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Gilberto Freyre
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Antonio Dimas
Jacques Leenhardt
Sandra Jataliy Pesavento
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^^lebrado econtestado, louvado ou criticado, uma


coisa é certa: Gilberto Freyre é sempre um ator polê
mico, que veio suscitando debates desde o seu surgi
mento no panorama nacional como um intérprete do
Brasil. Particularmente em suas obras maiores. Casa-
Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos
(1936), Freyre realiza uma espécie de redescoberta do
Brasil, alertando para certos elementos constitutivos
de umethosnacional quetantopossibilitaram umare
generação da "alma brasileira" quanto geraram polê
mica entre os intelectuais das décadas seguintes.Mais
recentemente, o florescer da história cultural no Brasil
implicouuma releiturade sua obra,para além das pai
xões que celebraram ou condenaram este autor.

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UNIVERSIDADE [ESP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
federal DO RIO
GRANDE DO SUL Reitora Suely Vilela
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Klüsener; suporte administrativo: Janer Bittencourt • Apoio: IdalinaLouzada e Laércio Fontniir.i
0leí/ioe/itar

Gilberto Freyre
enff^ Aòstório e fíccâo

Antonio Dimas
Jacques Leenhardt
Sandra Jatahy Pesavento
Oi-ganizadores

UFRGS edusp
EDITORA
© dos autores
P edição; 2006

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa e projeto gráfico: Carla M. Luzzatto


Ilustração da capa: Brasília Qua Parte Belgis, Amsterdam, 1647.
Coleção Franco Pedro Piva, São Paulo.
Revisão: Rosângela de Mello
Editoração eletrônica: Fernando Piccinini Schmitt

R374 Reinventar o Brasil: Gilberto Freyre entre história e ficção /


organizado por Antonio Dimas, Jacques Leenhardt e San
dra Jatahy Pesavento. - Porto Alegre: Editora da UFRGS/
Editora da USP, 2006.

Inclui imagens

Inclui índice de ilustrações.

1, História cultural. 2.Ensaios. 3.Crítica literária. 4. Ficc-


ção. 5. Literatura brasileira. I. Dimas, Antonio. II. Leenhardt,
Jacques. III. Pesavento, Sandra Jatahy. IV. Título.

CDU 306:901(81)

CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.


(Ana Lúcia Wagner - CRB10/1396)

ISBN 85-7025-879.R
Sumálio

Apresentação / 7
. Oifo/iio
f/<ic(fi(c.y .(l'e/i/i(i/'(í(
Iia/n/ra í^e.yaoc/ifo

Escrita e recepção
Casa-Grande & Senzala

A consagração na França clc iim pensamento heterodoxo / 25

De Recife para o mundo / 41


t Jà/f(//•(/ S/í'-vaoc///o

Ingleses na costa / 67
ii<ifi(/r(r ^•/.veira 'fh.yco/wc/o.y

Amores inteligentes / 75
'//Kiirc

Nas ruínas, o otimismo / 99


. {/f/o/ii'o Çô{/na-y
Sobrados e Mucambos

Protocolos cia escrita: as estratégias de Gilberto Freyrc / 145

O cativeiro de Clio: narrativa entre memória e história / 157


õa/u/foí^e.s-aoc/ifo

"O que se diz no princípio": uma leitura dos prefácios / 175


>Ja/t(//'a yO'uarc/mt ^t.ve/ra 'Pa,s-co/ice/o,s'

Paisagem social, cidade,


espaço e tempo em Sobrados e Mucambos
A construção cosmográfica de uma paisagem social / 191
^/cicc^ac-f ./
A paisagem social como imaginário de sentido / 201
t ia/uí/Ht S^c's<ioe/{/o

Entre sobrados e cortiços / 219


'f^a.s-co/u'c'/o,\-

Os andares do sobrado; de um Brasil a outro / 231


(ia/n/ra ^Ya/oAij SAÍw/oc/t/o
O sobrado, um artefato narrativo / 249
f/(ic(fuc.s' ./'ce/i/nirc/f
Asjanelas do sobrado: de como a parte se viu no todo / 257
í ia/t(/ra íâc.saoc/ifo

Narrativas, imagens, idéias:


o museu imaginário de Gilberto Freyrc / 279
t i<i/i<//ui í-âe.suioc/t/o

A segunda morte dos sobrados do Recife / 301

Imagens / 313

índice de ilusiraçcóes / 341


Os autores / 343
Apresentação
KyOitomo Çõtmas^
^<rcyuesy^e/f/ia/*<á>
Sanc/í^y^fata/^^e.moe/ito

Gilberto Freyre é figura controversa, seja pelas discutíveis


posições por ele assumidas, seja pela ousadia de suas idéias, em
interpretações avant Ia feííri^para o seu tempo. Sua obra tem pro
vocado muitos estudos, sobretudo a partir da sua redescoberta,
nos anos finais do século XX, nos momentos próximos à cele
bração de seu centenário sob o influxo da história cultural e de
seus cruzamentos com a crítica literária. Sem dúvida, esse reno-
mado sociólogo foi um daqueles intelectuais que se dispuseram
a REINVENTAR O BRASIL, através de uma escrita que, podería
mos dizer, se situa entre a HISTÓRIA e a FICÇÃO.
Os ensaios que integram este livro resultam de uma coope
ração acadêmica internacional entre pesquisadores do Brasil e
da França. Concentram-se eles em torno de Casa-Grande & Sen
zala (1933), de Sobrados e Mucambos (1936) e abordam essas duas
obras da trilogia clássica de Gilberto Freyre a partir de alguns
problemas: a sua escritae recepção, por um lado, e a elaboração de
uma paisagem social, atravessada por uma abordagem que intro
duz as questões relativas à cidade, ao espaço e ao tempo.
O rumo dessas reflexões parte da recepção francesa da obra,
avalia a metodologia inovadora de Freyre e desemboca no signi
ficado oculto e simbólico do ícone mais imponente de nossas
raízes urbanas, o sobrado.
Para se dedicarem a essa tarefa de reflexão conjunta, seus
autores puderam contar com o benefício de um acordo de coo-
peração acadêmica internacional entre a França e o Brasil, co
nhecido nos meios universitários como CAPES-COFECUB.

Sob essa rubrica, Sandra Pesavento, da Universidade Fede


ral do Rio Grande do Sul, Sandra Vasconcelos e Antonio Dimas,
da Universidade de São Paulo, Jacques Leenhardt, da Ecole des
Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris, e Ria Lemaire, da
Universidade de Poitiers, ajustaram seus relógios docentes e se
programaram para encontros profissionais, ao longo de alguns
anos, ao fim dos quais nasceram estes ensaios de conteúdo tão
multiforme quanto a obra do intelectual pernambucano, nasci
do em 1900 e falecido em 1987, depois de carreira altamente
feci^da, de inegável originalidade e, como foi dito, não menos
polêmica.
Como se trata de projeto conjunto no qual fosse necessária
a harmonização de interesses intelectuais e culturais de seus in
tegrantes, dedicaram-se os autores destes ensaios ao enfoque da
casa como elemento arquitetônico capaz de operar como mi
crocosmo de uma região. Para tanto, admitem eles, era necessá
rio também que a simples dimensão arquitetônica da moradia -
limitada à construção, função e estética - fosse ultrapassada e que
nela se pesquisasse a dimensão antropológica, que na moradia
fora se decantando ao longo dos anos. Isso implica, lembram os
ensaístas, considerara arquitetura como uma porta deentrada no mundo
do sensível, da sociabilidade e do simbólico, segundo se pode ler no
projeto apresentado às agências de fomento.
O enlace entre essa preocupação analítica ancorada em ob
jeto brasileiro e o universo da cultura francesa, de onde provêm
dois de seus autores, dá-se no momento em que a argumentação
parajustificar o projeto aponta para alguns motivos, tais como:
- a divulgação internacional de Casa-Grande &. Senzala, de
corrente da tradução francesa de Roger Bastide, publicada em
1952, que contou com um prefácio consagrador de Lucien Fe-
bvre, cuja liderança intelectual na revista Annales, Junto com
Marc Bloch, era passaporte seguro para ingresso no universo
da inteligência francesa, mesmo que essa tradução tenha sido
posterior à primeira tradução da obra, realizada nos Estados
Unidos em 1946;

- uma indiscutível convergência de interesses entre a prática


epistemológica de Gilberto Freyre e a de seus contemporâneos
que colaboravam na revista Annales, interessados que estavam to
dos na cotidianidade, nas sociabilidades, na cultura material;
- a atenção voltada para o fenômeno urbano, como epi
centro de inúmeras manifestações culturais e sociais as mais dís
pares;

- a preocupação com a questão do patrimônio como su


porte da construção identitária, de que resultaram, anos mais
tarde, os textos imprescindíveis de Leslieuxde mémoire, obra cole
tiva dirigida por Pierre Nora.
Tal cerzidura possibilitou a emergência destes ensaios, os
primeiros de que se tem notícia em torno de Sobrados e Mucavi-
bos, especificamente.
Se levarmos em consideração a cronologia sobre a qual se
monta este livro, poderemos dizer que ela assume forma fluida
e não se deixa limitar pela ordem de aparecimento dos livros.
Porque a parte inicial, reservada á escrita e recepção, e que é com
posta pela metade dos ensaios do livro, começa no ano de 1952,
momento em que aparece na França a tradução de Casa-Gran-
de & Senzala, assinada por Roger Bastide. Em seguida, os ensa
ístas recuam para os anos 30 e 40, início dos 50, quando apre
ciam as estratégias metodológicas desenvolvidas por Gilberto
Freyre na montagem de Casa-Grande & Senzala e de Sobrados e
Mucambos. No segundo bloco, o mais extenso, dá-se atenção
particular ao sobrado, como simbólico representado tanto
em Sobrados e Mucambos (1936), quanto em O Tempo e o Vento,
saga inaugurada por Erico Veríssimo, em 1949. Na apreciação
dos implícitos existenciais e históricos daquele tipo de mora
dia, a sugestão dissimulada de que o pernambucano e o gaú
cho convergiram no esforço de apreensão, mesmo desentra-
nhamento, da realidade brasileira naquilo que ela tem de mais
íntimo, pois que ambos, Gilberto e Erico, tomam a casa, a resi-
dência, o lar como ponto de partida para suas narrativas em
que História e Ficção se confundem de forma deliberada e bem
urdida, em arco temporal que lhes custou cerca de quarenta
anos da vida: 1922-1962. Em 1922, Gilberto Freyre cumpre o
ritual de seu mestrado na Universidade de Columbia, em Nova
Iorque, quando defende o germe daquilo que viria a ser Casa-
Grande & Senzala (1933); em 1962, Erico Veríssimo publica o
terceiro e ultimo volume de O Arquipélago, a terceira parte de O
Tempo e o Vento, seu painel iniciado em 1949.
Na contrapartida gaúcha, panorâmica e envolvente tal como
a trilogia pernambucana, o desenho ficcional e histórico de um
país que se esvaía na pressa de se modernizar de modo conserva
dor, deixando embaixo do tapete os resíduos mal resolvidos de
uma sociedade até hoje atropelada e desconjuntada. Ao lado
desses dois painéis, outros, não de menor importância, tenta
vam também, cada um a seu modo, interpretar o país que se
questionava, sobretudo depois que Getúlio Vargas tomou o po
der em 30. Lembremo-nos, portanto, do ciclo da cana-de-açúcar
de José Lins do Rego, da tragédia burguesa de Otávio de Faria e
do romancedo cacau de Jorge Amado, tentativas de ir às raízes do
Brasil, expressão que designou um outro clássico na época, ins
pirado pela mesma iniciativa de radiografar uma realidade que
se descobria e que se escarafunchava, através do documental e
do ficcional.

No agrupamento inicial deste bloco de ensaios, que cuida


da recepção de Gilberto Freyre na França, é oportuno salientar a
maneira como os ensaístas encararam o tema comum, dando a
ele perspectivas diferentes, mas complementares. Se Ria Lemaire
garante-nos que a sociologia francesa ofereceu a Gilberto Freyre
a consagração dequeele precisava no exterior, e com isso recuperou
a dianteira da recepção positiva que a sociologia norte-americana
havia oferecido ao autor, isso se deve, diz Ria, ao caráter objetivo,
universal e humanista de que era capaz a crítica francesa, a valori
zar a teoria, a filosofia de Casa-Grande & Senzala.

Mais que pôr em discussão essa alternativa de interpreta


ção, importa assinalar que o artigo de Ria Lemaire se aproveita

/o
de documentação preciosa, conservada na Fundação Gilberto
Freyre, em Apipucos, e que, aos poucos, começa a ser trabalha
da por pesquisadores profissionais. Consiste essa documentação
em correspondência passiva, recortes dejornal, álbuns de recor
tes, etc. A utilização desse acervo precioso, que abre caminho
para pesquisas sobre os bastidores da obra de Gilberto Freyre,
para muito além daquelas limitadas às obras publicadas, pois que
investe nos arredores da criação e da vivência profissional de seu
criador, tem o dom de expor a recepção segundo o ponto de
vista do autor, uma vez que o material documental em torno da
repercussão dessa obra passou sempre pelo crivo atento dos res
ponsáveis - atuais ou do passado -, pela organização daquela
memória, daquele acervo. Importante, no caso do artigo de Ria
Lemaire, é observar como o material selecionado dá ensejo a
uma visão de dentro, isto é, do ponto de vista do pivô do material.
Exemplo disso, dessa perspectiva autoral, é uma das conclusões
de Ria, reveladora das preferências de Gilberto Freyre, que, se
gundo ela, não gostava da tradução de Casa-Grande & Senzala,
elaborada por Roger Bastide e publicada pela Gallimard em 1952.
Em vez dela, Gilberto Freyre preferia a tradução de Nordeste, rea
lizada por Jean Orechionni e publicada, em 1956, com o título
de Terres du sucrepela Gallimard também.
Ora, a preferência por esta ou por aquela tradução, mes
mo que se trate de obras diferentes, não é problema de some-
nos se se pretende a avaliação apurada da obra de um autor.
Como adianta a professora de Poitiers, "a diferença que o leitor
enxerga entre as duas traduções dos livros de Freyre existe tam
bém entre as cartas dos dois tradutores. A carta de Bastide, cujo
destinatário é brasileiro (!), está redigida em francês; a de Ore
chionni num belo português. Cada uma ilustra assim uma das
opções que, hoje em dia e graças a uma reflexão cada vez mais
crítica sobre as práticas de comunicação intercultural, se ofere
cem ao ser humano que vai ao encontro do Outro. A primeira
que consiste em ficar na sua, na sua própria língua, em não falar
a língua do Outro para não se expor e manter, de antemão a
distância que permite segurar, controlar os eventos."

//
Outra é a perspectiva de Jacques Leenhardt quando se de
tém na recepção francesa, mas a partir de levantamento minucio
so que vai de 1939 a 1962.
Em 1939, Roger Bastide discute a linhagem metodológica
de Gilberto Freyre em um dos números da Revue Intemationale
deSociologier, em 1962, é a vez de Jean Duvignaud, que se detém
naquilo que chama de hiperempirismo dialético de Gilberto Freyre.
Entre os dois extremos, um elenco respeitável de outros artigos,
assinados por intelectuais do peso de um Paul Arbousse-Bastide,
Fernand Braudel, Lucien Febvre, Roland Barthes,Jean Pouillon,
Georges Balandier e outros, cuja tônica, segundo Jacques Lee
nhardt, balança entre: a) a querela acadêmica e formal de trans
gressão de fronteiras disciplinares e das estratégias metodológi
cas; b) a questão do estilo narrativo nas Ciências Humanas; c) a
questão mais prática de um país como a França, mal recuperada
de Vichy e de Auschwitz e já animada com as guerras coloniais
dos anos 50 e 60, no sudeste asiático e no norte da África. Nesse
sentido, a conclusão do artigo de Roland Barthes é exemplar:

Enfin, si Ton veut bien songer à reffroyable mystification qu'a


toujours constituée le concept de race, aux mensonges et aux
crimes que ce mot ici et là, n'a pas encere fini d'autoriser, on
reconnaitra que ce livre de science et dMntelligence et aussi un
livre de courage et de combat. Introduire Texplication dans le
mythe, c'est pour Tintellectuel Ia seule façon efficace de militer.
(Archives, 1101).

SandraJatahy Pesavento, por outro lado, mostra que Casa-


GrandeSc Senzala é resposta à efervescência brasileira do começo
da década de 30 e que participa de um novoprojeto identitário bra
sileiro, gerado pela necessidade dereleitura do país. Seu autor, afir
ma Sandra Pesavento, cumpre papel de mediador entre Brasil e
França, em "encontro magistral entre natureza e cultura", pois
"se o Brasil muito devia à França em termos 'civilizacionais', a
França também tinha algo a apreender nesta terra tropical". Ao
encaixar-se nessa função mediadora, Gilberto Freyre estaria ali
mentando uma fome dionisíaca perceptível nos dois países e

/2
passível de ser saciada através dessas bodas transoceânicas e gar--
gantuescas. De nossa parte, forneceríamos aos europeus, a ener
gia, o erotismo, a sensualidade, o ludismo e a criatividade do
negro para cá transplantado à força, em ação que desse "funda
mento intelectual a um imaginário francês sobre o Brasil". Em
troca, a recepção francesa reconheceria a universalidade da con
tribuição de Gilberto Freyre, detectando muito bem o que há de
universal no exótico e depermanência nas audácias dos inovadores. E,
engastada nesse reconhecimento, estaria também a possibilida
de de uma articulação do regional com o universal, na medida
em que a aceitação de Casa-Grande & Senzala na França funcio
naria como legitimação das peculiaridades regionais como ins
tância de reconhecimento de uma nacionalidade, cujos indícios
não estariam sendo proclamados, necessariamente, pelos cen
tros de decisão intelectual do país - isto é. Rio e São Paulo - mas
por uma capital regional e nem por isso menos inteligente.
Já Antonio Dimas, enfoca, de maneira inovadora, a partici
pação freyriana no projeto cultural da UNESCO pós-Segunda
Guerra, em ensaio que, de maneira provocadora, intitula "Nas
ruínas, o otimismo". Diante de um grupo qualificado - Georges
Gurvich, Max Horkheimer, entre eles - Gilberto Freyre defende
aquilo que se convertera no fulcro inovador de suas teorias: a
conviviabilidade entre as raças e etnias, para o que "defendia a
aplicabilidade das Ciências Sociais com o intuito claro de con
tornar ou de aplacar as eventuais tensões sociais, nacionais ou
internacionais, decorrentes da instrumentalização ideológica do
ensino da História, da Geografia, da Antropologia, cujo objetivo
fosse o enaltecimento da raça ou da nação". Freyre não só postu
lava a consideração do caso Brasil como modelo histórico a ser
apreciado perante os intelectuais de uma Europa em escombros
e conflitos raciais, como pregava um método multidisciplinar
de trabalho para as análises do social, tal como pusera em práti
ca em suas obras. Com propriedade, Dimas contrapõe o estilo
circunspecto e objetivo da escrita de Freyre para o conclave fran
cês e aquele que resulta da sua posterior apresentação em terras
brasileiras, onde retoma o amplo uso de metáforas, marcando o
emprego de uma linguagem mais solta e subjetiva. O texto de

/,y
Dimas revela-nos quão inesgotável é o potencial de análise que a
escrita de Gilberto Freyre oferece ao pesquisador, a desvelar novas
e inusitadas inserções deste autor no plano internacional.
E por essa trilha de audácia inovadora de Gilberto Freyre
que Sandra Vasconcelos prefere abordar a sua contribuição, des-
viando-se da trilogia famosa e detendo-se em obra pontual, que
avalia os aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a
cultura do Brasil, conforme se lê o subtítulo de Ingleses no Brasil
Em causa, neste ensaio, a cultura material como fator de trans
formação social ou, nas palavras da autora, "como as condições
materiais, assim como as relações econômicas, determinam no
vos comportamentos, novos estilos de vida, mudanças e sofisti
cação de hábitos e até mesmo alterações na paisagem".
Quando publicou Inglesesno Brasil, em 1948, Gilberto Freyre
tinha em mente uma técnica mista, que desse conta de dimen
sões irreconciliáveis segundo as convenções metodológicas do
momento. Diz ele, no prefácio, sem nenhuma modéstia:

A técnica seguida nas páginas que se seguem é também a do re


trato em que se combina, ou se tenta combinar, o elemento pes
soal com o social, o individual com o universal, o histórico com o
superior ao tempo e até o científico com o poético. Baudelaire
foi dos que atinaram com esta possibilidade do retrato propria
mente dito: a de poder ser, ao mesmo tempo, história e poesia. E
o mesmo se poderá dizer do retrato psico-sociológico [sic] que
se trace de um indivíduo ou de uma família, de uma época ou de
um povo: também essa outra espécie de retrato pode tornar-se
poesia e história, ciência e arte e até tempo e eternidade como o
retrato traçado de Cristo pelos evangelistas.

Em nota à 2- edição, publicada em 1947, mais audacioso


ainda, Gilberto Freyre lembra que sua proposta era a de imis
cuir-se pelos meandros, pelas dobras, pelas frinchas de nossa
sociedade, bisbilhotando as "influências menos ostensivas po
rém, sob vários aspectos, mais significativas que as já consagra
das ou glorificadas. Inclusive as até humildes. As modestas. As
deixadas na sombra pelos historiadores e pelos sociólogos mais
convencionais."

Nessa declaração, uma reiteração: a do método; e uma far


pa: aos incomodados, que rejeitavam seu método, posto à prova
em 1933. Porque essa questão de método sempre foi ponto ne
vrálgico na carreira de Gilberto Freyre, que nunca se cansou de
reiterar suas escolhas, e é isso o que nos mostra parte deste con
junto de ensaios dedicado a Sobrados e Mucambos.
São eles substanciais o suficiente para esclarecerem a para
fernália dos prefácios, das introduções e das notas de Gilberto
Freyre, quase sempre extensas e insistentes, sobretudo uma fa
mosa "Introdução à 2- edição" de Sobrados e Mwc<27wôoí,*publica-
da em 1951, e na qual Gilberto Freyre rebatia e desforrava-se do
conjunto de críticas que vinha recebendo desde 1933, ano de
publicação da Casa-Grande & Senzala. Sandra Vasconcelos tema-
tiza essa introdução, acrescentando que tais prefácios represen
tavam, a seu ver, "respostas ou tentativas de intervenção no de
bate que se travava em cada quadra".
Em outro ensaio,Jacques Leenhardt, em imagem feliz, pro
põe Sobrados eMucambos como chameiraou. dobradiça entre dois
mundos e duas épocas, entre o mundo fortemente rural de Casa-
Grande & Senzala e aquele que tendia à urbanização, objeto de
Sobrados eMucambos. A rigor, sua conceituação das duas obras vai
além e propõe o mundo da convivência para Gasa-Grande & Sen
zala e o mundo da associaçãopara Sobrados e Mucambos. Em suas
palavras, em Gasa-Grande estamos diante de um "universo fecha
do, isolado, dominado espacialmente pela casa do Patriarca e a
Igreja do Pai, Deus no céu", enquanto que Sobrados e Mucambos
está, ao contrário, "aberto ao fiuxo dos passantes na rua, aberto
ao olhar dos outros; é uma estrutura dialógica, permeável, uma
interface entre os homens. A Gasa-Grande OYg?in\z2L, primeiro, as
relações entre a natureza e o homem (natureza da natureza -
mata, cultivo - e a natureza do poder patriarcal e escravocrata),
forçando-os a conviver. O Sobrado organiza as relações entre os
seres humanos, oferecendo a estes formas de contato e de con
tratos, como para inventar formas de associação". Ao estabele-

/é?
cer essa diferença de tom entre os dois primeiros volumes da
trilogia famosa de Gilberto Freyre, Jacques Leenhardt. abre ca
minho explícito para o paralelo entre Gilberto e Erico Veríssi
mo, a ser mais explorado no úlümo conjunto de ensaios.
Antes deles, porém, Sandra Pesavento alerta-nos para as ar
madilhas da memória social coletiva lastreada na individual e para
os efeitos inquietantes que resultam desse casamento convulso,
no qual sensibilidade e inteligência disputam o leito em steeple
chaseàráuo [árdua corrida de obstáculos]. A pretensão de Gilber
to Freyre era bem alta, bem dissonante, bem atrevida. Seduzia a
ele "tocar no íntimo de cada um, que reconheceria no seu texto
um pouco de sua própria vida. Ao entrar por dentro da intimida
de das casas, ao vasculhar nos baús dos segredos das famílias, ao
entrar por dentro das cozinhas, dos porões, dos quintais e dos
Jardins, ao sair à rua, para as brincadeiras, para os passeios e as
festas, ao participar de batismos, namoros, noivados, casamentos
e enterros, a escrita de Freyrejustifícava a sua inserção na memó
ria social. As lembranças do autor se confundiriam com as do lei
tor, ganhando a sua verdade simbólica de reconhecimento".
Por fim, no segundo bloco, com a predominância dos en
saios em torno do "simbólico", levanta-se, imponente, o sobrado
- pernambucano ou gaúcho, não importa - e o paralelismo en
tre Gilberto e Erico se ergue sem rebuços, como a provocar os
que consideram os dois autores como meramente regionais e
não o que efetivamente são: nacionais, mas com um pé em suas
querências respectivas, cada uma dotada de desenvolvimento
histórico próprio e peculiar, sem submissão a hegemonias ou
veleidades centralizadoras.

Nesta segunda parte, em que se agregam a outra metade


dos ensaios, o percurso é curioso, porque parte do geral - a con-
ceituação de paisagem social —, passa pelo particular dos sobra
dos, das janelas, dos cortiços, dos mocambos' e, quando nos ar-

' Gilberto Freyreemprega a palavra "mucambo",maso Dicionário //owamassi


nala como correta a forma "mocambo".
mamos para um fecho obediente às regras do ensaísmo acadê
mico que prescreve uma conclusão, eis que o último escancara
as portas e empurra o leitor para fora das conclusões ao lhe abrir
a possibilidade da utilização do fluido, do incontornável, do so
brenatural, do fantasmático e do irracionalismo, enfim, como
base verossímil da pesquisa conduzida com inteligência, pauta
da pela sensibilidade.
Admitida a paisagem como conceito mais amplo e mais for
te que as categoricissociais; vista como sistema de inter-relações entre
a dinâmica natural e a práxis humana, amplia-se e alarga-se o con
ceito de paisagem para nele caberem, segundo Sandra Pesaven-
to, itens até então menosprezados. Quando da publicação de
Sobrados e Mucambos, em 1936, ganha volume o conceito de pai
sagem social, transformando-se em "categoria" para interrogar o
mundo e nela vão caber noções como o da historicidade, da carga
de materialidade, lastro de sociabilidade, componente de sensibili
dade, além, é claro, o da dimensão pictórica. Com isso, historici-
za-se uma Geografia, que, em revanche, infiltra-se pela História.
E, ao se criar essa reversibilidade contínua, abre-se espaço para
edificação, consolidação e apreciação do sobrado como cons
trução híbrida, no meio do caminho entre o urbano e o rural,
imagem arquitetônica de nosso curso social, que ora aposta na
modernidade tecnológica urbana, ora se devota ao passadismo
das relações sertanejas mais reacionárias e conservadoras, em
descompasso exasperante.
Ao lembrar que um dos bons desdobramentos da ascensão
de Getúlio Vargas ao poder foi a criação do Serviço do Patrimô
nio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN, em 1937, logo en
tregue ã direção de Rodrigo de Melo Franco de Andrade, que
enviou Gilberto Freyre, como representante do órgão, ao III
Congresso Sul-Rio-Grandense de História e Geografia, realiza
do em Porto Alegre, em 1940, Sandra Pesavento focaliza de modo
metonímico o sobrado e lembra que Gilberto Freyre apontou
nele um dado unificador, capaz de demonstrar uma espécie de
aliança atávica e de representação identitária entre o Sul e o Nordeste e
passível de exibir uma lusitanidade enfim confirmada. Se bem en-

/7
tendido o ponto defendido por Sandra Pesavento, Gilberto
Freyre estava, nesse momento, preocupado com a "necessidade
de inventariar as obras de arte existentes no país, para que [nele]
se pudesse ver a marca lusitana de [nossa] origem", em flagran
te contraste com o modernismo paulista, que só tinha olhos para
as vanguardas estrangeiras. Em texto jornalístico, em boa hora
recuperado por Ria Lemaire e por Sandra Pesavento, uma ad
vertência de Gilberto Freyre é de forte significado nesse sentido.
Diz Sandra: "Em novembro de 1949, ao comentar a visita do
professor francês E. Coornaert ao Brasil, Gilberto Freyre referia
que [o visitante] fora 'tão envolvido pela bruma paulista' que o
resto dos brasileiros ignorava a sua presença no país. No seu
entender,Coornaert devia fazer tal como Lucien Febvre e ir tam
bém ao extremo sul e ao norte: 'Que conhecesse o Rio Grande
do Sul, o Paraná, a Bahia, Pernambuco. E não apenas São Paulo,
o Rio e Minas."'

Os temas se sucedem, inesgotáveis. Mas é o último ensaio,


"A segunda morte dos sobrados do Recife" de Jacques Leenhar-
dt que impede que se encerre o assunto, ainda que paradoxal
mente, seja o úlümo texto. Porque o pretexto é o "mocambo",
mas dele se desvia rápido o colega francês, que envereda por
obra lateral de Gilberto Freyre, denominada Assombrações do Re
cife Velho (José Olympio, 1970) e dela extrai indícios de uma socio
logia onírica, pouco afeita ao racionalismo empírico e mais preo
cupada com o residualismo fantasmático de velhos casarões, ca
pazes de ensinar uma história a quem estiver disposto a apren
dê-la de modo pouco convencional. "O que permanece da gran
de época do patriarcalismo rural", lembra Jacques, "não são os
senhores, em carne e osso, mas seus espíritos. Como se o mundo
doravante abolido, analisado em Casa-Grande & Senzala, tivesse
sobrevivido ao desaparecimento de seus senhores sob a forma
de espíritos errantes. O espírito mágico, tão fortemente ligado,
no nosso imaginário, ao modo de existência e à magia dos cultos
afro-ameríndios, revelar-se-ia, assim, como sendo o último so
brevivente, a última forma viva de um mundo desaparecido". E
para vê-los é preciso olhos treinados por outras regras, por ou-

/«í'
tros ensinamentos. Porque, "ao opor uma história social que faz
justiça aos fantasmas angustiados dos espíritos a uma história
que se interessa apenas pelas revoluções maiúsculas, ele [Gilber
to Freyre] milita por uma história que abre sua porta ao imagi
nário, e os 'espíritos' que assombram as casas do velho Recife
são formas imaginárias do passado. Ele luta, igualmente, para
que os fenômenos ditos marginais, tal como a feitíçaria, não se
jam abandonados a considerações de ordem pitoresca. Aquilo
que nossa cultura racionalista desvaloriza enquadrando na cate
goria do 'pitoresco', a pobreza, os fantasmas, em suma, tudo
aquilo que se desenvolve à margem dos processos dominantes,
Gilberto Freyreempenha-se em fazerfigurar plenamente no qua
dro. Como dizem os tipógrafos, é a margem que faz a página."
Enfim, ao enfocar as reinvenções do Brasil nos cruzamen
tos entre a história e a ficção, esta obra quis contribuir para o
debate, sempre renovado, deste autor, inesgotável e complexo,
que foi Gilberto Freyre.

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Casa-Grande & Senzala
A consagração na França
de um pensamento heterodoxo

Não seria possível dar conta, de uma forma unitária, da


recepção de Gilberto Freyre na França, e isso por duas ra
zões. A primeira deve-se ao contexto intelectual dessa recep
ção, onde aparece de maneira particularmente acentuada o
conflito entre disciplinas acadêmicas. Constata-se, de forma
surpreendente, a importância que assume a categorização em
termos de história, de sociologia e, mesmo, de etnologia ou
de antropologia, nas resenhas que são publicadas a propósito
de Casa-Grande & Senzala.

De fato, os textos que pretendemos comentar articulam


de um modo freqüentemente inextrincável a ambigüidade das
delimitações disciplinares, as posições teóricas que fundam
essa transposição de fronteiras e as estratégias metodológicas
geralmente inovadoras. E aqui que aparece a segunda dificul
dade para encontrar uma unidade para este corpus. Dado que
Gilberto Freyre, aparentemente, não se preocupa com os de
bates acadêmicos, seus críticos e comentadores celebram-no,
quase que unanimemente, como sendo o campeão de um
pensamento heterodoxo, ao mesmo tempo em que tentam
inseri-lo nos quadros da nomenclatura acadêmica.
Pode-se ver, nesse paradoxo, um efeito singularmente in
teressante do duplo "exotismo" que marca a recepção de Gil
berto Freyre na França. Gada um persegue, segundo seus pró-

Tradução de Eliane Cezar


prios propósitos, um debate intelectual hexagonal, confron-
tando-se com uma satisfação intelectual certa, com um pensa
mento que se movimenta livremente em relação aos critérios
estabelecidos. De um lado, Freyre é instrumentalizado den
tro de uma perspectiva nacional francesa; de outro, ele é o
instrumento através do qual se revela a liberdade teórica e
metodológica que reivindicam, para si, aqueles que elogiam
sua obra.

Se acrescentarmos a essa contradança a maneira pela


qual intervém, às vezes e obliquamente, os debates próprios
ao contexto intelectual brasileiro, compreende-se a dificul
dade para oferecer uma imagem unificada dessa recepção;
mas que se apresenta, por essas mesmas razões, como excep
cionalmente rica.

A recepção de Gilberto Freyre na França começa por um


longo artigo de Roger Bastide publicado na Revue Internatio-
nale de Sociologiecm 1939. O ângulo de ataque escolhido pelo
autor orienta imediatamente o debate sobre a herança africa
na no Brasil sob o tema geral dos "contatos de raça".
Bastide trata, portanto, uma questão geral: o exame da
obra de Freyre, após uma longa introdução metodológica e o
exame da obra de Arthur Ramos. Retomando o movimento
dos estudos sobre a questão das raças, Bastide destaca que os
trabalhos pioneiros de Nina Rodrigues, sociólogo de filosofia
fortemente racista, visavam demonstrar que, se os Estados Uni
dos tinham sido capazes de conduzir um vasto desenvolvimen
to industrial, contrariamente ao que se passou no Brasil, foi
porque eles tinham optado pela barreira racial, impedindo a
mistura das raças branca e negra. Bastide observa que essa vi
são mudou radicalmente, que o negro não é mais percebido
como um elemento patológico e que, ao contrário, a grandeza
brasileira deve-se à mestiçagem das raças instaladas no país.
Bastide distingue três métodos possíveis para analisar a
contribuição da cultura negro-africana: a lingüística, a etno
logia e a sociologia. A primeira, ainda que interessante, deu

36^
pouco resultado, salvo o notável estudo do folclorista Mário
de Andrade, A Calunga dos Maracatus. Arthur Ramos repre
senta o método etnológico fundado nas raízes culturais afri
canas das populações negras do Brasil. A sociologia, finalmen
te, leva em consideração, sobretudo, as relações sociais no
Brasil, as relações de poder entre senhores e escravos, e é Casa-
Grande & Senzala que ilustra este método, aliás, obra que o
próprio Bastide traduzirá sob o título: Maitres ei esclaves. A
questão metodológica entre etnologia e sociologia deve-se ao
fato que, para a primeira, a escravidão é somente destruição
de uma cultura de origem, objeto da etnologia, ao passo que
para a segunda, as relações internas à família patriarcal, jun
to da qual vive o escravo, cortado de sua tradição, tornam
possível a criação de novas sínteses onde se misturam contri
buições de bantos, árabes, nagôs e, certamente, portugueses.
Tudo parece ter sido dito desde o enunciado dos méto
dos. Existe, no entanto, um ponto essencial sobre o qual Bas
tide vai insistir tão logo iniciada a parte consagrada a Freyre:
a diferença das escritas. Em O Negro Brasileiro (1934), Ramos é
clássico na argumentação; Freyre, ao contrário, é rico em re
gistros de escrita, e Bastide aproxima seu estilo daqueles de
Taine em Origines de Ia France contemporaine e de Proust na Re-
cherche du íemps perdu, quando este último utiliza "longos ca
minhos, transições sutis e agitações do pensamento". No en
tender de Bastide, a densidade narrativa de Freyre é o que
permite a ressurreição de um clima desaparecido, aquele do
velho Brasil.

Épreciso ficar atentoà argumentação proposta. Se Casa-


Grande & Senzala pertence à sociologia, a obra pertence tam
bém ao romance. Na oposição proposta entre o estilo argu-
mentativo de Ramos e aquele, múltiplo, de Freyre, Bastide
insinua que a etnologia enuncia-se em discurso porque o et-
nólogo é detentor de uma verdade que ele transmite ao lei
tor. Ele está no interior do saber. Para analisar a déculturalion
do negro africano no Brasil é preciso, com efeito, dispor de
um conhecimento prévio da cultura de origem.

â7
A perspectiva da sociologia é totalmente diferente. Ela
não parte de um passado dado como conhecido, mas sim de
um presente do exílio escravista, e constrói seu devir. Ora,
constata Freyre, esse devir é, essencialmente, paradoxal e con
traditório. Na oposição entre a Casa-Grandee a Senzala, lê-se a
distância entre senhores e escravos na época do latifúndio e
da cultura extensiva da cana-de-açúcar. Em compensação, nas
circunstâncias humanas deste isolamento, aparece uma cau
salidade segunda e contrária que aproxima aquilo que a eco
nomia separa. A falta de mulheres disponíveis e, conseqüen
temente, a exploração das negras como amantes ou amas-de-
leite, cria uma proximidade inversa, feita de poligamia e de
contatos constantes entre a criança branca e as características
fundamentais da cultura negra transmitida pelas amas-de-lei-
te. Quando a urbanização tiver tornado caduco o mundo se
parado do engenho, a exploração rural tradicional, daí então
a cidade e a rua constituirão um meio novo onde, sob a pres
são dos mulatos nascidos na época anterior, uma mistura iné
dita aparecerá dando ã sociedade mestiça um dinamismo ra
cial e social característico do novo Brasil.

Freyre explora realidades sociais que ainda não se benefi


ciaram de elaboração teórica. Ele mescla ecologia social (isola
mento, habitai, arquitetura da Casa-Grande e do Sobrado) e
psicanálise das relações familiares e dos contatos físicos. Des
provido de uma teoria explicativa monológica, o que explica
porque Freyre não admite, como destaca Bastide, ser marxista,
o autor deve recorrer a uma demonstração que coloque todo
seu peso na temporalidade que transforma os papéis e as con
dições. O tempo do romance é o único que sabe fazer ver, atra
vés da acumulação das cenas percebidas sob ângulos sempre
variáveis, o processo social de nascimento do Brasil mestiço.
O segundo texto importante da recepção francesa de Gil
berto Freyre goza de um estatuto particular: trata-se do prefá
cio à publicação em português do livro Um Engenheiro Francês
no Brasil, redigido em francês por Paul Arbousse-Bastide
(1940), então professor na Universidade de São Paulo.
o primeiro ponto levantado por Arbousse-Bastide diz res
peito à posição do sociólogo europeu em solo brasileiro. Ele
corre o risco, destaca o autor, de ficar preso a uma esquizo
frenia entre seu ofício e o estatuto de viajante. Nenhuma de
suas categorias funciona, mas tudo é cativante. Vê-se, aqui,
aparecer a oposição entre um saber disciplinar ultrapassado
pela realidade que, presume-se,, ele permite compreender, e
uma vitalidade social, uma inventividade, que escapa às re
gras do método sociológico.
Sobre essa questão, Arbousse-Bastide cita seu colega Ro-
ger Bastide, notadamente a idéia que Gilberto Freyre "ressus
cita climas", a fim de retomar um debate metodológico já de
sencadeado a propósito de Freyre: a sociologia pode entrar
no particular ou deve limitar-se ao geral? Resumindo, Freyre
é um escritor regionalista ou um sociólogo? Arbousse-Bastide
trata esta questão a partir das expectativas do meio brasileiro,
que reprova o fato de Freyre não concluir, não apresentar con
selhos práticos que possam ser úteis para o desenvolvimento
político do país. Ao contrário, ele o elogia, destacando a te
naz vontade de permanecer descritivo ostentada pelo autor.
Longe de reprovar o fato de Freyre deixar o leitor diante de
uma poeira de fatos, Arbousse-Bastide nota que este último
estrutura vigorosamente sua documentação através da atribui
ção de títulos a cada um de seus capítulos: é através deles que
tipos sociais se anunciam. Assim, no seu modo de ver, todo o
debate coloca-se no plano das metodologias comparadas da
etnologia e da sociologia, e do papel que representa a descri
ção, e a sutileza desta, na elaboração do saber sociológico. A
importância que Freyre atribui aos valores e aos comporta
mentos é parte integrante do saber sociológico. Mas Freyre
vai, para a alegria de Arbousse-Bastide, bem além do esque-
matismo desencarnado de muitos sociólogos.
A questão não se coloca, no entanto, no nível dos valo
res, ainda que seja bom, em uma tática própria do meio socio
lógico, destacar a importância desses. Freyre emprega uma
perspectiva bem mais fundamental para seu objeto, na qual,

VJ
imediatamente, os valores passam a ocupar seus lugares. Essa
postura teórica poderia ser chamada: a ecologia humana e
social. A ecologia é um estudo sistemático do meio, geográfi
co, demográfico e econômico, em que o representa um
papel particular. Disto resulta que a sociologia de Freyre não é
"geral", mas "regional" e concreta. Por essa razão, a monogra
fia, método de exposição escolhido por Freyre, adquire um valor
geral. Sem querer transformá-la em uma norma absoluta,
Arbousse-Bastide cita então Durkheim, em cuja obra ele en
contra uma maneira de justificar o método de Freyre. Melhor
ainda, Freyre é bem-sucedido lá onde Durkheim falhou, dian
te de seus próprios princípios, limitando-se a uma visão mui
to abstrata sobre o social.

A última parte do artigo trata, mais especificamente, do


conteúdo histórico e social de UmEngenheiro Francês no Brasil.
Arbousse-Bastide fala, ainda mais uma vez, de método, de pes
quisa em arquivos, de criatividade séria. Mas ele se interessa
também, e voluntariamente, pelo jogo de espelho proporcio
nado por uma obra que tem por objeto um francês, como ele
próprio, contratado para vir trabalhar no Brasil: o engenhei
ro Vauthier. O tema principal é o da transmissão dos valores
do trabalho técnico da França para o Brasil. Arbousse-Bastide
endossa, globalmente, a posição desenvolvida por Freyre so
bre a origem protestante dessa mensagem, ainda que ele faça
algumas retificações. O artigo termina em um clima menos
científico e mais político: se a França contribuiu através de
seus engenheiros e de seus valores de seriedade e de liberda
de para o desenvolvimento econômico e social, o que aconte
cerá, doravante, com esta semeadura simbólica que orna seus
selos na hora em que ele escreve? O artigo é datado de 17 de
junho de 1940.
O comentário redigido por Fernand Braudel (1943), du
rante sua detenção na Alemanha, aparece em plena guerra
sob o título: A travers un continent d'Histoire. Le Brêsil et Voeuvre
de Gilberto Freyre, e marca, de uma certa maneira, o reconheci
mento conferido a Freyre por aquela que será chamada a Éco-
le des Annales. Desde novembro de 1945, em uma carta ende
reçada a Freyre, Braudel solicitará a este último que ele faça
parte do comitê de patronage dos Annales. Sociétés, Economies,
Civilisationsy que ele co-dirige, desde então, com Lucien Feb-
vre. Em 1953, Gilberto Freyre será eleito por unanimidade
membro do Comitê Diretor da Associação Marc Bloch, braço
secular da VI Seção da Ecole Pratique des Hautes Etudes, presidi
da por Braudel.
Evidentemente, o historiador Braudel traz o sociólogo
Freyre para o lado da história. Questão de honra disciplinar.
Mas ele não escapa, não mais do que Bastide, da questão da
escrita. Para ele, Freyre é "um escritor nato". Isso significa
que a obra não é acadêmica, que ela escapa às manias dos
escritos eruditos, esta discursividade feita de afirmações e "de
lamentações eruditas de rigor", como ele diz ironicamente.
Mas para Braudel, se Freyre é poeta, é porque ele é brasi
leiro. "Gilberto Freyre é brasileiro [...] fonte, sem nenhuma
dúvida, da ressonância poética de sua obra". "Poética" signifi
ca aqui, primeiramente, complexidade, o acento sendo colo
cado na busca ardente do destino do Brasil. Braudel indica,
com isso, que a análise recusa limitar-se ao que existe. Ela pro
cura estabelecer vetores entre um passado e um devir, entre
uma história e um destino. A essa tensão, Braudel dá imediata
mente um nome da nomenclatura literária: é o ensaio. Gilberto
Freyre é, como muitos intelectuais brasileiros, um ensaísta. Con
trário, evidentemente, ao saber refletido do historiador acadê
mico, que muito desconfia de toda tentação de pensar no tem
po, prendendo-se às "lamentações eruditas". Quanto a Freyre,
ele pertence à linhagem dos Unamuno e dos Ortega y Gasset.
Ele está entre consciência e instinto, herdeiro de Euclides da
Cunha, Afrânio Peixoto e Paulo Prado, ensaísta na alma. Toda
via, Braudel retrata-se, como que para atenuar a ambivalência
do cumprimento, ensaísta, certamente, mas lúcido, documen
tado, "ensaísta sim, mas historiador no encalço...".
Esperava-se, então, que o historiador aqui invocado fos
se a figura tutelar do profissional acostumado com os rigo-

.V/
res da disciplina. Ao contrário, Braudel nos ensina que
Freyre goza de uma ascendência de onde ele pode, à von
tade, buscar informações de primeira mão. Ele pertence à
família dos Wanderley, dos Albuquerque, dos Cavalcanti,
olhos azuis e francos bebedores. Freyre é historiador, por
que ele é daqueles que, no Brasil, fizeram a história. Ob
servação ambivalente.
Uma vez instalados o autor e seu texto, Braudel dedica-
se a estabelecer, para o leitor francês, um quadro da história
brasileira. Desfilam os três tempos - colonização, império e
república - e, posteriormente, os ciclos econômicos - madei
ra, açúcar, ouro, borracha, algodão, café - que cadenciam a
história brasileira. Braudel elogia, então, o fato de Freyre não
ter cedido à tentação, sempre presente entre os historiado
res, da explicação única, seja ela política, econômica ou ra
cial. A esse respeito, ele lembra a tese de Manuel Bomflm so
bre o papel do índio. Surge, então, a verdadeira definição
braudeliana do método de Gilberto Freire: "Lá onde se dizia:
os governantes, as capitanias, o açúcar, as raças, ele vê ho
mens, famílias, meios sociais, aristocracias, populações escra
vas... O progresso é imenso".
Após o cumprimento dirigido ao historiador cujas orien
tações estão próximas daquelas dos Annales, a alfinetada. O
Brasil é uma terra de migrantes, de nômades, de sertanejos,
de bandeirantes, de tropeiros, de mascates e, apesar de tudo
isso, Gilberto Freyre fala apenas dos sedentários das Gasas e
dos Sobrados, das Senzalas e dos Mocambos. Generoso, após
ter dado sua lição, Braudel tenta fazer, em seguida, um longo
resumo, muito pensado e o mais fiel possível, das análises de
Casa-Grande 8l Senzala, e de Sobrados e Mucambos, obra esta que
parece ser a sua preferida. Mas isso não o impede de achar
que a referência arquitetônica escolhida por Freyre simplifi
ca, exageradamente, o quadro. Inicialmente, ele critica o es
quecimento de Salvador da Bahia, capital rica por suas igre
jas, por seu direito e seus funcionários. Em resumo, Freyre
negligenciou o poder em sua forma clássica.
Para terminar, Braudel destaca que se o Brasil de Freyre
é incompleto, ao menos ele é brasileiro. Trata-se de uma ou
tra maneira de dizer que ele é incompleto, pois, para Brau
del, existe um outro, aquele dos historiadores europeus, para
quem a América Latina é uma Europa americana e o Brasil
um país oceânico, europeu e mundial. Navios à vela e navios
a vapor também construíram o Brasil.
Dez anos depois do artigo de Braudel, Casa-Grande 8l Sen
zala aparece traduzido para o francês, com uma introdução
de Lucien Febvre. O título da introdução Brésil, lerre d'Hisloire,
lembra o título do artigo de Braudel e destaca uma continui
dade na atenção dada pelo grupo dos Aniialesà. obvdi de Freyre.
A primeira observação é sobre o título dado a essa edição.
Nela Febvre percebe uma espécie de eco envelhecido de um
título de romance russo do início do século. Crítica indireta
ao tradutor? Não se sabe. A única certeza é que Febvre tece
comentários críticos a respeito dessa tradução.
A segunda observação estende-se sobre todo o início do
texto e refere-se à diversidade brasileira. Febvre torna-se líri
co. Mais ainda, causando espanto a prosa animada que sai de
sua pluma, o comentador torna-se escritor "para homenagear
a escrita do brasileiro. Uma frase deste tipo é a prova: Mas
como os olhos dos animais luziam sob o jato das frases!".
A diversidade brasileira, bastante exótica, é um convite à
narração, à acumulação dos detalhes, à abundância. Existe
uma espécie de mimetismo literário que toma conta do pre-
faciador. Existem Brasis geográficos e naturais, mares e flo
restas, mas também Brasis humanos, de norte a sul, como gosta
de lembrar Febvre para melhor destacar a carência de Freyre
neste domínio. Já observada por Braudel.
Mas o essencial não está aqui. Ele está na capacidade que
a prosa de Freyre tem de criar mundos: e naquela de Febvre
de resumir as grandes linhas da demonstração.
Entretanto, o tema da diversidade conduz Febvre a um
terreno que nenhum outro crítico havia explorado: a ques-

.y.v
tão do colonialismo. Sob o pretexto da tentativa abortada dos
jesuítas de ensinarem os indiozinhos, ou os negros, a serem
bons cristãos à moda européia, Febvre coloca, em 1952, a
questão da revolta dos povos colonizados, de uma atualidade
muito delicada para a França: Uma civilização única (suben
tendida européia), onde todos os homens possam encontrar
sua pátria é possível?. O fracasso do aprendizado da proprie
dade, segundo o direito romano, ou a exigência da castidade,
segundo o cristianismo, fazem pensar que uma tal unificação
não é possível sem violência. Entretanto, prudentemente,
Febvre não conclui.

Lucien Febvre finalmente retorna à questão disciplinar,


da qual, aparentemente, os críticos franceses não abrem mão.
Freyre, historiador ou sociólogo? Contudo, a questão é logo
declarada sem objeto e ele responde: um livro de homem so
bre os homens. Universalismo? O particularismo cultural mui
tas vezes destacado não o deixa realmente pressentir. Livro
de brasileiro, então, que goza do privilégio de poder pensar a
época pós-colonial a partir de uma experiência tão rica no
domínio dos contatos de cultura que ela poderia muito bem
oferecer à sociologia e à história uma perspectiva singular
mente nova e útil? Certamente. E Lucien Febvre conclui: nis
to, Casa-Grande & Senzala é uma obra insubstituível.
A revista Cntzçue dedica, sob a pluma dejean Piei (1953),
um longo artigo à obra Genèse et contrastes du Brésil. "Senhores
e escravos", tradução de Casa-Grande & Senzala, que acaba de
aparecer na coleção La Croix du Sud, pela editora Gallimard,
ocupa o primeiro lugar.
Fiel mergulha imediatamente nesse livro e, pode-se di
zer, no mundo de Freyre. Sem fazer uma crítica de fundo e,
ao contrário, destacando o talento e a justeza da análise. Fiel
observa que o trabalho de Freyre pode ajudar a compreender
certas características contemporâneas colocadas em evidên
cia pelo segundo autor que ele critica. Isso lhe permite uma
transição para a América Latina. Entra em cena Tibor Men-
de. Esse livro trata, inicialmente, de economia, dos resquícios

.y/
de uma economia colonial, de monocultura e exportadora,
fortemente dependente das flutuações dos mercados mun
diais, cujo centro econômico e político é o Rio de Janeiro e,
em uma proporção menor, de uma economia de transforma
ção, preparando a autonomia econômica do país, essencial
mente instalada em São Paulo. Desde então, não se fala mais
de Freyre, salvo a propósito do papel econômico do "jogo de
bicho", sobre o qual Mende, Caillois e Freyre apresentam hi
póteses mais ou menos convergentes. Está claro que Fiel foi
um leitor entusiasta de Freyre, mas parece que seus interesses
vão além, na direção das transformações contemporâneas do
país que estão no centro da obra de Tibor Mende.
As Letires Nouvelles, sob a pluma de Roland Barthes
(1953), também tomam nota da publicação de Maitres et Es-
claves. A análise de Barthes dirige-se claramente aos france
ses, designados como um povo radicalmente mestiço, mas
que esquecera um pouco esta origem. A lição de Gilberto
Freyre, o vigor de sua obra, devem-se ao fato que ele mani
pula conjuntamente as grandes teorias históricas, sociológi
cas, psicanalíticas ou dietéticas, permanecendo, porém, no
imediatismo dos fatos, o mais próximo do corpo. Livro ma
terialista, portanto, Maitres et Esclaves inscreve-se na linha
gem prestigiosa dos Marc Bloch, dos Lucien Febvre ou dos
Fernand Braudel, com a vantagem, todavia, de construir uma
história total imediatamente a partir do corpo humano, da
saúde, dos temperamentos, em um estilo obsessivamente li
gado à substância. Com relação aos seus antecessores ou
colegas, Freyre inova, ainda, ao dar uma nova importância à
sexualidade, no espaço fechado da casa, desenvolvendo uma
psicanálise sem ambiente burguês.
Mas é a respeito da questão da raça que Barthes quer
prestar, da forma mais vibrante, sua homenagem a Freyre. Sua
exposição é científica e inteligente, mas ao criticar a mistifi
cação que é a noção de raça, Freyre trava um verdadeiro e
corajoso combate: o próprio combate do intelectual, que con
siste em introduzir a explicação nos vapores do mito. O autor

.y.i
das Mythologies acredita reconhecer um irmão no sociólogo
dos contatos de raça no Brasil.
Como na maior parte dos outros artigos, aquele de Jean
Pouillon (1953), em Temps Modemes, começa com uma obser
vação de tipo metodológica, Freyre estuda a "formação" étni
ca e social do Brasil, não sua "composição". Seu objetivo é,
portanto, histórico, ele visa o processo de constituição de uma
unidade social.

A menção do conceito de "história total" intervém ime


diatamente, e recebe de Pouillon uma significação que res
ponde a uma preocupação freqüentemente presente entre
os comentadores de Freyre: Casa-Grande & Senzala não traz
conclusão. O autor não privilegia nenhuma teoria, nenhu
ma causalidade. Segundo Pouillon, ele conclui a cada pági
na, pois a unidade dos fatos não é ideal ou teórica. Bem ao
contrário, ela existe nos próprios fatos. Se o real é compre
ensível, isso não significa que seja necessário dar ao leitor
uma chave. Aliás, qual chave? Existe uma centena, razão pela
qual ela não existe. Se o real é compreensível, é preciso ir
muito longe com a descrição, isto é, até o ponto em que a
pluralidade faça, ela mesma, aparecer a unidade do sentido,
em um espaço teórico onde a rivalidade dos métodos dê lu
gar a sua convergência.
Após o Colóquio ocorrido na Unesco, em 1948, a recep
ção de Freyre na França encontra seu segundo ponto culmi
nante na organização do encontro de Cerisy-La-Salle de 24 a
29 de julho de 1956. Ele é inteiramente dedicado a Gilberto
Freyre e a sua obra, e intitula-se: Um Mestre da Sociologia Brasi
leira: Gilberto Freyre. O comitê de organização é famoso: Paul
Arbousse-Bastide, Roger Bastide, Léon Bourdon, Fernand
Braudel, Roger Caillois, Paulo Carneiro, Henri Gouhier, Gil
berto Freyre, Georges Gurvitch e Michel Simon (aliás, Miguel
Simões Neto).
Foi Roger Bastide quem redigiu o argumento. Podem
ser distinguidos vários tipos de questões: a primeira diz res-
peito à exemplaridade do "modelo" brasileiro. Trata-se de iim
modelo universalizável, verdadeira solução náo-racista para o
problema da exploração de uma raça pela outra? O horizon
te das interrogações propostas por Bastide, em plena derro
cada colonial da França, é, portanto, oportunamente, a aboli
ção dos preconceitos raciais.
O segundo eixo proposto por Bastide retoma sua idéia
que a obra de Freyre é uma "sociologia proustiana". Tal méto
do pode ser generalizado ou aplicado a outros campos de pes
quisa? A poesia pode ser um método de conhecimento em
sociologia?
O terceiro tema é "sociologia e humanismo". Um novo
humanismo está nascendo a partir das ciências sociais?
Pode-se ver até que ponto o debate acadêmico proporcio
nou (sob a pressão da conjuntura política?) uma interroga
ção amplamente voltada para a função do saber das ciências
humanas na gestão das questões políticas.
Os Cahiers Intemationaux de Sociologie consúiWQm, no seio
da disciplina, o principal sustento de Freyre na França. Desde
a organização do encontro de Cerisy, Gurvitch convida Freyre
para publicar o texto de sua conferência ou, então, daquela
dada, alguns dias antes, na Ecole Pratique des Hauíes Études, re
sultado da instigação conjunta de Gurvitch e Braudel, que,
aliás, não o assistirá.
Desde a tradução de Casa-Grande & Senzala em francês,
os Ca/n'm darão conta dela sob a pluma de Georges Balandier
(1952). O autor lembra, por sua vez, a importância dos aspec
tos literários da obra, mas é para salientar que ela escapa dos
critérios acadêmicos, que ela é, no campo da sociologia, uma
contribuição metodologicamente original. Observando as pre
cauções de Freyre quanto ao marxismo, Balandier destaca que
seu método revela-se profundamente materialista: sistema de
produção latifundiário e demográfico (falta de mulheres bran
cas) estão no centro de sua argumentação. Freyre coloca em
posição difícil as teorias racistas sobre a formação do Brasil.
Balandier vê na obra, portanto, uma contribuição original para
o que ele chama uma "sociologia da vida cotidiana", visão que
surpreende a história "sem tempero". Freyre organiza sua re
flexão em torno de polifuncionalidades da Casa-Grande: forta
leza, capela, escola, oficina, hospital, harém, convento de mo
ças, hotelaria, banco... Finalmente, Balandier distingue uma
contribuição maior de Freyre ao conhecimento desta estrutu
ra social particular que é "o patriarcalismo agrário".
Em 1962, Jean Duvignaud publica, sempre nos Cahiers
Intemationaux de Sociologia, um artigo intitulado: "O Brasil na
'sua' sociologia, a sociologia 'no' Brasil".
O estudo começa sob os auspícios da sociologia do co
nhecimento então desenvolvida por Georges Gurvitch. Du
vignaud distingue gêneros de conhecimento que não corres
pondem necessariamente à nomenclatura acadêmica. O pri
meiro é o "conhecimento sociológico antropológico", cujo re
presentante mais conhecido é nada mais nada menos que o
próprio Gilberto Freyre. Diferentemente dos historiadores dos
Annales, Duvignaud traduz Freyre na linguagem teórica de
Gurvitch, dos "nós", dos patamares em profundidade, dos pla
nos de realidade, das reciprocidades de perspectivas. O pre
tenso "impressionismo" de Freyre é, portanto, colocado na
perspectiva de uma conceituação consistente, de um hiperteo-
ricismo, que apresenta correlação com um "hiperempirismo
dialético", reclamado por Gurvitch e cuja prova Freyre admi
nistra em seus trabalhos.

Mas Duvignaud não se limita ao plano do debate teóri


co. Como o indica o título de seu artigo, ele procura o Brasil
na sociologia, mas também o sociólogo na realidade brasi
leira. Essa vontade nos conduz, então, até Gilberto Freyre,
em sua casa, em sua mesa. O leitor é transportado para den
tro da Casa-Grande. No horizonte, um rio de açúcar ondula
sobre a colina ao ritmo dos ventos alísios. Esse mergulho na
intimidade é como um eco do texto de Freyre. Entretanto, a
paisagem social não explica a sociologia, diz Duvignaud,
como que para retificar a impressão furtivamente produzi-

.y.v
da, segundo a qual a freqüentação de sua intimidade escla
receria o erudito. Esse desvio serve para estabelecer um con
traste entre o sociólogo do nordeste e o sociólogo do Rio
(Alberto Guerreiro Ramos), sob o tema: Brasil agrário e Bra
sil industrial. A sua maneira, Duvignaud previne seu leitor
que a fascinação que exerce o Brasil rural de Freyre não deve
fazer esquecer o Brasil urbano.
Como havia anunciado, não tentarei concluir. A partir
da leitura dos principais textos da recepção, na França, de
Casa-Grande Sl Senzala, ficou claro que essa obra se beneficiou
de uma atenção cuidadosa no meio intelectual francês, parti
cularmente porque ela tinha fortes implicações em três do
mínios: a querela acadêmica das disciplinas, o estatuto da es
crita nas ciências humanas e as questões políticas relaciona
das ao problema das raças e do colonialismo. Gilberto Freyre
oferece, e todos os seus leitores estão de acordo, uma pers
pectiva teórica e metodológica, não desprovida de implica
ções políticas, fundamentalmente nova. Assim, ele permite aos
seus comentadores franceses engajarem-se nas principais ques
tões do momento.

Não seria possível dizer se as cinco ou seis décadas que


nos separam desses textos trouxeram respostas unívocas para
as questões então levantadas. Isso apenas marca de forma ain
da mais clara a importância que tem, ainda hoje, a análise dos
debates gerados pela obra, tomada em seu conjunto, do bra
sileiro atípico.

Referências

ARBOUSSE-BASTIDE, Paul. Prefácio a Gilberto Freyre. Vvi engenheiro


francês no Brasil. Obras reunidas. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1940.
BALANDIER, Georges. Gilberto Freyre, Maltres et Esclaves, préface
de L. Febvre, traduit du portugais par R. Bastide, Paris, 1952, 550p.
Bibliographie. Les Cahiers IntemalionauxdeSociologie,]2in.1954, p.
18.S-185.

'19
BARTHES, Roland. Maítres et Esclaves de Gilberto Freyre. Traduit du
portugais par Reger Bastide (Gallimard), Leltres Nouvelles, Vol. I, mars
1953, p. 107-108.
BASTIDE, Roger. État actuel des études afro-brésiliennes. Le problè-
me du contact des races. RevueIntemationale de Sociologie, 47^'"'' année,
n. I-II, jan.-fév, 1939, p. 77 - 96.
BRAUDEL, Fernand. A travers un continent d'Histoire. Le Brésil et
Toeuvre de Gilberto Freyre. In: ANNALES CHISTOIRE ECONOMI-
QUE ET SOCIALE, reproduzido em Mélanges d'Histoire Sociale, Tome
IV, 1943.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala-, formação da família brasi
leira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 1933.
_. Maítres et esclaves, traduction de Roger Bastide. Préface de Luci-
en Febvre, Gallimard, La Croix du Sud, 1952, 550p.
PIEL.Jean. Genèse et contrastes du Brésil. Critique, n. 71, avril 1953, p.
357-367.

POUILLON, Jean. Maítres et Esclaves, par Gilberto Freyre (Gallimard


édit.), Les Temps Modemes, n. 90, mai 1953, p. 1836-1838.
De Recife para o mundo
óanc/rcvíBesaoento

Gilberto Freyre é, no mínimo, controvertido. Desde a pu


blicação de Casa-Grande 8l Senzala, em 1933, sua obra tem sido
discutida e sido alvo ora de ataques, ora de defesas entusiasma
das por parte da academia.
Por ocasião do seu surgimento, tratava-se da obra certa para
o momento exato. Se Freyre teve ou não este insig/it, se possuiu
realmente o feeling que o levaria a escrever uma espécie de res
posta para as muitas questões que andavam no ar, são pondera
ções possíveis e plausíveis.
O que se pode afirmar é que, sem sombra de dúvida, sua
obra foi ao encontro de uma série de demandas que se encon
travam presentes naquele Brasil dos anos 30, correspondendo a
um certo horizonte de expectativas. Tais demandas e expectati
vas poderiam ser resumidas como a busca de uma comunidade
simbólica e imaginária de sentido, expressa pela reconstrução
ou invenção de uma identidade nacional nova.
Esse problema candente, por sua vez, implicava uma série
de mudanças no plano cultural: redefinições da parte com o
todo, ou seja, enfrentar a tarefa de conciliar a diversidade regio
nal com a unidade nacional; reformulação da imagem do país
em frente do contexto internacional; legitimação das novas alian
ças de poder que se processavam. Era preciso, pois, construir
formas de conciliar a permanência do "antigo" face à exigência
e à emergência do "novo". Portanto, questões como tradição e
desenvolvimento ou patrimônio e modernismo passavam, ne
cessariamente, por uma necessidade de releitura do país, que
marcasse a emergência de um novo tempo, mas sem romper
com as forças tradicionais.
Mais do que isso, tratando-se da formulação de um novo
projeto identitário, a proposta deveria ser dotada de uma positi-
vidade que permitisse a coesão social e inspirasse otimismo à
nação. Nesse contexto, nada melhor do que uma outra aborda
gem da formação nacional, que se voltasse para o passado na
expectativa de justificar o presente e garantir o futuro.
Nesse contexto,^ o novo olhar sobre o Brasil oferecido por
Gilberto Freyre é bem conhecido. A partir de sua publicação, a
obra de Freyre ganhou espaço no país, ao oferecer uma visão
antropológica, histórica e sociológica que respondia às questões
cruciais de sua época. Tudo isso, a rigor, já tem sido exaustiva
mente estudado, em particular no que se refere ao endosso da
visão freyriana da apologia da mestiçagem, redimindo a alma
nacional do estigma racial herdado do século XIX e que com
prometia o futuro da nação.
Por outro lado, a ênfase na acomodação e na negociação
sensual, amistosa e bem-humorada entre classes, raças e etnias
oferecia uma visão harmônica do social, o que redimia as elites
da sua tradicional função dominante.
Nas décadas de 60, 70 e mesmo 80, a obra de Freyre foi mais
do que rejeitada pela maioria da intelectualidade de esquerda do
país, que não apenas o acusava de eliminar o conflito na análise
da sociedade brasileira, como de ter contribuído para dar o res
paldo intelectual para a coalizão das elites governantes do país.
Além disso, de artífice intelectual que justificara e cimentara a
aliança de 30, Gilberto Freyre no pós-64 se solidarizara com o gol
pe militar, legitimando os atos da ditadura em sucessivas declara
ções pela imprensa. Tudo isso, como seria de se esperar, contri
buiu para que sua obra fosse desqualificada pela esquerda, e mes
mo a sua leitura fosse desaconselhada nas universidades, entendi
da como conservadora, equivocada e mesmo não-científica...

\^cr Bastos (1999, p. 217).


Mas, no exterior, parece que, pelo contrário, coube a Gil
berto Freyre tornar conhecido o Brasil.
Nos anos 90, o país assistiu a uma redescoberta da obra do
autor, o que pensamos que tenha a sua razão de ser com a reorien-
tação das ciências humanas no país, em particular da História. A
partir da expansão do que se convencionou chamar de uma
"Nova História Cultural", que dá entrada no país naquela déca
da, preocupações com a escrita e a leitura dos textos puseram na
ordem do dia a releitura dos chamados textos fundadores ou
clássicos, mesmo que tivessem passado por um período de re
chaço ou esquecimento.
Nesse sentido, tem razão Peter Burke (1997, p. 5), quando
diz que Gilberto Freyre, antes dos franceses dos Annales e, con
seqüentemente, da chamada "Nova História", se antecipara nos
estudos da história cultural. Preocupando-se com a cultura ma
terial, com as mentalidades, com os homens sem importância e
mesmo com temas pouco abordados como a infância, Gilberto
Freyre teria sido uma experiência avant Ia lettre dos atuais estu
dos da história cultural.

Em artigo relativamente recente, Maria Lúcia Burke (1997)


define a relação de Freyre com a Inglaterra como uma "história
de amor", destacando a importância das idéias do ensaísta Wal-
ter Pater para as análises do escritor brasileiro, idéias estas que
colocaram a casa - e, por extensão, a família - como o microcos
mo da análise do social. Da mesma forma, a autora destaca como
Freyre teria apreciado a estadia em Oxford, propondo a interes
sante idéia de que, no ambiente tradicional e aristocrata, Freyre
teria visto "um Brasil às avessas" (Burke, M., 1997, p. 21).
Sem discordar da análise da autora, gostaríamos de acres
centar, talvez, maisum "amor"à vidaafetivo-intelectual de Freyre,
cuja história parece obedecer também a um outro percurso.
Amor interesseiro, talvez, pois que lhe rendeu bons frutos... Amor
público, porque bradado aos quatro ventos, amor muitas vezes
repetido e reiterado ad nauseam por juras de afeição eterna...
Amor profícuo, do qual, por estranhos caminhos, de amante.
ele próprio se tornaria o fruto ilustre, dessas bodas transoceâni-
cas que uniram Recife a Paris...
Quase se poderia dizer que as palavras do crítico Alain Bos-
quet sobre a obra de Freyre sintetizariam a maneira do escritor
ver as relações do "seu" Nordeste com a França: bodas titânicas,
bodas gargantuescas, bodas heróicas...-
Esse seria um dos primeiros pontos a serem assinalados na
visão freyriana da relação entre a França e o Brasil: fora uma
espécie de relação de gigantes, de encontro magistral entre na
tureza e cultura, talvez, mas, sobretudo, fora um enfrentamento
entre pares. Não subordinação ou mera transplantação cultural,
como seria possível de entender, no caso da consagrada visão
das relações entre a América Latina e o Velho Mundo, mas uma
troca real: se o Brasil muito devia à França em termos "civilizacio-
nais", a França também tinha algo a apreender naquela terra
tropical. Ele, Mestre Freyre, seria o indicado para mediar a rela
ção titánica!
Aliás, nesse ponto, Gilberto Freyre tinha, como seria de es
perar, alto conceito de si próprio, diante do reconhecimento
internacional obtido por sua obra seminal Casa-Grande & Senza
la... Reiteradamente, afirmava que sempre fora aceito no exte
rior e recebera inúmeros convites, não por causa de um reco
nhecimento dos estrangeiros para com o Brasil ou para com o
governo brasileiro, mas pelo valor intelectual de sua obra.
Uma segunda questão, derivada desse primeiro patamar de
entendimento, viria do citado caráter gargantuesco das bodas
franco-brasileiras. Utilizando termos freyrianos, na base de tal
entendimento estaria o caráter dionisíaco presente nos dois la
dos. Entenda-se que Freyre sempre creditara esse componente
ao elemento negro, que mesclava a energia vital, a sensualidade
e o senso lúdico com a criatividade. Pois bem, Gilberto Freyre é
capaz de associar tal postura aos franceses, vendo na sua atitude

"O Casa-Grande &. Senzala, pela crítica francesa. O Cruzeiro. Rio


cieJaneiro, 1968.
intelectual de interesse pelo novo e pela descoberta, o ingre
diente dionisíaco. Essa predisposição de espírito seria assim, por
tanto, mais um elo que renovaria o diálogo França-Brasil.
Mas Gilberto Freyre ainda acentua outros pontos, neste caso
de amor transoceânico. Mais do que tudo, os franceses se reco
nheceriam no Brasil. O Brasil não seria assim o país distante e
exótico, mas aquele no qual fosse possível o francês se reencon
trar consigo mesmo, talvez até com seus sonhos e fantasmas mais
escondidos. Nesse sentido, a obra de Freyre consagraria o velho
mito pelo aporte científico.
Em outras palavras, Gilberto Freyre daria fundamento inte
lectual a um imaginário francês sobre o Brasil que vinha sendo
construído desde há muito tempo, a rigor, desde os relatos de
Jean de Léry. Freyre solidificaria e explicaria sociologicamente
esta visão. Poder-se-ia ainda dizer que, no plano da recepção,
havia um horizonte de expectativas com relação ao Brasil, ao
qual os estudos de Freyre vieram ao encontro e confirmaram.
Por último, caberia introduzir a idéia que sedimenta essa
relação amorosa: do Recife para o mundo, de Gilberto Freyre
para a França, articula-se uma dimensão regional com outra
universal. A proposta de Freyre, nesse sentido, centra-se na con
cepção que ele constrói para sua obra, como elo de união entre
as duas instâncias: pela sua abordagem, e pelo seu valor, ao falar
do Recife - ou do Nordeste, talvez, mais amplamente -, Gilberto
Freyre fala do universal, e é nessa perspectiva que as dimensões
de escala deixam de ter sentido, ou mesmo a caracterização de
exótico, que parece incomodá-lo bastante. Deixaria de ter senti
do até a própria identificação da sua leitura de Brasil, com a
aceitação oficial de sua obra ocorrida no pós-30.
Como diriam seus admiradores, Freyre seria maior que o
próprio Brasil e não precisava de intermediários ou chancelas
nacionais para chegar ao mundo...
Como foi possível realizar essa leitura da recepção de Gil
berto Freyre sobre sua recepção pela França?
A FundaçãoJoaquim Nabuco e a Fundação Gilberto Freyre,
no Recife, possuem valiosos acervos documentais que somente
agora se acham em vias de organização sistemática para serem
entregues ao público interessado. Destes fundos, selecionamos
para análise artigos de jornais e revistas das décadas de 40 a 70,
de Freyre ou que dele falam e que permitem entrever a sua for
ma de pensar a França e os franceses. Procedemos, pois, a uma
leitura a partir de documentação fundamentalmente brasileira.
Recuperemos, então, as instâncias ou pontos acima assina
lados segundo os quais se sedimentou aquela relação.
O próprio Gilberto Freyre se incumbe de historiar a "des
coberta" da França pelos brasileiros e o papel que ele próprio
e sua obra desempenharam neste processo. Desde a década de
40, dizia, ele "tentara dar uma nova orientação ao estudo das
relações do Brasil com a França" (Freyre, 1957d, p. 1), e fora
na busca de resgatar estas influências, não mais Junto aos já
conhecidos grandes personagens e fatos, que ele chegara a uma
nova estratégia de abordagem. Recorrendo a novas fontes, como
processos judiciais, inquisitoriais e a velhos jornais, Gilberto
Freyre desvendara novas práticas e atores, trazendo à luz ho
mens comuns, anônimos, retraçando o cotidiano das relações
sutis e quase desapercebidas que traçavam os caminhos da Fran
ça no Brasil.
A história dessa aproximação parece ter começado mesmo
antes da tradução de suas obras para o francês. Comentando
Casa-Grande & Senzala na RévueIntemaíionale de Sociologie, Roger
Bastide (1939), destacava alguns elementos inovadores introdu
zidos por Freyre, misturando realidades sociais com imagens e
reminiscências de um "velho Brasil". Tal abordagem carecia de
uma teoria própria, mas o resultado levava a pensar que a forma
poética, escolhida pelo autor, podia levar a um novo método de
conhecimento. Em 1940, por ocasião da publicação de UmEnge
nheiroFrancês no Brasil, pelaJosé Olympió, obra que resultará da
análise que Freyre fizera dos diários do engenheiro Vauthier,
encontrados em Paris e que lhe haviam sido entregues por Pau-

'^6
Io Prado, o sociólogo francês Paul Arbusse Bastide se incumbiu
de escrever o prefácio da nova obra.
Comentando o livro, Manoel Diegues Jr. (1940) destacou
que Gilberto Freyre resgatava a até então pouco estudada influ
ência francesa na vida do Brasil. Essa preocupação seria ressalta
da pelo próprio Freyre (1944b), ao declarar que era preciso re-
aproximar-se da contribuição cultural francesa, o que poderia
servir de "anteparo não só intelectual como político aos exces
sos de influência norte-americana".

Aqui tem lugar o primeiro dos pontos assinalados da vi


são freyriana: o de que as relações França-Brasil se davam em
termos de reciprocidade, numa espécie de enco*ntro de
"iguais" forças.
Na sua versão sobre a "redescoberta" do país pelos france
ses e de seu papel neste processo, Freyre (1944b) declarava que
a França concorria para "a afirmação do brasileiro enquanto povo
de cultura quanto possível própria e original".
Como entender tais afirmações, por parte de alguém que,
como se sabe, reivindicava o estatuto de ciência para sua origi
nalíssima "Tropicologia" (Freyre, 1956b), a qual se desdobrava,
por sua vez, nos ramos da Hispanotropicologia e, sobretudo, da
Lusotropicologia? Justamente ele, que destacara, em Casa-Gran-
de & Senzala, o especial feito dos portugueses em criar uma civi
lização sui generis nos trópicos? Estaríamos diante de uma reali
dade "Francotropicológica", pelo menos no que se refere ao pla
no das influências básicas e, no caso, de influências recíprocas?
Quase... Freyre (1957a) argumenta que havia agora "uma
reaproximação do jovem Brasil com a semprejovem França em
termos de reciprocidade e à base de uma compreensão interlati-
na". Haveria como que uma "moderna reconquista da gente ar
tística e intelectual brasileira pelo espírito francês".
Mesmo que o Brasil recebesse influência de outros povos,
seria através de um fundamento de latinidade, presente na base
do seu modo nacional de ser, que o Brasil estaria indissoluvel-
mente ligado à França. Na mesma linha de radocínio, Freyre
(1957c) afirmaria que, se o Brasil era o centro de uma cultura nos
trópicos, sendo a sua mais "nova e vigorosa expressão", a França
teria sido a inspiradora, no Brasil, de uma cultura neolatina.
Mais do que isso, Freyre (1954a) chegaria a dizer que o 14
de julho deveria ser uma festa não só para os franceses, mas tam
bém para os brasileiros, para aqueles que, sem serem "afrance-
sados", admiravam o que de "belo, bom e claro" tinha sido trazi
do pelos franceses ao desenvolvimento nacional. Nesse sentido,
o Brasil, marcado tão profundamente pela França, resistia bra
vamente a quanto impulso antifrancês que aparecia. O escritor
chega, por mais de uma vez, a opor-se ao que chama de "rasta-
cuerismo" [sic], de um certo "novoriquismo" que animava súbi
tas paixões pelos Estados Unidos ou União Soviética (Freyre,
1952a), assim como defendia com veemência o estudo da língua
francesa entre os jovens (Freyre, 1954b). Gilberto Freyre enfati
zava também a importância do ensino e conhecimento do in
glês, mas alarmava-se com a possibilidade de "esquecermos qua
se de todo a França para nos entregarmos ao exclusivo domínio
intelectual dos chamados anglo-saxòes" (Freyre, 1944a).
Em face de todas essas questões, o argumento de Freyre faz
agigantar-se a presença da França, que vinha desempenhando o
nobre papel de não só não se recusar a "exclusivismos que ce
gam os espíritos" na sua influência cultural sobre as nações
(Freyre, 1953b), como também se oferecia como a pátria-refú-
gio que acolhia, "com lucidez e generosidade, as vítimas do pu-
ritanismo anglo-saxão e dos despotismos policiais ou políticos
eslavos, ibéricos ou latino-americanos" (Freyre, 1952b).
As declarações de admiração inconteste pela França não
paravam por aí: Mestre Freyre (1953b) destacava que o que ha
via de melhor na cultura da França era "uma universalidade, um
equilíbrio de valores, uma harmonia entre extremos".
Era a reputada universalidade o núcleo central do aporte
francês ao mundo e que Freyre destacava como essencial na sua
relação com o Brasil.
Ora, o que individualizava esse atributo era esta capacida
de ou este espírito disposto a encarar ou abrigar o múltiplo, ou
talvez ainda o respeito pela diferença, implicando o reconheci
mento do "outro". Tais habilidades deveriam estar contidas na
postura do universalismo, fornecendo as condições para que a
França entendesse o Brasil. Ou seja, entender e dar o devido
valor à obra dele próprio, Gilberto Freyre...
Esse espírito universalista, Gilberto Freyre iria encontrar na
Sorbonne, universidade secular que o prestigiara e da qual ele
faria uma apaixonada defesa, diante de críticas feitas de que a
mesma se encontraria decadente: "Nenhum centro europeu,
americano ou asiático tem o ambiente de universalidade de in
teresses, preocupações e atividades superiormente intelectuais
que dão á Sorbonne atual a sua plenitude de centro de estudos
universitários" (Freyre, 1953a).
Só havia termos de comparação, ante o cosmopolitismo da
instituição francesa, com a Universidade de Columbia, central
na formação de Freyre, mas, mesmo assim, ele assegurava que à
Sorbonne cabia o primeiro lugar.
E, para falar da França, nada melhor do que falar de Paris,
esta cidade que, na opinião do autor, continuava a dar ao mun
do as maiores contribuições de universalismo nas artes, nas le
tras, nas ciências humanas em geral. Paris era verdadeiramente
a sede deste admirável géniefrançais, que se expressava na cria
ção e na contínua reinterpretação dos valores humanos.
Era para esta verdadeira "cidade-luz" que todos se voltavam,
dizia Freyre, na busca dos valores universais. Aliás, na sua opi
nião, o reconhecimento internacional dos grandes nomes e obras
teria de passar, obrigatoriamente, pelo reconhecimento da capi
tal francesa (Freyre, 1954a). Pessoas como Picasso ou Madame
Curie, lembrava Freyre (1976b), teriam como que "nascido de
novo" em Paris para depois se universalizarem. Como, talvez, ele
o fizera, poder-se-ia acrescentar...
Paris era, na sua opinião, "uma cidade cuja inteligência
tem se especializado em apurar o que há de universal no exó-
tico e de permanência nas audácias dos inovadores" (Freyre,
1954a).
A conclusão era de que, aos olhos do celebrado géniefmn-
çais, os trabalhos intelectuais de superior qualidade eram reco
nhecidos como provenientes de um seleto grupo de "iguais".
Tal como sucedera com ele, Gilberto Freyre, que fora consagra
do reiteradamente pela França e a quem pagava agora tributo,
expressando sua admiração...
Desde a sua participação no Colóquio dos Oito da Unesco, em
1948, que reunira intelectuais das diferentes áreas das ciências
humanas para discutir problemas internacionais, Freyre orgu-
Ihava-se de ter sido convidado pela sua expressão intelectual, e
não por ser um representante do governo brasileiro ou por es
tar comprometido com a política de seu país, tal como lhe a-
cusara Gurvitch, num primeiro momento, por ele ter sido depu
tado constituinte de 1946 (Freyre, 1972, p. 5-6). Tal argumento
Freyre repetira todas as vezes que fora alvo de homenagens da
França, por ocasião das conferências proferidas na Sorbonne e
no Colóquio de Cerisy, em 1956, onde se discutiu sua obra, ou quan
do recebeu o título de doutor honoris causa pela mesma Sorbon
ne, em 1965: "na Europa o que vale não é o cargo, mas o valor
cultural..." (Freyre, 1956d).
Num exagero lírico e talvez sensual, porque olfativo, Gil
berto Freyre celebraria o "ar de Paris", que inspiraria melhor o
intelecto e que tornava essa cidade ímpar! Paris constituíra-se
como que em refúgio para os homens de espírito e sensibilida
de, ao mesmo tempo em que era um remanso acolhedor para os
refugiados e vítimas de todas as partes onde houvesse intolerân
cia e obscurantismo...

Cabe referir que, nessas suas apreciações, Gilberto Freyre


sempre se referia à França como um bloco homogêneo, e que a
performance ou a fala de cada francês valiam pelo todo. Recupe
rando o conteúdo matriz para este lastro de latinidade - o espí
rito universalista-, Freyre reatualizava estereótipos consagrados
sobre a França.

.iO
De Roger Bastida, um dos franceses sobre os quais escre
vera de maneira elogiosa, destacando a universalidade da sua
postura intelectual, Freyre (s. d., p. 6) diria que ele teria tido a
"capacidade de fraternizar com os brasileiros" e que soubera
"entender os diferentes saberes" que provinham do povo, do
folclore.

Mas Freyre ia mais além: chegava a afirmar que o saber de


Roger Bastide, saber de base francesa, adquirira vulto e impor
tância por causa da sua experiência no Brasil. Ou seja, Bastide
era o que era por causa do Brasil! (Freyre, s. d., p. 70).
Chegamos, portanto, a um patamar possível para estabele
cer a reciprocidade do contato cultural França-Brasil em termos
de uma relação de iguais. Se a França estava na base da forma
ção latina nacional, esta seria, pois, uma plataforma comum de
entendimento inicial.

Mas o Brasil tinha algo a oferecer à França, algo que iria


permitir que os franceses não apenas aprendessem com o "país
tropical" e a sua fantástica e inusitada experiência de convivên
cia harmônica das raças, como pudessem se transformar e se
enriquecer com as lições oferecidas pelo Brasil, tanto no plano
das relações pessoais e sociais como no intelectual.
E, neste sentido, Freyre acentua que os franceses, uma vez
conhecendo o Brasil, não ficavam imunes a sua magia e sedu
ção. De Bastide, Freyre diria que, após a experiência brasileira,
ao retornar à França, já não era tão francês assim...
E como se o Brasil pudesse atenuar em parte o racionalis-
mo e o rigorismo francês e libertasse algo que os franceses repri
miam. Isso seria, no caso, qualquer coisa no âmbito da sensibili
dade? Da sensualidade? Da sexualidade? Sem sombra de dúvi
da, Gilberto Freyre (s. d., p. 71) apontava para a importância de
Eros no conhecimento do mundo.

Seja como for, o certo é que Freyre expõe que a particular


lógica e o tão renomado espírito crítico francês haviam se mes
clado à sensibilidade, criatividade e savoir-faire áo Brasil, e dessa

.>/
conjunção surgira uma possibilidade de entendimento e com
preensão. Diferentemente dos anglo-saxões, "donos da verda
de", os franceses aceitavam a diferença e com isso podiam en
tender a especificidade do Brasil luso-tropical.
Note-se que Gilberto Freyre trabalha com a dimensão de
um conhecimento extracientífico, que é esta sensibilidade e aber
tura do olhar que permite ver o ainda não visto, indo ao encon
tro da situação psicossocial de um povo. Essa sensibilidade "fina"
seria o fundamento do próprio saber que consegue apreender o
real para além das verdades estabelecidas. Espécie de historia
dor avant Ia lellreá'3& mentalidades - contemporaneamente tal
vezse falasse em imaginário... -, os caminhos abertos por Freyre,
ousados para o seu tempo, parecem ter realmente seduzido os
franceses.

"Freyre nos fez amar o Brasil", teria dito Blaise Cendrars,'^


ao comentar a recepção da obra do escritor pernambucano na
França.
Como isso foi possível, ou seja, como se pode entender esta
"relação de iguais" para além dos caminhos da empatia ou da
paixão?
Ora, isso teria se dado, segundo Freyre, tanto por causa do
substrato latino original a unir França e Brasil, quanto pela com-
plementação de habilidades acerca do conhecimento do mun
do, que produzira a feliz combinação da crítica racional com a
sensibilidade e a intuição.
Mas, nesse ponto, cabe introduzir o papel desempenhado
por ele, Freyre, nessa redescoberta do Brasil pelos franceses (e
também pelos brasileiros, por suposto...) e na revelação da pos
sibilidade desta espécie de relação de iguais.
Ele, Gilberto Freyre, seria o intermediário e o elemento
chave do entendimento França-Brasil.

^Repercussão do novo livro de Gilberto Freyre em francês. DiáriodePernambu


co. Recife. 16 de/.. 1956.
Teria, em parte, razões para pensar assim. Pois o francês
Jean Colomès, em visita a Recife, em 1951, não falava do grande
interesse da França pelas coisas do Brasil, interesse este desper
tado pela obra de Freyre Interpretação do Brasil? Antes, esclarecia
o visitante, só se tinha conhecimento do país através da obra de
Stefan Zweig, Ten'e de Vavenir.^
Da mesma forma, o professor Jean Louis Marfaing, tam
bém em visita a Recife, dizia que seu conhecimento sobre o Bra
sil lhe viera da obra de Gilberto FreTre.""'
Mas o que parece ter mobilizado a crítica francesa é o fato
de que sua obra parecia se situar fora das categorias habituais.
Como disse Georges Balandier, o livro de Freyre, Casa-Grande &.
Senzala, mesclava o talento literário com as minúcias de uma
observação científica. Além disso, propunha uma visão estimu
lante e original, fosse na sua interpretação, fosse pelos métodos
empregados.
Não seria por nada que Roger Bastide (1939) chegaria a
declarar que a obra de Freyre teria "qualquer coisa de proustia-
no"! Com essa obser\'ação, pode-se apreciar, claramente, o alto
grau de aceitação do seu trabalho pelos franceses...
Roger Bastide iria reiterar esta opinião altamente elogiosa
ao destacar, no Colóquio deCetisy, que Gilberto Freyre, ao realizar
uma sociologia proustiana, provara que a poesia poderia ser um
método de conhecimento.'^

Freyre seria, pois, "um igual" na comunidade internacio


nal de intelectuais, e, através dele, elevava-se a imagem do Bra
sil. Reiteradamente, osjornais brasileiros e a imprensa estran
geira acentuavam o excelente domínio da língua francesa por
parte do escritor pernambucano. Por seu lado, Freyre (1957e)

' Interesse cia França pelas coisas do Brasil. DiáriodePernambuco. Recife 19set
1951.
•'Crescente interesse da França pelaobra de Gilberto Freyre. Diárío de Pernam
buco. Recife, 23 abr. 1954.
"Gilberto Freyre eni Cerisy. /orxrt/ do Comércio. Recife, 29 jul. 1956.

fíiV
gabava-se de contar, por ocasião de suas conferências no exte
rior, com um numeroso público francês, deplorando aqueles
que iam ao estrangeiro para falar para escassos ouvintes con
terrâneos.

Cimentava essa base de reciprocidade no intercâmbio Fran-


ça-Brasil o fato de Freyre afirmar sempre que a penetração cul
tural francesa não se revestia, desde o ponto de vista brasileiro,
de um mero caráter de importação ou cópia.
Por exemplo, com relação à contribuição da França nas
artes plásticas, dizia Freyre (1956c), era manifesta a "pernambu-
canidade" das obras. Ou seja, se era natural que a gigantesca e
Jovem nação recebesse variadas influências, isso não impedia a
existência de uma reelaboração original, que conferia às mani
festações artísticas produzidas no país um caráter genuinamen
te nacional, a revelar um ethos próprio.
Passemos, contudo, ao segundo ponto assinalado pela vi
são freyriana: o caráter gargantuesco, desmedido, exagerado,
transbordante de vitalidade das bodas Brasil-França, celebradas
sob a égide da sua obra.
A expressão fora usada, tal como foi anunciado antes, pelo
crítico Alain Bosquet, da revista francesa Combat. Bosquet referi
ra que, em Casa-Grande& Senzala, podiam ser apreciadas as bo
das gargantuescas e titânicas, durante as quais fora concebido,
tinha nascido e tinha sido educado o Brasil.

Tomamos essa imagem grandiosa e, sobretudo, rabelaisia-


na para nos referirmos a certa dimensão. Já assinalada, que ex
pressaria a nova aliança franco-brasileira proporcionada pela obra
de Freyre. Freyre celebra a monumentalidade da influência cul
tural francesa, mas também agiganta o Brasil. Se os franceses se
surpreendem diante da revelação de uma cultura sensual e ero-
tizada e se admiram diante da experiência de mestiçagem que
fora capaz de criar um paraíso racial, o escritor pernambucano
revela ainda um outro dado que cimentaria este amor França-
Brasil: os franceses são também dionisíacos!
Ora, com essa assertiva, Freyre desloca de ator a atribui
ção do caráter dionisíaco. Da sensualidade e inventividade do
negro, desta força vital inculcada pela mistura racial que dá
esta energia positiva ao país, Freyre a transfere para os sociólo
gos franceses...
"A sociologia francesa é hoje das mais vivas da Europa", diz
ele, pois "sociólogos como Le Brás, Balandier, Aron, Friedman,
Caillois dão à sociologia francesa um caráter como dionisíaco"
(Freyre, 1957f).
Ora, sobre esse caráter dionisíaco, Gilberto Freyre o enten
de como aquele saber vivo, irrequieto, inovador, aberto às novas
experiências e contribuições, o gosto pela descoberta... O dioni
síaco é, para ele o impulso vital, fonte de todo o prazer, incluin
do o conhecimento sensorial e a capacidade de apreensão e in
tuição do mundo. No seu entender, Georges Gurvitch seria, den
tre aqueles sociólogos franceses de seu tempo, o mais dionisía
co, por ser o mais criador e renovador de todos.
Portanto, no substrato de um modo de ser francês, que se
realizava no plano intelectual, se verificaria a presença desta
"energia" que, no caso brasileiro, se localizaria na área dos senti
mentos, na "alma nacional", mestiça. União de energias, de im
pulsosvitais criadores, portanto, a solidificar uma relação, a pos
sibilitar o entendimento e as trocas entre "iguais". Cada um, no
caso, gigante a seu modo, mas igualmente heróico na sua ex
pressão criativa.
De uma outra forma, poder-se-ia dizer que o lado marcada-
mente"razão", francês, era capaz de ter uma fineza de percepção
para intuir e captar sensibilidades,e o lado "natureza", brasileiro,
sensível e emocional, era capaz também de construir um conheci
mento sobre o mundo. Como ele, no caso, GilbertoFreyre, o fize
ra, dando a revelar, pela primeira vez no campo intelectual, uma
visão ao mesmo tempo científica e sensível do Brasil.
O desdobramento possível de tais afinidades e bases de en
tendimento seriam dados pelo terceiro ponto anunciado, ex-
presso pelos próprios franceses e reafirmado por Freyre, de que
os franceses podiam se "reconhecer" no Brasil.
Entenda-se que, este "reconhecer-se no Brasil" é, sobretu
do, um reconhecer-se na e através da obra de Freyre. Freyre é,
no caso, o próprio Brasil, ou a sua imagem externa, veiculada
por sua obra.
Em discurso de saudação feito a Gilberto Freyre, por oca
sião de um almoço que lhe fora oferecido por professores da
Sorbonne, Paul Rivet destacara a importância da obra daquele
latino-americano na qual se reconheciam influências francesas.
Afinal, dizia Rivet, teria sido na França que se sistematizara a
sociologia moderna, e a obra de Freyre era, sem dúvida, de uma
avançada interpretação sociológica, que renovava as ciências
humanas.'

Esse seria um reconhecimento no plano intelectual, ou seja,


que permitia à França ver, no Brasil, a tradução tropical de um
lastro francês de base, que lá frutificara. Por exemplo, ao cele
brar a obra freyriana, por ocasião da concessão da láurea na Sor
bonne, em 1965, Roger Bastide dissera que o que mais chamava
a atenção, para o leitor estrangeiro, era a perfeita aliança entre
a objetividade científica e o humanismo (Freyre, 1965b). Ou seja,
qualidades estas reputadas como tradicionalmente francesas.
Daí as comparações de toda ordem, como até mesmo o con
teúdo proustiano que lhe foi atribuído. Se Freyre lembrava
ProList, havia, sem dúvida, algo nele no qual os franceses pode
riam se reconhecer. No fundo, se o reverenciavam, reconheciam
a importância da transculturação de valores franceses no Brasil.
Tema este, aliás, de um curso dado por Gilberto Freyre na Uni
versidade de Pernambuco, que contribuía assim para a divulga
ção desta imagem.^

^Gilberto Freyre: renovador vigoroso das ciências do homem. Diário de Per


nambuco. Recife, 11 set. 1956.
"Encerra-se hoje, na Faculdade de Filosofia,o curso de Gilberto Freyre. Diário
de Pernambuco. Recife, 11 nov. 1955.
Por outro lado, Gilberto Freyre (1972, p. 14) que se dizia,
aceito pela França por ser um intelectual que produzira um sa
ber novo, destacava a importância intelectual de certos france
ses, como Bastíde, que haviam chegado às mesmas conclusões
que ele, sobre a unidade metarracial ou transétnica da socieda
de brasileira (Freyre, s. d., p. 6).
Mas há uma outra forma de reconhecimento, que seria
aquela do imaginário francês sobre o Brasil. O Brasil que se re
velava ao estrangeiro confirmava o mito: era tudo o que se pen
sava e um pouco mais...
Gilberto Freyi"e (1972, p. 4) fala de sonhos "gauguinescos", ao
se referir às expectaü\'as de Georges Gunitch com relação ao Bra
sil, assim como de seus apetites por fmtas tropicais. Por outi o lado,
Roger Bastíde iria declarar que a obra de Freyi e "exprimia todo o
calor dos ü"ópicos",^ e que ele era capaz de levar ao leitor não só
imagens abstratas, mas "carnais esensuais" (Freyre, 1965b). Segun
do Bastíde, o Brasil era considerado modelo entre os países, corres
pondendo à imagem de uma civilização futura, "na qual todos os
homens possam buscar a sua pátria espiritual"... (Freyre, 1965b).
Tal visão, como foi alertado, parece ter correspondido a
um imaginário desde há muito presente entre os franceses so
bre o Brasil, vindo a obra de Freyre ao encontro justamente em
um momento em que a França necessitava repensar suas rela
ções e enfrentamentos com os "outros", internos e externos, no
mundo de pós-guerra.
Caberia perguntar se essa imagem ou utopia civilizatória se
construía ao inverso ou à semelhança da França... Não seria de
mais lembrar a conhecida forma de expressão, surgida no sé
culo XIX, de que todo indivíduo tinha duas pátrias: a sua e a
francesa. Ora, no caso citado, o Brasil era uma nova pátria espi
ritual para a humanidade, com certeza por causa da democracia
racial veiculada pela obra de Gilberto Freyre.

•'O julgamento de Casa-Grande & Senzala pela crítica francesa. O Cruzeiro. Rio
de Janeiro, 1968.
Para os franceses, diriam os jornais de Pernambuco, Gilber
to Freyre construíra, com a sua análise da família patriarcal de
Casa-Grande & Senzala, um modelo reduzido da sociedade brasi
leira.^" Para os leitores estrangeiros, o Brasil seria visualizado, no
seu conjunto, pela consagrada imagem tropical e nordestina.
Quer parecer ainda que, para efeitos de instrumentaliza
ção política, os novos detentores do poder no pós-30 haviam
feito uso, com sucesso, dessa imagem metonímica.
Entretanto, Freyre articulava ainda uma outra proposta, ao
destacar a articulação íntíma entre as instâncias do regional com
o universal.

Esse seu perfil, ancorado no seu Nordeste e, particularmen


te, na sua cidade, não passaria desapercebido da imprensa da
época. Quando de sua volta da Europa, onde fora homenagea
do, o Jomal do Comércio, de Recife comentava que a figura de
Gilberto Freyre deveria ser objeto de reflexão para "nós outros,
provincianos como ele"^h seu gosto era ser homem do Recife e
do mundo ao mesmo tempo!
Gilberto Freyre, segundo o periódico, se sobrepunha à pró
pria contingência interna do país e aos problemas dos governos.
Ele estaria, aparentemente, acima de tais coisas.
Gomo já se disse, Freyre não deixava de repetir que sempre
fora convidado por seu valor como intelectual e que jamais visi
tara o estrangeiro como representante do governo brasileiro ou
às custas do mesmo. Nesse sentido, iria, aparentemente, acumu
lar mágoas.
Já por ocasião de sua estada na França, em 1956, Freyre
(1956b) voltara declarando-se extremamente honrado com as
homenagens recebidas, mas dizendo que o Brasil era um país
desconhecido na Europa. Anonimato este que, sem dúvida, con-

Casa-Grande 8c Senzala: contribuição para uma sociologia da vida cotidiana.


Diário de Pernambuco. Recife, 15 ago. 1954.
" Notas avulsas, yomfl/ do Comércio. Recife, 6 sei. 1956.

,hV
trastava com a recepção de sua obra e os debates que em torno
dela se haviam travado em Cerisy e na Sorbonne, denotando um
reconhecimento incomum para um estrangeiro e, sobretudo,
latino-americano, em terras européias e francesas...
Além disso, ao destacar que não fora ao exterior em missão
oficial, Freyre comentaria que o governo brasileiro era "hoje tão
desatento a assuntos da cultura, quando autêntica".'-
A mágoa se acentuaria por ocasião da concessão do título
de doutor honoris cama pela Sorbonne, em 1965. O governo bra
sileiro não pagara a passagem, e mesmo o embaixador do Brasil
em Paris não quisera comparecer à cerimônia na Sorbonne, re
cebendo por ele a honraria.
"O governo tem faltado com a cultura e a boa educação no
seu trato com a Europa", disse Freyre (1972, p. 10) sobre o la
mentável incidente, anos depois.
Na época do incidente, Freyre foi mais comedido. Enquan
to osjornais de Pernambuco se escandalizavam com o episódio,
perguntando-se quem, no século XX, seria no Brasil maior do
que Gilberto Freyre,'^ o escritor agradecia o apoio recebido da
imprensa, mas declarava que o governo não tinha nenhuma obri
gação de pagar-lhe a passagem, pois recebera um convite indivi
dual, e não em nome da cultura brasileira. No mesmo artigo
publicado no Diário dePernambuco, hipotecava seu apoio ao Ato
Institucional n- 2, entendendo que os militares no poder agiam
segundo a vontade popular (Freyre, 1965a).
Freyre (1966) se dizia, nessa época, combatido no Brasil
por sociólogos e por literatos. Isso se dava, na opinião de alguns,
pelo fato de ele não representar bem a cultura brasileira, versão
esta que ele, ironicamente, dizia que até poderia concordar...
Mágoas e ironias à parte, esses episódios revelam um certo
desconforto do escritor com relação a atitudes "nacionais" com

'•-Brasil: uma civilização tropical estudada em universidades européias.yor««/


do Comércio. Recife, 6 set. 1956.
'•'Gilberto Freyre e a Sorbonne. Diário de Pernambuco. Recife, 26 out. 1965.

'ff
relação a sua pessoa e obra, ou talvez ressentimentos com rela
ção a expectativas de apoio ou reconhecimento não efetivadas
de acordo com planos pessoais. Entendemos, contudo, que tais
vieses de suas opções políticas ou projetos individuais são ape
nas um dos possíveis elementos que podem contribuir para este
seu "retorno" ao regional, "passando por cima" do nacional.
Outros vieses que podem ser acrescentados para explicar
essa atitude seriam dados pela própria conjuntura pós-30, assi
nalada pelo desenvolvimento industrial do centro-sul e pelo de-
sabrochar da Universidade de São Paulo como o grande centro
cultural do país, com um recuo de prestígio do Nordeste.
Desde os anos quarenta que Freyre comparece aosjornais,
em uma série de artigos, ora para enfatizar a intensa ligação de
Recife com Paris, ora para defender o Nordeste contra a "cen
tralização" da cultura no eixo Rio-São Paulo. Em ambas as situa
ções, o que se encontra em jogo é a aludida articulação cultural
da região com a França, sem intermediações da hegemonia pau
lista/carioca.
Para tanto, Freyre (1949c) ora destacava que Recife teria
sido a cidade brasileira que maior ligação teria tido com Paris,
ora suavizava a afirmação, dizendo que a capital pernambucana
era quase tão afrancesada quanto o Rio (Freyre, 1976a), mas
seguramente era "mais francesa" que as outras cidades brasilei
ras... (Freyre, 1976b). Recife, dizia Freyre (1957b), era tão cos
mopolita que Nina Rodrigues deveria lá ter escrito sua obra, e
não na tradicional Salvador!

Gilberto Freyre se empenhava em convidar os franceses mais


ilustres para visitar a cidade do Recife, todos eles seus amigos:
Bastide, Gurvitch, Duvignaud, Febvre, Braudel e outros mais, como
Michel Simon, Golomès, etc. Nesse sentido, o Instituto Joaquim
Nabuco, que os recepcionava, realizava um programa tanto regio
nalista quanto universalista, proporcionando o entrosamento da
intelectualidade local com os estrangeiros (Freyre, 1957a).
Essa articulação do regional com o universal, proporcio
nado pelos seus contatos no estrangeiro e pela divulgação de

^}}}
sua obra no exterior, assim como os reiterados artigos que
exibiam os fortes laços entre as duas partes, acabavam por
deixar perceber que o diálogo era possível: Recife falava para
o mundo, e o mundo lá estava contido. Era possível ao "ou
tro", europeu, lá se encontrar e se reconhecer, assim como
tudo o que da França viesse ou fosse dito encontraria eco na
quele Nordeste.
Mas era difícil contornar a hegemonia do eixo Rio-São Pau
lo, principalmente da rica e agitada capital paulista... Freyre ar
gumentava que os franceses em visita ao Brasil não deviam de-
ter-se só no "centro", em São Paulo, na USP, ou no Rio, na cha
mada "Universidade do Brasil": era preciso conhecer as provín
cias, como estava fazendo Lucien Febvre (Freyre, 1949a). Era
preciso tomar mate no Rio Grande do Sul, água de coco na Bahia,
para conhecer verdadeiramente o Brasil...

É preciso acabar com o furor da centralização que reduz o res


to a simples paisagem. A cultura brasileira é constelação...
(Freyre, 1949b).

Chamando a si a expressão consagrada de Benjamin Disra-


eli - "o mundo é Paris e Londres, o resto é paisagem" -, Gilberto
Freyre tomava deliberadamente o "partído" da paisagem: a re
gião tem especificidade, tem caráter, é expressão de cultura, é
legítima nas suas manifestações. Freyre entendia que os estran
geiros que desembarcavam no Brasil não deviam só ficar no Rio
ou São Paulo, pois havia muito mais a ver e a compreender no
país na sua imensa diversidade.
Por outro lado, essas partes não deveriam se empenhar
em competições entre si, ficando cada qual com a sua especifi
cidade. Casocontrário, o Recife iria disputar com Porto Alegre
para ver se conseguia ter tantos arranha-céus quanto a capital
sulina, ou tantos telefones ou carros modernos quanto Belo
Horizonte... (Freyre, 1952c). E, em cada uma dessas regiões,
despontavam gerações novas empenhadas na valorização de
culturas regionais.

6/
Portanto, é com desconforto que Freyre manifesta a sua
opinião quanto ao livro de Roger Bastide sobre os contrastes
do Brasil, que opunha a um sul progressista um nordeste atra
sado, e que encontrava eco na obra de Jacques Lambert. Gene
ralizações perigosas, ponderava Freyre, evidenciando que não
tinham conseguido se desembaraçar da influência dos intelec
tuais paulistas (Freyre, 1958b). Lamentavelmente, dizia Gilberto
Freyre (1958a), tratava-se de uma experiência francesa exclusi
vamente paulista. E, na sua opinião, era Recife quem falava para
o mundo...

No nosso entender, esse trânsito do regional para o uni


versal, em uma espécie de "salto" sobre o nacional, poderia
ter sua explicação tanto no rechaço à obra de Freyre pelo
público universitário de esquerda, como por um processo de
reversão de expectativas que ele experimentou com relação
aos governos brasileiros, pré e pós-64, como ainda nas novas
condições econômicas, políticas e culturais que acabaram se
impondo no país.
Esse último tópico da visão freyriana, contudo, entende
mos que seja um caminho em aberto e que pode nos levar a
novas reflexões.

Tal como, inclusive, um viés que ele introduz nesta articu


lação entre regional, nacional e internacional e que se revela
muito atual para as discussões que se travam, particularmente,
entre os historiadores.

Quando Freyre resgata o regional na sua dimensão possí


vel de diálogo com o universal, a variação de escala dá espaço a
compreensões aparentemente simples, mas que ainda hoje en
contram dificuldade de leitura para alguns: que é possível falar
do universal quando se fala na parte, que o diálogo foi e será
sempre possível quando há abertura do olhar e predisposição
para compreender o "outro". Porque afinal, nas ciências huma
nas em geral, o que se faz é sempre um esforço para pensar a
diferença e a alteridade.
Referências

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me dii contact des races. Révue Intemationale de Sociolo^e, n. I-II, jan.-
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tória de amor. Tempo Social, Rexâsta de Sociologia da USP, São Paulo, v.
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Diário de Pernambuco. Recife, 23 abr. 1954.
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ENCERRA-SE HOJE, na Faculdade de Filosofia, o curso de Gilberto


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30 maio 1976a.

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fe, 7 nov. 1952a.

. Ainda o livro do prof. Roger Bastide. Diário de Pernambuco. Re


cife, 18 maio 1958a.

. A propósito da decadência da Sorbonne. Diário de Pernambuco.


Recife, 22 nov. 1953a.
A propósito de Monsieur Michel Simon. Diário de Pernambuco.
Recife, 17 mar. 1957a.
. A propósito de uma láurea francesa. Diário de Pernambuco Reci
fe, 31 out. 1965a.

6',i
FREYRE, Gilberto. A propósito do 14 de Julho. Diário de Pemambiico.
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fe, 8 dez. 1957b.
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ces. Diogène, n. 17,jan. 1957d.
. Mais sobre a França e o Recife. Diário de Pernambuco. Recife, 6
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Na Sorbonne e no Castelo de Cerisy. O Cruzeiro. Rio de Janeiro,


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. O professor Gurvitch no Brasil. yomaZ do Comércio. Recife, 17


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econômica da Europa. Entrevista ao Diário de Pernambuco. Diário de
Pernambuco. Recife, 6 set. 1956b.

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FREYRE, Gilberto. Pintura, França c o Recife. Diário de Pemambuco.
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GILBERTO FREYRE e a Sorbonne. Diário de Pernambuco. Recife, 26


out. 1965.

GILBERTO FREYRE em Ccúsy.Jomal do Comércio. Recife, 29jul. 1956.


GILBERTO FREYRE: renovador vigoroso das ciências do homem. Diá
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INTERESSE DA França pelas coisas do Brasil. Diário de Pernambuco.
Recife, 19 set. 1951.
NOTAS avulsas./omfl/ do Comércio. Recife, 6 set. 1956.
O JULGAMENTO de Casa-Grande & Senzala pela crítica francesa. O
Cruzeiro. Rio de Janeiro, 1968.
REPERCUSSÃO DO novo livro de Gilberto Freyre em francês. Diário
de Pernambuco. Recife, 16 dez. 1956.
Ingleses na costa
<Jaftc/ra fftiarcfini ^ia:ei/'a '^lÁisconcefoS'

Anglófilo confesso, Gilberto Freyre dedicou dois livros de


sua vasta obra à cultura britânica. O primeiro, Ingleses, de 1942,
é uma coletânea de pequenos ensaios em que Freyre comenta,
sem plano aparente, personalidades e particularidades do país
que o marcou de modo especial e ao qual ele dizia amar com
"um amor físico e ao tempo mesmo místico" (Freyre, 1942, p.
21). O leitor dos poetas, ensaístas e historiadores britânicos, re
vela-se na indisfarçável admiração que professa não só pelo que
produziram mas também pelas conquistas da nação que o aco
lhera quando ainda jovem.
Embora as relações entre Brasil e Inglaterra não estejam no
escopo dessa pequena obra, Gilberto Freyre Já aponta, mesmo
que de maneira breve e pontual, a presença fugaz de nosso país
em um dos romances de Thomas Hardy, o interesse de Robert
Southey pela nossa história, que resultou no clássico TheHistory of
Brazil, ou o encanto de Rui Barbosa pelo liberalismo inglês.
Estavam aí as sementes do que viria a seguir, os primeiros
indícios de uma intenção, conforme anuncia, que Freyre iria
concretizar alguns anos depois, com Ingleses no Brasil, de 1948.
Nesse seu segundo livro, dedicado ao que ele chama de "influên
cia britânica sobre a vida, a paisagem, e a cultura" brasileiras, o
sociólogo pernambucano iria não só dar vazão ao seu declarado
e antigo interesse pelo tema, como ainda confirmar as trilhas
que Já havia aberto com Casa-GrandeSc Senzala.
Assim como seu sucedâneo mais famoso. Ingleses no Brasil
partilha do mesmo espírito ensaístico que move seu autor no
livro de 1933 e debruça-se sobre o mesmo problema que torna
ria Freyre célebre. Ali, como aqui, o foco é sempre a questão da
interpenetração das culturas, em busca dos elementos prepon
derantes na formação da cultura brasileira. Nesse sentido. Ingle
ses no Brasil é tão parte integrante das "tentativas de interpreta
ção da história brasileira" (Freyre, 1948, p. 44) quanto as obras
mais conhecidas de Gilberto Freyre. E se o impacto e a impor
tância de Casa-Grande8l Senzalas^o maiores e mais sensíveis, nem
por isso Ingleses no Brasil deveria ser, por óbvio, menosprezado e
colocado entre as obras menores.

Trata-se, afinal, do primeiro estudo de fôlego sobre a pre


sença britânica no Brasil e o seu papel na nossa formação.'
Embora os britânicos tenham perdido a posição central que
ocuparam no Brasil colônia e nos tempos do Império, deixa
ram marcas importantes e visíveis em nossa vida cultural, como
bem o demonstra Gilberto Freyre, amparado numa farta mas
sa documental.

O papel desempenhado pelos súditos de sua Majestade


Britânica nos negócios, na política e no comércio brasileiros
desde a vinda da corte portuguesa para o Brasil em 1808 por si
só explicaria e justificaria uma obra como essa. Mas Gilberto
Freyre vai além. Não é nos grandes personagens nem nos gran
des eventos que ele se detém. Seu foco são "os agentes menos
conhecidos e menos ilustres" (Freyre, 1948, p. 39), aqueles que
ele designa de "os marias-borralheiras da história" - comercian
tes, técnicos, artistas de teatro, médicos, mágicos, mecânicos,
dentistas, etc, etc.
A trilha aberta por Gilberto Freyre em Casa-Grande& Senza
la, onde se propusera a traçar a "história íntima" de negros, ín
dios e portugueses, devassando-lhes os espaços domésticos e
hábitos, é percorrida mais uma vez aqui através da reconstitui-
ção de uma história do cotidiano, de que fizeram parte os aven
tureiros que aqui aportaram em busca de lucro fácil e rápido e

' Há, é evidente, o livro de Alan Manchester, British Preêminense in Brazil, qiie é
de 1933, mas Manchester privilegia as questões políticas e diplomáticas.
trabalhadores que, apesar de personagens obscuros e secundá
rios, a seu modo contribuíram para com a modernização da in
cipiente sociedade brasileira.
É a petite histoire antecipada por Gilberto Freyre, um prati
cante avant Ia lettreáa nova história, como demonstra Peter Burke
(1997), ao enveredar pelos caminhos que os historiadores só
tornariam moeda corrente a partir da década de 60. Inovadores
também são seus métodos e a documentação de que se vale para
restaurar a participação dos ingleses na vida cotidiana do Rio,
Pernambuco e Bahia. Essa participação foi material, através da
introdução de artigos de consumo, objetos, alimentos e bebi
das; foi lingüística, através da incorporação de numerosos vocá
bulos ingleses ã língua portuguesa (gol, uísque, pudim, esporte,
futebol, iate, cheque, etc); mas ela se deu também através da
introdução de novos hábitos e costumes no dia-a-dia brasileiro;
a casa de subúrbio, a ingestão do chá, o veraneio na serra.
Os ingleses promoveram a modernização da vida brasilei
ra, construindo nossas primeiras estradas de ferro, substituindo
as diligências a cavaloque funcionavam como ônibus - eles tam
bém iniciativa inglesa -, abrindo poços artesianos. Menos cons-
pícuos que as marcas francesas em nossa cultura, os rastros dei
xados pela presença inglesa no Brasil passaram ainda pelos inú
meros Nelsons, Walters, Marys, Elizabeths, que nomearam crian
ças brasileiras e pelos pseudônimos adotados no final do século
passado, sob os quais se escondiam aqueles que desejavam dis
cutir publicamente suas idéias abolicionistas ou liberais.
Gilberto Freyre vai anotando, ao longo de sua exposição,
como os negócios ingleses no Brasil acabam por modificar até
mesmo a arquitetura doméstica, com a incorporação do hall e
do VE C. e a substituição das gelosias por Janelas de vidro e va
randas de ferro.^ Mostra ainda como seu modo de vida introdu-

- Isso, segundo Freyre, foi feito por ordem do novo governo, sob o pretexto de
que elas podiam esconder assassinos, sugerindo uma certa relação entre o edi
to e a "abundância de vidro inglês nos armazéns e nas lojas do Rio de Janeiro e
de Pernambuco, revelada pelos anúncios de jornal." (Freyre, 1948, p. 197).
ziu alterações também na paisagem, com seus gramados, seus
jardins, suas ferrovias, pontes e viadutos. Igualmente, pontua o
papel central desempenhado pelos engenheiros e técnicos bri
tânicos na melhoria e na modernização das condições materiais
de vida em áreas tão diversas e essenciais como a iluminação, o
transporte ou a comunicação.
Nesse compasso, vão surgindo retratos de homens que, ani
mados pelo espírito de aventura, às vezes inspirados em perso
nagens romanescos como Robinson Crusoe, não se contenta
ram em apenas arranhar as costas brasileiras, mas se embrenha
ram pelo interior do país, seja em expedições científicas, como
a do botânico George Gardner, seja a serviço, como o engenhei
ro James W. Well.
Assim como soube destacar da massa anônima de trabalha
dores aqueles cujo interesse resultou em obras concretas, fos
sem elas livros sobre o Brasil - como foi o caso de inúmeros
relatos de viajantes -, fossem elas ferrovias, Gilberto Freyre igual
mente soube enxergar os antagonismos sociais que não só divi
diram os ingleses entre si, mas também levaram muitos deles a
sejactar de sua superioridade "em face da população proletária
de cor dum país pobre como o Brasil" (Freyre, 1948, p. 100),
superioridade essa muitas vezes traduzida em insolência ou ar
rogância por parte dos operários estrangeiros brancos diante da
e n o r m e m a s s a escrava.

Aos poucos, também vai se desenhando o quadro das rela


ções entre os engenheiros das estradas de ferro e os fazendeiros,
na melhor tradição das velhas relações patriarcais em nosso país.
Para atender a interesses particulares de um ou de outro, muitas
vezes estações e pontes foram construídas, beneficiando esta ou
aquela fazenda, enquanto patriarcas mandavam sabotar pingue
las e alterar os traçados das vias férreas para impedir que estas
atravessassem suas propriedades.
Freyre sublinha as mudanças - tanto de natureza econômi
ca quanto social - propiciadas pelas novas técnicas de transpor
te, salientando ainda o quanto as estações ferroviárias, não im-

70
porta de que tamanho, significaram enquanto "pequenos cen
tros de civilização européia, ou norte-americana, no Brasil arcai
camente agrário e pastoril de Pedro 11" (Freyre, 1948, p. 118).
Encarece também a melhoria nas condições e relações de traba
lho, favorecidas pela construção e funcionamento das ferrovias
no Brasil, fator inegável de progresso e desenvolvimento pela
insistência das companhias inglesas em utilizar apenas mão-de-
obra livre e pela ligação que ajudaram a estabelecer entre o lito
ral e o interior do país,
Das gazetas coloniais e do tempo do Império, tirou Gilber
to Freyre as notícias que dão conta das atividades de outros bri
tânicos no Brasil, como, por exemplo, aqueles que, pela dança,
arte dramática ou mágicas, divertiram os habitantes do Rio, Re
cife e Salvador. Graças aos anúncios de jornal, Freyre incorpora
a seu relato outras vozes, as vozes dos atores diretamente impli
cados na construção dessas novas práticas sociais e culturais, fa
zendo-os falar não pelo pitoresco da coisa, mas pelo que reve
lam da vida comum de seu tempo.
Gilberto Freyre faz de anúncios em jornais, como o Diário
de Pernambuco, a Gazeta do Rio deJaneiro, o Jornal do Commércio, a
IdadeD'OurodoBrazil, verdadeiros mananciais de informação para
a reconstituição desse passado. São fragmentos que o sociólogo
recolhe e vai juntando aos poucos, como colcha de retalhos ou
quebra-cabeças, inquirindo o passado e tornando quase palpá
vel esse Rio de Janeiro onde circulavam os negociantes e leiloei
ros ingleses que enchiam as lojas e armazéns de tecidos, louças,
cristais, chapéus, brinquedos. Podemos quase ver o centro da
cidade se encher de cor e movimento, alterando a paisagem ur
bana e o cotidiano da então sede do Vice-Reinado e depois capi
tal do Império. As notícias e anúncios permitem-lhe inclusive
reconstruir a distribuição espacial desse comércio, em que os
ingleses se encarregavam dos negócios atacadistas e das merca
dorias pesadas, concentrando-se em torno da Rua Direita, da
Alfândega e dos Pescadores, e em que os franceses, reunidos na
Rua do Ouvidor e dos Ourives, negociavam artigos de luxo, miu
dezas e moda feminina, encarregando-se do comércio elegante.

7/
Por outro lado, era natural que vicejassem em nossa terra,
metaforicamente descrita por Freyre (1948, p. 164) como "vir
gem, gorda, madura para a penetração pelo comércio dos súdi
tos de S. M. B.", o ódio e o ressentimento contra os perpetrado
res dessa versão do imperialismo britânico - o "Don Juan de
mercados" -, que sabia como ninguém conquistar novos espa
ços para exploração e desfrutar de vantagens econômicas arran
cadas através de tratados e acordos. Não é de se estranhar, por
tanto, que um dos personagens de Memórias Póstumas de Brás
Cubas (1881), de Machado de Assis, expresse seu descontenta
mento com a atuação dos ingleses e torça pela expulsão daque
les a quem chama pejorativamente de godames, apelido corrente
originário de God damn pelo qual eram conhecidos.
Por trás de toda a modernização estimulada pelos negócios
ingleses, por trás das medidas humanitárias, tais como a exigên
cia de proteção ao trabalhador e de assistência médica e religio
sa nos navios luso-brasileiros, por trás da imposição da interrup
ção do tráfico de escravos, escondiam-se interesses econômicos
claros que visavam ã redução da concorrência e à conquista de
novos mercados. Para além das câmaras palacianas e negocia
ções diplomáticas, porém, Gilberto Freyre chega a sugerir que
os britânicos operaram uma pequena revolução através da tinta
de imprensa, usando os anúncios como instrumento de sedução
de seus produtos para uma parcela da população sedenta de
novidades européias.
Ingleses no Brasil constitui-se em um claríssimo exemplo
de como as condições materiais, assim como as relações econô
micas, determinam novos comportamentos, novos estilos de
vida, mudanças e sofisticação de hábitos e até mesmo altera
ções na paisagem. São as marcas que os britânicos imprimiram
em nossa cultura.

No entanto, como os contatos entre as duas culturas nunca


são via de mão única, Freyre vai também pontuando as tantas
marcas deixadas pelo Brasil nesses homens que aqui aportaram.
Alguns, enquanto por aqui estiveram, acabaram adotando no
vos hábitos alimentares, adaptando seu estilo de habitação aos
sobrados portugueses, rendendo-se às comodidades da escravi
dão; outros, quando daqui se foram, levaram impressões fortes
o suficiente para produzir um conjunto nada desprezível de re
latos de viagem, em que ficaram registradas suas experiências e
observações sobre os costumes da terra e sua gente e sobre as
peculiaridades físicas e naturais do nosso país. São livros de via
jantes que tornaram o Brasil mais conhecido na Europa e a que
recorremos, muitas vezes, como documentos da nossa história,
como fontes importantes do processo de constituição da socie
dade brasileira, em que pesem os vieses e preconceitos, ou aqui
lo que, em inglês, se chama misrepresentation em que seus autores
freqüentemente incorrem.
Esse üânsito também Gilberto Freyre o faz, aproximando
as culturas brasileira e britânica, a partir de um ponto de vista
inovador e fértil. Se há os que hoje, não sem razão, imputam a
Freyre a acusação de construir uma inexistente democracia ra
cial, de conciliar conflitos, de celebrar uma falsa harmonia so
cial no Brasil, como se o processo de interpenetração de cultu
ras se desse entre iguais e como se a dominação econômica e
política não lhe fosse inerente, é preciso, de qualquer modo,
reconhecer também o mérito do sociólogo de ter investigado
aspectos absolutamente inexplorados, até aquele momento, de
nossa formação e ter proposto modos de ler nossa vida social e
cultural que nos ajudam a melhor pensá-la e compreendê-la.

Referências

BURKE, Peter. Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social Revista de


Sociologia da USP. São Paulo, vol. 9, n. 2, p. 1-12, outubro de 1997.
FREYRE, Gilberto. Ingleses. RiodeJaneiro: Liv.JoséOlympio Ed., 1942.
. Ingleses no Brasil Rio de Janeiro: Liv.José Olympio Ed., 1948.

7.y
Amores inteligentes
^^eniaíf^

Vive le BrésiU Vive le chant d'atnotir, de tendresse,


d'intelligence que vom avez composé en son honneur.
Ferdinand Braudel

É numa carta redigida no dia 6 dejulho de 1948que Ferdi


nand Braudel incluiu esse canto de louvores cujos destinatários
sáo ao mesmo tempo o autor de Casa-Grande8l Senzala (1933), a
própria obra e um país: o Brasil. A carta é bem representativa de
tantas outras cartas redigidas por franceses - colegas e contem
porâneos de Braudel e de Freyre - e que se encontram no acer
vo da Fundação Gilberto Freyre. Quase todas as cartas transmi
tem, e de várias maneiras, esse entusiasmo admirativo de Brau
del que trasborda os limites que os franceses normalmente im
põem à expressão espontânea das suas emoções e paixões.
A citação mostra uma característica que quase todas essas
cartas têm em comum: a de aliar os elogios dirigidos à obra aos
elogios ao autor e ao maravilhoso país que, na visão dos france
ses da época, o autor e sua obra representam: o Brasil. Gilberto
Freyre, por sua vez, teve uma atitude comparável perante a Fran
ça, à cultura francesa e os franceses. Numerosos artigos' publi
cados ao longo da vida de autor na imprensa local e nacional.

' Existe na correspondência francesa da Fundação Gilberto Freyre, por exem


plo, uma carta datada de 28 de junho de 1976 da mão de Michel Legendre,
embaixador da França no Brasil, em que ele agradece pelos artigos "profun
dos" redigidos por Freyre sobre a França na ocasião da viagem/visita à França
do presidente Ernesto Geisel.
sobretudo no Diário de Pernambuco, testemunham sua admiração
e seu amor "pelas coisas da França"- em geral e por sua tradição
científica e intelectual em particular. Desde 1940, por exemplo,
Freyre dedicou seu estudo Região e Tradição2LX.Yès sociólogos fran
ceses: Arbouste-Bastide, Roger Bastide e Monbeig."^
A impressão que fica depois da leitura de todas as cartas de
franceses é a de uma história de um amor feliz, compartilhado e
recíproco, que durou uma vida toda e teve um impacto profun
do tanto sobre as relações entre os parceiros, quanto na vida
intelectual e afetiva deles.**

A relevância de um questionamento mais aprofundado


dessa impressão foi-me sugerida, desde 1996, durante um coló-
quio na Sorbonne (Mattoso, 1996), quando o presidente da mesa,
Robert Richard, embaixador da França no Brasil no início dos
anos de 80, confirmou a minha sugestão de um relacionamento
muito especial que manteve Freyre com a França e a sua tradi
ção intelectual. Acrescentou que Gilberto Freyre lhe tinha dito
pessoalmente que ele devia a consagração internacional da sua
obra à França e aos franceses.

Leituras posicionadas
A minha proposta^ foi, naquela altura, a de uma leitura de
Casa-GrandeSc Senzalacomo mito fundador - ou mito das origens -

Expressão utilizada pelo próprio Gilberto Freyre no contexto da temática


aqui estudada. Cf. Gilberto FREYRE (1951, p. 3).
' No acervo conservam-se as cartas nas quais os três franceses agradecem a
Freyre; Arbouste-Bastide em carta de 6 de agosto de 1941, Monbeig (em 24
dejulho de 1941) e Roger Bastide (em 10 de junho de 1941).
' A revista de sociologia da USP,Tempo Social, publicou um artigo, intitulado
"Gilberto Freyre e a Inglaterra - uma história de amor", que tenta, um pouco
a contra-corrente da tese francesa, provar o "especial apego" que Freyre teria
sentido com respeito à Inglaterra. Ver Burke (1997, p. 13-38).
Cf. "Héros littéraire et historien: chemins croisés dans les préfaces de Casa-
Grande & Senzala áe Gilberto Freyre" (Lemaire, 1996, p. 71-91). Uma tradu
ção em português desse artigo faz parte da edição crítica de Casa-Crande &
Senzala (Freyre, 2000, p. 733-746).

70^
Kp^ ^oeeajici» vtji/b •^õt/ía-^i^^e^t/tKii
"JEfliBE 0'flRC" ^ "DOÜDÜHÍ ^ UGREE" ^ ^
r4 yrfUr ^ajtpafJc ^
a/ r// yiirJ«*tr« á6 c/.
àíi x^ta/»rr att

à(> xx^iofn» e/ ,y/í^t*ie. Rl EIB


.^•i/la*>x.tã.. r.t..}AXyjM
eti /èut y^/>r /ifcMUM» ri tm ece^/ai^ ^n* õeta
/i ^'utiet /PSx? á ^c/fl^.t 'è /r/^/s/^ua^to' x^^càfiJ -
<fí inUxptMtitA a a/wira/arã* - TwJUÍ dc Vtllc
i,.u roAi*. - IJussiio (cmi^ícto

da nação brasileira, no sentido em que Richard Slotkin (1973)


em Regeneration through Violence define esses conceitos. Com o ob
jetivo de problematizar a utilização, por Freyre, do passado colo
nial do Brasil e da sua memória® para a construção do referido
mito das origens, distingui na obra, numa primeira fase, três ca
madas históricas-presentes e sistematicamente aproveitadas:
- a do próprio passado (a época colonial) e da sua memó
ria narrativizada;

- a do momento histórico (os anos 30 do século passado)


em que foi narrativizado esse passado por Gilberto Freyre;
- a camada, a mais complexa e a menos estudada, da sua
recepção pelos leitores.
Essa última trata-se da camada constituída pelos momentos
históricos em que se efetuou uma reatualização da obra por lei-

'• Incluindo tanto a memória coletiva das comunidades nordestina e brasilei


ra, quanto à memória pessoal e a das famílias aristocráticas nordestinas das
quais Freyre era um descendente.

77
tores, histórica e geograficamente posicionados, que produzi
ram uma leitura relacionada com os eventos e necessidades da
contemporaneidade deles.
O estudo crítico da posição não só histórica - no tem
po - mas também geográfica - no espaço nacional brasilei
ro - desses leitores é, no caso da recepção de Freyre, indis
pensável, sendo que durante longos anos as discussões teóri
cas sobre Casa-Grande&. Senzalasc concentraram em torno de
um questionamento que tinha a ver muito mais com posicio
namentos políticos no seio da sociedade brasileira da época
do que com uma discussão científica da própria obra. Esses
posicionamentos, na época ainda flutuantes e em vias de ins
talação, hoje em dia estão definitivamente instaurados e qua
se "naturalizados" sob a forma bem hegemônica da antítese:
Centro versus Margem, ou seja: São Paulo que eqüivale a Na
cional versus Regional; clivagem que o estudioso crítico que
vem de fora encontra na base da crítica e historiografia da
literatura brasileira.

A mesma diferenciação impõe-se, histórica e geografica


mente, para a crítica nacional e a internacional, quando se
tenta compreender os posicionamentos e reposicionamentos
que o próprio Freyre efetuou no decorrer da sua vida, com
respeito à sua obra e dos quais testemunham os prefácios. É
essa crítica internacional, que Freyre utiliza sistematicamente
para situar a sua obra, para defendê-la dos críticos brasilei
ros, para reinterpretá-la, para redefini-la e reposicioná-la no
decorrer dos anos, acentuando o caráter brasileiro (e não só
nordestino!) de Casa-Grande & Senzala^ em favor de um cará
ter universal e humanista. Ora, essa última transição se efe
tuou, nos prefácios de Casa-Grande &, Senzala, uns anos depois
da publicação de Maitres etEsclaves (1952), a tradução france
sa da mão de Roger Bastide. É no prefácio da nona edição
brasileira (1957) qye se efetua a reviravolta, apoiada e Justifi
cada pelos grandes nomes da crítica francesa que contribuí
ram com as suas resenhas para a divulgação e o sucesso da
tradução.

7iV
A busca da consagração francesa
Quem for à procura de novos dados e argumentos para a
tese da "consagração francesa" e para uma possível explicação
do fenômeno, encontrará, reunidos na Fundação Gilberto
Freyre, na Casa-Museu Madalena e Gilberto Freyre, ou Casa de
Apipucos, uma variedade de fontes e documentos capazes de
fornecer provas complementares e algumas respostas às suas in
dagações. O pesquisador consultará:
- um site na Internet, já com seção francesa;
- a biblioteca de Gilberto Freyre;
- um centro de documentação que conserva os microfil
mes de artigos e outras publicações da mão de Freyre e inúme
ras publicações sobre o autor e a sua obra;
- um centro de documentação que começou a organizar a
imensa correspondência que chegou na Casa de Apipucos;
- os álbuns de dona Madalena, esposa de Gilberto Freyre,
uma fonte inesgotável de informação sobre as relações que man
tinha Freyre com pessoas, instituições e a imprensa.
Tive a sorte, graças à amabilidade da família Freyre,' de ter
acesso á correspondência em língua francesa, ainda não organiza
da, guardada na Casa de Apipucos. Separei, primeiro das outras, as
cartas redigidas em francês, vindas de dezoito países do mundo,
mas que não eram cartas de franceses. Ficou como resultado um
corpusyk um pouco maishomogêneo: as cartas dos próprios france
ses. Desde asprimeiras quedatam de 1922 e foram enviadas a Freyre
depois da primeira viagem que ele fez à França, até à última, que é
uma carta-telegrama,® datada de 1987, o ano da morte de Gilberto

' Os meus agradecimentos especiais vão à Dra. Sônia Maria Freyre Pimentel,
presidente da Fundação Gilberto Freyre, que deu a autorização para copiar
certas cartas e utilizá-las para esta publicação.
®O telegrama foi enviado pelo sociólogo Jean Duvignaud que nela convida
Freyre para uma homenagem que ia ter lugar em Paris, no Salão do Livro do
mesmo ano.

Z9
Freyre, essas cartas cobrem grande parte do século XX. Elas ofere
cem no seu conjunto um balanço muito rico, multifacetado e, so
bretudo, revelador de quase um século de relações diplomáticas e
científicas franco-brasileiras e permitem, ao mesmo tempo, funda
mentar um pouco mais a tese da importância da "consagração fran
cesa" para a história da recepção da obra e da sua reputação mun
dial. Uma primeira classificação, ainda rudimentar, das cartas fran
cesas permitiu distinguir sete categorias:
1 - reconhecimento, honras, distinções, prêmios;
2 - contatos com intelectuais franceses, tais como Braudel,
Febvre, Coornaert, Monbeig, Gurvitch, Bastide, Simon, Duvig-
naud, Arbouste-Bastide, Orecchioni entre os quais alguns se tor
naram amigos;
3 - as cartas de agradecimentos, redigidas por intelectuais
franceses que foram recebidos na Casa de Apipucos, geralmen
te convidados pelos Freyre à iniciativa do Consulado ou da Em
baixada de França no Brasil;
4 - cartas de diplomatas que viveram alguns anos no Brasil e
se tornaram amigos dos Freyre;
5 - as cartas-convite para participação em colóquios, con
gressos, revistas e a organização das mesmas;
6 - contatos com os tradutores e as respectivas editoras;
7 - diversos.

O "charme discret de Ia bourgeoisie"


Nota-se, nos prefácios de Casa-Grande 8l Senzala, que uma
das preocupações permanentes de Freyre foi a da construção de
uma personagem-Freyre-auior, personalidade de marca e modelo
da cultura brasileira. Essa preocupação torna-se visível também
nas cartas dos visitantes franceses que passaram pela Casa de Api
pucos (classificadas nas categorias 2, 3 e 4). Os franceses, quase

iVO
todos deslumbrados pelo encanto do ambiente e dos anfitriões,
evocam nos seus agradecimentos e contatos ulteriores a beleza
da casa, o luxo e refinamento com os quais nela foram recebi
dos, o charme de uma vida intelectual, cultural e emocional re
quintada, de um anfitrião carismátíco e perfeito. Charutos fi
nos, bebidas preparadas pelo próprio anfitrião, comidas locais e
pratos típicos acompanhavam noturnas conversas fascinantes,
em que o anfitrião aliava uma impressionante erudição a uma
espontaneidade sedutora. Passeios bonitos na região e visitas a
monumentos históricos e culturais do Velho Recife completa
vam a recepção na Casa de Apipucos.Todos lembram comovi
dos o carinho da recepção, o calor humano e o amor dos anfi
triões, dona Madalena e os filhos: uma famflia-modelo, num pa
raíso tropical e intelectual. O deslumbramento é tal que as car
tas misturam tudo: a admiração pela obra do autor Freyre, o
encanto da Casa de Apipucos, a sedução e o fascínio exercidos
pelo personagem Freyre, a saudade da terra pernambucana, o
amor-paixão pelo Brasil e pelo povo brasileiro. Todos soiis lechar
me, como diz a expressão francesa, e muitos deles de maneira
duradoura. Só um exemplo: François Bourricaud, professor da
Universidade de Bordeaux, que numa carta datada de 19 de no
vembro de 1955 escreve:

J'ai!rais dú depuis longtemps vous remercier et vous redire tout


le plaisir que j'ai eu à vousconnaTtre, vous, vos amis e votre pays.
Je compte les deux mois de Recife parmi les moments heureux
de ma vie. La gentillesse de votre accueil, fesprit, Pair que fon
respire autour de vous ont ramené en moi une allégresse qui
s'était un peu endormie. Si Stendhal avait pu connaitre le Brésil,
il faurait peut-êtreaiméautant que fltalie. Un peuple aussi spon-
tanément fin, souple et passionné a de quoi séduire un de ses
plus modestes admirateurs...

Ao encanto espontâneo das próprias visitas correspondia


um aproveitamento, anterior e posterior, sistemático, para a
autoconstrução da personagem do autor-Freyre no sentido em
que Bourdieu e Even-Zohar utilizam esse conceito e estudam

iV/
as suas formas e práticas. As visitas importantes são anunciadas
pelo próprio Freyre em artigos no Jornal de Pernambuco e nele
comentadas depois; mais tarde citações das cartas recebidas
aparecem em outros artigos. No enorme volume de cartas, apa
rentemente caótico, descobri de repente pastas cuidadosamente
separadas: uma carta de lonesco, as cartas de Lucien Febvre, as
de Braudel...

(2feuXJu:<rt>,
Pessoas, coisas e animais oiuoerto frevre
tf -
Com Gabriel Mareei em Cerisy
A8810T1 no Castelo de Cerisy na França, no ver&o de 1D50, ao
encontro de dois Intelectuais europeus que cordialmente se
detestam: Oeonccs Ourvitch o Oabriet Mareei. Ounrltch presidira
alguns dos debates em tdmo dos meus trabalhos, no seminário
promovido em Cerisy. por Mme. Hourgon-Desjardins, atendendo
a uma sugcstdo do Professor Henrl aouhier, mestre de Filosofia
da Sorbonno. Mareei desejara participar do seminário. Mas a pre
sença — segundo parece — do inflomável Ourvitch lhe arrefecera
o desejo. Decidira vir a Cerisy imediatamente depois de encerrado
o seminário, com a esperança — segundo me Informou — de con
viver algum tempo comigo, á sombra da hospitalidade que todo
veráo lhe estendia a ilustre castelá, sua velha amiga, assim como
de André Gide e de Roymond Aron. Sucedeu, porém, atrosar^se
3 amigo que devia levar Ourvitch do severo Castelo á sua doce
casa dc campo, também na Normondla. onde estava combinado que
minha mulher e eu passaríamos com éle c Mme. Ourvitch alguns
dias de repouso. l,amentável atraso ésse. porque o aposento que
Ourvitch ocupava no Castelo era precisamente o destinado ao seu
Inimigo Gabriel Mareei: motivo de Irritação para um tempera-
'mentai como o grande russo. Mesmo assim, iiortaram-se os desa
fetos como dois períeilos cavalheiros — de acérdo, aliás, com o
ambiente: o de um velho e fidalgo castelo normando. Cxunpri-
mentaram-se. o francês chegou o sorrir para o russo, qtravés ^
dos seus bigodes á ia Flaubcrt. O russo, hoje parisiense e pro
fessor da Sorbonne, quase sorriu para o francês. E em face
désse "térmo de bem viver" pude'conversar sem constrangimento
com o riiúsofo Oabriel Mareei na presença do sociólogo Oeorgea
Ourvitch. Conversa que me fés lamentar a ausência do existen
cialista católico no seminário que acabara de enccrrar-se em tór-
no dos tneus trabailios. Mareei teria trazido para é«e semirultla
um crltéiío de interpretação da história como vida que nenhum
dos outros mestras, que "honraram com seus comentários de altos
pensadores europeus minhas pobres idéias e minhas modestas
rcailzaçóes de sul-amertcano, havia exprimido de modo idêntico.
Uma análise mais sistemática das cartas revela alguns fatos
surpreendentes. Na verdade, poucas são as cartas nas quais se
constróem um diálogo e uma amizade que permanecem no de
correr dos anos. Uma exceção são as de Georges Gurvitch (Freyre,
1972), professor na Sorbonne e padrinho do doutorado honoris
causa de Freyre na mesma universidade, cujas cartas - datadas
entre 1942 e 1966, ano da morte do professor Gurvitch - che
gam regularmente na Casa de Apipucos. A primeira carta data
de 18 de maio de 1942. Vinda da Philosophical Library de New
York, ela convida Freyre para o conselho editorial áo Joumal of
Legal and Political Sociolog^. Os dois homens se encontraram em
Paris em 1948; em 1950 Gurvitch enviou a Freyre um curriculum
abreviado. A correspondência regular começa em 1952; ela
tem um caráter muito cordial, mas limita-se geralmente a coisas
práticas da vida acadêmica: convites que recebeu Gurvitch, con
vites para Freyre proferir conferências na França, a organização
das visitas, de encontros, das conferências, traduções, bolsas, es
tágios, convites para colegas, amigos ou estudantes, o doutora
do honoris causa... O pesquisador que está à procura de uma tro
ca de idéias ou de uma discussão científica sairá insatisfeito.

Nesse sentido, só as cartas de Roger Bastide testemunham


um intercâmbio - na verdade irregular e pouco freqüente - de
idéias e teorias no sentido acadêmico da palavra. Curiosamente,
são essas também as cartas que, no conjunto da correspondên
cia, se destacam por um tom bem diferente do dos outros fran
ceses. Voltaremos a elas mais tarde.

A consagração francesa
A primeira categoria de cartas, "reconhecimento, honras,
distinções e prêmios", constitui a parte da correspondência que
permite reconstruir as etapas, digamos, oficiais, do fenômeno
que recebeu o nome de "consagração francesa". Começa com
uma carta de Alfred Métraux, antropólogo e especialista em ín
dios do Brasil. Sem data, ela foi escrita provavelmente no ano de

(V.y
1938 e redigida em inglês pelo autor - prova, talvez, de que ele,
a esta altura, não conhecia ainda Freyre e que não sabia que este
falava francês. A carta, desde as primeiras linhas, estabelece o
tom e o teor das críticas futuras:

Dear Dr. Freyre,

I finished in these days that master-piece of American sociology,


Casa-Grande & Senzala. Allow me to congratulate you for a book
unique in the field and certainly one of the greatest contribu-
tions to social science which has come from Latin-America.

Vem, logo em seguida, a correspondência do sociólogo Ar-


bouste-Bastide, que nessa altura trabalhava na USP, em torno do
prefácio que estava redigindo para um livro de Freyre, intitula
do UmEngenheiro Francês no Brasil (1940), seguida de novas car
tas de Alfred Métraux que, desde 1941, começa a falar da neces
sidade de traduzir Casa-Grande & Senzala para o francês. Através
das cartas de Ferdinand Braudel que, por volta de 1945, convida
Freyre para o comitêdepaíronage&à. revista Annales, Sociêíés, Econo-
mies, Civilisationsy e as dos organizadores do Conclave dos Oito®
em Paris em 1948, o leitor chega à correspondência sobre a tra
dução, por Roger Bastide, de Casa-Grande &. Senzala, para a qual
Lucien Febvre redigiu um lindíssimo prefácio com o título "Bré-
sil, terre d'histoire". No mesmo ano, Lucien Febvre convidou
Freyre para o comitê directeur á2i A&soc\2^\on Marc Bloch.
Chegou o ano de 1956, com dois eventos importantes: a
publicação da tradução de Nordeste (Freyre, 1937), realizada
porJean Orecchioni, com o título Terres du Sucre, e o Colloque de
Cerisy-La Salle. O colóquio foi o quarto numa longa série que se
tornou um evento anual prestigioso na vida intelectual france
sa e, depois de três colóquios temáticos, o primeiro a ser dedi-

Esse Conclave dos Oito foi organizado pelo presidente da Unesco, Julian
Huxley, com o objetivo de estudar as tensões internacionais da pós-guerra.
Gilberto Freyre (1972, p, 5-7) dá uma descrição do encontro em Meu amigo
Gurvitch.
caclo a um grande erudito e à sua obra: Gilberto Freyre, um maítre
de Ia sociologie brésilienne. Entre outros, participaram dele Ar-
bouste-Bastidc, Roger Baslide, Ferdinand Braudel, Roger Cai-
llois,Jean Duvignaud, Georges Gurvitch, Clara Malraux e Jean
Orecchioni.

rOTER CULTUREl INTERNRTIONAL DE CERISY


Jt Cf^RlSY-l.A-SA l.l.F. {MüKcít)
ÉTÉ 1956
Associotion des Atnis d« Ponligny-CerUy
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An.tr« CIIAKSOS. Cl» HANOllLAC. INnc. COlIlIbK. ;»eau»« MAyACLt.
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Depois de doze anos'" de lutas internas, de controvérsias e
de discussões, a Sorbonne outorgou, enfim, em 1965, a Gilberto
Freyre o título de doutor honoriscausa. Passados mais doze anos,
e foi-lhe conferida a distinção de Commandeur na Ordre des Arts et
des Letlres e, em 1986, pouco antes da sua morte, a de Grand O/Ji-
cier da Légion d'Honneur.

Por que a França?


O leitor que tenta, em seguida, integrar a história da consa
gração francesa no conjunto da história biobibliográfica de Gil
berto Freyre, não pode deixar de estranhar, E verdade que Freyre
achava e repetia que a melhor consagração lhe viera da França,
como o confirma, por exemplo, uma carta de Jacques Boizet,
cônsul geral da França no Brasil, carta que ele enviou no dia 15
de fevereiro de 1974 ao diretor da editora Gallimard. Falando
de Gilberto Freyre, Boizet escreve:

Comme sa renommée dépasse les frontières du Brésil et s'étend


à de nombreux autres pays, son influence reste profonde, tant
par Ia supériorité de son intelligence que par Ia süreté de son
Jugement. II m'a déclaré textuellement que Ia consécration fran-
çaise lui apparaissait "Ia meilleure de toutes".

Porém, a comparação dos dados franceses com os de ou


tros países, não permite tornar bem claro quais foram os moti
vos e argumentos que levaram Freyre a emitir a declaração à
qual se refere Boizet. A lentidão e a demora do reconhecimento
de Freyre pela França contrastam estranhamente com várias for
mas importantes de reconhecimento bem anteriores por outros

A primeira alusão ao doutoramento, ocorrido na Sorbonne em cerimônia


de 9 de novembro de 1965, encontra-se numa carta de Georges Gurvitch,
datada de 2 de abril de 1953: "J'ai proposé votre candidature pour le Doctorat
Honoris Causa de TUniversité de Paris." A correspondência de Gurvitch rela
ta todas as etapas da luta e mostra em todas as suas facetas a mesquinhez e as
lutas pelo poder do meio acadêmico na Sorbonne da época.
países. Já em 1937, por exemplo, foi publicado um comentário
elogioso da mão de Percy Alvin Martin no Handbook of Latin
American Studies. Houve, desde 1942, uma tradução de Casa-Gran-
de& Senzalaem espanhol; uma primeira tradução em inglês nos
Estados Unidos em 1946 e, em seguida, em 1947, outra tradu
ção em língua inglesa publicada na Inglaterra. As duas tradu
ções em língua inglesa tiveram mais reedições do que Maitres et
Esclaves. Em 1954, a Columbia University outorgou a Gilberto
Freyre o título de docíor honoris cama, iniciando uma série de dez
outros doutorados honoríficos americanos.

Em 1971, saiu a edição completa, em inglês, da trilogia,


Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso
com o título The History ofBrazilem três volumes. Até hoje, não
existe na França uma tradução de Sobrados e Mocambos nem de
Ordem e Progresso. Assim também, a lista francesa dos prêmios e
das distinções contrasta, por sua pobreza, com a riqueza e a varie
dade da do mundo anglófono: Freyre foi professor convidado
das mais prestigiosas universidades americanas e recebeu aí prê
mios e distinções muito mais numerosos, variados e importantes
do que na França.
Como explicar uma discrepância tão grande entre os fatos e
a avaliação dos mesmos pelo próprio Freyre? Numa entrevista que
tive, no dia 28 de outubro de 1999, com Edson Nery da Fonseca,"
na sua casa da rua de São Bento, em Olinda, ele explicou que
Freyre gostava mais da crítica francesa, por ela ser mais objetiva,
mais universal, mais humanista. Essa explicação de Edson Nery
da Fonseca resume bem o que seria, a partir de 1953, o teor glo
bal da recepção francesa de Maiíres ei Esclaves e que MareeiDurry,
deãoda Faculdade de Letras da Sorbonne, no seuelogio de Freyre,
proferido no dia 9 de novembro de 1965 para o doutorado hono
ris cama, formulou magistralmente nas seguintes palavras:

" Edson Nery da Fonseca é o biobibliógrafo de Gilberto Freyre. Veja-se, por


exemplo: Um livro completa meio século (Fonseca, 1983) e "Cronologia da vida
e da obra com índice onomástico, temático e biblionímico" (Fonseca 1987
p. 231-286).
Porém, o que mais fere o leitor estrangeiro é a perfeita aliança,
na sua obra, entre a mais escrupulosa objetividade científica e o
humanismo. E se o Brasil é hoje considerado modelo entre os
países nos quais a humanidade busca a imagem futura de uma
civilização na qual todos os homens possam encontrar sua pátria
espiritual, isto se deve a Gilberto Freyre, não só por nos ter feito
conhecer esta experiência privilegiada de fusão de raças e cultu
ras, como nos ter mostrado o caminho pelo qual os conflitos entre
valores podem ser transformados em núpcias entre civilizações e
as tensões entre raças em equilíbrios ou em harmonias.'^

Edson Nery da Fonseca, na mesma entrevista, acrescen


tou um pouco mais tarde outro elemento muito interessante:
Freyre preferia a crítica francesa porque ela valorizava mais a
teoria, a filosofia de Casa-Grande &. Senzala^ contrariamente aos
ingleses e americanos, sempre preocupados com os fatos, os
dados concretos, os pormenores. Sublinhemos, na explicação
do ilustre mestre, dois conceitos: universalismo e humanismo, e
uma oposição: sociologia teórica francesa sociologia con
creta americana.

Duas sociologias, dois mundos


Paul Arbouste-Basüde, no Já referido prefácio de Um Enge
nheiro Francês no Brasil,resume bem o Jogo que está por trás do
conflito entre a sociologia americana, aberta ao mundo, e a eu
ropéia, aprisionada nos seus pressupostos eurocêntricos:

Da tradução em língua portuguesa publicada pelo Diário de Pernambuco, de


20 de novembro de 1965, p. 4.
i:i Yç,. Freyre (1940, p. V). Com prefácio de Paul Arbouste-Bastide. Trata-se de
um estudo sobre um engenheiro francês, L. Vauthier, ex-aluno da Escola Po
litécnica de Paris, que permaneceu seis anos no Brasil, em Recife —de 1840
até 1846 —e aí exerceu uma influência considerável no terreno da arquitetu
ra, da construção e da administração pública. Deixou um riquíssimo Diário
que Freyre transformou em fonte do seu estudo histórico sobre a atuação de
Vauthier em terras pernambucanas.

(VtV
Le sociologue nord américain, fils d'une société qui n'est pas
sans rapports avec Ia société brésilienne apporte, quand il abor
de les rives et les problèmes sud-américains, une forte prépa-
ration à rincohérence, si j*ose dire. D'abord, il n'a aucune
peine à faire commencer ia sociologie à Tétude des problè
mes les plus concrets et les plus pratiques, à ce travail d'inven-
taire et d'aménagement que le sociologue européen ne veut
pas honorer du nom de sociologie [...] mais qui constitue bien,
en fin de compte, le seul travail, sinon sociologique du moins
social, qui soit possible dans des sociétés de formation relati-
vement récente.

Ora, foi essa mesma a formação que Freyre teve nos Estados
Unidos e da qual ele ainda fala com orgulho no prefácio da pri
meira edição de Casa-Grande& Senzalaem 1933! E foi exatamente
essa abordagem, esse método - ponto forte da obra, que por cau
sa dos rumos, pressupostos e posicionamentos tomados pela críti
ca brasileira contemporânea {Casa-Grande & Senzala é uma obra
nordesüna e não brasileira!), se transformou em ponto fraco e
criticável. Arbouste-Bastíde, no já referido prefácio para Uvi Enge
nheiro Francês no Brasil, resume bem o que aconteceu:

Notons bien que les réserves généralement faites à Toeiivre de


Gilberto Freyre ne tendent point à mettre en doute Tintérêt de
ses travaux, mais à contester quMls puissent avoir une valeur gé-
nérale, d'abord par rapport au Brésil dans son ensemble, ensui-
te par rapport à une connaissance scientifíque des sociétés.
(Freyre, 1940, p. 7)

Já conhecemos o impacto que tiveram essas críticas na vi


são que Freyre quis impor da sua obra e as viravoltas - nordesti
na/brasileira/universal - às quais elas o levaram. A rejeição, por
Freyre, da sua formação e filiação americanas está documenta
da de maneira interessante na correspondência encontrada na
Casa de Apipucos. Ela contém uma carta de Roger Bastide,'^

" Roger Baslide estava em São Paulo, na USP, onde substituía Claude Léxy-
SimiiQç

— <5V
com data de 24 de setembro de 1939. Nessa carta Bastide tenta
explicar que ele não teve a intenção de atacar ou criticar Gil
berto Freyre que, entretanto, já se defendeu contra o que con
siderou um "ataque" num artigo publicado no Correio da Ma
nhã. Escreve Bastide:

J'ai bien lu votre article du Correio da Manhã et je vous prie de


croire que Je n'ai jamais eu Ia pensée de nier roriginalité de vo
tre méthode et de vos travaux. Mais je trouvais que Ia sociologie
brésilienne était mal connue en France etj'aijugé que pour pou-
voir Ia faire connaitre, je devais rattacher les grands noms du
Brésil à des idées ou des courants sociologiques déjà connus par
le public cultivé de France; c'est pourquoi j'ai rattaché Ramos à
Nina Rodrigues, dont Ia plupart des travaux existent en langue
française et c'est pourquoi aussi j'ai cherché un lien entre votre
oeuvre et Ia sociologie américaine.

A correspondência de Bastide ocupa, no conjunto das car


tas de franceses, um lugar bem especial. De um lado, é a única
correspondência em que o leitor encontra de vez em quando
uma verdadeira discussão sobre temas científicos; todas as ou
tras girando em torno de temas mais práticos, tais como conta
tos, recomendações, visitas, convites. Porém, e contrariamente
ao que se constata na correspondência com os outros franceses,
os contatos de Freyre com Roger Bastide'"^ ficaram sempre bas
tante reservados e, às vezes, como no referido atrito em 1939,
meio melindrados. Havia em Gilberto Freyre uma certa irrita
ção que se sente, por exemplo, também num artigo publicado
no Jornal de Pernambuco (11 de maio de 1958) com o título "Em
torno de um livro do professor Roger Bastide" e que começa da
seguinte maneira:

No seu recente e sugestivo livro Brésil, Terra des Contrastes, publi


cado em Paris por Hachette, não consegue o ilustre sociólogo

Leia-se "Un sociologue français particulièrement lié aux études sociales du


Brésil" em Ifautre et Vailleurs- Hotnmages à Roger Bastide (Freyre, 1974, p. 65-74).

.90
francês, Professor Roger Bastida, desembaraçar-se da influência
dos intelectuais paulistas com os quais conviveu durante sua lon
ga residência no Brasil, sobre ò seu modo de considerar e inter
pretar a situação brasileira. Daí generalizações que por vezes pre
judicam o seu valioso livro no sentido desta constante deforma
ção da realidade: a deformação do Brasil num Sul em tudo pro
gressivo, dinâmico, porém em contraste com um Norte apenas
pitoresco e folclórico, perdido na sua rotina e no seu apego às
tradições luso-africanas ou luso-ameríndias.

Mais uma vez, a clivagem São Paulo/Nacional versusos Ou


tros/Regionais e os sentimentos de frustração, causados pelo pre
conceito da superioridade paulista subjacente ã clivagem, se en
contram na base da avaliação crítica.

Duas traduções, duas caras da França


Só duas grandes obras de Freyre foram, até hoje, traduzi
das para a língua francesa. Trata-se de:
- Casa-Grande & Senzala, com onze reedições entre 1952-
1974 na Coleção Croix du Sud, dirigida por Roger Caillois. Em
1974 houve uma nova edição na Bibliothèque des Histoires e
em 1978 na Coleção Tel (segunda edição em 1997).
- Nordeste, traduzido porJean Orecchioni, com o título de
Terres- du Sucre, cuja primeira edição saiu em 1956, prefaciada
pelo próprio Freyre, e a segunda em 1992.
A diferença entre as duas traduções é grande; trata-se, no
fundo, de dois tipos de tradução possíveis, de dois mundos qua
se incompatíveis. A sua comparação permite explicar um fato
importante, reconfirmado em entrevista (em 28 de outubro de
1999) com Edson Nery da Fonseca: Freyre não gostava da tradu
ção de Roger Bastide, mas adorava a de Orecchioni. A pergunta
que se pode formular é a seguinte: será que essa preferência
explícita tem a ver com motivos estéticos gerais ou pessoais de
Freyre ou também com o tipo de relacionamento muito espe-

.9/
ciai que manteve Freyre a vida toda com a França e os franceses
e/ou inversamente? E com a diferença, já constatada, entre o
tom geral das cartas dos franceses e as de Bastide?
Existem, no acervo da Fundação Gilberto Freyre, várias cartas
dos dois tradutores que podem dar uma idéia, tanto do tipo de
relacionamento que eles tinham com o autor Freyre, quanto das
suas concepções, bem diferentes, do que seria uma boa ou autênü-
ca tradução. Vejamos primeiro a carta de Bastide, redigida no dia
28 de dezembro de 1952, no final do ano em que saiu a tradução:

Meu caro Gilberto Freyre,

Enfin, après bien des aventures, des longueurs, Mailres et Esclaves


vient de sortir en traduction française. Paulo Carneiro vous a envo-
yé le premier exemplaire et je pense qu'il vous est bien arrivé, il y a
déjá plusieurs semaines.J'espère que ma traduction ne vous paraitra
pas trop indigne de Toriginal. Ce que j'ai essayé surtout, c'est de
garder le rythme de vos phrases, de tenter de conserver votre synta
xe si originale, jusque dans ses syncopes. Hélas, je sais bien qu'il est
impossible de trouver Téquivalent français de votre style tropical,
sensuel, lyrique, qu'il faudrait plier aux contraintes cartésiennes,
mais alors ce ne serait plus une vraie traduction et je tenais ce que
Ton sente votre griíTe derrière mon français. De toute facon et mal-
gré ses imperfections incertaines - le contraste de deux langues -,
cette traduction aura le mérite,j'en suis certain, de vous faire mieux
connaitre et, par conséquent, aimer du public français, en même
temps qu'il révélera à beaucoup le Brésil d'autrefois. Lucien Febvre
a écrit une belle préface. 11 reste à attendre maintenant les critiques.

Sabemos, por outras fontes, que a tradução não foi só o


trabalho de Bastide; ela foi "corrigida" pelo prefaciador, Lucien
Febvre,"' mas até hoje não sabemos de que natureza foram as

A esse propósito, Gilberto Freyre escreveu em IJaulre et Vailleurs: "Ce que je


sais en toul cas, ci'après ce que m'a dit Lucien Febvre, lorsqu'iI a bien voulu
préfacer Tédition française du livre brésilien Casa-Grande& Senzala, c'est que
le français du traducteur, qui venait alors juste de renlrer du Brésil, n'était
déjà plus aussi rigoureux. II s'était brésilianisé à un tel point que Febvre avait
du en corriger de nombreux points." (Freyre, 1974, p. 72).
correções, se foram muitas, poucas, importantes... Até o momen
to da redação do presente artigo, ficou impossível saber se o
manuscrito da tradução está conservado nos Arquivos Bastide
ou foi perdido.
O que a carta torna explícitas são as escolhas que Bastíde,
como tradutor, fez: a atenção concentrada sobre aspectos niti
damente formais, ao privilegiar o ritmo e a sintcixe das frases,
em detrimento de aspetos estilísticos que têm mais a ver,já, com
o conteúdo "tropical, sensual, lírico" do livro. Ela revela tam
bém os pressupostos que estão por trás: o da intradutibilidade
de uma realidade considerada - deliberadamente - exótica e
radicalmente, insuperavelmente diferente, o da valorização de
uma ciência racional, objetiva, "cartesiana" em detrimento do
coração, da sensibilidade.
Quatro anos mais tarde, Freyre redige o prefácio para a tra
dução francesa de Nordesteádc mão dejean Orecchioni. Conclui o
prefácio com umas constatações que parecem um comentário di
reto á carta de Bastide. Nelas Freyre fala da excelente qualidade
da tradução e afirma que Jean Orecchioni, melhor do que ne
nhum outro francês que ele conheceu, foi quem conseguiu unir
a sensibilidade à inteligência na sua compreensão do Brasil. Orec
chioni o agradece numa lindíssima carta que reproduzo aqui:

Lisboa, 28 de maio de 1956.

Meu caro Mestre,

Acabo de enviar a Gallimard a tradução do prefácio que o


Senhor teve a gentileza de redigir propositadamente para a edi
ção em língua francesa que vai sair daqui a algumas semanas.
Quero, a respeito disso, agradecer-lhe as linhas que o Senhor
me dedicou no final do referido prefácio. Vejo nelas, com efei
to, não só o testemunho de uma amizade que me é infinita
mente preciosa, como também a expressão de uma idéia elabo
rada, aliás, no decorrer de todo esse texto; idéia que a minha
estada em Pernambuco, se não fez nascer, ao menos confirmou
em mim de maneira resplandecente: a de que não existe co
nhecimento sem amor.
O que eu penso saber desse país ao qual tantos laços me pren
dem, eu o devo, sem dúvida nenhuma, não ao frio rigor de uma
abordagem científica, menos ainda a uma observação rigorosa
mente objetiva duma realidade considerada deliberadamente
exótica mas, bem pelo contrário, como o Senhor o sugere, a um
desejo constante e irresistível de penetrar o coração das coisas,
de absorver a sua própria substância, quer dizer, de as ver, não
como "outras" mas como "existentes fora do meu olhar". Esse
desejo, com certeza, só pode ter sido provocado por um certo
poder de encantamento inerente ás paisagens, ao passado, ã vida,
ao homem, a tudo quanto compõe o ser pernambucano: o que
um dia eu caracterizei como "a poesia de Pernambuco; poesia,
quer dizer, magia".
E não posso esquecer que, se eu me sensibilizei a essa ma
gia, foi particularmente graças ao Senhor. Ao Senhor e àquela
personagem feita de centenas de seres humanos (dos quais al
guns seriam bem surpreendidos se soubessem o papel que nis
so desempenharam) e à qual eu dou o nome de... Seu Zé, a
gente da terra.
E neste sentido que me esforcei para levar a cabo a tarefa
que de Nordeste hoje faz Terres du Sucre. Espero que aquele me
tenha inspirado suficientemente e que esta não seja muito in
digna daquele.
E me alegro, como o Senhor pode imaginar, com a perspecti
va de lhe trazer a Cerisy, onde fui muito amavelmente convida
do, a homenagem respeitosa dos meus sentimentos de profunda
admiração e permita-me acrescentar, de amizade reverente.

Jean Orecchioni

A diferença que o leitor enxerga entre as duas traduções


dos livros de Freyre existe também entre as cartas dos dois tradu
tores. A carta de Bastide, cujo destinatário é brasileiro{\), está re
digida em francês, a de Orecchioni num belo português. Cada
uma ilustra assim uma das opções que, hoje em dia e graças a
uma reflexão cada vez mais crítica sobre as práticas de comuni
cação intercultural, se oferecem ao ser humano que vai ao en-


contro do Outro. A primeira que consiste em ficar na sua, na
sua própria língua, em não falar a língua do Outro para não se
expor e manter, de antemão, a distância que permite segurar,
controlar os eventos. A segunda, a de Orecchioni, fundada na
vontade de superar as barreiras, lingüísticas e outras, de falar a
língua do Outro, numa tentativa de aproximação, de compreen
são de dentro, de fusão; atitude muito mais aberta e, sobretudo,
mais corajosa, no sentido em que ela torna mais vulnerável a
pessoa que decide abandonar a sua língua materna e quer to
mar o risco de falar a língua do Outro.
Subjacentes às duas opções dos tradutores existem, nesse
sentido, duas concepções da comunicação intercultural: de um
lado a que se baseia num exotismo novecentista, convencido da
incompatibilidade das culturas, e subjacente a ela: o pressupos
to implícito da superioridade da cultura do tradutor; do outro
lado a que tenta superar as barreiras pela compreensão de den
tro, pela decisão de querer estar com o Outro num pé de igual
dade, cuja base é falar a mesma língua.
E opõem-se duas concepções bem diferentes do que é, do
que deveria e poderia ser a ciência.A que baseada no ideal da obje
tividade, da racionalidade, que Bastide chama de cartesianismo, e
que pressupõe uma relação fundamentalmente desigual entie o
pesquisador/sujeito e o seu "objeto" de pesquisa. E a que tentou
tomar Orecchioni: a de um sujeito/pesquisador que quer encon
trar outros sujeitos; aprender com eles pela comunicação, adquirir
um saber que seja o resultado de uma combinação de razão e cora
ção, sensibilidade e intuição; um pesquisador que tenta cultivar uma
inteligência que seja ao mesmo tempo racional e emocional.

Conclusão

Uma primeira exploração de um terreno tão multifaceta-


do quanto o das relações que se teceram entre os franceses e
Gilberto Freyre e sua obra só pode dar resultados muito provisó
rios, e isso por vários motivos. O primeiro é o da desigualdade

y.í
dos documentos disponíveis: o acervo da Casa de Apipucos con
tém as cartas cujo destinatário era Gilberto Freyre, mas não con
tém as que o próprio Freyre redigiu para os seus destinatários
franceses. Em compensação, o serviço dos microfilmes da Fun
dação e os álbuns de dona Madalena permitem fazer um balan
ço bem completo do que Freyre, no decorrer dos anos, pensou
e escreveu sobre a França. Os documentos disponíveis até agora
têm como característica dominante uma grande admiração re
cíproca em que se misturam razão e coração, intelecto e sensibi
lidade, indivíduo e ciência, indivíduo e nação.
A correspondência e a entrevista com Edson Nery da Fon
seca confirmaram a impressão deixada pelos prefácios de Casa-
Grande & Senzala: foi a crítica francesa que desempenhou um
papel determinante na leitura/interpretação universalista que
Freyre iria propor aos leitores de Casa-Grande & Senzala a partir
do prefácio da nona edição.
Quanto à questão da "consagração francesa" - a maior? a
melhor? - a comparação dos dados relativos aos contatos de
Freyre com os de outros países levantou um questionamento
intrigante: se essa consagração francesa não foi a melhor, nem
em termos quantitativos nem em termos qualitativos, como ex
plicar a tese de Freyre, tantas vezes repetida por ele? Descobri
mos na base da tese as grandes controvérsias da época e, pode
mos dizer, hoje em dia, do século: a que opunha um São Paulo
que se pretendia "nacional" aos outros, relegados a "regionais",
a que opõe, no século vinte, a sociologia americana à francesa.
Foi a sociologia francesa que ofereceu a Freyre a consagração
que ele precisava: no sentido em que a leitura francesa da sua
obra lhe permitiu distanciar-se mais da sociologia americana,
prática, precisa, concreta, que recusa as generalizações rápidas
e universalizantes. Foi exatamente esse lado experimental, con
creto, que começou a se transformar em perigo para Freyre, que
quis a sua obra brasileira e não só nordestina, mas não teve argu
mentos suficientes contra os ataques dos seus compatriotas.
Essa sociologia, tipicamente francesa, permitiu a Freyre
transformar o seu estudo sobre a sociedade colonial nordesti-
na numa teoria universalmente humana e humanista da mis
cigenação harmoniosa das raças humanas. Tornou ele pró
prio, a sua obra e o seu país, como diz o texto da laudatio do
doutorado honoris causa da Sorbonne: "o modelo entre os
países nos quais a humanidade busca a imagem futura de uma
civilização na qual todos os homens possam encontrar sua
pátria espiritual." "

Referências

DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Recife, 20 de novembro de 1965.


FONSECA, Edson Nery da. Cronologia da vida e da obra com índice
onomástico, temático e biblionímico. Ciência e Trópico. Recife, v. 15, n.
2, p. 231-286, 1987.
. Um livrocompleta meio século. Recife: Ed. Massangana; Fundação
Joaquim Nabuco, 1983.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Edição crítica coordenada
por Guillerme Giucci, Enrique Rodríguez Larreta Edson Nery da Fon
seca. Madrid, Barcelona, La Habana, Lisboa, Paris, México, Buenos
Aires, São Paulo, Lima, Guatemala, San José: ALLCA XX, 2002. Cole
ção Archivos, 55.
.. Interesse na França pelas coisas do Brasil - Chegou ontem ao
Recife o professorJean Colomés - Romancistas do Nordeste - Gilberto
Freyre, um grande nome - Intercâmbio cultural- Programa das confe
rências. Diário de Pernambuco, 19 set. 1951, p. 3.
.. Meu amigo Gurviích, Caderno 32. Caruaru, Faculdade de Direi
to de Caruaru, 1972.
. Nordeste, aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisa
gem do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
. Região e tradição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941.

" Agradeço ao mestre e amigo Edson Nery da Fonseca, transformado em


personagem-narrador dos quatro filmes que Nelson Pereira dos Santos dedi
cou à Casa-Grande&. Senzala, por me ter introduzido com tanta competência,
saber, carinho e generosidade no mundo freyreano.

<J7
FREYRE, Gilberto. Um engenheirofrancês no Brasil. Com prefácio de Paul
Arbouste-Bastide. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940. Coleção Docu
mentos Brasileiros, v. 26.
Un sociologue français particulièrement lié aux études socia-
les du Brésil. In: Uautre et Vailleurs - Hommages à Roger Bastide. Paris:
Berger-Levrault, 1974.
LEMAIRE, Ria. Héros littéraire et historien: chemins croisés dans les
préfaces de Casa-Grande&. Senzalaúg Gilberto Freyre. In : MATTOSO,
Kátia de Queiroz (Ed.). Litíéralure/Hisíoire: regards croisés. Paris: Centre
d'Études sur le Brésil, Presses de TUniversité de Paris-Sorbonne, 1996.
p. 71-91.
MATTOSO, Kátia de Queiroz (Ed.). Littérature/Histoire: regards croisés.
Paris: Centre d'Études sur le Brésil, Presses de TUniversité de Paris-
Sorbonne, 1996.
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre e a Inglater
ra: uma história de amor. Tempo Social, São Paulo, USP, n. 9, vol. 2, p.
13-38, outubro de 1997.
SLOTKIN, Richard. Regeneration through Violence, tlieMythology oftheAme-
rican Froníier. 1600-1860. Middletown: Wesleyan U. P, 1973.

-—
Nas ruínas, o otimismo
^Oitonio Q)imaS'

Meusolhos são pequenos para ver


países mutilados como troncos,
proibidos de viver, masem quea vida
latqa subterrânea e vingadora.
Carlos Drummond - "Visão 1944"

No rescaldo da Segunda Grande Guerra, uma Europa atônita


e confundida buscava atenuar os efeitos do conflito, curar-lhe as
feridas e projetar um futuro sem turbulência. No medo que ainda
pendia e separava,uns, maisrealistas, dedicavam-se à reconstrução;
outros, mais idealistas, a um futuro sem fronteiras e nem rancores.
Nesse contexto de perplexidade e de homens partidos, criou-
se a UNESCO, em Paris, no mês de novembro de 1945, logo de
pois da vitória aliada, com a expectativa de se restabelecer a "soli
dariedade moral e intelectual da humanidade".' Embalados pelo
sonho de um futuro harmonioso e pacífico, seus criadores apos
tavam - segundo reza sua constituição original - em "oportunida
des iguais e totais para todos, no alcance irrestrito da verdade ob
jetiva e no intercâmbio livre das idéias e do conhecimento".^ Com
esse propósito em mente, os criadores do organismo internacio-

' "[...] the new organization must establish the 'intellectual and moral soli-
dariiy of mankind' and, in so doing, preveni the outbreak of another world
war," (wvw.unesco.org).
^UNESCO's Constitution believed "in full and equal opportuniiies for educa-
tion for ali, in the unrestricted pursiiit of objective truth and in the free ex-
change of ideas and knowledge." (\wvw.unesco.org).
nal, entre eles o Brasil, definiam seus objetivos, que eram os de
"contribuir para a paz e segurança, promovendo a colaboração
entre as nações por meio da educação, da ciência e da cultura, a
fim de alimentar o respeito universal pelajustiça, pelo império da
lei, pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais que
são asseguradas aos povos do mundo, sem distinção de raça, de
sexo, de língua ou de religião, pela Carta das Nações Unidas".'^
Sob essa perspectiva de otimismo e de boa vontade, a UNESCO
montou um comitê de grande envergadura, composto por oito in
telectuais ligados à Psicologia, à Filosofia, à Sociologia, à Psicanáli
se, à História e ao Direito, destinado a se ocupar de um projeto
bastante ambicioso, denominado "Tensões que afetam a compreen
são internacional". Coube a Hadley Cantril, professor de Psicologia
na Universidade de Princeton, onde dirigia o Office of Public
Opinion Research, o gerenciamento inicial da tarefa, para a qual
foi convidado Gilberto Freyre em nome da UNESCO, naquele mo
mento conduzida porJulian Huxley, seu primeiro diretor.
Data de 30 de março de 1948 o primeiro convite formal
assinado por Hadley Cantril, no qual algumas explicações preli
minares devem ser recortadas:

Estimado Professor Frere [sic],

Estou escrevendo-lhe para perguntar se lhe seria possível par


ticipar de uma pequena reunião que está sendo planejada aqui
para 28 de junho até 9 de julho.
[...] ^
Cheguei recentemente da Universidade de Princeton para aju
dar a Unesco a deslanchar o que ficou conhecido como o "Projeto
Tensões". Uma das resoluções da Conferência Geral do México que

^As clefined by lhe Constilution, lhe purpose of lhe Organizalion is: "lo con-
iribuie lo peace and securiiy by promoling collaboralion among nalions
ihrough educaiion, science and culiure in order lo furlher universal respecl
for jusiice, for lhe rule of law and for lhe human righls and fundamenlal
freedoms which are affirmed for lhe peoples of lhe world, wlihoui disiinciion
of race, sex, language or religion, by lhe Charier of lhe Uniled Nalions."
(wvAv.unesco.org).

/OO
faz parte do "Projeto Tensões" diz o seguinte: "Um questíonário
sobre as influências cotidianas que predispõem à compreensão in
ternacional, de um lado, e ao nacionalismo agressivo, de outro."
Diante da extraordinária quantidade de pesquisa e de refle
xão que tem sido suscitada por este problema da influência coti
diana que modela atitudes, parece-nos que seria extremamente
valioso se pudéssemos reunir, num grupo seleto, indivíduos ex-
ponenciais de diferentes disciplinas e de diferentes nações para
uma conferência extensa e, espero, descontraída, com o propó
sito de se obter a mais alta integração de evidências sobre este
tema, apontando para os denominadores comuns de um acordo
a ser alcançado por especialistas de diferentes disciplinas. Nossa
idéia é a de que, no final da conferência, seja preparada, por este
grupo de peritos, uma declaração relativamente curta que indi
que quais as condições a serem encontradas para se evitar a cria
ção, a continuação ou o agravamento de atitudes que conduzem
às agressões nacionais. Este documento poderia ser escrito com
ilustrações concretas e apontar exemplos do que deve ser feito.
[...] seria recomendável que, nos últimos dias da reunião, cada
participante redigisse, com suas próprias palavras, um documen
to curto, com cerca de 5.000 palavras, no qual fique consignado
seu ponto de vista a respeito do tema.
[...]
Estamos propondo que a reunião se realize na Casa da Unes-
co em Paris, começando em 28 dejunho e continuando até 9 de
julho. As pessoas a serem convidadas, além do Senhor, são:

Professor G. W. Allport - Psicologia - Harvard


Professor F. C. Bartlett - Cambridge
Professor Meyer Fortes - Antropologia - Oxford
Professor R. Maijolin - Economia - Paris
Professor Arne Naess - Filosofia - Oslo
Professor Jean Piaget - Psicologia - Genebra
ProfessorJohn Rickman - Psiquiatria - Londres
ProfessorHenry StackSullivan - Psiquiatria - Washington'

' Para o convite original e a resposta de Gilberto Freyre, ver, no final deste
artigo. Doe. 1 e 2. O acesso e a agilidade desta pesquisa nos arquivos da
UNESCO, em Paris,muito devema M. Jean Boêl,arquivistadaquele órgão. A
ele, nossos agradecimentos, extensivos também à Maison Suger, que nos aco
lheu em diversas oportunidades.

/(f/
o convite de Hadley Cantril foi encaminhado para o Rio
deJaneiro, onde Gilberto Freyre atuava nos trabalhos da Consti
tuinte de 1946, como deputado eleito por Pernambuco. Sua res
posta não se fez esperar. Em 19 de abril de 1948, carta manuscri
ta do escritor, enviada do Rio de Janeiro e hoje arquivada na
UNESCO, dizia:

Estimado Professor Cantril:

Recebi sua carta de abril. A idéia de uma conferência sobre as


"influências" nas relações internacionais me parece esplêndida.
Concordo inteiramente com o Sr. sobre a conveniência de um
"grupo pequeno", a fim de se alcançar a "máxima comunhão e
informalidade". E acho que o Sr. foi feliz na seleção das pessoas a
serem convidadas —com uma exceção. Estou inclinado, ou me
lhor, decidido a ir ou a aceitar o convite oficial, quando chegar,
com os detalhes sobre as condições gerais propostas em sua car
ta. O Parlamento brasileiro me dará, é claro, a permissão para
meu afastamento. Ainda não decidi "como viajar", mas isso é um
detalhe pessoal.

Planejado com minúcia por Hadley Cantril, que detalhou


o encontro através de artigo extenso, publicado pouco antes em
The Public Opinion Quarterly, o projeto "Tensions affecting inter-
national understanding" nascia de decisão anterior, tomada pela
Segunda Assembléia Geral da UNESCO, realizada no México,
em 1947. Naquela ocasião, ficara decidido que competia aos ci
entistas sociais a tarefa de refletir sobre o trauma da guerra, a
partir de um conjunto de cinco resoluções concretas, que deve
riam servir como pauta dos trabalhos.
A primeira resolução sugeria a organização de questionários
sobre o caráter inconfundível das diversas culturas nacionais, ideais e
sistemas legais, com o objetivo deestimulara simpatia e o respeito das nações
pelos ideais e aspirações alheias bem como o respeito pelos problemas nacio
nais. Para pauta desta questão, argumenta Cantril, textos diversos
sobre "Way of Life" já haviam sido encomendados a especialistas,
alguns dos quaisjá estavam a caminho, tais como "The French Way

/02
of Life", "The Nonvegian Wayof Life", "The Polish Way of Life" e
"The Swiss Way of Life" (Cantril, 1948, p. 237).
A segunda resolução dispunha sobre a necessidade de se
elaborar um outro questionário que se ocupasse da imagem que
os países desenvolviam a respeito de outras nações e da auto-
imagem nacional.
A terceira resolução levantava a hipótese de se questionar a
maneira como as técnicas modernas - desenvolvidas pela Edu
cação, pela Ciência Política, pela Filosofia e pela Psicologia -
estariam contribuindo para a mudança de atitudes mentais e
para a descoberta dos processos e das forças atuantes nas socie
dades em conflito.

A quarta resolução voltava-se para as influências que pre


dispunham tanto para a compreensão internacional, de um lado,
quanto para o nacionalismo agressivo, de outro.
Aquinta e última resolução recomendavaa montagem de um
"Source Book", no qual ficassem registradas as providências toma
das pelos Estados membros da UNESCO a respeito das tensões que
resultam dos melhoramentos tecnológicos edo deshcamento daspopulações.
Para atingir taisobjetivos é que se solicitava a alguns cientistas
sociais competentes ou a alguns grupos de cientistas sociaisque pre
parassem textos breves sobre o que ocorria em seus países ou em
certas áreas, respeitada a contribuição pessoal e rejeitada, de an
temão, a possibilidade de qualquer padronização de resultados.
De imediato,trêsresultados concretossurgiram depois da reu
nião, que acabou por ser realizada entre 28dejunho e 09dejulho
de 1948,em Paris, na sede da UNESCO: duas propostas e um livro.
Ligeiramente alterado em sua composição original, o comi
tê final compunba-se de Gordon W. Allport, professor de Psicolo
gia na Universidade de Harvard; Gilberto Freyre, identificado
curiosamente como professor de Sociologia da Universidade da
Bahia e do Instituto de Sociologia da Universidade de Buenos
Aires; Georges Gurvitcb, professor de Sociologia da Universidade
de Strasbourg e administrador do Centro de Estudos Sociológi-

/í).y
COS de Paris; Max Horkheimer, Diretor do Instituto de Pesquisa
Social de New York; Arne Naess, professor de Filosofia da Univer
sidade de Oslo;John Rickmam, editor do BritishJoumal ofMedicai
Psychology', Harry Stack Sullivan, presidente do Conselho da
Washington School of Psychiatry e editor do Psychyatry, Joumalfor
lhe Operaíional Síaíement ofInterpersonal Relations e Alexander Sza-
lay, professor de Sociologia da Universidade de Budapeste e pre
sidente do Instituto Húngaro de Relações Exteriores.
Sem dúvida nenhuma, tratava-se de comitê diversificado do
ponto de vista ideológico e de atuação profissional, se tivermos em
conta a identificação de seus participantes até aquele momento.
Gordon W. Allport (1897-1967): professor de Psicologia em
Harvard e especialista em interpretação psicológica da personali
dade. Suas pesquisas levaram-no a trabalhar, no final dos anos 30
e no começo da Segunda Grande Guerra, com refugiados euro
peus e a se interessar por um projeto dedicado a preconceitos e a
conflitos grupais nos Estados Unidos e em países estrangeiros.*^
Georges Gurvitch (1894-1965): nascido na Rússia, Gurvitch
transferiu-se para a França em 1925, depois de se opor ao regi
me soviético em fase de implantação. Com sua sólida formação
jurídica e filosófica, Gurvitch dedicou-se ao estudo da sociologia
do Direito, da qual continuou se ocupando depois de abando
nar a França, em 1940, para se refugiar nos Estados Unidos, onde
ajudou a criar a Escola Livre de Altos Estudos de New York. De
volta à França e ã sua universidade em Strasbourg, onde suce
deu a Maurice Halbwachs, Georges Gurvitch ainda ajudou a criar
a Associação dos Sociólogos de Língua Francesa, nos anos 50,
depois de ter-se transferido de Strasbourg para Paris, onde atuou
como professor da Sorbonne e da Ecole Pratique des Hautes
Études e onde ainda favoreceu a expansão das ciências sociais, com
a criação dos Cahiers Internationaux de Ia Sociologie, em 1946
(Cramer, 1986, p. 457-467).

•' ConsiiUci httjD://web.lemoyne.edu/~hevern/nr-theorisis/allport_gordon_w.


luml#biography

/oí
Max Horkheimer (1895-1973): sociólogo e filósofo, Horkhei-
mer estudou Psicologia e Filosofia em Munique, Freiburg e Frank
furt, onde criou, em 1930, o Institut für Sozialforschung, na com
panhia de Erich Fromm e de Herbert Marcuse. Em 1934 fugiu
para os Estados Unidos, onde deu continuidade aos trabalhos do
Institut für Sozialforschung, na Universidade de Columbia, em
New York. Entre 1942 e 1944 trabalhou com Adorno na Dialética
do lluminismo e em 1949 retornou para a Alemanha, onde, um
ano depois, reabriu seu Instituto. Seu Studies in pr^udiceé o resul
tado de extensa pesquisa sobre o anti-semitismo na sociedade
norte-americana, mas vai mais além disso, porque não só descrevia o
anti-semitismo, como também contribuía parafazê-lo desaparecer, através
de uma compreensão melhor dessefenômeno.^
Arne Naess (1912-): filósofo norueguês, professor da Uni
versidade de Oslo, autoridade respeitada em ecologia e co-fun-
dador, em 1958, do Inquiry, An InterdisciplinaryJoumal ofPhiloso-
phy, revista dedicada às vinculações entre a Filosofia e as Ciên
cias Sociais, bem como às eventuais conexões entre questões fi
losóficas fundamentais e os problemas derivados do desenvolvi
mento contemporâneo.'
John Rickman (1891-1951):Secretário Honorário do Insti
tuto de Psicanálise de Londres,John Rickman publicou, em 1928,
pela Hogarth Pressde Leonard e VirginiaWoolf, um Index Psycho-
analyticus 1893-1926, catálogo de artigos e de autores sobre psi
canálise, dedicado a Sigmund Freud. Embora modesto em sua
bibliografia, seu On the bringing up ofchildren byfivepsychoanalysts
(1936) tornou-se referência pioneira em psicanálise infantil, gra
ças aos cinco ensaios assinados porSusan Isaacs, Melanie Klein,
Merell P. Middlemore, NinaSearl e Ellen F. Sharpe. No prefácio
ao livro, Rickman advoga a interferência clara do conhecimento
científico na educação infantil, alegando que a experiência his
tórica e familiar não bastam para educar uma criança. Seu pre
fácio defende, com ênfase, a necessidade do enfoque individua-

" Consultei wvw.dhm.de/lemo/htmI/biograrien/HorkheimerMax/


' Consultei wv\v.sum.uio.no e ww\v.landf.co.uk/journals/titles/

/o.i
lizado em vez da educação com base na tradição coletiva e mera
mente consuetudinária.®

Harry Stack Sullivan (1892-1949): psiquiatra norte-ameri


cano, precocemente falecido, formou-se em 1937 no Chicago
College of Medicine and Surgery e lecionou na Faculdade de
Medicina da University of Maryland, em Yale e na University of
Georgetown, em Washington, D. C. Em 1938, recebeu bolsa para
estudar a condição dos negros no sul dos Estados Unidos. Sua
preocupação com o entorno social fica evidente em obra póstu
ma, denominada TheFusion ofPsychiatry and SocialScience (1964).
Especialista em esquizofrenia, escreveu Schizophreniaas a Human
Process (1962), depois de ter trabalhado com William A. White
(1870-1937), um dos introdutores de Freud nos Estados Uni
dos. Foi editor-associado do AmericanJoumal ofPsychiatry e traba
lhou na organização da Washington School of Psychiatry com
Edward Sapir e com Harold Lasswell. Desenvolveu ampla repu
tação como clínico e grande habilidade em comunicar-se com
pacientes psicóticos. Em termos práticos, deu início a uma das
primeiras comunidades terapêuticas. Decorrência deste traba
lho interativo é seu livro ThePsychiaíricInterview, organizado por
Helen S. Perry e Mary L. Gawell, em 1970.*-^
Alexander Szalai (1912-1983): sociólogo e filósofo hún
garo, Szalai foi membro da Academia Húngara de Ciências,
diretor da Sociedade de Sociologia da Hungria e Secretário
de Relações Exteriores do Partido Social-Democrata, depois
de ter obtido seu doutoramento em Filosofia, em Zurique,
em 1934. Em 1946, na seqüência de sérios problemas políti
cos internos, que redundaram no fechamento de uma cáte
dra de Sociologia na Universidade de Budapeste, Szalai criou
um Instituto de Ciências Sociais, cujas atividades foram en-

" As informações sobre John Rickman foram extraídas de On thebringingup of


children byfive psycho-analysts e de seu Index Psychoanalyticus 1893-1926, obra
esta que faz parte da "The International Psychoanalytical Library Series", que
já publicara J.J. Putnam, S. Freud, S. Ferenczi, Ernst Simmel e Ernestjones.
" As informações sobre Harry S. Sullivan foram retiradas da International En-
cyclopedia of Psychiatry, Psychology, Psychoanalysis and Neuroíogy, ed. by Benjamin
B. Wolman.

/Oó'
cerradas em 1949, com a prisão de seu criador, reabilitado
apenas em 1957. Deste momento em diante, Szalai tornou-se
professor universitário em instituições húngaras de renome,
como a Universidade Eõtvòs Loránd.'®

Hadley Cantril (1906-1969): Albert Hadley Cantril, profis


sionalmente conhecido como Hadley Cantril, é, de longe, a fi
gura mais curiosa deste grupo, para dizer o mínimo.
Diretor Associado do Princeton Radio Project entre 1937 e
1939, Cantril ficou conhecido como um dos fundadores dos es
tudos em comunicação de massas e um dos pioneiros em pes
quisas de campo com vistasà formação da opinião pública. Cria
dor do Princeton's Office of Public Opinion Research, foi seu
diretor durante muito tempo. Criou também o Princeton
Listening Center, que teria evoluído, mais tarde, para o Foreign
Broadcast Information Center, graças a financiamentos da CIA.
Uma das premissas do trabalho de Cantril era a de que os objeti
vos e as ações externas dos Estados Unidos eram fundamental
mente boas para o mundo em geral e se assim não fossem elas
compreendidas haveria aí um erro de comunicação. De modo
eufêmico, pode-se dizer que sua carreira acadêmica sempre es
teve associada aos serviços de inteligência do governo norte-
americano, desde o início dos anos 30.
Um de seus primeiros trabalhos acadêmicos é The invasion
from Mars: a study in thepsychology ofpanic, uma análise da céle
bre emissão radiofônica de Orson Welles, realizada na noite
anterior á das Bruxas, em 30 de outubro de 1938, em New
York. Nesse programa, que provocou pânico generalizado nos
Estados Unidos, Orson Welles criava uma suposta invasão de
marcianos, em plena tensão prévia à eclosão da Segunda Gran
de Guerra." É de Cantril também outro estudo sobre domi-

As informações sobre Alexander Szalai foram asmais difíceis de obter e por


elas agradeço a Evelyn Montano do Consulado Húngaro de São Paulo, que as
traduziu e mas disponibilizou. As primeiras notícias sobre este intelectual
húngaro obtive-as em mvw.caesar.elte.hu/elte/sociology/SHISTORY.htm
'' Consultei http://mv^v.transparencynow.com/welles.htm

/(>7
nação política e mental, denominado Soviet Leaders and Mas-
tery over Man}^
Com a assinatura desse grupo de intelectuais, veio a públi
co, em 13 de julho de 1948, um "Statement by eight distingui-
shed social scientists on the causes of tensions which make for
war",^^ no qual eram alinhados doze possíveis causas determi
nantes da guerra. Antes de listá-las, no entanto, uma ressalva
significativa: segundo os signatários do documento era a primei
ra vez que uma organização internacional apelava para o con
curso de cientistas sociais como agrupamento profissional res
ponsável pela reflexão a respeito de problemas relevantes de nosso
tempo. Naquele contexto preciso, a ressalva abria espaço para uma
segunda proposta, a ser publicada dias depois, e que lançava a
idéia de um "International Social Science Institute".

Em resumo, a primeira proposta, verdadeira definição de


princípios e de crenças necessárias em momento ainda carrega
do de traumas, dispunha seus doze itens da seguinte maneira:

1. não há nenhuma prova de que a guerra resulte da "natureza


humana", mas, antes, de "necessidades vitais", tais como a fome,
a doença, o medo, a insegurança, o desrespeito etc.;

2. alcança-se a paz se as tensões nacionais forem mantidas em nível


aceitável e se forem conduzidas de forma positiva, através de mu
danças fundamentais na organização social e nas formas de pensar,
sem se apelar para "reformas superficiais ou esforços isolados";

3. são as desigualdades econômicas, as inseguranças e as frustra


ções que criam o conflito;

4. o cultivo de mitos, de tradições e de símbolos nacionais, trans


mitidos de uma geração à outra e com intenções nacionalistas, c
o forte responsável pelas guerras modernas;

Sobre Hadley Cantril consultei http://\vw\v.icdc.com/~paulwoir/colombia/


americanuniversitymay 1963.htm.
Paris, 13 jul. 1948. UNESCO/SS/TAIU/3. Ver Doe. 3.

/(hV
5. a educação, em todas as suas formas, deve combater a presunção
das certezas nacionais inabaláveis e favorecer a autocrítica sobre
nossas formas de rída social, assim como sobre as formas alheias;

6. diante do inevitável crescimento dos modernos meios de co


municação, capazes de disseminar informações verdadeiras e/
ou falsas, cabe às organizações filiadas às Nações Unidas a utiliza
ção conveniente desses meios com o objetivo de favorecer uma
"compreensão adequada" dos outros povos em seus países;

7. não existem grupos étnicos inferiores. Portanto, a paz mun


dial é incompatível com a exploração colonial e com a opressão
de minorias;

8. a separação por diferenças de classe, de ideologias ou de na


ções ainda impede maior aproximação entre os cientistas sociais
que se dedicam a estes problemas e permite a emergência de
teorias pseudocientíficas, que são exploradas por líderes políti
cos em causa própria;

9. o financiamento adequado de um programa de pesquisa in


ternacional e de educação é uma forma de se contornar os pon
tos de vistas estreitos ou partidários;

10. c de grande interesse a criação de universidades e de centros


superiores de investigação social com caráter internacional e sob
o auspício internacional como forma de disseminar o conheci
mento das culturas nacionais, bem como avançar no conheci
mento dos métodos educacionais, escolares ou familiares, como
forma de se conhecer a orientação que se imprime aosjovens;

11. o conhecimento mais recente desenvolvido pelas ciências fí


sicas e biológicas, apesar de seu progresso inegável, não tem sido
capaz de reduzir as tensões mundiais, o que seria alcançável no
momento em que o homem compreender melhor que sua ação
se dá sob forças internas e externas;

12. o cientista social tem papel decisivo no sentido de fazer os


povos compreenderem que a liberdade e o bem estar de uns es
tão intimamente conectados com a liberdade e o bem estar dc

/oo
todos e que o mundo não precisa ser um lugar onde os homens
matem ou sejam mortos.

Como seqüência natural desta proposta, uma outra, com


data de 15 de Julho de 1948, ponderava, através de oito itens,
sobre a necessidade de se criar um "International Social Science
Institute", com o objetivo, entre outros, de se alcançar a forma
ção e a expansão de especialistas em relações internacionais, pro
venientes, em princípio, das áreas de Ciência Política, Econo
mia, Sociologia, Psicologia Social e Direito Internacional.''' Em
bora de interesse colateral neste artigo, essa proposta, além de
reforçar a legitimidade profissional do "Statement by eight dis-
tinguished social scientists...", dava respaldo também, de modo
indireto e em plano internacional, à intenção profissional de
Gilberto Freyre que, nesse momento, batalhava pela criação de
um instituto de pesquisas sociais, na sua cidade natal, como ve
remos mais adiante.

A intervenção direta de Gilberto Freyre no colóquio con


sistiu na apresentação de um texto, intitulado "Internationali-
zing Social Science", publicado dois anos depois em livro coleti
vo, organizado por Hadley Cantril (1950) e intitulado Tensions
that cause war. Common statement and individual papers by a group of
social scientists brought togetherby UNESCO?-'
Junto com seus colegas, que também deixaram presença es
crita de sua participação no evento, o sociólogo de Pernambuco
defendia, em suma, a aplicabilidade das Ciências Sociais com o
intuito claro de contornar ou de aplacar as eventuais tensões so
ciais, nacionais ou internacionais, decorrentes da instrumentali
zação ideológica do ensino da História, da Geografia, da Antro
pologia, cujo objetivo fosse o enaltecimento da raça ou da nação.

' • Paris, 15jul. 1948. UNESCO/SS/TAIU/2. Ver Doe. 4.


Publicado pela Universiiy of Illinois Press, em 1950. Anos depois, o incansá
vel Edson Nery da Fonseca recolheu alguns artigos estrangeiros de Gilberto
Freyre numa coletânea a que deu o nome inspirado de Palavras repatriadas e
na qual consta "Internacionalizando a ciência social", em tradução de Carlos
Humberto Carneiro da Cunha.

//O
o solapamento dos mitos nacionais ou a erosão das crenças que
estimulam a distinção arbitrária entre povos superiores e inferio
res estavam também entre as preocupações de seu artigo. Bem
como o temor de certos determinismos biológicos, geográficos
ou econômicos ou dos desvios inspirados pelo fervor religioso e
pelos desníveis econômicos pronunciados. Do ponto de vista de
Gilberto Freyre, esses eram alguns dos motivos, entre outros, ca
pazes de provocar a instabilidade social, a tensão grupai e intra-
grupal, cujo remédio, preconizava ele, seria a focalização múlti
pla do mesmo fenômeno através de lentes diversificadas e oriun
das de ciênciasdiversas, em clara defesados estudos multidiscipli-
nares com perspectiva totalizante. O exemplo histórico final que
ilustra sua tese e que pouco repercutiria naquela platéia seleta de
eruditos europeus, provavelmente muito afastados de nossa reali
dade cultural, não deixa margem de dúvida sobre sua metodolo
gia polimórfica e polivalente, pois é com um dos conflitos sul-
americanos que Gilberto Freyre materializa sua proposta:

O resultado de esforços como esse seria provavelmente o de elimi


nar, pelo esclarecimento de problemas complexos, as causas de
algumas das tensões entre paísesvizinhos.Rosas, o ditador argenti
no, Lopes, o caudilho paraguaio. Dom Pedro II, o imperador do
Brasil por um longo período, durante o século XIX, são todos
homens-problemas, que têm sido interpretados de acordo com os
interesses nacionais particulares em que estiveram envolvidos. Em
conseqüência, permanecem eles como base de um culto naciona
lista que, ainda hoje, é causa de tensões internacionais na região
sul da América Latina. O estudo científico regional, ou transnacio-
nal, de cada um deles, conduzido pelos esforços combinados de
representantes de diversas disciplinas e das diversas nações envol
vidas,mostraria provavelmente como sua grandeza humana e ame
ricana seria capaz de superar os defeitos peculiares de um líder
nacional isolado e tomaria claro o erro de usá-los como agentes
de nacionalismo agressivos estreitos [sic]. (Freyre, 2003, p. 74-75)

O texto de Gilberto Freyre sofreu três intervenções pontuais


e precisas, nenhuma delas incluída na ediçãode Palavras repatria
das, como bem adverte Edson Nery da Fonseca, organizador do

///
volume. É, portanto, com o mero intuito de ampliar a documen
tação sobre este episódio que as transcrevemos na íntegra.'®
Alexander Szalai, o sociólogo húngaro, admitia o perigo
da distorção da sociologia com caráter nacional e alertava tam
bém para o risco adicional da subordinação dessa mesmá so
ciologia aos interesses de classe de quem a praticava. Gordon
Allport, por outro lado, elogiava a análise aguda de Freyre,
mas se perguntava: será que o critério regional para monta
gem de grupos com vistas ao estudo de certos problemas não
determinaria um diagnóstico distorcido? E, na esteira da sua
própria pergunta, complementava com a sugestão de que tal
risco poderia ser bem minimizado se especialistas de proce
dências nacionais diferenciadas atuassem de forma conjunta.
Max Horkheimer, mais extenso e mais denso, questionava-se,
entre outras coisas, sobre a proposta de um livro-modelo de
história. Quais seriam os especialistas a quem se delegaria essa
tarefa, se considerarmos que seria preciso que estivessem in
teiramente despidos de qualquer tipo de preconceito? Ou,
por outro lado, como superar a atitude humana de reificação
permanente? Ou ainda, como distinguir a verdadeira autori
dade da autoridade embusteira?

A pregação a favor da multidisciplinaridade, pleiteada por


Gilberto Freyre nesse verão parisiense de 1948,Já se materializa
ra, anos antes, com a publicação de Casa-Grande & Senzala (1933)
e estava em vias de se materializar, mais uma vez e em nível insti
tucional, com o projeto de criação do Institutojoaquim Nabuco
de Pesquisa Social (IJNPS), no Recife. Na proposta legislativa de
sua criação —apresentada por Gilberto Freyre à Câmara Federal
em 1948, aprovada em 1949 e implementada em 1950 - o IJNPS
estaria encarregado de:
1) estudar osproblemas sociais relacionados direta e indiretamente
coma melhoria das condições de vida do trabalhador brasileiro, especial
mente do trabalhador rurcd\

Ver Doe. 5.

f/3
2) promoverestudosepesquisas destinados à compreensão da rea
lidade sócio-econômica e cultural das regiões norte e nordeste,
3) contribuir para o aceleramento do processo de desenvolvimento
empresarial brasileiro-,
4) prestar assistência técnica em assuntos relacionados com suas
atividades e

5) pesquisar e estimular manifestações culturais regionais (Fres-


ton, 2001, p. 369-417).
Era, enfim, com base nessa vivência intelectual e prática,
que Gilberto Freyre se credenciava para participar de reunião
internacional, a convite de organismo recém-criado e destinado
à promoção da ciência, da cultura e da educação universais. Os
critérios que orientaram a organização da reunião de Paris, deli
neados por Hadley Cantril de forma muito sumária no prefácio
ao livro que dela se originou, esclarecem que: 1) por injunção
orçamentária e também porque se desejava reunir grupo peque
no, o conjunto de especialistas não deveria ir além de dez parti
cipantes; 2) os trabalhos anteriores desses participantes, e que
os recomendavam, deveriam gravitar em torno da vida subjetiva;
3) várias áreas de conhecimento deveriam estar representadas,
tais como a sociologia, a psicologia social e a psicanálise; 4) além
da competência reconhecida, os participantes deveriam ser se
guros o suficiente para não "perderem tempo, no grupo, ten
tando impressionar uns aos outros" (Cantril, 1950, p. 8-9).
De volta ao Brasil, Gilberto Freyre presta contas de sua reu
nião parisiense, a convite do Itamaraty (28jul. 1948) e, logo em
seguida, atende a um outro vindo da Escola do Estado Maior do
Exército (04set. 1948).
Guerra, paz e ciência}^ intitula-se o texto dessa dupla apre
sentação pública no Rio de Janeiro. Mas não é o mesmo texto

Ver Freyre [1948]. Mais tarde, esse texto, com o mesmo título, foi recolhido
por Gilberto Freyre (1965) em 6 conferências em busca de um leitor. Por uma
questão de facilidade relativa de aces.so, cito esta edição, quando necessário.

//.¥
que Gilberto Freyre apresentara em Paris. São diferentes no tom,
na forma, nos objetivos, o que uma análise minuciosa e concen
trada demonstraria com facilidade.

Na versão européia, escrita em inglês, fala um sociólogo


circunspecto e formal, que expõe suas sugestões de forma li
near, enfatizando sua visão pragmática das Ciências Sociais e
seu interesse em vê-las a serviço da distensão social. Diante do
seleto público europeu, pomposamente chamado de Conclave
dos 8 pelo próprio Gilberto Freyre, escasseiam-se ou quase de
saparecem as metáforas de efeito. Em vez delas, salpicam-se
exemplos históricos providenciais originários do continente sul-
americano, como que a descentrarem o foco da discussão, cujo
eixo preferencial - supõe-se - fossem as tensões recentes, que
pareciam existir tão-somente em torno do Atlântico norte ou
um pouco mais além, talvez. Com uma frase inicial cortante e
ligeiramente imperativa, pronta para impressionar seus pares
não-latinos e muito distante da fala sedutora com que aliciaria
depois as platéias brasileiras, Gilberto Freyre não se permite,
nessa apresentação cerimoniosa, a distensão verbal que já é
marca de seu texto em português e que tanto furor causara,
em 1933, quando da publicação de Casa-Grande & Senzala. De
modo retilíneo, sisudo, em encadeamento preciso, sem digres
sões, com concatenação própria da exposição oral, previamen
te escrita, aprendida e assimilada, muito antes, em bancos uni
versitários norte-americanos, expõe-se ele por meio de pará
grafos compactos e blindados contra qualquer intromissão de
subjetividade prenhe de memorialismo pessoal ou de reminis-
cências literárias, recurso tão de seu vezo. Exceção se abre em
brevíssima clareira, já no final da exposição, quando Gilberto
Freyre traz á baila os nomes magnos (e europeus...) de Dante,
Shakespeare, Milton, Cervantes, Tolstoi, Rabelais e Pascal como
referências obrigatórias a favor do universalismo, em franca
oposição ao risco do nacionalismo a ser combatido em obras
que viessem da ciência social.
E de modo manhoso, perante platéia estrangeira que, por
certo, ignorava o pasmo brasileiro diante de sua obra de estréia.

///
Gilberto Freyre ilustrava seu ponto de vista, ao mencionar que o
desdobramento prático do conhecimento social científico já ti
nha produzido resultado expressivo, em um caso, pelo menos:
quando se revelara que a constituição social brasileira decorria
de um sistema de organização social fincado no latifúndio, na
monocultura, no patriarcalismo, na escravidão e na miscigena
ção (Freyre, 2003, p. 64). Pois não fora graças a uma pesquisa
social bem aplicada e bem dirigida que a tensão intranacional
brasileira se atenuara? Não fora graças a uma pesquisa sistemáti
ca e inovadora, publicada no Rio de Janeiro em 1933, que o
convívio de epidermes se transformara de "hipoteca em lucro"
(Mello, 2001, p. 20), para usar formulação sucinta e certeira de
Evaldo Cabral de Mello?

Adotando a tática de invocar exemplos históricos extraídos


do contexto latino-americano perante grupo solidamente euro
peu ou norte-americano, Gilberto Freyre ia deixando claro que
o centro hegemônico se alterava depois da guerra e que o con
curso de outras nações e de outros povos começava a se fazer
necessário, se se pretendia mesmo um internacionalismo expan
dido e livre de preconceitos. Sem modéstia e sub-repticiamente,
Gilberto Freyre vangloriava-se de sua pesquisa em cima da socie
dade patriarcal brasileira, ao mesmo tempo em que deslocava o
foco da tensão racial européia para a suposta distensão racial de
um país sul-americano, exemplo longínquo e sorrateiro de su
cesso social. Em apenas uma tacada, punha-se a si mesmo e ao
país que representava como modelo de conduta empírica e exis
tencial, como padrões a serem observados doravante por uma
Europa dilacerada, mas ainda etnocêntrica.
Sua apresentação no Itamaraty e na Escola do Estado Maior
do Exército nacional, ao voltar da Europa, é diferente, no en
tanto. Do discurso profissional passava para o mais pessoal; no
lugar da ciência, o relato. Em vez de relatório, que o nosso Auré
lio define como "exposição e relação dos principais fatos colhi
dos por comissão ou pessoa encarregada de estudar determina
do assunto" ou como "exposição dos fundamentos de um voto
ou de uma opinião", um relato, que o mesmo Aurélio encarre-

//.)•
ga-se de definir como "descrição, notícia, informação, relação,
relatório (de um fato, de um estado de espírito)", no qual se
abre espaço para a inserção da subjetividade, controlada ou não.
Diante de diplomatas e de militares brasileiros, o tom é ou
tro, a fala é outra, porque o objetivo é outro. Portanto, a retórica
que se mobiliza é outra, montada em cima de recursos para cap
tação do auditório, que não precisa ser convencido das qualida
des e da ciência do orador, uma vez que sua presença ali decor
ria de prestígio intelectualjá reconhecido e sancionado pela in
teligência nacional.
Como não se trata de platéia de especialistas, como não
fala com pares, como se sente à vontade, em território cuja lín
gua domina de forma soberana, a exposição ganha coloquiali-
dade colorida, recuperando um estilo que dera, anos antes, pro
jeção ao seu autor. Desaparece de cena o "estudantejá antigo de
Sociologia" (Freyre, 1965, p. 54), que se apresentara na UNESCO
e, em seu lugar, reaparece, de pronto, o perito manipulador do
verbo, que sabe muito bem rechear seu discurso com frases cur
tas, nominais ou entrecortadas como que espichando, habilido
so, a continuidade discursiva por meio de uma lembrança furti
va, que se esquivava, ou da complementação ágil do pensamen
to, ainda à espera de um golpe final, curto e na mosca. Com o
enxerto de expressões coloquiais e de digressões pessoais, ao
lado de exemplos caros à platéia preparada, que as reconhece
rápido, o discurso de Gilberto Freyre torna-se persuasivo e car
regado de alto potencial de identificação, porque está vazado
em pretensa informalidade, traço tão do agrado de nossa cultu
ra, sempre avessa àquele convencionalismo que lembra esfera
superior de autoridade.
A informalidade pretendida peleja para se manter, no en
tanto, quando se nota, por exemplo, que o orador insiste em
acentuar o privilégio de uma reunião internacional, patrocina
da por um órgão mundial, realizada numa cidade de sedução
universal e em meio a sumidades escolhidas a dedo, com a ênfa
se recaindo de modo assinalado sobre a singularidade do even
to. Evento que, segundo Gilberto Freyre, tornou-se marcante pelo

//6'
seu experimentalismo expositivo e pelo seu anticonvencionalis-
mo, muito distante de qualquer academicismo. Ademais, com a
manobra ágil de trocar, quando convém, a exposição em pri
meira pessoa - vinculada ao presente - por uma passagem em
terceira pessoa - que remete a um passado próximo - confor
ma-se melhor a sedução do orador, porque seqüencia-se o tem
po e se atenua a autoridade de quem veio para ensinar e não
para dialogar, como lhe faculta a condição inerente ao convite.
Em casa, diante de público cativo e ciente do seu prestígio inte
lectual em terras brasileiras, Gilberto Freyre ultrapassa a presta
ção de contas e resvala pelo rubor fingido, intrometendo, vez ou
outra, uma terceira pessoa do singular, que simula modéstia e
distanciamento.

O golpe de mestre retórico ocorre, enfim, quando Gilber


to Freyre embaralha, de propósito e nos últimos parágrafos, duas
dimensões de produção de conhecimento destinados à mais com
pleta e acabada impossibilidade de conciliação: o universo da
reles bruxaria com o universo da inteligência cosmopolita. Por
que, à guisa de conclusão, suas palavras finais misturam ambos
sem nenhuma hesitação:

Não será decerto o livro que reunirá os trabalhos dos cientis


tas sociais convocados pela Unesco para essa conferência excep
cional um novo livro de São Cipriano.
O Conclave de Paris não foi um ajuntamento de feiticeiros
envolvidos misteriosamente em becas de professores ou capelos
de doutores, como em mantos pretos de bruxos. Não surgiu dele
nenhuma receita mágica de endireitar Mouras Tortas ou de res
suscitar Brancas de Neves ou de despertar para novas realidades
Belas Adormecidas nos bosques. Dos cientistas sociais ali reuni
dos creio que nenhum sejulga aparelhado por sua ciência a aca
bar da noite para o dia com os "nacionalismos agressivos" e subs
tituí-los pela "compreensão internacional" de que se cogitou na
Conferência Geral do México. Não se sentiram eles em momen
to algum um grupo de mágicos capazes de fazer sair de repente
das cartolas ou dos chapéus de feltro dos estadistas, em vez de
serpentes de guerra, pombas de paz. (Freyre, 1965, p. 63-64)

//7
Ao evocar como arremate final de sua fala os elementos
que compõem o cerne mesmo de um universo bipolar, no qual
Ciência e a Fantasia travam disputa aguerrida, o orador finge
abandonar a pompa da investidura que o conduzira à capital
européia dos intelectuais e restaura fragmentos do universo
mágico infantil, que contrastam com a austeridade da discus
são adulta, tudo subitamente compactado e convertido, de
novo, em simbolismo radical, antitético e, por conseguinte, de
fácil compreensão. Para uns, a Branca de Neve; para outros, a
Moura Torta. De um lado, as serpentes; de outro, as pombas.
Em cena, de novo, as polaridades que tanto aprecia e que, anos
antes, já nos dera Casa-Grande & Senzala ou Sobrados e Mucam-
bos. E que ainda nos daria Ordem e Progresso e a promessa não-
cumprida de Jazigos e Covas Rasas.
A beleza irretocável e alva da donzela européia contrapõe-
se o desengonço da figura morena e mestiça. As serpentes, frias
e escamosas, que rastejam e se infiltram, opõem-se as pombas,
alvas e fofas, que se libertam no vôo alto e livre. Simbologia mais
transparente, mais universal e mais brasileira, impossível!
Confortável e à vontade em seu território, Gilberto Freyre
dispensa-se da necessidade de demonstrar gabarito profissio
nal. Escorado por cinco edições nacionais de Casa-Grande &
Senzala (1933/1936/1938/1943/1946), por três estrangeiras
(Argentina: 1942; Estados Unidos: 1946; Inglaterra: 1947), por
uma outra de Sobrados e Mucambos (1936) e por outros 17 títu
los, alguns dos quais substantivos, como Nordeste (1937), O mun
do que o português criou (1940), Região e Tradição (1941), Brazil,
an Interpretation (1945) e Sociologia (1945), por exemplo, não
era o caso de se assegurar pelo discurso austero. Com essa reta
guarda bibliográfica, Gilberto Freyre prefere, então, o cami
nho da prestação de contas em tom mais informal e menos
opinativo, o que o leva a informar a platéia sobre as marcas
gerais da reunião em Paris, que, segundo ele, foram: 1) a diver
sidade do grupo de especialistas internacionais; 2) o experi
mentalismo corajoso da técnica das apresentações pessoais; 3)
o caráter mais sintético que analítico das exposições; 4) a estra-

//<i'
nha ausência de representantes das ciências sociais elaboradas
no Oriente. E antes de encerrar sua exposição, Gilberto Freyre
ainda lembra sua contribuição concreta ao Conclave dos 8, ao
mencionar os quatro itens de sua autoria, que foram introduzi
dos no "Common statement":

1) direito das minorias étnicas-^


2) necessidade de cooperação entre cientistas sociais:,
3) revisão dos livros didáticos no sentido de se lhes atenuar
o nacionalismo;
4) a pertinência e a necessidade de se publicarem obras
sobre osestilos de vida dos vários grupos nacionais. (Freyre, 1965, p.
54-58).
Desde 1918, quando empreendera sua primeira viagem
ao exterior, em busca de formação universitária nos Estados
Unidos, seguida de extensa viagem de formação intelectual e
cultural pela Europa, Gilberto Freyre mantivera o hábito de
renová-la, o que nem sempre lhe ocorreu por vontade própria,
como, por exemplo, em fins de 1930, quando a Revolução en
xotou-o para fora do Recife, Entre 1922, ano de sua formatura
em Columbia, e 1948, ano de sua apresentação na UNESCO,
Gilberto Freyre já tinha estado algumas vezes em diferentes
países da Europa e outras tantas de volta aos Estados Unidos,
onde ministrara cursos ou seminários em Stanford, Columbia,
Michigan e Indiana, além de ter estabelecido seus primeiros
contactos com os países do Cone Sul. Sobre essa itinerância
informa-nos Edson Nery da Fonseca em farta cronologia que
integra a edição exemplar de Casa-Grande & Senzala da Cole
ção Archives, edição que acolhe também uma boa bibliografia
ativa de Gilberto Freyre, organizada por Guillermo Giucci, En
rique Rodríguez Larreta e Edson Nery da Fonseca.'® É por in
termédio dessa cronologia que se fica sabendo também que

Ver Freyre (2002). A "Cronologia" está entre as páginas 659-697; a "Biblio


grafia" entre as páginas 1.195-1.210.

^<9
dois ensaios biobibliográficos sobre Gilberto Freyre já tinham
sido publicados em inglês e em espanhol —GilbertoFreyre, viday
obra de Lewis Hanke, em 1939, e Gilberto Freyre y Ia sociologia
brasilenaáe Eduardo J. Couture, em 1947 - o que deve, eviden
temente, ter contribuído para divulgação do nome do estudio
so em outros setores acadêmicos que não o brasileiro. E é por
intermédio dessa rica bibliografia que se fica sabendo das pri
meiras traduções de Casa-Grande, realizadas antes de 1948, em
línguas de alcance extenso e de distribuição acadêmica siste
mática. Em espanhol, haviam saído duas edições na Argentina,
em 1942 e 1943: a primeira patrocinada pelo governo federal,
através do Ministério da Justiça e de Instrução Pública; a se
gunda, através da Emecé, uma editora particular. Em inglês,
haviam saído duas outras: a primeira, nos Estados Unidos, em
1946, pela Alfred A. Knopf de Nevv York, e a segunda, em 1947,
por Wendenfeld Sc Nicholson de Londres. Portanto, às viagens
internacionais, de cunho acadêmico ou Jornalístico, acrescen
te-se ainda que sua obra inaugural Já se difundira por meio de
línguas de circulação internacional, com penetração e visibili
dade intelectuais garantidas. Seriam essas algumas das razões,
tudo indica, que provocaram o convite a Gilberto Freyre.
Em tom especulativo, quando menciona a bibliografia de
Gilberto Freyre, ou documental, quando vai em busca de cor
respondência específica em Apipucos, Marcos Chor Maio lem
bra que Hadley Cantril chegara a convidar Gilberto para as
sumir a direção do Departamento de Ciências Sociais da
UNESCO, logo depois do encerramento do Conclave dos 8. Mas
que Gilberto Freyre recusara o convite, apesar de Cantril ten
tar convencê-lo com o argumento de que se cogitava, para aque
le posto, de um especialista dotado de a melloiu xuisdom, isto é,
de sabedoria madura. No rodapé, onde Marcos Maio inseriu a
informação, fomos buscar a carta datada de 21 de agosto de
1948, que diz o seguinte:

Conversei nos últimos dias com aqueles que são os mais res
ponsáveis pela direção da UNESCO. Eles se mostraram simpáti-

/20
COS o bastante para me pedir conselhos sobre um candidato que
servisse como Diretor do Departamento de Ciências Sociais aqui.
Brodersen é o Diretor Executivo. Como o nosso programa se ex
pande e se afirma, torna-se cada vez mais necessário um diretor
que tenha solidez na área, um conhecimento maduro, e todas as
demais qualificações que o Sr. saberia melhor que eu.
Mencionei seu nome e pediram-me que lhe escrevesse de
modo informal para lhe perguntar se o Sr. estaria interessado na
posição. Precisaria ser, pelo menos, um ano, na esperança, é cla
ro, de que o Sr. se interessasse por tempo mais longo.

As viagens de Gilberto Freyre - independente da iniciati


va, se alheia ou pessoal - não se descolavam de motivações
profissionais, assim como não disfarçavam, é claro, um auto-
encantamento manifesto. No caso desse congresso de Paris, a
participação de Gilberto Freyre em reunião da UNESCO, ór
gão jovem e de projeção mundial, funcionava como instância
de consolidação internacional para quem, há pouco menos de
trinta anos, tinha inaugurado uma itinerância cosmopolita.
Agora, Já não se tratava mais de presença em caijipi acadêmicos
estrangeiros, onde Já estivera algumas vezes, mas em platafor
ma mais alta: um organismo de formato menos acadêmico, mais
abrangente e de maior visibilidade, disposto a encabeçar pro
jeto extenso de combate a toda e qualquer forma de racismo
que viesse a ameaçar, de novo, a paz recém-conquistada à custa
de uma pilha estimada em 45 milhões de cadáveres espalhados
pela Ásia, Europa, África e pelos oceanos em torno. Em instân-

Em A históriadoprojeto UNESCO, Marcos Chor Maio (1997, p. 40) transcreve


a carta no original:
"I have talked in the past few ciays with those inost responsible for the
running of UNESCO. They have been kind enough to ask my advice about a
candidate to serve as Head of the Social Science Depariinent here. Brodersen
is Acting Head. As onr program expands and takes on life, it becomes more
and more essential to have a iiead who has standing in the field, some mellow
wisdom, and ali the othcr qualifications you wonld now better ihan 1.
1 mentioned yoiir name and was asked if 1would write quite informal!)' to
inquire if you would be interested in the position. It wotild need to be for at least
one year, the hope of course, thatyou would be interested for even a long time."

/iV
cia mais alta e mais suscetível de alcance internacional, porque
poderia ser voz ouvida em círculos políticos de maior enverga
dura, muito além das esferas acadêmicas, a opinião de Gilber
to Freyre viria ainda arrodeada de outras, emitidas por es
pecialistas de prestígio, como Gurvitch, por exemplo, ou
Horkheimer, cujos destinos intelectuais só fariam crescer, den
tro e fora da academia.

Depois desse Conclave dos 8, a próxima emersáo estrangei


ra de Gilberto Freyre, com o sentido subjacente de reforço da
imagem internacional através de país europeu e de público es
pecializado, aconteceria em 1952, com a tradução de Casa-Gran-
de & Senzala para o francês. Prefaciada por Lucien Febvre e
saudada por Roland Barthes, essa versão francesa vem a públi
co em 1952, através de uma editora de prestígio como a
Gallimard, que a incluiu em coleção nascente, dirigida por
Roger Caillois, um nome de forte vivência intelectual na Amé
rica Latina, onde estabelecera laços extensos e sólidos entre
1940 e 1945. Na coleção La Croix du Sud e na companhia inau
gural de J. L. Borges, Rômulo Gallegos e Jorge Amado, Gilber
to Freyre estrearia em língua francesa com Maitres et Esclave: Ia
formation de Ia sociéíé brésilienne, em tradução de Roger Bastide.
Em 1956, quatro anos depois, o mesmo Roger Bastide seria o
organizador de um dos primeiros colóquios de Cerisy, cujo tema
central e único era a figura de Gilberto Freyre, em torno de
quem se reuniram figuras de porte como Pierre Mombeig,
Leopold Sedar Senghor, Cícero Dias, Heron de Alencar,Jacques
Soustelle, Leon Bourdon, Jean Cassou, Pierre Deffontaines,
Pierre Hourcade, Frédéric Mauro, Jacques Lambert, Roger
Caillois, Paul Valéry-Radot, Germain Bazin, E. Coornaert, Sal
vador de Madariaga, L. H. Corrêa de Azevedo, Albert Béguin,
Lucien Febvre, Père Lebret, Levy-Strauss, Alfred Métraux,
George Balandier, Paul Rivet e outros. Mas isso é assunto para.
outra pesquisa. Já em andamento.

H*

/3â
Em maio de 1949, ano seguinte ao do Conclavedos 8, deu-se
uma outra reunião em Paris, dedicada ao estudo da democracia
e denominada "Democracy in a world of tensions". Reunido sob
a presidência de Edward H. Carr, um grupo de cinco intelec
tuais - Chaim Perelman, Richard McKeon, Pierre Ricoeur, Alf
Ross e Sérgio Buarque de Holanda - elaborou três documentos
básicos, cujos títulos sumariam seu conteúdo:
1) "The UNESCO questionnaire on ideological conflicts
concerning democracy";
2) "Statement of the members of the Committee concer
ning the importance of the problem";
3) "Report of the committee on the philosophical analysis
of fundamental concepts".^®
Depois desses dois encontros de caráter exploratório e prepa
ratório, a UNESCO, em 1950, deu início a um projeto sistemático e
prolongado sobre as tensões que provocam as guerras, como recurso
para compreendê-las em escala mundial e como iniciativa para ali
viá-las. Nessa nova etapa, o foco fecha-se sobre a questão racial.
A contribuição brasileira para essa agenda foi muito bem
historiada e analisada com esmero por Marcos Chor Maio em
seu trabalho de doutoramento, cuja proposta central é "analisar
a interface entre os estudos raciais e o desenvolvimento das ciên
cias sociais no Brasil, a partir do exame de um projeto patroci
nado pela UNESCO, no início dos anos 50, que mobilizou cien
tistas sociais brasileiros e estrangeiros em torno da investigação
das relações raciais no Brasil." (Maio, 1997, p. VI).
Segundo Chor Maio, em suas origens, a UNESCO abriu-se
para duas tendências básicas, no enfrentamento das questões
que lhe competiam.

A documentação desse encontro sobre democracia foi organizada por


Richard McKeon (1951), com assistência de Stein Rokkan. Ver referência
no finai.

/2,i
No início, sob a orientação de Julian Huxely, abriu-se espa
ço para uma corrente de caráter idealista e mais utópica. De
pois, com os duros limites da Guerra Fria se impondo, foi a vez
de uma tendência mais pragmática e mais atenta às exigências
geopolíticas em emersão. Nas palavras do autor,

[...] os esforços intelectuais e políticos inspirados pelo otimis


mo vigente nos primórdios da UNESCO esbarravam num con
texto internacional regido por uma nova configuração geopolí-
tica, moldada pela Guerra Fria e que repercutia no interior da
instituição, revelando concepções distintas acerca de suas fun
ções específicas. "Grosso modo", a primeira corrente, de corte
universalista, relutava em aceitar a divisão Leste-Oeste, conside
rando que o binômio paz e segurança só poderia ser alcançado
mediante ações comprometidas com valores humanistas infor
mados pela ciência e pela cultura [...]
Outra vertente, mais pragmática [...] concebia as relações
entre paz e segurança por meio de uma análise mais atinada às
[sic] contingências da Guerra Fria. Céticos em relação à alterna
tiva que via "o mundo como um só", os porta-vozes dessa corren
te, principalmente os representantes dos Estados Unidos, enfati
zavam as diferenças existentes entre os Estados-membros, e viam
o órgão como representação políticas dos princípios liberais-de-
mocráticos que, segundo eles, deveriam nortear os destinos da
humanidade. (Maio, 1997, p. 17-18).

Como pesquisadores para integrar essa segunda tendência


foram convidados Roger Bastide e Florestai! Fernandes, que, anos
depois, publicariam em São Paulo, pela editora Anhembi, um
estudo, hoje clássico, sobre relações raciais entre negros e bran
cos em São Paulo, denominado Brancos e negros em São Paulo.
Segundo depoimento de Florestan Fernandes no prefácio à 2-
edição dessa obra (1959), a pesquisa sobre o tópico tinha sido
sugerida por Paulo Duarte a Roger Bastide e seria bancada pela
revista Anhembi. Com a vinda de Alfred Métraux ao Brasil, em
1950, avançaram os entendimentos e "a responsabilidade finan
ceira pelo custeio parcial da coleta de dados recaiu sobre a

r> f
UNESCO e a Reitoria da Universidade de São Paulo" (Bastide;
Fernandes, 1959, p. VII).
Com esse projeto mais ambicioso e mais vertical, devida
mente historiado por Marcos Chor Maio, dava-se continuidade
e complementaridade às duas linhas de ação inicialmente em
confronto na UNESCO: a mais utópica e a mais realista.
A tendência "iluminista e universalista", dentro do qual "a
UNESCO pudesse contemplar um pluralismo ideológico e polí
tico alicerçado numa solidariedade moral e intelectual" (Maio,
1997, p. 17) estava por trás das reuniões de que participaram
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Sua tônica era a
da harmonização e a da visão conjunta, numa perspectiva mais
integradora, mais utópica e menos belicosa. A outra, mais des
confiada e mais atenta aos efeitos incipientes da Guerra Fria,
por ela moldada e, por conseguinte, atenta aos antagonismos
dela decorrentes, preferiu o caminho da tensão e do embate.

Referências

BASTIDE, Reger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros emSãoPau


lo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais
e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulista. 2. ed. rev. e
ampl. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959 (Coleção Brasi
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wvw.sum.uio.no

ww^v.tandf.co.uk/journals/titíes/
wv\v.u nesco.org
{/)ocatne/ifo /

Iir/3A4.05. 'J o ]<t&iait

i>
l;ear profesoor Pro^,
1 aa nrlting you to aek if it mnilâ be pcssibl» for you to
attenã a bcmiU cooforane# belng plaxmed hare trca Juno 2â thrBUs)^ Jul/ 9,
'ilils in>iuiry Is praliotiaary to a. ^ra fonoal Invltatlon Tvbich -sould be
exteoded as aecn aa tbe confere&ca hao heen offlclolly authorlzad.

I have rocâQtly ocma i'ro=: Mlnoaton üDlvaraity to help Unssoo


launoh whac Is kncnn as tbo 'Tenblons 'Tojeot'". Oao of the reoclutlon» of
ths Gaeral Cooferenoo at baicico Jity ^loh oonatituteo ons p&rt of thc
"íoasicos Projact- reaoa as rojJ.awa:

^ .An ansuiiy Loto the influaoces IhvcAighcut life wtiich


praôiapoiíM) towurfLs interoaticaal understaoõlng ca the oaa haÉí and aggresatre
oationalisB oa the otbar,"

ia viesr ox' che tresiendous ainount oC roaearab aoiJ. íhoüg^t


thi:>t IAS ueen gxvac «o this problaa of influenoec tbronghout Í^e aatar for
atcituaea, It aoema to un hero that It -ould be occtrainely valuabla Iz" -tx éould
bring tagsttaar into <. úngla ijoatlog» cntstanâlog Lndl-Tiduala froc òlffKrent
disciplines and dlffarent ontLous i'or « rather leagtby, and, I abouXd hope,
scaerdiat loiattrady oonfavence for tha parpoao of ^a^abia3 tho blgheut posalble
tntagratien e<f onricenoa oa tMa problam, and ladleatiag tho cosaon •lenoBloatora
of agraeseab vdrtrth experta £ roa. differeat lãloolpllnuzi coulã rc ^oh« Cúr tliooght
Í3 tliB^ at tho and oi* bbo ootxfjicnoe a rolattrely short atacaoent 1)0
prepasaM by thia gioup of exp«.-ta iodio .tlng afiab coadltions tboy aiprocd had to
be sat to avola cruacloo, ccntlmiation, or aggRrvatloa of attltudos tiMiirtng for
anticnal ogsnísalana, 7tais docuoent olght be -nritten vflth conorate illuatratlons
of oTideasa and pol&t to ezasaplao of tdiat mlaht bo dono,. It. Ia la^ psrscnal
hope that ttaia atatoseat al^t go far toeards serrlng os a gpalde of principiei
Soe maaj Utteaoo naderzaJilnga and, propurly iaased, mlght iadtcato to nzilllcns
sf people tbat aoolal aoientists conoanxed -alth thls problam aro In a pgsitlon
to oooperuts and advise polioy makara idth respaot to attaopta to increase
interoatleeel nadsrataadiBg.

In additlca \Q ths anort sumKaxy atatement, it nov aoama


advlaable If, turlng tbe l&ttar daya of the oonferoaoo, eanh parttolpaat eeuld
oot doan Ln bis oaa norda a ahort atatemant of appzozlaatoly 5,000 eorda, hia
onn polnt of vietr on tbla topio.

It ia ay hope tbat tinaao atatementa, togetbar Tith tho súmmary

(cont.)
(com.)

-2-
iV3^.05 Contd,

st<iteia8at, bo i:isued jLu the i'oim of a .>kic t, r o^dablc buoic.

yinally, it vrould be oxtrstaely vuluabla i*cr future planaia if


partloipuitB, eitbar aa individuais oras a group, ooulc sugseut srhat appeared
to bo ttIA noot fíuitful and pnctloal flelds of rasearch for i;úar>ec to «oooura^e.
.'•.Itboujih 1 abi 11 bafe tc ratun to ;'rlncatQn ca Sopteuber lat, It ia uasontiol
tbat plana for the next yaar ba oada bafore th-it tise, and I an oonfideut that
ali suggaatloRS vaj oi' ua can u>ake 'tUI bo noat oanfálly conaidered.
'•o ura hclc a donforondo in Gneaoo üouao in .arls,
oeglnninK on Juna ^ and ocntinulug tbr!ju.ja July 9< -bo parcona t» bc
InTlted. ia additlnn *.0 s-rc ;

ppe«'or«y)r ft. , Mlpot*w - r-sy^bology - lUrvsrd.


- - OírabrldfiS.
"te/ei- «crti? - • .itlirap£j.3,;y-
iT^rJolIn - "Zi^zaoaíci ~ i-n-ln.
*m« ^«e-c - VhLloi.ijphy — ^-íaIo,
•7vsa riAgot - •"s-yofiolo.íy - vicutíva:
Joha - i-^^ycaiatry - bcngon.
" Reniy "ulltT-ia - Vfcyobi'^rxy - .aablnirteD.

Xoa »rlU nso th. t thl.iíroup ba» been kaçt celibemtely in


orüer to cbtain naxirar. -im.".-•unics'. aci laforajJLity. It ia oar foollng that ali
partiolpaatB invit<>ã ibL-re certftin ócix.cn ivrpciaa *ni will not bo too doetrinaire.

°>lthoa^ I aa not no't- definllil> In u ^«cdition to ecaasit ua, baceuso


of. oertala loutino rw.t-t!rr5 thi-.t ;rj.2t first be uarriod tbroasb, there is no reaaoi
wby ubla oonferenoo vill not bc cev»!, tbat I oon aoo. Tfao
DlCddtor uoiioral Ano othfira bt vo* oi.pfoafsed iboia^Ivoa na anthualastlo about it.
I Ueeltate to delay rhia initial cenaualc-tioii Icngaí^f becnuee I knovküiat pooplo
auat oabo tbelr naaqer çlena early. If yuu oen atteud the «.xioíoranoo, yonr
traral expoa:»as rrcm ^'"-ãíjdl tr ^•.*i3 sai ratum .;oulã bo paivi, tofjctfcor v>itb
A awMili per dian f-te, wfirl •«it ••.o ce^er ycur o*|.eo^>a ehile bcro,

1 asa aavure yoa thit ~a -rould be inst u4,pr«>«Á>ctvo of your bolp,


and I^.paraenally, faal that by r.eant of a o^ofemendo of oatatanuia« tator-
•latiooal «X{.«ct3, 9aosoo ia In s çoaltion tt ~usur;..~8 ene atiorsonoe ox' a docuaoat
wbioh atasttlâ be entoially imuortant as a a^isbol Üi..t i no-- know «nouso .ibout
•vjuHftn nature' to bo •*'bls :3*nj\!r3 laas p-á^iti/a v-luo jiiúgesoata.
jkiiaulá ttppreolAte ib if you cnulá t eaub a àeoiaioa cn thia at
youi- aarlioat convnniaeoa and reply alr anil, ac tb-xt aa will be able tn plas-
ttcccrdlnaly» ^9 cbculdbo in a pósltlcn bo :.sJco tiva iavltá.tlca võtbQat nual,iflo&^
tionfi by tu» time Ttur t*ply is recslvsd,
Siacaralyf

Profoaaor Gilborto Prara, Hadlay Cantril.


Obainbro de Dlput^a. AIR 2ÍA1T.
Rio do Janoiro, '
Brasil.
'A.
4
4
.. vi
o
1, H^i >-
i iir?u
="•—ro / yíU P.^.
s» Antomii
Wu^
i/iociune/ifo S

TraESCO/SS/TAHT/3
PAEIS, 13 JuOy 19W

ÜNTTRD lUIIONS EDUC^IONâL,


SCIEKriElC .AND 01M'UNAL QB&ANIZÂIlON

NBy THB UNDERSIOEDe • • •

A Statement by eigjit diatiTianisbed social

acientista cm tho causes of tanaiona

TAich nslce f cr uar.

(cont.)

/<y/
(conl.)

üHESCO/SS/TAIU/3
13 July 1948

TMs atatement is issued by the underslgned srciç of aoci£Ú. scientiats


brought together by üxiesoo to conaider the causea of nationalistlc
agreaaion aod the ocnditions necesaary for intemational luderstanding»

Uan haa notr reached a stage in hia history \rtiere he can atudy
sdeiitifically the oausea of toialcaia that oake for var. The meeting of
thia little groiqp ia itaelf ayn^tOoiatic, representing eis it doea the flrst
tine the people of many landa, thrcugh an intemational organization cf
their onn creation, have a^ed aooial aciendata to apply their Imoirledge
to aome of lhe na;]or problena cf our dme. Althou^ t» di^er in lhe
j$haaea «e «oold give tp varioua parta of cur atatement and in our viena
aa to ita cocprefaanaiveneaa and inçleoezitation, no ene of ua \rould deny
the iiqportanoe of any part of it.

We agree to the foUoving twelve pnragrapha;

(a) To the beat of our knoirleâge, there ia no enridenoe to indioate


that mra era neoeaaaxy and inevitable conaeq^enoea of "hunan natum" aa
auoh. nhile men vary gzeatly in their capacitiea and tes^peraments, ne
bellere there aoeo vital needs common to ali men vhioh muat be fulfilíed.
in arder to eetábUah and oaintain peaoe: nen eveiydiere tiant to be f ree
fraa hxmger and diaeaae, from inaecuxlty And fear; men evexywhere eant
felloaahip and the reapeot of their felloatmen; the ohanoe for personal
grcvth and developoient.

(B) The pròblem of peaoe ia the problem of keeping group and national
tensiona and agreaaiona wi-tíiin manageable proportions and of direoting
them to enda that are at the aame time personally and aooially construotive,
ao that man wiU no longer aeek to eaploAt man. Thia goal cannot be aobieved
by surfaoe refcxna or iaolated sffcrta. Fundamental ohangea in aooial
organiaation and in our «ays of are eaaential.

(c) If vi9 are to avoid the Idnd of aggreaaion that leads to armed
oonfliot, ve muat among other things, ao plan and «unange the use of
modem productive potrer and reaouroea that there will be nwritnum aooial
justice. Econocdc inequalitLes, inseouritiea and fzustrationa oreate
gra;^ and national oonflicts. AH thia is an ia^rtant source of tensiona
wbioh have often wrongLy led one group to see anc^er group as a menaoe
thxough the aooeptanoe of false images and ovei>-aiiiplified solutions and
by making people susoeptible to the soapegoating appeals of demagogues.

(cont.)

/.Vi»
(cont.)

SS/mü/3 - page 2
13 July 13W

(d) Modeoni •wars betwean nations and groups of nations are fosteared by
many of tiie ayths, txaâltions and syuibols cf natlonal pride banded. dosm from
ene generation to cknothez*. A great many current social fiyid>ols are still
nationaUstio, hindexing the free movemoit of thought acros s political
bcundariea of what ia, in faot, am inteidopendent worM.

(E) Farents axÁ teaehers find it difficult to recognize liie extent


to ebich their oro attitidas and loyalties • often acquired \ihen thsy
trere yousg and ^ea ccsâitions ware different - are no longer adeq]oate
to serve as effectiTe guides to aotion in a òbangijig trorld. Education
in aU ita farms nust oppose national self-xighteousnesa and strive to brdng
about a oritioál and self-diaoiplined assessment of our onn and other fozms
of social life.

(f) 7he devel<^msnt of modem means of snift and tilde range caimunl-
cation is potentially a great aid to trorld solidarity. 7et this develqpoent
also inoreases the danger that distortions of truth trill reach a great many
people who are not in a poaition to disoriminatê true from false, or to
pezceive that tbey are baing beguiled and ndsled. It must be a special
respcoQsibility of ܻN. organisatians to utilize these meana cf nass cocmuni-
cation to enoouzage an adeqjaate understanding of the people in other countrles.
This must al»;^ be a ti70-«ay traffio. It will aid the cause of peace if
nations are enable see themselves as other see thos.

(G) The prospeot of a oontinuing inferior status is essentially


unaoceptable to any groí^ of people. For this and other reasons, neither
colonial e:^loitation nor opprêssion of minorLties «ithin a nation is in
the long run oos^tible «ith «tqdd peaçs. As social soientists t?e 10107
of no evidenoe that any ethnic groiç is inherently inferior.

(H) Uany social soientists are studylng these problema. But social
soientists are still separated tgr national, ideologioal and class differences.
These differences have made i t difficult for social soientista to resist
effectively the asergenoe of pseudo-soientifio theories uhlch have been
erploited by politioal leaders for their atm ends.

(I) Objiectivlty in the social scienoes is impossible to aohieve


tfhenever eoonomio or politioal forces induoe the inveatigator tb acoept
naxrow, partisan vicsrs. There is urgent need for a concentrated,
adeqiaately finanoed intematianal researoh educatlonal programne.

(j) We reoommend, for exasçle, the oo-<^>eratlon of social scientists


on broad regional and inteznational leveis, the creation of an intemational
unlversity and a series of «orld InstíLtutes cf lhe social aoienoes under
intemational ausploes. We believe that intemational scientific fact-
finding studies ccnld oontribute useful infoomtlon oonceming the cultures
of ali nations and bring to lif^t dangerous inseourities and sources of
tensicn, as trell as legitimate aspirations of people ali ovar the uorld.
Egnally oertain to be reearding are studies of eduoational methods in the
hone, the s^ool, and in youth organizations and other groups by uhich the

(cont.)

/.y.v
(conl.)

S£/TAHJ/3 - page 3
13 July 15W

rrfmin of the TOtuig çuTO ocdenteã. toaard nar or tonard peace. From the
dísaemination of the iafoxaatiozi resiiXtisg frcm theae studies, wo moy
antioipate the estergeaoe of concrete proposale for the guidence of
oatioual programnes of eduoation.

(S) The pbjrsical and biologioal seienoes in recent years have


]^>ovided in^ressive dasanstrations of the effeot of resear<âu Soeie of
the praotical zesults have heea rather to dianaF and disqiuiet l^e
dviUzed TTorld than to rednee Its tensions. The scientlstâ trhose re-
sear^ has heen used in theãsvelopiaent of atendo and biological Tiarfare
are not thenselves reapcpalble for launofaing a curse tipon the world* The
situaticm relects the forces nov detemdning the uses to 'nfaieh sdence
can he put. Whlle other faotors are concemed, tra hold that the chances
for a cons-bxtctlve use óf the potenldalities of sdentlfic and teohnologlcal
developaenta d 11 iieprove if and vhen Bian takes the respcnslhility for
tmderatanding the forces which worfc upon him and aociety hoth from dthin
azd vithcat.

(L) In this taafc of aeqdring self-hnovledge and social insight,


lhe social adences - the seioices of Man ' have a vital part to play.
One hopefnl siga today is the degree to vhich the houndaries bettreen iheae
sdenees are breaking doim in the face of the oomson challenge confrcnting
thenw The social sdentist can help make clear to pepple of ali 'uatiens
that the freedom and valfare of one are ulthoately bound iq? dth the freodcm
and velfare of ali, that the world need not continue to be a plaoe where men
must dther Idll or be killed. KffurL in bdialf Cf aie'8 own group can
beeome ecn^tible dth effcrt in bebalf of hxsDBnlty.

(cont.)

/.y/
(cont.)

SS/TMU/3 - page k
13 July 13Z18

(Sigued) Goxdon W. AUport,


Professor of Fsychology, Garvaid Uniyersity.

(Signed) GjJJberto Fre^nre,


Frafesaor a£ Sociology, Universi-ly-cf Bahia, Brazil;
Professar at the Institute of Sociology, Dniversity
of fisenos Aires, Argentina.

(Signed) Greorges Gurvitch,


Professeur de Scoiologie, Université de Strashoirg;
Admlnlstinteur du Centre d*Btudes Sooiologues, Paris.

(signed) Líax Hozicheimer, Direotor of the Institute of Social


Researdh, Nenr Torlc City.
(Signed) Ame Naess,
Professor of Philosophy, üniversity of Oslo,

(signed) John Bicknan, M.D.


Editor, "British Joumal of Medicai Psycholog/".

(Signed) Harry Stacâc SuUivan, MoD.


Chainnan, Gouncil of FeUons, Washington School of
Ppychiatiy;
Editor, "Psychiatiy, Joumal for tlie Operationeú.
Statosent of Interpcrsonal Relations".

(Signed) Aleoander Szalai,


Professor of Sooiology, Üniversity of Budapest;
President, Bongarian Institute of Foreign |Lff)airs,

/.y.i
i/ioctu/te/f/o /

ohesco/ss/taiü/2
PARIS, 15 July 19146

ÜBITED NATIOHS S)UCÂTIOH&L,


SCIENTIFIC ARD CULTURAL ORGAHIZATION

Ou the Idea of an

IHTERNATIOHAL SOCIAL SCIBNCE INSTITDTB

At a Confereuce of social soientlats called by Unesco 26 June - 9


July 19l;8, xmder the "Tensions Affecting Intornational Understandlng" Projoot,
the folloiring Resolution vas unaniziously adopted, calling for the creatlon of
an Intemational Soolal Soience Instituto 1

"ii their joint statement iasued 8 July I9I48, membere of this Confer
euce ixnanimoualy endorsed the formation of an Intemational University and a
series of vorld institutes of the Soolal Soienoes. Conforming with this action
no, speaking as individuais but not as offioial representatives of our govom-
ments, likewise endorse ín principie the menorandum entitled An Intemational
Social Soienoe Instituto. Having had no opportunity to disouss tho conorete
proposalB contained therein wo aro not In a position to advocate any particular
plan for implementing such an inati'^te. But we are agreed oonoeraing the value
of disoussions «nd Joint study among social soientists of many lands, including
countries not now members of Onosco. We believe that this memorandum will
serve as a useful basis for discussion and planning. The benefits w© ourselves
have experienced in our two-week conference wo are eager to see continued and
expanded."
Oordon W. Allport, Professor of Psychology, Harvard University.
Gilberto Preyrp, Honorary Professor of Sooiology, University of Bahia,
Brasil; Professor at the Instituto of Sooiology, University of Buenos
Aires, Argentina*
Georges Giirvitch, Profosseur de Sooiologie, Université do Strasbourg;
Administratetxr du Centre d'Etudas Sooiologues, Pcu'is*
llax Horkheimer, Director of tho Instituto of Soolal Researoh, Now lork Citv.
Ame Naess, Professor of Riilosophy, University of Oslo*
John Riclcman, U*D., Bditor, "British Joumal of Uedioal Psyohology".
Honry Staok Sullivan, M.B,, Chairman, Counoil of Fellows, Washington Sohool
of Psyohiatry; Editor, "Psychiatryj Joumal for tho Oparational State-
ment of Interpersonal Relations".
Alexander Ssalai, Professor of Sooiology, University of Budapest; President,
Hungarlan Instituto of Foreign Affairs.
The Uemorandum referred to in the Resolution reads as followst

An Intemational Social Scienoe Instituto

1* Hodem means of conanunioation and modera methods of eiggression have


turned the world into a single neighbourhood — what kind of a nelghbourhood
otill remains to be seen* University teaching of the social soienoes has not

(com.)

AV/í'-.—
(cont.)

DNBSCO/SS/lAlO/2 - page 2
15 July I9U8

kept pace with this developnent* The Professora theaselvos have nonhere had
th© opportunlty of aoquiring the intemational education their funotion now dem
anda. The purpose of the Intemational Social Soience Instituto would be to
remedy this.

2, The Intemational Sooial Soienoe Instituto irould provido a yoar's


Fellowship (exoeptionally, a two yeare' researoh oourso) for readera, leoturers*
eto., in the social Boiencea in the principal universities of the world, on the
nomination of their universities. Fellows would noimally be 25 - 35 yesrs of
age. The taoit assumption wtmld be that such noainees for Fellovships in the
I.S.S.I. vtere regarded by their universities as likely candidates for the Chair
in their particular discipline some time in the not too distant future.

3. Qn this basis tiie I.S.S.I. would bring together each year 10-12
politioal soientists. 10-12 economista. 10-12 aociologists. 10-12 social
payohologists, 10-12 students of intemational law, together with suoh other
disoiplines as it was deoided to inolude in the I.S.S.I., aggregating some
hundred persons in ali. Each discipline would have a leader of discussion,
preferably a sênior soholar who had oombined that discipline with a study of
intemational relationships. But the essential instruotion given would be by
the Fellows themselves, (a) in group seminars of each paz^icular discipline,
(b) in inter-disciplinary seminars on intemational quastions of the day.
l;. At the end of suoh a year the Fellows would not only have enlarged
their mental horisons and improved their linguistic capacity; they would also
have made friends aoross frontiers. In the oourse of one or two decades there
would be some 1,000 - 2,000 Professora in the sooial soionoes, ali of whom were
Fellows of the seme Intemational Instituto, ali of whom were in touch with one
another either directly or through the Institute.

5* Suoh an undei*taking, provided it was rightly launohed, could be made


praotically self-suppoirting. In many cases the Universities would dofray th©
oost of the Fellowship, on a principie similar to that of the Sabbatical yeeu*.
nhere this was not possible, a prospective Follów oóuld be counted upon to
make every effort to seoure the necessaxy funda, vdiether from Foundations or
other sources; for to have held such a Fellowship would be a high anademic
honour, and the strongest possible reoommendation to a Professorship. In theee
ciroumatances, ali that would berequired in the way of financial baoking during
the first fow experimental yoars would be a relattvoly small working capital
fund.

6. One of the valuable by—produots of suoh on Institute would almost


certainly be the preparation of intemational study-guides (eventually inter-
national textbooks) in the varlous sooial soionoes, by the instructors and the
Researoh Fellows of the Institute. The Professors of the social sciences in
the universities of the world would then not only have an intemational educa
tion but intemational teaching material at present praotically non-existent.

7* Once this experimont with the sooial soionoes had been launclied and
had demonstrated its possibilities, the Institute could be extended, or addit-
ional Institutos set up, to embrace other imiversity faoulties and eventually
suoh professions as joumalism, the diplomatio serviços and civil services
generally.

(cont.)

/.y7
(cont.)

DNESCO/SS/IAIO/2 - pago 3
15 July igl^B

8. In oonclusion* it may be vell porhaps to meót ene or two queries


regularly ralBod in dlooussing a projeot of thls kind. It wlll be aaked, should
not the Instituto take Felloira at an earlier ago, i»hon their minds aro moro
malloable? To this tho answor ia that ali oxporionco bas sboim that untll a
ecbolar bas a auro grounding in bia oim disciplino, be ia not fittod to ongago
in intemational and intor-disciplinary disouaaion to tbo bost advontogo. It
will alao bo aakod, porbapa, aro tho univoraitios tbo boat judgoa of suitablo
nomineos? Io this it may bo said -Üiat in some casos it may voll be that they
aro not, but as an initial measuro this method of ncmination is likely to pro7e
most practioal. Pinai ly, it should bo mado doar that this particular essay
in intorziational eduoation by no moans oxoludes others; but, on tho contrary,
by advanoing tho causo of intomationalism, should holp to promoto furthor exper
imenta in this fiold.

AV.i'
{Aocamento ã

O texto integral da intervenção de Alexander Szalai é:

Fr&jre is right, of course. But beyond this "national" distortion of


sociology there is another one, still more dangerom. It is the conscious ar
unconscious distortion ofsocial science in generalby classinterests. In
a very largepart of the world the occupation of "social scientist" is re-
stricted topeople who have had the chance to attend university lectures.
And the chance of attending university lectures is reserved for member
(orrather children) of the bourgeoisie. This is a socio-economic selection
whichprevails even when university boards do no explicitly exclude the
"parvenu" or the "Red". (p. 140).

O texto integral da intervenção de Gordon W. AUport é:

Since nationalism dominates social thinking thereis as yet no gen-


uine social science. This is the discouraging but incontestable conclu-
sion that one drazus JromFreyre's acute analysis. The surest way to im
prove matters isfor social investigators of diverse nations to embark on
joint projects of research and interpretation ant thus to transcend their
own ingrained ethnocentricism. While I endorse this proposal heartilyI
venture to ask whether merely re^onal cooperation may not bealmost as
dangerous to intemational understanding as is nationalism itselfl For
example, it is conceivable that joint analysis made by Latin-American
investigator would agreein listing thefaults offoreign visitorsfrom the
United States. The faults may be genuine enough, but the published

(cont.)

/.yy
(com.)

diagnosis if one-sided is bound to be divisive and tension-creating. I


should like to suggest thatjoint projects in social science aim ahuays to
include representatives of every nation that is likely to bejudged of af-
fected by the research in question. I feel sure that Freyre would not dis-
agree with this suggestion. (p. 162)

O longo texto integral da intervenção de Max Horkheimer é:

Freyre's discussion of the liberating influence ofcriticai social the-


ory exemplifies the antidotes Unesco must help provide against social
pessimism and demagoguery. Every one of his concrete interpretations
and suggestions is quite to thepoint. Most of them seem to emanatefrom
the idea that oppression - internai, intemational, and the interplay be-
tween the two - is the process at the root ofintemational tensions. Care-
ful study of these basic conditions and propagation of thefindings con-
stitute indeed not only a preparatory step for social action, but, to a
certain extent, action itself
The example of how the conquest of biologistic metaphysics and
other static and naturalistic theories by modem social and political
analysis can helpfree theforces of "hybrid" or other "inferior" groups
and ease intemational tensions is a valuable counter to thejustifica-
tion ofwar and slavery as a natural law. Should theplanfor a model
textbook of history proposed by Freyre materialize, it will have to be
written in the same spirit. The only doubt in my mind concems the
committeeofexperts to whom thejob is to be entrusted. Experts must be
more than experts in order to achieve what is needed; their freedom
from ideologies of racial and national superiority must be complete

(com.)

/ro
(com.)

enough to liberaíe themfrom any kind of inner coercion ar repression


when they deal with these problems. Thesymptom ofrepression of one's
own inner resistance is often but a lack of imagination and creative-
ness, two qualities why will need above ali others.
"Mysíic conceptions conceming human relaíions, human "in-
síincts" and human differences," another expressionfor the mecha-
nism of "reijication" which is so typicalof modem ideology, are a source
not only ot the expectancy of war but of many disquieting psychologi-
cal phenomena. Science itselfis notfreefrom it when it tries to replace
philosophy. the readiness to look at everything as a "factto think in
"facts", and to adjust to "facts", á tout prix, entails the danger of
reverting to mythology. Instead of recognizing the social universe as
constantly emergingfrom human efforts and acts of will, we become
accustomed toexperiencingit as thenatural andfatal course ofthings,
aspure objectivity. To overcome this reifying altitude in human affairs
xuill be a basic task offuture education. It is impossible to enter into
technical details here. Obviously, enlightment will have to bear upon
the history of many ideas and categories whichfrequently appear as
suprahistorical and suprasocial in the present educational routine,
especially the modem concept of Nation on xuhich the late George Ber-
nanos commented so aptly in his last book
I share Freyre's opinion that "patemalistic survivals" contribute
greatly to a^essive altitudes. And yet I would note that, irnportant
though it is to eliminate authoritarian methodsfrom home and school,
we should carefully avoid evoking in the child and the adolescent an
irrational longingfor authority because of an unwarranted lack of it in
education. The declining economic position of the middle classes, a di~

(com.)

///
(cont.)

rectfactor in the history ofEuropeanfascism, also exercised an indirect


injluence through thedegradation of thefather and, in consequence, the
teacherin the eyes of children. They lost the opportunity of acquiring a
lovefor cultural ideas through identification with an admired person.
Instead, they developed a readiness to succumb to hateful leaders and
philosophies.In thefight againstpatemalistic survivals educators must
sharpen theirpupils" sense of the difference between true andfalse au-
thority, between that which is superior by its inherent qualities and the
force of overpowering existence. the inability toperceive authority in this
first and positive connotation, an inability which is one aspect of the
loss ofgenuine experience and its replacement by stereotypy in modem
man, contributes as much to authoritarianism as dos authoritarian
methods themselves. Therefore, we must avoid the acceptance of an arti
ficial, ideological form of equality, thefear of authority, and develop
instead the disposition to lookfor and recognize authority when it ap-
pears in its rationalform.
The combination of "caudillism " and liberation movements in eco-
nomically and technically backward countries is one of the mostconfus-
ing political aspects of our time. As isolated phenomena, the vigorous
nationalisms which we witness on various continents have much in
common with the genuine political revolutions ofpast centuries. In the
context of the modem world, however, it is still questionable whether
theirfight is necessarily "somethingpositive, essential, andfundamen-
tally good, " as Szalai says. Their character can be determined only in
connection with the world situation as a wholeand, of course, with their
significance for the various social groups involved. Furthermore, wher-
ever a terroristic leadership emerges today, it has a tendency to pattem

(cont.)
(cont.)

itselfafter que variousfascist models, since the methodology is intema-


tional. Theexpression "WallStreetJews" which Freyre quotesfrom Latin
American demagogues, or instance, also belongs to the National-social-
ist arsenal offascist rhetoric and to the North American agitators as
well. In theface of the sinister interpenetration betweenfascist domina-
tion and historically progressive aspirations, sdence knows of no other
defense but analysis, exposure, and the most widespread dissemination
of its results. We must try to influence the masses in both the semi-coh-
nial and thestrong nations by communicating as efficiently as possible
ali the truths we have,from our general knowledge regarding the rela-
tions between the twokinds ofnations down to an intensive vaccination
against the techniques of the demagogue. (p. 162-165).

Documento 5. Fonte: CANTRIL, Hadley (Ed.). Tensions that causewars.


Common statement and individualpapers by a group ofsocialscientists brought
togetherby UNESCO. Urbana: Universityof Illinois Press, 1950.

//.y
Sobrados e Mucambos
Protocolos da escrita:
as estratégias de Gilberto Freyre

É uma constatação, já muitas vezes feita, que os livros de


Gilberto Freyre começam com um aparato prefaciai muito im
portante. O prefácio está destinado a cumprir várias funções,
tais como afirmar a novidade do projeto, inserir a obra na dis
cussão intelectual que se processa no país e legitimá-la através
de citações, que recorrem a autores de prestígio, ou ainda des
crever os momentos essenciais da argumentação exposta no tex
to, bem como explicitar a documentação utílizada.
A multiplicação dos prefácios, pois, comparece como uma
tentativa do pesquisador Gilberto Freyre para convencer os
leitores.

Nesse sentido, pode-se dizer que o prefácio seja um meta-


discurso, que pretende descrever o discurso objeto e dizer a ver
dade a respeito dele, fornecendo uma chave legítima ao leitor
para a apreciação da obra. Dessa maneira, o prefácio é perfor-
mativo, pois propõe estabelecer uma forma à relação entre o
leitor e a obra.

Sendo parte do texto e, ao mesmo tempo, estando fora dele,


o prefácio abre um espaço de jogo não só entre vários códigos
de leitura, como por exemplo, aquele que se estabelece entre o
historiográfico e o ficcional, como também entre os vários níveis
de significação documental.

Tradução de Sandra latahy Pesavenlo.


Nesse contexto, o prefácio apresenta a imposição de mais
um código, já que nele o autor exerce uma pressão e utiliza
seu poder de persuasão sobre o leitor, para que acolha e aceite
seus argumentos, com o que se reforça a função de veracidade
do enunciado. Isso se nota, em particular, na prática de Gilber
to Freyre de construir, nos prefácios, um discurso polêmico com
dupla função: por um lado, de ataque e combate a seus oposi
tores e, por outro, de defesa e publicidade de sua escritura,
invocando para isso o apoio de autores consagrados, tais como
Toynbee.
Por vezes, o prefácio permite ajustar ou corrigir uma im
precisão, como o caso do conceito de patriarcal que, de Casa-
GrandeSc Senzala para Sobrados e Mucambos vem a ser completado
pela noção de tutelar. Em outros casos, trata-se de ampliar a do
cumentação, quando o prefácio funciona da mesma maneira que
as notas de rodapé, as epígrafes ou os subtítulos.
Para a primeira publicação de Sobrados e Mucambos, Freyre
sublinha a continuidade desta obra com Casa-Grande 8l Senza
la. Esta continuidade se manifesta desde o ponto de vista histó
rico, ou seja, ambas tratam da formação e do declínio do patriar-
cado rural brasileiro, bem como de sua transformação e suavi-
zação daqueles aspectos mais brutais em um semipatriarcado se-
mifeudal, aquele dos senhores de sobrado do século XIX, pro
cesso este que se deu ao mesmo tempo em que se estruturava o
povo brasileiro.
Assim, Sobrados e Mucambos ocupa um lugar-chave entre a
forma/estrutura patriarcal colonial e a formação de uma reali
dade ainda difícil de perceber no século XIX: o povo. E só no
prefácio da segunda edição, em 1949, que Freyre apresenta uma
dinâmica global, articulando o estudo do período colonial e pós-
colonial (Império) de Casa-Grande8l Senzala^iO estudo do perío
do republicano em Ordem e Progresso.
Sobrados e Mucambos aparece, pois, neste dispositivo ar-
gumentativo como a charneira entre os dois mundos, entre
duas épocas. Logicamente, o conjunto dos estudos aparece

/M'
com um novo e abrangente título: "Introdução à História da
Sociedade Patriarcal no Brasil". Estas transformações do pro
jeto global estão marcadas não só no título, mas também na
postura epistemológica. O prefácio da segunda edição não
diz muito a respeito, mas Freyre escreve uma ampla introdu
ção, onde ele retoma a discussão sobre o tema central de seu
trabalho no nível epistemológico e que versa sobre história e/
ou sociedade.

Já venho analisando essa questão, desde quando tratei da


recepção de Casa-Grande & Senzalana França, bem como da es
crita prousíiana de Gilberto Freyre. Com a segunda edição de
Sobrados e Mucambos, Freyre chega a uma visão mais ampla do
fenômeno patriarcal, mas também da sua ambição como pes
quisador. O dispositivo demonstrativo constituído pelos dois
prefácios e pela introdução tenta esclarecer as relações anda semi-
obscuras entre aquelas disciplinas acadêmicas, as quais ele ten
ta, ao mesmo tempo, ultrapassar e transgredir.
Qual é, então, para Gilberto Freyre, neste momento, o ob
jeto da História?

O nosso intuito tem sido sempre o de retirar da história e da


ecologia o bastante para o estudo sociológico, ou psicossocioló-
gico, do assunto - isto é, para a revelação e a tentativa de inter
pretação de situações, formas e processos patriarcais, ou tutela-
res, de convivência ou de associação humana, no Brasil [...]
(Freyre, 1977, p. 34).

Como se vê, história e ecologia - no sentido tradicional


das circunstâncias geográficas - ficam juntas, ao lado do tem
po longo. Há um determinismo eco-histórico do qual as estru
turas econômicas fazem parte, que é marcado por uma con
cepção linear do tempo. E o caso do capitalismo, onde o tem
po da história é um tempo longo, lento, linear.Já a sociologia
tem a ver com um outro tempo, aquele das formas transitórias
de agrupamento dos homens, formas instáveis que se modifi
cam ao longo do tempo.

///
Aqui se instala uma possível oposição entre o campo das
estruturas, ou tempo longo, e o tempo das formas de sociabili-
dade e dos projetos de atribuição de sentido aos fatos, que é um
tempo médio, tempo dos homens.
Esse seria, pois, o objeto da sociologia: o que faz sentido e
que é proporcional ao tempo da vida humana, não mais que
algumas gerações. Logo, a sociologia está ligada ao delinea-
mento de um projeto no tempo, ou de um destino humano,
não a história. O importante aqui será notar a característica do
tempo sociológico como sendo de um projeto geracional, com
duração limitada, o que o faz ter uma via comparável à dos
homens: nascimento, crescimento, declínio, sendo com isso um
tempo cíclico.
Daí a resistência de Freyre sobre o par forma-processo. Em
comparação com as estruturas, as formas têm um tempo de
vida mais breve, são efêmeras por natureza. Por isso, as formas
só existem dentro de um processo de trans-formação. O concei
to do declínio está, pois, consubstanciado ao da forma. Assim,
a estrutura é um conceito de equilíbrio efêmero, que pertence
ao campo eco-histórico, enquanto a forma, processo ou mes
mo transição, faz parte do núcleo central da concepção socio
lógica da realidade.
É importante que se leve em conta estes aspectos episte-
mológicos, tais como a definição dos objetos na concepção dos
vários saberes, porque Sobrados e Mucambos 2Lp2irece na história
das ciências sociais num momento em que a questão dos mo
delos, das estruturas e das transformações está no centro dos
debates. Freyre, nesse contexto, tenta pensar a sua pesquisa
como uma contribuição para a sociologia genética. Mas, socio
logia do quê? Uma sociologia das formas de convivência e asso
ciação (Freyre, 1977, p. 34).
Essas duas palavras também devem reter a nossa atenção. A
sociologia européia tem, sob a influência alemã, analisado a evo
lução das sociedades da Europa, como a transformação de um
modelo comunitário {Gemeinshaft) para um modelo social {Ge-

//<!'
selshaft). As formas comunitárias, procedendo da Idade Média,
transformar-se-âo, no transcurso do tempo, em formas de asso
ciação entre indivíduos livres.
A oposição entre convivência e associação^ no livro de
Freyre, apresenta semelhanças e diferenças com esse modelo.
Se bem que as associações tenham tudo a ver com a livre con
tratação entre indivíduos, a convivência^ ao contrário e por
causa da violência própria ao sistema escravocrata, não tem
muito a ver com a GemeinshafU a comunidade. Aqui se mani
festa a singularidade do processo social brasileiro, em compa
ração ao da Europa.
A oposição entre os modelos sociais - os da convivência e da
associação - se refletirão, na verdade, nos modelos arquiteturais
da Casa-Grandec do Sobrado. A Casa-Grandeé um universo fecha
do, isolado, dominado espacialmente pela casa do Patriarca e a
Igreja do Pai, Deus no céu.
O Sobrado, ao contrário, está aberto ao fluxo dos passantes
na rua, aberto ao olhar dos outros; é uma estrutura dialógica,
permeável, uma interface entre os homens. A Casa-Grande or
ganiza, primeiro, as relações entre a natureza e o homem (na
tureza da natureza - mata, cultivo - e a natureza do poder pa
triarcal e escravocrata), forçando-os a conviver. O Sobradooy^2í-
niza as relações entre os seres humanos, oferecendo a estes
formas de contato e de contratos, como para inventar formas
de associação.
O conjunto das obras de Gilberto Freyre, enquanto socio
logia genética, poder-se-ia chamar então Casa-Grande e Sobra
dos, enfatizando o processo de declínio da forma, do disposi
tivo da convivência das raças, das gerações, dos gêneros no
espaço fechado, mas, por isso mesmo, coerente, reclusivo, do
minado pela figura onipotente do pai. Esse declínio da Casa-
Grande favorece a aparição de uma forma alternativa, nova,
mais aberta espacial e socialmente, que é o Sobrado. É preci
so sublinhar que "Sobrado" ou "Casa-Grande" não são con
ceitos puramente arquiteturais, senão urbanísticos. A Casa-
Grande é uma unidade urbanística mínima e, com o Sobra
do, nasce no Brasil a cidade.
O Continente, de Erico Veríssimo, mostra, com todos os de
talhes ficcionais, este processo de urbanização, através do exem
plo da cidade de Santa Fé, e a obra toda, O Tempo eo Vento, pode
ser lida como uma ficcionalização de Casa-Grande & Senzala -
Sobrados e Mucambos —Ordem e Progresso.
Há outro par de conceitos, na obra de Freyre, que partici
pa da definição histórica dos processos de ajustamento entre
classes, gêneros, cores, estatutos econômicos e definições his
tóricas que constituem formas sociológicas: são eles a subordi
nação e a acomodação. Mais claramente que os conceitos de con
vivência e associação, nota-se aqui a transcendência do poder. A
sociedade, qualquer que seja a sua forma, é um processo de
adaptação ao poder. Subordinação descreve a submissão ao po
der do ponto de vista do mesmo poder, e a acomodação do
ponto de vista de quem não tem poder. Essas são, pois, formas
sociais específicas dos tempos patriarcais escravocratas.
Um outro elemento que pode ser apreciado nos prefácios
e introduções, é que Freyre reivindica, para si, ser parte do
assunto estudado. Pode parecer paradoxal essa reivindicação,
já que a metodologia das ciências humanas pressupõe, normal
mente, distância entre o sujeito cognitivo e o sujeito conheci
do. Não obstante, Freyre multiplica as referências aos mem
bros de sua família, testemunhas do mundo semifeudal dos
sobrados, até chegar ao ponto em que se pode dizer que a socio
logia de Freyre integra, plenamente, a experiência existencial
do sociólogo.
Poder-se-ia ainda pensar que escrever a biografia de uma
personagem estrangeira, fora da experiência do escritor, garan
tiria mais a objetividade do que escrever sobre si mesmo. E pos
sível, mas, ao mesmo tempo, a autobiografia tem, em compara
ção com a biografia, a vantagem de construir, desde o início, a
articulação das gerações na experiência do sujeito. E a diferença
entre falar de si mesmo e falar do outro. O outro está percebido.

/r>o
automaticamente, como uma entidade fechada em si mesmo,
uma entidade de qualquer modo autônoma. Já quanto ao Eu,
este sempre sabe da sua inserção numa trama geracional com
plexa, onde o Eusó pode existir em relação ás gerações anterio
res e possivelmente ulteriores. Desse ponto de vista, a autobio
grafia tem acesso direto à complexidade dos tempos, enquanto
a biografia corre o risco de simplificar a situação, esquecendo a
dimensão genética.
Consideremos as dedicatórias dos textos de Casa-Grande &
Senzala e de Sobrados e Mucambos. O primeiro diz: "A memória
dos meus avós, Francisca da Cunha Teixeira de Mello, Alfredo
Alves da Silva Freyre, Maria Raymunda da Rocha Wanderley,
Ulysses Pernambucano de Mello."
O horizonte familiar da pesquisa sobre as "Casas-Grandes"
comparece como uma garantia para o autor, ainda viva na sua
memória, como um mundo coerente. Esse mundo, apesar da
sua coerência, tem uma certa diversidade. A redundância do
"de Mello" corresponde ao fechamento e clausura deste mun
do do engenho, enquanto que as consonâncias estrangeiras -
Freyre, Wanderley - com os seus "y", lembram as influências
européias não-lusitanas, tal como "Pernambucano" abre várias
hipóteses sobre a miscigenação. Esse conjunto familiar toma a
postura na foto que imortaliza o gênio da colonização portu
guesa no Brasil.
A dedicatória de Sobrados e Mucambos é bem diferente: "A
meu pai e à memória de minha mãe, em cuja casa ainda meio
patriarcal e agorajá demolida, da estrada dos Aflitos, no Recife,
foi escrita grande parte deste trabalho."
A escritura de Sobrados e Mucambos é feita na soleira de um
mundo morto, moribundo, acabado. O sobrado da estrada dos
Aflitosjá desapareceu, e a auto-hagiografia compilada pelo pró
prio Gilberto Freyre mostra o autor, numa fotografia "ao pé da
escadaria do solar de Santo Antonio de Apipucos", o que vem a
ser uma maneira de sublinhar, ao mesmo tempo, a fuga e a con
tinuidade do tempo, e também a inserção do sujeito cognitivo

/.;/
nas formas do seu objeto, Existe, assim, uma permanência das
famílias tradicionais no Brasil, uma continuidade cultural mes
mo quando no tempo histórico da efetividade o seu poder já
passou.

Limitada no tempo da vida humana, limitada a um indiví


duo, a biografia não permite perceber o jogo das gerações, não
permite agravar o ciclo das mesmas, enquanto a autobiografia
sim. Por essa razão, o testemunho do próprio autor-ator, herdei
ro do sistema patriarcal/semipatriarcal, fica sendo a fonte mais
legítima para o estudo do período considerado.
O ponto difícil desta postura epistemológica se encontra
quando se trata de avaliar as chances de sobrevivência de um
sistema ou de uma forma particular dentro de um sistema. O
perigo é de que os interesses de classe ou de grupo impeçam o
conhecimento do processo de decadência.
Sobre essa questão, Gilberto Freyre não nos dá uma respos
ta geral; ele não pretende resolver este problema em um nível
metodológico, só busca resgatar as mudanças que ocorreram. O
testemunho individual tem que ser articulado aos documentos
produzidos num novo campo de ação, produto ele mesmo do
declínio do poder patriarcal.
O equilíbrio existente no mundo feudal, fechado, impe
de a manifestação aberta de qualquer tipo de contestação. Esse
mundo feudal está configurado, pois, assim como diz o pai tu
telar. Quando se abre a possibilidade da mulher falar, do filho
contestar o pai, do escravo reivindicar a sua liberdade, o dis
curso interno da Casa-Grande explode, outros discursos sur
gem, em diversos lugares, pela boca de vários atores. Essa mul
tiplicidade fica registrada numa outra memória menos pessoal
que aquela da família tradicional, baseada na oralidade e que
raras vezes chega a ser escrita: uma memória que fica nos diá
rios íntimos, mas também nos anúncios, nos jornais, nos docu
mentos da vida pública.
Assim, com a ajuda e o apoio da documentação pública, o
privatismo da autobiografia está superado para produzir uma

Aíi?
construção sociológica, dada a multiplicidade das fontes. Essa
produção da verossimilhança sociológica vem apoiada não só
pelas introduções e pelos prefácios, como temos visto, senão
pela estratégia retórica do tipo "vi isto com meus olhos", ou
seja, a força do testemunho ocular. No caso de uma investiga
ção sociogenética, o próprio autor não pode ser ele mesmo o
testemunho. Por isso, é importante a cadeia familiar dos avós.
A veracidade de Casa-Grande & Senzala repousa sobre os avós
do autor, como se nota na dedicatória. O sociolingüista William
Labov qualifica de prefácio um discurso, muitas vezes, implíci
to, que introduz uma narrativa. Por exemplo, "era uma vez" é
o prefácio de um conto, "você não sabe o que ocorreu", é o
prefácio de uma narrativa biográfica. Nesse sentido, o prefá
cio de uma análise como Casa-Grande 8l Senzala é: "eles eram
meus avós". O texto é, pois, nada mais do que o desenvolvi
mento do "como" eram os avós de Gilberto, nas suas casas-
grandes, com os seus filhos, os seus escravos, os seus bichos,
as suas mulheres...

Gilberto Freyre analisa bem a transformação sofrida pelo


sistema social entre o "equilíbrio" forçado do período do poder
patriarcal e o "sistema de tensões" característico do período do
declínio desse poder. Nas línguas latinas, a palavra "e" manifesta
sempre uma certa ambigüidade: significa o "e" uma conjunção
ou uma disjunção? Para sublinhar o aspecto conjuntivo do "e"
no contexto do equilíbrio social, forçado e forte, de Casa-Grande
& Senzala, Freyre utiliza o "e" comercial- um símbolo, que
manifesta no seu desenho, a idéia do nó. Já em Sobrados e Mu-
cambos, onde domina a idéia da tensão entre vários universos,
constantemente obrigados a reconstruir um equilíbrio tão frá
gil, Freyre utiliza o "e" com toda a sua ambigüidade.
Na verdade, as contradições presentes na estrutura de So
brados e Miicambos - privado e público, poderoso e fraco, rico e
pobre, etc. - constituem a dinâmica própria, primeiro do declí
nio da forma patriarcal até um estado patológico e, segundo, da
construção de uma forma nova, através do estado misto do Im
pério, até a República.

/.;.y
Introduzindo o seu trabalho sobre SobradoseMucambos, Freyre
fala de uma nova paisagem social. Essa metáfora dá uma idéia mui
to mais aberta da forma social se instalando do que o mundo fe
chado do engenho. As estruturas arquitetônicas ficam - a casa, o
muro - mas Freyre assinala quão permeáveis são as casas e os mu
ros através das janelas e dos olhares. Essa permeabilidade permite
que se constitua um campo semântico, mas também prático, sen
sual, erótico, fundado na dialética interno/externo.
Esse campo, marcado primeiro pela chegada massiva de in
formações, da Europa e do resto do país, de modas,Jeitos, cores e
perfumes, esse campo onde os homens trocam informações e as
mulheres também, mesmo se estas tratam de objetos distintos,
poderia ser chamado de espaço público. Novos espaços físicos aco
lhem esta germinação, como a rua, a praça, o café, o Jardim, pri
meiro privado, mas logo público. Novos rituais se desenvolvem
também nesses espaços, com as festas, as procissões, o carnaval.
Se o "fechado" e o "aberto" fornecem um eixo para pensar
as tensões no espaço público, estas categorias determinaram tam
bém a metodologia freyriana, articulando autobiografia e fon
tes públicas, com anúncios e notícias de Jornal, todo esse mate
rial tão vil, como ele mesmo diz, "aparentemente apenas pito
resco, mas na verdade rico e até opulento de substância de maior
interesse histórico e da mais profunda significação social" (Freyre,
1977, p. 28).
A sociologia genética encontra-se, então. Justo na situação
proustiana. O plissado que nutre o presente é infinitamente rico
e assumiu formas de um extremo refinamento, enquanto o fu
turo que se abre diante dos atores apresenta ainda o caráter mal
delineado, daquilo que não foi acabado, que não é senão esbo
çado por gestos sumários e instintos grosseiros. Mas, ao mesmo
tempo, a história do Brasil, sobre a qual se debruça Freyre, é
aquela de uma passagem do simples ao complexo: a oposição
cardinal senhor/escravo vai deixar seu lugar no curso do tempo
às classes e às situações intermediárias que irão dar complexida
de ao sistema social.
Referências

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasi


leira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 1933.
. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desen
volvimento do urbano. 5. ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do
Livro, 1977.

/í>0
o cativeiro de Clio:
narrativa entre memória e história
tSa/x/i^a/ ífata/m Sxsaoento-

Sobrados e Mucambos^ a segunda grande obra de Gilberto


Freyre, publicada em 1936, não teve a difusão e a repercussão
de Casa-Grande & Senzala^ aparecida em 1933. Pode-se mesmo
afirmar, sem risco de exagero, que, em termos da sua recep
ção, Sobrados e Mucambos viveu até hoje à sombra de Casa-Gran
de & Senzala.

É, entretanto, obra de fôlego e consistência, que está a me


recer maior estudo e interpretação, particularmente no que diz
respeito à sua escrita e, ainda mais especificamente, aos prefá
cios com os quais o autor introduz as edições anteriores do livro.
Para fins deste estudo, apoiaremo-nos na 3^ edição da obra, de
1961, que contém os prefácios das 1-, 2- e 3- edições da mesma.
Ora, é nos prefácios que Gilberto Freyre constrói a apre
sentação de sua obra e de si próprio como autor, prefácios cons
truídos como espaços de escrita em que Freyre dialoga, vai ao
encontro e responde a um público leitor ou crítico de sua pro
dução precedente.
O prefácio, como ante-sala que introduz á narrativa, é refle
xão expost daobrajáfeita e queprepara asuarecepção. É, portan
to, já uma reflexão do autor sobre a sua própria escritura, onde
revela intenções de como espera ser lido, justifica-se diante da
crítica, expõe suas ambições diante da recepção esperada...
E por este caminho do prefácio,ao mesmo tempo de expli-
citação de uma escrita e de auto-apresentação do autor, marca
do por um caráter profundamente íntimo e subjetivo, mas sem-
pre voltado para um horizonte de expectativas delimitado pelo
seu tempo, que nos dispusemos a entrar na narrativa freyriana.
O que orienta nossa leitura são os cruzamentos, em termos
de aproximações e distanciamentos, que se dão entre a Memó
ria e a História, tomadas ambas como processos mentais e narra
tivos de presentificação de uma ausência.
Esse seria um patamar aristotélico de aproximação, pois,
se a memória torna presente o ausente, a história, narrativa
do que foi um dia, dá, também, a ver uma ausência no tempo.
Mas seria ainda Aristóteles aquele que marcaria também a
distância entre os dois processos de registro de uma ausência
no tempo: a história, bem o sabemos, é a narrativa do que
aconteceu, logo teria aquele pacto com o que o filósofo gre
go enuncia como sendo a verdade: a correspondência do dis
curso com a realidade. Já a memória seria o processo median
te o qual, pela evocação, se dá presença à uma ausência, me
diante um processo imaginado.
Entendemos que a obra de Gilberto Freyre, Sobrados e Mu-
cambos, tal como o autor apresenta nos seus prefácios, comporta
esta tensão de estatuto, ou deste cruzamento entre a memória e
a história. O que se pretende discutir, pois, a partir do texto
freyriano, é a possibilidade de nele surpreender duas narrativas
que se referem a açóes/personagens do passado.
Por um lado, Freyre, o narrador, é fonte de si mesmo, pois
se vale da lembrança, da evocação para recuperar práticas, falas,
atores, espaços, imagens e materialidades do passado. Na verda
de, Freyre se vale das suas recordações de infância, da sua vida
no nordeste brasileiro e também da sua rede familiar e de ami
gos. Freyre quase poderia dizer: "eu vi, foi assim", valendo-se,
portanto, do seu próprio testemunho.
Introduz, assim, pequenas passagens, onde ele é ator do
incidente que narra. Por exemplo, na introdução à 2- edição
da obra, quando estabelece reflexões sobre a passagem do tem
po e as conexões entre degradação do material e do social,
nosso autor conta uma pequena história, sobre um túmulo e

/.íA'
sua ocupante, incidente este que evidenciava o contraste entre
as duas situações:

Ocorre-nos, a este propósito, a recordação de curiosa experiên


cia: a de termos um dia comparecido ao enterro de velha senho
ra pernambucana, muito amiga das pessoas mais velhas de nossa
família materna. Chegados ao cemitério de Santo Amaro verifi
camos que éramos apenas três os que acompanhávamos o corpo
da velhinha ao túmulo. (Freyre, 1961, p. XLI).

Fora preciso solicitar reforço a um desconhecido para le


var o caixão até o jazigo da família da morta, imponente túmu
lo, mandado levantar pela rica família de um ministro de D. Pe
dro II e morador de majestoso sobrado. Agora, sujo e abando
nado, recebia o corpo de uma pobre velha que não conseguira
reunir as clássicas seis pessoas para conduzir o caixão.

Entretanto, por um contraste irônico, aquele corpo de velha


pobre e moradora de casa térrea, ia sepultar-se não em covarasa -
igual àquela em que, outro dia triste, vimos sumir-se na terra pre
ta e pegcjenta do mesmo Cemitério de Santo Amaro o corpo de
um Wanderley antigo e autêntico, velho flamengamente louro e
alvo, filho de senhor de engenho do sul de Pernambuco [...] -,
mas num jazigo de família com alguma coisa de monumental.
(Freyre, 1961, p. XVI-XLII)

Freyre recolhe assim, das suas próprias memórias, inciden


tes que, em si, resumem toda a sua argumentação. Na experiên
cia de vida pessoal do autor, manifesta-se a recordação deste in
cidente exemplar, que expõe o contraste da materialidade dos
túmulos, em relação inversa com a dimensão simbólica da hie
rarquia de seus ocupantes na ordem social.
Lugar que, reiteramos, estáinscrito numa comunidade imagi
nária de sentido e distante do reconhecimento social e de posição
privilegiada na ordem vigente, poistanto aquela que vem a ocupar
o jazigo aristocrata quanto o fidalgo enterrado em cova rasa são a
própria expressão da decadência das oligarquias do passado.

/'19
Não por acaso, Freyre (1961, p. VII) dedica a obra à memó
ria de seus pais, "[...] em cuja casa, ainda meio patriarcal e agora
Já demolida, na Estrada dos Aflitos, no Recife, foi escrita grande
parte deste trabalho."
O entrelaçamento das gerações, e o lugar da escritura - a
casa familiar solarenga, como uma das tantas que ele invocará
em sua narrativa - reforçam a idéia de que há um fio da memó
ria a ser recuperado e que ele, Freyre, se dispõe a desenrolar do
novelo.

Da mesma forma, Gilberto Freyre enfatiza as relações fami


liares e de amizade para a obtenção do vasto material de que se
valeu para a pesquisa:

Pouco antes de morrer, velha parente nossa, Maria (laiá) Caval


canti de Albuquerque Melo, passara bondosamente às nossas
mãos grande parte do arquivo de seu pai, Felix Cavalcanti de
Albuquerque. O mesmo fizera com as fotografias mais antigas do
arquivo do seu Engenho Boa Vista, do Cabo, nosso amigo Paulo
Cavalcanti de Amorim Salgado e com relação aos restos de sua
outrora opulenta coleção de Jornais brasileiros, o velho Alfredo
Couceiro. [...] Também nos utilizamos de restos de arquivo dos
velhos Alfredo Alves da Silva Freyre [...] e Ulisses Pernambucano
de Melo, nossos avós paterno e materno [...].'

E como se o autor estivesse, todo o tempo, presente no tex


to: ou ele é o protagonista das ações descritas, ou é o depositário
de uma memória, familiar ou social, ou é o feliz proprietário das
fontes familiares, ou ainda aquele que mergulha na poeira dos
arquivos, à cata de informações sobre o passado.
Freyre demonstra, sobretudo, intimidade com suas fontes.
As recordações desses parentes e amigossão, pois,suas lembran
ças também, porque fazem parte da sua cultura, do seu meio, do
mesmo espaço. São Memórias, orais e escritas, partilhadas. As
sim é que Freyre se vale do testemunho dos mais antigos, daque-

Prefácio à segunda edição (Freyre, 1961, p. XXXV).

/ól)
les que viram e ouviram aquilo que se passou por fora da expe
riência do vivido do autor.

Ou seja, toma como sua a memória de um outro. Há uma


noção de comunidade de lembranças, socializadas dentro de um
grupo, familiar e de convívio, recontadas e retrabalhadas, das
quais se vale o autor, pois elas fazem parte do seu universo de
experiências.
E com a convicção de participar dessa memória coletiva,
que se confunde com a sua pessoal, que Gilberto Freyre afirma,
na introdução à 2^edição da obra, ser seu trabalho uma espécie
de "romance", "descoberto" e construído por ele, ao mesmo tem
po escritor e ator da História narrada:

Romance que, afinal, é menos romance que extensão, amplia


ção ou alongamento, por processo vicário e empático, de autobi
ografia; extensão e ampliação da memória ou da experiência in
dividual na memória ou na experiência de uma família, de um
grupo, de uma sociedade de que o participante se tornou tam
bém observador e, por fim, intérprete. (Freyre, 1961, p. XLV)

Mas, no processo de feitura da memória, importa mais a


intriga da composição do que o próprio ato acontecido. Como
diz Walter Benjamin (1986, p. 37), relendo Proust: "o importan
te, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o
tecido da sua rememoração, o trabalho de Penélope das remi-
niscências". Estamos diante de uma verdadeira construção do
fato, na medida em que, aquele que lembra tem a liberdade
poética, inconsciente ou não, de selecionar o que lembrar e o
que esquecer.

Nesse sentído, há uma potencialização do caráter ficcional


da narrativa memorialístíca, que a aproxima da clássica definição
da poesia: a memória é sempre algo que poderia ter acontecido...
Da memória pessoal à socializada, da evocação individual à
construção de um patrimônio de lembranças coletivo, há uma
dimensão da escritura de Freyre que se inscreve sob a égide da

/óy
credibilidade. Na memória, opera-se uma epifania, ou a revela
ção de uma certeza íntima de que a lembrança é correta. Paul
Ricoeur (2000) fala-nos das alegrias de uma espécie de memória
feliz, coroada pelo reconhecimento de algo, que é trazido pela
lembrança: foi lá, foi ele, foi então, foi assim...
Essa credibilidade da recordação feita narrativa, Freyre a
fornece pela autoridade do testemunho: se não foi ele que viu
ou viveu, foi seu avô, seu primo ou seu amigo, testemunhas váli
das porque inscritas no tempo físico e social da lembrança.
Há, sem dúvida, por parte de nosso escritor, um trabalho
voluntário de recolhimento da reminiscência. Nesse entendimen
to, Gilberto Freyre se autocompara a Proust, pois diz que seu pon
to de vista com relação ás fontes é "quase" o do escritor francês...^
Isso se daria tanto pelo uso dos papéis e objetos de família e do
cotidiano, na reconstituição intimista das sensibilidades, quanto
pelo processo pelo qual a sensação/experiência diante de um tra
ço do passado é capaz de produzir a Memória-evocação.
Sua proposta é a de forçar o leitor, a ver em torno de si, o
que, antes, não era visto, e encontrar sentidos nesse olhar. Há
um esforço de anamnese, há a busca para despertar as recorda
ções, constituindo esta modalidade de memória voluntária, que
se define pelo esforço e a vontade de lembrar.
Nessa instância, Gilberto Freyre instaura um processo qua
se como que de um deverde memória', é preciso lembrar para não
esquecer como foi. E essa espécie de missão que Freyre chama a
si, fazendo-nos passar ao outro estatuto do texto antes enuncia
do, que é o da História.
Nosso escritor se imbui do que chama "responsabilidade
intelectual" e mesmo fala em salvar "as verdades da história".^
Chamando para sua escritura o estatuto da História, Freyre
distancia-se da credibilidade e busca a meta da veracidade,
pois é a História que reivindica para si não só organizar a nar-

®Prefácio á primeira edição (Freyre, 1961, p. XXVIII).


' Prefácio á primeira edição (Freyre, 1961, p. XXXI).

/6}i
rativa do que aconteceu defato como se autoriza a ser a fala ofi
cial sobre o passado.
Ora, fazer ciência no campo da História ou, dito de outra
forma, construir uma narrativa histórica, implica o uso de fon
tes. Ou seja, é preciso que todo o registro do passado se apóie
em traços, identificados pelo historiador como fonte, na medi
da em que digam respeito ao seu objeto de pesquisa. E preciso
que o historiador recolha vestígios objetivados do passado, a
partir do que construirá seu discurso.
Tais indícios operam como uma espécie de prova, de teste
munho de algo que foi um dia e que, citados e elencados, hipo
teticamente autorizam o leitor a refazer o percurso do historia
dor, desafiando-o a atingir resultado diferente daquele do nar
rado. Mais do que isso, essa exposição ou citação de fontes não
só marca uma trajetória percorrida no caminho da pesquisa como
dá autoridade à fala do escritor-historiador, operando como uma
garantia da sua narrativa e de sua erudição.
E, em matéria de fontes,'^ o historiador Gilberto Freyre de
monstra conhecimento da bibliografia específica de seu tempo
e das épocas mais antigas que tratam sobre a História do Brasil e
sobre as cidades. Mais do que isso, Freyre menciona arquivos
públicos, acervos de museus e recorre a citações de autores lidos
e discutidos em sua obra.

Saindo dos prefácios para a obra em si, vemos que nosso


autor organiza minuciosas notas explicativas ao fim de cada ca
pítulo, com indicação das fontes usadas para suas referências,
com cuidados verdadeiramente científicos.

Freyre ainda usa e abusa da utilização de outros documen


tos, pouco usuais para a época, como arquivos de família, cons
tantes de correspondência particular e álbuns de fotografias,
assim como anúncios de jornais, objetos de uso pessoal, edifica
ções, traçados urbanos e certas fontes oficiais até então pouco

'' Prefácio à segunda edição (Freyre, 1961, p. XXXIII).

/íí.V
utílizadas, mas que dizem respeito à normalização da cidade,
como os códigos de posturas municipais.
Tais usos e aproveitamento de fontes, pouco usuais para a
época, correspondem a uma postura totalmente inovadora no
terreno da História. Podemos dizer que Freyre se vaie de tais
registros não usuais como materialização - ou evidências - de
sensibilidades passadas, sem a qual uma História Cultural não
seria possível.
Mas toda esta utilização inovadora dos cacos dopassado sg dá
no melhor estilo de uma escrita baseada nos rigores científicos
do método, a evidenciar criteriosa pesquisa. Para o autor, trata-
se de inaugurar um método para além do científico-tradicional,
uma vez que prevê a combinação de uma pluralidade de abor
dagens - psicológicas, sociológicas, históricas, antropológicas,
ecológicas, folclóricas,^ que visam proporcionar o máximo de
revelação sobre o Brasil.
A partir de um conjunto, vasto e variado, de dados, Gilber
to Freyre compõe e cruza de maneira a revelar sentidos. Sua
meta é dar a ver, dar a ler, explicar, comprovando aquilo quefoi
um dia. Nessa estratégia, identificamos a pretensão de Freyre para
conferir o estatuto de História para o seu texto. "Necessita-se de
muita história", argumenta Freyre, reconhecendo nesse discur
so a fala autorizada que se incumbe de explicar o passado, dan
do-lhe uma versão-verdadeira.

Ante ajá mencionada tensão do estatuto da escrita, interessa


resgatar esta pretensão histórico-científica de Freyre, de revelar
um Brasil ainda não revelado, de desvelar verdades, de mostrar e
comprovar ao país a sua verdadeira identidade. Mesmo que se
preserve, dizendo que não postula afirmar e concluir, mas sim
deixar pairar a dúvida - "Sugere mais do que afirma. Revela mais
do que sentencia"® Gilberto Freyre postula para si o reconheci
mento de que faz História e, portanto, dá a ver o passado.

Introdução à segunda edição (Freyre, 1961, p. XLII).


Prefácio à primeira edição (Freyre, 1961, p. XXX).

/6'f
Há, contudo, uma definição freyriana de História, que o
situa numa posição distante de uma História linear, cronológica
e causai. Mais precisamente, trata-se de uma História que se apro
xima e se entrelaça com a Literatura e na qual ele admite a pre
sença da ficção.
Ora, tomemos a concepção geral de que é a História a nar
rativa verdadeira sobre o passado, mas entendamos que Gilberto
Freyre pensa escrever o passado a partir de uma concepção prous-
tiana: "Do passado se pode escrever o que Proust escreveu do
mundo: que está sendo sempre recriado pela arte".^
Tal tipo de afirmação conduz a concepções muito espe
ciais da História, pois está implícito que o passado, matéria por
excelência do historiador, é algo que não só é construído, como
pode ser continuamente reconstruído. A idéia da construção,
da urdidura do tecer do passado e, por conseqüência, de fazer
a História remete, por sua vez, ao pensamento de Gilberto
Freyre sobre a escrita do mundo, a um patamar de aproxima
ção entre a ciência e a arte, que ele define como um "impressio-
nismo revelador", que poderia ser traduzido pela sensibilidade
ou a imaginação, estes dois vetores primários de apreensão da
realidade.

E por este caminho que a História de Gilberto Freyre é aque


la que comporta a ficção e se aproxima da poesia, viés de escritu
ra pelo qual ele sofria críticas que o acusavam de fazer mais litera
tura que história, ou de trilhar os caminhos de uma história mais
pitoresca e exótica do que científica...
Mas, para Freyre, sua História é aquela que utilizava a "téc
nica do romance ou do drama", como a queria o filósofo da
história Arnold J. Toynbee, ou ainda aquela que resgatasse as
sensibilidades de uma época, como a "história íntima", a que
teriam se dedicado os irmãos Goncourtem uma "tentativa de
surpreender a vida em movimento".

' Introdução à segunda edição (Freyre, 1961, p. XLlll)


" Introdução à segunda edição (Freyre, 1961, p. XLIV).
Diante de tais colocações, como a escrita de Gilberto Freyre
se coloca diante desta questão do estatuto da narrativa? Ele com
põe um texto que tanto comporta a tessitura da memória, levan
do a imaginação do ouvinte/leitor a identificar-se e acreditar na
lembrança evocada, tomando-a como sua, quanto apresenta uma
aspiração de cientificidade histórica para seu discurso... Afinal,
não esqueçamos que Gilberto Freyre pretendeu inaugurar uma
nova ciência, a tropicologia, com suas ramificações, tocando o
estudo do Brasil à lusotropicologia...
Para tanto, precisamos ter em conta que a escrita de Gil
berto Freyre pressupõe.sempre terceiros, ainda mais evidentes
nos seus prefácios e apresentações: o público leitor e a crítica.
Mesmo negando, Freyre é escritor por demais preocupado com
sua imagem e com a recepção de suas obras.
Sobrados e Mucambos é publicado no mesmo ano, 1936, em
que a obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. Em
estudo que marcou época, no prefácio à 5^ edição de Raízes do
Brasily Antonio Cândido chamou estes dois autores, junto com
Caio Prado Jr., de reintérpretes áo Brasil.
Ora, desde o prefácio da primeira edição, Gilberto Freyre
se propõe "reconstituir", "interpretar" e "inovar" com sua obra,
tanto do ponto de vista do enfoque de análise quanto do méto
do, forma e fontes. A respeito do enfoque, Freyre não se inscre
ve como um estreante, pois Já tem, como capitalseu, a publica
ção de Casa-Grande & Senzala.

Mas invoca para si a primazia de um novo e ousado enfo


que quejá produzira uma obra: a partir da arquitetura, dar a
ler o social, tomar a materialidade para fazer ver a sociabili-
dade. O espaço urbano edifícado opera como um texto, com
o que Freyre se aproxima do paralelismo estabelecido por Paul
Ricoeur (1998) entre arquitetura e narratividade. Ediflcar e.
construir, no espaço, é tal como contar e articular uma intri
ga no tempo, com o que Ricoeur estabelece uma correlação:
a arquitetura está para o espaço tal como a narrativa está para
o tempo.

/6rr
Sob ótica aproximada, Gilberto Freyre procura ler, no es
paço, o tempo, cruzando a materialidade das formas da arquite
tura com a sensibilidade da narrativa de vida que encerram. Com
essa abordagem, e particularmente em Sobrados e Mucambos,
Freyre introduz um novo olhar sobre as cidades, que é capaz de
por em evidência não só a memória e a história que as edifica
ções encerram, como também de resgatar sonhos e projetos no
tempo, inscritos por aqueles que edificaram no espaço.
Por outro lado, nosso escritor desloca, da classe para a raça,
o eixo de análise da História, dialogando com o seu interlocutor
oculto, o marxista Caio Prado Jr. Com tal diálogo nào-explícito,
Gilberto Freyre insiste no "calcanhar de Aquiles" do problema
identitário nacional. Já abordado em Casa-Grande& Senzala.
Há, pois, um público que se disputa e para o qual Gilberto
Freyre se dirige, oferecendo não só a originalidade do olhar como
a trajetória percorrida como escritor, mas também inova, ao ex
por suas reflexões sob uma forma coloquial, não-acadêmica de
narrar. E como se oferecesse leitura científica sob a forma de
romance, a demonstrar que seriedade não quer dizer, necessaria
mente, sisudez...
Com relação às fontes, quer parecer que Gilberto Freyre as
inscreve, neste seu prefácio à P edição, como um elemento de
empatia e reconhecimento dos leitores, como a dizer que é preci
so educar o olhar e enxergar, no cotidiano, sinais até então desa
percebidos, possíveis de interpretar e que permitem despertar lem
branças. Nesse momento, Freyre possibilita uma identificação do
seu texto com os leitores, pois a História que escreve está, de certa
forma, implicitamente inscrita na Memória de cada um.
Por outro lado, são ainda essasfontes, na sua enumeração
metódica, que dão o certificado de que aquele texto se trata de
um trabalho científico, de que o autor é um pesquisador, ates
tando que a crítica pode receber a obra com bons olhos... As
fontes ocupam, no terreno do discurso científico, o papel de
testemunho representado pelo narrador e/ou depoente no tex
to de cunho memorialístico.

/oy
De uma certa forma, neste prefácio à 1- edição, o autor
concilia em sua obra a memória e a história.

A segunda edição de Sobrados eMucamhos áirSQ em 1949, e,já


no prefácio, Gilberto Freyre revela a existência de uma crítica.
Parece não ser mais Caio Prado Jr. o interlocutor. Mesmo que o
autor afirmasse que a primeira edição já se achava esgotada há
anos, sabe-se que, neste ínterim. Raízes do Brasil, saída no mesmo
ano de Sobrados e Mucambos,]i. tivera a sua 2^ edição em 1947.
Ou seja, em termos de recepção junto ao público leitor, a
obra de Sérgio passara a dianteira na de Freyre. É diante desse
texto de Sérgio Buarque de Holanda - mais um interlocutor
oculto na narrativa -, que Gilberto Freyre deve justificar a rele
vância de seu trabalho.

Freyre nos fala que sua obra não pretendeu dizer que o
açúcar seria o único "formador" do Brasil. Teria havido, pois,
insinuações ou críticas diretas nesse sentido? O sucesso de Raí
zes do Brasil competia com o de Casa-Grande& Senzala e Sobrados
e Mucambos, e, sobretudo, Gilberto Freyre constatava o fato de
estar em marcha uma paulistanidade, a estabelecer uma hegemo
nia cultural sobre o país? Findo o Estado Novo e de uma certa
chancela oficial da visão freyriana, com sua acomodação inter-
classista e com a apologia da mestiçagem, as críticas de uma nor-
destinização do país tomavam vulto? Muitas são as questões que
podem compor o referencial de contingência da época e que
presidem a nova publicação de Freyre.
Na introdução à 2^ edição, que se segue ao prefácio à mes
ma, Gilberto Freyre enumerava os ataques sofridos.
Por trabalhar com a arquitetura e por partir da casa, fazen
do do habitai um texto que dera ao público uma outra visão do
país, sofrerá as críticas dos especialistas em história da arquitetu
ra brasileira; por usar uma outra forma de escrever, por se valer
de uma outra retórica e por ter uma outra concepção de Histó
ria, fora dito que fazia poesia, literatura ou folclore; por falar do
nordeste, fora acusado de "simplificara realidade nacional", des
conhecendo a existência histórica de outras edificações...

/6^'
Diante de todas essas investidas, Gilberto Freyre defendia-
se, argumentando:

Talvez tenham alguma razão. Mas para chegarmos a juízo defini


tivo sobre ponto tão duvidoso teríamos de discutir antes a ques
tão da qualidade e da quantidade, nos estudos cientificamente
sociológicos ou científicamente históricos. (Freyre, 1961, p. XLIII)

Ou seja, Gilberto Freyre punha em dúvida parte da dita


produção científica nacional, de uma maneira geral, sem citar
seus opositores, e chamava a si, como interlocutores privilegia
dos, a intelectualidade de outras regiões do país, a mostrar que
seus estudos tinham eco e que, através das suas constatações da
matriz lusitana da moradia, era possível visualizar uma formação
histórica brasileira.

Em especial, destacava o Rio Grande do Sul, onde era pos


sível não só estabelecer diálogo como se podia apreciar que, mes
mo constatando as diferenças, eram visíveis as semelhanças e con-
tinuidades. Ante a intelectualidade gaúcha da época, Gilberto
Freyre elege como seus interlocutores privilegiados os historia
dores Moysés Vellinho e Dante de Laytano, pois haviam tido a
ousadia de escrever sobre outras realidades, deslocadas do eixo
Rio-São Paulo.

Maisdo que isso,eles escreviam de uma forma próxima a sua,


afirma o escritor, o que fazia Freyre afirmar ser possível ver conti-
nuidades, de suas idéias e de suas descobertas, na produção recen
te dosintelectuais do outro extremo do país. Não importava que lá
no Rio Grande, a forma e o produtosobosquais se dava a explora
ção econômica da terra fossem outros: mesmo lá era possível divi
sar, com as suas variantes, tanto a matriz lusa de formação da cultu
ra quanto a constituição de uma sociedade patriarcal.
Sobre a atividade intelectual sulina, Gilberto Freyre desta
cava a presença de

[...] estudos profundos ou meticulosos sobre a formação não só


social, em geral, como literária, ou política, em particular do

—^ /()y
Rio Grande do Sul: de todos os estados meridionais do Brasil o
que tem sido objeto de melhores estudos neste gênero. Estudos
como os de Rubens de Barcellos e de Sallis Goulart e os de João
Pinto da Silva, Moisés Vellinho, Augusto Meyer, Coelho de Sou
sa, Dante de Laytano, Viana Moog, Manuel Duarte, Walter Spal-
ding, Carlos Legori. O que o Sr. Atos Damasceno, por exemplo,
evoca, em páginas sugestivas, não só do passado remoto como
recente de Porto Alegre, quase se confunde com as evocações do
Recife de Mario Sette. (Freyre, 1961, p. LXIV)

E Gilberto Freyre prosseguia nas suas analogias narrativas:


por exemplo, na autobiografia de João Daudt de Oliveira, eram
apresentados episódios de meninice que eram comparáveis àque
les narrados em outros relatos de vida do século XIX, em outras
tantas regiões do país, como as de Cristiano Ottoni, do Barão de
Goiana, de Veridiana Prado, de Paulino de Sousa, de Felix Ca
valcanti de Albuquerque.
Da mesma forma, na senda deste diálogo intertextual, Freyre
encontrava correspondências do estudo de Dante de Laytano
sobre a cidade gaúcha de Rio Pardo com outras narrativas de
outras cidades do Brasil. O trabalho desse historiador gaúcho,
dizia Gilberto Freyre, tínha um sabor nacional e poderia ter sido
escrito em Alagoas, Sergipe, Bahia, Pernambuco, São Paulo ou
Rio de Janeiro, tais as identificações de modos de ser e habitar
que aí se podiam surpreender (Freyre, 1961, p. LXV).
Mas as críticas mais duras - e, portanto, vindas do público
para quem Gilberto Freyre respondia de fato - pareciam che
gar do exterior e de São Paulo. Fernand Braudel teria dito que
o estudo de Freyre seria válido apenas para uma região brasi
leira, e não para o Brasil... (Freyre, 1961, p. LX). Wilson Mar
tins negava a idéia freyriana de complexos transregionais - os
binômios compostos por casa-grande e senzala, e sobrados e mo
cambos-, tal como Donald Pierson e Sérgio Milliet criticavam,
pois achavam que se tratava de um modelo com área geográfi
ca bem delimitada! Um dos ataques, cuja autoria Gilberto Freyre
não identifica no seu texto, dissera que ele só conhecia a reali
dade do nordeste!

/70
Nesse contexto, nosso escritor acentuava, em sua defesa, a
argumentação que conferia a sua obra o estatuto científico, pois
se tratava de fazer frente a uma crítica que se estruturava contra
seu trabalho como um todo, a destruir seu argumento e sua es
crita. Fazia ciência, sim, pois realizava pesquisa, arrolava as fon
tes, citava, tinha um método, fizera longas viagens de estudo pelo
Brasil a fora e mesmo no exterior, para falar a diferentes públi
cos com conhecimento de causa. Mas sua ciência, sua história,
era outra. Exigia respeito a sua forma de pensar, tal como o di
reito aos intelectuais de seguirem critérios diferentes dos consa
grados até então... Era vanguarda, apresentava uma postura avant
Ia lettre com relação ao seu tempo, e por isto era atacado!
No prefácio à 3- edição de Sobrados eMucambos, surgido em
1961, Gilberto Freyre (1961, p. XIII) referia, mais uma vez, que
sua obra se achava esgotada desde há muitos anos e anunciava a
próxima edição em língua inglesa.
Esse prefácio apresenta algumas inovações, que marcam a
própria evolução da obra e da apreciação do autor sobre a mesma,
expondo, assim, o contexto histórico de sua republicação. Dessa
mcmeira, Freyre aponta para o caráter difícil áa.leitura de seu livro,
o que provavelmente se relacione com a recepção diferenciada de
Casa-Grande 8l Senzala com relação a Sobrados e Mucambos. Se a obra
não tivera a difusão que esperava, era porque não era fácil de ler,
afirmação do autor que nos permite apreciar a reiterada preocupa
ção com a recepção de seus livros. Preocupação, esta, como já se
viu, antevista em outros prefácios e introduções...
Em segundo lugar, procurando uma sintonia com o tempo
histórico e a conjunturabrasileira desta3^ edição, GilbertoFreyre
reafirma sua linha guia de trabalho - através do estudo dos esti
los de residências, chegar à formação patriarcal da sociedade
brasileira mas afirma que este patriarcalismo é, em certa me
dida, democrático.

Com tal assertiva, o autor não só acerta o passo com o mo


mento - a democracia populista, em fase efervescente neste ano
de 1961 -, como também reforça o caráter acomodatício, inter-

/?/
classista, de suas análises da história. Ou seja, a dominação mesti
ça dos senhores aristocratas permitira o intercurso racial e social.
Freyre reafirma, com isso, a pertinência de sua visão do passado.
Em terceiro lugar, Freyre aponta claramente as divergên
cias, citando o nome daqueles que têm outro viés de análise:
Caio Prado Jr., Astrogildo Pereira, Nelson Werneck Sodré, os
intérpretes marxistas da realidade brasileira, assim como Ray-
mundo Faoro, não-marxista, mas que minimizava o poder patriar
cal em face da presença do Estado na formação do país. Note
mos que, nesse caso, Freyre se confronta com a visão de dois
historiadores Caio Prado e Sodré, um militante - Astrogildo - e
um jurista, sociólogo e cientista político - Raymundo Faoro.
Em quarto lugar, Freyre define uma característica funda
mental para o comportamento do brasileiro: a rurbanidade, que
somaria aos valores agrários e telúricos, essenciais ou existen
ciais aqueles valores urbanos, capazes de "dar sentido mais am
plo à vida, à atividade e à cultura das populações do interior"
(Freyre, 1961, p. XIV). Nessa medida, a cidade - terreno de aná
lise do livro que prefacia - aparece como um ganho civilizató-
rio, que situava o Brasil em sintonia com a realidade mundial e
como que justificava a atualidade da sua republicação.
Por último, introduz-se o arrojo de uma antevisão do futu
ro: Gilberto Freyre declara a morte da Revolução Social dos mar
xistas, da luta de classes, da Revolução Industrial, do burguesismo
e do trabalhismo antiburguês e do próprio proletariado, reduzi
do drasticamente pela ocorrência de uma outra espécie de Re
volução: a da automatização, forma de realização de um mundo
inteiramente novo! Nessa nova ordem, haveria a volta à família,
à produção do lazer - pois os homens terão tempo de sobra
para isso - e à preocupação de construir uma arquitetura menos
moderna e mais brasileira... (Freyre, 1961, p. XV-XVI).
A condenação à Brasília, "antes escultura monumental que
arquitetura" (Freyre, 1961, p. XVII), é explícita, e nosso autor
garante um lugar para sua obra no futuro: ele, Gilberto Freyre,
já se preocupara desde há muito com uma cultura e civilização

/72
mais lúdica que bipolarizada por conflitos sociais, e voltada para
a definição e identificação de parâmetros nacionais de habitar.
Ou seja, Gilberto Freyre procura dotar a sua narrativa so
bre o passado nacional de uma conotação de perenidade para a
interpretação do Brasil. Aspira ser um clássico, pois. Quer sua
análise válida para além do momento da sua escritura, quer ga
rantir a certeza de uma recepção e quer inscrever sua narrativa
como autêntica,

Poderíamos dizer que a postura intelectual de Gilberto


Freyre é aquela que combina as ousadias da imaginação e uma
cultura invejável, de berço, com um pretendido rigor científico
que ele almeja demonstrar em sua pesquisa. Sua escrita tem o
estatuto condizente com um intelectual da primeira metade do
século XX, com formação acadêmica e conhecimento, que lhe
conferem a autoridade da fala.

Mas ele pretendeu algo mais: a sedução de tocar no íntimo


de cada um, que reconheceria no seu texto um pouco de sua
própria vida. Ao entrar por dentro da intimidade das casas, ao
vasculhar nos baús os segredos das famílias, ao entrar por den
tro das cozinhas, dos porões, dos quintais e dosjardins, ao sair à
rua para as brincadeiras, para os passeios e as festas, ao partici
par de batismos, namoros, noivados, casamentos e enterros, a
escrita de Freyre Justificava a sua inserção na memória social. As
lembranças do autor se confundiriam com as do leitor, ganhan
do a sua verdade simbólica de reconhecimento.

Acreditamos que Gilberto Freyre tenha aspirado inscrever


a sua obra não só como trabalho científico, como fala legítima
sobre o passado, como também a fez ser memória partilhada,
para que todos nela se reencontrassem. A retomada contempo
rânea de suas obras leva a pensar por estes caminhos.
Retomemos, portanto, os cruzamentos da história e memó
ria, presentes na escrita freyriana. A rememoração do autor, afe
tiva e subjetiva, torna-se representificação socializada, que fixa e
sacraliza lugares no tempo e momentos no espaço, assumidos
que foram - e talvez até continuem sendo - como emblemas de

/7<y
uma certa nacionalidade. Nessa medida, Gilberto Freyre assume
o papel de construtor de uma metamemória, que toma ou ocu
pa o lugar da história na construção da identidade nacional, fa
zendo com que a sua verdade sobre o Brasil - talvez, por que
não? - seja a do Brasil que as pessoas querem acreditar.
E, neste ponto, cabe se indagar: por que a escolha, para
este ensaio, de um título como "O cativeiro de Clio"?
Porque o que pretendemos, ao entrecruzar duas narrativas
que se empenham em presentificar o passado - a memória e a
história - estivemos, todo o tempo, a falar desta última.
Clio, prisioneira das armadilhas que criou para si mesma,
empenhada em contar a verdade daquilo que foi um dia, sem
jamais deixar de deparar-se com as aporicis de uma escrita que
busca reconhecimento, legitimidade, sempre no propósito de
aprisionar a memória, mas se vendo, de forma constante e reno
vada, surpreendida e enredada pela força do imaginário, da fic
ção, da credibilidade das informações, da relativização dos teste
munhos, das artimanhas da própria Memória, que se move por
princípios nem tão científicos assim.
Gilberto Freyre, sua obra e seus prefácios foram pretexto,
enfim, para que pudéssemos pensar a escrita da História, seu
enfrentamento com a Memória, a verdade e a ficção, tudo aqui
lo que, em última análise, compõe o cativeiro de Clio.

Referências

BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust, In: . Obras escolhidas.


Magia e técnica, arte e política. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
FREYRE, Gilberto. Introdução à segunda edição. In: . Sobrados e
mucambos. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1961. Tomo I.
RICOEUR, Paul. L'écriture de Thistoire et Ia représentation du passé.
Annales HSS, n. 4, juillet-aoút 2000.
. Arquitetura e narratividade. Urbanisme, Paris, n. 303, nov/dec.
1998.

/7Í
"O que se diz no princípio":
uma leitura dos prefácios
dant/zv/ ^iiainliní S^xei/Hi/ ''PasconceioS'

Depuisbien longíemps, l'on se récriesur


rinutilitédes préfaces - epourtant Vonfait
toujours despréfaces.
T. Gauthier

O prefixo pre- indica anterioridade. Mas um prefácio (do


latím praefatioy "o que se diz no princípio") é sempre, paradoxal
mente, um post-scriptum. Preâmbulo, prólogo, ou introdução, tra
ta-se de um discurso que antecede uma obra escrita, ocupando
de fato um lugar liminar, fronteiriço (por estar dentro e fora) e
remetendo a uma dimensão temporal tripla (passado, presente
e futuro). "[T]out ce hors-texte qui arrêterait Ia concaténation
de récriture", na definição dejacques Derrida (1972, p. 11), o
prefácio estabelece uma relação problemática de alteridade e
exterioridade com seu referente, ao mesmo tempo em que ins
tala e inaugura uma fala, com a qual mantém ligações intrínse
cas. Coloca em presença, ainda, dois interlocutores - o sujeito
da enunciaçãoe o destinatário do enunciado - num diálogo trun-
cado do qual se tem somente uma "fala" e em que se pode ape
nas presumir a figura desse último. No caso, uma presença em
ausência, portanto.
Antecipação discursiva, o prefácio é um protocolo— primei
ra página colada antes da abertura - que apresenta e precede,
torna visível e faz falar, prediz e predica, intervém e dirige o
olhar. Na sua intenção de ato de reconhecimento do percurso,
de reflexão a posteriori, põe em ação uma retórica da persuasão
ou de convencimento e movimenta uma gramática, em que
signos verbais (tais como dêiticos e modalizadores) buscam si
tuar autor e leitor no mesmo espaço e tempo, no mesmo uni
verso de referência.

Enquanto texto meta ou paraliterário o prefácio desempe


nharia um papel didático e ideológico, "orientando, ensinando,
catequizando", através de estratégias que "programam um com
portamento de leitura e estendem ao leitor um fio semânüco
onde ele virá se prender" (Miterrand, 1986, p. 15). E, mesmo se
mentira ou ilusão, aos olhos de Henri Miterrand, serviria como
um espaço em que o ''eu fala de seu relato do mundo", o que lhe
daria, em última instância, objetivo e função.
Derrida (1972, p. 21), ao contrário, considera o prefácio
uma "forma textual de vacância, conjunto de signos vazios e
mortos". Crítico do que chama de "saturação semântica" desse
gênero de texto, sugere a não-pertinência do prefácio em rela
ção àquilo que ele introduz. Hegel, antes dele, havia igualmente
desqualificado o prefácio, a partir do ponto de vista da lógica,
como um "discurso exterior à coisa mesma", opondo-o â intro
dução, como explica Derrida:

E preciso distinguir o prefácio da introdução. Eles não têm a


mesma função nem a mesma dignidade aos olhos de Hegel [...].
A Introdução (Einleitung) tem um vínculo mais sistemático,
menos histórico, menos circunstancial com a lógica do livro. É
única, trata de problemas arquitetônicos gerais e essenciais,
apresenta o conceito geral em sua divisão e sua autodiferencia-
ção. Os prefácios, ao contrário, se multiplicam de edição em
edição e dão conta de uma historicidade mais empírica; res
pondem a uma necessidade de circunstância [...] (Derrida, 1972,
p. 23, tradução minha)

Se num texto filosófico não há lugar para o prefácio, para


o qual não haveria utilidade nem possibilidade, a pergunta que
se impõe é qual seria então esse lugar. A resposta, potencialmen-

//V/
te operacional, é sugestiva: "a necessidade do prefácio pertence
à Bildung'^ (Derrida, 1972, p. 17) e sua morada seria o intervalo
entre o conceito e a existência, o pensamento e o tempo. Assim,
mesmo se entendido como "discurso exterior ao conceito e à
coisa mesma, máquina privada de sentido e de vida", o prefácio
pertence à exposição do todo e é nele que o todo se quer expli
car. Seu desejo é tornar o texto legível, inteligível e para isso,
muitas vezes, ele se apresenta como um caminho que se abre e
se constrói. E ainda, de acordo com Derrida (1972, p. 52), a
"palavra do pai que assiste a e admira seu escrito", sendo o narci-
sismo sua lei, pois ali o autor ostenta, fala de si, dos obstáculos,
de seus sucessos e fracassos.

Eis aí, em linhas gerais, algumas direções frutíferas em que


se pode pensar o prefácio como gênero de texto e como prática.
Circunstancial, didático, exterior, proliferante, fronteiriço, não
importa, esse hors-textese constituiu num exercício permanente
de intervenção e diálogo, no caso de um prefaciador que quase
poderíamos descrever como compulsivo, como foi o caso de Gil
berto Freyre. Prova disso são os incontáveis prefácios que escre
veu para Casa-Grande & Senzala, quer em edições brasileiras ou
em língua portuguesa, quer em edições estrangeiras, que lhe
valeram inclusive a acusação de "prefaciomaníaco". Ali, numa
"Seleção de Prefácios a várias outras edições deste livro em lín
gua portuguesa", Freyre (1997, p. XXXIV) se explica:

A verdade é que a maioria desses prefácios foram escritos por


solicitação de editores ou em face de provocações ou sugestões
de críticos. Nenhum deles exprime um aía, da parte do autor, de
Justificar-se quanto a idéias ou atitudes, dentre as que mais susci
taram reações ou mesmo hostilidades ao autor; e sim o desejo
de, em face de umas tantas incompreensões sinceras, honestas,
idôneas, o inovador, de acordo com editores, esclarecer-se; o de
algum modo antiortodoxo, definir-se de forma porventura mais
precisa: a de um autor já mais de quarenta anos vivo entre suces-

' Tradução: formação, cultura, educação.

/77
sivas gerações jovens; e que, a despeito de quanto esforço se tem
feito para apresentá-lo como "superado", ou "ultrapassado", vem
dialogando com novos leitores, solidários no essencial com o que
foram suas, a princípio, escandalosas heresias sobre assuntos
humanos, em geral, e sobre homens, sociedades e cultura, em
grande parte mestiças, ou mistas, situadas nos trópicos - especial
mente, mas não exclusivamente, os brasileiros - em particular.-

Freyre foi, ao longo de toda a sua vida intelectual, um assí


duo prefaciador não só de sua própria obra mas igualmente de
"livros e opúsculos de outros autores" e de apresentações de ex
posições ou mostras de arte.^ Mas não é esse leitor de outros
autores que interessa aqui. O que desejo focalizar é o Freyre
leitor de sua própria obra, especificamente o leitor de Sobradose
Mucambos. E estão dadas, aí acima, as coordenadas que podem
nos orientar nessa tarefa de discutir a configuração e a função
que o prefácio assume para nosso autor.
Foram seis edições de Sobrados e Mucambos entre sua pri
meira publicação em 1936 e a morte do autor, em 1987. Foram
quatro prefácios, à primeira, segunda, terceira e sexta edições
e uma introdução à segunda edição. No total, cinco textos com-
plementares ou suplementares ao corpo principal do livro, fruto
certamente da intenção de estender o diálogo do autor com
seus leitores, críticos e interlocutores. Escritos ao longo de um
período que cobre quarenta e quatro anos (o prefácio à sexta
e última edição em vida de Freyre está datado de 1980), os
prefácios vão sugerindo-nos, na sua cronologia, dados sobre os
diferentes momentos da recepção deste que é o segundo volu
me de uma trilogia pensada como uma "introdução à história
da sociedade patriarcal no Brasil". Fornecem, ainda, acesso
privilegiado a desdobramentos de idéias e proposições desen
volvidas no corpo da obra, que ocorreram a seu autor num
momento pós-escritura, a partir da necessidade de se explicar,

- Essa seleção está datada de Sto. Antônio de Apipucos, 1973.


' Esses prefácios foram reunidos por Edson Nery da Fonseca (1978) em Prefá
cios Desganados: 50 anos de prebícios (1927-1977).

/7<t'
se justificar ou esclarecer pontos que julgava obscuros na sua
argumentação. São, portanto, o produto de uma reflexão pos
terior ao ato mesmo da escrita.

Neles, desenha-se não apenas o retrato de um autor que,


cioso de sua imagem, se apresenta ao público com todas as qua
lificações para a empreitada e se constrói como um homem eru
dito, com origem numa família patriarcal, mas cuja convivência
com os negros o faz um exemplo dessa mistura que explicaria,
segundo ele, o Brasil. Tem-se consciência de que escreve num
português "mais aparentemente do que realmente simples" (a
questão da linguagem tendo sido um velho leitmoliv dos prefá
cios de romancistas setecentístas europeus a seus leitores), esse
autor demonstra seu cô/e popular, por assim dizer, ao jusüficar a
presença dos "muitos africanismos, amerindianismos, plebeís-
mos" que o leitor encontrará em seu fraseado.
Seria, assim, o sincretismo de que diz ser exemplo o pró
prio autor trazido para o próprio nível da linguagem. Há, de
modo geral, um Gilberto Freyre rempli de soi-même, nesses textos
prefaciais, que se orgulha em demonstrar suas conexões inter
nacionais, a recepção de seus livros na Europa e nos Estados
Unidos, como que ajogar na cara dos intelectuais e da academia
brasileiros a fraca repercussão obtida por Sobrados e Mucambos
no seu país ("somente 6" edições diante das "23 - ou 24 de
seu Casa-Grande8l Senzala). E que, por contraste, mal consegue
esconder sua mágoa por essa falta de atenção, principalmente
naquele que parece ser seu último prefácio, o da edição de 1980.
Daí sua insistência (desnecessária, do meu ponto de vista) nos
méritos (indiscutíveis, sem dúvida) de sua obra. Há um tom aí
que surpreende. Resultado, a meu ver, da indisfarçável vaidade
e da autocelebração constante do autor.
Quanto aos leitores, esses parecem variar: o leitor presumi
do ou imaginado aparenta ser o leitor comum, a quem Gilberto
Frc7re explica paciente e detalhadamente suas intenções, seu
tema, seu método; mas também se intui, na outra ponta desse
diálogo truncado, um leitor especializado, portador de um sa
ber que lhe permitiria acompanhar com facilidade os argumen-

/7.9
tos, as defesas, os pontos de vista e as discordâncias. Entre esses,
se colocariam Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Astro-
jildo Pereira, Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda,
com quem as divergências se deram, como sabemos, não só no
nível da orientação ideológica mas no próprio plano da inter
pretação da sociedade brasileira.
Não pretendo aqui discutir essas divergências ou privile
giar esses interlocutores explícitos (ou às vezes implícitos) de
Freyre. Interessa-me, ao contrário, indagar quem seria esse lei
tor a quem se dirige esse Gilberto Freyre que se explica, justifi
ca, esclarece. Esse leitor comum, não-especializado, imaginado,
que é também alvo da atenção do autor e a quem se prestam
esclarecimentos e a quem se oferecem explicações. A Freyre pa
rece não bastar que o leitor leia o corpo principal de sua obra.
Ele demonstra todo o tempo uma certa ansiedade, um de
sejo de se fazer compreendido, voltando sempre ao assunto, am-
pliando-o, suplementando-o, complementando-o, num incessan
te processo de reprodução da escrita ("a matéria transbordan-
te", nas suas própria palavras). Nos prefácios, anuncia sua meto
dologia de trabalho, aponta seus materiais, documentação e fon
tes de pesquisa (anúncios de jornais, arquivos de família, atas de
Câmaras, teses médicas, álbuns de retratos, etc.), comenta op
ções e caminhos, explica conceitos como "rurbanidade", enfati
za a centralidade da família na formação social do país, justifica
sua escolha dos estilos de habitação como emblemáticos das re
lações sociais entre brasileiros, ou antecipa, fazendo um exercí
cio de previsão do futuro, ao antever o advento de uma revolu
ção pela automatização.
A contribuição de Gilberto Freyre para o estudo do declí
nio de uma sociedade e cultura predominantemente agrária e
rural e do processo de urbanização e industrialização da vida
brasileira, simbolizadas na passagem da casa-grande rural para o
sobrado urbano, é inegável. A primazia que ele confere aos as
pectos materiais dessa cultura é inovadora e pioneira. Seus apor
tes não foram de pequena monta e Sobrados e Mucambos fala por
si mesmo. Daí a intrigante questão: por que tantos prefácios?
Por que tão longa introdução à segunda edição que, pós-fato
porque datada de 1949 e de 1961, se constitui numa verdadeira
introdução à obra? O ano de 1961, inclusive, parece ser de al
gum modo decisivo, pois em torno dele ficam girando quase
todos os textos: trata-se da data da terceira edição revista e talvez
por isso fique reaparecendo ao final de diversos textos, como se
eles girassem sempre em torno de um mesmo eixo temporal e
voltassem sempre a seu centro.
O que os prefácios evidenciam, na medida em que foram
escritos em momentos diversos da trajetória intelectual do soció
logo pernambucano e foram acompanhando as mudanças his
tóricas em curso no país, é que eles se apresentam como respos
tas ou tentativas de intervenção no debate que se travava em
cada quadra. Enquanto o prefácio à primeira edição se inscreve
no interior mesmo do período getulista, em 1961, quando Freyre
escreve seu prefácio à terceira edição, os tempos são outros, as
preocupações de outra ordem, e parece-lhe adequado e oportu
no propor, como contraposição à "revolução social à moda Mar
xista", "um mundo socialmente novo" criado a partir de uma
possível revolução pela automação que poria fim aos antagonis
mos entre capital e trabalho, libertando os homens e estabele
cendo novas formas de relações entre eles. Publicado em 1936,
num período conturbado de reordenação das forças políticas
do país. Sobrados eMucambos constituía a segunda etapa do pro
jeto do sociólogo de explicar a formação da sociedade brasileira
e fornecer uma interpretação do Brasil, iniciado com Casa-Gran-
de& Senzala (1933) e continuado com Ordem e Progresso (1959).
Somava-se, desse modo, ao esforço, presente nas décadas de 1920
e 1930, de alguns intelectuais interessados em explicar o país
que surgia da dissolução dos valores e hábitos rurais e das mu
danças provocadas pela urbanização.
Nesse seu primeiro prefácio, Freyre trata, portanto, de res
saltar a passagem do velho para o novo Brasil, (re)colocando
em pauta a centralidade da casa e da família nesse processo de
alteração da paisagem social e indo buscar suas origens e raízes
no século XIX. Se o livro é o resultado de um olhar que se lança

/<\v
sobre o passado, procurando compreender as mudanças que se
operaram na sociedade brasileira, o primeiro prefácio é uma
espécie de resumo do argumento principal, em que se enfati
zam os momentos e espaços dessa passagem: do mundo rural
para o mundo urbano, da casa para a rua, do privado para o
público. Freyre quer chamar a atenção do leitor, explicitar seu
assunto, suas fontes e, lugar-comum dos prefácios, anunciar suas
dívidas para com o trabalho de seus antecessores.
O prefácio à segunda edição, datado de março de 1949,
pouco acrescenta ao primeiro, além do anúncio dos novos capí
tulos, da revisão do texto e dos agradecimentos de praxe. De
novo, há o anúncio da intenção de dar continuidade ao projeto,
com OrdemeProgresso eJazigos e Covas (nunca publicado) e, que é
o que mais interessa aqui, a admissão de um ponto de vista fran
camente inter ou multidisciplinar que caracteriza o método de
trabalho do sociólogo, permitindo-lhe o trânsito entre a histó
ria, a psicologia, a ecologia, a antropologia. E à introdução des
sa segunda edição que Freyre dedica toda a sua atenção e sua
importância, de certo modo, confirma as palavras de Hegel so
bre seus liames mais estreitos com a lógica da obra. Mas, sobre
ela, mais se falará mais adiante.
Antes, gostaria de comentar o prefácio de 1961, na sua in-
tersecção com seu presente histórico. Sem grandes novidades,
pois ali diz mais do mesmo, o prefácio, na verdade, repisa argu
mentos, mas introduz aquela idéia da revolução pela automa
ção, que mencionei antes, e o leitor não pode deixar de perce
ber o surgimento e a presença de um novo personagem na tra
ma das relações sociais: o operário, o trabalhador, o proletaria
do. Já não se trata, portanto, de discutir apenas os conteúdos do
livro, de esclarecer pontos quiçá obscuros ou mal-compreendi-
dos, mas de entabular uma conversa com o momento presente.
Esse diálogo passa, ao que tudo indica, pela convicção que atra
vessou os anos 50 de que os ventos da história sopravam em dire
ção à esquerda, pela vitória da Revolução Cubana, em 1959, e
pelos acontecimentos em curso no país, que, em outubro de
1960, havia elegido Jânio e Jango, uma esdrúxula combinação
de populismo e o que se acreditava ser a "encarnaçâo da Repú
blica sindicalista". Não deixa de ser uma resposta aos aconteci
mentos contemporâneos à escrita, o que sugere que os prefá
cios operam com isso uma atualização contínua da discussão e
dos conteúdos do livro.

A introdução à segunda edição (1949), por sua vez, enqua-


dra-se na definição hegeliana, pelo seu vínculo mais sistemático,
menos histórico, menos circunstancial com a lógicado limo. Entendida
dessa forma, lembramos, ela trata de problemas arquitetônicos ge
rais eessenciais e apresenta o conceito geral emsua divisão esua autodi-
ferenciação. Cumpre, portanto, essa função de mapeamento da
obra ao mesmo tempo em que, no caso de Gilberto Freyre, mis
tura recordações de natureza pessoal e comentários de ordem
geral. Para um autor tão interessado em construir uma história
da decadência do patriarcado rural, vista através da arquitetura,
nada parece mais adequado do que também nos introduzir a
sua "casa", expondo as fundações, andaimes e vigas de seu pen
samento e método nesse texto.

Embora guarde com os prefácios algumas semelhanças, pois


ali o autor também se defende de acusações e críticas, se explica
e se justifica, a introdução se distingue da outra matéria prefa
ciai não só pela sua extensão - 55 páginas - mas sobretudo pelo
empenho em explicitar critérios, argumentos e a armação geral
do livro. Nesse sentido, Freyre enfatiza a reconstituição e inter
pretação que realiza da sociedade brasileira através de seus tipos
de habitação, como emblemas de estilos diversos de vida, atra
vessados por questões de raça, classe e gênero.
Como elemento novo, nessa discussão, surge o registro das
diferenças regionais no Brasil que, entretanto, devido ao que
Gilberto Freyre chama de "complexo patriarcal brasileiro", le-
vam-no a estabelecer, pela primeira vez nesse conjunto de tex
tos, um jogo dialético entre regional e nacional, mostrando como
sua "hipótese de trabalho" não explica e interpreta apenas uma
parte do país, mas funciona para compreender seu todo, isto é,
como, por sobre a diversidade das economias regionais, é possí
vel "articular maior número de passados regionais num passado

/iWt
compreensivamente nacional". Opera, assim, por acréscimo às
idéias fundamentais do livro, desenvolvidas nos doze capítulos
que o compõem,"^ ligando-se organicamente a elas. Dessa forma,
são retomados e destacados temas que serão discutidos em pro
fundidade em cada um desses capítulos, como a confirmar essa
ligação orgânica: a situação das mulheres, relação entre pais e
filhos, bacharéis, mulatos, entre outros.
O prefácio tem, entre seus atributos, o de autorização de
um discurso, de uma fala. Se para o leitor comum ele funciona
como uma voz de autoridade, quando eles se multiplicam, como
é o caso dos de Gilberto Freyre, assumem também um caráter
polêmico, pois têm, interpostos, entre o autor e seus leitores,
seja a crítica como instituição, seja a categoria dos críticos, com
quem o autor entra em confronto, mesmo que sutil, implícito
ou indireto. Esses parecem ser, em última instância, os verdadei
ros alvos dessa profusão de suplementos.
Na introdução ã segunda edição, Freyre, sem dar nome aos
"censores ofendidos", deixa a sutileza de lado ao apresentar uma
fieira de preconceitos ("negrofilia", "lusofilia", "anti-Marxismo",
"burguesismo", etc.) de que foi acusado. Ao encerrar-se dessa
maneira uma das mais longas discussões de seus propósitos e
fundamentos, é difícil deixar de pensar que, no seu conjunto,
todos esses pré-textos são, no fundo, uma arma de que se vale
Freyre para fazer prevalecer seu ponto de vista.
Em seu Prefácio aos Prefácios, Gilberto Freyre descreve a si
mesmo como um "escritor literário" e externa seu inconformis-

^São dignas de nota as mudanças freqüentes operadas por Gilberto Freyre no


seu texto. Como ele mesmo aponta, em seu prefácio à segunda edição, "Além
dos acréscimos substanciais ao texto dos capítulos primitivos, repetimos que
muitas foram as notas acrescentadas ao ensaio que aparece agora em segunda
edição. E não apenas isto: aparece ele com cinco capítulos inteiramente no
vos: 'Ainda o Sobrado e o Mucambo'; 'Raça, Classe e Região'; 'O Oriente e o
Ocidente'; 'Animal, Escravo e Máquina'; 'Em torno de uma Sistemática da
Miscigenação no Brasil Patriarcal e Semipatriarcal'. Trata-se, portanto, de tra
balho de tal modo renovado que, sob alguns aspectos, é trabalho novo".
(Freyre, 1996, p. LIII).

/<iv
mo com "certos críticos brasileiros dominados pelo purismo be-"
letrístico" que, segundo ele, procuraram enxotá-lo da literatura.
Com isso, reivindica para si um lugar nas chamadas "belas-le-
tras". Ali, assim define a figura do prefaciador, estabelecendo
algumas diferenças entre esse e o escritor:

Um prefaciador, porém, se exprime, quase sempre, nos seus pre


fácios de modo diferente do que é nas suas outras formas de
expressão: com tendências mais a apolíneo que a de dionisíaco;
resguardando-se de excessosde paraninfo sem endurecer-se em
crítico puro e simples do prefaciado. Toda uma arte a que não
faltam sutilezas e particularidades. (Freyre, 1996, p. XXVII)

A pergunta que surge, evidentemente, é o que acontece


quando prefaciador e autor são uma única e mesma pessoa,
como é o caso de Sobrados e Mucambos. A resposta, se correta, é
interessante. Embora naquele conjunto de prefácios não fal
tem "sutilezas e particularidades", o prefaciador, talvez por for
ça das acusações de que se falou anteriormente, não se res
guarda exatamente dos "excessos de paraninfo" e, descartan
do uma atitude mais apolínea, assume, sem pudor, suas ten
dências dionisíacas.

Referências

DERRIDA, Jacques. Hors livre. Préfaces. In: . La Dissémination.


Paris: Éditions du Seuil, 1972. p. 9-67.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1994.
FONSECA, Edson Nery da. Prefácios desgarrados: 50 anos de prefácios
(1927-1977). Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1978. 2 v.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasi
leira sob o regime da economia patriarcal. 32. ed. Rio de Janeiro: Re-
cord, 1997.
. Sobrados e mucambos. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.

/<iV>
LEMAIRE, Ria. Prefácios de Iracema e Casa-Grande 8c Senzala. In:
AGUIAR, Flávio et al. (Org.). Gêneros defronteira: cruzamentos entre o
histórico e o literário. São Paulo: Xamâ, 1997. p. 127-138.
MITERRAND, Henri. La préface etses lois: avant-propos romantiques.
In: . Le discours du roman. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de
France, 1986. p. 21- 34.

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A construção cosmográfica
de uma paisagem social
f/âccfues'

O ensaio

A obra inteira de Gilberto Freyre pode ser apresentada como


um ensaio, no sentido retórico da palavra, quer dizer, como um
intento de convencer, o qual põe em jogo para esse propósito
um narrador, o mesmo Gilberto Freyre, e um leitor, convidado a
deixar-se convencer pela descrição, a deixar-se apaixonar pela
aventura do real, a ele narrada em modo romanesco, a deixar-se
maravilhar pela suüleza do espírito de quem generosamente lhe
oferece um triplo exercício do intelecto, da sensibilidade e da
imaginação. Todas as funções intelectuais estão despertas na lei
tura de qualquer texto de Freyre, e o autor espera do seu leitor
atenção e gratidão.
Os dispositivos de reconhecimento estão, porém, prefigura-
dos senão induzidos, pela sucessão dos prefácios e introduções,
sempre numerosos, que vão se multiplicando, ao passo que novas
edições aparecem, introduções essas que dão ao autor a possibili
dade de se perfilar no quadro do grande discurso intelectual in
ternacional. Assim, o volume que reiine uns quantos artigos sob o
título Problemas brasileiros de antropologia (1962) integra uma dedi
catória a E. E. Evans-Pritchard (Oxford), um prefácio do mesmo
autor para a terceira edição, um prefácio do professor Gonçalves
Fernandez para a segunda edição, um prefácio do autor para a
primeira edição mais uma inüodução à segunda.

Tradução de Sandra íalahy Pcsavento


Gilberto Freyre constrói assim a sua própria estátua de eru
dito envolvido num dialogo permanente com as figuras marcan
tes do primeiro mundo intelectual. No caso de Nordeste, na edi
ção da José Olympio, em 1961, o volume tem reproduzido o
prefácio da edição espanhola, o que não pode deixar de refor
çar, através da menção da tradução, a importância que o leitor
tem de se manifestar diante do livro que ele tem na mão.
A auto-afirmação do autor está, enfim, visualmente marca
da pela presença impressa de uma assinatura manuscrita do
mesmo autor no final do prefácio. Essas anotações formais subli
nham como o dispositivo textual e material do livro constrói,
para o leitor, um marco de leitura muito forte, o qual as estraté
gias de escritura reforçam através da inclusão do leitor no cora
ção mesmo do debate, assim como simboliza o uso por Freyre
da expressão "entre nós".
Agora, se por um lado, Freyre põe o seu leitor do seu lado,
ele se coloca a ele mesmo do lado do seu objeto. Por isso, ele
assina e põe como data de escritura o lugar mesmo sobre o qual
ele está escrevendo, "Engenho Queimadas, 1936", e depois com
pleta o seu relatório no terreno da investigação, datando o pre
facio da 3^ edição de "Santo Antônio de Apipucos", que é a Casa-
Grande da família dele, deixando finalmente o prefácio da tra
dução espanhola sem data nem referência de lugar, colocando a
ele mesmo, como autor, no não-lugar abstrato da intelectualida
de, lá nas nuvens da "freischwebende Intelligenz", da "intelectua
lidade sem vínculos", como dizia Karl Mannheim. Assim, não há
ruptura entre os três atores parceiros do ensaio: o mundo agrá
rio do Nordeste, Gilberto Freyre e o seu leitor.

As tensões ou o jogo das antíteses


Nordeste está construído sobre uma série de relações en
tre elementos pertencentes à especificidade ecológica da re
gião, a cana-de-açúcar, e ao que a história da região fez com
ela. Longe de ser um elemento puramente natural, a cana-de-

/<)ií
açúcar aparece principalmente como agente da História. Os.
homens do Nordeste foram modelados pela cana, assim como
ela se desenvolveu conforme as três figuras sócio-históricas: a
monocultura, a escravidão e o latifúndio. Poder-se-ia dizer que
o leitor está convidado a assistir a uma cosmogonia. A origem
deste mundo que nasce das características da terra, deste
rnassapê tão fértil para a cana, desta argila preta do Recônca
vo baiano e do Maranhão, ancora-se nas técnicas culturais li
gadas à escravidão e nas relações sociais e nos comportamen
tos pessoais que vão modelando os homens no espaço fecha
do do latifúndio.

Porém, o determinismo ecológico que se enraíza nos re


cursos da natureza põe em jogo o papel da ação humana. Além
das necessidades propriamente ecológicas ligadas às condições
naturais, aparece, pois, o papel da resposta do homem. Aqui, a
dialética cosmogõnica transforma-se num verdadeiro drama,
numa ação dramática, ligada ao fato do homem ter tomado a
decisão de se entregar à monocultura.
A questão da responsabilidade do fazendeiro está tratada
por Gilberto Freyre de modo bastante fino. Ele se refere ao pró
prio saber ecológico, como diz no texto: "a natureza se sabe pe
los estudos ecológicos..." (Freyre, 1961, p. 46). Fazendo isso, ele
tende a desculpar o fazendeiro de uma cegueira a qual só a ciên
cia moderna poderia evitar. No entanto, o sucesso da implanta
ção da cana produz um drama ecológico e humano.
O estatuto epistemológico da ecologia num ensaio princi
palmente voltado a problemas sociais tem, no entanto, que re
ter a nossa atenção. O mesmo Freyre dá a essa questão um esta
tuto metadiscursivo, por exemplo, quando ele comenta as suas
conclusões, dizendo: "E lição dos ecologistas, e não simples gri
tos de alarme dos sociólogos românticos" (Freyre, 1961, p. 50).
Esse apelo a um saber exterior ao campo sociológico ao
qual pertence o autor tem como finalidade garantir o texto de
Freyre contra os ataques dos sociólogos que fundamentam a sua
legitimidade em outras fontes. Veremos então, mais para frente.
como, epistemologicamente, o discurso ecológico encontra o
seu lugar na sociologia.
A técnica narrativa de Freyre procede por contrastes. Os
mesmos títulos dos capítulos são, a esse respeito, bastante cla
ros: "A cana e a terra", "A cana e a água", "A cana e a mata", "A
cana e os animais", "Á cana e o homem". Este último é o único a
ser repetido, já que está também utilizado como título da con
clusão. O sucesso obsessivo da cultura da cana, nome que vem se
repetindo como um leitmotiv, significa o perigo da repetição do
mesmo; ele antecipa a iminência da catástrofe devida ao desen
volvimento de um princípio antiecológico, o qual vai fazer com
que a paisagem seja destruída.
A relação pessoal que o índio e o agricultor português imi-
grado ainda tinham com a terra, nos primeiros tempos da colô
nia, ficava cada vez mais problemática na medida em que a mo
nocultura da cana crescia e ocupava todo o espaço. A repetição
da palavra "cana" age sobre o leitor à maneira de um martela-
mento de mau augúrio.
O capítulo dedicado ã oposição entre a cana e a mata expli
ca, com muitos detalhes, como a madeira preciosa, explorada e
exportada num primeiro momento, quer dizer, valorizada tanto
econômica como simbolicamente, virá a ser simplesmente ma
téria-prima, desqualificada, utilizada de maneira inútil. Freyre
(1961, p. 46) desenvolve o exemplo de "cercas enormes dividin
do um engenho do outro", feitas de madeira nobre e mesmo do
uso da madeira como lenha para os fogões do engenho. O modo
de exploração das riquezas naturais, o qual reconhecia ainda o
valor das madeiras dos primeiros tempos do desflorestamento
realizados pelosfranceses e portugueses, desaparece em provei
to de um desperdício generalizado de tudo o que não é a cana:
"Luxode privatismo. Vaidade de senhor de engenho patriarcal"
(Freyre, 1961, p. 46).
Uma paisagem caçaa outra. A diversidade da mata desapare
ce em proveito da uniformidade das ondas verdes da cana. Assim
como a terra, este massapê preto e profundo que tem uma fertili-

/(jí ——
dade que se impõe ao homem e à história, a cana vira, sob a escrita- .
ra de Freyre, personagem, e aindamais, elaviraum herói que Freyre
descreve com as palavras adequadas para descrever os atores políti
cos; "cana imperial", cana"todo-poderosa" (Freyre, 1961, p. 47).
Porém, essa destruição faz com que novos embelezamentos
apareçam, também dignos de interesse: a capela, a Casa-Grande, o
bote à vela, o cavalo de raça, paixões todas dos donos de engenho.
Eles dão um toque estético novo à paisagem fabricada pela cana.

A monocultura, a escravidão, o latifúndio - mas principalmente


a monocultura -, aqui é que abriram na vida, na paisagem e no
caráter da gente as feridas mais fundas. (Freyre, 1961, p. XII)

Um vitalismo hegeliano vibra no coração da descrição


freyreana. O romance da cana, o qual também é a tragédia da
cana, desenvolve-se em volta de várias séries de contrastes. Por
exemplo, o sucesso destruidor da cana faz com que homens e
valores novos venham a investir no Brasil. Freyre toma o exem
plo de Maurício de Nassau, da imigraçãojudaica e dos franceses
e ingleses que virão ao Brasil, levando consigo os seus costumes
e os seus valores técnicos e culturais. Eles todos revitalizarão a
cultura decadente da cana. Porém, essas contribuições não im
pedirão um movimento duplo; de um lado a produção de cana
se voltara cada dia mais para o comércio do açúcar, induzindo
uma decadência das práticas culturais como do ethosdos donos
de engenho. Por outra parte, esses valores todos que vêm com
os navios, foram cada vez mais rapidamente alterados pelo meio
de onde chegavam e onde eles não facilmente encontravam as
condições da sua sobrevivência, por causa da lógica própria do
mundo ligado à monocultura da cana.

Mas convém não esquecer, por outro lado, que toda essa seleção
regional de valores humanos, de valores de cultura, se fez dentro
de condições econômicas e sociais que deformaram, ou pelo me
nos afetaram esses mesmos valores num sentido único e mórbido
a monocultura latifundiária e escravocrata. (Freyre, 1961, p. 162)

/()ã
Se bem que seja legítimo referir-se aqui à filosofia hegeliana,
isso se dá porque, apesar da seriedade crítica que Freyre está mani
festando na sua análise, ele não se afasta de um relativismo certo,
•segundo o qual o real é o verdadeiro. Por isso, ele não condena
esse mundo, mesmo quando ele corre, por si só, para a catástrofe.
O romance da catástrofe articula-se, no entanto, de umjei-
to diferente daquele que organiza a resolução das alternativas
contrastadas dos primeiros capítulos do livro. Na sua conclusão,
Freyre deixa aparecer um mecanismo que vai substituir aquele
utilizado na descrição do universo fechado do Nordeste.
Após ter nomeado todos os heróis locais do mundo dos
canaviais, heróis do conformismo como da rebelião, membros
todos da aristocracia local do engenho, Gilberto Freyre se dis
tancia de repente para ganhar um ponto de vista mais amplo a
partir do qual ele terá a possibilidade de pôr a ênfase no rol
histórico quejogará as três culturas estrangeiras que são ajudia,
a inglesa e a francesa.
Porém, para demonstrar a possibilidade mesma de tal in
fluência, o próprio Freyre devia afastar-se do horizonte limitado
dos canaviais para deixar entrar na paisagem nordestina os por
tos e o mundo europeu, para deixar entrar na imagem, os na
vios e o Atlântico esquecidos, ou, melhor dito, fora do padrão. E
a partir dessa nova e mais ampla perspectiva é que poderá cons
truir-se uma nova dialética e uma oposição pertinente entre o
porto e o interior das terras, entre o comércio do açúcar e a
produção da cana. Essa nova dialética ameaça, no entanto a coe
são do livro, razão pela qual Freyre apenas a indica levemente
nas últimas linhas do livro.

A paisagem, uma categoria totalizante


Eu gostaria primeiro de fazer algumas considerações a res
peito da dedicatória do livro: "A Pedro Paranhos, Antiógenes
Chaves e Luiz Cedro e também a Cícero Dias, grande pintor dos
canaviais do Nordeste..." (Freyre, 1961).
É significativo que, nessa dedicatória, aparece, num lugar -
apontado pelo "e também", o nome do pintor Cícero Dias, aliás
apresentado expressis verbis como pintor. Ele confere a este en
saio "de estudo ecológico" do Nordeste brasileiro uma dimen
são estética destacada para o leitor pela dedicatória tanto notá
vel quanto inusitada.
Gilberto Freyre sublinha dois processos distintos e con
correntes: a destruição da paisagem existente e a produção de
uma outra. A cana, aquela que destrói a harmonia da diversi
dade ecológica e Cícero Dias, aquele pintor que constrói uma
paisagem nova a partir da realidade produzida pelo processo
devorador. O tempo cego da historia destrói o que ele tem cria
do, tal como no mito, Cronos come os seus filhos, mas Zeus e e
os novos deuses que o acompanham no Panteon moderno mo
vimentam a roda do tempo, a qual dá nascimento ã nova paisa
gem. Cícero Dias é o artista, criador de mundo, que acompa
nha esta história nova.

E preciso entender aqui a palavra paisagem no sentido am


plo que ele tem na obra do mesmo Cícero, ou na obra de Lau,
quer dizer, o sentido de uma paisagem habitada. A destruição
da mata originaria implica, é óbvio, a presença do homem, e
esta marca, como na obra destes artistas, a forma da representa
ção. Melhor se entende, pois, o que significa a denegação do
próprio Freyre quando ele fala dos "sociólogos românticos". Na
tradição romântica existe uma natureza sem homens, pura, ge
nuína. O desenvolvimento da monocultura fezcom que essana
turezadesaparecesse, colocando na paisagem asfiguras que pin
tam Dias e Lau.

A noção de paisagem, que Freyre tenta impor como um ver


dadeiro conceito, ocupa umlugar importante desde o prefácio que
Freyre coloca na segunda edição de Nordeste. O primeiro sintoma
dessa importânciase encontra na maneira como, repetídamente, o
autor qualifica o seu trabalho de "impressionista". Essa palavi-ajoga,
evidentemente, com as conotações pictóricas. Freyre coloca a si
mesmo na tradição da paisagem sensível, aquela que vai de Manet,
que viajou ao Brasil, a Monet, onde se encontra a apoteose da pai-

/97
sagem: "é principalmente como ensaio quase impressionista que
NordesteáevG ser lido. Que NordesteáQVQ ser aceito."
É preciso náo acreditar quea palavra "impressionista" pos
sa ser colocada nesse contexto como uma desculpa, de modo
sutíl e modesto de relativizar a ambição científica do livro. Pelo
contrário. Gilberto Freyre cuidadosamente precisa:

Uma aventura de impressionismo a seu modo ecológico em que


estatísticas e números foram quase esquecidos para que as for
mas da região emergissem de seu passado turvo e de sua confu
são atual, mais sentidas, vistas e, até certo ponto, compreendidas
e interpretadas pelo autor, do que descritas e medidas por ele
dentro de rigorosa objetividade biométrica ou estatística. (Freyre,
1961, p. XVIII)

O leitor se dá conta de que tem aqui muito mais do que


uma desculpa. Trata-se bem mais de uma reivindicação, de um
manifesto epistemológico onde uma visão objetivista do homem
e das ciências sociais se opõe a outra que se poderia chamar de
"empática", onde se trata não só de levar a cabo uma fenomeno-
logia do Nordeste, senão de fazer com que essa mesma falasse
tanto aos sentidos quanto ao entendimento. Daí a importância
que Freyre põe no sentir e no olhar. Daí também a importância
do conceito da paisagem, o qual assume a qualidade sensível
exigida do olhar sociográfico.
Freyre dá logo um exemplo de como essa noção da paisa
gem pode voltar a ser um conceito. No prefácio mesmo, Freyre
faz uma homenagem forte ao ilustrador M. Bandeira:

As ilustrações admiráveis feitas por M. Bandeira, segundo suges


tões do autor, para a primeira edição - inclusive o "triângulo ru
ral", simbólico do Nordeste monocultural e de sua ecologia —
foram quase todas repetidas. (Freyre, I96I)

Essa homenagem é tanto mais importante quando, nesta


edição, Freyre anuncia que a documentação fotográfica foi eli-
minada em proveito de um volume separado especialmente de
dicado à iconografia, aquela que deverá fazer sentido para a obra
toda do escritor. O desenho do "triângulo rural" virá a ser mais
que um desenho, um esquema visual que, na sua estrutura, reve
la o que o Freyre desenvolve na sua análise: saber como se arti
culam os diferentes elementos determinantes da sociedade pro
duzida pelo cultivo da cana,
O esquema do triângulo permite compreender o que
Freyre descreve, num outro lugar, como a metáfora da malha,
imagem emprestada de Braudel, a qual oferece uma figura do
sistema de inter-relações e interdependências que remete à rede
metafórica do tecido e do ponto de meia. Desde o prefácio
que ele redige, nesse mesmo ano de 1943 para a edição espa
nhola de Nordeste, Freyre se refere também a um geógrafo nor
te-americano, Carl O. Sauer, autor de Uma morfologia da paisa
gem. Ele cita Sauer assim:

Sauer afirma da "melhor geografia" o que poderia dizer da "me


lhor sociologia" regional ou ecológica: que nunca despreza as
"qualidades" de uma paisagem, receosa de deixar o objetivismo.
E lembra Humboldt e sua "fisionomia", Bolz e seu "ritmo", Grad-
mann e sua "harmonia": fisionomia, ritmo, harmonia da paisa
gem. Nesse modo de procurarem alguns ecologistas interpretar
paisagens ou conjuntos regionais de natureza e cultura, há arte e
pode haver ate poesia e filosofia. (Freyre, 1961, p. XXI)

Sem dúvida, a noção de paisagem entra, para Freyre, numa


rede ou dispositivo ecológico ligado à noção de "região". Freyre
explica que prefere essa noção ecológica de região a conceitos
sociológicos que, no Brasil, ou seja, em particular no Nordeste,
ficam ainda abstratos. Contra os seusoponentes da esquerda, os
quais o censuram de preferir essa noção à da luta de classe, mas
também contra os da direita, os quais o censuram de haver aban
donado a noção não-sagrada de pátria, Freyre afirma que prefe
re ao objetivismo sociológico a noção de paisagem, na qual as
qualidades e os valores têm um espaço, qualidades aquelas que
participam da construção das entidades ecológicas, naturais e
humanas. A paisagem deixa de facto de ser um conceito geral,
naturalista, para tornar-se o conceito de um conjunto limitado,
ecológico, sistema de inter-relações entre a dinâmica natural e a
práxis humana. A paisagem é o resultado dessas dinâmicas e,
por conseqüência, ela deve ser entendida como um conceito
propriamente sociológico.
Não escapa a ninguém, entretanto, que uma paisagem é
um conjunto, visto sob um certo ponto de vista. Como nós tí
nhamos visto anteriormente, o paisagista Gilberto Freyre abre
ao olhar, mas somente na sua conclusão, um ponto de fuga que
não tinha tomado por horizonte durante toda a obra: o mar.
Passando do mar ondulante da cana-de-açúcar, aquele que traz
nos seus flancos os navios carregados de açúcar, o sociólogo pai
sagista tem em vista uma realidade estéüca, econômica, ecológi
ca e humana de traços profundamente diferentes.
A questão sobre a qual eu gostaria de concluir estas observa
ções seria então a seguinte: da mesma maneira que o artista deve
escolher seu ponto de vista quando ele realiza uma descrição, o
sociólogo está condenado, como Cícero Dias, Lau ou Max Weber,
a desenhar seu objeto sob o ângulo do tipo ideal? E isso que signi
fica a homenagem prestada ao desenhista M. Bandeira, que ilus
trou o "triângulo rural do Nordeste", seguindo fielmente os con
selhos do sociólogo? E para acabar, ainda esta interrogação: a que
se assemelharia um quadro pintado por um sociólogo respeitoso
de todas as reciprocidades de perspectivas que atravessam o cam
po paisagístico do Nordeste, com seus verdes e seus azuis, ultraca-
na e ultramar: a um Picasso da época cubista?

Referências

FREYRE, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.


. Problemas brasileiros de antropologia. Rio de Janeiro: José Olym
pio, 1962.

^oo
A paisagem social
como imaginário de sentido
Sanc/ra^fa/i^ S^saoenfo

Sobrados e Mucambos, a segunda grande obra de Gilberto


Freyre, publicada pela primeira vez em 1936, tem, como uma de
suas principais reflexões, a introdução do conceito de "paisa
gem social", com o que o autor pretende dar conta do processo
de transformação, ao mesmo tempo econômica, social, política
e cultural, atravessado pelo Brasil durante os séculos XVTII e XIX.
Freyre associa esse processo com o declínio do patriarcado
rural, sistema social de dominação responsável pelo que chama
de "paisagem do Brasil colônia". Nessa medida, Gilberto Freyre
se propõe analisar em sua obra um processo de mudança em
curso, marcado por transformações gradativas, por tensões e ajus
tamentos, por permanências e rupturas que acabaram por rede
finir a tal paisagem joda/brasileira.
Ora, Freyre não define formalmente esse conceito, caben
do ao leitor construí-lo, ao perseguir a aplicação do mesmo pelo
autor na sua análise.

Parece claro que, para Gilberto Freyre, não se trata de en


focar a paisagem como uma construção estética ou sensível de
apreensão do mundo, que se expressa pela literatura ou pela
pintura, como uma espécie de espetáculo, que é dado a ver ou
ler e que se oferece à fruição do observador, que se coloca desde
fora deste contexto.

Entretanto, a entrada da análise freyriana nesse campo de


abordagem parece obedecer também àquele princípio básico
que preside o ato inaugural de construção de uma paisagem:
há uma separação inicial entre o homem e a natureza. Esse ato
de separação possibilita, pelo distanciamento realizado, uma
representação da mesma natureza pelo olhar daquele que a
contempla.
Essa natureza é tomada como objeto e o homem que dela
se apropria é alguém diferenciado, tanto por ser portador de
uma particular sensibilidade quanto por seu estranhamento ao
meio contemplado. E o homem culto e sensível aquele que ob
serva, que recorta, que organiza e que explicita a remontagem
da natureza, redimensionada pelo olhar.
O nascimento da paisagem é, pois, um ato cultural, de apro
priação da natureza e de reconstrução desta por este autor que
se situa na exterioridade do objeto, mas que por ele se sente
tocado na sua sensibilidade.
Pensamos, ainda, que Gilberto Freyre realiza, ao conceber
a paisagem social como uma categoria de análise, o exercício
intelectual de uma distância de olhar sobre o vivido. Gilberto
Freyre, o sociólogo brasileiro saído do Nordeste, filho de uma
elite regional, depois de estudar no estrangeiro, volta a este pe
daço do Brasil para fazer dele seu objeto, para construí-lo como
uma paisagem social que dá a ver aos leitores. Ele se coloca como
o intelectual que se afastou do seu meio para melhor compreen
dê-lo, que vivenciou a experiência do estranhamento.
Mas, se Gilberto Freyre trabalha com o conceito de uma
paisagem social, isso eqüivale dizer que acentua o caráter da in
tervenção humana sobre a natureza, ou sobre o trabalho coleti
vo de transformação e adaptação ao meio. Quando se pensa o
conceito de paisagem como uma construção imaginária de sen
tido, coloca-se o destaque sobre a produção dessa imagem ou
narrativa da natureza que se dá a partir do olhar qualificado.
Olhar este provindo de um homem culto, sensível e externo ao
objeto de sua contemplação.
A construção da paisagem é tanto narrativa quanto ima
gem que se oferece a ler e é dada a ver. Nesse sentido, o conceito
de paisagem remete ainda à recepção, ou o sentimento que se
espera obter do leitor/espectador diante da paisagem que se
expõe. A paisagem é tanto fruição do mundo quanto forma de
apreensão ou conhecimento do real, orientando a percepção
desta realidade e a sua apreciação, qualificada.
Mas, com o conceito da paisagem social, o homem, de pro
dutor ou consumidor da paisagem, torna-se parte ativa desta,
como personagem que interage e transforma a naturezajunto a
qual está. O destaque é colocado, pois, sobre a interação social
que modifica uma determinada paisagem natural, ou ainda so
bre o significado das relações sociais que provocam essa mudan
ça e mesmo sobre as representações construídas e partilhadas
sobre essa intervenção humana no espaço.
Nessa medida, podemos também dizer que o conceito de
paisagem social de Freyre é historicizado: ele pensa a mudança
do espaço no tempo, o que permite que ele balize o processo de
transformações em curso a partir de uma atribuição de sentidos
partilhada e datada, ou ainda segundo um conjunto de referên
cias socializadas.

É por este viés que a paisagem social se constitui, para Gil


berto Freyre, em uma categoria para interrogar o mundo e que
possibilita uma leitura sobre a realidade. Trata-se, verdadeira
mente, da utilização de um conceito, ou seja, de uma constru
ção teórica que instrumentaliza a decifração do real e que ele
propõe como válida para a interpretação do Brasil.
Mas, essa seria uma modalidade de leitura sensível do real,
com o que a análise sociológica de Freyre passa a partilhar, com
a estética, deste poder de despertar e captar emoções e sensi
bilidades.

Pode-se mesmo dizer que Gilberto Freyre tem, para com o


seu objeto, uma relação de natureza estética: ele busca resgatar
as sensibilidades finas de uma época, que nortearam uma certa
relação entre o homem e a terra e também a trama das relações
sociais que aí se construiu, tentando chegar aos valores e aos
parâmetros do gosto de um determinado tempo e espaço.
Por um outro lado, a escrita de Freyre atinge dimensões
quase pictóricas, fazendo com que a narrativa dê a ver uma ima
gem precisa do contexto enfocado, tal como as ilustrações apre
sentadas na obra dão a ler, por seu turno, uma paisagem social.
Intelectual de vanguarda para o seu tempo, Gilberto Freyre
é um homem de ciência que estuda as sensibilidades, é um pen
sador que cruza o saber científico com uma postura estética, en
dossando uma postura extremamente avançada para sua época.
Em síntese, na sua abordagem da paisagem social, Freyre
revela uma articulação bem precisa entre natureza e cultura, que
se manifesta na realização histórica da formação brasileira. E ain
da nessa medida que a formulação, pelo autor, de conceitos ou
instrumentos de análise se aproxima daquele sentido comum
da paisagem, que a faz um pedaço da natureza organizado pelo
olhar. Gilberto Freyre estabelece com o leitor como que um exer
cício do olhar, guiando a percepção e a apreciação.
É a partir de uma primeirae continuada indagação - como
se constituiu o mundo português nos trópicos -, questão perse
guida pelo autor em Casa-Grande & Senzala, que tem desdobra
mento e continuidade a análise de Gilberto Freyre para inter
pretar e reordenar a realidade brasileira, na obra subseqüente.
Sobrados e Mucambos.

Mas o que seria, na prática da escrita e da interpretação do


real, a paisagem social para Freyre, como ferramenta intelectual
ou, ainda como representação construída para indagar o mun
do? Quer parecer que o autor elabora um conceito no qual se
integram e articulam as dimensões da materialidade, da sociabi-
lidade e da sensibilidade para conferir sentido ao real.
Principiemos por decompor esse conceito, tal como o visua
lizamos, tomando por primeiro a dimensão da materialidade.
Gilberto Freire inova no campo das ciências humanas brasilei
ras - e mesmo para além dos marcos do nacional, poderíamos
dizer —quando chama a atenção para as condições topográficas
e ecológicas que influenciam e marcam profundamente a cons
trução da vida social.
Ao estudar uma paisagem social que é mutante, em seu mo
mento de transformação na história, Gilberto Freyre mostra como
esta materialidade, expressa pelo habitai, é algo híbrido em ter
mos culturais: por um lado, é portadora de elementos arcaicos,
específicos a uma certa articulação do homem com a natureza,
que se dava sob a égide do rural. Mas, por outro, comporta igual
mente os novos elementos que se introduzem, ditados pela emer
gência do fenômeno urbano.
A emergência da cidade, como espaço de revelação dessa
materialidade híbrida e cambiante é, pois, um elemento deci
sivo, pois implica uma ruptura do equilíbrio ecológico existen
te entre o homem e o meio ambiente, e o obriga a uma nova
combinação.
Por exemplo, diz ele, foram as especialíssimas condições do
Recife, esta espécie de ilha-cidade, com espaço físico exíguo e
terrenos estreitos, que indicaram o caminho da verücalidade para
a construção dos primeiros sobrados. Essas ilhas que formavam
uma cidade, configurando um espaço físico que se assemelhava
ao da Holanda, situavam-se em uma região que, não por acaso,
sofreu a dominação holandesa por três décadas.
Ora, para o autor Gilberto Freyre, essa configuração parti
cular do espaço foi responsável, em parte, pela sua transforma
ção em lugar, ou seja, uma parte do território dotada de um sen
tido e de um reconhecimento. Recife foi diferente diante do
Brasil rural, e nele se realizou uma iniciativa pioneira de urba
nismo, radicalmente distinta do que havia na paisagem social da
colônia neste momento.

Nessa medida, Gilberto Freyre destaca ter sido a experiên


cia holandesa no Recife uma aventura de libeidade. Ou seja.
Recife teria se aberto ao mundo para além dos estreitos limi
tes do colonialismo, teria entrado em contato com a cultura
universal do mundo de sua época. Uma forma de interlocu-
ção cultural, racial e mesmo material teria se esboçado: os
esplendores de uma verdadeira vida citadina compareciam na
paisagem pernambucana, com o seu movimentado porto.
pondo em diálogo as formas das altas e estreitas casas da Ho
landa com os não menos altos e estreitos sobrados do Recife.
Mas as correspondências também se davam no tocante às mi
sérias de uma grande cidade, com seus cortiços, bordéis e ta-
vernas, por onde circulavam ladrões, assassinos e prostitutas.
E, além de tudo, os contatos deixavam o legado genético de
olhos azuis em corpos morenos, fruto do intercurso sexual.
Tudo isso pôs, de forma pioneira, Pernambuco em contato
com o universal de seu tempo e oportunizou uma experiên
cia de diferenciação avant Ia lettre.
Quer parecer que o autor buscou destacar a precocidade
da experiência brasileira, ou mesmo a atualização do seu tempo
histórico com a cultura universal. Correspondência e interlocu-
ção, por um lado, e originalidade de maneira de ser, por outro,
com o que a civilização e a paisagem social brasileira se estrutu
ravam com um pé no universal e outro no local.
Mas a materialidade, este componente do conceito de pai
sagem social utilizado por Gilberto Freyre, não se esgota na re
velação das condições topográficas e ecológicas do meio natu
ral. O autor chama a atenção, de modo especial, para a arquite
tura como materialidade portadora do social, como um espaço
construído dotado de significados.
Essa idéia, a rigor, percorre toda sua análise: a casa é uma
expressão do meio e da apropriação deste pelo homem; habitar
é expor a natureza e a cultura; é dar a ver sociabilidades e sensi
bilidades de um contexto histórico dado.

Para Freyre, é a casa, o sobrado, tal como o foi a casa-gran


de, uma espécie de microcosmo que dá a ver o espectro mais
amplo das relações sociais e de poder que se tecem pelos dife
rentes grupos que se enfrentam e que, sobretudo, articulam for
mas de coexistência na via de todos os dias.
Insiste a visão freyriana nesta questão definidora do social:
tanto as condições do meio e da natureza quanto as construções
materiais do homem são carregadas de sentido. Elas se dão a ler,
como um livro. Nesse sentido, certas intuições de Freyre encon-

'J06'
tram uma certa correspondência com as considerações de Paul
Ricoeur (1998) a respeito da arquitetura e da narratividade.
Para esse autor, a arquitetura está para o espaço tal como a
narrativa está para o tempo: edificar, construir uma materialidade
em um determinado espaço é como contar, articular uma intriga
no tempo. Em ambos, podem ser surpreendidas as operações de
recriação, do espaço e do tempo, de uma mise en intrigue, da con
figuração de uma inteligibilidade e da realização de uma intertex-
tualidade: figurações de tempo e espaço podem ser postas em
confronto, compondo analogias, composições e oposições.
O sobrado é, pois, a materialidade central'desta nova paisa
gem social que se impõe nas cidades brasileiras. No tocante à
forma da construção, a verticalidade do sobrado indica a ten
dência das construções urbanas: o que se perde em superfície
no solo, se ganha em altura, com prédios de dois a quatro anda
res, em geral, chegando, no Recife, a atingirem cinco ou seis.
Mas se, nos seus primórdios pernambucanos, o surgimento
do sobrado foi saudado pelo autor como ícone de pioneirismo
urbano, a sua difusão nas cidades brasileiras implicou mais em
perdas do que ganhos. Tais perdas se situaram, sobretudo, no
que dizia respeito à adequação do homem à natureza.
Mesmo que tenha sido, enquanto construção em meio ur
bano, a saída possível - o crescimento para cima —o sobrado
marcara um afastamento do homem da natureza e uma ruptura
de equilíbrio.
Houvera uma quebra de harmonia ecológica, com eviden
te distanciamento entre a habitação e o meio. Escuro, mal venti
lado, fechado para a rua, o sobrado não era adaptado a um meio
tropical. Nesse sentido, diante do alto e magro sobrado, ou mes
mo das casas assobradadas, de meio andar, a casa-grande de en
genho, espalhada, baixa, com as suas varandas na proximidade
da vegetação, saía ganhando em qualidade de vida.
A casa-grande seria aquela que colocaria o homem em me
lhor sintonia com seu meio ambiente, seria, enfim, uma cons-

207
trução mais autêntica, por próxima da natureza. É possível afir
mar, nesse sentido, que flui, do texto do autor, uma espécie de
nostalgia ou saudosismo do engenho... O altaneiro sobrado,
como elemento central a compor a paisagem urbana brasileira,
consagrava o mau viver.
Por outro lado, o sobrado das cidades, degradado, degenera
em cortiço, esta habitação coletiva popular que se tornou um íco
ne das más condições de vida das camadas trabalhadoras urbanas.
Estas habitam também, se melhor posicionadas, social e economi
camente, as casas deporia ejanela, também quase tão deploráveis
em termos de higiene e bem-estar quanto os cortiços.
Diante dos ricos dos sobrados ou dos populares habitantes
dos cortiços e das casas modestas, Gilberto Freyre defende a adap
tação ecológica presente nos mocambos. Os mocambos são, por
certo, o habitai dos desfavorecidos, situados na periferia dos cen
tros urbanos do Nordeste, mas constituem, segundo Freyre, for
mas de casas integradas ao meio ambiente, abertas, arejadas, sen
do empregado na sua construção o savoir-faire dos indígenas e
dos africanos... Elas seriam equilibradas e perfeitamente inte
gradas às condições tropicais da terra, como um habitai à parte,
preservado das más condições de vida urbana.
Tem-se, na visão freyriana, através desses elementos do es
paço construído, a constituição de uma paisagem social urbana
opressora, que compõe o quadro da chamada cidade colonial.
Mesmo que essa paisagem se realize fora do período colonial
propriamente dito —ela tem por centro a cidade que seria ana-
tematizada no final do século XIX.

Cidades feias, sujas, escuras, apertadas, sem plano ou traça


das de forma irregular, ocupadas ao acaso, confusas, tortuosas,
com seus becos estreitos e seus imundos cortiços, elas foram alvo
de acirrados debates e violentos ataques por parte de um nova
elite urbana, interessada em implantar no país a cidade moder
na, ordenada, higiênica, bela, tecnicamente resolvida.
De uma certa forma, guardadas as proporções, a cidade de
Gilberto Freyre dialoga e troca sinais com as cidades européias
de antes das reformas urbanas do século XIX, enquanto alvo de
ataque de pensamentos progressistas. A cidade colonial é, no
caso, a contrapartida da cidade européia de talhe ainda medie
val, destinada a ser superada pelas propostas de modernidade
urbana que propõem uma nova paisagem social.
A paisagem social é também, como o nome indica, intera
ção. Éhumanização de umhorizonte, é natureza perpassada pela
ação do homem. E contato, troca, simbiose, enfrentamento, aco
modação, sociabilidade, enfim.
E com a cidade, produto do social, afirmação de uma hu
manidade que busca dominar a natureza, que se tem uma modi
ficação da paisagem, dada não somente pela transformação do
espaço e do meio como pela diversificação e proliferação das
relações sociais.
Aqui, mais uma vez Gilberto Freyre inova com sua obra e,
também em certa medida, se distancia da análise de outros au
tores, como Sérgio Buarque de Holanda. Se Sérgio Buarque,
em Raízes do Brasil (1961), contrasta o perfil lusitano agrário -
o semeador- com o do /arfn/Aarfor espanhol, construtor de cida
des, dando pouca atenção ao elemento urbano nos quadros da
colonização lusitana na América, a posição de Gilberto Freyre
é bem outra.

Freyre chamajustamente a atenção para a vida em cidades


e para a importância do fenômeno urbano no Brasil, proporcio
nando o contato humano mais intenso, acentuando a convivia-
bilidade, alterando os costumes, projetando novos personagens,
transformando o habitai e os costumes.

Quando passa a trabalhar a paisagem social urbana sob o


ângulo da sociabilidade, Gilberto Freyre destaca a sua íntima
conexão com as alterações que se procedem no espaço construí
do. O Brasil que se dá a ver altera-se, mas não sem traumas nem
de forma linear.

Como a primeira das tensões produzidas pela nova paisa


gem social no campo das sociabilidades, o autor nos apresenta a

SOtJ
emergência das cidades como que a inverter o processo históri
co em curso. O patriarcalismo urbaniza-se, passando as elites a
viverem na urbe, o que implica uma transição de espacialidade.
A cidade é o seu novo território de poder e, da casa-grande
ao sobrado ou à casa assobradada, fica marcado, sem dúvida,
um recuo com relação ao rural. Mas a alteração da paisagem
social proporcionada pela emergência da cidade vai mais longe.
Mesmo que a primeira batalha já se apresente como uma parti
da ganha —a ocupação, pelas elites, de um novo espaço -, a urbe
irá, com o tempo, subordinar o rur.
A segunda frente de conflito e de alteração se dará no
embate da casa com a rua, ou seja, entre espaços construídos
e ocupados, ou ainda entre frações de paisagem social que
alteram posições e sentidos. Gilberto Freyre afirmara que, en
quanto a aristocracia patriarcal rural se urbanizava, a rua, in
versamente, aristocratizava-se: de espaço dos pobres, dos es
cravos e moleques, passara a ser freqüentada pelos homens
de bem e pelas famílias.
Há, pois, uma nova sociabilidade que transforma a vida,
com novas práticas e também novos atores. O hábito de sair à
rua, antes vedado absolutamente às mulheres e mesmo evitado
pelos homens, por princípio de distinção, preguiça ou calor, al-
tera-se, pois a rua é o espaço do negócio, da festa, da novidade,
de uma outra forma de relacionamento social.

Gilberto Freyre acentua bem quem são os promotores des


te impulso que vai do espaço privado ao público: são todos ele
mentos de dentro da mesma estrutura patriarcal, ou que atuam
em paralelo a essa: a mulher, sinhá e sinhazinha, agentes da
civilização européia e da aristocratização que, desde a casa,
anseiam pela rua.
São ainda os negros dos serviços de rua, a tentar, com sua
vida mais livre, aqueles que são escravos de portas adentro; os
mascates e os gnngosáo muito antigo comércio ambulante que,
cada vez mais, trazem o mundo de fora para dentro da casa; as
novas gerações dos filhos de fazendeiros, mostrando, com seus

3/o
doutores e bacharéis, que os senhores de engenho produziam
homens de cidade.

Com tais indicações, Freyre nos introduz em uma terceira


frente de conflito, que é a do enfrentamento desses atores so
ciais.

Ora, essa nova sociabilidade traz, pois, esta importante


alteração na paisagem social: a casa - o sobrado - perde em
complexidade social para a rua. E o espaço público que os
tenta uma face mais radical de transformação. Os antagonis
mos se exteriorizam com mais força, seja entre o padrão eu
ropeu que avança - ou se reinstala, conforme o ponto de vis
ta - e as realidades locais, mestiças; entre a miséria que apare
ce mais exposta e a riqueza que busca a ostentação; entre se
nhores de engenho que se endividam com os comerciantes;
entre estes e seus caixeiros.

As sociabilidades que gravitam em torno do sobrado e da


rua são sintomas de uma nítida mudança, pois essa paisagem
social temperada pelo urbano comporta, mais do que a ante
rior, uma maior mobilidade social, rompendo hierarquias e apre
sentando-se com um contorno impreciso e mutável.
Os caixeiros, por exemplo, tal como os mulatos, pequenos
funcionários públicos, são como que personagens de tipo bas-
culante neste mundo novo: mesmo sendo subalternos, acabam
muitas vezes por subir na vida, mediante o casamento com filhas
de boa família. Trata-sede um forte abalo na pretensa linhagem
desta elite miscigenada, conforme Gilberto Freyre Já assinalara
em Casa-Grande & Senzala.

Se o sobrado faz recuar o excesso de privatismo da casa-


grande, o mundo patriarcal assombra ainda o padrão urbano
emergente. O padrão senhorial invade o burguês, para que fi
que evidente que a mudança de espaços e de sociabilidades não
quer dizer morte absoluta de antigos valores. Avida urbana, por
sua vez, continua ainda a viver, por certo tempo, à sombra de
um poder rural que não se apagou.

•>//
Apesar do processo em curso compor-se desta forma ambi
valente, Gilberto Freyre mais uma vez deixa passar uma espécie
de nostalgia do engenho...
Sim, a cidade potencializa os conflitos, mas parece estar,
implícita, a idéia de que a casa-grande compunha uma certa har
monia com a senzala, postura esta que seria sobejamente critica
da nos meios acadêmicos. Por exemplo, Freyre chega a afirmar
que o escravo de engenho — mas também o do sobrado - era
bem nutrido, muito mais que operários ou camponeses euro
peus da sua época, fazendo suas as apreciações de alguns visitan
tes estrangeiros ao Brasil...
E nessa dimensão das sociabilidades renovadas, que se exte-
rioriza este caráter sui generis da paisagem social brasileira, com
pondo o traço que individualiza a análise freyriana; a mestiçagem.
Gilberto Freyre faz da cidade o palco de exibição, ou o
lócus privilegiado para a realização desta faceta identitária do
Brasil: a idéia da mestiçagem não só como valor positivo, Já
anunciado em Casa-Grande & Senzala, mas como elemento de
reconhecimento para a individualidade brasileira e de produ
ção de um novo. Essa sociabilidade mestiça compõe algo dis
tinto dos seus elementos formadores; ela não é somente dife
rente como é original Ao longo de toda sua reflexão sobre a
paisagem social brasileira, Freyre está a dizer, continuamente,
que ali se encontra uma nova maneira de ser, uma nova forma
sensível de reconhecimento.

Por último, cabe destacarque este conceito de paisagem so


cialapresentado por Gilberto Freyre é, sobretudo, a exposição
de uma nova sensibilidade. E, sob este aspecto, Freyre é, mais
uma vez, inovador. Na nova paisagem social que se delineia a
partir da transformação que ocorre no Brasil em torno da cida
de, novos valores e formas sensíveis de expressar o mundo se.
manifestam, e isso se dá em todos os planos, que percorrem o
social de ponta a ponta.
Homens e mulheres são produtos sociais, são construções
objetivadas de uma concepção imaginária do mundo, que osfaz

2
endossarem valores e atitudes de ser, visando o reconhecimento
de um parecer sancionado. Na transição do regime patriarcal
da casa-grande para o sobrado, ou do patriarcalismo do enge
nho para o semipatriarcalismo,já burguês,do sobrado, Gilberto
Freyre procura mostrar a suigeneris combinação das novas sensi
bilidades com asantigas.A casa-grandeinvade o sobrado com os
seus valores, e toda a mudança que se processa arrasta consigo
os velhos fantasmas das épocas passadas.
Uma das sensibilidades que contribuem para delinear a es
pecificidade desta "maneira brasileira de ser" nas novas condi
ções históricas é a atitude com relação ao poder.
Em uma certa medida, quer parecer que a presença do Rei
no Brasil, a partir da vinda da Família Real, dera margem à pro
dução de uma atitude ambivalente, de sacralização e dessacrali-
zação frente ao poder.
Ora, a proximidade da figura real, a estruturação de uma
Corte no país, a necessidade de composição de uma aristocracia
não só de fato, mas de direito, ligando a nobreza ao trono, são
fatores todos que, por si só, desfizeram o glamourque a distância
conferia à idéia do Reino e do Rei. Depois de D.João VI, o Rei
no era o Brasil...

O Rei era visível, talvez mais em suas misérias que em seus


esplendores, o que, sem dúvida, dessacralizava a majestade mo
nárquica. Mas, em compensação, o fascínio de uma nova rela
ção de poder ajudou a compor a nova paisagem social.
Estar perto do poder, ascender politicamente, ocupar car
gos influentesjunto ao governo tornou-se um valor almejado e
possibilitou uma especial formade reestruturação das elitesdian
te do poder público. O processo de consolidação dos laços en
tre as elites e a monarquia se consolidou na pós-independência,
com o Império, criando novos ritos e conferindo aura majestáti-
ca ou áulica ao poder local.
Por outro lado, cargos, títulos, honrarias compensavam
para essa elite os vícios de sua origem, onde o ingresso de não-

1' /<y
brancos e subalternos maculava a auto-imagem... Com isso, se
acentua um traço identitário que aponta para sensibilidades
finas: era mais importante pareceráo que ser.,. Esse tipo de sen
sibilidade atravessava a sociedade de ponta a ponta, chegando
até os negros escravos que, quando alforriados, buscavam logo
usar chapéu e sapatos, indicadores da condição de ser branco
e livre!

Por outro lado, a presença da cidade no Brasil impôs um


novo ethos, redimensionando figuras e práticas antigas —a mer-
cancia, a usura, o judeu - para marcar avanços e recuos nas for
mas de conceber o social e nas maneiras de proceder, no priva
do ou publicamente. Como indica Gilberto Freyre, com o pas
sar do tempo, mercadores e senhores rurais mesclaram as famí
lias e os valores, e as rivalidades e as antipatias entre portugueses
e a gente da terra - divisão de contorno tão impreciso quanto
recente - deixaram de ter sentido, em uma sociedade onde a
mobilidade social permitia a troca de lugares e a aceitação de
personagens em postos conquistados...
Mas, em termos das sensibilidades, cabe registrar que este
contexto, móvel, maleável e mestiço, gerou frutos que acentua
ram a decadência das velhas elites patriarcais, através dos tais
filhos doutores, bacharéis em direito ou médicos, que pensa
vam e procediam de outra forma que seus pais.
A atuação de muitos desses membros da nova geração aca
bou por demonstrar, segundo Gilberto Freyre, que não podia
haver uma identificação simplista entre conservadorismo e en
genho ou entre liberalismo e cidade. O proceder de taisjovens
foi, talvez, um dos aspectos que mais demonstraram, por um
lado, a decadência do velho patriarcalismo e, por outro, a emer
gência de uma nova sensibilidade.
Havia uma grande distância social, um verdadeiro abismo
estava a separar jovens de antigos. A infância era curta e logo
uma extrema severidade e vigilância contínua cercavam e to
lhiam os meninos da família patriarcal, por meio de um siste
ma que se acentuava nos colégios internos, onde estes iam ad-
quirir uma rígida educação livresca, preparando-os para o ba-
charelismo acadêmico.

Pois é a partir dessas novas gerações que se oferece um dos


sintomas de mudança da paisagem social, a sua maneira brasilei
ra de ser. Assinala Gilberto Freyre que a substituição geracional
nos cargos públicos e administrativos fez do Segundo Império
um Brasil onde o poder seria exercido e as decisões seriam to
madas porjovens, na carreira dos vinte ou dos trinta anos, letra
dos e bacharéis da mesma faixa etária de D. Pedro e por quem
este passara a se cercar.

A paisagem social se alterara, mas sem ir ao fundo das con


seqüências possíveis. Os letrados, estes senhores moços, retóri
cos, polidos, urbanos, eram os novos donos do poder, mas que
riam parecer velhos... Eles eram capazes, mesmo, de envelhece
rem precocemente, tal o prestígio que lhes ficara, na sua forma
ção das sisudas figuras vetustas de seus progenitores.
Tratava-se, pois, de uma mudança incompleta, de uma sen
sibilidade que forjava o novo sem desvestir-se do modelo antigo,
onde meninos com idéias novas se escondiam atrás de barbas,
bengalas e óculos para parecer que tinham mais idade.
Logo, havia um reduto de sensibilidade que não se alterara
- o prestígio social, a valorização da aparência - que fazia o pa-
triarcalismo em declínio transformar-se, mas não desaparecer
enquanto atitude sensível diante do mundo, expressa em práti
cas e representações.
Havia uma transformação na paisagem social em termos
de sensibilidades, mas não uma superação dos valores consa
grados, mesmo que Joaquim Nabuco batizasse o novo sistema
de neocracia.

Já com as mulheres, Gilberto Freyre acentuava a sua "mol-


dagem", física e moral, para serem, em tudo, diferentes do ho
mem. As mulheres, tal como os homens, eram produtos sociais
de seu tempo, mas em uma ordem onde, pela fatalidade do
seu sexo, acabavam fatalmente dominadas. A sensibilidade mas-

2/Õ
culina do patriarcalismo as desejava e as fazia pálidas e franzi
nas virgens ou gordas matronas, geratrizes de numerosa des
cendência.

Havia uma estética que o autor definia como artificial e


mórbida, produzida segundo um estereótipo sancionado e que
era complementado pela prática da reclusão e da segregação
da vida social, cultural e, logicamente, política. O sobrado acen
tuava alguma destas tendências, mas trazia consigo algumas
inovações sensíveis.
O aburguesamento da vida, inerente à vida urbana, onde
reinava o sobrado na segunda metade do século XIX, acentuava
a artificialidade da mulher, diz Gilberto Freyre. As modas euro
péias, inglesas e francesas, importando novas sensibilidades es
téticas para com os perfis femininos, moldavam o corpo das
mulheres, construindo o cabelo em penteado caprichoso, ves-
tindo-a com tecidos e modelos pouco apropriados aos trópicos.
Afinando a cintura, descobrindo o seio, avolumando os quadris,
estava a mostrar que o ser que assim exibia esta nova aparência
se tratava de alguém correspondente ao tipo idealizado pela eli
te masculina da época.
Entretanto, o sobrado citadino permitiu à mulher uma
vizinhança maior com a rua e com a vida portas afora. Não por
acaso, isso se fez acompanhar da sua participação, mesmo que
reduzida, no mundo da cultura - poesia jornalismo, romance
- ou a práticas mais ousadas que evidenciavam uma rebelião
contra a tradicional dominação masculina: os raptos ou deflo
ramentos, antes de serem ações de violência sexual, eram es
tratégias amorosas diante dos empecilhos paternos à concreti
zação de um romance...

Mas, se por um lado, era possível pensar em uma socieda


de de homens e mulheres sós, em termos de sensibilidades,
com cada qual no seu canto, com seus perfis e emoções - ho
mens individualistas, criativos, enérgicos, pouco expansivos,
capazes de realizar abstrações de pensamento; mulheres frá
geis, realistas, práticas, afetivas, sentimentais, com tendências
coletivistas - esta transição da casa-grande para o sobrado foi
capaz de produzir um abrandamento nas duras sensibilidades
do patriarcalismo...
O desejo de branquidade?LYveíecQu ou, antes, curvou-se dian
te da realidade do país cada vez mais mestiço. Mulatos passaram
a serem aceitos como brancos!

A distância, física e social, entre humildes e ilustres dimi


nuiu, tanto devido à vicinalidade como quanto à visibilidade, e
conseqüentemente, casamentos de desigual condição social ou
cor passaram a ocorrer com mais freqüência... A aceitação social
dessas práticas era mostra de que novos registros sensíveis de
apreciação e legitimidades eram postos em prática, que faziam
com que a nova situação parecesse uma outra coisa...
É assim que o nome da família poderia ser adotado por
alguém conforme o do parente mais ilustre, fazendo os demais,
não importantes, desaparecerem, com o que a simples nomi-
nação tornava nobre seu portador... Foi ainda assim que mu
lheres podiam ser os homens da casa, afilhados tornavam-se
filhos e padrinhos ou mesmo pais, em um processo onde a prá
tica social da proteção se substituía, de fato e de direito, às
regras da biologia.
O resultado da análise freyriana é a revelação de uma nova
paisagem social, apreciável desde o ponto de vista de uma materia
lidade, uma sociabilidade, uma sensibilidade, onde novas formas
surgem sem deixar que a sombra do patriarcalismo deixe de estar
presente, em continuada recomposição e transformação.
Freyre quer dar a ver ao leitor um Brasil que se transforma
e se conecta ao mundo sem deixar de ser autêntico e original.
Insistamos no dar a ver, pois a forma narrativa de Gilberto Freyre
realmente traça um quadro desse Brasil em recomposição do
qual ele quer falar. Por vezes, seu estilo é quase pjctórico, ele
como que oferece um quadro ao leitor que, por força da rique
za narrativa, será capaz de compor uma imagem mental, visuali
zada no pensamento.

2/7
E, nesse ponto, parece que o conceito operacional da pai
sagem cumpre o seu destino: o texto se torna visual, a narrativa
um espetáculo, a descrição um panorama. A paisagem social do
Brasil se oferece mesmo como paisagem, aberta à fruição do lei
tor. Seria talvez, mesmo, este o objetivo do autor...

Referências

FREYRE, Gilberto. Sobrados emucambos. Decadência do patriarcado rural


e desenvolvimento do urbano. 3. ed. vol.1-2. Rio de Janeiro: José Olím
pio, 1961.
RICOEUR, Paul. Architecture et narrativité. Urbanisme. Paris, n. 303,
nov/dec. 1998.
HOLANDA Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro:
José Olímpio, 1961.
Entre sobrados e cortiços
iTanc/ra ffuafdini 0êiúsei/'a ^Àiscotieeios'

Não fossem as quase quatro décadas que separam a publi


cação de Sobrados e Mucambos (1936) e a dos três principais ro
mances de Aluísio Azevedo, poderíamos imaginar que O Mulato
(1881), Casa dePensão (1884) e O Coríiço (1890) foram pensados
como demonstrações concretas ou detalhamentos de algumas
das principais teses apresentadas e desenvolvidas no monumen
tal livro de Gilberto Freyre. Se o primeiro privilegia um üpo so
cial a quem Freyre dedica todo seu Capítulo XI, os dois outros
elegem como título e matéria dois importantes espaços sociais
de convivência no Rio de Janeiro do final do século XIX, cria
dos pelos processos de urbanização discutidos por Freyre, ins-
crevendo-se todos os três dentro dos marcos temporais defini
dos pelo sociólogo pernambucano, que aponta o ano de 1888
como limite de seu estudo (Freyre, 1996, p. 182).
Nem Gilberto Freyre subscreve as teses deterministas que
orientaram a perspectiva de Aluísio Azevedo, naturalmente,
nem o romancista maranhense parecia ter a preocupação socio
lógica ou antropológica de explicação de um modo de ser da
sociedade brasileira. Entretanto, os cruzamentos de leitura
entre suas obras são quase inescapáveis. Não apenas porque
tanto O Mulato quanto O Cortiço contam entre as fontes literá
rias de Freyre (conforme suâ bibliografia), mas porque o ro
mancista dá corpo, por assim dizer, à argumentação teórica que,
de rigor, necessita generalizar e abstrair a partir de casos espe
cíficos, ao presentificar, particularizar e encher de vida e gente
alguns desses espaços que constituem o eixo central da refle
xão freyreana.
Mais ainda: a armação dos romances que se debruçam so
bre formas diversas de habitai no Rio de Janeiro fínissecular
estabelece entre esses espaços privados a mesma relação de con
traste e tensa oposição que se percebe na caracterização dos
sobrados e mocambos que Freyre propõe, dessa vez no espaço
urbano, como arcabouço de suas teorias sobre a formação so
cial brasileira.

Desde seu primeiro estudo sobre a sociedade patriarcal no


Brasil, Freyre vinha empreendendo uma leitura do espaço e ar
gumentava que a casa, isto é o elemento arquitetônico, operaria
como um microcosmo da sociedade, da região, da nação, acres
centando, dessa maneira, uma dimensão antropológica à visão
clássica da arquitetura como construção, função e estética. Em
Sobrados e Mucambos, entra em cena a cidade que, complemen
tando o substrato agrário tematizado em Casa-Grande & Senzala,
estabelece o contraponto do surgimento do mundo urbano com
relação ao rural. Nesse novo espaço, irá replicar-se a polarização
entre casa-grande e senzala, sob a forma de sobrado e de mo
cambo. O primeiro, eleito como elemento de identificação para
a cidade brasileira no período monárquico, abrigará o patriar-
cado urbano e formará, juntamente com seu par antitético, o
habitai que vai encerrar modos de vida diversos e opostos.
Nos dois capítulos em que trata especificamente desses
tipos de habitação, Gilberto Freyre não só trabalha a passagem
de uma época para outra da história do Brasil como ainda des
creve o processo de constituição, consolidação e paulatina de
gradação dos usos a que se destinou a "casa nobre" do espaço
urbano. A estrutura arquitetônica, locus das relações no âmbi
to da família patriarcal, verá seu papel transformado, ao aco
lher no seu interior outras ordens de relações sociais, quando,
em fase mais tardia da urbanização do país, no final do século
XIX, os antigos sobrados urbanos ou suburbanos se destinam
a abrigar "armazéns, hotéis, colégios, pensões, quartéis, repar
tições públicas, sedes de sociedades carnavalescas". Outros cer
tamente viraram hospitais, cortiços, prostíbulos, escolas, mu
seus, conventos, fábricas.
Esse será o cenário dos romances de Aluísio a que se refe
re nesse artigo. Ali, o romancista não trata do sobrado como
"casa nobre" da cidade, mais senhoril que burguesa, mas flagra
esse tipo de habitação tal como ela havia sido apropriada no
final do período circunscrito por Freyre, ou seja, em pleno pro
cesso de degradação. Já aburguesada, já meio moradia meio
comércio, ou até mesmo transformada em "casa de pensão",
como o sobrado da viúva de Lourenço no romance de 1884,
ressurgida depois pelas mãos de Madame Brizard e João Co
queiro, "escancarando para a população do Rio de Janeiro a
sua boca de monstro":

A casa tinha dois andares e uma chácara no fundo. O salão de


visitas era no primeiro. Mobília antiga, um tanto mesclada; ao cen
tro, grande lustre de cristal, coberto de filó amarelo; três largas
janelas de sacada, guamecidas de cortinas brancas, davam para a
rua; do lado oposto, um enorme espelho de moldura dourada e
gasta inclinava-se pomposamente sobre um sofá de molas [...].
Imediato à sala, com uma janela igual àquelas outras, havia
um gabinete comprido e muito estreito, onde o Coqueiro tinha
a sua biblioteca e a sua banca de estudo [...].
Seguia-se o aposento de Mme. Brizard e mais do marido, [...];
logo depois estava o quarto de Amelinha e da tal viúva histérica,
Leonie [...].
Vinha depois a grande sala de jantar, forrada de papel ale
gre; nas paredes distanciavam-se pequenos cromos amarela
dos, [...]. Um guarda-louça expunha, por detrás das vidraças,
os aparelhos de porcelana e os cristais; defronte - um apara-
dor cheio de garrafas ao lado de outro em que estavam os mo-
ringues.
Ainda havia um corredor, a despensa, a cozinha, uma esca
da que conduzia à chácara, outra ao segundo andar, e mais
três alcovas para hóspedes, todas do mesmo tamanho e nume
radas.
A numeração dos quartos principiava aí nesses três para conti
nuar em cima. Em cima é que estava o grande recurso da casa,
porque Mme. Brizard dividira todo o segundo pavimento em cubí
culos iguais; ficando quatro de cada lado e o corredor no centro.
Os da frente davam janelas para a rua c os do fundo para a chá-

OO/
cara. As paredes divisórias eram de madeira e forradas de papel
nacional, (Azevedo [1976], p. 54).

A reforma, a boa aparência e a fama da casa de Brizard,


no entanto, não impedem sua apresentação como um espaço
rebaixado, onde a mediação do dinheiro estabelece relações
reificadas, que acabarão por envolver Amâncio, o jovem mara
nhense recém-chegado à Corte, numa trama que inclui desejo
sexual e culpa, castidade vendida, exploração, crime e puni
ção. Além disso, o sobrado encerra uma estrutura familiar, for
mada por Madame Brizard, João Coqueiro e sua irmã Amélia,
que nem de longe poderia caber na descrição de uma família
patriarcal, pois nela o comando está nas mãos da viúva france
sa, enquanto â figura masculina cabe um papel mais de filho
do que de patriarca. Afastado de sua terra natal e de seu pai e
mãe, Amâncio vai acabar enredado nas malhas dessa família
substituta, em tudo e por tudo degradada, pois, por detrás da
"aparência austera e calma" e da "felicidade caseira", imperam
o interesse, a cupidez, a mercantilização dos afetos, os carinhos
comprados.
A degradação será também o mote de O Cortiço, onde mais
uma vez o sobrado constituirá o protagonista de um dos pólos
do conflito tematizado no romance, tendo como contraponto e
par complementar o protagonista do outro pólo desse conflito,
isto é, a residência coletiva habitada por trabalhadores livres e
construída pela cobiça e ambição do taberneiro João Romão a
partir de restos, de material furtado ou de segunda mão e da
exploração da escrava Bertoleza. Aqui, a casa de cômodos não é,
como em Casa de Pensão, um sobrado a que se destinou uma
nova finalidade. Trata-se, na verdade, de um conjunto de noven
ta e cinco casinhas, praticamente quartos com bicas e latrinas de
uso comum, que compõem o que seu proprietário chama pom
posamente de "Estalagem de São Romão". O que lhe dá a carac
terística de cortiço é exatamente o fato de ser uma habitação
coletiva ocupada por todo tipo de gente de baixa renda: lavadei-
ras, engomadeiras, mascates, capoeiristas, ferreiros, etc. Não se
encontram ali os mocambos de material precário, tal como des
critos por Gilberto Freyre. Em vez de palha de coqueiro, zinco,
capim, folha de buriti, sapé, lata velha e pedaços de flandres, as
casinhas são construídas com tábuas, tijolos, telhas e cal. Entre
tanto, caracterizam-se as "mucambarias", ou aldeias de mocam
bos, palhoças ou casebres, e a "estalagem" de João Romão pela
mesma "falta anti-higiênica de espaço". O testemunho de um
contemporâneo, referido por Freyre, é bastante elucidativo:

Azevedo Pimentel, em 1884, encontrou no Rio de Janeiro corti-


ços que nem os das cidades européias mais congestionadas. As
primeiras "cabeças-de-porco" com espaços livresquase ridículos,
de tão pequenos, onde se lavava roupa, se criava suíno, galinha,
pato, passarinho. Cortiços dentro de sobradosjá velhos onde mal
se respirava, tantas eram as camadas de gente que formavam sua
população compacta, comprimida, angustiada. Uma latrina para
dezenas de pessoas. (Freyre, 1996, p. 234)

As diferenças nos materiais ou nos tipos de moradia, por


tanto, não significam diferentes funções, usos diversos, morado
res distintos. Particularmente no caso desses últimos, apenas se
deve pontuar o tratamento rebaixado que lhes dispensa o ro
mancista, comparando-os com "larvas no esterco, animais cansa
dos, bestas no cio". A animalização, típica da visão naturalista do
escritor, é reforçada pela permanente impressão de confusão
que impera naquele espaço, sempre representada como zunzum,
rumor, azáfama, cafarnaúm.

A vida no cortiço ocupa, de fato, o proscênio da narrativa:


o cotidiano de trabalho duro e pesado, as brigas, as festas, os
amores. Nesse plano narrativo e sempre dentro dos paralelos
desenhados por Aluísio Azevedo, destacam-se especificamente
as histórias dos dois portugueses - João Romão e Jerônimo -
que trilham rumos decididamente opostos: ao enriquecimento
e ascensãosocialde um, corresponde o "afrouxamento gradual"
do outro, explicado por seu abrasileiramento ou, dito de outra
forma, sua lenta adoção dos usos e costumes brasileiros.
Interessa-me aqui, porém, explorar o outro espaço que se
apresenta como uma espécie de segundo núcleo do romance.
Ali, habita uma família que se poderia tipificar como "burguesia
do sobrado", uma vez que Miranda é um próspero negociante
português de fazendas por atacado, capazde sustentar um certo
fausto e conforto. Àprimeiravista, estamos diante de uma famí
lia exemplarmente constituída, com o paterfamilias ocupando
seu lugar de direito e de destaque. Um breve exame das circuns
tâncias, contudo, logo desfaz qualquer impressão de "felicida
de". O narrador apressa-se em devassar a intimidade do casal
Miranda para revelar uma vida pautada pelo interesse, pela infi-
delidade, pela desconfiança, pelo desprezo, pelo ódio, e pelo
que descreve como acanalhamento da vida sexual do marido e
mulher. Refugiada no bairro do Botafogo, a família aparente
mente estabelece um contraponto com o povo do cortiço. Para
esses e paraJoão Romão, a casa boa, com novejanelas, dá a ver
um mundo de luxo e riqueza. Assim o taberneiro descreve o que
observa e atiça sua inveja:

Acompanhara-odesde que o Mirandavierahabitar o sobrado com


a famflia; vira-o nas felizes ocasiões da vida, cheio de importância,
cercado de amigos e rodeado de aduladores; vira-o dar festas e
receber em sua casa as figuras mais salientes da praça e da política;
vira-o luzir, como um grosso pião de ouro, girando por entre da
mas da melhor e mais fina sociedade fluminense; vira-o meter-se
em altas especulações comerciais e sair-sebem; vira seu nome figu
rar em várias corporações de gente escolhida e em subscrições,
assinando belas quantias; vira-o fazer parte de festas de caridade e
festas de regozijo nacional; vira-o elogiado pela imprensa e acla
mado como homem de vistas largas e grande talento financeiro;
vira-o enfim em todas as suas prosperidades, e nunca tivera inveja.
Mas agora, estranho deslumbramento! Quando o vendeiro leu no
Jomal do Comércio que o vizinho estava barão - Barão! - sentiu ta
manho calafrio em todo o corpo, que a vista por um instante se
lhe apagou dos olhos. (Azevedo, 1979, p. 80)

Por trás desse mundo de aparências, escondem-se a podri


dão e a baixeza dos sentimentos que atuam no relacionamento
familiar dos Miranda, no fundo em nada diferentes da degrada
ção que caracterizaa vidado povomiúdo do cortiço. Entre esses
dois universos, a funcionar como um enquadramento ou mol
dura, ficam asjanelas do sobrado, que permitem aos de dentro
a visão dos de fora, e vice-versa. É à janela que o novo Barão
chega para acenar e agradecer para a rua.
É pelas janelas, abertas de par em par, que do cortiço vêm-se
as criadas Leonor ou Leocádia a sacudir tapetes ou, num relan
ce, Dona Esteia de penteador de cambraia enfeitado de laços cor-de-
rosa, a andar de um lado para outro dando ordens e abanando-
se. É desse ponto de observação que as vidas do cortiço e do
sobrado se perscrutam, se medem, favorecendo o recrudesci-
mento do conflito que sempre caracterizou as relações dos dois
vizinhos negociantes portugueses, Romão e Miranda.
A concessão do baronato a esse último é o ponto de infle
xão que marca o início do processo de ascensão social do taver-
neiro, movido pelo desejo de assemelhar-se ao vizinho, aburgue-
sar-se e, no limite, obter também ele um título de nobreza. A
luta às vezes escancarada, às vezes surda entre os dois, desse modo,
é substituída pela convivência e cordialidade, fruto do interesse
que os move a ambos: um, de ser aceito como um igual, num
ambiente em muito diverso daquele em que sempre viveu; o
outro, de ver, na capacidade de enriquecimento de João Romão,
um aliado e um candidato potencial à mão de Zulmira, a filha.
O incêndio providencial do cortiço obriga o negociante de se
cos e molhados a reconstruir sua estalagem, que cresce, chegan
do a mais de quatrocentos cômodos distribuídos também num
segundo andar e encolhendo o pátio. Sua sebosa bodega também
entra em obras, pavimentando o caminho da sua ascensão:

O vcndeiro resolvera aproveitar dela somente algumas das pare


des, que eram de um metro de largura, talhadas à portuguesa:
abriria as portas em arco, suspenderia o teto e levantaria um so
brado, mais alto que o do Miranda e, com toda certeza, mais
vistoso. Prédio para meter o do outro no chinelo: quatro janelas
de frente, oito de lado, com um terraço ao fundo. O lugar em
que dormia com Bertoleza, a cozinha e a casa de pasto seriam
abobadadas, formando, com a parte de taverna, um grande ar
mazém, em que o seu comércio iria fortalecer-se e alargar-se.
(Azevedo, 1979, p. 133)

O pinho de Riga no assoalho, os ricos móveis, as pratas e as


porcelanas são sinais evidentes da ostentação a queJoão Romão,
agora de fraque e chapéu alto no lugar das mangas de camisa e
tamancos de outrora, se dá o direito. Zulmira passa a represen
tar a partir desse momento a consolidação desse processo:

Mas, só com lembrar-se da sua união com aquela brasileirinha


fina e aristocrática, um largo quadro de vitórias rasgava-se de
fronte da desensofrida avidezda sua vaidade. Em primeiro lugar
fazia-se membro de uma família tradicionalmente orgulhosa,
como era, dito por todos, a de Dona Esteia; em segundo lugar
aumentava consideravelmente os seus bens com o dote da noiva,
que era rica e, em terceiro, afinal, caber-lhe-ia mais tarde tudo o
que o Miranda possuía, realizando-se deste modo um velho so
nho que o vendeiro afagava desde o nascimento da sua rivalida
de com o vizinho. (Azevedo, 1979, p. 145)

O mesmo cálculo que o levara antes a explorar o trabalho e


a convivência com Bertoleza transfere-se aqui para o casamento
com a filha de Miranda, sugerindo a completa capitulação de
João Romão ao código do capitalista na sua busca do lucro e do
interesse. O processo de seu aburguesamento se estampa numa
imagem em que o ex-taverneiro e futuro visconde, já incorpora
dos novos hábitos e vestimentas, é visto numa dasjanelas do so
brado de Miranda, lançando "para baixo olhares de desprezo
sobre aquela gentalha que o enriquecera" (Azevedo, 1979, p.
112). João Romão compartilha agora

[...] as flores nas jarras, as sedas e as rendas, o chá servido em


porcelanas caras; [e goza] a doce existência dos ricos, dos felizes
e dos fortes ou dos que, a puro esforço, conseguiram acumular
dinheiro, rompendo e subindo por entre o rebanho dos escru-
pulosos ou dos fracos. (Azevedo, 1979, p. 146)
A falta de escrúpulos, portanto, está na origem de seu enri
quecimento e a nova vida e a nova classe a que ascendeu sâo
pura aparência, pura ostentação, ao esconderjustamente os me
canismos de exploração que lhe permitiram acumular fortuna.
Em O Cortiço, não há o "fidalgo do sobrado" de que fala Gilberto
Freyre. Estão igualmente ausentes a figura senhorial e a aristo
cracia rural ou urbana que ocuparam um dos tipos de moradia a
que o sociólogo deu tamanha importância e destaque. Ali, va
mos encontrar o pequeno mundo dos comerciantes, já apon
tando para mudanças substanciais na ordem social brasileira.
Como avalia Rui Mourão na introdução a uma das edições
do romance,

O Cortiço é um dos melhores retratos que já se levantaram do


Brasil do segundo império, em que as sobrevivências da estrutu
ra colonial punham à mostra uma numerosa casta de portugue
ses enriquecidos a empolgar as posições de comando e uma le
gião mal definida de pretos, mulatos e brancos, em pleno pro
cesso de caldeamento e formação constituindo o escalão mais
inferior da sociedade. (Mourão, 1979, p. 9).

Mais que isso. O romance narra como essa casta forma


nossa burguesia pela exploração do trabalho e pelo valor que
confere ao dinheiro, de que João Romão se torna símbolo tão
evidente.

Quanto às personagens femininas do romance, se escravas,


como Bertoleza, serão as vítimas simbólicas dessa exploração. Se
finas e aristocráticas, como Esteia e Zulmira, serão objeto de uma
espécie mais sutil de opressão, porque seu valor dependerá do
que representam em termos de capital financeiro a ser amealha
do por meio do casamento e do dote. A casa patriarcal urbana,
lugar de recolhimento das mulheres em regime quase conven-
tual onde as moças eram colocadas ao abrigo dos olhares indis
cretos e da possibilidade de raptos, também aqui exercerá um
papel diverso. Asjanelas serão a abertura que permitirá observá-
las a partir da rua, imaginá-las nas suas atividades cotidianas, vê-

327
Ias em trajes íntimos. Embora Freyre afirme que a vida na cidade
alargou a paisagem social para as mulheres, esse não parece ter
sido o caso das duas Miranda, pois Botafogo apresenta-se como
uma espécie de exílio a que é submetida Esteia, flagrada em adul
tério com um caixeiro da casa comercial do marido, enquanto
Zulmira vive vida reclusa, apenas interrompida pelos passeios
com a família e o agora pretendente à Rua do Ouvidor.
Os cortiços podem ter representado, segundo dados de Gil
berto Freyre, 3,96% do percentual de moradias do Rio de Janei
ro no ano de 1888, com uma população de 11,72% do total de
habitantes da cidade naquele ano. Como ele mesmo afirma, de
pois dessa data, muito sobrado velho, pertencente outrora a fi
dalgos, se degradou, transformando-se em habitação coletiva. O
que se procurou mostrar, nesse trabalho, é que a degradação do
sobrado urbano atingiu outros níveis, menos perceptíveis, por
que acobertados por vida familiar e por atividades econômicas
apenas aparentemente dentro dos parâmetros de normalidade.
O que se viu é que, do lado de dentro das janelas que sepa
ram o sobrado e a rua, relações aviltadas pela cobiça e atravessa
das pela acumulação do capital podem ser devassadas para reve
lar o real processo de formação de uma burguesia cúpida e des
trutiva, que não hesitou em conciliar interesses, em explorar
escravos como Bertoleza ou os pobres como os moradores do
cortiço, em furtar, enganar e subornar, tudo em nome e em prol
de sua ascensão. Apesar dos preceitos naturalistas e das teses
deterministas de seu autor, O Cortiço consegue criar um quadro
muito contundente desses processos, fazendo do cortiço e do
sobrado, espaços privilegiados por Gilberto Freyre, verdadeiros
cronotopos, em que se cruzam espaço e tempo: espaço social
que se traduz em tempo histórico, a nos dizer algo sobre nosso
país e suas longa história de injustiças e iniqüidades.

Referências

AZEVEDO, Aluísio. Casa depensão. São Paulo: Ática [1976].


AZEVEDO, Aluísio, O corliço. 8. ed. São Paulo: Atica, 1979.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado ru
ral e desenvolvimento do urbano. 9. ed. Rio de Janeiro/São Paulo:
Record, 1996.
MOURÃO, Rui. Um mundo de galegos e cabras. In: AZEVEDO, Aluí
sio. O Cortiço. 8. ed. São Paulo: Ática, 1979.

Bibliografia suplementar
CÂNDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In: . O discurso e a
cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 123-152.
BRESCIANI, Maria Stella. A casa em Gilberto Freyre: síntese do ser
brasileiro? In: CHIAPPINI, Lígia; BRESCIANI, Maria Stella (Org.). Li
teratura e cultura no Brasil: identidades e fronteiras. São Paulo: Cortez,
2002. p. 39-51.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Rio de Janeiro: uma cidade no espelho
(1890-1910). In: . O imaginário da cidade: visões literárias do ur
bano (Paris - Rio de Janeiro - Porto Alegre). Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 1999. p. 157-242.
VASSALO, Lígia. O cortiço e a cidade do Rio de Janeiro. Literatura e
Cidtura, Rio de Janeiro, ano 2, 2002. Disponível em: <\v\v\v.letras.ufij.br/
litcult>.
Os andares do sobrado: de um Brasil a outro
óanc//'a/^ãta/i^íBesaoento

Sobrado, aà], Que sobrou ou que sobra; demasia


do. Farto, abastado.
Sobrado, s. m. Pavimento ou solho, geralmente
de madeira, no interior das casas. Bras. Andar
de casa. Propriamente, o andar com varanda sa
liente, ou balcão.
Leüo Universal, s. d. Porto, tomo 111, p. 920.
Sobrado: s. m. Pavimento, andar, piso acima do
térreo, numa casa.
Sobrado: adj. Demasiado, excessivo, sobejo. Lat.
Superatum, parte passiva de superare.
Grande Dicionário Etimolôgico-Prosódico
da Língua Portuguesa, de Francisco
da Silveira Bueno, 1968, p. 393.

Enquanto palavra da cidade, nominativa de um espaço cons


truído, o sobrado remete a duas acepções: a espacial, topográfi
ca, que aponta para uma construção de dois andares, e a valora-
tiva, que remete às atribuições de significados simbólicos: o so
brado é espaço construído que representa ou demonstra um
excesso, um plits, uma superação sobre o convencional que, no
caso, o distinguiria das demais formas, usuais, do habitai.
A dimensão espacial topográfica é indissociável deste sentido
atiibuído, que inscreve neste tipo de casa formas temporais e sociais,
indicadoras da nobreza ou condição abastada de seus habitantes.
Enquanto espaço construído, o sobrado se oferece como
uma unidade de espaço e tempo, concepção que remete à no
ção utilizada por Paul Ricoeur (1998) de cronotopo, para estabe-
lecer as correlações entre arquitetura e narratividade. A expres
são é tomada de empréstimo a Mikhail Bakhtin, que a utilizou
para referir-se ao espaço verbal, onde se realiza a escrita na sua
relação com a realidade ou ainda para analisar o romance como
uma sucessão de episódios no tempo e espaço.
Tal conceito passa a ser empregada por Paul Ricoeur para
estabelecer as aproximações e relações entre o edificar, ou seja,
construir no espaço, e o contar, que é articular no tempo. En
tendendo o espaço construído como um espaço contado, Ri
coeur argumenta que o espaço se dá a ler e revela uma intriga
no tempo, tal como o texto se apresenta como o lugar onde se
conta e se sucede o tempo.
O tempo se incorpora no espaço e o historiciza, mostrando
que o ato de edificarJá representa uma vitória sobre o efêmero,
permitindo guardar, na materialidade do construído, os traços
da passagem da vida.
A partir desse enfoque, é possível pensar o sobrado como
um espaço que contém o tempo, onde se realiza a existência, com
seus personagens, experiências, conflitos, laços afetivos e proces
sos de interação diversa, com seus interesses e valores. O sobrado
pode ser pensado, dessa forma, como um lugar no tempo e uma
temporalidade no espaço, onde se dão as ações e têm lugar os
sentimentos e as razões que inspiram os homens. Como diz Ri
coeur (1998, p. 45), "os lugares são locais onde se passa alguma
coisa, onde mudanças temporais seguem trajetos efetivos".
Nossa intenção é realizar uma análise do sobrado a partir
de uma leitura cruzada das narrativas de dois autores que to
mam esta modalidade do espaço construído como um elemen
to central em suas obras e, sobretudo, como unidade material
portadora de uma leitura do social.
Gilberto Freyre' e Erico Veríssimo,- os autores escolhidos,
compõem narrativas que representam distintas modalidades de

' Em Sobrados e Mucambos (Freyre, 1961).


- Em O continente. O Tempo e o Vento (Verís-simo, 1996).
discursos: o do sociólogo-antropólogo consagrado que fala do
Brasil desde o Recife e o do romancista que constrói literariamen-
te uma história: a história do Rio Grande do Sul para o Brasil.
Sendo ambos os discursos formas de representação do real,
tais narrativas guardam, com a realidade, distintos níveis de com
prometimento, mas o que nosinteressa é por em diálogo osdois
textos, o que fazemos a partir de algumas questões ou imagens,
sugeridas pela leitura dos mesmos e que nos possibilitam enten
der o sobrado a partir da idéia do cronotopo, que o faz unidade
de espaço e tempo.

Veríssimo leitor de Freyre:


trajetórias da forma, função e significado
Principiemos por esta condição acima anunciada: a de Eri-
co Veríssimo como leitor de Gilberto Freyre.
Há uma clara diferença no tempo da escritura entre os tex
tos de nossos dois autores: Freyre escreve Sobrados e Mucambos
em 1936 e Veríssimo publicou a primeira parte d'O tempo e o
Vento, O Continente, em 1949.
Ou seja, é certo que EricoVeríssimo foi leitor de Freyre, que
inclusive veio ao sul em 1940 por ocasião do 111 Congresso Sul
Rio-Grandense de História e Geografia, quando apresentou o tra
balho "Sugestões para o estudo histórico-social do sobrado no Rio
Grande do Sul", que viria a ser publicado na revistasulina Provín
cia de SãoPedro em 1946. Logo, Veríssimo é tributário e leitor de
uma escrita prévia de Freyre sobre o sobrado no Brasil, onde o
escritor pernambucano introduzia e explanava suas idéias sobre
o tipo característico da habitação patriarcal urbana no Brasil.
Em Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre apresenta-nos a
casa como um conceito sociológico para o estudo das relações
entre os homens, seus hábitos e valores. O sobrado, ou a casa
assobradada da cidade é um habitat nobre, antes senhorial que
propriamente burguês.
Microcosmo do social, ele é o sucedâneo citadino da casa-
grande rural. Como é do seu feitío, Freyre não teoriza sobre o
conceito; enuncia que a habitação influi sobre o homem e passa
a analisar como a arquitetura é portadora do social, dando a ver
a estrutura e o funcionamento da sociedade patriarcal.
Gilberto Freyre constrói seu texto de maneira a demons
trar, pela análise do empírico, a pertinência de uma idéia: o so
brado é uma unidade cultural, característica do mundo luso-
brasileiro e afirma uma permanência no tempo.
Assim, sua forma é portadora de função e significados que
dizem respeito à passagem do patriarcalismo rural para o mundo
burguês da cidade, mas de molde a preservar um ethos, os valores e
o statusá2iS elites no controle do social. Os marcos de historicidade
comparecem para testemunhar aquilo que, em termos de interpre
tação da realidade, já foi refigurado pelo olhar do escritor desde
sua primeira obra, Casa-Grande&. Senzala, publicada em 1933.
Nessa medida, a descrição e a análise da estrutura do sobrado
são altamente significativas. A nobreza da casa citadina se revelaria,
em princípio, pelos elementos duradouros da sua construção, evidencian
do recursos financeiros consideráveis,pois muitos dos materiais eram
importados da Europa: a pedra e o adobe com revestimento de cal,
o teto de telha, a madeira de lei das vigas, a grade de ferro do por
tão, as paredes grossas (Freyre, 1961, p. 181).
Em segundo lugar, o sobrado revelava nobreza pela eleva
ção, que dava ao habitai o destaque e a imponência de uma resi
dência senhorial: nos terrenos mais exíguos da cidade, o sobra
do ganha em verticalidade, atingindo dois a três andares no Rio
de Janeiro e Salvador, para chegar mesmo a cinco ou seis no
Recife (Freyre, 1961, p. 188).
E, por último, a arquitetura do sobrado ostentaria sinais de
refinamento e luxo, marcados pelo que se considerava o bom gosto
local, como por exemplo, a presença de vidraças, mesmo de te
lhas, de azulejos portugueses a revestir muros e paredes; as saca
das com balcões de ferro, os muros encimados por vasos de grani-
to, leões, cachorros ou dragões de pedra, tanto a "guardar" a casa

â.-ií
como a lhe dar foros de nobreza, dentro de uma certa estédca do
poder; com as paredes externas pintadas de cores vivas, em espe
cial o vermelho sangue-de-boi, e com peças internas em cujas pa
redes se pintavam paisagens, passarinhos e flores.
A extrema verticalidade da construção, como no citado caso
do Recife, fazia com que, quando a moradia e os negócios tives
sem lugar no mesmo prédio, o andar térreo do mesmo fosse
ocupado pelos armazéns, o andar de cima pelo escritório, se
guindo-se o terceiro e o quarto piso destinados para a sala de
visitas e para os quartos de dormir, o quinto andar para a sala de
jantar e o sexto para a cozinha, tendo ainda no alto um mirante
ou água-furtada, de onde se apreciava a vista da cidade e o mar.
Tais sobrados, descritos na obra de Gilberto Freyre, são tam
bém apresentados em fotos ou bicos-de-pena, fornecendo imagens
ilustrativasdo texto, retiradas de exemplos tomados pelo autor, prin
cipalmente no Recife, em Salvador ou no Rio de Janeiro.
Esse plano arquitetural, diz Freyre (1961, p. 199), obedecia às
exigências sociais da cultura, da família, da moral, da economia.
Mesmo com porta ejanela, e mesmo varanda e balcão para a rua, o
sobrado é um espaço construído para guardar: valores, mulheres,
dinheiro e jóias. Ele é cofre ou caixa-forte para entesourar os bens
da família patriarcal que se mudou do campo para a cidade.
Não é por acaso, pois, que em conferência pronunciada no
III Congresso Sul Rio-Grandense de História e Geografia, em
Porto Alegre, Gilberto Freyre (1946) tenha se referido ao sobra
do como uma espécie de fortaleza, sociológica e psicológica, para
resguardar a classe e a raça oficialmente branca...
No extremo sul do país, Gilberto Freyre confirmaria esta
função recorrente da habitação patriarcal por observação dire
ta, nas viagens em que empreendera pelo Estado junto com José
Lins do Rego e acompanhado pelas figuras locais de Viana Moog
e Dante de Laytano.
Ao prefaciar a obra de Dante de Laytano, o Almanaque do
Rio Pardo, publicada em 1946, Freyre ressaltaria que, nessa cida-

í>,y,í
de de colonização lusa, o sobrado doméstico era o produto da
civilização européia no meio americano, berço de "homens e
famílias de atuação notável na vida moral, intelectual, política,
do Estado e do Brasil inteiro":

É que os homens, mesmo os públicos, deixam mais de si pró


prios nas casas particulares que habitaram - e onde brincaram
meninos, onde constituíram família, ondejogaram gamão ou car
tas com os amigos, onde escreveram, trabalharam, festejaram ani
versários - do que nos palácios, nas catedrais, nos teatros, embo
ra destes edifícios públicos seja também impossível separar a his
tória de uma cidade. (Freyre, 1979, p. 18)

O sobrado é, pois, para Gilberto Freyre, a materialidade


que se oferece à leitura, espaço construído que contém o tem
po, lugar portador de uma narrativa.
Nosso autor insiste na idéia de que o sobrado seria um ele
mento de unitarismo na paisagem social brasileira. Encontrado
nas cidades do país, de norte a sul, os sobrados estavam a de
monstrar na materialidade da pedra, uma mesma base cultural
e social herdada da tradição lusitana.
Em outros artigos, publicados na Revista do Patrimônio His
tórico e Artístico Nacional, Freyre insistiria sobre esse ponto: os tra
ços desta herança material ali permaneciam, à espera de uma
catalogação e leitura. Era preciso estudar, repete muitas vezes
Freyre (1937, p. 144), para saber ver, na forma, a função social e
os sentidos presentes nessa unidade cultural.
Estabelecendo comparações entre plantas de sobrados, a
partir dos registros deixados por Vauthier, no Nordeste e De-
bret, no Sul, Freyre (1943, p. 225-226) concluía que, mais im
portantes que as variações regionais, eram as semelhanças, indi
cadoras de um mesmo tipo de patriarcado familiar, fazendo da
expressão arquitetônica uma matriz do simbólico.
Erico Veríssimo, leitor de Gilberto Freyre, trabalha também,
em sua obra O Tempo e o Vento, com a imagem do Sobrado como um
cronotojjo, ou seja, como materialidade que conta uma história.

^.y/5'
Não é por acaso que o sobrado de sua obra é construído por
Aguinaldo Silva, um pernambucano que viera dar com os costa
dos na sulina Santa Fé, com passado suspeito, mas que, no comér
cio do gado, enriquecera, tornando-se criador no Sul e apossan-
do-se de propriedades de pequenos agricultores locais, a quem
emprestava dinheiro sob hipoteca dos terrenos. Foi assim que Pe
dro Terra tivera sua propriedade hipotecada e perdida para o agio
ta Aguinaldo, e fora neste terreno, na esquina da praça, em frente
à igreja matriz, que o pernambucano erguera o sobrado.
A nova e imponente habitação viria contrastar com as de
mais residências da pequena cidade, e mesmo com a sobriedade
do casarão de pedra dos Amarais, chefes políticos de Santa Fé.
Ele representava, pois, um padrão de refinamento senhorial até
então ausente na cidade. Descrito no Almanaque de Santa Fé, de
1853, como uma maravilha arquitetônica (Veríssimo, 1996, p. 330,
vol. II), com 35 braças de frente e uma quadra completa de en
torno, era comparado às melhores residências de Porto Alegre,
Rio Pardo ou da Corte...

Casa imponente, ela era composta de dois andares - tal


como os sobrados do Rio, por exemplo, mas sem igualar a altura
daqueles do Recife -, e era encimada por uma água-furtada, que
cumpria também a função de mirante. Com relação à cor, o so
brado sulino era mais sóbrio: tinha a fachada branca, decorada
pelos caixilhos azuis das sete Janelas de guilhotina do andar su
perior, sendo a do centro mais alta e mais larga, dando para uma
sacada de ferro com arabescos.

Mesmo com a menor altura, o padrão da típica construção


urbana senhorial do Nordeste se repetia, com variações, na distan
te cidadezinha de Santa Fé, criada pela ficção de Veríssimo. Os cui
dados do autor com a verossimilhança de sua narrativa levaram-no
a assinalar as diferenças de escala e refinamento das construções,
variações decorrentes, sem dúvida, de uma sociedade menos aristo-
cratizada e com menor requinte ou capacidade de acumulação.
Mas, mesmo assim, o sobrado de Santa Fé também ostenta
va certas formas reveladoras de ser aquela uma casa senhorial: a

•'.y/
tal sacada ou balcão, com suas grades torneadas, a madeira de
lei da alta porta de entrada no piso inferior, ladeada por três
janelas de cada lado, o portão de ferro foijado, tendo a cada
lado colunas de azulejo português, branco e amarelo, encima
das por vasos de pedras.
A casa ainda dava outras mostras do requinte nas vidraças,
tendo nas portas internas bandeirolas com vidros amarelos, verdes
e vermelhos. Seriam esses vidros também compostos em arabescos,
como aqueles fotografados por Gilberto Freyre, quando de sua pas
sagem no Rio Grande, aformoseando asjanelas dos sobrados no
Sul? A descrição do romancista Erico Veríssimo acompanha a do
sociólogo Gilberto Freyre, mostrando as correspondências não só
da forma arquitetônica, mas dos significados e de sua função.
Casa muito ampla, com dezoito peças e os pesados móveis
de jacarandá da sala, que haviam pertencido a uma casa senho-
rial de Recife, era ainda cercada por muro alto e espesso.
Em suma, o sobrado fora erguido como que para atestar
que a cidade crescera, mas também para instaurar uma linha
gem. Aguinaldo, o pernambucano que edificara o sobrado no
molde daqueles do Recife, visarafundar tanto uma origem como
uma descendência, mas sua residência viria a tornar-se o bastião
dos Terra-Cambará, quando do casamento de Bolívar com Lu
zia, sua neta adotada.
Com sua arquitetura expressiva de um poder consolidado
e mesmo de um requinte na construção, o sobrado comparece
na narrativa de Veríssimo como o palco privilegiado dos aconte
cimentos da trama romanesca. Na seqüência de capítulos que,
intercalados aos demais, acompanham a história narrada em O
Continente, primeira parte da trilogia d 'O Tempo e o Vento e que se
intitulam sempre como "O Sobrado", este é comparado por Eri
co a uma fortaleza (Veríssimo, 1996, p. 2, vol. I), imagem, como
se viu, já apontada por Freyre.
Na obra de Erico, essa imagem ganha força pela situação
específica em que têm lugar os episódios narrados: o sobrado,
então em poder dos Terra- Cambará, republicanos, é sitiado pe-

S.iiV
los maragatos durante a revolução federalista. Fortaleza protegi
da pelos seus altos muros, o sobrado domina a praça e as ruas ao
redor dela e é do seu mirante ou água-furtada que se estabelece
a vigilância sobre os passos do inimigo.
O sobrado é bastião em praça de guerra, a defender ideais,
valores, a família. Para Licurgo Cambará, senhor do sobrado, a sua
defesa envolve muito mais do que o patrimônio ou os membros da
família e os correligionários: Licurgo defende seu mundo e suas
crenças, seu presente, seu passado e seu futuro. E baseado nesses
princípios que, reiteradamente, recusa a paz ou os favores do ini
migo, sacrificando os familiares e companheiros antes de aceitar
um favor dos opositores ou a render-se. Refletia Licurgo diante do
sítio imposto pelos inimigos, mas, sobretudo, para tranqüilizar a
sua consciência: "Existe na vida de um homem de honra duas coi
sas sagradas que ele deve fazer respeitar às custas de todos os sacri
fícios: a cara e a casa." (Veríssimo, 1996, p. 469, vol. II).
O sobrado era, pois, fortaleza da defesa da honra de uma
estirpe, que por sua vez representava todo um mundo estrutura
do em termo de valores, que no Sul passavam pela guerra e pela
defesa da terra, das virtudes militares e viris, do direito de mando.

Ambivalências do espaço: as janelas do sobrado


Asjanelas do sobrado parecem ter sido objeto de uma preo
cupação de Freyre, que delas não apenas deixou os registros da
forma como delas fez um elemento do espaço construído erigi
do em lugar simbólico de contato entre o mundo do público e
do privado.
Ajanela é arquétipo do imaginário arquitetônico, é figu
ra primordial portadora de sentido e forma de representação
coletiva. Enquanto arquétipo, a janela designa uma materiali
dade, mas o que, justamente, se destaca na sua leitura são os
aspectos materiais da arquitetura, como soma da experiência
humana que se constitui em patrimônio cultural (Massobio;
Portoghesi, 1988, p. 35). Pela porta, sem dúvida, mas, sobretu
do, pelas múltiplas janelas do sobrado se dava o contato com a
rua, com a vista que se oferecia aos moradores da casa sobre a
gente da cidade e sobre tudo aquilo que representava o mun
do exterior.

Enquanto extensão, continuidade ou adaptação da casa-


grande ao contexto urbano, o sobrado teve na janela uma fun
ção basculante entre dois mundos: aquele da intimidade da casa
e do resguardo e entesouramento dos bens - mulheres, jóias,
dinheiro - e a instância do público e do povo.
Nas suas variantes como passagem entre dois mundos - a
varanda, o postigo, o óculo, a janela, o mirante da água-furta-
da - o elemento arquitetural potencializa a tensão entre fecha
mento e abertura, figurando entre as reminiscências do mun
do rural na sua passagem para o urbano. O sobrado é ainda
tensão e basculante entre a herança moura de um serralho lon
gínquo, aflorado por Freyre no seu mergulho nas raízes lusita
nas e ibéricas da civilização brasileira e a ocidentalização da
vida nas cidades.

Do postigo, abertura quadrangular em portas ejanelas, que


permitiam ver o mundo da rua sem abrir, à gelosia, treliça de
madeira quase árabe que ocupa o vão de uma janela para che
gar à rótula, grade de madeira, em versão de "cárcere ou de
jaula", todas essas aberturas assinalavam para um mundo ainda
indeciso entre as fronteiras do público e do privado.
Guardar, entesourar, proteger, separando espaços, pessoas -
principalmente as mulheres! - pautando condutas, preservan
do valores. Este tipo antigo dejanela é, por um lado, a continui
dade, enquanto função e significado, da acepção do sobrado
enquanto fortaleza: isolar, guardar, defender, entesourar, pre
servar as mulheres do contato com o mundo e, sobretudo, dos
outros homens. Vedando, sem dúvida, mas permitindo que, pe
las barras, treliças ou vãos, o mundo de dentro observasse o de
fora, e esse pudesse, no mínimo, vislumbrar ou imaginar o que
se passava na esfera do privado.

iíJO
A tendência dos primeiros sobrados, diz Gilberto Freyre,
seria o fechamento para a rua e a abertura das casas para os
fundos, para o espaço dos quintais e jardins, ao resguardo dos
olhares indiscretos e das presenças importunas. Mas a força que
impelia do dentro para fora, obra, sobretudo, das mulheres, ta
refa de persistência, tenacidade, obstinação e conquistas mili
métricas, acabou vencendo.
A varanda, o balcão, a sacada e, sobretudo, a Janela com
vidraça, impuseram-se, dando a ver o mundo lá fora como locais
privilegiados de observação sobre o mundo citadino, desde o
sobrado-fortaleza.

E, nesse sentido, reaparece no texto de Gilberto Freyre a


personagem feminina, tanto como prisioneira da Janela que
encerra quanto como protagonista da abertura para a rua e para
a cidade que ajanela promete. Vítima da dominação masculina
e dos valores da casa-grande que o sobrado perpetua, mas agen
te de sua própria libertação, vagarosamente conquistada.
Não por acaso, é nas Janelas, elos de comunicação com o
mundo exterior, que se realizam as demonstrações do engenho
artístico e do requinte das casas senhoriais citadinas. Em arabes-
cos e rendilhados, em arcos trilobados e floreios, em vidraças
multicolores, o sobrado exibiu-se como residência da elite, ates
tando uma estética própria.
No Sul do Brasil, por onde viajou o renomado sociólogo
Freyre, as Janelas dos sobrados chamaram-lhe particular aten
ção. Pode ser dito, mesmo, que esta sociedade rude e pouco
aristocratizada expunha seu requinte no caprichoso desenho das
vidraças de suas Janelas, a demonstrar que naquela habitação
morava uma família diferenciada...

Se, para Gilberto Freyre, asjanelas do sobrado compare


cem como um elemento destaque, a atestar a presença de va
lores e sensibilidades através da materialidade do espaço cons
truído, podemos arriscar e sugerir que elas são imagens pro
fundamente femininas. Guardam, envelopam, encerram, mas
possibilitam abertura para a vida; são elementos de renova-

2//
ção do mundo senhorial, fazendo que este persista, mas já
modificado.

No texto de Erico Veríssimo, as Janelas são também ima


gens metafóricas e ambivalentes da interpenetração entre es
tes dois mundos, o da casa e o da rua. São, por um lado, trin
cheiras para a defesa da casa, da honra e da família. É dasJane
las altas, sobretudo da água-furtada, onde se abrigava um "ati
rador infernal, a vigiar a praça e a cidade" (Veríssimo, 1996, p.
1, vol. I), que se monta a guarda dos republicanos pica-^flW5
contra o cerco maragato. Seu sobrado Já é um sobrado com vi
draças, mesmo tendo ainda postigos por onde se entrinchei
ram seus defensores. Não se assinalam nele as gelosias, sendo
este sobrado de Veríssimo mais moderno enquanto habitação
doméstica senhorial.

Vidraças que, mesmo na angústia do cerco, da fome e da pes


te, deixam entrever o mundo lá fora: "[...] pelas bandeirolas trico
lores dasjanelas começa a entrar a claridade do dia que amanhece"
(Veríssimo, 1996, p. 71, vol. 1). Mas, enquanto imagem metafórica,
elas são mais duras, tal como as mulheres encerradas no sobrado e
que, no dizer de Maria Valéria, também defendem a casa.
Vidraças que se estilhaçam diante das balas inimigas, ao
longo do tempo interminável do sítio, imposto pelos federa-
listas. Vidraças que guardam o ódio republicano e que permi
tem passar o revide mortal da defesa dos ocupantes do sobra
do (Veríssimo, 1996, p. 163, vol. 1). Vidraças que são sacudi
das pelo vento Minuano do frio inverno sulino (Veríssimo,
1996, p. 72, vol. 1), vidraças que dão a impressão de que o
sobrado, animizado, estivesse a "bater dentes..." (Veríssimo,
1996, p. 318, vol. I).
Essa última imagem - a do vento soprando, a sacudir as vidra
ças da casa dos Terra-Cambará - é recorrente ao longo dos textos
que intercalam a narrativa, remetendo ao episódio do cerco do
sobrado: o vento que sopra, fazendo trepidar asjanelas, lembrando
as palavras que a velha Bibiana repete, da sua cadeira de balanço,
tal como fazia sua avó Ana Terra: noite de vento, noite dos mortos.
Ambigüidades do tempo: o sobrado como ruína
Dos mortos, sim, no sentido literal e figurado. O longo cer
co do sobrado pelos federalistas e a intransigência de Licurgo
em pedir ao menos uma trégua para buscar água, alimentos e
socorro médico, sempre na defesa de valores tidos como mais
altos, da qual a casa é um símbolo, faz do sobrado um cemitério.
A principiar pelos mortos de guerra, vítimas das balas dos
inimigos, também acantonados e entrincheirados, a espreitar o
menor movimento, em outras janelas. Essas seriam, contudo,
mortes certas e esperadas em toda guerra. Mortos insepultos, a
apodrecer e a infestar o ar dos vivos, pois enterrá-los seria arris
car mais vidas, sob a mira do inimigo.
Mas há ainda outras vítimas do sobrado, a começar por Au
rora, a nascida morta que não chegou a ver o dia, como seu
nome podia sugerir, indo do útero de sua mãe para uma cova
aberta no porão da casa, seguindo-se a de Tinoco, o companhei
ro que apodreceulentamente, atirado a um canto,só e abando
nado, ou ainda o velho Juvenal Terra, morto na noite que prece
deu o fim do cerco do sobrado.

A defesa do sobrado e da ordem social e política que ele


representa é uma busca de perpetuar, para o futuro, os valores
de um passado que aquele presente busca preservar. Todo o tem
po em que resiste, obstinado, desde o seu reduto do casarão
patriarcal, Licurgo Cambará pensa como essa resistência será
narrada no futuro: ele, que heroicamente defendeu seus ideais
políticos, sua casa, sua família; sua filha Aurora, que nascera
durante o cerco, em noite de batalha.
Em suas solitárias reflexões, a defesa do sobrado é a defesa de
uma história, do Rio Grande, do Partido Republicano, de Santa Fé,
da linhagem dos Terra-Cambará e dele próprio. Salvando o sobra
do, Licurgo inscreve-se na história, construindo o futuro. Olhando
sua casa, ele revê a trajetória de sua estirpe, a que, no presente, ele
dá continuidade, e resistindo e defendendo o sobrado, ele garante
a perpetuação dos seus e das idéias nas quais acredita.
Nessa medida, o sobrado assume a dimensão de uma ruí
na, como um objeto arquitetural privilegiado, que contém o
passado e estimula a pensar o futuro. Sendo caco, traço, vestí
gio, resto, a ruína é marca de passeidade^ que aponta, no presen
te, para aquilo que foi um dia.
A ruína expõe a degradação material de um espaço cons
truído ou mesmo sugere a imagem de uma decomposição do
real. Ela contém a virtualidade do declínio, ela é a demonstra
ção cabal de que toda realização do homem sofre a passagem
do tempo e de que as civilizações experimentam o apogeu e a
decadência.

A ruína, sendo figura da degradação, do desgaste e indício


de uma degenerescência, é resto que exibe uma ausência, mas
que estimula a imaginar como teria sido, um dia, o todo. Como
fragmento de um todo ausente, a ruína abre caminho para a
reconstrução imaginativa do passado.
A ruína é portadora de um imaginário sobre o passado, mas
seu potencial de invenção ultrapassa a possibilidade de reconstru
ção, pelo pensamento, daquilo que se foi. Se ela é, sobretudo,
figura de valor simbólico que mostra a passagem do tempo e a
evidência da perda, ela pode vislumbrar o futuro, sonhar o ama
nhã, vendo, no novo, o apodrecido, a forma fadada a ser ruína.
Cronotopo por excelência, a ruína realça aquilo que é es
sencial na arquitetura: compor o espaço, mas abrigar o tempo
que passa. Conter, na forma, a dialética do visível e do invisível,
ver no passado ou no presente, o futuro, no espaço edificado,
a presença do tempo que se conta (Hamon, 1989, p. 61). Como
refere Hamon, "Como toda construção, mas, de uma certa
maneira, superlativamente, a ruína, real ou imaginária, pros-
pectiva ou retrospectiva, 'fabricada' ou dada, é um objeto se
mântico particularmente sobredeterminado, paradoxal e am
bíguo." (Hamon, 1989, p. 63).

' Para usar a expressão de Paul Ricoeur.


Por outro lado, como analisa Simmel (1919, p. 121), a ruí
na é figura que exprime a síntese de uma tensão, aquela da bata
lha travada entre a vontade do espírito, que impele para o alto, e
a necessidade da natureza, que puxa para baixo. Nesse sentido,
a ruína, enquanto construção, mostra que "a destruição de uma
obra faz nascer nela uma outra força, a da natureza, que passa a
conviver com a da obra de arte" (Simmel, 1919, p. 122). Logo, a
ruína é síntese, é elemento ambíguo e dialético que, diante de
duas forças opostas, insinua uma superação e dá nascimento a
uma nova condição.
O sobrado pode ser considerado ruína, na narrativa roma
nesca de Erico Veríssimo, como unidade de espaço-tempo que
atravessa toda a trama, como centro da ação e palco dos aconte
cimentos; como materialidade que resiste à destruição da guer
ra, mas que carrega a morte consigo, que guarda a vida e preser
va os escombros de uma linhagem, que quanto mais ascende no
poder e no prestígio mais revela fraqueza de caráter.
Forma unificada da antítese entre o passado e o futuro, ele
preserva, no declínio e decadência dos Terra-Cambará, um fascí
nio agregador: ele contém a história e é uma maneira de preser
vação da memória de uma ordem dada, mesmo que esta só sobre
viva pelo esforço de reminiscência e de repetição levado a efeito
pelas mulheres do sobrado, que são as suas verdadeiras guardiãs.
Já para Gilberto Freyre, o sobrado é ruína, se considerar
mos certo aspecto, aquele que se relaciona com a degradação da
sua materialidade. Por um lado, afirma Freyre, se o sobrado ates
tava a nobreza de seus ocupantes pelos elementos duradouros
da sua construção, por outro se degrada pela economia empre
gue na sua construção, como materiais de má qualidade.
A má edificação, a velhacaria dos construtores, a baixa qua
lidade dos materiais e a própria estrutura da casa formavam uma
unidade corrosiva (Freyre, 1961, p. 210). A planta de um sobra
do dispunha de uma ou duas salas para a rua e para a luminosi
dade do sol, permanecendo o resto da habitação voltada para
dentro e para a obscuridade.
Quartos sem janelas - sobretudo aqueles das moças da casa,
resguardadas da rua e dos perigos da realidade exterior —confina
vam as pessoasa ambientes escuros e sem ar. Devidoao excesso de
luminosidade e do calor do meio tropical, o possível desconforto
era compensado com a edificação de paredes grossase com poucas
aberturas, iniciativa que encontrava também consonância com os
costumes e os padrões da época, de natureza higiênica e estética,
que resguardavam as pessoas do sol e das correntes de ar, ao que se
acrescentava a valorização da alvura da pele para as mulheres.
A sala de visitas, dizia Freyre, era o melhor espaço da casa,
muito melhor que os quartos de dormir dos moradores do so
brado. O resultado deste processo era o envelhecimento dos
prédios, a umidade das paredes, o apodrecimento das madeiras,
o aspecto de degradação daquele habitai que fora erguido para
abrigar as elites, para preservar os valores do social e para ser
um símbolo do seu poder.
Mas a escala da decadência seguiria o seu curso, assinala-
nos Gilberto Freyre: o sobrado degradado veria seus antigos mo
radores a retirarem-se, a abandonar o prédio, a mudarem-se para
novas casas e a deixarem o habitai para novos ocupantes. Sublo-
cado, o sobrado vira cortiço ou mesmo bordel, como um mau
lugar da cidade, abrigando moradores de também mau viver.
Sob essa ótica, a derrocada do sobrado enquanto habita
ção da elite é ruína no sentido mais evidente: decomposição,
deterioração da forma original, desgaste da forma. Mas seria
ruína também no sentido de alteração radical de sua função e
significado. O sobrado deixaria de ser materialidade a preser
var o tempo, a guardar valores do passado e defender uma or
dem social, abrigando os seus representantes. O sobrado-corti-
ço ou o sobrado-bordel torna-se a negação desse passado e, se
é portador de um futuro, este é dado no sentido de aprofum
dar a sua decadência.

Entretanto, Gilberto Freyre tira desse exemplo um outro


significado, ou uma idéia-mestra, que atravessa toda sua obra: a
corrosão, interna e externa do sobrado, a sua destruição como
unidade de espaço-tempo. Nessa medida, o sobrado é agente
que desfaz o sentido básico da habitação senhorial da cidade,
que é de preservar, em adaptação ao meio citadino, o mundo
senhorial. Tal condição é, na sua linha interpretativa do Brasil,
prova da superioridade da casa-grande em face do sobrado.
A casa-grande rural é mais bem adaptada ao meio, é superior
como habitatírenlG. à anti-higiênica, mal ventilada e sem luz habita
ção senhorial urbana. Gilberto Freyre tira da degradação do sobra
do a prova desta idéia que afirma. E como se a ruína do sobrado
ensinasse o que melhor condiz ao país em termos de habitai e onde
se pode encontrar o passado nas suas raízes mais profundas.
Mas, por outro lado, Gilberto Freyre possibilita uma outra
leitura desta condição ruína do sobrado, no sentido de ser porta
dor do passado e de antecipar o futuro. O mesmo sobrado, ante
riormente visto sob uma ótica negativa, é entendido justamente
como o elo de unificação que percorre a diversidade do país.
De norte a sul, são os sobrados de herança lusitana aqueles
elementos, materiais e culturais, a afirmarem a lusitanidade do
Brasil. Com variações regionais, decorrentes das adaptações ao
meio, os sobrados são portadores do passado e confirmam a iden
tidade nacional a ser preservada no futuro.
Buscamos cruzar dois olhares distintos, mas comunicantes,
sobre o sobrado: o que pretende descrever e interpretar a reali
dade através dos registros de historicidade deixados no tempo e
no espaço - Gilberto Freyre - e aquele que, a luz dos marcos de
historicidade, monta um enredo ou uma trama fictícia - Erico
Veríssimo -, tendo o sobrado como uma figura de referência
central para o entendimento das sensibilidades produzidas pe
los homens ao longo da história.

Referências

FREYRE, Gilberto. Casas de residências no Brasil. Revista do Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional, n. 7, 1943.

317
FREYRE, Gilberto. Prefácio. IN: LAYTANO, Dante de. Guia histórico de
Rio Pardo: cidade tradicional do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio Pardo:
Prefeitura Municipal, 1979.
. Sobrados e mucambos. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.
Tomos 1 e 11.

. Sugestões para o estudo da arte brasileira em relação com a de


Portugal e as das colônias. Revista do Patrimônio Histórico eArtístico Nacio
nal, n. 1, 1937.
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Grande do Sul. Província de São Pedro, Porto Alegre, Globo, n. 7, dez.
1946.

HAMON, Philippe. Expositions. Littérature et architecture au XJX e. siecle.


Paris: José Corti, 1989.
MASSOBIO, Giovanna; PORTOGHESl, Paolo. Uimaginário architetto-
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RICOEUR, Paul. Architecture et narrativité. Urbanisme, Paris, n. 303,
nov-déc. 1998.

SIMMEL, Georg. Die Ruine. In: . Philosophische Kultur. Leipzig,


1919.

VERÍSSIMO, Erico. O Tempo e o Vento. O continente. 32. ed. São Paulo:


Globo, 1996. Vol. 1 e 11.

'J /(V
O sobrado, um artefato narrativo
^iccfaeò' ^en/iarc/t
(T/

Como bem mostra Sandra Pesavento num dos ensaios deste


livro, intitulado "Os andares do sobrado: de um Brasil a outro", a
análise feita por Gilberto Freyre sobre o motivo arquitetural do so
bradopermite ilustrar a passagem de uma época à outra da história
do Brasil. Em Sobrados e Mucambos, o sobrado aparece, assim, como
uma figura arquitetural na qual tomam corpo os efeitos das trans
formações sociais que sofreu o Brasil patriarcal. Gilberto Freyre faz
do sobrado a pedra de toque da transposição dos valores eiime a
tradição mral que morre e o futuro urbano que se anuncia.
O fato de que Veríssimo tenha se aproveitado das análises
feitas por seu contemporâneo não deve, entretanto, mascarar o
fato de que o sobradose torna objeto de um tratamento narrativo
distinto nas diferentes partes d' O Tempo e o Vento. Eu gostaria de
desenvolver esse ponto.
N' O Continente, primeira parte do ciclo de O Tempo e o Vento,
Veríssimo lembra a epopéia rural das diferentes populações que
se instalaram no sul do Brasil até a chegada do Império à som
bra da coroa portuguesa, mantendo um constante enfrentamento
com os espanhóis na região do Rio Grande. Esta instalação não
é, entretanto, narrada num tempo real, como se o narrador se
guisse os atores ou fosse ele mesmo um deles, mas expost de um
ponto de vista histórico que se pode qualificar de transcenden
tal. A história que desenvolve o narrador é fechada, o que per
mite que seja narrada como uma objetividade exterior aos pró
prios narradores. Estes, que o leitor descobre pouco a pouco, se

Tradução dc Sandra [ataliv Pcsavcnio.


encontram também implicados, no momento em que nós os re
encontramos, em uma outra história, bastante distanciada no
tempo. Sem dúvida, esta é uma aproximação para falar de uma
"outra" história, pois o presente da narrativa mergulha as suas
raízes neste mesmo passado narrado.
O sobrado sitiado pelo qual começa O Continente é, com efei
to, o lugar a partir do qual os atores do presente histórico retra-
çam o fio de uma história passada, de uma narrativa, que fornece
as explicações necessárias para que o leitor compreenda o que
está em vias de se passar. História retrospectiva, então, que nos é
contada por seus perdedores: Licurgo resta uma nobre figura na
derrota e na morte. Mas seu mundo é passado. Enquanto crono-
topo, o sobrado é uma estrutura arquitetônica tomada sob o fogo
dos dois grupos sociais que representam dois tempos sociais, duas
ideologias que se opõem como um passado e um presente. En
quanto motivo arquitetural, ele representa um ponto de contato
entre a cultura patriarcal rural e a cultura da cidade.
Sobre este ponto Veríssimo e Freyre estão de acordo: o so
brado se caracteriza pela sua maneira de gerir a questão abertu
ra/fechamento.

Legítima defesa
Nos primeiros tempos da migração que, por etapas, apro
ximou as duas famílias patriarcais da cidade, a arquitetura tem
ainda, essencialmente, a função de proteger aqueles que aco
lhe. É próprio dessa arquitetura, também, separar, claramente,
as funções sociais e domésticas das diferentes pessoas. Na casa
patriarcal, há as pessoas e há o pessoal, e os dois não devem se
misturar senão quando o serviço assim o exigir. O sobrado tem
igualmente por missão, além de suas características arquitetu-
rais, manter uma distância entre a cidade e a família.
A necessidade dessa separação, sobre a qual insiste Gilberto
Freyre, está diretamente ligada à coesão que procura preservar a
família tradicional. Em torno dela, a casa, o sobrado, forma uma
espécie de muralha protetora. Sob esse aspecto, a família se defi
ne como um "clã", e seus valores estão destinados a, constante
mente, reforçar sua integridade e sua interioridade. Ora, a cidade
que se desenvolve no recinto do sobrado, o qual acabará por se
tornar um tipo arquitetural propriamente urbano, contém nela
mesma um risco de dissolução dessa coerência familiar.
Veríssimo coloca em cena, e muito bem, a maneira pela
qual a circulação das idéias vai de par com aquela das pessoas,
como a praça pública e a rua que se tornam não somente espa
ços de circulação, mas também de discussão, de manifestação
e de troca. Freyre não se detém sobre esse ponto: a rua é a
forma moderna da urbanidade na medida em que favorece a
circulação das imagens e das modas. A versão romanesca da
análise dos últimos alentos da sociedade feudal patriarcal, como
a chama Freyre, toma então a forma de uma transformação do
sobrado em fortaleza. Pois o momento ao qual se detém Veríssi
mo é aquele de um desequilíbrio histórico, o qual obriga as
personagens à crispação ética. A desordem que os atinge não
pode conduzi-los senão a um frio retorno aos valores e com
portamentos do passado.
O uso que é feito do sobrado nas primeiras páginas d' O
Continente mosXX2i bem essa retomada. Com efeito, nesse roman
ce, a verdadeira fortaleza é a casa habitada pelos Amaral, caci
ques locais em que a construção de pedra toma, sob a pena de
Veríssimo, uma aparência de castelo fortificado. O sobrado que
ocuparão os Terra-Cambará a ele se opõe como a manifestação
arquitetural e, portanto social, da modernidade. Quando Agui-
naldo constrói o primeiro sobrado de Santa Fé, cada qual sente
muito bem que um vento novo está prestes a soprar sobre a cida
de, que costumes e idéias novas, que não vão demorar a se opor
àquelas defendidas pelos Amaral, vão penetrar na cidade. Além
disso, poder-se-ia dizer que esse é o momento em que Santa Fé
deixa de ser vila para se tornar uma pequena cidade. Gilberto
Freyre insiste sobre esta posição do sobrado entre ruralismo pa
triarcal e urbanidade moderna e republicana.
Os enfrentamentos entre culturas opostas, que constitui
rão o motor dinâmico da narrativa de Veríssimo, farão com que
os herdeiros da velha linhagem dos Terra-Cambará, os quais se
tornarão por casamento os proprietários do sobrado, serão obri
gados a dele fazer um uso que não nega essa modernidade. Eles
a transformarão em fortaleza. Essa mudança retrógrada é uma
derrota para a família Cambará, um golpe da história.
No fim desse episódio, o sobrado torna-se o sepulcro de um
tempo e de uma tradição, mortos pela evolução histórica. Aí será
enterrada a filha da família, vítima ainda criança, não tendo, em
conseqüência, ainda voz no capítulo, infância sacrificada em um
mundo dominado pelos homens de guerra. Essa sorte fúnebre
está, sem dúvida, ligada à morte de Luzia, ela também nascida
muito cedo mulher moderna em uma história que não está se
não em vias de abalar os antigos valores machistas e belicosos.
No sobrado transformado em fortaleza, toda ação está ainda do
lado dos homens e das armas, as mulheres não podem senão
parir e morrer, prolongar ainda a única função de reprodução
que lhes é deixada por uma cultura masculina que tem dificul
dade para lhes deixar outros campos de expressão.
Essa mesma construção, portanto, já recebeu duas funções
distintas: quando Aguinaldo o construiu, ele assinala o empre
endimento de uma nova geração de homens poderosos trazidos
pelo dinheiro que lhes dá os meios de se apropriar da terra das
antigas famílias de colonos. O motivo arquitetural de origem
urbana vem concretizar a vitória econômica de um novo tipo de
proprietário, desligado das tradições rurais e movido pelos valo
res modernos da cidade e do comércio.

O que tem se alterado - e muito - c o conteúdo ético de que vem


se animando essas formas, sob a pressão de novas condições de
contato das regiões do Brasil com as outras e de quase todas com
o resto do mundo. (Freyre, 1959, p. CLXVIII)

Em um primeiro momento, esta abertura para os novosvalo


res se deu, para a maior parte da cidade, como um recuo que, na
verdade, não era senão um efeito passageiro da crispação, última
e mortal, de uma cultura em vias de desaparecer. Mas é precisa
mente este "em vias de morrer" que dura, que não se acaba, o que
constitui o sentido profundo dos romances de Veríssimo, tanto
n'0 Continente como n'0 Retrato. Estes romances se constróem,
ideológica e formalmente, sobre uma temporalidade em suspen
são, sobre um tempo e sobre ações que têm dificuldade em trans
formar a realidade do mundo, porque esta parece estar imobiliza
da em um purgatório indeciso. O uso constante do Jlashbackzsúm
como o jogo dos planos de enunciação distintos, tão característi
cos d' O Continente, participam da constituição deste presente sus
penso. De maneira significativa, se encontra esta mesma postura
metodológica em Gilberto Freyre. Ao sentimento clássico da tem
poralidade, pelo qual o tempo acabado, o passado, é exterior aos
atores contemporâneos, Freyre opõe uma noção de tipo bergso-
niano do tempo: "[...] em que a tradição, incorporada a uma civi
lização, passava a ser considerada condição contemporânea da
existência viva dessa civilização." (Freyre, 1959, p. CLXVIII).
Freyre, assim como Veríssimo, está à procura dos meios li
terários que permitam dar vida a esta permanência bergsoniana
do tempo da memória, a esta presença permanente do passado
no presente. O sobrado é o envelope material desta forma exis
tencial, Falta ainda descrever os usos pelos quais se manifestam
suas diferentes funções. É aqui que aparece a diferença entre o
sobrado d' O Continente e aquele d' O Retrato.

Introdução à urbanidade
A residência do Doutor Rodrigo Cambará, totalmente opos
ta à fortaleza que defendeu seu pai, está aberta a todos os ventos
da sociedade. Primeiro, enquanto médico, o Doutor é acessível
às diferentes camadas da população. Ele fez disso uma ética e
um modo de vida. E a partir daí que ele elabora o seu programa
político e o sobrado se torna um espaço onde se cruzam as opi
niões, onde a imprensa é pensada, onde a política se elabora. As
idéias que vêm de longe, tal como aquelas que refletem as situa
ções mais próximas, aí encontram um espaço acolhedor para se
confrontar. O bom Doutor Rodrigo garante acolhida às idéias
européias, às maneiras da capital, à ciência universal.
A narrativa insiste, daqui por diante, sobre as aberturas pe
las quais entram e se trocam os olhares e, logo, as idéias.
Do ponto de vista da análise desta função de mediação que
nossos dois autores reconhecem ao sobrado, o mundo feminino
que aí habita goza de um papel especial. Se o mundo da impren
sa e do debate político envolve principalmente os machos, o
mundo feminino, ao qual Freyre está particularmente atento,
manifesta as diferentes formas de curiosidade e de abertura que
concernem à pessoa privada, os comportamentos psicológicos e
o funcionamento da família.
Como forma arquitetural, o sobrado se caracteriza por suas
múltiplas aberturas. Nisso ele oferece possibilidades infinitas
de expressão ao jogo das entradas e das saídas, mas também, e
mais simbolicamente, ao jogo dos olhares. Tradicionalmente
feminino no país dos leques, o comércio dos olhares se desen
volve com as janelas, as gelosias, as cortinas, os balcões e as
varandas, todas estruturas de mediação entre o dentro e o fora.
Em torno destes artifícios se reencontram as senhoras e as mo
ças, da sociedade e mundanas, que vão desempenhar um pa
pel essencial na formação dos jovens bacharéis de Recife e da
capital. Freyre é prolixo sobre essas aventuras do sexo das quais
ele precisa sempre que elas não são por assim dizer, nada mais
que a introdução ou o vestíbulo da educação mais geral às
maneiras, à civilização mundana e aos costumes. Esta função
pedagógica da educação sentimental e sexual dos jovens em
uma sociedade muito rígida era um dos principais canais por
meio dos quais penetravam as idéias que vinham da Europa.
Nessa pedagogia das maneiras, aquelas chamadas de "france
sas", como, por exemplo, Madame Susana, cocottes de alto vôo,
podem, legitimamente, pretender ocupar um lugar na história
da cultura brasileira.
[...] e quanto às francesas - além de nem sempre francesas -
como as do célebre Alcazarúo Rio de Janeiro, ou como as da Rua
do Ouvidor que, atrizes, cantoras, modistas, caixeiras de lojas ele
gantes, também se afirmaram às vezes naqueles decênios, em sua
qualidade de cocottes, mestras de civilidade, de polidez e de refi
namento de muito brasileiro ainda rústico, a despeito da oura-
ma no banco ou do anel de bacharel ou de doutor no dedo.
Uma destas cocottes íoi a Susana. (Freyre, 1959, p. 92)

É evidente que as descrições dessa aprendizagem munda


na dadas por Gilberto Freyre convém melhor às sociedades do
Recife e do Rio que àquela de Santa Fé ou, de uma maneira
geral, à situação cultural do Rio Grande do Sul. Veríssimo não
deixa, entretanto, de notar este papel particular que é atribuí
do às mulheres como mediadoras destes mundos exteriores, e
em particular, europeus. E, sem dúvida, uma das funções im
portantes que se pode reconhecer na personagem Luzia n'0
Continente, como já tínhamos sublinhado (Leenhardt, 2001).
Luzia aparece no romance como o espírito do construí
do por seu pai, ela é dele a quintessência. Mas seu destino será
trágico : não mais que o sobrado, ela não poderá, na época que
é a sua, encontrar uma verdadeira inserção no horizonte cultu
ral e social de Santa Fé:

Em o Continente, somente Luzia portava esta perspectiva que, no


contexto da sociedade antiga, só podia aparecer de uma forma
patológica. A figura de Luzia perturbava o bom funcionamento
da estrutura familiar e social e não podia, portanto, aparecer como
uma referência positiva. (Leenhardt, 2001, p. 123)

Freyre nota, a esse respeito, mas sem se referir, certamente,


ao personagem de Veríssimo, que se o período retraçado no ro
mance coincide com uma forte reeuropeização do Brasil, trazida
por uma nova emigração européia, as febres foram, também, o
principal inimigo desta reeuropeização, pois atingiam principal
mente os loiros de olhos azuis. A peste bubônica, a sífilis e a febre
amarela, todos esses elementos: "Operaram eles no sentido de
moderar a re-europeização do Brasil e de conservar, o mais possí-
vel, no país, os traços e as cores extra-européias, avivadas durantes
séculos profundos de segregação." (Freyre, 1977, p. 310).
Constata-se, então, que a introdução do sobrado na evolução
do romance histórico de Veríssimo, tal como na análise, quase
etnográfica, que é Sobrados eMucambos, de Freyre, atesta uma mu
dança profunda. Os heróis trágicos que deram sua estrutura a O
Continente são substituídos n' O Retrato por personagens definidos
por suas características psicológicasindividuais e por sua adesão a
um mundo de valores, que não podia deixar de ser condenado
no horizonte rural e patriarcal d'O Continente. O sobrado torna-se,
por etapas sucessivas, e para os dois autores, uma casa de família,
onde as individualidades se afirmam, individualidades que não
mais serão só pautadas pelos grandes papéis, desempenhados pelos
representantes típicos daquele mundo rural tradicional.
É certo, entretanto, que a comparação entre o papel que
lhe faz desempenhar Freyre e aquele que lhe é atribuído por
Veríssimo deixa aparecer uma diferença. Esta se deve, sem dúvi
da, ao fato de que o objeto das obras de Gilberto Freyre é estrita
mente a "decomposição da antiga sociedade patriarcal", posta
em evidência por um olhar retrospectivo, senão, às vezes, nostál
gico. Aquele de Veríssimo, em compensação, se ele recobre este
primeiro sentido, nele acrescenta o da construção da sociedade
contemporânea. Há, aí, um ângulo de visão diferenciado, que
uma perspectiva histórica distinta vem reforçar.

Referências

FREYRE, Gilberto. Ordemeprogresso. Tomo I. Rio dejaneiro:José Olym-


pio Editora, 1959.
Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desen
volvimento do urbano. 5. ed. Tomo I. Rio dejaneiro: Instituto Nacio
nal do Livro, 1977
LEENHARDT,Jacques. O retrato de Rodrigo Cambará. In: PESAVEN-
TO, Sandra Jatahy; LEENHARDT, Jacques et al. Erico Veríssimo, o ro
mance da história. São Paulo: Nova Alexandria. 2001.
As janelas do sobrado:
de como a parte se viu no todo
<Sa/i^/'aySata/w ^esuoe/ito-

Em novembro de 1940, por ocasião do III Congresso Sul-


Rio-Grandense de História e Geografia, em Porto Alegre, Gil
berto Freyre apresentou um trabalho, especialmente escrito para
essa ocasião e que se chamou "Sugestões para o estudo históri-
co-social do sobrado no Rio Grande do Sul". Naquele evento,
Freyre viera ao Rio Grande do Sul como representante de Ro
drigo Mello Franco de Andrada, diretor do recém-criado Servi
ço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN),
Para os gaúchos, a vinda de Gilberto Freyre revestiu-se de
grande significação, pois, desde a publicação de Casa-Grande &
Senzala, em 1933, e de Sobradose Mucambos, em 1936, o sociólogo
pernambucano gozava de grande prestígio.
Sua participação no evento sulino pode talvez ser consi
derada incidente menor e sem expressão na sua carreira então
ascensional, mas queremos justamente nos valer desta porta
de entrada - ou desta janela, como damos a entender no título
deste artigo... - , para surpreender processos mais amplos, que
ocorriam no nível do país, naquele momento. E, particular
mente, temos a intenção de poder analisar a escritura e o per
curso intelectual do autor em alguns dos seus textos ditos como
"menores".

O evento sulino era solene, pois tanto assinalava a passa


gem do bicentenário de Porto Alegre, a capital gaúcha, quanto
marcava a outorga do título de sócio benemérito a Getúlio Var
gas, presidente do país, pelo Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Sul, instituição que organizara o congresso a
pedido do prefeito Loureiro da Silva.'
Mas a Gilberto Freyre seria reservada uma participação es
pecial. Os Anais do congresso referenciam que Freyre tivera duas
modalidades de inserção no evento: uma, individual, quando de
Recife aderira e se prontificara a apresentar um trabalho, e ou
tra, oficial, quando foi indicado pelo SPHAN para representar a
instituição no encontro.^
A recepção preparada ao sociólogo pernambucano foi re
vestida de solenidade marcante:

No início da última sessão plenária especial, foi introduzido no


recinto, por uma grande comissão de congressistas, o Sr. Gil
berto Freyre. O autor de Casa-Grande &. Senzala foi recebido de
pé pela diretoria do Instituto, que dirigia a mesa. E logo após o
brilhante sociólogo fez entrega da sua colaboração especial para
o III Congresso sobre "Sugestões para o estudo histórico-social
do sobrado no Rio Grande do Sul." (Anais do III Congresso...,
1940, p. CCCXVI).

Trabalho esse, diga-se de passagem, que abria o primeiro vo


lume da publicação dos Anais e que viria a ser republicado, anos
mais tarde, na prestigiosa revista sulina Província de São Pedro.
Gilberto Freyre descera do Nordeste ao Rio Grande do
Sul em missão, e, quer parecer, o seu texto não resultou de
uma inspiração fortuita. Aparentemente, como pretendemos
discutir, várias questões estavam em jogo e faziam confluir a
identidade nacional, o regionalismo e a definição do patrimô
nio. Desde o ponto de vista local, a missão de Freyre no Sul
contribuiu para a integração cultural do Rio Grande do Sul ao
processo identitário nacional em construção. Naturalmente,
trata-se aqui de uma leitura - plausível, pretendemos - desse
episódio em torno da visita de Gilberto Freyre ao Sul, mas que

' Ver Anais do III Congresso... (1940, p. VII).


®Ver Anais do III Congresso... (1940, p. LXXVI e LXVIII, respectivamente).
pretende fazer avançar a reflexão sobre este processo, proces
sojá muito debatido, masjamais esgotado, que é o da invenção
da identidade nacional brasileira.

São por demais conhecidos o efeito renovador da obra de


Freyre e as decorrentes implicações que se seguiram, após a pu
blicação de suas idéias sobre o Brasil para uma reformulação das
formas de ver e pensar o país. Muito já se tem escrito sobre a
verdadeira "redescoberta" da nação que sua obra desencadeou.
Como diria Roland Barthes, em sua resenha sobre Casa-
Grande & Senzala, por ocasião da publicação do livro na França,
em 1952, quase dez anos depois de sua edição brasileira: a obra
surgira em 1933, ou seja, no mesmo ano em que Hitler assumia
o poder na Alemanha. Ou seja, justo no momento em que se
propagavam teorias de superioridade racial, Gilberto Freyre ino
vava com as suas idéias de apologia da mestiçagem.
Espécie de chave para a salvação da "alma da terra", Gilber
to Freyre positivara a imagem do país, inscrevendo-se como artí
fice de uma nova identidade nacional afinada com o horizonte
de expectativa dos novos tempos.
Se analisarmos a seqüência de suas duas obras máximas -
Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos -, veremos que há
nelas um fio condutor de estratégia metodológica, que permite
visualizar o processo de miscigenação para além do puramente
biológico e que possibilita resgatar o ethos nacional.
Na sua abordagem, Freyre parte dos dados materiais, físi
cos e objetais para delinear as sociabilidades e os atores, chegan
do por fim ao mundo dos valores e dos significados da cultura.
Mediante tal postura, ao mesmo tempo antropológica, so
ciológica e histórica, pode-se dizer que sua análise da formação
cultural brasileira obedece a dois princípios que aparecem como
resultado de uma combinação de significados: pluralidade/ori
ginalidade e apropriação/ressignificação.
Em outros termos, Freyre recupera o processo pelo qual, a
partir de uma base já miscigenada e multirracial (lusos, hispâni-

''19
COS, mouros, orientais), a química do processo civilizatório pro
duz uma cultura nova original, também miscigenada (brancos,
índios, negros). E, no processo de integração de variados ele
mentos, constituía-se um outro significado, distinto das suas par
tes componentes.

Gilberto Freyre acompanha tal processo a partir da casa,


que opera como um microcosmo da nação, espécie de laborató
rio de uma mestiçagem não só racial, mas, sobretudo, cultural.
A idéia de enfocar a casa como portadora do social e do
cultural não é nova, vinda já de Alberti, no século XVI, e seria
retomada por Le Corbusier. Nesta linha, Gilberto Freyre a uti
liza como unidade espacial e material de reflexão para pensar
o Brasil.

É da habitação doméstica, do prédio arquitetônico fami


liar que o sociólogo parte para recolher os detalhes e objetos da
vida cotidiana, as práticas e valores dos personagens desta saga.
Mostra como a técnica de base lusitana se adaptou ao meio tro
pical, e como a conjunção da cultura com a natureza foi capaz
de produzir a originalidade do novo sem que as marcas da cultu
ra de base desaparecessem. Cultura essa, a rigor, peculiaríssima,
mas sem perder a marca da origem lusitana. De uma ponta a
outra, a linha de miscigenação se expressa em um hibridismo
cultural, dado a ler pela materialidade das coisas e evidenciando
como, a partir do modelo reduzido —a casa —, era possível enxer
gar a própria nação.
Não será, pois, por acaso que o autor de livros tão significa
tivos para a compreensão da identidade nacional e que, sobre
tudo, tenha pensado a sociedade e a cultura a partir da habita
ção familiar brasileira, tenha sido convidado para integrar o
SPHAN desde a sua criação, em 1937. Gilberto Freyre era um
nome nacional e de prestígio para entrar nesta espécie de aca
demia do patrimônio que vinha de ser fundada. A refundação
da nacionalidade passava, obrigatoriamente, pela redescoberta
do passado e pela preservação da memória, como forma de cons
truir o futuro.

oóí)
Como o próprio nome da instituição indica, o SPHAN pas
sou a agir no sentido de definir o patrimônio do país em termos
artísticos e históricos. Ora, a política do patrimônio é sacraliza-
dora: identifica elementos, cria pertencimentos, fixa a memória
e instaura ritos. Afirma "verdades" e pontos de ancoragem da
memória de um povo, possibilitando o reconhecimento, mar
cando identidades e foijando todo um imaginário sobre a na
ção. Mas a política patrimonial tem um caráter prático: catalo
gar ou inventariar os chamados bens culturais que, supostamen
te, produzem sentido, sentidos estes que devem ser comparti
lhados. O Decreto-Lei n- 25, criado a partir da idéia de Mário de
Andrade, passa a ser um instrumento jurídico de ação para o
tombamento federal de bens móveis e imóveis existentes no país.
As ações de identificação, inventário e tombamento pres
supõem, em tese, a prática da preservação que implica conser
var, restaurar, valorizar e proteger, legalmente, o bem tombado.
Seu objetivo é legar e dar a ver, para as gerações presentes e
futuras, aquilo que é seu, sua marca, sua alma. Em se tratando
da cultura material, a partir do elemento do espaço edificado,
escolhido como patrimônio a preservar atingia-se a esfera dos
significados, este reduto último de sensibilidade responsável por
uma comunidade simbólica de sentidos. Definia-se e socializava-
se, em síntese, a idéia e a imagem do Brasil e dos brasileiros.
Para que tais bens culturais fossem dotados de aura, ou seja,
para que lhes fosse concedido o status de marcos físicos de uni
dade espaço/temporal, como traços únicos e originais a serem
preservados, era preciso que o SPHAN definisse o que era mere
cedor da qualificação positivada, como representativo de valor
artístico e histórico nacional. Melhor dizendo, como instituição
responsável para qualificar e fazer reconhecer um bem, o SPHAN
deveria enunciar padrões de referência, estéticos e históricos,
conferindo qualidade, autenticidade e veracidade.
Como se sabe, o SPHAN foi formado por figuras exponen-
ciais do modernismo brasileiro - Lúcio Costa, Oscar Niemeyer,
Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade -, tendo à frente o todo-poderoso Rodrigo de Mello
^6/
Franco de Andrada, que assumiu o cargo a convite de Gustavo
Capanema.
Sabemos também quais acabaram sendo os bens culturais
inventariados e que foram privilegiados pelo SPHAN: os marcos
físicos do barroco. Procurando harmonizar o passado com o pre
sente, definia-se que só o barroco tinha dignidade para ser pre
servado e ser considerado como antecessor do modernismo, ex
pressão da vanguarda estadonovista.
Tais marcos referenciais da identidade nacional teriam de
não apenas ser partilhados, enquanto pertencimento - ou seja,
deveriam estar presentes em, pelo menos, grande parte do terri
tório nacional -, mas também manifestarem valores específicos
do país. No caso do barroco, havia uma concentração destes re
gistros arquitetônicos em Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro.
É no seio deste grupo que passa a se inserirojá renomado
sociólogo Gilberto Freyre. Atuação modesta, diga-se de passa
gem, pois, ao que se saiba, ele atuou marginalmente no SPHAN,
sem ter o destaque de uma atitude que tomasse a iniciativa dos
tombamentos. Freyre deve ter entrado porque, absolutamente,
"não poderia ficar de fora", pois sabemos que não lhe eram sim
páticos os modernistas paulistas, aos quais acusava de serem "be-
letristas de gabinete" ou de haverem participado dos "festins
modernistas de 22", para referir-se a Mário e Òswald de Andra
de (Cavalcanti, 2000, p. 58).
Mas, pelo menos com Mário de Andrade, Gilberto Freyre
iria conviver dentro do SPHAN, no plano oficial de composição
do grupo. No próprio ano de fundação da entidade e do seu
ingresso na mesma, Gilberto Freyre sugeriu a inclusão de uma
nova linha de reflexão deste patrimônio nacional, que já vinha
desenvolvendo em suas obras anteriores.

Em artigo escrito para o primeiro número da revista do


SPHAN, publicado em 1937, intitulado "Sugestões para o estudo
da arte brasileira em relação com a de Portugal e das colônias",
Freyre (1937) apontava a necessidade de inventariar as obras de
arte existentes no país, para que se pudesse ver a marca lusitana
de origem. Mostrava como os bens culturaisbrasileirosevidencia
vam a adaptação da técnica, do savoir-faire\\xs\X2ino ao meio local,
produzindo um resultado onde tanto se via a produção do novo
quanto o registro do antigo.Em uma espécie de "encontro com o
pai", o Brasil se apoiava em origens que reconfortavam.
Havia, dizia Freyre, traços portugueses que se conservavam
no rosto dos homens, na fisionomia das casas, nos móveis, nos
jardins, na culinária, nas festas, na pintura e na arquitetura.
Note-se que Freyre indicava a ampliação do conceito de
patrimônio para além daquele entrevisto no construído, para
apontar também os costumes e tradições que se encerravam em
uma unidade cultural luso-brasileira. Mas o que nos interessa,
para os fins deste estudo, é a abertura indicada por Freyre para
inscrição da habitação doméstica no rol de bens a serem inven
tariados como patrimônio, na linha de destaque quejá lhes dera
nos seus trabalhos anteriores, como marcos físicos que davam a
ler a trajetória sociocultural da nação. Menos rebuscadas e artís
ticas, enquanto estilo, do que as magníficas igrejas do barroco
brasileiro, as habitações domésticas urbanas revelavam a pureza
de uma estética muito particular, disseminada por todo o país.
E, nesse sentido, a vinda que fizera ao Rio Grande, no co
meço da década de 1940, parece ter sido fundamental, pelo
menos a partir do que dessa viagem relata seu companheiro e
amigo José Lins do Rego, que com ele descera ao Sul:

[...] as idéias de Gilberto Freyre foram se encontrando com ele


na realidade, todas elas confirmadas no contato com a gente e a
terra que mais cultivavam as suas particularidades, e eram, no
entanto, tão irmãs dos nordestinos, dos baianos, dos mineiros,
de todo o Brasil. O Rio Grande foi um campo prodigioso para o
sociólogo confirmar e sentir a força da colonização portuguesa.
O que ele sustentara em Casa-Grande \\?imos ali ao nosso conta
to, Casas, móveis, jeito de falar, de andar, de sentir, de comer, de
rezar e por tudo isto bem à mostra a marca lusitana, o açoriano
de cara comprida do Rio Pardo vivo e bulindo ainda por toda a
parte. O Brasil era o mesmo, era a grande unidade que nem meio
século de estadualismo pudera corromper. Região contra esta-
dualismo, personalidade contra uniformidade, respeito ás ten
dências mais íntimas do povo contra a tirania de se deformar o
que o povo possui de seu, de sua alma, de seus impulsos. O fol
clore como uma sondagem na alma popular e não como um sim
ples recreio de curiosos de exotismos. (Rego, 1941, p. 20).

Ou seja, José Lins do Rego expunha a idéia da não-contrapo-


sição do regional à nação, mas sim a de que o nacional era feito de
regiões. Tais idéias vinham ao encontro da propostá feita por
Freyre, por ocasião do 1- Congresso Regionalista do Nordeste,
em 1926, organizado por ele no Recife. Na ocasião, Gilberto Freyre
apresentara o seu Manifesto Regionalista, onde figuravam itens
tão exóticos como a reabilitação da culinária do Nordeste!
A idéia freyriana era, contudo, retirar do popular e folcló
rico a classificação do exótico e designá-lo como parte do cará
ter brasileiro. Gilberto Freyre lançava mão de seu conceito de
mestiçagem cultural para a explicar o perfil do brasileiro como
uma nova realidade. O mestiço não era a combinação de raças,
etnias e culturas, mas sim a produção de um plus, de uma nova e
muito mais rica realidade cultural. A mestiçagem era, pois, algo
portador de uma ambigüidade intrínseca, pois antes de ser soma
das diferenças, era a introdução de um terceiro, distinto dos seus
elementos constituintes originais. A noção é multicultural, dis
tinta, inovadora e notoriamente contra o que ele chama de um
padrão politicamente imposto por determinados grupos... regio
nalizados. Ou seja, havia denúncias bastante explícitas no dis
curso de Freyre, como o redirecionamento cultural do varguis-
mo nos anos 30, liderado pelos grupos de intelectuais de Minas
Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo e que expressavam um rear-
ranjo de alianças políticas.
Nesse contexto, passando ao largo do barroco, Gilberto
Freyre vai buscar outro fio condutor para a nacionalidade, ele
mento este já presente nas suas obras anteriores: a casa.
Escolhera, para tanto, o sobrado, e é por meio deste que
mostrava que, olhando-se o "outro", era possível enxergar o "mes-
mo". Nordeste e Rio Grande se encontravam pelas janelas do
sobrado, a mostrar que ambos revelavam a ancestralidade lusita
na, apesar das contingências do meio e da formação histórica
diferenciada.

Falamos em "janelas" porque, desde a publicação do traba


lho de Gilberto Freyre em 1940, nos Anais do III Congresso Sul-
Rio-Grandense de História e Geografia, até a sua republicação,
em 1946, na revista Província de São Pedro, os textos vieram ilus
trados por uma série de janelas dos sobrados sulinos.
Nos Anais, as janelas compareciam através das fotografias
de Deusino Varella e, na Província deSãoPedro, por bicos de pena
desenhados a partir das fotografias indicadas pelo autor. Em nota
de rodapé dessa publicação (Freyre, 1946, p. 11), falava-se que
este recurso do desenho fora utilizado diante da impossibilida
de de reproduzir as fotos no periódico, como seria desejável.
Essas imagens nos mostram, sobretudo nas fotos, capricho
sas vidraças lusitanas, com arcos trilobados, recortes em losango
e em ogivas, em desenhos rendilhados ou de mosaico, a sugeri
rem e evocarem tradições seculares de um Portugal muito anti
go, mouro talvez!
No seu artigo, Gilberto Freyre comenta sobre os sobrados
que vira na primeira viagem que fizera ao Sul, no início de 1940,
naquelas cidades mais antigas e que estavam ainda cheias de tra
ços da colonização açoriana (Rio Pardo, Viamão, Pelotas, Rio
Grande e Porto Alegre). Para ele, era possível vislumbrar "al
guns elementos da paisagem cultural brasileira que pouco ou
nada variavam de Norte a Sul" (Freyre, 1946, p. 10). Diante do
impacto deste "unitarismo" da paisagem, que se dava ao lado de
um pluralismo cultural, devido à adaptação ao meio e à influên
cia de outras correntes migratórias na região, é que surgira a
concepção do texto que viria a apresentar no III Congresso Sul-
Rio-Grandense de Geografia e História, no final do ano de 1940,
por ocasião de sua segunda visita ao Sul.
Afirmava o autor que, pela observação que fizera da habitação
nobre da cidade - o sobrado, entendido aqui como a casa de dois
ou mais andares ou assobradada, com porão alto, criando um meio-
andar para o térreo -, a variação regionalsulina tinha semelhanças
inegáveis com a do Nordeste brasileiro ou dos Açores.
Gilberto Freyre destacava a importância da vidraça, da gui
lhotina e da clarabóia, apontando que "a arte da vidraça em ma
deira ornamentada ou de carvalho" tivera no Brasil a sua expres
são mais rica, ostentando

[...] uma variedade de rendilhados de madeira utilizados como


caixilhos de vidrarias de janelas e portas, as janelas do sobrado
rio-grandense davam a ver, claramente, os antecedentes açoria-
nos pelo tipo de construção doméstica. (Freyre, 1946, p. 10).

O Rio Grande do Sul devia enviar uma comissão aos Aço


res, dizia Gilberto Freyre, e apontava como exemplo desse inte
resse o estudo realizado pelo historiador local Dante de Layta-
no, que, em trabalho recente, desse mesmo ano - "O português
de Açores na consolidação moral do domínio lusitano no extre
mo sul do Brasil" —, já salientara que a "construção de casas no
Rio Grande do Sul estava cheia de influência açoriana".'^
Minucioso na sua análise, Gilberto Freyre indicava as adap
tações ao meio —o desaparecimento da chaminé -, assim como
os detalhes da permanência no ângulo do telhado, com "a pom-
binha para afastar o mau olhado", revelando superstições e cren
ças populares muito antigas.
E, da arquitetura, Freyre descortinava uma "sociologia e psi
cologia da casa", mostrando como desta habitação se pode ler a
infância dos meninos da época, as brincadeiras, os medos, o cli
ma a vegetação, a higiene, os tabus, os sintomas que expressam
ostentações e pudores, a situação da mulher, das filhas solteiras,
do marido, dos parentes pobres (Freyre, 1946, p. 13-14). O tra
çado ou o plano da casa se configurava como um livro, dando a
ler uma sociedade e seus valores.

Ver Anais do /// Congresso... (1940, p. XV).

S6r>^
Pensamos também, que, pelas janelas do sobrado, Freyre.
possibilitava pensar o tipo de interpenetração/separação do pú
blico com o privado. Se as rótulas e as paredes dão sobre a rua,
abrindo-se ao exterior, o "quarto das virgens", sem janelas e no
centro da casa, fazia do sobrado a fortaleza da família patriarcal,
a guardar tesouros e mulheres.
Em suma, Gilberto Freyre explicitava o sentido último de
seu trabalho apresentado no III Congresso de História e Geo
grafia: caracterizar a sociedade e a cultura brasileira "através da
predominância regional da casa de tipo mais nobre, tanto rural,
como urbana" (Freyre, 1946, p. 15), como traço unificador de
uma identidade regional.
O ano de 1940 parece ter sido de intensa produção para
esse autorjá consagrado, que lançara, na década anterior, as suas
duas obras máximas. Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucam-
^05 foram a matriz onde explicitava esta visão da arquitetura como
a representação sensível da idéia e do ethos de um povo, mas sua
linha de pensamento prosseguira, a complementar-se em outros
textos menores.

Tal como o texto de Porto Alegre não pode ser pensado


sem que se tenha em conta o anteriormente publicado na revis
ta do SPHAN, em 1937, neste ano de 1940 as idéias de Freyre se
desdobraram em outros artigos e obras, que explicitavam sua
opção pela leitura cultural do espaço construído.
A seqüência de sua produção consolidava esta sua linha mes
tra de ação e pensamento, na defesa de uma identidade pluralis
ta para o Brasil, com base na história, sociologia e antropologia
derivados de uma matriz lusitana cujos traços eram recuperáveis
na materialidade e na sociabilidade cotidiana.

Na conferência pronunciada em Recife, emjunho de 1940,


no Gabinete Português de Leitura e publicada pelo Diário da
Manhã,Freyre procurara desmistificar o sentimento de inferio-

•' "Uma cultura ameaçada: a luso-brasilcira" (Freyre, 1940a).

t>6y
ridade que pesava contra a cultura lusitana, denunciando aque
les que o detratavam.
Na obra do mesmo ano sobre o engenheiro e arquiteto fran
cês Vauthier,® que estívera no Brasil entre 1840 e 1846 e, partícu-
larmente, visitara o Recife, Gilberto Freyre insistia na importân
cia da arquitetura doméstica como chave de entrada para a com
preensão da alma do país e de sua história social.
Dessa obra se originaria mais um artigo, publicado em 1943,
na revista do SPHAN,® onde Freyre aprofundava os registros que
Vauthier deixara sobre as habitações domésticas do país, com
parando as plantas de casas-grandes e de sobrados que deixara
com aquelas elaboradas porJean-Baptiste Debret. Gilberto Freyre
acentuava a importância das semelhanças que se registravam de
norte a sul do Brasil, que a seu juízo evidenciavam o mesmo
substrato português de origem, mostrando como uma socieda
de se expressava na sua arquitetura.
Entusiasmado com as idéias que defendia, Gilberto Freyre
chegava, mesmo, em um dado momento, a regozijar-se porque
Vauthier e Debret concordavam com ele na sua visão do Brasil...
(Freyre, 1997, p. 226).
A arquitetura comparecia como fundamento da história so
cial, do caráter, da cultura e do delineamento dos povos. De Re
cife para o Rio, e deste para Porto Alegre, a casa familiar brasi
leira, de origem lusitana, fundamentava uma unidade cultural.
Com tal visão, Freyre transcendia o marco físico e espacial para
visualizá-lo como "janela" que permitia ver o tecido cultural.
Os registros de habitação doméstica escapavam, portanto,
da linha de interpretação do SPHAN para a identificação do pa
trimônio nacional e que, apoiada em uma postura ligada ao mo
dernismo, só via, no passado, dignidade e valor estético no bar
roco. Freyre apresentava as casas de residência das classes abas
tadas como que a serem inseridas no âmbito do patrimônio, ou

"Um engenheiro francês no Brasil" (Freyre, 1940b).


"Casas de residência no Brasil" (Freyre, 1997).

:26lV
seja, como um lugar de memória, que davaa ver a própria histó-.
ria. Gilberto Freyre entendia essa forma de habitação como me-
tonímia do social e como imagem da nação.
Esta seria, contudo, a primeira das leituras, que configura
o olhar freyriano como possibilitador de alargamento da visão
do patrimônio que se instaurava no país.
Outra leitura é aquela que lida com a dicotomia da nação e
da região.
Por ocasião das comemorações do bicentenário de Porto
Alegre, em 1940, Freyre dera uma conferência na Biblioteca
Pública do Estado do Rio Grande do Sul, intitulada Continente e
ilha. Em nota acrescentada na publicação desse texto, em 1943,
Freyre dizia regozijar-se por ver que as idéias que ali esboçara
coincidiam com as desenvolvidas por Vianna Moog em seu re
cente trabalho, publicado em 1942 e intitulado Uma interpreta
ção da literatura brasileira (Freyre, 1943, p. 9). A coincidência de
idéias dava-se no sentido de apontar que o país era um verda
deiro arquipélago cultural, o que lhe permitia desenvolver as
noções de "continente" e "ilha". O Brasil constituíra-se a partir
de ilhas sociológicas e culturais - cada qual com seu jeito, sua
maneira de ser e peculiaridades, províncias e regiões - que
compunham o continente ou arquipélago nacional. O país vi
via com estes "antagonismos complementares", pois, se um não
existia sem o outro (o todo existia em função das partes, e estas
só existiam por referência ao todo), era preciso contrabalan
çar: "o sentido do continente a nos defender dos excessos do
de ilha, o de ilha a nos defender dos excessos do continente"
(Freyre, 1943, p. 27-28).
Tais conceitos, que poderiam se expressar ainda pela cor
relação do lusitanismo de base com o universalismo da adoção,
ou do regionalismo com o nacionalismo, Gilberto Freyre enten
dia estarem nos fundamentos da teoria que concebera para pen
sar o Brasil.

E o que era, sobretudo, gratificante, dizia Gilberto Freyre, era


poder pensar o Nordeste quando visitava o Sul e ver, quando esti-

^ J26]f
vesseno Nordeste, a imagem do Rio Grande do Sul diante dos olhos.
O elo de ligação era, mais uma vez, o substrato açoriano, revelado
na dimensão do horizontal - as gentes, os modos de ser, a estrutura
familiar, a sociabilidade - e na vertical - a igreja, o pelourinho, o
sobrado, a Azenha, a Santa Casa (Freyre, 1943, p. 45).
Como foi dito, Freyre divergia da postura paulista, carioca
e mineira. Desde o Recife, o sociólogo falara pelo e para o Brasil
e propusera construir uma imagem positivada do nacional, a ser
endossada sem culpas pelos brasileiros e a ser apreciada pelos
estrangeiros. Entretanto, Gilberto Freyre via com preocupação
o novo status quo do pós-30.
Particularmente, o projeto estético modernista das vanguar
das do centro-sul não era o seu, e talvez se possa dizer que Gil
berto Freyre encarava, mesmo com apreensão, o fato de foijar-
se no Brasil a idéia de um país moderno, que pudesse esquecer
raízes ou tradições. Não que esse fosse o intento das vanguardas
que se projetavam e que, inclusive, com ele compunham o gru
po do SPHAN, mas a visão do social defendida por Freyre apon
tava antes para o passado e para a história, temendo as mudan
ças em curso.

Aparentemente, Freyre sentia que o eixo se deslocava e que


uma regionalização do Brasil ou satelitização das regiões mais
distantes pelo centro-sul estava se consolidando.
Em artigo na imprensa de alguns anos mais tarde, essas preo
cupações se revelavam explícitas.
Em novembro de 1949, ao comentar a visita do professor
francês E. Coornaert ao Brasil, Gilberto Freyre referia que este
fora "tão envolvido pela bruma paulista" que o resto dos brasilei
ros ignorava a sua presença no país. No seu entender, Coornaert
devia fazer tal como Lucien Febvre e ir também ao extremo sul e
ao norte: "Que conhecesse o Rio Grande do Sul, o Paraná, a
Bahia, Pernambuco. E não apenas São Paulo, o Rio e Minas".'

' "Outro sábio francês no Brasil" (Freyre, 1949b).

370
Em setembro do mesmo ano, Gilberto Freyre se regozijava
porque Lucien Febvre, desta vez, não ficara

[...] apenas no Rio, pisando o asfalto das avenidas, conversando


em francês com os velhos da academia e dando lições de história
de civilização aos moços da chamada Universidade do Brasil, que
é apenas uma das universidades do Rio de Janeiro.®

Ao referir que outro francês, o escritor Albert Camus, se


maravilhara com o espetáculo de um "bumba-meu-boi" nos ar
redores de Recife, Freyre complementava:

O professor Febvre precisa de ver um "bumba-meu-boi" desses.


Precisa de tomar mate no Rio Grande, leite em Minas Gerais,
água de coco na Bahia. Precisa de conhecer a cultura brasileira
nas suas raízes provincianas. (Freyre, 1949a).

Retomava aqui a questão da província, como uma espécie


de reserva do autêntico, ao mesmo tempo em que manifestava
sua condenação ao centralismo cultural e de poder. Notemos,
contudo, que este centralismo não era identificado com uma
situação política em especial, pois Freyre lançara essa denúncia
tanto no período do Estado Novo quanto após, no bojo da de
mocracia populista.
Na defesa das regiões que haviam tido "um passado ilustre"
ou que eram animadas "por preocupações igualmente nobres
de cultura", Gilberto Freyre recusava a que fossem resumidas a
simples "paisagens", "no sentido em que os fradiques do século
XIX pedantemente consideravam 'paisagem': o mundo além das
portas de Paris" (Freyre, 1949a).
Segundo esse olhar, que se inspirava na célebre frase de
Lord Beaconsfleld - o ministro inglês Benjamin Disraeli, que
dissera ser o mundo Paris e Londres, sendo o resto paisagem...-
o Brasil culto e de relevância situar-se-ia em algumas regiões di-

®"O professor Febvre no Brasil" (Freyre, 1949a)

37/
tas "avançadas", ficando o Nordeste e o Rio Grande do Sul, irre
mediavelmente, do lado da paisagem...
Entendendo a cultura brasileira como constelação de cul
turas, Gilberto Freyre lamentava que os visitantes ilustres não
viessem a conhecer personalidades regionais, como Moysés
Vellinho no Rio Grande do Sul, e onde havia uma nova geração,
ávida de saber e também produzindo cultura.
E, neste ponto, retornamos ao Rio Grande do Sul, de onde,
pelas janelas do sobrado, Freyre visualizava uma confirmação
para as suas teses, tanto da arquitetura como expressão do so
cial quanto da constelação cultural brasileira, a partir do subs
trato lusitano.

A experiência no Sul renderia ainda mais um texto, onde


Freyre (1941) tecia considerações sobre o que chamava "narci-
sismo gaúcho", ou seja, a maneira de ser local, dotada de uma
auto-apreciação exacerbada, baseada na concepção do heroís
mo e de ser um construtor, combinando a aceitação do progres
so sem recuar no culto às tradições.
E, nesse ponto, Gilberto Freyre estabelecia uma ponte en
tre o Rio Grande e o seu Nordeste:

Porque o narcisismo gaúcho é uma expressão de narcisismo na


cional. Nós todos, brasileiros do Sul e do Norte, estamos como
nunca nos contemplando a nós mesmos. No narcisismo regional
se exprime o nacional com maior ou menor intensidade. (Freyre,
1941, p. 242).

Articulando homem e paisagem, em uma simbiose perfeita


para o delinear de um perfil identitário regional positivado, Gil
berto Freyre chegava a citar o historiador gaúcho Moysés Velli
nho, que dissera que o gaúcho vencera a natureza "quase sem
luta". Próximo da natureza e dos valores que lhe são correlatos,
como a própria autenticidade, esse homem vencedor era pinta
do por Freyre em cores sensuais, tal como fizera na descrição do
Nordeste: "Naquela parte do Brasil, a natureza tem sido como

373
uma 'fêmea mansa', sempre a agachar-se sob as 'botas petulan
tes' do homem. De modo que este tem vivido 'entre as coisas',
como um dominador" (Freyre, 1941, p. 244).
Como teria sido a recepção do discurso de Gilberto Freyre
sobre o Rio Grande, ao estabelecer uma espécie de ponte en
tre o Nordeste e o Sul, a partir de elos arquiteturais que apon
tavam para uma mesma origem comum? A que expectativas
corresponderiam as teses sobre o pluriculturalismo da nacio
nalidade brasileira?

Já se viu que, por ocasião do III Congresso Sul-Rio-Gran-


dense, em 1940, Gilberto Freyre fora festejado e recebido com
pompa e circunstância. Quando, em 1946, foi republicado o ar
tigo resultante de sua apresentação no congresso, agora na re
vista Província de São Pedro, Moysés Vellinho rememorava o suces
so do autor desde a publicação de sua grande obra Casa-Grande
& Senzala. Indagava Moysés Vellinho por que esse livro se torna
va "imperioso, desses que reclamam e conseguem a grave ou
apaixonada atenção de todos":

O que infunde aos trabalhos do sr. Gilberto Freyre essa vitalida


de contagiosa é o largo sentido de descoberta com que nos sur
preendem, é o sopro construtivo que os anima e fecunda. Numa
terra em que a propensão para o negativismo só é comparável à
necessidade que temos de acreditar em qualquer coisa, o sr.
Gilberto Freyre nos propõe esquemas e interpretações em que
Já nos podemos rever sem os desalentos que as sociologias de
importação nos haviam instilado no espírito. [...] Aliviando-nos
de ressentimentos que nos pareciam incuráveis, nascidos de pre
conceitos hoje confundidos pela antropologia social, ela como
que nos integrou na consciência de dimensões mais altas.
(Vellinho, 1946, p. 5-6).

Afirmando que, no seu conjunto, a obra de Gilberto Freyre


proporcionara uma verdadeira "redescoberta" do Brasil, opor-
tunizando, com isso, uma revitalização e renascimento da vida
nacional, Moysés Vellinho destacava o caráter estimulante de todo
o processo, perguntando-se ainda:
E quem sabese a imensa e silenciosa experiência brasileira, revi
vida com tanto vigor pelo sr, Gilberto Freyre, não irá contribuir
para a revisão e arejamento de certas concepções sociológicas
ainda ressentidas de preconceitos e discriminações odiosas?"
(Vellinho, 1946, p. 6).

Enfim, um gaúcho a louvar um nordestino, a dizer que sua


obra "acordara novas forças em todos os recantos do Brasil"
(Vellinho, 1946, p. 6), revelava-se como um dado inusitado di
ante do contexto cultural sulino!

Moysés Vellinho concordava, pois, com a análise redentora


de Gilberto Freyre, que descobrira a fórmula mágica de reconci
liar a nação consigo mesma, encontrando positividade naquilo
que antes era motivo de opróbrio: a mestiçagem era boa, era
bela, era nossa...

Mas este não é o ponto que queremos ressaltar. Há uma


frase de Moysés Vellinho (1946, p. 6) extremamente reveladora,
quando diz: "Depois de sua obra, produto de uma cultura seve
ramente empreendida, sentimos que já não somos, que nunca
fomos uma simples expressão geográfica".
No seu enunciado, o raciocínio se aplicava ao Brasil e apon
tava na direção da conquista da "alma" nacional: qualquer coisa
de intrínseco, profundo, autóctone, um modo de ser específico,
sui generis, particular. Mais que o caráter ou o espírito nacional:
a identidade enfim achada, que dava a sensação de pertenci-
mento, que permitia a individualização e o reconhecimento e
que, sobretudo, confortava. Algo que extrapolava a territoriali
dade como elemento de compreensão e identificação de um país
e que apontava no caminho das construções imaginárias que
dão significado ao real.
Mas, em termos de Rio Grande do Sul, a noção da territoriali
dade ou da "expressão geográfica" se inscreviaem uma outra com
preensão, e que incidia em cheio no processo identitário regional.
Ao longo das três primeiras décadas do século XX, consoli
dara-se uma postura, apoiada na historiografia de Alfredo Varella,

tv/
autor de A Grande Revolução, que, ao analisar a Guerra dos Farra
pos, assentava as suas bases separatistas. Essa postura calhava bem
com o apregoado isolamento político do Rio Grande do Sul,
que, até 1930, se colocara à margem das pretensões à presidên
cia do país, atitude que, contudo, implicava alianças e composi
ções com as demais oligarquias nacionais e com o próprio po
der executivo central. Mas, no plano das representações identi-
tárias, a imagem difundida era de uma região autonomista, com
alto conceito de si própria e composta por elementos de alta
carga valorativa simbólica.
A mudança política de 30 e a ascensão de Vargas ao poder
central ainda se valiam da imagem estereotipada do Rio Grande
como sentinela da fronteira, sempre alinhado com as causas jus
tas. O mote revolucionário de 1930 - "Rio Grande, de pé e pelo
Brasil! Não poderás falhar ao teu destino heróico!" - tanto re
corria aos valores da tradição histórica local quanto manifestava
o seu endosso da brasilidade.

Esse era, contudo, um processo inconcluso no plano das


representações. A identidade local fora trabalhada no sentido
de acentuação das diferenças, e a nova situação pós-30 exigia
uma reavaliação desse processo imaginário de pertencimento e
identificação com o todo.
Mas eis que aparecera Gilberto Freyre, com o seu renome,
a sua cultura e projeção nacional, a fornecer mais uma chave
para a reinterpretação identitária do país, na sua conciliação com
o Brasil: a lusitanidade enfim confirmada, estabelecendo uma
espécie de aliança atávica e de representação identitária entre o
Sul e o Nordeste.

Insinuava-se a possibilidade do Rio Grande afirmar-se em


um Brasil onde o presidente era gaúcho, fato que não fazia com
que a condição econômica ou mesmo cultural da nação ficasse
em mãos dos rio-grandenses. Era notório que Vargas contraíra
alianças com o que os gaúchos chamavam as "forças do centro
do país". Apesar do esforço de estar Junto ao presidente e de
compor com ele, a elite rio-grandense considerava-se um tanto à
margem ou traída no Brasil pós-30, com a sensação de que o sul
"estava ficando para trás"...
As representações estavam em crise, e era preciso re
construí-las.

Não é por acaso que, no ano seguinte ao evento, em 1941,


durante sessão solene do Instituto Histórico e Geográfico, a in
telectualidade local redefinisse o caráter da Revolução Farrou
pilha, entendendo-a como federativa, e não como separatista.
Ou seja, a representação histórica confirmava as necessidades
da elite e solidificava a sua inserção naquela constelação brasi
leira de que falava Gilberto Freyre.
Das janelas do sobrado, via-se o Brasil. O Rio Grande estava
"em casa".

Referências

III CONGRESSO Sul-Rio-Grandense de História e Geografia, come


morativo ao bicentenário da colonização de Porto Alegre. Anais. Por
to Alegre: Prefeitura Municipal/Of. Gráf. Livraria do Globo, 1940. v.
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CAVALCANTI, Cláudio. Menino de engenho. Cultura Revista Brasileira


de Literatura, n, III, 2000.

FREYRE, Gilberto. Casas de residência no Brasil. Revista do Patrimô


nio Histórico e Artístico Nacional, Rio dejaneiro, n. 7, 1943. In: Revis
ta do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Número especial 60 anos
da revista. Rio dejaneiro, n. 26, 1997.
.. Continente e ilha. Rio dejaneiro: Casa do Estudante do Brasil,
1943.

_. O professor Febvre no Brasil. O Cruzeiro. Rio dejaneiro, 10


set. 1949a.

.. Outro sábio francês no Brasil. O Cruzeiro. Rio dejaneiro, 19


nov. 1949b.

. Região e tradição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941.


FREYRE, Gilberto. Sugestões para o estudo da arte brasileira em rela
ção com a de Portugal e das colônias. Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 1, 1937.
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de do Sul. Província deSão Pedro, Porto Alegre, n. 7, 1946.
. Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira. Diário da Manhã, Re
cife, 1940a.
Um engenheiro francês no Brasil. O Cruzeiro, Rio de Janeiro,
1940b.

REGO,José Lins do. Notas sobre Gilberto Freyre. In: FREYRE, Gilber
to. Região e tradição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941.
VELLINHO, Moysés. Editorial. Província deSãoPedro, Porto Alegre, n.
7, 1946.
Narrativas, imagens, idéias:
o museu imaginário de Gilberto Freyre
<Sanc/i^^ata/i^' ^esaoeato

Gilberto Freyre foi um homem de idéias. Ousadas, vanguar-


distas para a sua época, segundo alguns críücos, de um conser
vadorismo exasperador para outros tantos. Era de uma inegável
erudição e vasto trabalho de arquivo, como se pode ver em seus
livros, como no caso de Sobrados e Mucambos, quando arrola no
final uma copiosa bibliografia de indexação de fontes documen
tais e bibliográficas, consultadas para a elaboração dessa obra e
que o revelam como um incansável pesquisador.
Mas, quer o amemos, quer não, ele, assim como outros pou
cos intelectuais de sua geração, construiu imagens sobre o Bra
sil, em verdadeira tarefa de redescobrimento da realidade nacio
nal. Entretanto, há que reconhecer que Gilberto Freyre foi ho
mem que subordinou documentos, textuais ou imagéticos, à
construção e à demonstração de uma idéia.
Se quisermos definir o estatuto de sua escrita, ela tem tanto
um conteúdo sociológico e histórico, na sua preocupação com a
pesquisa e com as fontes, quanto um viés literário e ficcional,
por outro, a reescrever a realidade de acordo com uma verdade tí
ser demonstrada sobre o Brasil, tanto pelos caminhos da do
cumentação e das evidências racionais fornecidas por suas fon
tes, quanto pelos relatos de vida e experiências pessoais, que
passam pela tradução sensível do real.
A partir desse traço do autor é que nos dispomos a tentar
pensar no seu museu imaginário - 7ítc\\i\vo de imagens e de leitu
ras feitas - que o possam ter inspirado a compor o panorama
contrastante do habitai nas cidades do Brasil, do século XVII ao
XIX, a partir de sua obra. Sobrados e Mucambos, publicada em
1936, obra esta que, de forma pioneira, assinala e analisa a emer
gência da cidade na paisagem social brasileira.
Ora, o acesso a este universo mental de referências do au
tor, que aqui chamamos de museu imaginário, na inspiração de
Malraux (1947), nós o vamos tentar resgatar a partir das pró
prias referências fornecidas pelo autor em sua obra, tanto no
que diz respeito às suas leituras explícitas, quanto no que toca
àquelas possíveis de terem servido de inspiração, tendo em vis
ta a época e a própria formação cultural de Freyre. Nesse senti
do, a erudição e o trabalho de pesquisa de Freyre contribuem
para a formação de um acervo, arquivo ou museu imaginário
que, sem correspondência com os museus reais ou mesmo bi
bliotecas, nessa sua época, permitem as mais diversas confron
tações e estimulam a criação.
Tomemos como ponto de partida a própria idéia-guia em
torno da qual o autor passa a recorrer às fontes escritas e às
imagens para a construção do seu argumento, em Sobrados e
Mucambos:

—a de que a casa, espaço construído, dá a ver e a ler o so


cial, ante a adoção do princípio de leitura etnográfica da cultura
material, sob a inspiração de Franz Boas, e que o faz analisar o
sobrado, o mocambo' e o cortiço;
—a de que o surgimento da cidade, com o seu traçado e
arquitetura marcam um recuo do equilíbrio entre natureza e
cultura, tensão bem resolvida pela experiência luso-tropical no
Brasil, idéia-mestra de Freyre, a ser demonstrada em aproxi
mações e distanciamentos com o historiador português Olivei
ra Martins.

A demonstração de tal idéia deve encontrar amparo não


só nas fontes escritas consultadas e na própria experiência par-

' Gilberto Freyre emprega a palavra "mucambo", mas o Dicionário Honaissassi-


nala como correia a forma "mocambo".
ticular do autor - que viveu, sentiu e viu tal processo, ou reco
lheu as informações de depoentes, avalizadas segundo a auto
ridade da qual se investe, como pesquisador - e das imagens
que ilustramo processo narrativo e que tanto devem ter servi
do de fontes para o autor quando se prestarão a dar a ver ao
leitor aquilo que se quer dizer.
Na sua proposta de análise para apresentar o desenvolvi
mento da cidade no Brasil, Gilberto Freyre desenvolve sua argu
mentação a partir de duas dimensões espaciais e temporais de
diferente abrangência:
- a experiência urbana pioneira, ocorrida no Nordeste por
ocasião da dominação holandesa, no século XVII;
- a expansão das cidades, desenvolvida ao longo dos sécu
los XVIII e XIX, e que corresponde a uma área geográfica de
maior abrangência, embora o centro da análise se realize nos
casos do Recife, de Salvador e do Rio de Janeiro.
Ao começar pela experiência holandesa do Recife, que Gil
berto Freyre (1961, p. 6) enuncia como uma "aventura da dife
renciação", se estabelece uma tensão inicial: trata-se de uma
posição de vanguarda, de uma experiência sem precedentes, da
instalação de um projeto pioneiro, que coloca o Brasil em con
tato com o mundo, mais especialmente com aquela nação que
ocupava posição de frente no comércio mundial e que experi
mentava um florescimento cultural de grande expressão. Essa
condição de precocidade, que dá ao Nordeste brasileiro uma
vivência cosmopolita, de internacionalização cultural e de inte
gração a um mundo globalizado é, porém, fugaz.
E, pois, um ensaio vanguardista na história brasileira, que
se realiza em termos de ascensão e queda de uma experiência
urbana. A brevidade da experiência não é, contudo, enfocada
sob o aspecto histórico e, incontornável segundo as fontes por
ele consultadas, o que implicaria em entender o malogro como
uma inabilidade política e administrativa, estabelecida entre a
Companhia das índias Ocidentais e ossenhores de engenho lo
cais após a retirada de cena do príncipe Maurício de Nassau.
Interessado em constatar no Nordeste holandês o rápido
desenvolvimento do fenômeno urbano, Gilberto Freyre divisa
ali a imagem da má cidade, da cidade-vício e da cidade-condenada,
tão cara aos críticos do urbano no século XIX, fossem eles de
inspiração socialista como Engels, pregadores de um retorno à
natureza como William Blake, ou tardo românticos como Ruskin.
Com os olhos do século XX, Gilberto Freyre retoma as visões
construídas sobre a má cidade do século XIX para discutir a ci
dade tropical-holandesa do Nordeste brasileiro do século XVII.
Quais são as suas referências para essa análise? Suas fontes
escritas são aquelas entendidas como básicas para o estudo do
Brasil holandês," sobretudo a obra de Hermann Waqen, lida por
ele diretamente da publicação em alemão, de 1921, pois a tra
dução brasileira só veio a se efetivar em 1938.
Dessa obra ele recolhe os relatórios dos dirigentes da Com
panhia das índias Ocidentais paraa Holanda, queixando-se dos
enormes gastos, da devassidão dos costumes, dos barcos a despe
jarem bandos de prostitutas e de indivíduos da pior espécie no
porto do Recife, onde as tavernas e os bordéis eram os mais sór
didos do mundo e onde a população era atingida por doenças,
sobretudo a sífílis...

Desse manancial de informações, Gilberto Freyre não ape


nas retira um ethos urbano condenável, mas busca a própria ori
gem de tais males no habitai. E, nesse sentído. Recife revela-se em

- Na terceira edição de Sobrados e Mucambos, de 1961, Freyre indica como fon


tes de consulta obras que teriam sido lidas por ocasião da primeira edição de
seu livro, em 1936, e outras que foram publicadas após: Inventário das armas e
petrechos que os hollandezes deixarão na ProvínciadePernambuco quandoforão obri
gados a evacual-a em 1654 (Pernambuco, 1839), José Antonio Gonçalves de
Mello, No tempo dosflamengos (Rio de Janeiro, 1947), Hermann,Watjen, Das
Hoílandische Koíonialreich in Brasilien (Gota, 1921),José Honório Rodrigues,
Civilização holandesa no Brasil (São Paulo, 1940), Alfredo de Carvalho, Frases e
palairras (Recife, 1906), Pierre Moreau, Histoire des demiers troubles du Brésil
entreles hoíandois et lesportugois, (Paris, 1651),John Nieuhof, Voyages and traveis
in to Brazil and theEast Indians (Londres, 1732), Guilherme Piso, História Natu
ral do Brasil Ilustrada (trad. Alexandre Correia, São Paulo, 1948), Frei Manoel
Calado. Valoroso Lucideno e o triunfoda liberdade (Lisboa, 1648).
seu esplendor e decadência enquanto pioneirismo citadino, com
a exibição dos altíssimos sobrados, logo degradados em cortiços.
Se bem que o sobrado, enquanto habitação citadina tivesse
se apresentado em Salvador ou Olinda desde o século XVI, tal
como em Portugal, como casa que indicava a posição distingui-
da do seu habitante, tanto pela altura quanto pela durabilidade
do material de sua construção, a pedra, esses centros urbanos
ofereciam, sobretudo, uma paisagem horizontal
Já em Recife eles atingiram grandes alturas, dada a estreite-
za das terras que impeliu a verticalização do espaço construído,
com formas arquitetônicas bem conhecidas da técnica holande
sa em sua terra natal. Verdadeiros edifícios, com cinco a sete
andares, erguidos em terrenos muito estreitos, a apresentarem
fachadas de 20 pés (7,42m), 16 pés (5,93m) ou mesmo 13 pés
(4,82m) de frente!
A fonte básica de Freyre para estas considerações é um do
cumento de época, o "Inventário das armas e petrechos que os
holandeses deixaram na província de Pernambuco quando fo
ram obrigados a evacuá-la em 1654". A escassez do solo, acom
panhada da crescente demanda por habitações, tendo em vista
o crescimento rápido da população, implicou tanto a alta do
preço dos aluguéis quanto à transformação dos sobrados em
cortiços, subdivididos e superlotados. Ciosa de um contorno cien
tífico, empenhada em atestar o que afirma, a escrita de Freyre
usa das fontes, fidedignas, para mostrar ao leitor o que eram as
casas do velho Recife.

Eis, portanto, a Recife holandesa a vivenciar questões tipi


camente urbanas, pertinentes, talvez, a uma metrópole, a exibir
problemas de natureza técnica, higiênica e mesmo morais, dada
a promiscuidade reinante!
Mas, de tais sobrados-cortiços, nosso autor não fornece
imagens visuais. Faz deste cenário urbano uma narrativa que
remete a imagens mentais, a partir de outros sobrados antigos
que restaram, vindos de outros séculos e também degradados
em cortiços.
Os pintores holandeses que pelo Recife estiveram, trazidos
por Nassau, não nos dão a entrever tais monumentos urbanos
verticais que tenham permitido fixar a visão do que seriam tais
habitais populares do Brasil no século XVII.
Há, sem dúvida, um quadro de Frans Post,'^ de 1653, que,
colocando em primeiro plano a Cidade Maurícia, com suas
construções de tipo holandês a vizinhar com sobrados de estilo
português, com telhado de quatro águas, nos permite ver, ao
fundo, em um segundo plano, a concentração urbana do Reci
fe, com seus prédios altos a se desenhar no horizonte, na es
treita península.
Tal imagem, enquanto representação pictórica elaborada
após a volta do pintor para a Holanda, não nos permite um olhar
mais profundo que nos faça divisar a má cidade. Mesmo porque,
tais obras dos pintores holandeses, com vistas a exaltar a admi
nistração de Nassau e da experiência civilizatória dos holande
ses no Nordeste brasileiro não iria se destinar á revelação de
mazelas ou insucessos... Mesmo que a intenção do pintor fosse
uma representação realista, de encomenda, há o filtro da chan
cela oficial, além do que, algumas de suas telas foram executa
das de memória, de forma idealizada e evocativa daquilo que fora
visto no Brasil.

Na ausência de registro visual,Gilberto Freyre constrói, pela


narrativa, um objeto arquitetural que remete a uma imagem de
época. O imaginário da arquitetura se torna visível pela escrita,
pois a narrativa lhe atribui uma semântica inequívoca, que per
mite a associação com outras imagens que podem ser evocadas,
em correspondência.
Ninguém deixou de tais sobrados-cortiçosumTi imagem visual,
mas ela se constrói no plano do mental pela construção deste
objeto diferenciado e discriminado, que se associa a toda uma
carga simbólica de imagens recorrentes em significado.

' Pintura intitulada Mauritsstad eRecife, 1653. Coleção particular. Ver Beiluzzo
(1999, p. 124).
A Recife holandesa, com seus bordéis, com suas tavernas-
e cortiços, altos e superlotados, é Babel e é a Londres de Dickens
ou Engels, tal como a traduz Gilberto Freyre, a mostrar, já nes
te momento, que este aborto de grande cidade representou
uma ruptura do equilíbrio entre a natureza e a cultura, propi
ciando o mau viver. O sobrado que vira cortiço e também bor
del é uma perversão arquitetônica, pois passa a abrigar a nào-
famflia, o avesso da ordem instituída. E, portanto, forma de
gradada, fruto que matura antes do tempo e logo apodrece
antes mesmo de desabrochar.

Entretanto, se este ícone de verticalizaçâo da má cidade - o


sobrado-torre, verdadeira Babel - encontra sua expressão pioneira
no Recife holandês, a dominação batava iria proporcionar a nosso
autor a redação de páginas mais complacentes...
O sobrado-torre-cortiço-Babel é condenado enquanto diferen
ciação urbana desde o ponto de vista técnico, higiênico e moral,
mas Gilberto Freyre aplaude a diferenciação intelectual vivencia-
da no Recifejudaico-holandês, onde todo os credos, raças e ma
nifestações do espírito tinham lugar em uma experiência que
quebrara "a exclusividade de arquitetura, de religião e de estilos
devida" (Freyre, 1961, p. 320). Com esse enfoque, Gilberto Freyre
mostra como as pinturas de Post pertenciam, realmente, ao seu
museu imaginário.
Ao falar da experiência cultural do Brasil urbano holan
dês, Freyre recupera Frans Post e Zacarias Wagner na pintura,
Piet Post na arquitetura e urbanismo e o célebre médico Judeu
Velozino, para introduzir na Recife holandesa a imagem de uma
outra cidade: aquela da Meca da cultura, de centro irradiador
da civilização. Sobretudo, ao falar da pintura, Gilberto Freyre
(1961, p. 320) menciona, explicitamente, Frans Post, que retra
tara "casas de engenho, palhoças de índios, Mucambos de pre
tos, cajueiros à beira de rios, negras com trouxas de roupa suja à
cabeça, figuras de índios, de mestiços, de negras".
É possível, mesmo, chegar a identificar, na obra de Frans
Post, quais são esses quadros apontados por Freyre. Quando
nosso autor, em páginas nitidamente literárias, refere-se ao
florescimento "das formas mais atrasadas de religião [...] no
meio dos mangues, em lugares esquisitos e ermos, talvez já
no trecho do istmo ligando Olinda ao Recife", ou o quando
diz que "bandos afoitos vinham cantar e dançar nos oitões
das igrejas e sobrados" (Freyre, 1961, p. 321), é quase possí
vel dizer a qual ou quais das pinturas de Post nosso escritor
recolhe de seu museu imaginário.,. Trata-se da tela Capela com
pórtico"^ ou da Igreja deSão Cosme e SãoDamião,^ em Olinda? Ou
talvez seria Paisagem brasileira com nativos dançando e capelaf^
Há também, ainda, uma outra pintura, onde são, de novo,
representados negros a dançar nas ruínas da cidade de Olin
da, destruída pelos holandeses.^
O tema, no caso, parece recorrente na pintura de Frans
Post, pois a cena se repete em variações por muitos quadros. Em
todos eles, registra-se algo que possivelmente tenha inspirado o
pintor, que é a presença de uma associação e/ou enfrentamen-
to de culturas: a dos católicos portugueses, na sua cidade arrasa
da, marcada pela presença de capelas, ruínas, casa baixas e so
brados; os negros com seus ritos africanos, mais em harmonia
com os elementos da natureza - os animais e a vegetação, a com
por nas laterais do quadro, lembrando o meio tropical - e o
olhar holandês do pintor, detentor de outra cultura, a filtrar es
teticamente o que vê, na produção de uma imagem.
Todo esse conjunto se insere na melhor combinação alu
dida por Freyre, central na sua análise. Mistura cultural nos
trópicos, sem dúvida, mas há a evidência de que uma positivi-
dade se insinua nas figuras, transtemporais, dos negros a dan
çar em uma cidade - Olinda - tragada pelo tempo e, portanto,
já cidade fantasma.

' Da coleção Pimenta Camargo. Ver Arte no Brasil (s. d., p. 67, v. 3).
Ver Arte no Brasil (s. d., p. 31, v. 1).
" Coleção privada, NewYork. Ver Herkenhoff (1999, p. 231).
' Olinda. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Ver Herkenhoff (1999,
p. 263).
Tudo, pois, muito simbólico, pois há por trás dessas cenas
representadas mais duas cidades oculteis: Recife, a cidade renas
cida como uma Nova Holanda, onde se abriga o pincel desse
artista que, por sua vez, traz no olhar imagens referenciais de
outras cidades, em sua terra natal, a Holanda dos canais e do
cosmopolitismo europeu.
Detenhamo-nos, contudo, naquele quadro que, seguramen
te, traduz uma das máterialidades contempladas por Gilberto
Freyre: o mocambo. O quadro de Frans Post, Mucambos, interior
dePernambuco,^ como o próprio nome indica, remete-nos a uma
cena não-urbana! A paisagem é tipicamente rural, mesmo que
possam ser vistos vários mocambos, como se fossem dispostos
em uma espécie de aldeia.
A cena é, contudo, privilegiada no que diz respeito ao meio
no qual se insere esta modalidade do espaço construído: dentro
da lógica de representação da paisagem holandesa, tem-se a me
tade da tela para representar o céu, com nuvens, e a outra para
a representação do ambiente natural, onde os personagens com
parecem quase que como elemento de decoração.
As peculiaridades da natureza local se insinuam através da
luminosidade difusa, ou mesmo homogênea, em todo o cená
rio. As construções representadas - tal como refere Gilberto
Freyre para os mocambos - são simples, toscas, naturais; as es
truturas da construção são simples e primitivas, com aproveita
mento dos elementos locais: a madeira, a folha da palmeira para
o teto, as paredes erguidas por tábuas e por barro.
De uma certa forma, essa imagem de Post ilustra de forma
exemplar a idéia-guia da narrativa de Freyre: há um equilíbrio
entre natureza e cultura, chegando a compor uma espécie de
paisagem edênica. A casa erguida é adaptada ao clima tropical e
representa uma forma de resgate da virtualidade técnica ances
tral dos indígenas e dos negros africanos. A construção do habi-

" Quadro cxposio no Museu Nacional de Belas-Arics, no Rio de Janeiro.

2i.V7
tatpode ser rústica, mas revela uma sabedoria de adequação do
homem ao meio, ou seja, da cultura à natureza.
Para Freyre, o mocambo é descrito como um avanço no
tempo e no espaço. Habitação de pobre, ela vem a se substituir à
senzala; ela é o abrigo do liberto que antes habitava a senzala. O
mocambo parece formar com o sobrado, em um outro espaço,
no contexto da cidade, aquilo que a senzala compunha com a
casa-grande no meio rural.
Entretanto, uma espécie de desencontro se instala entre as
imagens e o texto. Se o mocambo é a contrapartida urbana do
sobrado, enquanto habitai popular, como se explica que tais ima
gens sejam, em princípio, de um ambiente não-urbano? As ima
gens pictóricas de Post, construídas a partir do que viu e retra
tou in loco ou evocou, à distância, reconstruindo a imagem pela
memória, estão a mostrar uma pertinência rural ou, no máximo
de uma aldeia para tal tipo de residência.
A propósito desta referência de ocupação espacial, entre o
urbano e o rural, na tela Aldeia,^ de Frans Post, são mostrados
habitais diferenciados, que permitem remeter às descrições das
primeiras cidades brasileiras apontadas no texto de Freyre. Pre
dominavam casas baixas, refere Freyre, recorrendo às informa
ções dos primeiros cronistas, como Fernão Cardim ou Gabriel
Soares de Sousa, que escreveram desde o século XVI. Eram tais
casas construídas com palha, tijolo, pedra, barro, cobertas de fo
lha de palmeira, telhas, trançado de ramagens. Mas tais primeiras
habitações, construídas nas primitivas cidades, seriam mocambos?
Embora as tais imagens de Post já registrem a existência
dos mocambos em um ambiente bucólico e predominantemen
te rural, no século XVII, Freyre vai recorrer à imagem do mo
cambo como uma contrapartida saudável, de reconstrução do
equilíbrio rompido entre natureza e cultura com o desenvolvi
mento das cidades.

•' Coleção da Fundação Maria Luiza e Oscar Americano. Ver Arte no Brasil (s.
d.,p. 29, V. 1).

thSW
Nesse momento, se introduz não mais uma tensão, mas
um desencontro entre imagem e texto, posto a serviço da de
monstração de uma idéia, de inspiração edênica, que é a da
unidade do homem com o meio ambiente, em situação não
corrompida pela cultura da urbanização, em espécie de paisa
gem antes da queda...
Mas, se retornarmos às imagens que povoaram o imaginá
rio freyriano, essas insistem em mostrar o mocambo deslocado
do ambiente propriamente urbano.
Uma explicação pode ser dada pela narrativa do próprio
autor, quando se refere a aldeias de mocambos e palhoças, pró
ximas aos sobrados e chácaras (Freyre, 1961, p. 153), com o
que se instala a não contigüidade ou dependência entre se
nhores e subalternos no que diz respeito à moradia. Estará o
autor, neste caso, a introduzir o habitai popular no que se en
tenderá como fora dos limites urbanos, no aglomerado que
passa a constituir o que ele chama de arredoresou que viria a ser
chamado, posteriormente, de região suburbana ou de arraial,
conforme a região do país.
Mas, insistimos, Freyre pretende inserir o mocambo como
espaço construído dentro do fenômeno da urbanização brasilei
ra e que, junto com a população das palhoças e cafuas, vai reco
lher os pretos, caboclos e pardos livres.
Outras possíveis referências para o museu imaginário de
Freyre, tiradas a partir das próprias indicações de leitura e pes
quisa fornecidas por nosso autor, insistem em nos mostrar figu
ras pouco urbanas de mocambos.
Tome-se,a propósito, obra de Johann Moritz Rugendas, dei
xada por ocasião da viagem que fizera ao Brasil, entre 1827 e
1835, e que Freyre utilizou na sua tradução francesa {Voyagepit-
toresque au Brésil, Mulhouse, 1835) por ocasião da feitura de seu
livro, Sobrados e Mucambos.

Não há como deixar de pensar que Freyre tivesse diante de


si, como referência para a composição de uma paisagem do pas-
sado, a aquarela de Rugendas, Habitation des nègres (Rugendas,
1995, pl. 5). Ela retrata uma cena que guarda uma certa conso
nância com o familiar. Há laços de afetividade entre os persona
gens, como, por exemplo, entre a mulher que assoma à porta e
o homem sentado à entrada da casa que tem por ela aceso seu
cachimbo. Mães com filhos no colo, crianças a brincar, a acom
panhar e a falar com as mães.
Como lembra Robert Slenes (1995/1996, p. 273), a anali
sar a obra de Rugendas, há como que uma cena familiar que se
processo ao lado de atividades de trabalho e de lazer. Mesmo
que Rugendas afirmasse que retratava o Brasil "d'après nature",
visando ir ao encontro de um horizonte de expectativas de um
público leitor de narrativas de viagens, Slenes (1995/1996, p.
278) aponta para a capacidade do africano de criar uma nova
vida no Brasil.

Rugendas se encarrega, pois, da construção de uma ima


gem, carregada de significado para a época, apoiando-se na vi
são romântica que pretendia mostrar a humanidade do negro e
condenar a escravidão e o tráfico.

Por outro lado, em palimpsesto, a escrita e as imagens de


Rugendas encontram correspondência - não total, mas signifi
cativa para a contextualização de uma época - com a obra de
Henry Koster, Traveis inBrazil, escrita em 1817, sobre a acultura
ção entre negros e brancos no Brasil, obra que é também citada
por Gilberto Freyre.
Dessa forma, o relato e as imagens de Rugendas sobre o
Brasil e, particularmente sobre o negro, vinham ao encontro
das teses que viriam a ser sustentadas por Freyre a propósito da
uma simbiose cultural no Brasil, de uma adaptação à terra e do
sucesso da colonização lusitana, desde que empenhada na lógi
ca máxima da adaptação entre natureza e cultura.
Mas retornemos à imagem de Rugendas, com sua casa de
negros. Ela foi erguida com madeira e barro, e tem por teto fo
lhas de palmeira, integrada a um ambiente tropical onde se vêem
bananeiras e mamoeiros! Em segundo plano, de um avaranda-

VJO
do, uma mulher debruça-se, a contemplar a cena. Em outras
palavras, a cena remete a uma contigüidade no espaço, a uma
proximidade vicinal.
Ora, nas referências freyrianas para a compreensão da pai
sagem social, o engenho & a senzala é que revelam tal integração
ou vizinhança, construída no mundo rural, enquanto que o so
brado e o mocambomarcavam um distanciamento espacial. O
próprio Freyrejá marcara, na sua escrita, esta tensão entre pares
que, no segundo caso, não guardam mais a mesma correspon
dência, através do elemento de ligação entre as partes, como
bem lembrou Jacques Leenhardt (2001): um &, indicando níti
do caráter de associação, no primeiro caso, um e, a revelar mais
propriamente a pluralidade, no segundo caso.
Mas, insistindo ainda sobre o quadro de Rugendas, que ha
bitou as referências imaginárias de Gilberto Freyre, será que po
demos dizer que se trata de uma paisagem urbana, com um so
brado, ou de uma casa assobradada de fazenda ou mesmo enge
nho? Esta é uma cena urbana ou rural?

Do século XVII de Post ao século XIX de Rugendas, a ima


gem guarda uma certa invariabilidade na paisagem, tanto no
que diz respeito ao habitai quanto com relação ao meio ambien
te no qual se insere.
Contemporânea no tempo, o quadro Casas de negro, de Ju-
les Marie Vincent de Sinety, de 1838, para o Rio de Janeiro (Mar
tins, 2000, p. 103), confirma o estilo de construção precária, frá
gil, integrado a um meio onde o destaque se dá com relação ao
entorno do meio natural e não do espaço construído.
Não é provável que tal pintura povoasse o campo imaginá
rio de Freyre, mas sem dúvida a fotografia de um mocambo dos
arredores de Salvador, retratado por R. Lindemann para o final
do século XIX,'" foi uma referência cotidiana para o olhar de
alguém nascido no Nordeste brasileiro: a foto reproduz o mes-

Mocambo. Arredores de Salvador. 1880. Ver Fernandes Jr. e Lago (2000


p. 104).

^9/
mo tipo de espaço construído, que não nos leva a identificar
uma paisagem urbana.
Olhando tal foto, em cruzamento com as imagens pictóri-
cas mais antigas, ganha sentido a afirmação de nosso autor, quan
do diz que "os Mucambos conservaram até hoje, na paisagem
social do Brasil, a primitividade dos primeiros tempos da coloni
zação." (Freyre, 1961, p. 233).
Recuperando imagens e cruzando-as com referências tex
tuais, torna-se possível, talvez, adiantar o estatuto do mocambo
como habitai, segundo o pensamento do autor: figura do espaço
construído no cruzamento dos tempos, na medida em que ne
gros libertos e mestiços se evadem da senzala para uma vida não
mais na dependência estrita e direta da casa-grande.
Isso faz do mocambo também uma figura de transição so
cial, tal como o situa ainda, por outro lado, no cruzamento de
espaços, pois se revela um habitai popular nem propriamente
urbano nem rural, localizando-se na proximidade dos centros
urbanos.

Igualmente, o mocambo é habitai que representa mestiça


gem cultural: sendo de origem africana (Freyre, 1961, p. 180),
encontra similitude com a palhoça indígena, com a sua cobertu
ra de palha ou capim e as paredes de sapé, como inclusive eram
construídas as casas dos portugueses dos primeiros tempos, em
uma espécie de sabedoria do viver, depois perdida.
A rigor, Gilberto Freyre utiliza o mocambo para represen
tar um deslocamento no espaço, pois se a senzala era integrada
à propriedade rural, o mocambo se erguera em um território
diferenciado.

Na cidade, contudo, segundo Freyre, os mocambos, embo


ra construídos de forma adequada ao meio - arejados e claros,
de forma a entrar o ar e luz do ambiente tropical -, eram ergui
dos nos piores terrenos, baixos e alagadiços, úmidos, em meio
ao lodo. Nessa medida, mesmo sem explicitar o conceito, Gil
berto Freyre demonstra em seu texto como a dupla, sobrado e
mocambo, reproduz, em solo urbano, a desigual apropriação so
cial do espaço.
Entretanto, mesmo que Gilberto Freyre situe, na sua narra
tiva, o mocambo como uma figura de passagem - do urbano
para o rural, do trabalho escravo para o livre -, ele se converte
em uma imagem atemporal, idealizada pelo autor para mostrar
a sobrevivência, através dos séculos, de um ter sido, em termos de
habitai popular, que preservava ainda uma unidade perdida en
tre natureza e cultura, dotado de uma positividade que serve à
sua idéia-guia e desistoriciza os componentes propriamente so
ciais dos habitantes de tais espaços construídos.
Usando as imagens a serviço da demonstração de sua idéia,
Gilberto Freyre chega a dizer que "não quer fazer o elogio do
mucambo", "mas se o terreno é seco, morar no mucambo é me
lhor", pois era "mais arejada e mais ventilada". Sua tese para o
Brasil, em termos de habitai, seria, em síntese, "o mocambo higie-
nizado, com saneamento e piso" (Freyre, 1961, p. 230, 183 e
231, respectivamente).
De atemporal, o mocambo, espécie de tipo ideal para a so
lução da moradia no país, se constrói como aespacial, uma vez
que se refere a uma realidade de habitai ou de sugestão a ser
adotada que é extraída de uma região natural brasileira não exe
qüível para outras regiões.
A perda do paraíso, em termos de moradia, dá-se, segundo
Freyre, pela emergência do fenômeno urbano, afetando a to
dos, pobres e ricos. Se os sobrados das elites eram, como Freyre
afirma, mal-arejados, sombrios, estreitos e úmidos, os pobres
seriam ainda mais atingidos, e por fatores, inclusive, de natureza
simbólica, dada a força e a positividade da imagem de uma casa
de brancos. Para o povo mestiço, morar em casa térrea, casa de
porta ejanela, era como que uma ascensão social (Freyre, 1961,
p. 179), mesmo que, em sua materialidade, elas fossem inferio
res às palhoças ou mocambos, na opinião de Freyre.
"Vò te agora jinela e porta de fundo" (Freyie, 1961, p. 294),
diriam os negros, no abandono da senzala para os casebres da cida-
de. De pequenas dimensões, baixas, com poucas aberturas, sem
soalho, com chão de terra, cobertas de telha ou zinco, mas, mesmo
assim, utilizando materiais como os do sobrado - a pedra, a cal, o
tijolo, a telha -, as casas dos pobres nos centros urbanos, ao repro
duzirem uma cópia barata do modelo europeu, aprofundava a Já
anunciada ruptura de equilíbrio entre o homem e a natureza.
Se o mulato aspirava viver em casa deporta ou janela, cons
truindo mesmo alpendres em casebres, ou ainda travestindo o
mocambo em sobrado, pelo erguimento de mais um andar, para
serem iguais aos brancos (Freyre, 1961, p. 294), os portugueses,
por seu lado, desprezavam os mocambos, por associá-los às clas
ses inferiores (Freyre, 1961, p. 380).
Com que imagens visuais trabalha Gilberto Freyre para tais
descrições? Ele não as aponta como referências pictóricas ou
fotográficas, atendo-se a uma construção narrativa que se deslo
ca no espaço e no tempo para a cidade do Rio de Janeiro do
século XIX, para nela recuperar as descrições das primeiras ca
sas no Brasil, presentes em Fernão Cardim ou Gabriel Soares de
Sousa, no século XVI...
Sem dúvida alguma, foi o Rio dejaneiro de Debret que lhe
inspira a presença do negro na rua, da cidade que cresce e das
múltiplas formas de interação ocorridas entre brancos e negros
frente uma situação urbana, no século XIX.
Mas quanto a esta situação de casa de pobre, só há uma ima
gem que remete a este tipo de construção precária, definida por
Debret como "família pobre em casa".'' A imagem é, contudo am
bígua. A construção do habitaimostra paredes onde se revelam vá
rios materiais: o barro, a madeira, a junção de materiais diversos a
compor com o chão sem soalho e a ausência de mobiliário.
Mas há uma escrava, que parece estender o ganho do dia a
umajovem senhora, sentada em uma esteira, a trabalhar em casa,
em prováveis artigos que a escrava devia vender na rua. Estaría-

" Debret, Voyagepitloresque et hisíoríque mi Brésil 1816-1831 (Paris, 1834-1839).


Ver a edição brasileira, Debret (1989).

ooí —
mos, no caso, diante de uma família branca, mas empobrecida,
que se sustenta com uma escrava de ganho?
Chama a atenção também a indumentária das duas mulhe
res, a da jovem e a da idosa, mais ao estilo do vestuário dos ne
gros do que dos brancos. São, pois, brancos pobres a habitarem
casebre, mas são brancos em decadência, que um dia foram se
nhores de escravos.

E os pobres, cafuzos, mulatos, negros, mestiços, sem um


passado vivido em melhores condições, podemos imaginar que
habitassem, também, casas-casebres como essas, retratadas por
Debret, de quem Freyre foi leitor.
Por outro lado, as descrições feitas por Gilberto Freyre do
mocambo ajustam-se às imagens produzidas por desenho de M.
Bandeira que o autor fornece em sua obra (Freyre, 1961, p. 207).
As diferenças possíveis de serem estabelecidas entre os habitais
dos pobres se dão no que toca às aberturas e ao telhado.
Esses são detalhes de arquitetura que Gilberto Freyre po
tencializa em termos de positividade, pois os entende como ele
mentos que indicam, de forma clara, a harmonia e o equilíbrio
existentes entre a natureza tropical e a cultura, cultura esta mes
tiça e produzida no entrecruzamento das distintas contribuições
étnicas que constróem o Brasil. E, nesse caso, assevera Freyre, as
contribuições de maior sabedoria técnica advém dos índios e
negros. Portanto, para falar em termos da negatividade do habi
tai, Gilberto Freyre se restringe ao sobrado degradado, ao sobra-
dos-cortiços das cidades do que propriamente nos casebres.
Muitas são as imagens que Gilberto Freyre fornece em sua
obra a respeito do sobrado das elites, com seus requintes apro
priados ao gosto da família patriarcal que se urbaniza, mas so
mente uma dessas imagens se apresenta como uma residência
degradada, e com provável transformação em cortiço (Freyre,
1961, p. 146-147): trata-se da área do morgado de Santa Bárba
ra, retratada em aquarela do século XVIII.

Área do morgado de Sania Bárbara, Arquivo do Estado da Bahia, 1764-1785.


A imagem é significativa, na medida em que são expostas
paredes das quais se perdeu a pintura e o reboco, a revelar a
estrutura interna do prédio, levando a pensar na sua subloca-
ção e subdivisão, de molde a abrigar moradores das camadas
mais desfavorecidas da cidade, A experiência pioneira do Reci
fe parece repetir-se em outras cidades, nas quais o crescimento
populacional implicou a escassez de alojamento e a especula
ção imobiliária.
Mas essa é a única imagem trazida por Gilberto Freyre para
o contraponto urbano do sobrado das elites patriarcais, sendo
suas fontes referenciais as clássicas narrativas de médicos do sé
culo XIX, empenhados em uma campanha de higienização nas
maiores cidades do país. Sobre eles, há narrativas, pois as ima
gens ficam por conta dos leitores, a identificarem na sua baga
gem de conhecimento outras tantas representações de cortiços,
tão conhecidos das cidades brasileiras.

Sem dúvida, muitas imagens de cortiços, em Salvador, Re


cife e Rio de Janeiro, estavam presentes nas referências urbanas
de Freyre, como elementos visuais do seu cotidiano ao longo do
século XX.

Chama ainda a atenção que ele só se refira ao cortiço na


sua acepção de casa senhorial urbana degradada, e não tenha
recolhido, enquanto imagem e descrição, a sua outra modalida
de, que inclusive veio a ser imortalizada pela obra literária de
Aluísio Azevedo'"^ para a Jln rfe carioca: o cortiço enquanto
pátio, com abertura de portão para a rua, com uma fonte d'água
no centro e a construção de casinhas ou quartos, dispostos lado
a lado, ao longo do terreno.
Seja por efeitos da literatura, seja pela difusão dessa moda
lidade de habitação coletiva urbana no Brasil, essa espécie de
cortiço de tipo pátio tornou-se quase uma referência clássica para
a visualização das formas de morar dos pobres da cidade no sé
culo XIX. E, pois, de estranhar que Freyre não chame para a sua

O Cortiço, dc 1890.
obra a imagem desse cortiço, mencionando apenas o sobrado
degradado e sublocado.
Na sua pesquisa em busca de registros antigos sobre as
habitações populares e coletivas urbanas, parece que Freyre
teve acesso a textos e imagens que se referiam somente aos
sobrados-cortiços e as impressões que esses causaram, por
exemplo, aos viajantes estrangeiros que visitaram o país, como
Rugendas.
Não há, da parte de Freyre, chamada de atenção para o
destaque que o cortiço passou a ter por ocasião da emergência
da questão urbana no país, entendida como uma questão social.
Esta era vista, sobretudo, como problema a ser resolvido no âm
bito do habitacional e da higiene, no momento em que se apre
sentou para as elites nacionais a possibilidade de construir no
Brasil a modernidade urbana.

Tal processo, que vem a ocorrer na segunda metade do


século XIX, torna-se central para a elaboração de um discurso
técnico e vem a se constituir em tema referencial para a litera
tura nacional. A parte o sonho e o desejo de edificação de uma
bela cidade, tecnicamente resolvida, a questão a ser enfrenta
da passa pela condenação da velha cidade de origem colonial,
onde a presença dos pobres, habitando em cortiços e casebres,
nos becos ou mesmo nas principais ruas, é o principal proble
ma a resolver.

Pode-se considerar que tal enfoque possa estar ausente das


preocupações do autor tendo em vista a época da escrita de sua
obra, mas quando ele invoca a presença dos sobrados-cortiços e
os discursos médicos que os denunciam, não estabelece ligação
entre esses e a figura do pobre, e, particularmente, dos negros e
mulatos, como a grande ameaça na cidade.
Sim, pois Freyre tem uma tese a demonstrar, e esta passa
pela positividade da miscigenação e pela superioridade do rural
sobre o urbano. O contexto urbano é, por definição, condena
do a priori, pela dissolução que causa na adequação entre natu
reza e cultura.

V)7
São eles, os tais sobrados-cortiços, os pólos da negativida-
de, como ícones da degradação no viver introduzidos pela emer
gência das grandes cidades.
É nesse ponto que Gilberto Freyre se aproxima e se afasta
daquele historiador de quem se diz tributário: Oliveira Martins,
particularmente na sua obra de 1895, OBrasilesuas Colônias Por
tuguesas. As aproximações se dão na medida em que Oliveira
Martins (1895, p. 254) retrata "o abastardamento dos costumes
dos portugueses recém-chegados pela aprendizagem nos corti-
ços do Rio ou nas roças com os escravos de ambos os sexos".
Os vícios infiltram-se, diz o historiador português, corrom
pem os costumes, destroem os valores, através deste contato de
gradante proporcionado pelo cortiço, lugar de fome, miséria e
prostituição. De uma certa forma, tal visão, cientificista e imbuí
da dos princípios da supremacia racial dos brancos e dos efeitos
deletérios da mestiçagem, encontra-se presente no romance O
cortiço, de Aluísio Azevedo, escrito em 1890, onde a narrativa
ficcional mostra, no contexto do ambiente viciado e sensual das
habitações coletivas urbanas, a degradação progressiva de um
português, a partir do seu envolvimento com uma mulata.
Mas nesse ponto cessam as analogias com Gilberto Freyre,
pois se Oliveira Martins situa o cortiço como o locus desta dege-
nerescência, esta tem como origem primeira a limitada capaci
dade da raça negra, pois esta constitui "um tipo antropológico
inferior, próximo ao antropóide" (Oliveira Martins, 1895, p. 284).
Para Oliveira Martins, a idéia da educação e elevação inte
lectual dos negros era absurda, pois só o cruzamento com sangue
mais fecundo - o português, no caso - é que dava certo. Daí,
pois, o que esse historiador Jin de siècle lusitano, imbuído das
idéias cientificistas de seu tempo, entende como o sucesso da
empreitada portuguesa no Brasil: a europeização da colônia, o
conteúdo civilizatório imprimido a terra, mas que se via amea
çado pelo contato, agora íntimo, entre uma população negra e
mestiça, a coabitar nos cortiços com portugueses recém-chega
dos da Europa.
Logo, a postura de Oliveira Martins é totalmente diferenci
ada da de Gilberto Freyre, que vê justamente na miscigenação
com o negro um elemento de positividade para a nação. A rigor,
pode-se dizer que Freyre realiza uma inversão da perspectiva de
Oliveira Martins, ao entender que o sucesso da colonização lusi
tana nos trópicos advém da sua capacidade de adaptação e in
corporação de outros elementos culturais.
Tal idéia-mestra acaba por confundir as imagens apresen
tadas pelo autor para o âmbito do urbano. Dificilmente o mo
cambo pode vir a ser a contrapartida urbana do sobrado. Ele se
torna o protótipo edênico de uma sabedoria ancestral de habi
tar, herdada das ditas raças dominadas, negra e índia.
E, quanto ao mau viver urbano, o processo de ruptura da
natureza com relação à cultura é partilhada, em diferentes graus,
por sobrados, cortiços e casebres, mas devido a uma condição
mais propriamente do viver em cidade do que das condições
sociais de seus ocupantes.
Em certa medida, Gilberto Freyre cumpre o plano de apre
sentação de seu livro enquanto título: sua narrativa e as imagens
que apresenta dizem respeito aos sobrados e mocambos, mas se
os primeiros são o tipo de espaço construído característico dos
habitantes de posses dos centros urbanos brasileiros, os mocam
bos não são nem propriamente urbanos nem habitação popular
do Brasil como um todo.

E, quando Freyre se refere aos três tipos de habitai dos gru


pos populares, como um todo, o faz de modo a confundir espa
ços e tempos, a ir do Nordeste ao Rio de Janeiro, passando pela
Bahia, com esparsas citações de Minas Gerais ou São Paulo, em
avanços e recuos nos séculos, viajando dos inícios da coloniza
ção ao final do XIX, a misturar-se com a experiência holandesa
do XVII e a mineradora do XVIII.

Entendemos que tais desacertos espaço-temporais, tal


como a não-correspondência das imagens com textos ou mes
mo a precariedade da dupla apresentação dos habitais, se de
vem a esta subordinação dos dados que possui ao serviço de

VÀ9
uma tese a demonstrar: a superioridade do mundo rural so
bre o urbano.

Referências

ARTE NO BRASIL. São Paulo: Abril Cultural, v. 1 e 3.

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. 2. ed. São


Paulo: Objetiva/Metalivros, 1999
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3v.

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FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. Vol. I e II. Rio de Janeiro: José
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LEENHARDT, Jacques. Estratégias intelectuais nos prefácios e intro
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MALRAUX, André. Le musêe imaginaire. Paris: Gallimard, 1947.
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vista de História da Arte e Arqueóloga, n. 2, Centro de Pesquisa em Histó
ria da Arte e Arqueologia, IFCH-UNICAMP, 1995/1996.

,^00
A segunda morte dos sobrados do Recife

Na maior parte de seus ensaios, Gilberto Freyre escolhe


como ponto de partida uma estrutura binária em estado de equi
líbrio: casa-grande & senzala, branco & preto, etc. Esse sistema
binário de apresentação e de análise do universo social, que fun
ciona de modo satisfatório para a análise das grandes estruturas
do sistema patriarcal, explode quando em contato com a cidade
e sob a pressão da transformação do mundo tradicional rural. A
urbanização galopante traz novas oportunidades aos indivíduos,
até então, figuras em grande parte desconhecidas, e uma nova
organização dos grupos sociais e dos objetos do mundo, o que
implica a renovação dos próprios instrumentos de análise. A
multiplicação dos mucambos na periferia do Recife, que afronta,
brutalmente, uma transformação profunda de sua estrutura ur
bana, exige uma leitura renovada da análise urbana e social.
Curiosamente, a obra de Gilberto Freyre que analisa esse
fenômeno. Sobrados e Mucambos, ainda que contenha a palavra
mucambo em seu título, diz muito pouco sobre esse tipo de cons
trução ou tipo arquitetônico, relacionado, contudo, à idéia de
uma superestrutura arquitetônica perfeitamente adequada à
natureza. Esse relativo silêncio é problemático quando se pensa
na importância que Freyre confere, de modo geral, aos tipos
arquitetônicos aos quais ele atribui, na maior parte de suas aná
lises, uma significação social maior.
A própria palavra mucambo está marcada por uma certa pre
cariedade. Em alguns dicionários, como a Enciclopédia Britânica

Tradução de Eliane Cezar (UFRGS).


do Brasil, essas casas de palha chamadas de Mocambo referem-se
aos escravos quilombolas. Assim, é possível deduzir, mas somen
te nas entrelinhas, a diferença entre a senzala, habitação do es
cravo doméstico, e o mucambo, habitação do escravo potencial
mente quilombola, fugitivo. Por outro lado, os dicionários ob
servam que a denominação é "regional", típica do nordeste
(quimbumbo mu-kambu), devendo ser comparada com o "quim-
bembe", casa rústica, cabana, palhoça, rancho de palha. Obser
va-se, igualmente, que Mucama se refere à mucamba: escrava ao
serviço da casa. Percebe-se, assim, de que modo a estrutura es-
cravagista gira em torno da noção de mucambo, seja para afirmar
a ligação servil, seja para temer o rompimento. O mucambo pare
ce ser, em si, um objeto dialético, portador de valores e de cono
tações contraditórias.
Gilberto Freyre, como foi visto, diz pouca coisa sobre os
mucambos: ao término da leitura de Sobrados e Mucambos, tem-se
a impressão de que se trata de um tipo arquitetônico dificil
mente identificável no conjunto urbano e, de algum modo,
"sem voz". A iconografia descritiva também é muito reduzida,
seja em Debret ou em Rugendas, ainda que sejam encontrados
testemunhos de sua existência. Em compensação, encontram-
se representações de mucambos naquilo que eu chamaria de o
ciclo iconográfico pitoresco, onde ele se aproxima dos dife
rentes elementos que constituem o "charme" atribuído, a par
tir do século XVII, á pobreza, na pintura de paisagem e na pin
tura de gênero.
O mucambo, portanto, faz parte dos esquemas que desig
nam e confirmam o lugar dos diferentes atores na organização
social do espaço rural ou urbano. Esta função analítica trans
parece com clareza no esquema do engenho, freqüentemente
apresentado por Gilberto Freyre em suas obras, e mesmo com-,
parece em certas pinturas fortemente referenciais, mesmo ideo
lógicas, como, por exemplo, a Vista do Recife, de Gillis Peeters.
Fica estabelecido claramente os lugares e as funções de cada
um no interior de um mundo organizado segundo os princí
pios permanentes da ordem colonial. Tais documentos demons-
tram a predominância do modelo de ecologia social próprio
do sistema patriarcal. A variante "pitoresca", por sua vez, é es
tranha ao olhar de Freyre e não tem nenhuma pertinência nes
se contexto.

Deve-se observar que, na obra de Gilberto Freyre, o fato do


mucambo ser colocado na tipologia das habitações primitivas as
segura-lhe um lugar particular: estrutura arquitetônica direta
mente resultante da funcionalidade mais direta (uso dos mate
riais locais sem elaboração supérflua), o mucambo remete ao mo
delo oriundo da cabana primitiva já descrita por Vitrúvio em
seus Dez Livros de Arquitetura a propósito da cabana frígia. Essa
referência do mucambo 2i\xm2iforma de habitação trans-histórica
adquire importância quando se lembra a que ponto, para Gil
berto Freyre, o modo de ocupar o espaço é radicalmente sinto
mático do modo de ser das populações. Uma categoria humana
que vive nos mucambos, os quais, por definição, quase não evo
luem através do tempo, é uma categoria social que, de alguma
forma, escapa à história ou, no mínimo, permanece à margem
daquilo que se chama de História. Dito de outra forma, a histó
ria se faz sem ela. Os negros não participam da história, como o
prova a eternidade quase feliz de sua habitação.
Ao contrário, os atores da história vêem suas condições de
habitação modificarem-se no tempo. Por essa razão, o sobrado é,
na obra de Freyre, bem como na obra de inúmeros escritores
brasileiros, o ponto nodal da evolução histórica.'
As reflexões sobre a arquitetura e o urbanismo giram sem
pre, na obra de Gilberto Freyre, em torno do tema da degrada
ção de um modelo ideal situado no passado patriarcal rural. Um
dos sintomas dessa degradação que marca as formas sociais con
duzidas pela história é o desarraigamento que elas sofrem em
relação a um enraizamento original. Freyre dá a entender que
esse enraizamento se beneficia de uma ancoragem, por assim

' Ver a esse respeito minha análise de O Tempo e o Vento de Erico Veríssimo, em
Erico Veríssimo: o romance da história (Pesavento et al., 2001).
dizer, natural no território e, conseqüentemente, de uma ma
neira de evidência social e teórica.

A atenção constante que Freyre dedica à decomposição dos


elementos tradicionais de ancoragem da cultura e da vida escla
rece o interesse que ele consagra ao wtícaTwôointemporal ou eter
no. Essa forma arquitetônica, que possui a capacidade de per
correr a história durante um longo período, exerce, certamen
te, um tipo de fascinação sobre esse espírito normalmente afeta
do pela entropia do mundo. E também essa forma de sensibili
dade que permite melhor compreender a sua preocupação em
preservar os elementos mais frágeis - e mesmo os mais insignifi
cantes - da cultura.

Entre essas heranças ameaçadas, o antropólogo sempre con


cedeu um lugar importante à tradição oral, que não se beneficia
da permanência do texto escrito e impresso. Todas as suas obras
reservam um espaço, maior ou menor, para testemunhos dire
tos, lembranças transmitidas de boca em boca, tradições familia
res dentre as quais, igualmente, as da sua própria família. Trata-
se de um aspecto que impressiona, imediatamente, quando da
leitura de Assombrações do Recife Velho (Freyre, 1970).
Em Assombrações do Recife Velho, Gilberto Freyre apresenta
narrativas de casas assombradas. Trata-se de todo um teatro do
passado que se reapresenta através das narrativas de casas as
sombradas que o sociólogo se orgulha de ter reunido.
Convém, aqui, lembrar que, como de costume, Gilberto
Freyre ornamenta suas narrativas com uma série de paratex-
tos: uma nota do editor, dois prefácios do autor para a pri
meira e segunda edições e uma introdução. Um poderoso
aparelho crítico, portanto, graças ao qual o autor dissipa a
ilusão que poderia enganar o leitor; essa obra sobre as mani
festações sobrenaturais no velho (e antigo) Recife fazem ple
namente parte da história e da sociologia como disciplinas
científicas. O prefácio à primeira edição é absolutamente cla
ro a respeito de tal questão: "[...] pois não há contradição
entre sociologia e história, mesmo quando a História deixa
de ser de revoluções para tornar-se de assombrações." (Freyre,
1970, p. XVII).
Gilberto Freyre lembra que na bibliogiafia ciendfica exis
tem obras que apresentam o título, bastante austero, Sociologia do
sobrenatural (Luigi Sturzo). A idéia que ele pretende propagar é a
de que existe uma forma de sociabilidade pouco conhecida e
pouco estudada que reúne os vivos e os mortos. Muitos rituais
atestam isso, e Gilberto Freyre não deixa de lembrar a que ponto
os grandes ancestrais eram importantes para o próprio positivis
mo comtíano ("os vivos são governados pelos mortos"). Os mor
tos fazendo parte do cotidiano dos vivos, então uma sociologia de
suas relações tem toda razão de ser tentada e a compilação das
narrativas de casas assombradas é a primeira etapa.
Admitindo-se esse ponto de partida, claramente colocado
por Gilberto Freyre, pode-se perguntar a razão pela qual a ci
dade do Recife fornece uma ocasião singular para essa análise
das intervenções do sobrenatural no natural. Uma das razões
deve-se, certamente, a um fenômeno particular dessa cidade,
lembrado desde a introdução de sua obra: Recife viu o diabo
passear nas suas ruas. Essa presença do demônio está ligada,
historicamente, ao fato de que essa cidade de bons católicos
portugueses viu-se invadida por personagens loiros e calvinis-
tas ou outras figuras pálidas de origem judaica. Essa promiscui
dade racial e teológica, que se apresenta como um caso singu
lar, ou único, na história da colonização, não poderia deixar
de criar circulações fantasmáticas e sulfúreas mais ricas do que
em qualquer outra parte.

Estava o Recife ainda quente da presença de herege ruivo e ver


melho nas suas ruas e suas casas. A invasão flamenga trouxera à
capital de Pernambuco muito calvinista e muito judeu, dos quais
a gente mais devota da Virgem e mais amiga dos santos não po
dia deixar de prudentemente afastar-se, benzendo-se, com medo
de que os intrusos - mesmo os ricos - tivessem, como o próprio
demônio, pés de pato ou de cabra; e como o maldito, fedessem a
enxofre. (Freyre, 1970, p. 5)

.wry
Gilberto Freyre procura, nas histórias de casas assombradas,
o eco desse "sobrenatural" que é, para dizer a verdade, o produto
de uma situação urbana onde comunidades distintas coabitam
sem chegar â unificação. O objeto sobre o qual ele concentra sua
investigação é bastante incomum em um historiador sociólogo
para ser acentuado. Primeiramente, tratam-sede "narrativas", por
tanto, de algum modo, de ficções. Freyre fornece todos os ele
mentos capazes de atestar a autenticidade dos testemunhos que
fundamentam essas narrativas. Como de costume, ele multiplica
os nomes, as citações, as referências a personalidades dignas de
fé, incluindo ele mesmo, de tal modo que o leitor deve, no míni
mo, levar em consideração que se esse material narrativo não re
trata, talvez, uma verdade de fatos, uma verdade positiva, em todo
caso, ele atesta um estado da consciência coletiva, do desenvolvi
mento de crenças que o sociólogo tem legitimidade para reunir e
analisar. O historiador deduz da massa de documentos oferecidos
uma necessidade de narrativas fantásticas, uma compulsão para
narrar anedotas sobrenaturais, â vontade constante de dar um
estatuto às experiências e ás sensações sentidas pela população
local que ultrapassam o quadro habitual da racionalidade:

[...] chamadas psíquicas que teriam sido vividas por uns tantos
recifenses em ambientes e em circunstâncias próprias do Recife:
os de sua condição de cidade não só situada à beira-mar como
cortada por dois rios; de burgo por algum tempo judaico-holan-
dês e não apenas íbero-católico; de capital de província e de Es
tado depois de ter sido simples povoação de pescadores; sede de
vários conventos; de centro de atividades culturais importantes;
de grande mercado de escravos trazidos da África; de espaço ur
bano caracterizado por sobrados de tipo esguio, de feitio mais
nórdico do que ibérico: provável influência holandesa ou norte-
européia sobre sua arquitetura.'-^

Sem essas narrativas, diz Gilberto Freyre, a história do Reci


fe seria apenas uma história natural: pobre cidade aquela que

^Prefácio à segunda edição (Freyre, 1970).


tem como história somente uma história natural. Graças às casas
assombradas, o corpo mineral da cidade ganha vida, os habitan
tes de hoje encontram-se, finalmente, ligados àqueles de outro-
ra. O fenômeno das casas assombradas ou as narrativas que ani
mam uma população de espíritos nas carcaças isoladas dos joto-
abandonados constituem uma maneira de criar profundida
de histórica no plano do urbanismo, e isso tanto para o historia
dor como para a própria população,
É no momento em que a cidade do Recife passa por trans
formações que remetem para um passado doravante acabado,
para tudo aquilo que havia constituído sua existência anterior; é
no momento em que a época, gloriosa aos olhos de Gilberto
Freyre, das Casas-Grandes e das Senzalasdesaparece com seu pa-
triarcalismo tradicional; é nesse momento em que um grande
período da história viva oscila para a morte; é nesse momento
que um mundo desaparecido se faz lembrar por aquele dos vi
vos modernos, burgueses e mulatos tendo tomado posse do es
paço urbano recifense; é no momento em que a cidade dos so
bradosnobres, já abandonados por uma aristocracia que desapa
receu ou retirou-se para outras terras, levando consigo seus es
cravos e seus sonhos para as plantações de café das regiões tropi
cais; é no momento em que uma classe revela no seu modo de
ser o fim de seu tempo e deixa para outros o espaço urbano que
ela havia acabado de conquistar após as horas de glória do Enge
nho', é nesse momento que essas moradas urbanas da aristocra
cia fundiária, já quase sem funções, já abertas a negócios que
não correspondem mais à história do patriarcado rural, tornam-
se poéticas, liberam os espíritos dos ancestrais e dos mortos, dão
voz à genealogia, clamam no silêncio das noites, impedindo que
aqueles que doravante são os senhores da cidade ocupem essas
residências isoladas, porém não abandonadas pelo espírito anti
go que lá ainda permanece e que volta para assombrar as noites
daqueles que acreditaram ser possível apropriar-se das mesmas,
esquecidos dos senhores do passado,
Duas populações estabelecem-se, sucessivamente, no solo
brasileiro, no porto de Recife. Inicialmente, novos mercadores

.107
holandeses de origem judaica ou calvinista, sem laços com a cul
tura ibérica lentamente transplantada pelos colonos portugue
ses. Entretanto, a partir do século XIX, uma nova leva de imi
grantes estabeleceu-se nas terras de Pernambuco. Eles vêm mu
nidos de novos saberes ligados à Revolução Industrial. Eles vêm
da França e da Inglaterra, e mesmo das escolas brasileiras, novos
ricos, doravante bacharéis, todos marcados por uma cultura di
ferente daquela do paterfamílias brasileiro tradicional.
Esses novos bárbaros educados substítuem os antigos legíti
mos senhores dos sobrados recifenses. Seus saberes e modos de
vida acabaram por separá-los das raízes tradicionais locais.
Eis a razão pela qual, à noite, os "\ailtos" aparecem, os es
pectros voltam para assombrar essas casas recentemente aban
donadas, vultos que atestam uma vida anterior. As narrativas que
transmitem esses discursos dão consistência a um tipo de análise
sociológica onírica que destaca a substituição de uma popula
ção por outra dentro de um contexto de permeabilidade cultu
ral. Essas histórias de casas assombradas atestam, no plano do
imaginário, a presença de um outro, necessariamente sentido
como uma presença inquietante. Esses vultos e essas vozes res
soam como ameaças potenciais.
Ao lado dessa dimensão sociológica fundamental, ligada à
substituição de uma população por outra, percebe-se, também,
através dessas narrativas, o eco de uma angústia mais estritamen
te psicológica, ainda que ligada ao fenômeno sociológico lem
brado anteriormente.

Aparece, aqui, a idéia segundo a qual a cidade do Recife foi


invadida por fenômenos difíceis de serem nomeados, mas per
cebidos através do Unheimlich, de "algo que não é daqui", de algo
que não pertence ao solo ancestral. Elementos privados do en
raizamento autóctone indispensável estabeleceram-se na cida
de, tornando-se "estranhos" e "ameaçadores". Esses sentimen
tos, difíceis de serem racionalizados por populações conduzidas
por um fluxo histórico que elas não podem dominar, favorecem
o surgimento de narrativas fantásticas.

.VíM'
Poder-se-ia, igualmente, observar que a modernidade so
cial que se instala nesses anos tende a apagar aquilo que a prece
dera e, conseqüentemente, tende a privar o presente e seus ato
res das raízes que explicam a sua situação. Essa modernidade
faz, naturalmente, tábula rasa da cultura anterior. Ora, Gilberto
Freyre alerta para isso.As culturas nunca nascem adultas. Elasse
apoiam na sua herança, transformando-a, traindo-a. Entretanto,
quaisquer que sejam as relações que cada cultura mantém com
as culturas precedentes, elas prolongam sua existência no modo
prático, tal como o fantasmático.
As narrativas de casas assombradas são exemplos de tais pro
longamentos fantasmáticos. Trata-se, portanto, de um fenôme
no concreto da evolução urbanística. Na linguagem sociológica,
poder-se-ia falar de um caso especial de ocupação dos lugares
por uma população que se ausentou do espaço real sem, contu
do, abandonar o terreno. Gilberto Freyre documentou cuidado
samente esse fenômeno urbano através da compilação das nar
rativas que ele reuniu em Assombrações do Recife Velho.
Todavia, contrariamente ao que se passa nas outras obras,
não é o documento bruto que nos é proposto, mas éjá uma
forma narrativa, autenticada a cada instante através do nome de
uma rua, do patronímico de um proprietário ou de um locatá
rio que vivera no sobradoem questão. A fonte documentária, em
geral, é tirada do Jornal A Província, dirigido pelo próprio Gil
berto Freyre durante a década de 20.
Inicialmente, destaquei um primeiro plano de conflito de
ocupação do espaço urbano que se manifesta através da apari
ção constante, nasjanelas dos abandonados, de "vultos",
mas também ruídos, estalos e outras manifestações misteriosas
que impedem a venda e o aluguel dos mesmos. Esses lugares
que aparentemente ou do ponto de vistajurídico estão desocu
pados e disponíveis, na realidade, não estão. A questão que se
coloca aqui diz respeito à independência, á autonomia de uma
época com relação ao seu próprio passado. Do ponto de vista
epistemológico, Jamais ausente das preocupações de Gilberto
Freyre, essa questão visa estimular o sociólogo e o historiador a
não negligenciarem as manifestações, ainda que insólitas, da
profundidade temporal.
Entretanto, esses fenômenos também revelam um segun
do plano de realidade, menos diretamente material, que faz apa
recer sua dimensão histórica: o que permanece da grande épo
ca do patriarcalismo rural não são os senhores, em carne e osso,
mas seus espíritos. Como se o mundo doravante abolido, anali
sado em Casa-Grande8l Senzala, tivesse sobrevivido ao desapare
cimento de seus senhores sob a forma de espíritos errantes. O
espírito mágico, tão fortemente ligado, no nosso imaginário, ao
modo de existência e à magia dos cultos afro-ameríndios, reve-
lar-se-ia, assim, como sendo o último sobrevivente, a última for
ma viva de um mundo desaparecido.
Os espíritos que assombram a cidade dominada pelo racio-
nalismo mercantil referem-se mais ao modo que o passado pos
sui de assombrar o presente do que às práticas antigas do poder
patriarcal. Mas quem sabe que o passado assombra o presente?
O moderno? O progressista? Não. O único que conhece essa
permanência do passado é quem nunca pôde projetar-se no fu
turo, quem sempre permaneceu ligado à terra ancestral: o mo
rador dos mucambos. E ele, o africano, o negro ainda preso, aos
olhos dos modernos, às tradições religiosas que para ele são muito
mais do que paredes de palha e de terra, uma casa, uma mora
da, um lugar onde se reencontrar e sobreviver à exploração.
O negro é o senhor dos espíritos, macumba, candomblé,
quaisquer que sejam as suas formas. Ele ainda fala, durante as
longas noites do Recife contemporâneo, com os senhores do
mundo passado. Todo o passado está no presente. Os espíritos
que assombram o velho Recife falam em nome daqueles que
nunca se desligaram de seus apegos ancestrais e, nessa medida,
os velhos escravos negros e os velhos patriarcas rurais reencon
tram-se do mesmo lado de uma fronteira simbólica que separa o
passado do presente.
Oferecendo uma existência sociológica às almas do passado,
Gilberto Freyre continua sua laudatio temporis adi Mas ele tam-

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bém se torna interessante para nós pelo fato de conferir um esta
tuto histórico e sociológico àquilo que, geralmente, não encontra
lugar no discurso científico dominante. Freyre tem consciência
disso. Ao opor uma história social que faz justiça aos fantasmas
angustiados dos espíritos a uma história que se interessa apenas
pelas revoluções maiúsculas, ele milita por uma história que abre
sua porta ao imaginário, e os "espíritos" que assombram as casas
do velho Recife são formas imaginárias do passado.
Ele luta, igualmente, para que os fenômenos ditos margi
nais, tal como a feitiçaria, não sejam abandonados a considera
ções de ordem pitoresca. Aquilo que nossa cultura racionalista
desvaloriza e enquadra na categoria do "pitoresco", a pobreza,
os fantasmas, em suma, tudo aquilo que se desenvolve às mar
gens dos processos dominantes, Gilberto Freyre empenha-se em
fazer figurar plenamente no quadro. Como dizem os tipógrafos,
é a margem que faz a página.

Referências

FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. 2. ed. revista, aumenta


da e prefaciada pelo autor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.
LEENHARDT, Jacques. O Tempo e o Vento de Erico Veríssimo. In: PESA-
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% I

SOBRADO PATRIARCAL
SEMI-URBANO DO
MEADO DO SÉCULO XIX.

(Dcacnho cie M. Bandeira.)

1 • SOBRADO 12 - CASA DE CA-


CHORRO
2 - JARDIM
13 - SENZALA
3 - PALANQUE
14-VIVEIRO DE
4 - CASA DE AVEN- PEIXE
CAS
15 - BAIXA DE CA
6 - VIVEIRO DE PIM
PASSARINHO
16 - ESTABULO
6 - POMBAL
17 - LUGAR DE MA
7 - CACIMBA TAR PORCO,
CARNEIRO. ETC.
8 - TANQUE DE LA
18 - PASTO
VAR ROUPA
19-MURO COM CA
9 - GALINHEIRO
CO DE VIDRO

10 - CHIQUEIRO 20 - BANHEIRO

11 - COCHEIRA 21 - MUCAMBOS
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TRIÂNGULO RURAL DO NORDESTE: CASA, ENGENHO E CAPELA
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índice das ilustrações

Fic.uii/\ 1 - Paisagem brasileira com nativos dançando e capela. Frans Post. Coleção privada,
N. York. In: Herkenhoff, P. (Org.). O Brasil e os holandeses. Rio de Janeiro:
Sextante Artes, 1999, p. 231.
Fic:ur.\ 2 - Negracom criança.Albert Eckhout. Museu Real da Dinamarca. In: Herkenhoff,
P. (Org.). O Brasile os holandeses. Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999, p. 151.
Fiouiu 3 - Negra brasileira do século XVII (Gol. do autor). In: Freyre, G. Casa-Grande &
Senzala. 13. ed. Tomo II. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.
Fic.uR/\ 4- Mocambos, interior de Pernambuco. Frans Post. Rio de Janeiro, Museu Nacional
de Belas-Artes.

Fic.l'ic\ 5 - Mameluca. Albert Eckhout. Museu Real da Dinamarca. In: Álbert Eckhout. Revi
são crítica e atualidade por Clarival do Prado Valladares. Rio de Janeiro/Reci
fe: Livroarte Editora, 1981, p. 75.
Figura 6 - Planta de uma casa de chácara do Rio de Janeiro Freyre, O. Sobrados e
mucambos. 3. ed. Tomo I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961, p. 169.
FiguR/\ 7 —Sobradopatriarcal semi-urbano do meado do século XIX. Desenho de M. Bandeira.
In: Freyre, G. Sobrados e mucambos. 3. ed. Tomo I. Rio de Janeiro: José Olym
pio, 1961, p. 8-9.
Figuiu\ 8 - Casa-grande do Engenho Noruega, antigo Engenho dos Bois, Pernambuco. Desenho
de Cícero Dias, 1933. In: Freyre, G. Casa-Grande & Senzala. 13. ed. Tomo I. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1966 [Encarte].
Figur.\ 9 - Interior do sobrado patriarcal do meado do século XIX. Desenho de L. Cardoso
Ayres. In: Freyre, G. Sobrados e mucambos. 3. ed. Tomo I. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1961 [Encarte solto, p. XXVII].
FtGUiu 10 - Triângulo rural do Nordeste: casa, engenho e capela. In: Freyre, G. Nordeste. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1937 [Encarte].
Figuras 11 a 18 - Vidraças desobrados antigos do Rio Grandedo Sul. Conjunto de Fotos de Deusino
Varela. In: Anais do III Congesso Sul-Rio-Grandensede História e Geogafia. Vol. I.
Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1940, p. XXI a XXXIII.
Figur^x 19- Mauritsstad e Recife, 1653. Frans Post. Coleção particular. In: Belluzzo, A. M.
M. O Brasil dos viajantes. 2. ed. São Paulo: Objetiva/Metalivros, 1999, p. 124.
Figur-a 20 - Vista do Recife. Gillis Peeters. Coleção Beatriz e Mario Pimenta Camargo. In:
Herkenhoff, P. (Org.). O Brasil e os holandeses. Rio de Janeiro: Sextante Artes,
1999, p. 96-97.
Os autores

Antonio Dimas é professor titular de Literatura Brasileira na Universidade de


São Paulo, onde desenvolve sua carreira. Foi Fulbright Fellowna Universidade
de Illiiiois (1974) e professor visitante na Universidade de Rennes (1986-1987)
e na Universidade da Califórnia-Los Angeles (2001). Representou a área de
Letras na CAPES entre 1999 e 2005. Publicou, entre outras obras: Tempos eufó
ricos (1983), Espaço e romance (1985) e algumas antologias.
Jacques Leenhardt, filósofo e sociólogo, é doutor em Sociologia pela Univer-
siié de Paris X, habilitado a dirigir trabalhos de pesquisa na Université de
Paris VII. É diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Socia-
les (Paris), onde dirige uma equipe de pesquisa sobre as funções imaginárias
e sociais das artes e das literaturas. Publicou, entre outras obras, Lhe Ia lecture
(Paris: Lc Sycomore, 1982).
Ria Lemaire Mertens é professora titular de Literatura Portuguesa e Brasilei
ra na Universidade de Poitiers, França, onde dirige a equipe de pesquisa
"Estudos comparados em tradições orais nas suas relações com o mundo da
escrita" do Centro de Estudos Latino-Americanos-Archivos, UMR 8132 do
CNRS. Doutora em Literatura Medieval pela Universidade de Utrecht, Ho
landa, com um estudo sobre a vo/. da mulher na literatura medieval em lín
guas românicas, Passions et Posilions, Utrecht, 1988.
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos é doutora em Teoria Literária e Litera
tura Comparada pela Universidade de São Paulo e professora associada de
Literaturas de Língua Inglesa nessa mesma Universidade. Pesquisadora do
CNPq e membro de Projeto Temático FAPESP. Publicou, entre outras obras.
Puras misturas: estórias em Guimarães Rosa (São Paulo: Hucitec, 1997) e Dez
liçõessobre o romance inglês do Século XVIII (São Paulo: Boitempo, 2002).
SandraJatahyPesavento é historiadora, doutora em História pela Universida
de de São Paulo, pesquisadora do CNPq e professora titular de História do
Brasil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua nos cursos
de graduação e pós-graduação em História e pós-graduação em Urbanismo.
Publicou, entre outras obras, O imaginário da cidade: representações literárias do
urbano (Paris, Rio deJaneiro e Porto Alegre) (Porto Alegre: Editora da Universida
de, 1999) e Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX (São
Paulo: Ed. Nacional, 2001).
Fola/ilos chi capa:
C:illicdr:il DÍKÍI:il
Rua Liizilana, 45A - Tono Alcurc. RS
l-oncl-at (5 I) .1343-4141
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^eunindo pesquisadores do Brasil e da França, es


te livro vem representarum esforço para retomar o de
bate daobra freyriana sob outros ângulos, seja do pon
to de vista da escritaquanto da recepção, além de tra
balhar mais profundamente com a visão de um Brasil
urbano que se constrói a partir do rural, tal como o au
torapresentaemSobrados eMucambos. E, sobretudo,
discute como aobra deFreyre sesitua no cruzamento,
também sempre polêmico, entre ahistória e aficção.

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