifio theories uhlch have been
erploited by politioal leaders for their atm ends.
(cont.)
/.y.v
(conl.)
S£/TAHJ/3 - page 3
13 July 15W
rrfmin of the TOtuig çuTO ocdenteã. toaard nar or tonard peace. From the
dísaemination of the iafoxaatiozi resiiXtisg frcm theae studies, wo moy
antioipate the estergeaoe of concrete proposale for the guidence of
oatioual programnes of eduoation.
(cont.)
/.y/
(cont.)
SS/TMU/3 - page k
13 July 13Z18
/.y.i
i/ioctu/te/f/o /
ohesco/ss/taiü/2
PARIS, 15 July 19146
Ou the Idea of an
"ii their joint statement iasued 8 July I9I48, membere of this Confer
euce ixnanimoualy endorsed the formation of an Intemational University and a
series of vorld institutes of the Soolal Soienoes. Conforming with this action
no, speaking as individuais but not as offioial representatives of our govom-
ments, likewise endorse ín principie the menorandum entitled An Intemational
Social Soienoe Instituto. Having had no opportunity to disouss tho conorete
proposalB contained therein wo aro not In a position to advocate any particular
plan for implementing such an inati'^te. But we are agreed oonoeraing the value
of disoussions «nd Joint study among social soientists of many lands, including
countries not now members of Onosco. We believe that this memorandum will
serve as a useful basis for discussion and planning. The benefits w© ourselves
have experienced in our two-week conference wo are eager to see continued and
expanded."
Oordon W. Allport, Professor of Psychology, Harvard University.
Gilberto Preyrp, Honorary Professor of Sooiology, University of Bahia,
Brasil; Professor at the Instituto of Sooiology, University of Buenos
Aires, Argentina*
Georges Giirvitch, Profosseur de Sooiologie, Université do Strasbourg;
Administratetxr du Centre d'Etudas Sooiologues, Pcu'is*
llax Horkheimer, Director of tho Instituto of Soolal Researoh, Now lork Citv.
Ame Naess, Professor of Riilosophy, University of Oslo*
John Riclcman, U*D., Bditor, "British Joumal of Uedioal Psyohology".
Honry Staok Sullivan, M.B,, Chairman, Counoil of Fellows, Washington Sohool
of Psyohiatry; Editor, "Psychiatryj Joumal for tho Oparational State-
ment of Interpersonal Relations".
Alexander Ssalai, Professor of Sooiology, University of Budapest; President,
Hungarlan Instituto of Foreign Affairs.
The Uemorandum referred to in the Resolution reads as followst
(com.)
AV/í'-.—
(cont.)
DNBSCO/SS/lAlO/2 - page 2
15 July I9U8
kept pace with this developnent* The Professora theaselvos have nonhere had
th© opportunlty of aoquiring the intemational education their funotion now dem
anda. The purpose of the Intemational Social Soience Instituto would be to
remedy this.
3. Qn this basis tiie I.S.S.I. would bring together each year 10-12
politioal soientists. 10-12 economista. 10-12 aociologists. 10-12 social
payohologists, 10-12 students of intemational law, together with suoh other
disoiplines as it was deoided to inolude in the I.S.S.I., aggregating some
hundred persons in ali. Each discipline would have a leader of discussion,
preferably a sênior soholar who had oombined that discipline with a study of
intemational relationships. But the essential instruotion given would be by
the Fellows themselves, (a) in group seminars of each paz^icular discipline,
(b) in inter-disciplinary seminars on intemational quastions of the day.
l;. At the end of suoh a year the Fellows would not only have enlarged
their mental horisons and improved their linguistic capacity; they would also
have made friends aoross frontiers. In the oourse of one or two decades there
would be some 1,000 - 2,000 Professora in the sooial soionoes, ali of whom were
Fellows of the seme Intemational Instituto, ali of whom were in touch with one
another either directly or through the Institute.
7* Once this experimont with the sooial soionoes had been launclied and
had demonstrated its possibilities, the Institute could be extended, or addit-
ional Institutos set up, to embrace other imiversity faoulties and eventually
suoh professions as joumalism, the diplomatio serviços and civil services
generally.
(cont.)
/.y7
(cont.)
DNESCO/SS/IAIO/2 - pago 3
15 July igl^B
AV.i'
{Aocamento ã
(cont.)
/.yy
(com.)
(com.)
/ro
(com.)
(com.)
///
(cont.)
(cont.)
(cont.)
//.y
Sobrados e Mucambos
Protocolos da escrita:
as estratégias de Gilberto Freyre
/M'
com um novo e abrangente título: "Introdução à História da
Sociedade Patriarcal no Brasil". Estas transformações do pro
jeto global estão marcadas não só no título, mas também na
postura epistemológica. O prefácio da segunda edição não
diz muito a respeito, mas Freyre escreve uma ampla introdu
ção, onde ele retoma a discussão sobre o tema central de seu
trabalho no nível epistemológico e que versa sobre história e/
ou sociedade.
///
Aqui se instala uma possível oposição entre o campo das
estruturas, ou tempo longo, e o tempo das formas de sociabili-
dade e dos projetos de atribuição de sentido aos fatos, que é um
tempo médio, tempo dos homens.
Esse seria, pois, o objeto da sociologia: o que faz sentido e
que é proporcional ao tempo da vida humana, não mais que
algumas gerações. Logo, a sociologia está ligada ao delinea-
mento de um projeto no tempo, ou de um destino humano,
não a história. O importante aqui será notar a característica do
tempo sociológico como sendo de um projeto geracional, com
duração limitada, o que o faz ter uma via comparável à dos
homens: nascimento, crescimento, declínio, sendo com isso um
tempo cíclico.
Daí a resistência de Freyre sobre o par forma-processo. Em
comparação com as estruturas, as formas têm um tempo de
vida mais breve, são efêmeras por natureza. Por isso, as formas
só existem dentro de um processo de trans-formação. O concei
to do declínio está, pois, consubstanciado ao da forma. Assim,
a estrutura é um conceito de equilíbrio efêmero, que pertence
ao campo eco-histórico, enquanto a forma, processo ou mes
mo transição, faz parte do núcleo central da concepção socio
lógica da realidade.
É importante que se leve em conta estes aspectos episte-
mológicos, tais como a definição dos objetos na concepção dos
vários saberes, porque Sobrados e Mucambos 2Lp2irece na história
das ciências sociais num momento em que a questão dos mo
delos, das estruturas e das transformações está no centro dos
debates. Freyre, nesse contexto, tenta pensar a sua pesquisa
como uma contribuição para a sociologia genética. Mas, socio
logia do quê? Uma sociologia das formas de convivência e asso
ciação (Freyre, 1977, p. 34).
Essas duas palavras também devem reter a nossa atenção. A
sociologia européia tem, sob a influência alemã, analisado a evo
lução das sociedades da Europa, como a transformação de um
modelo comunitário {Gemeinshaft) para um modelo social {Ge-
//<!'
selshaft). As formas comunitárias, procedendo da Idade Média,
transformar-se-âo, no transcurso do tempo, em formas de asso
ciação entre indivíduos livres.
A oposição entre convivência e associação^ no livro de
Freyre, apresenta semelhanças e diferenças com esse modelo.
Se bem que as associações tenham tudo a ver com a livre con
tratação entre indivíduos, a convivência^ ao contrário e por
causa da violência própria ao sistema escravocrata, não tem
muito a ver com a GemeinshafU a comunidade. Aqui se mani
festa a singularidade do processo social brasileiro, em compa
ração ao da Europa.
A oposição entre os modelos sociais - os da convivência e da
associação - se refletirão, na verdade, nos modelos arquiteturais
da Casa-Grandec do Sobrado. A Casa-Grandeé um universo fecha
do, isolado, dominado espacialmente pela casa do Patriarca e a
Igreja do Pai, Deus no céu.
O Sobrado, ao contrário, está aberto ao fluxo dos passantes
na rua, aberto ao olhar dos outros; é uma estrutura dialógica,
permeável, uma interface entre os homens. A Casa-Grande or
ganiza, primeiro, as relações entre a natureza e o homem (na
tureza da natureza - mata, cultivo - e a natureza do poder pa
triarcal e escravocrata), forçando-os a conviver. O Sobradooy^2í-
niza as relações entre os seres humanos, oferecendo a estes
formas de contato e de contratos, como para inventar formas
de associação.
O conjunto das obras de Gilberto Freyre, enquanto socio
logia genética, poder-se-ia chamar então Casa-Grande e Sobra
dos, enfatizando o processo de declínio da forma, do disposi
tivo da convivência das raças, das gerações, dos gêneros no
espaço fechado, mas, por isso mesmo, coerente, reclusivo, do
minado pela figura onipotente do pai. Esse declínio da Casa-
Grande favorece a aparição de uma forma alternativa, nova,
mais aberta espacial e socialmente, que é o Sobrado. É preci
so sublinhar que "Sobrado" ou "Casa-Grande" não são con
ceitos puramente arquiteturais, senão urbanísticos. A Casa-
Grande é uma unidade urbanística mínima e, com o Sobra
do, nasce no Brasil a cidade.
O Continente, de Erico Veríssimo, mostra, com todos os de
talhes ficcionais, este processo de urbanização, através do exem
plo da cidade de Santa Fé, e a obra toda, O Tempo eo Vento, pode
ser lida como uma ficcionalização de Casa-Grande & Senzala -
Sobrados e Mucambos —Ordem e Progresso.
Há outro par de conceitos, na obra de Freyre, que partici
pa da definição histórica dos processos de ajustamento entre
classes, gêneros, cores, estatutos econômicos e definições his
tóricas que constituem formas sociológicas: são eles a subordi
nação e a acomodação. Mais claramente que os conceitos de con
vivência e associação, nota-se aqui a transcendência do poder. A
sociedade, qualquer que seja a sua forma, é um processo de
adaptação ao poder. Subordinação descreve a submissão ao po
der do ponto de vista do mesmo poder, e a acomodação do
ponto de vista de quem não tem poder. Essas são, pois, formas
sociais específicas dos tempos patriarcais escravocratas.
Um outro elemento que pode ser apreciado nos prefácios
e introduções, é que Freyre reivindica, para si, ser parte do
assunto estudado. Pode parecer paradoxal essa reivindicação,
já que a metodologia das ciências humanas pressupõe, normal
mente, distância entre o sujeito cognitivo e o sujeito conheci
do. Não obstante, Freyre multiplica as referências aos mem
bros de sua família, testemunhas do mundo semifeudal dos
sobrados, até chegar ao ponto em que se pode dizer que a socio
logia de Freyre integra, plenamente, a experiência existencial
do sociólogo.
Poder-se-ia ainda pensar que escrever a biografia de uma
personagem estrangeira, fora da experiência do escritor, garan
tiria mais a objetividade do que escrever sobre si mesmo. E pos
sível, mas, ao mesmo tempo, a autobiografia tem, em compara
ção com a biografia, a vantagem de construir, desde o início, a
articulação das gerações na experiência do sujeito. E a diferença
entre falar de si mesmo e falar do outro. O outro está percebido.
/r>o
automaticamente, como uma entidade fechada em si mesmo,
uma entidade de qualquer modo autônoma. Já quanto ao Eu,
este sempre sabe da sua inserção numa trama geracional com
plexa, onde o Eusó pode existir em relação ás gerações anterio
res e possivelmente ulteriores. Desse ponto de vista, a autobio
grafia tem acesso direto à complexidade dos tempos, enquanto
a biografia corre o risco de simplificar a situação, esquecendo a
dimensão genética.
Consideremos as dedicatórias dos textos de Casa-Grande &
Senzala e de Sobrados e Mucambos. O primeiro diz: "A memória
dos meus avós, Francisca da Cunha Teixeira de Mello, Alfredo
Alves da Silva Freyre, Maria Raymunda da Rocha Wanderley,
Ulysses Pernambucano de Mello."
O horizonte familiar da pesquisa sobre as "Casas-Grandes"
comparece como uma garantia para o autor, ainda viva na sua
memória, como um mundo coerente. Esse mundo, apesar da
sua coerência, tem uma certa diversidade. A redundância do
"de Mello" corresponde ao fechamento e clausura deste mun
do do engenho, enquanto que as consonâncias estrangeiras -
Freyre, Wanderley - com os seus "y", lembram as influências
européias não-lusitanas, tal como "Pernambucano" abre várias
hipóteses sobre a miscigenação. Esse conjunto familiar toma a
postura na foto que imortaliza o gênio da colonização portu
guesa no Brasil.
A dedicatória de Sobrados e Mucambos é bem diferente: "A
meu pai e à memória de minha mãe, em cuja casa ainda meio
patriarcal e agorajá demolida, da estrada dos Aflitos, no Recife,
foi escrita grande parte deste trabalho."
A escritura de Sobrados e Mucambos é feita na soleira de um
mundo morto, moribundo, acabado. O sobrado da estrada dos
Aflitosjá desapareceu, e a auto-hagiografia compilada pelo pró
prio Gilberto Freyre mostra o autor, numa fotografia "ao pé da
escadaria do solar de Santo Antonio de Apipucos", o que vem a
ser uma maneira de sublinhar, ao mesmo tempo, a fuga e a con
tinuidade do tempo, e também a inserção do sujeito cognitivo
/.;/
nas formas do seu objeto, Existe, assim, uma permanência das
famílias tradicionais no Brasil, uma continuidade cultural mes
mo quando no tempo histórico da efetividade o seu poder já
passou.
Aíi?
construção sociológica, dada a multiplicidade das fontes. Essa
produção da verossimilhança sociológica vem apoiada não só
pelas introduções e pelos prefácios, como temos visto, senão
pela estratégia retórica do tipo "vi isto com meus olhos", ou
seja, a força do testemunho ocular. No caso de uma investiga
ção sociogenética, o próprio autor não pode ser ele mesmo o
testemunho. Por isso, é importante a cadeia familiar dos avós.
A veracidade de Casa-Grande & Senzala repousa sobre os avós
do autor, como se nota na dedicatória. O sociolingüista William
Labov qualifica de prefácio um discurso, muitas vezes, implíci
to, que introduz uma narrativa. Por exemplo, "era uma vez" é
o prefácio de um conto, "você não sabe o que ocorreu", é o
prefácio de uma narrativa biográfica. Nesse sentido, o prefá
cio de uma análise como Casa-Grande 8l Senzala é: "eles eram
meus avós". O texto é, pois, nada mais do que o desenvolvi
mento do "como" eram os avós de Gilberto, nas suas casas-
grandes, com os seus filhos, os seus escravos, os seus bichos,
as suas mulheres...
/.;.y
Introduzindo o seu trabalho sobre SobradoseMucambos, Freyre
fala de uma nova paisagem social. Essa metáfora dá uma idéia mui
to mais aberta da forma social se instalando do que o mundo fe
chado do engenho. As estruturas arquitetônicas ficam - a casa, o
muro - mas Freyre assinala quão permeáveis são as casas e os mu
ros através das janelas e dos olhares. Essa permeabilidade permite
que se constitua um campo semântico, mas também prático, sen
sual, erótico, fundado na dialética interno/externo.
Esse campo, marcado primeiro pela chegada massiva de in
formações, da Europa e do resto do país, de modas,Jeitos, cores e
perfumes, esse campo onde os homens trocam informações e as
mulheres também, mesmo se estas tratam de objetos distintos,
poderia ser chamado de espaço público. Novos espaços físicos aco
lhem esta germinação, como a rua, a praça, o café, o Jardim, pri
meiro privado, mas logo público. Novos rituais se desenvolvem
também nesses espaços, com as festas, as procissões, o carnaval.
Se o "fechado" e o "aberto" fornecem um eixo para pensar
as tensões no espaço público, estas categorias determinaram tam
bém a metodologia freyriana, articulando autobiografia e fon
tes públicas, com anúncios e notícias de Jornal, todo esse mate
rial tão vil, como ele mesmo diz, "aparentemente apenas pito
resco, mas na verdade rico e até opulento de substância de maior
interesse histórico e da mais profunda significação social" (Freyre,
1977, p. 28).
A sociologia genética encontra-se, então. Justo na situação
proustiana. O plissado que nutre o presente é infinitamente rico
e assumiu formas de um extremo refinamento, enquanto o fu
turo que se abre diante dos atores apresenta ainda o caráter mal
delineado, daquilo que não foi acabado, que não é senão esbo
çado por gestos sumários e instintos grosseiros. Mas, ao mesmo
tempo, a história do Brasil, sobre a qual se debruça Freyre, é
aquela de uma passagem do simples ao complexo: a oposição
cardinal senhor/escravo vai deixar seu lugar no curso do tempo
às classes e às situações intermediárias que irão dar complexida
de ao sistema social.
Referências
/í>0
o cativeiro de Clio:
narrativa entre memória e história
tSa/x/i^a/ ífata/m Sxsaoento-
/.íA'
sua ocupante, incidente este que evidenciava o contraste entre
as duas situações:
/'19
Não por acaso, Freyre (1961, p. VII) dedica a obra à memó
ria de seus pais, "[...] em cuja casa, ainda meio patriarcal e agora
Já demolida, na Estrada dos Aflitos, no Recife, foi escrita grande
parte deste trabalho."
O entrelaçamento das gerações, e o lugar da escritura - a
casa familiar solarenga, como uma das tantas que ele invocará
em sua narrativa - reforçam a idéia de que há um fio da memó
ria a ser recuperado e que ele, Freyre, se dispõe a desenrolar do
novelo.
/ól)
les que viram e ouviram aquilo que se passou por fora da expe
riência do vivido do autor.
/óy
credibilidade. Na memória, opera-se uma epifania, ou a revela
ção de uma certeza íntima de que a lembrança é correta. Paul
Ricoeur (2000) fala-nos das alegrias de uma espécie de memória
feliz, coroada pelo reconhecimento de algo, que é trazido pela
lembrança: foi lá, foi ele, foi então, foi assim...
Essa credibilidade da recordação feita narrativa, Freyre a
fornece pela autoridade do testemunho: se não foi ele que viu
ou viveu, foi seu avô, seu primo ou seu amigo, testemunhas váli
das porque inscritas no tempo físico e social da lembrança.
Há, sem dúvida, por parte de nosso escritor, um trabalho
voluntário de recolhimento da reminiscência. Nesse entendimen
to, Gilberto Freyre se autocompara a Proust, pois diz que seu pon
to de vista com relação ás fontes é "quase" o do escritor francês...^
Isso se daria tanto pelo uso dos papéis e objetos de família e do
cotidiano, na reconstituição intimista das sensibilidades, quanto
pelo processo pelo qual a sensação/experiência diante de um tra
ço do passado é capaz de produzir a Memória-evocação.
Sua proposta é a de forçar o leitor, a ver em torno de si, o
que, antes, não era visto, e encontrar sentidos nesse olhar. Há
um esforço de anamnese, há a busca para despertar as recorda
ções, constituindo esta modalidade de memória voluntária, que
se define pelo esforço e a vontade de lembrar.
Nessa instância, Gilberto Freyre instaura um processo qua
se como que de um deverde memória', é preciso lembrar para não
esquecer como foi. E essa espécie de missão que Freyre chama a
si, fazendo-nos passar ao outro estatuto do texto antes enuncia
do, que é o da História.
Nosso escritor se imbui do que chama "responsabilidade
intelectual" e mesmo fala em salvar "as verdades da história".^
Chamando para sua escritura o estatuto da História, Freyre
distancia-se da credibilidade e busca a meta da veracidade,
pois é a História que reivindica para si não só organizar a nar-
/6}i
rativa do que aconteceu defato como se autoriza a ser a fala ofi
cial sobre o passado.
Ora, fazer ciência no campo da História ou, dito de outra
forma, construir uma narrativa histórica, implica o uso de fon
tes. Ou seja, é preciso que todo o registro do passado se apóie
em traços, identificados pelo historiador como fonte, na medi
da em que digam respeito ao seu objeto de pesquisa. E preciso
que o historiador recolha vestígios objetivados do passado, a
partir do que construirá seu discurso.
Tais indícios operam como uma espécie de prova, de teste
munho de algo que foi um dia e que, citados e elencados, hipo
teticamente autorizam o leitor a refazer o percurso do historia
dor, desafiando-o a atingir resultado diferente daquele do nar
rado. Mais do que isso, essa exposição ou citação de fontes não
só marca uma trajetória percorrida no caminho da pesquisa como
dá autoridade à fala do escritor-historiador, operando como uma
garantia da sua narrativa e de sua erudição.
E, em matéria de fontes,'^ o historiador Gilberto Freyre de
monstra conhecimento da bibliografia específica de seu tempo
e das épocas mais antigas que tratam sobre a História do Brasil e
sobre as cidades. Mais do que isso, Freyre menciona arquivos
públicos, acervos de museus e recorre a citações de autores lidos
e discutidos em sua obra.
/íí.V
utílizadas, mas que dizem respeito à normalização da cidade,
como os códigos de posturas municipais.
Tais usos e aproveitamento de fontes, pouco usuais para a
época, correspondem a uma postura totalmente inovadora no
terreno da História. Podemos dizer que Freyre se vaie de tais
registros não usuais como materialização - ou evidências - de
sensibilidades passadas, sem a qual uma História Cultural não
seria possível.
Mas toda esta utilização inovadora dos cacos dopassado sg dá
no melhor estilo de uma escrita baseada nos rigores científicos
do método, a evidenciar criteriosa pesquisa. Para o autor, trata-
se de inaugurar um método para além do científico-tradicional,
uma vez que prevê a combinação de uma pluralidade de abor
dagens - psicológicas, sociológicas, históricas, antropológicas,
ecológicas, folclóricas,^ que visam proporcionar o máximo de
revelação sobre o Brasil.
A partir de um conjunto, vasto e variado, de dados, Gilber
to Freyre compõe e cruza de maneira a revelar sentidos. Sua
meta é dar a ver, dar a ler, explicar, comprovando aquilo quefoi
um dia. Nessa estratégia, identificamos a pretensão de Freyre para
conferir o estatuto de História para o seu texto. "Necessita-se de
muita história", argumenta Freyre, reconhecendo nesse discur
so a fala autorizada que se incumbe de explicar o passado, dan
do-lhe uma versão-verdadeira.
/6'f
Há, contudo, uma definição freyriana de História, que o
situa numa posição distante de uma História linear, cronológica
e causai. Mais precisamente, trata-se de uma História que se apro
xima e se entrelaça com a Literatura e na qual ele admite a pre
sença da ficção.
Ora, tomemos a concepção geral de que é a História a nar
rativa verdadeira sobre o passado, mas entendamos que Gilberto
Freyre pensa escrever o passado a partir de uma concepção prous-
tiana: "Do passado se pode escrever o que Proust escreveu do
mundo: que está sendo sempre recriado pela arte".^
Tal tipo de afirmação conduz a concepções muito espe
ciais da História, pois está implícito que o passado, matéria por
excelência do historiador, é algo que não só é construído, como
pode ser continuamente reconstruído. A idéia da construção,
da urdidura do tecer do passado e, por conseqüência, de fazer
a História remete, por sua vez, ao pensamento de Gilberto
Freyre sobre a escrita do mundo, a um patamar de aproxima
ção entre a ciência e a arte, que ele define como um "impressio-
nismo revelador", que poderia ser traduzido pela sensibilidade
ou a imaginação, estes dois vetores primários de apreensão da
realidade.
/6rr
Sob ótica aproximada, Gilberto Freyre procura ler, no es
paço, o tempo, cruzando a materialidade das formas da arquite
tura com a sensibilidade da narrativa de vida que encerram. Com
essa abordagem, e particularmente em Sobrados e Mucambos,
Freyre introduz um novo olhar sobre as cidades, que é capaz de
por em evidência não só a memória e a história que as edifica
ções encerram, como também de resgatar sonhos e projetos no
tempo, inscritos por aqueles que edificaram no espaço.
Por outro lado, nosso escritor desloca, da classe para a raça,
o eixo de análise da História, dialogando com o seu interlocutor
oculto, o marxista Caio Prado Jr. Com tal diálogo nào-explícito,
Gilberto Freyre insiste no "calcanhar de Aquiles" do problema
identitário nacional. Já abordado em Casa-Grande& Senzala.
Há, pois, um público que se disputa e para o qual Gilberto
Freyre se dirige, oferecendo não só a originalidade do olhar como
a trajetória percorrida como escritor, mas também inova, ao ex
por suas reflexões sob uma forma coloquial, não-acadêmica de
narrar. E como se oferecesse leitura científica sob a forma de
romance, a demonstrar que seriedade não quer dizer, necessaria
mente, sisudez...
Com relação às fontes, quer parecer que Gilberto Freyre as
inscreve, neste seu prefácio à P edição, como um elemento de
empatia e reconhecimento dos leitores, como a dizer que é preci
so educar o olhar e enxergar, no cotidiano, sinais até então desa
percebidos, possíveis de interpretar e que permitem despertar lem
branças. Nesse momento, Freyre possibilita uma identificação do
seu texto com os leitores, pois a História que escreve está, de certa
forma, implicitamente inscrita na Memória de cada um.
Por outro lado, são ainda essasfontes, na sua enumeração
metódica, que dão o certificado de que aquele texto se trata de
um trabalho científico, de que o autor é um pesquisador, ates
tando que a crítica pode receber a obra com bons olhos... As
fontes ocupam, no terreno do discurso científico, o papel de
testemunho representado pelo narrador e/ou depoente no tex
to de cunho memorialístico.
/oy
De uma certa forma, neste prefácio à 1- edição, o autor
concilia em sua obra a memória e a história.
Freyre nos fala que sua obra não pretendeu dizer que o
açúcar seria o único "formador" do Brasil. Teria havido, pois,
insinuações ou críticas diretas nesse sentido? O sucesso de Raí
zes do Brasil competia com o de Casa-Grande& Senzala e Sobrados
e Mucambos, e, sobretudo, Gilberto Freyre constatava o fato de
estar em marcha uma paulistanidade, a estabelecer uma hegemo
nia cultural sobre o país? Findo o Estado Novo e de uma certa
chancela oficial da visão freyriana, com sua acomodação inter-
classista e com a apologia da mestiçagem, as críticas de uma nor-
destinização do país tomavam vulto? Muitas são as questões que
podem compor o referencial de contingência da época e que
presidem a nova publicação de Freyre.
Na introdução à 2^ edição, que se segue ao prefácio à mes
ma, Gilberto Freyre enumerava os ataques sofridos.
Por trabalhar com a arquitetura e por partir da casa, fazen
do do habitai um texto que dera ao público uma outra visão do
país, sofrerá as críticas dos especialistas em história da arquitetu
ra brasileira; por usar uma outra forma de escrever, por se valer
de uma outra retórica e por ter uma outra concepção de Histó
ria, fora dito que fazia poesia, literatura ou folclore; por falar do
nordeste, fora acusado de "simplificara realidade nacional", des
conhecendo a existência histórica de outras edificações...
/6^'
Diante de todas essas investidas, Gilberto Freyre defendia-
se, argumentando:
—^ /()y
Rio Grande do Sul: de todos os estados meridionais do Brasil o
que tem sido objeto de melhores estudos neste gênero. Estudos
como os de Rubens de Barcellos e de Sallis Goulart e os de João
Pinto da Silva, Moisés Vellinho, Augusto Meyer, Coelho de Sou
sa, Dante de Laytano, Viana Moog, Manuel Duarte, Walter Spal-
ding, Carlos Legori. O que o Sr. Atos Damasceno, por exemplo,
evoca, em páginas sugestivas, não só do passado remoto como
recente de Porto Alegre, quase se confunde com as evocações do
Recife de Mario Sette. (Freyre, 1961, p. LXIV)
/70
Nesse contexto, nosso escritor acentuava, em sua defesa, a
argumentação que conferia a sua obra o estatuto científico, pois
se tratava de fazer frente a uma crítica que se estruturava contra
seu trabalho como um todo, a destruir seu argumento e sua es
crita. Fazia ciência, sim, pois realizava pesquisa, arrolava as fon
tes, citava, tinha um método, fizera longas viagens de estudo pelo
Brasil a fora e mesmo no exterior, para falar a diferentes públi
cos com conhecimento de causa. Mas sua ciência, sua história,
era outra. Exigia respeito a sua forma de pensar, tal como o di
reito aos intelectuais de seguirem critérios diferentes dos consa
grados até então... Era vanguarda, apresentava uma postura avant
Ia lettre com relação ao seu tempo, e por isto era atacado!
No prefácio à 3- edição de Sobrados eMucambos, surgido em
1961, Gilberto Freyre (1961, p. XIII) referia, mais uma vez, que
sua obra se achava esgotada desde há muitos anos e anunciava a
próxima edição em língua inglesa.
Esse prefácio apresenta algumas inovações, que marcam a
própria evolução da obra e da apreciação do autor sobre a mesma,
expondo, assim, o contexto histórico de sua republicação. Dessa
mcmeira, Freyre aponta para o caráter difícil áa.leitura de seu livro,
o que provavelmente se relacione com a recepção diferenciada de
Casa-Grande 8l Senzala com relação a Sobrados e Mucambos. Se a obra
não tivera a difusão que esperava, era porque não era fácil de ler,
afirmação do autor que nos permite apreciar a reiterada preocupa
ção com a recepção de seus livros. Preocupação, esta, como já se
viu, antevista em outros prefácios e introduções...
Em segundo lugar, procurando uma sintonia com o tempo
histórico e a conjunturabrasileira desta3^ edição, GilbertoFreyre
reafirma sua linha guia de trabalho - através do estudo dos esti
los de residências, chegar à formação patriarcal da sociedade
brasileira mas afirma que este patriarcalismo é, em certa me
dida, democrático.
/?/
classista, de suas análises da história. Ou seja, a dominação mesti
ça dos senhores aristocratas permitira o intercurso racial e social.
Freyre reafirma, com isso, a pertinência de sua visão do passado.
Em terceiro lugar, Freyre aponta claramente as divergên
cias, citando o nome daqueles que têm outro viés de análise:
Caio Prado Jr., Astrogildo Pereira, Nelson Werneck Sodré, os
intérpretes marxistas da realidade brasileira, assim como Ray-
mundo Faoro, não-marxista, mas que minimizava o poder patriar
cal em face da presença do Estado na formação do país. Note
mos que, nesse caso, Freyre se confronta com a visão de dois
historiadores Caio Prado e Sodré, um militante - Astrogildo - e
um jurista, sociólogo e cientista político - Raymundo Faoro.
Em quarto lugar, Freyre define uma característica funda
mental para o comportamento do brasileiro: a rurbanidade, que
somaria aos valores agrários e telúricos, essenciais ou existen
ciais aqueles valores urbanos, capazes de "dar sentido mais am
plo à vida, à atividade e à cultura das populações do interior"
(Freyre, 1961, p. XIV). Nessa medida, a cidade - terreno de aná
lise do livro que prefacia - aparece como um ganho civilizató-
rio, que situava o Brasil em sintonia com a realidade mundial e
como que justificava a atualidade da sua republicação.
Por último, introduz-se o arrojo de uma antevisão do futu
ro: Gilberto Freyre declara a morte da Revolução Social dos mar
xistas, da luta de classes, da Revolução Industrial, do burguesismo
e do trabalhismo antiburguês e do próprio proletariado, reduzi
do drasticamente pela ocorrência de uma outra espécie de Re
volução: a da automatização, forma de realização de um mundo
inteiramente novo! Nessa nova ordem, haveria a volta à família,
à produção do lazer - pois os homens terão tempo de sobra
para isso - e à preocupação de construir uma arquitetura menos
moderna e mais brasileira... (Freyre, 1961, p. XV-XVI).
A condenação à Brasília, "antes escultura monumental que
arquitetura" (Freyre, 1961, p. XVII), é explícita, e nosso autor
garante um lugar para sua obra no futuro: ele, Gilberto Freyre,
já se preocupara desde há muito com uma cultura e civilização
/72
mais lúdica que bipolarizada por conflitos sociais, e voltada para
a definição e identificação de parâmetros nacionais de habitar.
Ou seja, Gilberto Freyre procura dotar a sua narrativa so
bre o passado nacional de uma conotação de perenidade para a
interpretação do Brasil. Aspira ser um clássico, pois. Quer sua
análise válida para além do momento da sua escritura, quer ga
rantir a certeza de uma recepção e quer inscrever sua narrativa
como autêntica,
/7<y
uma certa nacionalidade. Nessa medida, Gilberto Freyre assume
o papel de construtor de uma metamemória, que toma ou ocu
pa o lugar da história na construção da identidade nacional, fa
zendo com que a sua verdade sobre o Brasil - talvez, por que
não? - seja a do Brasil que as pessoas querem acreditar.
E, neste ponto, cabe se indagar: por que a escolha, para
este ensaio, de um título como "O cativeiro de Clio"?
Porque o que pretendemos, ao entrecruzar duas narrativas
que se empenham em presentificar o passado - a memória e a
história - estivemos, todo o tempo, a falar desta última.
Clio, prisioneira das armadilhas que criou para si mesma,
empenhada em contar a verdade daquilo que foi um dia, sem
jamais deixar de deparar-se com as aporicis de uma escrita que
busca reconhecimento, legitimidade, sempre no propósito de
aprisionar a memória, mas se vendo, de forma constante e reno
vada, surpreendida e enredada pela força do imaginário, da fic
ção, da credibilidade das informações, da relativização dos teste
munhos, das artimanhas da própria Memória, que se move por
princípios nem tão científicos assim.
Gilberto Freyre, sua obra e seus prefácios foram pretexto,
enfim, para que pudéssemos pensar a escrita da História, seu
enfrentamento com a Memória, a verdade e a ficção, tudo aqui
lo que, em última análise, compõe o cativeiro de Clio.
Referências
/7Í
"O que se diz no princípio":
uma leitura dos prefácios
dant/zv/ ^iiainliní S^xei/Hi/ ''PasconceioS'
//V/
te operacional, é sugestiva: "a necessidade do prefácio pertence
à Bildung'^ (Derrida, 1972, p. 17) e sua morada seria o intervalo
entre o conceito e a existência, o pensamento e o tempo. Assim,
mesmo se entendido como "discurso exterior ao conceito e à
coisa mesma, máquina privada de sentido e de vida", o prefácio
pertence à exposição do todo e é nele que o todo se quer expli
car. Seu desejo é tornar o texto legível, inteligível e para isso,
muitas vezes, ele se apresenta como um caminho que se abre e
se constrói. E ainda, de acordo com Derrida (1972, p. 52), a
"palavra do pai que assiste a e admira seu escrito", sendo o narci-
sismo sua lei, pois ali o autor ostenta, fala de si, dos obstáculos,
de seus sucessos e fracassos.
/77
sivas gerações jovens; e que, a despeito de quanto esforço se tem
feito para apresentá-lo como "superado", ou "ultrapassado", vem
dialogando com novos leitores, solidários no essencial com o que
foram suas, a princípio, escandalosas heresias sobre assuntos
humanos, em geral, e sobre homens, sociedades e cultura, em
grande parte mestiças, ou mistas, situadas nos trópicos - especial
mente, mas não exclusivamente, os brasileiros - em particular.-
/7<t'
se justificar ou esclarecer pontos que julgava obscuros na sua
argumentação. São, portanto, o produto de uma reflexão pos
terior ao ato mesmo da escrita.
/7.9
tos, as defesas, os pontos de vista e as discordâncias. Entre esses,
se colocariam Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Astro-
jildo Pereira, Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda,
com quem as divergências se deram, como sabemos, não só no
nível da orientação ideológica mas no próprio plano da inter
pretação da sociedade brasileira.
Não pretendo aqui discutir essas divergências ou privile
giar esses interlocutores explícitos (ou às vezes implícitos) de
Freyre. Interessa-me, ao contrário, indagar quem seria esse lei
tor a quem se dirige esse Gilberto Freyre que se explica, justifi
ca, esclarece. Esse leitor comum, não-especializado, imaginado,
que é também alvo da atenção do autor e a quem se prestam
esclarecimentos e a quem se oferecem explicações. A Freyre pa
rece não bastar que o leitor leia o corpo principal de sua obra.
Ele demonstra todo o tempo uma certa ansiedade, um de
sejo de se fazer compreendido, voltando sempre ao assunto, am-
pliando-o, suplementando-o, complementando-o, num incessan
te processo de reprodução da escrita ("a matéria transbordan-
te", nas suas própria palavras). Nos prefácios, anuncia sua meto
dologia de trabalho, aponta seus materiais, documentação e fon
tes de pesquisa (anúncios de jornais, arquivos de família, atas de
Câmaras, teses médicas, álbuns de retratos, etc.), comenta op
ções e caminhos, explica conceitos como "rurbanidade", enfati
za a centralidade da família na formação social do país, justifica
sua escolha dos estilos de habitação como emblemáticos das re
lações sociais entre brasileiros, ou antecipa, fazendo um exercí
cio de previsão do futuro, ao antever o advento de uma revolu
ção pela automatização.
A contribuição de Gilberto Freyre para o estudo do declí
nio de uma sociedade e cultura predominantemente agrária e
rural e do processo de urbanização e industrialização da vida
brasileira, simbolizadas na passagem da casa-grande rural para o
sobrado urbano, é inegável. A primazia que ele confere aos as
pectos materiais dessa cultura é inovadora e pioneira. Seus apor
tes não foram de pequena monta e Sobrados e Mucambos fala por
si mesmo. Daí a intrigante questão: por que tantos prefácios?
Por que tão longa introdução à segunda edição que, pós-fato
porque datada de 1949 e de 1961, se constitui numa verdadeira
introdução à obra? O ano de 1961, inclusive, parece ser de al
gum modo decisivo, pois em torno dele ficam girando quase
todos os textos: trata-se da data da terceira edição revista e talvez
por isso fique reaparecendo ao final de diversos textos, como se
eles girassem sempre em torno de um mesmo eixo temporal e
voltassem sempre a seu centro.
O que os prefácios evidenciam, na medida em que foram
escritos em momentos diversos da trajetória intelectual do soció
logo pernambucano e foram acompanhando as mudanças his
tóricas em curso no país, é que eles se apresentam como respos
tas ou tentativas de intervenção no debate que se travava em
cada quadra. Enquanto o prefácio à primeira edição se inscreve
no interior mesmo do período getulista, em 1961, quando Freyre
escreve seu prefácio à terceira edição, os tempos são outros, as
preocupações de outra ordem, e parece-lhe adequado e oportu
no propor, como contraposição à "revolução social à moda Mar
xista", "um mundo socialmente novo" criado a partir de uma
possível revolução pela automação que poria fim aos antagonis
mos entre capital e trabalho, libertando os homens e estabele
cendo novas formas de relações entre eles. Publicado em 1936,
num período conturbado de reordenação das forças políticas
do país. Sobrados eMucambos constituía a segunda etapa do pro
jeto do sociólogo de explicar a formação da sociedade brasileira
e fornecer uma interpretação do Brasil, iniciado com Casa-Gran-
de& Senzala (1933) e continuado com Ordem e Progresso (1959).
Somava-se, desse modo, ao esforço, presente nas décadas de 1920
e 1930, de alguns intelectuais interessados em explicar o país
que surgia da dissolução dos valores e hábitos rurais e das mu
danças provocadas pela urbanização.
Nesse seu primeiro prefácio, Freyre trata, portanto, de res
saltar a passagem do velho para o novo Brasil, (re)colocando
em pauta a centralidade da casa e da família nesse processo de
alteração da paisagem social e indo buscar suas origens e raízes
no século XIX. Se o livro é o resultado de um olhar que se lança
/<\v
sobre o passado, procurando compreender as mudanças que se
operaram na sociedade brasileira, o primeiro prefácio é uma
espécie de resumo do argumento principal, em que se enfati
zam os momentos e espaços dessa passagem: do mundo rural
para o mundo urbano, da casa para a rua, do privado para o
público. Freyre quer chamar a atenção do leitor, explicitar seu
assunto, suas fontes e, lugar-comum dos prefácios, anunciar suas
dívidas para com o trabalho de seus antecessores.
O prefácio à segunda edição, datado de março de 1949,
pouco acrescenta ao primeiro, além do anúncio dos novos capí
tulos, da revisão do texto e dos agradecimentos de praxe. De
novo, há o anúncio da intenção de dar continuidade ao projeto,
com OrdemeProgresso eJazigos e Covas (nunca publicado) e, que é
o que mais interessa aqui, a admissão de um ponto de vista fran
camente inter ou multidisciplinar que caracteriza o método de
trabalho do sociólogo, permitindo-lhe o trânsito entre a histó
ria, a psicologia, a ecologia, a antropologia. E à introdução des
sa segunda edição que Freyre dedica toda a sua atenção e sua
importância, de certo modo, confirma as palavras de Hegel so
bre seus liames mais estreitos com a lógica da obra. Mas, sobre
ela, mais se falará mais adiante.
Antes, gostaria de comentar o prefácio de 1961, na sua in-
tersecção com seu presente histórico. Sem grandes novidades,
pois ali diz mais do mesmo, o prefácio, na verdade, repisa argu
mentos, mas introduz aquela idéia da revolução pela automa
ção, que mencionei antes, e o leitor não pode deixar de perce
ber o surgimento e a presença de um novo personagem na tra
ma das relações sociais: o operário, o trabalhador, o proletaria
do. Já não se trata, portanto, de discutir apenas os conteúdos do
livro, de esclarecer pontos quiçá obscuros ou mal-compreendi-
dos, mas de entabular uma conversa com o momento presente.
Esse diálogo passa, ao que tudo indica, pela convicção que atra
vessou os anos 50 de que os ventos da história sopravam em dire
ção à esquerda, pela vitória da Revolução Cubana, em 1959, e
pelos acontecimentos em curso no país, que, em outubro de
1960, havia elegido Jânio e Jango, uma esdrúxula combinação
de populismo e o que se acreditava ser a "encarnaçâo da Repú
blica sindicalista". Não deixa de ser uma resposta aos aconteci
mentos contemporâneos à escrita, o que sugere que os prefá
cios operam com isso uma atualização contínua da discussão e
dos conteúdos do livro.
/iWt
compreensivamente nacional". Opera, assim, por acréscimo às
idéias fundamentais do livro, desenvolvidas nos doze capítulos
que o compõem,"^ ligando-se organicamente a elas. Dessa forma,
são retomados e destacados temas que serão discutidos em pro
fundidade em cada um desses capítulos, como a confirmar essa
ligação orgânica: a situação das mulheres, relação entre pais e
filhos, bacharéis, mulatos, entre outros.
O prefácio tem, entre seus atributos, o de autorização de
um discurso, de uma fala. Se para o leitor comum ele funciona
como uma voz de autoridade, quando eles se multiplicam, como
é o caso dos de Gilberto Freyre, assumem também um caráter
polêmico, pois têm, interpostos, entre o autor e seus leitores,
seja a crítica como instituição, seja a categoria dos críticos, com
quem o autor entra em confronto, mesmo que sutil, implícito
ou indireto. Esses parecem ser, em última instância, os verdadei
ros alvos dessa profusão de suplementos.
Na introdução ã segunda edição, Freyre, sem dar nome aos
"censores ofendidos", deixa a sutileza de lado ao apresentar uma
fieira de preconceitos ("negrofilia", "lusofilia", "anti-Marxismo",
"burguesismo", etc.) de que foi acusado. Ao encerrar-se dessa
maneira uma das mais longas discussões de seus propósitos e
fundamentos, é difícil deixar de pensar que, no seu conjunto,
todos esses pré-textos são, no fundo, uma arma de que se vale
Freyre para fazer prevalecer seu ponto de vista.
Em seu Prefácio aos Prefácios, Gilberto Freyre descreve a si
mesmo como um "escritor literário" e externa seu inconformis-
/<iv
mo com "certos críticos brasileiros dominados pelo purismo be-"
letrístico" que, segundo ele, procuraram enxotá-lo da literatura.
Com isso, reivindica para si um lugar nas chamadas "belas-le-
tras". Ali, assim define a figura do prefaciador, estabelecendo
algumas diferenças entre esse e o escritor:
Referências
/<iV>
LEMAIRE, Ria. Prefácios de Iracema e Casa-Grande 8c Senzala. In:
AGUIAR, Flávio et al. (Org.). Gêneros defronteira: cruzamentos entre o
histórico e o literário. São Paulo: Xamâ, 1997. p. 127-138.
MITERRAND, Henri. La préface etses lois: avant-propos romantiques.
In: . Le discours du roman. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de
France, 1986. p. 21- 34.
/(Ví5'
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A construção cosmográfica
de uma paisagem social
f/âccfues'
O ensaio
/<)ií
açúcar aparece principalmente como agente da História. Os.
homens do Nordeste foram modelados pela cana, assim como
ela se desenvolveu conforme as três figuras sócio-históricas: a
monocultura, a escravidão e o latifúndio. Poder-se-ia dizer que
o leitor está convidado a assistir a uma cosmogonia. A origem
deste mundo que nasce das características da terra, deste
rnassapê tão fértil para a cana, desta argila preta do Recônca
vo baiano e do Maranhão, ancora-se nas técnicas culturais li
gadas à escravidão e nas relações sociais e nos comportamen
tos pessoais que vão modelando os homens no espaço fecha
do do latifúndio.
/(jí ——
dade que se impõe ao homem e à história, a cana vira, sob a escrita- .
ra de Freyre, personagem, e aindamais, elaviraum herói que Freyre
descreve com as palavras adequadas para descrever os atores políti
cos; "cana imperial", cana"todo-poderosa" (Freyre, 1961, p. 47).
Porém, essa destruição faz com que novos embelezamentos
apareçam, também dignos de interesse: a capela, a Casa-Grande, o
bote à vela, o cavalo de raça, paixões todas dos donos de engenho.
Eles dão um toque estético novo à paisagem fabricada pela cana.
Mas convém não esquecer, por outro lado, que toda essa seleção
regional de valores humanos, de valores de cultura, se fez dentro
de condições econômicas e sociais que deformaram, ou pelo me
nos afetaram esses mesmos valores num sentido único e mórbido
a monocultura latifundiária e escravocrata. (Freyre, 1961, p. 162)
/()ã
Se bem que seja legítimo referir-se aqui à filosofia hegeliana,
isso se dá porque, apesar da seriedade crítica que Freyre está mani
festando na sua análise, ele não se afasta de um relativismo certo,
•segundo o qual o real é o verdadeiro. Por isso, ele não condena
esse mundo, mesmo quando ele corre, por si só, para a catástrofe.
O romance da catástrofe articula-se, no entanto, de umjei-
to diferente daquele que organiza a resolução das alternativas
contrastadas dos primeiros capítulos do livro. Na sua conclusão,
Freyre deixa aparecer um mecanismo que vai substituir aquele
utilizado na descrição do universo fechado do Nordeste.
Após ter nomeado todos os heróis locais do mundo dos
canaviais, heróis do conformismo como da rebelião, membros
todos da aristocracia local do engenho, Gilberto Freyre se dis
tancia de repente para ganhar um ponto de vista mais amplo a
partir do qual ele terá a possibilidade de pôr a ênfase no rol
histórico quejogará as três culturas estrangeiras que são ajudia,
a inglesa e a francesa.
Porém, para demonstrar a possibilidade mesma de tal in
fluência, o próprio Freyre devia afastar-se do horizonte limitado
dos canaviais para deixar entrar na paisagem nordestina os por
tos e o mundo europeu, para deixar entrar na imagem, os na
vios e o Atlântico esquecidos, ou, melhor dito, fora do padrão. E
a partir dessa nova e mais ampla perspectiva é que poderá cons
truir-se uma nova dialética e uma oposição pertinente entre o
porto e o interior das terras, entre o comércio do açúcar e a
produção da cana. Essa nova dialética ameaça, no entanto a coe
são do livro, razão pela qual Freyre apenas a indica levemente
nas últimas linhas do livro.
/97
sagem: "é principalmente como ensaio quase impressionista que
NordesteáevG ser lido. Que NordesteáQVQ ser aceito."
É preciso náo acreditar quea palavra "impressionista" pos
sa ser colocada nesse contexto como uma desculpa, de modo
sutíl e modesto de relativizar a ambição científica do livro. Pelo
contrário. Gilberto Freyre cuidadosamente precisa:
Referências
^oo
A paisagem social
como imaginário de sentido
Sanc/ra^fa/i^ S^saoenfo
'J06'
tram uma certa correspondência com as considerações de Paul
Ricoeur (1998) a respeito da arquitetura e da narratividade.
Para esse autor, a arquitetura está para o espaço tal como a
narrativa está para o tempo: edificar, construir uma materialidade
em um determinado espaço é como contar, articular uma intriga
no tempo. Em ambos, podem ser surpreendidas as operações de
recriação, do espaço e do tempo, de uma mise en intrigue, da con
figuração de uma inteligibilidade e da realização de uma intertex-
tualidade: figurações de tempo e espaço podem ser postas em
confronto, compondo analogias, composições e oposições.
O sobrado é, pois, a materialidade central'desta nova paisa
gem social que se impõe nas cidades brasileiras. No tocante à
forma da construção, a verticalidade do sobrado indica a ten
dência das construções urbanas: o que se perde em superfície
no solo, se ganha em altura, com prédios de dois a quatro anda
res, em geral, chegando, no Recife, a atingirem cinco ou seis.
Mas se, nos seus primórdios pernambucanos, o surgimento
do sobrado foi saudado pelo autor como ícone de pioneirismo
urbano, a sua difusão nas cidades brasileiras implicou mais em
perdas do que ganhos. Tais perdas se situaram, sobretudo, no
que dizia respeito à adequação do homem à natureza.
Mesmo que tenha sido, enquanto construção em meio ur
bano, a saída possível - o crescimento para cima —o sobrado
marcara um afastamento do homem da natureza e uma ruptura
de equilíbrio.
Houvera uma quebra de harmonia ecológica, com eviden
te distanciamento entre a habitação e o meio. Escuro, mal venti
lado, fechado para a rua, o sobrado não era adaptado a um meio
tropical. Nesse sentido, diante do alto e magro sobrado, ou mes
mo das casas assobradadas, de meio andar, a casa-grande de en
genho, espalhada, baixa, com as suas varandas na proximidade
da vegetação, saía ganhando em qualidade de vida.
A casa-grande seria aquela que colocaria o homem em me
lhor sintonia com seu meio ambiente, seria, enfim, uma cons-
207
trução mais autêntica, por próxima da natureza. É possível afir
mar, nesse sentido, que flui, do texto do autor, uma espécie de
nostalgia ou saudosismo do engenho... O altaneiro sobrado,
como elemento central a compor a paisagem urbana brasileira,
consagrava o mau viver.
Por outro lado, o sobrado das cidades, degradado, degenera
em cortiço, esta habitação coletiva popular que se tornou um íco
ne das más condições de vida das camadas trabalhadoras urbanas.
Estas habitam também, se melhor posicionadas, social e economi
camente, as casas deporia ejanela, também quase tão deploráveis
em termos de higiene e bem-estar quanto os cortiços.
Diante dos ricos dos sobrados ou dos populares habitantes
dos cortiços e das casas modestas, Gilberto Freyre defende a adap
tação ecológica presente nos mocambos. Os mocambos são, por
certo, o habitai dos desfavorecidos, situados na periferia dos cen
tros urbanos do Nordeste, mas constituem, segundo Freyre, for
mas de casas integradas ao meio ambiente, abertas, arejadas, sen
do empregado na sua construção o savoir-faire dos indígenas e
dos africanos... Elas seriam equilibradas e perfeitamente inte
gradas às condições tropicais da terra, como um habitai à parte,
preservado das más condições de vida urbana.
Tem-se, na visão freyriana, através desses elementos do es
paço construído, a constituição de uma paisagem social urbana
opressora, que compõe o quadro da chamada cidade colonial.
Mesmo que essa paisagem se realize fora do período colonial
propriamente dito —ela tem por centro a cidade que seria ana-
tematizada no final do século XIX.
SOtJ
emergência das cidades como que a inverter o processo históri
co em curso. O patriarcalismo urbaniza-se, passando as elites a
viverem na urbe, o que implica uma transição de espacialidade.
A cidade é o seu novo território de poder e, da casa-grande
ao sobrado ou à casa assobradada, fica marcado, sem dúvida,
um recuo com relação ao rural. Mas a alteração da paisagem
social proporcionada pela emergência da cidade vai mais longe.
Mesmo que a primeira batalha já se apresente como uma parti
da ganha —a ocupação, pelas elites, de um novo espaço -, a urbe
irá, com o tempo, subordinar o rur.
A segunda frente de conflito e de alteração se dará no
embate da casa com a rua, ou seja, entre espaços construídos
e ocupados, ou ainda entre frações de paisagem social que
alteram posições e sentidos. Gilberto Freyre afirmara que, en
quanto a aristocracia patriarcal rural se urbanizava, a rua, in
versamente, aristocratizava-se: de espaço dos pobres, dos es
cravos e moleques, passara a ser freqüentada pelos homens
de bem e pelas famílias.
Há, pois, uma nova sociabilidade que transforma a vida,
com novas práticas e também novos atores. O hábito de sair à
rua, antes vedado absolutamente às mulheres e mesmo evitado
pelos homens, por princípio de distinção, preguiça ou calor, al-
tera-se, pois a rua é o espaço do negócio, da festa, da novidade,
de uma outra forma de relacionamento social.
3/o
doutores e bacharéis, que os senhores de engenho produziam
homens de cidade.
•>//
Apesar do processo em curso compor-se desta forma ambi
valente, Gilberto Freyre mais uma vez deixa passar uma espécie
de nostalgia do engenho...
Sim, a cidade potencializa os conflitos, mas parece estar,
implícita, a idéia de que a casa-grande compunha uma certa har
monia com a senzala, postura esta que seria sobejamente critica
da nos meios acadêmicos. Por exemplo, Freyre chega a afirmar
que o escravo de engenho — mas também o do sobrado - era
bem nutrido, muito mais que operários ou camponeses euro
peus da sua época, fazendo suas as apreciações de alguns visitan
tes estrangeiros ao Brasil...
E nessa dimensão das sociabilidades renovadas, que se exte-
rioriza este caráter sui generis da paisagem social brasileira, com
pondo o traço que individualiza a análise freyriana; a mestiçagem.
Gilberto Freyre faz da cidade o palco de exibição, ou o
lócus privilegiado para a realização desta faceta identitária do
Brasil: a idéia da mestiçagem não só como valor positivo, Já
anunciado em Casa-Grande & Senzala, mas como elemento de
reconhecimento para a individualidade brasileira e de produ
ção de um novo. Essa sociabilidade mestiça compõe algo dis
tinto dos seus elementos formadores; ela não é somente dife
rente como é original Ao longo de toda sua reflexão sobre a
paisagem social brasileira, Freyre está a dizer, continuamente,
que ali se encontra uma nova maneira de ser, uma nova forma
sensível de reconhecimento.
2
endossarem valores e atitudes de ser, visando o reconhecimento
de um parecer sancionado. Na transição do regime patriarcal
da casa-grande para o sobrado, ou do patriarcalismo do enge
nho para o semipatriarcalismo,já burguês,do sobrado, Gilberto
Freyre procura mostrar a suigeneris combinação das novas sensi
bilidades com asantigas.A casa-grandeinvade o sobrado com os
seus valores, e toda a mudança que se processa arrasta consigo
os velhos fantasmas das épocas passadas.
Uma das sensibilidades que contribuem para delinear a es
pecificidade desta "maneira brasileira de ser" nas novas condi
ções históricas é a atitude com relação ao poder.
Em uma certa medida, quer parecer que a presença do Rei
no Brasil, a partir da vinda da Família Real, dera margem à pro
dução de uma atitude ambivalente, de sacralização e dessacrali-
zação frente ao poder.
Ora, a proximidade da figura real, a estruturação de uma
Corte no país, a necessidade de composição de uma aristocracia
não só de fato, mas de direito, ligando a nobreza ao trono, são
fatores todos que, por si só, desfizeram o glamourque a distância
conferia à idéia do Reino e do Rei. Depois de D.João VI, o Rei
no era o Brasil...
1' /<y
brancos e subalternos maculava a auto-imagem... Com isso, se
acentua um traço identitário que aponta para sensibilidades
finas: era mais importante pareceráo que ser.,. Esse tipo de sen
sibilidade atravessava a sociedade de ponta a ponta, chegando
até os negros escravos que, quando alforriados, buscavam logo
usar chapéu e sapatos, indicadores da condição de ser branco
e livre!
2/Õ
culina do patriarcalismo as desejava e as fazia pálidas e franzi
nas virgens ou gordas matronas, geratrizes de numerosa des
cendência.
2/7
E, nesse ponto, parece que o conceito operacional da pai
sagem cumpre o seu destino: o texto se torna visual, a narrativa
um espetáculo, a descrição um panorama. A paisagem social do
Brasil se oferece mesmo como paisagem, aberta à fruição do lei
tor. Seria talvez, mesmo, este o objetivo do autor...
Referências
OO/
cara. As paredes divisórias eram de madeira e forradas de papel
nacional, (Azevedo [1976], p. 54).
327
Ias em trajes íntimos. Embora Freyre afirme que a vida na cidade
alargou a paisagem social para as mulheres, esse não parece ter
sido o caso das duas Miranda, pois Botafogo apresenta-se como
uma espécie de exílio a que é submetida Esteia, flagrada em adul
tério com um caixeiro da casa comercial do marido, enquanto
Zulmira vive vida reclusa, apenas interrompida pelos passeios
com a família e o agora pretendente à Rua do Ouvidor.
Os cortiços podem ter representado, segundo dados de Gil
berto Freyre, 3,96% do percentual de moradias do Rio de Janei
ro no ano de 1888, com uma população de 11,72% do total de
habitantes da cidade naquele ano. Como ele mesmo afirma, de
pois dessa data, muito sobrado velho, pertencente outrora a fi
dalgos, se degradou, transformando-se em habitação coletiva. O
que se procurou mostrar, nesse trabalho, é que a degradação do
sobrado urbano atingiu outros níveis, menos perceptíveis, por
que acobertados por vida familiar e por atividades econômicas
apenas aparentemente dentro dos parâmetros de normalidade.
O que se viu é que, do lado de dentro das janelas que sepa
ram o sobrado e a rua, relações aviltadas pela cobiça e atravessa
das pela acumulação do capital podem ser devassadas para reve
lar o real processo de formação de uma burguesia cúpida e des
trutiva, que não hesitou em conciliar interesses, em explorar
escravos como Bertoleza ou os pobres como os moradores do
cortiço, em furtar, enganar e subornar, tudo em nome e em prol
de sua ascensão. Apesar dos preceitos naturalistas e das teses
deterministas de seu autor, O Cortiço consegue criar um quadro
muito contundente desses processos, fazendo do cortiço e do
sobrado, espaços privilegiados por Gilberto Freyre, verdadeiros
cronotopos, em que se cruzam espaço e tempo: espaço social
que se traduz em tempo histórico, a nos dizer algo sobre nosso
país e suas longa história de injustiças e iniqüidades.
Referências
Bibliografia suplementar
CÂNDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In: . O discurso e a
cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 123-152.
BRESCIANI, Maria Stella. A casa em Gilberto Freyre: síntese do ser
brasileiro? In: CHIAPPINI, Lígia; BRESCIANI, Maria Stella (Org.). Li
teratura e cultura no Brasil: identidades e fronteiras. São Paulo: Cortez,
2002. p. 39-51.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Rio de Janeiro: uma cidade no espelho
(1890-1910). In: . O imaginário da cidade: visões literárias do ur
bano (Paris - Rio de Janeiro - Porto Alegre). Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 1999. p. 157-242.
VASSALO, Lígia. O cortiço e a cidade do Rio de Janeiro. Literatura e
Cidtura, Rio de Janeiro, ano 2, 2002. Disponível em: <\v\v\v.letras.ufij.br/
litcult>.
Os andares do sobrado: de um Brasil a outro
óanc//'a/^ãta/i^íBesaoento
â.-ií
como a lhe dar foros de nobreza, dentro de uma certa estédca do
poder; com as paredes externas pintadas de cores vivas, em espe
cial o vermelho sangue-de-boi, e com peças internas em cujas pa
redes se pintavam paisagens, passarinhos e flores.
A extrema verticalidade da construção, como no citado caso
do Recife, fazia com que, quando a moradia e os negócios tives
sem lugar no mesmo prédio, o andar térreo do mesmo fosse
ocupado pelos armazéns, o andar de cima pelo escritório, se
guindo-se o terceiro e o quarto piso destinados para a sala de
visitas e para os quartos de dormir, o quinto andar para a sala de
jantar e o sexto para a cozinha, tendo ainda no alto um mirante
ou água-furtada, de onde se apreciava a vista da cidade e o mar.
Tais sobrados, descritos na obra de Gilberto Freyre, são tam
bém apresentados em fotos ou bicos-de-pena, fornecendo imagens
ilustrativasdo texto, retiradas de exemplos tomados pelo autor, prin
cipalmente no Recife, em Salvador ou no Rio de Janeiro.
Esse plano arquitetural, diz Freyre (1961, p. 199), obedecia às
exigências sociais da cultura, da família, da moral, da economia.
Mesmo com porta ejanela, e mesmo varanda e balcão para a rua, o
sobrado é um espaço construído para guardar: valores, mulheres,
dinheiro e jóias. Ele é cofre ou caixa-forte para entesourar os bens
da família patriarcal que se mudou do campo para a cidade.
Não é por acaso, pois, que em conferência pronunciada no
III Congresso Sul Rio-Grandense de História e Geografia, em
Porto Alegre, Gilberto Freyre (1946) tenha se referido ao sobra
do como uma espécie de fortaleza, sociológica e psicológica, para
resguardar a classe e a raça oficialmente branca...
No extremo sul do país, Gilberto Freyre confirmaria esta
função recorrente da habitação patriarcal por observação dire
ta, nas viagens em que empreendera pelo Estado junto com José
Lins do Rego e acompanhado pelas figuras locais de Viana Moog
e Dante de Laytano.
Ao prefaciar a obra de Dante de Laytano, o Almanaque do
Rio Pardo, publicada em 1946, Freyre ressaltaria que, nessa cida-
í>,y,í
de de colonização lusa, o sobrado doméstico era o produto da
civilização européia no meio americano, berço de "homens e
famílias de atuação notável na vida moral, intelectual, política,
do Estado e do Brasil inteiro":
^.y/5'
Não é por acaso que o sobrado de sua obra é construído por
Aguinaldo Silva, um pernambucano que viera dar com os costa
dos na sulina Santa Fé, com passado suspeito, mas que, no comér
cio do gado, enriquecera, tornando-se criador no Sul e apossan-
do-se de propriedades de pequenos agricultores locais, a quem
emprestava dinheiro sob hipoteca dos terrenos. Foi assim que Pe
dro Terra tivera sua propriedade hipotecada e perdida para o agio
ta Aguinaldo, e fora neste terreno, na esquina da praça, em frente
à igreja matriz, que o pernambucano erguera o sobrado.
A nova e imponente habitação viria contrastar com as de
mais residências da pequena cidade, e mesmo com a sobriedade
do casarão de pedra dos Amarais, chefes políticos de Santa Fé.
Ele representava, pois, um padrão de refinamento senhorial até
então ausente na cidade. Descrito no Almanaque de Santa Fé, de
1853, como uma maravilha arquitetônica (Veríssimo, 1996, p. 330,
vol. II), com 35 braças de frente e uma quadra completa de en
torno, era comparado às melhores residências de Porto Alegre,
Rio Pardo ou da Corte...
•'.y/
tal sacada ou balcão, com suas grades torneadas, a madeira de
lei da alta porta de entrada no piso inferior, ladeada por três
janelas de cada lado, o portão de ferro foijado, tendo a cada
lado colunas de azulejo português, branco e amarelo, encima
das por vasos de pedras.
A casa ainda dava outras mostras do requinte nas vidraças,
tendo nas portas internas bandeirolas com vidros amarelos, verdes
e vermelhos. Seriam esses vidros também compostos em arabescos,
como aqueles fotografados por Gilberto Freyre, quando de sua pas
sagem no Rio Grande, aformoseando asjanelas dos sobrados no
Sul? A descrição do romancista Erico Veríssimo acompanha a do
sociólogo Gilberto Freyre, mostrando as correspondências não só
da forma arquitetônica, mas dos significados e de sua função.
Casa muito ampla, com dezoito peças e os pesados móveis
de jacarandá da sala, que haviam pertencido a uma casa senho-
rial de Recife, era ainda cercada por muro alto e espesso.
Em suma, o sobrado fora erguido como que para atestar
que a cidade crescera, mas também para instaurar uma linha
gem. Aguinaldo, o pernambucano que edificara o sobrado no
molde daqueles do Recife, visarafundar tanto uma origem como
uma descendência, mas sua residência viria a tornar-se o bastião
dos Terra-Cambará, quando do casamento de Bolívar com Lu
zia, sua neta adotada.
Com sua arquitetura expressiva de um poder consolidado
e mesmo de um requinte na construção, o sobrado comparece
na narrativa de Veríssimo como o palco privilegiado dos aconte
cimentos da trama romanesca. Na seqüência de capítulos que,
intercalados aos demais, acompanham a história narrada em O
Continente, primeira parte da trilogia d 'O Tempo e o Vento e que se
intitulam sempre como "O Sobrado", este é comparado por Eri
co a uma fortaleza (Veríssimo, 1996, p. 2, vol. I), imagem, como
se viu, já apontada por Freyre.
Na obra de Erico, essa imagem ganha força pela situação
específica em que têm lugar os episódios narrados: o sobrado,
então em poder dos Terra- Cambará, republicanos, é sitiado pe-
S.iiV
los maragatos durante a revolução federalista. Fortaleza protegi
da pelos seus altos muros, o sobrado domina a praça e as ruas ao
redor dela e é do seu mirante ou água-furtada que se estabelece
a vigilância sobre os passos do inimigo.
O sobrado é bastião em praça de guerra, a defender ideais,
valores, a família. Para Licurgo Cambará, senhor do sobrado, a sua
defesa envolve muito mais do que o patrimônio ou os membros da
família e os correligionários: Licurgo defende seu mundo e suas
crenças, seu presente, seu passado e seu futuro. E baseado nesses
princípios que, reiteradamente, recusa a paz ou os favores do ini
migo, sacrificando os familiares e companheiros antes de aceitar
um favor dos opositores ou a render-se. Refletia Licurgo diante do
sítio imposto pelos inimigos, mas, sobretudo, para tranqüilizar a
sua consciência: "Existe na vida de um homem de honra duas coi
sas sagradas que ele deve fazer respeitar às custas de todos os sacri
fícios: a cara e a casa." (Veríssimo, 1996, p. 469, vol. II).
O sobrado era, pois, fortaleza da defesa da honra de uma
estirpe, que por sua vez representava todo um mundo estrutura
do em termo de valores, que no Sul passavam pela guerra e pela
defesa da terra, das virtudes militares e viris, do direito de mando.
iíJO
A tendência dos primeiros sobrados, diz Gilberto Freyre,
seria o fechamento para a rua e a abertura das casas para os
fundos, para o espaço dos quintais e jardins, ao resguardo dos
olhares indiscretos e das presenças importunas. Mas a força que
impelia do dentro para fora, obra, sobretudo, das mulheres, ta
refa de persistência, tenacidade, obstinação e conquistas mili
métricas, acabou vencendo.
A varanda, o balcão, a sacada e, sobretudo, a Janela com
vidraça, impuseram-se, dando a ver o mundo lá fora como locais
privilegiados de observação sobre o mundo citadino, desde o
sobrado-fortaleza.
2//
ção do mundo senhorial, fazendo que este persista, mas já
modificado.
Referências
317
FREYRE, Gilberto. Prefácio. IN: LAYTANO, Dante de. Guia histórico de
Rio Pardo: cidade tradicional do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio Pardo:
Prefeitura Municipal, 1979.
. Sobrados e mucambos. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.
Tomos 1 e 11.
'J /(V
O sobrado, um artefato narrativo
^iccfaeò' ^en/iarc/t
(T/
Legítima defesa
Nos primeiros tempos da migração que, por etapas, apro
ximou as duas famílias patriarcais da cidade, a arquitetura tem
ainda, essencialmente, a função de proteger aqueles que aco
lhe. É próprio dessa arquitetura, também, separar, claramente,
as funções sociais e domésticas das diferentes pessoas. Na casa
patriarcal, há as pessoas e há o pessoal, e os dois não devem se
misturar senão quando o serviço assim o exigir. O sobrado tem
igualmente por missão, além de suas características arquitetu-
rais, manter uma distância entre a cidade e a família.
A necessidade dessa separação, sobre a qual insiste Gilberto
Freyre, está diretamente ligada à coesão que procura preservar a
família tradicional. Em torno dela, a casa, o sobrado, forma uma
espécie de muralha protetora. Sob esse aspecto, a família se defi
ne como um "clã", e seus valores estão destinados a, constante
mente, reforçar sua integridade e sua interioridade. Ora, a cidade
que se desenvolve no recinto do sobrado, o qual acabará por se
tornar um tipo arquitetural propriamente urbano, contém nela
mesma um risco de dissolução dessa coerência familiar.
Veríssimo coloca em cena, e muito bem, a maneira pela
qual a circulação das idéias vai de par com aquela das pessoas,
como a praça pública e a rua que se tornam não somente espa
ços de circulação, mas também de discussão, de manifestação
e de troca. Freyre não se detém sobre esse ponto: a rua é a
forma moderna da urbanidade na medida em que favorece a
circulação das imagens e das modas. A versão romanesca da
análise dos últimos alentos da sociedade feudal patriarcal, como
a chama Freyre, toma então a forma de uma transformação do
sobrado em fortaleza. Pois o momento ao qual se detém Veríssi
mo é aquele de um desequilíbrio histórico, o qual obriga as
personagens à crispação ética. A desordem que os atinge não
pode conduzi-los senão a um frio retorno aos valores e com
portamentos do passado.
O uso que é feito do sobrado nas primeiras páginas d' O
Continente mosXX2i bem essa retomada. Com efeito, nesse roman
ce, a verdadeira fortaleza é a casa habitada pelos Amaral, caci
ques locais em que a construção de pedra toma, sob a pena de
Veríssimo, uma aparência de castelo fortificado. O sobrado que
ocuparão os Terra-Cambará a ele se opõe como a manifestação
arquitetural e, portanto social, da modernidade. Quando Agui-
naldo constrói o primeiro sobrado de Santa Fé, cada qual sente
muito bem que um vento novo está prestes a soprar sobre a cida
de, que costumes e idéias novas, que não vão demorar a se opor
àquelas defendidas pelos Amaral, vão penetrar na cidade. Além
disso, poder-se-ia dizer que esse é o momento em que Santa Fé
deixa de ser vila para se tornar uma pequena cidade. Gilberto
Freyre insiste sobre esta posição do sobrado entre ruralismo pa
triarcal e urbanidade moderna e republicana.
Os enfrentamentos entre culturas opostas, que constitui
rão o motor dinâmico da narrativa de Veríssimo, farão com que
os herdeiros da velha linhagem dos Terra-Cambará, os quais se
tornarão por casamento os proprietários do sobrado, serão obri
gados a dele fazer um uso que não nega essa modernidade. Eles
a transformarão em fortaleza. Essa mudança retrógrada é uma
derrota para a família Cambará, um golpe da história.
No fim desse episódio, o sobrado torna-se o sepulcro de um
tempo e de uma tradição, mortos pela evolução histórica. Aí será
enterrada a filha da família, vítima ainda criança, não tendo, em
conseqüência, ainda voz no capítulo, infância sacrificada em um
mundo dominado pelos homens de guerra. Essa sorte fúnebre
está, sem dúvida, ligada à morte de Luzia, ela também nascida
muito cedo mulher moderna em uma história que não está se
não em vias de abalar os antigos valores machistas e belicosos.
No sobrado transformado em fortaleza, toda ação está ainda do
lado dos homens e das armas, as mulheres não podem senão
parir e morrer, prolongar ainda a única função de reprodução
que lhes é deixada por uma cultura masculina que tem dificul
dade para lhes deixar outros campos de expressão.
Essa mesma construção, portanto, já recebeu duas funções
distintas: quando Aguinaldo o construiu, ele assinala o empre
endimento de uma nova geração de homens poderosos trazidos
pelo dinheiro que lhes dá os meios de se apropriar da terra das
antigas famílias de colonos. O motivo arquitetural de origem
urbana vem concretizar a vitória econômica de um novo tipo de
proprietário, desligado das tradições rurais e movido pelos valo
res modernos da cidade e do comércio.
Introdução à urbanidade
A residência do Doutor Rodrigo Cambará, totalmente opos
ta à fortaleza que defendeu seu pai, está aberta a todos os ventos
da sociedade. Primeiro, enquanto médico, o Doutor é acessível
às diferentes camadas da população. Ele fez disso uma ética e
um modo de vida. E a partir daí que ele elabora o seu programa
político e o sobrado se torna um espaço onde se cruzam as opi
niões, onde a imprensa é pensada, onde a política se elabora. As
idéias que vêm de longe, tal como aquelas que refletem as situa
ções mais próximas, aí encontram um espaço acolhedor para se
confrontar. O bom Doutor Rodrigo garante acolhida às idéias
européias, às maneiras da capital, à ciência universal.
A narrativa insiste, daqui por diante, sobre as aberturas pe
las quais entram e se trocam os olhares e, logo, as idéias.
Do ponto de vista da análise desta função de mediação que
nossos dois autores reconhecem ao sobrado, o mundo feminino
que aí habita goza de um papel especial. Se o mundo da impren
sa e do debate político envolve principalmente os machos, o
mundo feminino, ao qual Freyre está particularmente atento,
manifesta as diferentes formas de curiosidade e de abertura que
concernem à pessoa privada, os comportamentos psicológicos e
o funcionamento da família.
Como forma arquitetural, o sobrado se caracteriza por suas
múltiplas aberturas. Nisso ele oferece possibilidades infinitas
de expressão ao jogo das entradas e das saídas, mas também, e
mais simbolicamente, ao jogo dos olhares. Tradicionalmente
feminino no país dos leques, o comércio dos olhares se desen
volve com as janelas, as gelosias, as cortinas, os balcões e as
varandas, todas estruturas de mediação entre o dentro e o fora.
Em torno destes artifícios se reencontram as senhoras e as mo
ças, da sociedade e mundanas, que vão desempenhar um pa
pel essencial na formação dos jovens bacharéis de Recife e da
capital. Freyre é prolixo sobre essas aventuras do sexo das quais
ele precisa sempre que elas não são por assim dizer, nada mais
que a introdução ou o vestíbulo da educação mais geral às
maneiras, à civilização mundana e aos costumes. Esta função
pedagógica da educação sentimental e sexual dos jovens em
uma sociedade muito rígida era um dos principais canais por
meio dos quais penetravam as idéias que vinham da Europa.
Nessa pedagogia das maneiras, aquelas chamadas de "france
sas", como, por exemplo, Madame Susana, cocottes de alto vôo,
podem, legitimamente, pretender ocupar um lugar na história
da cultura brasileira.
[...] e quanto às francesas - além de nem sempre francesas -
como as do célebre Alcazarúo Rio de Janeiro, ou como as da Rua
do Ouvidor que, atrizes, cantoras, modistas, caixeiras de lojas ele
gantes, também se afirmaram às vezes naqueles decênios, em sua
qualidade de cocottes, mestras de civilidade, de polidez e de refi
namento de muito brasileiro ainda rústico, a despeito da oura-
ma no banco ou do anel de bacharel ou de doutor no dedo.
Uma destas cocottes íoi a Susana. (Freyre, 1959, p. 92)
Referências
''19
COS, mouros, orientais), a química do processo civilizatório pro
duz uma cultura nova original, também miscigenada (brancos,
índios, negros). E, no processo de integração de variados ele
mentos, constituía-se um outro significado, distinto das suas par
tes componentes.
oóí)
Como o próprio nome da instituição indica, o SPHAN pas
sou a agir no sentido de definir o patrimônio do país em termos
artísticos e históricos. Ora, a política do patrimônio é sacraliza-
dora: identifica elementos, cria pertencimentos, fixa a memória
e instaura ritos. Afirma "verdades" e pontos de ancoragem da
memória de um povo, possibilitando o reconhecimento, mar
cando identidades e foijando todo um imaginário sobre a na
ção. Mas a política patrimonial tem um caráter prático: catalo
gar ou inventariar os chamados bens culturais que, supostamen
te, produzem sentido, sentidos estes que devem ser comparti
lhados. O Decreto-Lei n- 25, criado a partir da idéia de Mário de
Andrade, passa a ser um instrumento jurídico de ação para o
tombamento federal de bens móveis e imóveis existentes no país.
As ações de identificação, inventário e tombamento pres
supõem, em tese, a prática da preservação que implica conser
var, restaurar, valorizar e proteger, legalmente, o bem tombado.
Seu objetivo é legar e dar a ver, para as gerações presentes e
futuras, aquilo que é seu, sua marca, sua alma. Em se tratando
da cultura material, a partir do elemento do espaço edificado,
escolhido como patrimônio a preservar atingia-se a esfera dos
significados, este reduto último de sensibilidade responsável por
uma comunidade simbólica de sentidos. Definia-se e socializava-
se, em síntese, a idéia e a imagem do Brasil e dos brasileiros.
Para que tais bens culturais fossem dotados de aura, ou seja,
para que lhes fosse concedido o status de marcos físicos de uni
dade espaço/temporal, como traços únicos e originais a serem
preservados, era preciso que o SPHAN definisse o que era mere
cedor da qualificação positivada, como representativo de valor
artístico e histórico nacional. Melhor dizendo, como instituição
responsável para qualificar e fazer reconhecer um bem, o SPHAN
deveria enunciar padrões de referência, estéticos e históricos,
conferindo qualidade, autenticidade e veracidade.
Como se sabe, o SPHAN foi formado por figuras exponen-
ciais do modernismo brasileiro - Lúcio Costa, Oscar Niemeyer,
Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade -, tendo à frente o todo-poderoso Rodrigo de Mello
^6/
Franco de Andrada, que assumiu o cargo a convite de Gustavo
Capanema.
Sabemos também quais acabaram sendo os bens culturais
inventariados e que foram privilegiados pelo SPHAN: os marcos
físicos do barroco. Procurando harmonizar o passado com o pre
sente, definia-se que só o barroco tinha dignidade para ser pre
servado e ser considerado como antecessor do modernismo, ex
pressão da vanguarda estadonovista.
Tais marcos referenciais da identidade nacional teriam de
não apenas ser partilhados, enquanto pertencimento - ou seja,
deveriam estar presentes em, pelo menos, grande parte do terri
tório nacional -, mas também manifestarem valores específicos
do país. No caso do barroco, havia uma concentração destes re
gistros arquitetônicos em Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro.
É no seio deste grupo que passa a se inserirojá renomado
sociólogo Gilberto Freyre. Atuação modesta, diga-se de passa
gem, pois, ao que se saiba, ele atuou marginalmente no SPHAN,
sem ter o destaque de uma atitude que tomasse a iniciativa dos
tombamentos. Freyre deve ter entrado porque, absolutamente,
"não poderia ficar de fora", pois sabemos que não lhe eram sim
páticos os modernistas paulistas, aos quais acusava de serem "be-
letristas de gabinete" ou de haverem participado dos "festins
modernistas de 22", para referir-se a Mário e Òswald de Andra
de (Cavalcanti, 2000, p. 58).
Mas, pelo menos com Mário de Andrade, Gilberto Freyre
iria conviver dentro do SPHAN, no plano oficial de composição
do grupo. No próprio ano de fundação da entidade e do seu
ingresso na mesma, Gilberto Freyre sugeriu a inclusão de uma
nova linha de reflexão deste patrimônio nacional, que já vinha
desenvolvendo em suas obras anteriores.
S6r>^
Pensamos também, que, pelas janelas do sobrado, Freyre.
possibilitava pensar o tipo de interpenetração/separação do pú
blico com o privado. Se as rótulas e as paredes dão sobre a rua,
abrindo-se ao exterior, o "quarto das virgens", sem janelas e no
centro da casa, fazia do sobrado a fortaleza da família patriarcal,
a guardar tesouros e mulheres.
Em suma, Gilberto Freyre explicitava o sentido último de
seu trabalho apresentado no III Congresso de História e Geo
grafia: caracterizar a sociedade e a cultura brasileira "através da
predominância regional da casa de tipo mais nobre, tanto rural,
como urbana" (Freyre, 1946, p. 15), como traço unificador de
uma identidade regional.
O ano de 1940 parece ter sido de intensa produção para
esse autorjá consagrado, que lançara, na década anterior, as suas
duas obras máximas. Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucam-
^05 foram a matriz onde explicitava esta visão da arquitetura como
a representação sensível da idéia e do ethos de um povo, mas sua
linha de pensamento prosseguira, a complementar-se em outros
textos menores.
t>6y
ridade que pesava contra a cultura lusitana, denunciando aque
les que o detratavam.
Na obra do mesmo ano sobre o engenheiro e arquiteto fran
cês Vauthier,® que estívera no Brasil entre 1840 e 1846 e, partícu-
larmente, visitara o Recife, Gilberto Freyre insistia na importân
cia da arquitetura doméstica como chave de entrada para a com
preensão da alma do país e de sua história social.
Dessa obra se originaria mais um artigo, publicado em 1943,
na revista do SPHAN,® onde Freyre aprofundava os registros que
Vauthier deixara sobre as habitações domésticas do país, com
parando as plantas de casas-grandes e de sobrados que deixara
com aquelas elaboradas porJean-Baptiste Debret. Gilberto Freyre
acentuava a importância das semelhanças que se registravam de
norte a sul do Brasil, que a seu juízo evidenciavam o mesmo
substrato português de origem, mostrando como uma socieda
de se expressava na sua arquitetura.
Entusiasmado com as idéias que defendia, Gilberto Freyre
chegava, mesmo, em um dado momento, a regozijar-se porque
Vauthier e Debret concordavam com ele na sua visão do Brasil...
(Freyre, 1997, p. 226).
A arquitetura comparecia como fundamento da história so
cial, do caráter, da cultura e do delineamento dos povos. De Re
cife para o Rio, e deste para Porto Alegre, a casa familiar brasi
leira, de origem lusitana, fundamentava uma unidade cultural.
Com tal visão, Freyre transcendia o marco físico e espacial para
visualizá-lo como "janela" que permitia ver o tecido cultural.
Os registros de habitação doméstica escapavam, portanto,
da linha de interpretação do SPHAN para a identificação do pa
trimônio nacional e que, apoiada em uma postura ligada ao mo
dernismo, só via, no passado, dignidade e valor estético no bar
roco. Freyre apresentava as casas de residência das classes abas
tadas como que a serem inseridas no âmbito do patrimônio, ou
:26lV
seja, como um lugar de memória, que davaa ver a própria histó-.
ria. Gilberto Freyre entendia essa forma de habitação como me-
tonímia do social e como imagem da nação.
Esta seria, contudo, a primeira das leituras, que configura
o olhar freyriano como possibilitador de alargamento da visão
do patrimônio que se instaurava no país.
Outra leitura é aquela que lida com a dicotomia da nação e
da região.
Por ocasião das comemorações do bicentenário de Porto
Alegre, em 1940, Freyre dera uma conferência na Biblioteca
Pública do Estado do Rio Grande do Sul, intitulada Continente e
ilha. Em nota acrescentada na publicação desse texto, em 1943,
Freyre dizia regozijar-se por ver que as idéias que ali esboçara
coincidiam com as desenvolvidas por Vianna Moog em seu re
cente trabalho, publicado em 1942 e intitulado Uma interpreta
ção da literatura brasileira (Freyre, 1943, p. 9). A coincidência de
idéias dava-se no sentido de apontar que o país era um verda
deiro arquipélago cultural, o que lhe permitia desenvolver as
noções de "continente" e "ilha". O Brasil constituíra-se a partir
de ilhas sociológicas e culturais - cada qual com seu jeito, sua
maneira de ser e peculiaridades, províncias e regiões - que
compunham o continente ou arquipélago nacional. O país vi
via com estes "antagonismos complementares", pois, se um não
existia sem o outro (o todo existia em função das partes, e estas
só existiam por referência ao todo), era preciso contrabalan
çar: "o sentido do continente a nos defender dos excessos do
de ilha, o de ilha a nos defender dos excessos do continente"
(Freyre, 1943, p. 27-28).
Tais conceitos, que poderiam se expressar ainda pela cor
relação do lusitanismo de base com o universalismo da adoção,
ou do regionalismo com o nacionalismo, Gilberto Freyre enten
dia estarem nos fundamentos da teoria que concebera para pen
sar o Brasil.
^ J26]f
vesseno Nordeste, a imagem do Rio Grande do Sul diante dos olhos.
O elo de ligação era, mais uma vez, o substrato açoriano, revelado
na dimensão do horizontal - as gentes, os modos de ser, a estrutura
familiar, a sociabilidade - e na vertical - a igreja, o pelourinho, o
sobrado, a Azenha, a Santa Casa (Freyre, 1943, p. 45).
Como foi dito, Freyre divergia da postura paulista, carioca
e mineira. Desde o Recife, o sociólogo falara pelo e para o Brasil
e propusera construir uma imagem positivada do nacional, a ser
endossada sem culpas pelos brasileiros e a ser apreciada pelos
estrangeiros. Entretanto, Gilberto Freyre via com preocupação
o novo status quo do pós-30.
Particularmente, o projeto estético modernista das vanguar
das do centro-sul não era o seu, e talvez se possa dizer que Gil
berto Freyre encarava, mesmo com apreensão, o fato de foijar-
se no Brasil a idéia de um país moderno, que pudesse esquecer
raízes ou tradições. Não que esse fosse o intento das vanguardas
que se projetavam e que, inclusive, com ele compunham o gru
po do SPHAN, mas a visão do social defendida por Freyre apon
tava antes para o passado e para a história, temendo as mudan
ças em curso.
370
Em setembro do mesmo ano, Gilberto Freyre se regozijava
porque Lucien Febvre, desta vez, não ficara
37/
tas "avançadas", ficando o Nordeste e o Rio Grande do Sul, irre
mediavelmente, do lado da paisagem...
Entendendo a cultura brasileira como constelação de cul
turas, Gilberto Freyre lamentava que os visitantes ilustres não
viessem a conhecer personalidades regionais, como Moysés
Vellinho no Rio Grande do Sul, e onde havia uma nova geração,
ávida de saber e também produzindo cultura.
E, neste ponto, retornamos ao Rio Grande do Sul, de onde,
pelas janelas do sobrado, Freyre visualizava uma confirmação
para as suas teses, tanto da arquitetura como expressão do so
cial quanto da constelação cultural brasileira, a partir do subs
trato lusitano.
373
uma 'fêmea mansa', sempre a agachar-se sob as 'botas petulan
tes' do homem. De modo que este tem vivido 'entre as coisas',
como um dominador" (Freyre, 1941, p. 244).
Como teria sido a recepção do discurso de Gilberto Freyre
sobre o Rio Grande, ao estabelecer uma espécie de ponte en
tre o Nordeste e o Sul, a partir de elos arquiteturais que apon
tavam para uma mesma origem comum? A que expectativas
corresponderiam as teses sobre o pluriculturalismo da nacio
nalidade brasileira?
tv/
autor de A Grande Revolução, que, ao analisar a Guerra dos Farra
pos, assentava as suas bases separatistas. Essa postura calhava bem
com o apregoado isolamento político do Rio Grande do Sul,
que, até 1930, se colocara à margem das pretensões à presidên
cia do país, atitude que, contudo, implicava alianças e composi
ções com as demais oligarquias nacionais e com o próprio po
der executivo central. Mas, no plano das representações identi-
tárias, a imagem difundida era de uma região autonomista, com
alto conceito de si própria e composta por elementos de alta
carga valorativa simbólica.
A mudança política de 30 e a ascensão de Vargas ao poder
central ainda se valiam da imagem estereotipada do Rio Grande
como sentinela da fronteira, sempre alinhado com as causas jus
tas. O mote revolucionário de 1930 - "Rio Grande, de pé e pelo
Brasil! Não poderás falhar ao teu destino heróico!" - tanto re
corria aos valores da tradição histórica local quanto manifestava
o seu endosso da brasilidade.
Referências
REGO,José Lins do. Notas sobre Gilberto Freyre. In: FREYRE, Gilber
to. Região e tradição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941.
VELLINHO, Moysés. Editorial. Província deSãoPedro, Porto Alegre, n.
7, 1946.
Narrativas, imagens, idéias:
o museu imaginário de Gilberto Freyre
<Sanc/i^^ata/i^' ^esaoeato
' Pintura intitulada Mauritsstad eRecife, 1653. Coleção particular. Ver Beiluzzo
(1999, p. 124).
A Recife holandesa, com seus bordéis, com suas tavernas-
e cortiços, altos e superlotados, é Babel e é a Londres de Dickens
ou Engels, tal como a traduz Gilberto Freyre, a mostrar, já nes
te momento, que este aborto de grande cidade representou
uma ruptura do equilíbrio entre a natureza e a cultura, propi
ciando o mau viver. O sobrado que vira cortiço e também bor
del é uma perversão arquitetônica, pois passa a abrigar a nào-
famflia, o avesso da ordem instituída. E, portanto, forma de
gradada, fruto que matura antes do tempo e logo apodrece
antes mesmo de desabrochar.
' Da coleção Pimenta Camargo. Ver Arte no Brasil (s. d., p. 67, v. 3).
Ver Arte no Brasil (s. d., p. 31, v. 1).
" Coleção privada, NewYork. Ver Herkenhoff (1999, p. 231).
' Olinda. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Ver Herkenhoff (1999,
p. 263).
Tudo, pois, muito simbólico, pois há por trás dessas cenas
representadas mais duas cidades oculteis: Recife, a cidade renas
cida como uma Nova Holanda, onde se abriga o pincel desse
artista que, por sua vez, traz no olhar imagens referenciais de
outras cidades, em sua terra natal, a Holanda dos canais e do
cosmopolitismo europeu.
Detenhamo-nos, contudo, naquele quadro que, seguramen
te, traduz uma das máterialidades contempladas por Gilberto
Freyre: o mocambo. O quadro de Frans Post, Mucambos, interior
dePernambuco,^ como o próprio nome indica, remete-nos a uma
cena não-urbana! A paisagem é tipicamente rural, mesmo que
possam ser vistos vários mocambos, como se fossem dispostos
em uma espécie de aldeia.
A cena é, contudo, privilegiada no que diz respeito ao meio
no qual se insere esta modalidade do espaço construído: dentro
da lógica de representação da paisagem holandesa, tem-se a me
tade da tela para representar o céu, com nuvens, e a outra para
a representação do ambiente natural, onde os personagens com
parecem quase que como elemento de decoração.
As peculiaridades da natureza local se insinuam através da
luminosidade difusa, ou mesmo homogênea, em todo o cená
rio. As construções representadas - tal como refere Gilberto
Freyre para os mocambos - são simples, toscas, naturais; as es
truturas da construção são simples e primitivas, com aproveita
mento dos elementos locais: a madeira, a folha da palmeira para
o teto, as paredes erguidas por tábuas e por barro.
De uma certa forma, essa imagem de Post ilustra de forma
exemplar a idéia-guia da narrativa de Freyre: há um equilíbrio
entre natureza e cultura, chegando a compor uma espécie de
paisagem edênica. A casa erguida é adaptada ao clima tropical e
representa uma forma de resgate da virtualidade técnica ances
tral dos indígenas e dos negros africanos. A construção do habi-
2i.V7
tatpode ser rústica, mas revela uma sabedoria de adequação do
homem ao meio, ou seja, da cultura à natureza.
Para Freyre, o mocambo é descrito como um avanço no
tempo e no espaço. Habitação de pobre, ela vem a se substituir à
senzala; ela é o abrigo do liberto que antes habitava a senzala. O
mocambo parece formar com o sobrado, em um outro espaço,
no contexto da cidade, aquilo que a senzala compunha com a
casa-grande no meio rural.
Entretanto, uma espécie de desencontro se instala entre as
imagens e o texto. Se o mocambo é a contrapartida urbana do
sobrado, enquanto habitai popular, como se explica que tais ima
gens sejam, em princípio, de um ambiente não-urbano? As ima
gens pictóricas de Post, construídas a partir do que viu e retra
tou in loco ou evocou, à distância, reconstruindo a imagem pela
memória, estão a mostrar uma pertinência rural ou, no máximo
de uma aldeia para tal tipo de residência.
A propósito desta referência de ocupação espacial, entre o
urbano e o rural, na tela Aldeia,^ de Frans Post, são mostrados
habitais diferenciados, que permitem remeter às descrições das
primeiras cidades brasileiras apontadas no texto de Freyre. Pre
dominavam casas baixas, refere Freyre, recorrendo às informa
ções dos primeiros cronistas, como Fernão Cardim ou Gabriel
Soares de Sousa, que escreveram desde o século XVI. Eram tais
casas construídas com palha, tijolo, pedra, barro, cobertas de fo
lha de palmeira, telhas, trançado de ramagens. Mas tais primeiras
habitações, construídas nas primitivas cidades, seriam mocambos?
Embora as tais imagens de Post já registrem a existência
dos mocambos em um ambiente bucólico e predominantemen
te rural, no século XVII, Freyre vai recorrer à imagem do mo
cambo como uma contrapartida saudável, de reconstrução do
equilíbrio rompido entre natureza e cultura com o desenvolvi
mento das cidades.
•' Coleção da Fundação Maria Luiza e Oscar Americano. Ver Arte no Brasil (s.
d.,p. 29, V. 1).
thSW
Nesse momento, se introduz não mais uma tensão, mas
um desencontro entre imagem e texto, posto a serviço da de
monstração de uma idéia, de inspiração edênica, que é a da
unidade do homem com o meio ambiente, em situação não
corrompida pela cultura da urbanização, em espécie de paisa
gem antes da queda...
Mas, se retornarmos às imagens que povoaram o imaginá
rio freyriano, essas insistem em mostrar o mocambo deslocado
do ambiente propriamente urbano.
Uma explicação pode ser dada pela narrativa do próprio
autor, quando se refere a aldeias de mocambos e palhoças, pró
ximas aos sobrados e chácaras (Freyre, 1961, p. 153), com o
que se instala a não contigüidade ou dependência entre se
nhores e subalternos no que diz respeito à moradia. Estará o
autor, neste caso, a introduzir o habitai popular no que se en
tenderá como fora dos limites urbanos, no aglomerado que
passa a constituir o que ele chama de arredoresou que viria a ser
chamado, posteriormente, de região suburbana ou de arraial,
conforme a região do país.
Mas, insistimos, Freyre pretende inserir o mocambo como
espaço construído dentro do fenômeno da urbanização brasilei
ra e que, junto com a população das palhoças e cafuas, vai reco
lher os pretos, caboclos e pardos livres.
Outras possíveis referências para o museu imaginário de
Freyre, tiradas a partir das próprias indicações de leitura e pes
quisa fornecidas por nosso autor, insistem em nos mostrar figu
ras pouco urbanas de mocambos.
Tome-se,a propósito, obra de Johann Moritz Rugendas, dei
xada por ocasião da viagem que fizera ao Brasil, entre 1827 e
1835, e que Freyre utilizou na sua tradução francesa {Voyagepit-
toresque au Brésil, Mulhouse, 1835) por ocasião da feitura de seu
livro, Sobrados e Mucambos.
VJO
do, uma mulher debruça-se, a contemplar a cena. Em outras
palavras, a cena remete a uma contigüidade no espaço, a uma
proximidade vicinal.
Ora, nas referências freyrianas para a compreensão da pai
sagem social, o engenho & a senzala é que revelam tal integração
ou vizinhança, construída no mundo rural, enquanto que o so
brado e o mocambomarcavam um distanciamento espacial. O
próprio Freyrejá marcara, na sua escrita, esta tensão entre pares
que, no segundo caso, não guardam mais a mesma correspon
dência, através do elemento de ligação entre as partes, como
bem lembrou Jacques Leenhardt (2001): um &, indicando níti
do caráter de associação, no primeiro caso, um e, a revelar mais
propriamente a pluralidade, no segundo caso.
Mas, insistindo ainda sobre o quadro de Rugendas, que ha
bitou as referências imaginárias de Gilberto Freyre, será que po
demos dizer que se trata de uma paisagem urbana, com um so
brado, ou de uma casa assobradada de fazenda ou mesmo enge
nho? Esta é uma cena urbana ou rural?
^9/
mo tipo de espaço construído, que não nos leva a identificar
uma paisagem urbana.
Olhando tal foto, em cruzamento com as imagens pictóri-
cas mais antigas, ganha sentido a afirmação de nosso autor, quan
do diz que "os Mucambos conservaram até hoje, na paisagem
social do Brasil, a primitividade dos primeiros tempos da coloni
zação." (Freyre, 1961, p. 233).
Recuperando imagens e cruzando-as com referências tex
tuais, torna-se possível, talvez, adiantar o estatuto do mocambo
como habitai, segundo o pensamento do autor: figura do espaço
construído no cruzamento dos tempos, na medida em que ne
gros libertos e mestiços se evadem da senzala para uma vida não
mais na dependência estrita e direta da casa-grande.
Isso faz do mocambo também uma figura de transição so
cial, tal como o situa ainda, por outro lado, no cruzamento de
espaços, pois se revela um habitai popular nem propriamente
urbano nem rural, localizando-se na proximidade dos centros
urbanos.
ooí —
mos, no caso, diante de uma família branca, mas empobrecida,
que se sustenta com uma escrava de ganho?
Chama a atenção também a indumentária das duas mulhe
res, a da jovem e a da idosa, mais ao estilo do vestuário dos ne
gros do que dos brancos. São, pois, brancos pobres a habitarem
casebre, mas são brancos em decadência, que um dia foram se
nhores de escravos.
O Cortiço, dc 1890.
obra a imagem desse cortiço, mencionando apenas o sobrado
degradado e sublocado.
Na sua pesquisa em busca de registros antigos sobre as
habitações populares e coletivas urbanas, parece que Freyre
teve acesso a textos e imagens que se referiam somente aos
sobrados-cortiços e as impressões que esses causaram, por
exemplo, aos viajantes estrangeiros que visitaram o país, como
Rugendas.
Não há, da parte de Freyre, chamada de atenção para o
destaque que o cortiço passou a ter por ocasião da emergência
da questão urbana no país, entendida como uma questão social.
Esta era vista, sobretudo, como problema a ser resolvido no âm
bito do habitacional e da higiene, no momento em que se apre
sentou para as elites nacionais a possibilidade de construir no
Brasil a modernidade urbana.
V)7
São eles, os tais sobrados-cortiços, os pólos da negativida-
de, como ícones da degradação no viver introduzidos pela emer
gência das grandes cidades.
É nesse ponto que Gilberto Freyre se aproxima e se afasta
daquele historiador de quem se diz tributário: Oliveira Martins,
particularmente na sua obra de 1895, OBrasilesuas Colônias Por
tuguesas. As aproximações se dão na medida em que Oliveira
Martins (1895, p. 254) retrata "o abastardamento dos costumes
dos portugueses recém-chegados pela aprendizagem nos corti-
ços do Rio ou nas roças com os escravos de ambos os sexos".
Os vícios infiltram-se, diz o historiador português, corrom
pem os costumes, destroem os valores, através deste contato de
gradante proporcionado pelo cortiço, lugar de fome, miséria e
prostituição. De uma certa forma, tal visão, cientificista e imbuí
da dos princípios da supremacia racial dos brancos e dos efeitos
deletérios da mestiçagem, encontra-se presente no romance O
cortiço, de Aluísio Azevedo, escrito em 1890, onde a narrativa
ficcional mostra, no contexto do ambiente viciado e sensual das
habitações coletivas urbanas, a degradação progressiva de um
português, a partir do seu envolvimento com uma mulata.
Mas nesse ponto cessam as analogias com Gilberto Freyre,
pois se Oliveira Martins situa o cortiço como o locus desta dege-
nerescência, esta tem como origem primeira a limitada capaci
dade da raça negra, pois esta constitui "um tipo antropológico
inferior, próximo ao antropóide" (Oliveira Martins, 1895, p. 284).
Para Oliveira Martins, a idéia da educação e elevação inte
lectual dos negros era absurda, pois só o cruzamento com sangue
mais fecundo - o português, no caso - é que dava certo. Daí,
pois, o que esse historiador Jin de siècle lusitano, imbuído das
idéias cientificistas de seu tempo, entende como o sucesso da
empreitada portuguesa no Brasil: a europeização da colônia, o
conteúdo civilizatório imprimido a terra, mas que se via amea
çado pelo contato, agora íntimo, entre uma população negra e
mestiça, a coabitar nos cortiços com portugueses recém-chega
dos da Europa.
Logo, a postura de Oliveira Martins é totalmente diferenci
ada da de Gilberto Freyre, que vê justamente na miscigenação
com o negro um elemento de positividade para a nação. A rigor,
pode-se dizer que Freyre realiza uma inversão da perspectiva de
Oliveira Martins, ao entender que o sucesso da colonização lusi
tana nos trópicos advém da sua capacidade de adaptação e in
corporação de outros elementos culturais.
Tal idéia-mestra acaba por confundir as imagens apresen
tadas pelo autor para o âmbito do urbano. Dificilmente o mo
cambo pode vir a ser a contrapartida urbana do sobrado. Ele se
torna o protótipo edênico de uma sabedoria ancestral de habi
tar, herdada das ditas raças dominadas, negra e índia.
E, quanto ao mau viver urbano, o processo de ruptura da
natureza com relação à cultura é partilhada, em diferentes graus,
por sobrados, cortiços e casebres, mas devido a uma condição
mais propriamente do viver em cidade do que das condições
sociais de seus ocupantes.
Em certa medida, Gilberto Freyre cumpre o plano de apre
sentação de seu livro enquanto título: sua narrativa e as imagens
que apresenta dizem respeito aos sobrados e mocambos, mas se
os primeiros são o tipo de espaço construído característico dos
habitantes de posses dos centros urbanos brasileiros, os mocam
bos não são nem propriamente urbanos nem habitação popular
do Brasil como um todo.
VÀ9
uma tese a demonstrar: a superioridade do mundo rural so
bre o urbano.
Referências
,^00
A segunda morte dos sobrados do Recife
' Ver a esse respeito minha análise de O Tempo e o Vento de Erico Veríssimo, em
Erico Veríssimo: o romance da história (Pesavento et al., 2001).
dizer, natural no território e, conseqüentemente, de uma ma
neira de evidência social e teórica.
.wry
Gilberto Freyre procura, nas histórias de casas assombradas,
o eco desse "sobrenatural" que é, para dizer a verdade, o produto
de uma situação urbana onde comunidades distintas coabitam
sem chegar â unificação. O objeto sobre o qual ele concentra sua
investigação é bastante incomum em um historiador sociólogo
para ser acentuado. Primeiramente, tratam-sede "narrativas", por
tanto, de algum modo, de ficções. Freyre fornece todos os ele
mentos capazes de atestar a autenticidade dos testemunhos que
fundamentam essas narrativas. Como de costume, ele multiplica
os nomes, as citações, as referências a personalidades dignas de
fé, incluindo ele mesmo, de tal modo que o leitor deve, no míni
mo, levar em consideração que se esse material narrativo não re
trata, talvez, uma verdade de fatos, uma verdade positiva, em todo
caso, ele atesta um estado da consciência coletiva, do desenvolvi
mento de crenças que o sociólogo tem legitimidade para reunir e
analisar. O historiador deduz da massa de documentos oferecidos
uma necessidade de narrativas fantásticas, uma compulsão para
narrar anedotas sobrenaturais, â vontade constante de dar um
estatuto às experiências e ás sensações sentidas pela população
local que ultrapassam o quadro habitual da racionalidade:
[...] chamadas psíquicas que teriam sido vividas por uns tantos
recifenses em ambientes e em circunstâncias próprias do Recife:
os de sua condição de cidade não só situada à beira-mar como
cortada por dois rios; de burgo por algum tempo judaico-holan-
dês e não apenas íbero-católico; de capital de província e de Es
tado depois de ter sido simples povoação de pescadores; sede de
vários conventos; de centro de atividades culturais importantes;
de grande mercado de escravos trazidos da África; de espaço ur
bano caracterizado por sobrados de tipo esguio, de feitio mais
nórdico do que ibérico: provável influência holandesa ou norte-
européia sobre sua arquitetura.'-^
.107
holandeses de origem judaica ou calvinista, sem laços com a cul
tura ibérica lentamente transplantada pelos colonos portugue
ses. Entretanto, a partir do século XIX, uma nova leva de imi
grantes estabeleceu-se nas terras de Pernambuco. Eles vêm mu
nidos de novos saberes ligados à Revolução Industrial. Eles vêm
da França e da Inglaterra, e mesmo das escolas brasileiras, novos
ricos, doravante bacharéis, todos marcados por uma cultura di
ferente daquela do paterfamílias brasileiro tradicional.
Esses novos bárbaros educados substítuem os antigos legíti
mos senhores dos sobrados recifenses. Seus saberes e modos de
vida acabaram por separá-los das raízes tradicionais locais.
Eis a razão pela qual, à noite, os "\ailtos" aparecem, os es
pectros voltam para assombrar essas casas recentemente aban
donadas, vultos que atestam uma vida anterior. As narrativas que
transmitem esses discursos dão consistência a um tipo de análise
sociológica onírica que destaca a substituição de uma popula
ção por outra dentro de um contexto de permeabilidade cultu
ral. Essas histórias de casas assombradas atestam, no plano do
imaginário, a presença de um outro, necessariamente sentido
como uma presença inquietante. Esses vultos e essas vozes res
soam como ameaças potenciais.
Ao lado dessa dimensão sociológica fundamental, ligada à
substituição de uma população por outra, percebe-se, também,
através dessas narrativas, o eco de uma angústia mais estritamen
te psicológica, ainda que ligada ao fenômeno sociológico lem
brado anteriormente.
.VíM'
Poder-se-ia, igualmente, observar que a modernidade so
cial que se instala nesses anos tende a apagar aquilo que a prece
dera e, conseqüentemente, tende a privar o presente e seus ato
res das raízes que explicam a sua situação. Essa modernidade
faz, naturalmente, tábula rasa da cultura anterior. Ora, Gilberto
Freyre alerta para isso.As culturas nunca nascem adultas. Elasse
apoiam na sua herança, transformando-a, traindo-a. Entretanto,
quaisquer que sejam as relações que cada cultura mantém com
as culturas precedentes, elas prolongam sua existência no modo
prático, tal como o fantasmático.
As narrativas de casas assombradas são exemplos de tais pro
longamentos fantasmáticos. Trata-se, portanto, de um fenôme
no concreto da evolução urbanística. Na linguagem sociológica,
poder-se-ia falar de um caso especial de ocupação dos lugares
por uma população que se ausentou do espaço real sem, contu
do, abandonar o terreno. Gilberto Freyre documentou cuidado
samente esse fenômeno urbano através da compilação das nar
rativas que ele reuniu em Assombrações do Recife Velho.
Todavia, contrariamente ao que se passa nas outras obras,
não é o documento bruto que nos é proposto, mas éjá uma
forma narrativa, autenticada a cada instante através do nome de
uma rua, do patronímico de um proprietário ou de um locatá
rio que vivera no sobradoem questão. A fonte documentária, em
geral, é tirada do Jornal A Província, dirigido pelo próprio Gil
berto Freyre durante a década de 20.
Inicialmente, destaquei um primeiro plano de conflito de
ocupação do espaço urbano que se manifesta através da apari
ção constante, nasjanelas dos abandonados, de "vultos",
mas também ruídos, estalos e outras manifestações misteriosas
que impedem a venda e o aluguel dos mesmos. Esses lugares
que aparentemente ou do ponto de vistajurídico estão desocu
pados e disponíveis, na realidade, não estão. A questão que se
coloca aqui diz respeito à independência, á autonomia de uma
época com relação ao seu próprio passado. Do ponto de vista
epistemológico, Jamais ausente das preocupações de Gilberto
Freyre, essa questão visa estimular o sociólogo e o historiador a
não negligenciarem as manifestações, ainda que insólitas, da
profundidade temporal.
Entretanto, esses fenômenos também revelam um segun
do plano de realidade, menos diretamente material, que faz apa
recer sua dimensão histórica: o que permanece da grande épo
ca do patriarcalismo rural não são os senhores, em carne e osso,
mas seus espíritos. Como se o mundo doravante abolido, anali
sado em Casa-Grande8l Senzala, tivesse sobrevivido ao desapare
cimento de seus senhores sob a forma de espíritos errantes. O
espírito mágico, tão fortemente ligado, no nosso imaginário, ao
modo de existência e à magia dos cultos afro-ameríndios, reve-
lar-se-ia, assim, como sendo o último sobrevivente, a última for
ma viva de um mundo desaparecido.
Os espíritos que assombram a cidade dominada pelo racio-
nalismo mercantil referem-se mais ao modo que o passado pos
sui de assombrar o presente do que às práticas antigas do poder
patriarcal. Mas quem sabe que o passado assombra o presente?
O moderno? O progressista? Não. O único que conhece essa
permanência do passado é quem nunca pôde projetar-se no fu
turo, quem sempre permaneceu ligado à terra ancestral: o mo
rador dos mucambos. E ele, o africano, o negro ainda preso, aos
olhos dos modernos, às tradições religiosas que para ele são muito
mais do que paredes de palha e de terra, uma casa, uma mora
da, um lugar onde se reencontrar e sobreviver à exploração.
O negro é o senhor dos espíritos, macumba, candomblé,
quaisquer que sejam as suas formas. Ele ainda fala, durante as
longas noites do Recife contemporâneo, com os senhores do
mundo passado. Todo o passado está no presente. Os espíritos
que assombram o velho Recife falam em nome daqueles que
nunca se desligaram de seus apegos ancestrais e, nessa medida,
os velhos escravos negros e os velhos patriarcas rurais reencon
tram-se do mesmo lado de uma fronteira simbólica que separa o
passado do presente.
Oferecendo uma existência sociológica às almas do passado,
Gilberto Freyre continua sua laudatio temporis adi Mas ele tam-
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bém se torna interessante para nós pelo fato de conferir um esta
tuto histórico e sociológico àquilo que, geralmente, não encontra
lugar no discurso científico dominante. Freyre tem consciência
disso. Ao opor uma história social que faz justiça aos fantasmas
angustiados dos espíritos a uma história que se interessa apenas
pelas revoluções maiúsculas, ele milita por uma história que abre
sua porta ao imaginário, e os "espíritos" que assombram as casas
do velho Recife são formas imaginárias do passado.
Ele luta, igualmente, para que os fenômenos ditos margi
nais, tal como a feitiçaria, não sejam abandonados a considera
ções de ordem pitoresca. Aquilo que nossa cultura racionalista
desvaloriza e enquadra na categoria do "pitoresco", a pobreza,
os fantasmas, em suma, tudo aquilo que se desenvolve às mar
gens dos processos dominantes, Gilberto Freyre empenha-se em
fazer figurar plenamente no quadro. Como dizem os tipógrafos,
é a margem que faz a página.
Referências
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SOBRADO PATRIARCAL
SEMI-URBANO DO
MEADO DO SÉCULO XIX.
10 - CHIQUEIRO 20 - BANHEIRO
11 - COCHEIRA 21 - MUCAMBOS
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CASA-GRANDE DO
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ANTIGO
ENG? DOS BOIS
PERNAMBUCO
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TRIÂNGULO RURAL DO NORDESTE: CASA, ENGENHO E CAPELA
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índice das ilustrações
Fic.uii/\ 1 - Paisagem brasileira com nativos dançando e capela. Frans Post. Coleção privada,
N. York. In: Herkenhoff, P. (Org.). O Brasil e os holandeses. Rio de Janeiro:
Sextante Artes, 1999, p. 231.
Fic:ur.\ 2 - Negracom criança.Albert Eckhout. Museu Real da Dinamarca. In: Herkenhoff,
P. (Org.). O Brasile os holandeses. Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999, p. 151.
Fiouiu 3 - Negra brasileira do século XVII (Gol. do autor). In: Freyre, G. Casa-Grande &
Senzala. 13. ed. Tomo II. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.
Fic.uR/\ 4- Mocambos, interior de Pernambuco. Frans Post. Rio de Janeiro, Museu Nacional
de Belas-Artes.
Fic.l'ic\ 5 - Mameluca. Albert Eckhout. Museu Real da Dinamarca. In: Álbert Eckhout. Revi
são crítica e atualidade por Clarival do Prado Valladares. Rio de Janeiro/Reci
fe: Livroarte Editora, 1981, p. 75.
Figura 6 - Planta de uma casa de chácara do Rio de Janeiro Freyre, O. Sobrados e
mucambos. 3. ed. Tomo I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961, p. 169.
FiguR/\ 7 —Sobradopatriarcal semi-urbano do meado do século XIX. Desenho de M. Bandeira.
In: Freyre, G. Sobrados e mucambos. 3. ed. Tomo I. Rio de Janeiro: José Olym
pio, 1961, p. 8-9.
Figuiu\ 8 - Casa-grande do Engenho Noruega, antigo Engenho dos Bois, Pernambuco. Desenho
de Cícero Dias, 1933. In: Freyre, G. Casa-Grande & Senzala. 13. ed. Tomo I. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1966 [Encarte].
Figur.\ 9 - Interior do sobrado patriarcal do meado do século XIX. Desenho de L. Cardoso
Ayres. In: Freyre, G. Sobrados e mucambos. 3. ed. Tomo I. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1961 [Encarte solto, p. XXVII].
FtGUiu 10 - Triângulo rural do Nordeste: casa, engenho e capela. In: Freyre, G. Nordeste. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1937 [Encarte].
Figuras 11 a 18 - Vidraças desobrados antigos do Rio Grandedo Sul. Conjunto de Fotos de Deusino
Varela. In: Anais do III Congesso Sul-Rio-Grandensede História e Geogafia. Vol. I.
Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1940, p. XXI a XXXIII.
Figur^x 19- Mauritsstad e Recife, 1653. Frans Post. Coleção particular. In: Belluzzo, A. M.
M. O Brasil dos viajantes. 2. ed. São Paulo: Objetiva/Metalivros, 1999, p. 124.
Figur-a 20 - Vista do Recife. Gillis Peeters. Coleção Beatriz e Mario Pimenta Camargo. In:
Herkenhoff, P. (Org.). O Brasil e os holandeses. Rio de Janeiro: Sextante Artes,
1999, p. 96-97.
Os autores
lmpiv\sài> c ticíihiliiwiild:
Gráricit ICJRura PiiIIiilfi
Av. Plínio Brasil Milaiio. 214.3 - Porio Alegre. RS
l oncí.3| ) 3341-04.3.3
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