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SUJEITO E CONTEMPORANEIDADE: RELAÇÕES IDENTITÁRIAS

Cláudia L. N. SAITO
Marcio J.L. WINCHUAR

RESUMO

O final do século XX e início do XXI estão marcados por deslocamentos de


ordem social, cultural, política, histórica e epistemológica, impulsionados
por muitos fatores, sobretudo pela explosão das informações e pela
dinâmica das comunicações em nível mundial. Inserido nessa
problemática, neste trabalho faz-se uma tentativa de fazer uma retomada
daquilo que teóricos das ciências humanas postulam em relação às
mudanças culturais e comportamentais trazidas a reboque do fenômeno
da “globalização” e da “mundialização”. A partir daí, apresenta-se, em um
primeiro momento, discussões em torno da situação emergente em que a
vida social contemporânea está inscrita, o consumo desenfreado, o
efêmero e o descartável como palavras de ordem, a “liquidez da vida”, a
“fragmentação do sujeito” e a possível existência de uma “crise de
identidade” pelo qual o homem passa. Com a análise semiótica de um
produto da indústria cultural cinematográfica, pretendeu-se ilustrar como
os valores que regem a dinâmica da vida social e determinam a práxis
sócio-cultural da sociedade contemporânea são representados em uma
película direcionada ao público infanto-juvenil.

Palavras-chave: Sujeito; identidade; contemporaneidade.

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Introdução

A “modernidade recente” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999)


também denominada “pós-modernidade” (EAGLETON, 1998),
“modernidade tardia” ( HALL, 1998) e “sociedade líquido
moderna”(BAUMAN,2007) caracteriza-se por modificações societárias
decorrentes ao impulso e o desenvolvimento tecnológico que leva o
homem contemporâneo a viver numa sociedade da comunicação
generalizada, numa sociedade de rede.

As telecomunicações possibilitam imagens vistas em todas as


partes do planeta, contacto com outras línguas e culturas, além do acesso
a informações de modo jamais previsto. O acesso às novas ferramentas
tecnológicas como o computador, o caixa eletrônico o cartão magnético,
entre outros, facilitou a mercadificação de coisas e gostos, o que também
interfere e influencia no modo de viver e ver o mundo das pessoas.

Podemos afirmar que na pós-modernidade140, com a expansão


das mídias eletrônicas e o advento da internet, vive-se o privilégio de ter
acesso e compartilhamento de experiências, de informação e de interação,
que rompem barreiras de tempo e espaço. Graças às inovações
tecnológicas, acompanham-se os acontecimentos do passado e do
presente, de qualquer lugar do planeta ou fora dele.

No contexto social fragmentado, dominado pelas lógicas da


globalização e da mundialização (poder econômico internacional ), os

140A Pós-Modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão,
identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes
narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. Vê o mundo como instável, sem finalidade,
imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desarticuladas, gerando um certo grau de descrença em
relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação à diversidade e a coerência de
identidades. Conforme sustentam alguns autores, essa maneira de ver emerge da mudança histórica ocorrida no
ocidente para uma nova forma de capitalismo – para o mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do
consumismo e da indústria cultural, no qual as indústrias de serviços, finanças e informações triunfam sobre a
produção tradicional, e a política clássica de classes cedendo terreno a uma série difusa de “políticas de
identidade” (EAGLETON, 1998; HALL, 1998).

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mídiuns manipulam desejos, promovem a sedução, criam novas imagens,
eventos como espetáculos, levam a novas formas de interação de acordo
com as necessidades da sociedade, cristalizam valores que influenciam o
imaginário simbólico das pessoas, principalmente, das novas gerações.

Na verdade, como um todo eles funcionam como mecanismos de


criação de subjetividades, como instrumentos criadores de modos de
pensar, de agir, de ver, de sonhar. Como legitimadores de um novo ethos
social permeiam todos os processos enunciativos de organização do poder,
em que o consumismo, o individualismo e, principalmente, a fugacidade
fazem parte da nova “ordem do discurso” (FOUCAULT, 1970).

Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 77), referindo-se à fugacidade


e ao dinamismo das criações humanas – onde se situam os textos e/ou
discursos, postulam que as sociedades contemporâneas são dominadas
pelo efêmero e o descartável, não apenas no âmbito dos bens materiais,
mas também em relação a “valores, estilos de vida, relações estáveis e
apego às coisas, edificações, pessoas e os modos aprendidos de fazer e
ser”.

Essa efemeridade das relações, dos bens de consumo, a dinâmica


das comunicações faz com que a necessidade de identificação, motivo pelo
qual os sujeitos vivem em busca de uma identidade. Bauman (2007)
denomina esse fenômeno como sendo a “liquidez da vida”, característica
da “sociedade líquido moderna”141. Para ele, nessa sociedade, tudo dura
muito pouco e os contatos com várias culturas são inúmeros, fazendo com
que a identidade do sujeito seja uma mescla de várias identidades.

141 A expressão “Modernidade Líquida” surgiu a partir da globalização e se caracteriza “pela não
territorialidade das transações político-econômicas, pelas trocas culturais e de saberes locais, pela fluidez das
informações sem barreiras unindo diferentes povos, de diferentes regiões, línguas e etnias, pelo trânsito do
conhecimento” (BAUMAN, 2007).

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Nesse contexto, o sujeito do século XXI caracteriza-se por viver
em busca de seu próprio “eu”, em busca de identificar-se na sociedade em
que vive. Segundo Hall (1998, p.12-13),

o sujeito pós-moderno, conceptualizado não


tem uma identidade fixa, essencial ou
permanente. A identidade torna-se uma
“celebração móvel”: formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados
nos sistemas culturais que nos rodeiam.

O autor associa essa característica com a falta de uma


“identidade fixa” e afirma que isso só acontece pelo fato de o sujeito não
poder viver mais como um ser pleno, íntegro, ou seja, possuidor de uma
essência que o identifica no mundo, mas que se modifica por meio do
contato com o mundo exterior.

Por ser um sujeito processual também se fragmenta,


compartilhando distintos focos de atenção, passando a ser confrontado por
uma multiplicidade desconcertante de identidades possíveis, com cada
uma das quais pode identificar-se temporariamente.

De acordo com Hall (2003), a questão da identidade vem sendo,


cada vez mais, discutida na teoria social com a justificativa de que “as
velhas identidades estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno”. O autor fala em “crise de identidade”
como processo amplo de mudança, em que os sujeitos estão perdendo as
referências que permitiam uma ancoragem estável no mundo social.

Para refletir sobre essa questão, optou-se em realizar um


trabalho analítico de uma produção cinematográfica, vista aqui como um
produto cultural para consumo, por sua natureza sociocomunicativa de
levar ao entretenimento e trazer uma narrativa que se apresenta como um

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esquema de ação de consumo cultural. Assim, como objeto desta pesquisa
foi escolhido o filme “Homem Aranha II”, considerado um blockbuster
(arrasta quarteirões) por ter como protagonista o super-herói mais querido
das novas gerações, mas principalmente por ter como mote de toda trama
a crise existencial pela qual passava esse herói dos quadrinhos. Essa
película apresentou uma nova proposta, ao invés de trazer muita ação e
pancadaria, a narrativa deu ênfase à problemática da configuração
identitária do alter-ego do Homem Aranha (SAITO, 2007).

Para viabilizar o trabalho de análise recorreu-se a uma produção


impressa de altíssima qualidade gráfica: a transposição do texto
cinematográfico para os quadrinhos, mais conhecida como “adaptação
oficial do filme em quadrinhos” (ilustração 1- anexo ).

Assim, partindo dos pressupostos teóricos da Semiótica de linha


francesa que essa pesquisa foi desenvolvida. Para tanto, este artigo é
organizado da seguinte forma: 1) breve apresentação do personagem dos
quadrinhos - o Homem Aranha e de discussões em torno da problemática
que envolve a transposição de um texto de uma mídia para outra; 2)
apresentação dos pressupostos teóricos da Semiótica e apresentamos uma
breve revisão dos conceitos importantes de Floch que contribuem para o
trabalho com textos verbo-visuais; 3) apresentação da análise da
“adaptação oficial em quadrinhos”, tendo como objetivo examinar o
percurso passional do protagonista do filme – o Homem Aranha- e levar à
reflexão sobre o quanto o discurso midiático reflete e refrata a situação
identitária do indivíduo na sociedade contemporânea.

1. A adaptação do filme “Homem Aranha II” para os quadrinhos

A adaptação do filme em quadrinhos tem as mesmas


características do seu texto de origem, as histórias em quadrinhos, mas o
que vai diferenciá-lo é que nele há um tema específico que são os filmes

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de super-heróis veiculados no cinema com sucesso de bilheteria. A
adaptação, como o nome já indica, é a transposição de uma película
cinematográfica para o suporte impresso gibi.

Pode-se observar que as histórias em quadrinhos têm uma


narratividade mais peculiar se comparadas à mídia cinematográfica, uma
vez que são mais condicionadas pelos aspectos pertinentes à sua
linguagem, resultantes do ritmo e fluxo narrativos e pela decomposição,
em segmentos sequenciados, dos eventos presentes no enredo. Na arte
sequencial, esses segmentos são os próprios quadrinhos, que encontram
seus paralelos nas sequências e planos da linguagem cinematográfica, não
havendo, portanto, uma correspondência direta dos quadros das HQs com
os quadros cinematográficos.

Na história em quadrinhos, esses quadros são fruto das próprias


características de mídia e do processo criativo do autor mais do que no
cinema, um sistema predominantemente tecnológico. Recorrendo ao
trabalho de Plaza (2001), que versa sobre as traduções semióticas, algo
que pode ajudar a ilustrar a questão:

O que se pretende dizer é que o processo


sígnico vai transformando e comandando a
sintaxe. E, numa tradução intersemiótica, os
signos empregados têm tendência a formar
novos objetos imediatos, novos sentidos e
novas estruturas que, pela sua própria
característica diferencial, tendem a se
desvincular do original. A eleição de um
sistema de signos, portanto, induz a
linguagem a tomar caminhos e
encaminhamentos inerentes à sua estrutura
[...] Nessa medida, o problema da tão falada
“fidelidade” é mais uma questão de ideologia,
porque o signo não pode ser “fiel” ou “infiel”
ao objeto, pois como substituto só pode
apontar para ele (PLAZA, 2001, p. 30-32).

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Toda tradução, segundo o autor, é por definição criadora, pois
mantém uma íntima relação com o original, bebe e sorve dele, a ele deve
sua existência, mas trilha seu próprio caminho, gerando novas realidades,
novas formas, novas imagens, novos conteúdos o que faz da adaptação
cinematográfica a (re) criação de uma nova realidade, apoiada em uma
forma nova.

Os quadrinhos, por comporem um “audiovisual impresso” que


têm à disposição um espaço menor para exposição de imagens, têm
capacidade e necessidade de sínteses maiores que o cinema, compondo-se
numa linguagem que requer, além do texto escrito, que o próprio traço do
desenho traga em si uma escritura, que tem por função se aproximar
daquele do qual se originou. Por isso, as HQs utilizam um processo
narrativo em que é necessário resumir, condensar em quadros uma
determinada ação, plano, seqüência, trazendo uma gama de informações
ao leitor.

No caso da adaptação do filme Homem-Aranha II, o produtor em


algumas passagens importantes da aventura cinematográfica, excluiu
completamente da versão em “quadrinhos” o efeito dramático construído
por Sam Raimi ao longo da produção cinematográfica. Em consequência
disso, a adaptação impressa não conseguiu apreender e transmitir essa
dramaticidade para seu destinatário, dando pouca ênfase à qualidade
maior do filme “Homem-Aranha II” que se caracterizou como sendo um
longa-metragem de aventura com um tom dramático acentuado.

2. As contribuições da semiótica de linha francesa

Na história da semiótica de linha francesa, a necessidade de


explicar os sistemas semióticos sincréticos, como o cinema, os quadrinhos,
entre outros, levou os estudiosos a se voltarem para o plano da expressão,
sobretudo quando a preocupação é a construção do sentido (BARROS,

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1986, p. 32). Segundo Saito (2007), as primeiras pesquisas com o
discurso visual foram realizadas, em 1968, por Lindekens no domínio da
análise semiótica da imagem fotográfica. Anos mais tarde, em busca de
um mesmo ideal vieram Jean Marie Floch, o Groupe , e outros que
deixaram uma grande contribuição à Semiótica do Visual.

Floch (1991; 1995) empenhou-se em precisar a noção de


sincretismo e estabelecer propostas de abordagem para os textos
sincréticos. Com suas pesquisas, contribuiu muito para o campo da
visualidade, pois trouxe conhecimentos linguísticos aos visuais, a fim de
descrever os textos sincréticos em sua globalidade.

Retomando as reflexões do autor, chegamos à definição de


sincretismo como sendo uma estratégia global de comunicação que
“administra” o processo de textualização de diferentes linguagens
vertendo-as em um contínuo discursivo único de apreensão verbal.
Portanto, os textos com essa constituição são apresentados, como
unidades de sentido, ainda que suas estruturas significantes sejam
compostas por uma pluralidade de linguagens e independentemente da
diversidade de substâncias das quais se vale a manifestação:

O objeto de análise, por tratar-se de uma história em quadrinhos,


apresenta recorrentemente o sincretismo do verbal com o visual, pois
longe de se manterem discretas, separadas, essas semióticas juntam-se -
o verbal colabora com o visual, para que se construam determinados
efeitos de sentido.

Como bem ensina Eisner (1989, p. 122- grifo nosso), “na HQ


quando a palavra e imagem se „misturam‟, as palavras formam um
amálgama com a imagem e já não servem para descrever, mas para
fornecer som, diálogo e textos de ligação”. Embora, segundo o autor, a
primazia recaia sobre a linguagem verbal.

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Por isso, o trabalho analítico com a adaptação impressa implica
na verificação de como os sentidos foram construídos a partir do
imbricamento de vários sistemas que simultaneamente comunicam.

3. Análise do corpus

Criado pelos americanos Stan Lee e Steve Ditko, o Homem-


Aranha se caracteriza como um herói às avessas, um antípoda. Apesar de
sua criação como herói ser do tipo clássico, pois foi picado por uma aranha
carregada de radioatividade, a carga de seus problemas pessoais nada
tem de tradicional, no que diz respeito a histórias em quadrinhos. Em sua
identidade secreta, o Homem-Aranha se preocupa cotidianamente com
problemas comuns de sobrevivência. Trabalhando para um jornal e
morando em companhia de uma velha tia, com ele se identifica boa parte
da classe média, vendo-o constantemente atrapalhado por causa de
dinheiro, e sem que isso seja resolvido pelo fato de ser ele o Homem-
Aranha, com poderes super humanos.

A imagem do super-herói foi construída de tal forma (adolescente


americano, de classe média, tímido, desajeitado, completamente
desprovido de charme, cheio de inquietações próprias da idade) que seus
fãs são levados a se identificarem com ele e, em consequência, a
quererem acompanhar suas aventuras e a consumir os produtos
relacionados a ele.

Para dar início à análise da adaptação do filme Homem Aranha II,


recorreremos ao recurso metodológico de segmentação textual que, de
acordo com Greimas e Courtés ([s.d], p. 390), funciona como facilitador
metodológico para o trabalho analítico com qualquer texto. Dentre os
vários critérios de segmentação apontados pelos autores, optamos pelo
critério da “temática” por considerarmos ser essa a melhor maneira de
iniciarmos a abordagem da adaptação do filme do Homem Aranha II.

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Assim, obtivemos as seguintes sequências: na “1ª seqüência”,
que vai da página 3 a 28, nomeada como “crise de identidade”, são
reveladas ao leitor as dificuldades, limitações e frustrações do alter-ego do
Homem Aranha; na “2ª sequência”, que vai da página 29 a 33, nomeada
como o “fim do Homem Aranha”; na “3ª sequência”, que vai da página 34
a 40, nomeada “novo inimigo”, é a seqüência que mostra a origem do
mais novo e poderoso inimigo do Homem-Aranha; na “4ª seqüência”, que
vai da página 41 a 42, nomeada “a revelação”, é a sequência de maior
ação e é nela que é revelada a verdadeira identidade do Homem-Aranha;
na “5ª sequência” da página 43 a 50, nomeada de o “retorno do super-
herói”, é a seqüência que mostra o super - herói derrotando seu inimigo e
assumindo sua “missão”.

De acordo com os fundamentos da semiótica greimasiana, o


percurso gerativo do sentido vai do mais simples e abstrato ao mais
complexo e concreto, ou seja, do nível fundamental ao discursivo para o
produtor do texto, entretanto, ao analista do texto compete seguir o
percurso contrário. Todavia, nesse trabalho, a opção escolhida para a
análise textual foi a de restringir-se apenas ao nível discursivo, uma vez
que comentar todos outros dois não seria possível diante das condições de
produção deste artigo.

A escolha por esse nível do patamar se deu porque é nele que os


procedimentos utilizados para se conseguir efeitos de sentido são
reconhecidos. É por meio da análise discursiva que podemos desvelar as
diferentes formas de projeção da enunciação no enunciado e também os
recursos utilizados pelo enunciador para manipular o enunciatário, mas
também que nos levam a reconhecer os mecanismos que articulam o texto
e garantem a sua coerência argumentativa.

Examinar as projeções da enunciação, então, é verificar quais os


procedimentos são utilizados pelo sujeito da enunciação no intuito de

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instaurar o discurso, bem como verificar quais os efeitos de sentido
produzidos pelos mecanismos escolhidos.

Antes de explicitarmos os procedimentos a partir dos quais a


enunciação se projeta na adaptação oficial do filme, é necessário
reforçarmos que essa projeção sempre deve ser interpretada como um
simulacro, uma vez que o eu, aqui e agora projetados no discurso
enunciado não têm o mesmo valor do eu, do aqui e do agora implícitos na
instância da enunciação. Também o enunciador é sempre um simulacro,
um ser lógico, pressuposto a partir do enunciado, não um ser “real”
ontológico.

No exame das projeções da enunciação, devem ser observados


alguns procedimentos discursivos ligados à delegação de voz e aos efeitos
da enunciação decorrentes disso. Na adaptação do filme do “Homem-
Aranha II”, pela utilização do discurso em 1ª pessoa do singular, o
enunciador procura produzir um efeito de subjetividade em seu discurso,
delegando a voz a Peter. Assim, do ponto de vista interno, ele assume o
controle da narrativa, o dever e o poder narrar o discurso está em suas
mãos.

Ao mesmo tempo é o sujeito explicitamente localizado da fala e o


sujeito incerto de um discurso indireto livre, ou seja, ocupa o lugar de
narrador, o que nos leva a pensar que há uma narrativa dentro de outra.

Nas HQs, a voz do narrador é apresentada em forma de legendas,


que são dispostas normalmente no canto superior esquerdo e são
destacadas ou não pela utilização de cores (cf. ilustração 1-anexo).

Essas legendas representam a voz de Peter e são utilizadas para


nos situar no tempo e no espaço, indicando qualquer mudança de
localização dos fatos, avanço ou retorno no fluxo temporal, assim como as

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expressões de sentimentos ou percepções dele. Por sua vez, a voz é
delegada aos atores do enunciado para instaurar um simulacro de diálogo.
No caso da adaptação do filme, essa delegação é realizada por meio dos
balões, que não só representam que a palavra foi cedida aos
interlocutores, mas também aumentam o efeito de verdade pretendido
pelo enunciador, uma vez que o discurso direto dá ao enunciatário a ilusão
de estar ouvindo o próprio discurso do “outro”, já que são bastante
nítidas, até graficamente, as fronteiras entre o discurso do enunciador e o
discurso do outro, pois uma voz não contamina a outra.

Entretanto, Peter Parker é o ator central, quase que exclusivo da


narrativa; ocupa, assim, simultaneamente, inúmeras posições distintas.
Destacado da ação, flutuando na incerteza, interroga-se sobre sua
identidade, avalia e interpreta suas percepções, é um sujeito sensível e
passional, já que experimenta dor, tristeza e indiferença.

Observando os quadrinhos da adaptação do filme Homem-Aranha


II, em princípio destaca-se, pela maneira de se expressar e de agir, a
figura de Peter - ator que se constitui pela não-alegria. Peter, o sujeito de
busca da narrativa, é marcado no enunciado pelo desânimo, tristeza e
desolação. Para enfatizar esse “estado de alma” do rapaz, o sujeito da
enunciação coloca no enunciado uma série de figuras de caráter somático -
atitudes, gestos, proxêmica, expressão facial e corporal que, infelizmente,
nos quadrinhos fica menos visível que no cinema, mas que dão conta do
processo de “degradação emocional” provocado pela própria crise
existencial pela qual passa o jovem no desenrolar da narrativa.

É a linguagem visual a serviço da verbal, utilizada a fim de se


compor sincreticamente o percurso figurativo do sujeito passional Peter,
que permanece em quase toda narrativa cabisbaixo, com os olhos
semicerrados, a boca fechada ou arqueada para baixo e os ombros
reclinados para frente na prostração do desânimo. Tal “estado de alma”

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por se apresentar tão recorrente aponta para o seu modo de existência:
um rapaz “tenso” e “infeliz” (cf. ilustração 3 e 4-anexo).

Esses múltiplos efeitos de sentido que são da ordem do patêmico,


no momento mesmo em que Peter está agindo, levam-nos a pensar que
ele é dotado de diferentes facetas identitárias, caracterizando-se, desse
modo, como uma figura complexa e instável que, por meio de suas
diferentes identidades, também exerce diferentes papéis temáticos.

Na sequência “Crise de identidade”, está revelada a origem dos


valores responsáveis pelo modo de ser e pela conduta do sujeito
manifestado por Peter Parker que se sente dividido por causa de sua dupla
identidade. Ao se “transformar” em Homem-Aranha pela primeira vez,
Peter saiu da esfera do privado e foi para a do público e, assim, passou a
exercer o papel quase que exclusivo de super-herói, deixando para um
segundo plano a sua vida pessoal e passando a ter como projeto de vida –
a proteção da população.

Mesmo tendo consciência dos sacrifícios que tem de fazer, Parker


modalizado para o / poder – não fazer / levar a vida de um adolescente
normal, assume sua dupla identidade e passa a proteger a população de
Nova York. Entretanto, em um determinado momento de sua vida, passa a
refletir e a questionar a validade de seu sacrifício, assim a existência
modal do sujeito passa, então, a ser transformada. Ele passa a refletir
sobre “o ser ou não ser super-herói”, torna-se um sujeito insatisfeito e
infeliz.

Os estados aparentemente passionais com os quais nos


deparamos no transcorrer da de toda a narrativa demonstram a existência
do caráter dual instaurado no sujeito Peter. Aceitar a sua “identidade”
implica nele estar ciente de suas qualidades positivas e negativas, mas
também implica em aceitar sua transformação em Homem-Aranha.

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Considerações finais

Com o trabalho de análise da adaptação do filme “Homem Aranha


II”, pode-se perceber que subjacente à “historinha contada”, o texto
fílmico tratou de questões vivenciadas pelo homem contemporâneo- a
fragmentação da sua identidade. A narrativa iniciou pela afirmação da
identidade “Mas tudo bem, porque eu não sou só Peter Parker sou também
o...” ( p. 3, da adaptação impressa) e “Homem-Aranha” (cf. p. 4, da
adaptação impressa), para em seguida negá-la “Tchau, aranha...”(cf. p.
31, da adaptação impressa) e, por fim afirmá-la novamente “É talvez haja
espaço na minha vida pro amor e pro Homem-Aranha” (cf. p. 50, da
adaptação impressa).

Em um primeiro momento da análise, considerou-se a hipótese


de que essa película estaria quebrando o paradigma de produções
cinematográficas desse gênero. No nível do parecer (de leitura superficial),
o filme “Homem-Aranha II” (2004) constitui-se em uma nova proposta de
aventura de ficção científica, envolvendo super-herói. Entretanto, em sua
essência (de leitura mais profunda), constatou-se que essa película segue
os padrões clássicos das histórias em quadrinhos de super-heróis. A crise
de identidade e os sentimentos passionais de vivenciados por Peter Parker
são comedidos demais.

O caráter demasiadamente humano, que esta aventura enfatiza,


caracteriza-se pelo artificialismo e superficialismo, pois mesmo estando
decepcionado, angustiado e aflito com a vida que levava. Peter Parker não
rompe com aquilo que lhe foi tacitamente instituído - a missão de proteger
a população de Nova York da ação de malfeitores. Acima de tudo, ele é um
super-herói nos modelos clássicos, em que o “bom mocismo” deve
prevalecer acima de qualquer coisa.

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Não se pode esquecer que na construção da identidade de cada
super-herói tem sempre representada a ideologia americana do seu
tempo. Isso remete à questão do poder emanado das mídias, da sua
responsabilidade na cristalização de significados nos textos e/ou discursos
que vinculam, assim cooperando para o estabelecimento de relações
sociais e identitárias, pois, de acordo com Woodward (2000, p. 8), “as
identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas
simbólicos pelos quais elas são representadas”.

Recorrendo também aos postulados de Fairclough (1989, p. 85)


sobre linguagem e poder, pode-se compreender melhor que, representar o
mundo de determinada maneira, construir e interpretar textos,
evidenciando determinadas relações e identidades, nada mais é que uma
forma de disseminar ideologias.

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Referências

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Regional Sul, Porto Alegre, n.1, p. 29-38, 1986.

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SAITO, C. L. N. Nas teias do sentido do homem -aranha II – um estudo do


gênero discursivo “adaptação oficial de um filme em quadrinhos”. Tese

454
(Doutorado em filologia e Lingüística Portuguesa) –Universidade Estadual
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SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). A identidade e diferença –


perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 20 00

Fonte das ilustrações

HOMEM ARANHA II: adaptação oficial do filme em quadrinhos.


2004. Barueri/ SP, Marvel / Panini Comics, 2004.

Anexos:

Ilustração 1

Ilustração 2

Ilustração 3

Ilustração 4

455

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