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clu rv:tl:r l (t) ttol. tr xn. l rr A todos ()s Íncus alurros, <tricrrlirrrrkrs t,
ittttigos r;ttc hii rrrrrilo rrrt'tolrrirvirrrr t,.slt, livtrr.
Suvrenrcl
1l AlnEsrNraçÃo
l5 PREpÁcro
t9 ÌNrnoouçÃo
Panre I
História e Literatura
CepÍrur-o I
43 A horq da estrela: História e Literatura, uma questão de gêncr,?
CAPÍTULO 2
História: a arte de inventar o passado
(lAPÍTULO 3
67 No castclo da História só há processos e metamorfoscs,
scm vercdicto final
(lnt,Í'r'trr,o 4
tì5 I listriria: rcrlcnr<lirrlros rlrrc alravcssArìì os rìì()rìlrrr()s rla rrrcrrrr.lr.iir
Prlricio
aprender como fazer história fecundada pela amizade, sentimento atravessado l,cclagogia, a Educação Física, a crítica Literária, a Psicologia, a comunicaçâ<r
por certa gratuidade que lhe dá igualmente sua dimensão sincera e maior. Nes- c ató mesmo como a Literatura, a Religião e a Gastronomia, a palavra invctt'
o uso dcslc
sa mesma parte de seu livro, desafia uma das práticas em nosso campo que rnais çiro.' Mais {o que fruto de uma coincidência ou de um modismo'
ganham adeptos: a história oral. Para alguns, um método de trabalho, para ou- lcnÌì() parece indicar que estes campos do saber partilham, no moment(), colì
(cpça)cs comuns acerca da construção social da realidade e de sua apree'ttsiìtr
tros, uma forma de escrever a História e a partir dela atingir uma verdade mais
pclirs clivcrsas formas de conhecimento. O uso desta expressão parece intliciirr
real acerca do passado experimentado pelas sociedades humanas.
rrrrrrlanças paradigmáticas no campo da produção do conhecimento c tlits
Mas não quero retardar oprazer dessa leitura com um pref;icio (ìue sc
toltccpçires filosóficas que a embasam. A palavra invenção, embora possa sc
alonga. Antes, quero que ele estimule o ato de ler e se deixar afetar por cssa cs-
rclcrir ou cnfatizar aspectos distintos do que seria fundamental na construçittr
crita tão própria em sua formapraticada por Durval Muniz. uma mancira clc
tlo conlrccimento sobre o sublunar, remete este conhecimento e os ql'rjeltts c
conceber o nosso offcio reafirmando-o sempre como uma construção
1.rossívcl, srrjcitos rpuc delc participam para o plano da História, afastando-os dc t;ual-
como condição do exercício de nossa humanidade. uma defesa raclical cla gcrrc-
<lrrcr Íìlrrna clc naturalização. Ao usar a palavra invenção, os autores cstão ctt-
rosidade e da amizade como formas possíveis tambóm dc sc pcnsar a I lislriria.
Íirtiziutrlo a climensão genética das práticas humanas, independentcmcrtlc tkr
t;rrc crlrrsidcrcrn scr as ações determinantes ou Íirndantes da realidaclc ott tlc
Mattocl Lrriz Salgirrlo ( ìrri rrrariìcs ( L l I ilìf /t I I rlÌ, ) slits rcl)rcscntaçiics. Os homens inventariam a História através dc suits itçocs
Satttit'li.'ri..srr. l{io rlc lurrt'iro, rrririo rlt, .l(X)7. e rlc srrirs rcprcscrrtaçircs. lìsta cxpressão remete a umiì tcmporaliz.lçito tlos
Introduça| Introduçao
eventos, dos objetos e dos sujeitos, podendo se referir tanto à busça <Ìe um cepção do texto, vai levando a esta ênfase na dimensão ficcional, poética, ott
dado momento de fundação ou de origem, como a um momento de emergên- seja, inventiva do discurso do historiador. A história passa a se questionltr
cia, fabricação ou instituição de algo que surge como novo. o termo invenção, como discurso, sobre como se dá a produção de sentido neste campo. A ingc-
portanto, também remete a uma dada ruptura, a uma dada cesura ou a um nuidade de pensar que a linguagem apenas espelha o objeto da experiência,
momento inaugural de alguma prática, de algum costume, de alguma concep- . que pode ser uma instância transparente a dizer as coisas como realmente sào,
ção, de algum evento humano. começa a ser questionada pelas reflexões que se dão em torno do papel da lin
No campo da historiografia, este termo ganha destaque com o progres- guagem, num contexto em que o desenvolvimento da indústria cultural ou cltt
sivo àfastamento dos historiadores em relação às explicações que remetiam cultura de massas, coloca as linguagens no centro das reflexões políticas c lì-
para o emprego de categorias trans-históricas, das abordagens metaffsicas ou losóficas. A redescoberta dos indivíduos como personagens da história, cotrrtl
estrutúrais, que tendiam a enfatizar a permanência, a continuidade e pressu- forma de secontrapor àquela historiografia centrada nas categorias coletivas,
punham a existência de uma essência, de um núcleo significativo da História, em conceitos macro-estruturais e abstratos, também contribuiu para a c1rl<l
de determinadas relações ou processos como sendo determinantes de toda a cação da dimensão inventiva das práticas humanas como uma preocuPaçiìrt
variedade do acontecer histórico. Esta forma de ver e de escrever a História dos historiadores. A chamada Nova História, que normalmente é identificadir
poderia ser caracterizada pelo uso de uma outra expressão, a do termo forma- com a terceira geração da Escola dps Annales, a historiografia influenciada pc-
ção, muito comum na historiografia brasileira escrita entre os anos 1930 e los chamados filósofos pós-estruturalistas, entre eles, Michel Foucault, qu a
1950.'? Este termo enfatizava uma visão historicista do evento histórico, pen- historiografia de base hermenêutica sob a influência de autores como Paul lÌi
sando-o sempre como continuidade, desdobramento, evolução, desenvolvi- coeur e Michel de Certeau, ao darem primazia à análise das atividades dcscri
mento, progresso de um dado aspecto da realidade em relação a processos tas como culturais ou mais ligadas ao campo das práticas simbólicas, das mcn'
idênticos no passado. A ênfase se dava na identidade e na semelhança e a bus- talidades, do imaginário ou dos discursos, também irão contribuir para t;uc it
ca das origens, das raízes, das bases, das determinaçÕes, do sentido, dos ele- dimensão inventiva humana e da própria historiografia fosse ressaltada. ()lr
mentos formadores era o que predominava nos trabalhos nesta área. jetos e sujeitos se desnaturalizam, deixam de ser metafisicos e passam, pois' it
/á o uso do termo invenção remete para uma aboriÌagem do evento his- ser pensados como fabricação histórica, como fruto de práticas discursivas ott
tórico que enfatizaa descontinuidade, a ruptura, a diferença, a singularidade, não, que os instituem, recortam-nos, nomeiam-nos, classificam-nos' dão-n6s
além de que afirma o caráter subjetívo da produção histórica. com a çhama- avereadizer.
da virada lingüística, que chega ao nosso campo a partir dos anos sessenta do Mas o uso do termo invenção por diversos historiadores está long,c tlc
século 20, com a aproximação da história de disciplinas como a Antropologia, indicar que haja concordância entre eles quando se trata de definir o t;ttc cittlit
a Etnografia, a Psicanálise e a Lingüística, questiona-se a idéia de universalida- um entende por invenção. Na primeira frase do prefácio que escreveu para sctl
de do homem e da razão ou da consciência, da raçionalidade do sujeito, tan- próprio livro,intituladoA invenção da História, Arno Wehling] comcça lx)r
to do agente dos eventos históricos, como do próprio historiador e se enfati- negar qge entenda invenção da mesma forma que Detienne' Hobsl'rawttt ott
za o caráter político, interessado, construtivo do próprio saber histórico. o su- Certeau,a que, segundo ele, pensam invenção "como o processo atravós tltl
jeito do conhecimento, em História, deixa de ser pensado como uma presen- qual a vida social foi cristalizada num discurso e as razões que existiratÌì l)ilril
ça ausente, uma consciência plena que fala e vê sem a interferência de dimen- isso". SegUndo ele, invenção vai aparecer em Seu texto como "<l itto tlc tlcsttr
sões irracionais, afetivas, morais, ideológicas ou inconscientes. o retorno da lrrir ou encontrar um objeto/coisa qué já existe, cmbora o dcsconhcçattlos",
preocupação dos historiadores com a questão da narrativa, cla escrita da His- c<lm6 "o ato clc apropriação tle algo rlue jazia ignoraclo c clcsprcz.atltt pcltls tltt
1t'rria, tlc c()rÌro cstir participa cla própria clab<lraçã<l tkl Íìrto, l.rnto (ìuanto a rc, lr6s h<lrnc1s". lìstaríarnos cliantc, porliÌnto, dc ciuas poslttras cpislorlolírgittts
Intr0duçaQ Introduçãa
tlistintas, uma que chamaria atenção para o papel do discurso, da narrativa, prática de conhecimento, o objeto e o sujeito, ou como quer E' P' Thompson,
rìo processo de invenção dos objetos históricos, e uma outra que toma o ob- o conceito e a evrdência.t A coisa em si e a tazão pura kantiana seriam pressu-
jcto como algo que preexiste ao discurso, como algo que, estando oculto, seria postos da produção do conhecimento, e este um esforço de mediação, de
rcvclado ou espelhado pelo discurso do, historiador. A própria divisão, um aproximapo progressiva destes pólos distintos, realizado com a ajuda da ex-
lanto quanto artificial, que marca o campo historiográfico hoje, entre a histó- periência, da sensibilidade, da imaginação, da memória e das demais faculda-
riir social e a história cultural, entre o realismo e o nominalismo, o ceticismo des humanas.
()tt o construcionismo ou a dita oposição entre racionalistas e irracionalistas, Poderíamos descrever o esforço do conhecimento, como o faz a frgura
illrirvessa esta discussão acerca do sentido da palavra invenção. a seguir, como esta busca de atingir uma mediana invisível entre os pólos da
Bruno Latour e Michel Foucault' nos falam que esta separação ou dis- natuÍezada coisa em si, do fato ou da realidade e o pólo da cultura, da repre-
tinçiì<l radical entre o mundo das coisas e o mundo das representações, entre sentação, do discurso, da subjetividade e do contexto social. A busca deste cen-
ir nalurcza e a cultura, entre o que seria material e objetivo e o que seria sim- tro imaginário em que se produziria o conhecimento tanto pode ser feito par-
lxilico e subjetivo, entre a coisa em si e a construção social do conhecimento, tindo da coisa, da matéria, da realidade, do objeto, do fatO, çomo propuseram
('rìtrc o objeto e o sujeito é um produto da sociedade moderna e um dos seus os positivistas, os marxistas, a fenomenologia, todos os considerados materia-
prcssuprostos fundamentais. Os pensadores modernos e os conquistadores listas, objetivistas, realistas ou racionalistas, como pode partir da representa-
ocitlcntais vão considerar que os pensadores, sociedades e povos pré-moder- ção, da cultura, da sociedade, das
idéias, do simbólico, do contexto social, da
n()s criìm atrasados justamente por não discernirem, por não separarem as es- subjetividade, como propuseram os românticos, os idealistas, os existencialis-
Íi'rirs cla natureza, da sociedade, da cultura e da divindade. A produção do co- tas ou a semiologia e a hermenêutica, todos os considerados idealistas, subje-
rrhccirnento, no ocidente, caminhou para separar radicalmente estas esferas, tivistas, nominalistas ou irracionalistas. É a esta divisão moderna e pretensa-
ncgando as relações ou hibridações que pudessem haver entre elas. Embora mente irreconciliável, é a esta incomensurabilidade entre os pólos da nature-
sorrlo scmpre um misto de natureza, cultura e sociedade, o homem foi colo- za e da sociedade/subjetividade que remete à divisão exposta por Wehling no
trrrlo clo lado da cultura e pensado como o vencedor da natureza, inclusive da texto citado anteriormente, que aparece em texto de Ciro Flamarion Cardosot
sua prripria. Por um lado, destruiu-se uma visão transcendente da natureza ao como sendo os paradigmas rivais ou que se materializa em nossa área na ça-
rctirii-la do plano do divino, tornando-a um todo imanente regido por suas nhestra divisão entre história social e história cultural'
PrriPlias leis internas, para, em seguida, acabar por tornar estas próprias leis
lrirnsccndentes, pois universais, imutáveis e mecânicas. Por outro lado, tam- Pólo natureza Ponto de clivagem Pólo sujeito/sociedade
lrí'rrr sc contcstou o caráter transcendente da sociedade e da cultura, dessacra- e de encontro
lizirrrrlo-as, mostrando-as como construções humanas imanentes, para em se-
lgrritlir aclv<lgar que as regras e normas criadas pelo próprio homem dele se in-
rlt'Pcrrrlizavam c se tornavam transcendentes, o homem criaria as próprias es-
Irrrlrrnrs r;uc o aprisionavam. Latour e callonu chamarão este processo de se-
l)iu'irç.r() crì1rc a natureza e a subjetividade/sociedade de processo de purifica- A explicação parte de um dos extremos
e aproxima-se do ponto de encontro pela multiplicação dos intermediários.
1iro, crrsiriatkr rlcsric Kant.t O procedimento científico no ocidente moderno se
t irrirr'lcriz.irria por csta prhtica de purificação, pela rejeição de aceitar as mistu-
|irs, rrs rclirç<)cs, as sÌrpcrposições, as mcstiçage ns. No ato cle conhcccr se advo, lìigrrra I - lìctiratla <lc l.Al'()Ulì, l\ru|r<t. lomuis f\mos modernos: ensaio tlc attlropologia
sint('lritir. lìirr tlc litrtciro: lÌlilora .\4, 1994. 1t. 77'
liit it cxislôrtt iir <lc cltras irtstârrcias pttras, aulôn()rììas c prccxistcnlcs:ì pr<ipria
lntrodução
Introdução
rio do que nos faz parecer o texto de Thompson, as evidências nào são en- mos este impasse se pensarmos como Guimarães, que toda história come\il
contradas nos arquivos, são fabricadas pelos próprios procedimentos, apara- com um acontecimento, e que este Se define,.como fazLacAn,'o por uma
(lllc
tos e pressupostos teóricos e metodológicos do historiador. somos nós que bra da rotina, pela emergência de algo, pela.ruptura com a lei e com a sclììc
evidenciamos, colocamos em evidência dado evento ou conjunto de eventos lhança. As primeiras estórias só começam por um acontecimento, por lnais
e, no mesmo ato, esquecemos ou jogamos para os bastidores outros tantos banal que seja, mas este acontecimento, que no início é só inquietudc, dcs
acontecimentos. conforto, choque sensível, signo sem sentido, desnorteamento, potência viril,
Para a história cultural, portanto, a invenção do acontecimento histó- loucura senil ou inocência infantil, começa a fazer sentido, começa a sc l()r
rico, de qualquer objeto ou sujeito da história, se dá no presente, mesmo nar fatO, começa a ganhar contornos quando começa a ser contadO, narratltl,
quando analisa as várias camadas de discursos que o constituíram ao longo do relatado. O fato, o evento, não pode ser reduzido nem somente à irrul'rçap
tempo, pois esta historiografia é atravessâda pelo tropos da ironia'' que traz a real de uma ação, de uma prática sem sentido, sem significado, incômrl<lo
participação do discurso do historiador na construção da realidade que narra sensível que nada significa, nem somente à sua barroca.e grandiloqüentc rtar
para o centro da reflexão. o historiador irônico é aquele que não se coloca rativa. Como propõe LaÇan,tt o real é o insuportável, o inapelável' 6 irrccçr-
fora do acontecimento que enuncia, do tempo que narra, mas que sabe que rível, é o pai cumpridor, ordeiro, positivo, repetitivo, que um dia toma a ca
seu próprio discurso
é mais uma dobra no inabarcável arquivo de enunciações noa e entra no rio para não mais voltar. Mas nenhum ser humano suPorlil o
que instituem dados sujeitos e dados objetos. No entanto, esta posição, partin- real se não trabalhá-lo simbolicamente, se não aplacar sua estranhez'a alritvós
do do pólo oposto da divisão moderna, ou seja, do pólo do sujeito, da repre- da dotação de sentido e de significado, se não tornar a coisa., a naturcT.il, clìì
jtts
sentação ou da cultura, pode cair no extremo de negar qualquer materialida- algo cultural. A dor da partida do pai logo deve ser explicada, entenditla,
de para o fato ou acontecimento. os fatos seriam apenas fabricações discursi- tificada, deve tornar-se estória, relato, escritura. Todo fato é, ao mcstn1; lctlt
vas' os sujeitos e os objetos existiriam apenas no e como texto, como instân- po, natureza, sociedade e discurso, pois é materialidade, relação stlcial c tlc
cias textuais; a realidade seria apenas uma construção narrativa, um efeito de poder e produção de sentido. Todo evento histórico está constituído pol' vit
realidade, viveríamos entre simulacros e simulações, mitos e mitologias.,' riáveis naturais, que quase Sempre os historiadores têm ignorad<1. Nttttca tttls
Talvez para sairmos deste impasse, desta dicotomia moderna, que só lembramos de dizer o clima que fazia quando um evento histórico ()c()rrctl,
fez se ampliar desde Kant, como mostra a figura a seguir, até chegarmos na embora às vezes tomemos a qualidade do solo como elemento <lc cxplicltçArr
hiperincomensurabilidade defendida por alguns pensadores pós-modernos, de uma dacla forma de produção. Não há evento histórico que nâo scjir Prrr
nossos Górgias redivivos,'u que defendem a absoluta impossibilidade de as duto de dadas relações sociais, de tensões' conflitos e alianças etn lortto tkl
palavras dizerem as coisas e de estas serem definidas por aquelas, precisamos exercício do pocler, <le dada forma de organização da sociedade, protlttlo tlc
da ajuda da própria Literatura que, produto desta cisão moderna, foi coloca- práticas e atitudes humanas, individuais e coletivas. Estas práticas llLlll(il lìo
da do lado da representação, da ficção e excluída do lado da realidade, da ver- dem ser reduziclas a um dado aspecto da realidade' nunca uma priitica cto
dade e do fato.r'Talvez possamos sair desta necessidade de nos filiarmos de nômica pode ser desligada de um conteúdo político ou dcixa tlc citrregitt'
um lado ou de outro destes pretensos paradigmas rivais se, inspirados nas concepções fìlosóficas, políticas, uma simbologia, reprcscntaçircs ltccl'tit tLt
Primeiras estórias'" de Guimarães Rosa, buscarmos pensar a possibilidade de cluc seja 1l prcço justo, o salltritl aclctluado, o lucro deviclo.'ltrtlo cvcrtto lris
uma terceira margem,'' uma margem onde as duas anteriores, fruto das ati- t(lric<l ó cultr.rral c sirnlt(llico c prccisa clc alguma lorrna tlc linguagclrl orr rlt'
vidades de purificação, de racionalização, de construção humana e social cle sinrSçl<lgia l.rara itc()tìlcccr, [)iìriì cslabclcccr os laç()s tlc cotnutticilç.|() clllr('(]s
objetos e de sujeitos como entidades separadas vêm se encontrar, vêm se mis- 66rrrcrrs, scpì ()s r;ttais rrlo lrirvcria cctltrotrtia, lxllítica ott srlcictlittlcì ll('lll
lurar no fluxo, no turbilh<lnar das ações e práticas hurnanas. 'Ììrlvcz sr.rPcrc- tÌìcsrÌr() olrit'lrl ott stt jcilrl.
Inlroduçato lntro.luçto
. Hiperincomensurabilidade (pós-modernos) para o redemoinho do tempo, tornando-as sempre diferentes do que parcciatlt
\ , lncomensurabilidade (Habermas) , ser: Qualquer evento histórico é uma mistura tal de variáveis, é fruto do cnlrc
-2
laçamento de tantos outros eventos de natureza diferenciada, que semprc vistta
ïrabalho de
purificação
lizamos apenas parcialmente e pomos em evidência apenas alguns destcs clc
mentos que o constituem. C,omo o rio, a História arrasta as suas margcns l)ilrtì
Pólo natureza Pólo sujeito/sociedade seu leito, num trabalho incessante de corrosão, em que figuras de objctcl c Íìg,tr
Dimensão moderna ras de sujeito, coisas e representações, natureza e cultura se entrelaçam c sc trtis
turam, remoinham-se, enovelam-se, hibridizam-se. Ao contrário do t;uc pcn
samos, se as margens limitam e contêm o rio, dão a ele forma e curso, nãtl siltr
Trabalho de
mediação as margens que produzem o rio, mas justamente o contrário, é o fluxo das i,'tgttas,
o passar incessante de seus torvelinhos que vai escavando as margens, clantl<l it
Multiplicaçãodos
Quanto mais os quase-objetos elas contornos, é o rio que produz suas margens. O mesmo tipo de engan() c()s
quase-objetos
se multiplicam, mais cresce a
distinção entre os dois pólos Dimensão não moderna tumamos cometer ao pensarmos a História, tanto quando colocamos <ls ttlljc'
tos, a.realidade, a materialidade como sendo seu ponto de partida, como (ltl:llt-
Figura 2 - Retirada de LATouR, Bruno. Jumais fomos modernos: ensaio de antropoÌogia do colocamos os sujeitos, as subjetividades, as representações como scn(lo sctl
simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. p.58. ponto de partida. Nem os objetos, nem os sujeitos preexistem à história (ltlc os
constitui. A História possui objetos e sujeitos porque os fabrica, invenla-os, its
O que significa pensar a História e escrevê-la desta terceira margem? Sig- sim como o rio inventa o seu curso e suas margens ao passar. Mas cstcs tlbjckls
nifica primeiro pensar que a História não se passa apenas no lugar da natureza, e sujeitos também inventam a história, da mesma forma que as margclls c()lls
da coisa em si, do evento, da matéria ou da realidade, nem se passa apenas do tituem parte inseparável do rio, ilue o inventam.
lado da representação, da cultura, da subjetividade, do sujeito, da idéia ou da Nós historiadores, ao contrário do que faz crer as dicotomias tlttc'llr,r
narrativa, mas se passa entre elas, no ponto de encontro e na mediação entre vessam nosso campo de estudo hoje, não escrevemos a História da rnargcllt tli
elas, no lugar onde estas divisões ainda são indiscerníveis, onde estes elementos
reita ou da margem esquerda do rio, não podemos optar por habitar a Íììargclll
do objetivismo ou a margem do subjetivismo, a margem da naturcza otl .l tìlilr
e varáveis se misturam. A história se passa nesta terceira margem onde o que
gem da cultura, a margem da realidade ou a margem da construção cliscttrsivit
impera é o devir, o fluxo, que desmancha as formas estabelecidas de objetos e
da História, pois a História em seu acontecer articula e relaçiona toclos cslcs rts
sujeitos, que mistura aspectos que aparecem separados, classificados e ordena-
pectos e a narrativa histórica também deve fazê-lo. Nós escrevctnos a llisl(rril
dos após as práticas de análise levadas a cabo pelas ciências. se de um lado,
de dentro dela mesma, escrevemos a História navegando em scu lcilo, a llartrt
numa margem, temos os objetos já formados, os fatos cristalizados, definidos,
da historiografia, como nos diz Hartog," se não pode ser mais a barcl tlc tJlis
tidos como materiais e se, de outro lado, na outra margem, temos as formas de
ses,pois não podemos viver de lendas e viver as lendas, é a lrarca tlc I lcríltkrkt,
sujeito já estabilizadas, com identidades definidas, fruto de divisões sociais esta-
a barca curiosa, que percorre mundos e tenta dar testcmunhtl tlo tlttc vô, tlc
belecidas, subjetividades pretensamente estáticas, culturas e simbologias bastan-
onde se fala do real, embora com olhos gregos c f<lrmas dc tlarrar grcgirs, irt
te estruturadas. A história se passa justo entre elas, a historicidade é justamente
vcntando, ao mcsmo tempo, o real, o grego c o llltrllaro. Mirs it llist(lriir Ú viir
o que impede que estas formas se mantenham intactas, sem transformaçÕes. A gcm (ìuc c()nccta c rnislura lclnp()s c csJ)aços, tlttc ittlerpcttclrit coisrts c r('Jìtt' i
história como o rio heraclitiano22 arrasta estas formas estabilizadas para o fluxo, scnlaçocs, rcirlitlirrlc c tlisctrrso, raz<)es c sctttitttcttltts, tttrtl('riit t'sttttlto, tlt'st'jo t' r
Introdução
tanto
ï#:: ïïï:l"alizações l'rr urn faro econômico, de um fato .ultu.ul,
ou um f"a i;;;;;lde um rar.,
podem ser observadu, ,,u
atentos para o fato de:""-r:
nu,,,."#.,ïï:ï:"ïïï:l;:L__ rr.rlrrral. Nós humanos não somos
animais, portanto, natureza?
que pensam os realistas' o conheci- tlição de habitantes do fluxo temporal, tentam construir narrativirs-birrtrs,
ficado, pela significação. Ao contrário do
como evidência' mate- t;ue privilegiam um ou outro acidente do percurso, um ou
mento não é fruto da cópula entre o objeto' entendido outrg clcrrrt,rrlrr
saídos do cérebro de um sujei- rlue compõe a historicidade. Nunca podemos dizer que nossa
riaüãade, coisa, e u rutãà,a lógica' o conceito' viagcnr d. ir tlc
quase invisível película' um tercei- Íìnitiva, que ancoramos no porto final da verdade derradeira
to, pois, em meio desta cópula, existe uma ou (luc rcr,rrr;r
própria' que é uma coisa en- rnos até a origem' pois se navegamos o rio ao contrário
ro elemento, a linguagem, que possui espessura descobriremos rrrc t.lt,
que permite transportar o .asce de matéria diferente de que é composto, descobriremos
tre coisas, não é apenas um veículo transparente o momcnl() un
do conhecimento' Mas também r;ue o rio é terra, é pedra, é areia,é mato, é filete de água,
objeto até o sujeito e tealizar o encontro feliz descolrrircnr()s (lu(,!
linguagem' pois todo dia esbarra- .ssim como o fato histórico, ele nunca é feito sempre do mesmo
não podemos achar que só o que existe é a marcrial, rr.
pé, que existem independente- c()meço há apenas dispersão, caos, agroval,.,,onde todas
mos em coisas que nos machucam o dedo do as formas são inrlcci
até para rhes xingar precisare- s.s c as separações entre os gêneros não existem. se o
mente do conceito que as atribuímos, embora historia<ìor ó <l proíìs
que pensavam os modernos' sional que busca narrar invenções deve saber que estas
mos imediatamente nomeá-la. Ao contrário do se fazem relaci1;rriyrtll
de fabricar a natlreza, ín- rlrateriais diferentes e muitas vezes tidos como irreconciliáveis.
não fabricamos só a cultura, também não cessamos As invcrrçoes
clusive a nossa, mas também somos objetos
tanto para a\atureza, como para P,clcm resultar no que não se planejou, as invenções podem surgír cl. crìc()lì
acultura,Somosfabricadosporelas,somosseusprodutoseprodutores.Alin-
lr. inesperado e acidental de elementos que jaziam separados. o m.nrcrrtrl rlc
irtvcnção, como dr irrupção de qualquer evento histórico,
8ua8eméesteterceirotermoqueconectaearticularrat]ulÍezaecultura,que, é um m.rncrrt. trt,
embora vista tt'ltt"al e social' é também dependente de atribu-
sempre.o-o tlisPcrsão, que só ganha contornos definidos no trabalho
de raciorralizlç.ir, t.
vocais' .rtlcnamento feito pelo historiador. ordem que está e não está
tos naturais, não se fala sem língua ou cordas rr. Pr.Pr.i.
Depoisdeterescritooutroslivros,GuimarãesRcisaescrevesuasPrr- t'vcrrto, articulações prováveis, possíveis, mas nunca incliscutívcis
ou cvitlcrr
It's. lìato histórico, ufn misto de matéria e memória, de
meirasestórias,talvezportersidoseuprimeirolivrodecontos,pequenashis. ação e rcprcsc.rirçir(ì,
a irrupção de uma diferen- Ír trt. cle uma pragmática que articula a natureza,a
tórias, em que o inusitado de um acontecimento' socieclacle e . disctrr.s..
os personagens a quererem domar como historiador, historiador de invenções,ro habitantc dcsta tcrtt,ir.ir
ça, a dor d" ,.-u quebra da rotina' levam
lllitrS,cÍn' sei <1ue sou rio, pois sei que sou também natureza
estecortenotempoatravésdanarrativa,dorelato,freudianamente,'embus- e granrrc Pirr.rr,trrr
caderea|izarolutoounietzscheanamente,'embuscadeproduziroesqueci_ nìcu corpo é constituída por água. Mas também sorrio, pois
a consciôncirr irrl
mento. Contar para domesticar a irrupção
do signo sem significado' da coisa . icir rlc Íneu tempo me fazpraticar meu ofício como um lugar
clc rlcsc.rrsr l.rr
da realidade sem
bruta, da materialidade em estado puro' do dilaceramento lito tltl rosto sério e sisudo das verdades definitivas e estabclcciclas. Sorr rio,
justificativa.Ohomemnarraenestemomentorealizaamediaçãoentreoque |.is sci (rue meu saber é composto de muitos outros, sei
cluc nã. s,u a .rigt.l'
e o que é simbólico' A nar-
2 material e o que,( ideal, entre o que é empírico <lo tttctt sabcr, não sou o sujeito funclante da história
clue faço, s6u Íìrlrlrrtlr
captura_as, agencia_as.
rativa atravessa e articula as diferenças, mistura_as, l)()r'urììir socicclacÌc, Por uma cultura, por formações díscursivas, por Pr.iilit.irs
humanos que somos' e
como nos diz Michel serres, nós historiadores' como tlc Potler c linguagcrtr' s()u un.ì cstuiírio cm quc vôm clcsallurrr rnrritos
irrrlrri
narradores, de viajantes do sentido,
sornos humanos somente na condição de vos' lixcrç<l tttn oÍício conÍìrrrnc rcgras (luc não sho apclìas
cslabclccitlirs 1,,r.
deserescapazesdemetáfora'somosseresdainvençãoatravésdoestabeleci_ rtlittl, tocrç:ìo tlc grttPo, rcgras (luc sc rnodiÍìcalÌr c()rn 6 tcrrrp6,
r.1irs s.r.r.i'
de mestiçagens' Somos
mento'de vizinhanças, de.misturas, de hibridismos, lx)l(ltlt'st'i tJttc, ilfrf5;11 tlc ltttl<l isso, cu pirr(icip<l ativirrrrcnlc rlas
irrvcrrç6cs t;rrt.
navesantesdasmargensdainventividade,estaterceiramar!]ememqueSe l'tço' Ârl cs(r('vcr llislririir lcttlto itluirrlo, irl,iirlo, prorlrrzirkr Íirt11s,
cvt'rrl6s t,rrr
trans-porta senticlo, dlferentes formas e matérias e as articulamos'
u"i..rlu--r" l('l)('l(tl\\()('\ sotiitis t'ttllltlritis. Sott, ìs v('zcs, c()tÌr() urrt lio, l1('l() ()l)i(,1() (l(,
atnall4arnatn<r-las. Stlm<rs scres da terceira
mar8,clìì tltr ritr, Scrcs (ìtlc' lìA c()lì lltrx.s, tlt'P11v1 r'ss's, tlt'n,L11'r,s (lu('l)irssiilr
llot.rtríttr, r;ut.rôttt t.rtr tnitil ttttt
Introtìufio Introdução
lntroduçao
16 FiÌósofo grego que viveu entre 4g7 e 320 a.c., escreveu o tratado sobre o não-ser
ou
sobre a naturem, em que afirmava "nada é; se é, não é possíver que
seja apreendido Dints e escritos'Rio
pelo homem; se é e se pode ser apreendido, não pode ser expliiado
á ouìrem ver
lï#;á1.:::.:ïyrÏ;iichet' de ianeiro: F'<,rcrr.sc ,rrivt.rsi
r
cAssIN' Bárbara. o efeitt sofhtico. são paulo: Editora y,
íoos e tsARNES, fona- 33 CERTEAU, Michel de. A
operação historiográfica.
than. Filósofos pré-socráticos. São paulo: Martins Fontes,2003. 2. ed. Rio de Janeiro: Fo..nr"_úniu";;;;ï]ôr. In: ------._--. Á escritu ilu I Iistòr ìtt
17 sobre o lugar da literatura na modernidade, ver: FoucAULr, Michel. Raymond p.65_1le.
'ì4 Ver .ìLOCH' Marc' Apol.gía'a
ÍIistória ou o oficio tro historiucror.rÌi.
Roussel. Rio de faneiro: Forense-universitária, 1999 e MACHADO, Roberto. Fou_ 1lç f11111i111.
e FEBüRE'L",;";:.'ï;;ì,ïn
cault: a flosofia e a literatura. Rio de laneiro: Jorge Zahar,2000. pao Históriu.são r,aurr,:
'J,,:",r?lx;;200l r:rr rr;r
l8RosA, Guimarães. primeiras estórias. r5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,200r. ì5 KANT Emmanuel.
eue es la ilustración?Maclrid: Alianz a,2004.
19 Aqui nos referimos especificamente ao conto A terceira margem r/o rio. In: 'ì(r l)ara a noção de hetemtopia'
RosA, como a produçào de novos
Guimarães. Primeiras estórias. 15. ed. Rio de Janeiro: Nova Frúteira
,200r. p.79-g5. to dc desrocamentos nas
relaço", a. pua".
espaços crc rirrcr<ru<rt,, íi.
20 vAr!r EJo' Américo; MAGALHÃES,Ligia. Lacan: operadores de reitura. 2. ed. são re, ver: FOUCAUIiI,
Michel.
or. nos concriciorrarìì lr{)
"'r;l;, r)r(,.\(,rÌ
Out.or; ;;, --.---._-_-.
Paulo: Perspectiva, I 99 l. p. I 16. ncir<r: Forense_Universitária, "rpufnr. Diíos e cscritos. lìio rlc
200r. iit,;."ii'i n r. f;r
2l lbid. ì7 IìrìEUD' Sigmund' psicopatorogíu ".
tlu vida cotiriana.Madricr:
22 Referimo-nos a Heráclito, filósofo grego que viveu entre 540 e 470 a.c., tlì NllÌfzscHE, Friedrich- Arianza, 199(.).
seus ensi- consideração intempestiva
namentos teriam sido reunidos numa obra chamada sobre a Natureza, rricnres da História para sobre a utiricraac c.s irr(rrrrvt,
em que em
um dos mais conhecidos fragmentos afìrmava: "para os que entram nos mesmos
a vida.
paulo: Loyola,
t"inuritur ri;iiì a IIistóriu.Rio tle Jarrcirr: litl. <lrr
l,LJ(.-; São
2005. p.67,17g.
rios, afluem sempre outras águas; mas do úmido também exalam os ì')
vapores,,. HE- Â8r.val - região de brejo,onde pululam
RÁCLfTO. Fragmentos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 19g0. p. 51. germes de animais e vegct.ís
scrr cr.tisrn. criador genético, íl:rgr;rt'rs t.'r
23 r"u ã"ìr.ru.u e cre indccisa.,
HARTOG, François. o espelho de Ireródoto. Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, r999. "- a. "rïuào rlt, irrv<.rr
24 H_ERÁcuro- Fragmentuç. Rio de /aneiro: Tempo Brasileiro, 1980. p.51. ver
:;ï,llij,ï1.,.iï;?üïï. Manoet su,-. u,rÀ descreve um âgr<,vat
t,irrrrirrrt,ir.:
ainda:
25
SCHULER, Donaldo. Herócrito e seu (dis)curso. porto Alegre: L&pM,2001.
Parmênides, filósofo grego que viveu entre 540 e 470 a.c.Dere
chegou até nós frag-
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st.,r'rra,rhas. os'orhos
*ïrr**ffi ïïïrj,. ?=ïï; *ï r
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m€ntos de seu longo poema didático intitulado Da Natureza, em q-ue
afirmava:.,Só ainda sem
v('nrÌcs. Os bulbos de cobras.
ìrr.;, p";;;';;'tr"iiïli.lr_4:,:::ï,ll':l:
falta agora falar do caminho que é. sobre esse são, muitos os sinais de que Arquétipos á".u*".f,...
o ser é lì'n.so tros cmbri<)es dos
ingênuo e indestrutível, pois é compacto, inabalável e sem fim; não foiìem atos. Uma t u., airf.r._" i,
será,