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Seminário de Dissertações e Tese em Andamento

Capítulo analítico

A Divina Comédia foi, é e sempre será o canto


confiante de um homem solitário dirigido a uma
humanidade desesperançada.
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

A Idade Média, ao contrário da alcunha de “Idade das Trevas” 1, é descrita como


um “longo período criativo e dinâmico” (LE GOFF, 2013, p. 13), podendo ser dividido,
conforme aponta o estudioso francês Jacques Le Goff, na obra Homens e mulheres da
Idade Média (2013), em quatro períodos. O primeiro, vai da cristianização operada por
Constantino até Carlos Magno; o segundo da morte de Carlos Magno (séc. IX) ao ano
mil, ao passo que o período compreendido entre os séculos XI e XIII equivale ao
terceiro tempo da Idade Média. O último período “engloba os séculos XIV e XV” (p.
14), sendo por muito tempo considerado como um período de crise. Entretanto, ainda de
acordo com o estudioso, apesar das perturbações “também se viu aí aparecerem as
premissas das novidades que anunciavam o acontecimento daquilo que a maior parte
dos historiadores chama de Renascimento. Em todo caso, foi um período muito
criativo” (2013, p. 14).
Dante Alighieri, o poeta florentino, acompanhou dois importantes momentos da
Idade Média, nascendo no terceiro período e contribuindo para a criatividade que
caracteriza o quarto. Sua obra, considerada por seus conterrâneos como a expressão
máxima da literatura italiana, expressa as transformações não apenas da sociedade de
Florença, mas de toda uma época, trazendo os conflitos e avanços que repercutirão não
apenas no Renascimento, mas na modernidade.
Como toda época histórica, a Idade Média foi caracterizada por forças duais. A
principal talvez possamos considerar a da razão e a da fé, ou o dualismo entre o corpo e
a alma, base para o pensamento cristão, para quem existia duas visões, uma otimista
focada no êxtase da revelação e da vida eterna e outra pessimista, focada na vida neste
mundo e na necessidade de sacrifícios para a salvação (TARNAS, 1999).

1
Segundo Jacques Le Goff (2013), “Idade das Trevas” foi uma invenção dos humanistas do
Renascimento, “com os filósofos e os historiadores do século dito das Luzes, o XVIII, e só foi
parcialmente restaurada pelos novos gostos do romantismo e pelo estudo positivista do século XIX” (p.
13).
Interessa-nos, aquele dualismo entre o corpo e a alma, que não deixa de ser base
para os demais. Já em Aristóteles 2 (384 a.C. – 322 a.C.) encontramos um dualismo
semelhante, com a separação do universo em duas regiões: uma inferior, de mudanças,
perecível e sujeita à morte e uma superior, permanente e estável. A primeira região,
Aristóteles chamou sublunar (natureza) e à segunda, supralunar (céu). A natureza era
constituída pelos quatro elementos – terra, água, fogo, ar – e o céu por um elemento
distinto, o éter, que envolveria os corpos celestes. Aristóteles faz essa divisão
considerando que a característica do mundo que nós, humanos, habitamos é a constante
mudança – nascimento, crescimento, reprodução e morte –, e o que se podia observar
pela astronomia era que os corpos celestes eram estáveis, permanentes.
Aristóteles ainda estabelece que cada elemento possui um local definido, ao qual
pertence e ao qual sempre tende a retornar. Ainda, que os movimentos característicos da
natureza são retilíneos – para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita, para
frente e para trás – e descontínuos, enquanto os movimentos do céu seriam circulares e
contínuos. Encontramos esses movimentos na Commedia. Enquanto estão no reino da
natureza (sublunar), il sommo poeta3 e seu guia realizam um movimento descendente
(Inferno) e um ascendente (Purgatório) para então subir ao céu. No Paraíso, encontra o
primum mobile, que Aristóteles4 também chamou deus, que move os céus, em um
movimento circular e contínuo.
Importante ressaltar que as direções apresentadas por Aristóteles não possuem o
mesmo valor, sendo para cima e para baixo condicionadas à posição do homem em pé,
ou seja, é dada pela força da gravidade. Já as outras – esquerda e direita, frente e trás –
estão intimamente relacionadas ao corpo humano e o movimento no espaço. Tal
condicionamento ressalta a importante relação do homem para como o espaço, uma vez
que não há como movimentar o espaço, porém é possível se movimentar por ele. Essas

2
Aristóteles desenvolve esses conceitos no livro II da Física e no Do céu (De Caelo). Os escritos de
Aristóteles, em especial a Física são, conforme estudiosos apontam, resultado de uma reconstrução-
compilação feita, provavelmente, por Andrônico de Rodas, no século 1 a.C. (LUCE, 1994).
3
Dante Alighieri é considerado o primeiro e maior poeta da literatura italiana. “Il sommo poeta”, segundo
Michele Barbi, na Enciclopedia Italiana (1931), é utilizado para se falar “de sua grandeza, não da
natureza de seu gênio” (BARBI, 1931 apud Treccani. Disponível em:
<http://www.treccani.it/enciclopedia/dante-alighieri_%28Enciclopedia-Italiana%29/>. Acesso em 03 jul.
2017. Desta forma, buscamos nesta tese a adoção do “epípeto” para nos referirmos ao poeta florentino.
4
Aristóteles apresenta o primum mobile no livro XII da Metafísica, em que trata da substância primeira, a
qual pode explicar o vir-a-ser das substâncias sensíveis. Segundo o filósofo, o primum mobile é
responsável pelo princípio do movimento, sendo a causa do movimento das estrelas e esferas celestes. O
primum mobile é, para Aristóteles, eterno, incorruptível e imóvel. (ARISTÓTELES, 2005).
direções criam, assim, um plano cartesiano, com um eixo vertical, o qual o homem não
pode alterar e um horizontal, que, como ponto de direção, pode ser variável – o que é
frente pode se tornar atrás –, entretanto, como plano, torna-se invariável.
Conforme Richard Tarnas expõe em A epopeia do pensamento ocidental (1999), a
Alta Idade Média redescobriu “grande quantidade de escritos de Aristóteles” (p. 198) e
juntamente com os escritos de Aristóteles, “entre os quais a Metafísica, a Física e o De
Anima (Sobre a Alma), vieram comentários eruditos árabes e também outras obras da
ciência grega, especialmente as de Ptolomeu” (p. 198). O autor ainda descreve que a
influência de Aristóteles na sociedade medieval foi “extraordinária”, uma vez que unia
o conhecimento científico, o discurso lógico e a inteligência humana, sendo tratado pelo
público como “o Filósofo”.
Os inúmeros biógrafos de Dante relatam sobre a educação básica do poeta
florentino, que começou os estudos na escola dos Franciscanos, no convento de Santa
Cruz, frequentando, posteriormente, a escola de Bruneto Latino. No convento,
certamente esteve em contato com as Sumas e dos Comentários à filosofia de
Aristóteles e de São Tomás de Aquino. Há relatos de que Dante permaneceu algum
período em Paris, entretanto “os estudos que ali haja realizado permanecem envoltos em
denso mistério” (MARTINS, 2006, p. 37).
Já na Universidade de Bolonha, “ficou durante vários meses, dedicando-se
especialmente aos cursos de ciências naturais, escolástica e filosofia clássica”
(MARTINS, 2006, p. 37). Todo esse itinerário reforça a crença de que o poeta possuía
conhecimento tanto da concepção aristotélica do mundo quanto da de Ptolomeu, que se
utiliza do filósofo grego para sua teoria.
Ainda, segundo Otto Maria Carpeaux, em A idade média por Carpeaux (2012),
Dante faz parte de um período muito particular da Idade Média, o Trecento italiano.
Esse período é peculiar porque, apesar de ser sinônimo do século XIV, em termos
literários “não coincide completamente com o cronológico” (p. 122), sendo marcado
pelo dolce stil novo. Carpeaux (2012, p. 122) especifica que o “Trecento é quase
sinônimo de ‘poesia de amor’”. Dessa forma, é possível compreender o porquê da
Commedia ser uma poesia de amor para Beatrice, o leitmotiv da obra dantesca, uma vez
que o próprio poeta prometera “dizer de Beatriz o que não foi dito de mulher nenhuma”
(ALIGHIERI, 1993, p. 93).
De fato, a Commedia diz de uma mulher o que nenhuma outra ouviu. Beatrice é
colocada na Rosa Mística, no Empíreo, junto à Virgem Santíssima e outros beatos e
santos. Na Rosa habitam figuras do Antigo e do Novo Testamento, como, por exemplo,
Eva e Santa Ana, respectivamente, bem como aqueles que acreditaram no “Cristo
futuro”, como São Bernardo explica a Dante no 32º canto do Paraíso.

“Da chaga, que Maria fechou e ungiu,


a bela, que aparece lá aos seus pés,
foi a culpada, que primeiro a abriu.

E abaixo dela senta, por sua vez,


Raquel, no arco terceiro, tendo só,
ao lado, Beatriz, como tu vês.

[...]

na outra parte, que se vê atalhar


de vazos, a união das almas senta
que ao Cristo vindo volveram o olhar.

Como a de cá o trono representa


a Senhora do Céu, e, nos que estão
abaixo desse, alta glória se ostenta,

assim tem o outro lado o grã João


que, sempre santo, todo lote mau
sofreu, até à infernal prisão;

(Par., XXXII, 4-9; 25-33 – IE) 5

Beatrice não é apenas o grande amor de Dante, ela também é Beatitude, elevada
de uma imagem de desejo a uma condição angelical (BLOOM, 1990). Segundo E. R.
Curtius, na obra Literatura europeia e Idade Média latina (1996), Beatrice é
reestilizada por Dante, que a transforma de uma dama real a um mito, ou seja, Beatrice
passa de donna gentile em Vita Nova a dama Filosofia em Il convivio.
Homem tanto da Idade Média, quanto do Trecento, Dante Alighieri é um
elemento sui generis de sua época. Ao mesmo tempo em que compõe uma ‘poesia de
amor’, também é capaz de sintetizar seu tempo e geminar uma nova espécie de sujeito,
não mais uno. O homem dantesco possui em si não apenas características medievais,

5
Para maior fluência das citações referentes ao corpus da presente tese, optamos por utilizar as primeiras
letras de cada parte – Inf., Purg., Par. – que compõe a Commedia, seguidas pelo canto em numerais
romanos e versos em numerais arábicos, bem como as iniciais do tradutor responsável pela versão
utilizada, sendo CM para Cristiano Martins e IE, para Ítalo Eugênio
mas é portador de um embrião que se tornará, nos séculos posteriores a imagem
principal do indivíduo em fragmentação. (precisa de mais alguma coisa?)
De acordo com C. S. Lewis, em A imagem descartada (2015), o homem medieval
compartilhava de muitas ignorâncias com os povos não civilizados, entretanto, essas
crenças não chegaram pelo mesmo caminho desses. O autor expõe que para os povos
não civilizados suas crenças eram respostas espontâneas ao seu meio, “uma resposta
dada sobretudo pela imaginação” (p. 21), mas que o pensamento medieval não surge
dessa maneira.
Assim, esclarece que a Idade Média é peculiar quanto ao pensamento. Isso se deve
à habilidade de sistematização de conhecimento, pois “o homem medieval [...] era um
organizador, um decodificador, um construtor de sistemas” (2015, p. 28), o que explica
também o caráter livresco dessa cultura. O autor inglês ainda cita a capacidade medieval
de unir “massas imensas de materiais heterogêneos” (p. 29), ou seja, a capacidade de
unir o pensamento cristão ao racionalismo de forma harmoniosa.
A Commedia é apresentada pelo estudioso inglês como um exemplo perfeito dessa
capacidade medieval. Dante nos apresenta um pós-morte que remete a dois pensamentos
complementares: o greco-romano e o ptolomaico, estabelecendo o pensamento cristão e
aristotélico como amálgama dessa estrutura que se harmoniza. A primeira parte do
épico-lírico dantesco é organizada conforme descrições do inferno encontradas na
Eneida, na Odisseia e nos mitos gregos, como os de Perséfone6 e de Orfeu7.
6
Segundo Junito Brandão (1987, p. 290), Core, filha de Deméter e Zeus, “crescia tranquila e feliz entre as
Ninfas e em companhia de Ártemis e Atená, quando um dia seu tio Hades, que a desejava, a raptou com o
auxílio de Zeus”. Zeus colocou uma flor de narciso para atrair Core que, ao tentar pegá-la, viu a terra se
abrir e dela sair Hades que “a conduziu para o mundo ctônico” (p. 290). Deméter percorreu o mundo à
procura da filha, e somente depois de encontrar Hélio, soube que Hades havia levado sua filha. “Irritada
contra Hades e Zeus, decidiu não mais retornar ao Olimpo, mas permanecer na terra, abdicando de suas
funções divinas, até que lhe devolvessem a filha”. Sua ausência do Olimpo fez abater uma seca sobre a
terra, e nenhuma tentativa de Zeus fez com que Deméter retornasse. Assim, Zeus pediu a devolução de
Core, entretanto, Hades “habilmente fez que a esposa colocasse na boca uma semente de romã [...] e
obrigou-a a engoli-la, o que a impedia de deixar a outra vida.” (p. 291-292, grifos do autor). Assim,
Perséfone (como passou a chamar-se a rainha dos Infernos) passaria quatro meses no Hades e oito na
Terra.
7
Orfeu, segundo Junito Brandão (1987, v. 2, p. 141), “é um herói muito antigo”, encontrado na expedição
dos Argonautas. “Sua existência era tão real para o povo, que, em Anfissa, na Lócrida, se lhe venerava a
cabeça como verdadeira relíquia” (p. 141-142). Assim que retornou da expedição dos Argonautas, casou-
se com Eurídice, uma ninfa a quem amava profundamente. Certo dia, conforme relatado em As Geórgias,
de Virgílio, Aristeu tentou violar Eurídice que, ao fugir foi picada por uma serpente e morreu. Orfeu,
inconformado com a perda, resolveu descer “às trevas do Hades, para trazê-la de volta. Orfeu, com sua
citara e sua voz divina, encantou de tal forma o mundo ctônico, que até mesmo a roda de Exíon parou de
girar” (p. 142). Hades e Perséfone, comovidos pela prova de amor, concordaram em devolver-lhe
Eurídice, mas sob uma condição: “ele seguiria à frente e ela lhe acompanharia os passos, mas, enquanto
caminhassem pelas trevas infernais, ouvisse o que ouvisse, pensasse o que pensasse, Orfeu não poderia
As passagens que compõem o Inferno estão em harmonia com a tradição literária
de seus antepassados. Nessa viagem, Dante 8 possui como guia o poeta Virgílio, autor da
Eneida (I a. C.), em que o personagem Eneias visita o tártaro para conversar com seu
falecido pai, Anquise. A escolha de Virgílio como guia é explicada pelo próprio Dante
no canto I do Inferno, quando o apresenta como seu poeta preferido: “Dos outros poetas
honra e desafio,/ valham-me o longo esforço e o fundo amor,/ que ao teu poema votei
anos a fio./ Na verdade, és meu mestre e meu autor;/ ao teu exemplo devo,
deslumbrado,/ o belo estilo que é meu só valor” (Inf. I, 82-87 – CM).
Além disso, o poeta Virgílio se assemelha a Dante, primeiro exilado e depois
reconhecido poeta nacional de Roma (JUNQUEIRA FILHO, 2016), visto que o poeta
latino foi aquele que profetizou o aparecimento de Cristo. Dessa forma, Virgílio torna-
se a companhia perfeita para Dante, uma vez que a Commedia é “uma história da
salvação de um único homem, Dante, e como tal, uma história figurativa da salvação da
humanidade em geral” (p. 33).
Nesse mesmo princípio, Lewis (2015) afirma que Virgílio é o auctour9 de Dante,
mestre a quem o poeta florentino deve acompanhar – Inferno e Purgatório – para
superá-lo – Paraíso –, pois o primeiro não pode adentrar a glória do reino divino.
Conforme Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho, em Dante e Virgílio (2016), Virgílio é o
duplo, o outro de Dante, escolhido pelo il sommo poeta por “sua imagem histórica de
personalidade sensível, equilibrada e firme, que pudesse se contrapor a seu [de Dante]
espírito belicoso e inconformista” (p. 35).
Junqueira Filho (2016) empreende uma análise da relação de “poesis
colaborativa” entre os dois poetas, apontando Virgílio como o alter ego, uma vez que
ele “faz um contraponto ou complementa as qualidades ou os atributos de outra” (p. 35).
Ainda, tomando os conceitos de Hegel, explicita que a peregrinação contada na

olhar para trás, enquanto o casal não transpusesse os limites do império das sombras”. Entretanto, Orfeu,
corroído pela impaciência e incerteza olhou para trás. “Ao voltar-se, viu Eurídice, que se esvaiu para
sempre numa sombra, ‘morrendo pela segunda vez... ’” (p. 142, grifos do autor).
8
Apesar de vários estudiosos registrarem uma diferenciação entre o Dante real e o Dante-peregrino,
personagem que percorre os reinos do além na Commedia, para efeitos desta tese, optamos por não
diferenciá-los, visto que ambos contribuem para nossa interpretação e visão.
9
Lewis (2015, p. 24-29) explica que a Idade Média era um período de autoridades, não apenas da Igreja,
mas dos livros, pois os homens medievais eram livrescos e crédulos no que tangia aos seus livros.
Segundo o autor, “todo escritor [medieval], sempre que possível, baseava-se em autores anteriores, (isto
é,) seguia um auctour: de preferência um autor latino” (p. 24), considerando inacreditável que esse
auctour não tenha dito a verdade em seus relatos.
Commedia foi “concebida por um ser sensível, Dante, o qual se associou a um ser
suprassensível, Virgílio, para, com sua ajuda, enfrentar um real que, como nos alerta
Guimarães Rosa (1908-1967), ‘não está na saída nem na chegada [...] [mas] no meio da
travessia’” (p. 38).
Atendo-nos nessa travessia que tanto Rosa quanto Junqueira Filho tomam,
compreendemos que a viagem empreendida por Dante Alighieri em sua Commedia
representa não apenas uma explicação para um dos maiores enigmas da humanidade, o
outro lado da vida, como também estrutura e reforça parâmetros para que o homem
alcance a salvação. Assim, Dante estabelece, conforme Junqueira Filho (2016), um
padrão de salvação baseado em sua própria performance e suas virtudes.
Em contraponto a Junqueira Filho (2016), interessa-nos não apenas a relação
criada entre Dante e seus guias, mas os espaços visitados no decorrer das parcerias
empreendidas, na replicação das descrições dos antigos e na incorporação do
pensamento cristão em sua obra, especialmente no que concerne à penalidade e
reciprocidade dos pecados humanos. No entanto, é necessário observar que o quesito
espaço é bastante intricado e, portanto, delicado. Talvez por sua complexidade esse
assunto tenha ficado às margens da pesquisa, como evidenciado pelo limitado número
de trabalhos que trazem esse assunto como peça central, conforme expõe Otto Friedrich
Bollnow no livro O homem e o espaço (2008).
O filósofo alemão começa seu trajeto buscando a diferença entre o espaço
matemático e o que ele chama de espaço vivenciado, “o espaço como ele se abre para a
vida humana concreta [...] o espaço concreto real, no qual acontece a vida”
(BOLLNOW, 2008, p. 16-17). Para ele, o espaço vivenciado possui um centro, dado
pelo lugar do homem que vivencia o espaço e um “distinto eixo de coordenadas, que
está em interrelação com o corpo humano e sua atitude vertical, contraposta à força da
gravidade” (p. 15). Suas imediações e locais se distinguem qualitativamente, além de
possuir pronunciadas descontinuidades.
Esse espaço, em contraponto ao matemático que é contínuo e uniforme e se
expande para todos os lados até o infinito, é fechado e finito. Ainda, é o campo do
comportamento da vida humana, uma vez que “por meio das relações vitais, mostra-se
para o homem mais um fator estimulante do que repressor” (p. 15-16), pois cada espaço
possui um significado para o homem e trata-se de uma realidade para o homem, da
relação humana com esse espaço, pois um não se destaca do outro.
Nesse sentido, Bollnow (2008) concorda com a definição estabelecida por Eugène
Minkowski (1970) que, ao discorrer sobre o tempo vivido, estende-se até o conceito do
espaço, bem como sua relação com o homem.

Para nós, o espaço não pode ser reduzido a relações geométricas, relações
que estabelecemos como se, reduzidos ao simples papel de espectadores ou
cientistas curiosos, estivéssemos nós mesmos fora do espaço. Vivemos e
agimos no espaço, e nossa vida pessoal, bem como a vida social da
humanidade, desdobra-se no espaço. (MINKOWSKI, 1970, p. 400, grifos do
autor, tradução nossa10)

Otto Bollnow (2008) ainda se utiliza das proposições de Graf Dürckheim para
fundamentar suas reflexões sobre essa relação existente entre o homem e o espaço
vivenciado. Assim, para o filósofo, citando Dürckheim,

O espaço vivido é para o self um meio da realização em carne e osso,


antiforma ou expansão, intruso ou guardião, passagem ou permanência,
estrangeiro ou pátria, material, local de realização e possibilidade de
evolução, resistência e fronteira, órgão e adversário desse self em sua
realidade instantânea de ser e viver. (DÜRCKHEIM, 1932, apud
BOLLNOW, 2008, p. 389, grifos do original)

Dessa forma, o espaço apresenta-se tanto como “possibilidade de evolução”


quanto “resistência”, criando significados que podem se alterar de acordo com
diferentes lugares e regiões do espaço. Conforme reforça Bollnow (2008), esses
significados não são apenas frutos dos sentimentos subjetivos, mas “caracteres
autênticos do próprio espaço vivido” (p. 18). Assim, o espaço não pode ser entendido
como único, mas como diverso como os diversos homens 11 e também variável para o
próprio indivíduo, podendo ser modificado de acordo “com sua constituição e humor
circunstanciais” (p. 18).
Nas palavras de Dürckheim (1932), o espaço é

diferente de acordo com o ser de quem ele é o espaço, e de acordo com a vida
que nele se realiza. Modifica-se com o homem que nele está, modifica-se

10
“For us, space cannot be reduced to geometric relations, relations which we establish as if, reduced to
the simple role of curious spectators or scientists, we were ourselves outside space. We live and act in
space, and our personal lives, as well as the social life of humanity, unfolds in space.” (MINKOWSKI,
1970, p. 400, grifos do autor).
11
Utilizamos o substantivo homem como sinônimo para raça humana e toda a sua diversidade.
com a atualidade de determinadas posturas e orientações que – mais ou
menos instantaneamente – dominam todo o self. (p. 390 apud BOLLONOW,
2008, p. 19, grifos do autor)

Nesse sentido compreendemos a relação criada entre Dante nos reinos do além e
esses espaços de punição ou redenção, refletindo sobre seu próprio espaço e a vida que
se realiza nele. Em Teorias do espaço literário (2013), Luis Alberto Brandão apresenta
como característica do conceito de espaço o fato dele ser mutável e que existem

diferentes formas de percepção espacial, as quais incluem tanto os sentidos


do corpo humano quanto os sistemas tecnológicos, rudimentares ou
complexos, de observação, mensuração e representação. [...] Um breve
exame da história da cartografia é suficiente para demonstrar que as formas
de representação espacial variam de acordo com a relação que cada época e
cada cultura possuem com o espaço. (BRANDÃO, 2013, p. 18)

Dessa forma, chama-nos a atenção o primeiro espaço ocupado pelo poeta, a selva
oscura, que o prende e incute o medo em seu coração, conforme os primeiros versos do
Inferno: “essa selva selvagem, densa e forte,/ que ao relembrá-la a mente se tortura!”
(Inf. I, 5-6 – CM).
O pintor francês Gustave Doré ao retratar essa passagem12, apresenta um espaço
enegrecido pela noite, sufocante pelas altas e densas raízes das árvores que parecem
querer tomar Dante para si, de forma a arrastá-lo para a escuridão. Nosso poeta aparece
acanhado, solitário e desesperançado frente à hostilidade da selva. Doré parece
estabelecer nessa primeira imagem toda a angústia relatada pelo viajante que se achava
perdido da via direita e, por isso, culpado pelo transvio de sua consciência.
Por mais que Dante tenha esperança ao alçar seu olhar para o monte banhado
pelos “raios do planeta”, aquela selva parece determinada a impedir seu progresso até a
salvação. Assim, três feras aparecem e empurram o poeta de volta para a densa selva:
uma pantera, um leão e uma loba. Essas feras representam tanto os vícios humanos –
luxúria, violência e avareza – quanto a degradação das instituições – Florença, França e
Cúria Romana, respectivamente.
As três feras, em especial a loba esquelética, impelem Dante a retornar ao
caminho escuro, deixando o poeta impotente e desesperado e cada vez mais distante da
montanha iluminada “– assim eu me sentia ante a assassina,/ que, vindo contra mim, me

12
Conferir anexo A.
foi forçando/ de volta aonde o sol nunca ilumina” (Inf, I, 58-60 – CM). Podemos
compreender essa passagem como a própria vida de Dante. O poeta, irado pelo exílio a
si imposto, parece estar corrompido pela violência contra aqueles que lhe negaram o
direito de retornar à sua amada Florença; e sua avareza não lhe permitiu pagar a multa
que poderia ter-lhe devolvido sua casa.
Dante, conforme seus biógrafos e estudiosos relatam, por ser apoiador dos gelfos
brancos, acaba, no ano de 1301, sendo condenado ao exílio por dois anos e ao
pagamento de uma elevada multa. Não retornando a Florença para a quitação de sua
dívida, foi condenado ao exílio perpétuo e à pena de morte, caso fosse pego por
soldados florentinos. Sua condenação, realizada em um julgamento ao qual o poeta não
se apresentou, foi considerada por Dante uma verdadeira afronta. A partir desse
momento, il sommo poeta nunca mais poria os pés em sua amada cidade. A composição
da Commedia é iniciada por volta de 1308, segundo a Encyclopedia Britannica13, sendo
finalizada em 1321, ano da morte do poeta. Essas datas, porém, não podem ser
precisadas, entretanto, tem-se que a partir do exílio, Dante produziu a maior parte de seu
legado.
Impelido pelas feras quase de volta ao ponto de partida, o poeta encontra-se tão
desesperado por ajuda que, quando percebe outra presença na floresta, não hesita em
pedir por socorro. Dá-se o encontro do herói com seu guia, Virgílio, enviado por
Beatrice, a paixão juvenil de Dante, para resgatá-lo e levá-lo até o caminho correto.
Importante realçar que mesmo na presença de seu salvador, a floresta ainda é inóspita
ao florentino e a loba continua no encalço dos viajantes por algumas passadas.

Enquanto eu tropeçava, e ia tombando,


algo enxerguei que se movia perto,
a um tufo silencioso semelhando.

Ao ver aquele vulto no deserto,


“Piedade!”, eu lhe gritei, “ouve os meus ais,
[...]
“Então, és tu Virgílio, aquela fonte
que expande de eloquência um largo rio?”
(Inf., I, 61-71 – CM)

Essa floresta representa o espaço que prenuncia o Inferno para Dante, e, como tal,
é o local que mais terror causa ao protagonista da Commedia. Cercado pelas bestas e

13
Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Dante-Alighieri/The-Divine-Comedy>. Acesso
em 03 set. 2017.
ameaçado por raízes que parecem tentáculos prontos para puxarem o poeta para o
interior de sua escuridão, ele enfrenta a agonia de ver a salvação, mas ao mesmo tempo,
estar impedido de alcança-la. Aquele espaço é para o poeta tão cruel quanto a morte,
como expressa nos versos “De tão amarga, pouco mais lhe é a morte” (Inf. I, 7 – IE),
transformando-se de um espaço físico a um mítico, uma vez que a floresta, na Idade
Média, passou a representar a fronteira da civilização e o inconsciente da mente
humana, sendo o lugar das transformações e reencontro de si mesmo.
É na floresta que Dante se perde, mas também é nela que encontra um guia que
proporcionará sua transformação, de simples homem para arauto da salvação humana. O
reencontro de si mesmo. A “Floresta da Perdição”, conforme diversos estudiosos
nomeiam14, não é a única floresta que Dante encontrará no decorrer de sua jornada. Esse
espaço mítico será retomado em outras circunstâncias, no próprio Inferno bem como no
topo da montanha do Purgatório, como um espelho daquela em que Dante se encontrava
perdido.
Entretanto, a floresta do Paraíso Terrestre, o Éden, não causa medo ao poeta, antes
é uma recompensa pela travessia até aquele momento empreendida. Ali os poetas
encontram a mansidão do vento, bem como o cantar dos pássaros, conforme os
primeiros versos do canto XXVIII.

Na ânsia de me internar pela divina


floresta virginal, ampla e sombria,
que um pouco a luz quebrava matutina,

sem hesitar, tomei a aberta via,


começando a adentrar a passo lento
o campo, que de aromas recendia.

Um sopro leve, qual terreno vento,


o rosto suavemente me afagava,
[...]
E eles [pássaros], no canto alegre, as auras primas
saudavam, entre as folhas perpassando,
(Purg. XXVIII, 1-17 – CM)

Nota-se que a floresta é “ampla e sombria”, tal como a do começo da jornada,


entretanto, essa não é sombria no sentido daquela. Aqui, a sombra se dá para a proteção
dos viajantes, de forma a “quebrar” a luz matutina, repassando a ideia de aconchego,
sentimento esse que Dante não poderia experimentar na “Floresta da Perdição”.

14
(LEWIS, 2002); (MARTINS, 2010); (DISTANTE, 2015).
Nesse sentido, podemos compreender o espaço da floresta como o primeiro da
geografia mítica transposta pelo poeta florentino. Uma geografia que começa na selva
oscura e termina no Empíreo.
Tais imagens nos remetem ao crítico e teórico canadense Northrop Frye, que no
livro Anatomia da crítica reflete sobre o uso de imagens na literatura, discutindo a
função arquetípica que elas podem assim ir no texto. O teórico ao sistematizar a
invenção literária, estabelece três categorias de imagens: apocalípticas, demoníacas e
analógicas. Quanto às duas primeiras, estão ligadas à tendência mítica da organização
arquetípica e a terceira à tendência romanesca.
Interessa-nos a tendência mítica e, nessa perspectiva, as imagens demoníacas
exibem um mundo rejeitado completamente pelo desejo e associado à ideia de inferno
pessoal, um “mundo do pesadelo e do bode expiatório, de cativeiro e dor e confusão,
[…] do trabalho pervertido, ou desolado, de ruínas e catacumbas, instrumentos de
tortura e monumentos de insensatez” (Frye, 1973, p.148).
As imagens apocalípticas são o avesso das demoníacas. Ele constitui o céu da
religião, a plena realização do desejo humano. Os jardins, fazendas, bosques, templos,
entre outros, constituem o arcabouço de espaços que compõem o universo apocalíptico.
Dante flutua entre essas imagens ao mesmo tempo em que utiliza o mesmo espaço – a
floresta – para transitar de uma imagem demoníaca para uma apocalíptica.
Dante ainda encontra outras florestas no decorrer da descida pelo Inferno. No
segundo giro do sétimo círculo, Dante e Virgílio encontram a “Floresta dos Suicidas”,
aqueles que cometeram violência contra si próprios. Os pecadores desse giro caem em
forma de sementes e crescem como árvores. Entretanto, essas árvores não são frutíferas
ou mesmo verdes. Ainda, diversas harpias se encontram nesse giro, prontas para se
alimentarem dessas árvores, causando ferimento e sofrimento aos condenados.

Não tinha Nesso o vau inda alcançado,


quando num bosque entramos doloroso,
que de caminho algum era cortado.

Tingia as frondes um fosco oleoso,


galhos se abriam curvos e mirrados,
e fruta favo só e venenoso.

Tal provisão de espinhos cercados


não vêem os anumais que entre Cecina
e Corneto refoguem aos povoados.
Era das grãs Harpias pátria dina,
Aqueles que de Strófade os Troianos
baniram, desvendando-lhes a sina.
(Inf., XIII, 1-12 – CM)

Dante e Virgílio se encontram entre galhos retorcidos e ameaçadores, fechados


entre raízes e farpas venenosas. Entretanto, aqui o poeta florentino, a princípio, não se
sente ameaçado pelo medo tal qual na primeira – a selva oscura. Antes, sente culpa
quando um hastil arranca, causando sofrimento à alma condenada. Essa posição será
diferente da assumida pelo poeta quando encontra outra floresta de suicidas no
Acompanhado de Virgílio e pela culpa que sente, Dante se mostra ouvinte daquela
criatura que um dia fora um homem. Assim, pretende promover na terra o nome daquele
a quem feriu. Em vários momentos Dante se encontra aterrorizado frente às imagens de
sofrimento e aos demônios que encontra no percurso. Enquanto ouve a história de Pier
della Vigna (MARTINS, 2006), emociona-se e, surpreendido por um ruído, quase
sucumbe ao medo. Entretanto, a figura de Virgílio aparece para lhe acalmar, segurando-
lhe a mão como um pai a do filho.
Como dito anteriormente, Dante faz a união de diversos materiais de forma
harmoniosa, apresentando os conhecimentos da Idade Média de forma sistemática na
construção de seus mundos. A arquitetura da Commedia é uma prova de tais
sistematizações: extremamente arquitetônica e
De acordo com Umberto Eco, em História das terras e lugares lendários (2013,
p. 12), a perspectiva de que a Terra ser plana foi incutida pelo “pensamento laico
oitocentista, [que] irritado com a oposição de várias confissões religiosas à teoria
evolucionista, atribuiu a todo pensamento cristão (patrístico e escolástico) a ideia de que
a Terra era plana”, criando-se o mito que ainda hoje perdura, na internet e em “livros
autorizados de história da astronomia” (p. 14), de que a Idade Média “desconhecia as
obras de Ptolomeu”.
Tal fato pode ser refutado, uma vez que a esfericidade da Terra era conhecida por
todos os estudiosos da Idade Média e que “se Dante entra no funil infernal e sai do outro
lado vendo estrelas desconhecidas aos pés da montanha do Purgatório, ele sabia muito
bem que a Terra era redonda” (p. 12). Dante apresenta-nos exatamente a teoria de
Ptolomeu para configurar seu Paradiso, bem como de outros estudiosos, como
Aristóteles, Platão, Agostinho, para a cartografia da Commedia. Conforme Eco (2013,
p. 25), “Dante Alighieri certamente acreditava nos antípodas, pois foi justamente do
outro lado do globo que colocou sua montanha do Purgatório, na qual subiu sem cair de
cabeça para baixo no vazio, chegando, aliás, ao Paraíso”.
Os antípodas, territórios localizados do outro lado da Terra, na Idade Média, eram
geralmente aceitos. Umberto Eco (2013) relata as alusões aos antípodas em Fédon de
Platão, que estabelece a Terra como muito grande e que apenas uma parte dela seria
ocupada pela então civilização15, de modo que outros povos “poderiam viver nas outras
partes de sua superfície” (p. 23). Ainda de acordo com o autor, alusões aos antípodas
aparecem em diversas obras, como na Farsalia de Lucano, na História natural de Plínio
e nas Geórgicas de Virgílio (ECO, 2013, p. 23). Tal conceito foi retomado no séc. II a.
C., conforme Eco (2013), por Crates de Malo, para quem havia duas terras habitadas no
hemisfério norte e duas no sul, sendo elas separadas por “canais oceânicos dispostos em
cruz” (p. 23), que eram habitadas, porém não acessíveis a partir do norte. A crença de
muitos, conforme aponta Eco, era que nos territórios antípodas os habitantes podiam
viver de cabeça para baixo e pés cima.
A passagem de um hemisfério a outro é relatada por Dante no último canto do
Inferno. Estupefato pela visão de Lúcifer de cabeça para baixo, quando pouco tempo
antes estivera descendo por sua coxa: “À altura já da coxa nos sustendo,/ onde esta no
quadril faz inserção,/ Virgílio, exausto, e como que tremendo,/ mudou, num giro inteiro,
a posição,/ pondo onde estava o pé a face alçada,/ como a subir, do inferno à direção”
(Inf., XXXIV, 76-81). Nesse sentido, o poeta florentino apresenta o movimento que faz
com que Virgílio, que antes descia até alcançar o centro da Terra, comece a subir. A
inversão de polos confirma a proposição de Eco sobre os conhecimentos astronomicos
de Dante, bem como desmitifica a crença dos habitantes dos antípodas viverem de
pontacabeça.
Uma vez que Dante adota a perspectiva ptolomaica, também utilizada pela
Escolástica, devemos visualizar a Terra como uma esfera fixa e solta, imóvel no espaço,
dividida em dois hemisférios, um boreal, de superfície sólida e habitada, e um austral,
constituído de água e desabitado. A montanha do Purgatório dantesco está na antípoda
de Jerusalém, a cidade sagrada, localizada no centro do hemisfério norte.
15
Utilizamos o termo civilização para designar a gama de habitantes conhecidos do hemisfério norte na
Alta Idade Média.
Segundo “Ezequiel” (5:5), Jerusalém foi posta por Deus no meio dos povos, tendo
as nações ao seu redor. No “Apocalipse de São João”, uma Nova Jerusalém descerá dos
céus sobre a antiga, no centro do mundo, para tornar-se habitação do povo salvo no
juízo final. Considerando-se a posição de Jerusalém nos mapas, não apenas os da Idade
Média, mas os das eras posteriores, a cidade encontra-se em uma posição estratégica, de
interligação de diferentes continentes. Importante ressaltar que Jerusalém é considerada
não apenas o centro do mundo físico, mas espiritual também, uma vez que foi ali que
Cristo morreu e ressuscitou. Ainda, é a cidade sagrada para três povos diferentes –
judeus, cristãos e mulçumanos. (o eterno retorno... duplicata de Jerusalém).
Segundo Mircea Eliade, em O sagrado e o profano (1992), é o centro do mundo
“que, na maior parte dos casos, nos permite entender o comportamento religioso em
relação ao ‘espaço em que se vive’” (p. 25). O simbolismo desse espaço sagrado, nas
culturas arcaicas, revela-se como lugar significativo e potente, unindo a concepção do
mundo ter um centro e que esse ponto é o de comunicação dos diferentes níveis
simbólicos do espaço – Céu, Terra e Mundo Inferior.
Ainda conforme Eliade (1992, p. 23), da “hierofania [do espaço sagrado], se
efetuou a rotura dos níveis, operou-se ao mesmo tempo uma ‘abertura’ em cima (o
mundo divino) ou embaixo (as regiões inferiores, o mundo dos mortos)”. Essa
comunicação, na maioria das vezes, é expressa pela imagem de uma coluna, que liga e
sustenta o Céu e a Terra – Axis mundi, que pode ser simbolizado pela imagem de um
poste, uma escada, uma árvore, uma montanha (ELIADE, 1992, p. 23-27). Assim,
Dante só poderia se comunicar com esses níveis cósmicos se estivesse no centro do
mundo, onde a comunicação com os deuses se torna mais próxima e o homem se situa
no mundo.
Quando perdido na selva, Dante vê a montanha, iluminada pelos raios solares, e a
compreende como um espaço da redenção. Aquela montanha, conforme apontam os
estudiosos do poeta florentino, é onde se localiza o Templo de Jerusalém. Entretanto,
esse espaço está interditado para o poeta pelas três feras e, conforme explica Virgílio, o
caminho do poeta deve ser outro: “‘A ti convém seguir outra viagem’/ tomou-me ele ao
me ver lacrimejando,/ ‘para escapar deste lugar selvagem,” (Inf. I, 91-93 – IE). Inicia-se
assim, a jornada do herói Dante, que deverá percorrer espaços que podemos
compreender em três dimensões: mítica, social e psicológica, partindo do medievo e
proclamando a modernidade.
Dante Alighieri nos contempla, na Commedia, com os espaços sagrados que
compõem o mundo do além-morte. Ao nos introduzir, junto a ele e à Virgílio, nesse
mundo, Dante nos leva a espaços sagrados, místicos e míticos: o Inferno, o Purgatório e
o Paraíso.
Quando tratamos da questão mítica em Dante e, principalmente, em sua
Commedia, precisamos compreender que o poeta florentino criou um mundo que
incorpora a tradição clássica aprendida com Aristóteles, Platão e Virgílio; a concepção
cristã, com Santo Agostinho e São Bernardo, amalgamada com a visão medieval de
mundo, assimilada de Ptolomeu e Aristóteles. Dessa forma, Dante compôs um mundo
que possui uma mitologia própria, uma ordem própria, muitas vezes equalizada com o
clássico e cristão, mas apontando para a modernidade, ou o que chamaremos de
moderno alguns séculos mais tarde.
O uso imagético proposto pelo poeta florentino, unido à concepção espacial
desenvolvida ao longo de sua Commedia, nos levam à um percurso labrintítico, em que
convivemos com a materialidade das imagens presentes no Inferno e no Purgatório e a
imaterialidade que nos assola no Paraíso. Ao entrarmos nesse labirinto dantesco,
compactuamos com o poeta em uma jornada incerta em busca de seu(s) centro(s).
Conforme Margaret Werthein, no livro Uma história do espaço: de Dante à
internet (2001), a relação do homem medieval com os seres imateriais e entidades
celestiais ou supra celestiais era mais concreta do que se concebe hoje. Segundo a
estudiosa, a convivência com os seres imateriais era parte de uma cadeia natural:

Na visão medieval do mundo, o universo em sua totalidade e tudo o que nele


havia estavam interligados numa grande hierarquia metafísica, por vezes
chamada de a Grande Cadeia do Ser, que descendia de Deus. No topo dessa
cadeia, na posição mais próxima de Deus, estavam as ordens dos seres
angélicos - os querubins, serafins, arcanjos e assim por diante. Depois desses
seres celestes vinham os seres humanos. Depois de nós vinham os animais, as
plantas e por fim os seres inanimados. (WERTHEIN, 2001, p.24)

Essa cadeia retrata a influência dos estudos aristotélicos na concepção medieval


de mundo, como já dito anteriormente, estando presente na organização espacial, se
pudermos falar de uma, no Paraíso de Dante Alighieri. Ali, os seres celestes se
estabelecem em uma perfeita harmonia com as almas beatas e santas, como a de
Beatrice, que assume seu lugar na Rosa Mística.

Uma foi a pergunta e outra a resposta:


pensei em Beatriz e vi um glorioso
velho co’a branca estola no ombro posta.

[...]

“Onde está ela?”, foi pronto o meu indagar,


e ele: “Pra o anseio teu cumprir, moveu-
me ora a tua Beatriz do meu lugar;

e se ao alto mirares, do apogeu


no terço giro, vê-la irás poder,
no trono que o seu mérito lhe deu”.
(Par., XXXI, 58-69 – IE)

O 30º e 31º cantos do Paraíso revelam a “Rosa mística”,

Se o grau menor de luz tamanha goza,


pode-se facilmente imaginar
quão mais acima fulge a imensa rosa.

Sua extensão e altura o meu olhar


Com firmeza abarcava, atentamente,
Na gradação difusa a reparar.

Nela, o estar perto, ou longe, é indiferente;


pois onde Deus sem mediação impera
cede a lei natural completamente.

[...]

Na forma de alva rosa imaculada


aos meus olhos surgia a corte santa,
por Cristo, com seu sangue, desposada;

[...]

como o enxame de abelhas que demora


sobre as flores, por logo se guindar
onde seu meu dulcíssimo elabora,

vinha na imensa rosa, então, pousar,


(Par., XXX, 115-123; XXXI, 1-10 – CM)

assim, de todo o lume acima e em torno,


vi, em mais de mil degraus, a gloriosa
comunhão se espelhar que fez retorno.

E, se o inferior degrau luz tão copiosa


já em si recolhe, qual será a largura,
nas pétalas extremas, desta Rosa!

A minha vista para o lado e a altura


tudo alcançava já, e não perdia
o quanto e o qual dessa imensa ventura.

[...]

No amarelo da Rosa sempiterna,


da qual provém, por seu perfume expresso,
um hino ao Sol da Primavera eterna,

– tendo entendido o meu dizer surpresso –


levou-me Beatriz, e disse: “Fita
qual, das brancas estolas, é o congresso!

Vê esta nossa cidade quanto habita;


vê de quão poucos bancos é o sobejo,
que de pouca mais gente se cogita.

Na grã cadeira a que atento te vejo


pela coroa que vês nela já posta,
inda antes da tua volta a este festejo,

a alma estará de Henrique que, proposta


(Par., XXX, 112-120; 124-136)
Com relação ao espaço mítico, devemos empreender uma viagem à mitologia
desse mundo dantesco e para isso, necessitamos nos apropriar do conceito de mito e,
assim, captar o bestiário dantesto. Segundo Mircea Eliade, o mito é concebido em mais
de uma perspectiva: ora é visto como “invenção”, “fábula” e “ficção”, ora como história
verdadeira, “tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar” (2011a, p. 7-8).
Sobretudo os etnólogos, os sociólogos e os historiadores das religiões estão
familiarizados com a segunda acepção, que reflete o modo como o compreendiam as
sociedades tradicionais, em que vigorava o mito vivo, não-dissociado do contexto.
Nesse sentido, Eliade especifica que o mito fornece “modelos para a conduta humana”,
conferindo “significação e valor à existência humana” (2011a, p. 8), servindo de modelo
arquetípico16 ao homem, revelando-se precedente às suas ações e dizendo respeito a sua
condição. O mito é eminentemente linguagem, constituindo-se em um relato sobre as
origens e surgiu como manifestação oral.
Apesar de o homem moderno querer se destituir dos seus mitos 17, ele está cercado
por eles, que se apresentam de forma camuflada, seja na realidade cotidiana, seja no
espetáculo ou filme a que se assiste ou livro que se lê (ELIADE, 2011a; PATAI, 1972).
Conforme assegura Raphael Patai (1972), a relação do homem com o mito tem-se
alterado ao longo do tempo, sofrendo influências da época, da mentalidade ou do
enfoque a ele destinado, estando presente na vida do homem moderno nas mais diversas
esferas, como no pensamento antropológico, teológico, nas manifestações artísticas, nos
meios de comunicação de massa, como o cinema, a televisão e a literatura (best-sellers).
Na atualidade, o mito constitui-se em instrumento que busca autorizar ou
modificar “instituições, costumes, ritos, crenças antigas na área em que são comuns”
(PATAI, 1972, p. 14). É por meio dele que se tem o modelo de comportamento do
herói/heroína e do vilão/vilã, da luta entre eles, e que determina que o primeiro, mesmo

16
O conceito de arquétipo de Eliade difere do utilizado por C. G. Jung, para quem arquétipo pode ser
compreendido como uma matriz de imagens em estado de inconsciência, “caminhos virtuais herdados”
(JUNG, 2008, p. 24). Para Eliade, arquétipo refere-se a “modelos paradigmáticos estabelecidos pelos
Entes Sobrenaturais” (2011a, p. 112), conforme os mitos das sociedades arcaicas.
17
Segundo Raphael Patai (1972) o homem moderno encara os mitos como uma história fantástica, não no
sentido sagrado e exemplar como era para os homens das sociedades primitivas, mas, apesar disso, não
consegue se livrar dos seus resquícios. Eliade apresenta diversas ramificações dos mitos que se encontram
camuflados na sociedade moderna, citando, entre outros, a história do personagem fantástico Superman,
cujo mito “satisfaz às nostalgias secretas do homem moderno que, sabendo-se decaído e limitado, sonha
revelar-se um dia um ‘personagem excepcional’, ‘um herói’” (2011a, p. 159).
não dotado de todos os atributos que lhe seriam pertinentes, deve vencer o segundo.
Para se tornar um herói, ele precisa enfrentar uma série de desafios – o caminho
iniciático, que irá provar (ou não) que ele possui as qualidades necessárias para a
função. Isso ocorreu com Hércules, desafiado nos doze trabalhos, para só então poder
ser elevado a tal categoria.
Por esse motivo, Dante precisa percorrer uma trajetória repleta de desafios,
começando com as feras que o impedem de se aproximar da montanha iluminada. Além
disso, Dante precisa de um guia, que lhe servirá de mestre e modelo, que deve ser
superado ao final da jornada. Essa, por sua vez, é, além de mítica, mística, pois Dante
precisa da experiência mística para superar o abismo em que se encontra – sua selva
oscura, para então alcançar a plenitude, que, no nosso caso, acreditamos que seja o
embrião do homem moderno, fragmentado e que anseia por descobrir seu lugar no
mundo.
O estudo do mito é do interesse de diversas áreas como a filosofia, a antropologia,
a psicologia, a arqueologia e a literatura e artes em geral. Com relação à literatura, esse
interesse apresenta-se mais intenso, pois o mito surge como narrativa, ainda que não
necessariamente literária (SIGANOS, 1993). De acordo com Northrop Frye (2000, p.
28), “o mito é e sempre foi um elemento integrante da literatura, o interesse de poetas
pelo mito e pela mitologia tem sido notável e constante desde a época de Homero”.
Assim, podemos compreender a dualidade apresentada por Eliade (2011a) com relação
à interpretação do que vem a ser o mito.
Nesse sentido, André Siganos (1993) propõe que o mito pode ser compreendido
como literário, literalizado ou um misto dos dois. O primeiro constitui-se de um texto
fundador, não fragmentado, apresentando inumeráveis versões surgidas a partir de um
texto literário historicamente datado, enquanto o segundo surge de narrativas orais
arcaicas que são retomadas no contexto literário. Quanto ao terceiro, trata-se de um mito
híbrido, tendo-se originado em relatos orais e evoluído para o texto literário, onde
ganhará outras características e versões. Assim, o autor cita três mitos para elucidar sua
classificação: o mito do Minotauro, o de Don Juan e o de Édipo Rei, de Sófocles. O
primeiro é um mito fundador, baseado em relatos orais, o segundo surgiu em um texto
literário que determina sua retomada posterior e o terceiro, cujas origens são orais,
condiciona retomadas na literatura (SIGANOS, 1993).
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ANEXOS
Anexo A – Dante perdido na selva oscura

Figura 1 – A floresta, Gustave Dorè (século XIX)

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