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Nome: João Caleber Batista Martins

Data de entrega: 15 de Outubro de 2021


Curso: História Licenciatura Noturno
Disciplina: Antropologia Cultural
Professor/a: Silvia Gomes Bento de Mello
Trabalho: Alteridade, diferença e diversidade são questões fundantes do campo
antropológico. Em vista disso, escreva um texto dissertativo (bem fundamentado e
bem desenvolvido) que aponte como tais questões são tratadas por Norbert Elias na
obra “A Solidão dos Moribundos”.

O processo de morrer e os moribundos: a perspectiva de Norbert Elias sobre o


recalcamento da morte

“(...)Já o verme — este operário de ruínas —


Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida, em geral, declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,


E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!”
Augusto dos Anjos, Psicologia de um vencido

Quando falamos de morte, normalmente, as pessoas tendem a ter distintas


interpretações da mesma. Receio, medo, repugnância, ciência, negação. De certa
forma, todos nós sabemos que ela é uma consequência, mas a maneira como a
interpretamos varia de indivíduo para indivíduo, de contexto para contexto. Nesse
sentido, Norbert Elias, trazendo uma perspectiva histórica e social, em A Solidão dos
Moribundos, discorre sobre a figura do moribundo, para apontar os diferentes tratos
com a ideia de morte e de morrer ao longo da história. Na obra, publicada em 1982
em formato de ensaio, se propõe uma discussão sobre o isolamento dos
moribundos, e o tabu em relação à morte, como um problema social. Pautando sua
problemática na sociedade ocidental, Elias observa as mudanças no decorrer da
civilização para compreender o processo de recalcamento nas diferentes
perspectivas.
Apriori, uma das certezas que o sociólogo alemão nos traz em A solidão dos
moribundos é justamente que a morte é um problema exclusivamente dos vivos, e
especialmente dos homens, dado sua consciência sobre sua finitude. A vida se
constrói em significados, quando uma pessoa morre a interação com esses
significados, para ela, acaba. Esse fim dos significados é um dos pontos para
pensarmos a relação dos vivos com a morte. Ao longo da história humana muitas
narrativas foram criadas para recalcar a finitude da vida, é só pensarmos na ideia
cristã de paraíso e inferno. No evangelho de João, capítulo onze, versículo vinte
cinco temos o seguinte: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda
que esteja morto, viverá”. Através do texto de origem hebraica, podemos observar
esse recalcamento que, através da imaginação, retarda a ideia de fim e usa a ideia
de vida eterna como um instrumento, não só de recalcamento da morte, mas
também, para encaminhar ações morais em vida. A morte é uma consequência, não
se domina esse fenômeno biológico, todavia, pensada socialmente, ou através de
instituições sociais como a religião, a morte não necessariamente é um fim. Essa
ideia de continuação, e de um julgamento moral após a morte, pode ser entendida
como um princípio que fundamenta o medo em relação à morte que se observa em
estágios anteriores da civilização. Esse medo, com respaldo no sentimento de culpa,
é um dos fatores que o autor usa para entender a morte e o estranhamento que
nosso estágio de civilização atual tem em relação aos moribundos.
Por recalcamento, Norbert Elias entende como o fenômeno de, através da
imaginação e criações fantasiosas da mente humana, afastar dos vivos a ideia de
morte. As mitologias, como já visto, são um exemplo disso. Esse recalcamento
responde a diferentes problemas de cada estágio social. Com o impulso civilizador, o
recalcamento expõe uma preposição, fantasiosa, de imortalidade humana, para
retardar um pensamento de morte. A morte é agressiva, de certa forma ela rompe
com o monopólio de controle do Estado, ela é violenta, e representa um perigo
biossocial. Dado isso, não nos afastamos dos moribundos só por medo, mas
também, por que não os legitimamos. Os moribundos são a lembrança de que um
dia seremos nós a assumir suas posições, e assim, também morreremos. Apesar do
fato, quando pegamos estágios de civilização diferentes, encontramos proximidades
diferentes com a morte. Nesse sentido, o pesquisador nos garante que cada estágio
possui problemas de formas específicas a suas particularidades.
Assim, trazendo para o estágio que Norbert usa de exemplo para discorrer
sobre estágios anteriores, a Idade Média, apesar do medo, o contato com
moribundos eram mais frequentes. Nos estágios anteriores da civilização, pestes,
violências e doenças eram mais comuns e isso resultava em um contato maior com
mortos e moribundos. Era comum as crianças verem pessoas morrerem não só em
sua própria família, mas também, em outros aspectos do cotidiano de suas vidas. A
morte era um assunto que se tratava coletivamente, o sentimento e a reação perante
ela era, de certa forma, compartilhado. Dado a ocorrência e proximidade com a
morte, o estranhamento era menor, mas o medo ainda se fazia presente. Entretanto,
quando Norbert Elias pontua os moribundos, ele entende que os vivos, saudáveis,
não se identificam com os moribundos. Os moribundos representam a ideia de
morte, e a morte representa justamente o que no correr da história humana se tenta
recalcar com a imaginação, o fim dos significados da vida. No contexto da Idade
Média, a proximidade não garantia a identificação com o estado moribundo.
Compreendendo que a relação com os moribundos durante a história se dá de
maneiras diferentes, Norbert Elias pauta o impulso civilizador, e a própria crise da
civilização, para entender a morte e os moribundos nos estágios mais próximos.
Todavia, é importante pontuar que Elias compreende os estágios de civilização, ou
de desenvolvimento social, marcado entre sociedades pré-industriais e industriais,
pelo menos no que tange a imagem da morte nas sociedades ocidentais. Dessa
forma, a alteridade em relação aos mortos e moribundos é compreendida como um
fenômeno que se acentua na modernidade, com as sociedades industriais. Se antes
o contato com os mortos e moribundos era mais frequente, agora, com os avanços
ligados à medicina, com o controle da violência por parte do Estado, a morte passa a
ser menos frequente na vida dos indivíduos. A pontuação do indivíduo ao falar dos
moribundos nos estágios recentes é importante, pois quando falamos que o contato
com mortos se tornou menos frequente, não significa que as pessoas pararam de
morrer, mas sim, que a morte deixou de ser um problema coletivo. Essa
individualidade no trato com a imagem do morrer, e a impessoalidade em relação ao
moribundo, é o que resulta no que o autor compreende como crise da civilização. A
impessoalidade resulta na falta de noção do indivíduo no entendimento da morte, e
de certa forma, no recalcamento da discussão sobre o moribundo e o estado de
morrer como um problema social e coletivo.
Atualmente, o encargo sobre os moribundos se dá por instituições específicas.
Não é comum encontrar pessoas moribundas nas calçadas, como talvez fosse na
Idade Média. Os nossos doentes hoje se encontram em hospitais e clínicas, espaços
institucionalizados de recebimento aos moribundos. Outrossim, a problemática não é
a existência desses espaços que, de certa forma, dão um cuidado mais adequado
aos moribundos, mas sim, a visão pessimista sobre esses espaços. Não se associa
a esses espaços, normalmente, imagens felizes e alegres. Esses assumem
imagens mórbidas, melancólicas e tristes. Isso não ocorre por acaso, essa imagem
mórbida reflete o pensamento social em relação à ideia de morrer. Norbert Elias
destaca que não se tem medo da morte em si, mas sim, se tem medo do processo
de morrer. O processo de morrer começa antes da morte, os moribundos e os idosos
são premonições, avisos da morte. Morte essa compreendida sob um conjunto de
significados sociais. A solidão dos moribundos se encontra justamente aí, quando
sua imagem foge do que se entende como normal na sociedade. Morrer passa a ser
um problema privado, e seu trato no público passa a ser inadequado, e de certa
forma, desrespeitoso dado a sensibilidade do assunto.
Uma pergunta que surge analisando esses aspectos levantados por Elias seria
o porquê da inadequação da morte se ela é natural. A resposta está justamente no
âmbito social. Diferente da Idade Média, nas sociedades industriais o cuidado não
só com os moribundos, mas também com os cadáveres se terceiriza. Nos estágios
anteriores, a família era quem cuidava dos moribundos, o preparo do corpo para o
enterro também acontecia na esfera familiar. Já nos estágios mais recentes, essa
atividade passou a ser função de hospitais, necrotérios e funerárias. A morte
torna-se distante, e um tabu. Por seu recalcamento, sua distância, e seu tabu, a
expressão sentimental durante um falecimento também se prejudicou. Cada vez
mais não sabemos como lidar com a morte de alguém. Os sentimentos fortes se
reprimem no processo civilizador, a expressão impensada se associa a aspectos da
animalidade humana. Os espaços de manifestação de sentimentos não se
encontram mais no âmbito coletivo, mas sim em espaços individuais. Assim,
pegando esse processo civilizador, entendido no distanciamento da figura de morte,
e repressão de aspectos compreendidos na animalidade humana, o autor
compreende o tabu em relação à morte e o isolamento dos moribundos.
Dado a análise do autor, podemos portanto compreender que o processo de
recalque, e a alteridade em relação aos moribundos, resulta no isolamento do que
se encaixa nesse papel. Se antes a dor no processo da morte era mais cruel, se na
Idade Média os moribundos agonizavam até morrer, hoje em dia, com as facilidades
da medicina, esse processo pode ser amenizado. Entretanto, quando se tange o
acolhimento aos moribundos, a sociedade ainda tende a isolar os doentes, os
separando da vida social. Logicamente que, individualmente, existe diferença em
relação a recepção com os moribundos. No âmbito familiar, espera-se um
acolhimento aos doentes e aos cuidados que o cercam. A discussão que Norbert
Elias nos traz relaciona-se com um contexto mais amplo que se reflete no individual,
o comportamento social. Se nós formos pensar na particularidade dessas
perspectivas analisadas por Norbert podemos encontrar variâncias. As marcações
de um papel social de um indivíduo podem interferir quando o mesmo encontra-se
como um moribundo. Entre essas marcações estão classe, etnia, gênero,
sexualidade e etc. Todavia, em A Solidão dos Moribundos o levantamento de
Norbert tem o objetivo colocar que esse comportamento de estranhamento aos
moribundos é um aspecto comum do nosso estágio de civilização. O recalcamento
se encontra nos diferentes estágios de civilização, de maneiras distintas. A
individualização é um fenômeno manifesto em todos os indivíduos de nosso estágio
civilizacional, apesar de suas peculiaridades.
Por fim, o ensaio de Norbert Elias concluí, após discorrer sobre as atitudes
sociais diante aos moribundos, que devemos falar mais abertamente sobre esse
tabu. Compreender o processo de morte e trato com os moribundos nos ajuda a
desmistificar esses fenômenos. O recalcamento desses fatores reflete na sociedade
sobre indivíduos que mesmo sendo vivos já são vinculados à ideia de morte. De
reflexão podemos parar e pensar nos velhos e em sua posição social. Aos idosos é
colocado um olhar de incapacidade, de fragilidade, de improdutividade. Em nossas
projeções torna-se difícil imaginar idosos ocupando os mesmos espaços que os
jovens. De certa forma isso é um reflexo do recalcamento, a presença da alteridade.
A morte não deve ser encarada como mistério, ou como um verme roedor que “à
vida, em geral, declara guerra”. Aos que se vão, permanece em nós seus
significados e seus sentidos. Apesar de ter uma ênfase sociológica, A Solidão dos
Moribundos propõe uma reflexão, em certa forma, filosófica, sobre os nossos
sentidos para processos que são tão próximos, mas que tentamos deixar bem longe,
os isolando em caixas de individualismo.

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