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E DITORA N OVA F RONTEIRA P ARTICIPAÇÕES S.A.
Recurso digital
Formato: ebook
17-39583
CDD 923.1
CDU 929:320
SUMÁRIO
Nota do tradutor inglês
Prefácio
Introdução
1° VOLUME
PARTE I: ARDOR DE OUTUBRO
1 – Um retrato
2 – Fevereiro, o prólogo
3 – Os atores coadjuvantes
4 – O levante
5 – Salva por sorte
6 – Guerra civil
PARTE II: O AVISO DO LÍDER
7 – Camaradas em armas
8 – O secretário-geral
9 – A carta ao Congresso
10 – Stalin ou Trotsky?
11 – As raízes da tragédia
PARTE III: OPÇÃO E LUTA
12 – Construindo o Socialismo
13 – Leninismo para as massas
14 – Desalinho intelectual
15 – A derrota do “Inimigo nº 1”
16 – A vida particular do líder
PARTE IV: DITADURA OU DITADOR?
17 – O destino do campo
18 – O drama de Bukharin
19 – Ditadura e democracia
20 – O Congresso dos Vitoriosos
21 – Stalin e Kirov
PARTE V: O MANTO DO LÍDER
22 – Personalidade dominante
23 – O intelecto de Stalin
24 – Cesarismo
25 – À sombra do chefe
26 – O fantasma de Trotsky
27 – Um vencedor popular
PARTE VI: O EPICENTRO DA TRAGÉDIA
28 – Inimigos do povo
29 – Farsa política
30 – Quadros no banco dos réus
31 – A “trama” Tukhachevsky
32 – O monstro stalinista
33 – Culpa sem perdão
2° VOLUME
PARTE VII: NO LIMIAR DA GUERRA
34 – Manobras políticas
35 – Reviravolta
36 – Stalin e o Exército
37 – O arsenal de defesa
38 – O assassínio do exilado
39 – Diplomacia secreta
40 – Omissões fatais
PARTE VIII: INÍCIO CATASTRÓFICO
41 – Choque paralisante
42 – Tempos cruéis
43 – Desastres e esperanças
44 – O cativeiro e o general Vlasov
PARTE IX: O COMANDANTE SUPREMO
45 – O quartel-general
46 – Amanhecer em Stalingrado
47 – O comandante e seus generais
48 – Ideias de um estrategista
49 – Stalin e os Aliados
PARTE X: CLÍMAX DO CULTO
50 – O preço da vitória
51 – Cortina de segredos
52 – Um acesso de violência
53 – O líder envelhece
54 – Ventos gélidos
PARTE XI: AS RELÍQUIAS DO STALINISMO
55 – Anomalia histórica
56 – Dogmas mumificados
57 – Burocracia absoluta
58 – Deuses terrenos são mortais
59 – Derrota pela História
Cronologia
Notas
Nota do tradutor inglês
É praticamente impossível transpor com coerência todos os nomes russos, a
não ser com uma variedade de anotações especiais que exigiriam seu próprio
glossário. Parece muito pedante insistir com Aleksandr ou Trotskii (ou
Trockij, ou Trotskiy), quando Alexander e Trotsky são facilmente
reconhecíveis. As referências bibliográficas, no entanto, aparecem como
normalmente encontradas nos catálogos das bibliotecas, para garantir uma
identificação correta. O nome do senhor objeto deste livro apresenta um
problema diferente de transliteração. A forma inglesa do primeiro nome de
Stalin é Joseph, e “Joseph Stalin” é bastante comum. Todavia, como ele é
aqui frequentemente mencionado na forma totalmente russa do primeiro nome
seguido do patronímico, considerou-se que “Joseph Vissarionovich” ficaria
estranho e que “Iosef Vissarionovich” teria o mérito de maior precisão, além
de se adaptar melhor às iniciais “I.V.”, com as quais muitas vezes Stalin
rubricava documentos. Portanto, optamos por Iosef.
Os revolucionários profissionais normalmente adotavam codinomes, ou
“apelidos de partido”, em geral ao assinar pela primeira vez publicações
ilegais, ou em seguida à sua primeira prisão ou primeiro interrogatório pela
polícia secreta czarista. Assim, Vladimir Ulyanov adotou Lenin , derivado do
nome do rio Lena, da Sibéria, onde esteve exilado, enquanto Leon Bronshtein
assumiu o nome de um de seus guardas na prisão e virou Trotsky .
Parece que alguns adotaram nomes para criar imagem: por exemplo,
Vyacheslav Skyrabin acabou Molotov , o “Martelo”, ao passo que Lev
Rozenfeld tornou-se Kamenev , “Homem de Pedra”, e Iosef Djugashvili
escolheu Stalin , o “Homem de Aço”. Outros simplesmente buscaram o
anonimato com nomes russos comuns, enquanto os judeus, que eram
desproporcionalmente numerosos no movimento, encontraram no
pseudônimo russo a vantagem adicional do anonimato étnico, em face da
força policial antissemítica. Quando é apropriado, mencionamos o nome real
ou original.
Prefácio
A história soviética escrita, como a própria União Soviética, passa no
momento pelas mais profundas mudanças. Praticamente todo princípio e
axioma dos últimos sessenta anos foi contestado e rejeitado. Acadêmicos
soviéticos radicais já começam inclusive a desfolhar a coroa dourada do halo
de Lenin e muitos afirmam que a doutrina marxista dos meados do século
XIX é irrelevante para as necessidades dos dias presentes.
Essa nova tendência de desvendar a verdade começou em 1956, quando
Khruschev fez seu “discurso secreto” no XX Congresso do Partido Comunista
da União Soviética, condenando Stalin pelos expurgos sangrentos dos anos
1930. Mas essa fase durou pouco porque o regime de Brejnev, apenas
interessado em si mesmo e temendo solapar sua própria legitimidade, deu fim
ao debate. Nada mais pôde ser dito sobre o assunto (exceto pelos dissidentes)
até que a gerontocracia se extinguiu. Por volta de 1985, Brejnev, Andropov e
Chernenko já tinham deixado o palco, e uma nova geração personificada por
um Gorbachov com cinquenta e quatro anos de idade estava no limiar do
poder. Vinham homens inflamados em 1956 pela crença de que o sistema
podia ser reformado, modernizado e eficiente, e trouxeram a público as ideias
que nutriram por trinta anos. A União Soviética entrou no período de sua
perestroika ou reconstrução.
Vacilante, depois com maior confiança, o novo regime apresentou também a
glasnost , a transparência, que afinal significa dizer a verdade, dar fim à
prática stalinista de manipular a opinião pública com mentiras de todo tipo, e
abrir perante o público assuntos que o partido sempre considerou de sua
exclusiva responsabilidade e não partilháveis. A transparência teve início na
primavera de 1986 com o desastre da usina elétrica nuclear de Chernobyl, que
se alastrou sobre a vida de europeus ocidentais e arrancou uma franqueza
inusitada das autoridades soviéticas. Surgida uma fresta na cortina, tendo o
Estado admitido suas imperfeições pela primeira vez, intelectuais soviéticos
começaram a testar cautelosamente o novo clima. Manuscritos que dormiam
havia muito tempo nas gavetas foram tirados e oferecidos aos editores, que
ainda estavam longe de saber da reação que provocariam quando fossem
publicados. A censura ainda vigorava – e aliás permaneceu, pelo menos
nominalmente, até o verão de 1990 –, mas os autores, antes encorajados pelo
espírito de 1956 a escrever com fidelidade sobre 1917 e os anos seguintes,
começaram a se manifestar. Anatoly Rybakov não soube até abril de 1987 se
seu romance (escrito vinte anos antes) sobre Stalin, Children of the Arbat ,
seria publicado na União Soviética, mas o foi, e, aos poucos, memórias e
livros de não ficção começaram a aparecer. Nos primeiros meses de 1988,
principiando com Nikolai Bukharin, os Bolcheviques da Velha Guarda
exterminados por Stalin como “inimigos do povo” foram reabilitados
postumamente, e seus julgamentos, oficialmente denunciados como feitos
com base em provas falsas. Nomes de “não pessoas” puderam ser
mencionados sem provocar represálias, e o processo vem se mantendo
incólume desde então, culminando no início de 1990 com um debate aberto e
não ideológico sobre Trotsky.
Já era tempo de aparecer um estudo competente e bem documentado sobre
Stalin e sua época. Até há um ano ou dois, a maior parte das revelações não
era feita por historiadores profissionais, mas por jornalistas e escritores, e, na
verdade, os historiadores, para quem os arquivos continuavam – e em boa
parte continuam – fechados, criticavam-se por esse estado de coisas. Porém,
Dmitri Volkogonov não era um membro típico da intelligentsia : tratava-se de
um coronel-general responsável pela educação política do Exército e por suas
atividades editoriais. Nessa posição, vinha tendo acesso raro aos arquivos,
conversara com chefes do partido e com militares dos altos escalões, havia
muito aposentados, com experiências pessoais da era de Stalin, dos
julgamentos e expurgos, do ambiente no quartel-general durante a guerra, do
comportamento pessoal de Stalin e de sua vida familiar.
Entre os acervos de arquivos que Volkogonov usou neste livro, o mais
importante é o do Partido Comunista, depositado no Instituto de Marxismo-
Leninismo. Aqui, pela primeira vez, tem-se um lampejo, entre outras coisas,
dos debates havidos nas plenárias do Comitê Central durante o período e que,
melhor que qualquer outro documento, dão um sabor do ambiente que
imperava na chefia. Os arquivos do Exército e da NKVD proporcionam uma
imagem única da mentalidade e do comportamento dos comandantes militares
e altos membros do aparato comunista. Entrevistas com auxiliares de Stalin e
suas famílias acrescentam muito ao nosso conhecimento de como Stalin vivia.
Chega a dar um frio na espinha ler seus comentários lacônicos sobre as listas
de sentença de morte que lhe eram apresentadas pelos assistentes e sua total
desconsideração pelos mais angustiantes pedidos de clemência a ele enviados
por pessoas diversas, como uma solitária camponesa e o teórico “favorito” de
Lenin, Nikolai Bukharin. Volkogonov examinou a biblioteca particular de
Stalin e fez uso das anotações às margens dos livros e dos trechos
sublinhados, de modo a lançar mais luz sobre o modo de pensar de Stalin.
Enquanto outros historiadores soviéticos continuam batendo às portas dos
arquivos, para eles firmemente trancadas, é de duvidar que outro livro com
tão vasta e rica coleção de documentos venha a ser escrito sobre esse período.
Nascido em 1928 em Chita, na Sibéria Oriental, Volkogonov é filho de um
técnico em agricultura e de uma professora. Em 1937, seu pai foi preso e,
soube ele depois, fuzilado. O restante da família foi então mandado ao exílio
em Krasnoyarsk, na Sibéria Ocidental. Em 1945, Volkogonov alistou-se no
Exército e, a despeito de seu passado politicamente duvidoso, progrediu
rápido na carreira, entrando na Academia Militar Lenin em 1961, onde se
formou e chegou ao magistério. Transferido em 1970 para o departamento de
propaganda do Exército, adquiriu a reputação de linha-dura que advogava a
doutrinação ideológica militar, e escreveu numerosos livros sobre o assunto.
No entanto, ao mesmo tempo, ele colhia material para um livro sobre a era de
Stalin que não se limitaria a jogar a culpa no ditador e em seus acólitos. Em
vez disso, identificaria como causa da perigosa situação da União Soviética a
combinação letal do comunismo autoritário de Lenin com a implacável
impulsão de Stalin pela onipotência pessoal e sua criminosa manipulação das
rivalidades internas e da inércia do partido, mais o caráter passivo dos russos
e seu amor por líderes fortes, sua ignorância da democracia e sua ausência de
autonomia pessoal.
Como muitas das figuras mais radicais da vida pública soviética, Volkogonov
admitiu em público não mais acreditar nos dogmas e mitos que antes aceitara
cegamente. Reconheceu que não emergiu, como os dissidentes que admirava,
um advogado ostensivo da verdade e da justiça. A exemplo de muitos outros
que estavam na linha de frente do movimento da reforma, também aceitou ter
vivido duas vidas mentais, perseguindo uma carreira na educação militar,
enquanto reunia subsídios nos desvãos do passado tão assiduamente como
qualquer dissidente perseguido. Começou a escrever seu livro em 1978 e
completou a primeira parte em 1985.
Tal grau de desamor não poderia continuar por muito tempo sem
consequências. Em 1985, foi alertado de que sua pesquisa histórica era
incompatível com o trabalho que fazia na administração política central, e que
teria de optar por uma ou outra atividade. Escolheu tornar-se diretor do
Instituto de História Militar do Exército, no qual completou seu livro sobre
Stalin. Lá compilou também detalhes completos sobre os expurgos no corpo
de oficiais e reuniu documentos até então inéditos para um estudo em grande
escala sobre Trotsky, ora completo. Prepara-se para encetar uma
reinterpretação de Lenin.
Uma das mais surpreendentes características da nova cena soviética tem sido
o surgimento de jornalistas e historiadores, de economistas e físicos, de
filósofos, músicos e poetas como políticos radicais, muitos deles membros do
partido, que se tomaram de inspiração nos anos 1950, mas mantiveram a
cabeça baixa durante a era de Brejnev. Como eles, mas singular entre os
militares mais antigos, Volkogonov, deputado do povo no parlamento russo,
esposou abertamente a filosofia da democracia liberal, a economia de
mercado e uma nova carta livremente negociada de união das repúblicas, ou
de sua independência, se assim preferirem. Em julho de 1990, pediu a
condenação oficial dos crimes de Stalin e, de fato, um mês depois, o governo
soviético expediu um decreto condenando Stalin por “violar os direitos
básicos sociais e econômicos do povo soviético e por privá-lo das liberdades
que a sociedade democrática considera naturais e inalienáveis”.
Quanto ao Partido Comunista, Volkogonov considera que lhe falta capacidade
para se adaptar ao regime democrático e que perdeu a iniciativa política para
grupos democráticos mais em sintonia com as necessidades do povo. Chamou
a atenção, durante o XXVIII Congresso, em julho de 1990, para o fato de que,
se o partido não se harmonizasse com os princípios gêmeos do império da lei
e do primado da democracia, e fracassasse ante o desafio de competir pelo
poder em igualdade de condições com outros partidos, estaria fadado ao
mesmo destino dado aos partidos comunistas da Europa Oriental em 1989.
O tema sobre o qual Volkogonov fundamenta tanto seu livro quanto sua
atividade como político é o da consciência. O fracasso em exercitar a
consciência levou os bolcheviques a privarem o povo de poder, a se alinharem
com a ideia ruidosamente falsa de Stalin de estar servindo à causa do
socialismo e a tolerarem os mais horrendos crimes cometidos, na história da
Rússia, contra a sociedade.
Hoje, o teste da consciência na União Soviética é ser capaz de admitir que as
conquistas do país nos últimos setenta anos, tais como são, poder-se-iam
conseguir e, na verdade, superar, por métodos diferentes, políticas distintas,
líderes outros, e que qualquer dessas alternativas teria consignado o regime
comunista à marginalidade utópica.
Harold Shukman
Agosto de 1990
Agradecimento do autor
O autor expressa profundo agradecimento àqueles colegas que lhe deram
irrestrita ajuda na preparação deste livro, muito especialmente A.P. Balashov,
F.D. Bobkov, G.A. Volkogonova, I.Ya. Vyrodov, N.N. Yefimov, I.P. Kalinina,
Yu.I. Korablev, B.I. Kaptelov, E.I. Katsman, N.G. Fokina e G.G.
Chernobrovkin.
Introdução
Stalin morria. Deitado no assoalho da sala de jantar de sua dacha em
Kuntsevo, ele desistira de tentar levantar-se e apenas erguia a mão esquerda,
de tempos em tempos, como se pedindo por socorro. Seus olhos entreabertos
não podiam ocultar o desespero com que fitava a porta. Debilmente, seus
lábios formavam palavras silenciosas. Algumas horas decorreram desde o
derrame, mas não havia ninguém ao seu lado. Finalmente, alarmados com a
falta de qualquer sinal de vida no interior da casa, seus seguranças entraram
cautelosamente na sala de jantar. Não estavam autorizados a chamar um
médico de imediato. Uma das mais poderosas figuras da história da
humanidade não pôde contar com eles para que o fizessem, já que era
necessária a intervenção pessoal de Beria. Quando, afinal, Beria foi
encontrado, achou que Stalin apenas pegara num sono profundo depois de um
pesado e tardio jantar, e só depois de dez a doze horas médicos aterrorizados
foram trazidos para examinar o líder moribundo.
Foi um modo profundamente simbólico e por demais irônico de morrer. O
líder, em sua agonia de morte de muitas horas, não foi capaz de convocar
ajuda quando dela precisou. E aquele era o homem, o semideus, que com
poucas palavras poderia enviar milhões de pessoas de uma extremidade a
outra do país. No momento, era refém da “ordem” burocrática que ele mesmo
aperfeiçoara.
A linha invisível entre o ser e o não ser só pode ser cruzada numa direção.
Mesmo os líderes não podem retroceder. Saberia Stalin que enfrentava não só
a morte física, mas também a política? Para seus contemporâneos, sua morte
era uma grande tragédia. Eles não achavam então que aquele homem
encarava as mortes de milhões como nada mais que um segredo de Estado. A
morte deixou para seus sucessores a interminável tarefa de tentar entender o
que ele tinha criado, e de discutir acirradamente o “enigma” do próprio Stalin.
A morte não o isentou. Todas as suas ações e seus crimes seriam submetidos
ao julgamento da história. Os mitos desmoronam por si mesmos, mas só
podem ser totalmente banidos pela verdade.
Apenas Stalin sabia toda a verdade sobre ele mesmo. Gostava das coisas em
preto e branco, porém fez de tudo para assegurar que sua história de vida
fosse contada em cores vivas. Não sei se ele tinha consciência da antiga lei
romana do “julgamento da memória” segundo a qual qualquer coisa que não
fosse do gosto de determinado imperador tinha de ser relegada ao
esquecimento pelos historiadores. De qualquer forma, essa lei meramente
sublinhava a inutilidade de se tentar arregimentar a memória humana. A
lembrança vive (ou morre) segundo leis muito diferentes. A história vai sendo
continuamente feita. Ela não tem rascunhos. Só na mente pode-se “rebobinar”
o passado, como um filme. Stalin entendia isso e se esforçava para garantir
que não ficassem imagens desnecessárias na crônica. Sabia-se sobre ele
apenas aquilo que ele queria que se soubesse.
Ao perder Lenin num momento crucial, quando foi necessário tomar decisões
históricas sobre os métodos a empregar para construir o socialismo, o partido
comunista entrou numa fase de ferrenha luta interna. A velha guarda leninista
não estava suficientemente alerta para o perigo que Stalin representava tanto
para o partido quanto para o Estado ainda inseguro. Isso levou os novos
administradores políticos a medidas crescentemente punitivas, em vez de
construtivas. Sabemos agora que Stalin não seria o objeto de uma biografia
como esta se não tivesse apelado para a força como instrumento decisivo na
consecução de seus planos políticos, sociais e econômicos. A mudança de
direção política, que começou no final dos anos 1920 e se tornou
marcantemente aguda depois do XVII Congresso do Partido Comunista, de
1934, resultou num período de anos amargos, durante o qual apenas a grande
carga de energia social gerada pela Revolução de Outubro e a lealdade do
partido ao leninismo impediram que o povo duvidasse dos valores socialistas
e interrompesse o processo de reestruturação do mundo começado por Lenin.
Portanto, não surpreende que a avaliação da personalidade de Stalin tenha
sofrido alteração importante à medida que a verdade foi emergindo.
Hoje, a maioria, quando pensa sobre Stalin, lembra-se do ano trágico de 1937
com sua repressão e o esmagamento dos valores humanos. Mas, para ser
preciso, deve-se dizer que aquilo que pensamos ser 1937 teve início, na
realidade, em 1º de dezembro de 1934, quando Kirov foi assassinado, e seus
contornos podem ser retraçados ainda mais cedo, ao final dos anos 1920. Com
o conhecimento de Stalin, começou a formar-se um monstruoso abcesso de
ilegalidade. Não pode haver perdão para os responsáveis, mas devemos
também lembrar que naqueles anos foram construídos a usina hidrelétrica do
Dnieper e o complexo metalúrgico de Magnitogorsk, e Stakhanov e
assemelhados cumpriam suas tarefas. Foi quando o patriotismo do povo
soviético cresceu chegando ao píncaro na Grande Guerra Patriótica. * Por isso,
quando condenamos Stalin por seus crimes, é política e intelectualmente
errado, e moralmente desonesto, negar, em princípio, as conquistas do sistema
e suas possibilidades. Tais conquistas não foram conseguidas graças ao modo
de pensar e agir de Stalin, mas a despeito dele. Mais se poderia alcançar se
fossem aplicados métodos mais democráticos. Ao condenar Stalin e seus
cúmplices, não devemos estender mecanicamente nosso julgamento aos
milhões de pessoas comuns cuja fé na sinceridade dos ideais da revolução
permaneceu inabalável.
Durante toda a vida, Stalin tentou (com algum sucesso) transformar uma de
suas fraquezas em virtude. Já durante a revolução, quando tinha que visitar
uma fábrica ou um regimento, ou comparecer a um comício na rua, ou
misturar-se com a multidão, experimentava uma sensação de insegurança e
medo que, com o tempo, aprendeu a esconder. Não gostava de falar para
plateias, nem era bom nisso. Conquanto seu estilo fosse simples e claro, sem
voos fantasiosos, frases de efeito ou poses teatrais, o pesado sotaque
georgiano e a forma monótona de se expressar tornavam seus discursos
inexpressivos. Não era de admirar, pois, que ele falasse menos em comícios e
manifestações do que qualquer outro membro do entourage de Lenin. Preferia
redigir resoluções e instruções, ou escrever cartas ou relatórios para jornais
sobre eventos políticos. Era escritor medíocre de argumentação tão
razoavelmente coerente quanto invariavelmente categórica. Seus artigos para
jornais são em branco ou preto, sem tons intermediários. A clareza latina de
seus artigos francos foi, talvez, uma de suas qualidades atraentes.
Mais tarde, Stalin acostumou-se com a tribuna, mas em circunstâncias
diferentes. A plateia ouvia agora o seu tom calmo de voz em respeitoso
silêncio à espera de cortá-lo com ensurdecedores aplausos. Seus discursos se
revestiam então da natureza dos sermões de pároco. Stalin adotou a regra de
não entrar em contato direto com as massas. Com raras exceções, jamais
visitou uma fábrica ou uma fazenda coletiva, jamais viajou a qualquer das
repúblicas, ou foi ao front durante a guerra. Sua voz ressoaria de tempos em
tempos do vértice da pirâmide, enquanto milhões ouviam em santificado
terror na sua base. Transformou o distanciamento num atributo de culto.
Tenhamos sempre em mente que foi um mestre em fazer passar seus erros,
omissões e crimes como conquistas, sucessos, visão, sabedoria e constante
preocupação com o povo.
* * *
Meu trabalho baseia-se em material e documentos do partido que estão sob
guardas diversas: os Arquivos Centrais do Partido, os Arquivos da Corte
Suprema da URSS, os Arquivos Centrais do Exército, os Arquivos do
Ministério da Defesa, os Arquivos do Estado-Maior das Forças Armadas, os
arquivos de diversos museus, e outros [cf. Notas]. Sobre o aspecto militar das
atividades de Stalin, tomei conhecimento de muitos documentos interessantes,
originais e nunca publicados, do Ministério da Defesa. Um exame superficial
das decisões de Stalin, dos documentos do Exército e da lembrança de seus
contemporâneos nos diz que muitas vezes ele não acreditava no que
advogava. Por exemplo, lendo-se as minutas de sentenças do Colégio Militar
da Suprema Corte no caso dos generais D.P. Pavlov, V.E. Klimovskikh, A.T.
Grigoryev e A.A. Korobkov, acusados de envolvimento numa “conspiração
antissoviética e num colapso intencional do comando do front ocidental”,
Stalin rabiscou: “Nada deste absurdo.” Cortou as expressões “conspiração
antissoviética” e “objetivos conspirativos” e acrescentou em seu lugar:
“mostraram covardia, não tiveram autoridade e eficiência, permitiram a
quebra da cadeia de comando”. Embora a acusação continuasse injusta, e as
sentenças proferidas em 22 de junho de 1941 fossem rigorosas ao extremo,
Stalin não mais achou apropriado o velho jogo de “conspiradores”, em face
do perigo mortal para si e para o país.
Ao passar os olhos sobre as ordens de Stalin, escritas em traço firme e legível,
em geral com lápis azul ou vermelho, perguntei-me onde estariam as fontes
mais profundas de sua irracionalidade, aspereza e astúcia. No copioso
alimento da educação religiosa dogmática que recebeu nos primórdios da
vida? Ou na dolorosa sensação de inadequação intelectual que sentia nos
congressos do partido, em Londres e Estocolmo, sentado a ouvir os brilhantes
discursos de Lenin, Plekhanov, Axelrod, Dan e Martov? Proviria sua
irracionalidade do amargor causado pelas sete prisões e cinco fugas por que
passou antes de outubro de 1917? A partir dos 19 anos de idade, nada mais
fez a não ser viver na clandestinidade do movimento, cumprindo instruções
dos comitês do partido, sendo preso, obtendo passaportes falsos e mudando-se
de um lugar para outro. Nunca ficou muito tempo na prisão, sempre fugia e
voltava à clandestinidade. No entanto, a ideia de escapar para o exterior nunca
lhe ocorreu.
Meu trabalho neste livro foi muito facilitado por matérias do Pravda de um
período de trinta anos, bem como de jornais como Bolshevik, Politrabotnik
(Trabalhador Político) e muitos outros que eram publicados nos anos 1920.
No exterior, existe abundante literatura sobre Stalin. Alguns dos livros – por
exemplo, as obras de Giuseppe Boffa, Louis Aragon e Anna Louisa Strong –
dão uma imagem bastante acurada. Há também dezenas de trabalhos
publicados para desacreditar – com a “ajuda” de Stalin – a própria noção de
socialismo. Sem perceber, Stalin fez mais para sujar o nome do socialismo
que qualquer livro de Leonard Schapiro, Isaac Deutscher, Robert Tucker ou
Robert Conquest. De especial interesse é o testemunho de estadistas
estrangeiros que conheceram Stalin, por exemplo, Franklin D. Roosevelt,
Winston Churchill, Charles de Gaulle, Mao Tse-tung, Enver Hoxha e, é claro,
as memórias de sua filha, Svetlana Alliluyeva.
Estudei os escritos de opositores de Stalin dentro do país, como Trotsky,
Zinoviev, Kamenev, Bukharin, Rykov, Tomsky e outros, todos eles camaradas
em armas de Lenin. Nenhum poderia se considerar protegido de Stalin,
diferentemente de Kaganovich, Molotov, Voroshilov, Malenkov, Zhdanov e
outros que cresceram para tomar o lugar dos primeiros. Nisso, Stalin seguiu a
velha regra dos ditadores: gente promovida por eles demonstra mais lealdade
e não aspira ao cargo supremo.
Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Bukharin e outros eram mais conhecidos do que
Stalin no começo dos anos 1920. Durante os anos de revolução e de guerra
civil, Trotsky foi incomparavelmente mais popular que Stalin, no partido e no
país todo. Líder reconhecido da Revolução de Outubro e um teórico que, em
1927, já tinha publicado vinte e um livros, Trotsky passou à história como
criador do Exército Vermelho. Tinha considerável talento para escrever e
frequentemente se pôs diante do espelho da história tentando justificar sua
ambição de liderar o partido. Mais parecia gostar da ideia dele mesmo na
revolução do que da revolução em si. Lendo sua correspondência,
surpreendeu-me descobrir que, mesmo nos períodos iniciais da guerra civil,
Trotsky já se preocupava com o que dele diria a história. Cartas de admiração
a ele enviadas, bilhetes que recebeu durante os numerosos discursos, listas de
diplomatas pedindo audiência, relatos de jornal sobre sua ação – tudo
meticulosamente arquivado e preservado. Trotsky estava convicto, e não sem
alguma razão, de que, após a morte de Lenin, a liderança poderia ser dele.
Trotsky disparava a maioria de suas setas críticas, oblíqua ou diretamente,
sobre Stalin, embora também seja verdade que grande parte delas foi atirada
depois de sua expulsão da União Soviética. Sua caracterização de Stalin como
“a mais marcante mediocridade de nosso partido” é bem conhecida. Por outro
lado, era comum em Trotsky fazer observações semelhantes sobre outros
adversários. Descreveu Zinoviev como “mediocridade incômoda”,
Vandervelde (presidente da Internacional Socialista que, em 1917, escreveu
sobre a Revolução Russa), como “mediocridade brilhante”, e Tsereteli,
membro menchevique do governo de Kerensky durante 1917, “mediocridade
talentosa e honesta”. Após sua expulsão da União Soviética e até o fim da
vida, Trotsky foi tomado por uma única, permanente e obsessiva paixão, seu
ódio a Stalin, como mostra seu último e inacabado livro – Stalin . É verdade
que Trotsky alega não haver motivação pessoal no livro: “Nossos caminhos
divergiram tanto e há tanto tempo e, aos meus olhos, ele é instrumento tão
claro de forças históricas estranhas e hostis a mim, que meus sentimentos para
com ele diferem dos que tenho em relação a Hitler ou ao Mikado. O elemento
pessoal esvaiu-se há muito tempo.” Apesar disso, ninguém escreveu de forma
1
tão cáustica contra Stalin, com um grau tal de caricatura e invectiva. Mas
também ninguém concorreu tanto para a exposição de Stalin.
No dia em que Lenin morreu, Stalin enviou o seguinte telegrama a Trotsky,
que estava no sul: “Dizer camarada Trotsky que camarada Lenin morreu
subitamente 21 de janeiro seis horas cinquenta minutos. Morte causada
paralisia centro respiratório. Funeral sábado 26 de janeiro. Stalin.” Ao assinar
2
a mensagem, Stalin deve ter pensado que era chegada a hora da guerra sem
piedade pela liderança. Mas saberia ele que, mesmo que sobrepujasse Trotsky,
não se livraria dele? Os métodos de uma burocracia autoritária, usando a
coerção e o “aperto dos parafusos” que Stalin aplicaria, eram exatamente os
que Trotsky advogava. Talvez tenha sido essa uma das razões da tragédia que
despontava. A luta política travada pelos dois, que durou até o momento em
que Trotsky foi assassinado, em agosto de 1940, influiu profundamente na
perspectiva de Stalin, que considerava Trotsky seu principal inimigo político.
Tive o testemunho de muita gente que, ou conheceu Stalin, ou foi arrastada no
redemoinho dos eventos causados por suas decisões. Muita coisa surgiu de
conversas com ex-membros do funcionalismo do Comitê Central, com
comissários, membros da NKVD, altas figuras do Exército, levadas pelo
destino a encontros pessoais com o secretário-geral e cujas vidas foram,
muitas vezes, alteradas da forma mais trágica por alguma decisão do “líder”.
Depois de meus artigos para o Pravda e o Literaturnaya Gazeta , recebi umas
três mil cartas, muitas de pessoas que contavam casos pavorosos.
Meu livro tem o subtítulo Triunfo e tragédia para indicar como o triunfo de
um homem foi a tragédia para todo um povo. No seu discurso para o XX
Congresso do partido, Khruschev pôs o problema ao seu modo: “Não se pode
dizer que suas ações foram as de um déspota louco. Ele acreditava agir no
interesse do partido, das massas trabalhadoras e da defesa das conquistas da
revolução. Essa foi a tragédia!” Julgo a ênfase de Khruschev mal empregada.
Sua avaliação justifica Stalin. Em nome do poder ilimitado, Stalin cometeu
crimes inomináveis, mas Khruschev não viu nisso a tragédia.
Stalin logo se habituou ao uso da força como atributo obrigatório do poder
ilimitado. É lógico presumir que a máquina punitiva, que ele colocou a todo
vapor no final dos anos 1930, capturou a imaginação não só dos funcionários
de escalões mais baixos mas do próprio Stalin. É possível que o deslizamento
para a coação como método universal tenha ocorrido em vários estágios.
Primeiro, a luta contra inimigos reais, que bem reais eram; depois, a supressão
de seus inimigos pessoais, também verdadeiros; no estágio seguinte, a
máquina funcionou com seu momento próprio e, finalmente, a força foi vista
como um teste de lealdade ao líder e à ortodoxia. A sombra de ameaça externa
criou uma mentalidade de cerco na população, que chegou ao ápice em 1937
e foi resultado direto da força assumindo precedência sobre a lei, o
deslocamento do poder popular por substitutivos de culto.
Podia-se demonstrar ortodoxia, fé cega e lealdade ao líder fazendo
desavergonhadas acusações de “sabotagem”, “jogo duplo” e “espionagem”.
Como seria possível imaginar que todos os membros do Politburo nomeados
em maio de 1924 durante o XIII Congresso do partido, com a única exceção
de Stalin, se transformariam em “inimigos”? Stalin liquidou seus “inimigos”,
e as ondas continuaram se sucedendo. Triunfou uma força do mal. É difícil
explicar por que precisou continuar “extirpando” boas pessoas depois de ter
se livrado dos rivais. Aliás, bem antes da maioria, alguns bolcheviques da
NKVD viram o perigo iminente da suspeita e da repressão universais; ainda
assim, só de suas fileiras, 23 mil foram vítimas da falta total de lei.
Todavia, na análise final, mesmo o pior que a história pudesse perpetrar não
poderia evitar que o povo criasse em seu próprio país algo que o levasse
próximo da concretização de seus altos ideais. Mesmo nos anos mais
amargos, não faleceu a crença nos valores humanistas dentro do coração de
milhões de soviéticos. A tragédia foi terem tomado Stalin como símbolo e
incorporação humana do socialismo. Afinal, mentiras repetidas muitas vezes
acabam parecendo verdades. Na mente popular, a deificação do líder
justificou todos os efeitos negativos que acompanharam a cata dos
“inimigos”, creditando também todos os sucessos à sabedoria e à
determinação de um homem. Além do mais, Stalin aderiu ao uso da
propaganda na promoção de seus esquemas grandiosos. Ao tomar decisões de
vulto, especialmente nas grandes reuniões, gostava de citar os clássicos
socialistas, embora a esse respeito revelasse uma típica fraqueza humana. A
maioria das pessoas, mesmo os onipotentes, precisa de uma escora ideológica,
seja a autoridade doutrinária, sejam as ideias perenes de um grande
antecessor, mesmo que, no caso, não passasse de camuflagem intelectual. O
triunfo do líder e a tragédia do povo encontraram expressão no dogmatismo e
na burocracia do sistema, na onipotência do aparato e na lavagem cerebral de
milhões, mas também no patriotismo e no internacionalismo do povo
soviético, no seu genuíno espírito cívico e em seus esforços heroicos.
Meu trabalho foi muito ajudado pelas memórias de famosos comandantes do
Exército soviético tais como I.Kh. Bagramyan, A.M. Vasilievsky, A.G.
Golovko, A.E. Yeremenko, G.K. Zhukov, I.S. Konev, N.G. Kuznetsov, K.A.
Meretskov, Moskalenko, K.K. Rokossovsky, S.M. Shtemenko e outros. É
verdade que essas memórias foram escritas numa época em que muito se
desconhecia sobre Stalin e na qual, depois do XXII Congresso do partido, o
stalinismo, para todos os efeitos e fins, foi inacessível a análises francas e
completas. Os militares, em particular no alto escalão, receberam todo o peso
da crueldade de Stalin, porém, com exceção de A.V. Gorbatov e de uns
poucos outros que conseguiram descrever a tempo aquilo por que passaram,
ninguém foi capaz de revelar coisa alguma. O assunto era praticamente
proibido. Existe outro lado do problema. Quando a guerra começou, Stalin,
contra a vontade, foi compelido a parar com a repressão dentro do país. Os
comandantes do Exército, nas suas memórias, ocuparam-se dos aspectos
militares e do papel exercido pela autoridade política de Stalin na derrota do
fascismo. Isso, sem dúvida, explica porque a maioria dos escritores militares
apresenta Stalin sob uma luz positiva e deixa fora da imagem muito daquilo
que eles sofreram em suas mãos. E algumas dezenas de milhares deles, que às
vésperas da guerra caíram no sangrento triturador do expurgo, pereceram.
Sabe-se hoje que, no começo da guerra, Stalin apelou repetidas vezes para a
punição cruel de muitos militares, usando-os como bodes expiatórios pelas
pesadas perdas soviéticas.
Em retrospecto, é inacreditável a leniência do povo soviético, sobretudo do
povo russo. De onde vem ela? Dos 250 anos de domínio tártaro e da sucessão
de guerras para libertar-se dos grilhões? Da luta contra o inverno russo e da
grande extensão territorial? Ou deriva da sabedoria da experiência histórica,
na fé de que estava certo e no apego à tradição histórica? Talvez da convicção
de que tomara o rumo correto em 1917. Embora não se conscientizasse disso
até ser muito tarde, o povo só poderia ficar humilhado pelos rituais quase
religiosos de glorificação do mandante do país. Uma coleção de cantos de
exaltação, de hinos ridículos de boas-vindas, de cartas a Stalin chamando-o de
“pai”, “sol”, “líder sábio”, “gênio imortal”, “grande timoneiro”, “comandante
inflexível” constituiria um belo monumento a tal humilhação. A mente
burocrática superava a si mesma na invenção de epítetos sem levar em conta o
quanto afrontavam diretamente a dignidade do povo.
Seria de todo irrealista admitir que, não fora o vácuo político que se seguiu à
morte de Lenin, a evolução socialista da sociedade poderia ter acontecido sem
as distorções causadas por Stalin e seus cúmplices nas décadas de 1930, 1940
e 1950? A tragédia não era inevitável. Claro que é mais fácil falar hoje sobre
possíveis alternativas do que fazer a opção nos idos de 1920. Mais fácil
analisar as circunstâncias do que lidar com elas. “O historiador está sempre
certo ao comparar suas hipóteses com as coisas como se passaram”, escreveu
Jean Jaurès. “Está correto quando diz: ‘Eis aqui os erros do povo, e aqui, os
do governo’, e quando imagina como tudo seria se tais erros não fossem
cometidos.” Havia alternativas disponíveis.
3
Da morte de Lenin ao início dos anos 1930, Stalin ganhou a reputação de ser
um dos mais severos e mais obstinados dos líderes. Ele não tinha as
qualidades para substituir Lenin, mas nenhum dos outros tinha. Intelectual e
moralmente, ele não estava à altura da maioria dos líderes da revolução, mas
na luta pela sucessão o que valeu foi a determinação, a vontade política e a
astúcia. A despeito de suas “imperfeições”, Stalin tinha algo que faltou aos
outros, isto é, a possibilidade de usar o aparelho do partido ao máximo em
benefício próprio. O aparato era, na sua visão, o instrumento ideal do poder. E
nem todos os bolcheviques tinham ouvido o alerta de Lenin sobre Stalin.
Stalin conseguiu, temporariamente, disfarçar suas qualidades negativas,
depois que os delegados ao XIII Congresso do partido ouviram a opinião de
Lenin a seu respeito, e isso o ajudou a garantir o apoio da maioria dentro do
partido. Nessas circunstâncias, a chance dos demais postulantes não era muito
grande. Muitas altas figuras do partido, de início, simplesmente não levaram
Stalin em conta, e quando o fizeram, já era muito tarde.
Stalin, além do mais, era um grande ator. Encarnava muitos personagens com
consumada habilidade: o chefe modesto, o defensor da pureza dos ideais do
partido e, mais tarde, o líder e pai do povo, grande comandante, teorista,
connaisseur das artes, profeta. Mas, principalmente, Stalin tentou o papel de
aluno dedicado e camarada em armas do grande Lenin. Tudo isso grangeou-
lhe, gradualmente, popularidade dentro do partido e no país inteiro.
Entretanto, a questão é menos de personalidades que do potencial
democrático – por defeituoso que fosse – que Lenin começara a criar, mas que
não se manteve. Décadas depois, ainda estamos tentando identificar quem
poderia ter sido a alternativa de Stalin. O mais provável é que o núcleo
dirigente de leninistas do partido tivesse cumprido o “Testamento” de Lenin.
Mas a velha guarda revelou uma confusão e uma miopia inexplicáveis, em
vez de expressar a ideia coletiva, a vontade coletiva. Se tivessem sido criados
dispositivos de segurança democráticos para a defesa da sociedade,
notadamente sob a forma de liderança coletiva autêntica, o problema de
encontrar uma figura destacada para liderar não teria sido tão decisivo. Se,
por exemplo, o estatuto do partido tivesse fixado e confirmado um período
preciso para o mandato do secretário-geral e de outros cargos eletivos, é
possível que não acontecesse o culto a Stalin. Como as coisas se passaram, o
destino do país dependeu por demais da questão histórica de quem deveria
estar no leme.
Malgrado o fato de que, no sentido formal, a autoridade de Stalin jamais foi
testada, ele praticamente abandonou a noção de socialismo de Lenin. O
comentário de Plutarco vem-nos logo à mente: “Quando o destino eleva às
alturas um caráter mau por meio de atos de grande importância, põe-lhe à
mostra a falta de substância.” O que chamamos de stalinismo foi exatamente
4
PARTE 1
Ardor de outubro
Não há revolução sem consciência.
Jean Jaurès
[1]
Um retrato
N o começo de 1917, Iosef Vissarionovich Djugashvili, ou Stalin, como era
então conhecido, tinha 37 anos de idade. Havia diversos anos, morava em
Stylaya Kureika, na região de Turukhansk, no Círculo Ártico. As nevascas
que acumulavam neve no teto da choupana davam-lhe tempo bastante para
que a mente vagasse para momentos memoráveis de sua vida. Por exemplo,
para aquele dezembro de 1905 quando conheceu Vladimir Ilyich Lenin no
encontro do partido em Tammerfors. Ele comparecera aos congressos de
Estocolmo e Londres e apreciara a arte da política em ação, os oponentes
buscando acordos e defendendo seus princípios, e os debates ruidosos
intercalados de conversas amistosas nos intervalos. Isto sempre lhe causou
perplexidade.
Suas raras viagens ao exterior tinham-lhe deixado a sensação vagamente
desconfortável de que não era capaz de competir com a argumentação
brilhante e a conversação espirituosa de gente como Plekhanov, Axelrod ou
Martov. Irritado e intelectualmente frustrado sempre que encontrava essas
pessoas, começou a desenvolver sua duradoura hostilidade pelo estilo de vida
emigré , pelo estrangeiro e pela intelligentsia , que discutia sem cessar em
torno das mesas de cafés baratos ou no quarto esfumaçado de hotéis pequenos
e decaídos, defendendo calorosamente escolas diferentes de filosofia e de
teoria econômica.
A vida de Stalin anterior a outubro fora marcada por sete prisões e cinco fugas
de masmorras czaristas ou exílio interno. O futuro líder não gostava de
relembrar em público aquela fase de sua vida. Jamais se referia à sua
participação nos roubos armados – “expropriações” – executados para
reforçar os cofres do partido bolchevique, ou aos seus tempos de Baku,
quando clamou pela “unificação com os mencheviques a qualquer preço”, ou
a seus primeiros e lamentáveis esforços literários. Certa vez, rememorou um
de seus primeiros poemas, escrito quando seminarista de 16 ou 17 anos. Eram
versos dos quais gostava e que chegaram a ser publicados no jornal Iveria .
Evocando memórias do seu Cáucaso nativo, os versos denotavam desespero,
mas também acalentavam vagas esperanças. Enquanto os recitava – para sua
própria surpresa – quase murmurando, como se rezasse, a senhoria esticou o
pescoço por duas vezes para bisbilhotar pelo vão da porta o que fazia seu
inquilino caucasiano. Com uma gotejante vela acesa junto ao cotovelo, Stalin
estava sentado, um livro aberto ao colo, o olhar perdido na janela coberta de
gelo. De há muito, abdicara dos poemas ingênuos de sua juventude e de tudo
que fosse considerado sentimental pela intelligentsia . Até mesmo com a mãe
pouco se correspondia. Depois de uma infância dura e de uma vida na
clandestinidade, sempre fugindo, tornara-se frio, calculista e desconfiado.
Stalin aprendera a afastar os pensamentos desagradáveis, mas a lembrança do
rosto de sua esposa, falecida havia dez anos, atingida pelo tifo, pairava
sempre em algum lugar. Ele recordava o casamento sigiloso na igreja de São
David, em junho de 1906, celebrado pelo colega seminarista Khristofor
Tkhinvoleli. A bela Yekaterina Svanidze – Kato – tinha os olhos cheios de
afeto voltados amorosamente para aquele marido que desaparecia por longos
períodos para então, subitamente, reaparecer. A vida em comum foi breve. A
doença privou Stalin do único ser humano que, provavelmente, amou. As
fotografias do funeral da esposa mostram-no encolhido e magro, cabelo
despenteado, de pé ao lado do túmulo, aparentando genuíno pesar.
As sementes da aspereza e da insensibilidade nele plantadas durante a
infância criaram raízes fortes. Na vida de homem caçado desde os 19 anos,
aprendera muito, em especial manha e parcimônia, e também a esperar. O
distanciamento e a reserva evidentes em seus primeiros anos se
transformaram com o tempo em fria falta de piedade. Contudo, acostumou-se
ao uso de uma máscara que dava a impressão de homem calmo e afável,
quando estava com outras pessoas.
Por que o jovem Djugashvili se tornou revolucionário? Teria sido pelo contato
com alguns fragmentos de vida intelectual na Escola Teológica de Gori e no
Seminário de Tiflis onde estudou? Teria sido a insatisfação com a vida
religiosa reclusa que o atraiu para a companhia de pensamento rebelde? Ou,
talvez, foram seus olhos abertos pelo “ABC do Marxismo”, panfleto popular
que lhe caiu nas mãos? Ninguém sabe ao certo. De todo modo, se ele não
tivesse feito na virada do século a mudança decisiva, posto que nebulosa, da
inclinação religiosa para as opiniões seculares heréticas, um vilarejo
georgiano qualquer o teria recebido, um dia, como jovem padre ortodoxo,
pastor espiritual de um rebanho humano. Sua vida monótona seria apartada do
mundo pelas montanhas majestosas da Geórgia e pelos pequenos problemas
de uma paróquia empobrecida, pelos cuidados com sua própria prole e pelos
devaneios sobre a excitante Tiflis. Como poderia Stalin saber, filho de um
sapateiro pobre, que os caprichos do destino e a força das circunstâncias o
levariam um dia a algo infinitamente maior que a posição de um pároco de
aldeia?
Antes de 1917, ninguém poderia supor que o revolucionário clandestino seria
rapidamente alçado, depois de 1922, ao píncaro do poder. Tirando do caminho
as sólidas fileiras dos camaradas de Lenin, Stalin logo emergiu entre os
líderes e, depois, assumiu o comando. Não houve quem antevisse que, após a
morte de Lenin, esse grupo de bolcheviques famosos se dissolvesse e sumisse
com tamanha rapidez. Quanto mais Stalin subia, menos restava daqueles que
ajudaram Lenin a acender a tocha revolucionária. Antes da revolução, ele era,
possivelmente, mais conhecido entre os diversos ramos do departamento de
polícia do que entre os outros revolucionários. A cada escaramuça com
Djugashvili, os gendarmes o fotografavam de frente e de perfil. Por mais
negligentes que fossem na vigilância dos presos, os guardas eram meticulosos
na descrição de seus “criminosos de Estado”. As fotos confirmam suas
legendas de um Djugashvili magro, cabelos pretos e abundantes, bigode fino,
sem barba, marcas de varíola no rosto, cabeça oval, testa plana, mas não larga,
sobrancelhas arqueadas, fundos olhos castanhos com um toque amarelado,
nariz reto, altura mediana de 1,65m, queixo pronunciado, voz suave, marca de
nascença na orelha esquerda, braço esquerdo definhado e com o segundo e o
terceiro dedos do pé esquerdo colados. Os guardas da segurança de Estado, ao
tempo do poderoso Stalin, não iriam se preocupar com tais trivialidades. Nem
iria qualquer prisioneiro político de seu governo empreender cinco fugas,
como ele conseguira. Quando se tentou descobrir o destino das incontáveis
vítimas de Stalin, as marcas de nascença e as alturas exatas dos “inimigos do
povo” fizeram pouca diferença. Tanto no critério quanto na escala, as imagens
seriam bem diferentes.
Os traços físicos de Stalin talvez não sejam tão interessantes quanto as
características políticas e morais que apresentava em 1917. Embora possa não
ter sido um vilão desde cedo, é importante saber que tipo de infância teve para
entender sua personalidade como adulto.
Pouco se sabe de seu tempo de menino, já que nem ele mesmo foi expansivo
a esse respeito. Seus pais, Yekaterina e Vissarion Djugashvili, eram
camponeses pobres que mais tarde passaram a morar em Gori, sempre
carentes de recursos. Dos três filhos, Mikhail e Georgii faleceram antes de
atingir um ano de idade, restando apenas Iosef, ou Soso, como era chamado.
Mas este também quase morreu de varíola aos cinco anos, fato que iria
constar com regularidade das fichas policiais em vista das marcas deixadas no
rosto. Segundo I. Iremashvili, um menchevique georgiano que conheceu a
família, o pai de Stalin, o sapateiro, bebia demais e espancava mulher e filho
com frequência. Antes de cair no pesado sono dos bêbados, socava as orelhas
do filho teimoso que, claramente, não tinha amor algum ao pai. O castigo
imerecido endureceu-o, e logo Stalin aprendeu com astúcia a evitar esses
encontros. Sua mãe, por outro lado, dedicou-se de corpo e alma ao filho.
Graças à sua insistência e a seu enorme esforço, Soso conseguiu uma vaga na
escola teológica e, depois, no seminário. A discórdia familiar persistiu e,
inevitavelmente, o casal se separou, com o pai mudando-se para Tiflis, onde
morreu sozinho numa pensão e foi enterrado como indigente.
Stalin saiu de casa quando se tornou revolucionário profissional. Parece que,
depois de 1903, só viu a mãe umas quatro ou cinco vezes. Ela o visitou em
Moscou pela primeira vez quando ele se tornou secretário-geral, e Stalin a viu
pela última vez em 1935. Foi o desejo desesperado da mãe analfabeta de
ajudá-lo na vida que deu a Stalin as primeiras oportunidades, porém tudo
indica que ele jamais refletiu sobre isso. Já idosa, dois anos depois do último
encontro, em julho do terrível ano de 1937, a mãe de Stalin morreu em paz.
O escritor alemão Emil Ludwig perguntou a Stalin, em 1931, o que o teria
empurrado para o pensamento revolucionário:
“Teriam sido, talvez, maus-tratos por parte dos pais?”
“Não”, replicou Stalin, “meus pais não tinham instrução, mas, absolutamente,
não me tratavam mal.” Mas o que sabemos dos seus primeiros anos indica
1
Recebi sua carta de 16 de janeiro de 1947, enviada através do acadêmico Tsipin. Não esqueci de
você nem dos outros camaradas de Turukhansk, nem esquecerei, tenho certeza. Anexo 6.000
rublos de meu salário de deputado. Não é grande soma, no entanto, será útil para você. Desejo-
lhe saúde.
I. Stalin 3
também leu bastante, encantado com a forma ineficiente com que o regime
czarista lutava com seus “coveiros”: não era preciso trabalhar, a leitura era
permitida até a saciedade da alma e podia-se até fugir, desde que houvesse
vontade para tanto. Daí, provavelmente, chegou ele à conclusão, proclamada
mais de uma vez, de que uma autoridade forte precisava de “órgãos
punitivos” fortes.
Por ocasião dos expurgos dos anos 1930, ele iria apoiar a proposta de Yezhov
sobre alterações no sistema de cativeiro dos presos políticos. Instigado por
Stalin, o pleno do Comitê Central, em fevereiro-março de 1937, introduziu
um item especial no decreto resultante do relatório de Yezhov, a saber, que “o
regime prisional para os inimigos do poder soviético (trotskystas,
zinovievistas, SRs etc.) é intolerável. As prisões mais parecem casas de
repouso obrigatório. [Os presos] podem conviver, escrever cartas à vontade
uns para os outros, receber encomendas, e assim por diante”. É claro que
7
Pouco antes, Lenin enviara 120 francos suíços para Stalin em Turukhansk. 13
Também tomara em boa nota a carta enviada do exílio na qual Stalin aventou
a possibilidade de publicar seus dois artigos “Da autonomia cultural-nacional”
e “O marxismo e a questão nacional” como um livreto único. 14
Stalin encontrou-se com Lenin por diversas vezes antes de 1917. O tempo
mais longo que juntos passaram foi em Cracóvia. Tinham se reunido antes no
IV Congresso em Estocolmo e no V em Londres. Anos mais tarde, Stalin
lançou nova luz sobre aqueles encontros. Já em 1931, declarou: “Sempre que
fui ao exterior para vê-lo – em 1906, 1907, 1912, 1913 …”, deixando
15
transparecer que não viajara ao exterior para reuniões do partido, mas para
encontrar-se com Lenin. Essa mudança de ênfase fortaleceu, depois, o
conceito de “dois líderes”, e ajudou a criar o mito de que a relação especial
entre os dois era anterior à revolução. É também verdade que Stalin sempre
foi especialmente cauteloso sobre essas ilações.
Perito na arte da sobrevivência na clandestinidade, Stalin também dominava
os segredos da transformação. Era uma coisa no Politburo, outra quando
discursava nos congressos e ainda outra quando conversava com os
trabalhadores que recebiam o prêmio Stakhanov. Tais mudanças nem sempre
saltavam aos olhos, mas ocorriam. Como confirmaram as pessoas que
trabalharam próximas a ele, Stalin era bem mais abrupto com os do círculo
íntimo do que quando “se exibia” em público. Todos temos nossos papéis;
alguns, nós desempenhamos, intencionalmente ou não, melhor que outros.
Mas os que ocupam posições elevadas na hierarquia social são, literalmente,
atores, talvez porque estejam tão destacadamente em exposição que qualquer
trivialidade é notada. A autoridade de um homem sobre os outros depende, é
claro, de seu poder, mas também de impressões, da “visibilidade” de sua
imagem, da atração que exerce ou não como líder.
O trabalho que ele desenvolveu em Baku, Kutaisi e Tiflis evidenciou
significativas qualidades de organizador. Todavia, mesmo então,
revolucionários perspicazes observaram que Stalin encarava a organização
partidária como um aparato, um mecanismo, a máquina para o processamento
de ordens. Outros bolcheviques caucasianos, como A.S. Yenukidze, P.A.
Dzhaparidze e S.G. Shaumyan, eram mais conhecidos localmente que
Djugashvili. Stalin pode ter sido igual a esses bolcheviques em termos de
formação e experiência prática como revolucionário, mas claramente perdia
para eles em popularidade pessoal.
Juntamente com o fim da dinastia dos Romanovs, acabou o exílio para Stalin.
Poucos poderiam prever, então, que, no período de um ano, desabaria o
edifício secular do czarismo, entregando a arena para a batalha entre dois
princípios, um novo e revolucionário, outro antigo e conservador. Stalin, cujo
“retrato de frente e de perfil” ainda era completamente desconhecido, teria
seu papel nesse conflito.
Nota
* Na mitologia grega, leito de ferro em que Procusto, famigerado salteador, deitava suas vítimas que ali
deveriam caber perfeitamente. Por isso. se fossem maiores, cortava-lhes os pés, se fossem menores,
estirava-lhes o corpo. [N. T.]
[2]
Fevereiro, o prólogo
E nquanto as garras geladas de Kureika ainda se fechavam em torno de seus
exilados, eventos sem precedentes se desenrolavam na Rússia europeia. A
guerra fazia sua colheita terrível já por trinta meses. Stalin estava longe das
trincheiras enlameadas e manchadas de sangue e dos cadáveres enrijecidos de
soldados presos no arame farpado. Mas, das escassas notícias que chegavam,
sabia que a produção industrial caíra de forma drástica, que o povo passava
fome e que o descontentamento crescia velozmente. A guerra levara o império
Romanov à crise. Uma explosão revolucionária era iminente.
A classe média esperava que fosse encontrada uma solução, seja por alguma
adaptação da monarquia, seja pela formação de uma democracia nos moldes
ocidentais. A sucessão desesperada de ministros só exacerbava as dificuldades
do regime. Nos três anos de guerra, o presidente do conselho de ministros
mudara quatro vezes, e dezenas de outras substituições tiveram lugar nos altos
cargos do Estado. No front, as coisas estavam ainda piores. O ministro da
guerra, general A.A. Polivanov, enviou o seguinte cabograma da linha de
frente para o palácio: “Deposito minha confiança em nossas vastidões
intransponíveis, em nossos atoleiros e na misericórdia de nosso benfeitor,
Nicolau, o protetor da Santa Rússia.” 16
salvá-lo.
O evento singular mais significativo do primeiro ato da Revolução de
Fevereiro foi a queda da autocracia. Os exilados, inclusive Stalin, acreditavam
na possibilidade do colapso, mas não esperavam que fosse tão súbito.
Lembrando-se das lições da revolução de 1905 e do que lera sobre a
Revolução Francesa, Stalin então sabia que a raison d’être daqueles
revolucionários profissionais estava prestes a ser justificada pelos eventos que
se avizinhavam.
Um dos personagens do drama, V.V. Shulgin (que retornou do exílio no
Ocidente para a URSS em 1945, onde viveu até quase os cem anos de idade),
descreveu os detalhes em suas memórias, Dni (“Os dias”). Quando, como
emissários do Comitê Provisório, ele e A.I. Guchkov chegaram a Pskov, em 2
de março de 1917, para receberem instruções sobre a abdicação do czar,
contavam ainda com a salvação da monarquia. “O Imperador”, escreveu
Shulgin, “mostrava-se tranquilo como sempre. Quando Guchkov terminou
uma fala repleta de contradições, Nicolau, num tom de voz monótono, que
não passava o menor sinal de emoção, declarou: ‘Resolvi abdicar ao trono.
Até as três horas de hoje, pensei em fazê-lo em favor de meu filho Alexis.
Mas, depois, mudei de ideia em favor de meu irmão Miguel.’” Miguel, no 18
Agora, o fato número dois. Tivemos nossa conferência do partido em Petrogrado, em abril, e os
delegados debateram se, em face do telegrama, simplesmente seria permitida a eleição de
Kamenev para o Comitê Central. Duas reuniões bolcheviques fechadas tiveram lugar, nas quais
Lenin defendeu Kamenev, argumentando em seu favor, com alguma dificuldade, para que fosse
indicado candidato ao Comitê Central. Só Lenin poderia salvar Kamenev. Eu também o defendi
naquela ocasião.
Agora, o fato número três. É bem verdade que o Pravda apoiou o desmentido publicado pelo
camarada Kamenev, já que esse era o único meio de salvá-lo e de defender o partido contra os
ataques do inimigo. Dessa forma, veem todos que o camarada Kamenev é bastante capaz de
mentir para o Comintern e de iludi-lo. Só mais duas palavras. Como o camarada Kamenev tentou,
ainda que debilmente, negar a evidência de um fato, permitam-me coletar as assinaturas daqueles
que participaram da conferência de abril e que insistiram em vedar o acesso do camarada
Kamenev ao Comitê Central por causa do telegrama. [Trotsky, de seu lugar: “Só lhe faltará a
assinatura de Lenin!”] Camarada Trotsky, você tem que permanecer quieto!
[Trotsky: “Você não me intimida, você não me intimida!”] Você está negando a verdade, e é à
verdade que você deve temer. [Trotsky: “Você fala sobre a verdade stalinista, que é rude e
desleal.”] Estou coletando as assinaturas dos que acham que o telegrama foi assinado por
Kamenev. 19
Stalin – como, por exemplo, a de que este era favorável a uma política
defensiva de guerra – não sejam totalmente justificadas, ele, apesar disso,
acerta quando diz que ao pensamento de Stalin pré-outubro faltava visão e
que tal fato, em várias ocasiões, levou a uma preocupação estreita e míope
com as coisas práticas.
Stalin não foi apanhado de surpresa pela Revolução de Fevereiro. Malgrado a
longa depressão, sua fé na inevitabilidade da revolução estava implícita. Se a
verdade não estivesse envolvida pela capa da fé, para ele, tratava-se de uma
verdade inferior. Embora tal abordagem não seja, em si, negativa, ela encerra
o perigo do pensamento dogmático. A fé num programa, numa linha de ação,
nas decisões, na “linha justa”, ajudaram-no sempre a permanecer convicto da
correção de suas ações. Ele viu a queda da monarquia como fatalidade
revolucionária e, sem dúvida, esperava que ela ocorresse em seu tempo, se
bem que, de repente, entendesse que a causa à qual devotara sua vida não era
uma questão de mera chance histórica, era algo mais.
[3]
Os atores coadjuvantes
S talin chegou a Petrogrado em 12 de março, pelo calendário antigo. * Como
seria de prever, ninguém foi recebê-lo na estação onde desembarcou em
companhia de Kamenev e Muranov. A cidade estava ocupada com outras
questões. Carregando sua mala de papelão, Stalin dirigiu-se à casa dos
Alliluyevs, sendo acolhido como parte da família. No mesmo dia, encontrou
alguns membros do Comitê Central e, naquela mesma noite, foi eleito para
seu Bureau Russo e para o conselho editorial do Pravda . Depois do silêncio
de Kureika, foi difícil sua adaptação ao barulho e à agitação. A partir do
momento da chegada, Kamenev, Muranov e Stalin assumiram, praticamente,
o controle do jornal, e, quase de imediato, “perderam o compasso” por
diversas vezes, teórica e politicamente, e não por acaso. Stalin não era um
pensador forte e independente, não tinha posição precisa nem um
entendimento claro da dinâmica do período pré-outubro. Estava acostumado a
obedecer ordens e a executar a “linha”. Na nova situação, teve de tomar suas
próprias decisões. O primeiro tropeço foi permitir a publicação de um artigo
de Kamenev chamado “O Governo Provisório e a Democracia Social
Revolucionária”, no qual o autor dizia de forma clara do que o partido tinha
que apoiar o Governo Provisório, já que este “lutava genuinamente contra os
remanescentes do antigo regime”. Tal afirmação contrariava as diretrizes de
Lenin.
Logo no dia seguinte, Kamenev, bem conhecido por ser escritor versátil e
rápido, publicou outro artigo, intitulado “Sem diplomacia secreta”, em que
praticamente esposou a posição “defensista revolucionária”. Enquanto o
exército alemão prosseguir a guerra, escreveu ele, quem é revolucionário
“tem que se defender firmemente em seu posto e responder bala com bala,
granada com granada. Sobre isso, não há dúvida”. As opiniões meio
27
(A seu crédito, deve-se ressaltar que Stalin admitiu publicamente seu erro,
num discurso para a facção comunista do Comitê Central dos sindicatos.
Disse ele que sua atitude em relação ao Governo Provisório quanto à questão
da paz fora uma “posição gravemente errada porque gerava ilusões pacifistas,
fortalecia o ‘defensivismo’ e tornava a educação revolucionária das massas
mais difícil”. Acrescentou que esta era a posição de todo o partido embora
29
algumas de suas organizações adotassem atitude própria. Mais tarde, quando
Stalin se tornou “infalível”, uma confissão pública como essa seria, é claro,
impensável.)
Uma semana depois do artigo de Stalin, o Bureau aprovou uma resolução
alinhada com seu pensamento sobre a questão da guerra e da paz. Porém, na
ausência de Stalin, a influência de Kamenev no Pravda é que foi decisiva.
Kamenev foi o verdadeiro herói do “interregno” na liderança bolchevique e
contribuiu para o crescimento das tendências “defensivas”, meio
mencheviques, que floresceram em março. Stalin não tinha a autoridade para
se contrapor a ele. Mesmo na falta de Lenin e de outros destacados
bolcheviques, Stalin não conseguiu se comportar como líder quando o
partido, acabado de emergir da clandestinidade, necessitou de liderança
enérgica. Sverdlov, Kamenev e Shlyapnikov apareceram mais que Stalin
durante o complexo momento em que a direção política e as táticas do partido
estavam sendo definidas.
Seguramente, Stalin não poderia adivinhar que Lenin iria determinar uma
linha para a revolução socialista quando chegasse em Petrogrado um mês
depois. Estava muito envolvido com as manobras políticas, que via como um
fim em si mesmas. A ausência de Lenin foi muito sentida em março.
Objetivos definidos não poderiam ser determinados pelo intelecto comum e
pelo fervor revolucionário de Stalin, e o recém-chegado de Kureika não tinha
condições de elevar e ampliar suas perspectivas. Um preeminente intelectual
menchevique, N.N. Sukhanov (Gimmer), escreveu em suas memórias: “Na
arena política, Stalin não passava de uma nódoa cinzenta e vaga.” Os outros
30
eram conciliatórias para com o novo governo. Isso ficou bastante claro depois
que o Governo Provisório suprimiu com violência, no início de julho, uma
manifestação inspirada pelos bolcheviques. Claro também ficou que a
revolução socialista não poderia ser alcançada por meios políticos. Lenin
escreveu mais tarde que “nosso partido cumpriu sua indubitável obrigação ao
marchar, em 4 de julho, ombro a ombro com as massas acertadamente
indignadas e ao tentar dar à manifestação um caráter o mais possível pacífico
e organizado. Isso porque, em 4 de julho, a transferência pacífica do poder
para os sovietes ainda era uma possibilidade”. As lideranças SR e
35
entregar caso o TsIK desse algumas garantias. Porém, M.I. Liber e N.A.
Anisimov (membros mencheviques do TsIK) declararam que não havia
garantias que pudessem dar. Em vista dos abertos comentários feitos pela
imprensa contra Lenin e outros líderes bolcheviques, ficou claro que os
reacionários desejavam do governo um julgamento sumário deles. Depois de
discussões prolongadas, Lenin foi persuadido a não se render e a esconder-se
fora de Petrogrado por algum tempo. Inicialmente, Stalin não tomou posição,
37
Respondi, com um sorriso malicioso, que as pessoas quando são presas geralmente tentam
escapar…
Com as palavras “liberdade e socialismo” nos lábios, os que usurparam o poder apelam para a
violência, exercendo um mando arbitrário. Prenderam membros do Governo Provisório, inclusive
os ministros socialistas, e os encarceraram em celas czaristas. Sangue e anarquia ameaçam cobrir
a revolução, afogar a liberdade e a república e causar a restauração da velha ordem. Esse regime
deve ser visto como o inimigo do povo e da revolução que é. 42
* * *
Em poucos dias, o jornal que publicou a declaração e outros de oposição
foram fechados pelos bolcheviques.
Deve ficar perfeitamente esclarecido que os bolcheviques tomaram o poder
com o apoio dos Revolucionários Socialistas de Esquerda. Se bem que
discordassem dos bolcheviques em diversas questões, os SR de Esquerda
situavam-se no fluxo principal da corrente revolucionária. Organizados como
partido separado em novembro de 1917, eles expressavam, tanto quanto sua
matriz, o Partido Revolucionário Socialista, os grandes interesses dos
camponeses. Eram contra a ditadura do proletariado e favoráveis a uma
representação mais ampla dos partidos socialistas no Conselho de
Comissários do Povo, porém, no momento crucial, fecharam com os
bolcheviques. Em dezembro de 1917, aceitaram participar do governo
soviético e receberam um terço das pastas. Entre os que aceitaram cargos
estavam I.Z. Steinberg, P.P. Proshyan, A.L. Kolegaev, V.E. Trutovsky, V.A.
Karelin, V.A. Algasov, M.N. Brilliantov.
Um pluralismo socialista como esse proporcionava, por certo, excepcional
oportunidade histórica. Lenin percebeu isso quando afirmou que a união dos
bolcheviques com os SR de Esquerda “poderia ser uma ‘coalizão honrosa’,
uma união honrosa, porque não há diferença fundamental entre o trabalhador
empregado e o camponês explorado”. Se essa união tivesse sobrevivido, é
43
categoria.
A despeito de ser membro de cada órgão revolucionário que se possa
imaginar, na prática, Stalin não teve, verdadeiramente, responsabilidades
concretas. No entanto, nada lhe escapou. Ficou pasmo com a energia de
Trotsky, com a capacidade de trabalho de Kamenev, com a impulsividade de
Zinoviev. Em diversas ocasiões, deu atenção às palavras de Plekhanov, a
quem dedicava sentimentos que quase chegavam ao respeito, e se surpreendeu
certa vez quando o ouviu dizer com amargura: “A história russa ainda não
moeu a farinha para fazer o bolo do socialismo.” “Pai do marxismo russo” e
um dos fundadores do partido, Plekhanov foi além: classificou como
“delírios” as Teses de Abril de Lenin, condenou a Revolução de Outubro e, no
devido tempo, o Tratado de Brest-Litovsk. Jogado na vala do reformismo
superficial pela corrente revolucionária e desiludido com o fato de os
acontecimentos não corresponderem à sua teoria, Plekhanov partiu para a
Finlândia. Não podia aceitar a revolução, mas também não podia lutar contra
ela. Era homem de princípios políticos morais.
Em 4 de junho de 1918, numa reunião conjunta do Comitê Executivo Central
para Toda a Rússia (VTsIK), do soviete de Moscou e dos sindicatos locais, à
qual Lenin compareceu, fez-se um minuto de silêncio pela morte de
Plekhanov, falecido em maio. Stalin ficou perplexo. Para ele, quem
discordasse publicamente da causa era um inimigo para sempre. Da mesma
forma, considerou excessivos o elogio póstumo de Trotsky e o obituário no
Pravda escrito por Zinoviev. Na perspectiva de Stalin, revolução era luta. Ou
se é aliado, ou inimigo. Em particular, chamou de “liberalismo” esses sinais
de respeito a Plekhanov, uma ressaca de sentimentalismo intelectual, indigna
de revolucionários. Seus camaradas de partido teriam, um dia, a oportunidade
de ver a coerência de Stalin a esse respeito.
Três anos depois da sublevação armada, em 7 de novembro de 1920, um
grupo de participantes no levante se reuniu para uma noite de rememorações.
Stalin foi convidado, mas preferiu não ir. Mas muitos outros compareceram,
inclusive Trotsky, Sadovsky, Mekhonoshin, Podvoisky e Kozmin. Lenin foi
citado várias vezes, bem como Trotsky, Kamenev, Zinoviev e um bom
número de outros revolucionários. Os registros do encontro foram
preservados, e o nome de Stalin não aparece uma vez sequer. Nem em
conexão com o Comitê Revolucionário Militar, nem ligado ao trabalho dos
bolcheviques entre as massas silenciosas de soldados e marinheiros ocorreu a
qualquer dos presentes lembrar seu nome. Para eles, Stalin não passara de um
extra insignificante.
Transformado em “autocrata”, foi penoso para Stalin conviver com sua
insignificância e seu desconhecimento. Nos anos 1930, ele só tolerava ouvir
sobre os eventos da Revolução de Outubro se fossem descritos à luz do
conceito dos “dois líderes”. De início, os verdadeiros heróis da revolução
foram submetidos ao “silêncio”, ao “expurgo histórico” ou à “reedição”. Entre
1937 e 1939, foram fisicamente eliminados. Na altura dos anos 1940, podia-
se contar nos dedos da mão os líderes revolucionários ativos. Só
permaneceram aqueles que ajudaram a criar a nova biografia do líder. À
proporção que diminuía o número de veteranos de Outubro, mais inflado se
tornava o papel de Stalin.
Naturalmente, Trotsky, que a partir de 1919 fez de Stalin o objeto principal de
seus ensaios críticos, foi fulminante. Em A escola stalinista de falsificação ,
afirma que, em 1917, Stalin esteve quase sempre silencioso nos encontros e,
de modo geral, seguiu a linha de Lenin: “Não teve qualquer iniciativa. Não
fez uma só proposta independente, e não há ‘historiador-marxista’ do novo
tipo que possa alterar esse fato.” 46
[5]
Salva por sorte
A Revolução de Outubro viu o rompimento das comportas russas, e a
enchente social arrasou tudo que estava à sua frente. O principal mês do ano
crucial da história russa foi excepcionalmente tormentoso e triunfal para os
bolcheviques. Em poucos meses, eles passaram de partido relativamente
pequeno a poderosa força política. No entanto, a lua de mel foi breve.
Problemas, adiados por muito tempo, vieram à tona como perigos
ameaçadores e mortais no fim daquele ano inesquecível. Ao tomar o poder, os
bolcheviques prometeram ao povo terra, paz e pão. Começaram dando terra, e
a terra suscitou a esperança de pão. Mas a paz não dependia só dos
bolcheviques. Da mesma forma que não se pode bater palmas com uma só
mão, não pode haver paz de um lado só, mormente uma paz justa,
democrática, sem anexações e reparações. Porém, como consegui-la com as
hordas dos Habsburgos e dos Hohenzollerns pisoteando territórios russos
ocidentais?
Ninguém entendeu o drama daquele momento melhor que Lenin. Com poucos
dias de presidente do Conselho dos Comissários do Povo (Sovnarkom, Sovet
Narodnykh Komissarov , o “ministério”), ele já dava instruções a A.A. Ioffe,
que deveria chefiar a delegação para negociar a paz com o alto comando
alemão.
De início, pareceu que a paz seria rapidamente alcançada porque fora
assinado um armistício já em 2 de dezembro de 1917, com validade até 1º de
janeiro de 1918. As conversações começaram logo. Ioffe tinha o apoio de
Kamenev e de outros bolcheviques e SR de Esquerda. Mas a situação mudara:
forças nacionalistas mandavam agora em Berlim e queriam os máximos
ganhos possíveis. Sabiam que as trincheiras russas já estavam quase desertas
e que a delegação soviética tinha por trás a mera sombra do que fora o
poderio russo. Os alemães apresentaram condições de paz que representariam
a perda de vastas extensões de território russo.
Lenin demonstrou visão e força de vontade singulares. Se não assinarmos o
tratado, disse ele, por mais duro e injusto que seja, “o exército de camponeses,
intoleravelmente exausto da guerra, logo depois das primeiras derrotas, que
devem acontecer em poucas semanas e não meses, derrubará o governo
socialista dos trabalhadores”. A sorte da revolução estava em jogo. Dois
49
Decreto determinando a total desmobilização para as tropas russas em todo o front é expedido
juntamente com esta declaração.
Três dias mais tarde, numa reunião do Comitê Executivo Central de Toda a
Rússia, Trotsky tentou mostrar que sua decisão de “revolucionar” o
movimento revolucionário no Ocidente e que a palavra de ordem “nem paz
nem guerra” seriam apoiadas até pelas tropas alemãs. Na realidade, o slogan
escancarou o centro da Rússia para o agressor e, em poucos dias, tropas
alemãs começaram a avançar em toda a frente. Depois de um acalorado
debate, o Comitê Central aprovou, por sete votos contra quatro, a aceitação
dos termos da Alemanha.
Nas palavras de Chicherin, o sucessor de Trotsky, a Alemanha ofereceu uma
paz predatória “com um revólver apontado para a testa da Rússia
revolucionária”. A Rússia perdeu Polônia, Lituânia, Estônia, Kurland, Kars,
Batum e algumas ilhas bálticas. O partido ainda teve que defender o tratado
perante o VII Congresso de Emergência do Partido e do IVº Congresso
Extraordinário de Sovietes de Toda a Rússia, ambos ocorridos em março com
uma diferença de uma semana.
Stalin permaneceu passivo em relação a este caso, não porque discordasse de
um lado ou do outro, mas por ser a questão complicada demais para ele. Por
exemplo, numa reunião do comitê central, em 23 de fevereiro, quando Lenin
ameaçou renunciar se não concordassem em fazer a paz, Stalin começou a
vacilar, mas sem antes chegar a perguntar se “a renúncia de alguém a um
cargo significa também demissão do partido?”. Lenin respondeu que não.
A confusão que, por vezes, assaltava Stalin ficou particularmente evidente
quando se formulou a ideia de que “a honra da revolução tem precedência
sobre sua morte”. Lomov, por exemplo, declarou: “Não deixem que a
renúncia de Lenin assuste vocês. A revolução é mais preciosa.” Uritsky disse
que “essa paz vergonhosa não salvará o regime soviético”. Em meio a tão
diversificadas opiniões, Stalin adotou uma posição indecisa: “Talvez não
tenhamos que assinar o tratado.” Ao que Lenin replicou: “Stalin está errado
quando diz que não temos que assinar. Precisamos sim assinar os termos. Se
não o fizermos, estaremos assinando a sentença de morte do regime soviético
num prazo de três semanas. O regime soviético não está temeroso de tais
termos. Não tenho a menor hesitação. Não estou dando um ultimato para que
o tratado seja retirado. Não é de uma ‘frase revolucionária’ que estou em
busca.” Lenin aparou todos os argumentos contra e, a partir do momento que
51
[6]
Guerra civil
A pausa para tomar fôlego proporcionada pela paz de Brest-Litovsk foi
curta. A intervenção militar estrangeira, dando esperança de desforra para a
burguesia e para os proprietários de terra, começou logo em março-abril de
1918. Rebeliões e explosões contrarrevolucionárias foram provocadas por
oficiais brancos. Alastraram-se cossacos e nacionalistas. Já arrasado por anos
de guerra, o país estava de novo tomado das chamas do conflito. A república
não tinha fronteiras, apenas fronts.
A extinção do regime soviético parecia iminente, ainda mais pela impressão
de que se abrira uma temporada de caça aos comissários. Em Petrogrado, o
SR Leonid Kanegisser matou a tiros Moisei Uritsky; em julho, foi assassinado
o comissário dos Fuzileiros da Letônia, Semyon Nakhimson; o comissário
para os Alimentos da república do Turcomenistão, Alexander Pershin, morreu
pelas mãos de insurgentes em Tashkent; em maio de 1918, Fedor Podtelkov e
Mikhail Krivoshlykov, bolcheviques muito conhecidos da região do Don,
foram enforcados pelos cossacos; o tenente-general Alexander Taube, que se
bandeara do exército czarista para os bolcheviques e se tornara comandante
do quartel-general siberiano, caiu prisioneiro dos brancos e foi torturado.
Porém, o golpe mais duro ocorreu em Moscou quando, depois de falar aos
trabalhadores em frente à fábrica de Mikhelson, Lenin levou vários tiros da
SR Fanny Kaplan.
Uma fronteira de sangue dividiu então pelo meio a Rússia, rasgada pela
guerra interna. Em sua ferocidade implacável, a guerra civil russa refletiu o
profundo ódio de classes que rachou a nação em dois campos hostis. Como
regra, não se faziam prisioneiros. Os Russos Brancos matavam a golpes de
baioneta os feridos do Exército Vermelho em macas. A luta era sem quartel. O
tifo arrasava as linhas de frente. Reféns eram levados para fossas e mortos. A
vida não tinha qualquer valor. O apelo de classe era mais forte que a simpatia,
a piedade, a sabedoria ou a razão. O combate não era apenas entre forças
armadas das classes rivais, envolvendo, na verdade, a maior parte da
população. O país encharcou-se do sangue de compatriotas. O maior
catalisador da guerra civil foi a intervenção armada estrangeira. “Foi o
imperialismo mundial”, observou Lenin, “o verdadeiro provocador de nossa
guerra civil e o responsável por sua longa duração”. O governo declarou a
54
contra esse ponto de vista, porém, até mesmo no final dos anos 1930, a
condição de ex-integrante do corpo czarista de oficiais era fator agravante
para os comandantes do Exército Vermelho.
Constituído por Stalin, pelo presidente do soviete de Tsaritsyn, S.K. Minin, e
pelo comandante do front, P.P. Sytin, o Revvoensoviet da frente sul não
operou numa atmosfera amigável. Stalin era de opinião que todas as decisões
deveriam ser tomadas coletivamente, enquanto Sytin, como comandante que
aplica lógica militar, procurava evitar os intermináveis “entendimentos” e
“esclarecimentos” que acompanhavam o processo de tomada de decisões.
Stalin informou Moscou que Sytin não era confiável. Sytin respondeu com
um relatório escrito ao Revvoensoviet da República no qual asseverou que
Minin, Stalin e Voroshilov estavam emperrando sua ação como comandante
do front ao demandarem a aprovação do soviete militar para as questões mais
corriqueiras, e que isso complicava em demasia os procedimentos
operacionais. Stalin venceu a disputa e Sytin foi chamado de volta no início
60
de novembro de 1918.
Os especialistas militares – ex-oficiais do czar – sob o comando de Stalin
ficaram sujeitos a constantes monitorações e avaliações. Stalin sabia que
Trotsky estava ao lado deles, e os dois já tinham tido uma série de rixas
telegráficas, dando assim base para sua profunda e mútua antipatia, que se
transformou em hostilidade e, depois, em ódio.
Stalin não se preocupou em visitar trincheiras, enfermarias, pontos de reunião
ou postos de observação. Ficava sempre no posto de comando, despachando
incontáveis telegramas, convocando comissários e comandantes, exigindo
relatórios e sumários, distribuindo ameaças de cortes marciais e mandando
gente de volta para “serem observadas de perto”. Com frequência, chegava à
sanção extrema, dando ordens para que sabotadores ou militares suspeitos –
que, a seu ver, solapavam a causa – fossem mortos. No seu discurso para o
VIII Congresso do partido, Lenin fez uma referência direta às execuções de
Stalin em Tsaritsyn e ao desacordo que tinham nesse assunto. A guerra civil,
61
Quando Lenin instruiu Stalin, que ia para o front, viu nele não só um membro
do Comitê Central, mas também o representante de um país multinacional
cuja sorte dependia da união da Rússia com as outras repúblicas. Preparando
seu decreto para o Politburo sobre a defesa do Azerbaijão, por exemplo,
Lenin expediu instruções a Stalin “para arrebanhar o maior número possível
de muçulmanos comunistas de todas as regiões para trabalharem no
Azerbaijão”. 65
Stalin teve papel de líder político nas fases da guerra civil. Quando da
primeira tentativa de liquidar o regime soviético, por ocasião da rebelião do
general Krasnov, no inverno de 1917, Stalin participou da organização da
defesa de Petrogrado e da mobilização das forças, juntamente com
Dzerzhinsky, Ordzhonikidze, Podvoisky, Sverdlov e Uritsky. Ajudou a
preparar as guarnições para o combate, a construir linhas de defesa e a criar
unidades da Guarda Vermelha nas fábricas.
Mesmo naqueles estágios iniciais, muita gente se convenceu de sua energia e
inflexibilidade, quando ele emitia ordens e dava instruções num tom de voz
que não convidava a objeção. Ao mesmo tempo, os membros do partido
notaram sua natureza vingativa e rancorosa. Em dezembro de 1918, Stalin e
Voroshilov acusaram A.I. Okulov, um membro do front sul do Revvoensoviet,
de desorganização. Por insistência de Stalin, Lenin passou a seguinte
resolução: “Em vista das péssimas relações existentes entre Voroshilov e
Okulov, consideramos essencial a substituição de Okulov.” Depois de
66
concordar com Stalin, Lenin disse em seu discurso para o VIII Congresso, em
defesa de Okulov: “O camarada Voroshilov disse coisas tão terríveis que era
de pensar que Okulov havia destruído o Exército. Isso é uma monstruosidade.
Okulov seguia a linha do partido e informou-nos que a guerra de guerrilha
ainda era empregada.” Stalin bateu de frente de novo com Okulov em junho
67
de 1919, dessa vez quando este exigiu que o distrito militar de Petrogrado
ficasse sob o comando do front ocidental. Stalin, que então era do Comitê
Central e representante do Conselho de Defesa em Petrogrado, fez tamanha
insistência que obrigou Lenin a enviar um telegrama ordenando que Okulov
fosse mandado de volta “para evitar que o conflito crescesse”. Stalin
68
Trotsky:
É, obviamente, utópico. Não nos custará muitas vidas? Estaremos matando uma multidão de
nossos soldados. Isso precisa ser treinado e testado dez vezes. Sugiro a seguinte resposta: Sua
proposta para uma ofensiva na Crimeia é tão séria que temos que fazer um balanço e pensar
seriamente sobre ela. Aguarde nossa resposta. Assinado Lenin e Trotsky . 71
Malgrado o esforço de Lenin para aparar as arestas entre Trotsky e Stalin, eles
continuaram frios e desconfiados um com o outro. Ao futuro secretário-geral
contrariava observar a crescente popularidade de Trotsky, que considerava
imerecida. Nas raras visitas que fazia a Moscou, o pessoal do Revvoensoviet
da República mostrava a Stalin diversos telegramas de conteúdo semelhante.
Por exemplo:
Ao presidente Trotsky do Revvoensoviet
executor das ordens do centro, mas quando algo mais lhe era solicitado, sua
sensibilidade a ofensas e mal-entendidos aflorava e se mesclava com a
provocação de maldade que Lenin identificara.
Da mesma forma que os diversos fronts nos quais, como diversos outros
proeminentes bolcheviques, Stalin serviu durante a guerra civil, o distrito de
Petrogrado enfrentou uma situação grave na primavera de 1919. O general
branco Yudenich e forças aliadas de intervenção planejavam tomar a capital-
símbolo da revolução. O VII Exército e a Esquadra do Báltico foram
encarregados da defesa da cidade. Forças inimigas superiores se
aproximavam da Vermelha Selo (antes, Tsarskoye Selo) e de Gatchina. O
comando do Exército Vermelho começou a transferir unidades fortes de
outras frentes para Petrogrado. Sendo plenipotenciário, Stalin estava
constantemente ou no soviete de Petrogrado ou no QG da defesa. Como
sempre, seus métodos eram ditatoriais, quer estivesse substituindo pessoal
incompetente, quer prendendo quem considerava responsável pela situação,
quer na organização dos suprimentos, quer “sacudindo” a liderança local. Foi
descoberta uma conspiração no quartel-general do front ocidental e do VII
Exército. Os conspiradores foram, naturalmente, fuzilados. A lei dos bandos
foi dando lugar, gradualmente, a uma disciplina eficiente e à determinação
revolucionária. Entre os organizadores da defesa de Petrogrado estavam
Remezov, Tomashevich, Pozern, Shatov, Peters e Stalin, ao qual, como a
Trotsky, foi outorgada a Ordem da Bandeira Vermelha em reconhecimento
aos serviços prestados.
Relatos anteriores sempre afirmavam que, aonde Stalin fosse enviado, a
situação melhorava, mas isso estava longe da verdade. Ademais, Stalin
sempre seguia com um grupo, e sua principal atuação era como cumpridor das
ordens do centro e de Lenin. No campo militar, seus serviços foram mesmo
muito modestos. Porém, já em 1918, seus camaradas no centro sabiam que ele
não era simplesmente um executor dedicado, mas também um especialista em
medidas “extraordinárias”, ou seja, punitivas. E sabiam também que ele
estava começando a demonstrar sinais de autocongratulação. Num cabograma
para o centro, Stalin reportou a destruição de dois fortes defendidos pelos
brancos, acrescentando que “os especialistas da marinha estão dizendo que [as
ações] contrariaram toda a ciência naval. Só posso deplorar essa chamada
ciência. Considero meu dever declarar que devo, daqui por diante, agir como
venho operando, malgrado minha reverência pela ciência”. 77
concordava com essa linha de raciocínio, e ele próprio recorreu a tais medidas
em situações críticas – e não foi o único a fazê-lo. Em 12 de maio de 1920,
Berzin, um membro do Revvoensoviet no front sudoeste, reportou que
unidades do XIV Exército desertaram no front polonês e que “foi dada ordem
para fuzilamento de um entre cada dez homens que haviam desertado”. 79
A guerra civil foi rude para com seus inimigos, mas o foi também para seus
próprios. Nosovich, o ex-chefe do distrito militar caucasiano do norte, já
citado por ter se bandeado para os brancos, relembrou que Stalin não hesitava
quando seguro de que confrontava um inimigo. Assim, em Tsaritsyn, um
engenheiro chamado Alexeyev, seus dois filhos e uma boa quantidade de ex-
oficiais czaristas foram acusados de pertencer a uma organização
contrarrevolucionária. A decisão de Stalin foi sucinta: “Fuzilamento.” As
pessoas eram sumariamente executadas sem qualquer julgamento. Stalin
reputava lógico tal procedimento, uma vez que acreditava piamente na
“universalidade” e implacabilidade das ações punitivas que concorressem
para a consecução do “resultado” político adequado.
Numa reunião do Comitê Central de 25 de outubro de 1918, foi debatida,
entre outros assuntos, uma carta de Stalin relatando sabotagem nos
suprimentos do X Exército. Ele pedia, insistentemente, que o comandante do
front e membros do soviete militar fossem julgados por tribunal militar.
Todavia, o Comitê Central, sob a presidência de Sverdlov, decidiu “não julgar
ninguém, mas instaurar uma sindicância”. As solicitações de Stalin foram
rejeitadas.
Noutra ocasião, Stalin, então membro do Revvoensoviet do front sul,
discordou de Smilga, outro dos membros, a respeito da direção do ataque
principal sobre as forças de Denikin. Para Stalin, não bastava a correção de
seu argumento, era preciso humilhar o oponente. Em vez de debater
calmamente os prós e contras com seus camaradas, os quais, afinal de contas,
eram todos membros da mesma organização, ele se aferrava à posição com
uma atitude que beirava a hostilidade ácida. Três anos mais tarde, numa de
suas últimas notas, Lenin comentou sobre o amargor de Stalin quando lidava
com questões importantes. E “a amargura generalizada”, frisou,
“normalmente desempenha o pior papel na política”. Quando Stalin
80
PARTE II
O aviso do líder
A coragem mais rara é a coragem de pensar.
Anatole France
[7]
Camaradas em armas
L enin raramente se queixava da saúde e, enquanto ele esteve em forma,
jamais se discutiram nomes de possíveis sucessores. Contudo, tão logo os
primeiros sinais de desgaste e doença começaram a surgir, no final de 1921,
começaram especulações sobre os camaradas mais próximos do líder. Depois
da morte de Lenin, seus médicos afirmaram no atestado que o mal surgira nos
últimos meses de 1921, mas é provável que já viesse aumentando lentamente
por algum tempo. Em março de 1922, os doutores não conseguiram detectar
qualquer desordem orgânica, no entanto, em vista das constantes fortes dores
de cabeça e da visível exaustão, ele foi aconselhado a descansar por alguns
meses e mudou-se para Gorky. No início de maio, todavia, apareceram os
incipientes sintomas de problema cerebral. O primeiro ataque manifestou-se
em prostração geral, perda da fala e grande redução no movimento do braço e
da perna do lado direito. Em julho, houve melhora substancial, e o progresso
foi tão grande em agosto e setembro que ele voltou a trabalhar em outubro,
embora em ritmo bem mais lento. Em novembro, fez três discursos longos e
programáticos. 1
Com 51 anos de idade quando foi acometido pela doença, pelos padrões de
hoje, era um homem ainda novo, mas desde o retorno a Petrogrado, em 1917,
praticamente não descansara. Trabalhava de 14 a 16 horas por dia. Segundo
seus secretários, na doença, Lenin comentou que apenas duas vezes tivera um
intervalo, a primeira em Razliv, quando se escondia do Governo Provisório, e
a segunda por cortesia de Fanny Kaplan, que atirou nele.
No final de 1921, ao conscientizar-se da doença iminente, Lenin viu que, ao
sair de cena, poderia haver um racha na liderança do partido. Talvez lhe tenha
então passado pela cabeça a ideia de um “testamento” político. Em novembro
de 1922, como que prevendo outro derrame, devolveu os livros lidos ao
bibliotecário, Sh.M. Manucharyants, com o pedido especial para ficar com
Testamento político (de Cartas não publicadas ) de Engels. Escreveu na capa:
“Deixar na estante. 30.11.1922. Lenin.” 2
Lenin ainda era vivo quando Stalin pronunciou tais palavras, e essa parte do
discurso banhou-se na noção de Lenin de que o núcleo líder deveria ser
constantemente renovado. O transcurso de 15 anos mostraria tais pontos de
vista mudados para algo bem diferente, embora, por volta de 1937-38, Stalin
ainda fosse capaz de dizer belas coisas, se bem que praticando exatamente o
oposto. Mas no início dos anos 1920 tal dualismo de palavras e atos ainda não
se evidenciava. No congresso, ele assim falou sobre os companheiros e
discípulos de Lenin:
O núcleo do Comitê Central, tão bom em governança, está ficando velho e precisa de reposição.
Sabeis do estado de saúde de Vladimir Ilyich, sabeis que os outros membros do núcleo estão
bastante gastos. Porém, até o presente, não há ninguém para substituí-los, esse é o problema. É
difícil criar líderes de partido, leva tempo, de cinco a dez anos, ou mais. É mais fácil fazer a
guerra com outro país com a ajuda da cavalaria de Budyonny que forjar dois ou três líderes
oriundos das fileiras que possam se transformar realmente nos chefes futuros do país. 4
Zinoviev, como Kamenev, foi considerado por muito tempo um dos amigos
próximos de Stalin. Quando foi removido do Politburo, em 1926, achou que
seu afastamento não seria por muito tempo. Na noite de Ano-novo, ele e
Kamenev, levando garrafas de conhaque e champanhe, apareceram de
surpresa no apartamento de Stalin. A impressão foi de que a revolução
mundial tinha estourado. Eles conversaram da forma cordial de sempre e
recordaram velhos tempos e amigos, mas não trocaram uma só palavra sobre
a saída do Politburo. “Koba” foi hospitaleiro e deu uma calorosa recepção aos
antigos “chapas”. Dirigiu-se a eles com simplicidade e sinceridade, como se
não fosse o responsável pelo afastamento de ambos do Politburo no outubro
anterior. O duo sentiu-se flutuando no ar. Mas Stalin já decidira havia muito
tempo que os serviços daqueles dois, que muito sabiam sobre ele, não eram
mais necessários.
Haveria outra oportunidade em que os dois viriam, ou melhor, seriam trazidos
à presença de Stalin. Como antigos companheiros de Lenin e ex-membros do
Politburo, que contaram com altas posições depois da morte do líder, vinham
escrevendo da prisão cartas a Stalin, em 1936, quando, de repente, Stalin
reagiu. Eles entraram no gabinete do homem que tanto subestimaram e lá,
além do próprio Stalin, encontraram Voroshilov e Yezhov. Stalin não
respondeu ao cumprimento nem os convidou a sentarem-se. Andando de um
lado para o outro, ofereceu-lhes um acordo: a culpa deles já fora estabelecida
e um novo julgamento poderia impor a sentença máxima. Mas ele relembrava
os serviços passados. Se confessassem tudo no julgamento, especialmente a
liderança direta de Trotsky sobre suas atividades subversivas, salvaria a vida
deles, ou melhor, tentaria salvar. Depois tudo faria para libertá-los. Eles
precisavam decidir. O caso exigia. Seguiu-se longo silêncio. Zinoviev, que era
o mais fraco e mais submisso dos dois, disse mansamente: “Está bem,
concordamos.” Estava acostumado a falar em nome de Kamenev. Dois meses
depois, foram fuzilados.
Esta história me foi relatada na Sibéria, em 1947, por um prisioneiro
conhecido como Boris Semyonovich. No vilarejo onde eu vivia com minha
mãe, irmão e irmã, foi apressadamente construído um campo de prisioneiros
em 1937. Alguns dos presos tinham a categoria “sem escolta”, isto é, podiam,
vez por outra, atravessar o perímetro do confinamento. Boris Semyonovich
era sapateiro e esteve em minha casa duas ou três vezes para consertar minhas
botas impermeáveis e as de meu irmão. Até sua prisão em 1938, integrara a
força de segurança do próprio presídio onde Zinoviev e Kamenev estavam
detidos. Acompanhara os dois para o encontro com Stalin. Na noite em que
foram levados para a execução, tiveram comportamentos diferentes. Embora
ambos tivessem escrito a Stalin várias vezes pedindo clemência e,
aparentemente, esperassem por isso (afinal, ele prometera), sentiram que era o
fim. Kamenev caminhou em silêncio pelo corredor, apertando nervosamente
as mãos. Zinoviev ficou histérico e teve que ser carregado. Em menos de uma
hora, dois outros antigos participantes do núcleo do Comitê Central cruzaram
a fronteira fatídica. Ao tempo em que estiveram no poder, fizeram mais do
que ninguém para consolidar a posição de Stalin. O pagamento pelo serviço
foi o de suas vidas.
Vale a pena lembrar que Stalin conheceu Kamenev muito bem durante o
tempo de exílio dos dois em Turukhansk, quando ouviram pela primeira vez
as notícias sobre a Revolução de Fevereiro. Stalin reconheceu então em
Kamenev uma mistura de erudição e certa impulsividade, uma capacidade de
tomar decisões rápidas e categóricas, e, com a mesma rapidez, rejeitá-las. A
atitude de Stalin em relação a Kamenev foi muito influenciada pelo fato de
este ter sido o vice de Lenin no Sovnarkom e presidir com frequência os
plenos do Comitê Central, assim como congressos do partido. Em princípio,
durante a vida de Lenin, Kamenev foi também presidente do Politburo.
Embora Zinoviev e Kamenev fossem bons tribunos e escritores, careciam de
“espinha” e eram capazes de súbitas mudanças de posição em momentos
cruciais, em função de ambição, prestígio ou interesses pessoais.
Intencionalmente ou não, foram infelizes em levar sua luta com Stalin para a
órbita do aparato partidário, onde, com todas suas capacidades, eram muito
pequenas suas chances de sucesso.
Conquanto conhecedor de suas fraquezas, Lenin apoiou-se muito em
Zinoviev e Kamenev, particularmente neste, que desempenhou muitas
comissões pessoais para o líder. Era reconhecida a capacidade de Kamenev de
abrandar as bulhas que ocorriam nas relações internas do partido. Embora
menos popular que Zinoviev, era mais sólido e mais intelectual. Tinha ideias
próprias, era competente em generalizações teóricas, corajoso e decidido. O
discurso que pronunciou em 21 de dezembro de 1925 (aniversário de Stalin)
perante o XIV Congresso do partido merece passar à história:
Somos contra a criação de uma teoria da “liderança”, somos contra a confecção de um “chefe”.
Somos contra um secretariado que, na prática, reúne a política e a organização, postando-se
acima do órgão político.
Somos a favor de um Politburo organizado internamente de forma tal que, enquanto congrega os
políticos do partido, seja genuíno detentor, órgão superior que é, de poder total; e somos a favor
de um secretariado subordinado ao Politburo e executor das instruções deste. Pessoalmente, digo
que nosso secretário-geral não é a pessoa para unir em torno de si a equipe do antigo QG
bolchevique. Precisamente por ter dito isso, em pessoa e inúmeras vezes, ao camarada Stalin, e
por ter repetido incontáveis vezes ao grupo de companheiros leninistas, é que reitero meu ponto
de vista neste congresso: cheguei à conclusão de que o camarada Stalin não pode desempenhar o
papel de unificador da equipe bolchevique. Comecei esta parte de meu discurso com as seguintes
palavras: “somos contra a teoria da liderança de um só homem, somos contra a criação de um
chefe!” 10
O congresso aplaudiu, mas dois ou três minutos mais tarde, encerrando o seu
discurso, Stalin diria, comentando o fechamento do jornal Bolshevik de
Leningrado: “Não somos liberais. Para nós, os interesses do partido estão
acima da democracia formal. Sim, somos capazes de proibir a publicação de
um órgão de facção, e proibiremos essas coisas no futuro.” Tais palavras
11
Nossos inimigos inventaram a lenda sobre os olhos e ouvidos da Cheka **** que tudo via e tudo
ouvia, e sobre o onipresente Dzerzhinsky. Pintaram a Cheka como um exército enorme que
cobria todo o país, estendendo seus tentáculos ao seu próprio campo. Não entenderam a fonte do
poder de Dzerzhinsky. Ela derivava da força do partido bolchevique: da confiança total das
massas trabalhadoras e dos pobres. 12
tal pessoa não podia ser substituída; para isso, seria necessário todo um grupo
de funcionários.
Muitos aspectos do caráter são forjados no trabalho com um grupo de colegas
que pensam da mesma forma ou que até são competidores. Como um dos
integrantes da coorte de Lenin, Stalin iria absorver muita coisa valiosa e
duradoura do próprio líder ou de seu entourage. Mas nem todas as
características humanas são passíveis de mudança. Os atributos caldeados nos
primeiros anos de vida, tais como a mania do sigilo, o cálculo, a aspereza, a
desconfiança, a insensibilidade podem, com o correr do tempo, tornar-se mais
enraizados, e não abrandados. Stalin, bem cedo, começou a manifestar a
qualidade descrita por Hegel como “probabilismo”, isto é, o tipo de
personalidade que, tendo cometido um ato moralmente repreensível, tenta
justificá-lo mentalmente e representá-lo para si mesmo como bom. Assim era
Stalin. Uma vez certo de que o líder incontestável estava seriamente enfermo,
ele começou, passo a passo, seu grande jogo de maximizar a própria força
dentro da liderança. A princípio, tentou convencer a si mesmo de que aquilo
era necessário “para a defesa do leninismo”. Depois, tudo o que fez
considerou moralmente justificável em nome da “construção do socialismo
num país”. O probabilismo acabou ocupando lugar importante em seu arsenal
de métodos políticos. O povo tinha que saber, acreditava ele, que tudo que
fazia era em nome do povo.
Parece claro que muitos daqueles que cercavam Lenin por muito tempo não
enxergaram através de Stalin. Alguns o viam simplesmente como um
executor, outros, como o representante razoavelmente eficaz dos elementos
minoritários nacionais dentro do partido, enquanto para outros não passava de
uma mediocridade típica dos círculos governamentais de qualquer regime ou
sistema. Os camaradas de Lenin o subestimaram, ao passo que Stalin
entendeu perfeitamente todos eles. Mesmo os companheiros mais próximos
de Lenin, como Zinoviev, Kamenev, Bukharin, Rykov, Tomsky, Rudzutak e
Kosior, terminariam como “inimigos do povo” porque Stalin assim o decidiu.
Afinal, ele prestou muita atenção ao fato de o Exército Vermelho ter sido
comandado durante a guerra civil quase que exclusivamente por seus
“inimigos”: Trotsky, Blyukher, Yegorov, Tukhachevsky, Uborevich, Dybenko,
Antonov-Ovseyenko, Smilga, Muralov, mais centenas e milhares de outros
“traidores”.
Lenin não percebeu, mas Stalin constatou com sagacidade que os “capitães da
indústria” eram, na sua quase totalidade, “sabotadores”, como Pyatakov,
Zelensky, Serebryakov, Lifshits, Grinko, Lebed, Semenov e milhares de
outros. Só Stalin entendeu que o serviço diplomático soviético estava
infestado de “espiões”, como Krestinsky, Rakovsky, Sokolnikov, Karakhan,
Bogomolov, Raskolnikov. Quantos “homens de duas caras” ele identificou e
desmascarou em praticamente todas as esferas do Estado! Pessoa assim seria
realmente uma “mediocridade”? Trotsky estava errado. Robespierre disse na
Convenção em 5 de fevereiro de 1794 que “o primeiro princípio de nossa
política tem que ser o de governar o povo com ajuda da razão e tratar os
inimigos do povo com a ajuda do terror”. O sistema de Robespierre foi
16
[8]
O secretário-geral
N os cerca de seis anos que restaram de vida a Lenin depois da Revolução
de Outubro, anos repletos de feitos, de esperanças e desilusões, ele só
conseguiu esboçar por alto o que estava por vir.
O XI Congresso do partido foi seu último. O relatório sobre a organização foi
feito por Molotov, cuja descrição do estado interno do partido mostrou quão
sobrecarregadas de trabalho estavam as várias seções do Comitê Central.
“Durante o ano”, disse ele, “22.500 trabalhadores do partido passaram pelo
Comitê Central, ou seja, quase sessenta por dia”. Levantou a questão da
movimentação dos quadros, mantendo registros adequados e introduzindo
mais organização no trabalho do aparato do comitê, e sublinhou que, no
correr do ano, o número de sessões e a quantidade de matérias apreciadas
cresceram 50%, com o consequente aumento no número de conferências e de
encontros não partidários. Os delegados expressaram insatisfação com o
trabalho do centro. Osinsky, por exemplo, reprovou o Politburo por perder
tempo com assuntos tais como se deveria ou não passar o Palácio Boyar para
o Comissariado da Terra, ou sobre a distribuição de gráficas para essa ou
aquela instituição. O congresso propôs que a melhora na administração do
17
Discussões francas sobre tudo o que pudesse afetar a vida do partido eram a
norma, ao passo que observações críticas semelhantes feitas nos anos 1930
seriam encaradas como “destrutivas”, e a aprovação unânime, o apoio
irrestrito e a bajulação passariam a ser a regra. As atas dos congressos ao
tempo de Lenin foram modelos de democracia, de camaradagem ideológica e
de abertura da mais alta – dentro do partido.
Já em 1920, o trabalho do dia a dia do aparato do Comitê Central mostrou que
o secretariado necessitava de alguém para cuidar de sua própria organização.
No pleno de 5 de abril de 1920 do Comitê Central ficou decidido que
Krestinsky, Preobrazhensky e Serebryakov seriam nomeados secretários, que
a indicação de um secretário-executivo não poderia tardar e que, em adição
aos três secretários, o Orgburo deveria incluir Rykov e Stalin. As atas do
19
Na minha opinião, essa é questão da maior importância. Stalin mostra certa tendência para
apressar as coisas. Você deve dar cuidadosa atenção a isso (certa vez, você teve intenção de tratar
do assunto e chegou mesmo a dar os primeiros passos), e Zinoviev também. 23
Essas conversas frequentes não eram apenas uma maneira de Lenin obter
informações, dar conselhos e apresentar sugestões, mas serviam também para
instruir o chefe do aparato do Comitê Central. Durante os muitos encontros,
Lenin por certo formou boa ideia sobre os pontos fortes e fracos de Stalin, e
os comentários que fez sobre ele, no final de 1922 e início de 1923,
resultaram de análises e reflexões profundas. A questão nacional, em
particular, e o modo de Stalin equacioná-la abriram os olhos de Lenin para
alguns novos aspectos da personalidade do secretário-geral, e também para
algumas facetas morais. Nas anotações intituladas “Sobre a questão das
nacionalidades ou Autonomização ”, Lenin descreveu a ideia de Stalin como
um afastamento do internacionalismo proletário. Na conclusão, fez uma
avaliação política e moral de Stalin: “Acredito que um papel crucial foi aqui
representado pela pressa de Stalin e por sua propensão a recorrer a métodos
administrativos, bem como por sua animosidade em relação ao infame
‘nacionalismo social’. Animosidade em política, em geral, dá os piores
resultados.” 26
No mesmo dia, Lenin ditou outra carta, dessa vez para Stalin. A missiva
parece ser de caráter pessoal, mas só parece. A razão para essa carta
remontava a dezembro de 1922 quando Lenin ditara para a esposa,
Krupskaya, uma série de cartas de enorme interesse para o futuro do partido.
Durante a noite de 22 de dezembro, aparentemente depois de ditar uma carta
para Trotsky sobre o monopólio do comércio exterior, a saúde de Lenin
piorou. O braço direito e a perna direita ficaram paralisados. Os membros do
Politburo foram informados. No dia seguinte, Stalin, pelo telefone,
repreendeu Krupskaya nos termos mais rudes por “quebrar o regime do líder
enfermo”. Abalada pela aberta falta de tato e de cortesia de Stalin, Krupskaya
escreveu naquele dia a Kamenev:
Lev Borisovich, por eu ter escrito uma breve nota, ditada por Vladimir Ilyich com a permissão
dos médicos, Stalin permitiu-se atacar-me ontem da forma mais ofensiva. Não cheguei ontem no
partido. Ao longo de trinta anos, jamais ouvi grosserias de um membro do partido. O partido e
Lenin não são menos caros para mim do que para Stalin. Preciso agora de todo meu autocontrole.
Sei melhor que qualquer médico o que deve ou não ser dito para Ilyich, como também sei o que o
incomoda ou não e, de qualquer forma, sei melhor que Stalin.
N. Krupskaya 29
Foi um insulto seu chamar minha esposa ao telefone e ofendê-la. Embora ela tenha dito a você
que está disposta a esquecer o que foi dito, ela contou a Kamenev e Zinoviev o que ocorreu. Não
estou disposto a esquecer com tanta facilidade o que é feito contra mim, porque nem é preciso
frisar que o que é feito contra minha mulher considero contra mim. Portanto, por favor considere
se vai retirar o que disse e vai se desculpar, ou estarão cortadas as relações entre nós.
Com respeito
O tom de Lenin foi conciso e sóbrio. Ninguém ainda no partido sabia que ele
escrevera, em dezembro de 1922, sua “Carta ao Congresso” dando sua
avaliação das qualidades pessoais dos líderes do partido e recomendando a
remoção de Stalin do cargo de secretário-geral. A carta de 5 de março apenas
acrescenta detalhes da imagem política e moral que formara de Stalin. Lenin,
finalmente, chegara à conclusão de que, a despeito de o partido não ter
escolha senão a de tolerar tais comportamentos de membros de suas fileiras,
as falhas morais de Stalin eram absolutamente inconcebíveis num líder.
Profeticamente, ele viu no caráter de Stalin maus augúrios para a questão toda
da liderança do partido. No dia seguinte, ditou seu último documento em que
Stalin figurou:
Aos camaradas Mdivani, Makharadze e outros.
Respeitados camaradas,
Com respeito
Lenin não conseguiu escrever nem notas nem discurso. Quatro dias depois,
outro derrame impossibilitou-o até mesmo de ditar. Toda evidência –
principalmente suas três últimas mensagens ditadas em 5 e 6 de março –
indica, porém, que as ações de Stalin na questão georgiana convenceram
Lenin por completo de que sua Carta ao Congresso estava bem fundamentada.
Não foi fácil para Lenin aceitar o desapontamento. A escolha que fizera em
abril de 1922 fora má. Todos tinham errado, inclusive ele. Mas o erro podia
ser corrigido. Não lhes era possível ter uma pessoa completamente amoral à
frente do aparato do Comitê Central, um homem potencialmente tão perigoso
para a causa. Se Stalin fora capaz de ser insultuoso, hipócrita e ofensivo com
uma pessoa tão próxima a Lenin como Krupskaya, de que forma se
comportaria com os outros? Teria havido uma boa razão para o declínio tão
acentuado da saúde de Lenin durante os primeiros dez dias de março? Os
eventos dramáticos daquela ocasião – o caso georgiano e o desentendimento
com Stalin – devem ter acelerado a marcha de sua doença. O estado de
espírito de Lenin pode ter predisposto o líder para o derrame fatal.
No final, a ideia de “autonomização” de Stalin foi rejeitada, e a política de
Lenin sobre as relações de nacionalidade foi adotada. No Congresso dos
Sovietes, aberto em 30 de dezembro de 1922, foi proclamada a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas-URSS. A carta de Lenin sobre o assunto –
que, aliás, só veio a público trinta anos mais tarde – foi a base do relatório
apresentado por Stalin. O relatório, bem como a “Declaração sobre a
Formação da URSS”, que ele também fez, centraram-se na ideia do
internacionalismo proletário, no compromisso de todas as nacionalidades com
a amizade, a solidariedade de classe e a dedicação aos ideais revolucionários.
Reiterando as ideias de Lenin, sem citá-lo, Stalin declarou que a tarefa
especial da nova união era a de fazer desaparecer a desigualdade nacional
herdada do passado.
Lenin estava doente, porém, ainda assim, pôde insistir na perseguição de uma
solução mais equitativa para a questão nacional, num vasto país que abarcava
mais de cem nacionalidades. Stalin dificilmente desejaria solução diferente,
mas lhe faltavam perspicácia e inteligência para lidar com problema tão
difícil. Em suas memórias, Trotsky afirma que só a doença de Lenin “evitou
que ele destruísse Stalin politicamente”. Escreve também que a teimosia de
Stalin frequentemente causou perturbação em Lenin, agravando seu estado de
saúde. É eloquente o fato de, nove meses apenas depois da elevação de Stalin
ao cargo de secretário-geral, Lenin já expressar a urgente necessidade de sua
remoção. A esse respeito, a Carta ao Congresso e os últimos ensaios e cartas
que, juntos, são conhecidos como seu Testamento são de importância seminal
para o entendimento da personalidade política e moral de Stalin.
Nota
* Jogo de palavras com o idioma russo, em que “perseguido” e “processado” são iguais.
[9]
A carta ao Congresso
O destino dos últimos escritos de Lenin foi dramático. Parte substancial foi
envolvida num manto de sigilo stalinista e sonegada ao partido. Só depois de
1956 e do XX Congresso que rascunhos seus, como “Da outorga de poderes
ao Gosplan ”, “Sobre as nacionalidades ou autonomização ”, “Carta ao
Congresso” e alguns outros lembretes vieram à luz. Seu artigo “Como
reorganizar o Rabkrin [Inspetoria de Operários e Camponeses] – Propostas ao
XII Congresso” foi impresso numa única cópia para que ele a visse. Depois
da publicação de versão cortada, uma carta especial foi enviada aos comitês
provinciais dizendo que se tratava de páginas do diário de Lenin doente, que
recebera permissão para escrever porque a ociosidade mental tornara-se
intolerável para ele. Essa peça de indelicadeza foi conjuntamente assinada por
Andreyev, Bukharin, Kuibyshev, Molotov, Rykov, Stalin, Tomsky e Trotsky,
em 27 de janeiro de 1923.
As preocupações de Lenin, despertadas pelos indícios de autoritarismo que
identificara, eram incompreensíveis para Stalin e muitos outros. O
pensamento principal dos últimos escritos de Lenin, entretanto, era
fundamentalmente otimista: que o socialismo tinha futuro na Rússia. As
questões cardeais, como industrialização, reestruturação da agricultura com
base em princípios cooperativos voluntários, transformação da cultura em
propriedade do povo, administração estatal, tudo era visto por ele pelo prisma
da concessão de poder às pessoas comuns do povo e da introdução da
democracia em todas as facetas da vida social. A evolução que tinha em
mente também requeria novas pessoas, e isso, para Lenin, era então a
principal providência.
Antonio Gramsci, debatendo as origens do cesarismo, expressou certa vez a
interessante ideia de que quando forças contendoras se exaurem mutuamente,
uma terceira força pode emergir para então prevalecer sobre os dois lados. 32
Chorando de alegria, Clara Zetkin lançou-se para Ilyich e começou a beijar as mãos do velho.
Envergonhado e comovido, ele inverteu o movimento e tentou beijar as mãos dela. Ninguém
percebia que a doença havia lhe corroído o cérebro, e que o fim trágico e pavoroso estava perto. 35
Encabeçando a lista, coloco o aumento em algumas dezenas ou mesmo até uma centena do
número de membros do Comitê Central. Penso que o Comitê Central enfrentaria grandes perigos
se o curso dos eventos se virar contra nós (o que não deve ser descartado) sem termos feito essa
reforma.
Considero que o partido tem o direito de pedir da classe operária e obter sem grande esforço
cinquenta ou cem membros para o Comitê Central.
Essa reforma aumentaria enormemente a solidez de nosso partido e facilitaria muito sua luta em
meio aos estados hostis que, na minha opinião, podem e devem se tornar mais ativos no futuro
próximo. Creio que tal reforma multiplicaria por mil a estabilidade de nosso partido. 38
É minha opinião que membros do Comitê Central como Stalin e Trotsky são fundamentais, nessa
ordem de ideias, para a estabilidade. A meu ver, as relações entre eles constituem toda uma
metade do perigo de divisão a ser evitado e que, aliás, pode ser evitado aumentando-se o efetivo
do Comitê Central para cinquenta ou cem membros. 39
Muitos acadêmicos soviéticos ainda persistem em dar peso político insuficiente a Trotsky, cujas
relações com Stalin perfaziam “toda uma metade do perigo”. Lenin percebeu que Trotsky era
mais popular que Stalin, mas tinha consciência do controle que o último adquirira. As relações
estremecidas entre as duas figuras centrais corriam o risco de transbordar para um conflito que
dividiria o partido.
Tendo se tornado secretário-geral, o camarada Stalin concentrou ilimitado poder em suas mãos, e
não estou muito certo de que ele sempre usará tal poder com cuidado suficiente. 40
Ao preparar-se para dizer tais palavras, Lenin deve ter pensado que, se
Trotsky tivesse uma determinação revolucionária mais firme, poderia ser um
líder com calibre de estadista. Talvez tenha lembrado, sorridente, do discurso
de Trotsky sobre o Exército Vermelho, no último congresso, quando, em vez
de enfeixá-lo com conclusões gerais sobre a maneira de aprimorar a estrutura
militar, ele começou a falar sobre a “instrução básica militar-cultural dos
soldados”. Para uma plateia animada, ele disse:
Vamos tentar que os soldados não tenham piolhos. Trata-se de importante tarefa de instrução,
porque é necessário ser persistente, incansável, firme, exemplar e repetitivo para libertar as
massas de pessoas da sujeira em que cresceram e que as vem consumindo. Isso porque soldado
com piolho não é soldado, é meio soldado. Quanto ao analfabetismo, é um caso de piolheira
espiritual. Provavelmente, podemos liquidar com ela por volta de 1º de maio e, então, prosseguir
com o trabalho sem diminuir a pressão. 42
Dos membros mais jovens do Comitê Central, quero dizer umas poucas palavras sobre Bukharin
e Pyatakov. Eles são, no meu entender, as mais destacadas forças (entre as mais jovens), e se deve
ter em conta o seguinte sobre os dois: Bukharin não é apenas um teórico do partido muito valioso
e importante, mas é também legitimamente considerado o favorito de todo o partido, no entanto,
é altamente duvidoso que sua visão teórica possa ser considerada marxista por completo, já que
existe algo de escolástico nele (jamais estudou a dialética e jamais a entendeu, penso eu). 43
Stalin não revelara até então ambição política de vulto. Parecia ser fiel à
grande ideia, embora, talvez, a entendesse de forma diferente. Porém, como
bolchevique, o escudete de sua reputação política ainda estava incólume.
Política e moralidade, contudo, andam de braços dados e, quando entram em
descompasso, pode resultar a intriga ou a ditadura. O pós-escrito de Lenin
revela seu cuidado com o futuro, mas não demonstra animosidade pessoal.
Lenin estava acima dessas coisas. “Conquanto fosse um oponente político
duro e explorasse quaisquer instrumentos da luta política, exceto os golpes
baixos”, escreveu Lunacharsky sobre ele, “não se percebia rancor nas suas
atitudes para com adversários”. 48
Lenin sentia que a revolução vitoriosa requeria uma revisão, que seus
argumentos necessitavam de correção. Mas ele era também um homem de seu
tempo. Não tinha dúvida sobre a ditadura de uma classe que era parcela
insignificante comparada com os camponeses, e não voltou à ideia do
pluralismo revolucionário que advogara no final de 1917, nem condenou o
emprego da força como meio revolucionário para resolver problemas sociais.
Viveu as circunstâncias daquela ocasião; embora pudesse enxergar bem mais
à frente do que muitos e, de fato, percebesse o perigo para a democracia do
partido com a predominância de um só líder, não foi capaz de antever os
riscos para a sociedade toda ao se confiar na infalibilidade de um partido
único. Fica-se com a sensação de que ele não teve tempo de dizer tudo o que
queria. Embora não duvidasse da ortodoxia do dogma marxista do século
XIX, a importância de seus últimos escritos não pode ser exagerada.
Como frequentemente ocorria, Trotsky assumiu posição própria no plenário.
Na sua opinião, a ampliação do comitê central deixá-lo-ia pesado, tirando-lhe
a “estabilidade necessária” e, em última análise, “ameaçava causar prejuízo
extremo à precisão e à correção de seu trabalho”. Propôs que se formasse um
conselho do partido com duas ou três dúzias de pessoas. Esse órgão daria
diretrizes ao comitê central e fiscalizaria seu desempenho. Na verdade,
Trotsky estava propondo poder dual e centros duais no partido. O plenário
rejeitou a proposta depois de apenas um pequeno debate. Como sabemos, o
XII Congresso aceitou as proposições de Lenin e criou a Comissão Central de
Controle-Inspetoria de Trabalhadores e Camponeses como órgão unificado.
Algumas das ideias de seu Testamento começaram a entrar em vigor enquanto
ainda estava vivo, mas longe de serem todas.
As cinco cópias feitas da Carta foram lacradas em envelopes: uma para a
secretária de Lenin, três para Krupskaya e a quinta para o próprio Lenin. O
líder disse à secretária, M.A. Volodicheva, para escrever nos envelopes que só
poderiam ser abertos por ele ou, depois de sua morte, por Krupskaya, mas
Volodicheva não teve forças para escrever “depois de sua morte”. Somente a
primeira parte da Carta, referente à ampliação do comitê central, foi
transmitida a Stalin, e essa proposta foi levada ao congresso como parte do
relatório do secretário-geral sobre a atividade organizacional do comitê
central, sem que, no entanto, a autoria de Lenin fosse citada. Lenin ainda
estava vivo, e os envelopes permaneciam lacrados. Sob a presidência de
Kamenev, o congresso elegeu Lenin por unanimidade (e só ele!) para o novo
comitê central e enviou calorosas congratulações para o líder, para Krupskaya
e para a irmã de Lenin, Maria. 51
Em março de 1923, Lenin foi arrasado por outro derrame cerebral que o
impossibilitou de exercer qualquer influência ulterior sobre as questões
partidárias, em especial para que as ideias contidas em seu “Testamento”
vigorassem. A questão de um futuro líder assumiu então absoluta importância.
Notas
* Política apresentada por Lenin no X Congresso do partido, em março de 1921. Permitia a empresa
privada na agricultura, no comércio e na maioria das pequenas indústrias para restaurar a economia
nacional e pacificar o campesinato.
** Na véspera da conquista do poder pelos bolcheviques, Zinoviev e Kamenev, acreditando que um
levante armado seria prematuro, publicaram na imprensa sua objeção. O “não bolchevismo” de Trotsky
refere-se ao fato de que ele só se filiou ao partido bolchevique em agosto de 1917.
[10]
Stalin ou Trotsky?
N ão fica bem claro para qual congresso Lenin enviou sua “Carta”. Ele
escreveu: “Eu vos recomendaria com grande empenho que sejam feitas pelo
Congresso várias mudanças em nosso sistema político” – e parece ter tido em
mente o XII, mas não o disse. Ademais, sua saúde, quando aquele congresso
foi aberto, em abril de 1923, de fato impediu que insistisse para que a Carta
fosse lida aos delegados. Surgira também uma situação imprevista. As
instruções que deixara insistiam que a abertura dos envelopes ocorresse
depois de sua morte. Portanto, é possível que a Carta fosse endereçada ao XII
Congresso e também ao XIII. Como a questão do secretário-geral não foi
levantada no XII, ela assumiu absoluta importância depois do derrame sofrido
por Lenin em março, a partir do qual ele não pôde mais se comunicar.
Após março de 1923, Stalin, como secretário-geral, tomou providências para
fortalecer sua posição. A autoridade que detinha foi robustecida no XII
Congresso, em que ele teve maior visibilidade que qualquer outro delegado, já
que apresentou relatórios sobre a organização do comitê central e sobre
fatores nacionais nas estruturas do partido e do Estado, bem como pronunciou
os discursos de encerramento das duas matérias. Seus relatórios foram
escritos na forma notavelmente esquemática de seu estilo pessoal. Gostava de
ordenar seus pensamentos de acordo com a importância, o que tendia a causar
boa impressão por oferecer clareza e precisão. Assim, ele criou a expressão
“rédeas de condução” para a união do partido com o povo. “A rédea guia de
condução”, disse ele, eram os sindicatos, nos quais “não temos agora
oponentes fortes”. A segunda rédea era formada pelas cooperativas de
agricultura e consumo, se bem que, admitiu, “ainda não somos
suficientemente fortes para libertar os produtores primários da influência das
forças que nos são hostis”, querendo dizer os kulaks . * A terceira “rédea de
condução” eram as organizações da juventude, nas quais os ataques dos
adversários eram particularmente contundentes. Ele chegou a enumerar e
categorizar, de acordo com o nicho que ocupavam, diversas outras “rédeas”: o
movimento das mulheres, as escolas, o Exército, a imprensa. Tentou dar
rótulos retóricos a cada um desses elementos: a imprensa era “a língua do
partido”; o Exército, “o ponto de reunião de operários e camponeses”, e assim
por diante. De modo tipicamente seu, enquanto não dizia coisa alguma sobre
52
Por que Trotsky faria tais confissões, até certo ponto sensatas? Sobretudo,
para mostrar que Lenin o considerava sucessor. Com tal objetivo, ele
comentou a Carta ao Congresso de Lenin, concluindo que “o propósito
inegável do Testamento era facilitar o trabalho da liderança para mim. Lenin
queria naturalmente conseguir isso com a menor fricção possível”. Essas
palavras dão todo o significado da longa batalha de Trotsky. Ele jamais
aceitou a amargura de sua derrota pessoal. Afinal de contas, chegara a ver-se
líder.
A dubiedade da versão de Trotsky é revelada pelo que Lenin realmente
escreveu. Lenin não tinha a menor necessidade de formar qualquer espécie de
“bloco” com Trotsky contra Stalin. Sua autoridade era inconteste. O fato de,
às vezes, não ser entendido por alguns altos intelectuais é outra questão.
Quando adoeceu, houve tentativas de explicar os mal-entendidos como frutos
da enfermidade, da dificuldade de comunicação e do fato de o líder estar
muito distante e isolado. Mas não há dúvida de que, se ele estivesse bem de
saúde, seu único desejo pessoal e solidamente motivado, a saber, a
substituição do secretário-geral numa reunião do Politburo, teria sido
concretizado. Lenin podia considerar Stalin inadequado para o posto, mas a
candidatura de Trotsky não era muito melhor. Nenhum dos dois “líderes
notáveis” deveria assumir o leme da gigantesca nau do Estado russo.
As relações entre Trotsky e Stalin já eram complicadas antes da morte de
Lenin. Stalin sentira que Trotsky ambicionava a liderança. Tinha o adversário
como “aventureiro” e “impostor”, fazendo eco ao que Lenin dissera sobre o
passado menchevique de Trotsky. Com sua excelente memória, Stalin juntou
os muitos erros, zigue-zagues, desvios e voltas de Trotsky, organizando uma
fieira para futuro desmascaramento, argumentações, críticas, julgamentos.
Não esqueceu da fraseologia radical de esquerda de Trotsky em Brest-
Litovsk, nem de sua ordem para o fuzilamento de um grande número de
trabalhadores políticos no front oriental, por causa da traição de alguns
militares, tragédia só evitada pela intervenção de Lenin. Lembrou-se da
proposta de Trotsky para o envio de corpos de cavalaria à Índia para dar início
à revolução, e não esqueceu do cuco que iria piar o fim do regime soviético.
Stalin não gostou do fato de, logo depois da guerra civil, Trotsky cercar-se de
um batalhão de assistentes e secretários que o ajudaram a organizar vasto
arquivo, manter correspondência e preparar documentos e subsídios para
infindáveis artigos e discursos, facilitando seu impulso criativo. Stalin
acreditava que Trotsky via os incontáveis problemas da Rússia, em grande
parte, pelo prisma de seus próprios e estreitos interesses carreiristas, egoístas
e sedentos de poder, sem levar em conta as dificuldades da situação social e
política. A relação entre os dois logo se tornou mútua e profundamente hostil.
Trotsky, diga-se, não se dava mal só com Stalin. A rigor, não tinha aliados
próximos entre os outros líderes. Mesmo a curta aliança com Zinoviev e
Kamenev seria costurada sobre plataforma antistalinista e destituída de
princípios. Ademais, Trotsky subestimou Stalin seriamente, a “destacada
mediocridade”, como começou a chamá-lo depois de expulso do Politburo.
Após o derrame de Lenin, Stalin passou a considerar-se encarregado de evitar
que Trotsky se tornasse líder do partido. A derrota deste no debate lançado
por seus seguidores reduziu muito suas chances, independentemente da
decisão que o congresso pudesse tomar a respeito da Carta de Lenin. Stalin se
convenceu – e repetia isso nos círculos fechados, talvez como
autojustificativa – de que, se Trotsky assumisse a liderança do partido, as
conquistas da revolução correriam sério risco.
Trotsky não apenas desprezou a determinação e o intelecto de Stalin, mas
também, com seus incontáveis ataques, discussões e artigos polêmicos,
inevitavelmente fortaleceu a autoridade do secretário-geral, fazendo com que
este emergisse defensor da herança de Lenin e protetor da unidade do partido.
Quanto mais Trotsky investia contra Stalin, mais caía sua popularidade. O
fator da queda não foi tanto Stalin, mas o fato publicamente percebido de que
Trotsky estava, afinal, atacando a linha do partido, o centro. Assim, o próprio
Trotsky ajudou a consolidar a posição política de Stalin. Aos olhos do partido,
Stalin nunca pareceu oscilar para a esquerda ou para a direita, mas
demonstrou flexibilidade, e às vezes esperteza sutil, apoiando-se contra
Trotsky em seus dois futuros inimigos – Zinoviev e Kamenev. Janeiro de
1924 foi um tempo dolorosamente triste. No dia 19 daquele mês, Kalinin
informou ao Politburo que os médicos de Lenin mostravam-se, então,
decididamente otimistas quanto a seu gradual retorno ao trabalho. Lenin já
caminhava, e já eram lidos para ele documentos sobre questões de Estado.
Havia claros sinais de esperança, mas que se esboroaram rapidamente.
A nenhum país semidestruído convém uma liderança em constante conflito
interno, no entanto, o XIII Congresso do Partido, que teve lugar em meados
de janeiro de 1924, apresentou exatamente esse paradoxo. Debateu questões
econômicas rotineiras e deu realce político à oposição trotskysta.
Em 19 e 20 de janeiro, Krupskaya leu em doses homeopáticas para Lenin
relatos sobre o andamento da conferência. Lembrou mais tarde que, quando
ele ficou agitado no sábado, dia 19, ela lhe disse que as resoluções tinham
sido aprovadas por unanimidade. O debate sobre a oposição foi cáustico.
Zinoviev e Kamenev, futuros aliados de Trotsky, exigiram sua expulsão do
comitê central e do Politburo. Terá Lenin visto aí os indícios de rachadura
emanando da força de uma única personalidade? Deve ter percebido que seus
avisos tinham-se tornado terrível realidade.
Suas condições pioraram sensivelmente no dia 21 de janeiro e ele faleceu às
18h50. O atestado de óbito confirmou a opinião dos médicos de que a causa
subjacente da doença fora esclerose pronunciada das células do cérebro
motivada pela tensão do esforço mental excessivo; a causa imediata da morte
foi hemorragia cerebral. Trotsky, que se encontrava no sul, por alguma
estranha razão não compareceu ao enterro, embora tivesse tempo suficiente
para estar presente. Da estação ferroviária de Tiflis, passou um telegrama, em
22 de janeiro, contendo um artigo para o Pravda que continha as seguintes
linhas:
E, pois, Ilyich não há mais. O partido está órfão. A classe trabalhadora está órfã. É este o
sentimento que traz a notícia da morte do professor, do líder.
Nossos corações estão partidos pela dor sem limite porque, por uma grande graça da história,
nascemos contemporâneos de Lenin, com ele trabalhamos e dele aprendemos.
Com base num relatório submetido pela comissão designada para receber as
anotações de Lenin, o plenário, que se reuniu na véspera do congresso,
concordou que os documentos fossem lidos “dentro das delegações, ficando
bem entendido que eles não devem ser reproduzidos”. 58
Naquele instante, porém, sua autoridade havia crescido, e ele era visto no
partido como quem lutara pela unidade e se expusera contra os vários
facciosos. Sua renúncia foi recusada de novo. Stalin, sem dúvida, esperava
por isso, e encenou a demissão como um ato para fortalecer sua posição.
Voltando ao XIII Congresso, Kamenev e Zinoviev tomaram providências para
que as exortações de Lenin pela substituição de Stalin não fossem atendidas.
Persuadiram o secretário-geral a retirar sua declaração verbal e, juntos,
engendraram uma fórmula para que Stalin pudesse levar em conta as
observações do líder falecido. Pessoalmente, cabalaram junto às principais
delegações, praticamente desqualificando a ideia de Lenin, enquanto
reabilitavam seu futuro coveiro. A principal motivação dos dois foi impedir
que Trotsky ocupasse o posto mais elevado, que eles mesmos ambicionavam.
Estiveram menos preocupados com a sorte da revolução, a vontade de Lenin
ou o destino do país. O mais velho imperativo do mundo vigorou, a saber,
interesse pessoal, ambição, vaidade. Como Trotsky, no entanto, também eles
subestimaram Stalin grosseiramente. No início dos anos 1920, Zinoviev, por
exemplo, repetira para um círculo íntimo, “Stalin é um bom executor, mas
precisa sempre ser orientado e se deixa levar. Não tem qualificações para a
liderança”. Zinoviev e Kamenev esperavam, aparentemente, que Stalin
permanecesse na função de secretário-geral apenas para administrar o
secretariado, enquanto outro fazia o papel de primeiro violino no Politburo, e
esta pessoa, naturalmente, seria Zinoviev. Stalin percebeu a manobra da dupla
e, por algum tempo, passou-lhe a impressão de submissão. Providenciou que
ninguém, senão Zinoviev, apresentasse o relatório político ao congresso.
Temente de Trotsky, a dupla não encarava Stalin como perigo. De sua parte,
Trotsky mostrou-se passivo no congresso. Parecia só esperar ser convocado.
Tal era a situação no núcleo do comitê central.
Hoje, décadas depois, é possível ver que as pessoas que se interpuseram no
caminho dos desejos de Lenin foram Zinoviev e Kamenev, e, é claro, Stalin,
que não poderia ter feito coisa alguma sem eles. Aquele era o mesmo
Zinoviev, capaz de vangloriar-se publicamente do fato de que, durante dez
anos completos, de 1907 a 1917, fora o pupilo mais próximo de Lenin, e de
que ninguém apoiara Lenin com tanta assiduidade em Zimmerwald e Kienthal
quanto ele. Por seu turno, Kamenev era íntimo da família Ulyanov e não
escondia tal fato. De uma forma ou de outra, aqueles gêmeos políticos
passaram a crer que assumiriam papéis de destaque depois da morte de Lenin.
Foram eles, juntamente com Stalin, que tomaram a decisão de não tornar
pública a Carta de Lenin. E, conquanto esse documento tivesse sido publicado
num boletim de atividades do XV Congresso, por sugestão de Ordzhonikidze,
seu conteúdo não chegou a seções amplas do partido ou da nação.
Tão logo derrotou Trotsky, Stalin perdeu o interesse em Zinoviev e Kamenev
e, em mais 12 anos, iria calmamente ordenar-lhes o extermínio físico. Quantas
vezes, em desespero, os dois se recordariam da ocasião em que, desdenhando
a Carta de Lenin, eles próprios deram ao ditador e seu futuro carrasco a ajuda
necessária? Diga-se, em nome da honestidade, que quando Stalin rompeu com
eles, assumiram uma posição de “princípio” e se voltaram contra o secretário-
geral. Já durante o XIV Congresso, em dezembro de 1925, Kamenev, um dos
líderes na “nova oposição”, pronunciou palavras verdadeiras, mas tardias:
“Cheguei à convicção de que o camarada Stalin não preenche os requisitos de
um unificador do quartel-general bolchevique” – mas os delegados tomaram
tal pronunciamento apenas como ataque de rotina da parte de um membro de
facção. Todavia, nada altera o fato de que foram eles, contra a vontade de
Lenin, que mantiveram Stalin no cargo de secretário-geral.
Naquelas circunstâncias, tendo perdido o debate, Trotsky procurou salvar as
aparências adotando uma posição flexível. Zinoviev classificou seu
pronunciamento ante o XIII Congresso “não como um discurso de
congresso”, mas sim “parlamentar” – ele não se dirigiu aos delegados, mas ao
partido como um todo, e tentou “não dizer tudo o que pensa”. O discurso de
Trotsky, com efeito, foi inusitado. Sua crítica principal foi à burocracia do
aparato do partido. Reforçou sua argumentação citando Lenin e Bukharin, e
atacou a chefia do comitê central de sua posição de inovador e combatente em
defesa das tradições revolucionárias do partido. Segundo Trotsky, era a
burocracia do aparato, em todos os escalões, que gerava o facciosismo, e
havia doses de verdade em sua alegação.
Mas Trotsky pensava mais em si do que no partido. Continuava o mesmo;
precisava da toga da democracia como cobertura verbal para seus ataques à
linha adotada pelo comitê central. Porém, o partido não esquecera que ele fora
um dos iniciadores do “comunismo de quartel” que deflagrara a degeneração
burocrática. O XIII Congresso não fez progresso algum no desenvolvimento
da democracia visualizada por Lenin. Muitos talvez tivessem pensado que a
remoção de Stalin robusteceria a posição de Trotsky. E, caso este não se
tivesse comprometido com o desafio de outubro de 1923, suas chances na
sucessão seriam bastante altas, mesmo não contando com a maioria da velha
guarda. Pode-se, então, dizer que Stalin reteve o cargo graças à “ajuda” de
Trotsky.
As fundações democráticas da estrutura do partido e do Estado foram apenas
delineadas por Lenin. Ele não teve tempo para produzi-las. Tome-se apenas
uma das facetas da democracia: a do rodízio entre os funcionários
governantes. Mesmo que Stalin tivesse permanecido no cargo, caso seu
mandato fosse limitado por um procedimento estabelecido, as deformações
aparecidas depois no seu culto à personalidade talvez não ocorressem. É
perfeitamente compreensível que a rainha Victoria, Catarina, a Grande, ou o
Xá do Irã pudessem permanecer no trono por décadas, já que eram monarcas.
Mas a presença prolongada de Stalin como chefe do partido e do Estado,
virtualmente sem ser cerceado por alguém ou algo, só poderia levar a
problemas. A proposta de Lenin ao XII Congresso, constante de sua nota
sobre a reorganização da Inspetoria de Trabalhadores e Camponeses, antevia a
renovação compulsória nos órgãos diretores do partido e limites nas funções
do comitê central e nos sovietes. Esses primeiros surtos de democracia não
despertaram atenção e cedo viram-se engolfados pelo emaranhado mais
poderoso do dogmatismo, da burocracia e do mando mecanizado via
administração. O futuro culto ao “grande líder” não surgiu por acidente.
No começo, não houve indícios externos de que a usurpação do poder ocorria.
Ao contrário, Stalin batalhou contra Trotsky sob a bandeira de uma liderança
coletiva em oposição ao bonapartismo, aos métodos ditatoriais, à pretensão de
liderança individual e à ambição desenfreada revelados pelo adversário.
Trotsky continuava explorando o capital político que amealhara na guerra
civil, sem perceber que ele minguava com rapidez. Ao atacar Trotsky, Stalin
propunha uma alternativa mais progressista e democrática, a liderança
coletiva, se bem que já planejasse transformá-la gradualmente em proveito
próprio. O primeiro a tirar do caminho era, naturalmente, Trotsky. No meio-
tempo, era mister não forçar a situação. A composição do Politburo depois do
XIII Congresso, por conseguinte, permaneceu a mesma, e até Trotsky ainda
manteve seu lugar. O único rosto novo foi o da estrela ascendente do partido –
Bukharin. A descrição que Lenin fez dele – “o favorito do partido” – acelerou
seu avanço para os postos mais elevados. Dzerzhinsky, Sokolnikov e Frunze
tornaram-se candidatos a membro do Politburo. O secretariado assumiu nova
feição com Stalin como secretário-geral, Molotov como segundo secretário e
Kaganovich como secretário – uma base de apoio bem mais segura, na
perspectiva do secretário-geral. Stalin, provavelmente, sobrevivera ao pior
momento de sua carreira política: não deixara o importante cargo, a despeito
dos anseios de Lenin, e sua posição na chefia fora revigorada.
A Carta de Lenin desapareceu das vistas do partido durante décadas. Ela não
foi publicada no Leninskii sbornik (“Miscelânea de Lenin”), malgrado a
promessa de Stalin de fazê-lo. É bem verdade que a Carta aflorou algumas
vezes nos anos 1920 em decorrência da luta interna no partido. Chegou
mesmo a ser publicada no Boletim nº 30 do XV Congresso do partido
(tiragem: 10 mil cópias), com o carimbo “Apenas para membros do VKP(b)”,
* sendo distribuída para comitês provinciais e para as frações comunistas do
comitê central dos sindicatos; parte dela foi impressa no Pravda de 2 de
novembro de 1927. Portanto, não procede a afirmação de que o partido nada
sabia a respeito dela. Mas o não cumprimento imediato da vontade de Lenin
tornou difícil fazê-lo mais tarde, ainda mais porque Stalin, a princípio, tentou
mudar seu comportamento, ao menos para uso externo. O principal motivo,
contudo, foi que, aos olhos do partido, Stalin se transformara no líder da
maioria do comitê central que estava em conflito com os oposicionistas,
mesmo que tal oposição, como regra, só expressasse diferenças intelectuais,
pontos de vistas distintos e alternativas. Stalin, entretanto, empenhou-se para
fazer com que os termos “oposição” e “facção” fossem entendidos como
sinônimos de hostilidade.
Gerações subsequentes de membros do partido só ouviram falar na Carta de
Lenin no XX Congresso, em 1956. Esse tipo de segredo foi pernicioso, já que
erodiu os elementos democráticos existentes e, inevitavelmente, criou a
impressão de que a verdade podia ser sequestrada. Vale a pena ressaltar que
Karl Radek escreveu em “Resultados do Décimo Segundo Congresso do
RKP”, publicado em 1923, que algumas pessoas desejaram “capitalizar” em
cima das últimas cartas de Lenin dizendo que “elas continham coisas
secretas”, fato que impossibilitou sua publicação. 62
Parte III
Opção e luta
A verdade é filha do tempo, não da autoridade.
Francis Bacon
[12]
Construindo o Socialismo
A s dores do parto da nova sociedade continuavam. Depois do XIII
Congresso, Stalin começou a recuperar a confiança que esteve prestes a
perder. Antes da morte de Lenin, ele dificilmente podia cogitar sobre
ambições pessoais sérias. Mal se pode dizer com absoluta certeza que, mesmo
depois, acreditasse que o aparentemente impossível fosse se realizar.
Muitos dos livros da biblioteca que começou a organizar no pequeno
apartamento que ocupou no Kremlin, a partir de 1920, eram de edições pré-
revolucionárias. Faziam parte da coleção obras de Marx, Engels, Plekhanov,
Lafargue, Rosa Luxemburgo, Lenin, Tolstoy, Garshin, Tchekov, Gorky,
Uspensky, bem como de escritores menos conhecidos. Muitos contêm
anotações a lápis, palavras sublinhadas e marcas.
Pensamentos de Napoleão tem observações a lápis ao lado do parágrafo onde
o imperador relembra: “Foi precisamente naquela noite em Lodi, * que passei
a crer em mim como pessoa incomum, consumida pela ambição de
concretizar grandes coisas, até então apenas fantasias.” Será que Stalin1
dias de Lenin, existia mesmo uma lei não escrita para que os membros do
comitê central cedessem aos fundos do partido os direitos autorais por seus
escritos.
Os líderes partidários de então não tinham posses de valor, e mesmo falar
sobre tais coisas era encarado como sinal de mau gosto, filistinismo, e até
mentalidade antipartidária. Stalin tinha uma propensão natural para a
austeridade material. Quando faleceu, descobriu-se que era proprietário de
diminutos bens pessoais – alguns uniformes, um par de botas de feltro
bordado e um sobretudo de couro de carneiro. Ele não ligava para objetos,
amava o poder.
Quando as circunstâncias permitiam, havia reuniões aos domingos,
frequentemente na dacha de Stalin. Bukharin e sua esposa compareciam,
como também Yenukidze, Mikoyan, Molotov, Voroshilov e Budyonny, quase
sempre com mulheres e filhos. Budyonny cantava canções russas e ucranianas
acompanhado por um acordeão, e podiam até dançar. Trotsky jamais visitou
Stalin em sua dacha.
O grupo reunia-se em torno de uma mesa e ficava horas debatendo a situação
interna e as questões internacionais. O sogro de Stalin, o antigo bolchevique
S.Ya. Alliluyev, que era muito respeitado, geralmente estava presente,
repetindo histórias dos “velhos tempos”. Era membro do partido desde sua
fundação e se orgulhava disso. Havia discussões, algumas vezes bem
acaloradas, mas existia bastante intimidade e os convivas tratavam uns aos
outros por “ty”, sem que ninguém sentisse necessidade de ser obsequioso,
muito menos bajulador ou insinuante. Stalin era mais um entre iguais.
Dez anos antes, aquelas pessoas eram párias da sociedade, e agora estavam à
frente de um Estado gigantesco cujas feridas provocadas pela guerra e pela
rebelião mal tinham cicatrizado. Muitas questões tratadas naqueles encontros
entrariam, mais tarde, na agenda do Politburo. Por exemplo, em certa ocasião
Molotov revelou a soma de dinheiro que o Tesouro vinha perdendo com a
quantidade de grãos utilizada na fabricação de bebidas ilegais. Poucos dias
depois, em 27 de novembro de 1927, saiu uma ordem do Politburo, assinada
por Stalin, formando uma comissão permanente encarregada do combate à
vodka destilada caseiramente, à cocaína e ao jogo (em especial a lotto ). 3
No entanto, a julgar por seus trabalhos escritos, bem como por suas anotações
e assertivas, mas principalmente por suas medidas práticas, fica patente que o
credo econômico de Stalin era mais do que simples. O país tinha que ser forte,
não meramente forte, mas poderoso. Em primeiro lugar, ele precisava ser
totalmente industrializado; em segundo, o campo levado para mais próximo
do Socialismo. O método deveria ser a mais ampla confiança na ditadura do
proletariado, que Stalin entendia puramente em termos coercitivos. Em 1926,
escreveu no Bolshevik (nº 9-10, 1926): “Estamos tentando equacionar tarefas
maiores e mais sérias, cuja solução nos levará com segurança e sucesso na
direção do socialismo, porém, à proporção que as tarefas se tornarem
maiores, as dificuldades crescerão .” Essa fórmula teria um eco sinistro no
seu ditado de mais tarde: “A luta de classes se intensifica quanto mais rápido
progredimos para o socialismo.” Em meados dos anos 1920, Stalin tinha
apenas uma percepção embaçada do caminho para a construção do
socialismo, todavia, sem sombra de dúvida já tinha seu método na cabeça:
força, comando, diretrizes, ordens. Em outras palavras, ditadura.
Ao ler os intermináveis discursos de figuras de proa do partido sobre o
destino do socialismo na URSS, Stalin sentiu que a ampla gama de pontos de
vista provinha não só de diferenças nas posições intelectuais e teóricas dos
autores, mas também do fato de a realidade se revelar muito mais complexa
do que os bolcheviques previam. Como Bukharin escreveu francamente, em
1925:
Eis como nos acostumamos a ver o problema: conquistaríamos o poder, tomaríamos quase tudo
em nossas mãos, introduziríamos imediatamente a economia planejada, puniríamos os
recalcitrantes remanescentes e dominaríamos o restante, e isso seria tudo. Hoje, vemos com
clareza que não é assim que é feito. 9
Stalin dificilmente discordaria disso, mas sentia que o grande perigo estava
em Trotsky. Acabara de saber que o rival declarara num círculo de seguidores
que “alguns novos grandes do partido não podiam perdoá-lo pelo papel que
desempenhara em outubro”. Saindo dos lábios de Trotsky, o termo “grandes”
só podia significar Stalin e, aparentemente, esse não era o pior epíteto que o
adversário e seus aliados vinham empregando contra ele.
Se bem que as relações com Kamenev e Zinoviev permanecessem, pelo
menos na fachada, satisfatórias, Stalin sentiu que suas maneiras francas e a
constante influência que exercia não eram muito do agrado da dupla. Passou a
perceber isso com mais intensidade depois do XIII Congresso. No relatório
que fez sobre cursos para secretários de comitês distritais, Stalin criticara
Kamenev por ter afirmado a existência de uma “ditadura do partido”, e
concluiu dizendo, acompanhado por expressões de apoio dos delegados: “Não
temos uma ditadura do partido e sim uma ditadura do proletariado.” Deve-se
realçar que Bukharin, que à época partilhava a ideia da “ditadura do partido”,
declarou no plenário do comitê central de janeiro de 1924:
Nossa tarefa é perceber dois perigos: o primeiro vem da centralização de nosso aparato. O
segundo é o da democracia política que pode resultar se a democracia for muito longe. A
oposição, entretanto, só vê o perigo da burocracia. Não enxerga o risco da democracia política
além do risco da burocracia. […] Para apoiar a ditadura do proletariado, temos que dar suporte à
ditadura do partido.
Mas Stalin, que não via necessidade de lutar contra muitos, criticou apenas
Kamenev. Para ele, o importante era não correr as frentes, mas tratar de cada
uma a seu tempo. De imediato, a parelha política contra-atacou. A crítica de
Stalin foi considerada, numa reunião do Politburo, inadequada ao
companheirismo e imprecisa quanto à verdadeira posição de Kamenev. Stalin,
de pronto, pôs seu cargo à disposição. Foi a segunda vez que o fez como
secretário-geral, e não seria a última. A demissão foi mais uma vez recusada,
e exatamente por Kamenev, com o apoio de Zinoviev. Stalin percebeu uma
crescente ambiguidade nos dois oponentes. Evidentemente, eles ainda temiam
Trotsky, porém, mais uma vez, mudavam de direção como um cata-vento. De
que valia o livro Leninismo de Zinoviev? Na verdade, ele tentava de novo
camuflar e justificar seu comportamento e o de Kamenev em outubro de
1917, e o desacordo dos dois com Lenin. Stalin tinha memória maligna e iria
usar decididamente tais fatos no futuro.
Tão logo se visse livre de Trotsky, cuidaria daqueles “boquirrotos
inescrupulosos”. Até mesmo ele, que transformara a rudeza em uma de suas
virtudes, por vezes se enervava com a postura afirmativa de Zinoviev.
Falando no pleno do comitê central de 14 de janeiro de 1924 sobre o assunto
“lista de discussão”, Zinoviev fez comentários excessivamente francos sobre
muitos membros do comitê e sobre outros bolcheviques que tomavam parte
no debate, como se fosse um comandante de companhia avaliando
subordinados. “Pyatakov”, declarou ele presunçosamente, “é um bolchevique,
mas seu bolchevismo ainda é imaturo. Verde e imaturo”. De Sapronov, disse:
“Ele tem os dois pés no chão, porém não representa nada mais que
leninismo.” Osinsky “denota um desvio de tipo mais intelectual, não tendo
absolutamente nada em comum com o bolchevismo”. Tampouco deixou de
atingir Trotsky de passagem, o que deve ter sido muito agradável para Stalin,
embora não houvesse conexão óbvia: “Certa vez, quando chegamos em
Copenhague para um congresso, nos foi dada uma cópia do jornal Vorwärts
na qual havia um artigo anônimo afirmando que Lenin e seu grupo eram
criminosos e expropriadores. O autor do artigo foi Trotsky.” 11
Enquanto, sentado, Stalin ouvia tudo aquilo, deve ter passado por sua mente
que Zinoviev já se via chefe. Não emitiu opinião sobre o discurso no plenário,
mas, dois anos mais tarde, iria desmantelar pedra por pedra a posição de
Zinoviev. Em maio de 1926, numa nota para os membros da delegação do
partido ao Comintern, Stalin escreveu:
Referindo-se aos seus 17 anos de atividade literária, o camarada Zinoviev se jacta de que não
cabe aos camaradas Stalin e Manuilsky ensinar-lhe a necessidade de combater a tendência de
ultraextremismo de esquerda. Não é preciso provar que o camarada Zinoviev se acha um grande
homem, porém se o partido também pensa assim, há dúvida.
De 1898 até a Revolução de Fevereiro de 1917, nós, os velhos ilegais, despende-mos tempo e
trabalho em todas as regiões da Rússia, mas jamais encontramos o camarada Zinoviev fosse na
clandestinidade, na prisão ou no exílio.
Nós, os velhos ilegais, sabemos que existe uma galáxia de antigos membros que entraram no
partido bem antes do camarada Zinoviev, e que o construíram sem fanfarronice ou espalhafato.
Como comparar aquilo que o camarada Zinoviev chama de atividade literária com o trabalho que
todos os nossos velhos ilegais empreenderam sub-repticiamente durante vinte anos? 12
Dando sequência à sua tirada, Stalin passeou o olhar pelo salão e respondeu
ele mesmo, de forma áspera e num tom de voz profundo e uniforme:
A julgar por todos os fatos, a “motivação” é que Trotsky faz outra (mais uma!) tentativa de
preparar o terreno para substituir o leninismo pelo trotskysmo. Trotsky precisa,
desesperadamente, desestabilizar o partido e os quadros que tomaram parte no levante, para que
então possa desbancar o leninismo. 13
A Inglaterra criou a indústria pelo roubo em suas colônias durante duzentos anos inteiros. Não há
a hipótese de enveredarmos pelo mesmo caminho.
A Alemanha arrancou cinco bilhões [de francos] da França derrotada. Porém, esse curso, o do
roubo mediante guerras vitoriosas, também não nos convém. Nossa causa é de paz.
Existe uma terceira rota, a escolhida pela Rússia czarista. E ela contempla empréstimos
estrangeiros e acordos secretos à custa dos operários e dos camponeses. Não podemos seguir tal
rota.
Temos o nosso caminho, que é o da poupança própria. Não o percorreremos sem cometer
enganos, falhas haverá. Mas o edifício que estamos construindo é tão grande que esses enganos e
falhas, no final, não terão importância. 16
Parece que Stalin começava a deslizar para a posição em que até a democracia
informal era considerada por ele um recipiente vazio. A imperdoável aspereza
em relação a Krupskaya não foi, é claro, apenas falta de tato político contra
sua pessoa e contra a memória de Lenin, mas também vingança dissimulada
pela rememoração de cartas, chamadas telefônicas e conversas em que ela se
envolveu durante o tempo de vida de Lenin. Stalin jamais perdoou a alguém
coisa alguma.
Evidentemente consciente de que tinha se excedido em algumas partes do seu
discurso de encerramento, Stalin recorreu a um expediente que iria utilizar
também em outras ocasiões. Justificou a rudeza na crítica ao artigo “A
filosofia de uma época” de Zinoviev, dizendo que ela era endereçada tão
somente ao hostil e ao estranho, e se devia apenas à maneira franca de seu
temperamento. Gradualmente, transformou o lado repulsivo de sua natureza
em virtude do partido, quiçá, numa qualidade revolucionária.
Lamentavelmente, já àquela época, a do XIV Congresso de 1925, não havia
comunista, fosse delegado ou membro do comitê central, capaz de avaliar,
com calma e dignidade, a personalidade de Stalin e sua propensão para a
espécie de crítica insultuosa que, na ocasião devida, passaria a funcionar
como um julgamento.
Stalin, é evidente, não omitiu Trotsky no exame crítico que fez dos
oposicionistas. Sentindo o estado de espírito da maioria e livrando-se da
proposta de Kamenev de transformar o secretariado em simples organização
técnica, ele enfatizou ser contra o “banimento” de certos membros da
liderança do comitê central. Calculou, em função do ambiente, que era
prudente declarar mais uma vez que, se os camaradas insistissem, “estava
pronto para deixar o cargo sem qualquer estardalhaço”. “A expulsão significa
sangue”, declarou em meio a aplausos, “e é maneira perigosa e contagiante de
proceder. Hoje, afastamos uma pessoa, amanhã, outra, no dia seguinte, uma
terceira – que há de sobrar do partido?” Falou como político experiente,
angariando cada vez mais o apoio dos delegados e mostrando desinteresse
pessoal e preocupação com o futuro do partido. Ao mesmo tempo que
escarnecia da oposição e a criticava, revelava sua “magnanimidade” pelo uso
de frases como “Bem, boa sorte para eles!”. Conquanto já tivesse decidido
que chegara a hora de abandonar a companhia de Zinoviev e Kamenev, Stalin
demonstrou querer a paz: “Somos pela unidade, somos contra expulsões. A
política da expulsão nos repugna. O partido deseja a unidade e vai consegui-
la, com Zinoviev e Kamenev, se assim o quiserem; sem eles, caso não o
desejem.” 18
Trabalho coletivo, liderança coletiva, unidade no partido, unidade nos órgãos do comitê central e
subordinação da minoria à maioria – é disso que precisamos agora. 19
[13]
Leninismo para as massas
V endo-se à frente do núcleo do comitê central, Stalin rapidamente entendeu
que, além de possuir dons de organizador e “pulso forte”, características que
se tornaram familiares para muitos no aparato, ele tinha que se mostrar
teórico. De um lado, a mudança de estágio para a criação de uma sociedade
renovada requeria a compreensão teórica de uma vasta gama de questões.
Tudo era novidade, fosse na esfera econômica, na social ou na cultural.
Embora os delineamentos do conceito da construção socialista tornassem
possível visualizar a direção geral para a qual a vida devia caminhar, os
argumentos de Lenin, no entanto, requeriam aplicação concreta na prática
imediata.
De outro lado, Stalin sabia que o líder do partido, que muito desejava ser,
precisava ter sólida reputação de marxista teórico. Sabia também que seus
artigos não tinham deixado grande impressão na opinião pública. A maioria
deles fora escrita com objetivos correntes e específicos, e nada mais era do
que uma série de peças entediantes na confusão de slogans, ideias e apelos
que foram regurgitados pela revolução. Na realidade, quando procurava se
consolidar no topo da liderança depois da morte de Lenin, ele publicou alguns
trabalhos teóricos, por exemplo, “Anarquismo ou bolchevismo?” Pode-se
aquilatar o nível filosófico deste artigo citando-se apenas um fragmento:
Os burgueses estão gradualmente perdendo o chão sob seus pés e recuam dia após dia. Por mais
fortes e numerosos que possam hoje ser, no final, serão derrotados. Por quê? Porque estão se
desintegrando como classe, tornando-se fracos e velhos, verdadeiros pesos mortos. Isso deu lugar
a uma bem conhecida posição dialética: tudo que existe, isto é, tudo que cresce de um dia para
outro, é racional, e tudo que se desintegra de um dia para outro é irracional e, portanto, não pode
evitar a derrota. 20
Sua franqueza grosseira, como vimos, com frequência era do tipo insultuoso.
Respondendo, por exemplo, ao jurista S. Pokrovsky, que tentara esclarecer a
atitude de Stalin em relação à revolução proletária, o secretário-geral iniciou
sua carta tachando-o de “descarado narcisista” e a terminou no mesmo tom:
“Você não entendeu coisa alguma, nada sobre a revolução burguesa que se
regenerou na revolução proletária. A conclusão a tirar é que é necessário o
descaramento de um ignorante e o gosto de um equilibrista medíocre de corda
bamba para inverter o sentido das coisas dessa forma.” Fazia juízos com
22
Stalin gostou do poema e telefonou a Molotov e outros para dizer isso. Todos
aprovaram a sátira política de Bedny, e o secretário-geral observou: “Há
menos leitores para o que escrevemos sobre Trotsky do que para esses
versos”, o que, sem dúvida, era verdade. E bastou o poeta mudar um pouco de
tom, revelando “ressentimento”, para que Stalin se tornasse frio, irritadiço,
autoritário e censor.
Sabendo que o destino de seus trabalhos dependia do julgamento de Stalin, os
escritores pediam-lhe, com frequência, a opinião. Seus resumos eram
normalmente condescendentes e, quase sempre, apontavam “fraquezas”,
embora, ocasionalmente, distribuíssem elogios. Por exemplo, ele escreveu a
A. Bezymensky: “Li os dois: O tiro e Um dia em nossa vida . Não há nada de
‘burguesia trivial’ ou de ‘antiparidário’ neles. Ambos podem ser considerados
modelos para a arte revolucionária e proletária de nossos dias.” 33
Testemunhas com acesso às informações afirmaram que Stalin estudava as
personalidades políticas de escritores, poetas, cientistas e expoentes culturais.
Ele sabia que nem todos aceitavam a revolução, como atestava a emigração
em larga escala que ocorrera. Tomou conhecimento de uma carta a
Lunacharsky (comissário do povo para a Educação e a Cultura) do escritor
russo Vladimir Korolenko, publicada postumamente em Paris, onde ele
falecera em 1921, na qual o intelectual expressava sua inquietação com o
emprego da repressão na Rússia pós-revolucionária, que iria desacelerar o
crescimento da conscientização socialista. Stalin decidiu que a carta era
34
[15]
A derrota do “Inimigo nº 1”
T rotsky gostava de viajar. Desfrutava dos feriados e tratava bem de si
mesmo. Na verdade, vários médicos o atendiam. Até mesmo durante os piores
anos seguintes à guerra civil, ele dava um jeito de escapar para um refúgio de
descanso a fim de caçar e pescar um pouco. Na primavera de 1926, decidiu ir
a Berlim para uma consulta médica. O Politburo tentou dissuadi-lo da viagem
por razões de segurança, mas ele insistiu. Seus documentos de viagem foram
preparados com o nome de Kuzmenko, um membro da câmara ucraniana do
Comissariado da Educação. Trotsky e a esposa se despediram de Zinoviev e
Kamenev na estação e seguiram viagem acompanhados do ex-comandante de
seu trem blindado, Sermuks. Trotsky não era o mais astuto dos políticos. Na
luta com Stalin, metia-se em dificuldades, por exemplo, não comparecendo ao
funeral de Lenin, ou não aparecendo nas reuniões do Politburo. Cada período
de férias ou estação de caça, bem como sua atividade literária, o afastavam
das questões políticas. Entrementes, Stalin usava todas as ausências de
Trotsky para fortalecer a própria posição.
Nos anos derradeiros, Trotsky teria tempo para refletir sobre sua vida e, numa
de suas obras, escreveu que, durante a viagem a Berlim, chegara à conclusão
de que não havia possibilidade de conciliação com Stalin, de que um deles
teria que desistir, e de que este seria Stalin. Lembrara-se de que Zinoviev e
Kamenev estavam então ao seu lado e de que tinham concluído que os três
juntos seriam capazes de arrancar a iniciativa do secretário-geral. Portanto,
pensara que ainda era possível evitar um Termidor, fazendo com que Stalin
cumprisse o testamento de Lenin.
Além dos ataques públicos a Trotsky, Stalin trabalhava nos bastidores para
reduzir a influência do rival. Como testemunhou A.P. Balashov, funcionário
da secretaria de Stalin, o secretário-geral quase sempre reunia seus aliados
antes de uma reunião do Politburo para discutir maneiras de solapar Trotsky.
“Sabíamos”, disse Balashov ao autor, “que Stalin cozinhava outro prato anti-
Trotsky”.
Quando o Secretário-Geral descobriu que Trotsky ainda era mencionado nos
programas de estudos políticos do Exército como “Chefe do Exército
Vermelho de Operários e Camponeses”, sua reação foi imediata. Escreveu a
Frunze, em 10 de dezembro de 1924, propondo uma correção imediata
daqueles programas. A resposta de Frunze, alguns dias depois, veio com um
relatório anexo do chefe do departamento político do Exército, Alexinsky,
estipulando: “Trotsky não mais figura nos programas de estudos políticos
como líder do Exército Vermelho”. Stalin tomou também providências para
que, na segunda metade de 1924, o nome de Trotsky não mais fosse adotado
por cidades e fábricas, e para que poucas notícias simpáticas sobre o rival
aparecessem na imprensa.
No intervalo entre o XIV e o XV congressos, Stalin organizou e presidiu
diversas reuniões – sessões combinadas do comitê central e da CCC, sessões
do comitê central do Politburo –, em que foram discutidas as atividades da
oposição e tomadas decisões. Diversas posições foram adotadas em relação a
Trotsky e seus seguidores: advertências foram expedidas, exigidas punições
pelo partido, houve expulsões dos conselhos editoriais de órgãos partidários.
Rachas enormes logo apareceram na oposição. Com o apoio de outros líderes
do partido, Stalin conseguiu a saída de Zinoviev do Politburo, em julho de
1926, seguida da remoção de Trotsky, em outubro. Kamenev foi dispensado
de suas atribuições como membro candidato. Um pleno do comitê central
decidiu pela impossibilidade do desempenho de funções no Comintern por
parte de Zinoviev. Outros oposicionistas foram também retirados de seus
cargos no partido e no estado.
Num relatório à XV Conferência do partido, de outubro-novembro de 1926,
“Sobre a oposição e a situação interna do partido”, Stalin criticou
acerbamente o trio oposicionista e seus aliados. Expôs as mesmas ideias no
mais amplo sétimo pleno do comitê executivo do Comintern, em dezembro do
mesmo ano. As anotações para esses discursos mostram que ele preparou o
“desmascaramento” dos faccionários com todo o cuidado. Fraquezas e
“pecados” foram listados:
1. Trotsky, Zinoviev, Kamenev: não apresentam fatos, só invenções e mexericos.
2. Fazer Trotsky explicar com quem estava alinhado antes de Outubro: com os mencheviques de
esquerda ou com os de direita?
5. No IV Congresso, Kamenev disse que foi um erro “abrir fogo sobre a esquerda”. Kamenev é
esquerdista?
6. Trotsky afirma que se “antecipou” às Teses de Abril de Lenin. Está comparando uma mosca
com uma alta torre de observação.
Por mais superficial que esse discurso possa ter sido, foi incisivo e irado, e
afixou rótulos nos oposicionistas, aviltando-os como políticos práticos. O
comitê executivo do Comintern preparou-se para a expulsão de Trotsky, o que
ocorreu em 27 de setembro daquele mesmo ano, 1927. Se bem que não
estivesse totalmente isolado, Trotsky continuou travando uma batalha perdida.
Depois do seu exílio da União Soviética e até 1940, ele seria o único a
continuar se arriscando, atacando e acusando Stalin, porém, quanto mais isso
se prolongava e mais encolerizada se tornava a voz solitária de Trotsky, mais
patente ficava que sua luta era menos pela revolução e seus ideais do que por
si mesmo. Até seu último dia de vida, jamais se conformou com o absurdo de
ele, o quase gênio, ter sido posto na chuva e no sereno pelo “velhaco da
Ossetia”. Logo passaria a usar conceitos marxistas para apequenar Stalin,
enquanto, de sua parte, o secretário-geral nunca deixaria de ver Trotsky com o
mais profundo ódio pessoal e como a incorporação do mal, símbolo da
degeneração.
Entrementes, os oposicionistas não aprenderam a lição, e a luta prosseguiu.
Na primavera de 1927, enviaram um novo programa ao comitê central,
apoiado por 83 aliados de Trotsky. Depois de diversas reuniões do comitê
central e da CCC, Trotsky e Zinoviev foram expulsos do comitê central em
outubro de 1927, e do partido no mês seguinte, uma iniciativa ratificada pelo
XV Congresso do partido, quando se reuniu em dezembro do mesmo ano.
Entre os 25 membros ativos da oposição expulsos do partido na mesma
ocasião estava Kamenev, embora ele e Zinoviev fossem readmitidos mais
tarde e mesmo chegassem a fazer declarações de arrependimento no XVII
Congresso do partido.
Conquanto seja verdade que a batalha com a oposição teve lugar contra um
pano de fundo internacional de crescente tensão e um quadro interno de
desenvolvimento da industrialização, é também verdade que Stalin provocou
a refrega. Os debates infindáveis desviaram a atenção do partido de suas
tarefas vitalmente importantes, e a condição partidária interna foi discutida
repetidas vezes dentro do Comintern; mas lá também Trotsky e seus aliados
não conseguiram praticamente apoio algum. Sua aura de herói do partido
havia se dissipado. Passou a ser visto pelo partido e pelo movimento operário
internacional como discursador e pretenso líder.
Por mais paradoxal que possa parecer, foi Trotsky e ninguém mais quem
reforçou a posição de Stalin. Ao impingir ao partido um debate sem fim sobre
sua rixa com Stalin, Trotsky, sem querer, reforçou a autoridade do secretário-
geral como novo líder. Foi emblemático o fato de Stalin ter sido o único
orador do XV Congresso a receber estrondosa ovação tanto pelo relatório
como pelo discurso de encerramento. Ele não pode ser acusado de
“encenação” ou de “preparação de enredo” na condução do evento: a maioria
dos delegados simplesmente o viu como lídimo chefe emergente do partido,
impressão fortalecida pelos pouco convincentes discursos da oposição, que
perdera o vigor. Como Trotsky relembrou encolerizado: “A única
preocupação de Zinoviev e seus amigos foi a de render-se enquanto havia
tempo. […] Esperaram comprar o perdão, até mesmo ser favorecidos de
alguma forma, caso demonstrassem seu afastamento de mim…” 41
Ficou claro para todos que a aliança de Trotsky com seus antigos inimigos
surgira só para concentrar forças contra Stalin, enquanto este último, cuja
ambição e fé em seu próprio destino não paravam de crescer, não perdeu a
oportunidade de ouro que se lhe apresentou. Tendo começado a batalha no
plano ideológico, passou a agir então para a destruição política completa de
Trotsky.
Um pleno conjunto do comitê central e da CCC de 23 de outubro de 1927 foi
convocado para discutir a agenda do XV Congresso que se aproximava.
Quando o plenário concordou que o congresso deveria debater a oposição de
Trotsky, gritos partiram da plateia e notas foram passadas para a mesa dos
trabalhos reclamando que o comitê central havia escamoteado o Testamento
de Lenin e descumprido sua vontade. Stalin não pôde mais silenciar sobre a
questão. Seu discurso de uma hora de duração foi rancoroso e pleno de
indisfarçável ódio por Trotsky. Mais uma vez, repassou todos os pecados do
líder rejeitado, remontando a 1904. Sabedor de que a arma principal de
Trotsky era o aviso de Lenin a respeito de suas deficiências pessoais, Stalin
contra-atacou na mesma linha:
A oposição pensa que pode “explicar” sua derrota dando como razão a rudeza de Stalin, a
teimosia de Bukharin e Rikov, e assim por diante. Isso é muito fácil. É apenas palavrório, não é
explicação. […] No período entre 1904 e a Revolução de Fevereiro, Trotsky confraternizou com
os mencheviques durante todo o tempo, e se batia numa luta desesperada contra o partido de
Lenin. Naqueles tempos, Trotsky foi derrotado repetidas vezes pelo partido de Lenin. Por quê?
Seria talvez por causa da rudeza de Stalin? Mas Stalin não era, então, secretário do comitê
central; naqueles dias, estava bem longe dos exílios no exterior, conduzindo a luta na
clandestinidade contra o czarismo, enquanto a batalha entre Trotsky e Lenin era travada no
exterior. Portanto, o que a rudeza de Stalin tem a ver com tudo isso? 42
Stalin lançou seu ataque sob o estandarte da defesa de Lenin, a quem Trotsky,
naqueles dias, chamara – entre outras coisas – de “Maximilien Lenin”, clara
alusão aos métodos ditatoriais de Robespierre. Desferiu golpe contundente em
Trotsky ao realçar que um dos panfletos iniciais do rival, “Nossas tarefas
políticas”, fora dedicado ao menchevique P.B. Axelrod. Triunfalmente e
acompanhado de brados de aprovação da plateia, Stalin leu a dedicatória: “Ao
meu prezado professor, Pavel Borisovich Axelrod. ”
Pois muito bem, faça bom proveito de nosso “prezado professor” Pavel Borisovich Axelrod!
Bom proveito! Agora, venerável Trotsky, é melhor correr, porque Pavel Borisovich está decrépito
e pode morrer a qualquer momento, e talvez você se atrase para o encontro com seu “professor”.
43
própria interpretação:
Ela foi mostrada vezes sem conta, e ninguém está tentando esconder coisa alguma, isso porque o
Testamento de Lenin foi endereçado ao XIII Congresso do partido, foi lido lá, e o congresso, por
unanimidade , concordou em não publicá-lo, porque, aliás, Lenin não solicitou sua publicação,
nem queria isso. 45
Como mostrou nossa análise das últimas cartas de Lenin, Stalin estava
distorcendo a verdade histórica. Jamais ficou esclarecido se Lenin endereçou
as cartas ao XII ou ao XIII Congresso. O Testamento foi lido apenas para os
delegados, não para o congresso. E esse congresso não tomou decisão, muito
menos por unanimidade, sobre sua não publicação, e só havia a palavra de
Stalin afirmando que Lenin não desejara aquela publicação.
Durante o evento, sentindo sua crescente força e percebendo que tinha,
praticamente, o total apoio do plenário, Stalin decidiu-se pela batalha no
campo em que era mais vulnerável, e mentiu deslavadamente no decorrer do
processo. Explorou o fato de que, por insistência do Politburo (sobretudo por
sua própria), o Bolshevik de setembro de 1925 publicou uma declaração de
Trotsky referente ao Testamento. Cedendo à pressão de Stalin na ocasião,
Trotsky escrevera:
Desde que ficou doente, Vladimir Ilyich escreveu com frequência propostas, cartas etc. aos
órgãos dirigentes do partido e a seus congressos. Todas essas cartas etc. foram naturalmente
sempre entregues aos destinatários e levadas à atenção dos XII e XIII Congressos, e sempre, é
claro, tiveram a influência adequada sobre as decisões do partido. […] Vladimir Ilyich não
deixou testamento e, pela própria natureza de suas relações com o partido, bem como pela
natureza do partido em si, fica excluída a possibilidade de um tal testamento, de modo que
qualquer conversa sobre ocultação ou não cumprimento de um testamento não passa de invenção
maliciosa e, na verdade, vai contra a intenção de Vladimir Ilyich. 46
Poderia Trotsky ter adivinhado que, ao tentar se dissociar dos rumores que
circulavam no Ocidente, os documentos sigilosos de Lenin tinham alcançado
o Ocidente por suas mãos, ficaria totalmente encurralado num canto? Os
sinos, no final das contas, dobravam por ele. Aos olhos do plenário, o líder da
oposição revelou-se mais uma vez um político intrigante, e Stalin não perdeu
a chance de acabar com ele. Citando o artigo do Bolshevik , Stalin mirou
diretamente no alvo:
Isso foi escrito por Trotsky, por ninguém mais. Que fundamento podem ter agora Trotsky,
Zinoviev e Kamenev para tagarelarem sobre uma tal “ocultação” do Testamento de Lenin por
parte do comitê central e do partido? […]
Tem-se dito que, em seu Testamento, Lenin sugeriu que, em face da “rudeza” de Stalin, o
congresso deveria considerar sua substituição no cargo de secretário-geral por alguma outra
pessoa. Isso é absolutamente verdadeiro. Sim, camaradas, sou rude em relação àqueles que,
traiçoeira e rudemente, destroem e dividem o partido. Jamais escondi isso, nem vou fazê-lo
agora. Talvez se exija uma certa gentileza para com esses divisionistas. Mas não consigo agir
assim. Logo na primeira sessão do comitê central que se seguiu ao XIII Congresso, solicitei ao
pleno dispensa de minhas obrigações de secretário-geral. O próprio congresso debatera o assunto.
Todos os delegados, inclusive Trotsky, Kamenev e Zinoviev, por unanimidade, forçaram Stalin a
continuar no posto. Que deveria eu fazer? Fugir de meu dever? Não é da minha natureza, jamais
fugi de uma tarefa, não tenho direito a fazê-lo, seria o mesmo que a deserção. Um ano mais tarde,
solicitei novamente ao pleno que me dispensasse e, mais uma vez, fui compelido a permanecer.
Que mais poderia ter feito?
É significativo que o Testamento não contém uma só palavra, uma só pista, sobre erros de Stalin.
Fala apenas na rudeza de Stalin. Porém, a rudeza não é, nem pode ser, uma deficiência da linha
política de Stalin ou de suas posições. 47
O Politburo debateu diversas vezes como lidar com Trotsky, cujos ataques
tinham mudado de forma – já não eram contra o partido, mas antissoviéticos
–, e decidiu afastá-lo de Moscou. Primeiro, ele foi obrigado a mudar-se do
Kremlin. Zinoviev, Kamenev, Radek e outros líderes também se mudaram.
Ioffe cometeu suicídio logo depois da derrota de Trotsky. Zinoviev e
Kamenev resolveram se retratar no congresso vindouro. “Lev Davidovich”,
escreveram a Trotsky, “chegou a hora de termos a coragem da rendição”.
Haviam perdido de forma decisiva o jogo e tentavam pegar um estribo do
trem da história. Logo se chegou à decisão de enviar Trotsky para Alma-Ata,
no sul do Cazaquistão, e as providências para isso, segundo alguns, ficaram a
cargo de Bukharin.
Durante a partida, alguns aliados de Trotsky tentaram fazer um protesto
político. Trotsky recusou-se a deixar a casa e entrar no carro, e teve que ser
fisicamente arrastado e igualmente empurrado para dentro do trem, enquanto
seu filho mais velho bradava “Camaradas, vejam como levam Trotsky à
força!”
Sua esposa descreveu a cena:
Houve uma tremenda manifestação na estação. O povo esperava, gritando “Vida longa para
Trotsky!”, mas ninguém o via em lugar algum. Onde estaria? Em torno do carro que fora
reservado para nós, juntara-se grande multidão. Jovens amigos colocaram um imenso retrato de
L.D. em cima do carro. As pessoas davam “hurrahs” de júbilo. O trem partiu, primeiro um
solavanco, depois outro; moveu-se lentamente um pouco à frente para logo depois parar
subitamente. Os manifestantes se postaram diante da locomotiva; penduraram-se aos vagões e
interromperam o deslocamento, exigindo Trotsky. Correu um boato pela multidão de que agentes
da GPU tinham levado L.D. secretamente para o interior do trem e impediam que ele aparecesse
para os que vieram vê-lo. O nervosismo que tomou conta da estação foi indescritível. Houve
confrontos com a polícia e com agentes da GPU, com baixas de ambos os lados. Prenderam
gente. 50
À porta de Constantinopla, tenho a honra de informar-lhe que cheguei à fronteira da Turquia não
por vontade própria, e que só cruzarei esta fronteira submetido à força.
L. Trotsky
12 de fevereiro de 1929 52
Dessa forma, Trotsky lançou-se em dez anos adicionais da mais ferrenha luta
contra Stalin e, por vezes e sem o querer, contra o próprio Estado que ajudara
a criar e defender.
A principal causa de seu drama pessoal repousou no fato de que, em última
análise, ele pôs suas ambições pessoais em primeiro lugar e por elas enfrentou
um oponente inescrupuloso. O desenlace foi acelerado pela colisão pessoal
dos “dois destacados líderes”. Dono de uma mente original e poderosa, e em
função de seu caráter altamente ambicioso, Trotsky aos poucos entrou nas
fileiras dos inimigos irreconciliáveis do socialismo stalinista. Seu ódio
pessoal pelo secretário-geral com frequência venceu a decência elementar,
mesmo em relação aos ideais e valores que tão recentemente proclamara.
Mal chegado à angra de Constantinopla, naquele plúmbeo fevereiro, Trotsky
passou à imprensa ocidental uma compilação de seis de seus ensaios
intitulada Que aconteceu e como . Num dos ensaios, fazia uma afirmativa que
tentara disfarçar apenas seis meses antes, a saber, que a teoria do socialismo
em um só país era uma maquinação reacionária, “o maior e mais criminoso
solapamento do internacionalismo revolucionário”. Era uma teoria, clamou
ele, com base administrativa, não científica. Quando Stalin leu essas
53
Ainda esperava voltar, mas o destino decidiu de forma diferente, e ele deveria
continuar banido para sempre.
Notas
* Na Primeira Guerra Mundial, ala radical do movimento socialista antiguerra, dominado por Lenin.
** Leslie Urqhart, negociante inglês que, em 1923, tentou um acordo sobre uma concessão soviética
importante em termos muito duros, que o Sovnarkom não aceitou.
[16]
A vida particular do líder
M uitos que conheceram e viram Stalin no que se pode chamar de ambiente
doméstico – médicos, seguranças, equipe de secretaria, escritores, chefes
militares – contaram-me que, de um modo geral, sua vida privada e o trabalho
se confundiam. Dias de folga não existiam para ele, e o padrão de seus dias
variava pouco. É verdade que, no final da vida, quando a idade o obrigou a
ser mais vagaroso, já não ia todos os dias ao Kremlin, mas trabalhava em sua
dacha. Ocasionalmente, era lá que tinham lugar algumas reuniões do
Politburo, e lá também que recebia ministros, altas patentes das forças
armadas e visitantes estrangeiros. Stalin criou o hábito de trabalhar sem
descanso nos anos difíceis logo depois da revolução. Na realidade, houve
ocasiões em que membros do Politburo e outros sentaram-se, aos domingos, à
mesa de jantar de Stalin e lá ficaram madrugada adentro. Porém, mesmo
então, por mais “livres” que fossem as conversas, sempre recaíam nos
problemas que o país e o partido enfrentavam.
A liderança dos anos 1920 vivia com bastante modéstia. Inicialmente, Stalin
ocupou um pequeno apartamento a ele distribuído por ordem de Lenin. Uma
carta de Lunacharsky, de 18 de novembro de 1921, pede que seja encontrado
algo mais confortável para Stalin. Quando Lenin leu a carta, enviou um
bilhete ao chefe da segurança, A.Ya. Belenky (nome real, Khatskelevich):
“Isso é novidade para mim. Não existe nada melhor?” Há também uma nota 54
Havia dois tapetes no assoalho. Stalin dormia com um cobertor do Exército. Além do uniforme
de marechal, seu vestuário consistia em um par de ternos de confecção barata, um deles de lona,
botas de feltro bordado e um sobretudo de couro de carneiro.
Recebi telegrama da professora Shirinskaya, da escola tártara. Ela precisa ser protegida da
aspereza desnecessária e dos excessos do secretário Ivanov do comitê distrital de Kadom, que
invadiu o apartamento dela com o pretexto de retirar um guarda-louças desnecessário do pai da
professora, privando-a da paz necessária para o trabalho e fazendo-a até pensar em se matar.
Por favor, atue imediatamente para garantir Shirinskaya contra tais violações e informe ao
Comitê Central sobre o resultado. 55
Pastas com tais assuntos eram-lhe diariamente entregues por Tovstukha, seu
assistente, se bem que, aos poucos, tais questões passassem a ser tratadas pela
secretaria. No final de sua vida, contudo, Stalin comprazia-se em lidar com
essas questões triviais, especialmente se tivessem relação com indicações para
funções ou com funcionários arrogantes, dissidentes ou teimosos.
Quanto mais sua influência crescia no partido e nas questões de Estado, mais
avidamente as pessoas levavam-lhe matérias para “sua atenção pessoal”. Por
que o comissário encarregado não resolvia o problema da convocação dos
motoristas de tratores ou da construção de novas casas? Um secretário não
poderia dar solução ao problema da desditosa professora? Mas o fato é que
Stalin acostumou-se à ideia de que as pessoas não podiam passar sem ele, que
tinha que fazer tudo.
Deve ter percebido que a centralização universal, emoldurada pelos ritos
burocráticos mais complexos, o estava transformando em prisioneiro do
sistema, e que isso poderia retardar ou até mesmo ser desastroso para a causa.
Para que serviam os comissários do povo, onde estava a flexibilidade deles?
Que faziam as incontáveis agências e escritórios para Toda a União? Ele sabia
muito bem, mas não queria que as coisas fossem diferentes. Se o governo de
um só é subdividido, deixa de ser de um só. Pouco a pouco, tudo convergiu
para depender de suas decisões; em certa medida, das decisões de seu
entourage.
Cinema e teatro foram as únicas incursões a que se permitiu em sua vida de
trabalho. Tornou-se um hábito, desde o fim dos anos 1920, assistir a um ou
dois filmes por semana, em geral, depois da meia-noite. Qualquer filme que
fosse comentado era exibido na tela do pequeno cinema do Kremlin ou na
sala da dacha. Certa vez ele disse a líderes do departamento de propaganda do
partido que “o cinema nada mais é que ilusão, mas suas leis são ditadas pela
vida”. Via no cinema um instrumento educacional, como, aliás, encarava a
arte em geral.
Pelas mãos da esposa, passou a frequentar o teatro. Foram vistos juntos, em
muitas ocasiões, nos teatros de Moscou e, depois da morte de Nadezhda, o
teatro passou a fazer parte integral de sua vida, em particular o Bolshoi.
Parece que assistiu a todas as suas produções várias vezes. Como A.I. Rybin,
um de seus seguranças e, mais tarde, gerente do Bolshoi, relatou-me, Stalin
assistiu ao Lago dos cisnes na véspera do derrame fatal, talvez pela vigésima
ou trigésima vez. Normalmente ia sozinho, sentando-se, depois que as luzes
do teatro eram diminuídas, num canto de trás de seu camarote. Às vezes, ia ao
ensaio geral e, depois da encenação, invariavelmente, cumprimentava
pessoalmente os bailarinos. O cinema e o teatro foram os únicos desvios
“líricos” em sua existência, a qual, por sua vez, era totalmente dedicada ao
alargamento de seu poder e influência pessoais mediante o sistema da tomada
de decisões.
Vida pessoal significa, acima de tudo, vida familiar. Nadezhda Sergeyevna
Alliluyeva era 22 anos mais nova que Stalin. Praticamente ao terminar o
ginásio tornou-se esposa do líder do partido. Os documentos, os relatos de
testemunhas, bem como as memórias da filha, Svetlana, concordam em que
ela tinha um temperamento bastante equilibrado. Na ocasião devida, filiou-se
ao partido, trabalhou no Comissariado das Nacionalidades e estudou. Foi
também uma das secretárias de plantão de Lenin, em Gorky. Quando foi
decidido mudar a capital de Petrogrado para Moscou, Stalin levou os pais da
esposa e todos passaram a residir juntos no pequeno apartamento do Kremlin.
Nadezhda logo habituou-se à atmosfera de consultas, reuniões, jornadas e
lutas intermináveis que faziam parte da vida do marido. Muitas das cartas,
telegramas, ordens e diretrizes encontradas entre os documentos de Stalin são
assinadas não apenas pelos secretários do líder, tais como Nazaretyan,
Tovstukha, Kanner, Mekhlis e Dvinsky, mas também por Nadezhda. Seus
grandes olhos de escolar perscrutaram avidamente o mundo do marido.
Percebeu que ele pertencia ao trabalho, e só a ele, porém, inicialmente, não se
deu conta do pouco tempo e pouco espaço que sobrariam para ela. Stalin não
necessitava de companhia. Quando o repreendia, o que era feito com
frequência, com a acusação “Você não se interessa pela família e pelas
crianças”, ele a interrompia asperamente, algumas vezes com palavras de
baixo calão. Em certa medida, Nadezhda encontrou consolo no trabalho, no
estudo e nos encontros com outras mulheres de líderes, como Polina
Semenovna Zhemchuzhina (esposa de Molotov), Dora Moiseyevna Khazan
(de Andreyev), Maria Markovna Kaganovich e Esfir Isayevna Gurvich
(segunda mulher de Bukharin). (Vale a pena ressaltar que, entre os líderes
bolcheviques de origem russa, muitos tinham esposas judias, o que pode ser,
pelo menos, parcialmente explicado pelo fato de que as judias intelectuais
foram relativamente numerosas e ativas no movimento revolucionário.)
Nasceram dois filhos do casamento de Stalin com Nadezhda: Vasili em 1922
e Svetlana em 1926. Foi então que Yakov, filho dele com a primeira esposa,
Yekaterina Svanidze, foi viver com eles. Era apenas sete anos mais jovem que
a madrasta, a qual, é claro, cuidou do rapaz, tão evidentemente carente de
amor paternal. Enquanto trabalhava, uma babá tomava conta das crianças.
Mas havia sempre muitos parentes em volta, fosse no apartamento do
Kremlin ou na dacha Zublovo. Além dos pais de Nadezhda, seus irmãos,
Fedor e Pavel eram também visitantes frequentes, bem como sua irmã, Anna,
e os de sua família. Vinham ainda os parentes da primeira esposa de Stalin.
Depois da morte de Nadezhda, em 1932, o barulho e a agitação foram
esmorecendo e, finalmente, cessaram de todo.
Stalin, claramente, não desejou tomar parte ativa na criação dos filhos, nem
era capaz de fazê-lo. Via-os muito raramente, talvez num domingo, quando
eles eram levados à dacha, ou no sul, em Sochi, Livadia ou Mukhalatka, onde
gostava de passar as férias, antes da guerra. Não é incomum os filhos de
pessoas famosas crescerem com problemas. Os filhos de Stalin pouco
conheciam o pai, e ele lhes dedicava tempo escasso. Segundo Svetlana, certa
vez Vasili revelou-lhe um “segredo” ao contar que “papai foi georgiano
quando jovem”.
O destino do filho mais velho, Yakov, foi o mais trágico. Sua relação com o
pai era muito ruim. Stalin achava, erradamente como se viu mais tarde, que
ele tinha caráter fraco. Não gostava da escolha de esposas que o filho fizera,
nem da primeira nem da segunda, Iyulia Isaakovna Meltser. Ele teve dois
filhos desses casamentos. Svetlana Allilueyva relembra que, desesperado pela
frieza com que o pai o tratava, Yakov tentou até se matar, mas a bala o
atravessou e ele sobreviveu, embora tenha ficado doente por muito tempo.
Quando Stalin o viu, depois dessa expressão extrema de alienação, saudou-o
com uma piada: “Hah! Errou a pontaria!”
Com a permissão do pai, Yakov completou os estudos no Instituto de
Engenharia Ferroviária de Moscou, trabalhou na usina geradora da Fábrica
Stalin e, então, declarou que queria se alistar no Exército. De acordo com as
ordens dos assistentes de Stalin, Yakov Djugashvili foi matriculado para as
sessões noturnas de instrução e, depois, transferido para o curso de quatro
anos de formação da Academia de Artilharia do Exército Vermelho.
Consultando a folha de serviços do tenente Ya.I. Djugashvili, pode-se ter uma
ideia do questionário que todos os oficiais tinham que responder quando
compilavam o próprio curriculum vitae . Para que se respire a atmosfera
psicológica daqueles tempos, bastam algumas das dezenas de perguntas
formuladas:
Você já foi membro da Direita Trotskysta, dos nacional-chauvinistas ou de outras organizações
contrarrevolucionárias, quando e onde?
Você já se desviou da linha geral do partido, ou teve alguma hesitação? Se hesitou, sobre quais
questões e quanto tempo a hesitação durou?
Yakov passou no teste, mas nem todos se deixaram convencer. Por exemplo,
Ivanov, Kobrya, Timofeev, Sheremetov e Novikov (as iniciais não aparecem
nos arquivos), oficiais da academia, assinaram a seguinte avaliação do filho
de Stalin:
Desenvolvimento político satisfatório. Disciplinado, porém não adquiriu conhecimento adequado
das regras militares referentes à atitude perante os oficiais superiores. Não teve instrução prática.
Pouco treinamento em tática de infantaria. Seus trabalhos acadêmicos deixam muito a desejar.
Conseguiu menções “satisfatório” e “bom” nos exames.
Era o nome que o próprio Stalin usara para assinar uma série de ordens
durante a guerra. Shelepin prosseguiu:
A despeito de sua falta de determinação, Vasili recusou-se veementemente a fazer isso. Foi para
casa e disse à filha que pensava em tornar-se gerente de uma piscina. Mas amigos logo o
trouxeram aos velhos dias. Um mês depois de sair da prisão, dirigindo um carro em estado de
embriaguez, envolveu-se num acidente. Xingando-o a não mais poder, Khruschev perguntou: “O
que devemos fazer? Se o prendermos de novo, morrerá, se não o fizermos, morrerá também.”
Foi decidido que Vasili deveria ser afastado. Kazan foi o local escolhido, e assim começou seu
“exílio”, acompanhado da esposa de então. Lá, num apartamento de um só cômodo, ele teve
tempo para revisar sua curta e exaltada vida. Lá também soube da notícia de que, em 31 de
outubro de 1961, o corpo de seu pai fora removido do Mausoléu [de Lenin]. A prisão, a doença, a
vodka e a maldade dos antigos “amigos” haviam-no transformado num completo inválido.
Recebi todas as suas cartas. Obrigado por elas! Não as respondi porque ando muito ocupado.
Como tem passado, como vai seu inglês, você está bem? Eu estou muito bem e alegre, como
sempre. Fico muito solitário sem você, mas o que posso fazer senão esperar. Mando um beijo
para minha pequena dona de casa.
Fui sentenciado por uma comissão especial sob a acusação de declarações antissoviéticas. Não
admiti isso na ocasião, nem admito agora. Fui condecorado com a Ordem de Lenin e a Ordem de
Stalin primeira classe. Trabalhei na produção dos filmes Ela defende a mãe-pátria , Kotovsky e Um
dia de guerra . Só admito minha falta de modéstia. Deixe-me ir para o front. Imploro-lhe.
Stalin solicitou a Beria um relatório sobre Kapler e lhe relataram: “Kapler tem
uma irmã na França. Conheceu os correspondentes americanos Shapiro e
Parker. Não admite sua culpa, mas foi desmascarado pelos relatórios da
agência. 16 de março de 1944.” Não é difícil adivinhar em qual dos dois
57
gradualmente deificou a violência sem consideração por sua base moral. Para
Stalin, os parâmetros morais da revolução e a construção de um novo mundo
nada mais eram que moralidade burguesa. Nem tinha ele a menor dúvida
sobre a correção de sua própria moral. Num livro do século XIX do
anarquista russo Bakunin, Stalin sublinhou a frase: “Não perca tempo
duvidando de si mesmo, porque este é o maior desperdício de tempo jamais
inventado pelo homem.” Talvez Bakunin pudesse se permitir tais
pensamentos, mas ele não era o secretário-geral de um grande partido.
Nota
* Disseram tratar-se de fotomontagem.
Parte IV
Ditadura ou ditador?
Oh, maldita lisonja, quão doce a caçada!
[17]
O destino do campo
E m 21 de dezembro de 1929, Stalin fez cinquenta anos. A glorificação
interminável, a genuflexão diante do altar por parte de uma multidão de
aduladores, adorando-o como concedente de todas as bênçãos, ainda não
começara. As pastas com milhares de mensagens com aleluias e dezenas de
milhares de congratulações, e os artigos de fundo, começando e terminando
com loas ao seu nome ainda estavam por vir.
Mas já uma boa metade da edição “de jubileu” do Pravda era devotada a
Stalin. Havia artigos de Kaganovich, “Stalin e o partido”, de Ordzhonikidze,
“Rochedo bolchevique”, de Kuibyshev, “Stalin e a industrialização do país”,
de Voroshilov, “Stalin e o Exército Vermelho”, de Kalinin, “O timoneiro do
bolchevismo”, de Mikoyan jogando com as palavras, “O soldado de aço do
partido bolchevique”, e por aí vai. Tinham sido lançadas as bases da
glorificação. O Comitê Central e a CCC enviaram parabéns ao “melhor
leninista”. As manchetes dos jornais proclamaram Stalin “o autêntico
continuador da causa de Marx e Lenin”, “o organizador e líder da
industrialização e do coletivismo socialista”, “o líder do partido do
proletariado”, e outras mais. As celebrações não poderiam ser mais oportunas
para fixar a atenção pública no homem que tinha lidado de forma tão decisiva
com a oposição, ou, como era então chamada, “o desvio”. A popularidade de
Stalin passou a crescer rapidamente. Já estava então patente, para quem tinha
olhos de ver, que, no quinquagésimo aniversário, ele denotava mais confiança
e autoridade.
Molotov e Kaganovich desejavam celebrações mais espetaculares. Stalin os
conteve, não por modéstia, mas pela recordação dos cinquenta anos de Lenin
em 1920. Por mais de uma vez, lembrou-se das palavras de Lenin a seu
respeito, especialmente quando tinha que fazer uma opção entre coisas
essenciais. Só é possível fazer uma escolha verdadeira quando se tem a
capacidade de assumir a posição daqueles que dependem da decisão. Stalin
não tinha tal capacidade, mas sabia exercer moderação, em particular no
início de sua ascensão. A memória do cinquentenário de Lenin o deixava em
desconforto. A data foi comemorada no comitê do partido em Moscou, se
bem que Lenin não esteve presente. Stalin quis dizer alguma coisa inusitada e
inesperada e escolheu logo a capacidade do líder em reconhecer os próprios
erros, alguns dos quais o secretário-geral passou a enumerar, concluindo
assim: “Algumas vezes o camarada Lenin admitiu seus enganos em matérias
de enorme importância. Ficamos particularmente cativados por sua
simplicidade. É tudo o que tenho a dizer, camaradas.” Pelos aplausos tépidos
da plateia ficou demonstrado o sentimento dos camaradas a respeito daquele
discurso de cinco minutos que não teve nada de comemorativo.
Por que Stalin escolheu marcar a ocasião mencionando os erros de Lenin?
Estaria querendo mostrar que não era marionete de ninguém, ou desejaria ser
diferente? Qualquer que fosse a verdade, a lembrança daquela noite o
incomodava. Quando o vice-chefe dos arquivos centrais do partido, V.
Adoratsky, solicitou-lhe permissão para incluir o discurso numa antologia a
ser chamada Sobre Lenin , Stalin não deixou. Escreveu no memorando de
Adoratsky: “O discurso foi taquigrafado bem no essencial, mas precisaria de
edição. Preferiria que você não o publicasse: não é de bom-tom falar sobre
enganos de Ilyich.” 1
escritos, fez uma avaliação significativa: “Podemos agora dizer que, para nós,
o simples crescimento das cooperativas é o equivalente […] ao crescimento
do socialismo. […] Com o cooperativismo a pleno vapor estaremos pisando
com os dois pés em solo socialista.” O plano de Lenin para as cooperativas
4
a. vocês exijam que os kulaks entreguem imediatamente seus excedentes a preços estatais;
b. se eles recusarem a submissão à lei, vocês os enquadrem no Artigo 107 do código criminal da
República Federativa Socialista Soviética Russa e confisquem o cereal para o Estado, 25% a
serem redistribuídos entre os camponeses pobres e os mais pobres dos remediados.
“Oh, não”, disse ele, “a política das fazendas coletivas foi uma luta terrível.” “Imaginei que o
senhor achasse muito ruim”, disse eu, “porque o senhor não estava tratando com alguns milhares
de aristocratas ou grandes proprietários, mas com milhões de pessoas pequenas”.
“Dez milhões”, replicou ele, levantando as mãos. “Foi assustador. Demorou quatro anos. Era
absolutamente necessário para a Rússia, para evitarmos fomes periódicas, para arar a terra com
tratores. Tínhamos que mecanizar nossa agricultura. Quando dávamos tratores aos camponeses,
eles estragavam em poucos meses. Só as fazendas coletivas com oficinas poderiam manter os
tratores. Tivemos muita dificuldade para explicar isso aos camponeses. Não adiantava
argumentar com eles. Depois que se dizia tudo a um camponês ele respondia que tinha que ir para
casa consultar a esposa e consultar o cão pastor.” Esta última era expressão nova para mim com
aquela acepção. “Depois das consultas, sua resposta era sempre que não queria fazenda coletiva e
que preferia ficar sem tratores.”
“Estes são os que o senhor chama de kulaks ?”
“Sim”, respondeu, mas não repetiu a palavra. Depois de uma pausa: “Tudo foi muito ruim e
difícil – mas necessário.”
“Que aconteceu?”
“Oh, bem”, disse, “muitos deles concordaram em se juntar a nós. Alguns receberam terras
próprias para cultivar na província de Tomsk, ou na província de Irkutsk, ou mais para o norte
ainda, mas a maior parte deles era muito impopular e acabou liquidada por seus trabalhadores.” 12
Por vezes se diz que o movimento das fazendas coletivas está em oposição ao movimento
cooperativista, como se a coletivização fosse uma coisa e o cooperativismo outra. É claro que
isso não está correto. Alguns vão ainda mais longe e insinuam que as fazendas coletivas
contradizem o plano de Lenin para as cooperativas. Nem é preciso dizer que tal contradição
realmente não existe. 16
[18]
O drama de Bukharin
N enhum retrato político de Stalin estaria completo se não lançássemos
também luz sobre seu entourage, seus camaradas em armas, os incondicionais
da tolerância, o pessoal do sim e seus oponentes. Outro lado do caráter de
Stalin é revelado no drama de Bukharin, que se desenrolou nos anos 1920
com o ato final da tragédia ocorrendo na década de 1930.
Stalin e Bukharin tiveram longa e estreita ligação que parecia ser para sempre.
A partir de 1927, por insistência de Stalin, Bukharin mudou-se para o Kremlin
e, depois da morte da esposa, Stalin chegou mesmo a trocar de apartamento
com Bukharin porque o secretário-geral, segundo sua própria explicação,
queria escapar das recordações daquela noite fatídica. Nikolai Ivanovich
Bukharin, uma pessoa sensível, cultivava os sentimentos de amizade,
decência e sinceridade em suas relações. Os dois dirigiam-se um ao outro pelo
tratamento familiar de “ty”. Stalin chamava Bukharin de “Nikolai” e
Bukharin sempre tratava o secretário-geral pelo seu antigo apelido de
revolucionário, “Koba”. No período de 1924 a 1928, Stalin ouviu com
atenção os pontos de vista de Bukharin, asseverando frequentemente em
público “que Lenin tinha em altíssima conta aquela mente teórica superior” e
que o partido reverenciava suas qualidades inatas. Bukharin encarava a
amizade como algo de valor espiritual, até sagrado, e não a desprezaria como
fez Stalin em abril de 1929, num pleno do comitê central e da CCC.
Stalin abriu seu discurso naquela reunião referindo-se exatamente a sua
amizade com Bukharin:
Camaradas, não vou tratar de assuntos pessoais, muito embora o elemento pessoal desempenhe
papel impressionante nos discursos de alguns do grupo do camarada Bukharin. Não o farei
porque o elemento pessoal é trivial e não vale a pena perder tempo com insignificâncias.
Bukharin falou sobre nossa correspondência pessoal. Leu diversas cartas nas quais fica claro que,
ontem, éramos amigos, mas que agora nos distanciamos politicamente. Acho que todas essas
queixas e lamúrias não valem um tostão furado. Não constituímos um círculo familiar ou uma
côterie de amigos do peito, somos o partido político da classe trabalhadora. 20
A NEP significa menos pressão, mais liberdade nas trocas, porque a liberdade não é mais uma
ameaça para nós. Significa menos reação administrativa e mais luta econômica, maior
desenvolvimento nas trocas econômicas. Significa lutar contra o empreendedor privado, não
pisoteando-o ou fechando sua loja, mas tentando produzir bens nós mesmos e vendê-los mais
baratos, melhores e de mais alta qualidade. 23
Stalin achou que o alvo daquelas palavras era ele. Afinal de contas, em todas
as palestras que proferiu sobre as fundações do leninismo na Universidade
Sverdlov falara como intérprete dos ensinamentos de Lenin. E, de qualquer
forma, que história era aquela da não existência de autoridade unitária? O que
dizer da autoridade do secretário-geral? Stalin ficou também inquieto com a
quantidade de seguidores de Bukharin, entre os quais Astrov, Slepkov,
Maretsky, Tseitlin, Zaitsev, Goldenburg e Petrovsky, que começavam a se
destacar na imprensa, nas universidades e no aparato do partido. Slepkov e
Astrov tinham se tornado editores do Bolshevik , Maretsky e Tseitlin
trabalhavam no Pravda , Zaitsev estava na comissão central de controle, a
CCC, e assim por diante. Stalin temeu que a influência política e ideológica
de Bukharin crescesse demais no partido e no país.
Outro motivo residia no caráter arbitrário e obstinado do secretário-geral. A
coletivização – isto é, a revolução real no campo executada pela força vinda
de cima – começara vitoriosamente no conjunto, melhor, pelo menos, do que
Bukharin imaginara. Pelos relatórios recebidos, Stalin se convenceu de que,
exercida a medida apropriada de pressão, as expectativas preliminares
poderiam ser radicalmente aumentadas. De qualquer forma, acreditava que
aquela política resolveria rapidamente a crise dos cereais.
Mas a crise se aprofundou. Stalin disse repetidas vezes ao círculo mais
íntimo: “Sem uma ruptura decisiva no campo, não teremos pão.” Molotov e
Kaganovich concordaram avidamente com ele. Stalin, aos poucos, se
convenceu de que o cronograma para a reestruturação da economia agrária
deveria ser encurtado duas ou três vezes. Então, quando a pressão provocou
uma resistência amortecida, porém alastrada, dos camponeses, em especial
dos kulaks , ele subitamente viu, num lampejo de “gênio”, que a solução
estava em apressar a “liquidação da classe”, por métodos puramente
administrativos e políticos.
As discussões no Politburo sobre esta questão se tornaram mais acaloradas.
Stalin recebeu o apoio de Molotov, Kaganovich e Voroshilov, enquanto
Bukharin tinha Rykov e Tomsky ao seu lado. Os aliados de Bukharin eram
também favoráveis à coletivização e à “ofensiva contra os kulaks”, mas sem
expropriações ou repressão. Acreditavam que, no final, o método econômico
de pressão surtiria efeito. Kalinin, Rudzutak, Mikoyan e Kuibyshev estavam
indecisos. Se entendessem melhor a situação, teriam dado o apoio a Bukharin,
e tudo poderia ter sido bem diferente. Afinal, o próprio Bukharin não era
contra a industrialização nem contra a coletivização: era, sim, contra o
emprego da força no cumprimento dessas tarefas históricas. E como vidas
humanas estavam em jogo, não se tratava de questão trivial. Na opinião de
Bukharin, todas as transformações, no fim, deveriam servir à humanidade e
ao socialismo, e não o caminho inverso. A consciência moral dos membros do
Politburo que decidiam sobre a linha de ação ótima, não necessariamente a
mais radical, não era, infelizmente, tão refinada quanto a de Bukharin. E,
assim, perdeu-se outra oportunidade de agir com consciência. Até mesmo
Trotsky, que olhava o conflito de fora, disse a seus seguidores que “a direita
pode derrubar Stalin”, levando em conta que tinha em suas fileiras os chefes
de governo, os sindicatos e a liderança intelectual. Parecia haver uma chance.
Todavia, o equilíbrio instável não durou muito, embora tivesse parecido por
um breve momento que a linha moderada de Bukharin fosse prevalecer.
Àquela altura, Stalin já era um mestre imbatível na condução dos casos à sua
maneira.
Rykov, sucessor de Lenin como presidente do Conselho de Comissários do
Povo, e Tomsky, líder praticamente perpétuo dos sindicatos, não encaravam
Stalin como líder inconteste, porém deram apoio a Bukharin por convicção,
não por motivos pessoais. Stalin não conseguira influenciar sua opinião.
Pyatakov certa vez chamou Rykov e Tomsky de “nepistas convictos” com
alguma razão. O problema foi que a batalha contra Stalin se desenrolou a
portas fechadas e num círculo restrito. Além do mais, o risco que Bukharin e
seus seguidores corriam de ser considerados facciosos não era desprezível.
Por mais que Bukharin estivesse convencido da natureza desastrosa da
política de Stalin, não conseguiu criar uma base mais ampla de apoio entre os
que não aceitavam a repressão, a ditadura ou as medidas “extraordinárias”.
Tentou voltar a ter um diálogo pacífico com Stalin, mas o secretário-geral só
aceitava a rendição completa. O líder em desgraça entrou em agonia:
“Algumas vezes fico pensando à noite: temos o direito de continuar
silenciosos? Não é falta de coragem?” Mas não ousou esbravejar.
26
Stalin não gostou de não ver na declaração menção específica ao fato de ele
estar certo, mas não tinha importância. Bukharin estava acabado.
É muito pouco provável que, por aquela ocasião, muitas pessoas fossem
capazes de antever o que o futuro reservava para Bukharin, ou mesmo apenas
de prever a derrota, de um modo geral, daquela ala moderada da liderança do
partido. Por outro lado, os críticos e analistas de fora da União Soviética
foram um pouco mais perspicazes. Em abril de 1931, saiu um artigo na edição
do jornal menchevique Sotsialischeskii Vestnik ** com os resultados da Nova
Política Econômica, no qual se dizia que Stalin fazia o máximo para
“destroçar qualquer sonho de um retorno à NEP e para acabar com qualquer
sonho de evolução”.
O secretário-geral tentou várias vezes submeter os comunistas de direita, mas, devido a uma série
de razões internas, a punição não foi levada ao extremo, e o fim violento de Rykov, Tomsky e
Bukharin foi adiado. O processo de expeli-los tanto do aparato como do partido ainda não se
completou. Os defensores da NEP, que são sensíveis às necessidades dos camponeses (embora
psicologicamente incapazes de romper com a ideia da ditadura), já foram destituídos de seus
cargos, mas ainda não foram declarados inimigos do povo. A ditadura já os está encarando e logo
tratará deles. 31
[19]
Ditadura e democracia
N o início dos anos 1930, ficou claro para os que tinham capacidade de
perceber que as palavras de Lenin – “O aparato não nos pertence, nós
pertencemos a ele” – tornaram-se realidade. A ditadura da burocracia, a
32
burocracia coletiva, nascera. E ela, gradualmente, gerou uma elite, toda uma
hierarquia de chefes. O governo por decretos passou a ser o principal meio de
inter-relacionamento social. Tudo era decidido dentro dos gabinetes.
Reuniões, sessões, congressos e plenários meramente “aprovavam” ou
“davam apoio”. O poder do povo nada mais era que uma expressão vazia. As
engrenagens da máquina burocrática não se movimentavam com rapidez, mas
eram inexoráveis. Stalin manejava o principal painel de controle, observando
o produto de sua inspiração através das janelas do Kremlin. A mudança para o
socialismo fora deformada em mudança para o stalinismo.
Stalin jamais entendeu, ou quis entender, a essência da democracia proletária,
o próprio significado de poder do povo. Em seus arquivos, podemos ver que a
democracia para ele nada mais era que liberdade para dar apoio – e apenas dar
apoio – às decisões do partido. E como Stalin acreditava que personificava o
partido, a democracia autêntica consistia em aprovar suas argumentações,
suas deliberações, suas intenções. Nem todos logo se deram conta de que, ao
lidar com Trotsky, Zinoviev, Kamenev e com outros que pensavam de forma
diversa, Stalin não fazia menção às diferenças em relação a si, e sim ao
afastamento do leninismo. A identificação de suas próprias opiniões e atitudes
com as de Lenin foi um dos instrumentos mais inteligentes utilizados por
Stalin. Nem todos tiveram de imediato a percepção de que, graças a essa
estratégia, ninguém parecia ter razão quando discutia com ele. Para que isso
acontecesse, era preciso que, primeiro, Lenin fosse destronado.
Ademais, Stalin também conseguia apresentar seus erros sobre a questão
nacional, sua atitude negativa a respeito da continuação da NEP, sua falsa
concepção de luta de classes, seu entendimento deturpado sobre a essência da
coletivização e seu exagero sobre o papel do aparato como se fossem
interpretações corretas do leninismo. Certa vez, durante o embate que
travaram antes da expulsão de Bukharin do Politburo, Stalin trocou com ele as
seguintes palavras:
Stalin, irado: “Vocês são um bando de não marxistas, uns curandeiros, charlatões. Nenhum de
vocês entendeu Lenin!”
Stalin: “Repito, você não entendeu Lenin. Já se esqueceu das tantas vezes que o atacou por
esquerdismo, oportunismo e desorganização?”
Com quase as mesmas palavras, Stalin iria coagir Bukharin no pleno de abril
de 1929 do comitê central e da CCC. A fonte de muita infelicidade futura
pode ser encontrada na usurpação que Stalin procedeu da interpretação de
Lenin, e ninguém se mostrou capaz de revelar a profunda impropriedade do
pleito dogmático do secretário-geral pela exclusividade nesse papel.
No pleno de janeiro de 1933, ao sintetizar os resultados do Primeiro Plano
Quinquenal, Stalin incluiu uma seção especial sobre as tarefas e o efeito da
luta contra “os remanescentes das classes hostis”. A despeito de dizer
“remanescentes”, conclamou uma “luta implacável contra eles”. E nenhuma
palavra quanto à reeducação ou quanto à possibilidade de que “ex-pessoas” e
suas famílias fossem levadas para o novo estilo de vida, o que talvez ajudasse
mais efetivamente a mudança de suas visões e de seus “instintos de classe”.
Ao descrever o cenário social, ele disse:
Os remanescentes das classes moribundas – industriais e seus serventes, negociantes privados e
seus títeres, ex-nobres e ex-párocos, kulaks e seus lacaios, ex-oficiais e ex-soldados Brancos,
milícias e policiais – infiltraram-se em nossas fábricas, nossas instituições e agências, nossas
ferrovias e empresas de transporte fluvial e na maior parte de nossas fazendas estatais e coletivas.
Esgueiraram-se e lá estão escondidos, disfarçados de “operários” e “camponeses”, e alguns
chegaram a se infiltrar até mesmo no partido.
O que trouxeram consigo? É claro que trouxeram o ódio contra o regime soviético, seus
sentimentos de hostilidade feroz às novas formas de economia, modo de vida, cultura. […] Só
lhes resta fazer o jogo sujo e prejudicar os operários e os agricultores coletivos. E o fazem da
maneira que podem, na surdina. Incendeiam depósitos e quebram máquinas, e alguns deles,
inclusive professores, vão tão longe em sua atividade destruidora que injetam vírus da peste e
antrax no gado de nossas fazendas coletivas e estatais, e forçam o alastramento da meningite em
nossos cavalos, e assim por diante. 33
ditadura do proletariado.
Stalin fez muitos discursos assim no fim dos anos 1920 e início de 1930.
Começou a se formar, gradualmente, um estado de espírito na população que,
ao lado do zelo revolucionário, do entusiasmo e do otimismo coletivo,
mostrava os primeiros indícios de suspeita, desconfiança em relação a
concidadãos e propensão para acreditar nos mitos mais grotescos sobre
“inimigos do povo”. A insanidade absoluta de 1937-38 não teria ocorrido se a
população não viesse sendo preparada por muito tempo. Milhões de pessoas,
vivendo, de fato, num Estado cercado pelo mundo capitalista, foram se
acostumando aos poucos à ideia de que entre seus amigos, concidadãos e
colegas de trabalho, na universidade, na unidade do exército ou no grupo
cultural, escondiam-se inimigos que só esperavam a hora. Uma convocação,
um slogan, uma diretriz seriam capazes de aprestar muitas delas para
“esmagar os últimos remanescentes do capitalismo”. Dali para o terror era só
um passo ou, no mínimo, para a predisposição a desencadeá-lo. De sua parte,
Stalin acreditava que o uso da violência era elemento orgânico da construção
pacífica do socialismo. “A repressão”, disse no XVI Congresso do partido em
1930, “é um elemento necessário para o progresso”. Stalin não podia 35
“O pessoal quase não vale nada…” e o que pertence a todos não pertence a
ninguém. O senso de propriedade simplesmente se evaporou quando o
igualitarismo foi imposto. Um trabalhador não poderia receber milhares por
uma invenção, mesmo que ela desse lucro de milhões, porque seria “demais”
para uma pessoa. Paulatinamente, surgiu um tipo de trabalhador receoso da
“sobrecarga” de trabalho, que encarava com naturalidade folhas falsas de
serviço e roubos à luz do dia. “Ora, o Estado não vai sentir falta disto”,
raciocinaria ele. “O pessoal quase não vale nada…” E era a “democracia” de
Stalin que sustentava tal tipo de atitude. As pessoas, quase sempre, se
motivavam pela necessidade, pelo medo e por outras alavancas do sistema em
cujo vértice se postava o autocrata.
Stalin não proferia discursos contra a democracia, porque o seu entendimento
de democracia era o de um déspota. Afinal de contas, existiram imperadores
romanos que não tiveram pejo em criar parlamentos obedientes com os
atributos apropriados, tais como eleições, juramentos e representações
formais. A democracia, como expressão do poder socialista do povo, era
aceitável por Stalin, desde que reforçasse sua ditadura pessoal. Numa
conversa com H.G. Wells, o secretário-geral colocou o poder no centro de seu
raciocínio como “uma alavanca da mudança”, alavanca da nova legalidade e
da nova ordem. Nada ele amava mais que o poder, o poder completo,
ilimitado, consagrado pelo “amor” das multidões. E nisso foi bem-sucedido.
Nenhum outro homem no mundo jamais conseguiu um sucesso tão fantástico:
exterminar milhões de seus próprios concidadãos e receber em troca a
adulação cega de todo o país. Não obstante, isso fazia parte do entendimento
stalinista da relação entre ditadura e democracia.
Com o correr do tempo, a noção de “sacrifício”, ou de “custo”, tornou-se para
Stalin um dos atributos essenciais do socialismo. Quando um novo projeto foi
formulado para a Sibéria Setentrional, a “ordem de planejamento” incluiu um
elemento para cobrir as “perdas naturais”. A NKVD chegou a prever
“dotações” para as regiões, reservas especiais de trabalho forçado para os
“locais socialistas”. A partir do fim dos anos 1920, não havia escassez do
barato trabalho escravo. Todas as iniciativas para o emprego de prisioneiros
encontravam apoio em Stalin. Bastava que resmungasse para um assistente,
ou que rabiscasse “de acordo” no documento, para que a proposta de uma
agência referente à utilização de centenas ou milhares de “inimigos”, numa
região ou noutra, ganhasse aprovação oficial.
Dando um salto à frente, seria interessante frisar que, em suas notas para
Stalin, Beria frequentemente afirmava que as tarefas de construção da NKVD
eram tão grandes que os “recursos humanos” se mostravam inadequados. 36
Stalin: As decisões tomadas por uma só pessoa são sempre, ou quase sempre, decisões
unilaterais. Em qualquer coletividade, há pessoas cujas opiniões têm que ser levadas em conta.
Nossos operários jamais tolerariam o mando de um homem só sob quaisquer circunstâncias.
Stalin: Seus principais métodos abarcam a campana, a espionagem, a infiltração na mente das
pessoas, o escárnio – que há de bom nisso?
Ludwig: O senhor esteve constantemente em risco e correndo perigo. Foi perseguido, tomou
parte em batalhas. Alguns de seus amigos mais próximos morreram. O senhor ainda está vivo. O
senhor acredita em destino?
Stalin: Não, não acredito. Isso é apenas bobagem supersticiosa e uma ressaca da mitologia. Outro
poderia estar em meu lugar, e deveria mesmo estar. […] Não acredito em misticismo. 38
Dizer uma coisa e fazer outra passou a ser norma para Stalin: condenar o
culto à liderança enquanto o reforçava, criticar as práticas jesuítas ao mesmo
tempo em que as encorajava na vida soviética, falar sobre liderança coletiva
ao passo que a reduzia ao mando de um só homem. A deificação dos
autocratas normalmente é feita com base na falsidade.
No início da década de 1930, Stalin interrompeu por completo suas raras
visitas às províncias, fábricas e unidades do exército. Por um lado, seu
conhecimento era diminuto sobre a produção e não desejava imiscuir-se com
assuntos terrenos tais como tecnologia, rendimentos, produtividade etc. Por
outro lado, vivia assaltado pela sensação permanente de que se engendrava
um atentado contra sua vida. Afinal de contas, inimigos não faltavam, e
Trotsky, ou qualquer outra das “ex-pessoas”, poderia chegar a extremos. Seus
órgãos de segurança não paravam de alertá-lo. Por exemplo, Ulrikh informou:
Em 16 de dezembro [1935], depois de duas semanas de investigação feita a portas fechadas pelo
collegium militar da Suprema Corte da URSS, foi sentenciado um grupo de espiões e terroristas
que planejava um ato terrorista [ terakt ] na Praça Vermelha, em 7 de novembro de 1935, sob as
ordens de um cidadão alemão. Foram condenados à pena de morte G.I. Sher, V.G. Freiman, S.M.
Pevzner, V.O. Levinsky… 39
Stalin não precisava continuar lendo. “Estão atrás de mim”, pensou. Mas não
conseguiriam, seriam todos desentocados.
Stalin raramente fazia aparições públicas porque, segundo sua natureza sutil,
sabia que quanto menos fosse visto pelo povo, mais fácil seria cultivar a
espécie de imagem que queria projetar. O enigmático, o misterioso e o
fechado guardavam equivalência com o sagrado, o lendário e o sobre-
humano. Portanto, em vez de visitar fábricas, ele estudava cuidadosamente os
documentos, assistia com regularidade aos noticiários do cinema, ouvia
numerosos relatórios e punha-se de pé por longos períodos de tempo,
cogitando diante de mapas.
Ele gostava de olhar mapas e examinar seu vasto país como um soberano.
Isso, mesmo de forma inadequada, dava-lhe uma ideia da maneira com que
milhões de pessoas laboravam para dar vida aos seus decretos. Podia correr
com o dedo sobre a Transiberiana, ou localizar Magnitogorsk, a represa
hidrelétrica do Dnieper, o canal ligando o mar Branco ao Báltico, a bacia
produtora de carvão de Kuznets, e deixava os olhos correrem até as regiões de
Kolyma, mas, para tanto, tinha que dar diversos passos diante do mapa.
Depois de um desses rotineiros exames do território russo, subitamente,
telefonou a Voroshilov e perguntou se o Exército Vermelho estudava
geografia. Os militares conheciam bem a geografia de seu próprio país? Na
sua cabeça, o simples olhar num mapa para a mãe-pátria provocaria orgulho,
bem como dedicação à causa e à ideia. Voroshilov, que não estava preparado
para aquela pergunta, deu uma resposta um tanto desencontrada e prometeu
investigar. No dia seguinte, o departamento de política do Soviete Militar
Revolucionário preparou um memorando que Voroshilov transmitiu a Stalin
como se segue:
Em resposta à sua indagação sobre o estudo da geografia no Exército Vermelho, posso informar
que a geografia é obrigatoriamente estudada por todos os integrantes do Exército Vermelho em
programas especiais. Além do estudo de geografia como parte do programa de instrução geral,
ela é também ministrada nos cursos políticos. Atenção especial é dada ao estudo de mapas.
No corrente ano, o departamento político do Revvoensoviet distribuiu 220 mil mapas, 10 mil
atlas, 8 mil mapas nas línguas nacionais das repúblicas e 10 mil globos, que foram se juntar ao
material já existente nas unidades. 40
Stalin leu satisfeito o relatório e olhou de sua cadeira para o mapa na parede:
enquanto a distância permitiu, pôde distinguir as localidades de Stalingrado,
Stalino, Stalinsk, Stalinabad.
Logo depois da morte de Lenin, cresceu a prática duvidosa de dar o nome de
figuras do Estado e do partido a cidades e regiões, fábricas, institutos
educacionais, teatros, e assim por diante. Tornou-se norma os jornais
publicarem relatórios sobre a consecução das metas do plano trimestral da
Fábrica Stalin de Produtos Químicos, de Moscou, da Tecelagem Voroshilov,
em Tver, das Fábricas de Papel Zinoviev Nº 1 e Nº 2, em Leningrado, da
Fábrica de Vidros Bukharin, em Gus-Khrustalnyi, e outras. No fim dos anos
1920 não havia, praticamente, distrito em que o nome de Stalin não fosse
adotado por um ou outro corpo administrativo, cultural ou de produção. Deste
modo, o povo ficava subliminalmente imbuído da ideia de que Stalin
desempenhava papel excepcional no destino da nação. A glorificação do líder
podia ser ouvida em qualquer relatório ou discurso corriqueiro, e o “líder”
local providenciava para que parcela dessa glória se refletisse sobre ele.
Juramentos de devoção transformaram-se em partes inevitáveis da vida social
ao tempo de Stalin e, sendo de importância tão vital para os que os proferiam,
sobreviveram por décadas após sua morte. O processo fazia mais que deificar
o líder, também insultava toda a população, já que, embora criadora de tudo o
que existia no país, era forçada a se colocar na posição de agradecida. A
impressão que, inevitavelmente, ficava era que, tendo desistido da crença de
Deus no céu, o povo o recriava na terra.
E era de fato um ato de criação. As vozes mais elevadas e mais exaltadas na
glorificação eram as de Molotov, Voroshilov e Kaganovich, e, por mais
paradoxal que pareça, também as de Zinoviev, Kamenev, Bukharin e alguns
outros velhos bolcheviques em desgraça. Os artigos e discursos de Zinoviev,
penitenciando-se por pecados passados e louvando a “perspicácia e a
sabedoria do líder do partido, camarada Stalin”, incomodam um pouco
quando lidos. Nem Bukharin conseguiu evitar algumas observações
lisonjeiras. Teriam eles perdido realmente a fé na causa pela qual lutaram, ou
o senso de autossobrevivência tomara conta de seus sentidos?
Em paralelo com a glorificação na literatura oficial, começou um quase
imperceptível processo de revisão da história e de criação da noção de que
teriam havido dois líderes na Revolução de Outubro, Lenin e o onipresente
Stalin, que estava sempre ao seu lado. No prefácio da coleção em seis
volumes das obras de Lenin, seu editor, Adoratsky, anotou que os escritos de
Lenin deveriam ser lidos em conjunto com os de Stalin, porque o secretário-
geral havia exposto de maneira concentrada as ideias de Lenin no seu livro
Fundamentos do leninismo , e por aí seguiu seu raciocínio.
Em agosto de 1931, antes que o culto à personalidade atingisse o zênite,
foram feitas tentativas para imortalizar Stalin em biografias políticas. Existe
uma carta no arquivo de Stalin escrita por Yaroslavsky, que diz o seguinte:
“Hoje, antes de partir, Sergo [Ordzhonikidze] telefonou-me para dizer que
falara com você sobre um livro chamado Stalin que ele deseja escrever…” As
habituais anotações a lápis na carta registram: “Camarada Yaroslavsky, sou
contra. Acho que ainda não chegou a hora das biografias.” 41
Magnitogorsk relatou:
Uma espécie completamente nova de equipe emergiu na seção de construção da oficina de alto-
fornos – uma equipe de escavação totalmente autofinanciada. A mudança para essa escavação
autofinanciada deu excelentes resultados, pois foram batidos recordes mundiais no carregamento
de caminhões.
Da Tartária:
A colheita e a distribuição de grãos vêm sendo procedidas concomitantemente com o anúncio da
preparação do segundo congresso de Kolkhozniks de Toda a Tartária e da conquista do direito de
incluir um representante local na delegação que levará o relatório ao camarada Stalin. Ocupar o
primeiro lugar no placar de Toda a União é o slogan mais popular no kolkhozy da Tartária.
Tudo isso pode parecer a fé ingênua e de olhos radiantes em Stalin, por parte
de milhões de pessoas simples que construíram as bases do que temos hoje.
No entanto, não se pode deixar de admirar o indomável entusiasmo, o orgulho
pelas conquistas e a certeza de que o futuro estava em suas mãos. A força sem
paralelo do esforço heroico, o alto nível de espírito cívico e a fé na justiça e
num futuro melhor, mesmo mesclados com o culto à personalidade, derivaram
da gigantesca energia social liberada por Outubro de 1917. Aquela gente,
aqueles criadores, normalmente descritos por Stalin como “as massas”, por
vezes como “as engrenagens”, são parte da história soviética que não deve ser
esquecida.
Ao mesmo tempo, os jornais publicavam matérias que hoje, com o que
sabemos, provocam calafrio. Em meados de julho de 1933, o Pravda disse
que “os camaradas Stalin e Voroshilov chegaram a Leningrado e, na
companhia do camarada Kirov, foram no mesmo dia visitar o canal mar
Branco-mar Báltico. Depois de inspecionarem as obras do canal e as
instalações de hidroengenharia, navegaram pelo mar Branco do porto de
Soroka até Murmansk”. Duas semanas mais tarde, o governo anunciou a
abertura do Canal Stalin mar Branco-mar Báltico e a condecoração dos que se
destacaram na construção. Foram agraciadas oito pessoas com a Ordem de
Lenin: G.G. Yagoda, subchefe da OGPU; L.I. Kogan, chefe do projeto do
Canal do mar Branco; M.D. Berman, chefe do soviete de campos corretivos
de trabalhos forçados da OGPU; N.A. Frenkel, vice-chefe do projeto; Ya.D.
Rapoport, vice-chefe do projeto; S.G. Firin, chefe do campo corretivo de
trabalhos forçados dos mares Branco-Báltico; S.Ya. Zhuk, vice-chefe
engenheiro do projeto; e K.A. Verzhbitsky, vice-chefe da construção. 43
Falando mais tarde ao XVII Congresso, Kirov diria: “Construir esse canal, em
tão pouco tempo e naquele local, foi realmente trabalho heroico, e temos que
creditá-lo aos nossos chekistas que supervisionaram a obra e, literalmente,
fizeram milagres.” Teria sido mais correto dizer que o milagre foi feito por
44
Por sua brilhante aplicação da dialética de Marx-Lenin [ sic ], Stalin estava inteiramente certo
quando destroçou toda uma série de premissas teóricas do desvio de direita, formuladas
sobretudo por mim. […] É dever de todo membro do partido congregar-se em torno do camarada
Stalin como incorporação pessoal da mente e da vontade do partido, como seu líder, teórico e
prático. 48
E este fora o homem que sempre primara pela franqueza, por ser incorruptível
e por ter grande coragem cívica.
Tomsky, líder dos sindicatos:
É meu dever declarar diante do partido que só pelo fato de o camarada Stalin ser o mais coerente
e o mais brilhante dos pupilos de Lenin, só por ser o camarada Stalin o mais perspicaz e o de
melhor visão, e porque ele conduziu firmemente o partido pelo correto caminho leninista,
esmagando-nos com punho forte, já que melhor equipado, teórica e praticamente, para a luta
contra a oposição – só por causa disso foram disparados ataques contra o camarada Stalin. 50
Bela Kun ** e outras figuras estrangeiras do Comintern declararem que ele era
agora o líder não só dos bolcheviques, mas de todo o proletariado mundial.
Foi no último dia do congresso que Stalin, subitamente, sentiu a fragilidade e
a qualidade transitória de tudo na vida. Os eventos decorriam suavemente, e
tudo parecia dentro da normalidade, seja na escolha dos membros do comitê
central e dos novos órgãos do partido e do controle soviético, seja pela
nomeação do Politburo, embora tudo isso tivesse sido “acertado” de antemão.
A celebração triunfal do líder parecia caminhar sem esforço para sua
conclusão prefixada. A comissão de auditoria estava fechando seu trabalho
quando ocorreu o inesperado. Kaganovich e o presidente da comissão,
Zatonsky, ambos muito ansiosos e alarmados, vieram correndo se encontrar
com Stalin.
A.I. Mikoyan, candidato a membro e depois membro pleno do Politburo de
1926 a 1966, descreveu com detalhes o trabalho do congresso em suas
memórias, e diversas outras figuras registraram de forma semelhante aqueles
acontecimentos. Em A história do PCUS (em russo), publicado em 1962, há
uma nota relatando que “a situação anormal surgida dentro do partido causou
alarme a uma seção dos comunistas, em particular entre os antigos grupos
leninistas. Muitos, especialmente os que estavam familiarizados com o
Testamento de Lenin, sentiram que chegara a hora de deslocar Stalin do cargo
de secretário-geral para outra função qualquer”. Segundo Mikoyan (que fora
informado pelos velhos bolcheviques A. Snegov, O. Shatunovskaya e N.
Andreasyan, um membro da comissão de auditoria), Kaganovich participou
nervosamente a Stalin o inesperado resultado da votação: dos 1.225
delegados, três votaram contra Kirov e perto de trezentos, quase um quarto,
votaram contra Stalin. Era inacreditável!
Ninguém pode agora dizer exatamente qual a reação de Stalin às notícias,
porém, de acordo com Mikoyan, foi tomada rapidamente a decisão de se
deixar apenas três votos contra Stalin, de se continuar com os três votos
contra Kirov e de se destruir todas as outras cédulas de votação. A prática de
então consistia na distribuição de tantas cédulas quantos fossem os postos a
preencher, cada cédula com um só nome; em outras palavras, tratava-se de
uma eleição sem escolha, onde era necessária apenas a maioria simples.
Mesmo que os trezentos votos contrários fossem computados, Stalin ainda
seria eleito para o comitê central e, sem dúvida, continuaria como secretário-
geral. *** Mas pareceu impossível avaliar naquela ocasião os efeitos políticos
que a publicação dos resultados poderia provocar. Todos veriam de imediato
que a grandeza de Stalin era efêmera – que o rei estava nu.
Segundo os mesmos relatos, um grupo de velhos bolcheviques, conhecedor
do resultado, procurou Kirov e propôs que ele anuísse em ser colocado como
secretário-geral. Kirov recusou e, aparentemente, informou Stalin do que se
passara. Malgrado sua natureza dramática e sua falta de precisão, a história é
bem plausível. Em primeiro lugar, existiam muitos antigos oposicionistas
entre os delegados que tinham se voltado contra a personalidade de Stalin.
Depois, existiam muitos que tinham experimentado pela primeira vez a
rudeza descuidada de Stalin e seu modo ditatorial. Contudo, a posição dentro
do partido era tal que ninguém ousava criticar Stalin ostensivamente, muito
menos propor sua remoção para outro cargo. A oportunidade de dar expressão
à consciência apresentou-se, no entanto, sob a forma de votação secreta. Se a
acusação feita por Mikoyan vier um dia a ser consubstanciada, explicará mais
completamente a mudança de atitude de Stalin em relação a Kirov que, aos
olhos do secretário-geral, passou a ser um verdadeiro rival. Noutro capítulo,
testemunharemos o destino trágico que se abateu sobre a esmagadora maioria
dos delegados no Congresso dos Vitoriosos, isso porque, depois daquela
votação, Stalin passou a ver em cada um deles um inimigo potencial.
Notas
* Conhecida como La Pasionaria , a líder dos comunistas na Guerra Civil Espanhola refugiou-se na
URSS de 1938 a 1977 e morreu na Espanha em 1989.
** Líder comunista da fracassada revolução soviética húngara. Refugiado na URSS desde 1920, ele
tomou parte na guerra civil, assumiu postos soviéticos e foi figura destacada no Comintern. Foi preso
como trotskysta em 1938 e morreu num campo de prisioneiros em 1939.
*** Depois desse congresso, o secretário-geral não mais se apresentou candidato à reeleição. Aliás, para
o fim de sua vida, os documentos de Estado e do partido já não o listavam como secretário-geral.
[21]
Stalin e Kirov
D iscursando no XVII Congresso, A.S. Yenukidze frisou o fato de Stalin ter
se cercado de pessoas com quem podia discutir qualquer questão surgida, e 55
Belas palavras, mas, pena, não condiziam com sua prática. Antes de tudo, ele
era um grande hipócrita e, como regra, cercava-se de gente que não lhe
trouxesse problemas. Isso se aplicava principalmente aos assistentes, entre os
quais Nazaretyan, Bazhanov, Kanner, Maryin, Dvinsky, Tovstukha e
Poskrebyshev. Stalin era mais ligado a estes dois últimos.
Tovstukha podia adivinhar as intenções de Stalin ao menor sinal. Bem
versado em teoria, era capaz de formular uma ideia e detectar as falhas
intelectuais num documento. Stalin o apreciava particularmente pela devoção
ao trabalho. Existe uma anotação no arquivo de Stalin para Zinoviev,
Kamenev e Bukharin, datada de 1923, especificando que “Tovstukha não
deseja tirar férias. Está registrada uma solicitação minha de férias imediatas
para o camarada Tovstukha que ele não levou para apreciação”. Depois disso, 57
Stalin admoesta Tovstukha por ter falado com Kamenev sobre as férias que
não tirou. No fim de tudo, o infeliz assistente ainda teve que escrever uma
carta a Stalin, com cópia para Kamenev, declarando que “jamais falei ao
camarada Kamenev ou a qualquer outra pessoa que desejava entrar em férias,
e que o camarada Stalin não deixou”.
Quase a título de piada, Kamenev rascunhou: “Confirmo que o camarada
Tovstukha jamais, em qualquer lugar, a qualquer tempo e de nenhuma forma
falou comigo sobre suas férias, mas disse que poderia desenvolver trabalho
maior sobre Lenin se começasse mais cedo seu expediente no comitê central.
Rogo que não me seja imputada a responsabilidade pela morte de Tovstukha.”
58
Boa pergunta, pois metade do conjunto já estava presa. Esse era o homem que
agia à sombra de Stalin, desempenhando papel especial e sinistro.
No entanto, o assistente que desfrutou da maior confiança e, provavelmente, o
colaborador mais próximo de Stalin foi A.N. Poskrebyshev, que Khruschev
chamou no XX Congresso de “fiel escudeiro de Stalin”. Ex-assistente
hospitalar e filho de um sapateiro de Vyatka, trabalhou no aparato do comitê
central por volta de 1922 e, a partir de 1928, passou a ser assistente de Stalin,
encarregado de uma seção especial. Já membro do comitê central e vice no
Soviete Supremo, foi feito major-general por Stalin durante a guerra.
Poskrebyshev era conhecido por sua assiduidade e extraordinária capacidade
de trabalho. Sua filha mais velha, Galina Alexandrovna Yegorova, disse-me
que seu pai trabalhava dezesseis horas por dia. Embora, pouco antes da morte
de Stalin, Beria tivesse conseguido afastar Poskrebyshev do Kremlin, até o
fim de sua vida ele permaneceu devotado servo do patrão. A propósito, sua
primeira esposa era parente distante de Trotsky, fato que, no fim, teve trágica
influência.
Sua filha disse-me também que ele se arrependeu amargamente de não ter
feito um diário, mas calculou que uma tal indiscrição iria adicionar risco
desnecessário à sua já insegura existência.
Todas as informações que Stalin recebia, fosse qual fosse o caráter, vinham de
Poskrebyshev, que sabia tanto quanto o mestre o que acontecia no partido e
no país todo. Foi o funcionário perfeito: não raciocinava, não questionava e
estava sempre presente no trabalho. Sua tarefa nos corredores do poder era,
no entanto, bem mais significativa do que indica sua posição oficial, graças à
distinção que Stalin lhe conferia. Conquanto Poskrebyshev não fosse um
homem cruel, as pessoas procuravam agradá-lo, já que muito dependia de
como e quando ele apresentasse o assunto delas.
O antigo comissário do povo para as Ferrovias, I.V. Kovalev, que ao longo de
toda a guerra informava duas a três vezes por dia a Stalin sobre o movimento
de tropas, chamava Poskrebyshev de “castanha dura de quebrar”, sempre à
disposição das convocações de Stalin, a cabeça calva inclinada sobre um
montão de papéis. “Tinha memória de computador, a resposta exata para
qualquer pergunta. Era uma enciclopédia ambulante.”
Havia gente que Stalin classificava como de sua equipe, mas também outras,
como Malenkov, Kaganovich e Voroshilov, que se distinguiam por concordar
sempre com Stalin sobre qualquer assunto.
Voroshilov, por exemplo, tentou em tudo o que fez, por trivial que fosse,
apoiar o líder. Quando o destacado chefe militar I.E. Yakir, preso e condenado
à morte, escreveu a Stalin jurando ser absolutamente inocente dos crimes a ele
imputados, a resposta do secretário-geral foi um lacônico rabisco na pasta:
“Ele é um patife e pessoa venal”, ao que Voroshilov acrescentou: “Definição
totalmente acurada.” Yakir, um dos mais talentosos líderes do exército, era
60
P.S. Favor cuidar bem de Kirych, * pessoal, senão ele ficará perambulando sem teto e sem o que
comer. 62
Stalin conhecia Kirov desde outubro de 1917. É difícil saber o que o atraiu
naquele homem de sorriso constante, saudavelmente vigoroso. Normalmente,
passavam juntos as férias, suas famílias se davam, embora, de modo geral,
trabalhassem a considerável distância um do outro. Numa nota para
Ordzhonikidze, escrita em Sochi, Stalin perguntou sobre o estado de saúde de
Kirov, uma raridade de fato, já que Stalin não se interessava pela saúde de
ninguém, só pela própria:
Caro Sergo
Então, o que está Kirov fazendo por aí? Tomando a água medicinal Narzan para a úlcera? Essa
beberagem pode acabar com vocês. Qual foi o impostor que “receitou” isso?
Saudações à Zina
Provavelmente, não existia outra figura a quem Stalin dedicasse tanta atenção,
afeição mesmo, como Kirov. Gostava daquela pessoa aberta e descomplicada.
Sempre que Kirov aparecia em algum lugar logo muita gente o rodeava. Ele
era a vida e a alma do partido. Comparado com o inescrutável Molotov, o
carrancudo Kaganovich, ou com o bajulador Voroshilov, Kirov era alguém
com quem era possível manter uma relação autenticamente humana.
Stalin deu exemplares de seus livros com dedicatórias a muito poucas
pessoas. Kirov, no entanto, recebeu um exemplar do Sobre Lenin e o
leninismo com uma mensagem que ninguém poderia supor que o secretário-
geral fosse capaz de expressar: “Para S.M. Kirov, meu amigo e amado irmão,
do autor. 23.05.24. Stalin ”
Todo ditador tem suas fraquezas. Talvez Stalin gostasse do sorriso de Kirov,
de sua face russa jovial, de sua falta de malícia, sua obsessão pelo trabalho.
Certa vez, num domingo, quando jogavam boliche na dacha de Stalin – o
secretário-geral tinha um ajudante de cozinha chamado Khorvosky como
parceiro, e Kirov jogava com o general Vlasik –, Stalin perguntou ao seu
convidado: “Do que você mais gosta, Sergei?”
Kirov pareceu surpreso, mas respondeu: “Um bolchevique deve gostar mais
do trabalho que de sua esposa!”
“Mas o que mais?”
“Bem, ideias, claro”, disse Kirov falando sério.
Stalin balançou o braço num gesto vago, mas não perguntou mais nada.
Provavelmente, conjeturando como se podia “gostar de uma ideia”. Será
possível que Kirov tivesse dito aquilo só para impressionar? Contudo, Stalin
sabia muito bem que Kirov não era homem de dissimulações. Sabia também
que Kirov, mais do que ninguém, podia exercer influência, até sobre ele. O
caso Ryutin fora um bom exemplo. Em 1918, M.N. Ryutin comandara o
distrito militar de Irkutsk, em 1920, fora secretário distrital do partido em
Irkutsk, e na segunda metade da década de 1920, secretário do comitê
partidário do distrito de Krasnaya Presnya, em Moscou, membro do conselho
editorial do Krasnaya Zvezda (“Estrela Vermelha”) e um dos candidatos a
membro do comitê central. Depois, foi afastado das funções. Em 1932,
disseram a Stalin que Ryutin estava fazendo circular um longo documento
intitulado “A todos os membros [do partido]”, cujo alvo era primordialmente
Stalin, descrito como nada menos que um ditador, com uma arma antileninista
na mão. Stalin não só demandou ao Politburo a expulsão do partido de Ryutin
como também a pena de morte. Foi a primeira vez que tentou decidir o
destino de alguém antes do resultado de um julgamento. O Politburo ficara
em silêncio. Diante dos membros parecia estar uma tentativa de Ryutin de
criar uma “organização contrarrevolucionária”, mas pena de morte… A
liderança do partido ficou confusa. Naquele ponto, Kirov se agigantou: “Não
devemos fazer isso. Ryutin não é um caso sem esperança, simplesmente saiu
dos trilhos. […] Quem sabe quantas mãos teriam escrito aquela carta. […]
Seremos mal entendidos…” Por alguma razão, Stalin concordou
imediatamente. Ryutin pegou dez anos e faleceu em 1938. Todavia, Stalin não
deixou de notar que Kirov expressara sua opinião corajosamente, sem mesmo
cogitar se deveria consultá-lo primeiro.
Quando P.P. Postyshev, presidindo o XVII Congresso, anunciou: “Com a
palavra o camarada Kirov”, o salão explodiu numa ovação. Todos se
levantaram, até Stalin. A assembleia aplaudiu aquele outro “favorito do
partido” por longo tempo. Só Stalin tinha sido festejado assim. O discurso de
Kirov foi extremamente vivaz e informativo e, como todos os outros no
congresso, generosamente salpicado de louvores ao secretário-geral. Neste
particular, Kirov até sobrepujou muitos dos tribunos. Lamentavelmente – e
isso deve ser entendido – embora sempre exista a oportunidade para que se
exercite a consciência, por vezes, ou quase sempre, só se pode fazê-lo ferindo
as normas do comportamento comum. E quase sempre no limite de um ato
cívico. Nem Kirov nem ninguém estava preparado para esse ato no congresso
onde, aos olhos dos delegados e com a ajuda deles, o culto à personalidade de
Stalin era uma realidade.
Não obstante, como vimos, na relativa privacidade do voto secreto, as
eleições para os cargos mais elevados do partido deram uma desagradável
surpresa a Stalin. Seu triunfo foi bastante ofuscado, mas ele não deu mostras
de desapontamento; tinha a capacidade de manter uma máscara de
equanimidade nas situações mais críticas, pois aprendera havia muito tempo
que isso causava maior impressão no povo do que o alvoroço, a energia
ostensiva e a imponente pose de “líder”. Tendo feito a leitura de que um
significativo número de delegados não estava satisfeito por ele ter se tornado
um líder autocrático, manteve uma calma exterior. Depois daquele momento,
tudo correu segundo o planejado. No pleno do comitê central que teve lugar
depois do congresso, Kirov foi eleito membro do Politburo e do Orgburo, e
secretário do comitê central, permanecendo como secretário da organização
do partido em Leningrado. Stalin pensava em transferi-lo de Leningrado para
Moscou, mas mudou de ideia.
A partir do XVII Congresso, em janeiro de 1934, a carga de trabalho de Kirov
aumentou. Sua responsabilidade como membro do comitê central era com a
indústria pesada e a madeireira, e, dessa forma, foram muitas as
oportunidades para que fosse a Moscou. Como antes, Stalin telefonava para
ele nas ocasiões de suas meteóricas visitas e os dois se encontravam para
debater as questões do momento. Tudo parecia ter voltado à situação anterior
e indicava que Kirov ainda era “amigo e amado irmão”. Podia ser que a
atitude de Stalin tivesse esfriado, que a relação dos dois assumisse caráter
mais oficial, e que o secretário-geral chegasse a repreender Kirov diversas
vezes por algum engano trivial ou outro, mas nem a documentação disponível
nem as pessoas que entrevistei, e que bem conheciam os dois, confirmaram
tal versão. Por outro lado, Stalin era mestre em disfarçar seus sentimentos e
intenções.
A notícia de que Kirov fora assassinado no Instituto Smolny de Leningrado,
em 1º de dezembro de 1934, causou grande surpresa. Em 3 de dezembro, o
relatório de uma investigação preliminar apontou Leonid Vasilyevich
Nikolaev, nascido em 1904 e ex-empregado da Inspetoria de Operários e
Camponeses de Leningrado, como o assassino. 64
Eram decorridos apenas dois dias desde que Kirov e outros delegados de
Leningrado tinham retornado do pleno, onde fora feito o anúncio importante e
bem-vindo de que o racionamento de pão e de outros alimentos ia terminar.
Na viagem de trem, foi animadamente debatida a medida de há muito
esperada. Toda a população ficaria aliviada com a notícia! Houve troca de
opiniões também sobre a peça Dias dos Turbins , de Bulgakov, a que tinham
assistido, e debates sobre o próximo encontro do grupo partidário de
Leningrado, marcado para 1º de dezembro. De um modo geral, Kirov chegou
em casa entusiasmado e pronto para retomar o trabalho.
No dia da reunião com o grupo do partido, Kirov terminou seu relatório e se
dirigiu ao Smolny. Passou pelo corredor, trocando comentários e
cumprimentos com diversas pessoas, virou à esquerda e entrou numa estreita
passagem que levava ao seu escritório. Um homem de aparência comum
caminhou na sua direção. Quando Kirov chegou à porta do escritório, dois
tiros foram ouvidos. As pessoas acorreram e o encontraram estirado no chão
de bruços; o assassino tremia histericamente ainda com a arma na mão.
Duas horas mais tarde, Stalin, Molotov, Voroshilov, Yezhov, Yagoda,
Zhdanov, Agranov, Zakovsky e alguns outros estavam a caminho de
Leningrado em trem especial. Ao chegarem na estação, Stalin ofendeu com
palavras de baixo calão o pessoal da NKVD local que fora recebê-lo e chegou
a dar uma bofetada em Medved, o chefe da agência. Medved e seu assistente,
Zaporozhets, foram em seguida transferidos para o Extremo Oriente e, em
1937, executados. De acordo com alguns relatos, o próprio Stalin conduziu o
primeiro interrogatório de Nikolaev na presença daqueles que o tinham
acompanhado de Moscou. De imediato, ficou claro que havia muitos aspectos
misteriosos no crime. Khruschev aludiu a isso no XX Congresso, quando
descreveu as circunstâncias da morte de Kirov como enigmáticas e que ainda
precisavam ser adequadamente examinadas. Disse haver motivo para pensar
que o assassino, Nikolaev, tivera ajuda de um dos seguranças de Kirov. Um
mês e meio antes do assassinato, Nikolaev fora preso por comportamento
suspeito, mas logo libertado sem mesmo ter seu apartamento revistado.
Também foi altamente suspeito, continuou Khruschev, o fato de, em 2 de
dezembro, um chekista, guarda-costas de Kirov, ter morrido num acidente de
carro quando era conduzido para interrogatório, acidente em que nenhum dos
outros passageiros sofreu qualquer ferimento. Depois do assassinato, os
chefes da NKVD de Leningrado foram sentenciados a penas leves e, depois,
fuzilados em 1937. Khruschev conjeturou que os chefes foram mortos para
encobrir qualquer pista que pudesse levar aos verdadeiros cabeças do
atentado. Borisov, o chekista que morreu no acidente, era o chefe dos
seguranças de Kirov e, segundo algumas fontes, alertara Kirov sobre a
possibilidade de uma tentativa de assassinato. Fosse como fosse, o homem
que prendera Nikolaev duas vezes por seguir Kirov portando uma arma, e que
depois foi solto por ordem de alguma autoridade, não mais existia.
Os arquivos que pesquisei não fornecem outras indicações para que se possa
ser conclusivo a respeito do caso Kirov. O que fica patente, no entanto, é que
o assassinato não foi executado por ordens de Trotsky, Zinoviev ou Kamenev,
como foi logo a seguir publicado na versão oficial. Pelo que sabemos de
Stalin, por certo houve um toque seu no evento. A remoção de duas ou três
camadas de testemunhas indiretas leva sua marca registrada.
O julgamento de Nikolaev foi extremamente rápido. Apenas 27 dias após a
ocorrência, foi publicada a sentença oficial, descrevendo Nikolaev como
membro ativo de uma organização trotskysta-zinovievista clandestina. A
declaração foi assinada pelo vice-procurador da URSS, A.Ya. Vyshinsky, e
pelo investigador especial L. P. Sheinin. Como era de se esperar, todos os
envolvidos no atentado, inclusive Nikolaev, foram fuzilados.
Mas, por que “como era de se esperar”? Porque no próprio dia do assassinato,
por iniciativa de Stalin (e sem ser discutido pelo Politburo), foi editado um
decreto governamental introduzindo certas emendas no Código Penal. Stalin
estava com tanta pressa que não houve “tempo suficiente” até para que o
decreto fosse assinado por Kalinin, presidente do Comitê Executivo Central –
ou seja, o chefe de governo. O documento, incorporando o credo do mando
arbitrário, foi assinado pelo secretário do comitê executivo A.S. Yenukidze e
estabeleceu que:
1. As autoridades investigadoras são instruídas a acelerar os casos daqueles acusados do
planejamento ou da execução de atos terroristas.
2. Os órgãos do judiciário são instruídos a não retardar as sentenças dos envolvidos em crimes
desta categoria com a suposição de uma possível clemência, já que o Presidium do Comitê
Executivo Central considera inaceitável a clemência em tais casos.
São acusadas as seguintes sete pessoas: N.G. Rakitin, P.V. Zaostrovsky, P.N. Popov, G.N.
Levinov, N.I. Ivlev, A.V. Zaostrovsky, N.A. Koposov. Destas, apenas P.N. Popov admitiu culpa
completa.
Propomos que o caso Rakitin seja apreciado na sessão itinerante do collegium militar da Suprema
Corte da URSS, em Archangel, de acordo com o Ato de 1º de dezembro de 1934.
Achamos que os principais acusados Rakitin, P.V. Zaostrovsky e Levinov devem ser sentenciados
ao fuzilamento e que o restante tenha a liberdade privada por diversificados períodos. Solicitamos
instruções.
23 de janeiro de 1935
A. Vyshinsky V. Ulrikh
L.I. Belozir foi sentenciada à morte. Como membro de uma organização clandestina
contrarrevolucionária de nacionalistas ucranianos, ela recrutou Shcherbin e Tereshchenko que
deveriam executar um ato terrorista contra os camaradas Postyshev e Balitsky durante as
celebrações de outubro de 1934 em Kiev.
Em resposta à minha pergunta sobre a razão por que obtivera permissão para comparecer ao
encontro do partido em Leningrado, em 1º de dezembro, onde o camarada Kirov discursaria,
Milda Draule respondeu que “desejava ajudar Leonid Nikolaev”. “Como?” “Isto dependeria das
circunstâncias.” Estabeleceu-se assim que a acusada tencionava ajudar Nikolaev na execução do
ato terrorista.
Os três foram sentenciados à pena máxima do fuzilamento. A sentença foi executada na noite de
10 de março.
1. O comitê central não pretende (e não tem razão para isso) levantar essa questão de seu trabalho
no IMEL [o Instituto Marx-Engels-Lenin]. Você ficou superexaltado e decidiu levantá-la. Pura
perda de tempo. Fique no Instituto e continue fazendo seu trabalho.
2. Uma carta ao Pravda poderia ser publicada, mas não acho satisfatório o texto de sua carta. Em
seu lugar, eu retiraria dela toda a sua “beleza polêmica” e todas as “excursões” à história, e mais
os “protestos decisivos”, e diria simples e brevemente que tais e tais enganos foram cometidos,
mas que as críticas do camarada Beria a tais enganos foram, digamos assim, demasiado duras e
não se justificam pela natureza dos enganos. Ou alguma coisa nesta linha. 08 VIII 35 I. Stalin 68
Parte V
O manto do líder
Sejam os falsos deuses repudiados, mas não só!
[22]
Personalidade dominante
E nquanto crescia o culto a Stalin no período que se seguiu ao XVII
Congresso, o secretário-geral tomou medidas para reduzir drasticamente a
característica coletiva da tomada de decisões. Ele não necessitava mais da
opinião dos outros. Entre 1934 e sua morte em 1953, houve apenas dois
congressos e uma conferência do partido, e só vinte e duas reuniões plenas do
comitê central. Treze anos se passaram entre o XVIII e o XIX congressos, e o
comitê central não se reuniu uma só vez nos anos de 1942, 1943, 1945, 1946,
1948, 1950 e 1951. Este comitê não era mais o “Areópago da sabedoria” que
fora em 1931, apenas uma chancelaria do partido, um instrumento
conveniente para a execução das decisões de Stalin. De fato, o partido
transformara-se numa máquina obediente para a execução das ordens da
“personalidade dominante”. E dizer que, em 1925, enquanto preparava o XIV
Congresso e editava as minutas dos estatutos do partido, Stalin frisara a
especial importância de convocar anualmente congressos regulares e instara
para que o comitê central tivesse pelo menos uma sessão plenária a cada dois
meses.
O crescimento das tendências burocráticas fortaleceu a noção peculiar que
Stalin tinha sobre unidade partidária. Como vimos, nos anos 1920 a política
do partido sofrera oposição de grupos significativos de comunistas que
estavam longe de ser “inimigos”. Algumas vezes, as discordâncias surgiam de
uma avaliação particular da situação, e noutras, deviam-se a características
individuais. Rememorando tais “oposições” e “agrupamentos”, parece que, na
essência, preocupavam-se com as seguintes questões: como a democracia
deveria ser desenvolvida em termos de política concreta, qual deveria ser a
relação entre o líder e o partido, e qual o papel a ser desempenhado pelas
massas no processo revolucionário? Em muitos casos, os oposicionistas eram
simplesmente contra o autoritarismo e não desejavam aceitar a posição
unilateral sobre uma determinada ideia, ou seja, a psicologia uniforme pela
qual Stalin se batia.
Havia naqueles primeiros dias muita gente que não subscrevia o programa do
partido. Como regra, cogitavam de outros ideais ou programas sociais. No X
Congresso de março de 1921, que teve como pano de fundo o caos
econômico, a ameaça externa e a proliferação de vários grupos de oposição no
partido, Lenin instituiu sua notória resolução que baniu as facções. Depois de
seu relatório, o congresso resolveu que todos os grupos facciosos deveriam
ser desfeitos imediatamente. Enfrentando a crescente inquietação e o
descontentamento da classe operária com as ações do partido, a resolução
deixou claro que a unidade partidária era particularmente necessária naquela
ocasião, e que era essencial a total confiança entre os membros do partido e a
avant-garde amistosa do proletariado. Ao mesmo tempo em que tal regra
1
Ali estava a mais elevada homenagem que podia ser prestada ao livro, e ele o
fazia a uma obra de sua autoria. Àquela altura, já se considerava tanto um
líder singularmente sábio como um grande teórico.
O imperador Tibério, segundo Suetônio, conhecia com antecedência seu
futuro e havia muito tempo antevira o ódio e a ignomínia que esperavam por
ele. Stalin não se preocupava com tais pensamentos. Seus documentos
8
contêm ampla evidência de que ele acreditava estar imortalizado na mente das
pessoas. Depois do XVII Congresso, ao contrário de Tibério, ele tomou
providências para consolidar sua glória por séculos. Seu mando autocrático
foi sendo gradualmente reforçado por uma série de atos e ritos de culto. Por
exemplo, foram instituídos os Estipêndios Stalin e os Prêmios Stalin. A
ordem, expedida em agosto de 1925 pelo governo e com a participação de
Stalin, para a instituição do Prêmio Lenin foi simplesmente esquecida e só
reviveu em setembro de 1956. O hino nacional, para o qual Stalin concorreu
pessoalmente, falou em seu papel no destino da Pátria:
Stalin nos fez leais ao povo,
Stalin, em sua sabedoria como líder da luta dos povos, é o líder dos povos. 10
[23]
O intelecto de Stalin
A descrição que Trotsky faz de Stalin de “uma destacada mediocridade” foi
amplamente aceita como exata, mas seria realmente plausível? Poderia
alguém com tão pequena capacidade mental ter sido membro dos mais altos
órgãos do partido desde 1912, ou merecer a descrição de Lenin como um dos
“destacados líderes”, ou sair do emaranhado complexo de contradições
políticas dos anos 1920 como vitorioso sobre pessoas mais habilitadas que ele
em muitos aspectos?
O fato é que seus crimes, suas artimanhas, sua crueldade e sua inclemência
com aqueles a quem considerava inimigos acabaram dominando qualquer
avaliação de sua personalidade. E traços como estes põem em relevo o caráter
moral de um homem, não sua inteligência. Nesse sentido, o intelecto
excepcional de Stalin – acredito que tinha – foi emoldurado por atributos que
só podem ser definidos como anti-humanos; no senso moral, ele foi quase
anulado pela vinculação inextricável às manifestações do mal. Poder-se-ia
dizer, em suma, que Stalin tinha uma “mente excepcionalmente malévola”.
Qualquer falha moral representa em si mesma enorme lacuna no intelecto,
criando uma zona cinzenta na mente, desprovida de qualquer vestígio do bem.
É possível afirmar que uma carência moral na personalidade é capaz de
reduzir até uma mente poderosa às funções de máquina calculadora, um
mecanismo lógico em nível racional, porém um equipamento impiedoso.
Tendo sentido com frequência uma inadequação humilhante na conversa com
seus oponentes antes da revolução, Stalin dispôs-se a não desempenhar o
papel de figurante nas discussões futuras e fez de tudo para ampliar ao
máximo o escopo de seu conhecimento político e teórico. Em paralelo com
sua enorme carga de trabalho, esforçou-se por elevar seu plano intelectual. Os
arquivos contêm documentos bastante interessantes os quais, a despeito de
seu tamanho, merecem citação mais completa.
Em maio de 1925, Stalin encarregou Tovstukha de organizar uma boa
biblioteca pessoal para ele. Hesitante, o assistente perguntou que espécie de
livros ele tinha em mente. Stalin preparou-se para ditar uma lista mas,
subitamente, sentou-se em sua escrivaninha e, sob o olhar de Tovstukha e
quase sem pensar, levou de dez a quinze minutos para escrever às pressas o
rol abaixo, anotado a lápis num caderno escolar comum de exercícios:
Nota para o bibliotecário. Minha sugestão (e pedido):
1. Os livros devem ser organizados por assunto, não por autor: a) filosofia; b) psicologia; c)
sociologia; d) economia política; e) finanças; f) indústria; g) agricultura; h) cooperativas; i)
história russa; j) história de outros países; k) diplomacia; l) comércio exterior e interno; m)
assuntos militares; n) questões nacionais; o) congressos e conferências do partido, do Comintern
e outros (com resoluções, sem decretos e sem códigos jurídicos); p) posição dos operários; q)
posição dos camponeses; r) Komsomol (tudo o que existe em edições separadas); s) história da
revolução em outros países; t) 1905; u) Revolução de Fevereiro de 1917; v) Revolução de
Outubro de 1917; w) Lenin e leninismo; x) história do RKP e do Comintern; y) sobre discussões
no RKP (artigos e panfletos); z) sindicatos; aa) literatura criativa; ab) crítica artística; ac)
periódicos políticos; ad) periódicos científicos; ae) diversos dicionários; af) memórias.
2. Livros a destacar da lista acima e arrumar em estantes separadas: a) Lenin; b) Marx; c) Engels;
d) Kautsky; e) Plekhanov; f) Trotsky; g) Bukharin; h) Zinoviev; i) Kamenev; j) Lafargue; k)
Luxemburgo; l) Radek.
3. Todos os demais livros devem ser classificados por autor (exceto quaisquer livros didáticos,
revistas populares, literatura antirreligiosa de baixa qualidade, e assim por diante, que devem ser
colocados num lado). 12
Levando-se em conta que isso foi rabiscado quase sem reflexão, e também em
função da “cultura de livro” daquela época, uma certa amplitude de visão fica
aqui claramente demonstrada. No topo da pirâmide, ele pôs os fundamentos
do marxismo, a história e diversas áreas específicas do conhecimento
diretamente relacionadas com a atividade política e com a luta contra as
oposições.
A execução de ideias por meio de ação e de comportamento dá certa medida
de um intelecto. A biblioteca de Stalin e as marcas que deixou nela, portanto,
oferecem algum material a respeito.
Muitos dos livros do Kremlin, da dacha ou do apartamento, alguns dos quais
com o ex-líbris “Biblioteca nº… I.V. Stalin”, apresentam anotações, marcas e
comentários à margem. Obras coligidas de Lenin, por exemplo, está repleto
de trechos sublinhados, tiques e pontos de exclamação nas margens. Fica
também claro que certas passagens foram examinadas mais de uma vez, já
que marcadas em vermelho, azul e lápis comum. Os tópicos que parecem ter
despertado maior interesse são as opiniões de Lenin sobre ditadura do
proletariado, sua luta com os mencheviques e os socialistas revolucionários, e
seus discursos nos congressos do partido.
Dos escritos de contemporâneos seus, Stalin consultou com mais frequência
os de Bukharin e os de Trotsky. Por exemplo, o panfleto de Bukharin “A
técnica e a economia do moderno capitalismo”, publicado em 1932, está
coberto de marcas do lápis vermelho de Stalin, em especial o que o autor diz
sobre forças da produção e relações na produção. O livro de M. Smolensky,
Trotsky , publicado em 1921 em Berlim, está sublinhado nos trechos em que o
autor critica seu arqui-inimigo: “Trotsky é irritadiço e impaciente”, tem “uma
natureza imperial que adora dominar”, “gosta do poder político”, “Trotsky é
um genial aventureiro político”. De todas as fontes disponíveis, Stalin
13
viu na história russa, como interpretada por ele, um meio para formar a
espécie de opinião pública que aceitaria seu mando autoritário.
Os assistentes assinalavam tudo que achavam pudesse interessá-lo nos
periódicos sérios e, na pausa de trinta a quarenta minutos que diariamente
fazia na condução dos negócios oficiais, ele passava os olhos pelos artigos e
folheava os últimos romances publicados. Ocasionalmente, acionava a
campainha para chamar um assistente e pedia ligação com um escritor ou com
o chefe de um dos sindicatos de criação, de modo a poder dar pessoalmente
congratulações ou fazer comentários. Por vezes, pegava a caneta para fazê-lo.
Depois de ler Nas estepes da Ucrânia , de Korneichuk (1940), por exemplo,
logo escreveu o seguinte bilhete:
Respeitado Alexander Yevdokimovich
Li o seu livro Nas estepes da Ucrânia . Trata-se de obra maravilhosa, artisticamente inteira, jovial
e alegre. Só me preocupo se não é um pouco alegre demais. Existe o perigo de o excesso de
alegria numa comédia desviar a atenção do leitor em relação ao conteúdo.
Aliás, inseri algumas palavras à página 68. Elas tornam as coisas mais claras. Cumprimentos!
I. Stalin
Não considerei muito boa a peça Suicídio . * Meus camaradas mais próximos acham-na vazia e até
perigosa. Não digo que a representação não atinja seu objetivo. O Kultprop ** (ou seja, o
camarada Stetsky) o ajudará nisso. Existem camaradas que entendem de questões artísticas. Sou
um diletante nessas coisas.
Saudações
9 XI 31 I. Stalin 16
A questão original, sobre o uso da palavra “tributo”, foi assim enterrada sob
uma típica troca de opiniões sobre “ortodoxia”.
Os infindáveis debates dos anos 1920 sem dúvida afiaram o intelecto de
Stalin como polemista. Na verdade, ele em geral recorria a um truque que
encurralava o oponente: apresentava-se como defensor de Lenin,
argumentando como se só ele soubesse como interpretar o líder corretamente.
Em quase todos os debates, encontrava de imediato uma citação ou expressão
adequadas de Lenin, quase sempre de um contexto inteiramente diverso. Há
muito entendera que, armando-se com citações de Lenin, tornar-se-ia
praticamente invulnerável. Certa vez, quando debatia questões do Comintern,
Zinoviev, cujas relações com Stalin já estavam abaladas, provocou: “Você usa
citações de Lenin como um certificado de sua própria infalibilidade. Devia
procurar os significados!” Stalin disparou de volta: “E o que há de mal em ter
um ‘certificado’ de socialismo?”
No fim, o pensamento rígido, a agressividade, a militância e a rudeza
permitiram que Stalin levasse vantagem sobre seus oponentes. É estranho,
mas quanto mais sutis e frequentemente mais convincentes eram os
argumentos de Trotsky, Zinoviev, Kamenev e Bukharin, menos apoio
encontravam entre os delegados no salão, enquanto as invectivas abusivas,
cruéis e quase sempre primitivas de Stalin, estreitamente ligadas ao seu pleito
de estar “defendendo Lenin”, a linha geral do partido, a unidade do comitê
central, e assim por diante, eram rapidamente absorvidas pelos membros
partidários. Possuidor de uma mente pragmática, ele não se preocupava
muito, ao contrário de Trotsky, com o estilo elegante; ao contrário de
Zinoviev, com os aforismos retóricos; ou de Kamenev, com a racionalidade
intelectual; ou de Bukharin, com a argumentação teórica. A principal arma de
Stalin era acusá-los de querer uma revisão de Lenin, enquanto ele resguardava
o líder. E, a partir do início dos anos 1930, esta passou a ser a versão oficial.
O modo de pensar de Stalin era esquemático. Como vimos, ele gostava de ter
tudo no devido “escaninho” e era levado a reduzir as ideias à sua forma mais
simples e a popularizá-las quase ao ponto de pastiches primitivos. Se os
oponentes divulgavam suas proposições de forma diferente, ele os ofendia
pela “abordagem não marxista”, pela “demonstração de tendências pequeno-
burguesas” ou pelo “escolasticismo anárquico”. Seus relatórios e discursos
eram sempre estruturados dentro de uma moldura rigorosa de enumerações,
particularidades, características, níveis, direções, tarefas. Esta foi uma das
razões pelas quais seus trabalhos eram populares, uma vez que, acessíveis
pela simplicidade, podiam ser captados pelo povo. Todavia, ao mesmo tempo
em que tal modo de pensar talvez pudesse ter facilitado a popularização das
ideias de Stalin, ele algemou severamente a capacidade criativa do povo, pois
não demandava análise profunda ou entendimento da complexidade e
interdependência do mundo.
É provável que Stalin não tenha pensado, como Nero, que o estudo da
filosofia “era um estorvo para o futuro governante”, contudo, parece que ele
foi intelectualmente incapaz de conseguir o menor domínio sobre o assunto.
O ponto mais fraco de seu intelecto era a impossibilidade de entender a
dialética. Ele tinha consciência disso, já que devotou muito tempo e esforço
na tentativa de enriquecer seu conhecimento filosófico. Por recomendação
dos diretores do Instituto dos Professores Vermelhos, convidou, em 1925, Jan
Sten, filósofo de renome entre os Velhos Bolcheviques, para ministrar-lhe
aulas particulares sobre dialética. Sten, que era subdiretor do Instituto Marx-
Engels e foi, mais tarde, executivo do aparato do comitê central, fora
delegado em diversos congressos do partido, era membro da CCC, e homem
de opinião independente. Nomeado tutor filosófico de Stalin, Sten planejou
um programa especial que incluía o estudo de Hegel, Kant, Feuerbach, Fichte
e Schelling, bem como de Plekhanov, Kautsky e Bradley. Duas vezes por
semana, numa hora determinada, ia ao apartamento de Stalin e tentava
elucidar seu pupilo nos conceitos hegelianos da substanciação, da alienação,
da identidade entre realidade e razão. Tentava, em outras palavras, passar-lhe
um entendimento do mundo real como manifestação de uma ideia. A
abstração irritava Stalin, mas ele se controlava, sentava-se e ouvia a voz
monótona de Sten, perdendo por vezes a paciência e o interrompendo com
perguntas tais como “O que tudo isto tem a ver com a luta de classes?” ou
“Quem emprega toda essa bobagem na prática?”
Lembrando a seu aluno que a filosofia de Hegel, como a de outros pensadores
germânicos, se tornara uma das fontes do marxismo, Sten prosseguia
imperturbável. “A filosofia de Hegel”, afirmava ele, “é, com efeito, uma
enciclopédia de idealismo. O método dialético é desenvolvido em seu sistema
metafísico com alto grau de genialidade. Marx disse que Hegel pusera a
dialética de cabeça para baixo, e que era hora de pô-la em pé, para que fosse
vista racionalmente.” Visivelmente agastado, Stalin interrompia: “Mas o que
tudo isso tem a ver com a teoria do marxismo?”
Sten, pacientemente, tentava resumir e explicar a sutileza da filosofia de
Hegel ao seu pupilo pouco perceptivo, porém, apesar de seus melhores
esforços, Stalin não se mostrava capaz de captar as noções básicas daquela
filosofia, como testemunharam seus próprios “trabalhos filosóficos”. Parece
que tudo o que restou daquelas lições foi a hostilidade ao professor.
Juntamente com N. Karev, I.K. Luppol e com outros filósofos que eram
discípulos do acadêmico A.M. Deborin, Sten foi declarado um teórico
“adulador de Trotsky” e, em 1937, acabou preso e executado. A mesma sorte
parecia destinada a Deborin, que fora muito ligado a Bukharin no final dos
anos 1920 e que, em 1930, foi rotulado por Stalin como “idealista militante
menchevique”. No entanto, ele foi poupado, se bem que proibido de
desenvolver qualquer trabalho científico ou público.
Um encontro da Academia Comunista teve lugar em outubro de 1930 para
debater “as diferenças no front filosófico”. Na realidade, foi uma longa
condenação de Deborin por sua “subestimação do estágio leninista no
desenvolvimento da filosofia marxista”. Deborin apresentou uma valente
defesa, mas Milyutin, Mitin, Melonov e Yaroslavsky “firmaram” sua culpa,
juntamente com as de Sten, Karev e Luppol, por “subestimação da dialética
materialista”. As paixões no mundo acadêmico continuaram a fervilhar depois
daquele encontro. Os acadêmicos não podiam aceitar o emprego de métodos
policiais em seu trabalho. A filosofia foi, provavelmente, a primeira vítima da
“pesquisa científica” stalinista. O secretário-geral deixou bem claro que só
deveria haver um líder nas ciências sociais e que este era o papel do líder
político, quer dizer, dele mesmo.
Dois meses mais tarde, em dezembro de 1930, ele falou sobre “o front
filosófico” no birô do partido do Instituto de Professores Vermelhos, cujo
diretor era Abram Deborin. O discurso é exemplo eloquente de seu
pensamento filosófico, do nível de sua racionalidade e, simplesmente, de sua
falta de tato. De acordo com a ata da reunião, ele disse:
Temos que virar de pernas para o ar e revolver o monte de estrume que se acumulou na filosofia e
nas ciências sociais. Tudo o que foi escrito pelo grupo de Deborin precisa ser destruído. Sten e
Karev podem ir às favas. Sten jacta-se bastante, mas é apenas um pupilo de Karev. Sten é um
rematado preguiçoso. Só o que sabe fazer é falar. Karev tem uma cabeça enorme e pavoneia-se
por aí como uma bexiga inflada. Na minha opinião, Deborin é caso perdido, mas deve
permanecer como editor do periódico **** para que tenhamos alguém para derrotar. O conselho
editorial ficará com dois fronts, mas teremos a maioria.
Dessa forma, Stalin, que não sabia praticamente nada de filosofia, “instruía”
os filósofos. A questão principal era “derrotar”. Quanto à filosofia marxista,
explicou o que deveria constar numa seção especial do Curso resumido : uma
série de frases curtas e incisivas dividindo a filosofia em diversas
características básicas, como muitos soldados cobertos e alinhados. Talvez
esse “ABC filosófico”, mais algumas outras fontes, ajudassem na campanha
contra o desconhecimento, mas depois que apareceram os trabalhos de Stalin,
a filosofia murchou, pois ninguém mais teve coragem de escrever coisa
alguma sobre o assunto. Não se passara um mês e o comitê central já
aprovava uma resolução sobre o periódico Pod znamenem marksizma . Os
adeptos de Deborin, que estavam congregados em torno do editor do
periódico, foram alcunhados “grupo de mencheviques idealistas”.
A.P. Balashov disse-me que Stalin absorvia uma quantidade colossal de
informações diariamente, inclusive relatórios, telegramas, cifras e cartas, e
que, em quase todos os documentos, ele apunha instruções ou comentários
expressando concisamente sua atitude e, assim, estabelecendo decisões
definitivas sobre grande variedade de questões. Depois de examinar por alto
uma pilha de cartas e de nelas escrever seus comentários habitualmente
lacônicos – tais como “Grato por seu apoio”, “Ajudem este homem”,
“Bobagem” –, ele quase sempre selecionava uma ou duas e preparava
respostas com alguma substância. Por exemplo, em 1928, um veterano
bolchevique que vivia em Leningrado escreveu perguntando sobre o perigo da
restauração do capitalismo e se havia quaisquer desvios no Politburo. Stalin
destacou uma folha de um bloco de anotações e escreveu com sua letra grande
e clara:
Camarada Shneer,
I. Stalin 22
Notas
* O nome da peça é O suicida , a pessoa que se mata. Stalin chamou de Suicídio, o ato em si.
** Departamento de Cultura e Propaganda.
*** Jornais publicados em Berlim, Paris, Nova York, Praga e Harbin por grupos de emigrados que iam
da extrema direita aos conservadores, liberais e socialistas.
[24]
Cesarismo
N o início de 1937, Lion Feuchtwanger, o escritor alemão, visitou Moscou.
O resultado foi o livro Moscou 1937 (relato de minha viagem para meus
amigos) , publicado em Amsterdam. Ele não escondeu o fato de que escreveu
como simpatizante, e seu livro, com efeito, foi uma verdadeira coonestação
do sistema soviético. Sua simpatia pela URSS cresceu com a visita, mas o que
ele não pôde deixar de notar – e ao que devotou grande parte do livro – foi o
lugar ocupado por Stalin na vida do povo soviético:
A adoração e o culto ilimitado com que a população cerca Stalin é a primeira coisa que causa
admiração no visitante estrangeiro à União Soviética. Em todos os cantos, em cada intercessão de
ruas, em lugares adequados e inadequados, podem-se ver gigantescos bustos e estátuas de Stalin.
Os discursos ouvidos, não apenas os políticos, mas até sobre assuntos científicos e artísticos, são
preparados como glorificação a Stalin e, por vezes, tal deificação toma formas de mau gosto. 30
Essa ingênua explanação agradou tanto a Stalin que ele fez com que o livro
fosse traduzido para o russo com velocidade espantosa e publicado com uma
enorme tiragem. O livro foi talvez o único jamais publicado na União
Soviética sob o mando de Stalin que reconhece a existência do culto ao líder e
oferece alguma explicação para ele. Stalin personificava tanto os ideais
socialistas quanto a realidade e, portanto, de acordo com o autor, o povo devia
ao líder sua gratidão.
O culto à liderança era humilhante para o povo, até mesmo insultuoso. Era o
cesarismo no século XX, a usurpação do poder por uma pessoa mantidos os
símbolos formais da democracia. Como tal prática surgiu e em que ambiente
prosperou?
Ao identificar as fontes do culto à liderança é possível entender-se o porquê
de Stalin ter sido tão popular, a despeito de sua crueldade e de seu desprezo
pelas normas humanas elementares. Como vimos, o principal esteio do culto
foi a falta de princípios democráticos no partido e no Estado. Um povo que
vivera séculos à sombra da coroa czarista não podia em poucos anos livrar-se
de velhos hábitos. O czar, a dinastia e a pompa czarista foram destruídos, mas
o antigo modo de pensar, com tendência à idolatria de uma poderosa figura
soberana, persistira.
Nikolai Berdyaev escreveu em 1918 em O destino da Rússia :
A Rússia é, culturalmente, um país atrasado. Há trevas bárbaras lá, um primarismo asiático
sombrio e caótico. O atraso russo tem que ser sobrepujado pela atividade criativa e pelo
desenvolvimento cultural. A Rússia mais original será a vindoura, a nova Rússia, e não a velha
Rússia atrasada. 33
Foi este atraso que veio à tona em muitos dos processos sociais
desencadeados depois da revolução, quando a democracia não estava em
evidência. Mesmo enquanto Lenin viveu, houve muita glorificação aos
líderes, demasiado reconhecimento de seus “méritos especiais”. O sistema em
si não contemplava restrições ou mecanismos críticos do tipo que só seria
genuinamente encontrado no pluralismo revolucionário. Se os socialistas
revolucionários de esquerda tivessem permanecido em cena, seria difícil
imaginá-los juntando-se ao coro de louvação de Stalin.
O primeiro a notar o perigo de se transformar um líder em conceito ideológico
foi Trotsky que, em 1927, escreveu suas reminiscências de Lenin sob o título
“Da santimônia”:
O falecido Lenin, parece, renasceu: talvez esteja resolvido o caso da ressurreição de Cristo. Mas
o perigo começa com a burocratização da estima e a automação de atitudes em relação a Lenin e
seus ensinamentos. N.K. Krupskaya disse, recentemente, boas e simples palavras, contra os dois
perigos. Ela disse que não deveriam existir tantos monumentos em homenagem a Lenin nem
deveriam ser fundadas instituições desnecessárias e inúteis com seu nome. 34
Stalin não teria sido capaz de envergar a toga de imperador – mesmo que ela
fosse uma modesta túnica do exército – se não tivesse conseguido primeiro
dominar a mente do povo. Ele bem sabia que precisava garantir a fé como
líder todo-poderoso e estimular o entusiasmo das gentes, trombeteando suas
vitórias e censurando seus fracassos, em sua maior parte devidos “ao esforço
dos inimigos e destruidores”. Foi bem-sucedido neste particular. O
entusiasmo das pessoas não era artificial: o trabalho delas era quase sempre
de autossacrifício. Quando exigiam a pena de morte ou punições severas para
os traidores, estavam sendo sinceros. Até Alexei Stakhanov escreveu:
Quando os julgamentos tiveram lugar em Moscou, primeiro de Zinoviev, depois de Kamenev e,
ainda depois, de Pyatakov e sua quadrilha, nós pedimos que eles fossem fuzilados. Mesmo as
mulheres de nosso assentamento, que jamais se interessaram por política, cerraram os punhos
quando leram o que os jornais publicavam. Dos mais idosos aos jovens, todos exigiam que os
bandidos fossem destruídos. 37
Gerações eram formadas com a crença fundamental de que tudo que seu
grande líder fazia estava certo, e muito poucos tinham quaisquer dúvidas.
Hoje, quando quase todos os inimigos políticos de Stalin foram reabilitados, a
história do partido naqueles anos aparece sob uma luz bastante diferente.
Ocorrera uma luta pela liderança e pela escolha dos meios para a construção
de uma vida nova. Algumas pessoas fizeram opções erradas, muitas tinham
opiniões que divergiam das adotadas pelo partido, mas poucas eram, como
Stalin as descrevia, inimigas. Ainda assim, o tênue vestígio de suspeita contra
elas desenvolveu-se em pesadas acusações e resultou num fim trágico.
Stalin frequentemente tratava dos assuntos sem dar uma decisão escrita. Devo
ter examinado alguns milhares de itens de correspondência endereçada
pessoalmente a ele sobre as questões mais diversas: relatórios sobre o
progresso da safra, deportação de povos inteiros, notificação de sentenças
executadas, remoção de membros dos altos escalões, construção de fábricas
para o exército, cabogramas decodificados de fontes de inteligência, traduções
de artigos da imprensa ocidental, cartas pessoais para ele e todas as espécies
de esquemas, invenções e ideias loucas. Estimo que li entre cem e duzentos
documentos por dia, que iam de uma simples folha a pastas completas. Na
maioria dos casos, ele simplesmente apunha suas iniciais no papel. Antes de
levar o material para a apreciação do chefe, Poskrebyshev anexava um
pequeno pedaço de papel com uma proposta de decisão e o nome de seu autor.
Stalin raramente dava despachos longos. Se concordava com um plano, só
rubricava a folha de papel, ou escrevia “De acordo”, e a devolvia ao assistente
para a pilha de despachos.
Ocasionalmente, Stalin dava a entender ao partido e ao povo que era contra a
glorificação e a idolatria. Tais atitudes, no entanto, eram apenas jogo para a
plateia. Existe, por exemplo, a seguinte carta nos arquivos:
Sou decididamente contra essa publicação de Histórias da infância de Stalin . O livro tem muitos
erros factuais. Mas isto não é o principal. O importante é que o livro tem a tendência de instilar
na mente do povo soviético (e do povo em geral) um culto a personalidades, a líderes e a heróis
infalíveis. Isto é perigoso e nocivo. A teoria de “heróis” e a “multidão” não é bolchevique, é
própria dos SR [socialistas revolucionários]. […] O povo cria heróis, os bolcheviques rejeitam
heróis.
Existe uma recomendação para que se publique a instrutiva história anexa sobre um kolkhoz.
Cancelei tudo o que se referia a “Stalin” como o “ vozhd do partido”, “o líder do partido” e coisas
semelhantes. Creio que esses ornamentos laudatórios só causam males.
entanto, este passou a ser o modo com que todos tinham que falar, exercessem
funções no alto ou no baixo escalão, ou não tivessem cargo algum. A
consciência, a oportunidade de exercitá-la, foi sufocada. Como Yevtushenko
escreveu em seu poema “Medo”:
Notas
* Logo seria executado.
** Tomsky já havia sido declarado inimigo do povo, e suicidara-se.
*** Editora de livros infantis.
[25]
À sombra do chefe
D epois do XVII Congresso, o Politburo era um órgão profundamente
alterado, já que a velha guarda fora praticamente varrida pela tempestade
interna. Stalin sentia-se desconfortável com a proximidade dos antigos
companheiros porque o conheciam em todos os seus diferentes estados de
espírito – firme e hesitante, imperturbável e confuso, afável e deplorável.
Também sabiam que só existira um líder na revolução – Lenin – e que Stalin
fora apenas terceiro ou quarto violino. Sabiam que em tudo, menos
determinação, Stalin era inferior a muitos. Não havia espaço suficiente na
cabine de comando para Trotsky, que o via como uma mediocridade, ou para
Bukharin, que o considerava um déspota asiático, ou para Rykov, que não
respeitava ninguém a não ser Lenin, ou para Zinoviev e Kamenev, pois ambos
pensavam que, como amigos mais próximos de Lenin, um deles deveria
sucedê-lo. Ademais, não viam Stalin como seu líder. O secretário-geral
precisava de novos camaradas em armas.
Entre os sobreviventes, novas caras surgiam ao lado de Stalin, seja no
Mausoléu, na plataforma das assembleias ou na mesa do Politburo: A.A.
Andreyev, K.Ye. Voroshilov, L.M. Kaganovich, M.I. Kalinin, S.M. Kirov,
S.V. Kosior, V.V. Kuibyshev, V.M. Molotov, G.K. Ordzhonikidze, bem como
A.I. Mikoyan, G.I. Petrovsky, P.P. Postychev, Ya.E. Rudzutak, V.Ya. Chubar
e, mais tarde, A.A. Zhdanov e R.I. Eikhe. Do grupo, Stalin rapidamente
separou um núcleo constituído por Molotov, Kaganovich e Voroshilov. No
entanto, cedo começaram a aparecer lacunas nas fileiras: Kirov assassinado,
Kuibyshev faleceu em 1935, Ordzhonikidze cometeu suicídio, enquanto
Kosior, Postyshev, Rudzutak, Chubar e Eikhe foram eliminados no grande
expurgo. Entre 1937 e 1939, seis membros do Politburo e um candidato a
membro estiveram num dos mais angustiosos episódios da história russa, mas
não foram meras testemunhas; todos, particularmente o núcleo dos três, se
envolveram cerradamente nos eventos. Nas palavras de Goethe, o mal seguiu-
se ao mal, e a ilegalidade se tornou a lei em todo o império.
Mas não era um império, tratava-se do primeiro Estado socialista dos
operários e camponeses, o primeiro em que eles haviam conquistado o poder
e o primeiro em que cederam tal poder para um “grande líder”. Contudo,
ninguém do círculo de Stalin teve a coragem para arremessar as palavras de
Goethe sobre o líder, ou para tentar interromper o processo. Que espécie de
gente era aquela que borboleteava à sombra do chefe?
Em Zhukovka, subúrbio de casas de verão nas cercanias de Moscou, ainda
podia ser visto, na primavera de 1986, um senhor idoso, de testa alta e com o
indefectível pincenê, arrastando vagarosamente os pés ao compasso das
pancadinhas de sua bengala e voltando seus olhos castanho-amarelados para
os raros passantes. O sobretudo surrado e as botas gastas do velho eram
provas de que seu dono tinha visto e experimentado muitas coisas. Mas
ninguém poderia supor que ele chegaria aos 97 anos de idade e que era nada
mais nada menos que o ex-presidente do Sovnarkom, o ex-membro do
Politburo, o ex-comissário do povo das Questões Internas e um dos cúmplices
mais próximos de Stalin, Vyacheslav Mikhailovich Molotov.
Molotov fora secretário do Comitê Central e candidato a membro do
Politburo sob Lenin e, embora a história tenha registrado observações
desagradáveis feitas por Lenin a seu respeito – uma delas, que “sob seu nariz
gerava-se a mais vergonhosa e estúpida burocracia” –, ele foi um dos últimos
41
dos moicanos que trabalharam com Lenin havia todos aqueles anos. O poeta
F. Chuev encontrou-se frequentemente com Molotov e, nas conversas comigo,
em 1985, descreveu-o como “modesto, preciso e frugal. Providenciava para
que nada fosse desperdiçado, para que nenhuma luz ficasse acesa em salas
vazias. Quando faleceu em 1986, um envelope continha sua caderneta de
poupança com 500 rublos para o funeral”.
Era o homem que trabalhara com Trotsky, Bukharin e Rykov. Churchill e
Roosevelt o conheceram bem, e ele se sentou durante horas em negociações
com Hitler e Ribbentrop como um dos arquitetos do Pacto Nazi-Soviético de
Não Agressão e do Tratado sobre as Fronteiras. Muitos cidadãos soviéticos se
recordam das palavras dramáticas que proferiu, ele e não Stalin, ao meio-dia
de 22 de junho de 1941: “Nossa causa é justa. O inimigo será esmagado. A
vitória será nossa.” Este episódio será examinado em detalhes mais adiante.
Por ora, notemos que Stalin estava tão pasmo com o começo catastrófico da
guerra que recusou os apelos do Politburo para que ele mesmo discursasse e,
em vez disso, encarregou seu “braço direito” da tarefa.
Por muitas décadas, Molotov foi a sombra de Stalin, sempre ao seu lado nas
reuniões do Politburo, no Mausoléu, nos artigos de jornal, nas conferências
internacionais. Mesmo quando o Pravda publicava seus artigos estampava ao
lado um grande retrato de Stalin.
Em que pensava aquele homem nos anos de declínio, vivendo no apartamento
de Moscou na rua Granovsky ou na vila oficial de Zhukovka? O que lhe vinha
à mente? Talvez a reunião do Comitê Central de dezembro de 1930, quando
Rykov foi afastado da função de presidente do Conselho de Ministros e o
próprio Stalin propôs Molotov para substituí-lo? Naquela oportunidade,
Molotov declarou que “passara na escola do bolchevismo sob a supervisão
direta de seu melhor professor, Lenin, e sob a supervisão do camarada Stalin.
Tenho orgulho disto”.
Nada o mudou nas décadas pós-Stalin. Pouco antes de falecer, Molotov disse
a Chuev que “se não fosse Stalin, não sei o que teria sido de nós”. No fim da
vida, considerava Stalin um gênio e estava convencido de que Tukhachevsky
fora a força armada dos “direitistas” e de que Rykov e Bukharin arquitetaram
uma conspiração. Afirmava que “1937 permitiu que evitássemos uma quinta-
coluna na guerra”. Admitia que houve muitos erros, “que muitos comunistas
honestos pereceram, mas que, com métodos suaves, não manteríamos aquilo
que conquistáramos”. Tendo sobrevivido às mais violentas tempestades da
história, a mente daquele homem parara de funcionar. Como executor
obediente, zeloso e sofisticado dos desejos de Stalin, Molotov teve imensa
responsabilidade pela corrupção da legalidade e pela repressão como
instrumento do poder.
No famoso pleno de fevereiro-março de 1937, Molotov apresentou um
relatório sobre as “lições da sabotagem, ação diversionária e espionagem
praticadas por agentes nipo-germano-trotskystas”. Todo o discurso nada mais
foi que a conclamação por um massacre social:
As hesitações de ontem de comunistas vacilantes já se transformaram em atos de sabotagem, de
ação diversionária e de espionagem pelo acordo com os fascistas e para vantagem destes últimos.
Temos que responder golpes com golpes, temos que esmagar em todos os lugares estes
destacamentos precursores de subversivos do lado fascista. Temos que nos apressar para concluir
esta tarefa e não devemos nos atrasar nem demonstrar hesitação. 42
Molotov não mostrou hesitação. Tampouco seu brado pela conclusão da tarefa
caiu no vazio. Em junho daquele ano, um informante reportou a Stalin que
G.I. Lomov, velho bolchevique e membro da equipe do Sovnarkom, parecia
ser ligado a Rykov e Bukharin. Stalin perguntou a Molotov: “O que você
acha?” A resposta foi rápida e incisiva: “Sou pela prisão imediata do porco
Lomov.” 43
Molotov foi muito útil a Stalin. Podia captar as intenções do chefe ao menor
sinal, e sua capacidade de trabalho tornou-se lendária, como o próprio Stalin
ressaltou várias vezes na presença de outros membros do Politburo. No
quinquagésimo aniversário de Molotov, em 1940, Stalin propôs que o nome
da cidade de Perm mudasse para Molotov, embora já existissem muitas outras
cidades, vilas e fazendas com este nome.
Por volta dos anos 1930, Stalin já se livrara de todos os teóricos. É claro que
ele mesmo era o “teórico-chefe”, mas condescendia que, em certas ocasiões,
um de seus auxiliares, normalmente Molotov, tentasse alguma coisa.
Adoratsky instou Stalin a escrever um artigo sobre estratégia e tática do
leninismo para a Enciclopédia filosófica que era preparada pela Academia
Comunista. A resposta de Stalin foi a seguinte: “Estou terrivelmente ocupado
com questões práticas e, portanto, impossibilitado de atender sua solicitação.
Tente Molotov, ele está de férias e talvez encontre tempo disponível.” 45
Claro que Molotov não era um teórico, porém, comparado com Kaganovich,
Andreyev, Voroshilov e o restante, a preferência tinha que recair sobre ele.
Sem a presença de Bukharin, o único “intérprete” e “gerador de ideias” era o
próprio Stalin. Por conseguinte, não surpreende o fato de que, durante os anos
1930 e 1940, os estudos sociais tivessem pequeno espaço no que concerne às
inovações. Elas, simplesmente, não podiam ocorrer. Não causa igualmente
admiração que, em tais circunstâncias, Molotov se considerasse até um pouco
teórico.
Por trás da fachada imperturbável, extremamente reservada e inescrutável do
polido decoro oficial de Molotov se escondia uma determinação forte e
malévola. Assíduo no apoio a Stalin nas questões internas, ele foi também
porta-voz diligente e expedito da política externa soviética. Sem cúmplices
como Molotov, o stalinismo não teria sido possível.
Não menos zeloso que Molotov foi Lazar Moiseyevich Kaganovich, outro
sobrevivente até a grande idade dourada. Em novembro de 1988, comemorou
seu nonagésimo quinto aniversário no seu apartamento na Orla Frunze, à
beira-rio em Moscou e, provavelmente, esperou sobrepujar Molotov vivendo
até os cem anos. * S.I. Senin, que trabalhou para N.A. Voznesensky depois da
guerra, disse-me sobre Kaganovich:
Ele era o chefe da comissão das indústrias de guerra certa ocasião em que tive que lhe entregar
alguns documentos. Eu calçava um novo par de botas. Kaganovich pegou os papéis e começou a
olhar fixamente para minhas botas.
“Tire-as”, ordenou.
Ele teria se saído melhor se continuasse sapateiro, mas fez uma opção em
1911, quando acompanhou o irmão mais velho para se filiar ao partido
comunista. Conheceu Stalin em Moscou, em 1918, quando trabalhava na
comissão de Toda a Rússia para a organização do Exército Vermelho. Foi
enviado ao Turquestão em 1920, mas, quando Stalin se tornou secretário-
geral, foi chamado de volta a Moscou e encarregado da seção do Comitê
Central responsável pela instrução dos organizadores. Com um grau mínimo
de educação formal, porém de elevada capacidade administrativa,
Kaganovich começou sua rápida ascensão através das fileiras do partido e dos
serviços.
Stalin gostava de Kaganovich por três motivos: sua capacidade sobre-humana
de trabalho; sua total falta de qualquer opinião – antes mesmo de conhecer o
assunto em pauta, ele dizia: “Estou de absoluto acordo com o camarada
Stalin” – sobre questões políticas; e sua incondicional disposição para
executar instruções, especialmente as do secretário-geral. Em determinada
ocasião, depois do XVIII Congresso do partido e antes da reunião do
Politburo, Stalin perguntou-lhe:
“Lazar, você sabia que nosso Mikhail ** anda de conchavos com os
direitistas? As evidências são fortes”, acrescentou Stalin com o olhar de quem
está testando.
“Ele deve ser tratado de acordo com a lei”, conseguiu dizer Lazar com a voz
trêmula. Depois da sessão, ele telefonou ao irmão e falou-lhe sobre a
conversa. O processo foi acelerado. Mikhail decidiu não esperar pela prisão e
suicidou-se no mesmo dia.
Stalin dava valor a tais pessoas, aquelas que julgavam ter que persistir
provando sua lealdade a ele, e não com trivialidades ou bajulação servil.
Kaganovich deu uma demonstração de tal lealdade no pleno agonizantemente
longo de fevereiro-março de 1937. A máquina de punição ainda não estava
totalmente pronta, acabara de ser estabelecida e era ajustada com o
trituramento de membros do partido, da intelligentsia , da classe operária, dos
camponeses, dos militares; ainda assim, Kaganovich já estava superando a si
próprio. Num discurso de duas horas, o comissário para as Ferrovias informou
sobre os primeiros resultados do “teste”:
No aparato político do comissariado para as Ferrovias, desmascaramos 220 pessoas. Na divisão
de transportes, demitimos 485 ex-milicianos, 220 SR e mencheviques, 572 trotskystas, 1.415
oficiais Brancos, 285 saqueadores, 443 espiões. Todos eles ligados ao movimento
contrarrevolucionário. 46
Não é difícil imaginar o que Kaganovich quis dizer com “demitimos espiões e
saqueadores” das ferrovias. Stalin deve ter ficado satisfeito com a “análise”
de seu comissário quando ele, ardorosamente, continuou a expor aos
delegados:
Estamos lidando aqui com uma gangue de desesperados agentes de informações. Seus métodos
em relação às ferrovias são particularmente sofisticados. Serebryakov, Arnoldov e Lifshits
exploraram o baixo nível de segurança do acesso, organizaram descarrilamentos e estorvaram os
esforços do movimento stakhanovista. Dano especial foi causado por Kudrevatykh, Vasiliev,
Bratin, Neishtadt, Morshchikhin, Bekker, Kronts e Breis que atrasaram a entrada em serviço da
locomotiva FD. O edifício da linha Moscou-Donbass foi sabotado. Pyatov sabotou a construção
da linha TurkSib; Mrachkovsky sabotou a linha Karaganda-Petropavlovsk; Barsky e Eidelman
sabotaram a linha Eikhe-Sokur. 47
Todo o discurso foi neste mesmo tom, nomeando e imprecando contra bandos
inteiros de saqueadores que estavam, aparentemente, engajados por completo
na destruição, na criação de gargalos, na confecção de planos falsos e na
desorganização do frete:
O patife do Yeshmanov foi o chefe da linha Moscou-Donetsk a partir de 1934. Depois que este
cargo lhe foi retirado e ele não conseguiu qualquer outra função, dirigiu-se diretamente ao
camarada Yezhov na NKVD para uma permissão de residência. Falou com Arnoldov sobre as
reprimendas, houve muita conversa, mas ninguém o quis. Ele agora está sob o cuidado e o
controle do camarada Yezhov. 49
Olhamos uns para os outros. Por mais que eu tentasse explicar, citando Lenin, a necessidade de se
incutir a teoria científica na cabeça do proletariado, ele não conseguiu absorver a ideia. Olhando-
me com suspeita, logo deu o encontro por encerrado e nunca mais empreendeu tarefa tão
espinhosa.
Kaganovich firmou sua autoridade por meio das viagens para “eliminação de
dificuldades” que fez por ordem de Stalin. Estas visitas, por exemplo, às
organizações partidárias em Chelyabinsk, Ivanovo, Yaroslavl e a outros
centros provinciais, resultaram na remoção por atacado e na investigação de
funcionários locais que normalmente acabaram em tragédia. Stalin estava
muito satisfeito com o trabalho do seu “Lazar de Ferro”, como o chamava.
Kaganovich agia totalmente por iniciativa própria, guiado tão somente pelas
instruções de Stalin para “investigar bem um local e ser decisivo. Não
amoleça”. Os documentos mostram que, mesmo antes do processo completo,
Kaganovich fixava pessoalmente as sentenças, ou alterava arbitrariamente as
palavras de um testemunho para revelar uma trama contra ele, como
comissário.
Tornou-se chefe da seção do Comitê Central responsável pela nomeação para
cargos importantes. Stalin logo percebeu seu zelo, sua dureza e seu
comprometimento com a função. Aos 33 anos de idade, em 1926, foi feito
candidato a membro do Politburo. Em 1925, por recomendação de Stalin, fora
enviado à Ucrânia para chefiar a organização partidária da república, onde se
instalara uma situação difícil. Suas relações com o chefe do soviete ucraniano
de comissários do povo, V.Ya. Chubar, se deterioraram, o que, na ocasião
oportuna, teria consequências fatais para este último. Os conflitos de
Kaganovich com os outros líderes ucranianos do partido continuaram e, em
1928, ele retornou a Moscou para se tornar primeiro-secretário da cidade e
dos comitês provinciais do partido. No XVI Congresso do partido, em 1930,
foi nomeado membro titular do Politburo.
Sua influência foi particularmente grande na primeira metade da década de
1930. Como comissário do povo das Ferrovias, visitava constantemente as
províncias onde a coletivização não caminhava bem, e logo depois de suas
aparições, as coisas começavam a andar rapidamente. Stalin não mostrava a
menor preocupação com os métodos utilizados pelo “Lazar de Ferro”. Cruel e
extremamente grosseiro por natureza, Kaganovich foi o tipo de homem
clássico do sistema, o burocrata que se imiscuía em qualquer função sem a
menor cerimônia. Sua visita ao Cáucaso Setentrional resultou num aumento
dos camponeses “deskulakizados” enviados ao norte. Em Moscou, ele
removia sumariamente quem quer que não cumprisse uma ordem;
impulsionado pela ignorância, proibia a encenação de peças teatrais; como
chefe da comissão do Comitê Central para o expurgo no partido foi
impiedoso. Sob o pretexto da reconstrução de Moscou, Kaganovich foi um
dos responsáveis pela destruição de muitos monumentos históricos, tais como
a Catedral de Cristo Salvador, a Torre Sukharev, o Mosteiro da Paixão, os
Portais Iversk. Numa só palavra, ele foi um “sucesso” completo, e para
demonstrar seu reconhecimento àquele decidido camarada, Stalin fez dele um
dos primeiros condecorados da Ordem de Lenin, quando ela foi criada, em
1930.
Outro dos camaradas próximos de Stalin nos anos 1930 foi Kliment
Yefremovich Voroshilov. Ele se juntou bem cedo ao movimento
revolucionário e, em 1906, foi um dos delegados ao IV Congresso do partido,
onde conheceu Lenin, Stalin e outras figuras de destaque. Depois de anos de
prisões e períodos de exílio, estava em Petrogrado para a Revolução de
Fevereiro. Lutou em vários fronts na guerra civil e foi notado na batalha por
Tsaritsyn, quando se estabeleceu sua amizade com Stalin. Sua reputação
como herói da guerra civil deveu-se em grande parte ao patronato de Stalin.
Para falar a verdade, ele combateu com grande coragem, mas sem muita
reflexão. Falando no VIII Congresso, Lenin declarou: “O camarada
Voroshilov diz: ‘Não tínhamos especialistas militares e sofremos 60 mil
baixas.’ Isto é terrível. As massas tomarão conhecimento do heroísmo do
exército de Tsaritsyn, mas dizer que manobramos sem especialistas militares
não é nada defensável para a linha do partido.” 50
K.E. Voroshilov
Estou sendo acusado de ser membro de um grupo terrorista contrarrevolucionário que planeja um
atentado contra sua vida. A verdade é que entre 1926 e 1928 fiz parte de uma organização
trotskysta. Desde 1929, venho tentando me acertar. Em você, vejo não apenas o chefe do Exército
Vermelho, mas também um homem extremamente responsável. Sou possuidor de duas
condecorações da Ordem da Bandeira Vermelha. Como poderia eu ser incluído numa gangue de
fascistas assassinos?
Não há dúvida de que irão me fuzilar. Talvez dentro de uns poucos anos, os trotskystas expliquem
porque caluniaram um homem honesto, e quando a verdade for revelada, solicito que você
restaure meu bom nome junto à minha família. Desculpe os rabiscos, mas eles não me cederam
mais papel algum.
Em memória dos muitos anos de trabalho honesto no Exército Vermelho, peço-lhe que cuide de
minha família e que ela seja ajudada, uma vez que está desamparada e não tem culpa de nada.
Solicitei o mesmo a N.I. Yezhov.
De posse de todas as evidências para reverter a acusação a mim imputada pelos fascistas
Dybenko e Levandovsky para minha vergonha, fiquei tão confuso na reunião do Politburo de
18.iv.38, que esqueci de revelar a prova de minha inocência e de minha lealdade ao partido de
Lenin e de Stalin. O comandante do exército Dybenko disse algo inacreditável a respeito dele
mesmo. Deve ter enlouquecido depois das manobras, porque, de outra forma, não consigo
entendê-lo, já que isso foi em 1934! De acordo com Dybenko, ele me “recrutou”, mas diz que a
tarefa era de recrutar os oficiais.
Todos os meus irmãos são comunistas, quatro deles oficiais do Exército Vermelho. Meu filho de
17 anos é membro do Komsomol. Minha mãe, minhas irmãs e seus 12 filhos vivem no kolkhoz
“Caminho da Liberdade”, na região de Orel. Meu tio foi enforcado em 1905 por ter tomado parte
em um motim naval, meu pai foi assassinado por kulaks. Eu mesmo fui operário em Moscou.
Combati na China durante a guerra. Fui ferido. Recebi a Ordem de Lenin, três condecorações da
Ordem da Bandeira Vermelha e a Ordem da Bandeira Vermelha do Trabalho.
Entre abril e maio de 1937, Voroshilov enviou a Stalin uma nota atrás da outra
do seguinte tipo: “Solicito que as seguintes pessoas, que foram dispensadas
do Exército Vermelho, sejam exoneradas do Conselho de Guerra do
Comissariado de Defesa da URSS: M.N. Tukhachevsky, R.P. Eideman, R.V.
Longva, N.A. Yefimov, E.F. Appog.” Ele então riscou a palavra
55
[26]
O fantasma de Trotsky
T rotsky não estava mais presente, contudo Stalin passou a odiá-lo ainda
mais em sua ausência, e o espectro do rival voltava com frequência para
assombrar o usurpador. Stalin passou a se recriminar por ter concordado que
Trotsky se exilasse. Nem para si mesmo admitia temer Trotsky naqueles
tempos, porém, por certo, temia pensar nele. O pensamento de que jamais
seria capaz de resolver o “problema” de Leib Davidovich (como tendia a se
dirigir a Trotsky em sua mente, usando a forma ídiche para Lev), fazia-o
ferver de ira violenta. Em determinada ocasião, perdeu o controle e quase
revelou publicamente seus sentimentos. Conversando com Emil Ludwig sobre
o assunto da autoridade, declarou subitamente:
“Trotsky também teve grande autoridade, mas, e daí? Tão logo voltou as
costas para os trabalhadores foi esquecido.”
“Completamente esquecido?”, perguntou Ludwig.
“Ocasionalmente se lembram dele… com hostilidade.”
“Todos com hostilidade?”
“Quanto a nossos operários, eles se lembram de Trotsky com hostilidade,
irritação e ódio.” 56
contas, o rival sofrera derrota total, mas não se rendia, ainda continuava
lutando. Vezes sem conta Stalin se atormentava ao pensar em seu erro: por
que deixara Trotsky sair do país? Agora, tinha que pagar pelo lapso de
descuido. Os cúmplices de Trotsky preparavam uma trama contra ele,
montando ações diversionárias, executando atos de espionagem, organizando
uma clandestinidade, e ele, Stalin, nada fizera durante todos aqueles anos.
No seu discurso para o pleno de fevereiro-março de 1937 “sobre as
inadequações no trabalho do partido e as medidas para a liquidação dos
trotskystas e outros agentes duplos”, Stalin destacou o “elo principal”, ou
seja, o “trotskysmo contemporâneo”. Dirigindo-se à plateia como se fosse
constituída de escolares, perguntou: “Que é o trotskysmo?” E deu a resposta:
“O trotskysmo contemporâneo é um bando desesperado de saqueadores. Sete
ou oito anos atrás”, continuou, “era uma equivocada tendência antileninista.
Mas agora é uma gangue de saqueadores fascistas.” E continuou:
Kamenev e Zinoviev negaram que tivessem uma plataforma política. Estavam mentindo. Durante
o julgamento de 1937, Pyatakov, Radek e Sokolnikov não negaram a existência de tal plataforma.
A restauração do capitalismo, o desmembramento territorial da União Soviética (a Ucrânia para
os alemães, as províncias marítimas para os japoneses); na eventualidade de um ataque de nossos
inimigos – sabotagem e terror. Tudo isto é a plataforma do trotskysmo . 59
Até aquela ocasião, Stalin era pouco mencionado nos trabalhos de Trotsky,
com a possível exceção do volume sobre cultura, onde havia referências
indiretas. Quanto à democracia e à burocracia, ele escreveu que “a construção
socialista só é possível com o crescimento da democracia genuína e
revolucionária das massas laboriosas. Onde existe a burocracia,
inevitavelmente surge o mochalinstvo . O princípio principal do mochalinstvo
* é a obsequiosidade no obedecer. Obedecer a quem? Ao chefe…” Concluiu 64
que tudo que lhe restava era lutar contra Stalin, não tanto contra o sistema
mas contra o homem.
Segundo Deutscher, antes da derrota final e da deportação, Trotsky,
juntamente com Zinoviev e Shlyapnikov, tentou organizar grupos
insignificantes de aliados no exterior em partidos comunistas e de
trabalhadores. Na França, eles foram liderados por homens como Albert
Rosmer, Boris Souvarine e Pierre Monatte, na Alemanha, por Arkadi Maslov
e Ruth Fischer (ex-camaradas de Zinoviev), na Espanha, por Andrés Nin, na
Bélgica, pelos ex-comunistas Van Overstraaten e Lesoil. Pequenos grupos de
trotskystas surgiram em Xangai, Roma, Estocolmo e em diversas outras
cidades e capitais. Foi com tal composição fragmentária que Trotsky esperava
erigir um novo movimento de credo anti-stalinista. Mas não tinha uma base
social séria, nem um programa sério. O anti-stalinismo não possuía muito
atrativo para uma organização de âmbito mundial. Portanto, Trotsky começou
de novo a ruminar a ideia da “revolução permanente” e de suas variantes,
mostrando que “a doutrina do socialismo em um só país era uma distorção
nacional-socialista do marxismo”. Todavia, o elemento constante de seu
“programa” continuou sendo o anti-stalinismo fanático, sem poder esconder
sua animosidade pessoal pelo homem, a injúria provocada pelas ambições
frustradas e sua dor interna pela perda da família na Rússia. Trotsky esperava
que seu anti-stalinismo ostensivo encontrasse amplo eco nos partidos
comunistas, mas isto não aconteceu.
Para muitos comunistas de diversos países, as conquistas soviéticas na
economia, cultura e educação estavam associadas ao nome de Stalin. Os
infames julgamentos políticos ainda não haviam começado e pouco se
conhecia de Stalin para que o Ocidente tivesse alguma percepção de seu
caráter. A tentativa de Trotsky de exercer pressão sobre a União Soviética e
sobre Stalin e sua política estava fadada ao fracasso, enquanto qualquer
esperança de “levantar” os antigos aliados dentro da URSS contra Stalin era
ainda menos realista. Por meio de artigos, comunicados à imprensa, discursos
e entrevistas, no entanto, ele conseguiu, quase inadvertidamente, criar uma
impressão provocativa de que o número de seus seguidores crescia e de que as
forças anti-stalinistas se consolidavam. Desafortunadamente, isto não ocorria,
mas Stalin, homem agudamente desconfiado, levou a sério muitas daquelas
declarações sem compromisso.
Stalin se consumia de ódio, mas nada podia fazer. Muitas das obras de
Trotsky eram dirigidas contra ele, mesmo em seus títulos: A escola stalinista
da falsificação , Crimes de Stalin e Stalin , sendo que este último não pôde ser
completado por causa de sua morte. A coletânea das obras de Trotsky foi
publicada em dezenas de países, e foi delas que a opinião mundial formou a
imagem de Stalin, não dos livros de Feuchtwanger e Barbusse. O sombrio
déspota asiático saiu das páginas de Trotsky manhoso, cruel, fanático,
estúpido e vingativo. Trotsky pegou pesado, e só em pensar nele Stalin era
incendiado pelo desejo da vingança. Em cada trotskysta, via um fragmento de
Trotsky e, então, exigiu que não houvesse piedade com eles.
Enquanto estava na Noruega, em 1936, Trotsky escreveu A revolução traída .
Nele, apela para que comunistas, ex-membros da oposição, antigos
mencheviques, SR e dissidentes de outros partidos organizem um coup d’état
, ou o que chama de “revolução política”. Seu ódio por Stalin e o desespero de
sua própria posição tornavam impossível uma avaliação sóbria da situação
política dentro da URSS. O livro contém não só um relato do passado, visto
através das lentes de Trotsky, como também um prognóstico de longo prazo
para o desenvolvimento social na União Soviética. Todavia, sua análise é
defeituosa, porque a predição de uma revolução política contra Stalin se
baseia tão somente em seu desejo apaixonado de derrotar o “líder”. Prevê
também que, se a Alemanha desencadeasse uma guerra contra a URSS, Stalin
dificilmente evitaria a derrota.
Stalin leu a tradução de A revolução traída numa só noite, espumando de
raiva. Foi a gota d’água. Por alguns anos, vinha alimentando duas decisões
em sua mente e, então, decidiu executá-las. Em primeiro lugar, precisava
remover Trotsky a qualquer custo da arena política. Sabia que qualquer
tentativa de assassinato, por mais dissimulada que fosse, teria sua inspiração e
organização ligadas a ele. Em segundo lugar, estava ainda mais convencido
então da necessidade de uma liquidação final e obstinada de todos os inimigos
potenciais de dentro do país. É possível que nem ele soubesse o alcance de tal
decisão. Sentia que chegara a hora em que não poderia haver mais hesitação,
ainda mais que Yezhov – muitas vezes transpirando vodka – trazia-lhe
constantes relatos de que ex-oposicionistas estavam ativos.
Stalin lembrou-se do quase esquecido affair Blyumkin. Blyumkin foi o
revolucionário socialista que assassinou o embaixador alemão, conde
Mirbach, em Moscou, em 1918, na tentativa de descontinuar as conversações
de paz que se realizavam em Brest-Litovsk. Foi sentenciado ao fuzilamento,
mas graças à intercessão de Trotsky, a pena foi comutada para “penitência por
ter lutado em defesa da revolução”. Blyumkin trabalhou por algum tempo na
equipe de Trotsky, tornou-se íntimo dele e depois foi servir na GPU. Quando
retornava à URSS, vindo da Índia via Constantinopla, em 1929, visitou
Trotsky em Prinkipo. De acordo com Deutscher, Trotsky entregou ao ex-
auxiliar o texto de um discurso para seus seguidores em Moscou e também
lhe deu alguns conselhos sobre como lutar contra Stalin. Blyumkin foi
imediatamente preso à sua chegada na URSS; talvez tivesse sido seguido em
sua viagem a Prinkipo, ou talvez tivesse falado descuidadamente a alguém
sobre sua viagem. Entretanto, é provável que o relato de I.A. Sats, secretário
de Lunacharsky, esteja mais próximo da verdade. Segundo ele, Blyumkin
entregou a Radek um pacote que Trotsky lhe havia endereçado, e também
transmitiu uma mensagem verbal. Quando Blyumkin saiu, Radek, sem abrir o
pacote, chamou Yagoda e falou-lhe sobre a visita. Yagoda fez um relato a
Stalin e o “mensageiro” foi preso de pronto. Radek gozou de uma indulgência
de curta duração. Blyumkin foi fuzilado depois de rápido julgamento. A sorte
não iria lhe sorrir duas vezes.
Existiriam outros Blyumkins por perto, seguindo instruções de Trotsky?
Quem seriam? Quem poderia avaliar a escala total da ameaça? Até aonde
Trotsky estendera sua teia? Talvez muitos trotskystas tivessem ficado
intimidados com a execução de Blyumkin, mas quem poderia garantir que
todos os seguidores de Trotsky estavam aterrorizados até a passividade?
Em diversos discursos, Stalin proclamou que o trotskysmo era a principal
plataforma hostil sobre a qual todos os inimigos da União Soviética estavam
grupados. O fantasma de Trotsky expandiu todas as proporções, levando-as ao
ponto de ameaça ao Estado. Stalin via “a mão de Trotsky” em todos os fiascos
e desastres. Nos julgamentos políticos de 1937-38, as acusações principais
eram a manutenção de vínculos diretos com Trotsky, a recepção de suas
ordens ou instruções, ou mesmo o encontro com ele em Berlim ou Oslo, e
assim por diante. No pleno de fevereiro-março de 1937 e em similares –
ocorreram quatro deles naquele ano – as expressões “Trotsky”, “trotskysmo”,
“espiões e assassinos trotskystas” foram ouvidas mais que quaisquer outras.
Fosse qual fosse o tópico em discussão, o espectro de Trotsky pairava sobre o
salão. Para Stalin, Trotsky tornara-se a personificação do mal universal.
65
A situação real era bem diferente. Mesmo no ponto mais alto, em meados dos
anos 1920, Trotsky tinha poucos aliados no partido. Depois da deportação,
alguns permaneceram leais, mas no máximo eram uns cem. Uns achavam que
Trotsky há muito deixara de lutar pelo socialismo e conduzia uma vendetta
pessoal que beirava o antissovietismo. Outros condenaram o trotskysmo e
abandonaram de todo a vida política. Os que Stalin “perdoou” e permitiu que
retornassem a Moscou – inclusive Rakovsky, Preobrazhensky, Muralov,
Sosnovsky, Smirnov, Boguslavsky e Radek – receberam cargos de terceiro
escalão nos comissariados do povo da Economia e da Educação, mas não lhes
foi permitido voltar à cena política. A avassaladora maioria deles se retratou
publicamente por intermédio da imprensa, e nenhum representava o mínimo
risco para o sistema ou para a estabilidade interna da sociedade.
Stalin sabia que emasculara todos intelectualmente ao forçá-los a renunciar ao
esquerdismo, a condenar a teoria da revolução permanente e a aceitar o
leninismo segundo a interpretação do secretário-geral. Mas sabia também que,
no fundo de seus corações, não estavam totalmente reconciliados e isso, para
ele, era um grande perigo. Em sua natureza insincera, supunha naturalmente
que todos nutrissem qualidades semelhantes.
Na verdade, a ameaça representada pelo trotskysmo não era nada de vulto.
Depois de 1935, como mostram suas cartas e publicações, Trotsky perdeu
quase todo o contato com a URSS. Os jornais e as rádios eram suas principais
fontes de informações. Enquanto filtrava e espremia os dados necessários,
continuava a pensar que era capaz de influenciar o processo social, político e
econômico na URSS. Stalin forçava-se a acreditar que isto era possível
porque precisava de um pretexto para acabar de uma vez por todas com
aqueles que não compartilhavam suas opiniões ou com os que pudessem agir
de forma hostil no futuro. Pensar sobre as predições de Trotsky o perturbava
mentalmente, e só o título do último livro do rival, Crimes de Stalin
(publicado poucos meses depois do julgamento político, de janeiro de 1937
em Moscou, de Pyatakov, Radek, Sokolnikov, Serebryakov e outros), era
suficiente para tirá-lo do sério.
Ao afirmar que a União Soviética não suportaria um embate com os países
capitalistas, Trotsky apenas proclamava que a posição de Stalin não tinha a
menor esperança. Suas palavras ecoavam nos ouvidos de Stalin como
presságio agourento:
Amanhã, Stalin pode se transformar em carga pesada para o grupo governante. […] Stalin está
prestes a concretizar sua trágica missão. Quanto mais parece que não precisa de ninguém, mais
perto está a hora em que ninguém precisará dele. Nessa ocasião, Stalin dificilmente ouvirá
palavras de gratidão pelo que fez. Sairá de cena levando nos ombros o peso de todos os seus
crimes. 66
Prezados camaradas!
Por causa do trabalho excessivo, estou atrasado na resposta, pelo que me desculpo. Já tomei
medidas em relação à solicitação de vocês. Ordens de pagamento já foram enviadas: de 100
rublos para o comitê central para a Organização Internacional de Auxílio aos Combatentes da
Revolução (MPOR) e de 300 rublos para o kolkhoz “Chama da Revolução” no distrito de
Khoper, um pioneiro na coletivização de massa.
Os rabiscos de Stalin no final dos anos 1920 só nos dizem uma coisa: que
aquilo que Poskrebyshev e Dvinsky relatam sobre os pensamentos
subliminais de Stalin, além de muitas outras coisas, não faz o menor sentido.
Por outro lado, a popularidade de Stalin era uma forma, por contorcida que
fosse, de autodefesa social. Quem não desejasse atrair suspeitas tinha que
evitar qualquer “escorregão da língua” nas suas referências ao líder. O
respingo mais insignificante e não intencional sobre o papel de Stalin como
líder poderia terminar em tragédia. O sociólogo A. Fedorov contou-me que,
no fim da década de 1940, na fábrica de motores de tratores perto de Vitebsk,
aconteceu o seguinte: o escritório fora recentemente pintado e chegara a hora
de pendurar os retratos nas paredes; um jovem operador de tratores entrou na
sala e derrubou sem querer um dos retratos de Stalin que estava encostado,
tentou recuperar o equilíbrio e, acidentalmente, pisou no rosto do líder; um
silêncio assustador desabou sobre as pessoas que estavam na sala, e um dos
gerentes passou uma descompostura no motorista; três dias mais tarde, o
jovem infeliz foi apanhado e só voltou a ser visto depois do XX Congresso.
Embutida na popularidade estava uma permanente camada oculta de medo.
Nem todos a sentiam constantemente. Os que sabiam da existência da
repressão e a tinham experimentado continuavam a elogiar Stalin enquanto
escondiam seu conhecimento do que se passava. A popularidade do
secretário-geral era assim sustentada tanto pela manipulação da opinião
pública, com base nas conquistas do povo, quanto pelo medo frequentemente
incerto da punição real em caso da menor crítica a ele. Como consequência
natural da suspeita e da mania de espionagem implantadas na mente pública, a
delação generalizada passou a ser a norma.
Contudo, seria errado supor-se que todos os cidadãos soviéticos amavam
Stalin fanaticamente e que ele era popular para todos. Havia uma camada
substancial de comunistas pré-revolucionários conhecida como velha guarda
leninista. Eles conheciam a história do partido e a contribuição real que cada
líder fizera para a Revolução de Outubro, não as contadas pelo secretário-
geral no Curso resumido , e a maioria deles só veio a saber da existência de
Stalin depois da revolução e da guerra civil, quando, como vimos, ele não
esteve na linha de frente. Portanto, a atitude do “líder” em relação a esses
antigos leninistas era bastante “parcial”. Ele sabia que, embora os da velha
guarda não dissessem nada, a imagem que tinham do secretário-geral era
diferente da que desejava passar. Aquelas pessoas com passado
revolucionário eram uma pedra no seu caminho.
Stalin via que, apesar do progresso, muita coisa não estava sendo conseguida.
A agricultura era o caos, se bem que a safra de 1936 tivesse sido boa. Como
antes, o país enfrentava sérias dificuldades econômicas e sociais. A despeito
do tempo que transcorrera desde a revolução e do slogan “a vida é melhor e
mais alegre”, Stalin ainda conclamava pelo aperto dos cintos pelo bem do
amanhã. O padrão de vida não melhorara tanto assim. Se Stalin dizia que a
culpa era dos destruidores, o povo – evidentemente não propenso a se
autoacusar – acreditava, em particular porque existiam muitos ex-
oposicionistas e pessoas com reputações manchadas para pagar a conta. Todos
podiam ver evidências de solapamento na economia e na administração.
Molotov, Kaganovich, Yezhov e Malenkov, este último fazendo carreira
acelerada, perceberam rapidamente a direção do pensamento de Stalin e
captaram as ideias contidas em suas assertivas. Curvado sob o peso de seu
casaco de soldado, como que encolhido ante o olhar de seus inimigos
potenciais, Stalin parecia sinalizar que só a completa erradicação destes
tornaria sua posição inflexivelmente segura. Era necessária ação decisiva. Um
golpe maciço contra seus inimigos indistintos serviria, no seu modo de ver,
para justificar os desastres e enganos de sua política econômica, como
também para livrar-se daqueles que torciam por sua derrota. Depois da guerra,
Molotov acrescentou que, ao acabar com seus inimigos, Stalin estava olhando
bem para o futuro: ele exterminara aqueles que, numa guerra contra o
fascismo, poderiam ter ficado ao lado de Hitler.
Para Stalin, pareceu que sua hora havia chegado. Dali por diante, ninguém
seria capaz de desafiar seu mando pessoal. A tragédia se aproximava. A
decisão amadureceu e foi finalmente tomada quando estava em Sochi, bem
distante de Moscou. Em 25 de setembro de 1936, enviou um telegrama a
Molotov, Kaganovich e outros membros do Politburo em Moscou. Estava
assinado por Stalin e Zhdanov, o qual, no XVII Congresso, tornara-se
secretário do comitê central e passara a gozar rapidamente da confiança do
secretário-geral. O telegrama foi o seguinte:
Consideramos de absoluta necessidade e urgência que o camarada Yezhov seja nomeado
Comissário do Povo para as Questões Internas. Yagoda mostrou-se totalmente incapaz de
desmascarar o bloco trotskysta-zinovievista. A OGPU está atrasada quatro anos a este respeito.
Isso foi notado por todos os trabalhadores do partido e pela maioria dos representantes da NKVD.
79
Parte VI
O epicentro da tragédia
Tudo entender
Não é tudo perdoar.
Erich Kästner
[28]
Inimigos do povo
A no-novo de 1937. A habitual azáfama das celebrações corria solta nas
cidades e vilas do vasto país. Nos clubes e nos apartamentos abarrotados,
enfeitavam-se pinheiros. Os homens já estavam de posse de uma ou duas
garrafas de vodka e, nas grandes cidades, adquiriam algum vinho decente para
as mulheres. Nos últimos dois anos, as vitrines e prateleiras das mercearias
tinham sido uma verdadeira festa. A edição de Ano-novo do Pravda , por
exemplo, publicou uma pequena nota sob o título “Compras de festas”
dizendo:
Os moscovitas compraram ontem enormes quantidades de uma grande variedade de vinhos, da
champanhe ao moscatel soviéticos, bem como centenas de tipos de linguiças, peixes defumados,
bolos, tortas e frutas. Milhares de funcionários da “Gastronomia”, da “Mercearias” e de outras
lojas de alimentação estavam entregando as compras de seus consumidores para as
comemorações do Ano-novo.
A pulsação do país era mais forte e mais rápida. O povo ainda vivia
pobremente, vestia-se mal, a existência era contida e dura, se bem que o país
como um todo batalhasse com vistas ao futuro. Era considerado de mau gosto
falar em interesses individuais; todos estavam envolvidos com a causa
comum. Os objetivos do Estado excluíam o completo e harmonioso
desenvolvimento da pessoa, ainda assim os valores socialistas de todo o
sistema de relações dependiam da vontade e do modo de pensar de um só
indivíduo, e era obrigatória a adoração em seu altar ideológico. Um editorial
no Pravda de 1º de janeiro de 1937 intitulado “O grande timoneiro nos
conduz”, fechava com o seguinte panegírico: “A nau do Estado soviético está
bem equipada e armada. Não teme tempestades. Mantém o curso. Foi
brilhantemente planejada para enfrentar elementos hostis em tempo de guerra
e na revolução proletária. É dirigida por um gênio, o timoneiro Stalin.” O
artigo era acompanhado por um enorme retrato de Stalin encimando um mar
de pessoas. Alguém na multidão portava um retrato de Lenin.
Os jornais do início de 1937 repassavam mais do que a atmosfera
frequentemente tensa da vida dos trabalhadores: também alertavam sobre o
perigo da ameaça que vinha do exterior. Traziam matérias de Mikhail Koltsov
transmitidas da Espanha, detalhes do afundamento do navio soviético
Komsomol perpetrado pelos fascistas, a outorga do título de Herói da União
Soviética a um grupo de oficiais do Exército Vermelho “pela exemplar
execução de missões especiais e muito difíceis do governo”. Todos sabiam
que se tratava de heróis “espanhóis”.
Nos primeiros dias de dezembro de 1936, o XVIII Congresso Extraordinário
dos Sovietes adotou uma nova Constituição Soviética que proclamava
liberdades e direitos democráticos amplos e fundamentais, inclusive a
liberdade de consciência, de expressão, de imprensa e de reunião, acentuando
a inviolabilidade da pessoa e a privacidade da correspondência.
Stalin tinha a capacidade de se transformar instantaneamente. No silêncio de
seu gabinete, um Stalin assinava listas de nomes de pessoas que deveriam ser
presas e executadas, e também aprovava planos para sentenças desumanas; ao
passo que, na tribuna, movendo o braço num amplo movimento de
decapitação, outro Stalin declarava que a nova Constituição “não se limita à
fixação de direitos civis formais, porém muda o centro de gravidade para a
questão da garantia de tais direitos”. Apenas poucos meses antes, na sua
2
última reunião com Zinoviev e Kamenev, de acordo com alguns relatos, ele
declarara:
Nossos princípios não permitem que derramemos sangue de antigos membros do partido, por
maiores que tenham sido seus pecados. Os líderes de nosso partido não olvidam nem direitos
nem responsabilidades. O julgamento, no qual vocês ajudarão o Estado, não é dirigido contra
vocês, e sim contra Trotsky. Tudo isto é necessário ao regime soviético. 3
Stalin poderia ter lembrado de pelo menos uma dúzia de cartas de Zinoviev
implorando clemência. Poderia recordar a carta que Yagoda lhe entregara, em
17 de dezembro de 1934, quando Zinoviev foi investigado e preso, na qual o
velho bolchevique escreveu, entre outras coisas:
Não sou culpado de nada, nada, nada em relação ao partido, em relação ao comitê central e em
relação a você pessoalmente. Juro por tudo que é mais sagrado a um bolchevique. Juro pela
memória de Lenin.
Não posso nem imaginar a causa das suspeitas sobre minha pessoa. Rogo-lhe que acredite em
minha palavra de honra. Estou abalado até o fundo de minha alma. 4
Mas não eram certas “qualidades” que estorvavam Stalin. Eram pessoas.
Muita, muita gente. Toda esta gente “não abatida” estava (potencialmente)
impedindo que ele se consolidasse como único líder ilimitada e
universalmente amado. Ele não esquecera que Bukharin e outros haviam sido
companheiros de partido: o infortúnio daquelas pessoas era que tampouco
elas tinham esquecido e muito sabiam sobre ele. Ele lera em algum lugar,
possivelmente em Cosimo de Medici: “Existe um preceito de que não
devemos perdoar nossos inimigos. Mas não existe um sobre o perdão para
nossos antigos amigos.” Stalin não pensava em perdoar qualquer das duas
categorias.
Quem primeiro empregou a aterradora expressão “inimigos do povo”? Já
vimos que, em seu desterro na Sibéria, Stalin ficara impressionado com o que
lera sobre a Revolução Francesa, em particular com a determinação de
Robespierre, o qual, no momento crítico, conseguiu uma lei para simplificar
os processos jurídicos contra os “inimigos da revolução”. Mas, ao contrário
de Robespierre, Stalin padecia de um medo mortal de atentados contra sua
própria vida. Portanto, as acusações imputadas a incontáveis desafortunados
tiveram fulcro no famoso Artigo 58 sobre “atos terroristas dirigidos contra
representantes do regime soviético”. A julgar pelos procedimentos legais
daquela ocasião, pensar-se-ia que milhares e milhares de cidadãos soviéticos
não pensavam noutra coisa que em dar cabo do líder e de seu entourage.
Se bem que a expressão “inimigo do povo” fosse usada antes de 1934, foi a
partir daquele ano que Stalin conferiu-lhe conteúdo definido. Uma “carta
secreta” do comitê central para as organizações partidárias nas regiões e nas
repúblicas, datada de 29 de julho de 1936 e claramente de autoria de Stalin,
salientou que um inimigo do povo normalmente se mostrava “dócil e
inofensivo”, que fazia de tudo para se “infiltrar furtivamente no socialismo”,
que não aceitava o socialismo e que, quanto mais desesperançada ficasse sua
posição, mais inclinado “se tornaria a medidas extremadas”. 8
Poucos dias depois, fui enviado para Odessa, nomeado novamente como primeiro-secretário do
comitê regional do partido, mas o chefe local do MVD logo chegou-se a mim e disse que eu
deveria permanecer em casa no dia seguinte. Eu sabia que isso significava prisão a qualquer
momento. E entre os que trabalharam com Beria, aqueles que tinham dúvidas eram encarados
como os piores inimigos do povo. Fui salvo por um milagre: o próprio Beria foi preso naquela
ocasião.
Zhdanov prosseguiu por bom tempo citando exemplos similares. Eles não
eram apenas sintomáticos das práticas antidemocráticas do partido. A
organização estava dominada por uma situação na qual a ilegalidade era a
regra, bem como por uma atitude permissiva em relação ao emprego
disseminado da repressão. Stalin e sua equipe haviam criado um clima moral
que possibilitava o desvio das soluções administrativas para o emprego franco
da força contra potenciais oponentes.
Quando houve o pleno, Stalin já efetuara um “reconhecimento em força” ao
lidar com Zinoviev, Kamenev e outros bolcheviques. Aquela gente postava-se
no seu caminho, sabia muito sobre ele. Sabia, por exemplo, das reuniões em
seu estúdio quando tramou com Zinoviev e Kamenev contra Trotsky;
conhecia as incontáveis intrigas, as adulterações que introduzira em antigos
documentos do partido (por exemplo, arquitetara a distribuição de uma nota,
por intermédio de Vladimir Sorin e Yelena Stasova, pedindo alterações nas
minutas de uma reunião do comitê central de 23 de fevereiro de 1918 sobre a
paz de Brest-Litovsk); sabia da misteriosa enfermidade e morte de Frunze, e
10
Desde o fim dos anos 1920 e de novo em 1934 e 1937, Stalin vinha pregando
que a luta de classes se aguçaria com o progresso do socialismo, um conceito
na verdade paradoxal em seu tom e irracional no conteúdo. Mas Stalin era um
pragmático. Tinha de encontrar uma base teórica para o processo de expurgo
total que preparava. Ninguém, afora ele, estava capacitado para a missão, e
era ele quem precisava da fundamentação. Em 1934, garantira que as classes
exploradoras estavam liquidadas na URSS e agora, três anos depois, mostrava
de repente que a luta estava se “aguçando”. Disse ao plenário que isso era
possível porque ex-oposicionistas tinham se camuflado e vinham executando
atividades subversivas clandestinas, consolidando suas forças e ganhando
tempo. Citou “seis teorias podres” que evitavam que o partido destruísse
completamente os trotskystas: não se deveria pensar que cumprir o plano
antes do tempo derrotaria os destruidores; ou que o movimento stakhanovista
por si só acabaria com a sabotagem; era errado supor, como alguns, que os
trotskystas não estavam congregando forças, e por aí prosseguiu.
Enquanto os outros relatores se concentraram em fatos concretos de
sabotagem, Stalin, como sempre, encaixou tudo dentro de um quadro bem
estruturado. No seu pronunciamento final de 5 de março, declarou que “há
sete pontos que o pleno não aclarou”. Entre eles, fez alguns julgamentos
corretos, por exemplo, que diversos ex-trotskystas tinham assumido posições
boas e “não deveriam ser desacreditados”. Fez diversas declarações “típicas
de líderes” como a de que, vez por outra, dever-se-ia dar ouvidos à voz das
“pessoas comuns”, externou algumas palavras de ordem tais como “no futuro,
esmagaremos nossos inimigos, como o fazemos agora e fizemos no passado”.
Valendo-se de sua forma preferida de aforismos simples que todos podiam
entender, declarou: “Para ganhar uma batalha são necessários diversos
exércitos. Para perdê-la bastam uns poucos espiões. Para construir uma
grande ponte ferroviária há necessidade de milhares de operários. Para
destruí-la, bastam apenas alguns homens.” 15
2. Com base nas evidências da investigação e em função das acareações, o Comitê Central
concluiu que os camaradas Bukharin e Rykov, no mínimo, sabiam da organização de grupos
terroristas criminosos por seus discípulos e seguidores Slepkov, Tseitlin, Astrov, Maretsky,
Nesterov, Rodin, Kulikov, Kotov, Uglanov, Zaitsev, Kuzmin, Sapozhnikov e outros, e não só
nada fizeram para barrá-los como os encorajaram.
Zhdanov tinha alguns fatos a relatar sobre o “trabalho” que já fora feito em
Leningrado para revelar “inimigos”. “Oito grupos de sabotadores tinham sido
descobertos nas ferrovias Kirov e Outubro, dez grupos em fábricas, na
NKVD, na defesa antiaérea e no aparato do partido.” “Ninhos de inimigos”
foram logo desvendados no distrito Vyborg (13 pessoas), no distrito
Vasilievsky (12) e no distrito Kirov (12). No total, 223 funcionários do
partido. “Vocês bem podem imaginar a confusão no aparato do partido!”,
advertiu.
Acompanhado de urros de indignação, Zhdanov pintou um quadro lúgubre do
domínio do inimigo na cidade que era o berço da revolução: “Entre 1933 e
1936, 183 pessoas foram graduadas pelo Instituto dos Professores Vermelhos,
32 delas já foram presas. Das 130 que restaram em Leningrado, 55 foram
declaradas inimigas do povo.” Cenas semelhantes de destempero ruidoso
21
[29]
Farsa política
E m seguida ao julgamento de Zinoviev e Kamenev, começou em Moscou,
em 23 de janeiro de 1937, o dos chamados “17”, ou seja, de Pyatakov e 16
outros. O objetivo era mostrar que Trotsky usara os acusados para organizar
atos de destruição e para preparar o retorno do capitalismo na URSS. O
julgamento foi tão bem encenado que Pyatakov, a despeito de sua força de
vontade, chegou a descrever com eloquência um encontro que tivera com
Trotsky em Oslo (onde jamais fora) e declarou que Trotsky
na sua diretriz, estabeleceu duas possíveis variantes para nossa chegada ao poder. A primeira
seria antes da guerra e a segunda durante a guerra. Trotsky via a primeira variante como resultado
de um golpe terrorista concentrado. O que ele tinha em mente era a execução simultânea de atos
terroristas contra alguns líderes do partido e do Estado, especialmente contra Stalin e seus
auxiliares mais próximos. A segunda variante, que Trotsky considerava a mais provável, viria na
derrota militar. 22
Na vila de Tabory, nos Urais, por danos causados ao kolkhoz , cinco homens foram sentenciados
ao fuzilamento.
Minsk. Pela contaminação intencional da farinha de trigo, cinco homens foram sentenciados à
morte.
O escritório do Procurador foi procurado pela esposa de A.S. Kuklin, que foi sentenciado em 18
de janeiro de 1936 a dez anos de prisão. Kuklin está preso na penitenciária Butyrki. Segundo um
relatório médico de 7 de janeiro deste ano, Kuklin tem um tumor maligno no esôfago. Ele está
clinicamente desenganado.
O tempo passará. Os túmulos dos execrados vendilhões ficarão cobertos de ervas daninhas e do
desprezo eterno do honesto povo soviético, de todo o povo soviético.
Ao passo que sobre nossa terra feliz, brilhante e clara como sempre, o sol lançará seus raios
fulgurantes. Nós, o povo, continuaremos como antes palmilhando nosso caminho já então livres
de qualquer traço da vileza e da podridão do passado, e liderados pelo amado líder e mestre, o
grande Stalin. 26
Vyshinsky: “Nesse caso, qual foi o significado de sua declaração de ontem, que só pode ser vista
como uma provocação trotskysta ao tribunal?”
Krestinsky: “Ontem, sob a influência de grave e momentânea vergonha interior, causada pelo fato
de estar no banco dos réus e de ouvir a leitura das acusações, com o agravante de meu péssimo
estado de saúde, eu não estava em condições de dizer a verdade, nem em condições de dizer que
era culpado.”
Krestinsky: “Solicito que a corte registre a declaração de que reconheço total e completamente
que sou culpado de todas as sérias acusações pessoalmente a mim imputadas e que me
responsabilizo por inteiro pela traição que cometi.” 27
Você, ** sem dúvida, recebeu a carta que dirigi aos membros do Politburo e a Vyshinsky. Escrevi
na noite passada ao secretariado do Camarada STALIN e solicitei que ela fosse circulada, já que
contém tudo o que de importante se relaciona com as acusações monstruosamente chocantes de
Kamenev. (Como escrevi, estou tendo uma sensação de semirrealidade; será um sonho, uma
miragem, uma loucura, uma alucinação? Não, é realidade.) Gostaria de perguntar a todo o
mundo: Vocês de fato acreditam nisto? Realmente?
É verdade que escrevi um artigo sobre Kirov. Aconteceu que, por acaso, quando eu estava
(merecidamente) em desgraça e doente, ele me visitou, conversamos o dia inteiro, colocamos
tudo em pratos limpos; ele me cedeu seu vagão ferroviário particular, enviou-me de volta a
Moscou e tratou-me com tal consideração que não esquecerei até o dia de minha morte. Portanto,
poderia eu ter escrito alguma coisa que não fosse sincero a respeito de Sergei [Kirov]? Pergunte
honestamente a si mesmo. Se eu demonstrasse insinceridade, deveria ser preso e exterminado de
pronto, porque não precisamos de vilãos desse tipo. Se vocês acharam que fui “insincero”, e me
deixaram solto, então vocês são uns covardes que não merecem respeito…
É verdade que pensei – e que continuarei pensando enquanto tiver um cérebro dentro de minha
cabeça – que seria uma insensatez, do ponto de vista internacional, ampliar a base da burrice (o
que significaria ir ao encontro do desejo do poltrão Kamenev! Tudo o que ele queria era tentar
provar que não estavam agindo sozinhos). Mas não falarei sobre isso, senão vocês pensarão uma
vez mais que estou usando a alta política como desculpa para pedir tolerância.
Mas quero a verdade; e a verdade está do meu lado. Pequei muito contra o partido durante meu
tempo e sofri muito por causa disto. Porém declaro, quantas vezes forem necessárias, que, nos
anos recentes, defendi a política partidária e a liderança de KOBA com grande convicção, sem
jamais ter sido subserviente.
Foi muito bom voar acima das nuvens anteontem: oito graus abaixo de zero, claridade de
diamante, respirando a paz da vastidão.
É provável que o que escrevi não faça sentido. Não se irrite. Talvez não seja muito agradável para
você receber uma carta minha neste momento. Sabe Deus, tudo é possível.
Contudo, “apenas por garantia”, eu gostaria de assegurar-lhe (já que você tem tido uma atitude
correta em relação a mim), que sua consciência pode ficar absolutamente tranquila : eu não o
deixei mal. Não sou absolutamente culpado de coisa alguma e, mais cedo ou mais tarde, isto
ficará patenteado, por mais que queiram enodoar meu nome.
Pobre Tomsky! Pode ser que ele “tenha se envolvido”. Não sei. Não descarto a possibilidade. Ele
vivia isolado. Talvez se eu o tivesse visitado ele não ficasse tão deprimido e não se envolvesse. A
vida humana é tão complicada! Mas tudo isto é poesia e estamos tratando de política, não de
questões poéticas, e política bastante dura.
Fico terrivelmente feliz que os cães [Zinoviev e Kamenev] foram fuzilados. Trotsky foi destruído
pelo julgamento e isto logo ficará totalmente claro. Se eu ainda estiver livre quando a guerra
irromper, vou me alistar para lutar (palavra feia), e você me fará um último favor deixando que
eu ingresse no exército mesmo como soldado raso (nem que seja para ser atingido por uma bala
envenenada de Kamenev).
Certa vez, recomendei que você lesse o drama sobre a Revolução Francesa escrito por Romain
Rolland.
Desculpe esta carta confusa: milhares de pensamentos correm por minha cabeça como cavalos
bravios, e não possuo rédeas fortes para contê-los.
STALIN
MOLOTOV
KAGANOVICH
ORDZHONIKIDZE
ANDREYEV
CHUBAR
YEZHOV
Anexos: 3 páginas.
4.IX.36
Respondo à carta em que você se permitiu fazer ataques vis à liderança do partido. Se você
esperava com tal carta convencer-me de sua completa inocência tudo o que fez foi convencer-me
de que devo, a partir de agora, afastar-me ao máximo de você, independentemente do resultado
de seu caso. E se você não repudiar por escrito os inqualificáveis epítetos contra a liderança
partidária vou considerá-lo um ser desprezível.
Pode-se bem imaginar o choque que Bukharin deve ter tido ao receber esta
carta, embora, no íntimo, soubesse que a lâmina da guilhotina de Stalin estava
suspensa sobre sua cabeça. É possível que tenha se lembrado das palavras de
Robespierre para a Convenção de 8 do Termidor, na véspera de sua execução:
“Eles chegaram à tirania com a ajuda de canalhas, onde chegarão aqueles que
lutam contra eles? Aos seus túmulos e à imortalidade.” Bukharin lutou? Ao
ler a devastadora carta de Voroshilov, encontrou forças para responder ao
comissário de Stalin:
Camarada VOROSHILOV
Todo homem tem, ou deveria ter, seu orgulho pessoal. Mas eu gostaria de acabar com um mal-
entendido político. Escrevi-lhe uma carta de natureza pessoal (que agora lamento muito) enquanto
experimentava um grave transe psicológico: considerando-me perseguido, escrevi para um
grande homem; eu estava enlouquecendo e só pensava no que poderia acontecer, ou que alguém
pudesse acreditar que eu era culpado.
Por isso, esbravejei e escrevi: “Se vocês me acharam ‘insincero’ (por exemplo, que escrevi
insinceramente meus artigos sobre Kirov), e ainda assim me deixaram livre, então foram
covardes etc.” E mais: “ E se você mesmo não acredita que Kamenev andou armando… etc.”
Bem, então, segundo você, isso significa que penso que você é covarde ou que estou chamando
nossos líderes de covardes? Ao contrário: o que quero dizer é que, uma vez que todos sabem que
vocês não são covardes, isso significa que não acreditam que escrevi artigos insinceros. Por certo,
esta parte é clara em minha carta!
Porém, se minha carta foi tão confusa que pôde ser tomada como um ataque, então – não por um
temor do tipo de Judas, mas genuinamente – por três vezes, por escrito ou da maneira que lhe
aprouver, retiro aquelas frases, embora não quisesse dizer o que você pensou.
Seja como for, peço-lhe que desfaça esse mal-entendido. Desculpo-me muito por minha última
carta e não mais o incomodarei com outra. Ando extremamente nervoso. Foi isso que fez com
que escrevesse a carta. Na realidade, tenho que permanecer o mais calmo possível enquanto
aguardo o desfecho da investigação que, seguramente, provará minha completa falta de
envolvimento com os bandidos. Porque aí reside a verdade.
Adeus.
Bukharin 3.IX.36 28
O cidadão Procurador afirma que, juntamente com Rykov, sou um dos mais importantes
organizadores da espionagem. Qual a prova? Teria sido o testemunho de Sharangovich, do qual
não ouvi falar antes do sumário de culpa?
Nego categoricamente que tenha tomado qualquer parte nos assassinatos de Kirov, Menzhinsky,
Kuibyshev, Gorky ou Maxim Peshkov. **** Segundo o depoimento de Yagoda, Kirov foi
assassinado por ordens partidas do “Bloco Trotskysta-Direitista”. Eu nada soube disto.
A lógica severa da luta foi acompanhada pela degeneração de nossa psicologia, de nossa própria
degeneração, da degeneração do povo. 29
Stalin deve ter ficado satisfeito em saber que, embora enfrentassem a morte,
os inimigos do povo e do partido não se rebelaram, mas disseram o que deles
foi pedido. Encarou as “confissões completas” como vitória pessoal, sem
suspeitar que elas continham as sementes de sua inevitável derrota moral.
Mas sabia também que Bukharin resistira por três meses depois da prisão.
Eles o ameaçaram e pressionaram, porém o acadêmico em desgraça, mesmo
na prisão, tentou uma série de cartas para convencer Stalin, como o fizera no
pleno de fevereiro-março, de que “há uma conspiração e existem inimigos do
povo, mas os principais devem ser procurados dentro da NKVD”.
Stalin não reagiu a tais sinais. Talvez, ao considerar o gélido silêncio
resultante de suas cartas a Stalin, Bukharin pensasse na oportunidade que
tivera recentemente para escapar daquele destino. Ele passara de fevereiro a
março de 1936 no exterior, com uma pequena delegação, para comprar
material de arquivo sobre Marx e Engels. Já naquela ocasião, tinha ideia sobre
qual poderia ser sua sorte, porém, como Robespierre, achou que só atingiria a
imortalidade em sua terra natal. *****
Algum tempo antes, Stalin enviara a seguinte instrução do comitê central às
autoridades locais da NKVD:
O comitê central […] autoriza o emprego da coação física pela NKVD, a começar em 1937. É
bem sabido que os serviços burgueses de informações usam a coação física do tipo mais
revoltante contra representantes do proletariado socialista. Por que então os órgãos socialistas
devem ser mais humanos com os agentes fanáticos da burguesia e inimigos declarados da classe
trabalhadora e das fazendas coletivas? O comitê central julga que a coação física deve ser
utilizada excepcionalmente e, de agora em diante, empregada contra inimigos conhecidos e
revelados do povo, mas, nestes casos, encarada como método permitido e correto. 32
Essa “exceção” tornou-se regra e foi utilizada tão logo um acusado dava os
primeiros sinais de resistência nas “conversas” com os investigadores.
Como Bukharin ainda não estava revelando coisa alguma e a “investigação”
ameaçava se estender bastante, Stalin ordenou que Yezhov utilizasse “todos
os meios”. Já vimos, das cartas que enviou a Voroshilov (e Stalin) em
setembro de 1936, que o estado emocional de Bukharin tornara-se precário
com o progresso do terror. Então, com as ameaças feitas contra sua jovem
esposa e o filho recém-nascido, ele desabou completamente. Passou a assinar
qualquer invenção monstruosa que os investigadores arquitetassem,
rotulando-o de “trotskysta”, “líder do bloco”, “conspirador”, “traidor”,
“organizador da sabotagem”, e assim por diante. É dolorosa a leitura de suas
palavras:
Confesso que sou culpado dos crimes mais abomináveis que podem existir: traição contra a mãe-
pátria socialista, organização de levantes kulaks, preparação de atos terroristas, filiação a uma
organização subversiva antissoviética. Confesso ainda mais que sou culpado de tramar um “golpe
palaciano”… 33
Conquanto Stalin se mostrasse bem radiante, deve ter percebido, ao ler alguns
relatórios dos interrogatórios, o sarcasmo disfarçado dos acusados enquanto
respondiam aos organizadores do “espetáculo” com ironia macabra:
Vyshinsky: “Acusado Bukharin, é ou não é fato que seu grupo de cúmplices
no Cáucaso Setentrional teve ligações com círculos no exterior de emigrados
cossacos Brancos? Rykov falou sobre isto. Slepkov falou sobre isto.”
Bukharin: “Se Rykov falou sobre isto, não tenho motivos para desacreditar
nele.”
Vyshinsky: “Como conspirador e líder, este fato era do seu conhecimento?”
Bukharin: “Do ponto de vista da probabilidade matemática, pode-se dizer
com probabilidade alta que se trata de um fato.”
Vyshinsky: “Deixe-me perguntar de novo a Rykov: este fato era do
conhecimento de Bukharin?”
Rykov: “Pessoalmente, calculo pela probabilidade matemática que ele deve
ter sabido disto.” 34
Tentaram matar nosso querido líder, o Camarada Stalin. Em 1918, atiraram no Camarada Lenin,
interromperam a vida promissora de Sergei Mironovich Kirov, assassinaram Kuibyshev,
Menzhinsky e Gorky. Traíram a mãe-pátria.
Stalin descompôs Yezhov pela fabricação “cretina” dos casos e, mais uma
vez, especulou se não era hora de dar um fim a toda a campanha. Decidiu que,
enquanto existissem pessoas que vissem, mesmo que apenas mentalmente,
Trotsky como uma alternativa, ele deveria continuar.
Os julgamentos políticos tinham ainda outro objetivo. Com ajuda deles, Stalin
queria mostrar que todos os antigos oposicionistas – trotskystas,
bukharinistas, zinovievistas, mencheviques, dashnaks, SR, anarquistas,
bundistas – foram antissocialistas, e que tinham infectado os cidadãos
soviéticos que trabalhavam no exterior, tais como diplomatas, figuras
culturais, gerentes industriais, cientistas, até mesmo os que cumpriam seu
dever internacional na Espanha. Muitos emigrados que retornaram à terra
natal e comunistas estrangeiros que trabalhavam no Comintern ou em suas
organizações em Moscou foram também rotulados como “inimigos do povo”,
juntamente com quem quer que tivesse sido anteriormente expelido do
partido, tivesse qualquer relutância em relação ao partido ou expressasse
dúvida política. Os parentes dos acusados eram automaticamente
considerados “inimigos”. Mesmo na NKVD houve grande número de vítimas,
alguns por tentarem sabotar as encenações jurídicas criminosas, enquanto
outros foram tachados na categoria de “inimigos” por zelo excessivo. Seus
líderes se transformaram também em tipos perigosos porque sabiam demais.
Assim, Yagoda, Frinovsky e Berman, entre muitos outros, foram acusados de
cometer excessos, distorções e “atividades destruidoras nos órgãos da
NKVD”. Da mesma forma, tornou-se um risco ter conhecido Lenin, ou ter
combatido o czarismo e, portanto, ainda que instintivamente, conhecer os
valores da liberdade e da democracia. E, é claro, existiram pessoas que
sabiam mais sobre Iosef Djugashvili do que era bom para elas.
A suspeita aumentou o momentum da violência. V. Zakharov, M. Motsiev e
outros trabalhadores ferroviários em Arzamas dificilmente entendiam as
ideias de Trotsky, porém foram exatamente aquelas ideias, combinadas com a
“intenção de cometer sabotagem terrorista” que os levaram à sentença de
morte em 31 de outubro de 1937. Como Ulrikh reportou a Stalin, “todos os
acusados confessaram inteiramente sua culpa”.
Uma característica dos julgamentos foi o desejo de Stalin de não apenas
destruir seus oponentes, reais ou imaginários, mas primeiro arrastá-los pelo
lamaçal da amoralidade, da delação e da traição. Todos os júris foram
exemplos sem precedentes de autodegradação, autoperjúrio e autoacusação.
Quase sempre, os fatos assumiam um tom ridículo quando os acusados
afirmavam insistentemente ser traidores, espiões e assassinos. Kamenev, por
exemplo, afirmou nada menos que: “Servimos ao fascismo, organizamos a
contrarrevolução contra o socialismo.” Promessas de benevolência, ameaças
de repressão contra as famílias e a tortura física sistemática acabaram por
vergar essas pessoas e forçaram-nas a desempenhar seu papel humilhante de
acordo com a cena armada pelos “sumos sacerdotes da justiça”. Stalin
permaneceu nos bastidores enquanto seus assistentes, Vyshinsky e Ulrikh,
apresentavam o cínico espetáculo.
Quando aqueles irmãos de infortúnio, Bukharin e Rykov, foram destituídos da
condição de candidatos a membro do comitê central, Stalin deu-lhes um fio
tênue de esperança dizendo-lhes que a “NKVD esclareceria tudo”. Ao
enfrentarem o colegiado militar da Corte Suprema da URSS um ano mais
tarde – “do outro lado da muralha”, como disse Bukharin – sentiram que a
taça da velhacaria estava cheia até a borda, e eles foram forçados a sorvê-la
toda.
Notas
* Os comissários do povo passaram a se chamar “ministros” em 1946.
** Bukharin emprega a forma familiar de tratamento.
*** Voroshilov dirigiu-se a Bukharin pela forma familiar de tratamento ao longo de toda a carta.
**** Filho adotivo de Gorky.
***** Boris Nicolaevsky, em Power and the Soviet Elite (Nova York, 1965), descreve seus encontros
com Bukharin nessa viagem. Bukharin estava acompanhado da esposa grávida, mas quando sugeriram
que ele ficasse no exterior, diz-se que respondeu: “Não acho que seria capaz de viver sem a Rússia.
Estamos todos acostumados com as coisas de lá e com as tensões da vida.”
[30]
Quadros no banco dos réus
E m 4 de maio de 1935, no Kremlin, Stalin discursou para uma turma de
formandos do Exército Vermelho. Os jovens oficiais e comissários políticos,
com seus talabartes estalando de novos, distintivos novos de colarinho e
modernas platinas de posto orgulhosamente ostentadas nos ombros, fixaram o
olhar na figura baixa e encorpada. Uns poucos gestos acompanharam a voz
branda que ecoou no absoluto silêncio do salão do Kremlin. Stalin discursou
lentamente, olhando ocasionalmente para o texto escrito que tinha diante de
si:
Lembro-me de uma ocasião na Sibéria, onde estive exilado. Era primavera e as águas corriam
altas. Trinta e poucos homens saíram para recolher madeira que o grande rio carregava.
Retornaram à vila pelo anoitecer, mas faltava um deles. Quando perguntei o que tinha acontecido,
simplesmente disseram: “Ficou por lá.” Então perguntei: “Como assim? Ficou por lá como?” Eles
responderam com indiferença: “Provavelmente se afogou. E daí?” E um deles saiu às pressas
resmungando alguma coisa a respeito da forragem da égua. Quando os recriminei por se
importarem mais com os animais do que com as pessoas, um deles disse, com aprovação geral:
“Por que nos preocuparmos com gente; podemos fazê-las a qualquer momento. Agora, tente fazer
uma égua…”
Então, camaradas, se quisermos vencer a fome do povo das regiões e desejarmos que nosso país
tenha quadros capazes de fazer avançar a tecnologia, colocando-a em ação, temos primeiro que
aprender a valorizar gente, apreciar os quadros, prezar todo o trabalhador que seja capaz de fazer
o bem por nossa causa. Temos, finalmente, que entender que o capital mais valioso do mundo e o
mais decisivo são as pessoas, os quadros. Entender que, nas presentes circunstâncias, “os quadros
determinam tudo”. 36
“Por que não está trabalhando?”, perguntei mesmo antes de cumprimentá-lo. “Estou esperando.
Eles disseram que vêm me pegar hoje. Olhe só, botei na mala algumas camisas limpas. Nasedkin,
da NKVD, está expurgando um em cada dois. Provavelmente, vai paralisar a ferrovia.”
Era este o padrão em todo o país, como ilustram os extratos do pleno de 1937.
Durante o debate sobre o relatório de Molotov, que tratou da campanha
eleitoral (que de eleições teve muito pouco, pois centrou-se mais nos inimigos
do povo), o secretário Sobolev do comitê regional do partido de Krasnoyarsk
disse:
Estamos agora desmascarando e destruindo inimigos: bukharinistas, rikovistas, trotskystas,
kolchakistas, sabotadores; estamos esmagando todos esses porcos de nossa região. Eles estão nos
atacando abertamente. Posso dizer que a forma favorita de sabotagem é o incêndio provocado.
com outro relatório onde era afirmado que “em 1º de janeiro de 1948,
existiam 2.199.535 prisioneiros em campos e colônias. Vinte e sete novos
campos foram construídos”. 40
A isto deve ser adicionada a população presa, sobre a qual não existem dados,
mas que estimo não superior a 30% dos presos em campos e colônias de
exílio. Um relatório de Kruglov para Stalin, datado de 23 de janeiro de 1950,
acrescenta que: “Em 1º de janeiro de 1950, existiam 2.550.275 presos, 22,7%
dos quais por atividades contrarrevolucionárias. 366.489 estão condenados a
mais de dez anos de prisão. Dois novos campos de regime fechado foram
construídos para espiões, sabotadores, terroristas, trotskystas, direitistas,
mencheviques, SR, anarquistas, nacionalistas, emigrados brancos. O espaço
médio para cada preso é de 1,8m 2 .” 41
30.514 ao fuzilamento
5.643 à prisão
36.157 no total
15 de outubro de 1938 V. Ulrikh 45
Naqueles dois anos, Yezhov e, mais tarde, Beria enviaram a Stalin incontáveis
listas de “espiões”, juntamente com a sugestão de sentença (a maioria
fuzilamento), mesmo antes de os tribunais se reunirem. Primeiro, eles
recebiam um relatório de Ulrikh, dos quais o seguinte é um exemplo:
Em setembro de 1938, o colegiado militar da Suprema Corte da URSS, em Moscou, Leningrado,
Kiev, Kharkov, Khabarovsk e outras cidades sentenciou:
1.803 ao fuzilamento
389 à prisão
Para o mês de outubro, seriam mais 3.588, mas isso só se aplicava aos
tribunais militares. As cortes comuns também estavam funcionando.
Khruschev não tinha o direito moral de dizer, como o fez no XX Congresso:
“Não podemos encarar os atos de Stalin como comportamento de um déspota
louco. Ele considerou necessário agir daquela forma no interesse do partido e
das massas laboriosas, em nome da defesa de nossas conquistas
revolucionárias. Esta foi a tragédia!” Isto não é verdade. Stalin não poderia
deixar de saber que o terror que desencadeou prosseguiria com base na total
violação da legalidade socialista. Não poderia deixar de saber que os
julgamentos eram farsas do início ao fim. É bem possível que, genuinamente,
quisesse uma sociedade florescente e o bem-estar de seus concidadãos, e, sem
dúvida, desejava um Estado forte. Porém, o que não quis foi perguntar aos
membros daquela sociedade como eles desejavam chegar à consecução dos
ideais socialistas.
A despeito de sua determinação em alcançar os objetivos que estabelecera
para si mesmo, por vezes chegou a hesitar quando, de repente, o volume da
repressão começou a repercutir. Isto explica o debate travado no pleno de
janeiro de 1938 sobre os enganos cometidos pelas organizações do partido na
expulsão de membros. Foi Stalin quem levantou a questão. Ao ouvir
relatórios de Malenkov, Bagirov, Postyshev, Kosior, Ignatiev, Zimin,
Kaganovich, Ugarov, Kosarev, teve que ficar admirado com a amplitude do
terror, com a ilegalidade e com a efetiva destruição dos quadros. Postyshev
relatou que, ao chegar a Kuibyshev, encontrou todos os órgãos do partido
paralisados pelo expurgo; em nada menos que trinta comitês distritais
permaneciam apenas dois ou três membros, o que significava que não mais
funcionavam. De imediato, Stalin, Beria, Yezhov, Malenkov e Molotov
acusaram Postyshev!
Os documentos indicam que a decisão de “afundar” Postyshev fora tomada
antes do plenário. Quase todos os oradores realçaram seus erros.
Acompanhado por comentários de aprovação de Stalin, Kaganovich, o crítico
principal, disse entre outras coisas:
Conheço bem Postyshev. O Comitê Central enviou-me a Kiev no ano passado quando descobriu
que o Camarada Postyshev cometera os maiores erros na liderança das organizações partidárias
de Kiev e ucranianas. Em Kiev, Postyshev revelou-se um trabalhador que violou, na prática, as
ordens do partido, daí a razão de o comitê central tirá-lo de lá. A cegueira de Postyshev em
relação aos inimigos do povo chega a ser quase criminosa. Não foi capaz de vê-los mesmo
quando todas as evidências apontavam para eles. […] Ao observá-lo nos corredores e ao ouvi-lo
discursar neste plenário não posso deixar de dizer que você não está sendo leal com o comitê
central.
Foi realizada uma votação que, é claro, resultou unânime. Postyshev ficou em
liberdade por apenas um mês. Por ordem de Stalin, a comissão de controle do
partido, em fevereiro, minutou um decreto sobre ele que foi baixado pelo
Politburo. Seu conteúdo principal foi formulado e aprovado pelo próprio
Stalin. Postyshev foi acusado das seguintes transgressões:
Provocação contra sovietes. (Trinta e quatro deputados tinham sido removidos numa só sessão do
soviete da cidade.)
Todas as ações acima de P.P. Postyshev devem ser consideradas antipartidárias e tendentes a
beneficiar inimigos do povo. P.P. Postyshev deve ser expulso do [partido]. 48
Sou subcomandante de uma unidade de tropas do interior da NKVD. Foi organizada uma reunião
para a outorga ao Camarada Stalin da Medalha da Vitória. Porém, apenas oficiais foram
convidados para a reunião, as praças não. Coisa estranha. O general Brovkin conduziu o
encontro. Três ou quatro pessoas discursaram e, com isso, a reunião foi encerrada. Depois, foi-
nos dito que a unidade seria empregada na colheita da safra e que o chefe da seção política,
Kuznetsov, fora transferido para outra função alhures.
fanático das ordens do líder. Quem possuísse um traço, pequeno que fosse, de
consciência não poderia sobreviver na NKVD. Homens como Abakumov,
Kruglov, Merkulov, Yezhov, Beria, Kobulov, Mamulov e Rukhadze, entre
outros arrivistas, não subiram na NKVD por mérito, mas exatamente por não
o possuírem.
Notas
* Essas categorias são tratadas com maior detalhe em capítulo posterior.
** Províncias. [N.T.]
[31]
A “trama” Tukhachevsky
S talin amava tudo o que se relacionava com o Exército. As Forças Armadas
eram sua preocupação especial. Ele gostava de se olhar num grande espelho
quando envergava a farda de marechal; uma túnica cuidadosamente
engomada com platinas douradas era sua ideia de perfeição estética.
Lembrava com orgulho dos anos de guerra civil: com exceção de Trotsky,
provavelmente, estivera em maior número de fronts que qualquer outra
pessoa.
Em termos pessoais, sabia que quase todos os oficiais, de comandante de
corpo para cima, a maioria dos marechais e comandantes do exército desde a
guerra civil, e, a partir de meados dos anos 1930, todas as nomeações dos
altos escalões do Exército Vermelho, haviam sido feitas por ele. Quando um
candidato era entrevistado, Stalin ouvia atentamente seu breve relato, olhando
diretamente nos olhos do pretendente, permanecia silencioso e depois
conversava por sete a dez minutos. Seu interesse era pela experiência pessoal,
conhecimento do campo de batalha, opiniões sobre a reestruturação do
exército à luz do progresso técnico. Fazia perguntas inesperadas, tais como:
“Seriam necessários distritos fortificados nas atuais circunstâncias?” ou “O
que você acha do novo Estado-maior de campanha?” No fim da conversa,
cumprimentava o nervoso oficial com um aperto de mão meio frouxo,
desejava-lhe sorte na nova função e dizia que esperava contar com a firme
execução da linha do partido. Fixava então, de novo austeramente, os olhos
nos do interlocutor; precisava saber se o oficial era pessoalmente leal a ele.
Stalin passava muitas horas com comissários, projetistas, cientistas e
fabricantes cujo ofício fosse a produção de material bélico. Normalmente,
inspecionava em pessoa os novos modelos em teste. Convocava reuniões
sobre vários aspectos militares e pouco falava, mas conduzia a reunião com as
perguntas e comentários que fazia. Em 1939, por exemplo, passou um dia
inteiro discutindo com o Estado-maior de Serviços os modelos e a qualidade
dos uniformes de combate e de passeio para oficiais e praças.
Tal preocupação, evidentemente, não era apenas motivada pelo amor às
questões militares. Como qualquer outro líder, Stalin sabia que a posição de
um país no mundo, seu regime político e sua autoridade internacional
dependiam em grande parte não só do poderio econômico como também da
força militar. Todos os seus discursos daquela época expressam alarme com a
ascensão do fascismo e o crescimento da ameaça imperialista tanto no
Ocidente como no Oriente. Sem exagero, pode-se dizer que suas maiores
prioridades então eram o Exército Vermelho e a NKVD. E foi precisamente
por meio da NKVD que, a partir do fim de 1936, ele começou a receber
notícias alarmantes.
Os primeiros sinais de uma colisão iminente entre Stalin e os militares foram
percebidos na Alemanha. O chefe do serviço de informações do Exército
Vermelho, S. Uritsky, relatou a Stalin e Voroshilov, em 9 de abril de 1937, que
circulavam rumores em Berlim sobre a existência de oposição à liderança
soviética entre os generais e acrescentou com segurança que ninguém
acreditava nos boatos, citando como prova a afirmativa de um tal Arthur Just,
no jornal Deutsche Algemeine Zeitung de que “hoje, a ditadura de Stalin
desfruta de total apoio. Seria muito estranho um abalo nos alicerces do
exército nesta ocasião. Nada é mais importante no presente para Stalin do que
a confiança irrestrita no Exército Vermelho”. Tudo indica que o secretário-
54
Blyukher foi visitar meu pai no dia 30. Eram velhos amigos dos dias de Extremo Oriente.
Conversaram por longo tempo. Depois, meu pai disse à minha mãe que fora convocado para juiz
do caso Tukhachevsky.
“Mas como posso fazer isso?”, exclamou. “Sei que eles não são inimigos. Blyukher disse que se
eu não for poderei ser preso.”
Blyukher voltou para uma conversa rápida no dia 31. Depois vieram outras pessoas e selaram a
sorte de meu pai. Disseram-lhe que tinha sido transferido de função e que seus assistentes,
Osepian e Bulin, já estavam presos. Recebeu ordens para permanecer em casa. Tão logo os
agentes da NKVD saíram, ouviu-se um tiro no escritório. Quando minha mãe e eu corremos,
estava tudo acabado.
Acho que o tiro foi uma resposta à proposta de Stalin para que meu pai fizesse parte do júri sobre
seus amigos do exército. Uma resposta à ilegalidade. Ele não achou outra maneira de fazê-lo.
Minha mãe foi presa e sentenciada a oito anos de prisão como “esposa de um inimigo do povo”, e
a mais dez anos em campo de concentração “por ajudar um inimigo do povo”. Jamais a vi de
novo e, aparentemente, morreu no campo em 1943. Fui mandada para um abrigo de jovens.
Quando fiz 16 anos, em 1941, recebi uma pena de seis anos por ser “elemento socialmente
perigoso”. Assim começaram meus tempos de exílio…
O chefe do Estado-maior Lukin é pessoa extremamente duvidosa, que se mistura com inimigos e
tem seus vínculos com Yakir. O comandante de brigada Fedorov deve ter bastante material a
respeito dele. Meu relatório sobre Antonyuk contém muita coisa sobre Lukin. Não seria um
grande erro se vocês expulsassem Lukin de imediato.
27 de julho Mekhlis
Ao Camarada Stalin
Despedi 215 trabalhadores políticos, dos quais uma boa parcela foi presa. Mas estou longe de
terminar o expurgo do aparato político, particularmente nos escalões inferiores. Penso que não
devo sair de Khabarovsk antes de, pelo menos, fazer uma boa triagem nos quadros comunistas. 61
Parece que o Politburo e o governo concluíram que eu sou um inimigo de nossa mãe-pátria e de
nosso partido. Politicamente isolado, sou um cadáver ambulante. Mas, por que e qual a causa?
Como poderia eu saber que aqueles americanos que apareceram na Ásia Central na qualidade de
representantes oficiais da NKVD e do OGPU eram agentes especiais de informações? No
caminho para Samarkand, jamais fiquei sozinho com eles por um segundo sequer. De qualquer
forma, nem falo inglês.
Sobre a provocação de Kerensky publicada na imprensa da Guarda Branca, afirmando que sou
um agente alemão, será possível que os Guardas Brancos de Kerensky querem se vingar de mim
depois de vinte anos de trabalho honesto e devotado ao partido? Isto é simplesmente monstruoso.
Duas notas que estão com Yezhov, escritas pelos empregados do Hotel Nacional, contêm uma
ponta de verdade – quando conhecidos vinham me visitar no hotel, eu bebia com eles. Mas nunca
houve orgias alcoólicas.
Supostamente, fiquei num quarto próximo ao dos representantes da embaixada. Esta é mais uma
de toda uma gama de provocações.
Espalha-se que eu tenho tendências kulaks a respeito da reconstrução agrícola. Este despropósito
só pode ter sido divulgado pelos camaradas Gorkin, Yusupov e Yevdokimov, com quem trabalhei
durante os nove últimos anos.
Camarada Stalin, rogo-lhe que reveja todos estes fatos e remova de mim tal nódoa vergonhosa,
porque não a mereço.
P. Dybenko 62
Solicito-lhe, Camarada Stalin, que verifique a atuação do marechal Yegorov como chefe do
Estado-maior, já que, de fato, ele é responsável pelos erros cometidos na instrução e no
desdobramento estratégico-operacional de nossas forças armadas, e na estrutura organizacional.
Não conheço nem o presente nem o passado político do Camarada Yegorov, mas sua atividade
prática como chefe do Estado-maior desperta dúvidas.
7 de novembro de 1937
Blyukher: “Relatando. A Força Aérea está pronta para decolar. Só houve um pequeno atraso na
decolagem devido a condições meteorológicas desfavoráveis. Neste exato minuto, dei ordem a
Rychagov [comandante da Força Aérea] para colocar os aviões no ar, independentemente de
qualquer coisa, e efetuar o ataque. Os aviões estão decolando agora, mas temo que seja inevitável
atingirmos nossas próprias unidades bem como assentamentos coreanos.”
Stalin: “Diga-me com honestidade, Camarada Blyukher, você quer mesmo combater os
japoneses? Se não quiser, declare logo, como um bom comunista, mas se quiser, acho que você
tem que chegar lá sem retardos. Não entendo sua preocupação com a possibilidade de
bombardeio de assentamentos coreanos, nem seu temor de que a força aérea seja incapaz de
cumprir a missão por causa da neblina. Quem disse que você não pode atingir a população
coreana durante uma confrontação armada com os japoneses? Por que se inquietar com os
coreanos quando nosso povo está atirando nos japoneses? O que significa um pouco de neblina
para a aviação soviética, quando ela deseja realmente defender a honra da pátria-mãe soviética?
Estou esperando por sua resposta.”
Blyukher: “A Força Aérea recebeu ordem para decolar, e o primeiro grupo de caças o fará às
11h20. Rychagov promete começar o ataque às 13h. Voarei para Voroshilov [a localidade] com
Mazepov e Bryandinsky [oficiais de Estado-maior da Força Aérea] tão logo comece a operação.
Aceitamos suas ordens e as cumpriremos com precisão bolchevique.” 66
Mekhlis, que fora enviado para o Leste, instigara a liderança em Moscou com
relatórios sobre um comando supostamente indeciso no Exército do Extremo
Oriente, comprometendo assim Blyukher.
Stalin logo convocou Blyukher a Moscou, embora não tivesse a intenção de
conversar com ele. O marechal ficou sem função por algum tempo e depois,
em 22 de outubro de 1938, foi preso. A ordem de prisão levou a assinatura de
Yezhov, o qual, em poucas semanas, iria, ele próprio, se juntar aos milhares
que consignara ao esquecimento.
Blyukher foi lançado no moedor de carne exatamente na ocasião em que este
desacelerava. De início, ficou a impressão de que poderia sobreviver. Uma
instrução, expedida em novembro de 1938 pelo conselho de ministros e pelo
Comitê Central, fez referências às violações grosseiras da legalidade no
processo investigativo, mas Beria, que já estava encarregado do caso
Blyukher, a ignorou. O marechal foi interrogado durante diversos dias, mas
resistiu bravamente, negando vinculação com qualquer “golpe trotskysta-
fascista”. Será que, enquanto era torturado, lembrou-se de sua participação no
ardiloso julgamento de Tukhachevsky? Naquela ocasião, desperdiçara a
oportunidade de demonstrar probidade para mitigar o destino do primeiro
marechal soviético; agora, estava no lado mais fraco.
Segundo B.A. Viktorov, que também conduziu esta reabilitação, Blyukher foi
visto pela última vez em 5 e 6 de novembro, irreconhecível depois de ser
impiedosamente espancado. Seu rosto era uma posta de sangue e um dos
olhos fora arrancado. Os inquisidores de Beria se esmeraram para terminar
sua terrível tarefa antes do grande feriado nacional de 7 de novembro. Em 9
de novembro, Blyukher morreu nas masmorras de Beria devido às torturas
sofridas. Morreu, mas não cedeu: não assinou as monstruosas mentiras.
A lista dos oficiais que pereceram é infindável; constituíam a flor do corpo de
oficiais, com experiência da guerra civil, e a maioria deles relativamente
jovem. O golpe nas forças armadas soviéticas foi imenso. Quem poderia
pensar que as sementes da provocação lançadas pela Gestapo, pelos
emigrados Brancos e, inadvertidamente, por Trotsky encontrariam solo tão
fértil? Quase todos os vice-comissários distritais, a maioria dos membros do
conselho de guerra, quase a totalidade dos comandantes de distritos militares
e comandantes do exército foram expurgados. Pelas estatísticas disponíveis,
em 1937-38, cerca de 45% das equipes políticas e de comando do exército e
da marinha, de comandante de brigada para cima, foram exterminados. Como
o próprio Voroshilov reportou ao conselho de guerra, no fim de novembro de
1938, o Exército Vermelho fora “depurado de mais de 40 mil homens…
Alterações enormes foram efetuadas na liderança do exército: permaneceram
apenas dez dos membros originais do conselho de guerra”. Não é difícil
imaginar a situação experimentada pelos distritos militares.
No seu relatório para Moscou do início de março de 1938, o comandante do
distrito militar de Kiev, S.K. Timoshenko, e o membro do conselho de guerra
N.S. Khruschev descreveram como grande vitória o fato de 3 mil “inimigos”
terem sido expurgados das tropas do distrito, dos quais mais de mil foram
presos. Praticamente todos os comandantes de corpos e de divisões foram
substituídos. “Como consequência do extermínio dos elementos trotskystas-
bukharinistas, cresceu o poderio das forças distritais.” 67
Zubrov, integrante do Exército Vermelho: “Sob Nicolau, eles não puderam enforcar número
suficiente de pessoas; agora, podem fuzilar. Mas não vão conseguir exterminar todos.”
Comandante Naval Kirilov: “Não creio que Bukharin e outros sejam inimigos do povo e do
socialismo. Eles só quiseram mudar a liderança do partido.” 68
Investigue quantos você já expulsou do Exército Vermelho em 1937 e tome consciência por si
próprio da dura verdade.
Não sei o que aconteceu com Kolosov, mas sua carta mostra que nem todos
permaneceram silenciosos. Muitos se alarmaram com a sangria sofrida pelo
exército às vésperas de tempos de provação, porém a ânsia de Stalin em
preservar seu poder a qualquer custo, mesmo que a ameaça a ele fosse
puramente imaginária, sobrepujou a preocupação principal com a segurança
do país.
Nota
* Comitê central da Esquadra do Báltico em 1917-18, a organização revolucionária bolchevique dos
marinheiros.
[32]
O monstro stalinista
A violência chegou ao máximo no início de 1938. Stalin recebia mais e mais
relatórios sobre a situação catastrófica nas fábricas, nas ferrovias, nos
comissariados. A repressão prosseguia com impulsão própria. As prisões
geravam “cúmplices”; a chance para os carreiristas subirem degraus produzia
denúncias em cascata, quase sempre vingança de parentes. A situação saiu do
controle. No verão de 1938, Stalin decidiu que era tempo de se livrar de seus
funcionários, acusando-os de “excessos”, “exorbitâncias” e “abusos de
autoridade”. Responsabilizou os executores de sua política por todos os
pecados, pensáveis e impensáveis. Yezhov, a quem começou a observar mais
de perto quando o fez membro candidato do Politburo, perdeu toda a sua
importância. Infelizmente, àquela altura, a imprensa criara uma imagem de
Yezhov como “chekista talentoso”, “o mais leal pupilo de Stalin”, “um
homem que conhece as pessoas”. Escrevendo para o Pravda , até Mikhail
Koltsov descreveu o degenerado como “maravilhoso e implacável
bolchevique que dia e noite, sem se levantar da cadeira, está desvendando e
cortando as ligações da conspiração fascista”.
Stalin descobriu rapidamente que Yezhov era um alcoólatra carente por
completo de flexibilidade e percepção políticas. Ele não ligava para o total
cinismo de Yezhov, ou para sua má índole ou crueldade – Yezhov
frequentemente conduzia os interrogatórios em pessoa –, mas não gostava de
pessoas sem força de vontade trabalhando com ele. E alcoolismo era, ao seu
ver, a marca registrada da falta de determinação. Os homens que cercavam o
secretário-geral, tais como Molotov, Kaganovich, Zhdanov, Voroshilov,
Andreyev, Khruschev, Poskrebyshev e Mekhlis, além da absoluta lealdade
tinham que ter vontade forte para mostrar tal lealdade. A fim de testá-la, sem
ser municiado por Yezhov ou Beria, que não ousariam fazer isso, Stalin
prendeu alguns parentes de quase todos eles. Se algum tentasse defender os
familiares estaria demonstrando intolerável fraqueza política. Determinação
política significava estar disposto a sacrificar qualquer coisa em nome da
lealdade a Stalin.
Assim, necessitando um bode expiatório, Stalin selecionou Yezhov. Por volta
de setembro-outubro de 1938, com Yezhov ainda nominalmente no cargo, era
Beria quem, de fato, dirigia a NKVD, como indicam os relatórios de Ulrikh,
datados de outubro de 1938 e endereçados ao “comissário das Questões
Internas Beria”. Yezhov, destituído da função de comissário em 7 de
dezembro de 1938, veio à tona novamente como comissário do povo do
Transporte Hidroviário. Em 21 de janeiro de 1939, sentou-se ao lado de Stalin
durante as comemorações dos 15 anos da morte de Lenin, mas, depois disto,
evaporou-se.
Não pertencia a qualquer órgão de direção do partido por ocasião do XVII
Congresso, em março de 1939. Foi preso durante uma reunião no
comissariado do Transporte Hidroviário. Dois homens entraram
apressadamente na sala e ficaram na porta; Yezhov entendeu de imediato que
o fim chegara; caiu de joelhos e implorou perdão. Foram-lhe concedidas umas
poucas semanas. Sabe-se que ele foi fuzilado, mas – como ocorreu com
muitos milhares de suas vítimas – quando, onde e com base em que acusações
permanecem indeterminados.
Com as bênçãos de Stalin, Beria estava firmemente estabelecido no cargo no
fim de 1938. Sua primeira tarefa foi se livrar da equipe de Yezhov. Homens
pervertidos como Frinovsky, Zakovsky e Berman, que faziam seu horripilante
trabalho desde o tempo de Yagoda, foram condenados, executados e
substituídos pelo bando de Beria, igualmente pervertido, que incluía
Merkulov, Kobulov, Goglidze, Tsanava, Rukhadze e Kruglov.
Por que Stalin escolheu Lavrenti Pavlovich Beria? Já o conhecia bem
anteriormente? Como Beria conquistou a confiança de Stalin com tanta
rapidez? Como foi que um oportunista como Beria galgou os mais altos
degraus da escada em tão pouco tempo, tornando-se membro do Politburo,
primeiro vice-presidente do conselho de ministros, marechal da União
Soviética e Herói do Trabalho Socialista?
Stalin conheceu Beria por volta de 1929-30 quando tratava de sua saúde em
Tskhaltubo. Beria, como chefe do GPU transcaucasiano, ficou responsável
pela segurança pessoal do secretário-geral. Conversaram diversas vezes e
Beria revelou grande intuição para captar os desejos de Stalin. No início de
sua carreira, explorou o conhecimento que sua esposa, Nina Gegechkori, e o
irmão dela, um revolucionário, tinham com Sergo Ordzhonikidze. Isto deve
tê-lo ajudado no começo, mas Ordzhonikidze logo percebeu as características
de Beria e se mostrou extremamente hostil à sua promoção. Beria contou
também com a oposição séria de diversos outros bolcheviques da velha
guarda. Por exemplo, Tite Illarionovich Lordkipanidze, comissário das
questões internas para a Transcaucásia e membro da NKVD desde que fora
Cheka nos dias de Lenin, tentou abrir os olhos de Moscou para aquele
lobisomem. Stalin, no entanto, afastou Lordkipanidze da função e, em 1937,
Beria livrou-se dele para sempre. O caminho de Beria para o topo ficou
crivado de vítimas como esta.
Beria impressionou Stalin pela capacidade de apreensão e autoridade, pelo
comportamento decisivo e pelo excelente conhecimento da situação nas
repúblicas do Cáucaso. Foi possivelmente o secretário do comitê partidário
transcaucasiano L. Kartvelishvili quem disse a Stalin que Beria tivera ligações
com vários movimentos nacionalistas locais na guerra civil. Stalin também foi
alertado acerca do acentuado carreirismo de Beria, mas encarou tais fatos
como positivos, uma vez que pessoas assim podiam ser sempre controladas.
Foi o caso de Vyshinsky que, tendo sido menchevique, assinara a ordem de
prisão de Lenin expedida pelo Governo Provisório chefiado por Kerensky em
1917. Pois não era de se ver como agora mostrava vontade! Ou de Mekhlis,
outro ex-menchevique, dedicado como poucos a Stalin.
Em outubro de 1931, Stalin providenciou para que Beria trabalhasse para o
partido como segundo secretário do comitê regional e, apenas dois ou três
meses mais tarde, propôs sua promoção a primeiro secretário. Na verdade,
teve que transferir Kartvelishvili, Oralkhelashvili, Yakovlev e Davdaryani da
região porque eles se opunham à candidatura de Beria. Em poucos anos, aos
olhos de Stalin, Beria botou “ordem” no Cáucaso. Mostrava-se satisfeito com
o fato de que, em todos os plenos de 1937-38, os eficientes comentários e
observações de Beria se alinharam perfeitamente com seu pensamento e seus
discursos, em especial no pleno de fevereiro-março de 1938: “Como você
aceitou Vardanin quando o expulsamos da Transcaucásia?”, despejou contra
Yevdokimov, secretário da organização partidária nos mares Aral e Negro.
“Por que promoveu Asilov”, continuou, “quando já o tínhamos expulsado do
partido?” E mais: “No cumprimento das instruções do Camarada Stalin sobre
o trabalho com os quadros, desmascaramos sete membros do comitê central
da Geórgia e dois membros do comitê da cidade de Tbilisi. Só em 1936,
prendemos 1.050 trotskystas-zinovievistas.” Sua nomeação para comissário
70
Fui sentenciada em 1937 a oito anos de prisão. Estou pagando por meu marido V.I. Gerasimov
[ex-vice-comissário de questões internas do Azerbaijão que foi fuzilado]. Não sei até hoje qual a
sua culpa. Vivi com ele 12 anos e sei que ele foi honesto, trabalhador incansável que se dedicou
ao partido e ao país. Sinto que sou absolutamente inocente. Jamais cometi um crime, mesmo em
pensamento. Trabalhei dos 16 anos até o dia de minha prisão.
No dia de minha prisão, deixei dois bebês com minha mãe, que é totalmente desprovida de meios
para sustentá-los. As crianças estão crescendo. Elas precisam da mãe e da ajuda que uma mãe
pode proporcionar.
Rogo-lhe que aprecie meu caso e dê-me o direito de viver com meus filhos, de trabalhar e de
criá-los. Tenho vivido todos esses anos em campos, mas conservo a esperança de que a verdade e
a justiça vencerão as mentiras e as injustiças em nosso país. Tal crença tem-me dado forças para
viver separada de meus bebês.
[33]
Culpa sem perdão
N em verbalmente nem por escrito, Stalin jamais ordenou publicamente que
a repressão de 1937-38 fosse intensificada. Mesmo o discurso que fez no
pleno de fevereiro-março de 1937, publicado de forma resumida no Pravda ,
conclamou apenas por uma maior vigilância contra o perigo do trotskysmo, e
seguiu por esta linha. Este e os outros discursos no mesmo pleno criaram uma
atmosfera opressiva quando foram divulgados, já que Stalin orientara dos
bastidores os procedimentos. Sua assinatura pode ser encontrada em muitos
dossiês de “inimigos do povo” presos. Por exemplo, ele editou a resolução
sobre o relatório de Yezhov para o pleno, inclusive os seguintes pontos:
b. Anotamos a fraca situação do processo investigativo. As investigações com frequência
dependem dos criminosos e de sua boa vontade em prestar ou não testemunhos completos.
c. O sistema que foi organizado para os inimigos do regime soviético é intolerável. Suas
acomodações mais parecem casas de repouso compulsório do que prisões (eles escrevem cartas,
recebem encomendas e assim por diante). 72
Os acusados seguintes confessaram culpa total: S.V. Kosior, V.Ya. Chubar, P.P. Postyshev, A.V.
Kosarev, P.A. Vershkov, A.I. Yegorov, I.F. Fedko, L.M. Khakhanyan, A.V. Bakulin, B.D.
Berman, N.D. Berman, A.L. Gilinsky, K.V. Gei, P.A. Smirnov [ex-comissário da Marinha], M.P.
Smirnov [ex-comissário do Comércio] e outros.
No tribunal, alguns réus negaram os depoimentos dados na investigação preliminar, mas ficaram
completamente expostos por outras provas. 73
Soube que falaram com Stalin sobre a carta. Ele telefonou para minha divisão e perguntou por
que eu estava preso. Foi-lhe dito. Depois de uma pausa, mandou: “Tragam-no de volta para a
função. Ele parece ser um homem inteligente.” Poucos dias depois, fui subitamente libertado.
Arranquei poucas palavras de Stalin, mas sabia que fora bem-sucedido ao lidar com a psicologia
do ditador: não implorei compaixão como os outros, simplesmente formulei ideias novas.
Mas o que funcionou para Pitovranov não teve o mesmo resultado para
Chubar e outros. Por exemplo, Eikhe escreveu para Stalin:
Cheguei à mais humilhante fase de minha vida: minha culpa genuinamente séria perante o partido
e perante você. Confessei minha culpa em atividade contrarrevolucionária. Mas eis a situação:
não fui capaz de suportar a tortura a que fui submetido por Ushakov e Nikolaev, principalmente o
primeiro. Ele sabia que minhas costelas quebradas não tinham sarado e usou isso para infligir
terrível dor durante o interrogatório, fazendo com que eu traísse outros e a mim mesmo.
Peço-lhe que reveja meu caso, não para poupar-me, mas para desvendar toda a pútrida
provocação que, como uma serpente, enleou tantas pessoas por causa de minha fraqueza e minha
criminosa injúria. Jamais traí você ou o partido. Sei que devo morrer devido a uma miserável e
torpe provocação fabricada contra mim por inimigos do partido e do povo. 75
A carta ressoava a agonia da morte inescapável, mas deixava transparecer
também um delgado fio de esperança. Ao ler a carta de Eikhe, Stalin sabia
que fora ele, o homem mais importante do partido e do Estado, quem soltara a
serpente da provocação. Nem mesmo consultou outros membros do Politburo.
Uma vez dada a ordem para a prisão de Eikhe, a sorte estava lançada. Nunca
mudava de ideia.
Foi também mostrado a Stalin o depoimento de Rudzutak em seu julgamento
– um julgamento, ressalte-se, que só durou vinte minutos:
Minha única solicitação à corte é que ela notifique ao Comitê Central que ainda existe na NKVD
um centro que fabrica inteligentemente casos e força pessoas inocentes a confessarem crimes não
cometidos: os acusados não têm a oportunidade de provar que não tiveram participação nos
crimes que são mencionados nas confissões, arrancadas sob tortura. Os métodos utilizados são
tais que as pessoas têm que mentir e difamar inocentes. 76
Rudzutak requereu uma audiência com Stalin, mas a resposta foi ultrajante.
Ele não esquecia que Rudzutak visitara-o em maio de 1937, pouco antes de
sua prisão. Não prestou atenção ao que Rudzutak tinha a dizer, mas ficou
tentando detectar se o alerta de Yezhov de que o interlocutor fora recrutado
pela inteligência estrangeira na conferência de Gênova de 1922 tinha alguma
validade.
Naquela noite, no ato de assinar a concordância soviética com a expedição ao
Polo Norte, notou, entre outras, a assinatura de Rudzutak e, após um
momento de hesitação, riscou-a com seu lápis. No dia seguinte, 24 de maio de
1937, ditou o texto de um memorando a ser distribuído aos membros do
comitê central. O documento especificava que existiam provas incontestáveis
de que Tukhachevsky e Rudzutak eram espiões germano-fascistas.
Tukhachevsky só viveu mais duas semanas, Rudzutak, cerca de um ano.
Incontáveis documentos atestam a monstruosa impiedade de Stalin. Na nota
de Yezhov anexada à lista de pessoas que aguardavam julgamento pelo
colegiado militar por crimes capitais, Stalin rabiscou rapidamente: “Fuzilem
todos os 138” – e Molotov adicionou sua assinatura. Ou na solicitação de
Yezhov pela execução por fuzilamento de quatro listas de 313 inimigos do
povo, 208 homens e 15 mulheres, e de duzentos militares, Stalin escreveu,
“De acordo”, e tanto ele como Molotov assinaram. Em 12 de dezembro de 77
2. Maria Anisimovna Svanidze, esposa de Alexander. Cantora de ópera, foi presa em 1937 e
recebeu a pena de dez anos de prisão. Morreu no campo de prisioneiros.
3. Ivan Alexandrovich Svanidze, filho de Alexander. Preso como “filho de um inimigo do povo”,
retornou do exílio em 1956.
4. Maria Semenovna Svanidze, irmã de Yekaterina. Foi secretária particular de A.S. Yenukidze
de 1927-34. Presa em 1937, morreu na prisão.
5. Iyulia Isaakovna (Meltser) Djugashvili, esposa do filho de Stalin, Yakov, foi presa e libertada
em 1943.
3. Ksenia Alexandrovna Alliluyeva, esposa do irmão de Nadezhda, Pavel, foi presa em 1947 e
libertada em 1954.
4. Evgenia Alexandrovna Alliluyeva, esposa do tio de Nadezhda, P. Ya. Alliluyev, foi sentenciada
a dez anos por “espionagem” e solta em 1954.
5. Ivan Pavlovich Alliluyev (Altaisky), filho de P.Ya. Alliluyev. Membro do partido desde 1920 e
editor do jornal Sotsialisticheskoe zemledelie (“Agricultura socialista”), foi preso em 1938 e
sentenciado a cinco anos. Libertado em 1940, com a ajuda de S.Ya. Alliluyev, sogro de Stalin.
Nas condições de um conflito mundial, era essencial ter uma estratégia que
permitisse à URSS dar continuidade aos planos de desenvolvimento social e
econômico do país, buscando ao mesmo tempo garantir sua defesa. Segundo
Stalin, os advogados da não intervenção “ingressavam num jogo grande e
perigoso”. A URSS viu-se compelida a tomar parte nessas manobras políticas
mesmo sem ter um objetivo definido em vista. A questão normalmente
discutida, com a presença de Litvinov em diversas ocasiões, foi sobre que
linha assumir. O período de lua de mel das frentes populares na Europa
chegara ao fim. O continente parecia silenciar à espera das hordas de Hitler.
Franco triunfou na Espanha, e os partidos marxistas, muitos deles esmagados
ou na clandestinidade, olhavam cheios de expectativa para Moscou. Mas a
influência do Comintern, graças a Stalin, havia minguado.
Ao identificar a política do partido com a do Comintern e ao impor seus
ditames ao corpo internacional de comunistas, Stalin desacreditara aquele
órgão. O Comintern e suas organizações irmãs – a Juventude Internacional
Comunista, o Sindicalismo Internacional e o Comitê Internacional de
Assistência ao Trabalho – foram aniquilados pela criminosa repressão de
1937-38. Os líderes dos partidos comunistas de Áustria, Hungria, Alemanha,
Letônia, Lituânia, Polônia, Romênia, Finlândia, Estônia e Iugoslávia, que
tinham sido banidos de seus países e buscaram asilo em Moscou, foram os
mais atingidos. A lista de vítimas é longa, mas alguns nomes devem ser
mencionados: os líderes alemães H. Remmele, H. Eberlein, H. Neumann; os
poloneses E. Pruchniak, J. Lenski, M. Koszutska; o secretário-geral grego A.
Kontas; o iraniano A. Sultan-Zade; os iugoslavos M. Gorkic, V. Copic, M.
Filippovic; os finlandeses E. Hülling, A. Shotman e G. Rovio; Fritz Platten, o
amigo suíço de Lenin; os húngaros Bela Kun e L. Gavro; e o búlgaro P.
Avramov.
Stalin foi particularmente cínico no tratamento ao partido comunista polonês,
cuja liderança ele praticamente eliminou por completo. Bielewsky, o último
membro do Politburo do partido polonês, foi preso em setembro de 1937.
Embora os arquivos não contenham provas documentais, evidências
secundárias indicam que, quando foi mostrada a Stalin a minuta do decreto do
Comintern abolindo o partido polonês porque “agentes do fascismo polonês
trabalhavam nele”, sua resposta foi da maior eloquência: “Isto já deveria ter
sido feito há dois anos. Tinha que ser abolido, mas não vejo a menor
necessidade de que isto seja mencionado para a imprensa.” Na realidade, o
decreto nem sequer foi discutido em uma sessão plenária do Comitê
Executivo do Comintern, recolheram apenas os votos de seis de seus 19
membros.
Ao fazer da organização do Comintern um braço de seu próprio aparato,
Stalin provocou acentuado aumento dos métodos repressivos daquele órgão, o
que, por sua vez, enfraqueceu muito o controle do comunismo internacional
sobre as massas, favorecendo de forma substantiva a ascensão do fascismo.
Quanto à social-democracia, Stalin colocou-a no mesmo nível do fascismo;
mais ainda, culpou o “reformismo” e a “traição” dos social-democratas pelo
declínio da onda revolucionária no Ocidente. Este foi outro erro que teria
consequências sérias e que emergiu de raízes profundas. Temos que retornar
brevemente aos anos 1920. Em janeiro de 1924, pouco antes da morte de
Lenin, houve um pleno do Comitê Central no qual foi discutido, entre outros
assuntos, um relatório de Zinoviev sobre a situação internacional. Ao criticar
Radek por enganos cometidos na “questão alemã”, Stalin apareceu com a
ideia tremendamente falaciosa, a qual permeou aos poucos o pensamento do
Comintern, de que a social-democracia era a principal inimiga dos
movimentos trabalhista e comunista, de que ela proporcionava as condições
para o fascismo e, por isso, deveria ser combatida até a morte. Aferrou-se a
5
tal ideia e, assim, em vez de unir a classe operária na luta contra Hitler, Stalin
jogou o partido comunista contra os social-democratas e enfraqueceu a
resistência ao fascismo, que era a verdadeira ameaça aos movimentos
trabalhista e comunista.
Voltando a 1939, entre as opiniões formuladas por seu entourage sobre
questões internacionais, Stalin talvez só tenha considerado as de Molotov. Só
Molotov, considerou ele, tinha a exata combinação de flexibilidade e firmeza,
e foi com Molotov que montou a posição apresentada ao XVIII Congresso.
Faltavam poucas horas para a abertura do congresso, quando Stalin
reformulou quatro pontos que expressavam duas ideias correlatas.
Primeira, a de que deveria continuar a busca de caminhos pacíficos para
impedir, ou ao menos adiar, o estalar da guerra, essencialmente pela aplicação
do plano soviético para a segurança coletiva da Europa. Não se deveria
permitir a formação de uma frente ampla antissoviética. Fazia-se necessário
observar a máxima segurança e desviar as provocações inimigas.
Segunda, a de que todas as medidas necessárias, até mesmo as mais extremas,
deveriam ser tomadas para preparar e aperfeiçoar a defesa do país, em
especial o aprestamento do Exército Vermelho e da Marinha. (Questões sobre
maior reforço da defesa do país seriam debatidas na Décima Oitava
Conferência do Partido, em fevereiro de 1941.)
Stalin se preocupava com o aprimoramento das agências de política exterior
do país pela maximização das oportunidades diplomáticas. Litvinov, que tinha
ideias próprias, não era do agrado de Stalin, e, logo depois das festividades do
Primeiro de Maio de 1939, Beria voltou a atenção para aquele comissário.
Surgiram os sinais de prisão iminente: um vácuo criou-se em torno de
Litvinov, ele não foi convidado para reuniões importantes, a NKVD fez
“visitas” noturnas a seus assistentes e a pessoas de suas relações, e ele foi
afastado do Comitê Central. O pior parecia inevitável. Seus arquivos foram
lacrados no comissariado. A NKVD esquadrinhou as anotações que ele fazia
em seus diários diplomáticos. Entre elas, estava um de seus últimos relatórios
para Stalin, que dizia:
Anexo um relato de minha conversa de hoje com o embaixador inglês e uma tradução da minuta
da declaração inglesa. […] Ela só convida para uma reunião de consulta, ou seja, exatamente a
mesma coisa que estamos propondo. A impressão é a de que um novo pacto dos quatro,
excluindo Alemanha e Itália, terá alguma importância política. Não creio que Beck ** concorde
em assinar nem mesmo essa declaração. 6
Como Litvinov era de descendência judia – seu nome de origem era Vallakh –
deve ter ficado óbvio para Stalin que seu comissário de relações exteriores
não poderia confiar em Hitler e que continuaria a insistir em uma aliança com
as democracias ocidentais. Nessas circunstâncias, Stalin não poderia ter
confiança nele e, de fato, disse a Beria para cerrar a observação sobre o
comissário, mas, talvez num capricho de tirano, ordenou que nada de pior
fosse feito. Como não existem provas documentais, Stalin deve ter dado
instruções orais para que Litvinov fosse destituído e substituído por Molotov,
um russo “de verdade”. A remoção de Litvinov foi interpretada em Berlim
como “bom sinal”. O enviado soviético temporário a Berlim, G.A. Astakhov,
informou a Moscou que os alemães viam agora possibilidade de melhorar as
relações com a URSS: “As precondições para tanto foram melhoradas com a
saída de Litvinov.” Stalin achou que ao colocar naquela função o homem
9
chegaram então a Moscou, e Stalin aprovou a linha que seria seguida pela
delegação soviética naquelas conversações.
Nos primeiros dias de agosto de 1939, a equipe de Beria preparou dossiês
extensos sobre os membros das missões militares inglesa e francesa, inclusive
Drax, Barnett, Heywood, Doumenc, Valin e Vuillaume. Resultou que Drax
fora recentemente nomeado assistente do rei e recebera a Ordem de São
Estanislau czarista; Doumenc seria membro do conselho supremo francês de
defesa em novembro e era especialista na mecanização do Exército, mas
nunca se envolvera com a política. Stalin não se interessou por informações
16
deste tipo, mas logo viu que, afora uns poucos generais, as delegações eram
compostas em sua maioria por oficiais relativamente novos. Disse a Molotov
e Beria:
“Eles não estão sendo sérios. Essa gente não tem autoridade de decisão. Londres e Paris estão de
novo jogando pôquer, mas gostaríamos de saber se eles são capazes de levar adiante manobras
europeias.”
“Ainda assim, acho que as conversações devem ter lugar”, disse Molotov encarando Stalin.
Enquanto prosseguiam os encontros das três delegações militares, o quadro real logo se revelou.
As potências ocidentais não desejavam estender suas garantias aos estados bálticos. Ademais,
estavam facilitando a reaproximação destes últimos com a Alemanha. Ao mesmo tempo em que
as conversações ocorriam, Hitler impunha condições à Letônia e à Estônia. Sob o governo do
almirante Horthy, a Hungria começou a tomar uma linha hostil em relação à URSS. A política do
governo polonês permaneceu praticamente inalterada. Nas reuniões que teve com Hitler, em
janeiro de 1939, o coronel Beck afirmara que “a Polônia não atribui significação aos chamados
sistemas de segurança”, que estavam de todo falidos. Ribbentrop respondeu que Berlim esperava
que “a Polônia tome uma posição mais francamente antissoviética, caso contrário não teremos
provavelmente interesses comuns”. 17 Sabe-se hoje que o rei Carol II da Romênia, durante uma
visita secreta à Alemanha, dissera a Hitler que “a Romênia é predisposta contra a Rússia, mas não
podemos dizer isto abertamente porque somos vizinhos. Não obstante, a Romênia jamais
permitirá a passagem de tropas russas, embora frequentemente se afirme que uma promessa de
permissão foi feita à Rússia. Não é o caso”. 18
Bem cedo ficou patente, no entanto, que as missões ocidentais tinham ido a
Moscou para emitir impressões gerais e para informar Londres e Paris a
respeito dos “planos em grande escala de Moscou”, e não para chegar a um
acordo concreto e exequível.
Mas Stalin sentiu necessidade de abordar novamente a Inglaterra e a França
com uma proposta definida para um acordo de cinco ou dez anos de
assistência mútua, incluindo de obrigações militares. Na essência, tal
assistência significava que, em caso de agressão contra qualquer dos
signatários, os outros se obrigavam a prestar auxílio. A URSS definiu com
exatidão quais países entre o mar Báltico e o mar Negro tinha em mente.
Londres e Paris não deram resposta. Stalin enviou mensagens para apressá-
los, mas os representantes ocidentais não tinham autoridade para tomar
decisões tão importantes. Como Stalin acabou sabendo, seus parceiros de
negociação estavam, além do mais, dando continuidade ao esforço secreto
para chegar a um entendimento aceitável com Hitler. Estava claro que
Inglaterra e França procuravam apenas ganhar tempo enquanto buscavam o
resultado mais favorável para suas perspectivas, sem levar em conta os
interesses soviéticos. Com efeito, as potências ocidentais não apresentaram
ideias concretas para uma ação conjunta contra a Alemanha. Sua intenção era
claramente deixar que a URSS desempenhasse o papel principal na resistência
a uma possível agressão alemã, sem dar garantias de que assumiriam uma
parcela das dificuldades.
Stalin perdeu a paciência. Como regra, ele chegava aos seus objetivos dando
pequenos passos seguros, mas, naquela ocasião, comportou-se como um
jogador de xadrez que corria contra o tempo. Ele acabou de uma vez por todas
com as conversações tripartites na manhã de 20 de agosto, quando Voroshilov
mostrou-lhe uma nota do almirante Drax, ao qual, como ao seu
correspondente francês, fora pedida uma resposta rápida às propostas
soviéticas. Drax escreveu:
Caro marechal Voroshilov
Lamentamos ter que informar que, até agora, as delegações inglesa e francesa não receberam
resposta alguma para a questão política que o senhor solicitou que transmitíssemos aos nossos
governos.
Em vista do fato de que devo presidir a próxima sessão, sugiro que nos encontremos às 10h de 23
de agosto, ou mesmo antes, se uma resposta chegar nesse meio-tempo.
Atenciosamente
este o homem que lhe oferecia um pacto de não agressão? Motivado, como
Hitler dizia, pelo “clamor da Providência”, consideraria um pacto com Stalin
como um pacto com o diabo, sem qualquer obrigação ou restrição.
No material trazido por Dvinsky havia relatórios de Berlim. O serviço
soviético de informações levantara o poderio das Forças Armadas alemãs no
verão de 1939: a força terrestre tinha um efetivo aproximado de 3,7 milhões
de homens e quase metade dela era mecanizada, 3.195 carros de combate,
mais de 26 mil canhões e morteiros, um efetivo de quase 400 mil na Força
Aérea, com mais de 4 mil aviões, e um efetivo naval de cerca de 160 mil
homens, com 107 navios de guerra. Sem dúvida, a Força mais poderosa no
mundo capitalista. Milhares de antifascistas haviam sido executados,
enquanto cerca de um milhão de alemães definhavam nas prisões e campos de
concentração – números, afinal, que não impressionariam Stalin.
Os comentários zombeteiros que Stalin fizera sobre a guerra iminente
pareciam agora fora de propósito e ingênuos. Em 1934, em meio a aplausos
estrondosos, ele dissera que a guerra seria
mais perigosa para a burguesia, porque seria travada não apenas nos fronts, mas também na
retaguarda do inimigo; os burgueses não deveriam duvidar de que os incontáveis trabalhadores
amigos da URSS, na Europa e na Ásia, atacariam a retaguarda dos opressores que dessem início a
uma guerra criminosa contra a pátria-mãe dos operários de todas as terras. 23
Moscou
20 de agosto de 1939
2. Assinar um pacto de não agressão com a União Soviética significa para mim a consolidação da
política alemã de longo prazo…
3. Aceito a minuta de pacto de não agressão que vosso ministro do Exterior Molotov transmitiu,
mas considero urgentemente necessário elucidar diversas questões relacionadas com ele da forma
mais rápida possível …
5. Penso que, se é intenção dos dois estados agirem em conjunto nas novas relações, seria bom
não perder mais tempo. Assim, novamente proponho que o senhor receba meu ministro do
Exterior na terça-feira, 22 de agosto, ou, o mais tardar, na quarta-feira, 23 de agosto […]
Adolf Hitler 29
O Führer tomara a peito a iniciativa. O tom de ultimato era evidente. Stalin
leu o telegrama diversas vezes, sublinhando com de azul a frase “uma crise
pode ocorrer a qualquer momento” e a sentença final.
Notas
* Vrag naroda , em russo.
** Joseph Beck, ministro do Exterior polonês.
[35]
Reviravolta
S talin e Molotov passaram um longo tempo olhando a mensagem, ouviram
de novo o que Voroshilov pensava sobre as conversações com ingleses e
franceses e tentaram verificar informes sobre contatos de Berlim com Paris e
Londres que ameaçassem a formação de uma ampla aliança antissoviética.
Pesaram prós e contras e chegaram a uma decisão final. Stalin se levantou,
caminhou de um lado a outro algumas vezes, olhou para Molotov e começou
a ditar:
Ao Chanceler da Alemanha A. Hitler
21 de agosto de 1939
Meus agradecimentos por sua carta. Espero que o pacto germano-soviético de não agressão seja
um ponto de inflexão na direção do sério progresso nas relações políticas entre nossos países.
O governo soviético instruiu-me a informar-lhe que concorda com a visita a Moscou do Sr.
Ribbentrop em 23 de agosto.
I. Stalin 30
neste ponto.
Simultaneamente, as conversações anglo-franco-soviéticas foram
interrompidas. Voroshilov disse à imprensa: “As conversações com a
Inglaterra e a França não foram suspensas por causa do pacto de não agressão
com a Alemanha, e sim, ao contrário, a União Soviética assinou o pacto de
não agressão com a Alemanha porque as conversações militares com a
Inglaterra e a França chegaram a um impasse.” A última reunião das
32
Depois do inesperado acordo com Hitler, Stalin foi mais além. Concordou
com diversos tratados suplementares, conhecidos como “os protocolos
secretos”, que deram um caráter distintamente negativo a um passo que, não
fora isso, teria sido um passo forçado e talvez necessário. O entendimento de
Stalin com Hitler sobre o destino das terras polonesas foi particularmente
impudente, pois equivalia à liquidação de um Estado independente. Os
originais desses protocolos, ao que parece, não foram vistos por ninguém, e o
que tem circulado por anos, provavelmente, são cópias do que Ribbentrop
trouxe a Moscou. Todavia, não pode haver qualquer dúvida de que um
acordo, documentado ou verbal, relativo às fronteiras dos “interesses de
Estado” alemães e soviéticos, de fato existiu. Mais adiante, voltaremos ao
assunto.
Olhando de hoje, o Pacto de Não Agressão parece extremamente deslustrado,
e uma aliança com as democracias ocidentais seria, em termos morais,
imensamente preferível. Mas nem a Inglaterra nem a França estavam
dispostas a uma aliança. Do ponto de vista do interesse de Estado, a União
Soviética não tinha outra alternativa aceitável. A recusa em tomar qualquer
atitude dificilmente teria detido a Alemanha. A Wehrmacht e a nação estavam
sintonizadas em tal grau de aprestamento que a invasão da Polônia era uma
conclusão predeterminada. A assistência à Polônia foi dificultada não só pela
atitude de Varsóvia, mas também pela falta de preparo da União Soviética. A
rejeição ao pacto poderia conduzir à formação de uma ampla aliança
antissoviética e ameaçar a própria existência do socialismo.
De qualquer forma, Inglaterra e França tinham assinado pactos semelhantes
com a Alemanha, em 1938, e estavam em conversações secretas com Hitler
no verão de 1939 com o objetivo de criar um bloco antissoviético. É comum a
afirmativa de que o pacto deflagrou a Segunda Guerra Mundial, enquanto
também é comumente esquecido que, naquela ocasião, as potências ocidentais
já tinham sacrificado a Áustria, a Tchecoslováquia e Memel no altar de Hitler,
e que a Inglaterra e a França não tinham feito coisa alguma para salvar a
República da Espanha.
Não se faz menção ao fato de que a Polônia, outra das vítimas de Hitler,
também assinou um pacto de não agressão com ele. O Führer planejara seu
ataque à Polônia para 11 de abril de 1939, bem antes que Molotov e
Ribbentrop rabiscassem suas assinaturas no Pacto. Na verdade, Hitler chegou
a discutir a tomada da Polônia numa reunião bastante anterior, em 22 de
janeiro de 1939, e seus projetos em relação àquele país eram conhecidos por
todos. A liderança soviética, em particular Stalin, já no início de 1939, tinha
conhecimento do ataque à Polônia concebido por Hitler. Em junho daquele
ano, um agente soviético de informações teve um encontro com o doutor
Kleist, chefe da seção do leste de Ribbentrop, e foi-lhe dito que:
O Führer não permitirá que o resultado das conversações afete sua intenção de resolver a questão
polonesa de uma forma radical. O conflito germano-polonês será equacionado por Berlim sejam
as conversações bem ou malsucedidas. […] A ação militar contra a Polônia está planejada para o
fim de agosto ou início de setembro. 35
Ninguém conhece a atual situação do governo polonês. * A população polonesa foi abandonada à
própria sorte por seus infelizes líderes […] O governo soviético encara como dever sagrado
oferecer ajuda aos seus irmãos ucranianos e bielorrussos na Polônia […] O governo soviético
instruiu o comando do Exército Vermelho para mandar suas tropas cruzarem a fronteira para
proteger a vida e os bens da população da Ucrânia ocidental e da Bielorrússia ocidental. 37
42.492 ex-prisioneiros de guerra que foram entregues aos alemães; 42.400 que foram soltos e
enviados à Ucrânia e à Bielorrússia.
Quando Hitler tomou Paris, em junho de 1940, Stalin sentiu que, se o Führer
não invadisse logo a Inglaterra, ficaria propenso a voltar seus olhos para o
leste, e então, consciente do despreparo e fazendo esforços esporádicos para
compensar o tempo perdido, deu um novo passo. Em meados de junho de
1940, Moscou solicitou permissão aos governos da Lituânia, da Letônia e da
Estônia para ter contingentes adicionais em seus territórios. O tom utilizado
foi de ultimato. Encorajado pelo recente sucesso, ele já estava falando grosso
com os Estados bálticos, como atesta o fato de ter enviado Zhdanov,
Vyshinsky e Dekanozov para a região. Em outubro de 1940, Pozdnyakov, que
acompanhara Dekanozov, reportou para Stalin e o Politburo: “A composição
política do principal órgão lituano ainda é desfavorável, isto é, a diferenciação
de classe ainda não teve lugar naquele órgão, ou seja, o elemento hostil não
foi derrubado da sela e faz trabalho antissoviético congregando as tropas em
linhas nacionalistas.” É fácil imaginar o que Dekanozov e os outros
47
obstáculo, não se podia dizer que a velha guarda mantinha alguma influência:
ela fora toda (exceto Voroshilov) aniquilada pelo expurgo. De qualquer
maneira, Stalin passou a saber então que espécie de comandante guerreiro era
Voroshilov. O Exército Vermelho revelou enormes deficiências. Hitler ficou a
um só tempo surpreso e deleitado. Suas estratégias tinham se baseado em
cálculo acurado. Uma vitória a grande custo era equivalente a uma derrota
moral. Tanto Stalin como Hitler entenderam assim e cada um tirou suas
próprias conclusões. Stalin, contudo, dispunha de menos tempo para
reflexões. Assaltou-o uma falta de autoconfiança não muito comum. A partir
daquele momento, ficou obcecado pela ideia de que, se Hitler não fosse
provocado, não atacaria. Quando as forças de defesa da fronteira soviética
derrubaram uma aeronave alemã que penetrara o espaço aéreo soviético,
Stalin deu ordens pessoalmente para que fosse enviado um pedido de
desculpas. A Alemanha beligerante tinha, na realidade, um aliado não
beligerante na URSS, e Berlim tomou, rapidamente, nota de tal fato. Nas
manobras de grandes efetivos, Stalin exercitava o aspecto defensivo.
Enquanto isto, Hitler estava quase pronto para começar sua campanha do
leste.
Embora hoje tenhamos razão para condenar Stalin, temos que reconhecer
também que, em vista das circunstâncias daquela ocasião, muitas das medidas
que tomou para retardar a guerra e fortalecer as defesas ocidentais da URSS
foram, de certa forma, impostas a ele. Acreditou por demais na palavra de
Hitler e cometeu diversos erros que preferiu não lembrar mais tarde, embora
tenha dito aos comandantes do Exército Vermelho no Kremlin, em 24 de
junho de 1945, que “nosso governo cometeu muitos enganos”. Para ser mais
exato, houve erros não apenas no curso da guerra mas também antes dela.
Talvez o maior e mais sério tenha sido a assinatura do tratado alemão-
soviético de amizade e segurança das fronteiras de 28 de setembro de 1939.
Segundo o tratado, as fronteiras e esferas de influência dos dois estados
ficaram definidas com um mapa anexado. A fronteira era diferente daquela
acertada pelos “protocolos secretos” do pacto de 23 de agosto de 1939. Ela
ficava estabelecida ao longo dos rios Narev, Bug e San.
A “amizade” entre o Estado socialista e o fascista foi adotada nas
conversações Molotov-Ribbentrop de 27-28 de setembro de 1939, em
Moscou, com Stalin tomando parte direta nelas, tal como fizera em agosto. Há
evidências sinalizando que Stalin estava consciente, mesmo antes da guerra,
de que cometera um erro. No desespero por evitar ou, pelo menos, retardar a
guerra, ele cruzara a última fronteira ideologicamente justificável, e isto teria
consequências de longo alcance.
Notas
* Naquela noite, a cúpula do governo polonês deixou o país, e o alto-comando do Exército partiu no dia
seguinte.
** Todos eles cantores populares e músicos.
[36]
Stalin e o Exército
À s vésperas da guerra, o Exército contava com a afeição do país. Heróis
nacionais surgiram nas campanhas da Mongólia, na Espanha e na guerra
finlandesa, e não havia falta de candidatos ao ingresso nas academias
militares. O serviço militar era considerado uma carreira honrosa. As
lideranças política e militar não tinham contrariedades com a disciplina e a
conscientização política dos soldados, os quais acreditavam em Stalin e no
partido, embora as feridas abertas pelo expurgo ainda não estivessem
completamente cicatrizadas. Mesmo assim, a guerra finlandesa, a despeito de
ser apresentada como uma vitória, deixava o povo curioso sobre o porquê de
um Exército tão poderoso como o descrevia a imprensa ter demorado quatro
meses para subjugar as forças de um país pequeno como a Finlândia. Stalin
ficou mais envergonhado que os outros com a Guerra do Inverno, mas é
evidente que não pôs a culpa em si mesmo. Em março de 1940, deixou claro
que alguém teria que responder pelo acontecido. O escolhido foi Voroshilov.
Apesar de não ser militar, Stalin gradualmente passou a ver que Voroshilov
não era capaz de comandar o Exército. Não conduzira bem o quartel-general
durante a campanha de Khalkin Gol, nem na guerra finlandesa. Segundo
Zhukov, depois de Khalkin Gol, quando foi nomeado para comandar o distrito
militar de Kiev, de repente Stalin começou a falar sobre Voroshilov: “Ele se
jactava em afirmar que responderíamos pelo triplo toda a vez que fôssemos
atingidos. ‘Está tudo bem, tudo ótimo, Camarada Stalin, está tudo pronto’ –
mas depois, o que houve?” 56
novos “inimigos” tinham que ser encontrados todos os dias, e sua paranoia
contagiava o entourage, seus carrascos e o país de modo geral. Os distritos
militares e as academias receberam ordens como esta, enviada à
administração política do Exército Vermelho em Moscou:
Nomeie uma comissão para investigar e rever a equipe de instrutores da Academia Lenin. Se
alguém do grupo Tolmachev ainda estiver por lá, transfira todos imediatamente.
embora não tenha sido possível terminá-la antes do início da guerra. Mas nem
Stalin nem o comissário da defesa notaram que, com exceção de Tyulenev,
ninguém levantou a questão das operações defensivas modernas. Todos 66
Nos dois anos que decorreram antes que a URSS entrasse na guerra, Stalin
tentou claramente aumentar a qualidade e o efetivo das Forças Armadas, mas
seu trabalho baseou-se na premissa falaz de que ele seria capaz de evitar, ou
pelo menos de adiar, a guerra. Como o escritor Konstantin Simonov recorda
de uma conversa com Zhukov: “Stalin estava convencido de que, com o
Pacto, dera um tombo em Hitler. Mas aconteceu justamente o contrário.”
Zhukov disse que “a maioria dos que o cercavam apoiou os julgamentos
políticos que Stalin fizera antes da guerra, especialmente a noção de que, se
não fizéssemos nenhuma provocação, nem déssemos um passo em falso,
Hitler não romperia o Pacto e não nos atacaria”. Esta linha de pensamento
69
[37]
O arsenal de defesa
E m meados de novembro de 1940, o Izvestiya publicou que “no contexto
das relações amistosas que existem entre nossos dois países e da atmosfera de
confiança mútua, uma troca de opiniões tivera lugar entre V.M. Molotov, o
chanceler A. Hitler, o ministro do exterior J. Ribbentrop, o marechal Goering
e o vice de Hitler no partido, R. Hess”. Na realidade não havia tal “confiança
mútua”. Molotov chegou em Berlim em 12 de novembro parecendo
apreensivo, e a tensão e a desconfiança entre os “amigos” foi crescendo a
olhos vistos.
No seu gabinete cavernoso, Hitler encarou intensamente o visitante e passou
de imediato ao seu tema preferido: as potências do Eixo estavam à beira do
triunfo, o Império Britânico logo seria martelado e era hora de decidir que
tipo de mundo se seguiria à proclamação da Nova Ordem. A Alemanha tinha
interesse nisso e, esperava ele, a Rússia também. Molotov ouviu sem
interromper, enquanto Hitler dividia o mundo em esferas de influência. Mas
quando o Führer fez uma pausa e virou-se para o representante soviético à
espera de uma reação, Molotov observou friamente que não via sentido na
discussão de tais pontos. Hitler empertigou-se visivelmente, mas Molotov não
se intimidou e começou a fazer perguntas incômodas: por que existia uma
missão militar alemã na Romênia; por que a Alemanha estava deslocando
tropas para a Finlândia. Hitler perdeu o interesse pela conversa e sugeriu
suspendê-la até o dia seguinte. Os dois lados falavam claramente línguas
diferentes e ambos entenderam que os acordos de um ano antes estavam
mortos. Tinham cumprido sua finalidade: com eles, a Alemanha blefara a
URSS e ganhara liberdade de ação; a URSS ganhara tempo. Sentindo a
desconfiança dos alemães, Molotov retornou ao seu hotel, o Bellevue, e
tentou se consolar imaginando que Hitler não incorreria no mesmo erro
cometido pela Alemanha na Primeira Guerra Mundial, lutando em duas
frentes. De sua parte, de acordo com os relatos de Beria, os governos
ocidentais acreditavam que a aliança militar germano-soviética era para valer.
70
Stalin, no entanto, tinha dúvidas crescentes a respeito da política alemã. E
ainda não sabia que, enquanto Molotov estava em Berlim, o general F. Halder,
chefe do Estado-maior das forças terrestres germânicas, expunha ao marechal
de campo Brauchitsch, comandante em chefe das mesmas forças, a última
versão da Ordem nº 21, ou Operação Barbarossa , para a invasão da URSS.
Hitler pretendia não ser emboscado, como Napoleão, pelo inverno russo,
portanto fixou a data da invasão para 15 de maio de 1941. A campanha
71
1941, disseram a Stalin que só havia peças sobressalentes para suprir 30% de
todas as unidades blindadas e mecanizadas do Exército, e que seriam77
necessários mais três ou quatro anos para completar o trabalho. A posição não
era melhor na aviação, onde só haviam sido fabricados 10 a 20% dos novos
modelos, e o quadro era mais ou menos o mesmo em todos os aspectos da
indústria militar. Como Timoshenko e Zhukov reportaram um mês antes de a
guerra começar: “A concretização do plano para o suprimento de tecnologia
militar que o Exército Vermelho necessita com tanta urgência é extremamente
insatisfatória.” Stalin, o Politburo e os comissários buscaram uma solução e a
encontraram levando ao limite máximo o esforço da população soviética. A
produção passou a aumentar em um setor e diminuir em outro, passando de
uma arma para outra, como, por exemplo, dos canhões da artilharia para as
armas dos aviões e dos carros de combate, a despeito das críticas feitas ao
processo. Em função das circunstâncias, no entanto, pode-se entender por que
tais métodos foram adotados.
Stalin também se preocupou com a agricultura. A eficiência do trabalho no
setor agrícola era extremamente baixa, comparada com a da indústria, e a
explicação que sempre davam ao secretário-geral era a de que os kolkhozniks
passavam a maior parte do tempo nas hortas de fundo de quintal ou nos tratos
de terra próximos às suas casas e não na produção coletiva. A.A. Andreyev
recebeu ordem para estudar o problema, e o relatório que fez para um pleno
do final de maio de 1939 foi intitulado “Sobre as medidas para proteger as
terras das fazendas coletivas públicas contra o esbanjamento em benefício dos
tratos privados dos agricultores coletivos”. O ponto forte do relatório de
Andreyev foi que métodos drásticos deveriam ser impostos limitando a área
dos tratos de terra privados e fixando um mínimo absoluto de dias de trabalho
a ser ganho por cada membro do grupo de camponeses, o artel . * Mais uma
vez, então, a força das ameaças, e não medidas econômicas, foi empregada
para resolver o problema.
O pleno foi presidido por Molotov. Não houve ata, mas diversos extratos,
diálogos e anotações sobreviveram nos arquivos, mostrando que Stalin e
outros líderes confiavam na técnica das diretrizes e na coação para
administrar a agricultura. Andreyev relatou que, no oblast de Kiev, 5,8% dos
integrantes do artel não trabalhavam no kolkhoz e que 18% dos kolkhozniks
ganhavam apenas cerca de cinquenta dias de trabalho, enquanto Shcherbakov
relatou que, no distrito de Nogin do oblast de Moscou, 32% das famílias não
faziam qualquer trabalho coletivo. O silêncio pesado do auditório foi
78
Andreyev: “Não foi possível identificá-las, Camarada Stalin. Alguns são trabalhadores por
temporada, outros são parasitas que exploram o kolkhoz .”
Andreyev: “Sim, nem um só dia de trabalho. Vivem totalmente de seus tratos privados.”
Andreyev: “São trabalhadores sazonais muito idosos, mas desorganizam. Seu comportamento
confunde os kolkhozniks que trabalham honestamente.”
Stalin: “Sim.”
Zhdanov escreveu de imediato uma resolução pedindo que Bagirov
submetesse uma proposta de nacionalização das hortas caseiras. Apresentou
também para apreciação do plenário uma emenda proposta por Stalin no
sentido de que “todos os administradores de fazendas coletivas que
permitirem que kolkhozniks e forasteiros depositem feno nas matas em bases
individuais deverão ser demitidos do kolkhoz e julgados por infringir a lei”.
Como resultado, grandes extensões de pradarias permaneceram sem cultivo e
os kolkhozniks foram proibidos de ter feno até em ravinas e matas fechadas.
Houve apenas uma objeção, a de Kulikov – as iniciais não eram normalmente
anotadas naquele tempo – que disse: “Tenho que fazer o seguinte comentário:
aqui na página 3 está especificado imposto em espécie que os granjeiros
particulares têm de pagar em grãos. A região de Krasnoyarsk tem de pagar
15% em cereais. Onde obterão esses grãos para julho? Com que reservas
ficarão?” Até Stalin deu mostras de dúvida: “Se publicarmos a diretriz em
nome do Comitê Central e do Sovnarkom”, perguntou, “não causaremos
confusão para os kolkhozniks ?”
“Não, pelo contrário, eles passarão a se comportar”, vieram algumas vozes
inseguras do salão. “O povo espera por isso há muito tempo.”
Nos últimos meses que antecederam a guerra, como mencionamos, a pulsação
do trabalho foi acelerada. Jornais e rádios davam notícias sobre a guerra, a
Batalha da Inglaterra, a suspensão temporária dos bailes de salão na
Alemanha, a transformação da Polônia num Governo Geral e sobre as
conquistas econômicas da URSS. Difundiram também as instruções de Stalin
ao Gosplan para que fosse feito um plano geral econômico para os 15 anos
seguintes a fim de atingir o objetivo principal de “sobrepujar os países
capitalistas na produção per capita de ferro gusa, aço, combustíveis, energia
hidroelétrica, máquinas e bens de consumo”. 79
Nota
* O dia de trabalho era uma unidade de produção, e o artel , um grupo de operários ou camponeses.
[38]
O assassínio do exilado
E m meio ao esforço geral para elevar o potencial de defesa da União
Soviética, subitamente, Stalin recebeu a muito esperada notícia do exterior de
que Trotsky fora assassinado. A caça ao exilado durara alguns anos, mas
Trotsky vinha sendo bem protegido por seus seguidores e pela polícia. Stalin
criara uma unidade especial para lidar com o “problema” e, por diversas
vezes, mostrara a Beria sua insatisfação com a indecisão de seus agentes e sua
falta de desenvoltura. Agora estava feito. O duelo acabara. Ainda assim,
Stalin não sentiu qualquer alegria especial. Se acontecesse em 1937-38, teria
sido diferente, pois então via a sombra de Trotsky por trás de qualquer
inimigo importante, a mão do rival parecia estar em tudo, e suas predições
tornavam-se realidades. Trotsky fora o principal acusado em todos os grandes
julgamentos, mas, depois da insanidade daqueles anos, o ódio de Stalin de
alguma forma tinha arrefecido. Com a liquidação dos aliados de destaque do
rival, o próprio Trotsky começou a parecer menos perigoso. O fantasma da
guerra era bem mais sombrio e ameaçador que o “cidadão sem visto”.
Stalin ordenou que a informação fosse confirmada e, em 22 de agosto de
1940, apareceu uma breve notícia no Pravda :
Nova York, 21 de agosto (TASS). Segundo jornais dos EUA, em 20 de agosto, houve um
atentado contra Trotsky, que estava morando no México. O assassino disse chamar-se Jacques
Mortan Vandendraish e pertence ao círculo dos seguidores mais próximos de Trotsky.
Trotsky perde, então, o senso da realidade e apela para que o povo se levante
contra essa “nova casta”. Para tanto, “um novo partido é necessário, uma
organização revolucionária honesta e corajosa de trabalhadores destacados. A
Quarta Internacional se dispõe a criar tal partido na URSS”. E a conclamação
termina com a reiteração das constantes prioridades de Trotsky:
Abaixo o Caim Stalin e sua camarilha!
Depois de ler isso, Stalin convocou Beria e alertou-o de que estava cansado
de tudo aquilo e de que estava começando a duvidar se a NKVD queria
mesmo cumprir a missão. Beria fez várias reuniões e redobrou o esforço para
liquidar Trotsky. Parece que foi tomada a decisão de explorar toda a
insatisfação sentida por diversos organismos públicos com as atividades
trotskystas, em particular durante a guerra civil na Espanha. Como o pintor
mexicano comunista David Alfaro Siqueiros escreveu no seu livro They
called me the Dashing Colonel , mesmo enquanto ainda estavam na Espanha,
ele e seus amigos decidiram que “fosse como fosse, o quartel-general de
Trotsky no México tinha que ser destruído, ainda que à força”. 81
[39]
Diplomacia secreta
P ara Stalin, diplomacia significava chegar a decisões e, se necessário, a
meios-termos que garantissem condições externas favoráveis à consecução
dos planos grandiosos que ele anunciara no último congresso. Como chefe,
podia dizer que dirigia o país para a meta de alcançar e ultrapassar os países
capitalistas desenvolvidos, mas precisava de tempo e de paz, paz a qualquer
preço. Por causa disso, tirou Litvinov do cargo de comissário do exterior, já
que o julgava por demais antifascista, substituindo-o por Molotov. Todos os
caminhos tinham que ser explorados para evitar que a URSS entrasse em
guerra. Ele não era pelas formas clássicas de diplomacia, com visitas,
congressos, conferências internacionais e cimeiras, preferindo, em vez disso,
a correspondência confidencial, os emissários especiais e as conversas
particulares, participando pessoalmente se a situação exigisse um relevo
importante. Mas era crucial que apenas um reduzido número de pessoas
ficasse engajado na diplomacia como um dos braços da política externa do
país. Os comissariados do Interior e do Exterior tinham que supri-lo com fatos
e informações necessários sobre a real situação, sobre as implicações e
tendências ocultas, a fim de que ele pudesse tomar as decisões. Dando valor
especial ao sigilo, há muito esquecera o primeiro decreto do Estado soviético,
ou seja, aquele sobre a “Paz”, que condenara a diplomacia secreta; entre
dezembro de 1917 e fevereiro de 1918, enquanto Trotsky foi o comissário do
Exterior, o governo divulgara mais de uma centena de documentos sigilosos
dos arquivos do ministério czarista das relações exteriores.
Stalin, com frequência, pensou em tentar envolver os EUA na crise mundial
que se avolumava, mas não estabeleceu um contato construtivo com o
presidente dos Estados Unidos até a guerra. Fortemente desconfiado do
colosso transatlântico, tinha também dúvida se havia muita coisa que os EUA
pudessem fazer na Europa. Quando, em 15 de abril de 1939, Roosevelt
escreveu a Hitler e Mussolini – a sua chamada “surpresa de sábado” –
oferecendo-se como intermediário imparcial de todas as questões importantes
e apelando para que os líderes fascistas prometessem uma trégua de dez ou
quinze anos sem atacar trinta países de uma lista da Europa e do Oriente
Médio, Stalin de pronto se mostrou surpreso e cético. Debatendo a questão
83
É meu agradável dever expressar profunda simpatia e sinceras congratulações que sinto pelo
nobre apelo que o senhor fez aos governos da Alemanha e da Itália. Esteja certo de que sua
iniciativa encontrará a mais calorosa acolhida no coração dos povos da União Socialista Soviética
que se preocupam sinceramente com a preservação da paz no mundo inteiro.
16.v.v.39 Kalinin 84
Quando o enviado especial aos EUA, K.A. Umansky, foi recebido pelo
presidente em 30 de junho de 1939, Roosevelt limitou-se a expressar o desejo
de que as conversações anglo-franco-soviéticas chegassem a bom termo.
Umansky passou um cabograma para Moscou dizendo que o presidente “não
se dispunha a usar seu considerável poder moral e material para exercer
influência sobre a política inglesa e francesa”. A política externa foi,
85
2. Ficou acertado também que a cidade de Sambor será entregue na manhã de 24 Set. Repito que
não surgiram dificuldades durante as conversações e estou muito satisfeito com o fato de tudo ter
corrido tão bem.
3. É meu dever reportar que, segundo o pessoal de nossa Força Aérea, grandes reservatórios de
petróleo estão queimando em Drogobych há dez dias. Circulam rumores locais de que eles foram
incendiados por alemães, mas peço que não acreditem, já que tal material também era necessário
para nós.
4. No que respeita a vagões ferroviários, o Estado-maior do Exército Vermelho sabe que agimos
de acordo com os protocolos.
Essa fora a posição dezoito meses antes, mas agora Stalin estava ávido por
reduzir a pressão no seu flanco oriental.
Durante os últimos cinco anos, as relações entre Japão e URSS vinham sendo
marcadas pelo conflito, pela fricção, pela frequente e áspera troca de notas e
por importantes escaramuças armadas. A mais séria delas – envolvendo um
milhão de soldados! – ocorrera na Mongólia, em Khalkin Gol e no lago
Khasan, e, sem dúvida, foi a razão para que, finalmente, os japoneses
decidissem assinar o tratado. Stalin sabia que proporcionava liberdade de ação
aos japoneses para o desencadeamento do Plano Tanaka, de 1927, para a
conquista do Pacífico, mas não tinha escolha – Hitler era ameaça maior.
Matsuoka partiu naquela mesma noite e, poucos minutos antes de o trem
deixar a estação, Stalin surgiu, acompanhado de um grande número de
seguranças, para apresentar despedidas pessoais, deixando o ministro japonês
em total estupefação. Ao apertar a mão dos convidados que partiam, Stalin
reiterou a importância que conferia ao tratado recém-assinado, bem como à
declaração de respeito mútuo pela integridade territorial e a inviolabilidade de
Manchukuo e da República Popular da Mongólia. Aproveitou também a
oportunidade para agradecer aos diplomatas alemães que acompanhavam
Matsuoka.
Stalin estava dividido: sabia que a guerra seria inevitável, mas, apesar disso,
recusava-se a acreditar que era iminente. Por isso, repetia com insistência que
“não podemos ser provocados”. Os alemães, nesse ínterim, percebendo que o
único objetivo de Stalin era ganhar tempo, tornaram-se mais atrevidos. Por
exemplo, a partir do início de 1941, aviões alemães passaram a violar às
dezenas a fronteira, avançando cada vez mais no espaço aéreo soviético.
Mesmo se forçados a aterrar, os aviões e as tripulações eram imediatamente
devolvidos à Alemanha. Quando, pouco antes da guerra, uma unidade
soviética de fronteira abateu um avião de reconhecimento matando dois
tripulantes, Stalin ordenou a punição dos responsáveis enquanto passou um
telegrama ao enviado soviético em Moscou, Skornyakov, determinando: “Vá
imediatamente a Goering e expresse pesar pelo incidente.” 92
Quando Mussolini viu que não podia se estabelecer nos Bálcãs sem ajuda,
apelou para o Führer, que concordou, desde que o exército italiano fosse
colocado totalmente sob comando alemão. Na oportunidade em que as forças
de Hitler começaram a se concentrar para a invasão da Grécia e da Iugoslávia,
esta última propôs um tratado de não agressão e de amizade com a URSS. Já
em 17 de janeiro de 1941, Stalin dissera a Berlim que a URSS considerava a
parte oriental da península balcânica como zona de segurança soviética, e que
não poderia ficar indiferente aos eventos que ocorressem na região. Como um
sinal a mais a Hitler de que a URSS não desejava espraiar a guerra pelos
Bálcãs, Stalin assinou o Pacto URSS-Iugoslávia, em 5 de abril de 1941.
Hitler, contudo, decidiu humilhar Stalin e ignorou os dois sinais; poucos dias
depois da assinatura do tratado aludido, forças alemãs invadiram a Iugoslávia.
Ficou claro desde meados de 1940, tanto para Stalin como para Hitler, que as
relações entre eles estavam se deteriorando. Hitler convidou Stalin a visitar
Berlim, mas Moscou decidiu enviar Molotov no lugar do secretário-geral. Na
véspera da partida de Molotov, em novembro de 1940, ele e Stalin, com a
presença de Beria, gastaram longo tempo tentando decifrar o que Hitler
poderia querer e o que os soviéticos poderiam fazer para que a paz persistisse
por pelo menos mais um par de anos.
Molotov foi recebido na estação ferroviária de Berlim por Ribbentrop, Keitel,
Ley, Himmler e outros nazistas do alto escalão, cuja presença deixava patente
o grande significado que Hitler emprestava à visita. Com a derrota inevitável
da Inglaterra, como eles supunham, desejavam atenuar o temor de seu
poderoso vizinho e deixá-lo desprevenido.
Como já mencionamos, durante as negociações, Hitler e Ribbentrop passaram
mais de duas horas tentando distrair Molotov com conversas sobre “esferas de
influência”, “iminente desmoronamento do Império Britânico” e coisas assim.
Molotov, por seu lado, demonstrava completo desinteresse pelos planos
globais germânicos e insistia em conseguir respostas para questões concretas,
tais como: por que havia tropas alemãs na Finlândia; quando seriam as tropas
alemãs retiradas da Bulgária e da Romênia; por que a Hungria se juntara ao
Pacto Tripartite [de Alemanha, Itália e Japão]. Hitler ficou muito
desapontado. Nada que dissesse desviaria o rumo de Molotov, que continuava
deixando claro que a única preocupação de Moscou naquele momento eram
as suas relações com a Alemanha. Quando Hitler acompanhou Molotov ao
Grande Salão da nova Chancelaria, pegou o soviético pelo braço e disse: “Eu
sei que a História se lembrará de Stalin. Mas também se lembrará de mim.”
Molotov, impassível como de hábito, replicou: “Sim, senhor, claro que se
lembrará.”
Poucas semanas mais tarde, em 18 de dezembro, Hitler sancionou o plano da
Operação Barbarossa , especificando que “o poder fundamental das forças
terrestres da Rússia desdobradas no oeste daquele país tem que ser destruído
por meio de operações decisivas que utilizem o emprego do movimento
rápido e profundo dos blindados como pontas de lança. A retirada e a
dispersão das tropas combatentes inimigas pelas vastidões do território russo
têm que ser evitadas”. Mas Molotov não percebeu nada disso e continuou
93
Nos últimos dois meses que antecederam a guerra, Stalin recebeu alguns
relatórios de diferentes fontes, não só de informações e diplomáticas,
alertando-o quanto ao iminente ataque de Hitler à URSS. Os governos inglês
e americano também mandaram avisos. Churchill, já então primeiro-ministro,
enviou um relatório afirmando que os alemães deslocavam consideráveis
efetivos de suas tropas para o leste. Stalin descartou o alerta como outra
tentativa inglesa de empurrar a URSS ao confronto com Hitler. Mais tarde,
em Moscou, em 1942, ele disse a Churchill que não precisou de tais avisos
porque sabia perfeitamente que Hitler atacaria. Só esperava ganhar mais uns
seis meses ou algo perto disso. Alertas semelhantes se acumularam a tal
95
Uma declaração estranha como esta foi explicada, depois da guerra, por um
funcionário soviético importante como uma sondagem diplomática normal,
mas foi lida por milhões de cidadãos soviéticos e por todas as Forças
Armadas, resultando num efeito profundamente desorientador. Tal
“sondagem” deveria ter sido conduzida secretamente e os resultados
divulgados pelo menos aos comandantes superiores das forças armadas, ao
comissariado de Defesa e aos distritos militares. Por toda parte, ela foi
entendida da mesma maneira, de acordo com L.M. Sandalov, oficial de
Estado-maior durante a guerra:
Vinda de um órgão estatal competente, uma declaração daquelas tendeu a entorpecer a vigilância
das forças. Os oficiais se convenceram de que havia circunstâncias desconhecidas que faziam
com que o governo se despreocupasse e ficasse seguro quanto às nossas fronteiras. Os oficiais
deixaram de pernoitar nos quartéis. Os soldados começaram a se desequipar para dormir. 96
Agora que tomei a decisão, sinto-me mais livre. Considerei a cooperação com a União Soviética,
a despeito da tentativa sincera de encontrar uma détente , por demais onerosa. Porque a mim ela
parecia um rompimento com meu passado, minha visão e meus compromissos anteriores. Estou
satisfeito por sacudir esse peso moral.
[40]
Omissões fatais
U m mês antes do ataque alemão, Stalin, falando a um grupo de auxiliares
mais próximos, disse: “O conflito é inevitável, talvez em maio do ano que
vem.” Pelo início do verão de 1941, reconhecendo que a situação ficava
explosiva, aprovou a formatura antecipada de cadetes, e foi assim que jovens
oficiais e comissários políticos, quase sem direito à licença de trânsito, foram
classificados diretamente nas unidades que estavam com efetivos desfalcados.
Depois de muita hesitação, Stalin decidiu também convocar 800 mil
reservistas, completando as dotações em pessoal de 21 divisões dos distritos
militares da fronteira. Infelizmente, isso foi feito duas ou três semanas antes
do ataque.
Em 19 de junho, as tropas receberam ordem para começar a camuflar pistas
de pouso, instalações de transportes, bases e depósitos de combustíveis, e
dispersar as aeronaves pelos campos de pouso. As ordens foram dadas
desesperadamente tarde e, mesmo assim, Stalin temia que “todas essas
medidas provoquem as forças da Alemanha”. Timoshenko e Zhukov tinham
que lhe solicitar duas ou três vezes para que aprovasse ordens operacionais.
Embora concordasse com os militares, ele se apegava à ideia de que Hitler
não arriscaria lutar em duas frentes e não percebia que, de fato, não havia uma
segunda frente real, em meados de 1941.
A natureza dos erros de cálculo de Stalin não residia somente em suas
avaliações equivocadas, em suas previsões erradas, ou mesmo na
determinação do agressor, embora, evidentemente, todos esses fatores
estivessem presentes. Seus enganos imperdoáveis derivaram do mando
pessoal. É difícil acusar os comissários ou o Soviete Principal de Guerra,
quando a imagem do chefe era a de um líder infalível e sábio. A lembrança
dos julgamentos políticos ainda era muito recente, e qualquer “mal-
entendido”, “objeção” ou sinal de “imaturidade política” poderia resultar e
ainda resultava em sérias consequências.
Para agradar Stalin, todos falavam sobre a “invencibilidade do Exército
Vermelho”, o “endurecimento das atitudes do proletariado na Alemanha” e
sobre como as dificuldades internas do capitalismo fariam com que aquelas
nações “implodissem”. A imprensa escrita, o rádio e até os especialistas
acadêmicos diziam coisas semelhantes. Por exemplo, Ye. Varga, renomado
assessor econômico de Stalin (que mais tarde caiu em desgraça), disse durante
uma palestra proferida na Academia Político-Militar Lenin, em 17 de abril:
Levanta-se a questão: haverá vitoriosos e derrotados nesta guerra, ou ela perdurará por tanto
tempo que nenhum dos lados será capaz de derrotar o outro? Os interesses da URSS demandam a
preservação da paz até que uma crise revolucionária amadureça nos países capitalistas. Se surgir
uma situação assim, os regimes burgueses se enfraquecerão, o proletariado conquistará o poder e
a União Soviética terá de ir, e irá, em ajuda das revoluções proletárias de doutros países. 97
Tais opiniões estavam disseminadas pelo país naquela ocasião e tinham sido
herdadas da guerra civil. Por outro lado, mesmo àquele tempo, funcionavam
mentes mais sóbrias e corajosas. Por exemplo, em 1940, um grupo da
academia acima citada preparou um documento de 35 páginas sobre
“Ideologia militar” que foi mostrado a Stalin. Em paralelo com o pensamento
ortodoxo que vigorava, uma série de questões heréticas foi levantada. Os
autores enfrentaram de peito aberto as causas do fracasso da URSS na guerra
soviética-finlandesa: o baixo nível cultural dos oficiais, a propaganda falsa
sobre a invencibilidade do Exército Vermelho, a “apresentação incorreta das
missões internacionais do Exército Vermelho”, o “preconceito prejudicial e
profundamente arraigado, inevitável e praticamente sem exceção, de que as
populações dos países em guerra com a URSS supostamente se levantariam e
bandeariam para o lado do Exército Vermelho”. Conversas sobre
“invencibilidade levam à arrogância, à superficialidade e à negligência da
ciência militar; no campo da tecnologia, conduzem ao atraso; e no campo da
teoria militar, ao desenvolvimento unilateral de noções de combate em
detrimento de outras”. O estudo da teoria estrangeira de guerra, segundo o
memorando, fora suprimido por completo, enquanto as melhores tradições do
exército russo não foram popularizadas. A experiência de Khalkin Gol e do
lago Khasan era desconhecida da chefia militar: “O material sobre essas
batalhas permanecia envolto em mistério pelo Estado-maior.” O despacho de
Stalin não passou de um “Arquive-se”. A sorte dos autores do trabalho não é
98
conhecida.
Na minha opinião, o maior erro de Stalin foi a assinatura do tratado de
amizade e fronteiras com Hitler, em 28 de setembro de 1939. Seria suficiente
– e há justificativa para tanto – assinar o Pacto de Não Agressão do mês
anterior, menos os protocolos secretos. Nas resoluções do Comintern e nas do
XVIII Congresso do partido, o nazismo foi adequadamente definido como um
regime terrorista, militarista e ditatorial, e como a falange mais perigosa do
imperialismo mundial. Nas mentes soviéticas, ele era a personificação do
inimigo de classe em forma concentrada. E agora, não mais que de repente,
eram seus melhores amigos!
É difícil explicar o desvio cínico de Stalin para uma política de coonestação
do fascismo. Pode-se até entender a tentativa de escorar o Pacto de Não
Agressão com acordos de comércio e laços econômicos. Mas negar todas as
anteriores premissas ideológicas antifascistas foi demais. Os planos
expansionistas da Alemanha não eram entendidos com propriedade por Stalin.
Por exemplo, a “Declaração dos Governos Soviético e Alemão” assevera que
“o acordo mútuo é de opinião que o fim da guerra entre Alemanha, de um
lado, e a Inglaterra e a França, do outro, viria ao encontro dos interesses de
todos os povos”. No entanto, estes povos poderiam muito bem perguntar
99
Este último tópico da instrução foi acrescentado à mão por Mekhlis. Quando
ele submeteu a minuta a Stalin no dia anterior, o líder disparou: “Não irrite os
alemães. O Krasnaya Zvezda * anda sempre escrevendo sobre fascistas e
fascismo. Acabe com isso. A situação está mudando. Não devemos ficar
apregoando a questão. Cada coisa a seu tempo. Hitler não deve ficar com a
impressão de que tudo o que fazemos é nos prepararmos para a guerra contra
ele.” 103
Karatun, instrutor de Engenharia Militar da Academia: “Não temos ideia do que e como escrever
agora – fomos criados antifascistas, agora é o inverso.”
Primeiro-tenente Gromov, Distrito Militar de Kiev: “Pensando bem, a Alemanha parece que
enganou todo o mundo. Ela agora vai se servir dos pequenos países, porém, em face do Pacto de
Não Agressão, não poderemos fazer coisa alguma.” 104
Contudo, o plano foi rejeitado pelo comissário da Defesa por não ter levado
suficientemente em consideração o que as forças soviéticas poderiam fazer
para destruir o inimigo.
O plano de defesa revisado ficou pronto para apreciação por volta de agosto
de 1940. Fora preparado sob o chefe do Estado-maior K.A. Meretskov, mas
tendo, de novo, Vasilievsky como encarregado do planejamento, o qual, mais
uma vez, sustentou que as forças soviéticas deveriam ser concentradas no
setor ocidental. O plano foi submetido a Stalin em 5 de outubro. O Secretário-
Geral ouviu com atenção as explicações do comissário da Defesa e do chefe
do Estado-maior, olhou para o mapa diversas vezes, caminhou pela sala por
algum tempo e finalmente disse:
Não compreendo bem a insistência do Estado-maior em concentrar nossas forças no setor oeste.
Eles dizem que Hitler desfechará seu ataque principal na direção de Moscou pela rota mais curta.
Mas eu acho que a coisa mais importante para os alemães são os cereais da Ucrânia e o carvão da
bacia do Donets. Agora que Hitler está instalado nos Bálcãs, é ainda mais provável que lance seu
ataque principal do sudoeste. Quero que o Estado-maior pondere de novo e apresente um novo
plano no prazo de dez dias. 106
Foi uma tentativa alemã para desorientar a chefia soviética. Como Zhukov
escreveu muito tempo depois: “Hoje sabemos dos alertas sobre um ataque
iminente à União Soviética e sobre a concentração de forças inimigas em
nossas fronteiras. Porém, na ocasião, conforme documentos alemães
capturados iriam revelar, Stalin recebia relatórios de espécie bem diferente.” 111
PARTE VIII
Início catastrófico
As nações pagam pelos erros de seus estadistas.
Nicolai Berdyaev
[41]
Choque paralisante
S talin, por fim, conseguiu murmurar: “Venha ao Kremlin com Timoshenko.
Diga a Poskrebyshev para convocar todos os membros do Politburo.”
Retornou ao Kremlin e subiu ao seu escritório pela entrada privativa. Ao
passar pelo empalidecido Poskrebyshev, disse rispidamente: “Mande todos
para cá, agora!”
Em silêncio e com cautela, os membros do Politburo foram entrando,
seguidos de Timoshenko e Zhukov. Sem cumprimentar ninguém, Stalin foi
logo dizendo, não se dirigindo a qualquer dos presentes em particular:
“Ponham o cônsul alemão ao telefone.” Molotov deixou a sala. Caiu pesado
silêncio. Em torno da mesa, sentavam-se Andreyev, Voroshilov, Kaganovich,
Mikoyan, Kalinin, Shvernik, Beria, Malenkov, Voznesensky e Shcherbakov.
Quando voltou, Molotov percebeu todos os olhares convergindo para sua
pessoa. Ocupou seu lugar e gaguejou: “O embaixador informou que o
governo alemão nos declarou guerra.” Olhou para um pedaço de papel que
empunhava. “A razão formal é a de sempre: ‘A Alemanha Nacionalista
decidiu se antecipar a um ataque dos russos.’”
O silêncio parecia quase palpável. Stalin se sentou e encarou Molotov com
olhos enraivecidos, como se estivesse lembrando da confiante predição do
auxiliar, feita seis meses antes, de que Hitler jamais travaria uma guerra em
duas frentes, e que a URSS tinha bastante tempo para reforçar suas fronteiras
ocidentais. “Bastante tempo…” Stalin sentiu-se traído. Os outros ficaram
esperando que falasse e expedisse suas ordens.
Timoshenko quebrou o silêncio:
“Camarada Stalin, posso fazer um relatório da situação?”
“Sim.”
O 1º vice-chefe do Estado-maior, major general N.F. Vatutin, entrou na sala.
Seu breve relato revelou pouca informação nova: depois de uma tempestade
de artilharia e de ataques aéreos sobre diversos alvos nos setores de oeste e
noroeste, grandes efetivos de tropas alemãs haviam invadido o território
soviético. As unidades de fronteira, que receberam o impacto do ataque
principal, tiveram pesadas baixas, mas não desertaram de seus postos. O
inimigo efetuava constante bombardeio dos aeródromos soviéticos. O Estado-
maior não tinha mais informações a prestar.
Stalin nunca tivera um choque tão grande na vida. Sua confusão era óbvia,
como também a raiva por ter sido enganado e o medo ante o desconhecido.
Os membros do Politburo permaneceram ao seu lado no escritório durante
todo o dia, esperando por notícias da fronteira. Só deixavam a sala para fazer
uma chamada telefônica, tomar um chá ou esticar as pernas. Pouco falaram,
esperando que os reveses fossem apenas passageiros. Ninguém duvidava de
que Hitler receberia uma resposta à altura.
Malenkov tinha na pasta uma minuta de decreto para a administração
principal da propaganda política no Exército Vermelho, que Zaporozhets lhe
entregara em meados de junho. (Zaporozhets foi substituído no segundo dia
de guerra por Mekhlis.) Malenkov entregara a minuta a Stalin em 20 de
junho; ela vinha sendo preparada desde o discurso de Stalin, de 5 de maio de
1941, para os formandos militares, quando o secretário-geral disse que a
guerra era inevitável e que tínhamos que nos preparar incondicionalmente
para destruir o fascismo. Os pontos importantes do decreto, que Stalin não
tivera a oportunidade de aprovar antes da deflagração da guerra, eram que a
situação estava repleta de surpresas e que a determinação revolucionária e a
presteza constante para passar ao ataque mostravam-se essenciais. Toda a
propaganda deveria focar na instrução para a capacitação política, moral e
combatente dos militares, de modo que pudesse ser travada uma guerra justa,
ofensiva e abrangente. 1
que a defesa deveria ser de curto prazo, uma vez que as tropas estavam sendo
treinadas para o ataque. Por causa disso, a ideia de que um ou dois dias do
início da guerra estavam sendo catastróficos não passou pela cabeça da
liderança política e militar.
O decreto estava atrasado em um dia. Stalin não entendia, e ninguém lhe
explicou – Timoshenko temia por demais o secretário-geral – que a
preparação para a guerra implicava um cronograma muito apertado. O tempo
necessário para pôr uma divisão em alerta total variava de quatro a vinte e
quatro horas. O distrito militar ocidental, por exemplo, precisava de quatro a
vinte e três horas. O decreto da defesa foi emitido pelo Estado-maior aos
3
1. As forças utilizem todo o seu poderio e todos os meios para cair sobre as tropas inimigas e
destruí-las onde elas violarem a fronteira soviética. Até segunda ordem, nossas tropas terrestres
não deverão cruzar a fronteira.
A retirada deve se processar rapidamente, dia e noite, sob a cobertura de uma retaguarda firme. O
movimento retrógrado deve ser efetuado em larga frente. O primeiro lance deverá ser de 60
quilômetros, ou mais, num dia. A tropa deverá ter liberdade para prover sua própria subsistência,
retirando o que for necessário dos recursos locais e fazendo uso do que for preciso para tanto. 10
O choque foi grande, porém não durou muito. Antes que ele o atingisse,
Stalin procurou fazer alguma coisa, expediu ordens e tentou inspirar as
agências governamentais para demonstrarem energia. Em 23 de junho,
durante um debate sobre a criação de um QG do chefe do Estado-maior,
Stalin surpreendeu a todos quando interrompeu bruscamente as discussões
para propor: “Um Instituto de assessores permanentes deve ser criado em
associação com o Quartel-General, consistindo dos Camaradas marechal
Kulik, marechal Shaposhnikov, Meretskov, chefe da força aérea Zhigarev,
Vatutin, chefe da defesa antiaérea Voronov, Mikoyan, Kaganovich,
Voznesensky, Zhdanov, Malenkov, Mekhlis.” 12
Stalin sentiu que o olhar do povo caía sobre ele. Proclamara com frequência a
invencibilidade do Exército Vermelho e, agora, a ele parecia não haver
esperança para a situação. Quando Vatutin mostrou no mapa que o VIII e o XI
exércitos recuavam em direções divergentes, Stalin viu claramente que o
colossal fosso entre as frentes oeste e noroeste chegara a 130 quilômetros. As
forças principais do front oeste ou estavam cercadas ou tinham sido
destruídas. As da frente sudoeste, ao contrário, pareciam sustentar
razoavelmente bem suas posições. Por que não ouvira os especialistas e
construíra defesas no front oeste? Em todas as suas campanhas europeias,
Hitler fora direto à capital para conseguir a capitulação rápida do país. Por
que os estrategistas não ressaltaram tal característica?
Em estado de aflição, Stalin se comportou de forma hesitante, dividindo o
tempo entre a dacha próxima e o Kremlin, mas, em geral, aparecendo muito
pouco. Timoshenko, então também chefe do Estado-maior, estava claramente
em má situação. Todo mundo sabia que Stalin ainda detinha poder e
autoridade, mas agia impulsivamente e seu estado depressivo era visível. Isso,
naturalmente, se refletia em certo grau sobre o comando militar, e algumas de
suas ordens traziam a marca do desespero, como, por exemplo, mandando que
regimentos de infantaria a pé destruíssem os carros de combate das formações
inimigas que ficassem sem combustível, ou dando instruções detalhadas
14
sobre o emprego de unidades blindadas que deveria ser deixado à decisão dos
comandantes locais. 15
Stalin foi para a dacha naquela noite e deitou-se sem tirar a roupa. Incapaz de
pegar no sono, levantou-se e foi à sala de jantar, onde havia sempre uma luz
acesa acima do retrato de Lenin. Os painéis escuros de carvalho que cobriam
as paredes casavam com seu ânimo acabrunhado. Vagando de sala em sala,
olhando para os telefones instalados em três locais distintos, esperando que
tocassem a qualquer momento trazendo mais notícias ruins, abriu a porta da
sala do oficial de serviço e deparou com o major general V.A. Rumyantsev. O
general se aprumou rapidamente no aguardo de ordens do chefe. O olhar do
secretário-geral perdeu-se pela sala, sem se fixar no militar, e, então, Stalin
fechou vagarosamente a porta e voltou para seu quarto.
Mikoyan deixou interessantes memórias sobre aquela ocasião. Recordou-se
de que ele, Molotov, Malenkov, Voroshilov, Beria e Voznesensky resolveram
propor a Stalin a criação de um Comitê de Defesa do Estado, que assumiria
todo o poder estatal. Seria chefiado por Stalin:
Decidimos procurá-lo. Ele estava na dacha próxima.
Molotov disse que Stalin se encontrava em tal estado de prostração que não se interessava por
coisa alguma, perdera a iniciativa e não estava nada bem. Voznesensky, assustado ao ouvir
aquilo, disse: “Você toca o barco, Vyacheslav, e nós o apoiaremos.” A ideia era de que, se Stalin
continuasse a se comportar daquela maneira, Molotov iria nos liderar e nós o seguiríamos.
Tínhamos certeza de que poderíamos organizar a defesa e conduzir uma guerra adequada.
Nenhum de nós estava desanimado.
Chegamos à dacha de Stalin. Ele estava sentado numa cadeira de braços da pequena sala de
jantar. Levantou o olhar e disse: “O que vocês vieram fazer aqui?” Tinha um ar estranho
estampado no rosto, e a pergunta também era muito estranha. Afinal de contas, ele deveria ter nos
convocado.
Falando em nosso nome, Molotov disse que o poder tinha que ser concentrado para garantir
rapidez no processo de tomada de decisões e, de alguma forma, colocar o país de novo nos
trilhos. Stalin deveria chefiar esta nova agência. O secretário-geral não fez objeção e disse
apenas: “Ótimo.” 16
Em primeiro lugar, oficiais que não cumprem ordens, abandonam suas posições e deixam o
perímetro defensivo sem permissão, ainda não foram punidos. Com tal atitude liberal em relação
a covardes, os esforços da defesa serão infrutíferos.
As unidades de ataque não fizeram nada até agora, não vemos resultados de seu trabalho e, como
consequência da inação dos comandantes divisionários, de corpos e de fronts, partes da frente
noroeste vêm constantemente recuando. Chegou o momento de dar um basta nesta situação
vergonhosa. O comandante, um membro do conselho de guerra, o promotor e o chefe do 3º
departamento [isto é, a NKVD] devem se dirigir às unidades mais avançadas e tratar in loco do
problema dos covardes e dos traidores. 19
Perda de aviões:
O mínimo do inimigo 1.664
Nossas perdas 889
Perdas de carros de combate:
Inimigo 2.625
Nossos 901
Perdas humanos do inimigo: Mortos 1.312.000
Na luta acirrada dos diversos setores, além do mais, o inimigo teve pesadas baixas, mas como
nossas tropas retraíam, foi impossível contabilizar as perdas. Muitas baixas não computadas
foram infligidas aos paraquedistas em ações isoladas.
Com tais relatórios era impossível conhecer a posição real, a relação de forças
e o número de aviões, carros de combate e homens disponíveis. Mas aquelas
estatísticas eram propositalmente distorcidas por gente acostumada a mentir
para Stalin em função do culto ao líder, e ele as tomava por dados concretos
sem jamais imaginar que estava sendo enganado. Mas mesmo assim, o
poderio alemão declinou consideravelmente depois da força do primeiro
ataque, e os exércitos de Hitler não atingiram seu principal objetivo, que era a
destruição do Exército Vermelho.
O Exército lutava. Estava retraindo, mas estava lutando. Estudando os mapas,
Stalin aos poucos chegou à conclusão de que seria uma longa guerra e que, se
a URSS pudesse sobreviver à primeira fase, haveria uma chance de vitória. Já
em 5 de julho, quando ordenou que o Estado-maior condecorasse os que se
distinguissem por bravura especial, inclusive com a primeira comenda de
tempo de guerra de Herói da União Soviética, disse ao departamento de
propaganda que espalhasse as histórias sobre o heroísmo soviético.
“Lembrem-se da conclamação de Lenin: A Pátria Socialista corre perigo!
Façam o povo saber que é possível e é preciso esmagar o porco fascista!”
Além dos assuntos militares, Stalin também passava várias horas por dia nas
questões econômicas. Em 4 de julho, Voznesensky e Mikoyan submeteram à
apreciação do Comitê de Defesa do Estado a minuta de um plano de
economia de guerra que Stalin assinou quase sem ler. Voznesensky conseguiu
relatar apressadamente que, em 30 de junho, o Sovnarkom aprovara um plano
de mobilização econômica geral que previa a colocação da economia em pé
de guerra no mais curto tempo possível. Shvernik, responsável pelo soviete de
evacuação, acabara de reportar que, até então, só as fábricas próximas à
fronteira haviam sido deslocadas, mas que a derrocada militar exigia agora
uma abordagem mais abrangente.
Na prática, por volta de janeiro de 1942, 1.523 fábricas, das quais 1.360
dedicadas à produção de material de emprego militar, seriam transferidas
totalmente para o leste e postas em operação, uma conquista extraordinária da
maior importância. No setor agrícola, hoje sabemos que, em novembro de
1941, foi tomada a decisão de criar alguns milhares de seções políticas nas
estações de máquinas e tratores e nas fazendas estatais. A gigantesca perda de
terras e o fluxo da mão de obra rural para o Exército impuseram pesada carga
sobre a agricultura para que ela alimentasse o Exército e o país.
Homem central de todo este esforço, Stalin fez da guerra um modo de
confirmar plenamente sua ditadura absoluta. O ex-comissário dos
Transportes, I.V. Kovalev, fez-me o seguinte relato daquele período:
Lembro de ter sido chamado, como chefe da administração dos transportes militares, para uma
reunião no Kremlin. Lá, vi chefes ferroviários, militares e membros das equipes do Comitê
Central. Kaganovich estava, como também Beria, encarregado temporariamente dos transportes.
Stalin entrou na sala. Todos nos levantamos. Sem qualquer preâmbulo, ele disse: “O Comitê de
Defesa do Estado tomou a decisão de criar o Comitê dos Transportes. Proponho o Camarada
Stalin para chefe desse comitê.” Foi exatamente assim que ele falou. Recordo de mais alguma
coisa que ele disse naquele encontro: “Transporte é uma questão de vida ou morte. O front está
na mão dos transportes. Lembrem-se, descumprimento das ordens do Comitê de Defesa do
Estado significa tribunal militar.” Disse isto calma, mas deliberadamente, e um calafrio percorreu
minha espinha.
No curso da guerra, tive que me reportar dezenas de vezes, senão centenas, a Stalin sobre a
movimentação de trens para os diferentes setores do front. Algumas vezes, quando era o caso de
uma carga especial, tinha que mantê-lo informado de duas em duas horas. Em dada ocasião, um
trem “perdeu-se”. Pensei que tinha sido em determinada estação, mas não foi lá. Stalin mal pôde
conter a raiva: “Se você não encontrá-lo, general, será mandado para o front como soldado.” * Ao
sair do gabinete, branco como uma folha de papel, ainda ouvi Poskrebyshev acrescentar: “Cuide
para não se enganar. O chefe está no fim da sua corda.”
Como regra, Kaganovich não estava presente; aquele trabalhava dezoito horas por dia, xingando
e ameaçando todo mundo e não poupando ninguém, nem mesmo a si próprio. Mas jamais o vi
sentado no escritório de Stalin, como os outros três. Quando Stalin falava ao telefone, emitia
apenas umas poucas frases e colocava o aparelho no gancho. Era lacônico e esperava que os
outros também o fossem. Não era de bom alvitre dar-lhe dados aproximados: ele baixava
ameaçadoramente o tom da voz e dizia: “Você não sabe? Que está fazendo, então?”
A despeito dos muitos encontros que tive com ele, comparecia a cada um deles em estado de
pavor. Meu temor era que perguntasse alguma coisa e eu não soubesse a resposta. Ele era uma
pessoa inacreditavelmente fria. Em vez de dizer “olá”, acenava simplesmente com a cabeça.
Fazia meu relato e, se não houvesse perguntas, deixava rapidamente a sala com um suspiro de
alívio. Era o mais breve possível. Poskrebyshev aconselhou-me a agir assim. As pessoas sentiam-
se oprimidas pelo poder de Stalin, também por sua memória fenomenal e pelo fato de que sabia
muita coisa. Ele fazia com que todos se sentissem ainda menos importantes do que na verdade já
eram.
importância a serem tomadas nos dias terríveis daquele agosto quente. Porém,
era hábito que Stalin desenvolvera ao longo dos anos decidir e fazer tudo ele
mesmo, e pelos outros. A situação nos fronts, contudo, cedo iria acarretar uma
mudança no estilo e nos métodos de trabalho do Supremo.
Ao aprovar ou desaprovar as propostas do Estado-maior, ele buscava
constantemente meios de dar maior impacto a suas ações. Por exemplo,
quando soube que não existiam armas para equipar os reforços, ordenou aos
quartéis-generais que expedissem a seguinte instrução para as forças:
Tem que ser explicado a todo comandante, oficial político ou soldado que perder armas no campo
de batalha é uma violação séria do juramento militar, e que os culpados devem responder de
acordo com as leis de tempo de guerra. As equipes de civis encarregadas do recolhimento de
armas devem ser reforçadas com militares e ser responsabilizadas pela coleta de qualquer
armamento abandonado no campo de batalha. 22
Sua resposta a uma situação difícil era sempre torná-la ainda mais difícil.
Exemplificando, Zhdanov e Zhukov no relatório sobre a situação em
Leningrado mencionaram o fato de que, no ataque às posições soviéticas, os
alemães empurravam mulheres e crianças, homens e mulheres idosos para a
frente, colocando os defensores em situação mais delicada ainda. As mulheres
e crianças gritavam: “Não atirem! Somos dos seus!” As tropas soviéticas não
sabiam o que fazer. A reação imediata de Stalin foi típica de seu caráter:
Dizem que os porcos alemães que avançam sobre Leningrado empurram velhos, mulheres e
crianças na frente. Ouço que há bolcheviques em Leningrado que consideram impossível
empregar suas armas contra essas pessoas. Acho que, se existirem tipos assim entre os
bolcheviques, eles devem ser logo destruídos porque são mais perigosos que os fascistas alemães.
Aconselho não serem sentimentais, arrasem o inimigo e seus cúmplices forçados ou não. Atirem
nos alemães e nos seus acompanhantes, sejam quem forem, com o que tiverem à mão, acabem
com os inimigos, não importa se compelidos ou voluntários. Ditado às 4h de 21 Set 41 pelo
Camarada Stalin. Assinado B. Shaposhnikov 23
Membros: advogados militares divisionários A.A. Orlov e D.Ya. Kandybin; Secretário: advogado
militar A.S. Mazur.
Numa sessão fechada em Moscou, em …. de julho de 1941, os seguintes casos foram julgados:
3. Grigoryev, Andrei Terentyevich, nascido em 1889, ex-chefe das comunicações do front oeste,
major general.
Stalin pulou grande parte do documento que continuava nesta linha, mas leu a
seção final:
Desta forma, a culpa de Pavlov e Klimovskikh […] e de Grigoryev e Korobkov […] foi
estabelecida. Em consequência do acima exposto e de acordo com os Artigos 319 e 320 do
Código do Processo Penal da URSS, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS sentencia
que:
O major general Rukhle foi imediatamente preso, mas a sorte lhe sorriu e ele
sobreviveu. Stalin não podia se livrar do costume de apelar para medidas
severas e cruéis, mas todos àquela época acreditavam que providências duras
se justificavam em tempos difíceis.
Nota
* Não era ameaça vazia. O major-general N.A. Moskvin foi rebaixado por ordem de Stalin e mandado
para a frente de combate como soldado. (TsAMO, f.33. op. 11 454, d. 179.l.1)
[43]
Desastres e esperanças
N o início de agosto de 1941, Shaposhnikov foi chamado à dacha, por volta
da meia-noite, para fazer um relato a Stalin sobre a situação em todos os
fronts. Para Stalin, foi a mais sombria das exposições, casando muito bem
com o gosto de fel – disse a Poskrebyshev – que tinha na boca desde que a
guerra começara. Referindo-se ao mapa que estendeu na mesa de Stalin,
Shaposhnikov começou:
“Podemos dizer que perdemos por completo a primeira fase da guerra. Ainda
são travadas batalhas nas vias de acesso a Leningrado mais distantes, no
distrito de Smolensk e na área defensiva central de Kiev. Nossa resistência
ainda não é forte. Temos que desdobrar nossas tropas ao longo do front mais
ou menos sem saber onde o inimigo, amanhã, atacará com força concentrada.
O inimigo está com toda a iniciativa estratégica. O problema aumenta com a
inexistência de tropas em segundo escalão e de reservas poderosas em muitos
setores. No ar, o inimigo tem total supremacia, embora tenha perdido muitos
aviões. * Das 212 divisões do exército ativo, apenas noventa têm 80% ou mais
de seu efetivo. A defesa das vias de acesso a Leningrado está adquirindo
alguma ‘elasticidade’ e o dinamismo da progressão alemã pode não dar em
nada. Parece que devemos deslocar toda a esquadra do Báltico para Kronstadt
. ** Pesadas baixas são inevitáveis.”
“O engajamento em Smolensk permitiu que detivéssemos o inimigo no front
mais perigoso, o de oeste. De acordo com nossos cálculos, cerca de sessenta
divisões alemãs participaram da ação, totalizando algo em torno de meio
milhão de homens. Como sabe o Camarada Stalin, para consolidar a frente, os
exércitos XIX, XX, XXI e XXII foram deslocados para lá ainda no início de
julho. Porém, ainda existe sensível falta de tropas e, muitas vezes, as divisões
constituem apenas uma linha. Nossa tentativa de montar um contra-ataque
com os exércitos XXIX, XXX, XXIV e XXVIII foi apenas parcialmente bem-
sucedida, já que permitiu que o XX Exército e o XVI Exército rompessem o
cerco e voltassem à linha de defesa. Nosso contra-ataque interrompeu o
ataque inimigo.”
Stalin interveio: “Que papel teve o front central nesse engajamento?”
“Temos razões para achar que o ataque principal do agrupamento alemão será
desviado para lá”, replicou Shaposhnikov. “Mas uma única linha de frente,
com 24 divisões incompletas, causa séria preocupação. É provável que
tenhamos que constituir outro agrupamento de frentes naquela região.”
De tudo aquilo, Stalin tirou a conclusão de que o Exército Vermelho era capaz
de deter o inimigo, mesmo onde ele concentrasse seu esforço principal.
Shaposhnikov continuou:
“Não tivemos capacidade para manter a antiga fronteira […] Os alemães, na
realidade, cortaram o front em dois, separando o V Exército dos exércitos VI,
XII e XXVI, e, amanhã, o VI e o XII Exércitos também estarão cortados.”
“Estou apreensivo com o Dnieper e com Kiev. Temos que fazer alguma
coisa”, disse Stalin.
“Já foram expedidas ordens para se formar uma linha de defesa forte na
margem leste do Dnieper.”
“Podemos entrar em contato agora com o QG do sudoeste?”, perguntou
Stalin.
“Se Kirponos e Khruschev não estiverem junto às tropas, o contato é
possível.”
Poucos minutos mais tarde, Kirponos e Khruschev estavam ao telefone e
tiveram uma longa conversa na qual Stalin insistiu que a linha fosse mantida a
qualquer preço e fez-lhes sugestões sobre como grupar as forças, empregando
temporariamente a cavalaria como infantaria com esse objetivo. Kirponos e
Khruschev responderam que estavam fazendo o possível para evitar que os
alemães atravessassem o rio e tomassem Kiev, e pediram urgentes reforços.
Algumas de suas divisões estavam reduzidas a uns dois ou três mil homens. 33
Ordeno que:
1. Quem quer que remova seu distintivo de posto durante a batalha e se renda deve ser
considerado desertor mal-intencionado, cuja família tem que ser presa por parentesco com o
violador do juramento e traidor da pátria. Tais desertores têm que ser fuzilados no ato.
2. Os que forem cercados têm que lutar até o fim e tentar chegar às linhas amigas. Os que
preferirem a rendição têm que ser aniquilados por quaisquer meios disponíveis, e suas famílias
privadas de toda a assistência e subsídios estatais.
Tendo ditado o texto impulsivo sem hesitação alguma, Stalin deixou-o como
estava, não o editou, mas determinou que os nomes de Molotov, Budenny,
Voroshilov, Timoshenko, Shaposhnikov e Zhukov fossem acrescentados na
assinatura, embora nem todos estivessem presentes.
Em torno do fim de agosto, Stalin recebeu uma carta do escritor Vladimir
Stavsky, que acabara de passar dez dias no front próximo a Yelnya. Um trecho
da carta é o seguinte:
Prezado Camarada Stalin,
Mas aqui, no XXIV Exército, as coisas foram longe demais. Segundo o Estado-maior e a seção
política, de 480 a 600 homens foram fuzilados por deserção, pânico e outros crimes. Oitenta
homens foram indicados para condecorações. Anteontem e hoje, o comandante do Exército
Camarada Rakutin e o chefe da seção política Camarada Abramov enfrentaram corretamente a
situação. 37
O único comentário de Stalin sobre a carta foi assinalar o dado das execuções
para a atenção de Mekhlis. Nesse ínterim, uma das maiores tragédias da
guerra se aproximava. Em 8 de agosto de 1941, Stalin estava de novo na linha
com Kirponos:
Stalin: “Chamou a atenção o fato de que o front decidiu entregar logo Kiev ao inimigo,
supostamente por falta de tropas capazes de defender a cidade. Isso é verdade?”
Kirponos: “Alô, Camarada Stalin. Você foi mal-informado. O conselho de guerra e eu estamos
fazendo o possível para não deixar que Kiev seja capturada em hipótese alguma. Todos os nossos
pensamentos e nossas energias estão voltados para que o inimigo não conquiste Kiev.”
Stalin: “Muito bom. Envio meus cumprimentos e o desejo de sucesso. Isto é tudo.” 38
“Moscou, Alô. Stalin, Shaposhnikov e Timoshenko aqui. Sua proposta para recuar as tropas para
o corte do rio, cujo nome você sabe [o Psyol], me parece perigosa. Você deve lembrar que,
quando recentemente retirou as tropas do distrito de Berdichev-Novgorod-Volynsky, conseguiu
uma posição bem melhor no rio Dnieper, porém, mesmo assim, perdeu dois exércitos, e o inimigo
se reagrupou na margem leste do Dnieper. Segue-se a conclusão de que:
1. Você tem que reconstituir imediatamente seu poder de combate, mesmo ao custo do distrito
fortificado de Kiev e de outras forças, e, em coordenação com Yeremenko, desencadear ataques
desesperados sobre o grupo inimigo de Konotop.
2. Você tem que organizar imediatamente uma posição defensiva no rio Psyol, ou em algum lugar
daquela linha, formando uma frente ao norte e a oeste, forte em artilharia, e então retirar cinco a
seis divisões para trás de tal posição.
3. Somente depois disso, isto é, após a formação de um punho contra o grupo inimigo de
Konotop e o estabelecimento da posição defensiva no Psyol, você deverá começar a evacuação
de Kiev.
Kiev não deverá ser abandonada, nem suas pontes destruídas, sem permissão do QG do Estado-
maior. Isso é tudo. Adeus.”
dizer a verdade para Stalin, caso ela não fosse agradável. A conversa de 4 de
setembro de 1941 entre Zhukov e o major-general K.I. Rakutin, comandante
do XXIV Exército, é típica do período. Zhukov censurou Rakutin por ter
lançado seus tanques na batalha “sem raciocinar”, perdendo-os, como também
por fazer relatórios falsos.
Rakutin: “Vou sair esta manhã para investigar o problema, já que acabei de
receber o relatório…”
Zhukov: “Você é um general, não um detetive. Mande-me um relatório escrito
para que eu possa apresentá-lo ao governo. Shepelovo foi ocupada ou isso é
lorota também?”
Rakutin: “Shepelovo não foi ocupada. Eu mesmo vou verificar amanhã e
relatarei para você. Não mentirei.”
Zhukov: “O principal é: acabe com essas mentiras que saem do seu Estado-
maior e lide adequadamente com a situação, ou não será nada bom para
você.” 46
Estamos enviando o Camarada Bodin, vice-chefe do Estado-maior, para servir como seu chefe
temporário de Estado-maior. Ele conhece esse front e pode fazer um bom trabalho. O Camarada
Bagramyan é nomeado chefe de Estado-maior do XXVIII Exército. Se ele se sair bem nessa
função, levantarei o assunto de sua indicação para a promoção.
Obviamente, o Camarada Bagramyan não é todo o problema. Ainda existem os erros cometidos
pelo soviete de guerra, sobretudo pelos Camaradas Timoshenko e Khruschev. Se tivéssemos que
contar ao país a escala total do revés sofrido, e por que ainda passa o front, temo que o povo iria
tratá-los de maneira bem áspera. Boa sorte.
[44]
O cativeiro e o general Vlasov
A invasão nazista causou muitas infelicidades, entre elas os prisioneiros, o
cativeiro. Um homem tendo que escolher entre a vida e a morte na guerra,
normalmente escolhe a vida, mesmo que isto signifique a perda da liberdade e
do seu senso de dignidade social. No último conflito de âmbito mundial, o
cativeiro foi quase equivalente à morte porque a avassaladora maioria dos
prisioneiros de guerra soviéticos pereceu, de fato, nos campos alemães. Em
maio de 1918, o governo soviético informara à Cruz Vermelha Internacional e
aos governos do mundo que as convenções sobre vítimas da guerra, como
“todos os outros acordos e convenções internacionais relativos à Cruz
Vermelha e respeitados pela Rússia antes de 1917, são agora reconhecidos e
serão honrados pelo governo soviético russo”. A nova Convenção de Genebra
sobre prisioneiros de guerra, de 1929, não foi, no entanto, ratificada pela
União Soviética. 54
Eles não encontraram Vlasov, porém o próprio general logo deixou conhecida
sua posição, como veremos mais adiante. Quanto a Yefremov, seu destino foi
descoberto por acidente. Uma mulher do vilarejo de Slobodka, no distrito
Temkinky de Smolensk, deu parte de que no fim de abril de 1943 vira alguns
soldados “enterrando um general”. O fato foi levado às autoridades
superiores, onde se suspeitava que o general havia se rendido. Em
consequência, a sepultura foi escavada, o corpo identificado, seus ferimentos
confirmados como incapacitantes e um relatório submetido a Stalin, que
acabou por reabilitar Yefremov, efetivamente, por ter atirado em si próprio
para evitar a captura iminente.
Muitos generais desapareceram em ação entre 1941 e 1942, a maioria morta
na tentativa de romper os cercos. Os que sobreviveram, ou definharam ou
morreram nos campos alemães. Alguns, como o major general P.V. Sysoev,
preso em julho de 1941, conseguiram escapar em 1943, mas tiveram que
passar três anos num campo soviético sendo “checados”. Outros foram
executados por traição. Uns poucos, como Rikhter, Malyshkin e Zhilenkov,
passaram, de fato, para o lado alemão.
Pode-se imaginar que Stalin, tendo “limpado” toda a sociedade entre 1937 e
1939, não esperava que alguém colaborasse com os ocupantes. Como vimos,
décadas mais tarde, Molotov afirmou que Stalin havia “destruído a quinta-
coluna” antes da guerra. É claro que não foi assim. Antes de tudo, a gente que
Stalin liquidou não era inimiga. Os Quislings e Lavals não estavam todos no
Ocidente: a União Soviética teve também seus próprios colaboradores e
traidores. Haviam decorrido apenas 21 anos desde a revolução e existiam
muitas pessoas que se sentiam prejudicadas pelo regime. Muitas outras foram
motivadas pelo temor aos nazistas e pelo desejo de se adaptar e sobreviver,
enquanto outras, especialmente em 1941, acharam que os alemães tinham
chegado para ficar. Por fim, existiram os fracos, os venais, os tipos
simplesmente criminosos que estavam prontos para cometer a traição.
Exemplificando, Beria relatou a Malenkov, em dezembro de 1941, que um tal
A.I. Ulyanov caíra prisioneiro como soldado raso e fora enviado para a
retaguarda pelos alemães como capitão duas vezes condecorado como Herói
da União Soviética. Foi logo desmascarado. 62
A simetria destes dados já era bastante suspeita àquela época e agora sabemos
que milhares e milhares de combatentes soviéticos foram tragados pelos
pântanos na operação malplanejada e que ainda estão listados como
“desaparecidos”.
Em determinada ocasião, poucas semanas depois, Beria, que juntamente com
Molotov ainda se encontrava tarde da noite na dacha de Stalin, tirou um
documento de sua indefectível pasta e o mostrou a Stalin.
“O que é isso?”
“Dê uma olhada. Veja onde está o desaparecido comandante do II Exército de
Assalto”, replicou Beria.
Stalin passou os olhos pelo documento que era “Uma proclamação do comitê
russo dos soldados e oficiais do Exército Vermelho para todo o povo russo e
todas as nações da União Soviética”:
O Comitê Russo tem os seguintes objetivos: derrubar Stalin e sua súcia, concluir uma paz
honrosa com a Alemanha, criar uma Nova Rússia. Convocamos você a se juntar ao Exército
Russo de Liberação que luta em aliança com a Alemanha.
Presidente do Comitê Russo tenente-general Vlasov
Havia passes para o cruzamento das linhas, “Uma carta aberta de Vlasov
sobre os motivos pelos quais tomei o caminho da luta contra o bolchevismo”,
e publicações semelhantes.
Stalin pôs de lado os documentos e perguntou a Beria: “Podem ser
falsificações? O que se sabe sobre Vlasov? Há confirmação?”
Beria replicou: “Há, sim. Vlasov está trabalhando para os alemães.”
“Como deixamos que escapasse antes da guerra?”, interveio Molotov.
Como resposta, Beria tirou a ficha pessoal de Vlasov de sua pasta. Stalin leu
que ele nascera na província de Nizhni Novgorod (Gorky) no seio de uma
família mediana (isto é, nem rica nem pobre) de camponeses. Não tinha
parentes além da esposa e do pai idoso. Beria sublinhou a anotação de que
Vlasov completara a escola religiosa e estudara durante dois anos num
seminário teológico antes de 1917. Combatera na guerra civil e todos os seus
serviços posteriores foram bem-sucedidos: a 99ª Divisão de Infantaria, sob
seu comando, estivera entre as melhores no distrito de Kiev. Antes,
desempenhara missão especial na China. Comandara o 4º Corpo Mecanizado
que combateu com bravura em Przemsyl e Lvov, e fora promovido para
comandar o XXXVII Exército que defendia Kiev. Saíra-se muito bem naquela
missão, recebera o XX Exército e, finalmente, o II Exército de Assalto.
Em 20 de abril de 1942, o próprio Stalin assinara a ordem nomeando-o
comandante “combinado” – um termo raro no vocabulário militar – do II
Exército de Assalto e vice-comandante em chefe do front de Volkhov. Fora 66
Solicitamos que seja permitido àqueles que apenas serviram nas legiões que retornem à RSS da
Letônia. 68
Stalin que 26.359 famílias kalmyks, totalizando 93.139 pessoas, haviam sido
deportadas para as regiões de Altai e Krasnoyarsk, e para os oblasts de Omsk
e Novosibirsk. 73
Stalin chegara a ponto de acusar nações inteiras de traição, e mais de 100 mil
soldados foram empregados para deportar velhos, mulheres e crianças. Se ele
tivesse seguido esta lógica até o extremo, depois da formação do Exército
Russo de Liberação, teria deportado todos os russos e todos os ucranianos –
na realidade, todas as nações da URSS!
O movimento Vlasov surgiu por uma série de razões: as grandes derrotas, os
sentimentos de injustiça nacional e social entre alguns representantes (e seus
filhos) de antigas classes privilegiadas, o medo da reação de Stalin por cair
prisioneiro. Quanto mais o Exército Vermelho era vitorioso em fazer o
inimigo refluir, menor a quantidade dos prisioneiros de guerra soviéticos que
se juntavam aos alemães e, pelo final de 1942 e em 1943, a quantidade
minguou para praticamente zero. Falando aos agitadores que trabalhavam no
seio das tropas não russas, o chefe da administração política do Exército
Vermelho, A.S. Shcherbakov, observou que em agosto de 1942, no front de
Leningrado, ocorreram 22 casos de homens que passaram para o lado alemão,
enquanto em janeiro de 1943 foram apenas dois. Depois, não houve mais caso
algum. 75
Do número total, 80.296 foram desmascaradas e presas (como espiões, traidores, membros de
esquadras punitivas, desertores, bandidos e elementos criminosos semelhantes). 77
** Sigla russa de Smyert Shpiona , “Morte aos Espiões,” um apelido da Voyenna Kontra Razvedka, a
contrainteligência militar.
PARTE IX
O comandante supremo
Aos olhos do povo, general que vence não fez erros.
Voltaire
[45]
O quartel-general
S talin não foi o líder militar genial descrito em tantos livros, filmes,
poemas, monografias e histórias. Tampouco era dotado do grande poder de
prognosticar que lhe atribuem. Dado o molde dogmático de sua mente, seria
até de admirar que o tivesse. Mais significativo ainda, embora determinado e
inflexível, carecia de habilitações profissionais militares. Chegou a alguma
sapiência estratégica à custa de tentativa e erro salpicada de sangue. Seu
histórico civil era totalmente inadequado ao posto de Supremo Comandante
em Chefe e, na verdade, sua reputação como líder guerreiro foi sustentada
pela capacidade coletiva do Estado-maior Geral e pelos excepcionais talentos
de algumas das personalidades que trabalharam próximo a ele durante a
guerra. Entre elas, sobretudo Shaposhnikov, Zhukov, Vasilievsky e Antonov.
Destituído de real experiência militar, Stalin, em especial durante os primeiros
dezoito meses de guerra, não dominava a concepção do trabalho da máquina
militar, o sentido de tempo operacional, as distâncias reais, ou mesmo o que
as tropas podiam ou não executar. Em consequência, muitas de suas ordens
não foram cumpridas, já que eram irrealistas, apressadas ou irrefletidas.
Por exemplo, em 28 de agosto de 1941, ele determinou que a força aérea de
dois fronts destruísse algumas formações de carros de combate com o
emprego de não menos que 450 aeronaves, e a operação deveria começar ao
amanhecer do dia seguinte. Até em termos de informações, para não falar em
1
Dia 16 de agosto foi o primeiro de uma operação importante no front sudoeste, onde você é o
representante do Estado-maior. E parece que fica satisfeito por esquecer seu dever para com este
Estado-maior, e não envia relatório.
Você não pode usar a desculpa da falta de tempo, porque o marechal Zhukov faz exatamente o
mesmo no front e remete relatórios diários. A diferença entre você e Zhukov é que o marechal é
disciplinado e conhece suas obrigações. Enquanto você é indisciplinado e descura destas
obrigações.
Vou alertá-lo pela última vez que, se você, uma vez mais, se permitir esquecer seu compromisso
com o Estado-maior, será afastado do cargo de chefe do Estado-maior e enviado para o front. 3
Seria difícil encontrar um único marechal ou oficial de alto posto que servisse
no Estado-maior, ou inspecionasse as tropas como representante deste Estado-
maior, ou comandasse um front, que não tivesse experimentado este tipo de
tratamento da parte de Stalin, quase sempre imerecido.
Igualmente, se, depois da visita de um emissário do Estado-maior, a situação
naquele setor do front não melhorasse, Stalin tiraria as “conclusões
adequadas”. Em fevereiro de 1942, ele enviou Voroshilov ao front de
Volkhov. A reputação do marechal como líder militar inferior já estava
estabelecida e, ao não conseguir coisa alguma também naquela ocasião,
Voroshilov se viu em posição embaraçosa quando Stalin propôs através da
linha direta que ele assumisse o comando do front. O marechal começou a
recusar. Isto foi demais para o Supremo e, um mês depois, quando Voroshilov
já tinha retornado de Volkhov, Stalin ditou um memorando “sobre o trabalho
do Camarada Voroshilov” que iria acabar como uma decisão do Politburo,
tomada em 1º de abril de 1942. Vale a pena citá-la, mesmo de forma
abreviada:
Primeiro. A guerra contra a Finlândia, em 1939-40, revelou grandes deficiências e atrasos na
liderança do comissariado de Defesa. Faltaram morteiros e metralhadoras ao Exército Vermelho,
inexistiram inventários precisos sobre aviões e carros de combate, os uniformes de inverno da
tropa eram inadequados, como também os produtos alimentícios concentrados. Seções
importantes como artilharia, instrução militar, administração da Força Aérea, foram
negligenciadas. Tudo isso fez com que a guerra se arrastasse, causando baixas desnecessárias.
Como comissário da Defesa naquela oportunidade, o Camarada Voroshilov foi compelido, no
pleno do final de março de 1941, a admitir a inadequação — que ficara exposta — de sua
liderança do comissariado. O Comitê Central se viu obrigado a afastá-lo da função.
Segundo. No começo da guerra contra a Alemanha, o Camarada Voroshilov foi indicado para o
comando do front noroeste, com a missão principal de defender Leningrado. Como se
demonstrou mais tarde, ele foi incapaz de cumprir a missão e não organizou a defesa da cidade.
O Camarada Voroshilov cometeu vários erros no desempenho de suas atribuições: expediu ordens
para que comandantes de batalhões da Guarda do Interior fossem eleitos, ordens revogadas pelo
QG do Estado-maior, já que poderiam levar à desorganização e ao enfraquecimento da disciplina
no Exército Vermelho; estabeleceu um soviete de defesa de Leningrado, mas não se incluiu nele:
tal ordem foi igualmente revogada pelo QG do Estado-maior por ser incorreta e prejudicial, uma
vez que os trabalhadores da cidade poderiam pensar que o Camarada Voroshilov não se juntara
ao soviete de defesa por não acreditar na possibilidade de defender Leningrado; perdeu tempo
com batalhões de trabalhadores armados com armas leves tais como espingardas, lanças, facas e
coisas semelhantes, e negligenciou as defesas de artilharia da cidade…
Terceiro. Por sua própria solicitação, o Camarada Voroshilov foi enviado, em fevereiro, como
representante do Estado-maior, ao front de Volkhov para cooperar nas ações, e ficou lá cerca de
um mês. Sua estada, no entanto, não produziu os resultados esperados. Desejando, mais uma vez,
dar ao Camarada Voroshilov a chance de empregar sua experiência no trabalho da linha de frente,
o Comitê Central sugeriu que ele próprio assumisse o comando direto do front. Mas o Camarada
Voroshilov recebeu negativamente a proposta e não quis arcar com a responsabilidade, apesar de
este front ter agora importância crucial para a defesa de Leningrado, apresentando a desculpa de
que o front de Volkhov era difícil e ele não queria fracassar na missão.
Primeiro: reconhece que o Camarada Voroshilov não esteve à altura da missão que lhe foi
confiada no front.
2. Cada regimento deve ter uma equipe de voluntários de 20 a 30 homens para destruir e
incendiar locais habitados. Os que se distinguirem na missão da destruição de assentamentos
populacionais deverão ser indicados para honrarias do governo. 9
“Camarada Major. Aquele é meu vilarejo! Minha esposa e meus filhos, e minha irmã e seus filhos
estão todos lá. Como podemos incendiá-lo? Todos morrerão!” “Não se meta, cabe a nós
resolver”, eu disse.
Confirme o recebimento desta ordem e informe quando ela foi cumprida. I. Stalin 10
É evidente que fazia sentido destruir, durante a retirada, tudo aquilo que o
povo construíra, tais como pontes, ferrovias, fábricas e objetivos semelhantes
estrategicamente importantes. Mas de que valia para os alemães uma pobre
choupana de camponês?
[46]
Amanhecer em Stalingrado
J á se escreveu o suficiente sobre a grande campanha de Stalingrado para que
eu tenha que entrar aqui em grandes detalhes. Em vez disso, proponho-me a
focalizar o papel do Supremo Comandante em Chefe naquela batalha crucial.
No começo de junho de 1942, tendo o inimigo rompido através das defesas
soviéticas em grande profundidade, no limite entre os fronts de Bryansk e
oeste, o XXI e o XL exércitos ficaram cercados. Stalin enviou Vasilievsky às
pressas para o sul, mas os relatórios que ele mandou não foram nada
animadores. Os alemães alargaram a brecha para cerca de 300 quilômetros no
curso da semana seguinte e, em poucos dias, a força atacante penetrou de 150
a 170 quilômetros, flanqueando pelo norte os principais exércitos do front sul.
Os alemães, então, atacaram de novo, dessa vez na direção de Kantemirovka.
Analisando a ameaça em seu mapa, Stalin ficou assustado com a visão
catastrófica de o front sudoeste ser cercado, como em 1941, pela segunda vez.
No entanto, já então aprendera alguma coisa e, tendo assimilado as questões
estratégicas concretas que estavam em jogo, não foi contra a retirada dos
exércitos IX, XXVIII, XXXVII e XXXVIII. O Estado-maior expediu a ordem
urgente para que fosse preparada a defesa de Stalingrado.
Stalin teve então a oportunidade de julgar sua própria falta de visão. Em maio,
seguindo-se à débâcle de Volkhov, Vasilievky propusera o reforço das
reservas estratégicas nos setores sudoeste e sul. Stalin discordou. Ele se
preocupava com Moscou. Agora, enormes efetivos de tropas precisavam ser
deslocados urgentemente para enfrentar nova crise estratégica. A situação
piorou porque muitas unidades recuavam em completa desordem, e muitas
divisões e unidades haviam perdido as ligações com seus quartéis-generais já
por diversos dias. Mais uma vez, os Junkers e Messerschmidts alemães eram
donos do céu e podiam castigar a seu bel-prazer as tropas que se retiravam
aos milhares. Por vezes, parecia que o caos e a confusão de junho de 1941
estavam se repetindo. Stalin passava telegramas um atrás do outro, ordenando
que os comandantes de fronts restaurassem a ordem entre as forças que se
retiravam, que lutassem até o último homem, que não recuassem sem
autorização, e assim por diante. Eis alguns exemplos:
O inimigo penetrou em sua frente com pequenos efetivos. Você tem boa chance de destruí-lo.
Reúna os aviões dos dois fronts e jogue-os contra o inimigo. Mobilize os trens blindados e os
ponha na linha circular em torno de Stalingrado. Use cortina de fumaça para desorientar o
inimigo. Faça contato com o inimigo também à noite, não só de dia. Utilize ao máximo o fogo de
artilharia e de foguetes.
Mais uma vez, por incompetência e ineficiência, Lopatin deixou o front de Stalingrado em má
situação. Exerça uma supervisão efetiva sobre ele e organize uma segunda linha por trás do
exército dele.
Mais importante, não entre em pânico, não tema esse audacioso inimigo e mantenha a fé em
nossa vitória.
23 de agosto de 1942. 11
Algumas pessoas pouco inteligentes no front consolam-se dizendo que podemos recuar ainda
mais para o leste porque temos muito território, muita terra, muita gente, e que não chegaremos à
escassez de grãos; usam isto para justificar seu comportamento vergonhoso na linha de frente.
Mas este tipo de conversa é totalmente falso, mentiroso e só serve para ajudar o inimigo.
Depois da perda da Ucrânia, da Bielorrússia, do Báltico, da bacia do Donets e de outras regiões,
ficamos com território menor do que tínhamos. Segue-se daí que existe menor população, menos
cereais, menos metais, menos fábricas e moinhos. Perdemos mais de 70 milhões de habitantes,
mais de 12 milhões de toneladas de grãos e 10 milhões de toneladas de metais por ano. Perdemos
até nossa superioridade em reservas humanas e de cereais sobre a Alemanha. Recuar mais
significaria nossa destruição e, conosco, a da Pátria Mãe.
Nem mais um passo para trás! Esta é a palavra de ordem daqui por diante.
Não mais toleraremos que oficiais e comissários, pessoal político, unidades e destacamentos
abandonem suas posições de combate por vontade própria. Não mais toleraremos que oficiais,
comissários e pessoal político permitam que boateiros do pânico determinem a situação no
campo de batalha e induzam outros combatentes a recuarem, deixando o front aberto ao inimigo.
Tais boateiros e os covardes deverão ser eliminados no ato.
b) os comandantes de exército que permitirem o abandono voluntário das posições deverão ser
afastados e enviados de imediato ao QG do Estado-maior para enfrentar de pronto o tribunal
militar.
c) formem-se de um a três batalhões punitivos (com cerca de 800 homens cada) dentro dos
limites do front, para os quais devem ser enviados oficiais antigos e dos postos intermediários e
oficiais políticos de postos correspondentes. 13
de roupa nova:
De três a cinco destacamentos bem armados (até 200 homens cada) deverão ser organizados
dentro de um exército e colocados diretamente à retaguarda das divisões inconfiáveis, e devem
atirar, no ato, em boateiros do pânico e covardes, na eventualidade de retiradas desordenadas e
causadas por esse pânico. Dependendo das circunstâncias, de cinco a dez companhias de presos
(efetivo de 150 a 200 homens) devem ser formadas dentro do exército e posicionadas em locais
perigosos, a fim de que eles possam expiar com seu sangue os crimes que cometeram contra a
Pátria Mãe.
Esta ordem deve ser lida para todas as companhias, esquadrões, baterias, tripulações e quartéis-
generais. 15
3.9.42 17
Zhukov logo foi obrigado a reportar que as forças do front não tinham
conseguido abrir um corredor para realizar a junção com as forças da frente
sudeste dentro da cidade. A linha de defesa alemã foi substancialmente
reforçada com forças deslocadas das cercanias de Stalingrado. Continuar
atacando com as mesmas tropas soviéticas não fazia sentido e poderia causar
pesadas perdas. Stalin convocou Zhukov e Vasilievsky a Moscou.
Lá, debruçados sobre mapas e com assessores do Estado-maior, resolveram
adotar a tática do desgaste do inimigo pela resistência obstinada e pelo atrito,
enquanto era preparado um contra-ataque de vulto. O ataque principal foi
planejado para cair sobre os flancos das forças alemãs que estavam sendo
cobertas por soldados romenos, tropa menos ameaçadora. O plano foi
apresentado a Stalin em 13 de setembro e estava destinado a se tornar um dos
clássicos da Segunda Guerra Mundial. Foi como um despertar e não foi
Stalin, e sim seus dois chefes militares que o conceberam. A princípio, o
secretário-geral não se impressionou muito, ressaltando que o principal era
manter Stalingrado e não permitir que os alemães avançassem mais na direção
de Kamyshin. Parece que não gostou muito da audácia do plano ou o
considerou inexequível. Toda a sua atenção estava voltada para a defesa de
Stalingrado.
Entrementes, em Stalingrado, os alemães investiram a cidade e, por mais de
dois meses, dia e noite, o combate prosseguiu com um nível de ferocidade
sem precedentes. Enquanto os alemães, no começo da batalha, mediam sua
progressão a partir do sudoeste em termos de dezenas de quilômetros, depois
passaram a alguns quilômetros; em setembro, tiveram que raciocinar em
apenas centenas de metros por dia e, a partir de outubro, consideraram um
avanço de 40 a 50 metros como uma grande vitória. Em meados de outubro,
pararam de vez. A Ordem nº 227 de Stalin era então cumprida à risca. Apesar
de os alemães terem 22 divisões em Stalingrado, mais outras tantas formações
de seus aliados, a máquina de guerra nazista emperrara.
Em novembro, Stalin passou quase todos os dias pensando sobre a operação
futura nos três fronts – Stalingrado, sudoeste e Don. O plano recebeu a
denominação provisória de “Uranus” e Stalin insistiu em que ele
permanecesse do conhecimento apenas de um número restrito de pessoas. A
responsabilidade pela coordenação das três frentes foi entregue a Vasilievsky.
Quando o contra-ataque foi desfechado em 19 de novembro, é provável que
tenha aumentado a confiança de Stalin na vitória, não por causa da
superioridade soviética em homens e armamento, mas porque nenhuma
operação anterior fora preparada com tanto esmero e precisão. É verdade que,
uma semana antes do início, Stalin foi tomado de dúvida, particularmente
porque o poder aéreo soviético equivalia ao do inimigo, e ele sempre atribuíra
enorme importância a este vetor do combate. Ficou tão preocupado que
chegou a pensar em adiar a operação, telegrafando em 11 de setembro a
Zhukov para dizer que, se Yeremenko e Vatutin tivessem aviação inadequada,
a ação fracassaria: “A experiência nesta guerra tem mostrado que só se pode
vencer os alemães com superioridade aérea.” Se isto não pudesse ser
garantido, continuou, “seria melhor adiar a operação por algum tempo”. No 18
saber por intermédio de Zhdanov que Zhukov tinha, de fato, revogado uma
das ordens expedidas por ele, o Supremo, Stalin não fez qualquer comentário:
não pôde deixar de admirar a audácia e a visão do comandado, e deixou claro
que delegava a Zhukov a autoridade para decidir o que deveria ser feito.
Stalin sabia que, numa crise, Zhukov seria impiedoso e não tergiversaria. Tal
característica o impressionava e estava em harmonia com seu próprio modo
de ser. Zhukov era implacável com os alarmistas do pânico e com os
covardes, e era capaz de tomar as providências mais duras contra eles, se as
circunstâncias assim o ditassem. Num momento crítico de setembro de 1941,
durante a defesa de Leningrado, ditou a Ordem nº 0064, divulgando para
todos os oficiais políticos e do exército, bem como para as praças, que quem
abandonasse seu posto sem permissão por escrito seria fuzilado sem
tergiversação. 24
2. Tanto ao regimento quanto ao seu ex-comandante, coronel Stalin, deve ser dito que o coronel
Stalin está sendo afastado por alcoolismo e libertinagem e porque está levando o regimento à
ruína e à perversão.
“Não somos meninas de ginásio. Somos bolcheviques e devemos colocar chefes valorosos no
comando.” 27
Stalin sabia que Zhukov era muito rígido como chefe. Quando comandava as
operações ofensivas no front oeste, no verão de 1942, ele deu uma ordem da
qual não podia se orgulhar e à qual jamais se referiu mais tarde. Seu relatório
para Stalin sobre os resultados da operação deixa claro que espécie de ordem
exarou:
De modo a alertar os destacamentos quanto à retirada, à covardia no combate e aos alarmistas do
pânico, a primeira linha de cada batalhão de assalto era seguida por um carro de combate
transportando oficiais especialmente selecionados pelos sovietes de guerra do exército. Em
consequência dessas medidas, o XXXI e o XX exércitos romperam com sucesso as defesas
inimigas.
7 de agosto de 1942. 28
** Ralph Parker foi o correspondente do Times em Moscou durante a guerra, encarregado de promover a
compreensão anglo-soviética. No fim da guerra, fixou residência em Moscou, onde mais tarde morreu.
Seu caso é contado em History of the Times , de Iverich McDonald, vol. 5.
[48]
Ideias de um estrategista
Q uando famosos líderes guerreiros soviéticos escreveram suas memórias,
só mencionaram o que era permitido, e qualquer comentário negativo sobre
Stalin era encarado como difamação. Por cerca de vinte anos, trabalhei na
administração política principal do Exército e Marinha soviéticos. Foi durante
o período em que o departamento de publicações da administração tinha que
examinar todas as memórias, de acordo com as instruções de Suslov.
Conversei com pessoas que analisaram as memórias militares nos anos 1950,
1960 e mais tarde. Os manuscritos daquela época circulavam entre as altas
autoridades, e os autores logo aprendiam o que era permitido dizer. Em
consequência, a história soviética reteve sua imagem totalmente vitoriosa,
porque nem a Glavlit * nem os numerosos leitores de manuscritos podiam
ignorar as prescrições de um sistema ideológico aferrado a uma única visão
do passado.
Também sei que nem tudo o que os generais escreveram entrou nas obras
impressas. Similarmente, e também sob pressão externa, alguns deles
tentaram encontrar espaço e razão para mencionar em seus trabalhos pessoas
influentes cujo lugar no esforço de guerra necessitariam mais que uma lupa
poderosa para ser reconhecido. Por exemplo, foi necessário ter paciência e
zelo para localizar a posição no front que K.U. Chernenko iluminou com seus
talentos, bem como a unidade em que L.I. Brejnev serviu. Muitos livros que,
afora isso seriam respeitáveis, foram manchados pela referência compulsória
aos serviços de Brejnev. Jamais seria mencionado, por exemplo, um relatório
de agosto de 1942 do comissário político Sinyansky especificando que
Brejnev, entre outros oficiais políticos do XVIII Exército, foi “incapaz de
conseguir a melhora desejada no estado de espírito e no comportamento dos
trabalhadores políticos no front”. Brejnev e os outros foram considerados “um
bando de negligentes, complacentes e beberrões que viviam se protegendo
mutuamente”. 34
16.9.42. 35
Para ele, o que interessava era o resultado. Jamais foi atormentado por crises
de consciência ou de pesar pelas baixas enormes. As notícias referentes à
destruição de grande número de divisões, corpos ou exércitos o alarmavam,
mas não existe um só documento nos arquivos do Estado-maior mostrando
preocupação sua com o número de vidas humanas perdidas. Não levava em
conta um dos princípios fundamentais da arte militar, o de que o objetivo deve
ser conquistado com a mínima perda de vidas humanas. Acreditava que tanto
as vitórias quanto as derrotas inevitavelmente colhiam safras amargas, fato
inescapável da guerra moderna. Talvez pensasse desta forma porque, como
Supremo, tinha expressivo número de exércitos à sua disposição. No fim da
guerra, as forças armadas desdobravam cerca de 500 divisões, sem contar
artilharia, blindados e aviões. Era o dobro do que existia antes da guerra. Na
realidade, os alemães possuíam quantidade maior, mas isto aconteceu porque
Stalin resistiu aos repetidos pleitos dos assessores para que dividisse as
formações em maior número e com efetivos menores. Em função do vasto
poderio militar e do organizado sistema de reservas, pareceu desnecessário a
Stalin tornar a conquista de objetivos estratégicos dependente da escala das
perdas. Ao mesmo tempo, ele era atraído pelas novas formas de ação
estratégica tais como as operações com forças de fronts combinados. Isto
resultava no mais complicado e maciço complexo de batalhas, enquadrado em
um só conceito e tudo coordenado para objetivo, tempo e lugar. Algumas
destas operações envolveram, entre cem e 150 divisões, às vezes mais,
dezenas de milhares de canhões, três a quatro mil carros de combate, cinco a
sete mil aviões. Esta colossal força era colocada em movimento de acordo
com um cenário de cálculos e deslocamentos estratégicos concebido pelo
Estado-maior Geral e pelos QGs, com base em inúmeros fatores e opções
tanto nossos como do inimigo. Foi precisamente durante tais operações
combinadas que Stalin sentiu-se mais como líder militar. Uma escala tão vasta
significava não só a expressão quantitativa da força empregada. Também
representava sua própria autoexpressão e autoafirmativa como um
estrategista.
Depois das batalhas de Moscou e Stalingrado, ele buscou acoplar os esforços
de vários fronts em combinações cada vez mais novas. Kursk, Bielorrússia,
Prússia Oriental, Vístula-Oder, Berlim e Manchúria representaram o curso
objetivo da guerra, mas também corresponderam à predileção de Stalin por
essas operações maciças e em escala avassaladora. A extensão da frente de
combate naqueles casos chegava, com frequência, a 500-700km, com
profundidades que iam de 300 a 500km, e podiam durar até um mês. Como
regra, Stalin se impacientava por seu início, ficava insatisfeito com o ritmo da
progressão e se irritava com as dificuldades. Apreendia com rapidez o
conceito geral de uma operação ofensiva e, ocasionalmente, fazia sugestões
relevantes visando a intensificar a força do ataque.
Muito raramente, no entanto, sugeria alternativas para a ideia principal
concebida e burilada pelo Estado-maior, o cérebro do exército. Stalin tendia a
enfatizar o papel da força aérea, porém, depois do verão de 1942, quando os
exércitos blindados começaram a entrar em ação, ele dava opinião detalhada
sobre seus objetivos e acompanhava as poderosas formações de ataque
enquanto executavam suas missões. Embora não existam provas nos arquivos
indicando que as sugestões de Stalin tiveram influência importante sobre o
planejamento, curso, desenvolvimento e conclusão das operações estratégicas,
manda a verdade que se diga que, no período de 1943-45, ele foi capaz de
avaliar os valores relativos. Se demonstrou alguma “genialidade”, foi durante
este último estágio da guerra, quando aprovou os planos formulados e
submetidos à sua apreciação por Zhukov, Vasilievsky, Antonov e pelos
comandantes de fronts.
Por outro lado, deu grande atenção ao incremento do espírito combatente da
tropa, normalmente por métodos radicais. A decisão de realizar a parada de 7
de novembro de 1941 na Praça Vermelha foi uma dessas ideias, e também, no
verão de 1944, de repente propôs que um enorme efetivo de prisioneiros de
guerra alemães desfilasse pelas ruas de Moscou.
“Isto levantará ainda mais o moral do povo e do exército e acelerará a derrota
dos fascistas. O que vocês acham?”
Após um breve momento de silêncio confuso, Molotov, Beria, Voroshilov e
Kalinin começaram a tagarelar ao mesmo tempo e começaram a competir uns
com os outros para expressar sua total concordância.
“Uma iniciativa inteligente, Iosif Vissarionovich!” “Só você poderia ter
pensado nisto!”
“Uma decisão de gênio!”
Passada uma semana, em 13 de julho, Beria submeteu à aprovação de Stalin
uma operação inusitada de levantamento moral: “De acordo com sua
proposta, Iosif Vissarionovich, dia 17 de julho, 55 mil prisioneiros de guerra
desfilarão pelas ruas de Moscou. Entre eles, estarão 18 generais e 1.200
oficiais. Vinte e seis trens especiais os trarão a Moscou dos três fronts
bielorrussos. Os generais Dmitriev, Milovsky, Gornostaev e o comissário de
segurança Arkadiev já tomaram as providências. A segurança e a escolta em
Moscou serão da responsabilidade dos Camaradas Vasiliev e Romanenko da
NKVD. Os prisioneiros serão concentrados no hipódromo, e a NKVD fará a
segurança motorizada da área na noite de 16 de julho. Dos 26 trens
formaremos 26 colunas de marcha. Itinerário: Hipódromo de Moscou,
autoestrada Leningrado, rua Gorky, praça Mayakovsky e ao longo de
Sadovaya; depois, de Sadovaya-Triumfalnaya para Karetnaya, Samotechnaya,
Sukharevskaya, Spasskaya, Chernogryazskaya, rua Chkalov, estação Crimeia,
bulevar Smolensk, ao longo das ruas Barricade e Krasnaya Presnya de volta
ao Hipódromo. A marcha começará às 9h e deverá terminar às 16h.” 36
Nas suas memórias The End of the Third Reich , e em diversas outras
publicações e discursos, o marechal V.I. Chuikov expressa a opinião de que
teria sido possível tomar Berlim em fevereiro de 1945, em vez de se esperar
até maio. Zhukov, A.Kh. Babadzhanyan e outros contestaram essa opinião em
documentos impressos como em outras ocasiões, e Chuikov quis publicar
uma resposta na Voenno-istoricheskii zhurnal (“Revista de História Militar”).
Recusada a permissão, ele escreveu ao Comitê Central do partido, no qual se
decidiu que alguma coisa deveria ser feita para controlar o teimoso marechal.
Em 17 de janeiro de 1966, o chefe da Administração Política Principal,
general A.A. Yepishev, convocou uma reunião de destacados marechais,
generais e especialistas para “injetar bom senso” em Chuikov. Em sua 39
Entre outras coisas, Beria foi empregado por Stalin para ajudar no suprimento
da área de retaguarda do front, para “peneirar” nos campos aqueles que
escapavam do cerco inimigo e para mobilizar centenas de milhares de
prisioneiros para trabalhos relacionados com a guerra. Envolveu-se também
com a organização de diversos destacamentos e unidades. Por exemplo, em
29 de junho de 1941, recebeu do Estado-maior a missão de formar 15 divisões
com base em unidades da NKVD. Em agosto de 1942 e março de 1943,
42
esteve no Cáucaso para cooperar com a defesa da região. Foi de lá que enviou
uma série de telegramas a Stalin informando que estava afastando chechênios
e ingushes do exército como inconfiáveis, fazendo sua avaliação de Budenny,
Tyulenev e Sergatskov, reportando suas decisões sobre várias nomeações
militares, algumas delas patentemente inadequadas. Foi de Beria a sugestão
para que Stalin, em 20 de agosto de 1943, telegrafasse a Shchadenko,
comandante do front caucasiano, determinando:
1. A remoção de 3.767 armênios, 2.721 azerbaijanos e 740 membros de grupos étnicos do
Daguestão das fileiras da 61ª Divisão de Infantaria.
2. Que os militares assim removidos fossem enviados para postos da reserva do front oeste e que
as vagas criadas pela transferência fossem preenchidas com tropas reservas do front constituídas
de russos, ucranianos e bielorrussos. 43
A descrição das atividades do Camarada L.P. Beria não contém o relato abrangente de todas as
medidas que foram executadas sob a supervisão pessoal do Camarada Lavrenti Pavlovich Beria.
L.P. Beria, que praticava o estilo stalinista de liderança, foi, por seu exemplo pessoal, um modelo
de liderança bolchevique estatal, militar, político-partidária e econômica no front transcaucasiano
(agosto de 1942 a janeiro de 1943), e pôs em prática as ordens de Stalin de maneira brilhante. 46
Bem no íntimo, Stalin seguramente tinha desprezo por Beria, mas não podia
passar sem ele. Beria era seu inquisidor, seu braço direito, seu espião. Foi ele,
por exemplo, quem lhe informou que Berlim, havia muito tempo, vinha
planejando um ato terrorista contra o líder soviético. De acordo com alguns
informes recebidos, um Messerschmitt Arado-332 especial lançaria um grupo
treinado de terroristas do Exército Russo de Liberação, de Vlasov, enquanto
outras informações diziam que os alemães deixariam para trás um grupo de
comandos na retirada. Quase a cada mês, Beria relatava a Stalin as novas
medidas que tomara para aumentar a segurança do seu chefe. Mas Stalin
precisava de Beria para uma série de outras tarefas. Por exemplo, saber por
que 140 dos 400 aviões de caça designados para emprego nos fronts de
Kalinin e de oeste tinham sido retirados da ação após três ou quatro dias de
serviço. Por outro lado, não gostava quando Beria metia o bedelho nos
47
Para falar a verdade, estas cartas também serviram para explicar por que
Stalin declinara do convite para se encontrar com os outros dois líderes em
Scapa Flow, nas ilhas Orkney. Mas foram úteis também para dissipar qualquer
noção de que conduzia a guerra de sua poltrona. Para sua grande satisfação,
nas respostas dos dois líderes, de 19 de agosto de 1943, tanto Roosevelt
quanto Churchill comentaram que “entendiam perfeitamente as ponderáveis
razões que o obrigam a permanecer em proximidade cerrada dos fronts de
combate onde sua presença pessoal tem contribuído tanto para as vitórias”. 49
Nota
* Sigla russa de Glavnoe upravlenie po delam literatury i izdatv , a “Repartição para a Proteção dos
Segredos de Estado Impressos,” agência de censura responsável pela revisão de todas as matérias antes
da publicação. No fim da década de 1980, era responsável pela proteção de segredos de Estado. Foi
abolida em julho de 1990.
[49]
Stalin e os Aliados
N o final de abril e início de maio de 1945, Poskrebyshev reportava
diariamente a Stalin os encontros que ocorriam entre tropas soviéticas e
aliadas. Para Stalin – e não só para ele – a Aliança representara um aspecto da
guerra repleto de expectativas e desapontamentos, rixas, regateios, suspeitas e
desconfiança, depois, de esperanças e desilusões, e, finalmente, transformara-
se em razoável cooperação militar funcional. Na primavera de 1945, parecia
que ela estava firme e seria duradoura. Em prol da coalizão antifascista, Stalin
sacrificara o Comintern, colocara de lado postulados ideológicos, fechara os
olhos para os habituais e persistentes sentimentos anticomunistas de Churchill
e das democracias ocidentais, e assumira uma linha puramente pragmática.
De regra, lia apenas documentos do Estado-maior, relatórios do front e
memorandos do QG do Estado-maior. Contudo, então, começou a analisar
outro tipo de material. Por exemplo, leu um relatório de S.R. Rudnik, chefe
do Estado-maior da 58ª Divisão de Infantaria de Guardas, dando
conhecimento de que “às 15h30 de 25 de abril de 1945, perto da ponte, em
Torgau, ocorreu um encontro entre oficiais do 173º Regimento de Infantaria
de Guardas e patrulhas da 60ª Divisão de Infantaria do 5º Corpo de Exército
do I Exército americano. Cinco homens liderados pelo oficial Robinson do
Exército dos EUA atravessaram para a margem leste do rio Elba a fim de
manter contato”. 50
Stalin deve ter ficado imaginando como homens do tipo de Rudnik se
comportariam com os soldados Aliados de um outro mundo. Haveria
confraternização ou fricção? Apenas três semanas antes, recebera um
cabograma de Abakumov, classificado “Muito Importante”, dando conta de
que, segundo fontes da Smersh, na base aérea soviética de Poltava, a qual os
americanos estavam utilizando como ponto de reabastecimento, o major-
general Kovalev declarara que “não estamos nos dando muito bem com os
americanos, e tudo pode dar mesmo em conflito armado”. Kovalev tomara
medidas acauteladoras. Stalin explodiu quando leu o telegrama de Abakumov.
“Onde arranjamos idiotas assim? Este Kovalev preparou até um plano de
ataque!” Escreveu uma mensagem para o comandante da força aérea,
Falaleev, com letras maiúsculas bem no meio da página. “Determino a você
apaziguar o Camarada Kovalev e proibir qualquer nova ação de sua parte.”
Por outro lado, ele também recebia relatórios de encontros com forças
inglesas e americanas que ocorriam num clima de entusiasmo. Durante uma
reunião entre o comandante da 58ª Divisão de Infantaria, general Rusakov, e o
comandante da 69ª Divisão de Infantaria dos EUA, general Reinhardt, foram
levantados brindes, proferidos discursos e trocados presentes. O chefe da
seção política do V Exército de Guardas, general Katkov, reportou que os
americanos queriam estrelas, platinas e botões como suvenires. Os soldados
soviéticos ficaram aparentemente surpresos ao verificarem que era difícil
distinguir um general dos EUA entre os de outros postos. “Todos usam o
mesmo uniforme, ao passo que se pode identificar a distância um general
nosso.” Katkov também mencionou que o escritor Konstantin Simonov estava
presente no encontro. 51
Era hora agora de acabar com o longo período de desconfianças mútuas entre
a União Soviética e as democracias ocidentais. O que parecia impraticável
antes da guerra, Hitler tornara possível. Ao travar a guerra em duas frentes, o
Führer tinha, inadvertidamente, transformado a URSS e o Ocidente em
aliados. Stalin podia muito bem agora recordar a visita do embaixador inglês,
Stafford Cripps, e seus auxiliares, em 12 de julho de 1941. Ainda em choque
com a notícia que recebera meia hora antes de que os alemães estavam no
Dnieper, Stalin apertou mecanicamente a mão do inglês e, absorto, ficou
olhando as costas de Molotov e Cripps enquanto os dois assinavam o acordo
de assistência mútua. Uma semana mais tarde, o enviado soviético em
Londres, Ivan Maisky, e o ministro do exterior tcheco, Jan Masaryk,
assinaram acordo semelhante e, depois, no mesmo mês de julho e ainda em
Londres, foi celebrado um tratado de assistência mútua entre a URSS e o
governo polonês no exílio. Por insistência polonesa, a primeira cláusula
estabelecia: “O governo da URSS reconhece que os tratados germano-
soviéticos de 1939 relacionados com mudanças territoriais na Polônia não têm
validade.” Naquele dia, Stalin conheceu o enviado pessoal de Roosevelt,
52
Harry Hopkins, que disse: “Quem luta contra Hitler está no lado certo do
conflito, e pretendemos ajudar este lado.” Stalin fez perguntas ligeiras sobre
53
Sem estas duas espécies de socorro, a União Soviética ou será derrotada ou restará tão
enfraquecida que perderá sua capacidade de auxiliar seus aliados por um longo período.
Sei que esta mensagem causará aflição a Vossa Excelência. Mas que posso fazer? A experiência
ensinou-me a olhar a realidade de frente, por mais desagradável que ela seja, e a não ter medo de
dizer mesmo a verdade indesejável. 55
Embora tenha conseguido ajuda militar dos Aliados em escala maciça – ajuda
consistentemente ignorada ou depreciada pelos historiadores soviéticos –,
Stalin foi menos bem-sucedido no esforço para que abrissem uma segunda
frente. Até meados de 1944, esta questão ocupou lugar central no palco de
suas iniciativas diplomáticas. É verdade que, quando os ventos da vitória
começaram a inflar suas velas, ele se tornou menos insistente, e, de fato, a
frente na Europa Ocidental só foi aberta quando ficou óbvio que a União
Soviética era capaz de destruir sozinha a Alemanha nazista.
A persistência de Stalin e a posição inglesa sobre a segunda frente chegaram a
um ponto tal que foi necessário aos dois líderes se encontrarem pessoalmente.
Em consequência, Churchill foi a Moscou, em agosto de 1942 e, na presença
do embaixador americano Averell Harriman, tentou convencer Stalin da
impossibilidade da abertura de uma frente na Europa Ocidental ou no Ártico
naquele momento. Stalin não teve outra escolha senão aceitar a argumentação,
56
mas deixou claro que considerava a posição inglesa uma quebra de
promessa. Considerando que a URSS estava aguentando o maior impacto da
57
dizendo era que a lógica das classes não tinha lugar na luta pela
sobrevivência.
O destino do Comintern estava selado. Na primavera de 1943, ele dissolveu a
si próprio e, em 28 de maio de 1943, respondendo a uma pergunta do
correspondente da Reuters, Stalin disse:
A dissolução da Internacional Comunista é adequada e oportuna, pois facilitará a organização da
pressão por parte das nações amantes da paz contra o inimigo comum, o hitlerismo, e desmascara
a mentira dos hitleristas de que Moscou, supostamente, pretende interferir na vida dos outros
estados e “bolchevizá-los”. 59
Outra área na qual Stalin aplicou sua abordagem pragmática foi a da Igreja
Ortodoxa Russa, instituição com a qual o ex-seminarista, até então, não vinha
sendo muito pródigo em atenção. Pelo contrário, em 1925, por sua iniciativa,
a Igreja foi proibida de eleger um novo patriarca. Seu chefe temporário, ou
locum tenens , ficou sendo o eclesiástico metropolitano Sergius. Stalin nem
permitiu que o conselho local da Igreja se reunisse, tornando assim
impossível completar o número de membros do Sínodo Sagrado, o qual
deixou de funcionar por um longo período. Subitamente, em 4 de setembro de
1943, Stalin convidou G.G. Karpov, presidente do conselho para as Questões
da Igreja Ortodoxa Russa, à sua dacha. Durante a conversa, e com a presença
de Malenkov e Beria, foi debatido o papel que a igreja poderia desempenhar
no esforço de guerra. Deve-se frisar que ela já vinha dando uma grande
contribuição em dinheiro vivo com tal objetivo e repassara para os cofres
públicos substanciais partes de sua riqueza, ao mesmo tempo que os
sacerdotes faziam o possível para fortalecer a fé do povo na vitória final sobre
o invasor.
Tendo ouvido Karpov, Stalin decidiu, na hora, receber os líderes da Igreja e,
poucas horas depois, chegaram os eclesiásticos metropolitanos Sergius,
Alexei e Nikolai, algo surpresos com o inusitado da ocasião. Durante a longa
discussão, concordaram em convocar o conselho da Igreja, nomear um
patriarca e abrir instituições de ensino religioso. Entusiasmado com a própria
generosidade, Stalin prometeu também ajuda material à Igreja e várias
indulgências, dando para Beria um olhar significativo enquanto dizia isto.
Stalin, o seminarista falhado, deve ter sentido imensa satisfação pela
inimaginável oportunidade de influir não apenas na sorte dos dignitários de
posição mais elevada da Igreja, mas na própria religião. E a maioria das
promessas que fez foi cumprida.
No dia seguinte, 5 de setembro, o Pravda publicou notícias sobre a reunião –
a única entre a liderança do país e o chefe da Igreja até 1988 – e anunciou que
o eclesiástico metropolitano Sergius iria convocar o conselho dos bispos para
a eleição de novo patriarca. “O chefe de governo, Camarada I.V. Stalin,
demonstrou simpatia em relação a tais propostas e declarou que o governo
não estorvaria sua concretização.”
Stalin tomou essa atitude por duas razões. Primeiro, porque reconhecia o
valor patriótico da Igreja e queria encorajá-lo. A segunda razão estava ligada à
situação internacional. Ele se preparava para a conferência de cúpula em
Teerã no final do ano, e era sua intenção pressionar pela abertura da segunda
frente e pleitear também um aumento da assistência. Neste particular, papel
importante, acreditava ele, poderia ser desempenhado pela Ajuda Britânica
para o Fundo Russo, comitê do qual faziam parte a senhora Churchill e o
Deão de Canterbury, Hewlett Johnson. Já tendo recebido diversas mensagens
do deão, Stalin concluiu que era chegado o momento de fazer um gesto
público para demonstrar sua lealdade à Igreja. Estava convencido de que o
Ocidente reconheceria aquele sinal e que ele provocaria a resposta desejada.
Sua principal motivação, portanto, não foi a gratificação da vaidade do
seminarista malsucedido, mas o exercício de pragmatismo puro nas relações
com os Aliados.
Tais relações chegaram ao ápice com os encontros dos Três Grandes em Teerã
(28 de novembro a 1º de dezembro de 1943), em Yalta (4 a 11 de fevereiro de
1945) e em Potsdam (17 de julho a 2 de agosto de 1945). O resultado destas
reuniões é bem conhecido. Meu propósito aqui é apenas tocar na atitude de
Stalin em relação a algumas das questões debatidas.
Stalin era um “homem caseiro”. Embora desejasse encontrar os líderes
Aliados, relutava em viajar, seja para longe, seja por muito tempo fora da
URSS. Churchill e Roosevelt sugeriram locais como Cairo, Asmara, Bagdad,
Basra e outros mais ao sul. Churchill até pensou que Stalin concordaria com
um encontro no deserto, onde seriam armados três acampamentos de tendas e
eles poderiam conversar segura e sigilosamente. Stalin insistiu em Teerã
porque, segundo suas palavras, de lá seria capaz de continuar “dirigindo o dia
a dia do Estado-maior”. Depois de alentada troca de correspondência,
Churchill e Roosevelt concordaram. Naturalmente, Stalin não revelou que
tinha um pouco de medo de voar. Aquele viria a ser seu primeiro voo, e o
último. Nunca fora de correr riscos, e não viu por que haveria de começar
agora. Estava no auge da glória, e qualquer possibilidade de aborrecimentos,
por menores que fossem, o perturbava. Dois dias antes da viagem, telegrafou
a Roosevelt e Churchill, ambos já no Cairo, dizendo que estaria “à vossa
disposição” em Teerã na noite de 28 de novembro. Partida dele, era uma
expressão desusada, que, sem dúvida, objetivava passar a imagem de um
gentleman .
Aquela foi a primeira conferência internacional de Stalin fora de seu próprio
país, e ele cuidou de observar atentamente seus parceiros. Tudo era novo.
Churchill não despertava tanto interesse, pois já havia se encontrado com ele
e sabia tratar-se de um político invulgarmente inteligente e arguto. Mas havia
alguma coisa em Roosevelt, com seus olhos penetrantes e a evidente marca da
fadiga e da doença, que logo o atraiu. Talvez fosse sua franqueza. Na última
conversa que tiveram, em 1º de dezembro, o presidente disse-lhe com toda a
sinceridade que não desejava discutir publicamente questões de fronteira
polonesa, uma vez que era muito provável que fosse candidato a presidente no
ano seguinte. Existem “seis ou sete milhões de cidadãos americanos de
origem polonesa”, e ele, sendo um “homem prático, não queria perder aqueles
votos”. Stalin não estava acostumado com tais expressões de autointeresse
político, mesmo assim admirou esta qualidade de Roosevelt.
O presidente era o mais novo dos “Três Grandes” e, no seu discurso de
abertura, chamou o trio de “membros de uma nova família”. Churchill
acrescentou que eles representavam “a maior concentração de poder jamais
havida na história da humanidade”. Os dois, então, esperaram pelas palavras
de Stalin. “Acho que a história está sendo condescendente conosco”, começou
ele abruptamente. “Ela colocou em nossas mãos poderes muito grandes e mui
grandes oportunidades. Espero que tomemos todas as medidas para que esta
conferência use do poder e da força que nos foram confiados por nossos
povos, adequadamente e dentro de um espírito de cooperação. E agora, vamos
ao trabalho.”
A questão da segunda frente foi, por fim, resolvida. No café da manhã de 30
de novembro, Roosevelt sacudiu seu guardanapo, virou-se para Stalin com
um sorriso e disse: “Hoje, Mr. Churchill e eu tomamos uma decisão com base
em propostas de nosso estado-maior combinado: a Operação Overlord
começará em maio, juntamente com um desembarque no sul da França.”
“Fico satisfeito com esta decisão”, replicou Stalin tão calmamente quanto
pôde. “Mas também quero dizer a Mr. Churchill e a Mr. Roosevelt que, no
momento em que os desembarques começarem, nossas tropas estarão
preparando um ataque de grande vulto contra os alemães.” Estas novas foram
do agrado dos outros líderes.
Como em Yalta e, mais tarde, em Potsdam, a questão polonesa preocupou os
Três Grandes em Teerã. Na última sessão, Churchill leu uma proposta,
evidentemente combinada antes com Roosevelt, estabelecendo que “o torrão
do estado e do povo polonês deve ser localizado entre a chamada Linha
Curzon e o rio Oder, com a inclusão na Polônia da Prússia Oriental e da
província da Silésia”. Stalin replicou: “Se os ingleses concordarem em
transferir para nós [os portos de águas quentes de Königsberg e Memel],
aceitamos a fórmula proposta por Mr. Churchill.” 60
Stalin deixou patente que estava mais inquieto com governos do que com
fronteiras. Aceitou imediatamente a Linha Curzon, com alguns ajustes em
favor da Polônia, mas não faria concessões quanto à questão do governo
polonês, a despeito do fato de, no início da guerra, ter se mostrado desejoso
de cooperar com ele. Em 18 de agosto de 1941, determinara que o major-
general Vasilievsky assinasse um tratado militar entre o Alto-Comando
Soviético e o Alto-Comando Polonês. Concordaram em que o lado soviético
arcaria com todos os custos da manutenção de um exército polonês em
território soviético e abriria uma missão militar soviética no Alto-Comando
Polonês, em Londres. E agora Churchill e Roosevelt estavam chamando o
62
governo legítimo de “governo de Lublin”, como se não fosse mais que uma
autoridade provincial, não obstante já estar instalado em Varsóvia e controlar
a situação no país.
Na última fase da guerra, e depois dela, Stalin viu-se afogado em questões de
caráter diplomático. É claro que ele contava com a assistência de Molotov,
A.Ya. Vyshinsky, S.I. Kavtaradze e I.M. Maisky, entre outros, porém, ao mais
das vezes, tomava decisões por si próprio. Ficou irritado quando Churchill
meteu o nariz nas questões da Europa Oriental: uma vez que as forças
soviéticas estavam lá, cabia à URSS solucionar a questão do futuro da região,
assim pensava ele.
Mais uma vez, Stalin viu o tipo de executivo fiel que era Molotov. Para este,
uma ordem de Stalin tinha precedência sobre qualquer estatuto do partido. Em
15 de outubro de 1945, Averell Harriman quase “bateu nele”, como iria dizer
a Stalin no mês seguinte. O secretário-geral se preparava para suas primeiras
férias de pós-guerra e não queria receber o embaixador dos EUA, que
pressionava por uma audiência. Stalin dissera a Molotov: “Você o recebe. Não
vou fazê-lo. Diga-lhes o que eles precisam saber.”
De acordo com Molotov, o embaixador Harriman e o primeiro-secretário Page
foram visitá-lo, e a conversa mantida foi registrada em seu diário assim:
Harriman: “Recebi um telegrama do presidente para o generalíssimo. Tenho instruções para
entregá-lo pessoalmente e, na ocasião, discutir uns certos assuntos.”
Molotov: “Stalin entrou em férias por cerca de mês e meio. Informarei Stalin sobre o desejo do
presidente.”
Harriman: “O presidente sabe que Stalin está de férias, mas espera que, assim mesmo, ele
concorde em receber o embaixador. É sobre a Conferência de Londres. Estou disposto a ir a
qualquer lugar.”
Molotov: “O generalíssimo Stalin não está trabalhando no momento, o que quer dizer que está de
férias longe de Moscou.”
Molotov: “Todos achamos que Stalin deve fazer uma pausa adequada para um descanso.”
Harriman: “Durante o desfile esportivo, notei que Stalin parecia em forma.” Molotov: “Stalin é
um homem muito disposto.”
Molotov: “Nós, as pessoas soviéticas, ficamos muito felizes em ver Stalin com bom estado de
espírito.”
Molotov: “Informarei a Stalin, que está no gozo de completo repouso.” Harriman: “Nem preciso
falar quão importante a questão é…”
Talvez fosse este episódio que Harriman lembrou quando escreveu em suas
memórias que “Stalin permanece para mim a pessoa mais inescrutável,
enigmática e contraditória que jamais conheci”. As anotações sobre a
64
1. As tropas búlgaras operam em território sérvio segundo o plano geral da assistência substancial
às tropas soviéticas, de acordo com o senhor e por sua solicitação, como estabelecido em seu
telegrama número 337 de 12.10.44. Enquanto um considerável efetivo alemão permanecer em
território iugoslavo, não teremos condições de retirar as tropas búlgaras da Sérvia.
Que os sovietes de guerra organizem campos na área de retaguarda para acomodar e reter ex-
prisioneiros de guerra e cidadãos soviéticos que estão sendo repatriados, alocando 10 mil pessoas
para cada acampamento. As necessidades são: 2º front bielorrusso – 15 campos; 1º front
bielorrusso – 30; 1º front ucraniano – 30; 4º front ucraniano – 5; 2º front ucraniano – 10; e 3º
front ucraniano – 10. Alguns campos devem ser criados em território polonês.
americanos, pensou ele, depois iam querer medalhas para eles mesmos. Já
estavam comemorando, mas as questões do pós-guerra ainda não estavam
resolvidas. Ele pensava na próxima Conferência de Potsdam, que iria discutir
as difíceis questões da ordem do mundo de pós-guerra.
Não procrastinaria, cumpriria a promessa feita em Yalta de entrar na guerra
contra o Japão dois ou três meses após o término da guerra na Europa. Em 28 72
PARTE X
Clímax do culto
A pior tirania é a que age sob o manto
[50]
O preço da vitória
S talin tinha consciência de que a autoridade que desfrutara no país antes da
guerra e, é claro, no Comintern tinha agora adquirido estatura mundial. Os
líderes ocidentais, tanto nos encontros pessoais quanto na extensa
correspondência mantida, entoavam loas ao Supremo Comandante em Chefe
das forças armadas soviéticas. O novo presidente dos EUA, Harry Truman,
frisou numa carta pessoal que havia “demonstrado o talento de um amante da
paz, com o mais elevado nível de coragem, para derrotar as forças maléficas
do barbarismo, por mais fortes que fossem. Na oportunidade de nossa vitória
comum, saudamos o povo e o exército da União Soviética e sua liderança
esplêndida”. Churchill remeteu mensagem quase tão efusiva, transmitida pelo
1
arrogante por Stalin, disse em seu telegrama da vitória que Stalin “fizera da
URSS um dos principais elementos da luta contra os estados opressores, e
exatamente por causa disto a vitória viera. A Grande Rússia e o senhor
pessoalmente granjearam a gratidão de toda a Europa…” Congratulações
3
Uma composição ferroviária especial foi montada. O percurso é de 1.923 quilômetros (1.095 na
URSS, 594 na Polônia e 234 na Alemanha). A segurança ao longo do itinerário será
proporcionada por 17 mil homens da NKVD e 1.515 operacionais. Entre seis e 15 homens
estarão postados a cada quilômetro de trilhos. Oito trens blindados com tropas da NKVD
patrulharão a extensão total do caminho ferroviário.
Uma casa com dois pavimentos e 11 cômodos foi preparada para Molotov. Existem 55 vilas,
inclusive oito casas separadas, para a delegação. 5
Tudo isto estava, de fato, muito distante do “ascetismo” de Stalin dos anos
1920. Quanto mais idoso ficava, mais temia por sua vida. Com a aproximação
da viagem, passou a consultar Beria mais amiúde, chegando a algumas vezes
por dia – sobre o sigilo a respeito da data da partida, a espessura da blindagem
dos vagões, a rota através da Polônia.
Em Potsdam, ao trocar cumprimentos com Truman, ao meio-dia de 17 de
julho, Stalin disse: “Por favor, desculpe-me pelo atraso de um dia. Fiquei
ocupado com as conversações com os chineses. Queria voar, mas os médicos
proibiram.” Truman replicou: “Entendo perfeitamente. Tenho muito prazer
em conhecer o Generalíssimo Stalin.” *
Stalin atrasou simplesmente para acentuar sua própria importância. Não foi a
última vez que utilizou tal artifício, como William Hayter, um dos membros
da delegação inglesa e mais tarde embaixador em Moscou, recordou. 6
da Sakalina foi libertado. Stalin fez uma pausa: o que ganharia com o
desembarque? Provavelmente desgastaria as já deterioradas relações com os
Aliados. Cancelou a ordem de invasão de Hokkaido. O chefe do estado-maior
das forças do Extremo Oriente, general S.P. Ivanov, repassou suas instruções:
“Para evitar conflitos e mal-entendidos com nossos aliados, qualquer emprego
de navios ou aviões na direção de Hokkaido está terminantemente proibido.” 14
Para o povo soviético, a vitória sobre o fascismo deu frutos amargos, pois
consolidou ainda mais o papel de Stalin como árbitro messiânico infalível do
seu destino. A vitória acabou transformando-o em verdadeiro deus. Tendo
defendido a liberdade contra o nazismo, o povo soviético teria que esperar
décadas para ficar livre do stalinismo. Como seus antepassados depois da
derrota de Napoleão, as pessoas esperavam por melhoras em suas vidas. O
triunfo, conseguido à custa de milhões de vidas, fez com que nascessem
esperanças vagas. O povo queria viver sem medo e sem ser espicaçado. Se
bem que continuasse a louvar Stalin, a exaltá-lo e glorificá-lo, acreditava que
não haveria mais terror, não mais campanhas sem fim, não mais a escassez
constante em termos de necessidades elementares, que se tornara a grande
calamidade da vida soviética.
Não obstante, a vitória convenceu Stalin de que o estado soviético e suas
instituições eram inabaláveis, de que o sistema soviético era decididamente
viável e de que suas políticas doméstica e externa eram corretas. Cedo deixou
claro que não haveria mudanças na vida interna da nação. O povo deveria
trabalhar para reconstruir a devastada economia do país segundo regras
ditadas por Stalin. Seu discurso aos votantes nas eleições de 10 de fevereiro
de 1946 para o Soviete Supremo não contém uma só palavra sobre
democracia, vontade do povo ou participação do cidadão comum nos
negócios de estado. Foi um pronunciamento só com as antigas fórmulas para
que o povo confiasse em que o partido formularia a política acertada, e,
praticamente, um alerta para que todos votassem. 16
“uma certa quantidade de farinha de trigo fora reservada antes da nova safra.
Eles terão que ser pacientes”.
Voznesensky, que era candidato a membro do Politburo, tinha consciência
mais profunda que qualquer integrante daquele órgão sobre a enormidade da
tarefa. Stalin sempre tivera sentimentos ambivalentes a seu respeito,
reconhecendo que ele era, sem sombra de dúvida, o mais capaz do entourage,
mas considerando inaceitáveis sua independência e sua propensão a expressar
julgamentos bruscos. Apesar disso, no pleno de fevereiro de 1947,
surpreendeu a todos fazendo de Voznesensky membro pleno do Politburo.
O sumário de Voznesensky e o primeiro relatório compilado pela Comissão
Estatal Extraordinária sobre os danos causados pelos nazistas enumeraram
1.710 cidades e municípios destruídos, 70 mil vilas e aldeias queimadas
totalmente – embora muitas delas por mãos soviéticas –, 32 mil explodidas ou
postas fora de serviço, 65 mil quilômetros de trilhos ferroviários destruídos,
cerca de 100 mil fazendas coletivas e estatais devastadas, juntamente com
milhares de máquinas agrícolas e estações de tratores. Vinte e cinco milhões
de pessoas ficaram sem teto e estavam então morando em abrigos, celeiros e
estábulos. O custo direto da invasão era orçado aproximadamente em 700
bilhões de rublos, a preços pré-guerra. Na realidade, o país perdera 30% de
sua riqueza. O padrão de vida era o mais baixo que se pode imaginar.
20
estava fadado a durar diversos anos. Além destes “inimigos”, Stalin estava
convicto de que muitos soldados haviam retornado do front com ideias
revolucionárias.
Ficava patente do relatório de Voznesensky e de outros preparados por
militares que as perdas soviéticas só podiam ser estimadas aproximadamente.
Ao contrário dos alemães, que mantinham dados precisos sobre todas as suas
ações, as estatísticas soviéticas, em particular nos estágios iniciais da guerra,
não foram adequadamente registradas. De acordo com Voznesensky, não seria
possível estabelecer com exatidão, por muitos meses, o custo em vidas
humanas, porém, com os dados que possuía, indicou que ele ultrapassava 15
milhões. O Estado-maior calculou o número de mortos e desaparecidos em
ação em torno de 7,5 milhões e foi esta quantidade que Stalin resolveu aceitar
em 1946, por não desejar falar de um custo mais alto e, assim, macular sua
imagem de líder guerreiro.
Qual foi, então, o custo real? Na sua carta de 1956 ao primeiro-ministro sueco
T. Erlander, Khruschev menciona pela primeira vez um número maior que 20
milhões. Qual a base para tal cálculo que agora se tornou a versão corrente? A
única coisa certa na declaração de Khruschev foi a expressão “maior que”. O
cômputo total só agora está sendo trabalhado.
Meus próprios cálculos, baseados que são em estatísticas dos arquivos
militares, inclusive aquelas sobre prisioneiros de guerra, na análise das listas e
dados do exército sobre perdas nas operações importantes, e levando em
consideração o trabalho de pesquisadores como I.Ya. Vyrodov, Yu.Ye.
Vlasievich, A.Ya. Kvasha e B.V. Sokolov, levaram-me a um número de
perdas de militares em serviço, partisans, guerrilheiros subterrâneos e civis da
ordem de 26 a 27 milhões, dos quais algo em torno de 10 milhões caíram nos
campos de batalha ou morreram no cativeiro. As piores baixas ocorreram
entre os primeiros, em 1941, sobretudo no corpo de oficiais, quando cerca de
3 milhões de homens foram feitos prisioneiros. As perdas em 1942 foram
apenas ligeiramente menores.
A categoria mais nebulosa e politicamente ambígua foi a dos “desaparecidos”.
Nela estão incluídos os que caíram em combate, mas não constaram das listas
oficiais ou das informações sobre baixas, e os que foram capturados ou se
juntaram aos partisans e foram depois reunidos. Alguns deles sucumbiram à
tentação e se alistaram no Exército Russo de Liberação, de Vlasov, ou na
polícia alemã local. No entanto, formaram uma minoria. O destino da grande
maioria dos que desapareceram em ação foi profundamente trágico: ou
morreram de forma desconhecida em combate, ou em campos de
concentração, ou então caíram nas teias das incontáveis “checagens” dos
campos da NKVD e por lá ficaram por muitos e longos anos.
Estimo que a comparação entre perdas alemãs e soviéticas é de 3,2 para 1, em
favor dos alemães. É claro que não se deve perder de vista a bárbara política
alemã de exterminação sistemática da população civil, especialmente eslavos,
judeus, ciganos e outros grupos étnicos. É uma das razões das astronômicas
quantidades soviéticas. As perdas mais significativas ocorreram, com efeito,
entre a população civil, porém, mesmo desconsiderando o início catastrófico
da guerra, as baixas militares soviéticas foram um pouco maiores que as
alemãs, e isto se deveu, pelo menos em parte, à insistência de Stalin em que
os objetivos fossem alcançados “independentemente das perdas”. O
socialismo stalinista sacrifical demandava uma vitória também sacrifical. Tal
fato indiscutível sublinha a grande paciência e tolerância do povo soviético,
mas é também testemunho do fato de que o povo soviético permitiu que Stalin
se transformasse na figura que foi. O papel das massas neste processo não
deve ser subestimado.
Agora que a guerra estava ganha, Stalin podia pensar em relaxar no ar puro do
Cáucaso, e Beria pôs mãos à obra para os preparativos, embora eles fossem
bem menos complicados que os de levar seu líder a Potsdam. O chefe da
segurança em Krasnodar reportou para Merkulov que o elemento
antissoviético em Sochi estava sob vigilância e seria preso na ocasião
oportuna. As matas entre os rios Golovinka e Psou eram vasculhadas. Cento e
quarenta e oito postos de segurança tinham sido estabelecidos entre a estação
ferroviária e a dacha, e todo o itinerário estava protegido. Um trem de força
máxima estava em reserva. Mesmo em seu país, o “pai do povo” temia
24
[51]
Cortina de segredos
S omente agora começamos a nos perguntar como um homem tão pouco
atraente em termos físicos e politicamente repelente como Stalin pôde fazer
toda uma nação amá-lo e transformar a tragédia experimentada pelo país em
triunfo pessoal, e por que milhões de pessoas fora do país o adoravam.
É natural o desejo de separar a ideia de Stalin do socialismo e do povo, e, de
fato, muitos escritores soviéticos tentam agora fazê-lo. Comecei com intenção
semelhante, mas cheguei à conclusão de que era impossível a tentativa sem
distorcer a verdade histórica. Como avaliar os anos 1930 e 1940 imaginando
que o povo e o partido estivessem de alguma forma afastados do líder que
veneravam? Stalin conseguiu se transformar no próprio símbolo do
socialismo quando, na realidade, as conquistas positivas do povo soviético
foram concretizadas a despeito dele, e não graças a ele. Determinado em
recorrer à força para resolver os problemas econômicos, sociais e ideológicos,
Stalin sabia que era vital recrutar a opinião pública, caso desejasse
permanecer no centro do sistema. O aparato do sistema foi o meio que
utilizou para a manipulação de tal objetivo.
O ex-secretário do Comitê Central (e, por breve período, ministro do Exterior)
D.T. Shepilov contou-me que Stalin tinha o costume de convidar figuras
importantes dos estamentos científico e cultural para conversar e que sempre
aproveitava a oportunidade para fazer declarações ideológicas. Certa noite, foi
dito a Shepilov para telefonar para determinado número que era o do
secretário-geral.
“Camarada Shepilov”, ouviu ele, “você está com tempo? Poderia vir até aqui
de imediato?”
Shepilov quase não teve tempo para dizer “É claro”, antes que Stalin
desligasse. Imaginava para onde deveria ir quando o telefone tocou de novo e
lhe foi dito que um automóvel estava a caminho para buscá-lo. Logo depois,
era conduzido através de corredores silenciosos e intermináveis no Kremlin,
passando por seguranças a cada virada.
A conversa demorou mais de uma hora. Stalin começou com um comentário
vago sobre os novos tempos que requeriam nova economia. Os líderes da
indústria, disse ele, tinham nível muito baixo de conhecimento econômico.
Havia necessidade premente de um livro didático bom e popular sobre
economia do socialismo. Shepilov entendeu que lhe era solicitado que o
escrevesse com a ajuda de dois renomados economistas. De forma
obviamente ensaiada, Stalin recitou então as recomendações que o livro
deveria conter: a nacionalização dos meios de produção deveria ser
incrementada, o planejamento melhorado, o plano transformado em lei férrea,
a eficiência do trabalho aprimorada, e diversos outros aspectos de
características similarmente coercitivas.
Stalin falara. Um cronograma apertado foi imposto. Shepilov e seus colegas
foram “encarcerados” numa dacha fora de Moscou. No final de cada semana,
Suslov telefonava para perguntar como as coisas andavam e quando seria
possível ler o manuscrito. “O Camarada Stalin está esperando, não esqueça!”
Manter um estado de tensão permanente na mente pública foi um dos
métodos mais usados por Stalin. Um estado de “guerra civil” potencial ou,
melhor, uma luta permanente contra os “inimigos do povo”, “espiões”,
“céticos”, “cosmopolitas”, “degenerados”, “destruidores”, criava uma
atmosfera na qual sua prescrição de constante vigilância encontrava solo
fértil. Ele pressentiu que, depois da guerra, as pessoas, em especial as que
constituíam a intelligentsia , alimentavam indefinida expectativa por
mudanças. Era como se a guerra as tivesse liberado em parte. De acordo com
Shepilov, Stalin, em consequência, determinou que Zhdanov “desferisse um
golpe contra todas as obras que não apresentassem conteúdo ideológico.
Houve marcante afastamento dos princípios de classe na literatura criativa.
Cheque uma ou duas revistas. Especialmente em Leningrado”.
O Comitê Central expediu as devidas instruções para as revistas Zvezda e
Leningrad , e Zhdanov voou para a antiga capital. Lá, declarou que a questão
tinha sido levantada por Stalin no Comitê Central, “o qual vem
acompanhando o fato nas revistas, propôs que discutíssemos as deficiências
nas lideranças de tais revistas, participou dos debates e, incidentalmente,
proporcionou a base para a decisão”. Ao nomear os escritores cujas obras
encarava como “estranhas à literatura soviética”, Stalin estava levando a
sociedade pós-guerra de volta ao clima de suspeita e medo, e reativando a
caça às bruxas que grassara nos anos 1930.
Para ele, a ideia da luta de classes era uma regra primordial. Depois da
destruição dos capitalistas e dos proprietários de terra, ele descobriu outra
classe para aniquilar, a dos kulaks. Posteriormente, sem inimigos a enfrentar,
engendrou uma fórmula que garantiria a existência de tais inimigos. Sentado
no Kremlin já bem tarde da noite, na semana que antecedeu o sinistro pleno
de fevereiro-março de 1937, ele buscou a definição ou a argumentação que
faria da condição de luta dentro da sociedade uma característica permanente.
As incontáveis alterações e emendas na minuta do discurso mostram o quão
exaustivamente trabalhou naquilo. Como já vimos, o resultado ficou
registrado nas seguintes palavras:
Quanto mais avançarmos, quanto maior o sucesso, mais exasperados se tornarão os
remanescentes das classes exploradoras destruídas, mais cedo apelarão para formas extremadas
de luta, mais difamarão o estado soviético e mais recorrerão aos meios desesperados como
solução última dos condenados… Esmagaremos nossos inimigos no futuro, como o fazemos
agora e o fizemos no passado. 26
Stalin, de fato, fez tudo o que era possível para transformar a ideia da luta de
classes em força dominante na política, ideologia, cultura e na vida comum.
Era como se não pudesse descansar caso não ouvisse as convulsões das
vítimas de tal ideia. Depois da guerra, quando o mundo deu sensível virada
para a esquerda, a impressão foi a de que a história justificara Stalin. Muitos
acharam que o arado de ferro do socialismo ia começar de novo a revolver o
solo. As pessoas não pensavam ainda globalmente, tampouco estavam
conscientes por completo da espada de Dâmocles nuclear suspensa sobre suas
cabeças.
Os primeiros discursos pós-guerra de Stalin foram sobre a recuperação da
economia, como sempre fazendo da indústria pesada a principal entre as
prioridades, e sobre a retomada da agricultura, cuja condição era
extremamente precária. A safra do primeiro ano depois da guerra foi ruim. A
interrupção da importação de grãos dos EUA, acoplada com a baixa produção
da parte europeia do país, criou uma situação crítica. A abolição dos cartões
de racionamento foi adiada até o outono de 1947. As safras também não
tinham sido boas em 1943, mas, naquela ocasião, os americanos abasteciam o
front, ao passo que a população civil, como sempre, aguentava estoicamente o
sacrifício. Em abril de 1944, Beria mostrou a Stalin um relatório de oito
páginas sobre a situação em Chita, Cazaquistão. O comissário do interior
daquela república, Bogdanov, declarou que a má colheita de 1943 causara
dificuldades sérias: milhares de pessoas estavam com os abdomens inchados
de fome e muitas morriam, particularmente os exilados políticos. O relato de
Bogdanov descreveu histórias de suicídios, de camponeses se alimentando de
animais mortos e lixo, comendo gatos e cães, e até mesmo de camponeses de
uma fazenda coletiva esquartejando um cavalo morto para dividir entre eles
algo para comer. Apesar disto, naquele ano, 1.300 quilos de cereais por
29
hectare foram coletados pelo estado. Nem o rádio nem a imprensa escrita
mencionavam a fome, e entre a pilha de documentos que consultei, não existe
um só que indique qualquer comentário de Stalin sobre atitude construtiva em
relação às agruras enfrentadas pelo país.
O secretário-geral, aparentemente, não mantinha um diário e era cuidadoso
com o que escrevia. Muitos documentos foram destruídos por ordens suas, 30
como, por exemplo, nas oportunidades em que relatórios foram feitos sobre a
execução de ordens que expediu à NKVD. Por outro lado, restaram muitos
documentos no arquivo pessoal de Stalin. Existe a cópia de um deles, datado
de 1923 e intitulado “Detalhes Biográficos de I.V. Stalin”, localizado no
Comissariado das Nacionalidades. Não há indicações sobre o autor e o
objetivo do documento, mas parece provável que foi preparado sob a
orientação de Stalin.
A pasta oferece um relato minucioso dos “serviços revolucionários” de Stalin
antes da Revolução de Outubro de 1917:
Durante os dias de outubro, I.V. Stalin foi um de um grupo de cinco (um coletivo) cuja tarefa era
proporcionar liderança política ao levante. […] Da mesma forma que seu trabalho pré-
revolucionário, a obra revolucionária atual de Stalin é de enorme importância. Distinguindo-se
por sua incansável energia, mente excepcional e privilegiada e determinação implacável, o
Camarada Stalin é uma das molas principais, despercebidas e realmente de aço da revolução, a
qual, com sua força invencível, está transformando a revolução russa num Outubro de âmbito
mundial. Antigo seguidor de Lenin, ele absorveu melhor do que ninguém os métodos e ideias do
líder sobre a atividade prática.
Graças a isto, ele hoje secunda brilhantemente Lenin na esfera não só da atividade partidária
como também na construção do Estado. 31
Outro mistério que persiste é o destino do filho mais velho de Stalin. Existe
uma variedade de evidências que sinalizam a organização de diversas
tentativas para que escapasse do cativeiro alemão, inclusive o depoimento de
Dolores Ibarruri já citado. Os alemães, no entanto, passaram a falar cada vez
menos sobre Yakov e acabaram silenciando por completo. Stalin,
provavelmente, não estava inteiramente seguro sobre a sorte do filho até que
recebeu um relatório, datado de 5 de março de 1945 e assinado por Beria, que
dizia:
No final de janeiro deste ano, um grupo de oficiais iugoslavos foi libertado do campo de
concentração alemão pelo primeiro front bielorrusso. Entre eles estava o miliciano iugoslavo
general Stefanovic, que fez o seguinte relato:
Stalin tinha que saber sobre tudo. Até os formulários recebidos de volta a
respeito do censo de 1930, exibindo os nomes das famílias dos funcionários
mais categorizados, tinham que lhe ser mostrados. Só ele sabia por que ticou
certos nomes com fortes sinais em vermelho:
Beria, Nina Teimuradovna; georgiana, cientista, filho Sergei de 14 anos. Kaganovich, Maria
Markovna; filha Maya e filho Yuri.Voroshilova, Yekaterina Davidovna. Zhemchuzhina, Polina
Semenovna; e as filhas Svetlana Vyacheslavovna, Rita Aronovna Zhemchuzhina. Andreyeva –
Dora Moiseyevna Khazan; filha Natalya Andreyevna.
[52]
Um acesso de violência
B em antes do septuagésimo aniversário de Stalin, em 1949, Malenkov
instigou o Politburo a considerar uma longa lista de medidas tendentes a
marcá-lo com uma celebração notável. Não seria apenas a oportunidade para
a perpetuação do líder com novos monumentos ou com seu nome em mais
fábricas e construções, mas também para relatórios de todos os setores.
Por esses relatórios, Stalin ficou sabendo que quase todas as fábricas
destruídas estavam reconstruídas e centenas de novas instaladas. A economia
progredia em ritmo acelerado. Caracteristicamente, Stalin havia exigido cada
vez maiores esforços na indústria, para a qual foi alocada grande parte dos
investimentos financeiros e da qual se esperava substancial produção, embora
não de melhor qualidade. Nem a agricultura nem os bens de consumo tinham
prioridade, na avaliação de Stalin. A agricultura, portanto, declinou. Não
foram oferecidos incentivos aos granjeiros coletivos, mas eles eram forçados
a pagar taxas crescentes em espécie ou em dinheiro por qualquer coisa viva
que existisse na coletividade, inclusive árvores frutíferas; a área de cultivo
particular foi reduzida. Os camponeses constituíam um grupo sem direitos,
sem possibilidade de protesto ou de mudar o que quer que fosse. Toda a safra
era simbólica ou ridiculamente paga. Os jovens passaram a encontrar
desculpas para abandonar o campo, apinhando as escolas técnicas e
constituindo mão de obra barata para a construção civil e o trabalho nas
madeireiras. As fazendas coletivas não decidiam nada por si mesmas, tudo era
resolvido pelas autoridades, do tempo da colheita até a eleição do novo
presidente da fazenda.
Durante o ano de seu septuagésimo aniversário, por outro lado, Stalin tomou
uma providência que ainda é popular entre os mais idosos que dela se
lembram. Reduziu os preços de uma lista de bens de consumo: 10% em pão,
farinha de trigo, carne e derivados e lã; 28% na vodka; 20% nos artigos de
toucador e nas bicicletas; 25% nos aparelhos de televisão; e 30% nos relógios
de pulso e de mesa. Os preços nos restaurantes, nas casas de chá e noutros
locais públicos de alimentação foram reduzidos correspondentemente. 40
Fiquei literalmente arrasada com o decreto do Comitê Central sobre as revistas Zvezda e
Leningrad . […] Como pôde isto acontecer, quando todos gostavam tanto de Zoshchenko?
Gorky, Tikhonov, [Marietta] Shaginyan, A.A. Kuznetsov, Maisky, todos eles diziam que o
amavam. Nunca houve a questão de ele abandonar Leningrado […] Trabalhava num livro sobre
partisans ao longo de todo o verão de 44. Não há vestígio de injúria ou malevolência em seus
livros.
Evidentemente, Stalin leu a carta, pois ela exibe suas marcas em lápis
vermelho, e deve ter percebido que a esposa não era a única pessoa que
rejeitava sua opinião sobre Zoshchenko. Contudo, surpreendentemente, afora
a expulsão do sindicato dos escritores – punição severa em si mesma, de vez
que o sindicato proporcionava o acesso de um escritor à publicação, ou seja,
ao seu ganha-pão – Stalin não foi além do terror psicológico sobre
Zoshchenko e sua família.
Dois anos depois do lançamento da campanha ideológica em Leningrado,
Stalin deu-lhe continuidade com um violento ataque político e punitivo, que
muitos viram como primeiro ato da reencenação da repressão em massa dos
anos 1930. Em meados de fevereiro de 1949, Malenkov foi instruído por
Stalin e enviado a Leningrado. O pretexto da missão foi uma alegada
inadequação de procedimentos durante a conferência do partido na cidade.
Acontecera uma situação típica: a despeito de terem recebido votos
contrários, alguns líderes partidários provinciais, como P.S. Popkov, G.F.
Badaev, Ya.F. Kapustin e P.G. Lazutin, foram declarados eleitos por
unanimidade pelo presidente da conferência A.Ya. Tikhonov. Um dos
membros do comitê eleitoral, por causa disto, escreveu uma carta anônima ao
Comitê Central, motivando uma ríspida resposta de Stalin, ele mesmo um
mestre do passado na manipulação de eleições, como ocorreu, por exemplo,
em 1934, no XVII Congresso do partido. Disse a Malenkov que “têm sido
muitos os sinais de perigo a respeito da liderança de Leningrado para que não
reajamos”. Malenkov deveria “ir para lá e dar uma boa olhada no que se
passava. O Camarada Beria tem mais informações”. Malenkov tomou o trem
naquela mesma noite.
Os “sinais” partidos de Leningrado alegavam que, com a conivência do
secretário do Comitê Central, A.A. Kuznetsov, o chefe do partido local não
estava levando em conta as autoridades centrais do partido. O principal fato
era que, em janeiro de 1948, fora organizado um mercado por atacado em
Leningrado sem a permissão do centro. Numa sessão conjunta do birô
regional do partido e do comitê partidário da cidade, Malenkov, pupilo
diligente de Stalin que era, enumerou um “erro” atrás do outro numa fieira de
acusações. A plateia ouvia em silêncio depressivo, enquanto Malenkov,
crescentemente inflamado, disparava incriminações. Descreveu o mercado
por atacado como iniciativa antipartidária, inspirada por um grupo em
oposição à organização local do Comitê Central. O pior estava por vir.
Seguindo a linha estabelecida em Moscou, Malenkov citou declarações
infelizes de P.S. Popkov, um líder local, dizendo que elas representavam a
tentativa de criar um Partido Comunista da Rússia com objetivos de longo
alcance. Todos no salão perceberam que o discurso de Malenkov era
indicação de maus augúrios.
Contudo, eles não sabiam que seu ex-secretário Kuznetsov, recentemente
promovido a secretário do Comitê Central, já fora destituído da função havia
uma semana. Naturalmente, toda a liderança local perdeu os cargos depois do
pronunciamento de Malenkov, mas aquilo foi só o começo. Um “caso” foi
rapidamente fabricado contra cada funcionário suspeito, e efetuadas prisões.
“Espiões” foram identificados, por exemplo Kapustin, bem como
“degenerados”, como Popkov, e “inspiradores de linha antipartidária”, como
Kuznetsov.
Em março de 1949, N.A. Voznesensky, outro comunista de Leningrado, foi
afastado do Politburo. Organizador fundamental da economia de tempo de
guerra, acadêmico, sem papas na língua e homem de caráter impoluto,
Voznesensky passara a ser considerado muito perigoso para Stalin e, com a
ajuda de Beria, um processo gigantesco e totalmente sem fundamento foi
engendrado contra ele por Kruglov, Abakumov e Goglidze. Foram procedidos
interrogatórios com o único propósito de arrancar uma confissão de atividade
antipartidária e antiestado. Depois de lançar a enorme provocação, Malenkov
podia esfregar as mãos satisfeito: a vontade de Stalin fora concretizada, ele
fizera um trabalho completo. Tal como seu amigo íntimo Beria, Malenkov
não gostava de Voznesensky e de Kuznetsov. Estava em curso a caça às
bruxas e todos esperaram o pior, especialmente quando ex-funcionários de
Leningrado começaram a ser apanhados em outras repúblicas, para onde
haviam sido transferidos a fim de desempenharem diversas funções.
Por que Stalin desencadeou esta ação criminosa? Por que na véspera de seu
septuagésimo aniversário? Por que dava seguimento à campanha ideológica
de agosto de 1946 com outra mais aterradora e punitiva, dois anos e meio
mais tarde? Só ele sabia a resposta correta para tais perguntas, porém, com
base em documentos, podemos deduzir o seguinte.
Stalin não tolerava o pensamento livre e independente. Voznesensky e
Kuznetsov o haviam glorificado, tanto verbalmente como por escrito, mas o
fato de se mostrarem mais independentes que os outros deixava Stalin em
guarda contra eles. Por algum tempo, ignorou as calúnias levantadas por
Malenkov e Beria e, na verdade, fez até referências públicas elogiosas aos
dois leningradenses, e é mesmo possível que eles tenham se considerado
prováveis sucessores, em vista da avançada idade do líder. Mas isto não era
aceito pelos membros da camarilha stalinista de Moscou. Em sucessivos
relatórios secretos a Stalin, realçaram que, antes da guerra, Voznesensky não
descobrira um só “inimigo” no Gosplan e talvez os tivesse protegido,
enquanto Beria queixava-se de que, na ocasião em que ficara encarregado das
indústrias química e metalúrgica como presidente do Gosplan, Voznesensky
rebaixara patentemente as normas de produção daqueles setores, ao passo que
ele, Beria, elevara as da indústria madeireira.
Na ocasião, Stalin não deu atenção a tudo aquilo. No entanto, não ficou
satisfeito com o discurso que Voznesensky fez no Politburo, apresentando
uma série de argumentos convincentes contra a imposição de novas taxas
sobre os fazendeiros coletivos. Não lhe agradou também o fato de Kuznetsov,
responsável pelos quadros do Comitê Central, ter expressado sua intenção de
exercer controle mais cerrado sobre o comissariado das Questões Internas e
Segurança Estatal. Chegou igualmente ao conhecimento de Stalin que
Kuznetsov dissera que a investigação sobre o caso Kirov não revelara os
verdadeiros inspiradores do crime.
Para Stalin, os principais atributos de qualquer funcionário, não importasse
quão valioso ou essencial, eram a confiança que infundiam e a lealdade a ele.
Já então, não só duvidava dos obstinados leningradenses, mas os via como
potenciais inimigos. De acordo com S.I. Semin, que era gerente
departamental no Gosplan, Voznesensky empenhou extraordinária energia e
cuidadosa preparação no planejamento da economia nacional. Malgrado o
caráter severamente administrativo do sistema econômico, Voznesensky
procurara sempre que possível levar os trabalhadores para o processo de
planejamento e administração, como também estabelecer objetivos para cada
empreitada. Jamais gozara de dispensas ou férias. Até então, fora
provavelmente o maior economista da liderança soviética depois de Bukharin.
Embora, antes de sua prisão, Voznesensky e outros leningradenses tivessem
enviado uma nota a Stalin declarando total inocência, o líder não hesitou. De
início, é verdade, desejou transferir Voznesensky para a chefia do Instituto
Marx-Engels-Lenin, mas depois mudou de ideia, decidindo, em vez disto,
deixar que todo o grupo de Leningrado experimentasse junto a taça de fel. O
julgamento, que teve lugar em setembro de 1950 na Casa dos Oficiais, no
Bulevar Liteiny, em Leningrado, foi conduzido de acordo com as ordens de
Stalin. Quase duzentas pessoas foram implicadas, inclusive N.A.
Voznesensky, A.A. Kuznetsov, P.S. Popkov, Ya.F. Kapustin, M.I. Rodionov,
todos os quais foram mortos, sorte pouco depois partilhada por G.F. Badaev,
I.S. Kharitonov, P.I. Kabatkin, P.I. Levin, M.V. Basov, A.D. Verbitsky, N.V.
Solovyov, A.I. Burlin, V.I. Ivanov, M.N. Nikitin, V.P. Galkin, M.I. Safonov,
P.A. Chursin e A.T. Bondarenko. 43
Nota
* Sigla em russo da Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey , repartição central dos
campos de trabalho corretivo. [N.T.]
[53]
O líder envelhece
A proximava-se o septuagésimo aniversário de Stalin. Ele sabia que, do
Politburo para baixo, todos tomavam providências frenéticas. Chamou
Malenkov e disse: “Nem pense em me outorgar outra Estrela!”
“Mas, Camarada Stalin”, protestou Malenkov, “num jubileu como este, o
povo não entenderia…”
“Deixe o povo fora disto. Não tenho intenção de discutir o assunto. Não
insista! Entendeu?”
“É claro, Camarada Stalin, só que os membros do Politburo…”
Stalin o interrompeu, deixando claro que a questão estava encerrada e
determinou, em vez disso, que ele lhe mostrasse o cenário da celebração que
teria lugar no Teatro Bolshoi.
A menção à “Estrela” não foi acidental. Depois do Desfile da Vitória e da
recepção aos comandantes de front, em junho de 1945, um grupo de
marechais sugeriu que deveriam assinalar a “extraordinária contribuição do
líder” conferindo-lhe a mais alta distinção do país, a de Herói da União
Soviética. Referiram-se ao fato de que, por ocasião de seu sexagésimo
aniversário, Stalin fora agraciado com o título de Herói do Trabalho
Socialista, e que, durante a guerra, recebera três condecorações, a Ordem da
Vitória nº 3 – as de nº 1 e nº 2 tinham sido para Zhukov e Tolbukhin –, a
Suvorov de 1ª Classe e a Bandeira Vermelha, que lhe foram conferidas “por
serviço no Exército Vermelho”.
Durante o dia seguinte e metade do outro, Molotov e Malenkov haviam
debatido a matéria com seus colegas e, em 26 de junho, dois decretos foram
expedidos pelo Soviete Supremo ordenando que o título de Herói da União
Soviética e uma segunda Ordem da Vitória fossem conferidos ao Marechal da
União Soviética I.V. Stalin. No mesmo dia, o título de Generalíssimo da
União Soviética foi criado e, no dia 27, outorgado a Stalin. Aquela foi,
provavelmente, a única ocasião em que desobedeceram a seu chefe. Como de
hábito antes do café, naquela manhã Stalin abriu seu exemplar do Pravda e
ficou enfurecido. Não fora consultado! Nada lhe perguntaram! Tão logo
chegou ao Kremlin, convocou Molotov, Malenkov, Beria, Kalinin e Zhdanov
e passou-lhes uma descompostura. Kalinin, cuja repartição era nominalmente
responsável, e Malenkov, que fracassou em conter o impulso de lealdade dos
camaradas, foram os que ficaram mais nervosos. Beria e Zhdanov sabiam que
a raiva do chefe era falsa.
Stalin fora alçado a glória tão elevada que as condecorações destinadas aos
mortais comuns, ávidos por recebê-las, nada significavam para ele, ou melhor,
o colocavam no mesmo nível dos outros. Detentor do poder supremo, o líder
que se cobrisse de medalhas e ordens só se desvalorizaria.
Beria, que sabia melhor que os outros o que seu mestre gostava de ouvir, no
seu artigo “O grande inspirador e organizador das vitórias comunistas”
escreveu: “Nosso líder genial combina simplicidade, modéstia, excepcional
atração pessoal, implacabilidade para com os inimigos do comunismo,
sensibilidade e preocupação paternal com o povo. Ele demonstra extrema e
inerente clareza de pensamento, calma grandeza de caráter, desprezo e
impaciência com qualquer espécie de espalhafato ou efeitos exteriores.” O 51
Respondi: “Eles ainda não terminaram com a instalação do equipamento.” “ Quem não
terminou?” E, sem esperar pela resposta, disparou para um assistente: “Ligue-me com o gerente
do projeto.”
Três ou quatro minutos mais tarde, uma voz distante foi ouvida ao telefone diretamente da bacia
do Donets. Beria, de pronto, vociferou: “Alô, aqui é Beria. Por que o trabalho não terminou a
tempo? A instalação tem que estar completa às oito horas da manhã! Boa noite!” Pode-se bem
imaginar que tipo de boa noite o gerente teve! Beria disse então ao assistente para colocar na
linha o chefe da administração, a quem disse: “Já determinei ao fulano (Zademidko não
conseguiu lembrar-se do nome) para terminar o trabalho às oito da manhã. Se ele não completar,
prenda-o no seu porão. Adeus!”
Naquela época, Stalin escreveu bastante sobre a China, e suas obras coligidas
contêm cerca de uma dúzia de peças sobre a revolução chinesa, algumas delas
politicamente muito primitivas. Por exemplo, escreveu que “a revolução no
Oriente dará um impulso decisivo à crise revolucionária no Ocidente. Atacado
dos dois lados, bem como pela frente e pela retaguarda, o imperialismo terá
de ver que está fadado a perecer”. De forma característica, ele adotava
72
Deve ser mencionado que a posição de Stalin sobre a questão chinesa foi
vigorosamente atacada por Trotsky. Na minuta de seu discurso para o 8º Pleno
do comitê executivo do Comintern, em maio de 1927, Trotsky escrevera: “As
teses de Stalin só podem sobreviver enquanto o partido for privado da
oportunidade de ouvir críticas a elas, mas a imprensa partidária sob Bukharin,
em vez de publicar opiniões genuínas, impinge-nos seu próprio pensamento
[…] As teses de Stalin, falsas no âmago, são declaradas praticamente
inatacáveis.” O próprio Trotsky não estava certo a respeito de tudo, mas
74
A situação foi também um tanto inusitada para Mao, que jamais saíra da
China, não participara do trabalho do Comintern e cujos vínculos com os
outros partidos comunistas eram mínimos. Os dois homens que se
defrontaram na mesa de negociações também pensavam de forma diferente,
tinham escalas de valores desiguais e representavam civilizações diferentes.
Até mesmo seu marxismo tinha pouco em comum, uma vez que Mao gostava
de mesclar o seu com confucionismo, ao passo que Stalin se restringia a citar
suas próprias obras. Todavia, ambos eram pragmáticos.
Enquanto Stalin observava seu convidado com curiosidade e mal escondida
desconfiança, Mao, de súbito, desviava a conversa sobre os problemas
correntes para regalar o anfitrião com parábolas do mundo misterioso e
mágico do folclore chinês. Contou a Stalin a lenda de Yui-Gun que moveu
montanhas. Em tempos passados, disse ele, vivia nas montanhas do norte da
China um homem muito idoso chamado Yui-Gun, que quer dizer “o velho
tolo”. O caminho de sua casa para o sul era bloqueado por duas montanhas
muito altas e Yui-Gun decidiu removê-las com a ajuda dos filhos e utilizando
enxadas. Outro homem idoso de nome Dzhi-Sou, ou seja, “o velho sábio”, os
viu trabalhando e, sorrindo, disse-lhes: “Isto é uma tolice, como você pensa
que irá acabar com montanhas tão altas?” Yui-Gun replicou: “Vou morrer,
mas meus filhos ficarão, eles morrerão e meus netos permanecerão, e assim as
gerações se seguirão em sucessão interminável. Estas montanhas são de fato
altas, mas não crescerão mais do que isto; ficarão menores seja qual for a
quantidade que delas retiremos, então, por que não seremos, afinal, capazes
de acabar com elas?” E Yui-Gun trabalhou todos os dias na escavação. Tal
fato sensibilizou Deus que enviou seus santos à Terra e eles levaram embora
as montanhas. 76
A história tinha a intenção de ilustrar o fato de que a China estava sob o peso
de duas montanhas – o imperialismo e o feudalismo – e o partido comunista
da China se dispunha a removê-las. Deus era representado pelo povo chinês
que fora sensibilizado para ajudá-lo. Stalin e Mao concordaram que mais
deveria ser feito além da mera remoção dessas montanhas. Segundo
Fedorenko, as conversas eram longas e sem pressa, enquanto os dois líderes
saboreavam excelente comida, sorvendo goles de vinho seco e discorrendo
sobre as questões internacionais, econômicas, ideológicas e militares. No
curso destas refeições noturnas, também debateram o tratado de amizade,
união e assistência mútua que estava sendo preparado. De acordo com
Gromyko, entretanto, os dois conseguiram apenas uma troca esporádica de
ideias, e sua impressão foi a de que tinham pouco a dizer um ao outro.
Stalin desconfiava de Mao havia muito tempo, influenciado sem dúvida pelos
relatórios de que o líder chinês era hostil aos comunistas chineses treinados
por Moscou, e também pelo fato de Mao nada ter feito quando Moscou e
Stalingrado ficaram sob ameaça durante a guerra. Contudo, gradualmente, a
atitude de Stalin em relação aos chineses foi se alterando, à proporção que
Pequim se mostrava mais antiamericana. A Guerra da Coreia, por certo,
fortaleceu a confiança de Stalin em Mao, colocando assim as relações sino-
soviéticas como um todo numa situação positiva. Sem dúvida, os sucessores
de Stalin e o próprio Mao poderiam ter feito bem mais para preservar as boas
relações dos anos 1950, e uma das razões da deterioração foi certamente a
reação negativa de Mao à denúncia que Khruschev fez de Stalin, em 1956.
A Guerra Fria foi sentida não apenas no Ocidente, mas também no Oriente. O
desdobramento de tropas americanas e soviéticas na Coreia, logo após a
guerra, predeterminou a criação de estruturas políticas diferentes nas duas
partes da península, norte e sul. Depois das eleições na Coreia do Sul, em 10
de maio de 1948, foram criados órgãos legislativos e executivos e, em 25 de
agosto do mesmo ano, foram realizadas eleições na Coreia do Norte. Dois
estados surgiram, dividindo assim, artificialmente, a nação coreana em duas.
As tropas soviéticas se retiraram do norte, seguidas pela retirada das forças
americanas no sul. Cada um dos lados achava que, nos dois casos, o governo
era apoiado pela maioria da população. Infelizmente, parece claro que o
conflito começou porque cada um deles pretendia estender sua autoridade
sobre toda a península.
De fontes indiretas, pude estabelecer que Stalin tinha uma opinião
extremamente cautelosa sobre os eventos na Coreia e, desde o início, fez
todas as tentativas para evitar a confrontação direta entre URSS e EUA. Mao
foi mais decidido. Durante os encontros entre novembro de 1949 e fevereiro
de 1950, os dois líderes debateram com frequência sobre a Coreia. O ponto de
vista de Stalin era o de que os americanos tinham se afastado tanto do acordo
de Potsdam sobre a Coreia que seria difícil criar um estado unitário sem
grandes dificuldades. Era particularmente cético a respeito da ideia de
protetorado sobre a Coreia, da mesma forma que o era quanto a eleições
“livres”. Afinal de contas, existia uma população significativamente maior no
sul, onde estavam sediadas as forças americanas. O paralelo 38 foi fixado sem
qualquer base política, uma mera demarcação entre as tropas soviéticas e
americanas.
Quando, no entanto, trinta divisões chinesas se movimentaram, a situação na
península se alterou marcadamente. As forças chinesas e norte-coreanas não
só expulsaram as tropas dos EUA ao norte do paralelo 38 como também
conseguiram avançar cerca de 100km ao sul do paralelo. À medida que o
moral americano declinava, Stalin sentia que o momento mais perigoso se
aproximava, ou seja, os EUA poderiam recorrer à medida extrema do ataque
nuclear. O general MacArthur propugnou pelo bombardeio da Manchúria, e
Truman insinuou que a opção nuclear não estava descartada. A ameaça de
uma Terceira Guerra Mundial parecia viável, mas nem Stalin nem Mao
queriam enfrentar os Estados Unidos havendo a possibilidade de derrota.
Começaram as negociações tendo como pano de fundo a batalha constante.
Stalin reconheceu que a única saída para o impasse seria alguma forma de
meio-termo. Todavia, o acordo só foi alcançado em julho de 1953, seis meses
depois de sua morte.
Se Stalin absorveu as lições da Guerra da Coreia é difícil dizer. Não obstante,
uma coisa é certa: no mundo moderno, o conflito armado tende sempre para o
impasse. Isto ficou demonstrado na Coreia, no Vietnam e no Afeganistão. A
Guerra da Coreia mostrou ainda que a América não era onipotente e também
levou Stalin, depois do “banho de água fria” que recebeu dos iugoslavos, a
reverter para sua cautela costumeira.
PARTE XI
As relíquias do stalinismo
César não quis celebrar seu triunfo por sobre o sofrimento de seu país.
Plutarco
[55]
Anomalia histórica
S talin, com frequência, pensou em ter sua Breve biografia substituída por
um estudo monumental. Diversos sinais indicam-no, inclusive suas ordens
para que os arquivos fossem “pesquisados”, seus comentários ocasionais com
Zhdanov e Poskrebyshev, e suas constantes solicitações a G.F. Alexandrov,
M.B. Mitin e P.N. Pospelov, compiladores de suas biografias oficiais, para
que dessem realce à historiografia partidária e ao “papel dos pupilos de
Lenin”. Cada vez mais, então, se recordava do passado, voltando em diversas
ocasiões à virada do século, à luta pós-Outubro, ao nome das pessoas cujas
vidas havia destruído. Por vezes, era levado ao passado por parentes de ex-
camaradas. Em determinadas ocasiões, depois de despachos de rotina, Beria
mostrava-lhe uma lista de cartas pessoais de parentes de “inimigos do povo”
executados ou exilados. Stalin, normalmente, lia por alto a lista e a devolvia
sem uma palavra. Beria olhava para o mestre como quem tinha entendido,
recolhia os papéis e se retirava.
Noutras oportunidades, ele solicitava informações a Beria sobre um
determinado suplicante. Por exemplo, existe carta de uma Jadwiga Iosifovna,
parente de Felix Dzerzhinsky, o fundador da Cheka, indagando sobre sua
mãe, Jadwiga Genrikhovna Dzerzhinskaya, que fora condenada pela Corte
Especial e que definhava havia anos em campos de Karaganda. A filha
escreveu que sua mãe “se encontrava muito doente, acometida de tuberculose,
escorbuto e brucelose. Estava em condições muito precárias”. Caso 1
semelhante foi o da filha de Radek, Sofia, que escreveu a Stalin dizendo que
um ano depois que seu pai fora condenado, em 30 de janeiro de 1937, ela e
sua mãe tinham sido exiladas para Astrakhan por cinco anos. “Em Astrakhan,
minha mãe foi presa de novo e sentenciada a oito anos nos campos de
Temnikov [no norte] onde morreu.” Em novembro de 1941, Sofia foi exilada
de Astrakhan para o Cazaquistão. Seu exílio terminou em junho de 1942.
Continuou ela: “Também sou um ser humano: se sou filha de um inimigo do
povo isto significa também que sou inimiga? Eu tinha 17 anos quando meu
pai foi condenado, em 1937, e, desde então, sou rotulada de inimiga. Sou
formada, mas não tenho onde aplicar meus conhecimentos em Chelkar. Ainda
não possuo passaporte interno. O chefe da NKVD em Chelkar, o Camarada
Ivanov, não responde aos meus requerimentos. Ajude-me a resgatar os crimes
de meu pai!” Stalin deixava que Beria administrasse estes problemas da
2
de prisioneiros, contudo, Beria continuava lhe dizendo que não era possível
satisfazer a todas as demandas dos ministérios por mão de obra proveniente
desses campos.
Como se encaixava a ideologia marxista-leninista neste quadro? Por mais
remotos que fossem em relação às preocupações do século XX, muitos de
seus dogmas foram tomados como verdades pelo regime soviético desde o
momento de sua formulação. Nos anos 1920, era dito com frequência que “a
classe operária não pode cometer erros”, ou que “o partido não pode cometer
enganos”, mas ambos cometiam.
Muitos de tais erros foram apontados bem cedo. Em novembro de 1917, no
seu jornal Novaya Zhizn (“Vida Nova”), Gorki publicou um artigo intitulado
“Para a atenção dos trabalhadores”, no qual escreveu:
Tendo forçado o proletariado a concordar com a destruição da liberdade de imprensa, Lenin e
seus adeptos tornaram legal para os inimigos da democracia calar a boca dos outros, ameaçando
com a fome e a perseguição quem não concordasse com o despotismo de Lenin e Trotsky; esses
“líderes” estão justificando um despotismo de autoridade do tipo contra o qual os melhores
elementos do país vêm lutando com veemência por tanto tempo. 4
Tendo, em meados dos anos 1930, desviado sua atenção principal do Comitê
Central para a NKVD e para o exército, Stalin, ao fim da guerra, foi
particularmente pródigo com as medalhas e ordens que conferiu aos oficiais
mais antigos daquelas armas. Beria, que foi feito marechal da União Soviética
em 1945, recebeu muitas outras altas honras militares e, em 7 de julho de
1945, Stalin aprovou a solicitação de Beria ao ministério para promover sete
chefes de polícia e de segurança ao posto de coronel-general: V.S. Abakumov,
S.N. Kruglov, I.A. Serov, B.Z. Kobulov, V.V. Chernyshev, S.A. Goglidze e
K.A. Pavlov. Generais da ativa no front jamais receberam tais sinais de amor
9
Acadêmico Lysenko, T.D. – não filiado ao partido, diretor do Instituto de Genética. Presidente do
Instituto de Ciência Agrícola, por duas vencedor do Prêmio Stalin. O acadêmico Lysenko não
desfruta de respeito, inclusive do presidente [da Academia] Komarov. Todos o culpam pela
prisão de N.I. Vavilov. 10
Nota
* Lei contra a disseminação de propaganda antissoviética, que foi largamente interpretada como
inclusiva de qualquer crítica ao sistema, falada, escrita ou mesmo insinuada.
[56]
Dogmas mumificados
O dogmatismo foi um dos mais importantes pilares do stalinismo. Era um
atributo capaz de gradualmente conduzir o estudo da sociedade e, na ocasião
devida, a própria sociedade a um beco intelectual e psicológico sem saída.
Velho mestre do pensamento dogmático, Stalin sabia como matar as
proposições marxistas e mumificá-las em clichês deformados.
Típico do tirano, Stalin selecionou quais das proposições de Marx deveriam
ser mumificadas; ele próprio determinou o que poderia ou não ser publicado
das obras dos fundadores do marxismo. Os arquivos registram muitos
requerimentos para publicar essa carta de Lenin ou aquele fragmento de um
manuscrito de Marx ou Engels. Em junho de 1939, por exemplo, M.B. Mitin,
diretor do Instituto Marx-Engels-Lenin, pediu a autorização de Stalin para
publicar duas cartas de Lenin para Inessa Armand na edição seguinte do
Bolshevik . Tais cartas expressavam a reação hostil de Lenin à formação do
Governo Provisório em Petrogrado, em seguida à derrubada do czar, em 1917.
Stalin escreveu “Nenhuma objeção”. Mas o Instituto nem sempre conseguiu
permissão com tanta facilidade. Em julho de 1940, Zhdanov, Mitin e
Pospelov ficaram em dúvida sobre um artigo de Engels, “Sobre a política
externa do czarismo russo” e o submeteram à opinião de Stalin. O secretário-
geral leu o trabalho e fez os seguintes comentários à margem do documento:
“Vileza agressiva não é monopólio dos czares russos”, “ele exagera o papel da
política externa na Rússia”, “ao atacar a política externa czarista, [Engels]
resolveu privá-la de qualquer crédito aos olhos da opinião pública europeia”.
E concluiu: “Considerando tudo isto, será que vale a pena publicar o artigo de
Engels em nosso órgão militante, o Bolshevik , seja como artigo de fundo em
todos os aspectos, seja como artigo profundamente instrutivo, já que sua
difusão no Bolshevik representaria uma recomendação não verbal? Acho que
não.” 12
que teve lugar no ano seguinte, ele se tornou membro pleno do Comitê
Central e, depois disto, sua carreira foi meteórica. Recebeu a incumbência da
organização do partido em Leningrado, depois do assassinato de Kirov e,
simultaneamente, foi feito secretário do Comitê Central. Em fevereiro de
1935, foi eleito candidato a membro e, em 1939, membro efetivo do
Politburo. Sua relação com Stalin era bastante próxima e os dois chegaram ao
parentesco quando o filho de Zhdanov, Yuri, casou-se com a filha de Stalin,
Svetlana, embora o matrimônio durasse pouco. Stalin gostou também da
atuação de Zhdanov como membro do soviete de guerra em Leningrado e, em
1944, promoveu-o a coronel-general, posto atingido por poucos do setor
político naqueles dias.
No fim da guerra, de certo modo, testou Zhdanov no front diplomático
quando o encarregou de negociar um tratado de paz com os finlandeses. Em
18 de janeiro de 1945, Zhdanov informou Stalin e Molotov por telegrama
“urgentíssimo” que tivera naquele dia uma conversa particular de duas horas
com o marechal de campo Mannerheim:
Mannerheim disse que, depois de muitos anos de hostilidades, chegou a hora de uma mudança
radical nas relações entre nossos dois estados. Linhas de defesa contra a URSS são inúteis, disse
ele, se não existem boas relações. Afirmou que não quis a guerra em 1939, nem em 1940-41, e
que não esperou um bom resultado, mesmo antes de elas começarem. Expressou concordância
com a colaboração na defesa do litoral, mas defenderia ele mesmo o interior do país. Perguntou
se havia tratados-padrões e respondi que o tratado com a Tchecoslováquia poderia ser
considerado como tal. Aguardo instruções. 15
Como era de seu costume, Stalin testara Zhdanov e seu próprio julgamento
das pessoas. Algumas vezes, testava seus auxiliares por longo tempo, em
certos casos, durante a vida toda, mas jamais esquecia um erro importante.
Zhdanov sempre justificou a confiança que Stalin nele depositava, embora
seja também verdade que, se não tivesse falecido subitamente, em 1948, aos
52 anos de idade, provavelmente seria também engolfado pelo massacre de
Leningrado, que ele próprio desencadeara. O filho, Yuri, afirma que Stalin
estava esfriando a relação com seu pai, justamente como o fez com
Voznesensky, Kuznetsov e, mais tarde, também com Molotov. Contudo, a
atitude de Stalin com respeito a Zhdanov só pode ser julgada por evidências
circunstanciais.
Durante seu tempo no Comitê Central, Zhdanov demonstrou ser um severo e
implacável zelador da ideologia e da cultura. O dogmatismo foi inculcado não
só por meio da deificação do “gênio criativo do líder” como também pela
instalação de todo um sistema de proibições relativas ao pensamento: o que
podia ou não ser exibido nas telas dos cinemas, o que os produtores de teatro
não podiam encenar, o que os escritores podiam ou não escrever, os músicos,
tocar, os filósofos e historiadores, debater. Os tabus eram incontáveis. A vida
cultural depois da guerra caiu de novo no marasmo, antes de receber a chance
de descongelar após o pesadelo de 1937-38.
Naquelas condições, as ciências sociais só podiam vegetar. As explanações
primitivas da ocasião só fizeram matar a alma do academicismo e limitar
seriamente sua esfera de influência. Como mencionamos, desde o final dos
anos 1930, só era possível comentar sobre o que Stalin dizia. De inexperientes
cientistas sociais a acadêmicos de renome, a “pesquisa” de todos se resumia
ao mesmo tema: o papel de I.V. Stalin no desenvolvimento da economia; o
significado de Problemas econômicos do socialismo na URSS , de I.V. Stalin,
para o desenvolvimento da filosofia; I.V. Stalin sobre a teoria do estado e a
lei; a contribuição decisiva de I.V. Stalin para o desenvolvimento da ciência
militar. Um exame superficial das bibliotecas revelou mais de quinhentos
livros e artigos sobre estes e temas análogos, escritos entre 1945 e 1953. O
pensamento científico se encontrava refém de dogmas primitivos e plúmbeos,
e o esforço criativo, atrofiado.
As ciências naturais e técnicas não sofreram menos. O desenvolvimento da
genética atrasou-se décadas e a cibernética foi banida, porque as novas ideias
e os novos campos do aprendizado eram orientados por pontos de vista
grosseiros, senão totalmente ignorantes. A caça aos “cosmopolitas”, na maior
parte das vezes codinome dos judeus (ver adiante), condenou as ciências a
isolamento ainda maior do mundo intelectual. Artigos como “Cosmopolitismo
a serviço da reação imperialista”, publicado no jornal governamental, o
Izvestiya , em 18 de abril de 1950, mataram qualquer desejo dos cientistas
soviéticos de fazerem contato com estabelecimentos estrangeiros de
pesquisas. A menção a um cientista soviético numa revista científica
estrangeira ou um convite para congresso internacional podiam ser
desastrosos.
A tentativa de transferir mecanicamente as formulações de Stalin para o
desenvolvimento da biologia foi equivalente à morte dos esforços soviéticos
neste campo, e se tivesse continuado por mais cinco anos, ou perto disso, a
ciência como um todo teria descarrilado completamente. Naquelas
circunstâncias, foram pessoas como T.D. Lisenko que se aproveitaram do
ditado de Stalin – “Precisamos de resultados práticos imediatos na ciência” –
para chegar ao topo. No que tange a Stalin, as ciências constituíam um mundo
mágico, misterioso e de alquimias, de alguma forma conectado com as
conquistas do novo. A ele parecia que a principal coisa sobre a ciência era
como organizá-la. Acreditava que o trabalho científico poderia até ser
realizado no Gulag, se adequadamente organizado e, de fato, os resultados
mostraram-lhe que não estava de todo errado. Aqueles que considerou
perigosos ou que não trilharam seus caminhos dogmáticos ou foram
destruídos sem misericórdia ou foram se juntar à vasta população dos
acampamentos, entre os quais estavam possuidores das mais refinadas mentes
científicas do país.
Os cientistas cujas vidas foram poupadas passaram a trabalhar nos
laboratórios dos campos e prisões – sharashkas – sob a supervisão da 4ª
Seção Especial do Ministério do Interior. Nesta área, Stalin adotou uma
orientação puramente pragmática, ou seja, a visão do mundo e as opiniões
políticas dos sentenciados não tinham a menor importância. O que interessava
eram os resultados rápidos, e, quando eles eram conseguidos, Stalin era capaz
até de demonstrar alguma benevolência, reduzindo às vezes a sentença e
mesmo libertando o prisioneiro. A agência de Beria mantinha Stalin
constantemente informado sobre o trabalho dos cientistas nas prisões e nos
campos. Em 18 de maio de 1946, por exemplo, Kruglov reportou que:
Um grupo de prisioneiros cientistas, inclusive o professor K.I. Stakhovich, o professor A.Yu.
Vinblat e o engenheito G.K. Teifel, vem trabalhando há muito tempo na construção de um motor
nosso turbo-propulsado. Fundamentando o trabalho em suas próprias pesquisas teóricas, o grupo
propõe a construção do motor TRD-7B . Solicito que seja apreciada a minuta de decreto do
Conselho de Ministros. 17
[57]
Burocracia absoluta
T odos os estados necessitam de uma administração. A burocracia, na
acepção com que a empregamos para o sistema stalinista, surge onde a
administração civil se divorcia do funcionamento econômico do estado e onde
o sistema carece de métodos democráticos de autorregulação. Nos primeiros
dias do regime soviético, pareceu que os executores da política bolchevique
não constituíram uma grande ameaça neste particular. Pouco depois da
Revolução de Outubro, Lenin, refletindo sobre o novo aparato, disse: “No
interesse do povo, ele não deve abrigar qualquer espécie de burocratismo.” 19
Mesmo então, ficou evidente que o aparato representava um perigo mais sério
que o admitido. Sabemos que, nos momentos difíceis, Lenin podia ser muito
rigoroso com a burocracia. Em janeiro de 1919, disse: “Uma atitude
burocrática em relação ao trabalho, ou a incapacidade para ajudar os
trabalhadores que passam privação, será severamente punida, podendo chegar
a ponto de fuzilamento.” 20
Nem todo o mundo percebeu que isto aconteceria, e os que perceberam não
foram ouvidos. Poucos minutos depois de Trotsky fazer sua declaração
profética, Bukharin já o atacava. “Devemos perguntar a Trotsky por que ele
não toma a posição de sentido ante o partido, como um soldado?” Ao que
Trotsky replicou: “Vocês mantêm o partido preso pelo pescoço.” Bukharin 28
Protesto veementemente!
Estamos nos comprometendo: até mesmo nos nossos sovietes de deputados, ameaçamos o
emprego do terror de massa, mas, quando chega a hora, pisamos no freio de uma iniciativa
revolucionária totalmente justificável.
Isto é im-pos-sí-vel!
Os terroristas nos tomarão por covardes. Estamos num estado de guerra sem quartel. Temos que
encorajar a energia e a presença maciça do terror contra os terroristas, em especial em Petrogrado
que representa um exemplo decisivo. 29
“Estive ‘acompanhando você’ por três anos, reportando o que você dizia, o que sabia, de olho em
você de modo geral. Perdoe-me. Não tive escolha.”
“Como você se formou, e com honras, isto significa que nada de mau aconteceu. De qualquer
forma, boa sorte. Não me queira mal. Mas, lembre-se, pode ser que nem tudo termine por
aqui…”
Esta digressão em meu passado serve como lembrete de que não faz sentido
tentar vingar a história. O que foi feito não pode ser desfeito. Tem, no entanto,
que ser conhecido e lembrado.
O quanto Stalin e seus sequazes no Kremlin sabiam do que se passava em
Agul e em milhares de outros lugares de seu abrangente Gulag? A resposta é:
muita coisa. Os arquivos estão repletos de cartas descrevendo a agonia,
implorando ajuda, pedindo que Stalin examinasse, interviesse, revisse
desapaixonadamente este ou aquele caso. Uma delas veio de um interno na
seção 14 do Campo nº 283 da NKVD e Mina de Carvão nº 26:
A situação dos prisioneiros é dura. A Inquisição medieval seria um paraíso em comparação. Ex-
soldados e partisans estão amontoados juntamente com colaboradores e Polizei . * Ninguém sabe a
duração das sentenças, o que é pior que ser fuzilado. Somos espancados regularmente. Nossas
roupas são farrapos infestados de piolhos. A comida é horrível, normalmente eles servem ratos. O
corte do repolho é feito em máquinas de forragem, de modo que normalmente vem misturado
com estrume de cavalo. Os prisioneiros são agredidos a pancadas pelos guardas. Eles são
selecionados entre as pessoas mais selvagens. Esta carta não contém uma só palavra mentirosa,
porém, assiná-la significaria trabalhos forçados imediatamente. 35
Por exemplo, em 5 de abril de 1946, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS, atuando
sobre um recurso do Procurador-geral da URSS, invalidou a sentença exarada pelo tribunal
militar da Divisão de Infantaria de Taman segundo a qual a cidadã Litvinenko foi acusada de
traição e condenada à morte (a sentença foi comutada para dez anos nos campos pelo tribunal do
exército de Marítima). O colegiado militar da Corte Suprema arquivou o caso por falta de provas.
Este veredicto foi enviado para o campo da Sibéria onde a prisioneira está detida. De lá, o
documento foi enviado para ratificação pelo 1º Departamento Especial do Ministério das
Questões Internas, que o mandou para o distrito militar de Tauride. O caso vem se arrastando por
meses.
Existem muitos casos semelhantes. Isto mina a autoridade da corte. Solicito que a Ordem nº 058,
de 20 de março de 1940, seja revogada. 36
Não se sabe como Stalin reagiu. Molotov expediu uma carta aos funcionários
do Ministério do Interior em maio de 1947, mas demorou bastante até que a
insana regulamentação fosse alterada. Stalin e o sistema que engendrou
ensinaram ao povo a ser paciente, a ser silencioso e submisso. De um modo
geral, as pessoas não paravam para pensar sobre tudo aquilo, nem sabiam
muita coisa do que se passava no pesadelo escondido por trás das telas do
sistema stalinista.
Se a morte física chegou para Stalin mais cedo do que esperado, sua morte
política foi bastante retardada. Seu falecimento histórico é improvável, já que
as pessoas jamais esquecerão o que foi feito em seu nome.
Nota
* Nacionais locais recrutados para a polícia pelos alemães durante a guerra.
[58]
Deuses terrenos são mortais
E mbora envelhecido e doente, Stalin continuava ativo à procura de inimigos
reais ou imaginários e na lida com eles. Poucos meses antes do XIX
Congresso, de outubro de 1952, tomou providências para o julgamento de há
muito planejado do Comitê Judeu Antifascista. Em maio-junho, o colegiado
militar da Corte Suprema da URSS examinou o caso de um grupo de
intelectuais judeus que tivera previamente conexões com o Comitê Judeu
Antifascista. Este órgão fora criado pelo governo soviético no início de 1942
e fizera muito durante a guerra a fim de mobilizar a opinião pública mundial,
em particular nos EUA, para a causa comum contra o nazismo. Entretanto,
logo depois da guerra, começou a caça às bruxas.
Já em novembro de 1946, Mikhail Suslov (que iria se tornar a força
dominante do controle ideológico até sua morte, em 1982) enviara uma nota a
Stalin sobre a atividade “perniciosa” do comitê. O ministro da segurança
Abakumov arrancara à força de I.I. Goldstein e de Z.G. Grinberg confissões
detalhadas a respeito de “atividades de espionagem” do comitê. Tudo isto foi
reportado a Stalin. Gritantes artigos antissemitas começaram a aparecer na
imprensa, e o comitê foi fechado por um decreto do Politburo, de 20 de
novembro de 1948. Malenkov e Beria pegaram o caso a partir daí.
Logo se seguiram as prisões. A figura mais destacada entre os judeus era a de
Solomon Abramovich Lozovsky, bolchevique da velha guarda e ex-vice-
ministro do Exterior, que trabalhara durante a guerra como chefe do
Sovinformburo e que tivera frequentes reuniões com Stalin. Foi preso todo
um grupo de cientistas, poetas, físicos, editores, tradutores, expoentes do
teatro – 110 pessoas no total. Em 13 de janeiro de 1949, Malenkov, na
presença de M.F. Shkiryatov, convocou Lozovsky e tentou fazê-lo confessar
planos criminosos. Em particular, desejava que Lozovsky admitisse que tinha
ajudado o presidente do comitê, o ator Solomon Mikhoels, o jornalista Sh.
Epshtein e o poeta I.S. Feffer a escreverem uma carta a Stalin propondo que a
Crimeia fosse transformada em “República Socialista Judaica”. Duas semanas
depois, Lozovsky foi preso.
Stalin foi informado tão logo todos “confessaram” (B.A. Shmelyovich não
assinou uma confissão, o que não o salvou de ser executado) e, sem mais
delongas, ordenou um julgamento, indicando, como sempre, as sentenças que
queria ver promulgadas.
Entre maio e julho de 1952, quatorze pessoas foram julgadas por um tribunal
fechado e presidido por A.A. Cheptsov. Apenas um dos acusados, a
acadêmica Lina Shtern, escapou com uma sentença de prisão. O restante foi
fuzilado. Se bem que o propósito antissemita da corte fosse evidente, o
37
O caso dos doutores começou quando o professor V.N. Vinogradov fez sua
última visita a Stalin, em 1952 e, encontrando-o em más condições,
recomendou que, dali por diante, ele trabalhasse o mínimo possível. Stalin
ficou furioso, e Vinogradov não foi mais chamado. Na realidade, logo depois
foi preso. A insatisfação de Stalin com seu médico foi trabalhada pelo
investigador Ryumin da Segurança Estatal, que nela viu uma maneira de
progredir na carreira. Percebendo o estado de espírito de Stalin e levando em
conta os eventos mundiais, em que a política soviética no Oriente Médio
virou contra o novo estado de Israel, os órgãos de segurança prepararam um
gigantesco caso sobre uma alastrada “trama dos médicos”, de natureza
claramente antissemita. Por certo, haveria um julgamento e todo o problema
poderia resultar em outro banho de sangue em larga escala. Somente a morte
súbita de Stalin alterou o curso dos acontecimentos.
Durante a última noite de sua vida, Stalin perguntou várias vezes sobre o
progresso do caso, especificamente sobre Vinogradov. Beria disse-lhe que
“além de suas outras más qualidades, o professor tem a língua muito
comprida. Ele disse a um dos médicos de sua clínica que o Camarada Stalin já
tivera vários e perigosos episódios de hipertonia”.
“Muito bem”, disse Stalin, “qual sua proposta para agora? Fazer os doutores
confessarem? Diga a Ignatiev que, se ele não conseguir confissões completas,
vamos rebaixar sua altura de uma cabeça.”
“Eles confessarão. Com a ajuda de Timashuk e de outros patriotas,
completaremos a investigação e voltaremos a você a fim de que dê permissão
para um julgamento público.”
Ficaram debatendo até as quatro horas da madrugada. Já pelo final da
conversa noturna, Stalin dava sinais de visível irritação com a companhia.
Apenas Bulganin escapava das recriminações. Todos esperavam que o
anfitrião se levantasse para que pudessem ir para casa dormir. Stalin, no
entanto, continuava batendo na tecla de que havia gente na liderança que se
fiava demais em seus méritos passados. “Estão enganados.” O ambiente era
de mau augúrio. Os circunstantes sentiam que alguma coisa fermentava. Será
que o velho pensava em despachá-los do Politburo, de modo a acusá-los pelos
crimes anteriores que cometera? Mas aquela seria sua última explosão de
raiva. Interrompendo uma frase no meio, ele, subitamente, levantou-se e foi
para o quarto. Os outros se dispersaram silenciosamente e se dirigiram para
casa, Malenkov e Beria viajando no mesmo automóvel.
Conforme Rybin descreveu os eventos para mim, já era meio-dia de 1º de
março quando a equipe de serventes domésticos começou a se preocupar.
Stalin não aparecera, não chamara ninguém. E não era permitido entrar no
quarto sem ser chamado. A inquietação aumentou, e então, às 18h30, a luz
acendeu em seu escritório. Todos respiraram aliviados e esperaram que a
campainha soasse. Stalin não se alimentara, nem olhara a correspondência ou
qualquer outro documento. Muito estranho. Rybin, que não escondia sua
simpatia pessoal pelo velho chefe, começou a resmungar que a campainha
não tocava. Oito da noite, e nada, 21h30 e o silêncio persistia no quarto de
Stalin. Uma espécie de pânico se apossou de todos. A equipe começou a
discutir se não seria bom que alguém desse uma olhada, quando houve um
sentimento generalizado de que algo seriamente errado estava ocorrendo. Os
oficiais de serviço, M. Starostin e V. Yukof, e a servente M. Butusova
decidiram que Starostin deveria investigar e, às 23h, ele se encaminhou para o
quarto levando a correspondência do dia, caso precisasse de uma desculpa.
Starostin teve que passar por uma sucessão de cômodos até chegar ao quarto
de Stalin e foi acendendo as luzes à proporção que avançava. Quando acionou
o interruptor da pequena sala de jantar, gelou. Estatelado no chão, só de
camiseta e calças do pijama, jazia Stalin. Só teve forças para levantar a mão
para Starostin, não podia falar. Seu olhos expressavam horror e medo, em
súplica. Um exemplar do Pravda estava espalhado pelo assoalho e havia uma
garrafa aberta de água mineral na mesa. Ele devia estar naquela posição havia
muito tempo, pois a luz não fora acesa. Starostin pediu ajuda e os outros
serventes chegaram correndo em grande agitação. Levantaram Stalin para o
divã. Ele tentou diversas vezes dizer alguma coisa, mas só saíram ruídos
incoerentes. O derrame paralisara a faculdade da fala, e pouco depois ele
ficou inconsciente.
De acordo com Rybin, a equipe de segurança comunicou-se imediatamente
com Ignatiev no Ministério da Segurança Estatal. Ele aconselhou que Beria e
Malenkov fossem chamados. Beria não foi encontrado em lugar algum e
Malenkov mostrou-se incapaz de fazer qualquer coisa sem ele. Além do mais,
os médicos não deviam ser contatados sem a permissão de Beria. Finalmente,
Beria foi encontrado numa das villas do governo na companhia de uma de
suas últimas mulheres e, às três horas da manhã, ele e Malenkov chegaram.
Beria, por certo, andara bebendo. Malenkov, enfiando os sapatos novos
debaixo do braço para que não rangessem, entrou de meias no quarto de
Stalin e viu seu chefe respirando com extrema dificuldade. Beria não chamou
os médicos; em vez disso, virou-se para os empregados: “Por que o pânico?
Não veem que o Camarada Stalin caiu num sono pesado? Saiam todos e
deixem nosso líder em paz. Depois cuido de vocês!”
Malenkov, desanimado, deu um meio apoio a Beria. De acordo com o relato
de Rybin, tudo indicava que não haveria qualquer iniciativa de buscar socorro
médico para Stalin, que devia ter sofrido o derrame umas seis ou oito horas
antes. Todos pareciam comportar-se da maneira conveniente para Beria.
Depois de afastar todos os auxiliares, proibindo antes que telefonassem para
quem quer que fosse, os dois funcionários categorizados deixaram a casa
falando alto. Só às nove da manhã, Beria, Malenkov e Khruschev retornaram,
logo seguidos de outros membros do Politburo e dos médicos.
Seguiu-se um grande bulício. Svetlana Alliluyeva recordou-se de que os
doutores aplicaram sanguessugas atrás da cabeça e do pescoço de Stalin,
fizeram eletrocardiogramas e raios-X de seus pulmões e lhe aplicaram uma
série constante de injeções. A despeito dos esforços, todos estavam bem
cientes de que o fim estava perto. Beria dirigiu-se aos médicos, num tom de
voz para que todos ouvissem e perguntou-lhes se podiam garantir a vida de
Stalin: “Vocês entendem que são responsáveis pela saúde do Camarada
Stalin? Estou avisando.” Os médicos que tinham cuidado dele por longos
anos estavam agora na prisão, naturalmente, ou aguardavam julgamento, ao
passo que os que lá se esforçavam em vão para salvá-lo eram novos e sem
conhecimento do paciente. Pálidos de medo, professores, doutores e
enfermeiras murmuravam ansiosamente entre si, enquanto lutavam
inutilmente, sabendo o inferno que lhes esperava quando tudo acabasse.
Beria não escondia seu ar de triunfo. Todos os membros do Politburo,
inclusive Malenkov, tinham pavor daquele monstro. A morte de um tirano
prometia uma nova orgia de derramamento de sangue da parte de seu
sucessor. Exausto em função de todas as providências que tomara e seguro de
que Stalin cruzara a linha divisória entre a vida e a morte, Beria disparou para
o Kremlin e lá permaneceu por algumas horas, deixando os outros líderes
junto a Stalin em seu leito de morte. Já descrevi a versão segundo a qual
Beria, como primeiro-vice-presidente do Conselho de Ministros, passou a
forçar o grande jogo político que planejara havia muito tempo. A corrida para
o Kremlin foi possivelmente ligada ao seu esforço para remover documentos
do cofre de Stalin que pudessem conter instruções referentes ao modo de lidar
com ele próprio, um último desejo que talvez fosse difícil de contestar,
preparadas pelo secretário-geral no controle de suas faculdades.
Retornou à dacha cheio de confiança e começou a sugerir enfaticamente aos
desanimados colegas que preparassem uma declaração do governo
participando a doença de Stalin e publicassem também um boletim sobre seu
estado de saúde. A declaração, lida no rádio e estampada nos jornais,
participava, em parte, que:
às primeiras horas da manhã de 2 de março, o Camarada Stalin, que estava em sua casa em
Moscou [na realidade, estava fora de Moscou, na dacha] sofreu uma hemorragia cerebral que
afetou regiões do cérebro essenciais à vida. O Camarada Stalin perdeu a consciência. O braço e a
perna direitos estão paralisados. Perdeu a faculdade da fala. O funcionamento do coração e dos
pulmões se mostra severamente prejudicado. O tratamento do Camarada Stalin está sob constante
observação do Comitê Central do PCUS e do governo soviético. A séria enfermidade do
Camarada Stalin significará sua incapacidade mais ou menos longa para participar das questões
governamentais.
que Stalin não era caso de interesse psiquiátrico. Sua “doença” era social; foi
cesarismo e tirania. Ademais, não apenas o líder ficara doente, mas toda a
sociedade.
Entrementes, o último ato do drama se desenrolava. O filho de Stalin, Vasili,
entrava e saía, esbravejando com voz de bêbado: “Mataram meu pai, os
bastardos!” Svetlana postava-se imóvel perto da cama, enquanto os membros
do Politburo, demonstrando fadiga pela falta de sono e medo do
desconhecido, afundavam-se em cadeiras de braço. Voroshilov, Kaganovich,
Khruschev e alguns outros choravam abertamente. Beria aproximou-se de
Stalin por diversas vezes para exclamar em voz alta: “Camarada Stalin, todos
os membros do Politburo estão aqui, diga alguma coisa para nós!”
Comportava-se como príncipe herdeiro de um vasto império com o poder de
vida e morte sobre seus cidadãos. Para ele, Stalin já era passado.
O desenlace aconteceu às 9h50 de 5 de março de 1953. Diante dos outros
líderes jazia o mestre, o ídolo, juiz, chefe e benfeitor, e, porque não dizer, o
potencial carrasco. De joelhos, cabeça enterrada no peito, lamuriando-se
como uma camponesa, estava V.V. Istomina, a governanta de Stalin que, por
cerca de vinte anos, cuidara dele, acompanhara-o em todas as viagens ao sul e
mesmo para duas ou três conferências internacionais em tempo de guerra.
Os membros do Politburo recuperaram-se rapidamente do choque provocado
pela morte de Stalin, compuseram-se e se acotovelaram para sair. Havia
coisas a fazer, providências a tomar para o funeral, e coisas do gênero.
Enquanto corriam de volta a Moscou em suas longas limusines negras, alguns
matutavam se Stalin deixara um testamento, e se Beria era agora o chefe.
Shepilov recordou:
Eu trabalhava então como editor-chefe do Pravda . O país esperava em silêncio por notícias de
Moscou. Às cinco da manhã, o telefone tocou. Era Suslov: “Venha imediatamente ao cantinho.”
Assim era conhecido o estúdio de Stalin no Kremlin. “O Camarada Stalin faleceu.” Coloquei o
fone no gancho. Quando cheguei ao Kremlin, o funeral era debatido. Fiquei espantado com o
comportamento dos membros do Politburo. Estavam sentados em torno da longa mesa e o lugar
de Stalin na cabeceira estava vazio. Beria e Malenkov de frente um para o outro, próximos à
cadeira desocupada. Os dois estavam obviamente excitados, interrompendo com frequência os
colegas e falando muito mais que os outros. Beria, simplesmente, florescia. Khruschev falou
pouco, ainda em evidente estado de choque. Fiquei particularmente admirado com o fato de
Molotov permanecer em silêncio, distante, com expressão mais pétrea que nunca; durante toda
aquela reunião sem sentido, que durou hora e meia, não disse uma só palavra.
[59]
Derrota pela História
K hruschev assomou ao pódio no XX Congresso do Partido Comunista. Em
estado de choque, os quase 1.500 delegados, pasmos, permaneceram sentados
em silêncio total, interrompendo ocasionalmente o pronunciamento de
Khruschev com brados de indignação enraivecida. Pareciam ver um fantasma
postado sobre o ombro do orador. Quanto mais Khruschev revelava, mais
clara a imagem do fantasma. Foi um momento de rara significação histórica.
Apenas horas antes do discurso, ninguém poderia imaginar que o inativo e
deformado partido fosse capaz de feito tão genuinamente cívico.
Sabemos agora que, logo depois da morte de Stalin, a liderança começou a
afrouxar os vínculos com o stalinismo, e que esses passos se tornaram mais
rápidos depois da prisão e execução de Beria, ato que tornou possível
perscrutar em maior profundidade os recônditos sombrios do passado
stalinista, embora, é evidente, muitos dos líderes bem soubessem o que havia
ocorrido. Uma vez fixada a data do congresso, Khruschev, inopinadamente,
propôs numa reunião do Presidium que fosse instalada uma comissão para
investigar os abusos cometidos no período de Stalin. Não foi tanto, como se
reivindicou mais tarde, “um apelo do coração e da consciência” que o
motivou, quanto a torrente de cartas que inundou o Comitê Central, as
divisões governamentais e outros órgãos do estado proveniente daqueles que
haviam passado longos anos detrás do arame farpado do Gulag, e de seus
parentes, expressando protesto e esperança, e a fé em que a justiça seria agora
restaurada.
Com base naquelas cartas, Khruschev se pôs a preparar memorandos
abrangentes que iriam revelar que o “caso de Leningrado” e vários outros
casos sob revisão tinham sido falsificados. Ficou claro que, em um ou dois
anos, enorme contingente de prisioneiros completaria seus termos de prisão e
exílio. Patente se tornou igualmente que deveria haver permissão para que tais
prisioneiros retornassem a seus lares, juntamente com suas dores, suas
perplexidades e sua demanda para que os reais culpados fossem punidos.
Com Stalin e Beria mortos, qual dos novos líderes ousaria deixar que tais
pessoas apodrecessem nos campos?
O partido enfrentou uma escolha difícil. Até a proposta de criação da
comissão deparou com resistência tenaz de Molotov, Kaganovich e
Voroshilov, mas a balança pendeu para o lado de Khruschev com o apoio de
Bulganin, Mikoyan, Saburov, Pervukhin e do ainda hesitante Malenkov. A
comissão foi estabelecida sob a presidência do editor de longa data do Pravda
e diretor do Instituto Marx-Engels-Lenin, P.N. Pospelov. Khruschev
providenciou para que a comissão tivesse acesso aos documentos do
Ministério da Segurança Estatal e do seu sucessor, em 1953, a KGB. *
Pospelov trabalhou nesta comissão com o mesmo empenho que dedicou,
alguns anos antes, à Biografia breve de Stalin. Quando reportou a Khruschev,
às vésperas do congresso, o primeiro-secretário finalmente se deu conta de
que aquele documento quebraria a embalagem de concreto que envolvia as
mentiras e lendas a respeito de Stalin, ou serviria de obituário para seu
próprio funeral.
Diversas vezes fez referências ao relatório de Pospelov e perguntou aos outros
membros do Presidium o que deveria ser feito. Como poderiam ser levadas as
conclusões da comissão ao conhecimento do congresso? Quem deveria fazê-
lo? O próprio Pospelov? A resistência de Molotov, Voroshilov e Kaganovich
foi demorada e dura, por vezes feroz. Não foram feitas anotações, porém, das
memórias de Khruschev, conclui-se que os oponentes do relatório tinham
argumentos fortes. Perguntavam, por exemplo: quem os forçava a lavar roupa
suja em público? Não seria melhor corrigir os excessos em silêncio? Estaria
Khruschev consciente das consequências da publicação do relatório? E,
finalmente: não teriam todos os próprios membros do Presidium participado
daqueles eventos nesta ou naquela medida?
Mas Khruschev ganhou a argumentação e, em 13 de fevereiro de 1956, o
Comitê Central concordou com a leitura do relatório em sessão fechada do
congresso. Khruschev foi assaltado por novas dúvidas, mas quando se
lembrou das cartas do Gulag, convenceu-se de que os crimes da era Stalin não
podiam ficar escondidos por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde viriam à
tona. Era melhor assumir a iniciativa e contar ao partido a terrível verdade.
Entretanto, não tencionava divulgá-la para o público em geral.
O congresso caminhava para um final sem percalços e previsível quando
Bulganin, que o presidia, anunciou que haveria uma sessão fechada e
convocou Khruschev a falar. Foi seu melhor momento. Um stalinista
ortodoxo no passado, leal e diligente executor de qualquer ordem do líder,
subitamente encheu-se de coragem cívica e histórica e, de fato, desfez-se de
preconceitos muito arraigados.
Concentrando seu discurso – intitulado “Sobre o culto à personalidade e suas
consequências” – nos anos 1930, falou sobre o terror e os métodos que os
asseclas de Stalin empregavam para arrancar confissões. Khruschev
mencionou a Carta de Lenin ao Congresso, da qual muitos delegados jamais
tinham ouvido falar. E, embora se restringisse à posição stalinista sobre
Trotsky e Bukharin, expôs a ideia herética de que, mesmo sob Lenin, a luta
contra a oposição não fora conduzida exclusivamente segundo linhas
ideológicas, insinuando, apesar de não o dizer, que Lenin também utilizara o
terror contra seus inimigos políticos.
No entanto, a principal carga e o impacto do discurso tiveram relação com a
ilegalidade da era de Stalin, a repressão e o massacre de pessoas inocentes. Os
delegados ficaram paralisados de espanto quando Khruschev descreveu os
muitos casos arquitetados contra os chamados “inimigos do povo”. Em
questão de três ou quatro horas, conseguiu o impossível: destronar Stalin e
tornar evidente que ele foi um líder incompetente, que “só conhecia o campo
e a agricultura pelo cinema” e que, durante a guerra, “trabalhou em operações
militares olhando para um globo terrestre”, e assim por diante.
O pronunciamento atingiu diversos objetivos. Primeiro, expôs as qualidades
da liderança de Stalin como uma fantasia. Segundo, estabeleceu que a culpa
por todos os crimes cabia a Stalin. Provocou uma erupção na consciência
pública; foi o mais corajoso e inesperado ataque contra o cesarismo, a
ilegalidade e o totalitarismo. Mas Khruschev era homem de seu tempo. Não
há dúvida sobre sua contribuição para o desvendamento decisivo do culto, e
só com isto ele já fez jus a um lugar na história. Seu discurso, entretanto,
preparado que foi por um teórico stalinista do velho estilo, não se aprofundou,
arranhou a superfície dos fatos, mal tocou nas origens do stalinismo e nem
reconheceu que o socialismo fora distorcido, tampouco buscou as causas da
deturpação. Khruschev manifestou a esperança de que o debate sobre o culto
à personalidade se cingisse aos círculos partidários e não chegasse à
imprensa, de que “nossas feridas não fossem expostas ao inimigo” e de que
somente aquilo fosse suficiente para liquidar com as perversões stalinistas.
Paradoxalmente, o desejo de manter a discussão desconhecida do povo e da
opinião mundial foi típico pensamento stalinista da parte de Khruschev. A
inconsistência e as meias palavras voltaram à cena na declaração oficial de 30
de junho de 1956 do Comitê Central “Sobre a superação do culto à
personalidade e suas consequências”. Este documento, que pouco lembra o
discurso de Khruschev, foi, apesar disso, uma expressão mais clara de um
acordo de meio-termo com os stalinistas. Falou de “sérios erros” cometidos
apenas “durante os últimos anos da vida de Stalin”, e de o ditador,
ocasionalmente, ter recorrido a métodos ignóbeis. E asseverou que seria
errado procurar a fonte do culto na natureza da ordem social soviética. 41
Cronologia *
7 de novembro:
21 de dezembro: Nasce Stalin em Gori, na Geórgia.
1888-93 S. frequenta escola religiosa, em Gori.
1894 S. entra no seminário teológico, em Tiflis.
S. visita Lenin em Cracow e segue para Viena, onde se encontra com Bukharin e
Trotsky e escreve um ensaio sobre a questão das nações. Adota o cognome Stalin.
Lenin apropria-se do nome do jornal de Trotsky, o Pravda , que até hoje [1989]
permanece como órgão do Comitê Central bolchevique.
1913 S. preso em São Petersburgo, exilado por quatro anos para Turukhansk.
1914 Começa a Primeira Guerra Mundial.
1917 O Czar abdica.
Março :
Novembro : Bolcheviques tomam o poder.
Março :
1920 Poloneses invadem a Ucrânia soviética.
Abril :
Julho : Tratado de comércio anglo-soviético.
Outubro : Armistício com a Polônia.
Novembro : Termina a guerra civil com a derrota e evacuação dos exércitos brancos na Crimeia.
1921 Levante de Kronstadt.
Fevereiro :
Abril : S. eleito secretário-geral do partido.
Maio : Primeiro derrame de Lenin.
Dezembro : Segundo derrame de Lenin.
Março :
Abril : XII Congresso do partido.
1924 Morre Lenin.
Dezembro :
1926 Zinoviev expelido do Politburo e da liderança do Comintern.
Julho :
Outubro : Trotsky e Kamenev expelidos do Politburo.
1927 Trotsky e Zinoviev expulsos do partido.
Novembro :
Dezembro : XV Congresso do partido.
1928 Trotsky banido para Alma-Ata, no Cazaquistão.
Janeiro :
1929 Trotsky expulso da URSS.
Janeiro :
Abril : Primeiro Plano Quinquenal adotado pela Décima Sexta conferência do partido.
Novembro : Bukharin expulso do Politburo.
Dezembro : S. proclama o fim da NEP e começa a coletivização.
1930 Suspensa a coletivização.
Março :
Abril-Junho : XVI Congresso do partido.
Dezembro : Julgamentos de vários grupos acusados de sabotagem e destruição no setor agrícola.
1931 Julgamento de mencheviques por pilhagem.
Janeiro :
Novembro : Relações diplomáticas e comerciais estabelecidas entre URSS e EUA.
1934 XVII Congresso do partido. O “Congresso dos Vitoriosos”. Setembro: A URSS filia-
se à Liga das Nações.
Janeiro :
Dezembro : Sergei Kirov assassinado em Leningrado.
1935 URSS assina tratados militares com a França e a Tchecoslováquia.
Maio :
1936 Julgamento e execução de Zinoviev, de Kamenev e quatorze outros.
Março :
Julho : Embates armados com os japoneses no lago Khasan, na fronteira entre Mongólia e
China.
Dezembro : Beria substitui Yezhov como comissário do povo para as Questões Internas
(NKVD).
1939 Começam as negociações entre a URSS, a França e a Inglaterra para uma aliança
militar contra a Alemanha.
Abril :
A URSS também procura melhorar relações com a Alemanha nazista.
Maio : Litvinov substitui Molotov como comissário para as Relações Exteriores.
Agosto : Outros embates armados com os japoneses em Khalkhin Gol, na fronteira com a
Mongólia.
Fevereiro :
Março : Tratado de paz soviético-finlandês.
Abril : Massacre de oficiais poloneses prisioneiros de guerra pela NKVD, em Katyn,
Smolensk.
Junho : A URSS recupera a Bessarábia (Moldávia) e anexa a Bukovina Setentrional.
Agosto : A URSS anexa Lituânia, Letônia e Estônia.
Janeiro :
Agosto : Exército alemão chega ao Cáucaso.
Dezembro : Criação do Exército Russo de Liberação, sob o comando do general Vlasov, nos
campos alemães de prisioneiros de guerra.
1943 S. se torna marechal da União Soviética.
Janeiro :
Fevereiro : Tropas alemãs se rendem em Stalingrado.
Maio : S. dissolve o Comintern.
Março :
Junho : Segunda frente estabelecida na Europa com a invasão aliada da Normandia.
Agosto : Levante de Varsóvia contra os alemães.
Fevereiro :
Abril: O Exército Vermelho entra em Viena.
2 de maio: O Exército Vermelho toma Berlim.
8 de maio : Alemanha aceita a rendição incondicional.
Julho-Agosto : Conferência de Potsdam com Stalin, Truman e Churchill, sucedido por Attlee.
6 de agosto : EUA atiram bomba atômica em Hiroshima.
8 de agosto : A URSS declara guerra ao Japão.
9 de agosto : EUA atiram bomba atômica em Nagasaki.
Março :
Agosto : O general Vlasov e outros executados em Moscou.
Novembro : O Comitê Judeu Antifascista colocado sob suspeição.
1947
Setembro : Fundação do Cominform na Polônia.
Maio-Julho :
Outubro : XIX Congresso do partido. O Politburo passa a se chamar Presidium. O secretário-
geral passa a ser primeiro-secretário.
Novembro : EUA testam a primeira bomba de hidrogênio.
1953 “A Trama dos Médicos.”
Janeiro :
5 de março : Morre Stalin.
Junho : Reprimida a Revolta dos Trabalhadores em Berlim Oriental.
Julho : Prisão de Beria.
Agosto : Assinado armistício na Coreia.
Maio :
1956 XX Congresso do partido. Khruschev faz o “discurso secreto” denunciando Stalin.
Fevereiro :
Abril : Dissolução do Cominform.
Junho : Sublevações antissoviéticas em Poznan, na Polônia.
Outubro : Levante nacional húngaro reprimido pelos tanques soviéticos.
1957 Grupo “antipartido” expulso do Presidium.
Julho :
1958 Boris Pasternak ganha o Prêmio Nobel com Doutor Zhivago . Começa a perseguição
a Pasternak na URSS.
Outubro :
Dezembro : Andrei Sakharov prega a proibição do teste com a bomba de hidrogênio.
1961 XXII Congresso do partido. Khrushchev intensifica a desestalinização. A múmia de
Stalin é removida do Mausoléu.
Outubro :
Nota
* Datas segundo o Novo Estilo do Calendário Ocidental.
Notas
VOLUME I
Abreviatura do nome dos arquivos citados:
Arkhiv IKKI – Arquivos do Comitê Executivo da Internacional Comunista
AVP SSSR – Arquivos da Política Externa Soviética, Ministério do Exterior
TsAMO SSSR – Arquivos Centrais do Ministério Soviético da Defesa
TsGAOR – Arquivos Centrais Estatais da Revolução de Outubro
TsGASA – Arquivos Centrais Estatais do Exército Soviético
TsPA IML – Arquivos Centrais do Partido no Instituto de Marxismo-Leninismo
INTRODUÇÃO
3. Jaurès, Jean, Sotsialisticheskaya istoriya frantsuzskoy revolyutsii , Moscou, 1983, vol. 6, p. 446
5. Lenin, V. I. Polnoe sobranie sochinenii (daqui por diante, PSS ), 55 vols., Moscou, 1960-65, vol. 48, p.
169
17. Alekseyev, S.A. ed.: Fevral’skaya revolyutsiya . Prefácio e notas de A.I. Usagin, Moscou-
Leningrado, 1926, p. 153
26. Trotsky, L.D. Fevral’skaya revolyutsiya . Berlim, 1931, pp. 321-322, 325
3 – OS ATORES COADJUVANTES
31. Sukhanov, N.N. Zapiski o revolyutsii , 7 vols, Berlim, Petrogrado, Moscou, 1922. vol. 7, p. 44
40. Ryabinsky, K., Revolyutsiya 1917 goda. Khronika sobytii . Moscou-Leningrado. 1926, vol. 5, p. 172
50. Trotsky, L.D. Sochineniya , vol. 17, “Sovetskaya respublika i kapitalisticheskii mir”, parte I,
Moscou-Leningrado, 1926, pp. 103, 106
53. Sed’moi s’ezd RKP. Stenograficheskii otchet. Moscou , 1923, pp. 32-50
6 – GUERRA CIVIL
4. Ibid . p. 61
24. TsPA IML, f. 4, op. 1, d. 142, l. 126; Lenin, Biograficheskaya khronika , vol. 12, p. 388
25. Adam Ulam, Stalin. The Man and his Era , Nova York, 1973, pp. 213-214, cita o Arquivo Trotsky
(Universidade de Harvard), T 755
42. XI s’ezd RKP(b). Protokoly i stenograficheskie otchety s’ezdov i konferentsii KPSS . Moscou, 1969,
p. 262
43. Lenin, op. cit. p. 710
44. Ibid . p. 474
63. Berdyaev, N. Samoznanie. Opyt filosofskoy autobiografii . Paris, YMCA, 1949, p. 251
PARTE III – OPÇÃO E LUTA
12 – CONSTRUINDO O SOCIALISMO
9. Bol’shevik , n. 8, 1925, p. 7
10. TsPA IML, f. 2, op. 2, d. 103
11. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 109, l. 12
12. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 1
52. Trotsky, L.D. Chto i kak proizoshlo. Shest’ statei dlya mirovoy burzhuaznoy pechati . Paris, 1929, p.
9
53. Ibid . p. 60
16 – A VIDA PARTICULAR DO LÍDER
8. Ibid . p. 1308
12. Churchill, W. History of the Second World War , Londres, 1951, vol. 4, pp. 447-448
19. Istoriya SSSR s drevneishikh vremen do nashikh dnei . Moscou, 1966, vol. 9, parte 1, pp. 189-190
18 – O DRAMA DE BUKHARIN
26. Cohen, S. Bukharin and the Bolshevik Revolution: A Political Biography, 1888-1938 . Londres,
1974, p. 325
38. Stalin, Sochineniya , vol. 13, pp. 107, 111, 114, 119-120
45. Ibid . p. 18
46. Ibid . p. 28
61. Citado em Pompeyev, Yu. Khochetsya zhit’ i zhit’. Dokumental’naya povest’ o S.M. Kirove . Moscou,
1987, p. 8
62. Ibid . p. 18
63. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3334
67. Stalin, I.V. Beseda s angliiskim pisatelem G. Uell’som , Moscou, 1935, pp. 13, 14, 16
68. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3179
PARTE V – O MANTO DO LÍDER
22 – PERSONALIDADE DOMINANTE
5. Bol’shevik , n. 9, 1937, p. 9
25. Vasilievsky, A.M. Delo vsei zhizni . 3ª ed. Moscou, 1978, p. 501
26. Churchill, W. op. cit. p. 434
27. K pyatidesyatiletiyu so dnya rozhdeniya I.V. Stalina . Moscou, 1940, pp. 268-274
28. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 26
29. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 149, l. 108
24 – CESARISMO
30. Feuchtwanger, L. Moskva 1937. Otchet o poezdke dlya moikh druzei . Trad. do alemão. Moscou,
1937, pp. 58-59
31. Ibid . p. 64
36. Ibid . l. 28
43. XXII s’ezd KPSS. Stenograficheskii otchet . Moscou, 1962, vol. 2, p. 404
44. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 203, l. 366
45. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2897
46. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 32
47. Ibid
48. Ibid
49. Ibid . l. 24-35
57. Trotsky, L.D. Sochineniya , vol. 15, “Khozyastvennoe stroitel’stvo Sovetskoy respubliki.” Moscou-
Leningrado, 1927, pp. 41-51
63. Ibid . vol. 17, “Sovetskaya respublika i kapitalistecheskii mir.” Parte 1, p. 144
68. Narodnoe khozyastvo SSSR za 70 let. Yubileinyi staisticheskii ezhegodnik . Moscou, 1987, p. 32
69. Ibid . p. 37
70. Ibid . p. 39
5. Ibid . n. 8, p. 89
7. Kanal imeni Stalina (Belomoro-Baltiiskii kanal imeni Stalina. Istoriya stroitel’stva pod red. M.
Gor’kogo, L. Averbakha, S. Firina). Moscou, 1934, p. 12
8. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 1-3
9. Ibid . l. 6
10. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1075, l. 37-42
11. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 8-16
12. Ibid . l. 57
13. Ibid
14. Ibid . l. 8
24. Arkhiv voennoy kollegii Verkhovnogo suda SSSR , f. 75, op. 35, d. 319, l. 10-35
28. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 891, l. 25-31; vide A.L. “Bukharina,” Nezabyvaemoe . Moscou, 1989,
p. 319
45. Arkhiv voennoy kollegii Verkhovnogo suda SSSR , f. 74, op. 35, d. 315, l. 51
45a. Ibid . l. 50
46. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 639, l. 24-29
50. Ibid .
51. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 633, l. 2-26
52. TsGAOR, f. 9401, op. 1, d. 2181
53. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 577
31 – A “TRAMA” TUKHACHEVSKY
54. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1036, l. 270-274
55. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 615
56. Citado em Ivanov, V. Marshal Tukhachevskii . Moscou, 1985, p. 128
57. TsGASA, f. 614, op. 2, d. 18, l. 7
58. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 400, l. 137-139
59. Manuscrito de Viktorov de posse do autor
73. Arkhiv voennoy kollegii Verkhovkogo suda SSSR , f. 74, op. 35, d. 315, l. 46
74. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1075, l. 57-63
78. Ibid .
VOLUME II
Abreviatura do nome dos arquivos citados:
Arkhiv IKKI – Arquivos do Comitê Executivo da Internacional Comunista
AVP SSSR – Arquivos da Política Externa Soviética, Ministério do Exterior
TsAMO SSSR – Arquivos Centrais do Ministério Soviético da Defesa
TsGAOR – Arquivos Centrais Estatais da Revolução de Outubro
TsGASA – Arquivos Centrais Estatais do Exército Soviético
TsPA IML – Arquivos Centrais do Partido no Instituto de Marxismo-Leninismo
PARTE VII – NO LIMIAR DA GUERRA
34 – MANOBRAS POLÍTICAS
1. XVIII s’ ezd Vsesoyuznoy Kommunisticheskoy partii (bol’shevikov). Stenografichaeskii otchet .
Moscou, 1939, p. 18
2. Ibid . p. 26
3. Ibid . p. 2
4. Dokumenty i materialy kanuna vtoroy mirovoy voiny , 1937-39. 2 vols. Moscou, 1981, vol. 2, p. 47
5. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 109, l. 32-33
6. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 9
7. AVP SSSR, f. 06, op. 1, p.19, d. 206, l. 551
8. AVP SSSR, f. 06, op. 1, p.1, d. 5, l. 554
9. AVP SSSR, f. 082, op. 22, p. 93, d. 7, l. 798
10. SSSR v bor’be protiv fashistskoy agressii , 1933-1945, Moscou, 1976, p.66
11. TsAMO SSSR, f. 5, op. 176 703, d. 7, l. 431
29. Akten zur deutschen auswärtigen Politik 1918-1945 . Baden-Baden, 1956, vol. 7, p. 131
35 – REVIRAVOLTA
30. AVP SSSR, f. 0745, op. 15, p. 38, d. 8, l. 149
55. Ibid
36 – STALIN E O EXÉRCITO
76. Voznesensky, N.A. Voennaya ekonomika SSSR v period Otechestvennoy voiny . Moscou, 1948, p. 78
77. TsAMO, f. 15a, op. 2154, d. 4, l. 224-233
78. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 653
81. Siqueiros, D.A. Menya nazyvali likhim polkovnikom . Moscou, 1986, p. 220
82. Trotsky, op. cit. pp. 164-166
37 – DIPLOMACIA SECRETA
84. Vneshnyaya politika SSSR. Sbornik dokumentov , vol. 4. Moscou, 1946, p. 417
85. Istoriya vneshnei politiki SSSR 1917-1945 . Moscou, 1980, vol. 1, pp. 371-372
90. Leonhardt, W. Der Schock des Hitler-Stalin Paktes . Freiburg, 1986, pp. 66-68, 79-84
91. AVP SSSR, f. 011, op. 4, p. 25, d. 11, l. 1462-1463
92. TsAMO, f. 500, op. 12 458a, d. 34, 1.17
93. TsAMO, f. 500, op. 12 462, d. 7, l. 1-6
94. Voenno-istoricheskii zhurnal , nº 9, 1987, p. 54
53. Stalin, I.V. O Velikoy Otechestvennoy voine Sovetskogo Soyuza . Moscou, 1950, p. 35
44 – O CATIVEIRO E O GENERAL VLASOV
59. Gems, Ditte, Hitlers Wehrmacht in der Sovjetunion . Frankfurt am Main, 1985, p. 41
60. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 135, l. 1-2
61. TsAMO, f. 33, op. 11 454, d. 179, l. 1-2
62. TsAMO, f. 38, op. 11 389, d. 2, l. 164-166
63. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 42, l. 18-22
64. TsAMO, f. 48-A, op. 1640, d. 26, l. 296
65. TsAMO, f. 32-A, op. 11 309, d. 163, l. 15-45
66. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 7, l. 201
67. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 195, l. 249-253
68. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 142, t. III, l. 102-103
69. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 68, t. V, l. 102
70. TsGAOR, f. 9401, op. 1, d. 2010, l. 67-69
71. TsGAOR, f. 109, op. 1, d. 2010, l. 67-69
76. Hoffmann, J. Die Geschichte der Wlassow Armee . Rombach, 1986, p. 377. TsGAOR, f. 9401, op. 2,
d. 64, t. I, l. 9-12
PARTE IX – O COMANDANTE SUPREMO
45 – O QUARTEL-GENERAL
1. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 30, l. 24
13. Ibid .
14. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 2, l. 175
15. TsAMO, f. 3, op. 11 556. d. 9, l. 128-129
16. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 13, l. 7, 8
17. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 9
18. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 336
19. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 339
20. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 159, l. 87
47 – O COMANDANTE E SEUS GENERAIS
21. Stalin, op. cit., p. 71-72
22. Zhukov, op. cit., vol. 2, p. 99
48. Tegeranskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav. Sb. dokumentov . Moscou, 1978,
vol. 2, pp. 52, 53
49. Ibid ., p. 54
49 – STALIN E OS ALIADOS
50. TsAMO, f. 1178, op. 1.d. 38, l. 93
51. TsAMO, f. 236, op. 2675, d. 170, d. 108-311
53. Ibid ., p. 54
54. Perepiska Predsedatelya Soveta Ministrov SSSR s Prezidentami SShA and Premier-Ministrami
Velikobritanii (1941-1945 gg.) . Moscou, 1976, vol. 1, p. 19
56. The Diaries of Sir Alexander Cadogan , 1938-1945. Nova York, 1971, p. 471.
60. Tegeranskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznukh derzhav. Sbornik dokumentov . vol. 2, p.
167
64. Harriman, W. Averell e Elie Abel, Special Envoy to Churchill and Stalin,1941-1946 , Nova York,
1976, p. 536
65. Lundin, C.L. Finland in the Second World War . Bloomington, 1957, p. 216
66. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 74
67. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 16, l. 183
68. TsAMO, f. 3, op. 11 56, d. 18, l. 93
69. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 142-144
70. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 110
71. TsAMO, f. 48-A, op. 3412, d. 63, l. 187-188
72. Krymskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav. Sbornik dokumentov . Moscou,
1979, p. 273
73. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 177-190
PARTE X – CLÍMAX DO CULTO
50 – O PREÇO DA VITÓRIA
2. Ibid ., p. 97
4. Gromyko, Andrei, Memories . Editado e traduzido por Harold Shukman, Londres, 1989, p. 108
5. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 97, t. VI, l. 124-130
12. Berlinskaya (Potsdamskaya) konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav – SSSR, SShA i
Velikobritanii (17 iyulii-2 avgusta 1945 g.) Sbornik dokumentov . Moscou, 1980, pp. 42-43
13. TsAMO, f. 66, op. 178499, d. 9, l. 34-37
14. TsAMO, f. 66, op. 178499, d. 9, l. 61
45. Ibid ., l. 13
46. Ibid ., l. 28
47. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 255, t. I, l. 118-119
48. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 319, 192-198
49. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 269, 199, l. 57-77, 366
50. Ibid ., l. 30
53 – O LÍDER ENVELHECE
51. Bol’shevik, dezembro de 1949, p. 34
52. TsGAOR, f. 7523, op. 6, d. 739, l. 1, 9, 12
53. TsGAOR, f. 7523, op. 63, d. 218a, l. 9
54. TsGAOR, f. 7523, op. 65, d. 2186, l. 1-15
55. Kautsky, K. “Sozialdemokratie und Bolschewismus” in Die Gesellschaft , nº 8, 1931, vol. 1, p.101
56. Alliluyeva, S. Tol’ko odin god . Nova York, 1968, pp. 109-110
54 – VENTOS GÉLIDOS
59. Truman, H. Mémoires , vol. 2 “L’appel des decisions”. Paris, 1955, p. 112
60. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 151, t. VIII, l. 99-112
61. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 176, t. II, l. 235-254
62. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 149, t. VI, l. 35
63. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 176, t. II, l. 360
64. TsPA IML, f. 77, op. 5, d. 54, l. 14-15
65. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 92, l. 47, 55
75. Pravda , 25 de outubro de 1988: vide Gromyko, A. Memories , tradução H. Shukman, Londres,
1989, e material adicional em Memoirs , Nova York, 1990, pp. 248-53
11. Serge, V. Destin d’une revolution . URSS 1917-1936. Paris, 1937, p. 323
56 – DOGMAS MUMIFICADOS
12. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 906, l. 44-52
13. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3212, l. 27
14. TsPA IML, f. 77, op. 1, d. 268, l. 5-l0
15. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 54, l. 1-4
16. Ibid .
17. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 136, t. III, l. 205
18. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 302, t. I, l. 29-31
57 – BUROCRACIA ABSOLUTA
19. Lenin, PSS, vol. 35, p. 113 20. Ibid., vol. 50, p. 238
21. TsGAOR, f. 58, op. 1, d. 9, l. 3-4
22. TsGAOR, f. 567, op. 1, d. 89, l. 29
23. Lenin, PSS, vol. 44, p. 171
24. Ibid .
31. Wood, A. “Siberia before 1917.” Em Shukman, H. The Blackwell Encyclopedia of the Russian
Revolution . Oxford, 1988, p. 258; Pipes, R. Russia under the Old Regime , Cambridge, MA., 1981, p.
417
32. TsGAOR, f. 7523, op. 65, d. 231, l. 12
33. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2223, l. 338-357
34. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 98, t. VII, l. 380
35. TsGAOR, f. 9401, op. I, d. 2180, l. 533-534
36. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 172. t. I, l. 325-326
58 – DEUSES TERRENOS SÃO MORTAIS
39. Rapoport, Ya.L. Na rubezhe dvukh epokh. Delo vrachei 1953 goda . Moscou, 1988, pp. 208-209.
40. TsGAOR, f. 7523, op. 107, d. 261, l. 28-34
59 – DERROTA PELA HISTÓRIA
41. KPSS v rezolyutsiyakh i resheniyakh s’ ezdov, konferentsii i plenumov TsK (1898-1971) . 8ª ed.
Moscou, 1971, vol. 7, pp. 203, 205, 209, 210
1. Iosef Djugashvili, estudante da escola teológica de Gori, 1893.
2. Yekaterina (Kato) Svanidze, primeira mulher de Stalin.
3. Na aldeia de Monastyrskoe, 1915, um grupo de membros do comitê central exilados: Stalin é o
terceiro a partir da esquerda, na fila de trás, de chapéu preto. L.B. Kamenev à direita dele. G.I.
Petrovsky está sentado ao centro. À direita dele, Ya.M. Sverdlov.
11. 1º de Maio de 1925, Praça Vermelha, Moscou. Em frente ao mausoléu provisório de Lenin, ainda de
madeira: Kon, Yenukidze, Sedakyan, Muklevich, Voroshilov, Bubnov, Unshlikht, Baranov,
Tukhachevsky, Yegorov e Budenny. Sobre o mausoléu: Kirov, Rykov, Bukharin, Kalinin, Stalin,
Schmidt, Tomsky, Yaroslavsky, Postyshev e outros.
12. O que toca às mulheres… construindo os fornos de carvão coque em Magnitogorsk, 1931.
18. Voroshilov com generais, futuras vítimas do terror: Gamarnik, Slavin, Dubov, Dybenko, Kork,
Khalepsky e Yakir, durante um intervalo do XVII Congresso.
19. Voroshilov, Molotov, Stalin e Yezhov no canal Moscou-Volga.
46. Os alemães chegam a Moscou, mas como prisioneiros de guerra, julho de 1944.
47. Os libertadores, a pé, rumo a Berlim.
48. Stalin com seus filhos Vasili e Svetlana, na reserva de Chernaya Rechka (Rio Negro), 1947.
49. Comício pré-eleitoral nos distritos Stalin e Bauman de Moscou, apresentando Stalin para o Soviete
Supremo, 15 de fevereiro de 1950.
50. Meninos e meninas Pioneiros entregam flores a Stalin em seu septuagésimo aniversário, 21 de
dezembro de 1949.
51. O sepultamento de Stalin. Sobre o Mausoléu estão Palmiro Togliatti, da Itália; Dolores Ibarruri, da
Espanha; Vulko Chervenkov, da Bulgária; Mátyas Rákosi, da Hungria; Robert Kenny, do Canadá;
Jacques Duclos, da França; Klement Gottwald, da Tchecoslováquia; Bulganin, Molotov, Voroshilov,
Malenkov, Khruschev; Chou En-lai, da China; Beria, Yudin, Kaganovich, Mikoyan, Saburov, Pervukhin
e Shvernik.
DIREÇÃO GERAL
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DIREÇÃO EDITORIAL
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EDITORA RESPONSÁVEL
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CAPA
Studio DelRey
DIAGRAMAÇÃO
Filigrana
PRODUÇÃO DO E BOOK
Ranna Studio
Table of Contents
Rosto
Créditos
Sumário
1° VOLUME
Prefácio
Agradecimento do autor
Introdução
1 – Um retrato
2 – Fevereiro, o prólogo
3 – Os atores coadjuvantes
4 – O levante
6 – Guerra civil
7 – Camaradas em armas
8 – O secretário-geral
9 – A carta ao Congresso
10 – Stalin ou Trotsky?
11 – As raízes da tragédia
14 – Desalinho intelectual
15 – A derrota do “Inimigo nº 1”
17 – O destino do campo
18 – O drama de Bukharin
19 – Ditadura e democracia
21 – Stalin e Kirov
22 – Personalidade dominante
23 – O intelecto de Stalin
24 – Cesarismo
25 – À sombra do chefe
26 – O fantasma de Trotsky
27 – Um vencedor popular
28 – Inimigos do povo
29 – Farsa política
31 – A “trama” Tukhachevsky
32 – O monstro stalinista
2° VOLUME
34 – Manobras políticas
35 – Reviravolta
36 – Stalin e o Exército
37 – O arsenal de defesa
38 – O assassínio do exilado
39 – Diplomacia secreta
40 – Omissões fatais
41 – Choque paralisante
42 – Tempos cruéis
43 – Desastres e esperanças
45 – O quartel-general
46 – Amanhecer em Stalingrado
48 – Ideias de um estrategista
49 – Stalin e os Aliados
51 – Cortina de segredos
52 – Um acesso de violência
53 – O líder envelhece
54 – Ventos gélidos
55 – Anomalia histórica
56 – Dogmas mumificados
57 – Burocracia absoluta
Cronologia
Notas
Encarte
Ficha técnica