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HIGIENE E RAÇA COMO

PROJETOS
higienismo e eugenismo no Brasil
Editora da Universidade Estadual de Maringá

Reitor: Prof. Dr. Gilberto Cezar Pavanelli


Vice-Reitor: Prof. Dr. Angelo Priori
Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Profa Dra Alice Eiko Murakami
Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Keshiyu Nakatani
Coordenador Editorial: Prof. Dr. André Porto Ancona Lopez

CONSELHO EDITORIAL
Profa Dra Clarice Zamonaro Cortez, Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik, Prof. Dr. Erico
Sengik, Prof. Dr. José Carlos de Sousa, Prof. Dr. José Luiz Lopes Vieira, Prof. Dr. Luiz
Antonio de Souza, Prof. Dr. Lupércio Antonio Pereira, Profa Dra Maria Iolanda Sachuk,
Prof. Dr. Mauro Antonio da Silva Sá Ravaganani, Prof. Dr. Osvaldo Ferrarese Filho, Profa
Dra Ruth Izumi Setoguti e Prof. Dr. Sezinando Luiz Menezes. Secretária: Maria José de
Melo Vandresen.
MARIA LÚCIA BOARINI
Organizadora

HIGIENE E RAÇA COMO


PROJETOS
higienismo e eugenismo no Brasil

Maringá
2003
Divisão de Editoração Marcos Kazuyoshi Sassaka
Marcos Cipriano da Silva
Paulo Bento da Silva
Cristina Akemi Kamicoga
Luciano Wilian da Silva
Solange Marli Oshima
Revisão de Língua Portuguesa Annie Rose dos Santos
Ilustração da capa The Doctor por Sir Luke Fildes (1844-1927)
Reprodução autorizada por Tate Gallery,
Londres, Inglaterra
Capa – arte final Luciano Wilian da Silva
Marcos Kazuyoshi Sassaka
Projeto gráfico e Editoração Marcos Cipriano da Silva
Normalização Biblioteca Central - UEM
Fonte Book Antiqua
Tiragem 500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca Central – UEM, Maringá

H638 Higiene e raça como projetos : higienismo e eugenismo no Brasil / Maria Lúcia
Boarini organizadora. -- Maringá : Eduem, 2003.

216p.
Livro indexado em GeoDados.
http://www.geodados.uem.br
ISBN 85-85545-88-7
1. Higienismo. 2. Eugenia. 3. Movimento eugenista - Brasil. 4. Movimento
higienista - Brasil. 5. Psicologia - Brasil. 6. Psicanálise - Brasil. 7. Higiene mental -
Psiquiatria. 8. Kehl, Renato Ferraz, 1889-. I. Boarini, Maria Lúcia, coord. II. Título..

CDD 21. ed. Cd. 363.92

Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

Copyright 2003 para Maria Lúcia Boarini


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer
processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a
autorização, por escrito, da autora.
Todos os direitos reservados desta edição 2003 para Eduem.
Endereço para correspondência:
Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá
Av. Colombo, 5790 - Campus Universitário, 87020-900 - Maringá-Paraná-Brasil
Fone: (0XX44) 261-4527/261-4394 Fax: (0XX44) 263-5116
Site: http://www.eduem.uem.br - E-mail: eduem@uem.br
UMÁRIO

PREFÁCIO ..................................................................................................................... 7

APRESENTAÇÃO
Maria Lúcia Boarini ................................................................................. 11

HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO DO SOCIAL


Maria Lúcia Boarini ................................................................................. 19

DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTA E EUGENISTA NO


BRASIL
Lilian Denise Mai ..................................................................................... 45

A CRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO


SÉCULO XX: a ação da higiene mental na psiquiatria, na
psicologia e na educação
Paulo Rennes Marçal Ribeiro ................................................................. 71
HIGIENISMO E PSICANÁLISE
Ocimar Aparecido Dacome .................................................................... 97

A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL PARA O


DESENVOLVIMENTO DA PSICOLOGIA NO BRASIL
Lucia Cecilia da Silva .............................................................................. 133

ANTROPOLOGIA E SEGREGAÇÃO EUGÊNICA: Uma leitura


das lições de eugenia de Renato Kehl
Marcos Alexandre Gomes Nalli ............................................................. 165

DEGENERANDO EM BARBÁRIE: A hora e a vez do eugenismo


radical
José Roberto Franco Reis......................................................................... 185
REFÁCIO

Mais do que por mérito acadêmico, a condição de presidente da


Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) me tem proporcionado convites
para prefaciar livros relacionados direta ou indiretamente com a área.
A tarefa nem sempre é fácil, principalmente diante da pluralidade de
nuanças proporcionadas pelas diferentes facetas que emergiram no
processo de construção da Bioética nestes seus 30 anos de vida. Além
de me defrontar com um leque bastante diversificado de temas, pro-
venientes do seu caráter interdisciplinar, três outros aspectos adicio-
nais e que no meu entendimento fazem parte indispensável do
estatuto epistemológico da disciplina, tornam a honrosa empreitada
ainda mais desafiante. Refiro-me ao respeito ao pluralismo moral, ao
processo de secularização da sociedade e ao inevitável enfoque de
totalidade concreta que deve ser dado não somente à realidade que
nos cerca, como também ao conhecimento científico contemporâneo a
partir do seu caráter complexo apontado por Edgar Morin.
O livro organizado pela professora Maria Lúcia Boarini, com a co-
laboração inestimável de um grupo de qualificados pesquisadores,
não pode ser genuinamente considerada como proveniente do campo
da bioética. No entanto, a partir da temática escolhida – higienismo e
eugenismo no Brasil – e levando-se em consideração a forma como o
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

assunto é abordado e sistematizado, ele certamente passa a fazer parte


indispensável das bibliotecas dos bioeticistas, além de que não poderá
deixar de ser lido daqui para a frente por aqueles estudiosos e interes-
sados especificamente no assunto, sejam psicólogos, médicos, antro-
pólogos, advogados, sociólogos, teólogos...
Utilizo a bioética como foco deste texto de apresentação por duas
razões. A primeira é que, pela minha formação, a tarefa fica natural-
mente facilitada. E a segunda, obviamente muito mais importante, é
que a leitura da obra, para sua melhor compreensão, exige olhares
multi, inter e transdisciplinares. Retornando ao estatuto epistemológi-
co da bioética anteriormente enunciado, além do enfoque integrado
que o assunto exige para sua abordagem e já mencionado, a discussão
sobre higienismo/eugenia deve partir da realidade concreta em que
vivemos neste início de século XXI. Neste sentido, a bioética surge
como uma nova ferramenta, um novo instrumento que contribui para
uma leitura mais ampliada e atualizada do tema.
Originando divergências e gerando conflitos morais de maior ou
menor profundidade, de maior ou menor envergadura, os dois temas
que são objeto da obra já fazem parte da nossa pauta quotidiana, com
fatos e argumentos aceitos por uns e condenados por outros.
Vou ater-me a apenas dois fatos recentes para ilustrar a discussão.
O primeiro deles, raro, aconteceu em maio de 2002 e foi fartamente
noticiado pela imprensa internacional. Um casal de lésbicas norte-
americanas, ambas surdas de nascimento, resolveu gerar um bebê
igualmente surdo. Conseguiram uma partida de esperma proveniente
de um doador surdo por herança genética e contrataram um médico
especialista em reprodução assistida. Com óvulos de uma delas foi
conseguida uma fecundação in vitro, sendo o embrião posteriormente
implantado no seu útero. Sob o ponto de vista técnico, a empreitada
foi um sucesso. Passados nove meses, a criança nasceu. Surda! A limi-
tação técnica, portanto, foi superada. Resta, contudo, a perplexidade
ética (ou moral, se os leitores preferirem [...]), que obriga-nos a duas
perguntas. Uma delas relacionada ao tema do respeito ao pluralismo
moral e a outra à eugenia propriamente dita. Com relação ao primeiro
aspecto, é crescente o número de pessoas que entende como moral-
mente aceitável o fato de dois indivíduos do mesmo sexo terem o
direito a ter um filho, seja pela via natural ou por meio de adoção. A

8
REFÁCIO

maioria, no entanto, é contrária, defendendo a manutenção da atual


estrutura familiar. Quanto ao outro aspecto, o de gerar uma criança
com um “defeito programado de fabricação”, manifestei na época
minha severa discordância em entrevista à jornalista Roberta Jansen,
da editoria de ciência de O Globo, considerando o fato como um caso
de eugenia negativa. Ou seja, uma espécie de “purificação da raça ao
contrário”, se me permitirem a paradoxal expressão.
O segundo exemplo se refere a um fato que diariamente sucede de
norte a sul no País. Sem chamar muito a atenção dos meios científicos,
da sociedade de uma forma geral ou da própria imprensa, a seleção
de embriões no caso de supra-numerários provenientes de diferentes
técnicas da fecundação assistida (triplos, quádruplos...) é executada
em número muito maior do que se imagina. Os embriões escolhidos
para serem eliminados ou “descartados” – fato que tecnicamente sig-
nifica um aborto e, portanto, crime sob a ótica legislativa brasileira –
são sempre aqueles menores, mais frágeis ou situados em posição
uterina menos privilegiada. Ora, este procedimento não deixa de ser
uma espécie de “seleção dos melhores”.
Se o primeiro exemplo não exige muito esforço intelectual para
a manifestação de nossa reprovação, o segundo é bem mais com-
plexo. Por um lado, sob o ponto de vista preventivo, é indispensá-
vel que a legislação brasileira (que após 18 longos anos de
utilização da técnica no Brasil incompreensivelmente ainda não foi
sancionada pelo Congresso [...]), limite a um ou dois o número
máximo de embriões a serem implantados, como recentemente
decidiu o Reino Unido. Basta de tantos gêmeos, trigêmeos, quadri-
gêmeos [...] ou de reduções embrionárias conseqüentes à falta de
planejamento. Já passou da hora das técnicas de reprodução assis-
tida serem aprimoradas, para que se reduzam os riscos e custos.
Por outro lado, pergunto, é justo estimular o nascimento de criatu-
ras que venham ao mundo carregando profundas limitações físicas
e/ou mentais? E ainda, vale adicionar outra questão: com o Projeto
Genoma Humano e o progresso da terapia gênica, consistirá em
prática eugênica “consertar” preventivamente pares danificados de
gens detectados em fase intra-uterina?
Como o caro leitor pode perceber, pelo menos nestes dois últimos
caso, as perguntas são bem mais fáceis que as respostas. Estas, exigem

9
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

profundas discussões, desarmamento de espíritos, quebras de pré-


conceitos e, acima de tudo, muito diálogo.
“Higiene e Raça como Projetos: Higienismo e eugenismo no Bra-
sil” chega em muito boa hora para auxiliar-nos na reflexão de toda
essa atualíssima, complexa e ao, mesmo tempo, fascinante temática.
Bom proveito!
.

Volnei Garrafa
Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética

10
PRESENTAÇÃO
MARIA LÚCIA BOARINI

No século 16, exploradores mapearam o mundo. No século 20,


astrônomos mapearam o Universo, enquanto físicos mapearam o
mundo do átomo. O século 21 se abre com o mapeamento dos
genes (Gleiser, 2000, p. 17).

Recentemente a sociedade internacional surpreendeu-se, através


da imprensa comum, com a notícia de que países de primeiro mundo,
tais como Suécia, Noruega, Finlândia, Dinamarca, Suíça e Áustria,
tradicionalmente conhecidos pela solidariedade com os ‘mais necessi-
tados’, continuaram até depois da II Guerra Mundial a esterilizar ‘dis-
cretamente’ cidadãos qualificados de ‘baixa qualidade racial’. Nessa
classificação incluía-se o doente mental, o deficiente mental, físico e
sensorial “e outras pessoas consideradas inferiores, como delinqüen-
tes, prostitutas e ciganos”. A limpeza da raça continuou sendo prati-
cada até os anos 60, “quando os casos, enfim, foram diminuindo até a
extinção das leis, sem alarde, na década seguinte”. Ainda nessa linha
de denúncia, a imprensa sueca revela que doentes e deficientes men-
tais foram utilizados como cobaias em pesquisa cujo objetivo era des-
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

cobrir as causas da ocorrência de cáries e outras doenças dentárias.


Em entrevista realizada com o dentista sueco Bo Krassi, participante
da pesquisa, este afirma que “a utilização não-voluntária de doentes
mentais foi a melhor solução, porque as doenças dentárias eram o
principal problema de saúde pública”. Quando solicitado a avaliar
eticamente esse procedimento, Krassi responde que “naquela época, o
experimento não foi considerado aético. Foi uma decisão aprovada
pela Comissão de Ética” (Dias, 1997, p. 14).
Essas informações descontextualizadas historicamente, via de re-
gra, escandalizam o homem contemporâneo e deixam a impressão de
ser um fato localizado no tempo e no espaço. Ao se recuperar a histó-
ria, vamos observar que a eugenia ou a preocupação com a qualida-
de/purificação da raça é uma questão antiga.
Embora a primeira sistematização das principais idéias da eu-
genia, de autoria de Francis Galton, tenha sido publicado em 1869
sob o título Hereditary Genius, temos registro de propostas de eli-
minação do diferente da norma estabelecida, da busca da hegemo-
nia e da previsibilidade, enfim, do controle social, desde a
antiguidade grega, com A República de Platão. Atualmente, com o
acelerado avanço da genética e sobretudo da biologia celular, a
eugenia deixou de ser apenas uma ‘intenção eugênica’ ou proposta
e prática de caráter rigorosamente especulativo, sem qualquer sus-
tentação de ordem científica. Basta citar a criação do transgênico, a
modificação do organismo através da transformação programada
do patrimônio genético de sua célula, as promessas de eliminação
de doenças por imperfeições genéticas, a possibilidade de insemi-
nação artificial, de clonagem de milho, de soja, de cabras, ovelhas,
vacas e tantos outros vegetais e animais, o que acena com a pers-
pectiva de clonagem humana. Em síntese, a possibilidade de euge-
nizar o diferente, em nossos dias, conta com ‘certezas’ científicas
cada vez mais próximas de todos nós.
A ciência e a técnica, atualmente, podem quase tudo. Outrossim,
temos comprovação histórica de que os avanços científicos e o direito
não ocorrem em sincronia. Daí o ‘vazio’ jurídico criado, o qual, em
conseqüência, exige de toda a sociedade reflexões e propostas de en-
caminhamentos (Santos, 2000). Se considerarmos, também, que a cada
novo avanço da ciência um novo dilema ético é apresentado para a
humanidade resolver, vamos nos dando conta de que, em nossos dias,

12
PRESENTAÇÃO

como afirma Volnei Garrafa, “as limitações não são nem técnicas, nem
cientificas. São éticas” (Berlinguer; Garrafa, 1996).
Nesta perspectiva, estamos diante da necessidade de amplo deba-
te sobre temas gerados pelos avanços da ciência. Vale sublinhar que
essa discussão se torna cada vez mais premente a cada nova e extra-
ordinária descoberta científica. Nessa direção, a nosso entender, nada
mais oportuna e imprescindível a recuperação de algumas das idéias e
propostas de encaminhamentos sugeridas pelos eugenistas na transi-
ção dos séculos XIX e XX, as quais tiveram significativa expressão na
dinâmica da formação social.
Se por uma mera questão de introdução ao assunto vimos até aqui
destacando apenas a eugenia, em uma discussão mais ampla é neces-
sário levar em conta os ideais higienistas e o seu desdobramento mais
importante, a higiene mental. Nos limites da sociedade burguesa, no
Brasil, para o qual dirigimos nosso olhar mais detidamente, os ideais
da eugenia e do higienismo sobrepuseram-se em grande medida. Para
Kehl (1935, p. 46):

a higiene, por exemplo, procura melhorar as condições do meio e


as individuais, para tornar os homens em melhor estado físico, a
eugenia, intermediária entre a higiene social e a medicina pratica,
favorecendo os fatores sociais de tendência seletiva, se esforça pelo
constante e progressivo multiplicar de indivíduos ‘bem dotados’ ou
eugenizados.

Tal qual a higiene geral,

a hygiene mental tem um importantíssimo e um enorme programma a


realizar. O seu programma é manter o ajustamento das funcções
psychicas individuaes ao meio social e cósmico, ou vice-versa, evitando,
deste modo, os desequilíbrios e desajustamentos que constituem as
doenças mentaes (Caldas, 1932, p. 29).

Em solo brasileiro, a articulação entre esses dois movimentos to-


ma tamanha proporção que, em determinado momento, a eugenia
passa a ser entendida como parte do higienismo, como pode ser cons-
tatado no discurso de Lopes (1930, p. 93) durante o II Congresso Brasi-
leiro de Higiene ocorrido em 1924: “eu creio firmemente [que]
haveremos de ser conduzidos a esse ideal magnífico pela mão da higiene

13
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

e da eugenia [...]. [e da] hygiene mental – da qual é a eugenia um capítulo”


(grifos nossos).
Nosso objetivo, nesta coletânea, é recuperar alguns aspectos
desses movimentos sociais (embora não populares) e dimensionar,
sob a lente da época em que ocorreram, como foram político e his-
toricamente construídos. Partimos do princípio de que as idéias e
preocupações dos cientistas de uma época não são emancipadas
das relações sociais até então existentes; estas traduzem questões
determinadas historicamente, e como tais devem ser recuperadas.
Analisando fenômenos sociais de séculos ou de décadas anteriores
com os recursos da atualidade, corremos o risco de confundir limi-
tações históricas com equívocos de seus autores. Sob este prisma,
interessa-nos compreender como as avaliações dos eugenistas e
higienistas, chanceladas pela ciências naturais, contribuíram com a
cor e o tom de determinados encaminhamentos sociais. Quiçá pos-
samos, desta forma, oferecer subsídios para uma avaliação das
semelhanças com encaminhamentos da atualidade.
Vale ressaltar que esses temas, a eugenia e o higienismo, têm sido
objeto de estudo de vários pesquisadores de diferentes áreas do co-
nhecimento (antropologia, psiquiatria, medicina, história etc.), haja
vista a formação acadêmica dos autores deste livro, integrantes do
GEPHE – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Higienismo e o Eu-
genismo, o que denota as inúmeras interfaces desse fenômeno social.
Deste modo, temos claro os limites da discussão aqui proposta, tradu-
zidos pela impossibilidade de esgotar todos os complexos elementos
que edificam o fenômeno em tela. E, por conta dessa limitação, emer-
ge a necessidade de escolhas; em nosso caso, com exceção do primeiro
capítulo, o qual objetiva fazer uma breve digressão pela história das
idéias, os demais capítulos circunscrevem-se aos movimentos higie-
nistas e eugenistas acontecidos no Brasil. Com isto, queremos sinalizar
que esses movimentos tiveram forte repercussão internacional, e em
alguns países deixaram de habitar apenas o terreno das idéias para se
viabilizarem de fato, como já ilustramos. Não obstante esse reconhe-
cimento, temos a ambição de que esta obra possa integrar-se ao signi-
ficativo acervo analítico já existente.
Sob esta ótica, iniciamos o capítulo 1 com um texto de nossa auto-
ria, intitulado Higienismo, eugenia e a naturalização do social, no qual,
sem a pretensão de traçarmos a linha do tempo das idéias, pontuamos

14
PRESENTAÇÃO

a recorrência histórica ao argumento do estado de natureza, quer seja


no sentido de subverter a ordem instaurada, como no caso dos ilumi-
nistas da longínqua transição da Idade Média para a Idade Moderna,
quer seja para manter as condições existentes, como parece ter sido o
caso das idéias eugenistas e higienistas. Desta maneira, estamos que-
rendo dizer que, ao tentar resolver problemas de natureza coletiva,
através da higiene do corpo ou da eugenização da raça, ainda que
esses problemas sejam inerentes à saúde, tais como as epidemias e as
endemias, as propostas higienistas e eugenistas escamoteavam con-
tradições postas pela organização social do trabalho. Ao não conside-
rarem a saúde como expressão das condições sociais de existência,
mas única e exclusivamente como responsabilidade do indivíduo,
naturalizavam-se os antagonismos, os conflitos e as diferenças estabe-
lecidas pelas relações sociais. Ao proporem encaminhamentos funda-
mentados nos saberes produzidos pela ciência da natureza para
enfrentar os difíceis problemas existentes na época, de ordem econô-
mico-social, ou, ainda, ao proporem intervenções de ordem psíquica
ou moral, os higienistas e eugenistas, paradoxalmente, abandonaram
essa ciência ao subvertê-la. E embora fique muito claro o empenho
desses intelectuais para solucionar os problemas da época, suas pro-
duções literárias, salvo erro de interpretação, revelam idéias fortemen-
te marcadas pelo irracionalismo.
Interessante notar que tal empenho não era circunscrito a refle-
xões produzidas nos limites de um gabinete. Lilian Denise Mai, no
artigo Difusão dos ideários higienista e eugenista no Brasil, indica que “os
higienistas e eugenistas brasileiros não se abateram ou desanimaram”
ante os precários recursos dos meios de comunicação existentes na
época, inclusive os de ordem financeira. Orientados pela crença e de-
terminação de que a grandeza de uma nação se processava através da
busca do ajustamento e da harmonia social, “consciência sanitária e
cívica” e do melhoramento genético do seu povo, propuseram solu-
ções para os variados e difíceis problemas da época. Dentre essas pro-
postas, a prevenção foi uma das mais importantes bandeiras desse
grupo, que assumiu, para si, a tarefa de tornar o Brasil uma grande
nação. A orientação de Porto-Carrero (1932, p. 92) postula: “de peque-
nino é que se torce o pepino, diz a sabedoria popular”; assim, foram
inúmeras as propostas tendo como figura principal a criança e como
cenário a família e a escola. Neste sentido, o capítulo 3, “A criança

15
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

brasileira nas primeiras décadas do século XX: a ação da higiene men-


tal na psiquiatria, na psicologia e na educação”, de Paulo Rennes Mar-
çal Ribeiro, aponta os diferentes estudos e investimentos realizados
para a criança brasileira. Criança esta que será ‘olhada’ com a lente da
recém ingressa no Brasil: a jovem psicanálise. No capítulo 4, “Higie-
nismo e Psicanálise”, Ocimar Aparecido Dacome indicará como acon-
teceu essa estranha relação. Estranha à medida que Sigmund Freud
(1859-1939), criador da Psicanálise, tornou-se um baluarte do pensa-
mento contemporâneo por desvelar a existência do inconsciente em
categoria abstrata, impalpável e de certa forma incontrolável. Se le-
varmos em conta que uma das mais importantes reivindicações dos
movimentos em pauta era o controle de toda ordem, a acolhida e o
desenvolvimento da Psicanálise pelos higienistas, no Brasil, é um te-
ma deveras intrigante. Sem inspirar polêmicas ou estranheza, a i-
gualmente ‘jovem’ Psicologia também chega ao Brasil pelas mãos dos
higienistas e, junto a este grupo, presta-se, também, à importante tare-
fa de legitimar cientificamente as explicações e os encaminhamentos
sugeridos para todo e qualquer entrevero que, ainda de longe, viesse
abalar a ordem estabelecida, como, por exemplo, as greves da classe
operária (entenda-se homens, mulheres e crianças), que se organizava
e se insurgia, cada vez com mais freqüência, contra as péssimas condi-
ções de trabalho a que era submetida. Essas greves eram explicadas
pelos higienistas como inaptidão para o oficio, e que uma rigorosa
seleção profissional, por intermédio da psicometria, poderia resolver.
Desta forma, acolhida e prestigiada pelos higienistas brasileiros, a
Psicologia, valendo-se do rigor estatístico e ciências afins, é triun-
fante na sua importante função de justificar, explicar e propor so-
luções setoriais para problemas gerais de ordem político-social. São
essas as questões tratadas por Lucia Cecília da Silva no capítulo 5,
“A contribuição da higiene mental para o desenvolvimento da Psi-
cologia no Brasil”. Se as propostas higienistas fundamentadas nos
estudos da Psicanálise e da Psicologia, de maneira geral, não pro-
vocaram polêmicas e não encontraram resistência, o mesmo não se
pode afirmar das propostas de caráter eugênico, sobretudo quando
se tratava da esterilização dos ‘tarados hereditários’, embora ‘justi-
ficada cientificamente’. Ouviam-se vozes divergentes até mesmo
oriundas do interior do próprio grupo, como é o caso do Monse-
nhor Muckerman (1929, p. 3), que afirmava:

16
PRESENTAÇÃO

Não é a esterilização a medida capital para estancar num povo a


massa de inferiores, por herança. Se tivéssemos acentuado,
suficientemente, este ponto, ninguém teria desfigurado a face
humanitária da Eugenia. O essencial, antes de tudo, é opor dique às
fontes de degeneração, é educar convenientemente, os adolescentes
para uma escolha matrimonial que, pelo menos, não arrisque a
saúde dos porvindouros.

Para confirmar a posição da Igreja diante da questão do “impedi-


mento da concepção”, o Papa Pio XI, através da Encíclica Casti connubii,
datada de 30 de dezembro de 1930, assim se pronuncia:

Alguns há que, demasiado zelosos pelos fins “eugênicos” não se


contentam somente com alguns conselhos úteis para velar com
mais segurança pela saúde e vigor da prole – o que decerto não é
contrario a reta razão -, mas antepõem o fim “eugênico a todo
outro fim, ainda que de ordem mais elevada, e desejariam que a
autoridade publica proibisse o matrimonio a todos os que, segundo
as normas e conjecturas de sua ciência, julgam que haveriam de
gerar filhos defeituosos devido à transmissão hereditária, ainda
quando sejam de si aptos para contrair matrimonio [...] atribuindo
aos governantes civis, contra todo o direito e legalidade, uma
faculdade que nunca tiveram e nem podem ter legitimamente [...]
Todos quantos agem desse modo, perversamente se esquecem de
que é mais santa a família do que o Estado, e que os homens não
nascem para a terra, mas para o céu e para a eternidade (Papa Pio
XI apud Tóth, 1945, p. 53).

Resistentes às vozes divergentes, alguns eugenistas mantiveram-se


firmes na proposta de higienizar a diferença e eugenizar o diferente. Den-
tre eles, o médico Renato Kehl foi um dos mais determinados publicistas
desse assunto; e é sobre a epistemologia deste convicto eugenista que
Marcos Alexandre Gomes Nalli voltou seu olhar crítico, e, como resulta-
do, apresenta o capítulo 6, “Antropologia e segregação eugênica: uma
leitura das lições de eugenia de Renato Kehl”. Com tanta preocupação com
a purificação da raça e tamanha obsessão pelas descobertas da biologia,
neste terreno foram fundamentadas muitas propostas ousadas, para as
quais, com o olhar da atualidade, acrescentaríamos o adjetivo ‘corajosas’.
Todavia, esse adjetivo não pode ser creditado a apenas uma biografia.
Tais idéias reveladoras dos conceitos e preconceitos, dos conflitos sociais,

17
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

da luta pela última palavra, pela hegemonia e, por conta disto, o fortale-
cimento da intolerância com o desvio da norma instituída, são expressões
de uma época, de uma organização social que, mediante o acirramento
das contradições em seu seio geradas, recorre às ciências naturais como
álibi. São essas algumas das questões apresentadas por José Roberto
Franco Reis no capítulo 7, “Degenerando em Barbárie: a hora e a vez do
eugenismo radical”.
As reflexões aqui reunidas, longe de exaurir a temática proposta, jus-
tifica-se caso consega estimular o leitor a pensar na vertiginosa escalada
de conhecimentos da genética que possibilita, entre tantas outras coisas,
discriminar os gens responsáveis por esta ou aquela característica huma-
na. Possibilidade essa que, se absorvida sem a devida discussão e ponde-
ração, incrementa o risco de não haver lugar no mundo para um
Machado de Assis (literato, mulato, humilde e epiléptico), por exemplo.

Referências

BERLINGUER, G.; GARRAFA, V. O mercado humano: estudo bioético da com-


pra e venda de partes do corpo. Brasília: UnB, 1996.
CALDAS, M. A euphrenia: sciencia da boa cerebração. Archivos Brasileiros de
Hygiene Mental, Rio de Janeiro, ano 5, p. 29, out./dez. 1932.
DIAS, O. Suécia usou deficiente mental como cobaia. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 23 set. 1997. Folha Mundo, 1º Caderno, p. 14, 1997.
GLEISER, M. Repercussão. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 jun. 2000. Caderno
A, p. 17.
KEHL, R. Lições de eugenia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1935.
LOPES, E. Trabalhos de anti-alcoolismo. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental,
Rio de Janeiro, ano 3, n. 3, p. 91-94, 1930.
MUCKERMANN, H. Eugenia e Catolicismo. Boletim de Eugenia, Rio de Janei-
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PORTO-CARRERO, J. Entrevista do Prof. Julio Porto-Carrero ao “O Globo”
em 10 nov. 1932. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, Rio de Janeiro, ano 5,
p. 92, 1932.
SANTOS, M. C C. O direito de mexer nos genes humanos. Jornal da USP, São
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TÓTH, T. Eugenésia e Catolicismo. Taubaté: Editora S. C. J. , 1945. p. 53.

18
1

IGIENISMO, EUGENIA E
A NATURALIZAÇÃO
DO SOCIAL
MARIA LÚCIA BOARINI

Os homens não são naturalmente nem reis, nem grandes, nem


cortesãos; todos nascem nus e pobres, todos sujeitos às misérias da
vida, às tristezas, aos males, às necessidades, às dores de toda
espécie; e finalmente todos estão condenados à morte (Rousseau,
1978, p. 246).

À primeira vista, a epígrafe sugere um discurso humanista ou um


discurso religioso. Entretanto, se voltarmos o olhar para o passado e
levarmos em conta as contingências históricas e a época em que foi
escrita, nos daremos conta de que a obra Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens, da qual a epígrafe foi reti-
rada, é eminentemente política. Através dessa obra, Jean Jacques
Rousseau está se contrapondo à divisão da sociedade francesa em
clero, nobreza e terceiro estado. A grande questão colocada por Rous-
seau (1978) não é a divisão em si, mas o que isto significava para o
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

segmento da população denominado terceiro estado. Vale lembrar


que o terceiro estado equivalia a 98% da população francesa e a ela
cabia o ônus da manutenção da sociedade. Essa situação de desigual-
dade social era a grande questão existente na França por volta dos
séculos XVII e XVIII.
Ao sugerir que a principal fonte de desigualdade social era a pro-
priedade que gerava maior ou menor riqueza, e argumentando que a
propriedade tal como vinha sendo possuída era uma convenção,
Rousseau (1978) queria dizer que a propriedade não era um direito
natural, e, assim, propõe uma volta ao natural, uma reconstituição do
caminho percorrido pelo homem durante a sua existência, no sentido
de separar a essência da circunstância, com o propósito de diferenciar
o que é natural no homem do que se constitui convencionalmente.
Rousseau (1978) propõe reconhecer quais as forças que atuam e de-
terminam a situação social existente. Partindo do natural, propõe-se a
fundamentar uma nova ordem social; com isto, Rousseau (1978) que-
ria dizer que o estado absolutista não era uma predestinação divina,
tampouco natural, era uma convenção; tinha, portanto, um caráter
ilegítimo. Neste sentido, os homens viviam em desacordo com o que
deveria ser o concreto de sua existência. Rousseau (1978) reconhecia a
necessidade da sociedade reorganizar o empírico de suas relações e,
nestes termos, havia a necessidade de os homens tornarem-se livres e
iguais. Enfim, o Estado deveria organizar-se em outras bases se pre-
tendia a legitimidade.
Ao tratar da desigualdade entre os homens, Rousseau (1978) a-
ponta, também, para a situação ambígua vivida pelos homens em
sociedade; considera que há, na espécie humana, dois tipos de desi-
gualdade: a física ou natural e a moral ou política. É desta união, desta
interdependência que se constitui a sociedade, o corpo social. A desi-
gualdade física (diferença de idade, de saúde, das forças do corpo e
das qualidades do espírito e da alma) é natural e não há o que discu-
tir. E a segunda, que consiste nos vários privilégios que gozam alguns
em prejuízo de outros, como o fato de serem mais ricos, mais podero-
sos e mais homenageados do que estes, ou, ainda, por fazerem-se
obedecer por eles, e que, apesar de ser uma convenção estabelecida
com o consentimento dos homens, apesar de promover a desigualda-
de social, é necessária para o progresso do próprio homem.

20
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

Que progresso poderia conhecer o gênero humano esparso nas


florestas entre os animais? E até que ponto poderiam aperfeiçoar-se
e esclarecer-se mutuamente homens que, não tendo domicílio fixo
nem necessidade uns dos outros, se encontrariam talvez, somente
duas vezes na vida, sem se conhecer e sem se falar? (Rousseau,
1978, p. 228).

Paradoxalmente, é através da convivência e das convenções que


os homens cometem injustiças, promovem a desigualdade social, se
corrompem, mas, por outro lado, é essa convivência que vai produzir
o social, o progresso.
Manter a convivência, sob a ótica de Rousseau[1712-1778] (1978), é
um estado vantajoso e não um estado de guerra, desde que as conven-
ções sejam reveladas e transformadas no sentido de serem justas, pre-
servando a igualdade e a liberdade dos homens; desde que as
convenções se tornem legítimas, e isto só se dará organizando o Esta-
do em outras bases; isto só se dará obedecendo o contrato social. É a
superação da ambigüidade, encontrada por Rousseau (1978).
Buscar no estado de natureza subsídios para propor a igualdade
social não é peculiar apenas a Rousseau (1978). Esse recurso pode ser
observado na antiga Grécia ou mesmo em tempos mais próximos ao
vivido por Rousseau. Como ilustração desse fato, podemos citar a
obra Segundo tratado sobre o governo, publicada em 1689, de John Locke
(1632-1704), que, colocando como referência o estado de natureza,
discute a origem, a organização e os fins da sociedade política e do
governo. Locke é considerado um dos grandes pensadores da socie-
dade burguesa.
Obviamente, por não ser esse o objetivo deste estudo, não vamos nos
estender, aqui, em discussões sobre grandes filósofos, tais como Rousseau
e Locke, que tão bem souberam expressar os anseios da então revolucio-
nária classe burguesa. Sem a pretensão de adentrar na história, mas ne-
cessariamente tendo que dela se aproximar, estamos pontuando que, ao
recorrer ao estado de natureza para justificar mudanças de ordem eco-
nômica, política e social, Locke e Rousseau, cada qual a sua maneira,
ofereceram um importante artifício para legitimar as transformações que
ocorriam na época. Com essa exposição, estamos tentando sinalizar que a
naturalização do social não é apenas um conceito, mas uma concepção de
mundo. Ao se pressupor que os homens, por natureza, são iguais entre si,

21
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

pressupõe-se como corolário a universalização da igualdade. Retornando


aos séculos XVII e XVIII, não é difícil notar que essa concepção de mundo
contrapunha-se frontalmente à sociedade feudal que entendia a organi-
zação social e, portanto, as desigualdades sociais como determinação
divina. Desta forma, ao se demonstrar, pela razão, que a igualdade entre
os homens é uma imposição da natureza, promove-se profundas racha-
duras no edifício do pensamento teológico.

O florescer do racismo

Como já afirmamos anteriormente, buscar no estado de natureza o


argumento para justificar ou negar a organização de uma dada socie-
dade não ocorreu apenas no interior da sociedade medieval, no emba-
te entre a nascente classe burguesa e o clero e a nobreza da Idade
Média. Nos limites de um mesmo período, esse recurso também não
se constitui em monopólio de um segmento da sociedade. Na Idade
Média, a nascente classe burguesa, em razão de seus próprios interes-
ses, valendo-se do argumento de que todos os homens são iguais por
natureza, luta pela equiparação civil e jurídico-formal entre os mem-
bros da sociedade. A nobreza, por sua vez, recorre à natureza para
combater essa equiparação pretendida pela burguesia e justificar a
desigualdade social entre as diferentes classes e raças (Lukacs, 1972).
Para Lukacs, é dessa luta que brota o racismo.

O emprego de conceitos biológicos desfigurados e deformados (portanto


nada tem a ver com a biologia enquanto ciência) se apresentam na
filosofia e na sociologia ao longo da história, de forma simplista ou com
caráter refinados, de acordo com as circunstâncias. Podemos dizer sem
dúvida, que a aplicação de analogias orgânicas ao Estado e a sociedade
busca sempre, e de não de forma casual, nem muito menos, a tendência
para demonstrar a estrutura que em um momento dado apresenta a
sociedade como um estado “natural”. Assim, para os ideólogos da
nobreza nenhuma instituição pode atentar com o risco de estar
atentando, ao mesmo tempo, contra os mais altos valores da
humanidade (Lukacs, 1972, p. 538)

Interessante notar que, transcorrido o tempo e a burguesia no po-


der, a organização da sociedade continua sendo justificada pelo esta-

22
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

do de natureza, agora sob o vértice oposto ao defendido por Rousseau


(1978), quer seja pela nobreza, ainda esperançosa em reconquistar o
poder, quer seja pela burguesia, assustada com as marcas deixadas
pela revolução de 1848. As diferenças de etnia passam a ser entendi-
das como sinais da própria natureza para indicar a superioridade ou
inferioridade entre as classes sociais e, em conseqüência, o domínio de
uma classe sobre a outra.
Pela sua importância histórica, cabe, aqui, algumas palavras sobre
a revolução de 1848, a qual, na avaliação de Hobsbawn (1982, p. 30),
foi uma revolução potencialmente global, que atingiu todo o centro do
continente europeu e teve rebatimentos no Brasil (Pernambuco) e,
poucos anos depois, na Colômbia, sendo a primeira revolução da his-
tória realizada por trabalhadores pobres. Tendo como objetivo a re-
pública democrática e social, a revolução de 1848 revestia-se de um
caráter político e social. Ocorreu em um tempo relativamente curto,
pois, além de não existir as condições históricas para tanto, faltava,
também, organização e liderança. E mais que isso: seu contingente era
constituído pelas massas famintas. Veja a afirmação de um médico
sobre o operário dessa época:

Viver, para ele, é não morrer. Além do pedaço de pão que deve
alimentá-lo e a sua família, além da garrafa de vinho que deve-lhe
tirar a consciência de suas dores por um instante, ele nada
pretende, nada espera [...]. O proletariado entra no quarto
miserável onde o vento assobia através das frestas; e após ter suado
no trabalho depois de uma jornada de catorze horas, ele não
mudava de roupa ao voltar para casa porque não tinha outra
(Nantes, A. G. 1825 apud Beaud, M. , 1987, p. 153).

Apesar de a revolução de 1848 ter sido a mais ampla, foi, também,


a menos bem sucedida. Não obstante, demarcou alguns sinais históri-
cos: marcou o fim da regra do direito divino, explicitou o fim da bur-
guesia como força revolucionária e revelou a força da classe
trabalhadora como uma das principais protagonistas do cenário polí-
tico, de cujo patamar os liberais não conseguiram mais retirá-la. Nesse
contexto, não é por acaso que a obra Ensayo sobre la desigualdad de las
razas humanas, do conde de Gobineau, publicada em 1853, “adquire
uma influência notável e encerra um importante significado histórico-

23
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

social à medida que sistematiza, coloca num plano primordial a idéia


de raça”, como afirma Lukacs (1972, p. 541).
Para Gobineau (1816-1882), existe uma diferença essencial, sob to-
dos os aspectos, entre as diferentes raças que constituem uma socie-
dade. Algumas delas são sempre inferiores e só servem para trabalhar
como escravos, como máquinas animais, como bestas de tiro a serviço
das raças superiores. Este não é o caso da raça branca, que:

Não se mostra nunca naqueles estados primitivos em que vemos as


outras duas “a negra e a amarela”. As vemos desde o primeiro dia
relativamente cultivada e dotada de elementos originários mais
importantes para chegar a desenvolver em algumas de suas
ramificações, criando as diferentes formas de civilização (Gobineau
apud Lukacs, 1972, p. 541).

Por conta desse fato, para Gobineau (1816-1882) a miscigenação é


sempre negativa. Para ele, os tipos puros não deveriam ser alterados,
pois a civilização era acessível apenas a eles. O mestiço era a negação
dessa civilização, e, neste sentido, formaria uma sub-raça decadente e
degenerada.
Essas idéias, contudo, perdem a força de argumento mas não per-
dem a popularidade ao virem a público os estudos de Robert Charles
Darwin (1809-1882), A origem das espécies por meio da seleção natural ou a
Preservação das raças favorecidas na luta pela vida. Mais conhecida como
A origem das espécies, essa obra é o resultado de longas investigações
realizadas por Darwin (1809-1882) nas ilhas Galápagos. Para Darwin
(1859), tanto no reino animal quanto no reino vegetal, a natureza man-
tém os indivíduos que melhor se adaptam às condições do ambiente
em que vivem, ao que denominou de luta pela vida. Darwin (1809-
1882) afirma que, em cada espécie, entre seus descendentes, há uma
permanente competição pela sobrevivência (na busca de alimentos, na
demarcação de território, na defesa contra seus predadores naturais
etc.) e só conseguem bons resultados os que têm uma natureza favo-
rável, isto é, sobrevivem os melhores equipados biologicamente. Em
linguagem popular, diremos que sobrevivem apenas os de natureza
mais forte.
Darwin (1809-1882) demonstra que, no desenrolar da vida e ao
longo da história, todos os seres vivos existentes no planeta Terra vão

24
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

sofrendo transformações. Nessa visão, o homem, tal como o conhece-


mos, desenvolveu-se a partir de espécies inferiores e, nesse sentido,
nada é eterno. Com essa revelação empiricamente comprovada, Dar-
win (1809-1882) dá o golpe fatal na ideologia teológica feudal, cujo
dogma é a semelhança do homem com o Criador e a crença na eterni-
dade de todas as coisas existentes na face da Terra. Mesmo com a acir-
rada e duradoura controvérsia que tal obra provocou. Robert Charles
Darwin (1809-1882) é considerado um dos revolucionários do pensa-
mento contemporâneo e seus estudos firmam-se como um marco fun-
damental da biologia moderna.
Como a história comprova, o caminhar da sociedade humana não
contempla determinismo, tampouco se realiza linearmente. Assim
sendo, os achados teóricos de caráter revolucionário, dos quais, pela
lógica, teríamos apenas elementos para maior compreensão da socie-
dade, serviu de apoio, também, para as correntes científicas conserva-
doras continuar justificando as desigualdades sociais, cada dia mais
evidentes. Expressões como ‘o mais forte’, ‘o mais inteligente’, ‘seleção
natural’ e outras do gênero passam a ser adotadas para explicar o
comportamento da sociedade humana em uma transposição mecânica
e linear de uma concepção natural-biológica, como é o caso da teoria
evolucionista darwinista, e que, originalmente, não se propôs a isto.
São esses argumentos que tentam justificar teoricamente o imperia-
lismo europeu nos séculos XVIII e XIX, visto ser o povo naturalmente
‘mais adaptado, mais ajustado’. Uma das ilustrações mais importantes
nessa direção são as investigações de Francis Galton (1822-1911), que,
a partir dos estudos de seu primo Darwin (1809-1882), e valendo-se da
matemática e da estatística, propôs-se a estudar a suposta hereditarie-
dade da inteligência e a sistematizar o estudo dos ‘factores collocados
sob o controle da sociedade que podem melhorar, bem ou mal, as
qualiddes da raça – physicas ou mentaes – das futuras gerações’ (Gal-
ton apud Monteleone, [19--], p. 5). A este estudo, Galton (Galton apud
Kehl, 1935, p. 16) denominou eugenia:

A Eugenia é, em outros termos, a higiene da raça, ou como diz


Forel, a seleção nacional; é a puericultura antes do nascimento
(Pinard); é uma aplicação total das ciência biológicas (Houssay).
Constitue a verdadeira religião do futuro, a ciência da felicidade,
porque se esforça pela elevação moral e fisica do homem, afim de

25
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

dota-lo de qualidades ótimas, de fornecer-lhe elementos de paz na


família, na sociedade, na humanidade.

A eugenia

É necessário pontuar que a preocupação com o aperfeiçoamento


da espécie humana não surgiu com os estudos de Francis Galton. Re-
nato Kehl (1935, p. 23), um dos mais importantes publicistas da euge-
nia do Brasil, exemplifica essa afirmação citando Licurgo como “o
mais notável precursor da eugenia”, o qual, “excluído o radicalismo
deshumano de seus processos seletivos para constituir em Esparta
uma pátria de homens fortes e valentes, foi o primeiro eugenista pra-
tico do mundo [...] procurava eliminar as criaturas débeis e invalidas,
ditava aos pais que legassem aos filhos, não riquezas, mas saúde e
robustez”. No século VI a.C., o poeta grego Theognis de Megara afir-
mava:

Nós nos preoccupamos com que os nossos burros, os nossos


cavallos sejam de boa raça, porque sabemos que o bom nasce do
bom; e, entretanto, um homem sadio não se recusa a casar com
uma mulher doente, se ella tem dinheiro. É o dinheiro que estraga
a raça. Não há que admirar se a raça decáe, desde que o máo se
junta ao bom (Nisot apud Tristão de Athaíde, 1933, p. 19).

Platão, por sua vez, preocupado em manter a organização espar-


tana, aconselhou os magistrados a procurar matrimônios entre os
melhores cidadãos, pois sustentava que a criança pertence à cidade e
que o número de nascimentos deve equilibrar o números de mortes, a
fim de garantir a felicidade do povo. Na Republica, Platão disse a Só-
crates, em seu diálogo com Glauco (Livro Quinto): “É preciso, de a-
cordo com nossos princípios, estreitar as relações entre os homens e as
mulheres de elite e ao contrário fazer com que sejam raras entre os
indivíduos inferiores de um ou outro sexo” (Betzhold, 1941, p. 5).
Xenofonte levanta-se contra Atenas que não seguia o exemplo de Es-
parta no que tange à educação das mulheres, inteiramente destinadas ao
casamento, na melhor idade, com os jovens mais belos e inteligentes, a
fim de que gerassem filhos sãos, mental e fisicamente. Aristóteles, na
antiga Grécia, afirmava que o Estado é livre e soberano na criação de leis

26
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

que visam à preservação da raça. Em Roma, a legislação determinava que


apenas as crianças robustas deveriam ser conservadas (Monteleone, [19--]).
Essas informações descontextualizadas historicamente, via de regra, es-
candalizam o homem contemporâneo e deixam a impressão de ser um
fato localizado no tempo e no espaço. Redimensionadas, contudo, sob a
lente de sua época, elas podem ter outro significado; observada nesse
ângulo, a valorização de homens fortes, bravos e destemidos para guer-
rear, na Idade Antiga, era uma questão de sobrevivência. As conquistas
territoriais, que representam o trabalho da época, determinavam a neces-
sidade de tais características da população.
Embora a busca da purificação da raça é claramente observada en-
tre os povos antigos, nesse período não constam registros de estudos
sistemáticos sobre a eugenia. Há o que Betzhold (1941) denomina de
‘intenção eugênica’.
Na era medieval, até por volta dos séculos XV, há um silêncio em
torno da busca de purificação da raça. Esse fato é compreensível se
levarmos em conta que a existência do homem era explicada como
uma passagem precária de dor e de males, para expiar os pecados de
gerações passadas, e que a felicidade verdadeira e eterna só era possí-
vel após a morte, junto ao reino de Deus. As coisas terrestres não de-
veriam ser, portanto, privilegiadas. O homem era explicado pela
determinação divina, devendo, assim, aceitar as verdades reveladas e
não buscar novas verdades ou questionar as já existentes. A contem-
plação, a humildade, a pobreza e a submissão eram necessárias. Desta
perspectiva, o domínio e os privilégios atribuídos ao clero e à nobreza
não deveriam ser questionados, visto serem desejos divinos.
Há um retorno dessa idéia, ainda que débil, por volta do século
XV, na obra A utopia de Tomás Morus, quando este sugere:

Cuando compráis un potrillo, que vale sólo poco dinero, sois tan
cautos que, aun cuando el animal esté casi en eplos, rehusáis ad-
quirir-lo si no le quitan la silla y todos los arreos, temiendo que
éstos oculten alguna llaga; y cuando de elegir una mujer se trata, es
decir, de lo que pude llenar de placer o de pesar vuestra vida, obr-
áis con tanta negligencia que os conforma ver un palmo de vustra
futura esposa (puesto que casi únicamente puede vérsele el rostro),
cuyo cuerpo se halla enteramente disimulado por los vestidos?
(Morus apud Betzhold, 1941, p. 8).

27
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Os estudos mais sistemáticos, embora isolados, em relação à ‘re-


produção sã das gerações humanas’ datam do início do século XIX.
Mai (1802) apud Betzhold (1941, p. 8) propunha que “toda pareja de
novios debe ser examinada previamente por el médico de policía del
barrio a fin de que éste determine si los novios son sanos y son efecti-
vas las expectativas de una descendencia sana”. Mai (1802), conside-
rado um dos precursores da medicina social, nunca usou o termo
eugenia. Este termo de origem grega foi cunhado em 1883, por Francis
Galton e significa eu (boa); genus (geração). Contudo, Mai deixou idéi-
as e preocupações nessa direção, as quais foram posteriormente reto-
madas por outros estudiosos; dentre eles, destaca-se Francis Galton
(1822-1911), cujos estudos e propostas de encaminhamentos para eu-
genizar a raça marcaram época. A eugenia enquanto ciência biológica
aparece, pela primeira vez sistematizada, por Francis Galton, em 1869,
no livro de sua autoria intitulado Hereditary genius. Este livro foi pre-
cedido por um artigo, publicado em duas partes, pelo Macmillan’s
Magazine, em 1865. Neste ensaio, Francis Galton traz a público, pela
primeira vez, suas principais idéias sobre eugenia. Nessas publica-
ções, Galton esboça, um projeto mais definido na direção da eugenia,
alertando e propondo:

A conseqüência de imperfeições congênitas, o estoque humano de


nosso mundo civilizado é hoje em dia muitíssimo mais débil que de
qualquer outro da espécie de animais domésticos ou selvagens [...]
As forças cegas da seleção natural, como agente que nos
impulsiona para o progresso, devem ser substituídas por uma
seleção consciente; os homens devem utilizar todos os
conhecimentos adquiridos pelos estudos e pelo processo de
evolução dos tempos passados, para promover o progresso físico e
moral do futuro. A nação que primeiro e conscientemente resolver
este grande problema, não só vencerá em todas as matérias de
competência internacional, mas ganhará um lugar de honra na
história do mundo (Galton apud Betzhold, 1941, p. 7).

O que vale aqui destacar é que as idéias de Francis Galton (1822-


1911), fundamentadas no arcabouço teórico construído por Robert
Charles Darwin (1809-1882), promete ‘elevação moral e felicidade’ aos
povos que atentarem para o necessário controle da hereditariedade
dos tipos inferiores. Essas idéias e as promessas nelas contidas vão se

28
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

fortalecendo e transformando-se em movimentos de caráter científico


e social cuja abrangência alcançou inúmeros países, os quais, no geral,
evidenciavam enorme aceitação. Nos Estados Unidos:

Vinte e oito Universidades tiveram nos seus programas escolares o


ensino dessa ciência. Para dar idéia da preocupação americana a
este propósito, basta dizer que, por iniciativa de Grahan Bell, 530.
000 professores foram incumbidos de fornecer informações sobre o
estado de 24 milhões de crianças em idade escolar, sob o ponto de
vista eugênico, isto é, da aptidão individual, chegando-se a
conclusões interessantes e de alto valor, no tocante a profilaxia racial
(Kehl, 1935, p. 22).

Para a elevação moral e o engrandecimento da nação, a eugenia pro-


punha, basicamente, estimular os nascimentos desejáveis (eugenia positi-
va) e desencorajar deliberadamente a união e a procriação dos tarados e
degenerados, considerados nocivos à sociedade. Nessa categoria estavam
incluídas as pessoas tuberculosas, as sifilíticas, as alcoolistas, as epilépti-
cas, as alienadas e tantos outros indesejáveis (eugenia negativa).
As dimensões que esse movimento alcançou internacionalmente
podem ser ilustradas pelos vários congressos internacionais realizados
e inúmeras publicações à respeito.

Já em 1905, a par dos interesses principaes a estudar, a Inglaterra


intercalou o problema da melhoria da raça, fazendo que a
Universidade de Londres convocasse o I Congresso de Eugenia, ao
qual compareceram as maiores notabilidades não só inglezas como
de toda a Europa (Kehl, 1922, p. 68).

Esse congresso foi realizado em 1912, em Londres, e patrocinado


pela Universidade de Londres. Em 1922, em Nova Iorque, é realizado
um novo congresso de eugenia, de caráter internacional. As numero-
sas e valiosas contribuições da ciência encontram-se compendiadas
em dois grossos volumes: Eugenetic, Genetic and Family e Eugenics in
race and State.
Além dos congressos internacionais, inúmeras associações eugê-
nicas propagaram-se pelo mundo civilizado, sendo que o Tribunal
Eugênico, instituído na Alemanha logo após a ascensão de Hitler ao
poder, era considerado um empreendimento de “maior amplitude e

29
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

decidida coragem” (Kehl, 1935, p. 25). Em agosto de 1932, no congres-


so internacional realizado em Nova Iorque, o médico brasileiro Renato
Kehl (1935) apresentou o trabalho Medidas para estimular a fecundidade
dos tipos superiores.
Dissemina-se, desta forma, a idéia de que a grandiosidade e o for-
talecimento de uma nação estavam em relação direta com a perfeição
física e moral do seu povo. As contradições sociais, sob esta ótica, são
explicadas e devem ser controladas como qualquer outro fenômeno
da natureza. A partir dessas propostas, vai se configurando uma níti-
da confusão entre determinação biológica e a construção histórico-
social da humanidade.

[o] dogma agora dessacralizado: o da concepção da natureza humana


organizada sem a mão do homem, criada por uma entidade abstrata
agora é retomada ou regulada por leis físicas, orgânicas, independentes.
A natureza é vista como previamente limitada por leis, não divinas mas
orgânicas ou genéticas. Do teocentrismo ao biologismo, muda-se apenas
de Deus (Setoguti, 1991, p. 39).

Subvertendo, desta forma, a ciência posta e dela valendo-se, assis-


timos o renascer da explicação natural para as desigualdades sociais.
É a constituição, a etnia do indivíduo que fundamenta a sua condição
social. É a vez e a hora do irracionalismo. É o abandono da ciência
biológica ao subvertê-la. É interessante notar, como que de uma ten-
dência tão racional, como é a ciência da natureza, tenha se revelado
tão permeável ao irracionalismo. No entanto, como ironiza Rouanet
(1992, p. 126) “não é a primeira vez que o diabo atinge seus objetivos
utilizando as virtudes teologais.”
Há que se ter em conta que as discussões a respeito da eugenia
não eram tão tranqüilas e hegemônicas. Havia posições controver-
sas, mas os ideais eugênicos mantiveram-se com força, sempre bus-
cando respaldo na genética fundamentação para propor a seleção
das melhores espécies.

A mensuração das imperfeições

Guiados pelo determinismo genético que de antemão define a ca-


pacidade ou incapacidade de lutar pela vida, de adaptação do indiví-

30
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

duo, a questão não é mais descobrir a causa do desvio social, da nor-


ma. O problema passa a ser a quantificação desta (in)capacidade.
Proliferam-se, nessa direção, diversos tipos de avaliação, testes de
diferentes natureza: psicológicos, de mensuração física (do crânio
etc.), tendo como princípio o desenvolvimento linear da humanidade,
regulado por leis mecânicas e imutáveis, tal como evidenciado pela
ciência da natureza. Criam-se inúmeros instrumentos para avaliar os
diferentes aspectos do homem. A determinação do biótipo, por exem-
plo, passa a ser a ordem do dia. Biótipo entendido como a “definição
sintética das qualidades características e diferenciais dos indivíduos,
tomados em sua unicidade somatopsíquica”. Nessa perspectiva, o
indivíduo deve ser estudado em seus “aspectos morfológico-estáticos
externa e internamente, fisiológico-dinâmico-humoral, caracteriológi-
co-afectivos, volitivo e intelectual” (Santos, 1941, p. 9). Em uma breve
ponderação, observamos que esses instrumentos, via de regra, são
pautados em artifícios matemáticos e desarticulados de todos os com-
plexos processos econômicos, políticos e sociais, engendrado por e
para este homem. Desse modo, adotando-se esses instrumentos e des-
considerando-se a complexidade social, corre-se o risco de não se le-
var em conta o livre-arbítrio do indivíduo. Normaliza-se o fenômeno,
absolutizando o conceito, o qual pode ser associado a qualquer coisa,
desde acidentes geográficos até diferenças raciais. A diversidade, a
complexidade de toda ordem, enfim, toda turbulência gerada pelas
necessidades da organização produtivo-social são justificadas pela
silenciosa e, aparentemente, imutável lei da natureza. São essas
ponderações que pareciam estar ausentes nessas avaliações. Sob a
égide da objetividade, da neutralidade e da positividade acreditava-se
prever o futuro dos indivíduos e, nessas circunstâncias, mudar o des-
tino das nações.
No século XIX, especificamente em suas últimas décadas, a preo-
cupação com a objetividade, com o esquadrinhamento e com a previ-
são era uma constante. O cientificismo era a figura de uma sociedade
que, aceleradamente, se despojava dos últimos vestígios do feudalis-
mo, alterando visivelmente seus contornos. É dessa época o registro
da maior incidência de deslocamento da população; tal como as dunas
movem-se de acordo com o vento, abandonava-se o campo para se-
guir a direção desenhada pela industrialização.

31
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

A terra e a população se movem

A corrida às cidades industrializadas atingiu níveis não previstos.


A título de ilustração, podemos citar a cidade de Londres, na Inglater-
ra, pioneira da industrialização, que, entre 1801 a 1841, teve sua popu-
lação aumentada de 958. 000 para 1. 948. 000 (Rosen, 1994, p. 57).
Entretanto, esses números não significam a força da migração se com-
parados aos dados das próximas décadas do final do século XIX e iní-
cio do século XX. Entre 1846 a 1875, mais de 9 milhões de pessoas
deixaram a Europa, e a grande maioria seguiu para os Estados Uni-
dos, o que “marca o começo da maior migração dos povos da Histó-
ria” (Hobsbawn, 1988, p. 207). No Brasil, por exemplo, no período
entre 1821-1889, em 69 anos, desembarcou em solo brasileiro 878. 934
imigrantes. No período de 1890-1914, em um interstício de 25 anos,
foram 2. 540. 939 imigrantes que ao Brasil chegaram. (Almeida Junior,
1953, p. 495).
Esse grande contingente de pessoas que nas cidades adentravam
não encontravam infra-estrutura suficiente para atender as suas ne-
cessidades básicas. Os trabalhadores, imigrantes ou não, viviam em
precárias condições, carentes em todos os aspectos: moradia, saúde,
alimentação etc.
Recorrendo a uma revista inglesa, Engels (1986, p. 47) descreve as
condições sanitárias dos operários das cidades inglesas nos meados
do século XIX:

Estas ruas são em geral tão estreitas que se pode saltar de uma
janela para a da casa em frente, e os edifícios apresentam, por outro
lado, uma tal acumulação de andares que a luz mal pode penetrar
no pátio na ruela que os separa. Nesta parte da cidade não há nem
esgotos, nem banheiros públicos ou sanitários nas casa, e é por isso
que as imundícies, detritos ou excrementos de, pelo menos, 50. 000
pessoas são lançados todas as noites nas valetas, de tal modo que,
apesar da limpeza das ruas, [...] não só ferem a vista e o olfato,
como, por outro lado, representam um perigo extremo para a
saúde dos habitantes [...]. Nestas regiões a sociedade desceu a um
nível indescritivelmente baixo e miserável. As habitações da classe
pobre são em geral muito sujas e aparentemente nunca são limpas
[...] compõe-se, a maior parte das casas, de uma única sala – onde,
apesar da ventilação ser das piores, faz sempre frio por causa das

32
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

janelas partidas ou mal adaptadas – que muitas vezes é úmida e


fica no subsolo, sempre mal mobiliadas e invariavelmente
inabitável, a ponto de um monte de palha servir freqüentemente de
cama para uma família inteira [...] só se encontra água nas bombas
públicas e a dificuldade para a ir buscar favorece naturalmente
toda a imundície possível.

Tal situação não tardou a se refletir na matemática da doença e da


morte, principalmente no segmento infantil. Em virtude das precárias
e desumanas condições de saúde, de alimentação, de habitação e de
tantas outras carências vividas pela classe trabalhadora, potencializa-
va-se a incidência de mortes por uma ampla variedade de doenças,
tais como: varíola, febre amarela, febre tifóide, escorbuto, raquitismo,
tuberculose, coqueluche, lepra, escarlatina, difteria etc. , que se disse-
minavam mais facilmente pela concentração urbana.

A higiene urbana e a exclusão: terapêuticas históricas

Ao iniciar este tópico, cabe, antes, alguma delimitação. Com esse


subtítulo, temos como pretensão sinalizar as contingências históricas
que transformaram a prática de higiene em uma questão de civilida-
de. A higiene, se imprescindível para a manutenção da saúde física,
tanto individual quanto coletiva, possibilitou, por sua vez, desdobra-
mentos de caráter ideológico. E aqui estamos entendendo como ideo-
lógico o fato de se propor soluções fundamentadas no saber da ciência
da natureza para problemas de caráter político-social, como se carac-
terizou historicamente o movimento higienista do final do século XVIII
e inicio do século XX. Isto não significa que nessas reflexões está con-
templado o histórico do surgimento da instituição “saúde”, quer seja
pública ou privada. Nesse sentido, como leitura básica temos, entre
outros, Rosen (1994) e Foucault (1989), dos quais extraímos muitas
informações.
No período anterior ao advento da bacteriologia e da microbiolo-
gia, acreditava-se que a origem biológica das doenças era provenien-
tes da qualidade do ar frio, quente, seco, úmido e das emanações
miasmáticas ou dos cheiros fétidos e nocivos que se elevavam da terra
em conseqüência da decomposição de materiais orgânicos, criando-se,
desta forma, um estado atmosférico propício à doença. A difteria, por

33
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

exemplo, até por volta de 1888, era entendida como resultado da ina-
lação de gases dos esgotos infectados que existiam em lugares sujos e
úmidos. Edwin Chadwick (1800-1890), um dos precursores do mo-
derno sanitarismo em sua investigação que gerou o clássico Report on
the sanitary conditions of the labouring population of Great Britain (1842),
alertava que a “imundície é a inimiga da saúde comunitária”. O con-
tágio que ocorria através de sementes ou seminarias também era uma
das temidas formas de se adoecer. Ao alterar os humores e os princí-
pios vitais do corpo, as seminarias produziam as doenças. Essa idéia
veio à lume em 1546, com Girolamo Fracastoro (1478-1533), e perdu-
rou até o final do século XVIII, com a descoberta dos micróbios que, em
sentido moderno, “em nada se iguala às seminarias de Fracastoro”
(Rosen, 1994, p. 89). Nesses termos, as cidades e suas precárias condi-
ções de higiene, o ar fétido que exalava e as pessoas doentes passam a
ser o terror da população e um dos grandes problemas dos países em
processo de industrialização. Nessa nova ordem econômico-social, a
precariedade ou a saúde da população configura-se, sobretudo, em
uma questão econômica. Assim se posicionava John Simon, em 1858:

A febre e o cólera são artigos caros, e se devem às residências


imundas e à água tirada da vala, que não custam nada; a viuvez e a
orfandade tornam dispendioso sancionar a existência de locais de
trabalho mal ventilados e ocupações desnecessariamente fatais. A
força física de uma nação está entre os principais fatores de sua
prosperidade (Rosen, 1994, p. 172).

Com essa compreensão da origem das doenças, os recursos tera-


pêuticos, grosso modo, resumiam-se em saneamento ambiental que,
diga-se de passagem, ocorria de forma precária, a considerar a falta de
infra-estrutura das cidades - em quarentena e exclusão dos doentes. A
quarentena, crença terapêutica surgida no século XII, consistia no
isolamento do doente ou suspeito por quarenta dias, mantido sob
observação e exposto ao ar e à luz solar. E a exclusão significava o
recolhimento do doente em hospitais para proteger a população do
perigo que ele representava. Os hospitais, por sua vez, até o século
XVIII não tinham o caráter terapêutico da atualidade, mas serviam
essencialmente para assistir material e espiritualmente o pobre e o
doente, sendo administrados por leigos e religiosos.

34
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

Foi nas últimas décadas do século XIX que a ciência, através das
descobertas de Pasteur, revelou a existência de organismos causais ou
micróbios transmissores de infecções e os modos de preveni-los; reve-
lou também que até mesmo pessoas sadias poderiam ser portadoras
desses microorganismos patogênicos. O advento da microbiologia, sem
dúvida, possibilitou uma nova compreensão das relações humanas.
Embora as descobertas de Pasteur tenham jogado por terra a idéia de
que as doenças eram transmitidas através dos miasmas advindos pelo ar,
demonstrando, inclusive, que alguns microorganismos só sobrevivem na
ausência do ar (os anaeróbios), tal fato não desqualificou a necessidade da
higiene no combate às doenças; pelo contrário, delimitou com mais clareza
as causas de grande parte dos males que atacavam a população. E nesse
rol, a insalubridade do ambiente, da moradia, dos alimentos e o esgota-
mento físico estavam entre os principais vilões da saúde. Entretanto, se
levarmos em conta o espetacular desenvolvimento da ciência, da tecnolo-
gia, da indústria, da abundância de riqueza e, sobretudo, a prometida i-
gualdade civil, essas questões já deveriam fazer parte do passado. A título
de ilustração, podemos citar a riqueza nacional dos Estados Unidos que,
“estimada em cerca de 16 bilhões de dólares em 1860, subiu para 65 bilhões
em 1890, e para mais de 300 bilhões em 1921” (Rosen, 1994, p. 254).
Apesar desse fato, em uma evidente contradição social, a maioria da
população trabalhadora continuava convivendo com a miséria, com as
más condições de habitação, de saúde, com a alta incidência de mortali-
dade infantil. Há que se reconhecer que algumas conquistas na área da
saúde aconteceram a partir da revolução de 1848, mas, no cômputo geral,
apesar da espetacular prosperidade dos países industrializados, a grande
maioria da população continuava convivendo com a falta de moradia ou
com péssimas condições de habitação, com as longas jornadas de traba-
lho, com a exploração do trabalho da criança e da mulher, com a grande
freqüência de acidentes e insalubridade no trabalho. Em síntese, a popu-
lação, em sua maioria faminta, tinha na degradação e na miséria sua
principal característica. Ora, nessas condições não era incomum a saúde
precária caminhar pari passu com a pobreza. Não era incomum as doen-
ças brotarem, com mais freqüência, do segmento mais paupérrimo da
população. E a combinação doença-pobreza vai se constituindo em terre-
no fértil para o surgimento do mito: a pobreza e a falta de higiene daí
decorrente passa a ser a causa da doença. Nesse caso, a educação higiêni-

35
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

ca passa a ser entendida como a redenção dessa lúgubre situação, vivida


pela classe trabalhadora. Constituem-se, assim, as grandes cruzadas em
prol da higiene: higiene escolar, higiene social, puericultura, higiene men-
tal, educação física, educação sanitária etc.

A higiene de cada um é a salvaçao de todos

As descobertas científicas relacionadas à Bacteriologia e à Microbiolo-


gia ofereceram caminhos para combater as várias epidemias que dizima-
vam a população. Dentre esses caminhos, reafirmou-se a necessidade da
higiene para prevenir os perigos do contágio de determinadas doenças. A
higiene, enquanto um dos principais recursos para prevenir os perigos do
contágio de determinadas doenças, é uma constatação científica. A higiene,
tanto individual quanto coletiva, não é apenas uma necessidade rotineira,
mas um imperativo de ordem social. É uma necessidade instituída pelo
desenvolvimento da civilização. Sem avançar no terreno das obviedades,
há que se lembrar que, para atender à necessidade de higiene, sobretudo
no meio urbano, essa mesma civilização criou condições básicas (água
potável, canalização de água e esgoto, em suma, condições sanitárias para
tanto) que o pobre dificilmente usufruía (e ainda tem dificuldades para
usufruir). Nesse panorama, ao se atribuir, única e exclusivamente ao indi-
víduo pobre a total responsabilidade pela sua saúde e justificar essa situa-
ção pela ignorância da população, é negar a falta de recursos e de caráter
social necessários à preservação da saúde existentes nesse segmento da
sociedade. Nega-se que a natureza do indivíduo é vulnerável às condições
precárias vividas socialmente. Nega-se o fato de que a viabilização da higi-
ene não é apenas uma questão de desejo particular de cada um. Nega-se a
diferença de recursos dos diferentes segmentos da sociedade. Nega-se,
enfim, a diferença entre classes sociais. Na lógica dessa negação, a alta inci-
dência de mortalidade infantil ocorre porque o individuo é pobre e não
conhece os preceitos de higiene. Nesse caso, a educação é o caminho.

Higiene da moral

Nesta perspectiva, não apenas as doenças físicas tinham como re-


ceituário a higiene, mas as doenças psíquicas, os bons costumes e a

36
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

moral passam a ser um problema de higiene. Deste modo, não é es-


tranha a proposta de “extincçao das eivas hereditárias, de modo que a
mentalidade das novas gerações possa, cada vez mais se aproximar do
padrão psychologico ideal” (Caldas, 1932a, p. 29) (grifos nossos) através
da higienização psíquica e moral da população, visto que:

O controle mental dos homens está em cheque. É preciso por um


dique a essa onda de amoralidade e de degradação psíquica. [Por
esta razão é necessário] prevenir as anomalias mentais, auxiliar a
boa formação do caráter, educar as crianças e suas famílias, de
modo que a sociedade possa tornar-se mais harmônica e
equilibrada (Magalhães, 1932, p. 85).

Sob essa ótica, a moralidade, os bons costumes, as doenças físicas


e psíquicas passam a ser um problema de higiene. E as diferenças de
ordem racial, de anormalidade física ou psíquica etc. passam a ser um
problema a ser resolvido pela eugenia. Enfim, tudo o que não estava
de acordo com as normas instituídas e não valorizados pela sociedade
burguesa foram preocupações dos higienistas e eugenistas. Apoiados
nos conceitos das ciências naturais, e com grande freqüência fazendo
uso dos métodos das ciências exatas (matemática, estatística, biome-
tria etc.), estes intelectuais, em sua maioria com formação médica,
tiveram forte influência nos encaminhamentos das sociedades indus-
trializadas do final do século XIX e início do século XX. Como ilustra-
ção, citaremos duas das inúmeras contribuições apresentadas no XI
Congresso Médico Internacional que aconteceu em Roma, em 1894:

Uma d’ellas, do Sr. Bernard, versava sobre ‘a excessiva


multiplicação da humanidade defeituosa’, e reclamava a activa
intervenção medica para regular a hygiene intelllectual e moral da
humanidade, a outra, do próprio professor Zucarrelli, constava de
um ‘estudo sobre alumnos das escolas secundaria de Nápoles’, e
nelle o autor insistia contra o delicto e a loucura, procurando para
isso não só reconhecer os mais degenerados desde cedo, desde a
escola, como reduzir os reproductores transmissores de germens
mórbidos (Lopes, 1925, p. 97).

Em vários países, associações, ligas, comitês e inúmeras institui-


ções vão sendo criadas com a finalidade da higienização e da eugeni-

37
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

zação da população. Para se ter uma idéia da abrangência desse mo-


vimento, o I Congresso Internacional de Hygiene Mental realizado na
cidade de Washington, em maio de 1930, contou com o compareci-
mento de representantes de 52 nações. Nesse congresso esteve presen-
te, além de importantes autoridades, o próprio presidente da
República Herbert Hoover, “que concorreu com todo o seu prestígio
para o êxito daquelle certamen” (Caldas, 1932b, p. 149). As regras da
higiene do corpo passam, portanto, a ser entendidas como similares às
regras da alma; e a educação, o mais importante encaminhamento.
Vale sublinhar que, ao questionar a educação como redentora das
mazelas sociais, estamos tentando destacar a disfunção a ela atribuída.
Em outras palavras, a natureza biológica do homem, tal como qual-
quer animal ou vegetal, obedece às leis determinadas pela própria
natureza. São previsíveis. Se matarmos nossa sede sobreviveremos,
caso contrário, por ela seremos exterminados. É necessário, obviamen-
te, educar-se para o consumo da água pura etc. No entanto, a água,
enquanto elemento imprescindível para manter a vida, precisa estar às
mãos. Se não a temos em mãos, é de pouca valia sermos educados
para a qualidade e o uso da água. Daí, atribuir a educação uma função
para a qual não foi destinada, é tirá-la dos trilhos e contribuir, via de
regra, para obscurecer os antagonismos sociais.

O triunfo da naturalização do social

Nessa direção, entender que a educação oferecida às mães, em ca-


sa ou nas escolas, é o carro-chefe para solucionar o grave problema da
alta incidência de mortalidade infantil nas classes pobres é simplificar
a questão, abandonar o conhecimento já produzido pela ciência, que,
no final das contas, torna evidente a impropriedade da solução pro-
posta. Entendendo-se que os novos hábitos de higiene aprendidos
através da educação, por si só, redimirão a população de sua situação
de pobreza e de todas as precariedades daí advindas é, no mínimo,
um equívoco. E, mais que isso: em disfunção, a credibilidade da edu-
cação fragiliza-se. Não obstante, foram esses encaminhamentos que se
multiplicaram no final do século XIX e início do século XX, nos países
industrializados ou em vias de industrialização. Nesse período, foram
criadas inúmeras sociedades, ligas, associações e outras agremiações

38
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

do gênero, de caráter humanitário e voluntário, cujo objetivo era o


atendimento da criança da classe trabalhadora. E os meios privilegia-
dos para alcançar tal intento era a transmissão de noções de saúde e
higiene. Entendia-se que, para promover a saúde e prevenir a doença,
era preciso combater a ignorância, o que precisava ser realizado prin-
cipalmente junto às famílias (a mãe especialmente) e à escola. A Liga
da Pequena Mãe, criada em Nova Iorque por volta de 1910, por Jose-
phine Baker, é uma ilustração, no mínimo, curiosa. Entendendo que
uma das fontes de mortalidade infantil era a falta de conhecimento da
“menina pequena na família pobre, forçada a tomar conta da criança
mais nova porque sua mãe trabalha[va] fora, a estas meninas eram
oferecidas instruções sobre cuidados infantis” e elas passavam a agir,
nos prédios de aluguel e nos cortiços, como missionárias do novo evan-
gelho” (grifos nossos). Um outro exemplo do atendimento à saúde da
população é o programa de merenda escolar. Para a nutrição das de-
zenas de milhares de crianças moradoras do cortiço, que iam famintas
à escola, as autoridades de Nova Iorque instituíram, em 1908, o pro-
grama de merenda escolar, o qual se ramificou em inúmeros países e
atravessou o século. Desta forma, para fazer frente ao grave problema
que representava a alta incidência de mortalidade infantil recorria-se,
como suporte do Estado, à educação realizada pelo voluntarismo, com
nuances de religiosidade ou pela “filantropia” do Estado.
No Brasil, os discursos em nada diferiam. “O Brasil será o Brasil
da nossa aspiração, será o grande Brasil de amanhã, quando nele se
implantar a consciência sanitária e cívica, quando todos os brasileiros
souberem zelar a saúde física e psíquica, quando todos os brasileiros,
enfim, se tornarem aptos para o trabalho e para a cidadania” (Kehl,
1929, p. 3). Para que isto ocorresse a contento, “o lar é o meio mais
adequado para a formação do caráter da infância e da mocidade, cuja
integridade moral depende, quase exclusivamente, da direção recebi-
da dos pais” (E. R. , 1930, p. 2). Levando-se em conta que as exigências
da vida moderna nem sempre possibilitam aos pais permanecer o
tempo integral com os filhos, “a professora é uma segunda mãe”. Ex-
plicando melhor, diz-se que “a mãe é a providência natural de seus
pequeninos e tudo que concerne a sua infância deveria emanar natu-
ralmente das mães. Infelizmente nem sempre elas podem reservar
para si esta providência, donde se derivou a sagrada missão das pro-

39
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

fessoras de crianças, auxiliares devotadas, das mães” (Joao Sem No-


me, 1931, p. 5). Todavia, “o êxito bom ou mal da escola depende em
grande parte das atitudes da família para com a educação. Cumpre
obter informações exactas sobre a família e a vida doméstica, para os
fins de educação” (Braga, 1931, p. 11). Nesse sentido,

para facilitar e preparar a adaptação individual é necessário


instituir o trabalho educativo das mães, amas e professoras, no
sentido de criar bons hábitos de vida mental, desde o nascimento,
já evitando-se as violências emocionaes, os excessos de
autoritarismo ou de tolerância e os exageros da imaginação já
procurando formar nos indivíduos uma personalidade confiante,
capaz resistente e devotada à atividade da vida real, que reconheça,
desde cedo, as restrições sociais e direitos das outras pessoas. Nas
escolas primárias e, também, principalmente, nas escolas maternais
e jardim de infância, que é preciso multiplicar, é indispensável
fazer esse trabalho educativo (LBHM, 1925, p. 195).

“Os homens não são naturalmente nem reis [...] todos nascem nus
e pobres”. Ao fazer essa afirmação, Rousseau (1978) estava opondo-se
ao secular domínio da Igreja, justificado pela determinação divina.
Disto podemos estar seguros, pois o beneficio do tempo transcorrido
permite-nos essa certeza. No estado de natureza, Rousseau (1978)
encontra seu mais forte argumento.
Nessa breve passagem pela linha do tempo das idéias, podemos
notar que a busca deste recurso não se deu apenas no caso desse clás-
sico da literatura mundial e nem sempre teve o caráter revolucionário
reconhecido em Rousseau (1978). Temos como ilustração o recente e
trágico episódio ocorrido durante a II Grande Guerra mundial pro-
movido pelo nazi-facismo alemão, cuja justificativa era de ordem na-
tural: a limpeza da raça. Apesar de que o nazismo alemão representa
um dos exemplos mais emblemáticos registrados pela história do
século XX, não foi o único; não foi resultado do delírio de um único
indivíduo, tampouco aconteceu isoladamente. Quando a medicina,
nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, apregoa a
necessidade da higiene individual, ambiental e do saneamento básico,
não o faz motivada por caprichos de alguns médicos, mas como ne-
cessidade básica produzida em virtude dos crescentes aglomerados
urbanos e da alta incidência de doenças e mortalidade infantil. A par-

40
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

tir das descobertas da bacteriologia e da microbiologia, a higiene pas-


sa a ser, comprovadamente, uma questão de preservação da natureza
humana. Até o desenvolvimento e popularização da farmacologia que
ocorrerá nos meados do século XX, a higiene era um dos principais
recursos comprovados para evitar infecções.
Apropriar-se dos conhecimentos produzidos pelos avanços das
ciências naturais para justificar a higiene psíquica e moral, como pro-
punham os higienistas, ou a depuração da raça como uma forma de
abreviar a seleção dos mais fortes sobre os mais fracos, como propu-
nham os eugenistas, é, a nosso entender, no mínimo um contra senso.
Partindo-se do princípio de que há uma essência humana definida a
priori, que pode se deteriorar ou se desenvolver dependendo das pre-
disposições hereditárias de cada indivíduo ou das influências do meio,
é negar o livre-arbítrio do indivíduo, é negar todas as transformações
de toda ordem (tecnológica, científica etc.) realizadas pelo homem. E
outra, há que se destacar que é a pluralidade de idéias, a diversidade
de raças, de cultura, enfim, é dos combates e embates, das divergên-
cias, das resistências que ocorrem no interior da organização sócio-
política que impulsionam a civilização para superar seus próprios
limites. E é nesse processo de superação, na tentativa de evitar os con-
flitos e angústias por esse processo provocado que os mitos encontram
terreno fértil.
Quando os contrastes sociais atingem os limites do inaceitável, es-
tes produzem rupturas, fragilizam as regras de convivência, geram
um clima desestabilizador da ordem constituída que, por sua vez, vão
gerando crises generalizadas (econômica, cultural, institucional etc.).
As condições sociais estão postas para todas as formas de irraciona-
lismo. E uma dessas formas é a do discurso legitimado pela ciência da
natureza, que outrora serviu a um discurso revolucionário, como é o
exemplo de Rousseau, o qual, na sociedade contemporânea, tem ser-
vido politicamente à discriminação de toda ordem (da pobreza, da cor
da pele, da crença religiosa etc.). Um exemplo disto é o discurso da
higiene e da eugenia, os quais encontram solo firme na sociedade
burguesa. Ao se justificar a superioridade ou inferioridade de indiví-
duos, etnias, classes sociais pelas diferenças naturais, institui-se a re-
jeição ao diferente. A intolerância passa a ser a norma. E a
desigualdade social, natural.

41
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

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42
- HIGIENISMO, EUGENIA E A NATURALIZAÇÃO ...

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43
2

IFUSÃO DOS IDEÁRIOS


HIGIENISTA E EUGENISTA
NO BRASIL
LILIAN DENISE MAI

As primeiras décadas do século XX, no Brasil, foram marcadas


por um amplo debate em torno da reconstrução da identidade nacio-
nal, em meio à constatação de um quadro sanitário-educacional ex-
tremamente precário, tanto em zonas urbanas quanto em zonas rurais.
Desencadeou-se um verdadeiro movimento pela saúde e saneamento
do Brasil, marcado pela presença da doença como o grande obstáculo
a ser superado, articulada fortemente com os temas da natureza, do
clima, da raça, dentre outros.
A imagem de um povo doente, que condenava o país ao atra-
so, poderia ser recuperada através de ações de higiene e sanea-
mento, fundadas nas novíssimas descobertas da microbiologia e
da bacteriologia, no conhecimento médico e implementadas pelas
autoridades públicas. Porém, segundo Lima e Hochman (2000,
p. 319):
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

a literatura sobre o tema indica que dificilmente se poderia falar de


pensamento social brasileiro e da presença do discurso higienista,
sem referência à noção de raça na elaboração de interpretações
sobre o Brasil. Idéias de inferioridade racial compõem um quadro
explicativo sobre o país.

Essas idéias de inferioridade racial encontravam forte sustenta-


ção no pensamento eugenista que foi introduzido e difundido no
Brasil nesse período. Assim, higiene e eugenia convergiram em
diálogos que envolveram diferentes sujeitos e segmentos sociais
que, com similaridades e diferenças, apresentavam cada qual a sua
compreensão e as suas alternativas para superar os problemas na-
cionais. Não obstante, o processo de comunicação por eles enseja-
do, circunscrito às determinações históricas daquele momento,
significou em grande parte a concretização, ou não, de seus ideais
em prol do futuro do país.
Daí a importância de nos atermos aos acontecimentos ligados à
divulgação e veiculação desses ideários, uma vez que, respeitadas
as devidas transformações ao longo de quase um século, somos
diariamente alvos de uma imensurável gama de idéias e informa-
ções nas mais diversas áreas do conhecimento. Não se trata tão
somente de nomear os elementos ativos da comunicação, tal qual
emissores, receptores, mensagens ou meios empregados. Conside-
ramos, a priori, que todos esses elementos são constituintes de um
determinado contexto social, com limitações, avanços, determina-
ções e implicações integralizadas nesse contexto.
A comunicação, nesta perspectiva, expressa relações, possibi-
lidades e trocas simbólicas ao nível pessoal, grupal e da sociedade
como um todo. Ela pode assumir características e funções que ex-
trapolam o que apreendemos como um “simples” processo de co-
municação. Compreendê-la para além disso, quando na maior
parte das vezes é adjetivada apenas como “salutar” e “necessária”,
é um exercício contínuo e nem sempre muito fácil. Nesse sentido,
buscamos pontuar alguns aspectos de reflexão sobre a comunica-
ção em saúde, através da busca e análise dos meios utilizados para
propagar a higiene e a eugenia no Brasil, naquele determinado
período histórico.

46
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

Possibilidades e limites de divulgação no início do século XX

Refletir sobre os meios de comunicação nas primeiras décadas no sé-


culo XX implica, necessariamente, em um exercício de afastamento dos
meios de comunicação possíveis na atualidade. Hoje, diz-se que vivemos
na “era das comunicações”. Nunca antes a humanidade presenciou ta-
manhas e diferentes possibilidades de transmitir qualquer idéia ou men-
sagem instantânea a qualquer lugar do planeta. Tal diferenciação faz-se
necessária, uma vez que os meios de comunicação assumem significados
diferentes, conforme a época e os recursos disponíveis.
Tendo em conta essa limitação histórica do início do século, é possí-
vel inferir que os higienistas e eugenistas brasileiros aproveitaram-se de
todas as possibilidades de sua época, apesar das inúmeras dificuldades
enfrentadas, especialmente as de ordem financeira. Não existiam os cha-
mados meios de “comunicação de massa”, tampouco a indústria especia-
lizada na área, o que implicava em muito trabalho e tempo dedicados à
utilização de qualquer que fosse o veículo de informação.
Muitas vezes, essas iniciativas resultaram de esforços particulares
de alguns profissionais, principalmente médicos, engajados e com-
prometidos com a divulgação dos princípios e encaminhamentos que
consideravam indispensáveis para o progresso do país. Mas, sobre o
que versavam tais esforços? Quais os temas em pauta? Os temas ori-
ginavam-se a partir das próprias circunstâncias e condições de vida,
ou seja, condições de saúde, educação, trabalho, moradia, lazer e ou-
tras criadas a partir da vida em sociedade. Naquele momento, tais
condições representavam sérios agravos à maioria da população.
Transformações como a mão-de-obra escrava em livre, a produção
agrária em industrial e a vida rural em urbana, faziam o antigo estado
colonial remanescente render-se às relações capitalistas, deflagrando
novas situações e desigualdades sociais.
Tais condições viabilizaram vigoroso impulso ao nascimento e à
implementação das políticas de saúde pública no Brasil, marcadamen-
te influenciadas pelos avanços dos países capitalistas mais desenvol-
vidos. O Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos,
denominado em 1908 de Instituto Oswaldo Cruz, foi uma das institui-
ções que participaram ativamente na condução do traçado assumido
pela campanha sanitarista brasileira, especialmente na Capital Fede-
ral. Dentre as muitas atividades coordenadas e desenvolvidas por

47
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

seus técnicos, algumas foram estruturar as políticas públicas nacionais


em saúde, implementar diferentes ações práticas, patrocinar e estimu-
lar a pesquisa em diferentes áreas, como a microbiologia, protozoolo-
gia, entomologia, helmintologia, fisiologia etc. e conhecer as condições
de saúde da população. Nesse sentido, foram organizadas algumas
“expedições científicas” por todo o país, que se destacaram pela pro-
dução de múltiplas informações sobre a situação médico-sanitária
alimentando o debate dos problemas nacionais. Destaca-se a que foi
chefiada por Belisário Penna e Artur Neiva, em 1912, cujo relatório,
segundo Lima e Hochman (2000, p. 316),

foi peça fundamental para um diagnóstico, ou melhor, para uma


redescoberta do Brasil, que mobilizou intelectuais e políticos, e
impulsionou a campanha pelo saneamento. Além disso, o retrato do
país apresentado nesse documento foi comentado e reproduzido em
jornais e em debates acadêmicos e parlamentares, tendo convencido
parte da opinião pública ao seu cruel diagnóstico.

Monteiro Lobato, referindo-se a esse relatório de viagem, afirma


terem seus executores visto e revelado um Brasil desconhecido, reple-
to de doentes, do qual os periódicos controlados pelo governo jamais
haviam dado notícia. Segundo Lobato (1951a, p. 254):

O Brasil é um país de doentes no sentido literal da expressão. A


nossa miséria financeira e econômica é o reflexo da desnutrição
orgânica que converte a maioria dos nossos concidadãos em inúteis
unidades sociais, incapazes de concorrer com a quota do seu
esforço para o aumento da riqueza comum. A nossa incapacidade
militar é o resultado sintético da fraqueza física de uma enorme
população rural estiolada pelos germes da moléstia. A nossa falta
de energia moral é o precipitado ético da deterioração cerebral e
nervosa de um povo inválido.

Esse ‘cruel diagnóstico’ dizia respeito, entre outras coisas, às de-


sordens estruturais urbanas, doenças, más condições de vida e de
trabalho, mão-de-obra precária e insuficiente e aos altos índices de
natalidade e mortalidade. O confronto com essa situação, somado aos
avanços tecnológicos e industriais, à produção de novos conhecimen-
tos e a um grande sentimento nacionalista, justificava que se trouxes-

48
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

sem à público, através dos meios de comunicação, discussões sobre


patriotismo, legislação, má administração pública, corrupção, apadri-
nhamentos e fraudes, incompetência e falta de interesse em ver e re-
solver os problemas brasileiros, propaganda governamental e gastos
desnecessários, inversão de valores e de comportamentos, miscigena-
ção racial, imigração, sistema educacional, educação sexual, heredita-
riedade, exame pré-nupcial, esterilização, infância, família,
perturbações mentais, tuberculose, sífilis, alcoolismo, vigilância sani-
tária e epidemiológica, higiene, entre muitos outros temas.
A discussão de tais assuntos buscava responder às angústias e ne-
cessidades coletivas até então presentes na sociedade, à medida que os
avanços já alcançados pela ciência faziam das áreas da saúde e da
educação cenários importantes de intervenção. Esse fato permitiu aos
intelectuais médico-sanitaristas participar ativamente desse debate,
visto que tais áreas destacavam-se como alvos de preocupação nacio-
nal e de inúmeras propostas e medidas a serem adotadas.

A produção de publicações especializadas

À medida que os diferentes profissionais organizavam-se em tor-


no de um mesmo ideário, criava-se a necessidade de divulgação dos
novos saberes e ampliação de seu espaço de atuação, para o que não
foram medidos esforços. Esse quadro não era uma condição particular
do Brasil, pelo contrário, essa tendência refletia um movimento mun-
dial em prol da higiene e da eugenia. Monteleone (1929, p. 10) refere-
se, por exemplo, ao entusiasmo mundial pela eugenia e sua propaga-
ção, sempre associados à higiene:

Em Londres, em 1912, sob os auspícios da “Eugenics Education


Society”, realizou-se o primeiro Congresso Internacional de Eugenia.
Compareceram à brilhante assembléia representantes da Alemanha,
Bélgica, Dinamarca, Itália, Estados Unidos e Noruega. Inúmeras foram
as teses eugênicas apresentadas pelos representantes de todos esses
países e, daí por diante, a EUGENIA foi fascinando e apaixonando
todos os povos civilizados, a ponto de nestes últimos anos, de 1920
para cá, terem-se realizado congressos internacionais com grande êxito
de conquista de novos ensinamentos eugenéticos em Londres, Paris,
Roma, Praga, Yugoslávia, Tchecoslováquia e, finalmente, na V

49
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Conferência Pan-Americana, inúmeros foram os trabalhos de


EUGENIA e Higiene ventilados.

Acompanhando os avanços da ciência, intensificava-se o inter-


câmbio internacional entre higienistas e eugenistas de diferentes paí-
ses, inclusive os brasileiros. Trocavam-se correspondências e
produções teóricas; realizavam-se eventos e intercâmbios para divul-
gar o que havia de mais recente nesses campos do conhecimento. Ca-
da vez mais, fazia-se sentir a necessidade de incorporar e divulgar tais
saberes também no Brasil. Sobre a propaganda eugênica, Kehl (1929a,
p. 52-53) aponta alguns dos primeiros trabalhos realizados:

Os primeiros trabalhos nacionais sobre eugenia foram pequenos


artigos de Erasmo Braga, João Ribeiro e Horácio de Carvalho, a
destacar o de João Ribeiro que, com a sua autoridade de mestre das
letras, firmou entre nós a palavra “Eugenia” invés de “Eugenica”,
como pretenderam alguns cientistas e gramáticos. Horácio de
Carvalho, pelas colunas do “Estado de São Paulo”, publicou
também um artigo no qual fez considerações gerais sobre o
movimento eugênico na Inglaterra. [...] Até 1916, a eugenia apenas
teve como cultores-propagandistas os articulistas acima referidos e
o Dr. Tepedino, autor da tese de 1914. Nem mesmo outros artigos
apareceram na imprensa. Parece que a idéia não lograra interessar
os nossos homens de ciência, os nossos jornalistas e estudiosos. A
doutrina teria, talvez, sido mal compreendida e muito pouco do
que se passava no estrangeiro se tornava conhecido, porque o
maior esforço era feito em países onde se falava o inglês e o alemão.
Chegou, afinal, o dia de iniciar a minha propaganda. [...] Teve
origem em São Paulo a cruzada em prol da Eugenia. [...] A 13 de
abril de 1917 teve lugar a conferência (a convite da Associação
Cristã de Moços, de São Paulo), a primeira sobre eugenia, realizada
no país, que foi publicada na íntegra pelo “Jornal do Comércio”,
edição de São Paulo, no dia 19 do mesmo mês.

Kehl concluiu a referida conferência com um apelo aos estudiosos


para a divulgação e prática das idéias e preceitos eugênicos no país,
em prol da melhoria progressiva da nacionalidade brasileira. Nessa
direção, já no ano seguinte, em 15 de janeiro de 1918, ocorreu a sole-
nidade inaugural da Sociedade Eugênica de São Paulo, a qual, segun-
do seu fundador, Renato Kehl (1929, p. 56):

50
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

além das suas seções ordinárias e extraordinárias, das conferências


que organizou, da propaganda escrita que levou avante, ainda
concorreu para a formação de núcleos eugenizadores entusiastas
em alguns países sul-americanos - no caso, Argentina e Peru.

Apesar de já extinta em 1920, essa sociedade contribuiu para o


despertar inicial dos intelectuais e da sociedade quanto às questões
eugênicas. Os discursos, conferências e trabalhos realizados foram
reunidos e publicados em 1919 sob o título Anais de Eugenia.
Nessa mesma linha, foram criadas muitas outras entidades represen-
tativas e instituições para fins de divulgação e intervenção, como a Liga
Brasileira de Higiene Mental (LBHM), a Liga Paulista de Higiene Mental,
a Liga de Defesa Nacional, a Comissão Central Brasileira de Eugenia, a
Liga Pró-Saneamento do Brasil e o Instituto de Higiene e o Departamento
Nacional de Saúde Pública (DNSP). A constituição desses órgãos e enti-
dades específicas demonstra o interesse e o alcance desses movimentos.
Muitas dessas entidades tomaram frente em inúmeras tentativas de influ-
ir nas políticas nacionais, como educação, saúde e imigração, com pro-
nunciamentos enquanto grupo ou através da representação direta de
seus membros nas diversas esferas públicas, uma vez que muitos médi-
cos eram elementos ativos na vida política nacional. Houve muitas mani-
festações dirigidas a órgãos oficiais, como à Câmara dos Deputados, entre
outros, na tentativa de manifestar apoio a alguma medida adotada ou
expressar opiniões de cunho científico para esclarecer determinado as-
sunto. Ainda outras instituições, como o DNSP, criado em 1920, surgiram
como resultado de determinadas políticas públicas adotadas no período.
Muitas dessas entidades representativas mantinham seus próprios
órgãos de divulgação oficiais, geralmente em forma de periódicos, reu-
nindo uma grande variedade de temas e informações. Nessa categoria,
encontramos os “Archivos Brasileiros de Hygiene Mental”, o “Boletim de
Eugenia”, os “Archivos Paulistas de Hygiene Mental”, os “Archivos Bra-
sileiros de Neuriatria e Psiquiatria”, os “Archivos de Hygiene”, os “Ar-
chivos de Hygiene e Saúde Pública”, os “Archivos Brasileiros de
Medicina”, a “Bahia Médica”, a revista “Saúde”, entre outros. Santos
(1996/97, p. 536), referindo-se ao acervo da Biblioteca de Manguinhos, dá
indícios do elevado número de periódicos, nacionais e estrangeiros, or-
ganizados em sua maioria naquele período:

51
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Entre as exceções figura a Biblioteca de Manguinhos, da Fundação


Oswaldo Cruz, que possui 32 mil livros, teses e monografias
relacionados a temas pertinentes ao campo biomédico e à saúde
pública, incluindo 4.864 periódicos, dos quais 1.330 são correntes.
Dispõe, ainda, de nove bases de dados bibliográficos e uma
videoteca especializada, com cerca de quinhentos títulos. Sua
coleção de obras raras alcança cerca de oito mil volumes.

A partir da breve caracterização de um desses periódicos, o “Bole-


tim de Eugenia”, é possível observar a importância e a amplitude
dessas publicações. Trata-se, basicamente, de uma iniciativa individu-
al, idealizada, implementada e, inclusive, financiada por Renato Kehl,
contando com o apoio da LBHM. Com uma tiragem inicial de mil
exemplares, o principal propósito desse boletim, expresso no primeiro
número, em janeiro de 1929, era “auxiliar a campanha em prol da
Eugenia entre os elementos cultos e entre os elementos que, embora
de mediana cultura, desejam, também, orientar-se sobre o momentoso
assunto” (Kehl, 1929b, p. 1). Apesar de não ter um padrão fixo de
apresentação, todos os espaços das edições eram completamente pre-
enchidos com artigos científicos, reflexões, pequenos lembretes, anún-
cios (eventos, bibliografias) ou breves mensagens. Com repercussão
nos meios científicos e na imprensa nacional e mundial, contava com
colaboradores brasileiros e estrangeiros para a composição dos artigos
que apresentava, por vezes, no original ou traduzidos do alemão,
francês, italiano ou inglês.
Em junho de 1929, foi incorporado como suplemento da Medicamenta,
uma importante revista médica da época, buscando ampliar sua
divulgação junto aos meios científicos. Essa população-alvo compu-
nha-se, basicamente, por médicos, sanitaristas, políticos, juízes, ad-
vogados, professores das mais diversas áreas, comerciantes e outros
personagens “eminentes” da sociedade brasileira. A busca desse
leitor repete-se ao longo das edições, transparecendo a idéia de que
esse grupo era chamado a assumir a responsabilidade da administra-
ção pública, para cuja função eram fundamentais os conhecimentos e
preceitos da eugenia. Sem esses subsídios, seria impossível dirigir os
caminhos do país rumo a um futuro promissor, o qual os eugenistas
propunham construir sobre os alicerces da raça, devidamente purifi-
cada. Nesse sentido, as temáticas abordadas incluíam todos os assun-

52
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

tos que circulavam nos meios de comunicação naquele momento,


anteriormente mencionados, com grande ênfase às questões da here-
ditariedade.
Apesar das especificidades próprias de cada periódico, principal-
mente em termos de apresentação gráfica e abordagens temáticas, havia
certas características comuns. Destaca-se a reduzida narração de fatos e
acontecimentos, havendo, isto sim, um grande espaço reservado para a
reprodução, na íntegra, de textos, artigos, discursos, conferências (públi-
cas ou radiofônicas) e resenhas sobre obras diversas e em diferentes idi-
omas. Essa erudição em muitos idiomas é um aspecto importante de
nota, condição que reitera tratarem-se de movimentos conduzidos por
elementos pertencentes a classes econômica e culturalmente favorecidas,
além de apontar o grande intercâmbio teórico e a participação dos intelec-
tuais brasileiros nos meios internacionais. Renato Kehl (1925, p. 69) desta-
ca essa participação ao nomear-se em seus artigos, prioritariamente, “da
Academia Nacional de Medicina de Lima, da Sociedade Francesa
d’Eugenique de Paris etc”. A criação de um acervo bibliográfico pela
LBHM também expressa essa preocupação:

A Liga Brasileira de Higiene Mental, há cerca de dois anos, inaugurou,


em sua sede, uma sala de leitura especializada em assuntos de higiene
mental e ciências correlatas, pondo-a, desde então, à disposição do
público interessado. A sua biblioteca, embora modesta, é, no gênero,
uma das melhores, senão a melhor do Brasil e até da América do Sul,
contando grande número de volumes escolhidos dentre os autores de
maior nomeada na literatura científica brasileira, portuguesa,
espanhola, francesa, italiana, inglesa, alemã, norte-americana,
argentina, uruguaia, etc. (Secção..., 1929, p. 17).

O fato de representarem a intelectualidade brasileira conduz-nos


a outro ponto importante para a vida dessas publicações, qual seja,
as relações econômicas e políticas estabelecidas entre as entidades
representativas específicas e o governo. A receptividade, o apoio e o
interesse governamental são notórios, por vezes traduzidos também
em benefícios econômicos, como no caso do decreto 4778, de dezem-
bro de 1923, o qual reconheceu a LBHM, criada em janeiro daquele
ano, como de utilidade pública, passando esta a receber uma sub-
venção federal para o desempenho de suas atividades (Reis, 1994).

53
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Tal apoio pode ser subentendido na continuidade dos trabalhos,


conforme a citação abaixo:

No interregno decorrido, a “Liga Brasileira de Higiene Mental”,


procurando não desmerecer das simpatias da opinião culta e do
apoio generoso que o atual Governo da República lhe quisera
facultar, estendeu a sua propaganda até ao extremo sul do nosso
país, e um dos seus diretores pode até ser escutado na capital de
importante nação vizinha, onde realizou conferência que ora
publicamos em primeira mão (Redação..., 1925, [s.p.]).

Esse suporte financeiro, no entanto, não era contínuo, fato que exigia
a participação ativa de seus membros com subsídios próprios, o que, de
certa forma, não parecia ser tão problemático, visto a condição social que
ocupavam. Mais importante, talvez, do que o aspecto financeiro, fosse a
liberdade de expressão e de ação de que gozavam, especialmente se
comparadas com outras entidades representativas e seus respectivos
meios de comunicação, como o movimento e a imprensa proletária que,
além de enfrentar dificuldades financeiras ainda maiores, sofriam tam-
bém a “perseguição por parte da ordem estabelecida” (RUBIM, 1980, p.
53), especialmente em momentos de maior inquietação política.
De igual importância aos periódicos, foram ainda publicados muitos
livros, tanto por profissionais da área médica quanto por políticos, edu-
cadores, literatos entre outros. Kehl (1929a, p. 58-61) faz referência a um
índice bibliográfico das publicações nacionais sobre eugenia e questões
afins, de 1897 a 1929, totalizando 74 trabalhos. Na literatura, encontramos
um bom exemplo em Monteiro Lobato, com as obras O presidente negro
(Lobato, 1951b) e Mr. Lang e o Brasil e Problema Vital (Lobato, 1951a). A
primeira caracteriza-se essencialmente como uma ficção de fundo euge-
nista, e a segunda foi organizada a partir de uma coletânea de artigos
escritos por Lobato, em 1918, no jornal O Estado de São Paulo, denunci-
ando a incúria governamental para com a saúde brasileira.

Higiene e eugenia em meio a polêmicas e consensos

A preocupação com a saúde não se limitava aos especialistas da


área, mas os problemas por eles apontados eram considerados sérias
ameaças à sociedade e mostravam-se presentes em diferentes produ-

54
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

ções teóricas da época. Classes dirigentes ou grupos de oposição, mé-


dicos ou literatos, antropólogos ou educadores, todos sentiam-se ame-
açados pelos danos que lhes poderiam sobrevir. É o caso do Partido
Socialista Radical do Maranhão que, em seu manifesto de 1932, pro-
punha a “organização de um plano de alimentação e eugenia para,
racionalmente, cultivar e defender o tipo humano brasileiro”. Certa-
mente, esse “tipo humano brasileiro”, não deveria resumir-se àquela
figura descrita por Lobato (1951a, p. 285 e 306), o Jeca Tatu, que, em
oposição à lembrança dos grandes líderes da história, apresentava-se
enquanto uma relação entre pares para ser vista:

O pobre caipira é positivamente um homem como o italiano, o


português, o espanhol. Mas é um homem em estado latente. Possui
dentro de si grande riqueza em forças. Mas força em estado de
possibilidade. E é assim porque está amarrado pela ignorância e
falta de assistência às terríveis endemias que lhe depauperam o
sangue, caquetizam o corpo e atrofiam o espírito. O caipira não “é”
assim. “Está” assim [...] Não é a raça – a raça dos bandeirantes é a
mesma do Jeca Tatu. É um longo e ininterrupto estado de doença
transmitido de pais a filhos e agravados dia a dia.

A sociedade como um todo precisava negar esse Jeca e ter como


ideal o homem normal ou superior, defendido pela eugenia. Segundo
Lobato, a higiene teria papel fundamental nessa recuperação do ‘ca-
boclo brasileiro’. Essa preocupação com a constituição saudável do
homem brasileiro justificava-se, especialmente, diante das ameaças
que se faziam cada vez mais devastadoras, como as chamadas “dege-
nerações sociais”, o alcoolismo, as doenças venéreas, os distúrbios
mentais e a tuberculose.
A possibilidade de prevenção das mal-formações e das conse-
qüências negativas de certas agressões sobre o corpo, como o abuso
do álcool, os efeitos da sífilis ou as epidemias, compreendia um gran-
de avanço da ciência em prol da saúde e bem-estar dos homens. Mui-
tos esforços eram empreendidos, procurando sanar ou amenizar esses
malefícios. Algumas vezes, tais esforços convergiam com interesses
dos movimentos de natureza nacionalista, emergentes no período. A
Liga Pró-Saneamento do Brasil, criada em 1918, é uma expressão des-
sa inquietação nacionalista em torno do tema saúde, reunindo tam-

55
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

bém os principais intelectuais do círculo médico-sanitário, editando a


revista “Saúde” como seu órgão de divulgação e propaganda, o qual
tinha como objetivo, entre outros, fortalecer a idéia de uma organiza-
ção de saúde pública que compreendesse os problemas de saúde das
áreas urbanas e a gravíssima situação sanitária das populações rurais.
Politicamente, visava um Estado forte para intervir sobre os rumos
políticos do país e, conseqüentemente, sobre as condições de saúde da
população (Costa, 1985).
Não era possível ao Brasil manter-se no atraso, no obscurantis-
mo e na miséria, quando havia países em que o progresso, o desen-
volvimento econômico e social fluíam ‘naturalmente’. Era esse
progresso que se almejava para o Brasil. Uma das formas de alcançá-
lo era a busca do conhecimento científico como instrumento para
contrapor aos males brasileiros. Essa nova forma de administrar,
com o apoio da ciência, contrapunha-se à forma até então vigente.
Lobato (1951a, p. 243) refere que “o bacharel do Brasil faliu” e critica
o parasitismo político que o estado de doença da população ratifica-
va e perpetuava:

a maioria dos nossos paredros sabe que eles não seriam coisa
nenhuma se lhes não emprestasse força a aliança do ancilóstomo e
do barbeiro. A ação das anofelinas é o pedestal de muito sumo
pontífice republicano; sem elas, ai deles e da sua República
(Lobato, 1951a, p. 263).

A “degradação política do regime republicano”, que teria levado


o país a esta situação catastrófica, deveria ceder lugar a iniciativas e
programas de ação com base nas verdades científicas e que buscassem
solução para os problemas nacionais. Lobato afirma que Manguinhos
(Instituto Oswaldo Cruz), em seus poucos anos, teria feito mais pelo
Brasil do que um século inteiro de “bacharelice onipotente”. Pasteur
abriu a nova era microscópica, e o Brasil, enfim, aderia ao novo méto-
do, através de homens como Oswaldo Cruz, Gaspar Viana, Chagas,
Neiva, Lutz, Astrogildo, Chaves, Vilela e Belisário Pena. Quanto ao
sucesso do novo método,

É mister abordar os problemas com absoluta isenção de ânimo,


limpo de idéias preconcebidas, de espírito partidário, de

56
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

facciosidade de escola, de sentimentalismo pueril; é força começar


do princípio, não interpor entre o caso em foco e o sólido preparo
técnico do cientista nenhum apriorismo perversor [...] É com esse
espírito novo que havemos de estudar e resolver os nossos
problemas – e este espírito por enquanto só se denuncia em
Manguinhos (Lobato, 1951a, p. 229).

Dessa forma, diferentes interesses convergiam nos cenários políti-


co e sanitário do país. Obviamente, os problemas colocados pela soci-
edade nesse período atingiam e preocupavam todos os segmentos
sociais. A avaliação, a interpretação e os encaminhamentos prováveis,
contudo, nem sempre coincidiam. Assim, todo esse empenho em prol
da nação e as relações estabelecidas entre os diferentes sujeitos sociais
não se davam de forma sempre harmoniosa. Existiam vozes divergen-
tes, que se chocavam diretamente com os ideários em questão e/ou os
seus meios de ação, e que, de certa forma, apontavam para o que os
eugenistas e a estória do Jeca Tatu não explicavam; ou seja, que os
problemas de saúde não dependiam apenas da herança hereditária ou
do “estar amarrado pela ignorância” ou não, mas refletiam as mudan-
ças do dia-a-dia que o desenvolvimento da sociedade impunham,
como as precárias condições vividas pela nascente classe trabalhadora
e que oportunizavam inúmeras doenças e complicações, muitas inclu-
sive já superadas pelo conhecimento científico da época, caso fosse
devidamente aplicado.
Sérias divergências já se faziam notar desde os primeiros passos
dessa cruzada pela higiene, quando, no bojo das transformações
sociais e do desenvolvimento, foram propostas certas reformas es-
truturais urbanas, como a ‘remodelação’ da Capital Federal. No go-
verno municipal de Pereira Passos, iniciou-se um verdadeiro ‘bota-
abaixo’, principalmente no centro do Rio de Janeiro, enquanto ruas
eram alargadas, construções supervisionadas, assoalhos trocados e
abertas janelas nas paredes escuras dos quartos. O povo estava des-
contente, pois muitos cortiços foram destruídos e seus habitantes
tiveram de mudar-se para regiões muito mais distantes de seus lo-
cais de trabalho. Após nove meses, cerca de 614 prédios haviam sido
demolidos; em outubro de 1904, “a população carioca estava aturdi-
da. Toneladas de pedra amontoavam-se no porto, o centro parecia
área bombardeada, e Oswaldo Cruz vacinava todo mundo. “O pró-

57
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

ximo Governo” – diziam os jornais – “devemos ir procurá-lo num


hospício” (Bota..., 1980, p. 34).
Nesse contexto de condições e oportunidades desiguais, crescia a
oposição ao movimento sanitarista e seus métodos eram duramente
criticados. Costa (1985, p. 60) refere-se a muitas resistências frente às
campanhas de vacinação e de higienização das residências:

No parlamento, a oposição investiu contra os novos processos de


higiene implantados no país. Falou em nome da liberdade humana
submetida às mais duras provas, vendo o domicílio, inviolável perante
a lei, perder esta prerrogativa diante das turmas que faziam o expurgo
contra o inseto propagador da doença. Igualmente os positivistas
engrossaram as fileiras dos adversários de Oswaldo Cruz porque
Comte definia a vacinação obrigatória como um atentado à “liberdade
espiritual” e manifestação de “despotismo sanitário”. A imprensa o
ironizou (Oswaldo Cruz), chamando-o de “general-mata-mosquito”,
exigindo sua demissão sob a acusação de indolência, ineficácia e
sectarismo. Alguns jornais chegaram a instigar o povo à sublevação
contra o serviço sanitário.

A Revolta da Vacina foi um fato marcante no conjunto desses


protestos e descontentamentos. Desencadeada em 10 de novembro
de 1904, após o Congresso ter promulgado, em 31 de outubro, a
‘vacinação obrigatória’ contra a varíola, a revolta durou mais de
uma semana. As ruas centrais da capital federal encheram-se de
barricadas, bondes foram incendiados, lojas foram depredadas e
saqueadas, postes de iluminação foram destruídos, culminando
com o que revelou-se, sob pretextos sanitários, uma tentativa frus-
trada de golpe contra o governo. Alguns depoimentos nos jornais
da época dão conta das críticas às ações de higiene e saneamento
desenvolvidas, como o texto da revista Careta, satirizando a afir-
mação de Oswaldo Cruz, de que o mosquito Stegomyia fasciata era o
transmissor da febre amarela:

O leitor foi mordido por um mosquito? Procure ver se o apanha para


ver as duas meias-luas[...] Esta higiene! Esta higiene [...] A princípio
lidara com ratos, agora lida com mosquitos [...] E não se espantem se
depois aparecerem outros anicetos na dança, a minhoca, o kangurú, a
batata inglesa, o espermacete, o caxinguelê,

58
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

o tico-tico, a lacraia e outros mencionados no novo método


(Todos..., 1980, p. 38).

Ou, ainda, nas esferas políticas, conforme o discurso de Ruy Bar-


bosa no Senado:

A lei da vacina obrigatória é uma lei morta. [...] Assim como o direito
veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda
transpor-nos a epiderme. [...] Logo não tem nome, na categoria dos
crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania, a que ele se
aventura, expondo-se, voluntariamente, obstinadamente, a me
envenenar, com a introdução, no meu sangue, de um vírus, em cuja
influência existem os mais fundados receios de que seja condutor da
moléstia, ou da morte (Todos..., 1980, p. 38).

Se por um lado a higiene era atacada ao longo dessa primeira dé-


cada do século XX, não era diferente com o movimento eugenista à
medida que este ganhava espaço e apoio de alguns segmentos impor-
tantes da sociedade brasileira. Eram muitas as críticas à eugenia ou
aos seus métodos, vindas de representantes da Igreja Católica, que
ocupavam um lugar de forte oposição aos eugenistas. Enquanto ciên-
cia, a eugenia propunha diminuir o índice de natalidade nos grupos
considerados ‘inferiores’ através de meios como os anticoncepcionais,
o exame pré-nupcial, a esterilização e o aborto. A Igreja historicamen-
te posicionou-se contrária a qualquer meio artificial para o controle da
natalidade, entrando em confronto direto com os eugenistas. Impor-
tante salientar, porém, que a preocupação quanto à questão popula-
cional brasileira era comum a ambos, Igreja e movimento eugenista,
diferenciando-se quanto à interpretação dos problemas e aos encami-
nhamentos propostos.
Convém destacar que a forma de interpretar a sociedade é que dava
o tom das mensagens e das propostas transmitidas pelos meios de comu-
nicação. Tomemos em conta o pensamento eugenista que, em linhas ge-
rais, reconhecia como grande problema eugênico o desequilíbrio
populacional entre ‘inferiores’ e ‘superiores’. Segundo Kehl (1929d, p. 2),
o mundo era considerado “um paraíso perdido pelo gênero humano,
constituído por um amontoado amorfo de anormais, parasitando um
núcleo relativamente pequeno de equilibrados”. O homem era sempre
observado pela ótica da natureza, refletido como se fosse algum objeto

59
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

que, experimental e geneticamente, pudesse ser manipulado e conduzido


a uma situação de equilíbrio social.
Ao mesmo tempo, havia o reconhecimento das alterações práticas
de vida daquele momento, produzidas pelo “advento das máquinas e
dos aparelhos automáticos, [...] quando a miséria tornou-se formidá-
vel em muitos lares felizes antes da guerra” (Kehl, 1931, p. 1). Através
da explicação racial e hereditária, de inferioridade e superioridade
“inatas”, explicavam-se, todavia, todas as diferenças sociais, justifi-
cando-se a oposição entre a miséria de uma classe e as vantagens de
outra. Nesta perspectiva, explicavam-se também, através das caracte-
rísticas naturais dos homens (leiam-se hereditárias), os chamados
“males sociais” e demais problemas de saúde, por todos reconhecidos
e tão amplamente discutidos, negando-se, assim, as contradições da
sociedade capitalista presentes na gênese desses males.
Apesar das críticas, ou com elas, o empenho pela propaganda da
higiene e da eugenia continuava. Guerner (1928, p. 7), referindo-se
especificamente à higiene mental, expressa, no conjunto, a necessida-
de e a responsabilidade a que se chamavam os protagonistas desses
movimentos pela saúde ‘física’ e ‘mental’ da gente brasileira:

Como todos os outros ramos da Higiene Social, a Higiene Mental


necessita, para completa realização de seus objetivos, da
colaboração de todas as classes sociais, que só poderá ser obtida
por meio de uma campanha de propaganda intensa e bem
orientada. Compete-nos a tarefa árdua de dispor os meios para esse
fim [...] É preciso, portanto, prosseguir no trabalho.

Em busca de meios de comunicação ‘populares’

Além das produções especializadas, meios ditos ‘populares’ tam-


bém foram utilizados, como é o caso da imprensa escrita. Se as publi-
cações especializadas enfocavam os problemas nacionais sob a sua
perspectiva e defendiam os seus interesses, o jornal tornava-se um
espaço público para outros pontos de vista, muitas vezes questionan-
do os novos ‘conhecimentos científicos’ ou mostrando as incoerências
e limitações das ações desenvolvidas. Nesse sentido, o jornal foi um
espaço que propiciou amplo debate público sobre saúde; por um lado,

60
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

criticando e questionando; por outro, configurando-se em um impor-


tante instrumento de difusão dos ideários em questão. Publicavam-se
desde pequenas notas, conferências realizadas até artigos de cunho
científico, geralmente reproduzidos posteriormente, na íntegra, pelos
periódicos.
Ao mesmo tempo, havia um esforço para otimizar também o
uso do rádio que, nos países industrializados, teve seu desenvol-
vimento acelerado sobretudo no período da Primeira Guerra Mun-
dial, apresentando um desenvolvimento defasado e mais tardio no
Brasil, por volta do início dos anos 20. Segundo Novais e Sevcenko
(1998, p. 587-593), muitos eram ainda os problemas técnicos de
transmissão, difusão, qualidade de sinal e programação, e só a par-
tir dos anos 30 o rádio teria um impacto decisivo para a transfor-
mação da cultura brasileira.
Recuperando um pouco a história do rádio no Brasil, dois episó-
dios tiveram importante contribuição para sua popularização. O pri-
meiro dizia respeito à façanha de Charles Augustus Lindbergh, que
realizou a primeira travessia aérea do Atlântico Norte. Renato Murce,
cantor e locutor carioca e um dos pioneiros da radiodifusão no Brasil,
percebeu o interesse contínuo do público sobre qualquer informação a
seu respeito, particularmente, após o rapto de seu filho, e tratou de
manter o assunto ‘quente’, com muitos detalhes sobre o caso. Desco-
briu-se, assim, a possibilidade de criar mitos através do rádio e de
divulgar, com estardalhaço, os detalhes de suas vidas privadas. O
segundo episódio que contribuiu para que as emissoras de rádio des-
cobrissem seu potencial de impacto junto ao público foi o seu encon-
tro com a música. Ao que tudo indica, não foi o rádio que lançou a
música popular, mas o contrário.
Esse redirecionamento casual das comunicações radiofônicas trans-
formou o que seria inicialmente uma espécie de teatro burguês irradiado,
com músicas clássicas, leituras de longos textos literários, recitação poéti-
ca e discursos políticos intermináveis, de forma precária e conteúdo tedi-
oso, em um meio de acesso à população em geral, em que o aumento da
audiência seria uma das metas principais, disponibilizando uma varie-
dade cada vez maior e mais atrativa de assuntos e informações.
Higienistas e eugenistas fizeram-se valer desse meio de comuni-
cação em suas campanhas. Os Arquivos Paulistas de Higiene Mental

61
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

registram várias conferências/palestras realizadas na Rádio Educado-


ra Paulista, como as proferidas por ocasião das “Semanas Anti-
Alcoólicas”, atividades coordenadas pela LBHM (Campos, 1929, p. 43;
Mello, 1930, p. 47). Outro exemplo, de caráter oficial, encontramos em
Gasparini (1945), que apresenta uma série de “palestras de higiene na
rádio Tupi”, transmitidas por volta de 1941, no Rio de Janeiro, sob o
patrocínio do Ministério da Educação e Saúde e do Serviço Nacional
de Educação Sanitária. Em nome do Serviço de Propaganda e Educa-
ção Sanitária, cuja missão era pregar a Higiene e a Eugenia, o referido
médico discorreu de maneira clara e concisa sobre temas variados.
Dentre eles, citamos as principais causas de morbi-mortalidade, o
combate da ciência à dor, higiene escolar (repetência, eficiência, edu-
cação dos pais, fome e desnutrição infantil, classificação antropológica
dos escolares), alimentação do operário, tóxicos prejudiciais à raça
(alcoolismo), higiene mental, biografia de Dias Martins (o precursor
do ensino da higiene popular no Brasil), lançamento do livro Noções de
Higiene, de autoria de Hélio Gomes, entre outras questões presentes
na sociedade da época. Podemos sintetizar o eixo norteador desses
pronunciamentos através da seguinte idéia:

Nós não somos somente um corpo que se nutre e que se reproduz;


somos também uma alma, que pensa, que sonha, que sente, que
ama, que se entusiasma, que vibra e palpita. A saúde depende
também dessa alma, que se torna forte pela prática de ações nobres
e elevadas. E é pela Instrução que dá o saber; pela Educação que
forma o caráter; pela Higiene que defende a Saúde, que
conseguiremos melhorar, cada vez mais, física, moral e
intelectualmente o Brasil (Gasparini, 1945, p. 83).

Diante de tais afirmações, não podemos perder de vista o caráter


dialético de todo esse processo de comunicação. Em princípio, recebe-
se um discurso impregnado de excelentes intenções, muitas das quais
possíveis e balizadas pelos conhecimentos científicos já produzidos.
Grosso modo, não há quem possa opor-se a tais pensamentos! Se,
porém, ousarmos ir um pouco além do “aparente”, chegaremos à
conclusão de que há uma certa lógica dominante nos meios de comu-
nicação, uma lógica que, para encobrir o real, omite as contradições e
se utiliza eficazmente da estratégia de criar alguns grandes ‘mitos’,

62
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

inclusive como os da higiene e da eugenia. O exemplo a seguir pode


ser útil nessa reflexão.
A guerra era, sem dúvida, uma ameaça eminente à segurança e
desenvolvimento mundiais naquele período, inclusive para o Brasil,
tanto que era caracterizada por Gasparini (1945, p. 13) como “o oitavo
cavaleiro da morte”, dentre as causas de mortalidade conhecidas.
Interessante observar, porém, a análise feita pelo referido autor sobre
um dos acontecimentos ocorridos imediatamente antes da guerra, a
Conferência de Munique, relacionando um fato de conotação eminen-
temente política com princípios de higiene e eugenia.
Recobrando a história, essa conferência ocorreu em 30 de setem-
bro de 1938 para resolver o impasse criado pela Alemanha que, a
partir de uma política de agressões e anexações territoriais, exigiu a
anexação dos Sudetos, região ocidental da Tchecoslováquia habitada
por uma minoria alemã, ao que a Inglaterra e a França opuseram-se,
defendendo a integridade do território tcheco. Os representantes dos
quatro países reunidos na referida conferência (Alemanha, Itália,
França e Inglaterra), para evitar a guerra, naquele momento, decidi-
ram entregar os Sudetos aos invasores, desde que o restante da T-
checoslováquia continuasse independente. Segundo Melo e Costa
(1993, p. 257), a Conferência de Munique “foi o auge da política de
apaziguamento”. Uma semana após sua realização, Gasparini (1945,
p. 75) faz referência aos quatro expoentes europeus reunidos em
favor da pacificação européia, Chamberlain, Daladier, Hitler e Mus-
solini, como os “quatro maiores baluartes da higiene e da eugenia,
na Europa”:

Não foram quatro homens públicos, foram 400 milhões de cidadãos


da Inglaterra e seus domínios, 75 milhões de alemães, 50 milhões
de italianos e 45 milhões de franceses que se encontraram, em
Munich [...] Sem o querer, sem serem higienistas ou eugenistas,
tornaram-se os quatro maiores baluartes da Higiene e da Eugenia,
na Europa, porque, preservando a paz, preservaram a saúde e a
vida de milhões de criaturas que seriam destruídas umas e
inutilizadas outras pelas armas e pelas epidemias, fatais depois das
guerras, e impediram o enfraquecimento da geração vindoura, filha
dos sobreviventes, mutilados, desnutridos, doentes, nervosos,
tuberculosos, física e mentalmente arruinados pela guerra. Não

63
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

discuto a questão politicamente, analiso-a sob o ponto de vista da


saúde, fonte precípua da felicidade humana

Convém lembrar, no entanto, que em março de 1939, opondo-se


ao acordo então firmado, Hitler efetuou o desmembramento da
Tchecoslováquia, conquistando, assim, posição estratégica para uma
futura invasão da Rússia e uma possível anexação dos campos petro-
líferos do Oriente Médio. Em um intervalo de apenas seis meses, o
crédito das informações veiculadas no rádio já estava comprometi-
do, sem esquecer que o próprio conflito que originou a referida con-
ferência já refletia a intranqüilidade mundial e as diferentes
tendências e ações políticas desenvolvidas, em detrimento dos inte-
resses de muitas minorias. Senão vejamos, aqueles “baluartes da
higiene e da eugenia” que, preservando a paz, preservariam a saúde
e a vida de milhões de criaturas, representaram, isto sim, alguns dos
principais dirigentes envolvidos na II Guerra Mundial, cujos resul-
tados, entre muitos outros, foram:

45 milhões de mortos, 35 milhões de feridos e 3 milhões de


desaparecidos, [...] 5 milhões de judeus foram vítimas da “solução
final”, plano nazista de genocídio sistemático da comunidade
judaica dos territórios conquistados. [...] Um custo total de 1 trilhão
e 385 milhões de dólares, [...] a destruição econômica provocada
pelo conflito foi superior à da Primeira Guerra Mundial (Melo;
Costa, 1993, p. 274).

Além do rádio, também muitas conferências, discursos e pales-


tras eram proferidas, especialmente em faculdades, escolas, con-
gressos, sessões parlamentares e entidades civis, como Rotary
Club, entre outras. Verificamos ainda a realização de diferentes
cursos e congressos, como os Congressos Brasileiros de Higiene, o
Congresso Brasileiro de Eugenia e os Congressos Nacionais de
Saúde Escolar. Educação e saúde aparecem como aliadas, estrei-
tando os laços entre esses dois setores, senão tanto na prática, pelo
menos na teoria. Um dos temas marcantes nesses eventos era a
“educação em saúde” e, neste sentido, a escola era tida como um
espaço importante no cenário nacional para a implementação dos
princípios da higiene e da eugenia.

64
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

O I Congresso Nacional de Saúde Escolar, realizado em abril de


1941, em São Paulo, sob o patrocínio do Presidente da República,
Getúlio Dorneles Vargas, dá testemunho dessa importância. Carlos Sá
(1942, p. 435), relator do 5. º tema do referido congresso, “educação
sanitária nas escolas”, faz menção a 35 teses apresentadas, afirmando
que em “todos os trabalhos apresentados ressalta a importância, cada
vez mais reconhecida, da educação (sanitária) na escola, havendo
quem a deseje iniciada no ensino pré-primário e alongada nos estabe-
lecimentos de instruções superior”. Cita como exemplo a tese de Costa
Sobrinho, a qual, além de delimitar os campos de atuação da medicina
e da higiene, trata sobre:

a formação profissional dos higienistas paulistas com o Instituto de


Higiene fundado em 1917, o Curso de Educadoras Sanitárias
inaugurado em 1925, o de Médicos-Higienistas em 1935 e o de
Nutricionistas em 1939; insurge-se contra a alfabetização a torto e a
direito, sem educação, principalmente da saúde e preconiza a
inclusão de noções de higiene em todos os graus do ensino (Sá,
1942, p. 437).

Ainda no sentido de popularizar tais noções, inúmeras outras ativi-


dades eram implementadas. Citamos, por exemplo, a distribuição de
panfletos explicativos, especialmente sobre questões de ordem sanitá-
ria; a organização de prêmios e concursos para estimular a produção de
conhecimentos e sensibilizar a população para questões consideradas
essenciais, como no caso do Concurso de Eugenia, realizado em 1929,
no Rio de Janeiro, que nomeou a “primeira brasileirinha eugenizada”
do país (Kehl, 1929c, p. 1-2); a realização de algumas consultas popula-
res, como o “Inquérito sobre Educação Sexual”, organizado através do
Boletim de Eugenia (Kehl, 1930, p. 1-8), entre outras.

As possibilidades e os limites continuam

Apesar das muitas dificuldades vivenciadas pelos profissionais


envolvidos nas referidas campanhas, é possível concluir que houve a
busca de todos os recursos de comunicação disponíveis. Sinteticamen-
te, referindo-se à propaganda sanitária, Sá (1944, p. 186) resume mui-
tas dessas possibilidades:

65
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Para essa propaganda, utilizam-se conferências, palestras, cursos,


irradiações etc.; matéria impressa em notícias, entrevistas, artigos,
sanigramas, cartazes, folhetos, boletins, revistas, livros, cartas etc.;
filmes mudos e sonoros; e outros meios como campanhas (as que se
têm feito no Brasil contra a lepra), concursos, dramatizações,
exposições (como a do 1º Congresso Nacional de Saúde Escolar em
1941, em São Paulo, e as que se têm realizado ultimamente no Rio
Grande do Sul), e inspeções sanitárias (tais as do Instituto de
Higiene de São Paulo, em grande número de municípios brasileiros
e até nas vizinhas repúblicas americanas).

Havia também a preocupação em como realizar essa propaganda,


procurando garantir seu alcance e eficácia. Guardando as devidas
semelhanças e diferenças com o tempo presente, devia-se imprimir à
comunicação os aspectos e dispositivos possíveis, técnica e intelectu-
almente, a fim de alcançar os melhores resultados. Alguns desses cui-
dados eram assim descritos:

usar intensidade, ausência de contraste (não fazer uma propaganda


quando o espírito público está preso a outros acontecimentos),
surpresa (telegramas sobre assuntos de atualidade com um fecho
no sentido desejado), boa aparência e nítida visibilidade (à noite,
anúncios luminosos amarelos e não vermelhos), facilidade de
compreensão (letras bem legíveis, desenhos bem explícitos, leitura
horizontal etc.), ação do público (mover uma alavanca ou apertar
um botão para que se ilumine um quadro ou se ponha a girar um
disco), estatística de resultados (quantos já visitaram a exposição,
quanto em dinheiro foi recebido, quantos lares proletários se
construíram, de quanto se reduziu a mortalidade pela difteria etc.)
(Sá, 1944, p. 186-187).

Através da ‘estatística de resultados’, as próprias condições de vi-


da e a sua transformação mediante a ação humana, tornavam-se, por
sua vez, instrumentos nas campanhas, buscando atender a determi-
nados interesses. Contraditoriamente, a vida concreta dos brasileiros
representava o ‘fim’ e o ‘meio’ ao mesmo tempo. O processo de co-
municação instaurado dava conta de conciliar tais interesses.
Apesar das diferenças pontuais entre os discursos da eugenia e da
higiene, ambos consolidaram-se como movimentos sociais importan-
tes e influentes na sociedade brasileira, mantendo um enfoque co-

66
- DIFUSÃO DOS IDEÁRIOS HIGIENISTAS ...

mum: a ênfase na perspectiva biológica de naturalização do ser hu-


mano. Ao não considerar a historicidade e as condições concretas de
vida dos sujeitos, estes passavam a ser percebidos a partir de parâme-
tros de normalidade, definidos por um ideário liberal, centrado na
igualdade e liberdade individuais. A partir de um conceito de ‘har-
monia social’, todo comportamento destoante passava a ser merece-
dor de vigilância e controle.
Os limites ideológicos podem ser percebidos no momento em
que a própria ciência, um conjunto de conhecimentos produzidos
em diferentes áreas, não apenas nas biológicas, já dava conta de que
os problemas e os chamados ‘males sociais’ da época explicavam-se
mediante os conflitos sociais em um determinado modo de socieda-
de, e não, prioritária ou exclusivamente, mediante as características
biológicas e hereditárias dos indivíduos pertencentes a essa socieda-
de ou mediante os cuidados higiênico-sanitários adotados individu-
almente por eles.
A área da saúde não está alheia às demais áreas do convívio hu-
mano. Pelo contrário, interage e reage com todas, a todo tempo. Saú-
de, educação, política, cultura, lazer, trabalho, todas acompanham o
movimento da história e estão sujeitas a avanços e retrocessos, mesmo
que, algumas vezes, pareça existir o domínio e a determinação de um
saber sobre os outros, como de um ‘certo’ determinismo biológico,
inerente à área da saúde.
Não podemos negar que há um grande interesse pelos temas des-
sa área, tanto pelo público em geral quanto pelos meios científicos, e
que, por isso, suas mensagens gozam de muitas facilidades de veicu-
lação. Fontes documentais do início do século XX já dão conta desse
aspecto. Embalados pela ciência e sustentados pela engrenagem polí-
tico-administrativa, os conhecimentos produzidos repercutiam dire-
tamente sobre a vida das pessoas, através do empenho de quem neles
acreditava e trabalhava de forma dedicada e empreendedora, mesmo
com as dificuldades e os muitos conflitos ocorridos que, a nosso ver,
apenas confirmam que a vida humana não pode ser compartimentali-
zada em diferentes áreas, ignorando as inter-relações estabelecidas
entre os homens e suas múltiplas determinações.
Por outro lado, esses mesmos conhecimentos apontavam para o dire-
cionamento político de uma determinada classe, uma vez que seus defen-

67
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

sores eram representantes da elite intelectual e política brasileira. A sua


interpretação do real, devidamente localizada em um contexto de luta
entre diferentes classes sociais, é que orientava os rumos e a natureza da
maioria das informações veiculadas. Talvez seja fácil responder sobre o
que propagavam e ensinavam e a quem se dirigiam. Porém, será que
todas as vozes da sociedade faziam-se ouvir? Que fatos, explicações ou
verdades poderiam estar sendo ‘omitidas’ ou ‘conduzidas’, a ponto de
não ‘socializar’ efetivamente os benefícios desses conhecimentos? Para-
doxalmente, houve equívocos, e muitos, ao mesmo tempo em que consti-
tuíram-se muitos ganhos, individual e coletivamente.
Nos limites deste texto, procuramos pontuar alguns aspectos da
comunicação em uma área específica do conhecimento humano. Inde-
pendente do momento histórico vivido, convém compreender melhor
os meios e os processos de comunicação, para passar de uma consci-
ência ingênua, que não questiona e que se faz presente em qualquer
área, para uma consciência crítica, que supere os preconceitos e capte
a complexidade das dimensões envolvidas.

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70
3

CRIANÇA BRASILEIRA
NAS PRIMEIRAS DÉCADAS
DO SÉCULO XX: a ação da
higiene mental na psiquiatria,
na psicologia e na educação
PAULO RENNES MARÇAL RIBEIRO

A ideologia médico-higiênica, um pensamento iniciado no século XIX,


é aperfeiçoada com a consolidação da psiquiatria enquanto especiali-
dade médica, quando esta é requisitada também para atender ques-
tões de proteção à infância, de profilaxia, de delinqüência, de
pedagogia e de disciplina escolar.
Schechtman (1981, p. 7) explica que

a partir da década dos 20 acentua-se a expansão das instituições


psiquiátricas públicas e privadas nos principais centros urbanos
brasileiros. A psiquiatria busca ganhar legitimação enquanto
instância de regulação do espaço social, avançando mais além dos
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

estreitos limites asilares, desenvolvendo um saber psiquiátrico


preventivo ao qual se vincula o surgimento da psiquiatria infantil.

Especialidade acadêmica no Brasil desde 1882, é em 1912 que a


psiquiatria consegue ser reconhecida como autônoma, sendo que, em
1923, a psiquiatria brasileira ganha força com a criação da Liga Brasi-
leira de Higiene Mental, que, por pelo menos duas décadas, vai repre-
sentar o pensamento psiquiátrico corrente no Brasil, dando-lhe voz e
autoridade. E essa mesma Liga também norteará os passos da psiquia-
tria infantil e influenciará grande número de educadores, juristas,
psiquiatras, políticos e psicólogos que, na época, se vinculavam a es-
tudos sobre a infância.
Com um programa de higiene mental de meta social, a Liga Brasi-
leira de Higiene Mental (LBHM) visava melhorar o nível de saúde
mental da população, voltando-se para ações vinculadas à prevenção
das doenças mentais; à educação (pedagogia eugênica); à orientação
familiar; ao serviço social; e, com grande ênfase, ao combate ao alcoo-
lismo. Estudos específicos sobre a LBHM foram feitos por alguns au-
tores, cuja leitura é imprescindível para aqueles que desejarem
conhecer mais profundamente sua história: Costa (1981) analisa criti-
camente a história da criação da Liga e os fatos decorrentes da ideolo-
gia que ela propugnava. Schechtman (1981) faz um estudo sobre a
LBHM e sua influência na constituição, organização e desenvolvimen-
to de ações institucionais voltadas para a infância. Marçal Ribeiro
(2001) situa a Liga Brasileira de Higiene Mental dentro de uma narra-
tiva factual que abrange toda a história da Saúde Mental no Brasil. Há
a possibilidade de se consultar diretamente os Archivos Brasileiros de
Hygiene Mental, revista oficial da LBHM, existentes na Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro.
Partindo do estudo de Costa (1981), pode-se tirar as seguintes
conclusões sobre a Liga.
A psiquiatria que respaldava as ações da LBHM continha extre-
mada conotação ideológica em que um biologismo pseudo-científico
justificava as causas para as doenças mentais; em que idéias precon-
ceituosas viam um brasileiro ocioso e cheio de vícios devido à misci-
genação racial; em que a expressão política e as aspirações sócio-
culturais dos psiquiatras confundiam-se com a própria ciência.

72
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

A eugenia já fazia parte do pensamento intelectual brasileiro antes


da criação da Liga. Em 1918, sob a presidência do médico Renato Kehl,
é fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo. Para a intelectualidade
brasileira e para a elite política, pertencentes a uma classe social privile-
giada que cultivava o preconceito racial e atribuía à mistura das raças os
problemas sociais e de desenvolvimento existentes no Brasil, a ideologia
eugênica vinha ao encontro de suas aspirações de condutores da nação.
“A eugenia representava a caução científica definitiva das suas inten-
ções racistas. Com a eugenia o racismo entrava na sua era ‘científica’,
pois sentia-se legitimada pela biologia” (Costa, 1981, p. 33).
Se no início a eugenia apenas figurava nos primeiros estatutos da
Liga, a partir de 1928, com a sua reformulação,

os psiquiatras, seguindo a nova concepção de prevenção,


deslocam-se pouco a pouco, da prática tradicional e penetram no
domínio cultural, até então situado fora dos domínios da
psiquiatria ...A eugenia foi o artefato conceitual que permitiu aos
psiquiatras dilatar as fronteiras da psiquiatria e abranger, desta
maneira, o terreno social (Costa, 1981, p. 29).

A psiquiatria já sofria influências da doutrina da degenerescência


desde que esta corrente aqui chegou com o pensamento de Morel e
Kraepelin, substituindo as idéias de Esquirol.
Para Morel, citado por Bercherier (1989, p. 113), as causas das de-
generescências eram:

1. Intoxicações: impaludismo, álcool, ópio, constituição geológica


do solo (no cretinismo, por exemplo), fome, epidemias, e
intoxicações alimentares.
2. Meio social: indústrias, profissões insalubres, miséria.
3. Afecção mórbida anterior ou temperamento malévolo.
4. Mal moral ( a própria imoralidade dos costumes, de fato, era
uma causa de descendência degenerativa).
5. Enfermidades congênitas ou adquiridas na infância.
6. Influências hereditárias.

Kraepelin, difundido no Brasil por Juliano Moreira, classificou e


descreveu os diversos tipos de doença mental, buscando sua etiologia

73
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

em investigações da herança biológica e em toda anormalidade apa-


rente, fortalecendo, portanto, a teoria de Morel.
A psiquiatria brasileira se encontrava, então, desde o início do sé-
culo XX, pronta para ser receptora de uma ideologia que complemen-
tava sua concepção de homem, meio e doença mental. Amarante
(1982, p. 88) diz que

é demarcado um novo momento [...]: a busca de lesões orgânicas,


específicas para cada tipo de loucura, e a abrangência do conceito
de anormalidade, diferenciada da loucura, propriamente dita,
desencadeiam um verdadeiro movimento de higiene mental e de
profilaxia no Brasil.

Couto (1990, p. 54), na mesma linha de reflexão, acrescenta que

por volta de 1920, a eugenia ocupava o lugar central da psiquiatria


brasileira, acrescentando à teoria da degenerescência a
possibilidade de transformar o processo de seleção natural através
da razão. Foi rico o aparecimento de ligas e entidades diversas
influenciadas pelo discurso eugênico, por exemplo, as de combate
ao alcoolismo. (As idéias eugênicas) conquistaram um espaço junto
ao aparelho de Estado: em 1927 surgiu o decreto-lei número 5148-A
determinando ser exclusividade da psiquiatria a definição da
loucura, e em 1930 foi criado o Departamento de Assistência Geral
aos Psicopatas, órgão dirigido por Antonio Carlos Pacheco e Silva,
que deveria definir as políticas de saúde mental.

O ideal eugênico preconizava a formação de um novo homem


moral, psico e biologicamente aperfeiçoado, diretamente oposto ao
homem degenerado combatido pelos intelectuais e médicos da
época.
Renato Kehl, expoente da eugenia no Brasil, afirmava que

como se sabe, durante os últimos anos as escórias humanas se tem


acumulado em desrespeito às leis naturais. Não tem havido
desbastamento suficiente ou eliminação seletiva em regra. Os
incapazes, os doentes e os anormais de várias ordens acumulam-se
de modo assombroso, nas prisões, nas penitenciárias, nos
manicômios, nos bairros da miséria (Lobato, 1961, p. 80).

74
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

A Liga Brasileira de Higiene Mental, identificada com o ideal eugê-


nico, iria, então, buscar espaços vários em que pudesse intervir e cola-
borar para o aperfeiçoamento moral do cidadão e o melhoramento do
nível da saúde mental, incluindo nesses espaços a educação e a criança,
que mereceram destaque em virtude da ação preventiva da Liga.
Como explica Ramos da Silva (1997, p. 109-110):

em 1926 os integrantes da LBHM começam a elaborar projetos de


cunho preventivista que formariam um amplo programa de higiene
mental e eugenia. Definia-se a higiene mental como a ‘moral universal
do amanhã’, sendo fundamental o papel da pedagogia. Impunha-se
incentivar o desenvolvimento da eugenia e da educação que teriam
missões complementares. Para construir uma educação dos sentidos
era proposta a organização de um sistema de higiene infantil, que
incluiria a padronização dos métodos obstétricos, estabelecimento de
serviços pré-natais e assistência ao escolar.

Médicos associados à Liga também eram professores das Escolas


Normais e, em suas aulas, repassavam os ideais que comungavam.
Suas alunas, futuras professoras de educação infantil, foram formadas
segundo a ideologia eugênica.
Bizzo (1995, p. 49-50) chega a afirmar que

no campo educacional a eugenia adquiria dilatado espaço, sobretudo


nos manuais de formação de professores. [...] Dificilmente
encontraremos professora primária formada entre as décadas de 1930
a 1960 que não tenha sido influenciada pelo discurso eugênico, ainda
que de forma inconsciente. Jargões comuns usados ainda hoje, como,
os rótulos de aluno ‘forte’ e ‘fraco’, ‘rápido’ e ‘lento’, ‘estrela’ e
‘lanterna’, talvez sejam resquícios herdados daquele tempo.

A criança seria o homem de amanhã, daí que ações preventivas e


educativas a ela dirigidas resultariam na criação de um homem me-
lhorado, sadio.
Em sua revista oficial, Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, e
nos congressos realizados nas décadas em questão, a educação e a
criança foram temas centrais ou mereceram destaque.
Assinalo o I Congresso Brasileiro de Proteção à Infância (1922); o
II Congresso Brasileiro de Higiene (1926); o IX Congresso Médico

75
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Brasileiro de Medicina Social (1926); o I Congresso Brasileiro de Euge-


nia, realizado na Academia Nacional de Medicina (1929); e o I Con-
gresso Nacional de Saúde Escolar (1941).
Em todas essas reuniões científicas e em outras aqui não mencio-
nadas, a Liga Brasileira de Higiene Mental estava representada ofici-
almente ou através das idéias dos congressistas a ela vinculados.
Os artigos publicados e as conferências realizadas versavam sobre
programas de higiene mental e eugenia; formação moral do cidadão e
da criança; a educação enquanto participante da formação psicológica
da criança; orientação de pais e professores; prevenção de doenças
nervosas ou psíquicas; higiene mental e educação; psiquiatria infantil
e saúde escolar; alcoolismo e muitos outros temas.
Nomes consagrados escreviam artigos nos Archivos: Arthur Ra-
mos escreveu A técnica da psicanálise infantil (v. 6, n. 3, jul/set. 1933);
Porto Carrero, Educação Sexual (v. 2, n. 3, dez. 1929) e a Sexualidade
em Freud (v. 2, n. 1, out. 1929); Renato Kehl, As neuroses dos forçados
de castidade (v. 6, n. 2, abril/jun. 1934); Henrique Roxo, Higiene Men-
tal (v. 1, n. 2, 1925); José Leme Lopes, Sobre a freqüência de internação
por alcoolismo em estabelecimento particular para psicopatas (v. 3,
n. 9, set. 1930).
Muito mais poderia ser escrito sobre a LBHM, mas como este ca-
pítulo tem como assunto norteador a criança brasileira, deixo de lado
questões mais gerais e complexas, como a sua identificação com a
psiquiatria nazista, os dois momentos distintos da Liga (antes e depois
de 1928) e a ambivalência eugenia, psicanálise presente nos artigos
dos Archivos, já que esta última ia totalmente contra o que propugna-
va a primeira, para centrar-me na participação da LBHM nas questões
da infância.
Em 1925 é criado o Ambulatório de Psiquiatria da LBHM objeti-
vando o atendimento à criança e à família a nível de intervenção, tra-
tamento e prevenção. Schechtman (1981, p. 19) acrescenta que
“complementarmente ao Ambulatório, criar-se-ia um consultório de
eugenia que ficaria a cargo de um especialista que iria responder por
escrito a consultas sobre questões sexuais e profilaxia matrimonial”.
As idéias higienistas atingiu seu apogeu na era Vargas, a partir de
1930. A ideologia da LBHM, já solidificada e difundida, encontrou eco
na ideologia político-social do governo que se instalava e que se per-

76
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

petuaria no poder por quinze anos. A criação do Ministério da Educa-


ção e Saúde trouxe para seus cargos de direção vários médicos vincu-
lados à liga.
Vilhena (1993, p. 95) diz que

no âmbito da política social elaborada pelo governo Getúlio


Vargas, a partir de 1930, muitas medidas foram efetivadas
seguindo a direção estabelecida por eugenistas, alienistas e
higienistas, no campo da assistência psiquiátrica, da higiene escolar
e da educação sanitária. A Carta Constitucional de 1934 exibe o
resultado de pressões da classe médica na definição de uma nova
política de saúde e higiene para o conjunto da sociedade brasileira.
Em 1937, decretado o Estado Novo, a nova Carta Política reforça as
atenções sobre a família, a infância e a juventude. As providências
estabelecidas no âmbito da eugenia, determinam a obrigatoriedade
do exame ‘pré-nupcial’ [...] E continuará, pelo menos até a entrada
do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942, a empenhar-se na
estruturação de um Estado Nacional, a partir da solidificação de
sua base essencial – a família.

A iniciativa, intervenção ou presença do Estado nas questões da


infância realmente vão se intensificar com Getúlio Vargas, pois até
então, eram os juristas e os médicos que se voltaram com discursos e
propostas de ação para a resolução dos problemas da criança abando-
nada ou submetida a condições desumanas de vida em cortiços e fave-
las, mendigando, sofrendo os males de doenças e epidemias.
De iniciativa do governo federal, porém com poucos recursos para
atuar, existia a Inspetoria de Higiene Infantil do Departamento Na-
cional de Saúde Pública, criado em 1923. Em 1934, resultante da cria-
ção do Ministério da Educação e Saúde, a citada Inspetoria passou a
ser denominada Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância e
ficou responsável por iniciar um programa de proteção materno-
infantil em nível nacional. Em 1937 passa a ser Divisão de Amparo à
Maternidade e à Infância, e, em 1940, criou-se o Departamento Nacio-
nal de Criança, subordinado diretamente ao Ministério e com fundo
financeiro próprio.
Pereira (1992, p. 16-17) fala das instituições criadas a partir de orien-
tação do Departamento Nacional da Criança, destinadas a intervir dire-
tamente nos problemas da infância e da família e que possuíam pessoal

77
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

especializado (enfermeiros, assistentes-sociais, pedagogos e médicos)


para cuidar das crianças ou dirigir as instituições:

A Junta Municipal da Infância, que reuniria os ativistas locais:


médicos, professores, ‘senhoras da sociedade’, religiosos, autoridades
públicas, etc. (A Junta) teria contato com o Departamento, distribuindo
subsídios daí emanados para as organizações privadas, fiscalizando-as
e estimulando-as. Também seria responsável pela instalação dos
Postos de Puericultura em cada cidade ou distrito [...], unidades
voltadas para os exames preventivos, da gestação até o fim da primeira
infância, e para a educação de mães. (as outras instituições previstas
pelo Departamento eram) as creches, jardins da infância, maternidade,
hospitais para crianças etc.

Contraditoriamente, o mesmo governo que organizava e criava


instituições infantis, por outro lado, combatia e fechava aquelas cujos
idealizadores, membros ou diretores não comungavam com a política
governamental. Várias instituições foram fechadas com o Estado No-
vo. Um exemplo são os parques infantis de São Paulo.
Os primeiros parques infantis no Brasil surgiram em 1935, objeti-
vando atender crianças de 3 a 12 anos, além do período escolar, ofere-
cendo-lhes assistência médica e odontológica, merenda, recreação,
esportes, educação moral e higiênica. Foram os precursores da assis-
tência ao pré-escolar no Brasil.
Sua criação estava ligada aos nomes de Armando Salles de Olivei-
ra (governador do Estado), Fábio Prado (prefeito de São Paulo), Paulo
Duarte (‘braço direito’ do prefeito) e Mário de Andrade (primeiro
diretor do Departamento de Cultura, a quem se vinculavam os par-
ques infantis). A importância dos parques foi ressaltada em entrevis-
tas concedidas, na época, por Afrânio Peixoto, Nicanor Miranda e
Fábio Prado.
Essa iniciativa importante e pioneira no país, teve, todavia, vida cur-
ta, pois em 1937, com o Estado Novo, seus criadores são exilados ou ex-
pulsos, o Departamento de Cultura segue outra orientação, tornando-se
essencialmente burocrático e protecionista e os parques infantis vão se
desestruturando e involuindo, até encerrarem suas atribuições.
Mesmo tendo um período muito curto de existência, essa primeira
fase dos Parques Infantis tem papel de destaque junto às tentativas de

78
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

se oferecer à criança um bom atendimento psicossocial por parte do


poder público.
Fonseca (1985, p. 135-148) faz um estudo mais detalhado sobre os
parques infantis, aqui apenas mencionados enquanto dado histórico
relevante para traçar um panorama do desenvolvimento das ações
assistenciais à criança brasileira.
Outra iniciativa importante mas igualmente abortada foi a funda-
ção da Secção de Orthophrenia e Hygiene Mental do Instituto de Pes-
quisas Educacionais do Rio de Janeiro, em 1933 (com instalação em
1934), a qual, segundo Arthur Ramos (1939, p. 25), “foi a primeira
experiência brasileira de instalação de clínicas de hygiene mental nas
escolas, articuladas com a tarefa pedagógica”.
Arthur Ramos (1903-1949) foi um pioneiro em psicologia e higiene
mental, tendo dedicado sua obra à criança brasileira e beneficiado o
país com idéias, propostas e estudos, como o trabalho realizado no
Instituto de Pesquisas Educacionais do Rio de Janeiro. Chefe do Servi-
ço de Higiene Mental do Departamento de Educação do Rio de Janei-
ro, fez observações até hoje atuais, cujas reflexões são similares às de
autores com trabalhos publicados nas décadas de 80 e 90.
O capítulo seguinte “Higienismo e Psicanálise", como o próprio tí-
tulo indica, tratará mais especificamente da obra de Arthur Ramos e
sua vinculação com a psicanálise. Não obstante, para termos uma
seqüência histórica sem pular etapas, procurarei descrever resumida-
mente alguns aspectos relevantes da ação de Arthur Ramos e sua con-
tribuição para a educação e a psicologia da época.
Ao apresentar o conteúdo do livro A creança problema: a hygiene
mental na escola, Ramos (1939, p. 11) diz que

este livro é o resultado de cinco anos de observações em algumas


escolas públicas do Distrito Federal – as Escolas Experimentais. A
nossa experiência, no exame dos escolares ‘difíceis’ mostrou que havia
necessidade de inverter os dados clássicos em torno da criança
chamada ‘anormal’. Esta denominação – imprópria em todos os
sentidos – englobava o grosso das crianças que por várias razões não
podiam desempenhar os seus deveres de escolaridade, em paralelo
com os outros companheiros, os ‘normais’. No entanto, como se
provará exaustivamente nas páginas deste volume, somente uma
percentagem insignificante destas crianças mereceria, a rigor, a

79
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

denominação de ‘anormais’, isto é, aqueles escolares que, em virtude


de defeitos constitucionais, hereditários ou de causas várias que lhes
produzissem um desequilíbrio das funções neuropsíquicas, não
poderiam ser educados no ambiente da escola comum.

Idéias modernas em 1939! Atualmente, autores como Arruda


(1989), Schneider (1974), Witter (1987), Marçal Ribeiro (1997), Martu-
rano, Loureiro e Zuardi (1997), Funayama (1998) e outros falam, em
seus textos, da importância da equipe multiprofissional, do trabalho
integrado, reforçando o que era verificado por Arthur Ramos há ses-
senta anos!
Ao referir-se à criação da Secção de Orthophrenia e Hygiene Men-
tal do Instituto de Pesquisas Educacionais do Rio de Janeiro, Arthur
Ramos defende uma atuação interdisciplinar em higiene mental, aliás,
conduta considerada atual se nos detivermos na linha de vários auto-
res que têm, nos dias de hoje, trabalhos publicados no campo da Edu-
cação Escolar e da Saúde Mental.
Vai dizer, por exemplo, que “sendo a higiene mental uma ciência
aplicada, lança mão de métodos de estudo comuns à psicologia nor-
mal e patológica, à psiquiatria, à sociologia e à psicologia social, à
antropologia cultural (Ramos, 1939, p. 23). Continuando o mesmo
raciocínio, fala da colaboração lado a lado do professor, do médico, do
psico-pedagogo e do psiquiatra”. Afirmava que

está na infância o principal campo de ação da higiene mental. Se esta visa


a prevenção das doenças mentais e o ajustamento da personalidade
humana, é para a criança que deve voltar suas vistas, pois aí estão os
núcleos de caráter da vida adulta. Ajustar a criança ao seu meio, é o
objetivo básico, o trabalho inicial, a ser continuado depois, no
ajustamento do indivíduo aos seus sucessivos círculos da vida.

O funcionamento do serviço de atendimento existente na Secção


de Orthophrenia e Hygiene Mental se guia essa premissa, e seu pro-
grama de ação, resumido pelo próprio Ramos era:

a) Higiene Mental preventiva do pré-escolar. É o processo


educativo transportado ao lar. Correta formação dos pais.
Educadores visitadores. Clínicas de hábitos e de direção da
infância. Serviços conexos – profiláticos e médicos.

80
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

b) Exame médico-psicológico do escolar, com o fim de joeirar os


‘casos-problema, os ‘difíceis’ em seus vários graus.
c) Orientar os psiquicamente sãos. Reajustar os mal ajustados.
Clínicas Orthophrenicas. Serviços conexos – médico e
antropológico.
d) Correta formação mental do educador. Curso de férias. Cursos na
Escola de Professores. Freqüência ao Serviço Central de
Orthophrenia. Formação intensiva de educadores especializados.
e) Educar o público. Conferências públicas. Conselhos de Higiene
Mental. Divulgação pelo cinema, rádio, boletim, etc.
Publicações de monografias.
f) Problemas conexos. Articulação com outros serviços: médicos, testes,
antropologia, etc. Planos de estudo. Trabalhos de experimentação,
originais e contra-provas de experiências estrangeiras. Psicologia da
criança brasileira. Publicações periódicas.

Arthur Ramos [19--] publicou também, em forma de manual, A famí-


lia e a escola: conselhos de higiene mental aos pais, enquanto era chefe da
Seção de Ortofrenia e Higiene Mental do Instituto de Pesquisas Educa-
cionais no Distrito federal, que iniciara a divulgação de noções de Higie-
ne Mental aos pais e responsáveis pela educação infantil.
Sobre a Higiene Mental, Ramos ( [19--], p. 4) assim se expressa:

A Higiene Mental previne no pré-escolar a eclosão de falhas de


personalidade que irão determinar futuramente maus rendimentos ou
defeitos mais graves na escola ou uma quebra da função social na vida
adulta. À correção do que não pôde ser evitado é destinado todo o
trabalho da Ortofrenia. Mas a Higiene Mental e a Ortofrenia não se
ocupam somente com as criança e o pré-escolar. Vão mais além.
Estudam a personalidade dos pais e dos mestres, o seu
comportamento no lar e na escola, a atitude em relação às crianças, o
ambiente do lar, da escola, os binômios pais-filhos, professores-alunos,
ou grupos sociais mais leigos, na família, na escola, no meio social, na
vida do grupo, ajustando, prevenindo, corrigindo, facilitando a tarefa
educativa. [...] a higiene mental penetra em todos os setores, não só do
programa educacional, como na própria vida do grupo.

Os temas específicos abordados por Arthur Ramos nesse manual


são: a família e a escola; o ambiente parental e a criança pré-escolar; a

81
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

habitação e a higiene mental; a vida da criança no lar; o problema psico-


lógico do filho único; o filho amado e o filho odiado; os irmãos e os
conflitos familiares; outros parentes e sua influência sobre a criança.
As clínicas funcionavam muito bem, eram organizadas e puderam
atender centenas de crianças que necessitavam de cuidados especiali-
zados, mas seu êxito não foi forte o suficiente para impedir sua extin-
ção. Pretendia-se estender sua assistência a todas as escolas do Rio de
Janeiro o que estava limitado às escolas experimentais, só conseguin-
do, no entanto, que se criasse um primeiro núcleo na Escola General
Trompowski.
Mokrejs (1987, p. 91-104) realizou significativa pesquisa sobre a
obra de Arthur Ramos, na qual destaca a vinculação de seus estudos
psicanalíticos com a educação infantil.
Médico como muitos dos autores que, nas primeiras décadas do
século XX se dedicaram a estudos de psicologia, psicanálise e educa-
ção, Arthur Ramos imprimiu em sua obra características de um traba-
lho integrado e interdisciplinar na solução de problemas escolares, na
concepção de ajustamento e desajustamento do aluno na escola, subs-
tituindo o conceito de anormalidade para o de criança problema, e na
relação de colaboração entre a escola e o lar. Foi um pioneiro no estu-
do da aprendizagem escolar.
Segundo Mokrejs (1987, p. 103), Arthur Ramos

deixa de rotular a conduta da criança para compreendê-la segundo


referencial de diferentes mecanismos [...] (Teve) a ousadia de
sugerir um novo conceito de ajustamento do aluno que entreviu na
reformulação da antiga concepção de “normalidade”. Certos tipos
de desempenho insatisfatório do aluno, tradicionalmente
remontavam a distúrbios mais profundos de conduta e eram
usados como critério para atitudes discriminatórias na escola.
Arthur Ramos, a partir de uma prática educativa em que fez
estudos de caso, segundo amplo referencial psicanalítico,
fundamentado no valor do conceito de “totalidade” do organismo
humano, foi um dos pioneiros da literatura educacional brasileira
na introdução da idéia de “compreensão” na análise da conduta.

Outra de suas idéias que vale destacar é que: “ao nível da organi-
zação escolar, Arthur Ramos reconhece nas diferentes técnicas do
ensino individualizado (Decroly, Montessori, Desconedres etc.) uma

82
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

possibilidade de trabalhar com a criança difícil no sentido de ‘levan-


tar-lhe os sentimentos de inferioridade’. A correção dos menos capa-
zes deve ser feita em meio do convívio com os mais aptos e, apenas
transitoriamente, recomenda o recurso às classes especiais. Atribui
papel especial aos jogos que têm expressão ativa como válvula de
escapamento dos impulsos da criança” (Mokrejs, 1987, p. 100).
Arthur Ramos faleceu muito jovem, aos 46 anos, mas mesmo em
sua precoce vida influenciou expressivamente toda uma geração de
educadores, como explica Patto (1991, p. 80):

Sabemos da nítida presença de A. Ramos na literatura educacional:


seu livro Educação e psicanálise (1934) é o 7º volume da extensa
coleção ‘Atualidades Pedagógicas’, que a Editora Nacional
inaugurou em 1934 e que congrega os maiores nomes da
psicologia, da sociologia e da pedagogia nacional e internacional
das primeiras décadas do século XX. Presentes na estante dos
educadores brasileiros que se formaram durante a primeira metade
deste século, vários volumes desta coleção estavam entre as leituras
obrigatórias nos cursos normais e de pedagogia da época. Seu
outro livro sobre educação apareceria na mesma coleção cinco anos
depois, tendo sido uma obra de referência dos médicos e
pedagogos que, dos anos quarenta aos cinqüenta, voltaram-se para
o estudo das causas do fracasso escolar e suas soluções.

O trabalho de Arthur Ramos, como vários congêneres da época,


caracterizou-se por uma abordagem multidisciplinar e integrada, em
que pedagogos, psicólogos, pediatras e psiquiatras se esforçavam para
oferecer atendimento à criança e aos pais.
É o caso do psicólogo polonês Waclaw Radecki e sua esposa, He-
lena Radecka, do Laboratório de Psicopatas de Engenho de Dentro,
também no Rio de Janeiro, os quais, além de realizarem importantes
pesquisas em psicologia geral e experimental, também deram valiosas
contribuições à psicologia infantil, com trabalhos de observação e
classificação psicológica de crianças e de metodologia da educação e
do ensino.
Helena Radecka, que era assistente do Laboratório, publicou, em
1930, um ensaio sobre a aplicação prática do Sistema do Discrimina-
cionismo Afetivo de Radecki no exame psicológico da criança, intitu-
lado Exame Psicológico da Criança, descrevendo aspectos teóricos da

83
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

vida psíquica da criança e comentando as atividades desenvolvidas


no Laboratório.
Radecka (1930, p. 3-4) inicia seu ensaio afirmando que

entre as aplicações e explorações práticas que a psicologia está cada


dia conquistando em diversos ramos de atividade científica e
prática, destaca-se em primeiro plano a exploração dos dados
psicológicos na pedagogia e na educação. [...] O exame psicológico
da criança torna-se [...] um fator imprescindível para poder aplicar
a psicologia à pedagogia.

Continuando, divide os exames psicológicos em:

exame psicológico geral; exame introdutório para ministrar as medidas


correcionais nos casos de defeitos reparados na criança; exame da
criança com os fins de orientação ou seleção profissionais.

O questionário utilizado no exame psicológico, idealizado pelo Dr.


Waclaw Radecki, abrangia a vida intelectual, a vida afetiva e a vida
ativa das crianças. Helena Radecka procurou sistematizar uma base
científica que justificasse ou apoiasse a aplicação do exame psicológico
infantil, considerando que, segundo suas próprias palavras, de 1930,

não existe até agora um tratado de psicologia da criança


organizado completo e sistematicamente; o exame psicológico
geral, baseado na rigorosa e sistemática observação e
experimentação psicológica, pode servir de colheita do material
para sistematizar as obras parciais já existentes” (Radecka, 1930, p.
143).

Em um trecho mais adiante, Radecka (1930, p. 147) refere-se no-


vamente à aplicação da psicologia na pedagogia e à importância do
trabalho sobre a infância desenvolvido no Laboratório de Engenho
de Dentro:

Como vemos, o esforço é grande para formar uma pedagogia


baseada na psicologia, mas para obter este resultado é necessário e
indispensável ter como base a psicologia da criança bem
sistematizada. Os exames psicológicos de crianças [...] que
executamos no nosso laboratório, visam o fim de, no futuro,

84
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

constituir para nós uma base firme para a formação do sistema da


psicologia infantil. As investigações psicológicas da criança, além
da importância particular que têm para a criação da psicologia
infantil como ramo particular e especializado, adquirem também
importância capital para a psicologia geral.

Sobre a teoria do discriminacionismo afetivo de seu marido, Ra-


decka (1930, p. 14) escreveu que são três os domínios principais da
vida psíquica – intelecto, afetividade e vontade:

No domínio da vida intelectual entram a sensibilidade sensorial, a


atenção, a discriminação, a memória, a imaginação e o pensamento. A
vida afetiva contém os sentimentos e emoções. A vida afetiva contém
as tendências, volições, desejos, decisões e, enfim, a execução.

O exame psicológico das criança procura abranger sete três domí-


nios da vida psíquica, existindo um questionário que deverá ser res-
pondido.
De fato, o casal polonês trouxe contribuições demasiadamente re-
levantes para a psicologia brasileira, dando o necessário impulso para
que ela se desenvolvesse. Os livros de Centofanti (1982, p. 2-50) e de
Marçal Ribeiro (1997, p. 35-49) são leituras que poderão complementar
as idéias aqui expostas, já que não se restringem à sua atuação junto à
infância.
Outros nomes que se destacaram com obras dedicadas à criança
foram Sylvio Rabello, Henrique Roxo, Theobaldo Miranda Santos,
Norberto Souza Pinto, Helena Antipoff e Ulysses Pernambucano.
Sylvio Rabello, professor de psicologia da Escola Normal de Per-
nambuco, publicou, em 1935, Psicologia do desenho infantil; em 1938,
o livro A representação do tempo na criança; e, em 1943, Psicologia da
infância. Henrique Roxo publicou, em 1935, o livro Educação e trata-
mento das crianças anormais.
Theobaldo Miranda Santos (1941, p. 117-118) tem uma publica-
ção sobre o estudo do sonho e dos contos de fadas, no qual reflete
sobre a gênese e a natureza do sonho e sobre a criança e o sonho,
descrevendo a vida mental da criança enquanto rica em atividade
simbólica. No último capítulo, fala sobre a criança e os contos de
fadas, explicando que:

85
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

A criança funde-se com as coisas, projeta sobre elas o seu


psiquismo irradiante e absorvente, realizando uma integração
simbólica de todo o universo dentro de seu “eu”. Refrangindo
através da alma infantil, carregado de aderências subjetivas, o
mundo exterior se despe dos seus aspectos de realismo e de
subjetividade, para se transformar num mundo de brinquedo e de
fantasmagoria. Daí a facilidade surpreendente com que a criança
transfigura a realidade que a envolve ao sabor dos arroubos de sua
fantasia [...] num pensamento onipotente e mágico [...] (explicando)
a atração extraordinária que sobre ele exercem os contos e as
narrativas maravilhosas e fantásticas (1941, p. 117-118).

Santos reporta-se a Freud e à Interpretação dos sonhos, que consi-


dera obra revolucionária; e também a outros autores, como Pierre
Janet, Bergson, Bleuler e Piaget. Em seu livro Psicologia da criança, de
1948, utilizado didaticamente nas Escolas Normais, Institutos de Edu-
cação e Faculdades de Filosofia, Santos (1948) versa sobre a evolução
histórica da psicologia da criança, o desenvolvimento pré-natal; o
desenvolvimento do recém-nascido; o crescimento físico; o desenvol-
vimento mental; a primeira, a segunda e a terceira infância; e a adoles-
cência. Nos anos que se seguiram, publicou esse livro com dois outros
títulos – Orientação psicológica da criança e Noções de psicologia da
criança, sendo sua 6ª edição datada de 1960.
É também de Santos (1956) o livro Orientação psicológica da cri-
ança: aprenda a educar seu filho, na qual fala sobre os métodos de
educar a criança, os problemas que elas apresentam (crianças medro-
sas, crianças mentirosas, crianças coléricas, crianças agressivas, crian-
ças que não dormem etc.) e um capítulo com quadros, fichas e tabelas
contendo as medidas físicas e mentais com as respectivas idades das
crianças, testes que poderiam ser aplicados e fichas de anamnese.
Norberto Souza Pinto, nascido em Campinas em 1895 e diploma-
do professor primário em 1917, publicou, em 1948, As crianças anor-
mais através da psicopedagogia (1948), uma tese defendida no I
Congresso Paulista de Psicologia, Neurologia, Psiquiatria e Endocri-
nologia, em 25 de julho de 1943 e apresentada à Faculdade de Medici-
na de São Paulo.
Souza Pinto (1948) descreve a evolução dos problemas mentais e
as características do desenvolvimento das crianças excepcionais, e

86
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

defende a educação especializada, ele que foi um pioneiro na implan-


tação de escolas especiais para crianças com atraso no desenvolvimen-
to mental.
Sobre suas escolas, que chamou de Escola Primária de Adaptação,
explicou que:

a primeira escola para menores anormais foi de iniciativa particular


e inaugurada em 1º de Julho de 1917, e funcionou regularmente
(embora desamparada de auxílios oficiais) até 1929, ocasião esta em
que fomos convidados por carta (datada de 6 de Fevereiro do
referido ano) pelo Dr. A. C. Pacheco e Silva, diretor do Hospital dos
Alienados em Juqueri, para instalar e dirigir, como técnico-
pedagógico, a primeira escola pública para menores anormais do
Estado (Souza Pinto, 1948, p. 16-17).

Em 1930, assume também a direção técnica de uma classe diferen-


cial parar retardados pedagógicos no Largo do Arouche, na capital.
Um outro livro publicado por Souza Pinto (1954) foi A infância re-
tardatária, em 1927, que, em sua 3ª edição aumentada de 1954, traz
cartas de cumprimentos referentes à leitura feita quando de sua pri-
meira publicação, de Pacheco e Silva, Sud Mennucci e Lourenço Filho.
Trata-se de um importante livro para a época, no qual o autor faz
completo estudo sobre o desenvolvimento psicológico das crianças
excepcionais e a necessidade da educação especializada para suprir
suas deficiências.
Sobre Helena Antipoff e Ulysses Pernambucano, pioneiros da psi-
cologia no Brasil, dediquei espaço maior em meu livro Saúde Mental
no Brasil (Marçal Ribeiro, 1999), mas não posso deixar de aqui descre-
ver algumas de suas obras, haja vista que eles realizaram notáveis
trabalhos com as crianças.
Helena Antipoff, psicóloga russa, assistente de Edouard
Claparède em Genebra, chegou ao Brasil em 1929 para implantar, em
Belo Horizonte, o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoa-
mento Pedagógico. Realizou muitos estudos sobre o desenvolvimento
mental e da inteligência nas crianças. Publicou Faça o seu filho feliz, em
co-autoria com Fernando Magalhães Gomes (Gomes; Antipoff, 1958);
As mentiras nas crianças; Escologia: ensaios de pedagogia escolar
experimental; Organização das classes homogêneas nos Grupos Esco-

87
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

lares de Belo Horizonte, em co-autoria com A. C. da M. Machado; Sei


criar e educar meu filho, em co-autoria com Fernando Magalhães
Gomes e Clóvis Salgado.
Antipoff (1931) criou o neologismo escologia, para explicar que
seu objeto de estudo era

a escola e tudo que com ela se relaciona: administração escolar,


prédio, higiene escolar, material didático, regime escolar,
organização das classes, característica do ensino, métodos
didáticos...e o escolar (nota: refere-se à criança, ao aluno), seu meio
econômico e social; seu estado físico (saúde e desenvolvimento
corporal); seu nível de desenvolvimento mental; seus interesses e
aspirações; suas diversas aptidões físicas; e, enfim, seus
conhecimentos e sua formação escolar.

Em Faça seu filho feliz, de 1949, com re-edição em 1951 e 1958, Go-
mes e Antipoff (1958, p. 179) dirigem-se aos pais e falam sobre os cui-
dados com a criança, puericultura, alimentação da lactente, cuidados
com o recém-nascido, a criança pré-escolar, doenças infantis e sobre a
psicologia da criança; higiene mental, causas de desajustamento da
personalidade, castigos, conduta infantil, hábitos, a infância excepcio-
nal e a ‘alma da criança’. Os autores reúnem as principais característi-
cas psicológicas da infância, representados pelas manifestações de
egoísmo, prazer e dor, medo, cólera, amor, simpatia, agressividade,
curiosidade, sociabilidade, sexualidade e intuição. Sobre os alimentos
da alma, os autores irão dizer que

a alma da criança , como o seu corpo, para se desenvolver precisa


receber estímulos, a saber: bons hábitos, recreações, bons sentimentos,
autoridade, liberdade, prêmios, estímulos sensoriais e o meio.

Explicam que “uma educação que importe em estímulos psíquicos


excessivos ou inadequados à alma infantil ocasionam uma neurose”.
Ulysses Pernambucano publicou Classificação das crianças anor-
mais, Bases phisiológicas da ambidestrez e Formação de hábitos sadi-
os nas crianças.
Plínio Olinto, em sua obra Higiene mental, de 1939, reserva um i-
tem para a criança, comentando sobre a delinqüência infantil.

88
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

Danilo Perestrello (1957), convidado pelo Serviço Nacional de E-


ducação Sanitária, escreveu uma série de palestras sobre higiene men-
tal que foram lidas em emissoras de rádio do Rio de Janeiro, e,
posteriormente, em 1946, foram publicadas, formando o livro Almas
infantis. A sétima edição data de 1957, o que nos leva a supor que
despertou grande interesse entre os leitores.
Perestrello (1957, p. 9), ao escrever sobre o que visa a higiene men-
tal, explica que

ela é a filha mais nova da medicina. A princípio, sua finalidade


restringiu-se a evitar as doenças mentais, o crime; a prevenir os vários
desvios do comportamento e desajustamentos sociais. Com o tempo,
entretanto, tomou rumo mais positivo e ativo. Atualmente ela visa
também, e sobretudo, o desenvolvimento máximo da personalidade
do homem no sentido de melhor compreensão de seus problemas
íntimos e de maior colaboração com seus semelhantes”.

Continuando, diz que “é sobretudo para a criança que devemos


voltar nossas vistas (Perestrello, 1957, p. 9).
Ao longo do livro, vai abordar os seguintes temas: educação psi-
cológica da infância, educação e higiene mental, o exemplo dos pais,
complexo de inferioridade, crianças “escorraçadas”, maus tratos, o
filho único, o caçula, alimentação, desmame, asseio, curiosidade da
criança, desvios de comportamento, dentre outros.
Sobre a higiene mental infantil em São Paulo, Durval Marcondes
(1946, p. 11), médico do Serviço de Saúde Escolar do Departamento de
Educação de São Paulo, disse que

a higiene mental da criança teve início em São Paulo, no ano de


1927, quando o aparelhamento escolar do estado passou a ter um
médico psiquiatra, que lhe foi definitivamente incorporado pelo
decreto nº 4600, de 30 de maio de 1929. O trabalho então
desenvolvido, que abrangia o ensino de débeis mentais e a
assistência à criança problema em geral, ampliou-lhe em 1938, com
a criação, junto ao Serviço de Saúde Escolar, da respectiva Seção de
Higiene Mental, dispondo de pessoal especializado próprio.

Durval Marcondes (1946) foi o principal responsável pela criação


da Clínica de Orientação Infantil, onde se fazia atendimento e diag-

89
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

nóstico de crianças com problemas de conduta e de personalidade,


encaminhadas por pais, professores ou médicos.
Marcondes (1946, p. 43-44) a considera

unidade básica de combate na higiene mental” e sua principal


característica é que, já na década de 40, a multidisciplinaridade é
considerada relevante e primordial para o tratamento infantil. Na
Clínica “se conjuga os recursos da medicina somática, da psicologia
e do trabalho social, que oferecem ao quarto ramo profissional que
dela participa – a psiquiatria – os indispensáveis instrumentos de
pesquisa e ação. Essas diferentes técnicas estão representadas na
Clínica, por quatro tipos de profissionais: 1) o médico internista; 2)
a psicologista; 3) a visitadora psiquiátrica ou assistente social
psiquiátrica; 4) o médico psiquiatra.

No já citado livro Noções gerais da higiene mental da criança,


Durval Marcondes (1946), baseando-se em aulas dadas pelo pessoal
técnico da Seção de Higiene Mental Escolar, aborda os temas que e-
ram destinados principalmente ao corpo docente das escolas, através
de palestras e cursos que constituíam a atividade educativa da Seção.
Os temas abordados são:
- Desenvolvimento psíquico do indivíduo normal.
- Noções gerais sobre os distúrbios psíquicos das crianças.
- Clínica de Orientação Infantil: suas finalidades e linhas gerais de
sua organização.
- Função do médico internista na Clínica de Orientação Infantil. Base
física da saúde mental.
- Função da psicologista na Clínica de Orientação Infantil. O estudo
psicológico no esclarecimento dos problemas da personalidade e
da conduta.
- Função da visitadora psiquiátrica na Clínica de Orientação Infantil.
Métodos de diagnóstico e de tratamento psicossocial.
- Função do médico psiquiatra na Clínica de Orientação Infantil.
Valor e técnica da entrevista psiquiátrica. Aspectos mentais das
criança problema.
- Papel do lar na higiene mental da criança. Influências das condições
da organização da família e dos distúrbios das relações familiares.

90
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

- Superproteção e sua importância como fator de desajustamento


humano.
- Rejeição afetiva e sua importância como fator de desajustamento
humano.
- Lar substituto e sua importância na higiene mental da criança.
- Papel da escola e da professora de higiene mental.
- O nível de inteligência da criança e sua importância como fator de
desajustamento psíquico. Higiene da classificação escolar. Linhas
gerais da organização do ensino dos débeis mentais.
- Recreação e seu papel na higiene mental da criança.
- A criança e a guerra.
A Clínica de Orientação Infantil de São Paulo seguia a orientação
dos americanos G. S. Stevenson e G. Smith, que a definiam, conforme
relatou Marcondes (1946, p. 43), como uma “clínica psiquiátrica desti-
nada a diagnosticar e tratar a conduta das crianças e os problemas de
sua personalidade”.
É importante reproduzir a fala de Marcondes (1946, p. 45-46) so-
bre o atendimento à criança desenvolvido na Clínica por se tratar de
um enfoque multidisciplinar pioneiro que hoje tem sido utilizado em
clínicas-escola e ambulatórios.
O trabalho começa com a assistente social:

A pesquisa inicia-se ordinariamente pela investigação social. Compete


à visitadora reconstituir, pelo interrogatório sistemático dos que têm
contato com a criança, a evolução anterior do caso, pondo em relevo as
diversas ocorrências prejudiciais que possam ter influído em seu
desenvolvimento, assim como determinar as condições de ambiente
[...] que estejam contribuindo no mesmo sentido desfavorável. Esta
indagação abrange o estado individual das pessoas da família (pai,
mãe, irmãos, etc.) em tudo que diga respeito à sua atitude para com a
criança [...] Abrange ainda as condições higiênicas da habitação.

Continuando, fala sobre o papel do psicólogo, do médico e do


psiquiatra:

91
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Pelo exame psicológico, procura-se determinar seu nível intelectual, seus


traços de caráter etc. , assim como as condições de seu aproveitamento
escolar, para que se verifique se ela está bem adaptada ao grau que
freqüenta. Ao médico internista cabe evidenciar as condições orgânicas
que possam estar contribuindo na gênese do problema. O médico
psiquiatra verifica, enfim, se trata de uma entidade nosológica definida
(histeria, epilepsia etc.) e procura determinar os mecanismos mentais
responsáveis (Marcondes, 1946, p. 45-46).

Sobre as principais queixas detectadas na Clínica, Marcondes


(1946, p. 45) diz ainda que eram elas

1) conduta irregular na escola (abrangendo a desobediência, a


rebeldia e a indisciplina em geral); 2) furto; 3) dificuldades de
aprendizagem; 4) instabilidade psicomotora; 5) mentira; 6) enurese;
7) fugas (da escola, do lar, incluindo a gazeta; 8) problemas sexuais;
9) timidez; 10) tiques; 11) sintomas histéricos; 12) fobias; 13)
fantasias excessivas; 14) agressividade.

A exemplo da clínica de Arthur Ramos, no Rio, observamos tam-


bém a existência de uma equipe multiprofissional, marca registrada
das clínicas de orientação infantil que surgiram nesse período entre-
guerras. E também que a assistência à criança na esfera da saúde men-
tal nasceu atrelada à escola, criada por um Departamento de Educa-
ção que se preocupava com a saúde do escolar.
O Hospital do Juqueri é outra referência importante em relação a
trabalhos pioneiros realizados com crianças. É considerado centro
gerador dos primeiros psiquiatras infantis, destacando-se, entre estes,
Stanislau Krinski, falecido em 1996, o qual iniciou sua carreira, na
década de 40, na unidade infantil do Juqueri. Devemos mencionar,
também, o Hospital de Neuropsiquiatria Infantil de Belo Horizonte,
inaugurado em 1947. Essas duas instituições foram responsáveis pela
produção de muitos trabalhos no campo da psiquiatria infantil.
Quando observamos o final da década de 40, percebemos que, por
aproximadamente 50 anos, caminharam juntas a psiquiatria infantil, a
psicologia da criança, a psicanálise e a educação escolar, integrando o
trabalho de educadores, médicos, psicólogos e psicanalistas, que viam
a criança em sua globalidade e buscavam tratá-la em todos os aspectos
que julgavam serem necessários.

92
- ACRIANÇA BRASILEIRA NAS PRIMEIRAS ...

A multidisciplinaridade foi a principal característica verificada na traje-


tória da assistência e do atendimento à criança brasileira, particularmente à
criança escolarizada. Outra característica importante foi o interesse dos
órgãos oficiais em cuidar da criança que freqüentava a escola pública, a
qual recebia dos departamentos de educação tanto o cuidado direto pres-
tado pelas COI, quanto um atendimento indireto representado pela orien-
tação e treinamento dados aos professores.
Os anos 40 são significativos para a História do Brasil. A República Ve-
lha, a economia agrário-exportadora e o Estado Novo vão ficando para
trás. O país se moderniza, ganha uma usina siderúrgica, vai lutar na Euro-
pa, aprende como se faz democracia derrubando Getúlio Vargas, aproxi-
ma-se politicamente dos Estados Unidos.
O término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, trouxe conse-
qüências políticas significativas para o Brasil, uma mudança nos ru-
mos que a República havia tomado. O fugaz namoro do Estado Novo
com a Alemanha de Hitler já havia terminado desde que o governo
Vargas declarara guerra às forças do Eixo, mas com a derrota definiti-
va da Alemanha, o Brasil ‘filiou-se’ também ‘definitivamente’ aos
Estados Unidos, poderosos e vitoriosos. Cai a ditadura Vargas; elei-
ções livres são realizadas e o país muda.
Essa aliança tem reflexos na ciência, na cultura e na tecnologia,
trazendo para a área médica, para a educação e para a psicologia no-
vos horizontes a serem vislumbrados.
As teses eugênicas da Liga Brasileira de Higiene Mental perdem
sua força, afinal, não se pode deixar de associá-las ao ideal nazista de
pureza étnica. A psicanálise cresce e vai-se impondo como uma abor-
dagem séria e importante para se compreender o dinamismo psíquico.
A psicologia descobre a criança. Novos desenvolvimentos em psiquia-
tria vão possibilitar o surgimento de serviços de atendimento infantil
que marcarão as décadas de 50 e 60.
A psicologia se impõe enquanto campo de atuação clínica, indo
além das teses e dos laboratórios experimentais, primeiros espaços
por ela encontrados para difundir-se no Brasil. É grande o número de
psicólogos que se dedicam ao atendimento clínico infantil, notada-
mente sob orientação psicanalítica. A psicanálise se consolida enquan-
to clínica e campo do saber médico. Vamos ter novos autores e novas
obras versando sobre a psicologia normal e patológica da criança,
fundamentando-se na teoria psicanalítica, a qual oferece a oportuni-

93
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

dade de tratar os distúrbios psicológicos infantis com técnica e méto-


do próprios, distintos do modelo psiquiátrico do adulto e da higiene
mental que até então norteavam os programas de cuidados à infância.
Surgem também obras sobre o desenvolvimento infantil, orientação
de pais e sobre a adolescência.
Mas aí já será um outro capítulo da História da Saúde Mental In-
fantil a ser escrito ...

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96
4

IGIENISMO E PSICANÁLISE
OCIMAR APARECIDO DACOME

Introdução

Os avanços científicos-tecnológicos não são obra do acaso; a capa-


cidade produtiva do ser humano destaca-se das demais espécies por
constituir-se dentro de um desenvolvimento específico, por uma inter-
relação com seu meio ambiente, atrelado a uma evolução anatomo-
fisiológica. No entanto, levar-se-ia milhões de anos até que o homem
pudesse criar uma forma de pensamento sistematizado, organizado
em uma complexa rede simbólica de linguagem, passível de registros,
garantindo, assim, a possibilidade de acumulação de experiências,
permitindo a continuidade dessas que, como já mencionamos, come-
çariam a ser sistematicamente deixadas às futuras gerações.
Seria impossível, neste trabalho, compilar todos os avanços tecno-
lógicos do ser humano, desde a conquista da técnica de produzir o
fogo e a invenção da roda, até as viagens interplanetárias que atual-
mente podemos testemunhar, ainda que perplexos.
Cabe-nos, entretanto, ater-nos rapidamente a determinado momento
da história, após um longo período de trevas, como é chamada a Idade
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Média por significativa parte dos historiadores. A partir de então, o co-


nhecimento científico, gradualmente, passa a obter sua independência em
relação ao conhecimento religioso. Livre, essa expressão de pensamento,
rapidamente ganha expressão e notoriedade e, ainda que sujeita à resis-
tência, seus avanços mostram-se irreversíveis.
Não demora muito para que o homem comece a deparar-se
com suas descobertas, modificando, a cada uma delas, a sua ma-
neira de representar o mundo. No início do século, os cientistas já
podem demonstrar à humanidade que as doenças orgânicas possu-
em uma causa: são determinadas pela ação de microorganismos,
invisíveis à percepção humana (mas não às lentes dos microscó-
pios, importante instrumento tecnológico), chamados de vírus e
bactérias, e que esses proliferavam devido aos maus hábitos de
higiene da população, alheia e ignorante a esses fatos. Aos homens
de ciência, tal descoberta parecia solucionar muitos dos problemas
da humanidade ligados à saúde da população, todavia, a descober-
ta por si só, na prática, em nada adiantou. Como dizer à população
que muitas de suas enfermidades eram causadas por microorga-
nismos existentes no ar e que proliferavam, devido aos hábitos de
higiene da população, infectando as pessoas. Como dizer a esta
população que, de agora em diante, teriam que modificar sua ma-
neira de alimentar-se, de vestir-se, de morar etc?
Por outro lado, concomitante a esses fatos estabelecia-se uma nova
ordem econômica; o declínio do sistema feudal (por razões que não
exporemos aqui) abria espaço para que a classe burguesa emergisse,
intensificando as práticas comerciais nas cidades, exigindo, para seu
estabelecimento, um determinado modo de conduta da população,
que pudesse viabilizar o seu desenvolvimento. O pensamento religio-
so, que até então imperava era, até determinado ponto incompatível
com as novas demandas econômicas. Na realidade, a força da influên-
cia do pensamento religioso teria que ser substituída por um pensa-
mento igualmente determinante, e nada melhor que a ciência, com
seus procedimentos demonstráveis, trazendo ‘verdades’ que, tal como
a religião o fizera, deveriam ser irrefutáveis, pois impunham a neces-
sidade de modernidade e desenvolvimento.
Entendendo que não necessariamente o pensamento científico a-
trela-se a ideologias emergentes ou hegemônicas, nem que a ciência é

98
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

neutra em suas descobertas e aplicações, devemos nos afastar do con-


ceito de produções puras e analisá-las a partir do método dialético
histórico, onde determinado contexto gera necessidades e condições
para suas satisfações, trazidas à concretude enquanto produções teóri-
cas e materiais. Nada é ao acaso; ainda que os seus idealizadores não
tenham consciência das determinações concretas que possibilitaram
esse novo saber, de forma alguma podemos atribuí-las diretamente ao
gênio inventivo deste ou daquele indivíduo.
O que até agora estamos querendo aludir é que a produção de co-
nhecimento, apesar de dar falsa impressão, não ocorre isoladamente
uma das outras, e nem mesmo destituída de um caráter ideológico,
ainda que suas descobertas não estejam comprometidas com essa ou
aquela ideologia, ou seja, o modo de produção encarrega-se de incor-
porar, determinar e ‘contaminar’ quaisquer que sejam as idéias e prá-
ticas de senso comum: artísticas, filosóficas e científicas; o que não
nega o valor histórico e produtivo do que quer que seja, muito pelo
contrário, são essas produções justamente o que temos de concreto, e
que, nos permite vislumbrar a história dos mais diferentes prismas.
Esta breve introdução serve-nos de apoio para abrirmos uma re-
flexão e análise do que nos interessa referir neste trabalho, qual seja, a
influência no Brasil dos ideais higienistas, os quais acabaram por nor-
tear muitas das interpretações e aplicações teóricas no campo da saú-
de, educação, habitação etc. , mas especificamente, interessa-nos, aqui,
as suas influências na conduta adotada frente à saúde mental, incor-
porando as teorias psicanalíticas para seu intento. Antes, porém, não
podemos deixar de contextualizar o surgimento da Psicanálise no
Brasil, desde seus primeiros divulgadores e a luta para se afirmar
como instituição legitimada mundialmente nos moldes das Socieda-
des Psicanalíticas, por um lado, e por outro, a proximidade desses
organizadores com os ideais higienistas, que possibilitaram o ‘encon-
tro’ histórico no Brasil entre Higienismo e Psicanálise.

A psicanálise no Brasil

Quando percorremos os registros históricos de determinados fa-


tos, e o fazemos motivados pela nossa inquietação e insatisfação em
aceitar os fatos da atualidade como contendo em si mesmos seus de-

99
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

terminantes, vislumbramos a possibilidade de recontar essa história,


na qual determinadas matizes encobertas pela indiferença possam
ressurgir, destronando a modernidade da pretensão de produzir-se
em um eterno inédito.
A história da Psicanálise no Brasil é, no mínimo, inusitada para o
contexto da época. Começa em 1899, quando um negro baiano, fluente
na língua alemã, lia os primeiros textos de Freud na faculdade de medi-
cina da Bahia. Segundo a psicanalista Maria Alzira Perestrello, conside-
rada uma das maiores historiadoras da Psicanálise no Brasil, foi Juliano
Moreira que, nos anos de 1896 e 1897, teve acesso a todos os trabalhos
de Freud produzidos até aquele momento. Mas foi no ano de 1919 que
Franco da Rocha ministra um curso sobre Freud na faculdade de medi-
cina de São Paulo, destacando-se, assim, como um dos maiores precur-
sores da Psicanálise no Brasil. Segundo Sagawa (1992), Franco da Rocha
dedicou-se ao estudo da Psicanálise, produzindo um livro em 1920, que
consolidaria a teoria psicanalítica no Brasil, intitulado O Pansexualismo
na Doutrina de Freud, o qual, sob os protestos do próprio Freud, quan-
do dez anos depois teve acesso a essa sua obra, muda o título para A
Doutrina de Freud. Nessa obra, Franco da Rocha procura expor os prin-
cipais conceitos freudianos, abrindo, assim, a possibilidade de ter sob a
língua portuguesa, uma introdução acessível.
Nessa época, Franco da Rocha era professor de psiquiatria da U-
niversidade de Medicina e tinha entre seus alunos aquele que mais
tarde viria a ser o primeiro psicanalista brasileiro reconhecido pela
Sociedade Internacional de Psicanálise, Durval Marcondes.
Segundo o próprio Marcondes, citado por Sagawa (1992), desde
estudante começou a interessar-se por psiquiatria, e via-se entusias-
mado pelas idéias de Freud. Não obstante, cabe ressaltar, nesse mo-
mento, que a psiquiatria acadêmica paulista da época, salvo exceções,
era dominada pelo dogmatismo organicista, utilizando-se das precá-
rias técnicas de tratamento existentes para a doença mental. Dessa
forma, Marcondes encontrava um ambiente hostil, carregado de pre-
conceitos, que gerava uma situação restritiva e até mesmo coercitiva,
por seus superiores hierárquicos e mesmo pelos seus pares, em con-
duzir na prática, com seus pacientes, os conhecimentos psicanalíticos.
Encontrou incentivo apenas de seu mestre e estimado amigo Franco
da Rocha, o que não o impediu, contudo, de continuar e aprofundar

100
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

seus estudos em Psicanálise, bem como aplicar o método psicanalítico


em alguns pacientes. O pioneirismo de Marcondes encontrava-se na
sua iniciativa própria, constituindo-se como um analista, se podemos
assim dizer, autodidata.
O ostracismo vivido por ele e seu professor, que em 1927 ousam
fundar a Sociedade de Psicanálise, não tardou a incomodá-lo, vislum-
brando como única saída buscar conhecimento e reconhecimento no
exterior. Nesse intuito audacioso, Marcondes enviou correspondência
a, nada mais, nada menos, que o próprio pai da Psicanálise, Sigmund
Freud. Conta o próprio Marcondes, que, para sua surpresa, Freud
respondeu-lhe dizendo o seguinte:

Honradíssimo senhor!
Infelizmente não domino o seu idioma, mas graças aos meus
conhecimentos da língua espanhola pude deduzir de sua carta e do
seu livro que é sua intenção aproveitar os conhecimentos
adquiridos em Psicanálise nas belas-letras, e, de um modo geral,
despertar o interesse de seus compatriotas por nossa ciência. Fico
sinceramente grato pelos seus esforços, desejo muito sucesso e
posso assegurar-lhe que achará rica e recompensadora em
revelações a sua continuada associação.
Cordiais Saudações
Seu Freud.
18 de novembro de 1926 (Freud apud Tognolli, 1994, p. 6-5).

Nesse mesmo artigo, Tognolli (1994), conta que Durval Marcon-


des recebeu, em 1930, de Max Eitingon, um dos fundadores da Socie-
dade Psicanalítica de Berlim, material completo sobre o procedimento
de se instituir uma sociedade psicanalítica no Brasil que pudesse ser
reconhecida oficialmente no meio internacional. Apesar de já estar
recebendo material teórico da Europa, tinham como necessidade ur-
gente a vinda de um analista didata, reconhecido internacionalmente.
Começaram a viabilizar a vinda de René Spitz, mas o Brasil, naquele
ano de 1932, estava em meio a um momento golpista que iria marcar a
era Vargas. Tamanho empecilho impediu a vinda de Spitz para o Bra-
sil, que até aquele momento mostrava-se interessado em vir para cá.
Entretanto, com o advento da II Guerra Mundial e a perseguição aos
judeus pelos nazistas, motivou, ainda que forçosamente, a vinda de

101
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Adelheid Lucy Koch no ano de 1938, sendo um marco para a Socieda-


de Psicanalítica Paulista.
Os primeiros candidatos aceitos a submeterem-se à análise didata
foram Virgínia Bicudo, Darcy Uchoa, Flávio Dias e o próprio Durval
Marcondes, que, enfim, podiam agora se formar psicanalistas de fato e
colocar a Psicanálise brasileira em nível de instituição reconhecida-
mente aceita.
Este breve histórico da introdução da Psicanálise no Brasil parece-
nos fundamental para nosso trabalho, pois, nesse mesmo momento
histórico, estruturava-se no Brasil a Liga Brasileira de Higiene Mental
(LBHM). Podemos constatar tal fato pelas intensas atividades realiza-
das, as quais se encontram registradas em importante periódico do
meio intelectual da época, composto por inúmeras publicações que
encontram-se em um período que vai de 1925 a 1947.
Se nos prestamos a realizar uma análise que procure entender a
influência do pensamento higienista nas práticas psicanalíticas, de-
vemos tomar o cuidado de não confundir o empenho de se criar uma
instituição como conseqüência de determinado ideário. Nesse sentido,
a partir de Sagawa (1992), compreendemos que a intenção de Durval
Marcondes estava voltada principalmente em estabelecer no Brasil
uma sociedade psicanalítica; nesse propósito, procurava ele, além de
aprofundar-se teoricamente, estabelecer as regras àqueles que tinham
desejo de tornarem-se psicanalistas. Tais regras, entretanto, deveriam
estar em concordância com as determinações dos precursores da Psi-
canálise que se encontravam na Europa. É importante frisar que o
compromisso desses psicanalistas era com o seu próprio objeto, qual
seja, difundir a teoria e prática da Psicanálise, que tinha um método
próprio de investigação e atuação. Tanto que a obrigatoriedade de
seus membros em submeter-se a uma análise didata era pré-requisito,
e ancorava-se na necessidade do analista compreender seus próprios
conteúdos inconscientes, que provavelmente interfeririam na análise
de seus pacientes nos processos transferenciais e contratransferenciais,
estes, de relevância técnica no tratamento psicanalítico.
É importante ressaltar, também, que essas regras, necessárias para
legitimar o método psicanalítico e consagrar um instituto de formação
profissional de psicanalistas no Brasil, não comungavam dos mesmos
objetivos partilhados entre os higienistas. A Psicanálise, em si, não

102
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

tinha o propósito de atender a uma necessidade de âmbito comunitá-


rio através de medidas higiênicas. Desde seu início, o uso e os benefí-
cios da Psicanálise eram limitados no grau de sua abrangência
populacional e restritos à determinada classe econômica, não por ser
elitista, mas pelos altos custos de sua viabilização.

Eu era, naquele tempo, o único psicanalista aqui em São Paulo. Não


havia mais ninguém para fazer um tratamento psicanalítico e eu
estava aprendendo muito com aqueles meus pacientes. Eles
estavam em análise porque tinham um nível econômico que
permitia o tratamento analítico, o qual por sua própria natureza, é
um tratamento dispendioso. Não é um tratamento para massas
(Marcondes apud Sagawa, 1992, p. 91).

Sendo assim, um momento foi o estabelecimento da Sociedade


Psicanalítica Brasileira, outro foi a utilização da Psicanálise como refe-
rencial teórico que, no entendimento de alguns integrantes da LBHM,
mostrava-se como adequado, conquanto se utilizasse o conhecimento
psicanalítico como medida de prevenção à doença mental.
Na realidade, a formulação do método psicanalítico enquanto a-
plicação prática nos tratamentos do sofrimento mental nunca contem-
plou sua utilização em grande escala na população. Os progressos
analíticos demandam tempo e o enquadre terapêutico exige, por parte
do paciente e do analista, um vínculo construído em um contexto
privativo, restrito a essa relação dual e sigilosa. Acreditamos que a
invenção da Psicanálise, por Freud, é um feito muito maior do que as
criações das Sociedades Psicanalíticas, isto é, sua construção teórica é
parte de um legado histórico, e se mostrou como importante instru-
mento no desvelamento da história da humanidade, tal qual se propôs
ao desvelamento das histórias individuais. O que estamos querendo
dizer é que o pensamento psicanalítico não pode e não deve ser res-
tringido a uma parcela mínima da sociedade, que por acaso venha
reivindicar, de forma institucional, para si, a guarda e a utilização de
tal legado.
Se a Psicanálise pode servir de forma mais abrangente à popula-
ção, não seria pelo seu método que isso se daria, pois isso acarretaria
em uma descaracterização gritante da forma da sua originalidade e,
portanto, remetendo a uma outra estrutura que não a Psicanálise.

103
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Outro problema é recorrer à Psicanálise, mesmo enquanto referencial


teórico, como medida que ela mesma não pode sustentar, e isso se dá
mais pelas descobertas que ela ensejou do que pela sua limitação in-
trínseca. Adotar medidas higiênicas à população, de forma efetiva, em
nível de saúde mental, parece resultar em uma contradição tanto da
técnica quanto da teoria psicanalítica.
Tal contradição, por sua vez, não é de fácil solução. Quando per-
corremos a história da Psicanálise no Brasil, percebemos que Durval
Marcondes via-se dividido: por um lado sua preocupação em instituir
a Psicanálise no Brasil, a qual deveria seguir e manter uma originali-
dade metodológica, vigente até os dias atuais; por outro, parecia in-
conformado com as limitações de sua efetividade nas massas
populacionais.

Mas a Psicanálise tem outro mérito mais importante: Ela veio nos
mostrar as leis psicodinâmicas da nossa vida psíquica e da produção
dos sintomas neuróticos. Independente de sua aplicação direta como
método de tratamento que é muito custoso, que é só para alguns, ela
veio nos ensinar as leis que determinaram a produção dos distúrbios
mentais (Marcondes apud Sagawa, 1992, p. 91).

Ao proceder esse entendimento, parece que Durval Marcondes via a


possibilidade de creditar para a Psicanálise o mérito de descrever os qua-
dros etiológicos das doenças mentais de forma universalizada, em uma
relação direta de causa e efeito. Ao que nos parece, nesse momento pesa-
va sobre ele a responsabilidade também com os ideais higienistas, influ-
ência esta que o fazia atrever-se a vislumbrar um caminho diferente e
possível para esse novo conhecimento.

Então, eu, naquela época, pensei assim: eu estou aprendendo tudo isso
aqui no meu consultório. Essa gente que está fazendo o tratamento
psicanalítico está, sem o saber, me ensinando muita coisa útil. E eu me
vejo na obrigação de aproveitar esses conhecimentos em benefício
daquelas crianças de escolas públicas que possivelmente serão
neuróticas na idade adulta. Então, eu resolvi criar o serviço de higiene
mental escolar que ficou concretizado na Seção de Higiene Mental do
Serviço de Saúde Escolar de São Paulo [...]. Eu procurei seguir os
modelos das clínicas de orientação infantil americanas (Marcondes
apud Sagawa, 1992, p. 92-91).

104
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

É interessante observar, nessa citação, a influência americana no


pensamento higienista brasileiro. Apesar da impossibilidade, para
este trabalho, de conhecer como se desenvolvia o pensamento higie-
nista fora do Brasil, parece-nos útil, e devemos, então, tecer algumas
considerações sobre o mesmo. Ao passo que o movimento higienista
ganhava importância no Brasil, com a adesão de importantes intelec-
tuais da época, a Europa passava por sérios conflitos políticos e eco-
nômicos que culminariam nas duas grandes guerras do século. A
segunda guerra era marcada, por parte dos nazistas, por uma forte
perseguição racista, principalmente aos judeus. Sabemos que grande
parte dos psicanalistas da época, assim como Freud, era judeu, e que
estava sujeito, portanto, às mesmas e terríveis ameaças nazistas. For-
çosamente, a maioria desses psicanalistas teve que migrar para outros
países que lhes pareciam mais seguros, e um desses países certamente
foi os Estados Unidos. Entre esses psicanalistas estava Otto Fenichel,
que tornou-se conhecido pelo seu importante trabalho intitulado Teo-
ria Psicanalítica das Neuroses, publicado em 1945 nos EUA (Zimer-
man, 2001). Ainda na Europa, Adelheid Koch havia se submetido à
análise didática com Fenichel, e por certo não perdera o contato com
ele aqui no Brasil. E, mais provável ainda, é que a influência prática e
teórica de Fenichel sobre Koch fosse determinante em sua atuação
psicanalítica. Ora, o período crítico por que o mundo passava naquele
momento certamente influenciava as descobertas científicas, mais
especificamente se acreditarmos no fato de que a percepção de mundo
muda significativamente em momentos críticos como o de uma guer-
ra, transformando o mundo externo e o mundo interno das pessoas. Po-
demos constatar, como exemplo, que logo após a primeira guerra (1921),
Freud começa a publicar uma série de livros, mudando sua atenção da
análise de casos clínicos para análise de fenômenos culturais.
O Higienismo, e mais particularmente o ‘movimento’ de higiene
mental, primava por ações junto às massas populares, visando ao sanea-
mento e à prevenção da doença mental a partir de medidas diretas. Se
por um lado Freud mostrava-se pessimista quanto ao futuro da humani-
dade, outros pareciam mais otimistas e propensos a erradicar os males
que assolavam a humanidade, contribuindo com sua especialidade, de-
vidamente adaptada. Na obra já citada neste trabalho, Fenichel (1945), no
último capítulo, intitulado Terapia e Profilaxia das Neuroses, diz:

105
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Em todos os campos da medicina, cada vez mais aumentam as


tendências não só no sentido de curar as doenças, mas também lhes
impedir a irrupção. A profilaxia psiquiátrica se chama higiene
mental; e trabalha no sentido do indivíduo ou no sentido das
massas, tentando ensinar o indivíduo de que modo comportar para
se esquivar à probabilidade de adoecer e dirigir as instituições
sociais, visando a reduzir a grande freqüência das psicoses e das
neuroses. Visto que a Psicanálise produziu a compreensão
científica do que realmente passa nas neuroses, é indubitável que
os pontos de vista psicanalíticos terão de ser decisivos na higiene
mental. O médico que compreenda a dinâmica e os pontos que
situam os “complexos” de certo indivíduo poderá, dar conselhos
para evitar uma mobilização terrível dos conflitos latentes [...] O
elemento decisivo na profilaxia geral está na criação e educação
correta dos seres humanos (Fenichel, 1945, p. 538).

Não podemos deixar de perceber a semelhança dessa proposta


com os encaminhamentos efetivados por Durval Marcondes e sua
preocupação com as escolas como objeto de sua atuação higiênica
mental. O próprio Fenichel (1945, p. 538), contudo, faz ressalvas a uma
atuação eficaz: "Não se coloquem, entretanto, esperanças exageradas
na higiene mental; particularmente, no que diz respeito ao seu segun-
do objetivo, que é a profilaxia geral".
Procuramos, aqui, de alguma forma, ligar o surgimento da Psica-
nálise no Brasil com o pensamento higienista. No que se refere à higi-
ene mental, podemos observar a influência dos psicanalistas europeus
que migraram para os EUA, no período da segunda guerra, nos pri-
meiros psicanalistas brasileiros, que vislumbravam, ainda que com
muitas ressalvas, a possibilidade, de, em um futuro próximo, tornar a
Psicanálise também um instrumento de profilaxia à saúde mental.
Apesar de entendermos que determinada atuação de educadores
e pais possam auxiliar em uma construção mental saudável, estamos
propensos a acreditar que tais medidas, de forma alguma, possam dar
garantias de promoção da saúde mental.
Como podemos perceber, dentro e fora do Brasil, a Psicanálise era
vista como poderoso instrumento no auxílio à prevenção da saúde
mental, iniciando-se, aqui no Brasil, já com o seu precursor, Durval
Marcondes. Outras pessoas, pertencentes aos serviços de higiene men-
tal no Brasil, além de produzir trabalhos científicos em escolas públi-

106
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

cas brasileiras, puderam apresentá-los em uma obra. É o caso do mé-


dico higienista Arthur Ramos (1939), que publicou A creança proble-
ma: a hygiene mental na escola primária. Tal obra merece nossa
atenção, pois procura introduzir os conceitos psicanalíticos, puros ou
influenciados, nas suas atuações e reflexões. Apesar de Arthur Ramos
(1939) destacar-se e ser reconhecido na história da Psicologia como
grande precursor da Psicologia Social, não deixou de dedicar-se ao
estudo da Psicanálise e Higiene Mental, o que, a nosso ver, credencia
tal material à análise a que nos prestamos.
Arthur Ramos (1939), médico psiquiatra, chefe do Serviço de Hi-
giene Mental do Departamento de Educação do Rio de Janeiro (então
Distrito Federal) no ano de 1934, valeu-se de autores psicanalíticos,
principalmente referentes a Adler e ao próprio Freud. Essa obra ofere-
ce extenso material, na qual são apresentados exemplos de casos de
crianças com distúrbios escolares, procurando o autor registrar o am-
biente familiar da criança, valendo-se da teoria psicanalítica, utilizan-
do-a habilmente, de maneira a conduzir a análise principal de forma a
corroborar e legitimar o pensamento higienista.
Dada a época em que essa obra foi editada, no ano de 1939, acre-
ditamos que a mesma deve ter tido certa influência na interpretação
do pensamento psicanalítico no Brasil, principalmente no que diz
respeito as suas ramificações na educação.
Tentaremos expor essas influências, identificando sua permanên-
cia até os dias de hoje e sua utilização dentre os profissionais de Psico-
logia que perpetuam essa visão, sem que estes se dêem conta disto.

Higienismo: ciência ou ideologia?

A produção científica, ainda que contextualizada dentro de um


modo de produção e, portanto, determinada por esse, não pode ser
encarada de forma arbitrária, isto é, que atenda necessariamente a
uma determinada ideologia, base conceitual desse modo de produção.
De fato, com o advento do capitalismo e o conseqüente desenvol-
vimento das indústrias urbanas, tornava-se imprescindível uma me-
lhoria na qualidade da saúde pública nos centros industriais. A
produtividade, dependendo diretamente de ampla mão-de-obra, ne-
cessitaria que esta última estivesse a contento, isto é, saudável. As

107
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

doenças oriundas da falta de higiene da população já tinham demons-


trado reverter-se em catástrofes, dizimando milhares de pessoas, co-
mo no caso da peste negra, gripe espanhola e tantas outras epidemias
que colocavam em xeque o destino da espécie humana. É claro que,
mesmo sem tecnologia adequada, a espécie humana não sucumbiu;
entretanto, tornar-se saudável para o trabalho era uma das condições
necessárias para a solidez do sistema capitalista.
Por outro lado, a ciência, mesmo sem se dar conta da profundida-
de da história que estava vivendo e construindo, acabava por confron-
tar-se com tais problemas, e ela mesma só existia por conta desses
problemas, aos quais procura constantemente, até os dias de hoje, dar
uma solução. O que estamos querendo dizer é que a própria ciência
nasce e desenvolve-se a partir de uma realidade concreta, no interior
de um modo de produção; por isso, não faz sentido julgá-la como
ideológica ou não, isto é, à ciência não cabe julgamento, mas sim a
avaliação das conseqüências de sua aplicação e de seus resultados.
No caso do Higienismo, não podemos proceder de forma diferen-
te; embora tenha atendido, até os dias de hoje, a um modelo político e
econômico, sua pretensão de tornar-se ciência parece sempre respal-
dada no saber científico legitimado.
Ora, a descoberta dos microorganismos, identificados como cau-
sadores de doenças, e, posteriormente, a origem das proliferações
desses microorganismos, abriam a possibilidade de controle in loco
como medida preventiva a futuras epidemias. As causas, corretamen-
te observadas, de como os fatores externos, tais como o acúmulo de
lixo, eram responsáveis diretos pela contaminação em massa da popu-
lação, e que esse acúmulo estava também diretamente ligado aos hábi-
tos dos indivíduos, exigia que doravante a conduta normativa desses
indivíduos se adequasse às descobertas científicas. Percebemos, assim,
que uma coisa leva à outra. A constatação do fato em si não conteria
as futuras epidemias, somente uma atuação política seria capaz de
fazê-lo. Essa atuação poderia dar-se através da força do Estado, o que
implicaria em sanções de ordem coercitivas, as quais, via de regra,
encontram resistência da população. Uma outra possibilidade é a uti-
lização de um determinado saber que pudesse ser legitimado e incor-
porado à população como verdade inquestionável (como outrora era o
saber religioso). Logo, o caráter ideológico da ciência torna-se elemen-

108
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

to indispensável a sua legitimidade. No caso do Higienismo, podemos


entendê-lo como ‘entidade’ político-ideológica sem que necessaria-
mente fosse representante direto dessa ideologia. Explicando melhor:
as descobertas científicas, como já dissemos, podem ou não repercutir
na sociedade, influenciar ou não a conduta da população, isso irá de-
pender do impacto de sua veiculação, e essa depende da necessidade
de se manter ou transformar o status quo, logo, é uma decisão político-
ideológica. Por outro lado, essa veiculação depende não somente da
divulgação da descoberta, mas do aparato teórico, o qual implica em
demonstrar a veracidade dos fatos de forma convincente, exigindo
uma articulação lógica, que consiga ‘amarrar’ o fato descoberto à coe-
rência do discurso.
Quando o Higienismo prega uma conduta preventiva, é preciso
convencer a população de que aqueles ‘seres invisíveis’ são os causa-
dores de suas enfermidades, tendo claro, contudo, que esse conven-
cimento dependerá da crença dessa população, haja vista não estar
instrumentalizada a apreender o fato pura e simplesmente. A crença
no saber científico independe de uma constatação objetiva, parece
tratar-se mais de fé.
Sutilmente, a crença nas medidas preventivas favorece o inquesti-
onamento das determinações impostas pela ciência, as quais podemos
agora identificá-las, já que queremos falar em saúde, do saber médico.
A crença no saber médico levou o médico a um status de poder aliado,
e nem poderia ser diferente; ao poder do Estado, diluído, é verdade, o
que lhe confere uma aparência de neutralidade. É comum a expressão
do cidadão comum frente a um questionamento médico: ‘Você quer
saber mais que o médico?’. Esse exemplo parece corroborar cabalmen-
te com o caráter ideológico dos saberes constituídos como inquestio-
náveis. Mas poderíamos dizer que inquestionabilidade nada tem a ver
com o método científico, de fato, mas a sua legitimidade tem muito a
ver. Sendo assim, percebemos a complexidade em determinar a forma
do caráter ideológico da ciência, pois, sem esse, não saberíamos se
teria muito sentido a própria produção científica. Nesse sentido, pare-
ce-nos conveniente localizar o movimento higienista como função de
legitimidade do saber científico nesse caso específico. Logicamente
existem muitos outros movimentos com a mesma função, tais como o
movimento ecológico, distinto em seus objetivos.

109
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

O que discorremos até aqui parece-nos pertinente, visto que não


queremos que o leitor entenda o movimento higienista como pensa-
mento arbitrário, mas sim como uma das necessidades de confirmação
das produções científicas, e quando compararmos, adiante, às produ-
ções psicanalíticas, devemos ter em mente que, de certa forma, a Psi-
canálise estruturou-se no Brasil, também, graças a sua veiculação de
massa, por intermédio do movimento higienista, e se, bom ou mau, é
uma questão moral, de difícil resposta, mas não negando que tal inter-
ferência venha a distorcer a sua produção original, como, via de regra,
observamos em todos os segmentos dos saberes constituídos.
Essa situação encontra, conseqüentemente, o seu contraponto nas
exigências do Estado e do sistema, haja vista este último exigir a isen-
ção de qualquer responsabilidade em suas políticas de atuação. No
caso da educação escolar, observamos, na obra de Arthur Ramos, que
os problemas detectados pela escola referentes à aprendizagem e aos
distúrbios de conduta são imputados ao meio familiar. O nível social
da população parece ser determinante na ocorrência dos problemas
apresentados.

As pesquisas fundamentaes de Otto Rühle demostram que esse


atrazo era conseqüência de um complexo de inferioridade do
proletariado, vivendo em condições desfavoráveis [...] Quanto ao
rendimento escolar, também são várias as investigações realizadas,
sobre a creança de meio pobre em comparação com as creanças de
outros meios. Vida social dos g-children (crianças de bom meio
social) e as das p-children (creanças de meio pobre) varia
extraordinariamente nas reações complexas de opiniões atitudes,
adaptação e realidade (Ramos, 1939, p. 12).

Não constatamos em sua obra uma análise crítica quanto ao sis-


tema econômico, dando a impressão de que as mudanças propostas
pelo Higienismo referem-se a uma transformação revolucionária; mui-
to pelo contrário, diz respeito à adequação desse indivíduo ao sistema,
atendendo às exigências da produtividade. Nesse sentido, os distúr-
bios de conduta eram observados como reações compensatórias a um
complexo de inferioridade do indivíduo, proveniente de um meio
social desfavorável e, na maioria das vezes, miserável. Parece-nos que
a superação desse sentimento de inferioridade seria realizado à medi-

110
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

da em que o indivíduo se adequasse às normas preestabelecidas, ideo-


logicamente tidas como corretas.
A impressão que nos causa, é que o Higienismo tem suas bases
formadas no conhecimento biológico, no mundo natural, no qual as
contradições sociais, ainda que impossíveis de serem observadas obje-
tivamente, são reduzidas de maneira estanque. As transformações
pelos higienistas propostas recaem em medidas de controle social.
Atrelado ao Estado, o movimento higienista, ainda que com as
mais nobres intenções, torna-se aliado forte no processo de normatiza-
ção dos indivíduos. À medida que suas propostas encampam políticas
de atuação, a população vai ficando cada vez mais à mercê de seu
controle preventivo. Nota-se que o termo Higiene Mental é extrema-
mente sugestivo ao controle. Nossos hábitos de higiene levam-nos
diariamente a condutas quase que automáticas, compreendendo um
comportamento ritualístico. Não queremos, aqui, dar a impressão de
que somos contrários ao indivíduo tomar banho todos os dias, escovar
os dentes etc. , entretanto, queremos chamar a atenção sobre o poder
do saber médico, determinado dia após dia, no mais íntimo de nossas
necessidade. No que diz respeito à higiene mental, o processo é ainda
mais complexo. Atuando diretamente na família, as determinações,
que na obra em análise aparecem como recomendações, dizem respei-
to à maneira de como criar os filhos, como conduzi-los, como exercer a
autoridade, a disciplina, a alimentação e como proporcionar-lhes a-
mor. Enfim, é a intenção de exercício do poder pleno em todas as ins-
tâncias da vida cotidiana do indivíduo.
Não se trata, todavia, de uma coerção direta de forças repressivas,
nesse ponto entendemos o valor moral atrelado ao saber científico, no
sentido de entender aquelas medidas preventivas como sendo boas ou
más. O saber médico impõe-se como autoridade, mas essa autoridade
não é entendida como outorgada pelo Estado, e sim pela ciência, e a
ciência a que nos referimos é a ciência natural. Nesse sentido, enten-
demos que a maneira como se interpreta uma determinada construção
científica leva-a a naturalizar seus conceitos, reproduzindo-as em
termos de causa e efeito, universalmente generalizados. No caso da
Psicanálise, ou melhor, da forma como Freud a construiu, podemos
perceber como são deixadas brechas para essa interpretação, que, por
conseguinte, desvela parte dessa construção. O que estamos querendo

111
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

dizer é que a Psicanálise não esteja, na sua forma original, isenta das
influências das ciências naturais, muito pelo contrário, encontra nelas
sua base, mas que representa, ao mesmo tempo, um afastamento des-
ses conceitos.
Nessa linha de raciocínio, esperamos continuar nossa análise, ob-
servando que os preceitos teóricos piscanalíticos expostos na obra de
Arthur Ramos não dizem respeito simplesmente a um erro de inter-
pretação, mas em uma maneira reduzida, no sentido de adequá-la as
suas necessidades, qual seja, a legitimidade de suas idéias com o aval
de outros saberes.

Por que a Psicanálise?

O termo Psicanálise é adotado por Freud, indicando psico-análise,


isto é, um termo derivado da química, que pretendia remeter o estudo
da psique humana a uma análise. Na química, a análise de determi-
nado composto equivale a reduzi-lo em seus elementos, separando-os
e, posteriormente, compreendendo a forma de organização e reorga-
nização desses elementos constitutivos, guardando suas leis e funções.
As semelhanças que a Psicanálise guarda com essa ciência, en-
tretanto, não vai muito longe. Com relação à psique humana, Freud
estava interessado nos processos inconscientes e na sua construção
simbólica. Não havia, no estudo da Psicanálise, um elemento ob-
servável, tal qual o elemento químico. A tarefa de desvendar os
conteúdos inconscientes exigia um método distinto, e para se atin-
gir esse intento, partia-se dos conteúdos conscientes, não de todos,
mas de determinados produtos originados de situações e fenôme-
nos, tidos de pouca ou nenhuma importância, como os chistes, os
atos falhos e os sonhos. Freud percebia nesses fenômenos a atuação
direta de conteúdos inconscientes determinando-os. Daí resulta o
corolário de que nada acontece por acaso, todo e qualquer compor-
tamento, pensamento, e principalmente os sintomas psicopatológi-
cos ou mesmo orgânicos encontravam uma determinação ainda
desconhecida. Eram os representantes de conteúdos inconscientes
que, impossibilitados de manifestar-se diretamente, manifestavam-
se na mente e no corpo do indivíduo de forma misteriosa, sem uma
causa orgânica aparente.

112
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

Foi junto ao mestre Charcot que Freud começou a se interessar pe-


los casos de histeria. Presenciou sessões de hipnotismo, nas quais
parecia ficar evidente que pacientes histéricos, acometidos de paralisi-
as, cegueira, mudez etc. tinham seus sintomas retirados pela sugestão
hipnótica, voltando, entretanto, a apresentá-los quando o estado de
suspensão hipnótica era encerrado. A partir de então, Freud começou
a aplicar em seus pacientes o método de tratamento hipnótico, com
variações que havia visto e aprendido com Charcot. Em estado hipnó-
tico, fazia com que seus pacientes verbalizassem a situação traumática
vivida, e assim pudesse, mesmo depois, em estado de consciência,
suprimir o sintoma apresentado. Tratava-se de uma forma de fazer o
indivíduo retornar a situação, sob sugestão controlada, e revivê-la
como se estivesse acontecendo naquele momento. Freud, no entanto,
percebia que, posteriormente, o sintoma reaparecia de outra forma, o
que ficava evidente que o processo de cura não tinha se realizado; o
que ele estava fazendo até então, nada mais era do que a retirada de
um determinado sintoma.
O caminho, contudo, estava preparado; de alguma maneira os pa-
cientes produziam os seus sintomas, de forma inconsciente. Posteri-
ormente, Freud iniciou o método regressivo sem a ajuda da sugestão
hipnótica; percebia que os pacientes poderiam retornar ao material
inconsciente a partir do método de associação livre, o qual consistia
em fazer o paciente realizar qualquer tipo de associação a um deter-
minado tipo de conteúdo manifesto. As lembranças oriundas pareci-
am montar um quebra-cabeça, sem nenhuma relação aparente,
remontando as situações vividas na infância. Entretanto, as reminis-
cências de tais fatos sugeridos parecia não encontrar constatação de
que pudessem ter ocorrido realmente. Isso parecia intrigar Freud; a
sinceridade com que seus pacientes relatavam os fatos não o conven-
ciam de que estavam simplesmente mentindo.
Talvez o que mais intrigasse Freud é que esses relatos eram reves-
tidos de conteúdos eróticos e sexuais. Seriam esses pacientes dotados
de uma imaginação lasciva e pecaminosa? Ou vítimas cruéis da insa-
nidade pervertida daqueles que os cuidavam?
Freud, ainda que com suas próprias resistências, não tardou a
compreender que, por detrás dos conteúdos apresentados estavam
contidos desejos ‘perigosos’, eróticos e agressivos, relativos às figuras

113
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

paternas. Até os dias de hoje essa constatação é de difícil aceitação;


como pode uma inocente criança desenvolver desejos eróticos em
relação a sua mãe e a seu pai? É justamente nessa indignação que tal-
vez esteja a resposta e a comprovação do que Freud descobrira. Tais
desejos eram fortemente renunciados, isto é, reprimidos para o in-
consciente, permanecendo ali como força motriz às atividades dos
indivíduos, tal era a sua energia acumulada e represada.
Sendo assim, uma parcela ínfima de toda a psique estaria à dispo-
sição da consciência humana, a sua maior extensão estaria relegada ao
mundo inconsciente, mantida ali por um poderoso mecanismo, a
repressão.
É nesse sentido que parece-nos que Freud arrola o termo análise,
pois a compreensão da mente humana, quanto a sua atividade, prin-
cipalmente envolvendo uma construção simbólica, remeteria a um
estudo profundo que pudesse atomizá-la, para posteriormente enten-
dê-la como funcionava em seu todo. É óbvio que isso não se daria pela
análise direta e laboratorial, como ocorria com os compostos quími-
cos, visto que Freud não identificou uma localização anatômica para o
seu conceito de consciente e inconsciente; valeu-se de um método
totalmente distinto, que percorreu os caminhos das produções da
mente humana, utilizando-se da linguagem e de sua interpretação.
O leitor pode estar se perguntando o que toda essa história (brevis-
simamente exposta) poderia estar relacionada com os higienistas. A
resposta poderia ser simples: Freud encontra para os distúrbios mentais
uma “causa”. Levando-se em conta que o Higienismo prima por uma
conduta preventiva frente às afecções, e tratando a higiene mental de
montar uma ação preventiva, teria que se ocupar das causas que levari-
am aos estados patológicos, e de maneira sistemática, suprimi-las.
De que causas estaríamos falando aqui? Ora, a Psicanálise identi-
fica que as origens dos sintomas apresentados posteriormente inici-
am-se na infância. E que as suas causas estariam diretamente
relacionadas pela conduta repressora aos instintos, identificando prin-
cipalmente os instintos de vida e instinto de morte. Os primeiros, re-
presentando os impulsos eróticos e o segundo relativo à
agressividade. Essa instância repressora, identificada na Psicanálise
como o superego, seria a representante internalizada das figuras pa-
rentais, principalmente a figura paterna. Entendendo como um pro-

114
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

cesso de internalização, isto é, ‘tornar dentro os pais’, poderíamos


pensar que a conduta dos pais e sua forma peculiar pedagógica pro-
porcionaria a saúde ou a doença mental.
Mas o que de fato seria essa instância superegóica? Entendemo-la
como a última instância do desenvolvimento psíquico a manifestar-se
plenamente. Inicialmente o bebê, grosso modo, não seria mais do que
um ente instintivo, tomado pelo princípio do prazer, ou seja,, não
tolerando suportar sensações desprazerosas, respondendo pronta-
mente com choros desesperados até que a sensação de desprazer fosse
totalmente retirada. Paulatinamente, atrelado a um desenvolvimento
fisiológico, o bebê passaria a responder a seus impulsos mediante
uma mediação mais adequada à realidade. Para isso, estaria apto a
suportar frustrações, isto é, a postergar um prazer imediato. Posteri-
ormente, sua conduta estaria aliada a um refreamento dessa busca
imediata de prazer, suportando, conseqüentemente, situações despra-
zerosas, o que só poderia ser possível se houvesse uma instância psí-
quica suficientemente capaz de fazer com que o indivíduo renunciasse
a esse prazer mediante punição, revertendo em um sofrimento interno
e intenso antes mesmo da possibilidade da realização de determinado
desejo. Observando as crianças, percebemos que o seu comportamen-
to é em demasia refreado diretamente pelos pais ou pelos que delas
cuidam, provocando manifestação de repúdio imediatas que nova-
mente são reprimidos. Por outro lado, os pais não seriam simplesmen-
te responsáveis pela administração de sanções aos filhos, como
também responsáveis pela sua proteção, cabendo também ao supere-
go uma representação protetora. Entretanto, muitas das situações
estão incluídas dentro das próprias sanções, como medida protetora
para salvaguardar a integridade do indivíduo, tais como impedi-lo de
manusear objetos perigosos, de trafegar livremente pelas ruas etc.
Logo, uma atitude extremamente punitiva ou extremamente permis-
siva por parte dos pais poderia resultar em danos à saúde física e
mental do indivíduo.
Agora sim poderíamos estar falando de uma relação direta da e-
ducação dos pais com o posterior desenvolvimento mental da criança.
Entendendo-se o superego como uma introjeção direta dessas figuras
parentais, e que a atuação intrapsíquica dessas figuras representaria o
fio condutor entre doença e saúde mental, estaríamos propensos a

115
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

encontrar uma “causa” possível e passível de ser controlada, qual seja


o comportamento dos pais em relação a seus filhos.
Essa forma de interpretação da teoria psicanalítica parece vir ao
encontro das pretensões higienistas, isto é, encontrar no meio externo
um responsável direto, que pudesse ser controlado através de medi-
das preventivas. Nesse sentido, seria suficiente encontrar uma norma
adequada de conduta dos pais, que pudesse conter procedimentos a
serem seguidos. Como sugere a obra de Arthur Ramos, o procedimen-
to adotado parece ser uma análise do histórico familiar da criança,
identificando na conduta dos pais agressividade ou permissividade
exagerada no trato com os seus filhos, para, posteriormente, uma ex-
plicação dos malefícios dessas condutas, apresentando-lhes a maneira
correta de proceder.
Assim procedendo, dá-nos a impressão de que determinada ins-
tância psíquica poderia ser controlada, modificando significativamen-
te o padrão de saúde mental da população.

Os contrapontos

Infelizmente, em nosso entender, tal atuação preventiva não pro-


porcionaria de maneira tão direta o resultado esperado. Senão veja-
mos: o processo de internalização às figuras parentais não dependeria
simplesmente de medidas objetivamente orientadas. Proceder dessa
forma seria, por um lado, negar a própria produção da Psicanálise.
Esta dá relevância especial aos conteúdos inconscientes nas relações
interpessoais; prevê que exista uma comunicação entre os inconscien-
tes, isto é, temos que entender que, com relação às figuras parentais, a
situação não é diferente, ou seja, que a sua própria conduta está con-
dicionada ao determinismo psíquico. E que, não se podendo dar o que
não se tem, seria extremamente complexo explicar para um pai ou
uma mãe como amar seu filho. Mais do que dizer que ama seu filho,
esse (o filho), para assegurar-se, necessita sentir-se amado e desejado.
A forma de representação das figuras parentais não depende so-
mente dos conteúdos manifestos dos pais para com a criança. É co-
mum pais ansiosos procurar os serviços de atendimento psicológico,
relatando que sempre tiveram uma conduta de aceitação e amor para
com os filhos, implorando explicações sobre o que fizeram de errado e

116
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

recomendações de como corrigir esses erros. Outros pedem recomen-


dações, se devem ou não deixar seus filhos assistir televisão, se é con-
veniente utilizar-se de coerção física etc. O próprio Freud deparava-se,
em seu tempo, com tais indagações: quando uma mãe procurou-lhe
para que fosse auxiliada na conduta que deveria adotar para que seu
filho não tivesse problemas psicológicos no futuro, qual recebeu como
resposta de que poderia agir como quisesse, pois de todo jeito daria
errado. O que talvez Freud quisesse dizer é que não podemos prever
como determinada atitude com relação aos nossos filhos repercutirá
no futuro.
Devemos analisar, primeiramente, que, via de regra, os pais per-
cebem-se tentando sempre fazer o melhor para seus filhos, variando
de pais para pais o que consideram correto ou incorreto, e que isso
vem modificando-se de tempos em tempos.
O complexo de representações que compõem o mundo interno do
indivíduo traz consigo fatores constitucionais, ou melhor, condições
pré-dispostas que determinam como essas representações serão cons-
truídas. Por exemplo, a despeito dos cuidados dedicados ao bebê,
esse, devido a uma constituição mais sensível, pode perceber tais cui-
dados muito mais como agressão do que como carinho, ou mesmo
que tais cuidados sejam insuficientes. É muito improvável que possa-
mos identificar que a conduta da mãe com o filho esteja sendo, naque-
le momento, suficiente às demandas daquele.
Mesmo que os pais possam ter acesso a diversas informações so-
bre as relações mãe/bebê, isso de forma alguma garante sua aplicabi-
lidade. Muito pelo contrário, o conhecimento adquirido pode, por
outro lado, escamotear os sentimentos dos pais para com seus filhos.
Sentimentos de rejeição à gravidez e posteriormente ao filho podem
encontrar determinantes inconscientes referentes à própria fantasia de
ter sido rejeitada quando criança. A informação de que a rejeição ao
filho causará a este um trauma com conseqüências futuras, reforçará
simplesmente um comportamento manifesto, artificialmente produzi-
do, induzindo ao observador estar presenciando uma mãe carinhosa e
cuidadosa. Entretanto, no trato diário com a criança, o sentimento de
rejeição continua ativo inconscientemente, perpassando uma outra
mensagem. Posteriormente, o bebê acaba por ter que decifrar uma
dupla mensagem, dificultando ou mesmo impossibilitando a repre-

117
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

sentação no mundo interno de uma figura estável e confiável. É notó-


rio o esquecimento inconsciente dos pais em relação a certos cuidados,
muitas vezes de conseqüências extremadas. Não é incomum encon-
tramos nos jornais casos de pais que esquecem seus filhos, ainda be-
bês, nos automóveis, deixando-os ali até a morte, casos de medicação
administrada erroneamente, muitas vezes trocando o remédio por
veneno, e outras tantas situações.
O que estamos querendo dizer é que medidas preventivas podem
encontrar seu contraponto ao reforçar nos pais a negação de sentimentos
com relação a eles mesmos e com relação a seus filhos, o que poderia
implicar em um perigo maior. Ora, os sentimentos agressivos, impedidos
de serem pensados, acaba por manifestar-se de outras formas menos
adequadas, propiciando o que podemos chamar de uma ‘atuação’ do
indivíduo nos seus esquecimentos, em certa negligências com os cuida-
dos que passam desapercebidos, em uma agressividade velada ao segu-
rar o filho no colo, em dar banho, enfim, à constante transmissão de uma
dupla mensagem, nas quais só uma delas é reconhecida pelos pais e pos-
sível de ser codificada aos filhos, e outra, negada, ficando por conta da
criança lidar sozinha com sua precária estrutura.
Interpretar os derivativos dos conteúdos inconscientes não é tare-
fa fácil, depende, em grande parte, da pessoa que está sendo analisa-
da, só ela poderia legitimar uma interpretação, a qual, suscitando nela
emoções outrora destituídas de significação, encontra na análise uma
situação propícia para revivê-las em condições de senti-las e resignifi-
cá-las de maneira adequada. Como poderíamos saber se tal ou qual
conduta dos pais estaria provocando na criança ansiedade exagerada
ou não, e, mesmo em muitos casos, qualquer conduta não evitaria de
maneira alguma o surgimento de ansiedades.
Não estamos queremos dizer que não deve haver determinadas
condutas que possam, inclusive, ser legitimadas em estatutos legais.
Ora, seria o mesmo que dizer que tanto faz espancar ou não uma cri-
ança. A conduta criminosa, prevista em lei, diz respeito às normas
mínimas que garantam a integridade física e mental dos indivíduos.
Práticas de tortura de qualquer espécie já demonstraram suas conse-
qüências terríveis nos estados físicos e psíquicos dos indivíduos.
Mesmo os que tenham passado por experiências tão dolorosas, senti-
ram-nas e registraram-nas de maneira diferente; alguns superando

118
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

melhor que outros, mas, de forma alguma, passando o sofrimento


desapercebido. Entretanto, a disposição legal tem um caráter jurídico,
são direitos e deveres dos cidadãos, que coíbem excessos já percebidos
como maléficos a qualquer pessoa. Nem mesmo essas disposições
legais, todavia, podem coibir os excessos, e, mesmo que sejam cum-
pridas, não garantiriam a promoção da saúde mental do indivíduo.
Muitos dos relatos contados pelos pacientes parecem não encon-
trar sustentação em vias de fato e nem por isso são construções menti-
rosas. A representação fantasiosa encontra um registro mental sentido
como que realisticamente. Por exemplo, o bebê suga o próprio dedo,
fantasiando o seio da mãe, esse dedo, em sua representação, deixa de
ser dedo para tornar-se o seio. Freud procurou descrever os mecanis-
mos projetivos e introjetivos, nos quais os pais muitas vezes são dota-
dos de características terroríficas, uma construção baseada nesses
mecanismos, imperando o mundo das fantasias. Tentar evitar que tais
fantasias ocorram seria o mesmo que negar que pudesse existir a pul-
são de morte, derrubando um dos pilares da Psicanálise.
Ao que nos parece, Arthur Ramos (1939) não estaria preocupado
se estivesse profanando ou não os pilares da Psicanálise, tanto que
reúne para uma mesma análise diversos autores, os quais, mesmo
reconhecidos como psicanalistas, como o caso de Adler, podem ser
entendidos como dissidentes justamente por não permanecerem fiéis
aos conceitos originais da Psicanálise. Entretanto, o autor não se preo-
cupa em fazer essa distinção, toma todos por psicanalistas, adotando
de cada um o que mais lhe convém para dar sustentáculo as suas idéi-
as. É interessante ressaltar que, apesar do movimento higienista no
Brasil não ser considerado pensamento hegemônico, e mesmo hoje ser
desconhecido pela grande parte da população e pelos psicólogos,
encontramos suas nuanças nos discursos dos profissionais de Psicolo-
gia, dificilmente assumido como discurso higienista, apesar de sê-lo,
rebuscado dentro das teorias psicológicas, inclusive da teoria psicana-
lítica. É o que pretendemos discutir a seguir.

Pobres mães....

A angústia que a maioria dos pais trazem consigo, quando vêem


nos falar do problema de seus filhos, não é injustificável. Muitas ve-

119
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

zes, após o relato, ficam aguardando o ‘puxão de orelhas’ do psicólo-


go, quando não apressadamente já se condenam, dizendo ‘eu sei que
nesse ponto eu devo ter errado muito’, justificando-se a seguir, ‘mas
eu sempre quis o bem do meu filho’.
Lendo o livro A creança problema (Ramos, 1939), não deixamos
de notar sua atualidade em relação às interpretações e interven-
ções, responsabilizando os pais pelos problemas que afetam o
comportamento de seus filhos, isentando-os por outro lado, ale-
gando ignorância ao assunto. No entanto, intencional ou não, são
os pais que, na maioria das vezes, levam a culpa. Ora, como já dis-
semos, as medidas preventivas carecem de encontrar uma causa,
ou talvez, um culpado. Ainda que sejamos suficientemente com-
preensivos com a dor dos pais, não deixamos de imputar-lhes sua
‘merecida’ parcela de culpa.
E o fazemos esbanjando teoria, utilizando-nos de termos como
‘má identificação’, devido a uma figura paterna ou materna frágil,
pouco compreensiva, intolerante etc. De fato, os conceitos psicanalíti-
cos abrem espaço para esse tipo de interpretação; o problema é o que
nos passa desapercebido e que Freud levava em consideração, a pro-
dução fantasiosa da criança. Sendo assim, as condições externas em
muitos casos eram irrelevantes. Explicando melhor: o desejo constitu-
inte que o indivíduo apresenta logo ao nascer, por si só, já coloca a
criança em uma situação que lhe provoca uma sensação de perigo,
que pode, no decorrer do desenvolvimento, mostrar-se mais ou menos
ameaçadora. Isso, em muito, deve-se ao sentimento de ambivalência
às figuras parentais, isto é, os pais apresentam-se para a criança como
objetos de amor e ódio. Amam o objeto quando é gratificador e o o-
deiam quando é frustrador, procurando manter o objeto amado e des-
truir o objeto odiado, sentindo-se, concomitantemente, amadas e
odiadas por esses mesmos objetos, criando, muitas vezes, fantasias de
que estão sendo perseguidas por eles.
Entendemos que a frustração é situação sine qua non para o desen-
volvimento do indivíduo, pois força o desenvolvimento do bebê cada
vez mais em direção à construção de um sentido de realidade mais
apurada, isto é, a um amadurecimento egóico. As frustrações podem
ser suportáveis ou não para o indivíduo, dependendo de vários fato-
res, inclusive constitucionais. Ora, toda vez que falarmos em frustra-

120
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

ção, aparecerá um objeto frustrado, que necessariamente se apresenta-


rá como algo ruim, mobilizando no bebê sentimentos agressivos.
Freud entendia que um dos momentos cruciais no desenvolvimento
da criança daria-se por volta dos 4/5 anos de vida, entendido como a
resolução do complexo de édipo. Não quero pormenorizar essa fase
do desenvolvimento, todavia, é interessante constatar que, a partir
desse momento, a criança é posta em uma situação extremamente
frustrante (não é a única), qual seja, a de abandonar as figuras dos pais
enquanto objeto de seus desejos eróticos. Nesse momento, para Freud,
é que se instala a identificação com as figuras dos pais e a estruturação
de um superego, o qual, podemos afirmar, definitivo (não imutável).
Antes que isso aconteça, a criança passaria por momentos de muita
ansiedade, pois a renúncia a esses importantes objetos não se dá sem
experimentar fantasias de persecutoriedade, levando a uma repressão,
tanto dos desejos eróticos quanto da agressividade. Essa situação en-
contra-se no mundo interno do indivíduo, registrada por toda a sua
vida. O que queremos dizer é que a formação da personalidade do
indivíduo não se faz sem a presença de fantasias de que existam pais
perigosos e cruéis, podendo ou não se confirmar na realidade.
Ora, essas representações fantasiosas frente às figuras parentais
não se fazem sem propósito. Um de seus objetivos é poder construir
no mundo interno do indivíduo um referencial moral, em que estejam
delimitados bons e maus objetos, acompanhados de boas e más situa-
ções. Parece-nos, contudo, que não há como prever se determinada
situação incorreria em uma experiência boa ou má para a criança. O
objetivo de uma análise é justamente esse, no qual, através do método
de associação livre, leva o indivíduo a proceder regressões que, che-
gando ao conflito original, possa evocar os sentimentos carregados de
ansiedade, possibilitando uma resignificação da situação de forma
menos persecutória, possibilitando o alívio do sofrimento mental.
No seu percurso teórico, Freud traz muitos exemplos, nos quais
seus pacientes vivenciaram determinada situação, sem poder atribuir-
lhes uma significação adequada; e por conseguinte, passaram a ex-
pressar-se por sintomas neuróticos. Não obstante, parece-nos que
esses exemplos serviam apenas como forma de esclarecer a teoria que
se propunha a criar; em momento algum sugere que a vivência ocor-
rida pudesse ser generalizada a outras. Isto é, por mais parecidas que

121
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

possam ser determinadas experiências vividas por diferentes pessoas,


e mesmo pela mesma pessoa em momentos diferentes, é impossível
prever as suas conseqüências.
Tomando como referência as construções teóricas de M. Klein, ve-
remos que a mãe física é o ambiente possível do bebê, ou seja, a partir
do representante materno é que a criança pode iniciar sua exploração
do mundo, que começa no próprio corpo da mãe, sentindo-se segura
para fazê-lo. Como em toda iniciativa exploratória, o novo ambiente é,
muitas vezes, dotado de fantasias enigmáticas e perigosas.
A mãe, a seu tempo, também representará o objeto interditado
com o aparecimento de outra figura, o pai. Estamos nos referindo ao
surgimento da situação edipiana, na qual, em um primeiro momento,
é a mãe (para filhos de ambos os sexos) o objeto a ser interditado, po-
voando o mundo interno da criança de sentimentos ambivalentes às
figura parentais, tendo que lidar com sentimentos de amor e ódio; o
desejo de obter um dos objetos concomitante a desejos de destruição
do outro objeto.
Essa constatação, se universal, poder-nos-ia indicar alguns cami-
nhos quanto ao casamento Higienismo e Psicanálise. Os ideais higie-
nistas em si, ou melhor, enquanto força teórica, parece-nos que nunca
apresentaram-se como pensamento hegemônico, embora a sua ação
(higienista) fosse incorporada, até os dias de hoje, como indicadores
de saúde. No caso da saúde mental, parece-nos que o Higienismo traz
consigo a representação materna, percebida ainda como o ambiente
determinante da criança. Ora, no decorrer do desenvolvimento hu-
mano, a mãe é fonte de prazer e frustração para a criança; é percebida,
na sua representação mais arcaica, como único responsável por seus
desfortúnios e deleites. Essa concepção infantil de objeto parece ser
reforçado na orientação psicológica, indicando um permanente estado
de infantilidade, entendendo que o Higienismo visa promover condu-
tas adaptativas ao que é considerado fundamental para o desenvol-
vimento saudável, e que as orientações não devem ser contestadas, e
sim seguidas. Seria conveniente que esse vínculo mãe/criança não
fosse quebrado, pois o objetivo é uma adaptação ao sistema.
O estado de infantilidade seria proporcionado pelo reassegura-
mento do constante sentimento de culpa, suficiente para manter a
norma, mas não o suficiente para ocasionar, nos indivíduos, uma pa-

122
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

ralisação, principalmente ao trabalho e rendimento escolar que se


espera. Ou seja, a permanente culpa dos pais levaria estes tentarem
corrigir os seus atos constantemente, podendo, assim, estar impedidos
de serem percebidos como figuras seguras, passíveis de uma introje-
ção adequada, reforçando a conduta do ego (da criança e dos pais)
para uma maior independência, ou seja, a culpa imputada aos pais,
caso incorporada por eles, poderia levá-los a um sentimento de inse-
gurança em desempenhar a sua função.
Logo, a mãe, e por extensão, o pai, permaneceriam como eternos res-
ponsáveis, necessitando constantemente de orientações sobre como edu-
car seus filhos. Os pais, em si, perderiam a função de figuras
superegóicas, ou melhor, representariam de forma direta o superego que
se quer ter, isto é, veiculados pelo poder médico. Por outro lado, a Psica-
nálise daria o respaldo suficiente como saber científico, ou seja, a partir de
uma linguagem inacessível à população, que pudesse ser vulgarizada.
Proceder-se-ia a uma ‘psicanalização’ na população, dotando-a de alguns
conhecimentos que lhes dessem a impressão de partilhar de seu poder.
Por compreender os primeiros cinco anos de vida como deter-
minantes na formação da personalidade do indivíduo, a Psicanálise
abre uma brecha na legitimação do poder médico no núcleo familiar,
orientando, hoje, a partir do planejamento da gravidez. Entretanto, o
efeito da orientação sistemática parece não visar atingir uma matu-
ridade do casal, e sim (na melhor das boas intenções) impor a norma
à conduta. É nesse sentido que percebemos que a culpa mantida na
figura materna vai sendo manejável, como estratégia de dependên-
cia ao poder médico.
Não achamos que isso se dê de modo consciente e planejável. Da-
da a interferência de fatores subjetivos e ideológicos, a realidade é
percebida por um único prisma, muitas vezes adequado e necessário,
como veremos a seguir.

A ciência como fato e como representação

A visão estereotipada que temos de ciência caracteriza-se pela ex-


pressão quantitativa que determinado fenômeno pode ser representado,
isto é, seu caráter empírico e mensurável, traduzido dentro de uma equa-
ção estatística, que legitimaria a amostra e o instrumento utilizado. Em

123
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

última análise, ‘é ver para crer’. Uma análise mais crítica quanto aos re-
sultados apresentados, seja nas ciências naturais e mais explicitamente
nas ciências humanas, nos obrigaria a assumir uma outra postura, a de
‘crer para poder ver’. Não estamos nos referindo, aqui, aos pesquisadores
de determinada área que, comprometidos com o seu trabalho, detêm
conhecimento suficiente para poder conceber determinado fato como
plausível e razoável, ou mesmo como verdade consumada. Por exemplo,
conceber a água como composta por elementos químicos ligados entre si,
nomeados e estudados suficientemente, a ponto de não subsistir mais
dúvidas quanto a sua estrutura molecular. E mais, tal concepção parece
ter sido suficientemente veiculada, e não é necessário ser nenhum reno-
mado cientista para saber que a água é composta por duas moléculas de
hidrogênio e uma de oxigênio; muito pelo contrário, qualquer criança do
ensino fundamental poderia representá-la sem maiores dificuldades. No
entanto, como podemos, aprioristicamente, tomar um conhecimento
extremamente complexo como o exemplo acima, como sendo uma ver-
dade banal? Ora, é nesse ponto que podemos refletir sobre a força susten-
tada na crença sobre a ciência, que nos desautoriza o direito de dúvida.
Por outro lado, é difícil admitir que possa haver desenvolvimento, e che-
gar até onde chegamos, se cada indivíduo, por si só, tenha que descobrir
a fórmula da água.
Tal qual uma religião, a ciência necessita, para impor o fato como
verdadeiro, de um referencial simbólico, suficientemente forte e ade-
quado, passível de ser introjetado como elemento constituinte da sub-
jetividade do indivíduo. Os símbolos representados apresentam-se
como elementos poderosos, capazes de mediar a realidade por uma
representação, expressada, ainda que de maneira diferente, por uma
simbologia já conhecida.
O que estamos nos propondo, a partir desses comentários, é pro-
curar subsídios para entender como Psicanálise e Higienismo pude-
ram proporcionar um encontro histórico capaz de influenciar, até os
dias atuais, a conduta de muitos profissionais engajados direta ou
indiretamente na assistência à saúde mental.
O deslocamento do objeto de interesse, da alma para o corpo, foi
imprescindível para que a ciência pudesse se “libertar” do domínio do
pensamento religioso e doravante desenvolver livremente os seus
saberes, ou seja, a ciência parece ter reivindicado para si o direito de

124
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

apropriar-se legitimamente de demonstrar e entender o mundo natu-


ral. Entendimento esse que deveria ser vislumbrado longe do obscu-
rantismo baseado nos pensamentos místicos e míticos. O mundo
natural deveria dispor da clareza perceptiva, da observação, dos atri-
butos da consciência, no qual estaria localizada a razão humana, mo-
tivadora do conhecimento científico. Tal cenário de idéias e convicções
estaria refratário a quaisquer outras idéias que não se baseassem na
razão para conceber o homem. Sendo assim, podemos fazer uma idéia
do quão difícil foi para Freud introduzir suas descobertas, quando
afirmava que a consciência e a razão constituíam pequena parcela nos
determinantes da conduta humana; que os verdadeiros motivadores
encontrariam sua gênese em conteúdos inconscientes da mente, de
difícil acesso a essa mesma razão consciente. Poderia mesmo parecer
um retrocesso alguém preocupar-se com sonhos, chistes, esquecimen-
tos e discursos desconexos, ao mesmo tempo em que o mundo vis-
lumbrava a descoberta e conhecimento das bactérias e dos vírus como
causadores das graves enfermidades que padecia o corpo. Por outro
lado, que dizer das desordens mentais, dos casos de histerias, dos
suicídios, do alcoolismo, que respostas teria a ciência a esses males? E,
se não tinham nenhuma resposta para dar, até quando poderiam ne-
gá-lo como um dos determinantes da saúde da população? Nesse
sentido é que podemos pensar, pelo menos no campo da saúde men-
tal, que a hegemonia do saber científico via-se obrigada a fazer con-
cessões e, forçosamente admitir, também como saber científico, uma
construção teórica que procurava, opostamente, distanciar-se das ex-
plicações e respostas organicistas.
Mas, como dissemos, a ciência até então estaria disposta, simples-
mente a fazer concessões? Poderíamos dizer que, se não dispunham de
uma teoria suficientemente convincente e elucidativa quanto às mazelas
psíquicas que se apresentavam como problema à nova ordem, deveriam
apropriar-se desse novo conhecimento, minimizando as atitudes refratá-
rias a ele? Isso poderia se dar, adaptando-se a Psicanálise dentro de um
referencial simbólico mais próximo do modelo de ciência.
Nesse sentido, podemos entender como os higienistas, atuando
agora no campo da saúde mental, aproximam-se e mesmo adotam,
como um dos referenciais teóricos, a Psicanálise. Na obra de Arthur

125
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Ramos (1939) não constatamos preocupação do autor em mencionar,


ou melhor, em se aprofundar em conceitos, os quais, poderíamos di-
zer, extremamente controversos, como fantasias inconscientes, análise
dos sonhos, enfim, o que são e como alcançar os derivativos do in-
consciente. Percebemos por outro lado, que fixam-se em materiais
mais superficiais, que dão a impressão de que podemos encontrar a
origem e a causa do distúrbio psíquico em uma relação direta e obser-
vável, desde que feita por pessoa treinada, na educação dos pais para
com seus filhos e a determinação de seu ambiente social. Isto é, lia-se a
Psicanálise, mas, na prática, adotava-se uma conduta que fosse fiel à
aplicação como as ciências naturais. Mesmo assim, muitos psiquiatras
da época não viam com bons olhos o que os seus colegas faziam. Ri-
beiro (1999) cita episódios da perseguição daqueles que se aventura-
vam em procurar investigar a legitimidade da teoria psicanalítica em
pacientes internados nos manicômios da época.
No entanto, não podemos deixar de mencionar a coragem de Ar-
thur Ramos (1939) em criar, no Rio de Janeiro, uma clínica pública de
higiene mental, a qual se propunha a prestar atendimento aos pais de
crianças com distúrbios de conduta, em uma vertente com pressupos-
tos psicanalíticos, ainda que tais atendimentos referiam-se a orienta-
ções programadas a esses pais. É importante salientar, porém, que o
referido trabalho era realizado a crianças com problemas de conduta e
aprendizagem oriundos do meio escolar. De forma alguma tal proce-
dimento poderia ser estendido aos manicômios, onde de fato apresen-
tavam-se os ‘verdadeiros’ doentes mentais.
Retomando ao início deste nosso subtítulo, podemos dizer que o fato
que determinou a invenção da Psicanálise, qual seja a descoberta do in-
consciente, só poderia ser assimilado pela nova ordem científica de forma
paulatina, isto é, que pudesse, primeiro, atender uma necessidade de
representação. Essa representação deveria manter intacta a superioridade
das vontades conscientes centradas na razão e no corpo em detrimento
de conteúdos de uma mente inconsciente que se sobreporia à vontade da
razão, já que essa tornava-se o orgulho da nova ordem. Ora, o próprio
Freud admitia a pretensão da ciência em constituir-se como o modelo
adequado, enquanto expressão das representações humanas, entretanto,
parecia perceber o movimento ao contrário, ou seja, trazer à luz conteú-
dos dos quais quase nada sabíamos e dotá-los de significados racionais,

126
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

tarefa árdua, pois não poderia dar-se de maneira impositiva. Em um de


seus artigos, Conselhos aos jovens médicos, Freud já demonstrava preo-
cupação com a atuação de certos colegas, os quais, deparando-se com os
conceitos psicanalíticos, estabeleciam o que Freud chamava de Psicanáli-
se Selvagem, isto é, sem mediação simbólica, ou melhor, sem oferecer
oportunidade de representação adequada aos seus pacientes referentes
aos seus conflitos psíquicos, impunham-lhes umas verdades intragáveis,
e, a despeito de não produzir benefício algum, aumentavam-lhes ainda
mais as resistências, contribuindo mais ainda à aversão da Psicanálise
pela população.
No entanto, na clínica de higiene mental de Arthur Ramos, os de-
vidos cuidados eram tomados, os aspectos da sexualidade, tal qual
Freud as referiam, poderiam ser substituídas pelas teorias formuladas
posteriormente por Adler, com os conceitos de sentimento de inferio-
ridade e superioridade, menos incisivos e menos complicados; para
dizer bem a verdade, simplistas demais, como posteriormente o pró-
prio Adller os considerou. Enfim, parece que a Psicanálise, no Higie-
nismo, avançou até onde pôde, até não representar ameaça às
convicções da preponderância da razão sob outros aspectos que de-
nunciavam a existência de um constructo mental, submetida a um
substrato orgânico, mas diferenciada desse, em que a atuação do mé-
dico tradicional nada ou muito pouco poderia fazer. Não podemos
deixar de verificar, porém, que, mesmo assim, as portas foram abertas
à Psicanálise no Brasil, reconhecida como escola de um saber estrutu-
rado e legitimado, ainda que objeto de muitas críticas e interpretações.

A disseminação do saber

Até o momento, podemos ter dado ao leitor a impressão de es-


tarmos agindo como severos acusadores, colocando no banco dos réus
os higienistas, por terem deturpado a teoria psicanalítica. Entretanto,
nossa intenção é procurar entender uma das formas pela qual a Psica-
nálise entra no Brasil, por qual viés ela foi apresentada à sociedade
científica brasileira e por quais ideais ela se mostrou útil e utilizável.
Até mesmo Freud parece ter-se dado conta de que suas descober-
tas estavam além do método por ele apresentado, isto é, dentro de sua
ortodoxia, a Psicanálise impõe limites, enquanto circunscrita à sua

127
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

prática analítica. Ao perceber que o sofrimento mental que afligia os


indivíduos por ele analisados decorriam de situações conflituosas por
que passaram em suas infâncias, e que esses vinham carregados de
simbolismo erótico, essa descoberta abriu caminho para uma nova
visão de homem.
Não eram todos os higienistas que concordavam com a teoria psi-
canalítica, mas, possivelmente, aqueles que, identificados com ela,
trataram de incorporá-la e dela fazerem uso. O que estamos querendo
dizer é que, ao que tudo indica, como em qualquer lugar do mundo,
determinada teoria ganha adeptos, e estes procuram disseminá-la,
fazendo-o segundo o seu entendimento. Desta forma o Higienismo
era um movimento de idéias aberto e servia-se do que já reconheci-
damente a ciência apresentava como fatos.
Em todos os aspectos, a questão educacional era extremamente
importante e a prevenção deveria ocorrer desde cedo, isto é, deveria
dar-se uma atenção especial à infância. O foco, nessa fase da vida,
deveria encontrar respaldo em teorias que pudessem descrevê-la acer-
ca do seu desenvolvimento, a parte motora poderia respaldar-se em
Gesell, a cognitiva em Piaget, e as questões afetivas e emocionais eram
enfocadas pela Psicanálise. É nesse sentido que, de certa forma, mes-
mo equivocadamente entendida como atuação preventiva, os saberes
psicanalíticos influenciavam sobre a forma como se deveria tomar a
educação infantil.
Mesmo que o entendimento da teoria se fizesse em determinado
momento, e adaptá-la à prática a que se propunha; os fatos que ela
trazia não eram, pelos higienistas, negligenciados, a saber: a impor-
tância da sexualidade nos primeiros anos de vida, o determinismo
psíquico influenciado pelos conteúdos inconscientes, a influência de
uma educação severa e repressiva na produção de neuroses. O que
estamos querendo dizer é que a apropriação de determinado saber
constitui condição necessária ao desenvolvimento de qualquer socie-
dade; sendo assim, a utilização da Psicanálise não deveria ser prerro-
gativa apenas dos que dela se valiam como prática eminentemente
analítica. A tentativa de estendê-la aos diversos segmentos da socie-
dade é legítima, não se trata aqui, portanto, de estabelecer um julga-
mento daqueles que procuraram popularizá-la, mesmo porque tal
conhecimento, por direito, faz parte de nosso acervo cultural. A visão

128
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

de homem proposta pela Psicanálise não necessariamente deve se


manter “pura”, mesmo porque os que assim pensam não se dão conta
de seu contexto histórico, isto é, não é uma forma de pensamento está-
tico e imutável, muito pelo contrário, está apta e aberta a incursões
que auxiliem na resolução de demandas oriundas de necessidades
históricas, qual seja, a de assistência à saúde mental. Nem por isso
devemos deixar passar desapercebidas as contradições engendradas
nos encontros históricos, as quais colocam lado a lado as convicções que
não se sustentam, pelo menos a nosso entender, de adotar como medida
de prevenção à saúde mental, uma teoria que tem, em seu criador, total
descrença nesse intuito. O cuidado que devemos tomar é quando já mo-
dificamos suficientemente o método, e já não mais podemos descrevê-lo
como o tomamos, isto é, quando determinados higienistas utilizam-se da
Psicanálise com fins de orientação e aconselhamento, pressupomos estar
fazendo outra coisa, mas não Psicanálise.

Considerações finais

Realizando uma reflexão crítica acerca da influência do Higienis-


mo sobre a Psicanálise, entendemos que essa sofreu deturpações de
ordem prática e teórica, trazendo equívocos herdados até os dias atu-
ais, como a de reduzir a psicanálise a uma teoria de causa e efeito,
conformando, assim, de forma conveniente às idéias higienistas, sim-
plificando em demasia a complexidade dos fenômenos do ‘mundo’
psíquico.
Algumas das considerações por nós levantadas basearam-se em
uma leitura psicanalítica, como quando refletimos sobre as possí-
veis conseqüências em atribuir aos pais toda responsabilidade pela
conduta de seus filhos. Nesse aspecto, ressaltamos o contraponto,
ou seja, ao mesmo tempo em que os pais são chamados à responsa-
bilidade, lhes são negados os direitos de exercer sua legítima auto-
ridade, visto que passam a submeter-se a um determinado saber
que, muitas vezes, não faz parte de seu repertório de significações.
Não deixamos de notar a presença do caráter ideológico, que ao
nosso ver, sobressalta os fundamentos em que a psicanálise se alo-
ca, tanto no que se refere as questões teóricas quanto as questões
pertinentes a seus objetivos.

129
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Procuramos demonstrar que, a despeito dos ideais higienistas não


poderem ser submetidos pura e simplesmente a uma apreciação de
cunho ideológico, não podemos perder de vista que esses mesmos
ideais também não podem ser entendidos destacados de sua função
ideológica. Sendo assim, não seria nenhuma surpresa constatar que a
manutenção do poder do Estado estaria permeando a atuação higie-
nista.
Tentamos não desconsiderar os avanços do movimento higienista,
que ao nosso ver, consistiu em uma possibilidade de abertura de es-
paço às idéias emergentes como foi o caso da jovem psicanálise. No
entanto, atrelado ao fato de que o higienismo primasse por ações pre-
ventivas no campo da saúde mental, exigia também uma ação efetiva,
de cunho pedagógico, na educação infantil. Esse parece ser um ponto
fundamental e contraditório na articulação entre o Higienismo e a
Psicanálise.
Não reconhecemos, na Psicanálise, a possibilidade de considerar os
distúrbios mentais, de qualquer natureza, passíveis de sofrerem uma
atuação preventiva. Muito pelo contrário, Freud não parecia vislumbrar
que a saúde mental poderia estar de acordo com o processo civilizatório;
na realidade, ele dava a entender que a neurose em si poderia ser decor-
rência desse processo. E aí podemos estabelecer um paradoxo, pois, os
avanços tecnológicos, quando acessíveis á população, auxiliam no au-
mento da qualidade de vida de seus indivíduos. As inúmeras descobertas
científicas da atualidade podem elucidar muitos dos enigmas orgânicos,
minimizando o sofrimento do corpo. Entretanto, com relação à saúde
mental, não podemos dizer que avançamos na mesma proporção. E, se
ainda podemos reconhecer os avanços mensurados pela produção literá-
ria, não podemos constatar que tais produções obtiveram um resultado
direto e positivo junto à população. Em última instância, poderíamos
dizer que se por um lado, os mistérios do corpo humano vão sendo des-
velados, por outro lado, o seu substrato mental, responsável pela repre-
sentação desse corpo, amplia sua complexidade. A “simples” elucidação
de um mecanismo químico relacionado ao funcionamento mental do
indíviduo, por exemplo, ao invés de explicar por si só o fenômeno, parece
criar uma outra demanda, qual seja, a necessidade de se construir uma
representação mais adequada que complemente aquele conhecimento ou
descoberta.

130
- HIGIENISMO E PSICANÁLISE

Os avanços tecnológicos em determinada área, não pode caracte-


rizar-se como fator excludente de outro conhecimento poduzido. O
conhecimento acerca do funcionamento orgânico, necessariamente
não nega os conhecimentos desenvolvidos no que diz respeito ao fun-
cionamento mental. E, se não conseguimos até o momento estabelecer
a relação entre esses conhecimentos, é conseqüência de nosso limite
histórico, que não implica numa justificativa em pronunciar ou ratifi-
car o pensamento cartesiano com a dicotomia mente e corpo. Quanto
mais conhecimento em determinada área, mais aumentará a necessi-
dade de que uma outra área se desenvolva, para dar conta de uma
necessária complementariedade mútua. Esta interdependência parece
gerar uma contínua sensação de falta e angústia, ou por que não dizer,
uma frustração frente a um desejo permeado de fantasias onipotentes.
É o desejo cada vez mais distante de sua realização, seria esse o ônus e
a herança da humanidade. Freud preconizava que não existiria civili-
zação sem uma considerável renúncia, por parte do ser humano, de
satisfação e prazer. Que prevenção em saúde mental seria possível
nesses termos? Por outro lado, sabemos que pode ser extremamente
desconfortável e mesmo doloroso conceber a Psicanálise nesses ter-
mos, isto é, uma ciência que traz à luz contradições irremediáveis
dentro do nosso próprio sistema civilizatório. Pior ainda é quando
observamos que ciência, tecnologia e civilização são, em suma, uma
totalidade. Sendo assim, não seria de se estranhar que os higienistas,
dispostos a estabelecer o poder da ciência de forma contundente, esti-
vessem, por uma questão mesmo de formação, receptivos a entender a
Psicanálise em sua amplitude, pois teriam que renunciar o âmago de
suas crenças, qual seja: a imposição e aceitação incondicional de uma
verdade associada a um saber científico, desmerecendo a capacidade
do desenvolvimento do psiquismo humano, que é a produção das
múltiplas possibilidades de representação mental dos fenômenos.

Referências

FENICHEL, O. Teoria psicanalítica das neuroses. [s. l.], Atheneu, [ 1945].


NALLI, M. A. G. O gene educado: A antropologia eugênica de Renato Kehl e a
educação. 2000. 154 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Fundamentos da
Educação. Universidade Estadual de Maringá, Maringá.

131
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

RAMOS, A. A creança problema: a hygiene mental na escola primária. 3. ed. São


Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939.
RIBEIRO, P. R. M. Saúde mental no Brasil. São Paulo: Arte & Ciência, 1999.
SAGAWA, R. Y. Redescobrir as Psicanálises. 1. ed. São Paulo: Lemos Editorial.
1992.
TOGNOLLI, C. J. Cartas ao Brasil. Folha de S. Paulo. São Paulo. 5 jun. 1994.
ZIMERMAN. D. E. Vocabulário contemporâneo de Psicanálise. Porto Alegre:
Artes Médicas. 2001.
ROCHA, F. A doutrina de Freud. São Paulo: Nacional, 1930.

132
5

CONTRIBUIÇÃO DA
HIGIENE MENTAL PARA
O DESENVOLVIMENTO DA
PSICOLOGIA NO BRASIL
LUCIA CECILIA DA SILVA

Quando nos dedicamos a refletir sobre o desenvolvimento da Psi-


cologia no Brasil, quase sempre nos vêm à mente os três grandes ca-
minhos trilhados por ela para atingir seu estatuto de disciplina
autônoma. Um desses caminhos foi aberto pelo pensamento médico;
outro, pelo pensamento educacional, e, o terceiro, por aquele preocu-
pado em buscar procedimentos racionais para a implementação da
produção industrial. Pode-se inferir que esses três caminhos constituí-
ram-se nas matrizes nas quais foram forjados os conhecimentos das
três grandes áreas de atuação da Psicologia: a clínica, a educacional e
a organizacional.
Nossos estudos acerca da história da Psicologia no Brasil têm de-
monstrado, entretanto, que houve um momento no qual essas áreas
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

teórico-práticas estiveram intimamente relacionadas e compartilha-


vam entre si seus conhecimentos em torno de um projeto ideológico e
social comum a vários ramos científicos. Estamos nos referindo à Hi-
giene Mental, fruto de um movimento mais amplo – o Higienismo –
que se desenvolveu no Brasil durante o século XIX, tendo seu ápice
nas primeiras décadas do século XX.
Acreditamos que a higiene mental se constituiu em um amplo
campo de conhecimentos que, através de seus objetivos, estimulou o
desenvolvimento da Psicologia no Brasil. Para alcançar seus objeti-
vos de prevenção de toda ordem de distúrbios mentais, a Higiene
Mental se propôs a atuar em todos os aspectos da vida social e da
vida privada, requisitando conhecimentos de várias ciências, entre
as quais a Psiquiatria e a Psicologia nascente. Em sua ampla atuação,
a Psicologia foi carregada para as áreas da saúde, da educação e do
trabalho, além de ter seus conhecimentos requisitados em áreas ti-
das, hoje, como emergentes para a atuação do psicólogo, tais como a
jurídica e a esportiva.
Queremos, neste capítulo, explorar e contextualizar a Higiene
Mental enquanto área de saber, proposta de intervenção social e mani-
festação ideológica que contribuiu para a Psicologia se emancipar de
outros saberes e constituir-se como saber autônomo. Intentamos trazer
ao leitor alguns dados e dizeres que nos informam sobre o uso que o
Higienismo fez dos conhecimentos da Psicologia que estavam emer-
gindo no Brasil das primeiras décadas do século XX.
Assim como Pessoti (1988) e Antunes (1991), acreditamos que pa-
ra se desenvolver no Brasil, a psicologia encontrou meio fértil na Hi-
giene Mental. Com todo o desenvolvimento que estava ocorrendo na
sociedade e nas ciências de forma geral, o Higienismo foi um dos por-
tões de acesso que a Psicologia científica encontrou para fazer sua
história entre nós, porque necessitou-se, naquele momento, de conhe-
cimentos que explicassem os motivos pelos quais determinados indi-
víduos não conseguiam se adaptar à nova realidade. Buscava-se
entender os elementos da natureza de determinados segmentos soci-
ais que impediam a ascensão dos mesmos aos padrões de conduta e
atitudes exigidos pela modernização.
Em trabalho anterior (Silva; Mansanera, 2000), afirmamos com
Costa (1989) e Reis (1994) que a nova ordem de organização do modo

134
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

de produção capitalista desenhou uma feição à sociedade brasileira


que desagradava, em vários aspectos, aos intelectuais da época que
pretendiam uma nação moderna. Essa nova forma de expressão capi-
talista, qual seja, a sua internacionalização consumada pela fase impe-
rialista, vinha ancorada pelo vertiginoso desenvolvimento científico, o
qual, por sua vez, ia proporcionando o suporte da continuidade da
produção econômica e do livre comércio de mercadorias. O Brasil, não
obstante, estava ainda longe de tomar um lugar entre as nações pujan-
tes, pois ‘sequer o povo era digno’ de ser considerado portador das
características necessárias para o empreendimento.
O mundo estava vivendo, desde o final do século XIX, um grande
desenvolvimento das ciências naturais e das ciências exatas que per-
mitia, através das descobertas e inovações no campo da biologia, da
botânica, da física, da química, da geologia etc. , a criação de um clima
de euforia e de boas expectativas em relação ao futuro da humanida-
de. Essa época foi marcada por um extraordinário progresso tecnoló-
gico de repercussão imediata no campo econômico. Foi a era do aço e
da eletricidade, que se inaugurou junto com o início do aproveitamen-
to do petróleo como fonte de energia. Inovações como o avião, o sub-
marino, o cinema, o automóvel, bem como as rotativas e o linotipo
sucederam-se uma após outra. Tudo isso foi reflexo do avanço cientí-
fico marcado pelo advento das teorias quântica, atômica, da relativi-
dade, da radioatividade, além do progresso alcançado em outros
setores mais diretamente voltados à aplicação, como é o caso das on-
das hertzianas, das vitaminas, do bacilo de Koch, das vacinas de Pas-
teur etc. (Rodrigues, 1984).
“O Brasil não é agora somente um país agrário; já existem aqui
grandes indústrias como na Inglaterra” (Jornal do Commercio, 28.
05. 1908, apud Azevedo; Darós, 1988). Em nossas terras, o início do
século XX foi o alvorecer do desenvolvimento industrial com as tece-
lagens, as refinarias de açúcar, as cervejarias e as fundições. Em
1907, os trabalhadores industriais eram 150 mil; em 1920 já somavam
275 mil. São Paulo concentrava o maior número deles; depois, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Também observava-se o
acúmulo de pessoas em ocupações mal remuneradas ou sem ocupa-
ção fixa. Jornaleiros, domésticos e toda ordem de trabalhadores em
ocupações mal definidas viviam entre a legalidade e a ilegalidade.

135
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

No Rio de Janeiro, chegavam a mais de 100 mil pessoas em 1890 e a


mais de 200 mil em 1906:

Eram ladrões, prostitutas, desertores do Exército, da Marinha e dos


navios estrangeiros, ciganos, ambulantes, trapeiros, criados,
serventes de repartições públicas, ratoeiros, recebedores de bondes,
engraxates, carroceiros, floristas, bicheiros, jogadores, receptadores,
pivetes [...] tais pessoas eram as que mais compareciam nas
estatísticas criminais da época, especialmente as referentes às
contravenções do tipo desordem, vadiagem, embriaguez, jogo. Em
1890, estas contravenções eram responsáveis por 60% das prisões
de pessoas recolhidas à Casa de Detenção (Carvalho, 1987, p. 18).

Se de um lado havia o desenvolvimento e a euforia, por outro, es-


se mesmo desenvolvimento fomentava a deterioração das condições
de vida da maioria da população. As condições de higiene e sanea-
mento das cidades eram precárias, os cortiços, as favelas e os mocam-
bos se multiplicavam, assim como aumentava a aglomeração de
maltrapilhos nas ruas à espera de trabalho. Doenças infecciosas e sur-
tos epidêmicos dizimavam a população de imigrantes, tão necessária
à economia (Resende, 1987, p. 42).

Só vivem bem os “comerciantes fortes” e altos funcionários


públicos. No verão, os ricos fogem para longe. O presidente da
República e seus ministros vão para Petrópolis. E a jovem capital
da República Velha ficava entregue aos ratos, aos insetos e...aos
pobres (Azevedo; Darós, 1988, p. 125).

No Brasil dessa época, a abolição da escravatura, a proclamação


da república, a incipiente industrialização, a nova feição das cidades,
o aumento do comércio internacional, as correntes imigratórias e,
principalmente, a presença de contingentes populacionais “livres”
concentrados no espaço urbano deu nova complexidade à estrutura
social do país. A adoção do modelo governamental republicano e a
geração das condições para o processo de industrialização em conse-
qüência do pleno desenvolvimento da economia agro-comercial-
exportadora, favoreceu o incremento da urbanização. Nesse momen-
to, assistiu-se a uma intensificação do ideário liberal entre os intelec-
tuais brasileiros que se preocupavam notadamente com a questão

136
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

nacional e a busca de alternativas para o progresso e a modernidade


(Antunes, 1991).
Também nessa época assistimos a uma crescente organização da
classe operária, principalmente dos trabalhadores industriais, em sin-
dicatos e associações, ao mesmo tempo em que acontece a difusão dos
ideais anarquistas, anarco-sindicalistas e socialistas, fomentando a
ocorrência de greves. As péssimas condições de trabalho, com jorna-
das de até 16 horas nas fábricas, os baixos salários, as péssimas condi-
ções de vida, os preços das mercadorias subindo dia a dia e a
repressão da polícia e dos patrões levaram a classe operária a fundar,
de 1900 a 1920, cerca de 100 uniões operárias, 40 sindicatos, 4 alianças
operárias, 59 ligas operárias e 40 associações e sociedades operárias.
Também nesse período, registraram-se mais de 350 greves: de cochei-
ros dos bondes puxados por animais, de ferroviários, de portuários,
de funcionários públicos, de tecelões, de padeiros, de marinheiros, de
estivadores etc. . As reivindicações principais giravam em torno do
aumento de salário, da proibição para o trabalho de menores de 14
anos, da abolição do trabalho noturno de mulheres e menores de 18
anos, da redução da jornada de trabalho para 8 horas, do respeito ao
direito de associação, do congelamento dos preços dos alimentos e da
redução no preço dos aluguéis (Azevedo; Darós, 1988, p. 130).
Era, pois, segundo a classe dirigente, necessário pôr ordem no
caos. O país não poderia progredir se fosse deixado a sua própria
sorte. Conhecimentos científicos foram buscados, no sentido de con-
tribuírem com soluções para os problemas. Áreas relacionadas à saú-
de, à educação e à organização do trabalho foram priorizadas. Abriu-
se campo para a proliferação de tecnologias e para o trabalho de espe-
cialistas que investigavam sobre a saúde dos imigrantes, a situação
sanitária dos portos, o dia a dia das cidades, a higiene infantil, os hábi-
tos e costumes populares, a eugenia ou “ideal de branqueamento” do
povo brasileiro, o trabalho fabril, o mundo do crime etc. Segundo
Costa (s.d.), prova das idéias disciplinadoras veiculadas pelo Higie-
nismo foi o regulamento sanitário de 1923, que criou o Departamento
Nacional de Saúde, contemplando a educação sanitária da população,
prevendo a divulgação da higiene pessoal e pública; a inspeção médi-
ca de imigrantes e de outros passageiros que se destinassem ao país; o
controle e o confinamento sanitário de leprosos, tuberculosos, doentes

137
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

mentais e portadores de doenças venéreas; o problema da habitação


popular; e os cuidados com os problemas da saúde infantil (puericul-
tura), o trabalho da criança e da mulher gestante.
Filha da medicina social, a Higiene, de maneira geral, entendia
que a desorganização social e o mau funcionamento da sociedade
eram as causas das doenças, cabendo à Medicina refletir e atuar sobre
seus componentes naturais, urbanísticos e institucionais, visando neu-
tralizar todo perigo possível. Dessa maneira, o Higienismo revestia-se
de ciência social integrando a Medicina, a Psicologia, a Estatística, a
Geografia, a Demografia, a Topografia. Tornou-se instrumento de
planejamento urbano; transformou o hospital em ‘máquina de curar’;
criou o hospício como enclausuramento disciplinar do doente mental;
inaugurou a hegemonia da clínica, condenando formas alternativas de
cura; ofereceu um modelo de transformação à prisão e de formação à
escola. Iniciou, enfim, a trabalhosa conquista profissional e da técnica,
rotulando as eventuais resistências e os saberes alternativos de ceguei-
ra política, ignorância do povo, má-fé dos charlatães (Costa, [19--]). E,
dentro do movimento higienista, encontramos a Higiene Mental, des-
cortinando novos enfoques no trabalho com os doentes mentais e
estendendo trabalhos preventivos aos indivíduos considerados nor-
mais, mas com propensões a algum desvio ou vício.
De início, a Higiene Mental apresentou-se como um movimento
que duvidava do tratamento dispensado, até então, aos doentes men-
tais. O atendimento asilar estava sendo questionado na Europa e nos
Estados Unidos. Combatiam-se os hospícios superlotados, os inter-
namentos intermináveis, os tratamentos infrutíferos. Buscavam-se
alternativas para a medicina mental, pois o cotidiano mostrava que a
sociedade progredia rapidamente, mas trazia consigo a loucura e a
degeneração segundo alguns, ou, pelo contrário, não progredia con-
forme os parâmetros burgueses das grandes nações devido à presença
de massas de desequilibrados e degenerados.
No I Congresso Médico Paulista de 1916, o psiquiatra Ernani Lo-
pes assim se pronunciou:

Quem lance um olhar sobre o desenvolvimento da pshychiatria nos


últimos tempos reconhecerá que essa sciencia já não ocupa em
exclusivo com o tratamento dos alienados durante a sua internação.
Cada vez mais se verifica a necessidade que há da intervenção do

138
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

psychiatra em numerosos casos da vida social. Si nos dedicassemos a


fazer o estudo da mentalidade dos individuos socialmente
desclassificados, encontrariamos as mais das vezes as causas de não
exito em perturbações bem caracterizadas do dominio psychico. Na
Alemanha, sobrettudo, encontramos demonstrações diversas de que
scientistas e homens administradores já compreenderam o alcance
desse sério problema. Assim, é qui em várias sociedades de
beneficiência e de assistência às classes pobres, discute-se com
frequencia, sob o ponto de vista psychiatrico, varias questões que
outrora eram vistas apenas sob um criterio estritamente moralistico.
(Trabalhos..., 1925b, p. 155-156).

O aspecto preventivo começava a ser valorizado. Tratava de a


Medicina Mental não atuar somente na demanda com distúrbios mais
sérios destinadas ao internamento. Era caso de aplicar os conhecimen-
tos científicos na prevenção das perturbações, atuando junto a popu-
lações nas quais a prevenção poderia trazer benefícios não só
individuais, mas também coletivos.
Podemos considerar que o movimento do Higienismo Mental,
com essa denominação, organizou-se a partir do início do século XX
nos Estados Unidos. A publicação da autobiografia de Clifford Beers,
A mind that found itself, em 1908, se tornou célebre e conseguiu desper-
tar a atenção dos neuro-psiquiatras daquele país. Beers, um culto nor-
te-americano de ascendência ilustre, viu-se acometido de uma psicose
que o fez internado em vários hospitais e casas de saúde por um perí-
odo de três anos. Ao regressar ao convívio social, Beers empenhou-se
na organização de uma cruzada a favor dos insanos (Caldas, 1930).
A mind that found itself é o relato da peregrinação vivida pelo autor
através do mundo da psicose e das casas de loucos. Segundo Afrânio
Peixoto, a viagem de Beers compara-se a duas outras: uma, a viagem
imaginária aos infernos da alma empreendida por Dante; a outra, de
Dostoievski, uma viagem à “casa dos mortos”, dos segregados da
sociedade. O livro é um “libelo contra os processos de tratamento aos
alienados, contra o emprego da força e da contensão, contra a incrível
enfermagem da ‘camisa de força’e da prisão em páteos agitados”
(Ramos, 1941, p. 13).
Considerado o “Pinel da América”, Beers combatia o preconceito que
a sociedade fazia desabar sobre o doente mental, mesmo quando este se
libertava de sua doença. Conseguiu que um grupo de psicólogos e psi-

139
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

quiatras, entre eles William James, que prefaciou seu livro, e Adolf Me-
yer, se interessassem pela idéia de que era necessária uma mudança na
maneira de se olhar o doente mental e de que era urgente uma assistência
que primasse pela prevenção das doenças mentais.

O plano era grandioso. Da reforma da assistência hospitalar à cura,


da cura à prevenção das doenças mentais. Em vez de hospícios-
depósitos, “hospitais psiquiátricos” de cura, dispensários mentais de
prevenção. E acima de tudo isso: a mudança de atitude mental em
relação aos loucos. O alienado não é um endemoniado, um pecador,
um ser estranho à sociedade, um “não valor”, mas um ser humano
que precisa de compreensão e carinho (Ramos, 1941, p. 14-15).

A essa campanha, Adolf Meyer, que era diretor do Instituto Psi-


quiátrico de Nova Iorque, designou a expressão “higiene mental”. Em
maio de 1908 foi fundada a Sociedade de Higiene Mental de Connecti-
cut e, em 1909, o Comitê Nacional de Higiene Mental em Nova Iorque
por meio do qual foram criados os chamados serviços abertos, os am-
bulatórios psiquiátricos e os serviços sociais. Seguindo a abordagem
preventiva, em 1918 foi criada, em Boston, a primeira clínica de hábi-
tos, com a finalidade de reeducação e formação de hábitos sadios nas
crianças. Nesse mesmo ano, foi criado o Comitê Nacional Canadense
de Higiene Mental, em Otawa.
Em 1920, através dos esforços de Toulouse, fundou-se em Paris a
Liga Francesa de Higiene e Profilaxia Mental, composta de comissões
de estudos sobre as doenças gerais e perturbações mentais, o alcoo-
lismo, a criança anormal, o trabalho profissional, os anti-sociais, os
dispensários e serviços abertos, assistência e legislação, o ensino psi-
quiátrico, organização e propaganda do movimento, pesquisas cientí-
ficas e produção literária e artística.
Nessa mesma linha de trabalho, em 1922 surgiram a Liga Belga de
Higiene Mental e o Conselho Nacional Britânico de Higiene Mental
seguidas, nos anos posteriores, pela Liga Italiana de Higiene e Profila-
xia Mental, pela Liga Alemã de Higiene Psíquica, pelo Comitê da Rús-
sia e pela Liga Espanhola.
Quanto aos países latino-americanos, o Brasil saiu na vanguarda
do movimento, criando, em 1923, no Rio de Janeiro, a Liga Brasileira
de Higiene Mental. Em 1924, o Peru criou a sua Liga Nacional de Hi-

140
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

giene Mental e em 1929 fundaram-se as Ligas Cubana e Argentina. O


movimento estendeu-se também para o Japão, Austrália e Índia e, em
1930, ocorreu o I Congresso Internacional de Higiene Mental, realiza-
do em Washington (Caldas, 1930). Outros comitês nacionais e organi-
zações de higiene mental foram fundados na África do Sul, na Suíça,
na Hungria, Nova Zelândia, Bulgária, Dinamarca, Suécia, Noruega,
Grécia e na antiga Tchecoslováquia (Ramos, 1941).
Como podemos observar, a quantidade de instituições organiza-
das dispersas em vários países demonstra que as teses do higienismo
mental ganharam o mundo. No prefácio de seu opúsculo Saúde do
Espírito, Artur Ramos afirma que a higiene mental não se destinou
apenas a melhorar a assistência ao doente da mente e a apresentar
técnicas de prevenção das doenças mentais. Foi uma especialidade
cujo campo de ação, muito vasto, visou, sobretudo, os sãos de espírito.

Ensinando-os a viver em sociedade, evitando e corrigindo os


conflitos e desajustamentos psíquicos, que podem ou não conduzir
à neurose, à psicose ou ao crime, mas que de qualquer maneira
produzem um déficit no rendimento humano (Ramos, 1941, p. 7).

O autor sintetiza, observando que a higiene mental “é uma técnica


de ajustamento da personalidade humana desviada das suas finalida-
des sociais, e que procura adquirir ou recuperar o equilíbrio e a tran-
qüilidade” (Ramos, 1941, p. 7). Afirma, ainda que, se no início do
movimento o objetivo imediato da higiene mental era a prevenção das
doenças mentais, tal objetivo foi amadurecendo, no sentido de ajustar
o indivíduo aos seus círculos de vida. Sendo seu campo de atuação tão
amplo, a Higiene Mental constituiu-se em uma atividade ‘intersticial’,
que se interpõe com várias outras ciências, entre as quais a Psicologia
do normal e do patológico, a Psicologia Social, a Sociologia e a Crimi-
nologia, pois, sob sua ótica:

Examina a criança em todas as idades: o lactente, o pré-escolar, o


escolar. Indaga das causas dos desajustamentos familiares, as
discórdias domésticas, o problema da incompatibilidade
matrimonial. Entra no estudo do trabalho humano, dando normas
para a orientação vocacional, para a adaptação do homem à sua
profissão. Resolve os problemas do sexo. Funda clínicas de hábito
e direção da infância e centros de conselhos aos pais. Penetra em

141
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

todas as atividades da comunidade, prevenindo e resolvendo


conflitos, zelando pela saúde psíquica da personalidade humana
(Ramos, 1941, p. 22-23).

É interessante notar que Ramos, embora não esquecendo a impor-


tância da figura de Cliford Beers para a higiene mental, enfatiza que a
mesma foi “conseqüência lógica de um período conturbado de angús-
tias e incertezas”. Nesse contexto, ele salienta o papel da máquina
nesse mal-estar do homem. Sendo ele um dos nossos pioneiros em
Psicanálise, atribuía às condições de vida da época papel importante
nas causas do mal estar sentido pelos homens. Concebia que a máqui-
na estava aniquilando o homem. Essa formava seres humanos auto-
máticos e estereotipados, “como Chaplin nos mostrou no seu filme
‘Os tempos modernos’”, dizia. A personalidade humana estaria en-
contrando enormes dificuldades para se adaptar à civilização que o
próprio homem criou (Ramos, 1941, p. 17-18).
Argumentava ainda que os conflitos individuais advindos do es-
forço de adaptação à civilização passaram a ser conflitos coletivos; daí
a generalização dos desajustamentos familiares e sociais. E seria jus-
tamente nesses aspectos que a higiene mental poderia muito contribu-
ir com a sociedade: impedir que tais desajustamentos chegassem às
raias da loucura pois, “crivado de sorte de solicitações, o cérebro hu-
mano torna-se como um arco retesado, vibrando às menores influên-
cias do ambiente” (Ramos, 1941, p. 18).
De outro modo, Pacheco e Silva (1928, p. 61) em seu artigo Hygiene
do Espirito, parafraseando Toulouse, afirmava que:

toda civilisação repousa sobre o cérebro e na organisação atual, de


grande e rapido progresso, torna-se cada vez mais difficil a
adaptação do individuo ao meio, o que faz a hygiene mental tão
importante quanto a hygiene physica.

E enfatizando a importância do caráter preventivo da higiene mental


propunha que a mesma deveria ter por objetivo não só regularizar e for-
talecer as funções afetivas, intelectuais e morais dos indivíduo, mas tam-
bém combater as causas determinantes das perturbações psíquicas.
Parece-nos correto afirmar que esses intelectuais percebiam as conse-
qüências nefastas das condições sociais, econômicas e políticas de uma

142
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

época e entendiam a higiene mental como uma tentativa de colaborar na


resolução dos problemas advindos de uma sociedade em mudanças, que
provocava ansiedades, inseguranças e revolta em seus indivíduos, nota-
damente nos mais pobres. Por outro lado, esse mesmo movimento higie-
nista entendia que fatores intrínsecos aos indivíduos, tais como as
características constitucionais de ordem física e psíquica determinadas
pela herança genética, estariam contribuindo na formação de uma socie-
dade não tão desenvolvida como esperava as classes dirigentes do país, e
feita, sobretudo, com gente portadora de qualidades consideradas ‘inferi-
ores’. Nesse sentido, a higiene mental também toma para si a responsabi-
lidade de interferir nessas condições para que os brasileiros fossem
talhados segundo as necessidades do processo de desenvolvimento em
ação. E, para isso, precisavam lançar mão dos inovadores conhecimentos
científicos que lhes valessem o propósito, entre os quais, os conhecimen-
tos da Psicologia e os da Genética, pilares da Eugenia.
Em 1923, no I Congresso Brasileiro de Higiene, os principais arti-
culadores do movimento higienista se incubiram de higienizar a cole-
tividade. Consideraram suas as atribuições de criar hábitos sadios na
população, de combater as "taras sociais" e de realizar as grandes aspi-
rações sanitárias: a robustez do indivíduo e a virtude da raça. Segun-
do a concepção destes higienistas, não era possível fazer uma grande
nação com uma raça inferior, oriunda da mestiçagem, como eram os
brasileiros. Nesta questão, o Higienismo se fundamentava na Eugenia,
sobretudo a partir de 1928. Partia-se da idéia segundo a qual o Brasil
estava sacudido por revoltas sociais e crises econômicas por causa da
constituição étnica do povo e do clima tropical. De acordo com essa
corrente de pensamento, tais fatores fizeram o povo brasileiro pregui-
çoso, ocioso, indisciplinado e pouco inteligente. E era impensável que
uma nação constituída por um povo com esses adjetivos pudesse se
igualar às nações desenvolvidas. Estava aí uma explicação científica
para o atraso e a desordem presentes no país. Infelizmente, diziam
esses intelectuais, nada há a fazer em relação ao clima, mas a questão
racial ainda podia ser resolvida (Costa, [19--]).
O eugenismo influenciou decisivamente os rumos tomados pelas
práticas de higiene e educação sanitária até meados dos anos 40, do
século passado. Para os higienistas sociais, interessava a possibilidade
apontada pelo eugenismo de utilização de todos os conhecimentos no

143
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

sentido de melhorar física, mental e racialmente as futuras gerações


brasileiras. Acreditavam que a solução para as misérias da sociedade
estava no domínio da seleção natural e, mais ainda, acreditavam que
as causas das misérias sociais estavam no fato de o homem não tomar
sob suas rédeas o controle científico daquilo que é feito pela natureza.
Concebiam, como Renato Kehl (1932), que havia excesso de gente no
planeta e esse excesso era constituído por gente de baixa categoria
física, psíquica e intelectual, que comia e não produzia, e que, sem
trabalhar, agitava-se nocivamente, perturbando o equilíbrio social.
Entendiam ser isso conseqüência da civilização, a qual permitiu a
anulação dos preceitos básicos que garantiam a vitória dos melhores
impedindo o acúmulo de incapazes e de nocivos à coletividade.
Uma das mais representativas criações do corpo profissional higi-
ênico em torno da ideologia eugênica foi a Liga Brasileira de Hygiene
Mental (LBHM). Fundada por Gustavo Riedel, teve como objetivo a
elaboração de programas de higiene mental baseados na noção de
prevenção eugênica. Riedel exaltava o papel das Ligas de Higiene
Mental na lapidação do homem ideal.

Hygienistas, eugenistas, educadores e psychiatras preocuppados


com a obra da mentalidade dos continentes, irão realizar todos [os
interesses da humanidade, tomados como prioritários para a
higiene mental] atravéz das Ligas de Hygiene mental, a mais bella
obra de prophylaxia, procurando conservar ao homem suas
qualidades superiores de espirito e coração (Riedel, 1930, p. 197).

Segundo seus estatutos, publicados nos Archivos Brasileiros de Hy-


giene Mental (Editorial, 1925a), a LBHM foi reconhecida com os se-
guintes fins: a) prevenção das doenças nervosas e mentais pela
observância dos princípios da higiene geral e, em especial, do sistema
nervoso; b) proteção e amparo no meio social aos egressos dos mani-
cômios e aos deficientes mentais passíveis de internação; c) melhoria
progressiva nos meios de assistir e tratar os doentes nervosos e men-
tais em asilos públicos, particulares ou fora deles; d) realização de um
programa de higiene mental e de eugenética no domínio das ativida-
des individuais, escolares, profissionais e sociais.
Chamados a explicar e também a contribuir com a derrocada dos
fatores que impediam o desenvolvimento dos indivíduos e da nação,

144
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

os conhecimentos da psicologia foram colocados em lugar de desta-


que. Os higienistas afirmavam que a Psicologia estava para a higiene
mental assim como a Fisiologia estava para a saúde física.

O problema da hygiene mental considera os dois elementos que se


relacionam: a estrutura psychica do individuo, não raramente
deficiente e imperfeita, dependendo em grande parte da
hereditariedade; o meio physico e social, creando, às vezes condições
adversas, que podem perturbar e, em gráo extremo, até esmagar as
mentalidades mais firmementes equilibradas. A base scientifica da
hygiene mental é a psychologia, da mesma fórma que a physiologia é
o fundamento da saude physica, convindo sempre lembrar a
interdependencia das duas espheras de actividade e as reacções de
uma sobre a outra (Fontenelle, 1925, p. 2).

E indubitavelmente, si existem methodos de realizar hygiene mental,


que em nosso meio necessitem de estimulo e de incentivos para seu
aperfeiçoamento, não são elles por certo, os methodos psychiatricos,
que os numerosos e proficientes especialistas nacionaes poderão
applicar em qualquer momento, tendo recursos materiaes para o fazer
– senão methodos psychologicos propriamente ditos, e destes,
sobretudo, os psycho-experimentaes, quantitativos e qualitativos, na
judiciosa classificação de Claparède. São essas techinicas que, mais do
que quaesquer outras, permittirão ao especialista a justa avaliação das
mentalidades normaes, trabalho previo imprescindivel a uma serie de
applicações especifica da hygiene mental, em sentido estricto, quer
dizer concernente aos individuos sãos de espirito: orientação
profissional, selecção psychologica dos escolares, saúde mental dos
operários etc (Editorial, 1930b, p. 311).

A Psicologia é instada a avaliar as atividades mentais, seja através de


testes psicológicos, seja pela observação clínica, para que a programação
higiênica adequada ao caso fosse recomendada. Antunes (1991) afirma
que foi nesse contexto, lidando com as problemáticas priorizadas pela
higiene mental, que ocorreram importantes realizações na história da
psicologia no Brasil. Massimi (1990) também afirma que as atividades da
LBHM, como os laboratórios, os seminários e as jornadas de psicologia,
tiveram enorme influência no desenvolvimento da psicologia científica
no Brasil. A psicologia teceu, nesse âmbito, importantes produções que
contribuíram, por um lado, para o seu delineamento como disciplina

145
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

específica de saber, diferenciando-se de outros ramos do conhecimento


(como a Psiquiatria, por exemplo) e, por outro, como aplicação das idéias
e práticas já concebidas como científicas na Europa e nos Estados Unidos.
Antunes ainda observa que a isso se soma o fato de que muitos dos higi-
enistas, originalmente médicos, educadores, juristas ou engenheiros, ao
dedicarem-se aos temas psicológicos, acabaram por dedicar-se exclusi-
vamente à Psicologia, tornando-se os primeiros psicólogos brasileiros. A
estes ainda se acrescentariam vários psicólogos estrangeiros que para cá
vieram para ministrar cursos, proferir conferências ou prestar assistência
especializada, dos quais muitos aqui permaneceram e se radicaram defi-
nitivamente no país, tais como Antipoff e Radecka (Antunes, 1991).
O fato é que os preceitos preconizados pelo higienismo mental i-
miscuíram-se em variados aspectos institucionais da sociedade, inclu-
sive, estando presente na Constituição de 1934, cujo artigo 38
incumbia a União, estados e municípios a estimular a educação eugê-
nica e a cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos
sociais (Brasil, 1986). Isso nos faz supor que a prática social da época
estava impregnada por essas idéias que adentravam todas as esferas
da vida cotidiana, tais como a saúde, a educação, o trabalho, a família,
o esporte. Aliás, as Ligas de Higiene Mental dirigiam às variadas insti-
tuições e aos mais variados grupos sociais toda sorte de esforços, com
a finalidade de divulgar suas propostas. Podemos citar como exemplo
a proposta de ‘programa de propaganda’ da Liga Paulista de Hygiene
Mental: 1) educação dos estudantes de medicina e dos médicos atra-
vés de conferências e a inclusão de pontos de higiene mental nas ca-
deiras de Psiquiatria e Higiene; 2) educação dos professores através
da inclusão de temas da higiene mental nos programas das Escolas
Normais, de curso especial de Higiene Mental para professores pri-
mários e secundários da elaboração de um manual de Higiene Mental
ao alcance dos leigos; 3) educação das crianças nas escolas primárias
(pelos professores); 4) educação do público em geral através de confe-
rências, pela imprensa diária por meio de artigos redigidos pelos
membros da Liga e por intermédio dos ambulatórios de Higiene Men-
tal; 5) Difusão da Higiene Mental em todo o Estado através de viagens
de membros da Liga e pela nomeação de delegados regionais; e 6)
Ação nos meios filantrópicos e governamentais a fim de se obter re-

146
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

cursos financeiros para o custeio de viagens de propaganda e para a


impressão de manuais, brochuras, etc. (Guerner, 1928a).
Temos então um amplo campo, no qual a psicologia podia disse-
minar e produzir conhecimentos. Um deles, a escola, se constituiu em
uma instituição estratégica para a divulgação e a prática da Higiene
Mental, além de ser tida como local de ensino desses conhecimentos.
Lá estavam as crianças, objeto por excelência do higienismo pois, no
dizer de Erasmo Braga (1930, p. 275) “as gerações velhas são difficil
campo de propaganda para as ideas novas”. Além do mais, acredita-
va-se que a atuação preventiva junto às crianças significava doentes
mentais a menos no futuro. A escola e a educação deveriam estar ori-
entadas para defender a sociedade das patologias, da pobreza e do
vício que se alastravam pelo país.
Afirmavam os higienistas ser a escola o local onde se encontra to-
do o tipo de anormalidade, tais como os ‘alunos problemáticos’, os
‘alunos lerdinhos’ e os ‘alunos com dificuldade de aprendizagem’,
todos com grande potencial de se tornar empecilhos ao desenvolvi-
mento do patrimônio humano e social da nação. Muitos outros pro-
blemas apresentavam-se na escola, emendava Ramos (1941).
Encontravam-se os casos de preguiça e desatenção, de gagueira, de
problemas de comportamento sexual, de tiques, de furtos e outras
‘pré-delinqüências’. Muitas vezes, argumentava o autor, esses pro-
blemas, que podiam parecer mínimos na infância, poderiam se tornar
graves distúrbios na vida adulta. Os higienistas pretendiam desenvol-
ver na escola alunos saudáveis, amáveis e conscientes do seu dever
para com uma sociedade ordeira, equilibrada e harmoniosa.
Difundiu-se a idéia de que o sistema educacional deveria aplicar
os conhecimentos da Psicologia no tocante à mensuração e verifica-
ção da capacidade mental do aluno, não somente para que este pu-
desse ser melhor atendido e tivesse melhorado o seu rendimento
escolar, mas também que nele fosse detectado precocemente fatores
predisponentes à doença mental. O teste mais relevante naquele
momento era o Binet-Terman, que media o nível de inteligência do
aluno. Os testes eram importantes para criar uma escala de nível
mental que auxiliaria na seleção dos alunos de diversas idades, com
o objetivo de formar classes homogêneas do ponto de vista intelec-

147
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

tual, pois não seria possível submeter ao mesmo plano de aula alu-
nos de capacidade mental diversa.
Estava também a Psicologia acercando-se do processo de desen-
volvimento psíquico, da aprendizagem, das motivações. Como os
higienistas julgavam que o progresso e a riqueza de uma nação de-
pendiam do equilíbrio mental de seu povo, questionavam se valiam
os esforços se esses fossem despendidos somente na alfabetização de
uma grande massa de débeis mentais e desequilibrados.

A noção moderna de que os processos didacticos não se limitam


apenas a transmitir informações, porém, visam formar individuo
para viver e construir caracter, põe em relevo a funcção social da
escola, muito mais que outr’ora quando se concebia a educação
dissociada da instrucção. A escola hodierna vae perdendo o
aspecto encyclopedico, para especializar-se na formação do
individuo primariamente capaz de viver, e então, capaz de servir,
mediante a sua vocação.
A escola cumpre assim formar o homem, desenvolver-lhe a
individualidade e integral-o na sua profissão universal (Braga,
1930, p. 271).

Criou-se a expectativa e o projeto de que o processo educativo


formasse bons hábitos, corrigisse os defeitos e criasse no indivíduo a
cultura do bem viver, além do objetivo precípuo da transmissão de
conhecimentos. E para que um programa de educação assim proposto
atingisse esses fins, os educadores foram iniciados na ciência da Psico-
logia. Eram oferecidos cursos de Psicologia para aperfeiçoamento de
professoras primárias, nos quais estas obtinham noções de Psicologia
experimental e de Psicologia da criança. Pesquisas de campo eram
feitas com os alunos das escolas primárias para se conhecer as ‘condi-
ções psíquicas’ das classes dentro de uma escola. Terminando o curso,
as professoras recebiam a denominação de ‘pedagogas-especialistas’.
Os higienistas buscavam os conhecimentos e práticas que estavam
sendo desenvolvidos tanto na Educação como na Psicologia para refe-
rendar seus propósitos, mesmos que tais conhecimentos e práticas não
tivessem o objetivo precípuo de “higienizar” a população no sentido
requerido pelos higienistas. Esse era, por exemplo, o caso da Escola de
Aperfeiçoamento de Belo Horizonte, inaugurada em 1929. Nessa esco-

148
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

la, atuou Helena Antipoff (1930, p. 227), que assim descreveu os cur-
sos lá desenvolvidos em um artigo publicado pelos Archivos Brasileiros
de Hygiene Mental:

Cumpre logo, dizer, que o nosso estudo de psychologia é


essencialmente prático. De theoria, apenas uma introdução
necessária aos trabalhos práticos e ás pesquisas pessoaes, em
materia de psychologia applicada á educação. No correr do
primeiro ano são ellas iniciadas nos methodos psychologicos; já no
segundo predominam as pesquisas. Dispondo-se de um laboratório
com os apparelhos classicos de psychologia experimental, o ensino
theorico é systematicamente acompanhado de demonstrações
concretas. Aliás, os apparelhos, são constantemente utilizados pelas
alumnas, já em exercicios praticos, já em modestas tentativas de
verificação de tal ou qual lei, de tal ou qual resultado de
investigação, ventilado durante as aulas.

Sob a orientação de Antipoff, foram produzidas no mencionado


laboratório, variadas pesquisas que abarcaram uma ampla variedade
de temas, tais como inteligência, memória, aprendizagem e testemu-
nho, motricidade e fadiga, julgamento moral e social, relações entre
produção escolar e meio social das crianças, relações entre vocabulário
e fadiga, homogeneização de classes escolares, além de validação de
testes de inteligência e aptidão e elaboração de testes originais para
medir funções psicológicas e verificar o rendimento escolar. As pes-
quisas de Antipoff investigavam a influência do meio no desenvolvi-
mento da inteligência e outros aspectos do desenvolvimento
cognitivo, lançando nova luz sobre a relação entre fenômenos psicoló-
gicos e a realidade social brasileira, sendo ainda bastante atuais.
Para ilustrar a relevância de acompanhar as crianças em seu de-
senvolvimento não as deixando à mercê das disposições hereditárias,
Mirandolino Caldas (1932) citava o clássico experimento de Watson, o
fundador da psicologia comportamental, com um grupo de recém-
nascidos que, subtraídos aos estímulos do meio durante certo tempo,
se mostraram defasados em seu desenvolvimento mental. Segundo
Caldas (1932), a educação constituía-se em um dos mais poderosos
transformadores do físico e do psíquico, pois servia para moderar as
predisposições negativas, criar novas atitudes, tornar o homem mais
adaptável ao ambiente.

149
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Os higienistas mentais começavam a dispor de teorias que a-


firmavam a influência do meio familiar e ambiental nas caracterís-
ticas da personalidade do homem adulto. A infância, afirmavam,
era a fase ideal para se instalar hábitos sadios no psiquismo da
criança, evitando, assim, o surgimento de personalidades desequi-
libradas.
Se nessa tarefa os pais não obtivessem êxito, e se os pais e, princi-
palmente, as mães, não soubessem educar seus filhos, estes deveriam
ser encaminhados às clínicas de hábitos ou clínicas psicológicas para
crianças, como era o caso da “Clínica de Euphrenia”, da LBHM, inau-
gurada em 1931.

Euphrenia, (do grego, eu + phren phrenos), seria o estudo que tem


por fim assegurar a bôa formação do psychismo. [...] Levando tão
longe quanto possivel as investigações, neste terreno, chegar-se-á
certamente, ao conhecimento mais ou menos perfeito das leis que
regem a hereditariedade psychologica e, por outro lado, ficar-se-á
sabendo quaes as neuroses e psychoses, quaes as constituições
psychopathicas e psychologicas que possuem caracter dominante
ou recessivo, e que se transmittem de accordo com as leis
mendeliana. (Caldas, 1932, p. 31-32).

Essas clínicas tinham a finalidade de procurar assegurar o bom


funcionamento e o equilíbrio do sistema nervoso. Recomendava-se
aos pais que não esperassem os filhos atingir as raias da alienação
mental. Ao sinal de qualquer problema, que encaminhassem seus
filhos para um exame especializado, a fim de que as causas fossem
detectadas e um programa de modificação ou supressão das situações
exógenas envolvidas fosse estabelecido.
Também era proposta da “Clínica de Euphrenia” acompanhar o
desenvolvimento mental da criança de 2 a 6 anos, com a finalidade de
diagnosticar deficiências ou superioridade mentais. Recebia das esco-
las crianças com problemas. Os casos de anormalidade não eram tra-
balhados pela clínica, e sim os casos de crianças com pequeno desvio
de personalidade para ser corrigido. Pretendia-se prevenir nas crian-
ças o aparecimento de distúrbios, ou, no caso do seu aparecimento,
corrigi-los enquanto era tempo, evitando a disseminação de indiví-
duos onerosos à nação.

150
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

Os jovens estudantes também deveriam ser orientados para uma


profissão adequada. Deveriam adentrar o mundo do trabalho sem
vícios e sem patologias mentais, para que pudessem viver o melhor
adaptados possível. Educar significava formar cidadãos sadios para o
país, já que um “indivíduo integrado pela educação racional nas suas
correlações vitaes com o meio, torna-se um ser social capaz [...] contri-
buinte ao patrimonio da raça humana” (Braga, 1931, p. 15-16).
A escola tornou-se também um local privilegiado na luta contra o
alcoolismo, considerado um dos flagelos nacionais, ao lado da sífilis,
da turberculose e da prostituição, todos considerados fatores predis-
ponentes da doença mental.
Os higienistas entendiam que para prevenir a doença mental era ne-
cessidade absoluta a prevenção do alcoolismo. Assim concebendo, fize-
ram com que as campanhas antialcoólicas chegassem às escolas. Para se
ter uma idéia do empenho dos higienistas nessa questão, em 1930 o então
presidente da LBHM, Ernani Lopes, enviou um ofício ao subdiretor téc-
nico da Instrução Pública propondo um plano de educação antialcoólica
nas escolas municipais. Afirmava Lopes que um dos propósitos da higie-
ne mental era conseguir o “abstencionismo” total, principalmente dos
professores, que deveriam servir de exemplo para seus alunos. Apesar
das críticas de alguns à proposta de começar a “educação antialcoólica”
em idade escolar, o presidente da LBHM concebia que era importante e
eficaz o início de uma ação em nível inconsciente de repulsa ao álcool.
Para isso, haveria a necessidade da colaboração de professores, que, além
de se manterem abstêmios, deveriam assinar o “Livro dos abstêmios” da
LBHM. Tal exemplo deveria ser adotado na escola, onde deveria haver
um pequeno livro dos “alumnos abstêmios”, assinado pelo diretor, pelo
médico-escolar e pelo aluno que se comprometesse a ficar um ano sem
tomar bebidas alcoólicas.
Considerado um dos grandes males, quer do ponto de vista indi-
vidual, quer do ponto de vista coletivo, o alcoolismo era tido como
uma das causa da pobreza, dos crimes e do atraso do país, além de
gerar eplépticos, idiotas, débeis mentais, enfim, seres inferiorizadores
da raça. Além do mais, as doses de álcool:

paralysam o freio moral e dão livre expansão aos instinctos


primitivos, sendo que a intoxicação crônica enfraquece a vontade,

151
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

diminue as faculdades affectivas superiores, concorrendo para o


desenvolvimento do egoismo (Pacheco e Silva, 1930, p. 35).

Era, ainda, visto como um veneno do mais variado efeito para a


inteligência, levando aos paroxismos da loucura; um veneno para a
moral e para o corpo, responsável por degenerações físicas e psíquicas
(Campos, 1930).
Moraes Mello, um dos conselheiros executivos da Liga Paulista de
Higiene Mental, denominava o alcoolismo de toxicose social, não só
pela sua generalização como pelos desastrosos prejuízos econômicos e
raciais. Segundo o higienista, o maior prejuízo econômico do alcoo-
lismo não estaria nas despesas em decorrência da construção e manu-
tenção de asilos, hospitais, manicômios e prisões, mas na
improdutividade ou na limitada produtividade do alcoolista e de sua
descendência. Enfatizava ainda, que ninguém tinha o direito de ser
improdutivo ou de ser sobrecarga aos seus semelhantes, pois estaria
faltando com sua finalidade biológica e social. Assim, propunha:

A luta anti-alcoólica no Brasil deve ser encarada sobre dois


aspectos, um administrativo e outro educativo. O administrativo
resume-se a difficultar o fabrico e a venda de bebidas alcoólizadas e
no favorecer a fabricação e o consumo do alcool industrial; o
educativo, e principal, é a pedra angular da formação eugênica da
raça. A educação anti-alcoólica ou, se me permittis a generalização,
a educação hygienica deve começar no lar, proseguir,
obrigatoriamente, nas escolas e continuar nos quartéis, modelando
na plasticidade da infancia e na maleabilidade da juventude, a
hygidez do caracter do adulto, afim de tornal-o productivo e util
aos seus concidadãos (Mello, 1930, p. 48).

Tais palavras não deixam dúvidas quanto à amplitude que o higi-


enismo pretendeu. A educação higiênica devia ser dura como uma
guerra. Guerra sem tréguas, como afirmou Borges Vieira (1929, p. 41),
membro da Liga Paulista:

Essa educação deve ser feita por todas as fórmas e em todas as


occasiões, mórmente nas escolas primarias, preparando a geração
de amanhã numa geração sóbria e sadia, por isso que a experiencia
mostra que é mais facil formar habitos que reformal-os.

152
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

Um dos mais importantes fatores que levou o higienismo a se


preocupar com o alcoolismo foi a questão da produtividade individu-
al e coletiva. Existia, na LBHM, uma seção denominada de “educação
e trabalho profissional” que estudava assuntos referentes à orientação
profissional. Estudos sobre os efeitos do álcool davam conta que o
consumo de bebida alcoólica prejudicava a saúde e a capacidade de
trabalho do operário. Em profissões que exigiam cuidados maiores
com a segurança, como as de motorista, maquinista ferroviário, piloto
de avião, o profissional alcoolizado era visto como uma ameaça para
sua própria vida e para as demais pessoas.
Sendo a época do Higienismo Mental contemporânea à da in-
dustrialização no país, esse movimento esteve também preocupado
com os processos envolvidos no desenvolvimento da automação e
a conseqüente adaptação do homem à máquina. Não só a sobrie-
dade era uma qualidade bem-vista. Para ser hábil com a máquina,
o operário deveria apresentar boas condições físicas e intelectuais,
tais como visão nítida, mãos firmes, boa memória, “costumes tem-
perados”, para que não se mutilasse e cumprisse a produção espe-
rada. Pensando na adaptação do homem ao trabalho e na
conseqüente produtividade do indivíduo, pensou-se também que o
trabalho não devesse ser maçante para o trabalhador; era preferível
que ele apreciasse sua atividade. Para tanto, a Higiene Mental de-
fendia a utilização dos métodos psicológicos no ensejamento de
uma boa orientação profissional.
Avaliar a personalidade e a vocação do indivíduo era preocupa-
ção constante. Faustino Esposel, em conferência na LBHM, afirmou
que o problema da orientação profissional era um assunto da higiene,
não só da higiene social ou coletiva, mas também da higiene indivi-
dual. Nessa ocasião, solicitou que se imaginasse o tédio, o desgosto de
quem exerce contra sua vontade alguma profissão sem ter o mínimo
de aptidão para exercê-la. Alegava que o operário ficaria em estado
depressivo, que poderia levá-lo ao mundo dos vícios, aos “venenos
sociais”, à vadiagem e até ao crime. Afirmava que a alegria no traba-
lho servia como prevenção dos males mentais.

a alegria no trabalho vale como um dos bons elementos, da


prophylaxia das perturbações mentaes. [...] Pois certamente

153
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

augmentará a produção nacional e crescerá a fortuna publica se


cada cidadão trabalhar satisfeito, e exercendo o mister para o que
tem aptidões naturais (Esposel, 1929, p. 109).

Corroborando essa idéia, em seu artigo Hygiene mental nas fabri-


cas, Bonifácio de Castro Filho (1930) defende a necessidade de ocorrer
no Brasil estudos sobre psicologia industrial, fato que já estava ocor-
rendo nos Estados Unidos. Era o autor de opinião que o trabalho que
se modernizava estava exigindo a intervenção de funções psicomoto-
ras, tais como a memória, a atenção e o julgamento e que, para organi-
zação racional do trabalho, seriam necessárias a seleção dos operários
sob o ponto de vista mental e a seleção sob o ponto de vista das apti-
dões individuais. Chegou a afirmar que “a selecção psycho-
physiologica é que permitte attingir a verdadeira meta do trabalho
racional – com o mínimo esforço obter o máximo rendimento” (Castro
Filho, 1930, p. 13), pois eliminaria das oficinas “certas classes de pro-
fissonaes psychopathas que constituem um peso morto para a socie-
dade e colocariam os indivíduos nos seus devidos lugares, de accordo
com as aptidões mentaes, favorecendo o êxito no trabalho” (Castro
Filho, 1930, p. 14-15).
Ernani Lopes (1930b), resenhando o artigo de Stocker, A higiene
mental do operario, publicado em Genebra, expunha a concepção do
autor sobre a necessidade dos trabalhadores encontrarem certa satis-
fação em suas ocupações. Assinalava que em conseqüência da inap-
tidão ao seu ofício, o operário poderia reagir desenvolvendo uma
depressão que anularia o restante de aptidão que ainda possuiria ou,
ao contrário, desenvolveria uma hipertrofia do próprio eu, o que o
tornaria intratável e antipático. Deteve-se também sobre estudos das
causas de reações psicopatológicas ligadas às condições físicas, ao
ritmo e à duração do trabalho. Sublinhou que quanto ao ritmo,
quando ele se tornava excessivo, como no caso do trabalho dos im-
pressores, estava comprovado o surgimento de distúrbios psíquicos
como a neurastenia. É interessante destacarmos que, nessa resenha,
o autor chama a atenção dos legisladores brasileiros sobre a relação
das greves e revoltas dos trabalhadores das gráficas com os distúr-
bios advindos do ritmo de trabalho a que esses operários estavam
sendo submetidos:

154
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

Chamamos para o facto a attenção de nossas autoridades e de


nossas adiantadas emprezas jornalisticas, pois, sem duvida, há-
de, em parte, encontrar-se nesse estado de morbidade nervosa e
explicação das faceis revoltas e da adopção impulsiva de
doutrinas extremistas por parte da laboriosa classe dos graphicos,
em nosso Brasil. O autor do artigo, aqui resumido, cita, aliás a
proposito de paredes (greves) a opinião de um notavel techinico
em hygiene mental, Stewart Paton, segundo o qual devem ser
considerados esses movimentos como reacções de defesa de
inadaptáveis (Lopes, 1930b, p. 258).

Insistiu, ainda, que os industriais deveriam esforçar-se para que


na inspeção de suas fábricas existissem clínicos cujos temas da Psiqui-
atria e da Higiene Mental lhes fossem familiares, para que não reali-
zassem somente a necessária seleção profissional, mas que tivessem
condições de identificar e afastar a tempo os operários débeis mentais
e os deficientes sob o aspecto moral ou emotivo, estes últimos, perigo-
sos pela capacidade que teriam de promover distúrbios nervosos cole-
tivos. Vale aqui ressaltar a tendência da Higiene Mental em
patologizar quaisquer manifestações contrárias ao pensamento e or-
dem vigentes.
Cunha (1988) analisa que, ao tratar de questões relativas ao traba-
lho fabril, tais como o processo de trabalho, a seleção profissional, a
jornada, o salário, os acidentes e as moléstias profissionais, os higie-
nistas advertiam para a necessidade de se preservar o capital humano
como meio de manter a força de trabalho saudável e para protelar o
acirramento dos conflitos entre as classes, obtendo-se, dessa forma, a
harmonia nas relações sociais.
Ainda quanto ao aspecto produtivo, uma outra preocupação
dos higienistas era com as mulheres. Porto-Carrero (1930, p. 159),
em seu artigo Sexo e Cultura, assinalava que o desenvolvimento da
indústria nas grandes cidades estava suscitando uma radical trans-
formação no lar:

Desde que a industria domestica cedeu o passo á grande industria


externa que a machina moderna complica nos meios para
simplificar nos resultados, já a mulher não fia a lã, não tece as
meias, raramente cose a roupa. O arranjo domestico, facilitado
pelos utensilios electricos e pela simplificação da morada, tem

155
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

permittido a reducção dos famulos e a transformação dos serviços


do lar em tarefa de duas ou tres horas.

O autor explica a entrada da mulher no mercado do trabalho co-


mo decorrente das horas a menos que ela passa a ter com as tarefas
domésticas pelo uso dos eletrodomésticos. Pensa Porto-Carrero que a
mulher, sentindo-se ociosa no lar, melhor instruída e ciente de sua
capacidade, “sente azas e quer voar”. O trabalho externo lhe atrai,
mas como está destinado ao homem, tem que igualar-se a ele. Está
esboçada aí a luta pela emancipação feminina.
Tecendo considerações sobre o Complexo de Édipo e do que seria
a natureza sexual da mulher e do homem, o autor sugere a impossibi-
lidade de se estar contra a modernidade e que há profissões que são
sublimações perfeitamente femininas, ainda que exercidas por ho-
mens “mais ou menos regredido na evolução sexual”. Cita como e-
xemplo as atividades de cabeleireiros, alfaiates, farmacêuticos,
pesquisadores de laboratório, professores primários, médicos pedia-
tras. Essas atividades poderiam ser melhor exercidas por mulheres,
“que retiram a sua capacidade do seu clitoridismo e da feição minu-
ciosa do seu erotismo anal” (Porto-Carrero, 1930, p. 161). Discorria,
ainda, sobre a existência de profissões caracteristicamente masculinas
abrigadas desde o cultivo da terra até a propagação das idéias. Estas,
só excepcionalmente poderiam ser exercidas por mulheres, pois ne-
cessitariam maior impulso de agressão. Orientava, então, que a mu-
lher assumisse funções convenientes a seu gênero e que lhes fossem
asseguradas facilidades para a função procriadora.
De modo geral, a Higiene Mental olhava a mulher como uma im-
portante colaboradora na luta por uma sociedade melhor, especial-
mente se ela desempenhasse bem a função materna. As Ligas de
Higiene, em sua propaganda às mães, disseminavam conhecimentos
sobre o desenvolvimento motor, intelectual, moral e afetivo da crian-
ça. Defendiam que as mães deveriam destinar uma educação amorosa
e compreensiva aos seus filhos, ao invés da educação “antiga” perme-
ada de reprovações e castigos. Constantemente os higienistas faziam
lembrar às mães que a maior parte dos traços de caráter do adulto
encontravam suas raízes na vida infantil, seja por forças ambientais ou
hereditárias (Ramos, 1941).

156
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

Uma atuação "patriótica" era cobrada da mulher. Dela era solici-


tado que colaborasse na grandiosa obra contra os males que se alas-
travam pelo país. Nessa tarefa, gerar e educar cidadãos robustos e
inteligentes, constituía sua nobre obrigação (Archivos..., 1930 a). Contra
o alcoolismo era crucial o seu papel:

Para combater e vencer um inimigo é indispensável que se o


conheça bem em todas as suas modalidades, em todas as suas
formas, em todos os seus disfarces. [...] É neste particular que a
mulher representa um papel saliente e indispensavel na
prophylaxia do alcoolismo. Talvez seja ella a maior victima da
intoxicação alcoolica, quer soffrendo as brutalidades e as miserias
de paes e maridos alcoolatras, quer ainda quando ella propria é a
intoxicação por si mesma, por herança ou por contagio, e que se vê
deste modo muitas vezes, impedida de amamentar o seu proprio
filho, se é que este não nascera com deformidades que o alcool
preparara (Britto, 1930, p. 204-205).

Era importante que a mulher fosse ensinada sobre esses perigos.


Ela tinha de ser conscientizada de que o álcool era capaz de desman-
char os lares, de dissipar fortunas, de conduzir aos hospícios, quando
não, às penitenciárias, de roubar a saúde, enfim, de subtrair a vida.
Convencida disto, ela passaria a ser um “verdadeiro apóstolo” da
cruzada antialcoólica.
Pela tenacidade, astúcia e meiguice, a “mulher-mãe”, com seu
carinho e afetividade, educaria os filhos contra as degenerações soci-
ais; a “mulher-professora” complementaria a educação recebida em
casa sobre os perigos dos vícios; a “mulher-noiva”, pelos seus encan-
tos e pela sua paixão, conseguiria estancar o mau comportamento do
noivo causado pelas más companhias; a “mulher-esposa”, pelo seu
amor e carinho, conseguiria que seu marido, nas horas de adversi-
dade, encontrasse conforto nas ilusões provocadas pelo vício do
álcool (Britto, 1930).
A mulher era considerada fundamental ao Higienismo Mental
quer pela sua função materna, quer pela atividade de professora, o
que confirma que a criança era mesmo um grande alvo do movimento
higienista. Ernani Lopes (1930a, p. 121) assinalava que “o estudo das
psychoses dos adultos interessa sobretudo ao alienista; o das pertur-
bações psychicas na edade infantil deve interessar não só ao alienista,

157
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

como ao pediatra, ao neuro-hygienista, ao sociologo e ao educador”.


Fausto Guerner (1928b) concebia que médicos, pais e professores de-
vessem adquirir uma base psicológica como alicerce indispensável
caso quisessem acompanhar adequadamente o desenvolvimento in-
fantil, principalmente dos infantes portadores de “constituições psy-
chopathicas”. Via na doutrina de Freud contribuições valiosas para tal
empreendimento.
Aliás, os conhecimentos trazidos pela Psicanálise subsidiaram
um outro aspecto educativo defendido pelo movimento higienis-
ta: a educação sexual, que assumiu relevante papel na questão do
casamento e da família, por serem importantes instituições de
moralização, principalmente do operariado. Os higienistas viam
na educação sexual uma substituta à pornografia, fonte na qual
jovens e adultos buscavam informações sobre sexo. Viam-na tam-
bém como meio de impor uma moralização dos instintos e a im-
posição de uma liberdade adequada em lugar da repressão e da
licenciosidade.
Durval Marcondes (1930), em artigo publicado nos, além de a-
char necessária a educação sexual, entendia que a falta dela constitu-
ía em um dos grandes fatores na etiologia das moléstias mentais.
Dizia ele que não podia entender a higiene mental sem uma educa-
ção sexual bem orientada. Esta orientação ele recomendava buscar
nos modernos princípios científicos freudianos.

No meu entender, a educação sexual deve ser inspirada


principalmente nos dados estabelecidos pela psychanalyse de
Freud, que hoje constitue o mais amplo patrimonio de
conhecimentos acerca da psysichologia infantil e sobretudo de seu
aspecto sexual (Marcondes, 1930, p. 65).

Outro aspecto importante da educação sexual era quanto à prevenção


das doenças venéreas, principalmente a sífilis, causadora de distúrbios
nervosos e considerada um dos flagelos nacionais. Com a educação sexual,
os higienistas achavam possível enquadrar aqueles de vida desregrada em
uma moralidade mais aceitável. Pacheco e Silva (1930) chegava a afirmar
que a um indivíduo normal do ponto de vista físico e psíquico era possível
a continência sexual, atividade que deveria ser desempenhada somente
dentro do casamento.

158
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

A educação sexual deveria começar em casa e obedecer o grau de


desenvolvimento intelectual da criança. A criança pequena, sob os
cuidados maternos; o jovem filho, sob a orientação do pai, e a jovem,
orientada pela mãe. Mais tarde, tal tarefa caberia aos professores, que,
na escola, a faria com a maior naturalidade, juntamente com os ensi-
namentos de botânica e zoologia.
E como ocorria com tudo o que dissesse respeito à Higiene Men-
tal, com essa orientação dar-se-ia um grande passo na melhoria das
condições físicas, mentais e morais de nosso povo. Dessa forma, a
preocupação com a delinqüência e sua relação com a doença mental
também esteve presente na pauta de preocupações dos higienistas.
Ocupavam-se muito com os estudos sobre as causas dos crimes e,
principalmente, com as características da personalidade do criminoso.
Com os conhecimentos produzidos nessa época a esse respeito, acre-
ditavam que se poderia prever a delinqüência no meio social, conside-
rada um desajustamento social que incomodava toda a sociedade.
Entendiam que, se as causas do desajustamento social fossem ex-
tintas, os crimes, em grande parte, desapareceriam, e os criminosos,
imediatamente encaminhados para o manicômio judiciário, poderiam
receber tratamento. As causas, como sempre, estariam nos “venenos
sociais” (alcoolismo, vida desregrada, família desequilibrada, consti-
tuições tendentes à degeneração). Utilizar a ciência era o caminho
certo para a prevenção e o tratamento da delinqüência:

A influencia das sciencias biologicas nos dominios da sciencia


penal cada dia se faz sentir dominadora. Não se pode pensar em
julgar e tratar os delinquentes tomando por base formulas
abstratas inspiradas exclusivamente nos aspectos dos crimes por
elles realizados. São necesarios o exame e a observação mental
systhematica e minuciosa de todos elles, de modo que as
sentenças dos juizes encontrem no conhecimento da
personalidade dos delinquentes a sua principal rasão de ser e a
sua motivação soberana (Carrilho, 1930, p. 79).

Os exames e as observações criteriosas da personalidade do de-


linqüente nas prisões tinham por finalidade subsidiar a formulação de
uma “terapêutica regeneradora”. Carrilho (1930, p. 80), que era diretor
do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, propunha que a pena

159
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

deveria se inspirar nos princípios da higiene mental, “perdendo seu


caracter pejorativo de castigo. O tratamento deveria ser individualisa-
do a cada caso concreto, de acordo com a mentalidade e a psychologi-
a, tão curiosos e variantes, dos delinquentes”.
Em seu artigo intitulado “Assistência aos psychopathas: instru-
ções, conselhos e advertências aos enfermeiros dos manicômios judi-
ciários” Carrilho (1932), informava esses profissionais sobre as
características psicológicas das pessoas retidas naqueles locais. Dizia
que o trabalho deles pouco se diferenciava das atividades dos enfer-
meiros em hospitais psiquiátricos. A diferença eram as evasões, agres-
sões violentas, porte de armas improvisadas, motins, suicídios,
homossexualismo e a necessidade de vigilância constante.
Descrevia também, para o conhecimento dos enfermeiros, os tipos
de psicopatas encontrados nos manicômios judiciários, tais como: a)
os amorais constitucionais, “loucos moraes”, b) os epilépticos sem
ataques ou com poucos ataques, que durante suas crises mataram pais
ou filhos, c) os débeis mentais e imbecis; d) os maníacos; e) os para-
nóides; f) os perversos sexuais; g) os alcoólicos crônicos e, h) os que
simulavam ter distúrbios mentais (Carrilho, 1932).
Concebia que os estabelecimentos penais deveriam ser para os
psicologistas, psiquiatras e higienistas, em geral, um lugar de estudo
dos aspectos individuais da delinqüência, para realizarem um pro-
grama de regeneração. Um dos fatores essenciais para o sucesso da
“terapêutica regeneradora” era a prescrição da terapia ocupacional
segundo os parâmetros de orientação profissional.
Não bastava, entretanto, a simples seleção “psicofisiológica”
dos trabalhadores, mesmo feita a partir dos conhecimentos de la-
boratório. Os higienistas defendiam que o trabalho exercido pelos
apenados na penitenciária não podia ser um trabalho escravo; de-
veria ser remunerado, pois, para efeitos da higiene mental, o assa-
lariamento tornaria possível conseguir um pecúlio que criaria no
apenado um sentimento de esperança em uma maior facilidade de
futuro reingresso no meio social, além de proporcionar um senti-
mento de valor no indivíduo.
Outro aspecto do tratamento dos delinqüentes e criminosos, eram
as sempre presentes educação anti-alcoólica e a educação sexual, as
quais, como vimos, fazia parte do programa de prevenção destinado a
todas as pessoas.

160
-A CONTRIBUIÇÃO DA HIGIENE MENTAL ...

Concluindo este breve levantamento sobre os principais temas do


higienismo mental, que serviram de campo de atuação e pesquisa
para a Psicologia em nosso país, assinalamos que as atividades das
Ligas de Higiene Mental foram desenvolvidas regularmente até os
primeiros anos da década de 30 do século XX, quando começaram a
escassear e até desaparecer por completo. O desaparecimento dessas
atividades, todavia, não se deu em decorrência da exaustão ou supe-
ração de suas propostas, mas sim devido a sua concretização no âmbi-
to do Estado. A Constituição de 1934 adotou os preceitos higienistas
para o capítulo da Saúde Pública. Cunha (1988) alega que um primei-
ro perfil para uma política de saúde foi naquele momento esboçado. O
Estado termina por ser o implementador de políticas de higiene e
saúde, criando conselhos técnicos e órgãos públicos através dos quais
se buscou gerenciar o tão almejado melhoramento da raça, da moral e
dos costumes.
Quanto à Psicologia, podemos dizer que encontrou terreno fértil e
campo aberto na Higiene Mental para se desenvolver e se solidificar
enquanto prática científica. No interior do discurso higiênico-
preventivo, ela recebeu os mais variados incentivos para construir
suas áreas de atuação profissional, nas quais ainda hoje é chamada a
contribuir. De modo geral, podemos asseverar que ela colaborou com
o projeto ideológico de manter a sociedade sobre os cânones capitalis-
tas através de teorias e práticas que imputavam ao indivíduo a res-
ponsabilidade pelas suas dificuldades na luta pela vida. O que
acreditamos ser importante nesse momento é nos perguntarmos se
atualmente não estamos reproduzindo os temas do passado simples-
mente pela impossibilidade de superarmos velhos vícios, como o de
conceber o homem como vítima de sua história.
Avançar é preciso. Sempre. Mas não nos iludamos. No bojo de
novos conhecimentos e de novas tecnologias desenvolvidas pela
engenharia genética, só para ficarmos em um exemplo, velhas idéi-
as se reacendem como luzes que pretendem guiar os homens por
caminhos mais felizes. Mais do que nunca, é preciso pensar e agir
com ética, para que velhos fantasmas, que cantam como sereias em
águas profundas, não nos seduzam e nos levem rumo à destruição
da humanidade que há em nós, daquilo que tão custosamente te-
mos construído.

161
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

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IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

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164
6

NTROPOLOGIA E
SEGREGAÇÃO EUGÊNICA:
Uma leitura das lições de
eugenia de Renato Kehl
MARCOS ALEXANDRE GOMES NALLI

A grande maioria dos indivíduos


são heterozigotos complexos.
(Renato Kehl)

Pouco importa que nos julguem nocivos


e nos conservem no isolamento.
(Graciliano Ramos)

Vivemos em um momento histórico marcado pela profusão de des-


cobertas científicas e de uma crescente percepção cientificista de nossas
vidas, desde suas instâncias mais cotidianas, tais como as aplicações bio-
lógicas: alimentos transgênicos, fecundação in vitro, clonagem, vacinas de
DNA, screening genético...As possibilidades são tantas, que nos sugerem
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

questionamentos éticos dos mais variados. Tantas descobertas nos colo-


caram não em uma situação confortável no que diz respeito aos nossos
destinos e das gerações futuras, porém, na situação perturbadora de sa-
bermos os fins desejados mas não os meios eticamente condizentes para
alcançá-los. Em vista disto, velhos fantasmas que acreditávamos destruí-
dos renascem, saem de seus túmulos do esquecimento para nos ensinar
que não basta esquecer, fingir de “bons moços” para erradicá-los. É preci-
so bem mais, uma vez que esses fantasmas também desempenham um
papel “formador” de nossas boas consciências e retidão moral. Um des-
ses fantasmas que voltam a renascer das cinzas e a surgir dentre as bru-
mas do velamento é a eugenia.
Em que consiste a eugenia? Na realidade, o termo não é de fácil
conceituação. Mas, em geral, consiste em um conjunto de teorias e
práticas, bem ou mal concatenadas entre si, que visam como seu esco-
po ao aprimoramento humano em todas as suas facetas: biológica,
psicológica, médica. Visa à perfeição antropológica, principalmente a
partir de sua carga genética. E os meios, bem, os meios são os mais
variados, conforme a imaginação humana permite, principalmente
nos tempos atuais, se considerarmos os avanços tecnológicos; contu-
do, sempre visando esse fim de aperfeiçoamento humano.
Ora, se a eugenia tem um fim tão nobre, por que razão ela se
transformou em um fantasma à razão e à boa consciência moral de
todos nós? Nesse sentido, é bastante instigante o artigo de Oswaldo
Frota-Pessoa – “Quem tem medo da eugenia?” – no qual propõe a
seguinte resposta àquele problema:

Certos políticos e cientistas propuseram e executaram medidas


prepotentes e discriminatórias sob o nome de eugenia, de modo que
essa palavra tornou-se hedionda para muita gente. No entanto, ela
refere-se, apenas, a medidas que tendem a melhorar o patrimônio
genético da humanidade, o que é um a tarefa benéfica e admirável
quando feita com total respeito aos direitos humanos e com base em
conhecimentos científicos seguros. Atacar a verdadeira eugenia em
nada contribui para a luta contra os ditadores e racistas: ao contrário, a
enfraquece, pois desvia a discussão (Frota-Pessoa, 1994/95, p. 39).

Ora, o pressuposto de Frota-Pessoa é a distinção entre verdadeira


e falsa eugenia. Como se houvesse, de fato, uma tal distinção. Como

166
-ANTROPOLOGIA E SEGREGAÇÃO EUGÊNICA

se toda a discussão pudesse resolver-se em uma simples distinção


maniqueísta entre o bem e o mal, entre o certo e o errado; bastando,
portanto, separar o joio do trigo. O fato é que, a despeito da nobreza
de seu escopo, a eugenia – e toda a ciência, e por extrapolação, até
toda a cultura – não é santa...Nem demoníaca! A eugenia, historica-
mente, não foi apropriada indebitamente por charlatães que se propa-
gavam como cientistas, ou por políticos nazi-facistas evidentemente
autoritários e genocidas. Historicamente, a eugenia já nasceu em um
ambiente cultural marcantemente racista, principalmente motivada
pelas intuições evolucionistas com Darwin e Galton. E muitos cientis-
tas de peso também foram simpáticos às causas eugenistas e a seus
procedimentos, muitas vezes autoritários – por entendê-los como
únicas ações factíveis para atingir os objetivos eugênicos preconiza-
dos. No Brasil, Octavio Domingues e André Dreyfus, grandes nomes
da história da Genética nacional, foram simpáticos à causa eugênica; o
primeiro foi seguramente um militante aguerrido do movimento
(Freire-Maia, 1988). No que diz respeito a sua apreensão por políticos,
com pretensões ditatoriais, basta observarmos que tal apropriação
política, principalmente na década de 30, foi um fenômeno mundial,
independente de ideologias políticas motivadoras dos governantes de
vários países, inclusive em países ditos democráticos – liberais ou
socialistas. Então, a discussão dos “méritos e pecados” eugênicos não
se resolve dessa forma.
Aliás, uma ‘leitura’ da eugenia em sua totalidade ou em seus as-
pectos, não deve aqui se apressar em uma posição julgadora. Neste
sentido, pretendemos, com nossa leitura, não aferir algum juízo de
valor à eugenia, mas sim analisar apenas um elemento que conside-
ramos marcante no discurso eugênico; a saber, sua antropologia pre-
conizada, bem como suas conseqüências no âmbito da sociabilidade.
O motivo dessa eleição temática reside no fato de que cada vez mais
fica patente o ‘descentramento’ do homem diante do mundo, de tal
maneira que, contemporaneamente, não apenas o homem não serve
como ponto de referência nem como baliza para interpretarmos o
mundo; sua condição “topológica” é muito mais uma inscrição na
ordem das coisas; um fruto semântico das linguagens – dentre elas, as
científicas – e das práticas sociais que, paradoxalmente, ainda são
humanas. Somos cada vez mais o resultado de uma combinatória

167
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

extremamente complexa de relações sociais, técnica e cientificamente


controladas, o que atesta cada vez mais o quanto somos o seu resulta-
do virtual, e não o ponto arquimediano que garante uma compreen-
são/interpretação do mundo. A eugenia é apenas um fenômeno social
e histórico da práxis científica que atesta a nossa não-condição vigente
e a nossa caracterização virtual.
Para tanto, nós nos limitaremos a averiguar a concepção antro-
pológica expressa no discurso de um dos maiores representantes
do movimento eugenista no Brasil durante as décadas de vinte e
trinta, Renato Kehl. Para tornar factível nosso empreendimento
analítico, julgamos necessária uma restrição de nossa exposição.
Para tanto, abordaremos apenas o livro de Renato Kehl intitulado
Lições de Eugenia (cuja primeira edição é de 1929, e a segunda,
atualizada e revista, é de 1935).
O motivo dessa escolha deve ser expresso aqui: Lições de Euge-
nia é, dentre a produção bibliográfica de Renato Kehl que tivemos
acesso, o texto mais acabado no que diz respeito aos fundamentos
epistemológicos da Eugenia, e no qual apareciam fartamente ele-
mentos que evidenciavam aquilo que denominamos “epistemocra-
cia” da eugenia de Renato Kehl. Por epistemocracia, entendemos a
concepção, defesa e projeto de natureza eminentemente cientificis-
ta de que se pode construir, controlar e gerir, em suma, governar, a
sociedade em sua totalidade e em suas partes, sua estrutura e di-
nâmica. No caso da eugenia de Renato Kehl, essa pretensão de
constituição e controle social poderia se realizar a partir do contro-
le e constituição biológica do homem, o que denota o alto grau de
determinismo da eugenia bem como a natureza reducente de sua
concepção antropológica e de sociabilidade. Em suma: o neologis-
mo “epistemocracia” congrega tanto a pretensão cientificista da
eugenia de Kehl bem como sua pretensão de intervenção e controle
social; o que faz desse termo um elemento fundamental às análises
que efetuaremos aqui.
Neste sentido, para podermos caracterizar a epistemocracia eugê-
nica de Kehl e, por conseguinte, podermos contemplar analiticamente
a sua antropologia, bem como suas conseqüências no âmbito da soci-
abilidade, faz-se necessário averiguarmos alguns traços epistemológi-
cos de sua concepção de eugenia.

168
-ANTROPOLOGIA E SEGREGAÇÃO EUGÊNICA

Os fundamentos epistemológicos da eugenia de Renato Kehl

A concepção eugênica de Kehl busca um farto apoio tanto nas teo-


rias da evolução quanto nas teorias da hereditariedade. É, inclusive, a
partir das teorias da hereditariedade que Renato Kehl busca justificar
alguma intervenção eugênica que contribua à evolução da espécie
humana, regulada pela Lei da Seleção Natural, suficientemente espla-
nada por Robert Charles Darwin. Neste ínterim, o número de teóricos
mencionados por ele nas Lições de Eugenia é vastíssimo. No entanto,
três parecem- nos fundamentais: Mendel, Weismann e Galton.
O mérito de Gregor Mendel, tido como o pai da Genética, deve-se pe-
las suas contribuições em uma nova concepção do fenômeno da heredita-
riedade e do hibridismo que diferem das concepções então correntes,
inclusive das compartilhadas por Lamarck e Darwin (que não foram
negligenciados por Kehl, mas colocados em seu devido lugar no seu dis-
curso eugênico). Com Mendel, instauram-se os pilares teórico-conceituais
da hereditariedade, como continuidade e perpetuação da espécie, medi-
ante a extraordinária possibilidade combinatória dos cromossomos.
Para Kehl, o fundamental é o fato de que a teoria cromossômica
da hereditariedade se assenta “sobre a constancia dos elementos cro-
maticos verificada nas células reprodutoras e sobre a individualidade
de cada um destes elementos, confirmada no exame dos fenomenos
mendelianos” (Kehl, 1935, 6ª Lição, p. 102). Kehl observa que, segun-
do a Lei da Disjunção de Mendel, atualmente chamada de “Primeira
Lei de Mendel”, durante a formação dos gametas, cada membro de
um par de cromossomos (que são a sede, ou o suporte, dos genes) se
separa em metade das células sexuais, de modo que metade dos ga-
metas carrega um membro e a outra metade porta o outro membro do
par de genes. Kehl acrescenta que tal disjunção ocorre sem que as
partes se maculem entre si, de maneira que tais “unidades hereditá-
rias”, ou genes, mantêm-se puras, uma vez que não ocorre uma mis-
tura entre as características dos genitores, e que são transmitidas
independentes umas das outras. “Isto explica”, conclui Kehl, “o prin-
cípio indicado da disjunção de Mendel ou da ‘pureza’ das células
germinais” (1935, 6ª Lição, p. 102).
Uma outra baliza epistemológica fundamental à concepção eugê-
nica de Kehl se encontra em sua leitura sobre a teoria da continuidade

169
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

do plasma germinativo de August Weismann, que tem como uma de


suas características mais pertinentes a defesa de que o meio-ambiente
não interfere de modo algum no processo de hereditariedade, isto
porque o meio ambiente afeta apenas as células somáticas; mas é in-
capaz de interagir e intervir na própria matéria das células germinati-
vas – responsáveis pelo processo da hereditariedade – isto é, o plasma.
Weismann conclui que a hereditariedade é um processo de continui-
dade da espécie a despeito das intempéries ambientais.
E, por fim, o terceiro grande pilar da eugenia de Kehl reside na
Biometria de Galton, que tem como escopo o estudo do indivíduo sob
três aspectos: o antropológico, o genético e o sociológico. A nosso ver,
contudo, a grande contribuição de Galton à Eugenia se assenta em sua
Tabela da Hereditariedade das Qualidades e das leis que dela decor-
rem: lei da regressão filial (ou lei de tendência à mediocridade), lei do
desvio da média e lei da herança ancestral.
Assim, para Kehl, era fundamental uma obra que desse conta de
abarcar a Eugenia desde os seus fundamentos. E que tais fundamen-
tos devessem ser científicos. Daí porque a sua base epistemológica ter
que ser inquirida na história das teorias da hereditariedade desde
Mendel; tendo neste um de seus principais pilares, porquanto é quem
concebeu a Genética em seus fundamentos basilares – em sua lingua-
gem, em seu método e em seu objeto. Também Weismann possibilitou
para Kehl a corroboração dos pilares mendelianos da Genética, tor-
nando-se, assim, um de seus pilares teóricos.
Vê-se, portanto, que não é Darwin ou Lamarck que aparecem como
os grandes nomes e heróis que devem ser seguidos pelo eugenista, ao
menos na ótica de Kehl. Não que Lamarck e Darwin não tenham algum
valor para a eugenia de Kehl. Eles têm. Porém, na medida em que algu-
mas de suas teorias foram corrigidas pelos geneticistas e que, ainda as-
sim, ofereciam alguns desafios teóricos (sobre a evolução das espécies)
àqueles, o que culminou no Neo-Darwinismo, uma modalidade de res-
posta (mais do que de crítica e repúdio) àqueles desafios. Neste sentido, a
concepção de eugenia elaborada por Kehl é profundamente marcada
pelo Neo-Darwinismo (ou Teoria Sintética), que tem, nas décadas de
vinte e trinta, a sua constituição histórica deflagrada. Neste sentido, po-
demos dizer que a eugenia de Kehl é contemporânea, do ponto de vista
histórico e conceitual, das pesquisas genéticas daquela época.

170
-ANTROPOLOGIA E SEGREGAÇÃO EUGÊNICA

Devemos mencionar, por fim, que tanto a reconstrução histórica


quanto os propósitos eugênicos (aplicação sociológica) formulados
por Kehl são profundamente marcados por um certo determinismo
genético (El-Hani, 1997, p. 123-168). Kehl parece reduzir toda a diver-
sidade humana aos fatores biológico-evolutivos, principalmente aque-
les que se referem diretamente à hereditariedade: isto se faz evidente
quando ele defende teorias como a de Mendel, de Weismann e de
Galton, que refutam a hipótese da transmissibilidade dos caracteres
adquiridos.
A recusa de tal hipótese não é apenas o descrédito público aos
‘exageros’ que tal hipótese proporcionou, é, também, a afirmação
de uma outra hipótese: a de que os caracteres de espécie, ou os
caracteres raciais (no sentido mendeliano de linhagens), são todos
decorrentes exclusivamente de fatores e elementos endo-genéticos,
isto é, do plasma germinativo (Weismann), ou dos cromossomos
(Mendel e Morgan); enfim, dos genes (como o próprio Kehl vai
mencionar em uma dada ocasião, em sua exposição da teoria men-
deliana da hereditariedade).
Pelo menos no que tange aos fundamentos epistemológicos, a sa-
ber, especificamente, a Genética e o Neo-Darwinismo, Kehl não parece
conceber a possibilidade de alguma interação entre os fatores genéti-
cos e os demais fatores sistêmicos que interferem e condicionam o
desenvolvimento do organismo, especificamente o organismo huma-
no como ambiente, condições sociais, econômicas e culturais etc. , ou
seja, os fatores epigenéticos.
Mesmo que se possa atribuir a Kehl alguma interação entre causas
genéticas e fatores ambientais, tal interação apenas ameniza a radicali-
dade de seu determinismo genético; porquanto os fatores ambientais
ficam certamente, no máximo, relegados ao plano de fatores acidentais
ou condições coadjuvantes no desenvolvimento do indivíduo ou na
evolução da espécie. Deste modo, esses fatores, os fatores epigenéticos,
são teórica e tecnicamente dispensáveis, já que os fatores genéticos são
hipostasiados a ponto de se configurarem como causa suficiente (uma
vez que seriam considerados fatores primários e básicos).
Certamente, a defesa desse determinismo genético contra uma
concepção sistêmica que contemplasse tanto os fatores genéticos
quanto os epigenéticos como fatores distintos mas equivalentes na

171
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

“ordem das razões” do desenvolvimento do organismo, especialmen-


te do organismo humano, foi de suma importância à concepção de
Kehl tanto do homem quanto da maneira dos procedimentos eugêni-
cos (como por exemplo, a educação) que julgou mais eficazes para o
engrandecimento da nação brasileira.

A concepção antropológica da eugenia de Kehl

A partir do que expusemos, podemos agora discorrer sobre a con-


cepção antropológica elaborada por Kehl em suas Lições de Eugenia.
É essa concepção que permite a ligação entre os fundamentos episte-
mológicos da Eugenia com suas pretensões epistemocráticas de inter-
venção social.
Para dar conta dessa concepção antropológica, vale resgatar os
termos gerais do grande problema no Brasil nos anos vinte e trinta do
século XX, segundo as elites intelectuais: a questão nacional. Ou seja, a
grande questão nacional era a de saber se o Brasil poderia se preten-
der nação. O movimento eugenista não se encontrava naqueles anos
alheio a essa questão.
Para uma maior especificação da concepção eugênica do naciona-
lismo, urge uma comparação com um movimento que lhe foi bastante
próximo: o sanitarismo. O sanitarismo e o eugenismo compartilhavam
do mesmo escopo nacionalista, a saber, a regeneração da população
brasileira, extremamente doente; e, por conseguinte, a recuperação,
entenda-se, salvação nacional. No entanto, se o escopo social era úni-
co, o mesmo não se pode dizer do modo como sanitaristas e eugenis-
tas consideraram as causas da degradação nacional que assolavam o
Brasil. Para os sanitaristas, a causa de todos os males residia na falta
de saneamento básico; como, aliás, o prefácio de Kehl no livro de
Monteiro Lobato, Problema Vital, deixa transparecer. Para os eugenis-
tas, a causa é bem mais complexa: na realidade, ela é a conjunção de
fatores sanitários e fatores raciais. Assim, não basta pura e simples-
mente sanear para se resolver os males nacionais; é preciso uma inter-
venção na própria estrutura racial do homem brasileiro. É a partir daí
que se pode preconizar a salvação da nação brasileira.
Dessa caracterização genérica da verve nacionalista do euge-
nismo podemos recuperar os traços nacionalistas de Kehl, a partir

172
-ANTROPOLOGIA E SEGREGAÇÃO EUGÊNICA

de três temas: sua abordagem dos tipos antropológicos enquanto


tipos eugênicos; sua franca oposição às políticas de imigração no
Brasil; e sua explanação sobre o que denominou “fautores disgêni-
cos”. São esses temas que nos permitem isolar analiticamente a
antropologia eugênica de Kehl.
A questão dos tipos antropológicos era uma questão de cunho ra-
cial proeminente: consistia, basicamente, na determinação das princi-
pais características de cada grupo racial, e que relações haviam entre
tais grupos (como Roquette-Pinto propôs). Kehl deslocou essa discus-
são para a caracterização dos tipos eugênicos. Nesse novo contexto de
caracterização, o primeiro dado importante é que, para Kehl, não ha-
via um tipo ideal que servisse de padrão, de modelo para os demais
tipos. Havia pessoas que se enquadravam, melhor ou pior, diante da
linha de medianidade. Resulta disto duas classes de tipos eugênicos: a
aristogenia, classe genética e eugenicamente superior, e cacogenia,
constituída de indivíduos inferiores. Estes, aliás, poderiam ainda as-
sumir uma forma degradante: a disgenia. O grande desafio para a
eugenia, visto a inexistência de um tipo médio enquanto tipo ideal,
era dirigir as variações eugênicas no sentido da aristogenia; ou seja,
tratava-se de superar a idealidade antropológica do tipo médio (tal
como concebida por Galton). É neste sentido que Renato Kehl comba-
teu a prática da miscigenação e a política indiscriminada (de um pon-
to de vista eugênico) de imigração, uma vez que tais práticas
dificultavam, para não dizer que impediam, uma política de purifica-
ção racial e de consolidação da classe aristogênica da sociedade.
Ainda neste sentido, é que ele discorre sobre o que denominou
“fautores degenerativos” ou “fautores disgênicos”; ou seja, “os agen-
tes de influencia idiocinetica que agem, prejudicialmente, sob o ponto
de vista anatomico ou funcional, desviando o homem do tipo medio
da raça” (Kehl, 1935, p. 48). Os “fautores degenerativos” são, portanto,
aquelas condições responsáveis por toda e qualquer ordem de degra-
dação humana (física, psíquica, moral e intelectual), passível de ser
transmitida para as gerações futuras – por hereditariedade ou por
herança congênita. São esses os seguintes “fautores disgênicos” identifi-
cados por Kehl no decorrer de suas Lições: o pauperismo, a filantropia
contra-seletiva, a ignorância, o urbanismo, os vícios (especialmente o
alcoolismo), as doenças e a guerra.

173
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

A partir disto e, em contraste (o que não significa necessariamente


uma contradição) com os fundamentos epistemológicos da eugenia,
faz-se patente um dos aspectos centrais da antropologia e do racismo
de Kehl, isto é, a sua ambivalência do racismo inerente ao seu discurso
eugenista: em uma acepção, o indivíduo humano é compreendido
como portador de fatores genéticos, herdados de seus progenitores,
cujo cruzamento deve evitar ao máximo possível o hibridismo, visan-
do a depuração racial – enquanto depuração de classes mendelianas (é
o que denominamos “racismo a-cromático”). Em outras circunstân-
cias, o indivíduo restringe-se a relações hierarquizadas de suas dife-
renças, expressas superficialmente, ou seja, à flor da pele, ou melhor,
na cor da pele (chamamos “racismo cromático”).
Isto denota uma ambigüidade inerente ao discurso eugênico de
Kehl, que não foi devidamente resolvida. Kehl, ou não foi suficiente-
mente crítico em decantar as teorias de modo a evitar justaposições, ou
então optou em, promiscuamente, uni-las todas, desde que dessem a ele
como eugenista, e ao eugenismo enquanto movimento de intervenção
social e nacional que foi, assim como o sanitarismo, um discurso legiti-
mador de sua pretensão epistemocrática de controle social. Um exem-
plo claro dessa promiscuidade discursiva de Kehl pode ser encontrada
em sua discussão da questão da constituição, na nona das Lições de Eu-
genia, no qual define o conceito de “constituição” como segue:

É um estado particular de organização de cada indivíduo, segundo


o qual ele se apresenta em condições de maior ou menor resistencia,
tanto para viver como para vencer as influencias do meio.
Conforme a constituição, boa ou má, assim será a força fisica, a
resistencia ás infecções, ás influencias pertubadoras, como maiores
ou menores serão tambem as suas probabilidades de viver muito
ou pouco (Kehl, 1935, p. 163).

Ora, o que essa citação denota condiz mais logicamente (não es-
tamos aqui julgando seu grau de verdade) ao racismo a-cromático de
Kehl do que seu racismo cromático, pautado em linhagens de cor. No
entanto, logo após, ao admitir a importância clínica e racial da questão
da constituição, Kehl se detém em apresentar as constituições típicas
predominantes de alguns países e regiões, sem caracterizá-las; mas
quando se refere à raça negra e aos mulatos, “a raça negra apresenta

174
-ANTROPOLOGIA E SEGREGAÇÃO EUGÊNICA

uma constituição que a faz fraca, presa para a tuberculose, condição


esta ainda mais evidente entre os mulatos que são muito sensíveis ao
bacilo de Koch” (Kehl, 1935, p. 164).
Ao fazer isto, Kehl subverte o conceito de raça enquanto classe men-
deliana pela questão da cor e de sua linhagem, já que, de um ponto de
vista lógico, a admissão da primeira acepção de raça não permite, por si
só, a admissão da segunda. Assim, se por um lado a miscigenação é enca-
rada como maléfica porque gera indivíduos heterozigotos, isto é, híbri-
dos; em um segundo momento ela é mais periclitante ainda à espécie,
não porque dá origem a indivíduos híbridos, mas porque também gera
indivíduos não-brancos, com a constituição preponderantemente negra e,
portanto, com seus desvios e debilidades orgânicas, psíquicas, e morais;
como julga o médico e o eugenista Kehl. Assim, o temor racista de Kehl
aponta não para o embranquecimento da raça, ou melhor, do povo brasi-
leiro, mas na mulatização dos poucos homens brancos que porventura
existiam no Brasil. Daí seu pessimismo.
Seu nacionalismo, marcado pela sua veia intervencionista, visa à er-
radicação da condição mestiça do homem brasileiro como uma das me-
didas a serem tomadas, já que reside nela a origem de quase todos os
males que podem acometer a nação. Os “fautores degenerativos” apenas
indicam o grau de degradação da população brasileira nas três primeiras
décadas do século XX, obviamente interpretadas à luz do discurso eugê-
nico de Kehl. Mas o grande problema a ser combatido é o da mestiçagem.
Tanto em uma acepção quanto na outra do racismo de Kehl, o que há de
comum é seu traço determinista da condição biológico-racial do indiví-
duo e do povo brasileiro; e portanto do Brasil enquanto nação. Toda mo-
dalidade de intervenção deve afetar ou a estrutura cromossômica que
sustenta a hereditariedade, ou a miscigenação das cores raciais, no intuito
de, em primeira instância, propiciar melhores condições de vida, isto é,
saudáveis, ainda que não seja para todos, deste modo, em segunda ins-
tância, garantir a possibilidade da geração de proles cada vez mais puras,
mais aperfeiçoadas, superiores e brancas.

Traços segregadores da antropologia eugênica de Kehl

Como decorrência dessa naturalização extremada, ainda que


ambivalente, Kehl dicotomiza a relação entre indivíduo e sociedade,

175
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

desestruturando discursivamente a sociabilidade. Vejamos mais


detidamente.
É merecedor de nota o diagnóstico que nosso anti-herói faz da so-
ciedade brasileira (entenda-se nação) de seu tempo: é uma sociedade
que vai mal, muito mal das pernas! O seu nacionalismo pessimista,
em uma versão eugênica – e por conseguinte, naturalista e, acrescente-
se, a-histórica – relata-nos uma sociedade fragilizada ao extremo em
sua organização e nas relações de sociabilidade entre os indivíduos
que a integram e constituem. Quando o eugenista denuncia o estágio
de degradação racial do povo e da sociedade brasileira, afetando vis-
ceralmente a sua condição de nação, ele evidencia em seu lamento o
processo de desagregação social vigente no país nos anos vinte e trinta
da Primeira República.
Entretanto, seu projeto epistemocrático não oferece uma solução a
esse quadro de desagregação social, que ele interpreta enquanto de-
generação bio-antropológica e racial do indivíduo e da sociedade,
ainda que ele tenha proposto, no decorrer das Lições de Eugenia,
(Kehl, 1935) uma série de procedimentos e medidas eugênicas de in-
tervenção social com vistas à regeneração racial da nação brasileira
que se fazia urgente.
Por que ele não consegue oferecer uma solução viável? Muitos são
os motivos para que uma proposta não seja eficaz. Mas, com certeza,
não se deve a algo do tipo boa ou má eugenia. No caso em análise, o
principal motivo reside na leitura equivocada de Kehl acerca da rela-
ção entre indivíduo e sociedade; fruto de seu naturalismo exacerbado,
cuja marca se faz sentir em sua caracterização do indivíduo. Se o la-
mento do eugenista pode ser lido como uma constatação, talvez até
bastante perspicaz (apesar de sua tendência reducente), Kehl é inca-
paz de apreender as relações sociais de modo a identificar uma corre-
lação mais dinâmica entre indivíduo e sociedade.
A sociedade, para Kehl, consiste em uma sociedade de indivíduos
enquanto somatória ou coleção de organismos que, no entanto, não
interagem entre si. A sua prevalência discursiva do sujeito diante da
sociedade lhe impede de compreender a sociedade como uma totali-
dade social, integrada e integrante, de individualidades. A individua-
lidade não pode ter esta pretendida prevalência, porquanto ela não é
um dado a priori e, por conseguinte, de natureza anti-histórica. Ela é,
sim, o resultado de uma construção a partir da multiplicidade dos

176
-ANTROPOLOGIA E SEGREGAÇÃO EUGÊNICA

jogos interativos e dos jogos de força entre os homens que coabitam


em um mesmo locus social. Caso contrário, isolando o homem desse
locus, no qual e mediante o qual ele se constitui como indivíduo e co-
mo humano, ele não supera a sua condição orgânica – o que, portanto,
não o coloca em condição de diferenciação em relação a qualquer or-
ganismo vivo, inclusive a mais simples ameba. E se evolui (em sentido
biológico mesmo), não supera “a condição de um animal humano
semi-selvagem”, como observa Norbert Elias (1996, p. 27). Pois bem: o
homem preconizado discursivamente por Kehl não supera sua condi-
ção orgânica e não se caracteriza como indivíduo, pois está socialmen-
te desagregado por completo.
Se há uma sociedade imaginada por Kehl, ela pode plenamente
ser denominada de uma “sociedade dos indivíduos”. Porém, não no
sentido proposto por Elias, e sim, no sentido que Robert Castel nos
oferece: a sociedade criticada por Kehl, mas também o seu modelo de
sociedade, consistem em sociedades dos indivíduos, enquanto mode-
los sociais caracterizados por um crescente individualismo. Um indi-
vidualismo não porque afirme positivamente o indivíduo diante da
sociedade, como o Liberalismo tenta pensar, mas pelo fato de que
instaura e reforça toda uma dinâmica de segregação social do indiví-
duo (permitindo, assim, o fenômeno da exclusão social), que o subtrai
do todo coletivo, retirando-lhe por completo sua condição social. É o
que Robert Castel denominou “individualismo negativo” (Castel,
1998, p. 596): um processo de “desindividualização” que elabora um
processo de constituição e cultura do indivíduo que:

Porém, conserva o traço fundamental de ser um individualismo por


falta de referências, e não por excesso de investimentos subjetivos. [...]
É completamente individualizado e superexposto pela falta de
vínculos e de suportes em relação ao trabalho, à transmissão familiar, à
possibilidade de construir um futuro...Seu corpo é seu único bem e seu
único vínculo, que ele trabalha, faz gozar e destrói numa explosão de
individualismo absoluto (Castel, 1998, p. 603).

É exatamente uma modalidade de processo de desagregação social,


que nosso eugenista instaura discursivamente, donde o indivíduo não é
um ser social, apenas um ser orgânico: não é nem indivíduo, nem huma-
no. Seu individualismo bio-antropológico exclui por completo toda e

177
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

qualquer possibilidade de interação social e de constituição do indivíduo


mediante sua interação – podemos dizer dialética – com a sociedade. É,
portanto, um individualismo segregador. Ele se faz sentir muito bem em
todo o texto das Lições de Eugenia (Kehl, 1935), inclusive na sua proposta
de medidas eugênicas que, visando o aprimoramento racial da sociedade
(entenda-se indiscriminadamente também nação), mostra toda a sua
pujança segregadora.

Um exemplo de intervenção eugênica à sociedade: a educação

A título de exemplo, vale resgatar ainda que em suas linhas gerais


está uma modalidade de medida de intervenção eugênica à sociedade
– a educação. Ainda que pareça óbvio, vale reafirmar que a educação
só pode ser concebida deste modo na medida em que sua ação incide
sobre o indivíduo: foco central das ações intervencionistas da Eugenia,
uma vez que para Kehl, marcado por seu determinismo e racismo
ambíguo, somente pela ação sobre o indivíduo é que se pode intervir,
gerir e administrar; e, por conseguinte, governar a sociedade e o Bra-
sil, que se pretende nação. Novamente se faz pertinente aqui, pelas
suas conseqüências, o grau da dissolução da sociabilidade e da não-
percepção da interatividade entre indivíduo e coletividade.
Tanto o racismo quanto o determinismo biológico inerentes ao
discurso eugênico de Kehl se mostram, assim, elementos fundamen-
tais para caracterizar as medidas epistemocráticas de intervenção so-
cial que a Eugenia – segundo Kehl – deveria adotar e, dentre elas, a
educação. Pois eles permitiam estabelecer qual a melhor medida eu-
gênica a se adotar para cada classe, ou para cada tipo antropológico.
Ou seja: para as classes cacogênicas e disgênicas da sociedade, as in-
tervenções de contenção eugênica de sua proliferação (daí a defesa
franca da esterilização); para todos os que pretendem se casar, o exa-
me pré-nupcial, culminando na proibição do casamento dentre os que
se revelarem perigosos para a descendência e para a sociedade; para a
classe aristogênica, a educação, de modo a garantir uma boa e crescen-
te prole hígida.
Qual a pertinência da educação no projeto epistemocrático da euge-
nia de Kehl? E quais as estratégias cabíveis à educação eugênica? Obvia-
mente, na medida em que nos limitamos a uma análise das Lições de

178
-ANTROPOLOGIA E SEGREGAÇÃO EUGÊNICA

Eugenia (Kehl, 1935), a concepção de educação preconizada por Renato


Kehl não se apresenta aqui de modo integral – em sua formulação geral e
em seu desenvolvimento, concomitante a sua obra. Limitamo-nos a apre-
sentar suas indicações quanto a um projeto eugênico de educação, em
conformidade com o regime discursivo das Lições.
Assim, inerente à sua modalidade eugênica, o primeiro traço ca-
racterístico de seu projeto educativo consiste em sua ‘modernidade
científica’: é mister o profundo conhecimento e respeito às leis da na-
tureza (entenda-se da natureza biológica e do mecanismo da heredita-
riedade), de tal modo que o indivíduo educado segundo seus
preceitos, saiba deles se valer; garantindo para si, para seus coetâneos
e para seus descendentes a criação e manutenção de condições favo-
ráveis para o aperfeiçoamento, evolução e reprodução eugênica. Em
suma: esse modelo cientificista da educação – a educação eugênica –
se faz patente em sua pretensão de ser condição necessária para o
estabelecimento e manutenção do núcleo, ou da classe, aristogênico da
sociedade. Daí, também, o papel social fundamental do educador –
passível, também, de se estender ao médico eugenista: “os grandes
moleiros da nacionalidade”.
Para atender esse fim, o da regeneração racial do país mediante a
configuração de uma nova mentalidade – a mentalidade eugênica –,
Kehl recorre a dois papéis bastante peculiares à educação que, até
aquele momento, não tivera a devida e necessária aceitação: a educa-
ção higiênica, já amplamente defendida pelo higienismo (como, por
exemplo, em um de seus maiores representantes: Belisario Pena), e a
educação sexual, amplamente defendida por Kehl.
Para Kehl, residia na educação sexual a excelência da educação
eugênica. Todas as grandes questões e procedimentos da educação
eugênica – em virtude de seu cientificismo marcado pela observância
das leis que regulam o processo da hereditariedade – provêm e se
processam a partir da conscientização das classes eugênicas acerca da
sexualidade e do mecanismo da reprodução, bem como do processo
evolutivo.
Cabe, portanto, à educação convencer e persuadir as pessoas per-
tencentes às classes eugênicas. Tal convencimento não é, contudo, fruto
de artifícios retóricos e de embuste ideológico. É mais propriamente o
convencimento pelo ensino correto, informativo e despido de precon-

179
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

ceitos morais acerca do mecanismo sexual em geral e principalmente


humano, de modo a ensinar noções de anatomia, fisiologia e higiene
dos órgãos genitais, bem como noções de controle de natalidade (o que
a Eugenia denominava paternidade e maternidade responsáveis) para
os dois gêneros sexuais, isto é, para os meninos e as meninas.
Tais procedimentos de conscientização/convencimento eugênicos
das crianças se processariam em três estágios: primeiramente, caberia
à mãe atender de maneira informativa, e despida de preconceitos as
primeiras curiosidades da criança. Em um segundo momento, caberia
ao pai orientar os filhos quanto aos riscos e perigos das más compa-
nhias e das perversões sexuais (em vez de encaminhar seus pequenos
rebentos à iniciação sexual nos prostíbulos). Por fim, caberia ao médi-
co e ao professor o ensino “científico” do mecanismo biológico da
reprodução em toda a sua amplitude e detalhes, bem como no que diz
respeito à higiene sexual, tanto aos filhos quanto aos pais – com vistas
a prepará-los a exercer de modo o mais competente e eficiente possí-
vel as suas respectivas funções na educação eugênica de sua prole.
Assim, a educação e os demais procedimentos de controle eugêni-
co da população propiciariam a realização de uma assepsia adequada
da sociedade, bem como contribuiram significativamente na consoli-
dação do Brasil enquanto nação.

Considerações finais

O que se faz evidente nessa modalidade de assepsia concebida


por Kehl é que ele não visualiza, de qualquer modo, as causas da de-
gradação humana e, por conseguinte, da sociedade. As causas resi-
dem na própria constituição disgênica do indivíduo, herdada de seus
progenitores. Mas Kehl é incapaz de refletir com maior acuidade so-
bre os “fautores disgênicos”, uma vez que os naturaliza de uma ma-
neira tão radical, que lhes exclui sua natureza sócio-histórica, o que
lhe impede de refletir de maneira mais positiva sobre a interação entre
o meio-ambiente e o mecanismo da hereditariedade. Esse limite, toda-
via, não é característico de sua idiossincrasia diante de seu tempo e da
comunidade científica; antes, é próprio de toda a sua geração. Aliás,
essa questão da interação entre fatores genéticos e fatores epigenéticos
ainda hoje é uma questão não resolvida...

180
-ANTROPOLOGIA E SEGREGAÇÃO EUGÊNICA

Um outro limite constante à antropologia eugênica de Kehl, devi-


do a sua exacerbação naturalista, é a desestruturação quase total da
sociabilidade. O indivíduo eugênico de Kehl consiste ou em seus ge-
nes (seu corpo é assim, apenas a sua excrescência), ou em sua pele.
Todos os seus defeitos, vícios, doenças, taras e estigmas psíquicos e
somáticos, decorrem muito mais de sua constituição genética debilita-
da, uma vez que se trata de um heterozigoto complexo; um mestiço,
portanto. Deste modo, as intempéries do meio só lhe afetam, uma vez
que ele já é um débil racial. O homem adoece por causa de sua debili-
dade; jamais por fatores epigenéticos. Se a ameaça das doenças é ori-
unda dos elementos microbianos, a efetividade objetiva das moléstias
se realiza pela debilidade – racial e mendeliana – do indivíduo.
Se há alguma possibilidade, nas Lições de Eugenia (Kehl, 1935), de inte-
ração entre fatores epigenéticos e fatores genéticos, entre meio-ambiente e
indivíduo, essa interação só ocupa algum papel pertinente na medida em
que é proporcionada pela condição cacogênica do indivíduo. Neste senti-
do, trabalhando com um conceito expandido de “meio-ambiente”, de tal
forma que englobe a sociedade, esta não passa de um conglomerado de
corpos – enquanto repositórios genéticos ou recheios para a pele – que,
para além de suas diferenças, são hierarquicamente distintos e relaciona-
dos. Essa hierarquia social dos indivíduos é regulada pela seleção natural,
preconizada por Darwin, de tal modo que garante a fidalguia eugênica e,
portanto, pode garantir o sucesso eugênico da sociedade, marcado pela
idéia de “nação”. A seleção natural configura, e assim redime, as relações
sociais e a interação entre indivíduo e sociedade.
Que o projeto epistemocrático da eugenia de Kehl não se realizou,
não nos resta a menor dúvida. No entanto, boa parte de suas intuições
ainda vigoram. Sob certos aspectos, velhas idéias e velhos ideais re-
nascem das cinzas, tal como fênix. Certamente, não estamos atual-
mente dispostos a realizar nenhum programa eugênico de
organização social, idéia que, por si só, já nos melindra, uma vez que,
de pronto, já nos lembramos do genocídio não apenas dos judeus, mas
de todos aqueles que não caracterizavam ou que ameaçavam macular
a raça ariana, desejada ad absurdum pelo III Reich em sua política eu-
genista, que, sob certos aspectos, foi tão elogiada por Kehl (os motivos
de seu elogio são eminentemente eugênicos e não nazistas, como se
pode erroneamente supor). Mas não nos deixemos enganar: da mesma

181
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

forma que ele elogiava a política genocida do nazismo, maquiando-a


de eugênica, Kehl também elogiava o povo judeu por sua “homoge-
neidade racial”, isto é, por sua incrível capacidade de se manter raci-
almente puro, a despeito de todos os infortúnios persecutórios que
sofreu na história (Kehl, 1930, p. 49-53).
Entretanto, vale repetir: contamos com os atuais avanços da Ge-
nética Molecular, com o tão propalado mapeamento genético – o
Projeto Genoma – e algumas de suas conseqüências diretas ou indi-
retas, tais como o screening genético, cujo exemplo mais famoso é o
“teste do pezinho” realizado no terceiro dia de vida do neonato –,
culminando no aconselhamento genético de casais; ou mesmo a pos-
sibilidade de manipulação genética de modo que se pode, preventi-
vamente, eliminar a possibilidade de doenças ou anomalia, bem
como permitir a escolha das características fenotípicas julgadas mais
interessantes.
Tais avanços, e a sua plêiade de possibilidades aplicativas, evidenciam
tanto a nossa vontade de saber, quanto de controlar nossos destinos e nossa
descendência. A nossa antropologia não é mais um simples “objeto” que
pode ser apreendido em alguma pesquisa etnográfica; a nossa antropologia
é de uma virtualidade extrema, porquanto ela tende a ser aquilo que lhe
projetamos. O homem, quer na sua individualidade ou em sua condição
social, não é um dado, não tem existência prévia, mas é um “vir-a-ser”,
uma projeção visada e, algumas vezes, alcançada, daí sua virtualidade. Nós
somos na medida em que nos constituímos. O que tem implicações éticas
de enorme importância. Essa nossa vontade de saber mais sobre nós mes-
mos, sobre nosso ‘íntimo genético’, e essa nossa vontade de sermos capazes
de nos auto-constituir e auto-governar (termo emprestado de Foucault,
1980) e de bem gerir a vida dos outros (nossos filhos), por sua vez, é a reali-
zação fática e histórica de nossa vontade de perfeição. Mas, no final das
contas, não era a perfeição do indivíduo humano visada por Kehl em sua
epistemocracia eugênica? Não instauramos nenhuma forma radical de
governo e organização eugênica da sociedade; mas seguramente todos nós
somos amplos defensores do auto-governo de nós mesmos (o pleonasmo é
aqui proposital). Os avanços da Genética Molecular e suas aplicações eu-
gênicas moderadas são apenas algumas possibilidades, viáveis e desejadas,
para alcançar essa vontade de perfeição, que tanto nos afeta enquanto indi-
víduos, bem como na condição de seres sociais.

182
-ANTROPOLOGIA E SEGREGAÇÃO EUGÊNICA

No entanto, a permanência desses “velhos ideais em novos o-


dres”, seja na Genética, na Medicina, na Bio-Medicina, e principal-
mente na Cultura e na Sociedade, não foram objetos de nossa
exposição. Registre-se, contudo, a proposta. Afinal, o nosso anti-herói,
Renato Ferraz Kehl, médico e um dos grandes propagandistas do
movimento eugenista no Brasil, mediante suas idéias, ainda continua
vivo – e mais vivo do que nunca – entre nós.

Referências

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183
7

EGENERANDO EM
BARBÁRIE: A hora e a
vez do eugenismo radical
JOSÉ ROBERTO FRANCO REIS

Dai a aspiração ambicionada pela Eugenia, a verdadeira religião da


humanidade, de uma perfectibilidade maior para a espécie humana
na dupla visada física e mental. Apurando as qualidades da raça,
evitando a reprodução dos defeituosos nocivos à espécie pela
transmissão de taras aos descendentes e prevenindo os fatores de
degeneração humana pelo combate ao alcoolismo, sífilis,
tuberculose etc [...], a Eugenia paira hoje acima de devaneios
biológicos. Exprime uma ciência natural e matéria subsidiária da
política e da sociologia (Riedel, 1922, p. 4).

Completamente fascinado pelas possibilidades reparadoras da


eugenia para a espécie humana, Gustavo Riedel, após seu retorno
como representante brasileiro de um Congresso Médico Latino-
Americano realizado em Havana resolve fundar, em janeiro de 1923,
junto com outros psiquiatras, a Liga Brasileira de Higiene Mental (do-
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

ravante LBHM ou simplesmente Liga), instituição que reunia a elite


da psiquiatria nacional, dela fazendo parte também diversos médicos,
educadores, juristas e intelectuais em geral, e cujo objetivo era, através
de medidas de prevenção eugênica, combater “os factores compro-
mettedores da hygiene da raça e à vitalidade da Nação” (Riedel, 1922,
p. 7). Procurava divulgar seus postulados através de uma variedade
de meios, ou seja, artigos na imprensa, folhetos de propaganda, pales-
tras, pronunciamentos radiofônicos e também pela veiculação de uma
revista própria chamada Archivos Brasileiros de Hygiene Mental (do-
ravante Archivos ou ABHM), que começou a circular em 1925. Além
disso, pretendiam oferecer diversos serviços à população, efetivando,
assim, uma intervenção propriamente prática dos princípios que pro-
fessavam. De fato, durante os anos de sua existência, a LBHM montou
laboratórios de psicologia aplicada, ambulatórios de psiquiatria, con-
sultório gratuito de psicanálise, aplicou testes psicológicos em escolas
públicas e em fábricas, organizou diversas semanas anti-alcóolicas,
montou uma “Clínica de Eufrenia” infantil, além de estabelecer con-
tratos de assistência psiquiátrica com a prefeitura (Reis, 1994).
Assim, movidos pelo ideal de aperfeiçoamento eugênico do ho-
mem brasileiro, os psiquiatras da LBHM vão definindo seu campo de
ação, elegendo certos temas como prioritários, na tarefa de garantir a
“defeza da mentalidade da raça”, combate ao alcoolismo e ao “vícios
sociais”; imigração selecionada; controle dos casamentos (para preve-
nir uniões indesejáveis, bem como incentivar as eugenicamente dese-
jáveis); esterilização compulsória dos ditos degenerados; seleção e
orientação profissional; atenção à infância para um desenvolvimento
mental sadio e eugênico.
Particularmente no caso do Brasil, segundo entendiam, a tarefa
eugênica se tornava mais urgente e grave, face ao estigma da miscige-
nação, esse risco grudado, literalmente, à pele (e à alma) do brasileiro,
que tanta insegurança causava aos destinos da Nação. Como afirmava
Riedel, “a mestiçagem representa um degrao da incorporação socio-
gênica e nunca um equilíbrio ethnico estável”, provindo daí a “inquie-
ta consciência que temos de transitoriedade de nosso estado actual”
(Riedel, 1922, p. 50). Por isso, desde a criação da LBHM que, ao lado
dos objetivos preventivos da higiene mental, se observa a presença
freqüente da proposta eugênica. Com efeito, além da menção expressa
no seu primeiro estatuto, a própria ata de fundação da instituição

186
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

tornava claro essa intenção eugênica, afirmando que o seu objetivo era
“fornecer à [...] população os benefícios da divulgação e propagação
das noções exatas da eugenia mental, num plano uniforme de defeza
da mentalidade da raça” (Archivos..., 1941, p. 92).
Na verdade, a eugenia despertou grande interesse não apenas no
meio psiquiátrico e médico brasileiro, mas nos meios intelectuais em
geral, obcecados que se encontravam pela construção de uma autênti-
ca nacionalidade, no qual a questão racial aparecia como um ponto
chave a ser equacionado. Conforme aponta Nancy Stepan,

la eugenesia en Brasil debe verse como um subproduto del entusiasmo


nacional generalizado, como la 'regeneracion' que recorrio a la
'intelligentsia' en el decenio de 1920, y para la ciencia misma como un
signo de modernidad cultural. Una ciencia que se ocupaba del
'majoramiento de la raza' tenia un atrativo obvio para uma elite
convencida del poder de la ciencia para crear 'orden y progreso' y
molesta por la composicion racial de su pais (1985, p. 361).

Embora tenham como eixo unificador de suas propostas a ques-


tão da prevenção eugênica, é possível afirmar que, quanto aos modos
e limites da intervenção, os psiquiatras da Liga Brasileira de Higiene
Mental apresentassem razoáveis divergências; diferenças de ordem
religiosa, moral, política e mesmo teórica entre seus quadros. Assim,
existiam desde os mais radicais, que defendiam medidas repressivas
marcadas pela obrigatoriedade, até aqueles que professavam posturas
mais persuasivas, com caráter de educação frente a certas questões.
Havia discordâncias quanto à adoção da lei seca como melhor meio de
se combater o flagelo do alcoolismo (Reis, 2000). No que diz respeito à
questão racial, não houve uma adesão efetiva ao que Freire Costa
identificou como “ideologia da pureza racial”, isto é, de condenação à
miscigenação racial e que tinha repercussões na forma de enfrenta-
mento da questão imigratória (Reis, 1999, p. 161-184). Pelo contrário,
as posições assumidas divergiam bastante, podendo-se dizer que, se
algum consenso houve, foi em torno da crença racista do branquea-
mento da população. Também quando Renato Kehl atacou o catoli-
cismo acusando-o de ser o “factor máximo das perturbações e
desgraças de ordem sexual que assistimos na parte do mundo povoa-
do pelos que se acham a elle escravizados”, os Archivos publicaram

187
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

uma declaração, na qual ressaltavam que, na Liga, “de modo algum


existe unanimidade em favor dos pontos de vista defendidos pelo
autor” (Kehl, 1934, p. 109-110). O mesmo se dá em relação ao texto de
Farani (1931), que debateu o tema das “proles degeneradas”, e que
resultou em ataque violento à Igreja, tratando a instituição de emitir
nota de pé de página esclarecendo “caber pessoalmente ao nosso con-
sócio a responsabilidade dos conceitos de feição polemista que se en-
contram no seu trabalho” (Farani, p. 169, 1931). Nota-se, nesses casos,
que a influência do catolicismo era entendida como a principal barrei-
ra de resistência à adoção de medidas como a esterilização e o exame
pré-nupcial obrigatório.
Pelo que pudemos observar, contudo, em uma linha de prevenção
eugênica a que chamamos “dura”, certas posturas radicais ganham
fôlego novo, encontrando crescentemente defensores resolutos no seio
da instituição. Assim é que “esterilização dos degenerados”, controle
médico/estatal dos casamentos, segregação compulsória (de aliena-
dos e ex-alienados) por motivo eugênico, proibição pura e simples da
imigração das raças negra e amarela, medidas definidas como “euge-
nia restritiva” ganham cada vez mais espaço entre as propostas de
ação da Liga, enfeixadas pelos programas regeneradores da eugenia.
Se haviam opositores a essas medidas, e acreditamos que sim, estes
mostravam-se acuados, para não dizer omissos, frente à atitude ofen-
siva do eugenismo radical. Entretanto, nos primeiros números dos
Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, há uma série de artigos ver-
sando sobre higiene mental em geral e muito pouco faz menção às
medidas eugênicas duras como as citadas acima (embora de eugenia
sempre se falasse, porquanto foi essa uma das inspirações principais
de Riedel quando fundou a Liga), com exceção notória de Renato Kehl,
cuja trajetória, porém, bastante pessoal, não pode ser confundida com
a da instituição como um todo.
Do mesmo modo, no Congresso de Higiene de 1924, Fontenelle,
ao expor os objetivos da higiene mental não esconde, nesse momento,
suas hesitações em torno de certas medidas:

No trabalho de defesa, de prevenção e de profilaxia, urge cuidar de


medidas de eugenia, que visem diminuir os malefícios da
hereditariedade pathologica, agitando a necessidade de
regulamentar o casamento, talvez a de segregar ou de esterilizar os

188
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

grandes deficientes, mas certamente a de pôr cobro a livre entrada


de imigrantes de mentalidade anormal e de deportar os que
conseguirem penetrar no paiz, provado que já não desembarcaram
no estado de saúde mental [grifo meu] (Noticiario, 1925, p. 194).

Em certa medida, é lícito supor que, desde que a idéia eugênica


acampou em terras brasileiras, essas propostas mais radicais habita-
vam a imaginação de certos psiquiatras em seus propósitos regenera-
dores da espécie humana. Com efeito, esse tipo de medida bem pode
ser visto como uma conseqüência natural dos pressupostos teóricos
até certo ponto fatalistas da medicina mental, que elevava a herança
biológica à condição de juíza suprema dos comportamentos humanos.
É bem verdade também que sempre se observou a necessidade - e
utilidade - de deixar uma porta aberta às influências do meio, as cha-
madas “causas ocasionaes”, que propugnavam pela adoção de medi-
das de caráter mais social e educativo que resultasse em “uma
formação moral mais apurada” tendo em vista o que isso significava
em termos de alargamento do seu campo de ação. É certo, porém, que,
para a maioria dos psiquiatras, a questão da herança permanecia ocu-
pando a cena como atriz de destaque. Essa é a opinião formulada pelo
secretário da Instituição em editorial dos Archivos... na condição de
bom hereditarista:

É preciso saber, entretanto que se a higiene mental muito tem a vêr


com o aperfeiçoamento dos methodos educativos, muito mais
ainda deverá cuidar da parte biológica procurando evitar as eivas
hereditárias. A educação poderá sem dúvida sublimar o caracter e
impedir a eclosão de psychoses nas pessoas normaes ou mesmo
predispostas. Não poderá, todavia, obstar que as taras se
transmittam e que a degeneração se propague (Caldas, 1930, p. 36).

Sendo assim, é razoável admitir que essas idéias mais duras da


prevenção fossem desejadas pelos psiquiatras desde que enxergassem
nas proposições eugênicas a panacéia contra a degeneração hereditá-
ria. Ocorre talvez que, em um primeiro momento, nem mesmo aque-
les que sempre optaram por esse caminho mais duro estivessem
dispostos a defender abertamente certas idéias cujo teor polêmico era
explosivo. Obrigatoriedade de exame pré-nupcial e esterilização dos
“degenerados”, por exemplo, encontravam forte resistência em inú-

189
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

meros setores da sociedade, particularmente da Igreja (Vilhena, 1988).


Como reconhece Kehl, em artigo de 1925, a exigência legal de exame
pré-nupcial “apesar da evidência e clareza de seus fins salutares” e
sobretudo a “esterilização dos indivíduos inaptos para as bôas procre-
ações, degenerados somato-psychicos” eram medidas que sofriam
intenso combate, segundo ele, por puro preconceito (Kehl, 1925, p. 69).
Nosso objetivo, neste texto, será observar como se deu esse pro-
cesso de radicalização que sugerimos ter ocorrido, por volta dos anos
30, no interior da Liga Brasileira de Higiene Mental, explorando-o por
intermédio da investigação de uma das propostas mais duras de sele-
ção eugênica: a esterilização compulsória, que, como já dissemos, pa-
rece ter ganho crescentes defensores na instituição. Ademais,
consideramos esse tema da esterilização paradigmático, servindo para
mostrar como certas medidas eugênicas, para muitos psiquiatras,
ultrapassavam largamente o limite de fórmulas puramente técnicas ou
científicas. Em outras palavras, por trás de uma máscara científica
exibe-se a face crua de um discurso de ambições políticas óbvias. As-
sim, o que se observa é a plena aceitação de uma ideologia científica
cujo conteúdo, porém, mal esconde uma concepção política de nítido
molde autoritário e crescentemente intolerante e preconceituoso. Por
isso, tratemos de explorar com vagar esse tema, com o intuito de ava-
liar o quanto a esterilização sinaliza a exigência de um outro patamar
de realizações eugênicas por essas bandas, com suas implicações polí-
ticas inegáveis.

Esterilização compulsória: “sábia lei de prevenção dos males


hereditários”

É absolutamente razoável admitir que medidas de esterilização eu-


gênica contassem, desde os primórdios da Liga, com a simpatia de vários
psiquiatras e médicos da instituição, já que tantos passam a defendê-la
abertamente a partir de 29/30. Antes desse período, porém, Kehl era
quase que um divulgador solitário. É certo que, para muitos, tratava-se
antes de uma avaliação realista da sua oportunidade política, reconhe-
cendo as dificuldades de se defender tal medida, dada a resistência de
importantes setores sociais a sua adoção. É o que sugere, por exemplo, a
confissão de Lopes, de que ele havia proposto a inclusão do adjetivo

190
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

“grandes” em artigo de Kehl, (1925) sobre o assunto, Archivos em 1925


(de fato acabou saindo sob o título “A esterilização dos grandes degene-
rados e criminosos”), como uma “concessão [...] às possíveis suscetibili-
dades do meio”. Mesmo em 1934, quando o eugenismo radical já
caminhava a plenos pulmões, é possível observar a consciência que os
psiquiatras tinham acerca da dificuldade de aceitação de medidas de
eugenia restritiva como a esterilização. Assim, em uma nota de pé de
página referente à resenha do livro de um autor alemão sobre o tema,
feita por Gustavo Rezende, o editor dos Archivos comenta:

Vale a pena lembrar aqui que entre povos muito susceptíveis no


tocante a medidas legais de apparencia draconiana, como essa da
esterilização eugenica seria, talvez, indicado começar pelos casos
como os dois citados pelo autor em que a tara transmissivel não é
somente um disturbio mental, é também uma tendencia delictuosa.
Em face de semelhante duplicação de malefícios, haverá ainda
quem se mantenha systematicamente contrario a esterilização
eugênica? (Rezende, 1934, p. 345).

No entanto, parece que a medida, em alguns casos, já era posta


em prática. Acompanhando exposição de Ernani Lopes na reunião da
Seção de Cirurgia e sistema Nervoso da LBHM, este comenta que
Juliano Moreira relatara-lhe que vinha autorizando, há algum tempo,
medidas de esterilização nos casos em que se “impunha a indicação
[...] em mulheres alienadas passíveis mais tarde de cura e alta” (grifos
nossos), sendo realizado “concomitantemente com outras interven-
ções porventura indicadas” (Lopes, 1930, p. 110). Pelo exposto, dá-se a
entender que a medida era adotada dispensando-se a autorização das
próprias interessadas, e até de suas famílias, que talvez nem ficassem
sabendo do ocorrido.
Observa-se, também, que a intervenção esterilizatória era feita em
mulheres tidas como “passíveis de cura e alta”, como salienta Moreira, o
que, bem entendido, revela a verdadeira obsessão dos psiquiatras em
torno da transmissão hereditária de taras e degenerações. Nesse caso,
independentemente do indivíduo já estar curado, este deveria ser esterili-
zado (ou segregado, tese de Ernani Lopes que mencionaremos mais adi-
ante), pois sua herança continuava sendo um risco para o
aperfeiçoamento racial do brasileiro. Com efeito, conforme argumentava

191
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Farani em seu artigo “Como evitar as proles degeneradas”, mesmo admi-


tindo que nas “famílias de anormaes nem todos os produtos são acentu-
adamente tarados”, podendo haver até alguns “bons senão optimos”,
isso não invalidava a medida, apenas impunha uma certa prudência em
sua adoção. Isto porque, no caso do nascimento de indivíduos bons, por
herança recessiva, estes poderiam “vir a perturbar a sociedade com im-
previstos elementos maus”. A “hypothese possível de descendentes
bons” não deve prevalecer “sobre a probabilidade de elementos nocivos”.
São inúmeros os casos, acrescenta o psiquiatra, de “casais onde apenas
um dos progenitores seja degenerado para que haja na descendência o
predomínio definitivo dos tarados” o que justificava largamente a esteri-
lização preventiva (Farani, 1931, p. 169).
Ora, isto era assim em 1931, ano da publicação do texto de Farani,
tal como devia ser bem antes, isto é, desde que os psiquiatras vestis-
sem a camisa da tese da degeneração hereditária, que, fato fácil de
verificar, dava suporte ao conjunto de argumentos oferecidos no cita-
do artigo. Ademais, a própria declaração de Ernani Lopes, menciona-
da há pouco, de que Juliano Moreira vinha autorizando medidas de
esterilização, ser publicamente confessada em reunião da Liga ocorri-
da em junho de 1929 (foi publicada no número de abril de 1930 dos
Archivos), vem em reforço ao argumento de que certas propostas
duras de eugenia, passam, a partir de determinado momento, a ser
defendidas sem qualquer constrangimento, nem moral nem legal,
tendo em vista que essa era uma prática não admitida por lei como o
próprio autor reconhece na sua exposição. Sendo assim, é lícito propor
a existência de um, digamos, renascimento da campanha eugênica no
Brasil, em moldes mais radicais, ocorrida sobremodo a partir da vira-
da dos anos 30. Nesse momento, aquilo que era defendido por alguns
poucos e de forma meio tímida, passa a ser feito aberta e despudora-
damente.
De acordo com o ponto de vista defendido neste trabalho, não nos
parece muito convincente interpretar esse processo de radicalização
da Liga como conseqüência de algum tipo de mudança na referência
teórica do eugenismo psiquiátrico, em termos da passagem de uma
biologia de base lamarckiana para outra fundamentada na genética
mendeliana. Alguns autores, em relação ao movimento eugênico na-
cional como um todo, têm procurado enfatizar essa passagem como

192
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

elemento explicativo. Nancy Stepan, por exemplo, sugere alguma


coisa nessa direção quando afirma que Renato Kehl, à medida que sua
crença no lamarckismo era abalada, e ele se aproximava de uma certa
concepção mendeliana, radicalizava seu ponto de vista eugênico no
sentido de enfatizar medidas restritivas como a esterilização, exame
pré-nupcial obrigatório e de se opor a qualquer forma de miscigena-
ção entre raças (Stepan, 1985, p. 367-368). Independentemente do acer-
to da informação quanto aos questionamentos teóricos de Kehl, é
preciso lembrar que medidas radicais sempre fizeram parte do cardá-
pio eugênico do autor (fosse ele mendeliano ou lamarckiano sempre
viu com maus olhos a miscigenação racial) e, se muitas vezes sua di-
vulgação se tornava difícil (quem reconhecia isso era o próprio euge-
nista), era pela soma de resistências que encontrava, tratando-se, pois,
muito mais de uma questão de oportunidade política.
De qualquer modo, o fato é que, especificamente em relação ao
processo de radicalização eugênica ocorrida no interior da Liga,
enfatizar essa ruptura teórica como elemento explicativo parece-nos
senão exatamente incorreto, pelo menos dispensável. Vejamos, por
exemplo, a pérola de definição do problema apresentada por Gusta-
vo Riedel, lamarckiano confesso, ao discutir o papel da educação
eugênica dos “dispensários psiquiatricos” no I Congresso Brasileiro
de Eugenia:

A experiência tem no entanto demonstrado que a predisposição


hereditária poderá ser attenuada nos descendentes pelos methodos
educativos, que transformam a mentalidade e o physico,
moderando a predisposição, orientando o espírito e tornando o
homem adaptável ao meio ambiente, por isto, a importância da
educação cresce tanto mais, quanto mais se discute a applicação das leis
mendelianas á hereditariedade das doenças mentaes. Si auctores de
mérito têm tendência manifesta em attribuir valor maior ás causas
occasionaes, demonstrando que no homem a lei mendeliana da
hereditariedade nem sempre é observada, comprehender-se-á dahi o alcance
da acção educadora do serviço social do dispensário psiquiátrico [grifos
nossos] (Congresso..., 1929, p. 307).

Isto é, se as leis mendelianas da hereditariedade são aplicáveis


às doenças mentais, valoriza-se o papel educativo do dispensário
psiquiátrico (“cresce tanto mais”); porém se tal lei não se aplica,

193
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

compreende-se o “alcance da acção” educadora do dispensário


psiquiátrico.
Assim, a despeito da validade de se analisar as bases teóricas que
informavam as ações eugênicas dos psiquiatras da Liga, consideramos
mais importante, na perspectiva deste trabalho, investigar as matrizes
políticas e ideológicas e os objetivos de poder da instituição, ainda
que, por se tratar de um movimento que reunia “homens de sciência”,
seus programas e ações se revestissem necessariamente de um manto
de cientificidade que por certo deve ser levado em conta, porquanto
seja isso um componente ideológico eficaz de poder.
Acompanhando, então, preferencialmente, esse quadro de referência,
consideramos que alguns acontecimentos podem ser apontados como
tendo influência na mudança de atitude dos psiquiatras da Liga. Um
primeiro ponto de inflexão que pode ser identificado é, possivelmente, o
Congresso Brasileiro de Eugenia, ocorrido em 1929, que reuniu a nata da
inteligência brasileira, sobretudo médica, sendo inclusive organizado sob
o patrocínio da Academia Nacional de Medicina, à frente Miguel Couto.
É claro que a própria existência do Congresso sinaliza o crescimento do
movimento eugênico no Brasil, o qual, de outra forma, não teria reunido
condições para a sua realização. Entretanto, nossa sugestão é que o even-
to pode ter funcionado como uma espécie de aval definitivo da corpora-
ção médica, e da intelectualidade em geral, às teses eugênicas. Nesse
caso, a medicina mental sente-se prestigiada e motivada na condição de,
se não pioneira, certamente ponta de lança na fase atual do movimento
eugênico. A única, por exemplo, que possuía uma instituição explicita-
mente com esse fim. É notável, durante o Congresso, o protesto do presi-
dente da LBHM, Ernani Lopes, à idéia de que a eugenia no Brasil não
vinha sendo pensada, posto que “a sociedade que dirige a Liga de Higie-
ne Mental - e outra e de existência anterior a esta - a Sociedade de Euge-
nia de São Paulo, ambas têm em seu programa a divulgação e a
propaganda da Eugenia” (Congresso..., 1929, p. 13). Ressalta-se o fato de
que a Liga, desde sua criação, em 1923, era, dentre as duas citadas, a que
se encontrava em plena atividade, já que a entidade de São Paulo não
resistiu mais que dois anos, findando seus trabalhos em 1919.
Além disso, a instituição foi a única, segundo as atas do Congres-
so, que recebeu voto de congratulações pela “acção que vem desen-
volvendo em prol da Eugenia” o que sinaliza seu pleno

194
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

reconhecimento como vanguarda desse movimento. Ora, os psiquia-


tras devem ter se enchido de satisfação e expectativa na qualidade de
agitadores principais desse movimento, como quem se sente final-
mente reconhecido em seus esforços. O fato é que, doravante, a euge-
nia pode ter sido encarada como definitivamente admitida pela
comunidade intelectual e científica, questão de magna importância
relacionada à regeneração nacional que não podia ser adiada em fun-
ção de “escrúpulos inconciliáveis com o ponto de vista scientífico”,
como afirmou Ernani Lopes na I Conferência Latino-Americana de
Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal (Lopes, 1929). Não que se
trata, aqui, de considerar que certas abordagens mais radicais da eu-
genia tenham obtido finalmente consenso. Nada disso. O Congresso,
pelo contrário, se caracterizou por ampla polêmica em torno de certos
temas (Marques, 1994, p. 63-67). Apenas defendemos a idéia de que o
evento possa ter funcionado como uma espécie de salvo conduto da
comunidade científica às proposições eugênicas em geral, desencade-
ando, então, uma ampla ofensiva daqueles que professavam, desde
sempre, medidas duras de eugenia. Não haveria mais razão para que
qualquer idéia, por mais explosiva que fosse, permanecesse timida-
mente discutida, assunto entre pares. Pelo contrário, isso passa a ser
até “anti-patriótico”, desde que todos a reconhecessem, polêmicas à
parte, como condição de possibilidade de construção da Nação.
É de se notar, também, que no mesmo ano do Congresso, com al-
guns meses de antecedência, Renato Kehl começa a editar um Boletim
de Eugenia que “precede nesta capital a fundação de um Instituto
Brasileiro de Eugenia”. Embora o seu editor afirmasse que o Boletim
vem preencher uma lacuna, posto que “depois da publicação dos An-
nais de Eugenia, em São Paulo, não apareceu no país qualquer outra
publicação especializada sobre esta ciência”, reconhecia o papel de-
sempenhado pela LBHM nesse vazio, quando definiu que o Boletim
seria “filiado à Liga de Higiene Mental [e] incluirá certamente no seu
programa tudo quanto se referir a este ramo de íntima conexão com
os propósitos da ciência de Galton”. Mais adiante cita os “professores
Ernani Lopes, J. Porto-Carrero, Murilo Campos e Heitor Carrilho
“que, a seu lado, serão os organizadores do futuro Instituto Brasileiro
de Eugenia”. Repara-se, nesse caso, que todos são conhecidos “menta-
listas”, membros de destaque da LBHM. Em outro momento esclarece

195
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

porque só agora é possível pensar em organizar uma instituição na-


cional completamente dedicada aos propósitos eugênicos: segundo
Kehl, isso deve-se ao fato de “até bem pouco tempo [...] os eugenistas
brasileiros serem em tão pequeno número que não chegam talvez a
meia dúzia.” Logo em seguida, lembra a realização do Congresso
Brasileiro de Eugenia, previsto para julho desse ano, o que de certa
forma, atesta um diálogo possível com esse evento (Kehl, 1930).
E mais, se atentarmos para o fato de que a informação de que Juli-
ano Moreira vinha autorizando práticas de esterilização ser relatada
em público no momento em que o psiquiatra Ernani Lopes, fazendo a
defesa dessa medida lembra, durante reunião da Liga, o contexto
“mais de que nunca opportuno” de se trazê-la à tona, pois se está “em
vésperas do I Congresso Brasileiro de Eugenia”, a relação com esse
evento fica evidente. É inclusive proposto moção da Seção de Cirurgia
da Liga, “no sentido de applaudir a idéia da esterilização eugênica
dos degenerados” quando intervém Farani, comunicando que já tinha
pronta memória sobre o assunto e que a enviaria ao Congresso “no
qual conclue pela legitimidade da esterilização em apreço respeitadas
as indicações dos neuro-psychiatras”, como de fato o fez (Farani, 1930,
p. 110-111).
Assim, parece-nos mais que razoável admitir que o Congresso
Brasileiro de Eugenia tenha tido algum efeito para os psiquiatras em
termos de uma atitude ofensiva e pública em favor de certas teses
eugênicas, apontando, ao mesmo tempo, o papel sobressalente da
Liga nesse processo.
É evidente, todavia, que o evento de 29 não explica tudo. Muito
mais do que este, é possível que a conjuntura política que começa a se
insinuar a partir dos anos 30 no país tenha exercido grande influência
nesse “renascimento” radical da eugenia, porque os psiquiatras reco-
nheciam a presença, nos anos 30, de um novo modelo de Estado no
Brasil, de feição crescentemente intervencionista, e, portanto, anti-
liberal, mais propenso a ações ordenadoras e racionalizadoras da soci-
edade. Nesse caso, apresentando-se como mais compatível com a ado-
ção de medidas eugênicas duras, cuja resistência era grande,
provavelmente encorajando-os na defesa pública de certas idéias mais
radicais. É possível observar isso no artigo em que Ernani Lopes pro-
cura justificar o que chamou de “Alta tardia dos heredo-psycopathas”,

196
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

eufemismo usado para a defesa de medidas de “segregação compul-


sória” por razões eugênicas. Afirma o psiquiatra que, dentre as obje-
ções postas a essa medida, “logo se levanta o princípio da liberdade
individual”. Em nome desse critério jamais será possível “reter em
sequestro um alienado curado ainda que seja ele um “portador de
taras”. Para tanto, “bastará um simples 'habeas-corpus' para ser 'in-
continenti' obtida a liberdade do ex-insano”. E acrescenta, em tom
melancólico: “sim de facto, hoje em dia, seria assim infelizmente”
(Lopes, 1934, p. 281). Ressalta-se que esse texto é de outubro de 1934,
período constitucional do governo de Vargas, que, “infelizmente”,
conforme expressão do autor, permite tais salvaguardas legais. E mais
adiante afirma:

mas é isso que um sábio dispositivo legal pode impedir [...] a


preocupação de resguardar a collectividade, cada vez mais
dominante nas civilizações contemporâneas está indicando que o
dever do advogado por vezes tem de se afastar dos critérios
clássicos compendiados pelo grande Ruy Barbosa [...] Casos
existem em que os direitos de um presumível constituinte
indivíduo não poderiam ser defendidos a todo transe, senão com
grave prejuízo da sociedade e da raça (Lopes, 1934, p. 282).

Do mesmo modo, é possível verificar que geralmente se acusa os


contraditores das medidas de esterilização de se basearem em argu-
mentos liberais, que levam em conta “sempre a salvaguarda dos direi-
tos do indivíduo”. Como reconhece Farani, em tom irritado, “é a
sempiterna repetição da these individualista, menosprezando a colle-
tividade quando a tendência moderna, quer scientífica, quer social ou
política, trata de mostrar o predomínio benéfico da concepção oppos-
ta, isto é, o sacrifício do indivíduo ao bem social” (Farani, 1931, 177).
Os exemplos são muitos, e em seu conjunto reafirmam a necessidade
de uma ordem política que, em defesa da sociedade e da saúde coletiva
da raça, retifique o agir egoísta do homem liberal afastando, pois, certos
óbices legais à ação ordenadora do Estado, de forma a fornecer a alguns
poucos iluminados os instrumentos imprescindíveis para que se ponha
em prática as medidas racionais que a ciência eugênica exige.
Uma terceira ordem de acontecimentos que pode estar na base
dessa radicalização eugênica é certamente a presença crescente do

197
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

modelo eugênico alemão no Brasil. Com efeito, desde o final dos anos
20 que a eugenia vem refazendo seu percurso na Alemanha, chegando
a dimensões paroxísticas no período nazista, e que, de certa forma,
vem lançando suas luzes no cenário brasileiro por intermédio de par-
cela expressiva de psiquiatras patrícios que se deixam seduzir por esse
modelo (Costa, 1978, p. 40; Roll-Hansen, 1988, p. 318-323). Jurandir
Freire Costa, em estudo sobre o tema, chega a considerar essa influên-
cia a “razão fundamental da transformação do ideal eugênico da
LBHM” (1978, p. 40). Observando atentamente a questão é possível,
contudo, sem propriamente negar a assertiva de Costa, propor uma
outra leitura dessa presença, de resto inegável. Sugerir um outro lugar
hierárquico à influência eugênica alemã na economia explicativa dessa
transformação. Um dos temas através do qual é possível discutir de
forma pontual o significado dessa repercussão no Brasil é o referente à
adoção de práticas de esterilização compulsória. Com efeito, um acon-
tecimento que bem demonstra os novos contornos radicais da eugenia
no Brasil e que, simultaneamente, ilumina os desdobramentos políti-
cos dessa transformação é o entusiasmo com que foi recebida a entra-
da em vigor da “lei alemã dos doentes transmissores de taras” de 1933
(entrou em vigor em janeiro de 1934). Saudada como “nova e grande
lei” mereceu tradução imediata e integral nos Archivos (1934).
Cegos, surdos, epiléticos, alcoólatras graves, esquizofrênicos etc. ,
ou seja, qualquer um que, “a partir das experiências da ciência médi-
ca”, possa-se esperar, “com uma forte probabilidade”, que seus “des-
cendentes sejam portadores de alguma tara hereditária física ou
mental grave”, estavam na mira dessa lei, cuja decisão ficava a cargo
de um “tribunal de saúde hereditário”. Decidida a esterilização esta
deve ser executada mesmo contra a vontade da pessoa interessada”.
Como afirmava Cunha Lopes (1934), essa era uma lei elaborada
por um governo que “lança apelo a todas as suas forças vitais para
arrancar-se da miséria e da opressão”. Uma lei com “sólida base
científica redigida pelas maiores autoridades mundiais em heredo-
patologia” (Cunha Lopes, 1934, p. 256). Ora, isto não foi feito assim
de uma hora para outra, de forma imprevidente. Representava tra-
balho persistente, “realizado metodicamente em todo o Reich desde
antes da grande guerra até a ousada ascenção de Hitler”. Assim, o
modelo liberal, na contramão dos avanços da ciência, era denuncia-
do como muito condescendente com certos caprichos individualis-

198
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

tas, pondo-os à frente dos interesses da coletividade “quando a sci-


ência e a sociedade propugnam cada vez mais pelos direitos da soci-
edade” (Farani, 1931, p. 174).
Um Estado guiado pelas luzes da ciência não deve ceder a impul-
sos egoístas. Em apelo às “necessidades ingentes da comunidade” não
pode vacilar, pois o que está em jogo é a segurança nacional: “a higie-
nização das proles e o aperfeiçoamento etnogênico do país preterem
todas as liberdades” (Cunha Lopes, 1934, p. 256).
Ora, pelo exposto acima é obvio que a admiração ultrapassa, e
muito, os limites estritos da lei e sua “validade científica”. É toda uma
proposta política de Estado que ganha acolhimento e admiração.
Mesmo assim, ainda é possível se argumentar contra isso, postulando
que nem todos os que aplaudiram a lei necessariamente resvalassem
para um também apoio explícito do regime político alemão. Nesse
caso, poderia se recordar que a prática da esterilização já era admitida
legalmente em diversos países de molde político liberal, como os EUA
(alguns estados), Suíça, Canadá, Suécia etc. (Darmon, 1991, p. 193-204;
Roll-Hansen, 1988). Esse, inclusive, era o argumento de Pacheco e
Silva, em artigo de 1946, no qual dizia que os que atacavam a esterili-
zação esqueciam que ela,

entrou em vigor nos Estados Unidos em 1907 e que, desde então em


quase todos os estados da grande república norte-americana vem sendo
essa medida praticada com objetivo eugênico. Que dizer também de
métodos idênticos adotados há muito tempo nesse pequeno país
campeão da democracia, que é a Suíça? (1950, p. 409-410).

Seria o caso, então, de investigar que modelo democrático é esse que


admite esterilizações compulsórias como medidas benéficas à sociedade.
Para começo de conversa, convém esclarecer que liberalismo, ao contrário
do que sugere o psiquiatra, não é sinônimo de democracia. Como bem
discute Werneck Vianna, a exigência da ampliação dos direitos de cida-
dania é que forçou o liberalismo a incorporar o tema da democracia
(1976, p. 7), do mesmo modo que, adverte Munakata, liberalismo tam-
pouco equivale a uma postura contra a violência. A questão é saber quem
tem o monopólio do seu exercício. Desde os clássicos a resposta encontra-
se em um ente chamado Estado (1981, p. 10-12). De qualquer maneira,
não sendo nosso objetivo aqui iniciar nenhum tipo de discussão aprofun-

199
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

dada em termos de teoria política, apenas pretendemos frisar, no caso da


esterilização compulsória, que essa medida não deve ser vista como in-
compatível, em tese, com nenhum tipo de ordem política, sobretudo se
vista pelo prisma estreito do seu contorno formal. Do mesmo modo,
também não é o melhor caminho interpelá-la como corolário exclusivo de
qualquer outra. O certo, então, como forma de abordar adequadamente o
tema, parece-nos ser investigar as circunstâncias históricas precisas que
levaram tal ou qual país a adotá-la, ainda que estejamos convencidos,
como questão de princípio político e ético, de sua maior identificação com
fórmulas políticas coercitivas e autoritárias.
No caso americano, por exemplo, a maioria dos Estados que a a-
dotaram o fizeram por volta da década de 20. Interrogue-se esse perí-
odo de sua história e se verá, ao lado da prática política liberal, um
nacionalismo conservador que resulta em severo controle racial da
imigração; lei seca no caso do álcool; ressurgimento com todo vigor da
intolerância racial e política através de entidades “fascistas” como a
Klu-Klux-Klan; cruzada contra o ensino da teoria evolucionista nas
escolas em alguns estados; xenofobismo e histeria anti-comunista que
culminou na condenação e execução dos estrangeiros anarquistas
Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti; e esterilização compulsória (Link,
1965; especialmente sobre esterilização Grob, 1989, p. 166-178).
Entretanto, essa discussão pode ser abreviada para discutirmos o
caso brasileiro. Não resta dúvida de que a referência eugênica central,
para a maioria dos psiquiatras da Liga a partir dos anos 30, era a que
vinha se desenvolvendo na Alemanha, como o entusiasmo pela lei de
34 exemplifica. O próprio Pacheco e Silva, que acusa a anterioridade
dos EUA e da Suíça em termos de aplicações esterilizantes, reconhece,
em texto de 1936, a propriedade da lei Alemã, pois o legislador, quan-
do a pôs em prática, tinha em vista “atender a princípios sociais, eco-
nômicos e étnicos, para evitar os perigos de uma degradação
progressiva da humanidade para tipos biologicamente e espiritual-
mente inferiores, degradação que é justo se temer” (1937, p. 146). No-
ta-se, nesse caso, que o autor, já nessa época, chamava a atenção para
o seu estabelecimento “como medida de caráter étnico e eugênico” (p.
146), embora não se referisse a isso como sendo um problema.
Ademais, desde algum tempo que o “Instituto Alemão de Pesqui-
sas Psiquiátricas”, de Munique, vinha sendo elogiado como modelar.
A “Seção de Genealogia e Demografia” dirigida pelo professor Rudin,

200
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

era enaltecida freqüentemente, tendo alguns psiquiatras ido conhecê-


la pessoalmente, como é o caso de Pacheco e Silva que, em visita pro-
fissional à Alemanha, pôde admirar todo o seu sistema psiquiátrico.
(“Relatório ao Ministro Gustavo Capanema de sua viagem como dele-
gado do Brasil no Congresso Internacional de Psiquiatria Infantil” em
08. 11. 1937, Arquivo Gustavo Capanema, CPDOC). Henrique Roxo é
outro que comenta que o havia visitado três vezes até 1936 (Jornal...,
1942). Quando funda o Instituto de Psiquiatria, em 1938, afirma ex-
pressamente que ele seria organizado nos “moldes do de Munich”:

Em Munich, tive ocasião de observar um grande Instituto em que


pesquisas das mais interessantes eram feitas. Investigava-se
cientificamente a questão das raças e o Prof. Ernt Rudin me
mostrou detalhes dos trabalhos que haviam realizado e que eram
verdadeiramente admiráveis [...] Se eu conseguir obter para o
nosso Instituto de psiquiatria tudo quanto pretendo, ficará ele o
único no mundo capaz de se igualar ao de Munich dos tempos
antigos (Jornal..., 1942).

Cunha Lopes, em viagem de estudos à Alemanha, havia, inclu-


sive, estagiado na seção dirigida pelo professor Rudin. Além desse
instituto, também o “organizado departamento de ensino psiquiá-
trico” do “célebre hospital da 'Charité'“, localizado em Berlim, era
descrito entusiasticamente pelo psiquiatra:

Aí notamos grande elevação moral do conceito das


responsabilidades, da ética profissional, das obrigações técnicas de
assistência, e também a maior confiança no cumprimento dos
deveres de cada um para com os semelhantes. Assim, a internação
de qualquer paciente não se reveste de quaisquer exteriorizações
desconfiantes, como, via de regra, sóe acontecer nos serviços
especialmente destinado a tratamento de psicopatas. E as
informações sobre a história pregressa, sobre os antecedentes
familiares, etc...são prestadas com facilidade, amplamente, com
clareza. Nunca se verifica a preocupação de esconder, como se
fosse imoral, degradante ou menos nobre, referências, aliás,
importantes a taras psicopatológicas, degenerativas da estirpe.
Resulta daí uma anamnese precisa e completa. E, de tal maneira,
facilmente se compreende como conseguem os psiquiatras alemães
elementos básicos para auxiliar uma racional e sistemática higiene

201
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

racial, qual a que se funda nas pesquisas genealógicas” (Cunha


Lopes, 1935, p. 31-35).

Esse entusiasmo todo o leva a concluir que “seria muito de dese-


jar que se tomasse por modelo o programma, prático e fecundo, do
ensino psiquiátrico hoje realizado nas universidades alemãs” (Cu-
nha Lopes, p. 35, 1935). Em muitos casos, era todo o sistema de saú-
de alemão que Cunha Lopes glorificava.

5 milhões de berlinenses têm mais assistência médica que


quaisquer outros povos [...] O homem na Alemanha está encarado
segundo os preceitos da moderna higiene: é um capital que o
Estado procura inteligentemente aumentar. Todas as despesas em
assistência prestada à população são altamente compensadas pela
valorização qualitativa e quantitativa desse precioso capital. Que a
instrução e a assistência públicas são pedras angulares da sólida
cultura germânica e do notável progresso do Reich, não preciso
insistir (p. 31-35, 1935).

Também quando a Comissão Central Brasileira de Eugenia, or-


ganizada por Kehl em 1931, da qual faziam parte, entre seus dez
membros efetivos, o presidente e o vice-presidente da Liga, além
de outros membros da instituição, resolve divulgar as proposições
que pretendia apresentar à Assembléia Constituinte de 1933, deixa
explícito que essas “concordam, nos seus pontos fundamentaes,
com as sustentadas pela Comissão da Sociedade Alemã de Hygiene
Racial instalada a 18 de setembro de 1931” (Archivos..., 1932, p.
193).
Resta saber, porém, se esse encantamento com sua congênere a-
lemã resulta, antes, de uma afinidade (ou dependência) teórica da
LBHM, que a teria empurrado inadvertidamente a seguir “passo a
passo o avanço nazista no seio da psiquiatria alemã” como parece
sugerir, em determinado momento, Costa: “Esta disposição a assumir
sem reticências, a totalidade das opiniões de Rudin, nos dá a exata
medida da dependência teórica da LBHM para com a psiquiatria ale-
mã. Os psiquiatras brasileiros parecem ignorar que, adotando esta nova ori-
entação nos programas de higiene mental, seguiam, passo a passo, o avanço
nazista da psiquiatria alemã” [grifos nossos] (1978, p. 41). Do nosso pon-
to de vista entendemos que não. Os próprios textos citados acima

202
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

denunciam uma clara mescla de admiração teórica e adoração políti-


co-ideológica, ainda que, muitas vezes, isso aparecesse turvado pelo
emprego engenhoso de um discurso que dizia enxergar apenas ciência
e racionalidade (em alguns momentos essa preocupação não existia e
a admiração ao regime político nazista é explícita).
Nesse sentido, consideramos pouco provável que se trate funda-
mentalmente de uma questão anterior de pura influência intelectual,
isto é, uma decorrência da psiquiatria brasileira ter assumido “sem
reticências a totalidade das opiniões de Rudin”, como assinala Costa
(1978), e devido a isso se ver a braços com o nazismo alemão. Ou, dito
de forma mais precisa, não me parece ser esse o melhor caminho para
se compreender por que se deu a impregnação da psiquiatria higiêni-
ca alemã na sua congênere brasileira. Preferimos sugerir que tal psi-
quiatria, com sua vocação totalizante, isto é, de exercer-se como
prevenção eugênica em “todos os domínios da vida social”, como
queria Rudin, foi capaz de encantar, de obter eco, porque veio ao en-
contro de ambições políticas antigas da medicina mental brasileira, tal
qual a de se constituir enquanto obra regeneradora, social e racial, da
nação.
Com efeito, se acompanharmos atentamente o desenrolar históri-
co da psiquiatria brasileira, é possível perceber que dentro da perspec-
tiva da higiene mental, cujo suporte conceitual era dado pelos temas
da prevenção e da eugenia, habitava desde sempre uma larga vocação
totalizante, expressa na sua pretensão de regenerar o homem brasilei-
ro e, por extensão, a Nação. Por isso a necessidade, algumas vezes
reiterada por Gustavo Riedel, de estabelecer “uma ficha nacional tanto
da normalidade como da estigmatização dos estados degenerativos”
de forma a identificar o “typo normal do brasileiro e o typo do dege-
nerado”, posto que apenas dessa forma seria possível alcançar o “typo
ideal de povo” o qual, acrescentava o psiquiatra, “não é desde já o de
uma nacionalidade mestiça” (Riedel, 1922, p. 5 e p. 19-20). Interessante
observar como esse desejo de Riedel apresenta fortes semelhanças
com as propostas de certos eugenistas alemães, no fulgor da adesão
destes à ideologia racial nazista. Refletindo sobre a atuação das juntas
de assistentes criadas em 1934 pelo Ministério do Interior alemão com
o objetivo de interpretar e examinar os autos dos processos de esterili-
zação, o professor Fritz Lenz, da Universidade de Munique, afirma: “o
objetivo deve ser o de fazer uma documentação biogenética [uma

203
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

ficha nacional nos termos de Riedel] de cada cidadão (alemão não


judeu, não cigano), bem como de cada habitante (ou seja, judeu, ciga-
no)”. Claro que a intenção desse professor era utilizar tal informação
como meio de identificar “os compatriotas” que estariam aptos “a
uma procriação ilimitada que [fosse] valiosa para a raça” (o “typo
ideal de povo” de Riedel) , já que nem todo alemão “não doente gené-
tico de acordo com a lei” seria necessariamentae saudável e “digno de
reprodução” (Muller-Hill, 1993, p. 39).
Vejamos também essa passagem do relatório de 1923 do mesmo
Riedel, enviado à Assistência a Alienados, no qual o psiquiatra mani-
festa claramente o sentido de regeneração nacional expresso nos ide-
ais de profilaxia mental que lhe eram caros, e que, por certo, eram os
que o guiavam quando da fundação da Liga:

Trata-se de valorizar o homem, mostrando o valor da sua


capacidade, porque se o homem é o primeiro patrimônio de uma
nação, a sua saúde, isto é, sua capacidade de trabalhar bem,
constituem os primeiros cuidados dos responsáveis pela
administração pública - robustez e força ao lado de intelligência e
educação, já dissera Miguel Couto, preparando o homem para a
vida e para a vida da sua Pátria [...] Eugenizar quando possível a
família é um dever de boa política. O número de insanos,
epilépticos, idiotas, surdos-mudos dentro em pouco ameaçará a
saúde pública e a integridade do gênero humano. Por felicidade,
alguns cruzamentos normaes amparam contra a destruição do
andar progressivo da humanidade. A lucta contra a degeneração
deve ser systematicamente organizada e só ella constitue de facto a
verdadeira religião da humanidade” (Ministério..., 1924, p. 100).

Assim, alguma dúvida de que se tratam de medidas eugênicas


como saneadoras da nacionalidade e da raça que Riedel exige o tempo
todo? Onde, pois, foi possível verificar um tal alcance de poder obtido
pela eugenia senão na Alemanha nazista? O que, entretanto, não nos
permite concluir que o psiquiatra brasileiro fosse um defensor (ou
antecipador) da adoção de medidas eugênicas radicais e francamente
racistas do tipo que lá se fortaleceu. O próprio texto denuncia uma
certa timidez na pretensão eugênica de Riedel, expressa no titubeante
eugenizar “quando possível” a família, além de contar com a presença
do imponderável agindo na natureza, isto é, com a “felicidade” de

204
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

alguns cruzamentos positivos. Todavia, a exigência de uma organiza-


ção sistemática contra a degeneração, leia-se cruzada eugênica, está
presente e apenas isso poderá impedir, segundo ele, a desintegração
do gênero humano, garantindo, por sua vez, a presença de um novo
homem preparado para a “vida e para a vida de sua pátria”.
Nesse caso, então, certas semelhanças devem ser apontadas.
Compare-se, por exemplo, a exaltação de Riedel do homem, “pri-
meiro patrimônio da Nação” e de sua saúde “isto é, sua capacidade
de trabalhar” como primaciais cuidados de qualquer país que queira
prosperar, com as impressões amplamente favoráveis de Cunha
Lopes sobre o papel reservado ao homem na Alemanha, citado pá-
ginas antes. Lembremos que, para Lopes, o Estado Alemão, através
de exemplar assistência à saúde, como diz, “baseado nos modernos
preceitos de higiene” (leia-se, por certo, bastante eugenia), destaca-
va-se por valorizar o homem “qualitativa e quantitativamente” en-
quanto “precioso capital” da Nação, e que por isso, buscava
“inteligentemente aumentar” (Cunha Lopes, 1935, p. 31). Ora, certas
identificações são gritantes. Ocorre, porém, que o texto de Riedel é
de 1923 e o de Lopes de 1935. O primeiro localiza-se nos primórdios
do movimento eugênico e o último de um momento em que este,
particularmente dentro da LBHM, já havia ganho fortes cores radi-
cais. Isso, inclusive, leva-nos a sugerir que a transformação do ideal
eugênico da Liga já estava seguramente anunciada como possibili-
dade, isto é, podia ser identificada em condições larvares desde o
seu momento inaugural, o que não quer dizer que seu rumo preciso
estivesse determinado e muito menos que a forma concreta assumi-
da na Alemanha estava destinada a servir de exemplo. Aliás, como
procuramos demonstrar em outro trabalho (Reis, 1999, p. 29-55), o
tipo de saneamento racial em sentido preponderantemente étnico
adotado pelo eugenismo alemão, não encontrou, na integralidade
das suas proposições, defensores escancarados no Brasil.
Sendo assim, é lícito propor que a psiquiatria alemã encanta por-
que é aquela que, aos olhos de sua congênere brasileira, se assume
integralmente, e mais do que isso é aceita pelo Estado nazista, en-
quanto uma das instâncias formuladoras da política eugênica oficial
do regime, política essa ligada à redenção moral e racial do país. Por
isso que, segundo Beigelman, o mundo científico alemão - particular-
mente no campo da genética humana, na qual psiquiatras e antropó-

205
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

logos com formação biomédica reinavam - recebeu com entusiasmo a


chegada dos nazistas ao poder em 1933, tendo em vista que a ideolo-
gia racial professada por esse regime vinha ao encontro do acervo de
idéias antigas dos “geneticistas de então” (Beigelman, 1990).
Por certo que, para tal aproximação, concorreram também antigas
filiações teóricas. Remonta aos próceres da psiquiatria nacional Julia-
no Moreira e Afrânio Peixoto, em sua admiração pelo alemão Kraep-
pellin, desde a virada do século no Rio de Janeiro e a Franco da Rocha
na mesma época em São Paulo (Porto-Carrero, 1980; Pacheco; Silva,
1950, p. 527-544 e 589-598; Cunha, 1986). Entretanto, não se deve sub-
estimar a larga influência francesa exercida no Brasil, da qual a psi-
quiatria certamente não era exceção. O próprio Riedel, no relatório
citado há pouco, refere-se à influência do francês Toulouse, “cujo no-
me exprime a synthese do que se pretende realizar entre nós” (“Assis-
tência a alienados”. Relatório do Ministério da Justiça e Negócios
Interiores, 1924). Nota-se também que, em 1925, terceiro ano de fun-
cionamento da Liga, dos 7 nomes propostos como membros honorá-
rios estrangeiros da instituição, 3 eram franceses, 2 americanos, 1
belga e 1 inglês. Nesse momento, nenhum alemão mereceu tal defe-
rência (Archivos, 1925). Mesmo em 1935, a influência francesa ainda
pôde ser bastante sentida. Na elaboração de um projeto de lei, sobre a
assistência a psicopatas no Brasil, assinado pelo psiquiatra Xavier de
Oliveira, mas da qual participaram os principais psiquiatras vincula-
dos à Liga, é o francês Toulouse que aparece como inspirador central:
“Na parte geral tomaram ainda, por orientação as idéias do Professor
Toulouse, de Paris, que, ao ver dos autores, nesta hora está para a
psychiatria como o Pinel o estava em começos do século passado”
(Oliveira, 1935).
A questão é: por que esse acolhimento crescente, embora não ex-
clusivo, dedicado ao modelo alemão? Consideramos que a melhor
resposta para essa indagação encontra-se, como dissemos há pouco,
no fato de que a psiquiatria racista alemã, na sua escalada em direção
ao nazismo, foi aquela que assumiu integralmente certas pretensões,
via eugenia, de controle científico, vale dizer, biológico, da sociedade
e da raça, ambições de certa forma antigas (e básicas) da LBHM. E,
mais importante: teve essa sua pretensão reconhecida oficialmente
pelo Estado alemão. De acordo com o já citado estudo de Beigelman,
coube a psiquiatras e antropólogos alemães o controle oficial da políti-

206
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

ca de higiene racial no país: “Com o advento do nazismo, passou a ser


da competência dos antropólogos a identificação e a discriminação
dos ‘seres inferiores não alemães’, entre os quais estavam incluídos os
judeus (mesmo que alemães há muitas gerações), os ciganos, os ne-
gros e os eslavos. Aos psiquiatras cabia a identificação dos ‘seres infe-
riores alemães’, isto é, esquizofrênicos e outros psicopatas, epiléticos,
deficientes mentais e também, por extensão, homossexuais” (1990).
Tal fato, inclusive, pôde ser registrado com satisfação pelos Ar-
chivos, noticiando em suas páginas que o psiquiatra Ernst Rudin,
diretor do departamento de psiquiatria do Instituto Imperador Gui-
lherme de Munique, havia sido escolhido pelo “Ministro do Interior
do Reich para consultor official em questões de hygiene racial” (Ar-
chivos..., 1934, p. 334). De fato, parece que esse psiquiatra vinha sendo
cada vez mais solicitado a dar sua opinião nas questões relativas à
política de higiene racial do nazismo. Em maio de 1935, por exemplo,
ele fez parte, ao lado dos professores Gunther e Lenz (de Berlim) e dos
doutores Gutt e Lidden do Ministério do Interior, da “Junta Consulti-
va de Especialistas em Política Populacional e Racial” que iria delibe-
rar sobre a esterilização de crianças alemães “de cor”. Do mesmo
modo, em 1936, quando o mesmo Ministério do Interior procurou se
informar a respeito da extensão da lei de esterilização (por exemplo,
definir se as pessoas que haviam sofrido ferimentos no cérebro duran-
te a primeira guerra mundial e vinham consumindo bebidas alcoólicas
em excesso deviam ser incluídas na lei) foi ao professor Rudin que o
ministério recorreu buscando esclarecimentos. (Muller-Hill, 1993, p.
39-41). Ora, atuar no papel de consultores em matéria de saneamento
racial era tudo que os psiquiatras brasileiros sempre sonharam para si
e para sua “ciência”, colaborando, então, para que se jogassem defini-
tivamente em braços germânicos. É por isso que consideramos mais
correto admitir que o que houve foi, antes confluência do que propri-
amente influência. É possível, inclusive, acompanhar passo a passo
como se deu essa confluência.
Quando Rudin, por ocasião do I Congresso Internacional de Higi-
ene Mental, em 1931, chama a atenção para o importante papel que
estaria reservado à eugenia nos domínios da higiene mental, a Liga
comunica, em nota, que no seu estatuto “sempre houve menção ex-
pressa das directivas eugenéticas sem qualquer limitação” (Archi-
vos..., 1931, p. 149). Também quando aplaudem a iniciativa da “Liga

207
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Alemã de Higiene Psíquica” de mudar sua denominação para “Liga


Alemã de Higiene Psíquica e Racial”, devido à “importância dada as
directrizes eugênicas”, os psiquiatras deixam claro que se sentem
“desvanecidos por terem desde a primeira hora [assinalado] as vanta-
gens de se conjugarem de modo mais íntimo a Higiene Mental e Eu-
genia” tal qual sua congênere alemã apenas agora reconhecia
(Archivos..., 1934, p. 334).
Do mesmo modo, quando a Liga Alemã, no comunicado su-
pracitado, põe em relevo o fato do relatório de Rudin ao Congres-
so de Higiene Mental ter sido o único a abordar o tema da
Eugenia, os psiquiatras brasileiros fazem um comentário lem-
brando que, desde antes do referido Congresso ocorrer, portanto,
antes também do relatório do psiquiatra alemão, já lamentavam,
em editorial dos Archivos de 1929, que não se encontrasse “na
lista de themas officiaes do certamem [...] nenhum tópico referen-
te aos methodos de defesa eugênica” (Caldas, 1929, p. 35). De
fato, no editorial de fevereiro de 1930, intitulado “O Congresso de
Hygiene Mental e a Eugenia”, o secretário da Instituição, Caldas
(1930), chama a atenção para a ausência de tópicos referentes à
eugenia no citado Congresso. Depois de citar o “importantíssimo
fator biológico da hereditariedade” na higiene mental diz: “é de
lamentar que não se encontre na lista de themas nenhum tópico
referente aos methodos de puericultura e de defesa eugênica. Os
factores sociaes e educativos são estudados minuciosamente. Da
eugenia não se falla. Não sei como se possa fazer hygiene mental,
no seu sentido mais lato, sem levar em conta os conselhos eugêni-
cos” (Caldas, 1930, p. 35-36).
Que fique claro: não se trata, aqui, de querermos minimizar a
presença das propostas da psiquiatria alemã no processo de radicali-
zação eugênica da Liga, tarefa na qual qualquer um que se lançasse
estaria fadado ao insucesso. Apenas buscamos chamar a atenção
para o fato de que o acolhimento que tal proposta passa a receber
resulta, para além de uma evidente afinidade teórica, dela servir
francamente de reforço a orientações básicas e antigas do programa
médico-social da Liga naquilo que ele continha de mais ambicioso: o
saneamento social, racial e moral da nação. Acrescente-se a isso o
contexto político do entre-guerras, decididamente favorável a um
tipo de intervencionismo praticado pelo Estado em bases freqüen-

208
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

temente autoritárias (e até totalitárias) - na qual a Alemanha nazista


encarnou a expressão máxima - e, de certa forma, esse modelo de
ação estatal tocava fundo no coração de muitos psiquiatras, e o qua-
dro ganha seus contornos definitivos.
Assim, escorados nessa crescente identificação política, alguns
psiquiatras brasileiros defendem obstinadamente os postulados da
psiquiatria alemã, transformando-a em objeto de fé quase cega. A-
penas isso justifica a defesa que Cunha Lopes faz da lei alemã de
esterilização, contra os “detractores impiedosos e farisaicos”, a qual,
segundo afirma, teimam em acusá-la de procurar atingir “esta ou
aquela etnia”.

Nessa lei nada há sobre a questão étnica propriamente dita.


Interessados há que fazem disso propositalmente verdadeiro
cavalo de tróia. Outros, por ignorância alimentam indefinidamente
a confusão. O decreto cuida sim da raça, porque procura melhora-
la,; mas não visa esta ou aquela etnia (Cunha Lopes, 1934, p. 257).

De modo semelhante, resenhando artigo de um autor alemão so-


bre esterilização, nos Archivos de outubro/dezembro de 1934, o psi-
quiatra Gustavo de Rezende aproveita para fazer o comentário, em
uma atitude de franca admiração, de que os “scientistas allemães pro-
curam cercar das maiores cautelas a applicação da famosa lei de este-
rilização eugênica” (Rezende, p. 348, 1934). Com muitíssima boa
vontade é possível admitir que os autores desconhecessem, tendo em
vista que esses textos são de 1934 e Hitler subiu ao poder em janeiro
de 1933, os caminhos (ou descaminhos) criminosos do eugenismo
nazista, embora a própria necessidade de defender tal lei não deixe
dúvidas quanto à existência de rumores acerca dos seus alcances ra-
cistas. Indesculpável, entretanto, é o fato de Cunha Lopes (1940), em
artigo mais amplo sobre Higiene Mental no Brasil, datado de 1940,
inserir no item que abordava a questão da esterilização o seu texto
integral de 1934, sem reparo algum.
Ora, em 1940 não há mais como sustentar que o sistema de horror
nazista fosse desconhecido, sobretudo de médicos bem informados
que liam regularmente em alemão e que por diversas vezes estiveram
pessoalmente na Alemanha. Pacheco e Silva, como vimos, em 1936
menciona claramente os objetivos “étnicos e eugênicos” da lei alemã

209
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

(1937, p. 146). Henrique Roxo deixa claro também, em relatório de


1942, que na terceira vez que visitou o Instituto de Pesquisas Psiquiá-
tricas de Munique, no ano de 1936, a atmosfera era de desencanto,
pois “Hitler na sua obsessão contra a raça judaica exigiu que o prof.
Rudin fizesse e mandasse fazer pesquisas nas quais se provasse a infe-
rioridade da raça judaica” (Jornal..., 1942). Grave, entretanto, é que o
autor dá a entender que o maior problema que advinha dessa atitude
de Hitler, devia-se ao fato do capitalista Rockefeller, que através de
sua fundação subvencionava o Instituto, ser judeu e a “primeira coisa
que fez [...] foi suspender os fundos”. Todavia, Hitler, que dizia que “à
ciência nada se pode negar [...] não mandou suprir o dinheiro que a
Fundação Rockefeller havia negado”. Pelo exposto, tem se a nítida
impressão que problema para Roxo era a ausência de fundos e não a
perseguição aos judeus!
Do mesmo modo, são absolutamente estarrecedoras as cifras a-
presentadas, baseadas em autores alemães, dos contingentes de “a-
normais que deviam ser privados de descendência no interesse
social”. Fritz Lenz (1934), por exemplo, o já citado professor de Eu-
genia da Universidade de Munique, muito estimado pelos psiquia-
tras brasileiros, calcula em mais de 15 milhões o número de
esterilizações. Grotgahn (1934), outro eugenista alemão muito cita-
do, avalia em um terço da população alemã da época, em torno de 65
milhões, portanto mais de 20 milhões de esterilizações (Grotgahn,
1934). Causa-nos espanto que essas cifras astronômicas sejam ditas
pelos psiquiatras nacionais com tal naturalidade, vistas mesmo como
medida generosa e humanitária. Como escreveu Cunha Lopes, é
sobre a “descendência dessa gente que terá seus efeitos a sábia lei de
prevenção dos males hereditários” (1934, p. 257). E não se pense
tratar de um autor isolado, ou um germanófilo radical solitário: O
“psicanalista” da Liga, Júlio Porto-Carrero também apresenta essas
mesmas cifras, em artigo sobre eugenia, com total isenção de âni-
mos, indagando ironicamente do “gesto de horror dos misoneístas
ante a perspectiva de esterilizar uns 15 milhões de brasileiros e brasi-
leiras” (Porto-Carrero, 1935, p. 179-182).
Convenhamos: encarar a perspectiva de esterilizar uns 15 milhões
de brasileiros - que a adoção de uma “sábia lei de prevenção dos ma-
les hereditários”, semelhante à alemã, poderia gerar - como medida

210
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

benéfica, dá bem mostra do grau de intolerância e de ausência de limi-


tes das propostas eugênicas de certos psiquiatras em seus delírios
regeneradores da raça. Assim, não há como admitir que a lei alemã
era “rigorosamente técnica”, como quer Medeiros (1947), e o que ocor-
reu na Alemanha foi uma deturpação, “um abuso criminoso e indevi-
do de tais métodos” como sugere, por sua vez, Pacheco e Silva (1950,
p. 410). Os “exageros” e “abusos” estavam de antemão assegurados,
posto que era o sentido moral e/ou ético e político dos psiquiatras que
se encontrava deturpado, contaminado por idéias obcecadas de sele-
ção das populações, de fundo racial, moral e social, o que pode ser
amplamente atestado pelo absurdo de achar natural esterilizar um
terço da população de qualquer país.
É espantoso perceber como os psiquiatras, absorvidos por esses
ideais de seleção humana, dão a nítida impressão de completa ausên-
cia de juízo crítico acerca das implicações concretas de suas propostas.
Observemos, por exemplo, os argumentos de Ernani Lopes, presiden-
te da Liga no período, à favor da sua tese de retirada de circulação dos
“heredo-psicopathas por motivo de ordem eugênica. Desde 1929 esse
autor vinha se batendo contra o fato dos alienados, quando deixavam
de apresentar os distúrbios mentais agudos que justificavam sua in-
ternação, terem de ganhar a liberdade, posto que não podiam “conti-
nuar soffrendo o constrangimento da internação, transformada em
sequestro illegal depois da cura”. Entretanto, acrescenta Lopes, o di-
lema do psiquiatra é que ele,

conhece as leis da hereditariedade, applaude os postulados da


eugenia restrictiva, que, a pouco e pouco, irá livrando o mundo dos
degenerados; Elle sabe, portanto, que assignando a alta, vae
concorrer para a procriação de outros seres infelizes, victimas
indefesas da terrível herança pathológica. E não pode nestas
condições deixar de desejar ardentemente que lhe sejam
proporcionado os meios legais de pôr termo ao mal” (Lopes,
1930,p. 110).

Esses meios, então, seriam a esterilização compulsória, que o


autor vê com “ceticismo sua aceitação por povos latinos” e, por
essa razão, principalmente a sequestração eugênica, isto é, a retira-
da de circulação dos “heredo-psicopathas” (alienados passíveis de

211
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

cura e alta, por exemplo), cujos argumentos centrais ele irá sistema-
tizar em outro artigo sobre o mesmo tema, de 1934 (Archivos...,
1934). Não obstante, causa verdadeiro assombro a avaliação que o
psiquiatra faz dessa sua pregação pela “alta tardia” ou retirada de
circulação dos “heredo-psicopathas”, sempre por nobres motivos
de ordem eugênica:

Mas sem dúvida, a preocupação eugenizante tem ganho


considerável terreno em toda parte e por isso acreditamos seja bem
acolhido, em nosso meio, as iniciativas em prol do aperfeiçoamento
da raça que não recorram, por princípio, a medidas excepcionaes de
coação [grifos nossos] (Lopes, 1934).

Quer dizer: em nome de uma, no mínimo, imprecisa idéia de


aperfeiçoamento da raça, retirar indefinidamente de circulação
indivíduos identificados pelo olhar perscrutador do psiquiatra e
por uma suposta lei de herança como degenerados, e isto não signi-
fica nenhuma “medida excepcional de coação”, é de uma insensa-
tez a toda prova quanto aos efeitos nefastos e autoritários da sua
própria ação.
O que constatamos, então, é que em nome da religião da eugenia,
todo barbarismo passa a ser justificado, em uma verdadeira “home-
nagem prestada à lei da selva” na feliz expressão do historiador
(Darmon, 1991). Com efeito, há como que uma fanatização das propo-
sições eugênicas de vários psiquiatras da Liga, que passam a dominar
a instituição, sinalizando para uma radicalização dessas idéias que
parecem movidas por um sentimento que, muito tranqüilamente,
poderia ser qualificado de religioso, não fossem eles convencidíssimos
de seu pertencimento científico. Talvez por isso seja tão comum ouvi-
los falar em “objetivos sagrados da eugenia”, “cruzada eugênica” etc.
Concluindo este texto, esperamos ter deixado claro, a partir do
que foi exposto, que dos anos 30 em diante - sob a influência de um
paradigma teórico obsessivamente biológico e hereditário de seleção
racial, antenado em grande medida com o que se passava na Alema-
nha - certas idéias radicais de prevenção eugênica se afirmam com
grande intensidade no interior da Liga Brasileira de Higiene Mental,
encontrando resolutos propagandistas. Sendo assim, o que se verifi-
ca é a defesa crescente de medidas draconianas como o exame médi-

212
-DEGENERANDO EM BARBÁRIE

co pré-nupcial regulada pelo Estado, a segregação compulsória de


“degenerados”, o controle imigratório rígido, mas sobretudo a esteri-
lização eugênica – objeto de análise neste texto -, medidas essas diri-
gidas àqueles indivíduos que apresentassem problemas físicos,
mentais e sociais/morais (taras patológicas na linguagem dos euge-
nistas da Liga), cuja transmissão hereditária comprometeria o patri-
mônio biológico do homem brasileiro e, por conseguinte, o futuro
racial do país. Penoso é constatar, como se não bastasse tanta lição
de intolerância, que mesmo em 1946, quando o sistema de horror do
eugenismo nazista - que levou as últimas conseqüências a ideologia
da purificação racial - já era amplamente denunciado, ainda se podia
ouvir a voz de importantes psiquiatras, caso de Pacheco e Silva, em
apoio a certas bandeiras eugênicas radicais, como a necessidade de
um severo controle imigratório, obrigatoriedade do exame pré-
nupcial e até a esterilização compulsória, tudo isso em defesa, mais
uma vez, dos objetivos superiores da “saúde da raça” e do “interêsse
coletivo” (1950, p. 403-414).
Passados muitos anos desses acontecimentos, em nossos tem-
pos modernos de genomas, clonagens e outros tantos benefícios
alardeados pelos entusiastas dos avanços da medicina e da revolu-
ção genética, ainda que o paradigma seja outro e nenhum cientista
fale em “saúde da raça” ou “pureza da raça” - tendo o próprio con-
ceito de raça sido desconstruído pela ciência - não custa nada ficar
atento às promessas redentoras do passado, e humildemente pro-
curar aprender um pouco que seja com elas, pois, como lembra o
historiador Pierre Darmon, referindo-se aos eugenistas do começo
do século XX, “de início, a maioria deles pensou que encontrara um
meio honesto de livrar os seus congêneres de muitos males e nin-
guém era então capaz de entrever a fatal engrenagem que iria con-
duzi-los ao centro do inferno” (1991, p. 199-200). Assim, sem
pretender adotar aqui nenhum tipo de postura obscurantista de
descrença nas possibilidades e potencialidades emancipadoras da
ciência, encerramos este texto com as prudentes advertências de
dois importantes estudiosos ligados à Unesco, em artigo recente-
mente publicado no jornal Folha de São Paulo:

Os progressos científicos – particularmente a revolução genética –


trouxeram grandes esperanças, mas também questões alarmantes.

213
IGIENE E RAÇA COMO PROJETOS

Na tentação de aperfeiçoar a nossa espécie, não temos percebido o


retorno da eugenia. E, mais especificamente, o perigo de uma
forma comercial de eugenia. Mais do que nunca, a ética precisa
acompanhar o progresso científico, para que ele não leve a novas
formas de discriminação” (Sané; Bindé, 2001, p. A3).

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