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Capítulo analítico
1
Segundo Jacques Le Goff (2013), “Idade das Trevas” foi uma invenção dos humanistas do
Renascimento, “com os filósofos e os historiadores do século dito das Luzes, o XVIII, e só foi
parcialmente restaurada pelos novos gostos do romantismo e pelo estudo positivista do século XIX” (p.
13).
Interessa-nos, aquele dualismo entre o corpo e a alma, que não deixa de ser base
para os demais. Já em Aristóteles 2 (384 a.C. – 322 a.C.) encontramos um dualismo
semelhante, com a separação do universo em duas regiões: uma inferior, de mudanças,
perecível e sujeita à morte e uma superior, permanente e estável. A primeira região,
Aristóteles chamou sublunar (natureza) e à segunda, supralunar (céu). A natureza era
constituída pelos quatro elementos – terra, água, fogo, ar – e o céu por um elemento
distinto, o éter, que envolveria os corpos celestes. Aristóteles faz essa divisão
considerando que a característica do mundo que nós, humanos, habitamos é a constante
mudança – nascimento, crescimento, reprodução e morte –, e o que se podia observar
pela astronomia era que os corpos celestes eram estáveis, permanentes.
Aristóteles ainda estabelece que cada elemento possui um local definido, ao qual
pertence e ao qual sempre tende a retornar. Ainda, que os movimentos característicos da
natureza são retilíneos – para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita, para
frente e para trás – e descontínuos, enquanto os movimentos do céu seriam circulares e
contínuos. Encontramos esses movimentos na Commedia. Enquanto estão no reino da
natureza (sublunar), il sommo poeta3 e seu guia realizam um movimento descendente
(Inferno) e um ascendente (Purgatório) para então subir ao céu. No Paraíso, encontra o
primum mobile, que Aristóteles4 também chamou deus, que move os céus, em um
movimento circular e contínuo.
Importante ressaltar que as direções apresentadas por Aristóteles não possuem o
mesmo valor, sendo para cima e para baixo condicionadas à posição do homem em pé,
ou seja, é dada pela força da gravidade. Já as outras – esquerda e direita, frente e trás –
estão intimamente relacionadas ao corpo humano e o movimento no espaço. Tal
condicionamento ressalta a importante relação do homem para como o espaço, uma vez
que não há como movimentar o espaço, porém é possível se movimentar por ele. Essas
2
Aristóteles desenvolve esses conceitos no livro II da Física e no Do céu (De Caelo). Os escritos de
Aristóteles, em especial a Física são, conforme estudiosos apontam, resultado de uma reconstrução-
compilação feita, provavelmente, por Andrônico de Rodas, no século 1 a.C. (LUCE, 1994).
3
Dante Alighieri é considerado o primeiro e maior poeta da literatura italiana. “Il sommo poeta”, segundo
Michele Barbi, na Enciclopedia Italiana (1931), é utilizado para se falar “de sua grandeza, não da
natureza de seu gênio” (BARBI, 1931 apud Treccani. Disponível em:
<http://www.treccani.it/enciclopedia/dante-alighieri_%28Enciclopedia-Italiana%29/>. Acesso em 03 jul.
2017. Desta forma, buscamos nesta tese a adoção do “epípeto” para nos referirmos ao poeta florentino.
4
Aristóteles apresenta o primum mobile no livro XII da Metafísica, em que trata da substância primeira, a
qual pode explicar o vir-a-ser das substâncias sensíveis. Segundo o filósofo, o primum mobile é
responsável pelo princípio do movimento, sendo a causa do movimento das estrelas e esferas celestes. O
primum mobile é, para Aristóteles, eterno, incorruptível e imóvel. (ARISTÓTELES, 2005).
direções criam, assim, um plano cartesiano, com um eixo vertical, o qual o homem não
pode alterar e um horizontal, que, como ponto de direção, pode ser variável – o que é
frente pode se tornar atrás –, entretanto, como plano, torna-se invariável.
Conforme Richard Tarnas expõe em A epopeia do pensamento ocidental (1999), a
Alta Idade Média redescobriu “grande quantidade de escritos de Aristóteles” (p. 198) e
juntamente com os escritos de Aristóteles, “entre os quais a Metafísica, a Física e o De
Anima (Sobre a Alma), vieram comentários eruditos árabes e também outras obras da
ciência grega, especialmente as de Ptolomeu” (p. 198). O autor ainda descreve que a
influência de Aristóteles na sociedade medieval foi “extraordinária”, uma vez que unia
o conhecimento científico, o discurso lógico e a inteligência humana, sendo tratado pelo
público como “o Filósofo”.
Os inúmeros biógrafos de Dante relatam sobre a educação básica do poeta
florentino, que começou os estudos na escola dos Franciscanos, no convento de Santa
Cruz, frequentando, posteriormente, a escola de Bruneto Latino. No convento,
certamente esteve em contato com as Sumas e dos Comentários à filosofia de
Aristóteles e de São Tomás de Aquino. Há relatos de que Dante permaneceu algum
período em Paris, entretanto “os estudos que ali haja realizado permanecem envoltos em
denso mistério” (MARTINS, 2006, p. 37).
Já na Universidade de Bolonha, “ficou durante vários meses, dedicando-se
especialmente aos cursos de ciências naturais, escolástica e filosofia clássica”
(MARTINS, 2006, p. 37). Todo esse itinerário reforça a crença de que o poeta possuía
conhecimento tanto da concepção aristotélica do mundo quanto da de Ptolomeu, que se
utiliza do filósofo grego para sua teoria.
Ainda, segundo Otto Maria Carpeaux, em A idade média por Carpeaux (2012),
Dante faz parte de um período muito particular da Idade Média, o Trecento italiano.
Esse período é peculiar porque, apesar de ser sinônimo do século XIV, em termos
literários “não coincide completamente com o cronológico” (p. 122), sendo marcado
pelo dolce stil novo. Carpeaux (2012, p. 122) especifica que o “Trecento é quase
sinônimo de ‘poesia de amor’”. Dessa forma, é possível compreender o porquê da
Commedia ser uma poesia de amor para Beatrice, o leitmotiv da obra dantesca, uma vez
que o próprio poeta prometera “dizer de Beatriz o que não foi dito de mulher nenhuma”
(ALIGHIERI, 1993, p. 93).
De fato, a Commedia diz de uma mulher o que nenhuma outra ouviu. Beatrice é
colocada na Rosa Mística, no Empíreo, junto à Virgem Santíssima e outros beatos e
santos. Na Rosa habitam figuras do Antigo e do Novo Testamento, como, por exemplo,
Eva e Santa Ana, respectivamente, bem como aqueles que acreditaram no “Cristo
futuro”, como São Bernardo explica a Dante no 32º canto do Paraíso.
[...]
Beatrice não é apenas o grande amor de Dante, ela também é Beatitude, elevada
de uma imagem de desejo a uma condição angelical (BLOOM, 1990). Segundo E. R.
Curtius, na obra Literatura europeia e Idade Média latina (1996), Beatrice é
reestilizada por Dante, que a transforma de uma dama real a um mito, ou seja, Beatrice
passa de donna gentile em Vita Nova a dama Filosofia em Il convivio.
Homem tanto da Idade Média, quanto do Trecento, Dante Alighieri é um
elemento sui generis de sua época. Ao mesmo tempo em que compõe uma ‘poesia de
amor’, também é capaz de sintetizar seu tempo e geminar uma nova espécie de sujeito,
não mais uno. O homem dantesco possui em si não apenas características medievais,
5
Para maior fluência das citações referentes ao corpus da presente tese, optamos por utilizar as primeiras
letras de cada parte – Inf., Purg., Par. – que compõe a Commedia, seguidas pelo canto em numerais
romanos e versos em numerais arábicos, bem como as iniciais do tradutor responsável pela versão
utilizada, sendo CM para Cristiano Martins e IE, para Ítalo Eugênio
mas é portador de um embrião que se tornará, nos séculos posteriores a imagem
principal do indivíduo em fragmentação. (precisa de mais alguma coisa?)
De acordo com C. S. Lewis, em A imagem descartada (2015), o homem medieval
compartilhava de muitas ignorâncias com os povos não civilizados, entretanto, essas
crenças não chegaram pelo mesmo caminho desses. O autor expõe que para os povos
não civilizados suas crenças eram respostas espontâneas ao seu meio, “uma resposta
dada sobretudo pela imaginação” (p. 21), mas que o pensamento medieval não surge
dessa maneira.
Assim, esclarece que a Idade Média é peculiar quanto ao pensamento. Isso se deve
à habilidade de sistematização de conhecimento, pois “o homem medieval [...] era um
organizador, um decodificador, um construtor de sistemas” (2015, p. 28), o que explica
também o caráter livresco dessa cultura. O autor inglês ainda cita a capacidade medieval
de unir “massas imensas de materiais heterogêneos” (p. 29), ou seja, a capacidade de
unir o pensamento cristão ao racionalismo de forma harmoniosa.
A Commedia é apresentada pelo estudioso inglês como um exemplo perfeito dessa
capacidade medieval. Dante nos apresenta um pós-morte que remete a dois pensamentos
complementares: o greco-romano e o ptolomaico, estabelecendo o pensamento cristão e
aristotélico como amálgama dessa estrutura que se harmoniza. A primeira parte do
épico-lírico dantesco é organizada conforme descrições do inferno encontradas na
Eneida, na Odisseia e nos mitos gregos, como os de Perséfone6 e de Orfeu7.
6
Segundo Junito Brandão (1987, p. 290), Core, filha de Deméter e Zeus, “crescia tranquila e feliz entre as
Ninfas e em companhia de Ártemis e Atená, quando um dia seu tio Hades, que a desejava, a raptou com o
auxílio de Zeus”. Zeus colocou uma flor de narciso para atrair Core que, ao tentar pegá-la, viu a terra se
abrir e dela sair Hades que “a conduziu para o mundo ctônico” (p. 290). Deméter percorreu o mundo à
procura da filha, e somente depois de encontrar Hélio, soube que Hades havia levado sua filha. “Irritada
contra Hades e Zeus, decidiu não mais retornar ao Olimpo, mas permanecer na terra, abdicando de suas
funções divinas, até que lhe devolvessem a filha”. Sua ausência do Olimpo fez abater uma seca sobre a
terra, e nenhuma tentativa de Zeus fez com que Deméter retornasse. Assim, Zeus pediu a devolução de
Core, entretanto, Hades “habilmente fez que a esposa colocasse na boca uma semente de romã [...] e
obrigou-a a engoli-la, o que a impedia de deixar a outra vida.” (p. 291-292, grifos do autor). Assim,
Perséfone (como passou a chamar-se a rainha dos Infernos) passaria quatro meses no Hades e oito na
Terra.
7
Orfeu, segundo Junito Brandão (1987, v. 2, p. 141), “é um herói muito antigo”, encontrado na expedição
dos Argonautas. “Sua existência era tão real para o povo, que, em Anfissa, na Lócrida, se lhe venerava a
cabeça como verdadeira relíquia” (p. 141-142). Assim que retornou da expedição dos Argonautas, casou-
se com Eurídice, uma ninfa a quem amava profundamente. Certo dia, conforme relatado em As Geórgias,
de Virgílio, Aristeu tentou violar Eurídice que, ao fugir foi picada por uma serpente e morreu. Orfeu,
inconformado com a perda, resolveu descer “às trevas do Hades, para trazê-la de volta. Orfeu, com sua
citara e sua voz divina, encantou de tal forma o mundo ctônico, que até mesmo a roda de Exíon parou de
girar” (p. 142). Hades e Perséfone, comovidos pela prova de amor, concordaram em devolver-lhe
Eurídice, mas sob uma condição: “ele seguiria à frente e ela lhe acompanharia os passos, mas, enquanto
caminhassem pelas trevas infernais, ouvisse o que ouvisse, pensasse o que pensasse, Orfeu não poderia
As passagens que compõem o Inferno estão em harmonia com a tradição literária
de seus antepassados. Nessa viagem, Dante 8 possui como guia o poeta Virgílio, autor da
Eneida (I a. C.), em que o personagem Eneias visita o tártaro para conversar com seu
falecido pai, Anquise. A escolha de Virgílio como guia é explicada pelo próprio Dante
no canto I do Inferno, quando o apresenta como seu poeta preferido: “Dos outros poetas
honra e desafio,/ valham-me o longo esforço e o fundo amor,/ que ao teu poema votei
anos a fio./ Na verdade, és meu mestre e meu autor;/ ao teu exemplo devo,
deslumbrado,/ o belo estilo que é meu só valor” (Inf. I, 82-87 – CM).
Além disso, o poeta Virgílio se assemelha a Dante, primeiro exilado e depois
reconhecido poeta nacional de Roma (JUNQUEIRA FILHO, 2016), visto que o poeta
latino foi aquele que profetizou o aparecimento de Cristo. Dessa forma, Virgílio torna-
se a companhia perfeita para Dante, uma vez que a Commedia é “uma história da
salvação de um único homem, Dante, e como tal, uma história figurativa da salvação da
humanidade em geral” (p. 33).
Nesse mesmo princípio, Lewis (2015) afirma que Virgílio é o auctour9 de Dante,
mestre a quem o poeta florentino deve acompanhar – Inferno e Purgatório – para
superá-lo – Paraíso –, pois o primeiro não pode adentrar a glória do reino divino.
Conforme Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho, em Dante e Virgílio (2016), Virgílio é o
duplo, o outro de Dante, escolhido pelo il sommo poeta por “sua imagem histórica de
personalidade sensível, equilibrada e firme, que pudesse se contrapor a seu [de Dante]
espírito belicoso e inconformista” (p. 35).
Junqueira Filho (2016) empreende uma análise da relação de “poesis
colaborativa” entre os dois poetas, apontando Virgílio como o alter ego, uma vez que
ele “faz um contraponto ou complementa as qualidades ou os atributos de outra” (p. 35).
Ainda, tomando os conceitos de Hegel, explicita que a peregrinação contada na
olhar para trás, enquanto o casal não transpusesse os limites do império das sombras”. Entretanto, Orfeu,
corroído pela impaciência e incerteza olhou para trás. “Ao voltar-se, viu Eurídice, que se esvaiu para
sempre numa sombra, ‘morrendo pela segunda vez... ’” (p. 142, grifos do autor).
8
Apesar de vários estudiosos registrarem uma diferenciação entre o Dante real e o Dante-peregrino,
personagem que percorre os reinos do além na Commedia, para efeitos desta tese, optamos por não
diferenciá-los, visto que ambos contribuem para nossa interpretação e visão.
9
Lewis (2015, p. 24-29) explica que a Idade Média era um período de autoridades, não apenas da Igreja,
mas dos livros, pois os homens medievais eram livrescos e crédulos no que tangia aos seus livros.
Segundo o autor, “todo escritor [medieval], sempre que possível, baseava-se em autores anteriores, (isto
é,) seguia um auctour: de preferência um autor latino” (p. 24), considerando inacreditável que esse
auctour não tenha dito a verdade em seus relatos.
Commedia foi “concebida por um ser sensível, Dante, o qual se associou a um ser
suprassensível, Virgílio, para, com sua ajuda, enfrentar um real que, como nos alerta
Guimarães Rosa (1908-1967), ‘não está na saída nem na chegada [...] [mas] no meio da
travessia’” (p. 38).
Atendo-nos nessa travessia que tanto Rosa quanto Junqueira Filho tomam,
compreendemos que a viagem empreendida por Dante Alighieri em sua Commedia
representa não apenas uma explicação para um dos maiores enigmas da humanidade, o
outro lado da vida, como também estrutura e reforça parâmetros para que o homem
alcance a salvação. Assim, Dante estabelece, conforme Junqueira Filho (2016), um
padrão de salvação baseado em sua própria performance e suas virtudes.
Em contraponto a Junqueira Filho (2016), interessa-nos não apenas a relação
criada entre Dante e seus guias, mas os espaços visitados no decorrer das parcerias
empreendidas, na replicação das descrições dos antigos e na incorporação do
pensamento cristão em sua obra, especialmente no que concerne à penalidade e
reciprocidade dos pecados humanos. No entanto, é necessário observar que o quesito
espaço é bastante intricado e, portanto, delicado. Talvez por sua complexidade esse
assunto tenha ficado às margens da pesquisa, como evidenciado pelo limitado número
de trabalhos que trazem esse assunto como peça central, conforme expõe Otto Friedrich
Bollnow no livro O homem e o espaço (2008).
O filósofo alemão começa seu trajeto buscando a diferença entre o espaço
matemático e o que ele chama de espaço vivenciado, “o espaço como ele se abre para a
vida humana concreta [...] o espaço concreto real, no qual acontece a vida”
(BOLLNOW, 2008, p. 16-17). Para ele, o espaço vivenciado possui um centro, dado
pelo lugar do homem que vivencia o espaço e um “distinto eixo de coordenadas, que
está em interrelação com o corpo humano e sua atitude vertical, contraposta à força da
gravidade” (p. 15). Suas imediações e locais se distinguem qualitativamente, além de
possuir pronunciadas descontinuidades.
Esse espaço, em contraponto ao matemático que é contínuo e uniforme e se
expande para todos os lados até o infinito, é fechado e finito. Ainda, é o campo do
comportamento da vida humana, uma vez que “por meio das relações vitais, mostra-se
para o homem mais um fator estimulante do que repressor” (p. 15-16), pois cada espaço
possui um significado para o homem e trata-se de uma realidade para o homem, da
relação humana com esse espaço, pois um não se destaca do outro.
Nesse sentido, Bollnow (2008) concorda com a definição estabelecida por Eugène
Minkowski (1970) que, ao discorrer sobre o tempo vivido, estende-se até o conceito do
espaço, bem como sua relação com o homem.
Para nós, o espaço não pode ser reduzido a relações geométricas, relações
que estabelecemos como se, reduzidos ao simples papel de espectadores ou
cientistas curiosos, estivéssemos nós mesmos fora do espaço. Vivemos e
agimos no espaço, e nossa vida pessoal, bem como a vida social da
humanidade, desdobra-se no espaço. (MINKOWSKI, 1970, p. 400, grifos do
autor, tradução nossa10)
Otto Bollnow (2008) ainda se utiliza das proposições de Graf Dürckheim para
fundamentar suas reflexões sobre essa relação existente entre o homem e o espaço
vivenciado. Assim, para o filósofo, citando Dürckheim,
diferente de acordo com o ser de quem ele é o espaço, e de acordo com a vida
que nele se realiza. Modifica-se com o homem que nele está, modifica-se
10
“For us, space cannot be reduced to geometric relations, relations which we establish as if, reduced to
the simple role of curious spectators or scientists, we were ourselves outside space. We live and act in
space, and our personal lives, as well as the social life of humanity, unfolds in space.” (MINKOWSKI,
1970, p. 400, grifos do autor).
11
Utilizamos o substantivo homem como sinônimo para raça humana e toda a sua diversidade.
com a atualidade de determinadas posturas e orientações que – mais ou
menos instantaneamente – dominam todo o self. (p. 390 apud BOLLONOW,
2008, p. 19, grifos do autor)
Nesse sentido compreendemos a relação criada entre Dante nos reinos do além e
esses espaços de punição ou redenção, refletindo sobre seu próprio espaço e a vida que
se realiza nele. Em Teorias do espaço literário (2013), Luis Alberto Brandão apresenta
como característica do conceito de espaço o fato dele ser mutável e que existem
Dessa forma, chama-nos a atenção o primeiro espaço ocupado pelo poeta, a selva
oscura, que o prende e incute o medo em seu coração, conforme os primeiros versos do
Inferno: “essa selva selvagem, densa e forte,/ que ao relembrá-la a mente se tortura!”
(Inf. I, 5-6 – CM).
O pintor francês Gustave Doré ao retratar essa passagem12, apresenta um espaço
enegrecido pela noite, sufocante pelas altas e densas raízes das árvores que parecem
querer tomar Dante para si, de forma a arrastá-lo para a escuridão. Nosso poeta aparece
acanhado, solitário e desesperançado frente à hostilidade da selva. Doré parece
estabelecer nessa primeira imagem toda a angústia relatada pelo viajante que se achava
perdido da via direita e, por isso, culpado pelo transvio de sua consciência.
Por mais que Dante tenha esperança ao alçar seu olhar para o monte banhado
pelos “raios do planeta”, aquela selva parece determinada a impedir seu progresso até a
salvação. Assim, três feras aparecem e empurram o poeta de volta para a densa selva:
uma pantera, um leão e uma loba. Essas feras representam tanto os vícios humanos –
luxúria, violência e avareza – quanto a degradação das instituições – Florença, França e
Cúria Romana, respectivamente.
As três feras, em especial a loba esquelética, impelem Dante a retornar ao
caminho escuro, deixando o poeta impotente e desesperado e cada vez mais distante da
montanha iluminada “– assim eu me sentia ante a assassina,/ que, vindo contra mim, me
12
Conferir anexo A.
foi forçando/ de volta aonde o sol nunca ilumina” (Inf, I, 58-60 – CM). Podemos
compreender essa passagem como a própria vida de Dante. O poeta, irado pelo exílio a
si imposto, parece estar corrompido pela violência contra aqueles que lhe negaram o
direito de retornar à sua amada Florença; e sua avareza não lhe permitiu pagar a multa
que poderia ter-lhe devolvido sua casa.
Dante, conforme seus biógrafos e estudiosos relatam, por ser apoiador dos gelfos
brancos, acaba, no ano de 1301, sendo condenado ao exílio por dois anos e ao
pagamento de uma elevada multa. Não retornando a Florença para a quitação de sua
dívida, foi condenado ao exílio perpétuo e à pena de morte, caso fosse pego por
soldados florentinos. Sua condenação, realizada em um julgamento ao qual o poeta não
se apresentou, foi considerada por Dante uma verdadeira afronta. A partir desse
momento, il sommo poeta nunca mais poria os pés em sua amada cidade. A composição
da Commedia é iniciada por volta de 1308, segundo a Encyclopedia Britannica13, sendo
finalizada em 1321, ano da morte do poeta. Essas datas, porém, não podem ser
precisadas, entretanto, tem-se que a partir do exílio, Dante produziu a maior parte de seu
legado.
Impelido pelas feras quase de volta ao ponto de partida, o poeta encontra-se tão
desesperado por ajuda que, quando percebe outra presença na floresta, não hesita em
pedir por socorro. Dá-se o encontro do herói com seu guia, Virgílio, enviado por
Beatrice, a paixão juvenil de Dante, para resgatá-lo e levá-lo até o caminho correto.
Importante realçar que mesmo na presença de seu salvador, a floresta ainda é inóspita
ao florentino e a loba continua no encalço dos viajantes por algumas passadas.
Essa floresta representa o espaço que prenuncia o Inferno para Dante, e, como tal,
é o local que mais terror causa ao protagonista da Commedia. Cercado pelas bestas e
13
Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Dante-Alighieri/The-Divine-Comedy>. Acesso
em 03 set. 2017.
ameaçado por raízes que parecem tentáculos prontos para puxarem o poeta para o
interior de sua escuridão, ele enfrenta a agonia de ver a salvação, mas ao mesmo tempo,
estar impedido de alcança-la. Aquele espaço é para o poeta tão cruel quanto a morte,
como expressa nos versos “De tão amarga, pouco mais lhe é a morte” (Inf. I, 7 – IE),
transformando-se de um espaço físico a um mítico, uma vez que a floresta, na Idade
Média, passou a representar a fronteira da civilização e o inconsciente da mente
humana, sendo o lugar das transformações e reencontro de si mesmo.
É na floresta que Dante se perde, mas também é nela que encontra um guia que
proporcionará sua transformação, de simples homem para arauto da salvação humana. O
reencontro de si mesmo. A “Floresta da Perdição”, conforme diversos estudiosos
nomeiam14, não é a única floresta que Dante encontrará no decorrer de sua jornada. Esse
espaço mítico será retomado em outras circunstâncias, no próprio Inferno bem como no
topo da montanha do Purgatório, como um espelho daquela em que Dante se encontrava
perdido.
Entretanto, a floresta do Paraíso Terrestre, o Éden, não causa medo ao poeta, antes
é uma recompensa pela travessia até aquele momento empreendida. Ali os poetas
encontram a mansidão do vento, bem como o cantar dos pássaros, conforme os
primeiros versos do canto XXVIII.
14
(LEWIS, 2002); (MARTINS, 2010); (DISTANTE, 2015).
Nesse sentido, podemos compreender o espaço da floresta como o primeiro da
geografia mítica transposta pelo poeta florentino. Uma geografia que começa na selva
oscura e termina no Empíreo.
Tais imagens nos remetem ao crítico e teórico canadense Northrop Frye, que no
livro Anatomia da crítica reflete sobre o uso de imagens na literatura, discutindo a
função arquetípica que elas podem assim ir no texto. O teórico ao sistematizar a
invenção literária, estabelece três categorias de imagens: apocalípticas, demoníacas e
analógicas. Quanto às duas primeiras, estão ligadas à tendência mítica da organização
arquetípica e a terceira à tendência romanesca.
Interessa-nos a tendência mítica e, nessa perspectiva, as imagens demoníacas
exibem um mundo rejeitado completamente pelo desejo e associado à ideia de inferno
pessoal, um “mundo do pesadelo e do bode expiatório, de cativeiro e dor e confusão,
[…] do trabalho pervertido, ou desolado, de ruínas e catacumbas, instrumentos de
tortura e monumentos de insensatez” (Frye, 1973, p.148).
As imagens apocalípticas são o avesso das demoníacas. Ele constitui o céu da
religião, a plena realização do desejo humano. Os jardins, fazendas, bosques, templos,
entre outros, constituem o arcabouço de espaços que compõem o universo apocalíptico.
Dante flutua entre essas imagens ao mesmo tempo em que utiliza o mesmo espaço – a
floresta – para transitar de uma imagem demoníaca para uma apocalíptica.
Dante ainda encontra outras florestas no decorrer da descida pelo Inferno. No
segundo giro do sétimo círculo, Dante e Virgílio encontram a “Floresta dos Suicidas”,
aqueles que cometeram violência contra si próprios. Os pecadores desse giro caem em
forma de sementes e crescem como árvores. Entretanto, essas árvores não são frutíferas
ou mesmo verdes. Ainda, diversas harpias se encontram nesse giro, prontas para se
alimentarem dessas árvores, causando ferimento e sofrimento aos condenados.
[...]
[...]
[...]
[...]
16
O conceito de arquétipo de Eliade difere do utilizado por C. G. Jung, para quem arquétipo pode ser
compreendido como uma matriz de imagens em estado de inconsciência, “caminhos virtuais herdados”
(JUNG, 2008, p. 24). Para Eliade, arquétipo refere-se a “modelos paradigmáticos estabelecidos pelos
Entes Sobrenaturais” (2011a, p. 112), conforme os mitos das sociedades arcaicas.
17
Segundo Raphael Patai (1972) o homem moderno encara os mitos como uma história fantástica, não no
sentido sagrado e exemplar como era para os homens das sociedades primitivas, mas, apesar disso, não
consegue se livrar dos seus resquícios. Eliade apresenta diversas ramificações dos mitos que se encontram
camuflados na sociedade moderna, citando, entre outros, a história do personagem fantástico Superman,
cujo mito “satisfaz às nostalgias secretas do homem moderno que, sabendo-se decaído e limitado, sonha
revelar-se um dia um ‘personagem excepcional’, ‘um herói’” (2011a, p. 159).
não dotado de todos os atributos que lhe seriam pertinentes, deve vencer o segundo.
Para se tornar um herói, ele precisa enfrentar uma série de desafios – o caminho
iniciático, que irá provar (ou não) que ele possui as qualidades necessárias para a
função. Isso ocorreu com Hércules, desafiado nos doze trabalhos, para só então poder
ser elevado a tal categoria.
Por esse motivo, Dante precisa percorrer uma trajetória repleta de desafios,
começando com as feras que o impedem de se aproximar da montanha iluminada. Além
disso, Dante precisa de um guia, que lhe servirá de mestre e modelo, que deve ser
superado ao final da jornada. Essa, por sua vez, é, além de mítica, mística, pois Dante
precisa da experiência mística para superar o abismo em que se encontra – sua selva
oscura, para então alcançar a plenitude, que, no nosso caso, acreditamos que seja o
embrião do homem moderno, fragmentado e que anseia por descobrir seu lugar no
mundo.
O estudo do mito é do interesse de diversas áreas como a filosofia, a antropologia,
a psicologia, a arqueologia e a literatura e artes em geral. Com relação à literatura, esse
interesse apresenta-se mais intenso, pois o mito surge como narrativa, ainda que não
necessariamente literária (SIGANOS, 1993). De acordo com Northrop Frye (2000, p.
28), “o mito é e sempre foi um elemento integrante da literatura, o interesse de poetas
pelo mito e pela mitologia tem sido notável e constante desde a época de Homero”.
Assim, podemos compreender a dualidade apresentada por Eliade (2011a) com relação
à interpretação do que vem a ser o mito.
Nesse sentido, André Siganos (1993) propõe que o mito pode ser compreendido
como literário, literalizado ou um misto dos dois. O primeiro constitui-se de um texto
fundador, não fragmentado, apresentando inumeráveis versões surgidas a partir de um
texto literário historicamente datado, enquanto o segundo surge de narrativas orais
arcaicas que são retomadas no contexto literário. Quanto ao terceiro, trata-se de um mito
híbrido, tendo-se originado em relatos orais e evoluído para o texto literário, onde
ganhará outras características e versões. Assim, o autor cita três mitos para elucidar sua
classificação: o mito do Minotauro, o de Don Juan e o de Édipo Rei, de Sófocles. O
primeiro é um mito fundador, baseado em relatos orais, o segundo surgiu em um texto
literário que determina sua retomada posterior e o terceiro, cujas origens são orais,
condiciona retomadas na literatura (SIGANOS, 1993).
REFERÊNCIAS