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Luiz Mott

A Inquisição em Sergipe.
Aracaju, Fundação Estadual de Cultura, Governo de Sergipe, 1989.

PREFÁCIO

Desde os começos da década de 1970 que o Professor Luiz Mott vem pesquisando o
passado sergipano, dele trazendo à tona aspectos inéditos e relevantes. Seus trabalhos sobre
a estrutura e a dinâmica de nossa população abrem caminhos ao historiador interessado na
evolução social de Sergipe que mais largos se tornam, agora, com a publicação de A
Inquisição em Sergipe, trabalho vencedor, em 1985, do Programa Editorial Sergipe
Memória e Momento, lançado pelo Conselho Estadual de Cultural e a FUNDESC.
Estudo sério, embasado em pesquisas realizadas nos arquivos, especialmente na Torre
do Tombo em Lisboa, nele o Prof. Luiz Mott divulga paginas da história de Sergipe que,
até o momento, haviam permanecido desconhecidas dos que a estudaram.
O Tribunal do Santo Oficio da Inquisição, introduzido em Portugal em 17/12/1536
pela Bula Cum ad nihil magis de Clemente VII, suas garras permaneceram estendidas até
31/10/1821 quando as Cortes Constitucionais de Portugal o extinguiram em todo o Reino.
Diretamente, sua ação chegou ao Brasil-Colônia em 1591, na 1ª Visitação dirigida pelo
Licenciado Heitor Furtado de Mendonça, Capitão Fidalgo dei Rei, Deputado do Stº Ofício
e Visitador Apostólico.
A passagem do Stº Ofício da Inquisição pela Capitania de Sergipe dei Rei foi,
minuciosamente, apresentada pelo Prof. Luiz Mott. Assim podemos saber que, desde os
primórdios de nossa formação, ele esteve presente ao denunciar, em 1591, alguns dos
companheiros de Cristóvão de Barros na vitoriosa expedição de 1590, que lançou os
fundamentos da colonização lusa no território sergipano.
Através da 2ª Visitação, em 1618, e das Denunciações que aconteceram no decorrer
dos séculos XVII e XVIII, conhecemos os “pecados” da sociedade sergipana em formação -
judaísmo, sodomia, bigamia, praticas fetichistas e luteranas, leitura de livros proibidos. A
Inquisição em Sergipe descreve fatos, algumas vezes com realismo chocante, mas que são a
transcrição fiel do que relataram os documentos levantados.
Por seu intermédio, tomamos conhecimento da presença de Familiares e Comissãrios
do Stº Oficio pertencentes à sociedade sergipana do século XVIII, nomes que, através de
seus descendentes, se projetariam na vida sócio-política dos séculos posteriores.
A Inquisição em Sergipe – confirma as qualidades do pesquisador demonstradas pelo
Professor Luiz Mott em obras anteriores. Importante é sua contribuição à historiografia
sergipana.
Maria Thétis Nunes.
Aracaju, 25 de junho de 1987

INTRODUÇÃO

A historiografia consagrada a Sergipe Colonial é completamente omissa quanto à


presença do Santo Oficio na Capitania conquistada por Cristóvão de Barros. Felisbello
Freyre, autor da principal História de Sergipe (1891), Ivo do Prado n'A Capitania de
Sergipe e suas Ouvidorias (1919), e Felte Bezerra, o estudioso das Etnias Sergipanas
(1950), sequer indagam : teria o Santo Tribunal extendido seus tentáculos a este pequeno
torrão nordestino?
Nossas pesquisas comprovam que sim, e embora muitíssimo menos vasculhado e
atormentado que as grandes capitanias vizinhas da Bahia e Pernambuco, também em
Sergipe o Santo Oficio devas sou, perseguiu, prendeu, seqüestrou, degredou, torturou mais
de uma dezena de seus moradores, tendo levado à morte ao menos um sergipano: José
Fernandes, morador na Vila de Santa Luzia, no ano do Senhor de 1762.
Iniciaremos esse trabalho arrolando as referências a Sergipe constantes nas primeiras
visitações do Santo Oficio às partes do Brasil, passando em seguida à descrição e análise da
documentação inédita por nós coletada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Lisboa
– a saber, sumários, denúncias, processos e confissões - envolvendo pessoas residentes
nesta Capitania. Incluímos também aqui uma análise da atuação de dois Familiares e um
Comissário do Santo Oficio residentes em Sergipe : eram tais funcionários as pontas de
lança e espiões credenciados pelo “terrível tribunal”1 , cujo lema “Justitia et Misericordia”
estava tão distante de sua práxis, que mais sugere mórbido humor do que ideal evangélico2.

1
– Tiramos de A. J. Moreira, responsável pela coleta da principal documentação sobre o Santo
Oficio em Portugal o termo “terrível tribuna” para referir-se à inquisição, também cognominada
pelo mesmo, parafraseando Virgílio, de “Monstrum horrendum” (1980:115)
2
A bibliografia sobre a Inquisição Portuguesa e particularmente sua atuação no Brasil, vai citada no
final deste trabalho.
Século XVI: Blasfemos e Sodomitas

Aos 20 de julho de 1591, no primeiro domingo após Pentecostes, instala-se


solenemente na cidade de Salvador, a primeira visitação do Santo Ofício às partes do
Brasil, sob o comando do Licenciado Heitor Furtado de Mendonça, Capelão Fidalgo, del
Rey, Deputado do Santo Oficio e Visitador Apostólico “em nome de Sua Alteza nas cousas
de nossa Santa Fé Católica deste Bispado do Brasil” (Confissões da Bahia, 1591:10).
No dia seguinte começam as confissões, e o primeiro da lista a se apresentar é nada
menos que o Vigário de Matoim, Padre Frutuoso Álvares, 65 anos, dizendo que nos seus 15
anos de Bahia “cometeu a torpeza dos tocamentos desonestos” com mais de 40 rapazes.
Seguem-se dezenas de confissões onde os “crimes” mais comuns são a prática de rituais
Judaicos, feitiçarias, blasfêmias, sodomia, heresias, sendo Sergipe citado sete vezes no
meio destas confissões.
A maioria destes episódios ocorreram durante a “Guerra de Sergipe” (1589-1590) e
nenhum deles revestia-se da gravidade suficiente - de acordo com o Regimento da
Inquisição de 1552 - que justificasse o rigor dos açoites, degredo e fogueira.
O primeiro confessante a referir-se a esta região foi Roque Garcia : “Estando ele em
Cerezipe disseram uns negros que os gentios tinham mortos os 4 ou 5 homens que estavam
num barco no Rio São Francisco e que queimaram ao barco. E dizendo o Capitão Tomé da
Rocha que, os negros mentiram, respondeu ele confessante que tanto cria no que diziam
aqueles negros como nos Evangelhos de São João...” (p.41) Quer dizer: não acreditava em
nenhuma das duas fontes; portanto, dissera grave blasfêmia contra a Revelação Divina.
A segunda referência a Sergipe é feita por Catarina Frois, lisboeta com parte de Cristã-
Nova, que confessou-se ter pedido a Maria Gonçalves, apelidada “Arde-lhe-o-ra-de” que
fizesse uns feitiços para que seu genro Gaspar Martins, lavrador, não voltasse de Ceregipe:
“que morresse ou o matassem”, vingando-se pelo fato do mesmo” não dar boa vida à sua
mulher moça, filha dela”. Não revela a confessante se a bruxaria deu certo, nem qual a
penitência recebida dos Inquisidores.
O outro confessante a citar Sergipe é o Cônego Bartolomeu de Vasconcelos, baiano,
32 anos, que se auto-acusou e denunciou outrem. Seu pecado foi ter sido intermediário na
destruição de um Auto de Culpas de sodomia contra Gaspar Rois, 30 anos, feitor, que
temeroso de ser preso pela Inquisição, fugiu de Salvador e “está ora feito soldado na cidade
de São Cristóvão de Ceregipe” (p. 56)
Dois franceses comparecem perante a mesa do Santo Ofício – ambos referindo se à
novel conquista. Nicolau Luiz, 40 anos, dos quais 22 no Brasil, é o único morador em
Ceregipe desta lista. Era casado com uma mameluca, Luiza Fernandes : acusou-se que
antes de atravessar o Atlântico, certa vez preso por corsários luteranos, se ajoelhara e se
desbarretara quando os crentes faziam suas orações “mas sempre foi bom católico”. O outro
francês, Simão LUIZ, 35 anos, viúvo e morador no Perabussu, contou que quando tinha 10
anos, no ano de 1566, veio de grumete num navio à nossa costa para buscar pau-brasil, e no
tempo da partida da nau, preferiu esconder-se e ficar, no Rio São Francisco, ficando dois
anos em terra com os índios “usando todas as gentilidades com os ditos gentios, de que
modo até os 12 anos não teve a lei de Jesus Cristo” (p. 147) “Rio São Francisco” na época
era sinônimo de Sergipe, embora em 1566 tal área fosse muito mais visitada por franceses
do que pelos lusitanos, pois a primeira entrada oficial nesta Capitania, liderada pelo jesuita
Gaspar Lourenço, só se efetivará, em 1575 (Freyre, 1977:69). Portanto, o primeiro branco a
vive em Sergipe documentado pela história foi o francezinho Simão Luiz, de 1566 a 1568.
Os dois últimos confessantes a citarem esta Capitania foram soldados que
acompanharam Cristóvão de Sarros na conquista: Paulo Adorno, 39 anos, era um
mameluco morador em Matoim, que no Sertão de Ceregipe comeu carne muitas vezes em
dias proibidos, “podendo-a escusar e sem desculpa destas culpas pedia perdão” (p. 165). O
outro chamava-se João Gonçalves, 20 anos, natural de Ilhéus e morador em Ceregipe do
Conde (Bahia), que disse que há 3 aros, na guerra de Ceregipe Novo por mês e meio
também comera carne às 6ªs feiras e sábados, dias de abstinência e ainda mais, fizera em
seu braço esquerdo certas tatuagens “uso e costume dos gentios que significa ser cavaleiro e
valente” (p. 127)
Terminado o penado das confissões e denunciações, antes de iniciar a visitação em
Pernambuco e Paraiba, o Licenciado Furtado de Mendonça penitenciou os culpados. Dentre
eles, o mameluco Marcos Tavares, 22 anos, “por ter consumado o pecado nefando algumas
15 vezes, sendo agente e paciente”3. Sua sentença foi lida no Auto de Fé de 19 de agosto de
1593, “em presença do Sr. Visitador, Acessores, muitos religiosos, cabido, das justiças, de
grande concurso de gente e povo”, estando o réu descalço, desbarretado 4, vestido

3
– Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa (doravante daremos apenas as
iniciais “ANTT, IL”), Processo nº 11.080. “Sodomia” e “pecado nefando”, são sinônimos, e embora
no léxico inquisitorial signifiquem genericamente “cópula anal”, neste trabalho o termo sodomia
será tomado sempre como sinônimo de homossexualidade masculina e sodomita equivalente a
homossexual masculino.
4
– Nesta época, todos os homens sempre estavam de chapéu, sobretudo em ocasiões públicas, da
maneira que estar “desbarretado” representava uma quase nudez, motivo de grande vergonha e
humilhação. Ainda em 1807, em Sergipe, reclamava o Capitão Mar Manuel Inácio de Morais
ordinariamente - “em corpo”, cingido com uma corda e com uma vela acesa na mão. Após
todo este humilhante ritual, no dia seguinte, o pobre mameluco foi publicamente açoitado -
provavelmente da Sé até o porto de embarque, e degredado por 10 anos para Sergipe de S.
Cristóvão. Conclui a sentença com a famigerada piedade inquisitorial : “Respeitando ser
menor de 25 anos, por ser mameluco e outras considerações pias que se tiveram, usando de
misericórdia, o relevam das penas de direito e ordenações que mandam que os tais
delinquentes sejam queimados...” Teve ainda de pagar $738 pelas custas de seu processo.
Infelizmente nada descobrimos sobre o paradeiro deste mameluco sodomita: se chegou
mesmo a Sergipe, se cumpriu os 10 anos de degredo, se voltou a Bahia ou se fixou morada
em São Cristóvão. Seu envio para lá tinha duplo objetivo: castigar o réu afastando-o da
“civilização”, considerando que em 1593 Ceregipe Novo não passava de um acampamento
de soldados e índios prisioneiros, comandados por Tomé da Rocha, em pé de guerra contra
os franceses e tribos insubmissas. Dois anos após sangrentas lutas, agora sob a tutela de
Diogo de Quadros, começa a se sedentarizar a vida social na nova conquista : segundo
Barleus, o douto holandês que a visitou por volta de 1595, já existiam em Sergipe 4
pequenos engenhos em funcionamento e 47 currais de gado, São Cristóvão ostentando por
volta de 100 fogos (apud Freyre, 1977:88). Portanto, a chegada de degredados representava
sangue novo e garantia de consolidação e aumento da novel povoação. Não temos
evidência de outros penitenciados pelo Santo Oficio que tenham sido degredados para
Sergipe. Quando as culpas eram mais graves, o réu era remetido para o Tribunal de Lisboa
ou enviado para as galés para remar sem soldos por 5,10 anos ou até morrer.
Assim sendo, essas primeiras confissões na mesa do Santo Oficio permitem-nos
reconstituir senão um quadro, aos menos um esboço do panorama social e religioso de
Sergipe nos primeiros anos de sua existência enquanto sociedade luso-brasileira. Aí viviam
soldados violentos que deixaram na Bahia suas mulheres, algumas delas felizes por
livrarem-se das pancadas e má-vida que lhes davam seus senhores esposos; aí estavam
acantonados soldados que zombavam da veracidade das Escrituras Sagradas, que
desrespeitavam os mandamentos da Igreja comendo carne em dias proibidos. Em São
Cristóvão nesta época já morava um francês, casado com mameluca, que embora dizendo-
se bom católico, tinha conhecimento e contacto com os herejes calvinistas : sua presença
em Sergipe numa época em que corsários e navegantes franceses inimigos ainda

Pimentel que um Sargento Mor em S. Cristóvão efetuara uma prisão “em chinelas e calças, sem
chapéu, trazendo o delinquente para a cadeia no mesmo traje que estava em sua casa, sem chapéu.”
(Arquivo Público do Estado da Bahia - doravante apenas “APES”, maço 210). Este, assim como
todos os grifos encontrados neste trabalho são de nossa autoria.
desembarcavam nas costas sergipanas, alguns adentrando-se inclusive pelo território, devia
constituir motivo de desconfiança para os luso-brasileiros e redundar em intranquilidade
para o Monsieur Nicolau Luiz. Talvez fosse até usado como intérprete quando da prisão
dos corsários seus conterrâneos5. Entre os moradores da nova povoação de S. Cristovão,
dois sodomitas: um fugido da Bahia com medo de ser processado, outro degredado.
Portanto, esta é uma faceta do quadro populacional de Sergipe no final do século XVII,
tendo como fonte as confissões da Inquisição : soldados irreligiosos e blasfemos fortemente
influenciados pelo gentilismo dos nativos, francês suspeito de hereje, sodomitas. Uma
plêiade assaz variada de “pecadores” que sob a proteção de São Cristóvão e do Menino
Jesus no seu ombro, constituiram os alicerces da sociedade sergipana.

Século XVII: Cristãos - Novos, Fanchonos, Bígamos e Falsos Padres

Com o passar dos anos, a Inquisição portuguesa – e particularmente o Tribunal de


Lisboa, ao qual o Brasil e os demais territórios ultramarinos estavam submetidos - amplia
suas ações repressivas contra os suspeitos na fé e nos bons costumes. O acúmulo de
experiências na perseguição dos herejes, bígamos, solicitantes, feiticeiros e sodomitas
redundou no aumento das prisões, na sofisticação dos casuismos, no requinte dos métodos
de tortura e na grandiosidade exemplar dos Autos de Fé. O Brasil, após um século de
descoberto, apresentava-se como fértil terreno para inquirições dos insaciáveis oficiais do
Santo Tribunal, dada a extensão do território, a multiracialidade e diversidade dos estoques
culturais de sua população e do pequeno número de clérigos e religiosos (Novinsky, 1972;
1982; Siqueira, 1978). Em 1602, por exemplo, ao solicitar junto à Coroa a doação de uma
data de terras, dizia o Padre Gaspar Fernandes, Vigário de Sergipe, que “não há nesta
Capitania outro senão ele suplicante, para encomendar a Deus os moradores e fazer ofícios
divinos”. (Freyre, 1977:368). Tal afirmação, no caso de ter sido verdadeira, obriga-nos a
indagar: onde estariam os Jesuitas, instalados em Sergipe desde 1597 e os Carmelitas, tidos
como aí chegados em 1600 ? (Nunes, 1984:24)
Aos 11 de setembro de 1618 tem início a segunda Visitação da Inquisição à Bahia,
tendo como titular o Deputado do Santo Ofício, Marcos Teixeira. Sergipe vem referido
apenas três vezes e também ar de maneira tangencial. Um judeu, Cristóvão Luis Solazar, 50
anos, acusou-se de ter zombado de uma imagem de Santo Antônio, chamando ao

5
– A partir de 1595, com a declaração de guerra entre a Espanha-Portugal e a França, a pirataria
francesa recrudesce e vários franceses náufragos são aprisionados em Sergipe (Freyre, 1977:85).
taurnaturgo de Lisboa de “feitor”; entre os presentes na ocasião estava Gaspar Dias
Barbosa, “morador em Sergipe del Rey”. (Segunda Visitação à Bahia, 1618:429)
Pero Garcia, 48 anos, era um próspero senhor de engenho no Recôncavo : sua culpa,
além de algumas blasfêmias, era de ter pecado diversas vezes no “nefando crime de
sodomia”, sobretudo com seus escravos e particularmente com o mulato José, a quem duas
negras da terra chamavam de “manceba de seu senhor”, as quais mandava por isso e por
outras causas, à casa de Paulo Afonso, feitor de uma roça dele, confessante, morador no
Rio Vermelho, e que ora residia o mais do tempo em Sergipe del Rey. (p. 446)
A última referência envolve o Cristão-Novo Jorge Moniz de Lisboa, 27 anos,
estudante de filosofia em Salvador. Seu pecado era o mesmo do antecedente: confessou aos
25 de maio de 1620 que “meteu sua natura na parte traseira de vários cúmplices,
derramando semente genital, dormindo também carnalmente pela traseira sendo ele
confidente o paciente”. Seu pai, Antônio Moniz de Lisboa, Cristão-Novo, era morador em
Sergipe del Rey. (p. 522) Se o estudante sodomita morou também na nova Capitania, não o
sabemos. O terto é que seu pai solicitou e obteve doação de um sítio de meia légua em
quadra, no Caminho das Mangueiras6, “indo de S. Cristóvão para o curral de Gonçalo
Antônio. Na mercê de doação, o Capitão Mor João Mendes estabelece como cláusula que o
suplicante cultivasse o sítio na forma do foral de São Cristovão.” (Freyre,1977:413)
Estas três referências permitem-nos vislumbrar mais alguns aspectos significativos dos
primórdios da vida sócio-econômica desta Capitania. Já agora tem um nome confirmado, o
mesmo que perdurará pelos séculos futuros: Sergipe del Rey, em lugar de Cerezipe ou
Cergipe Novo, como chamavam-na nos tempos da 1ª Visitação nos finais do século XVI.
Entre seus moradores, alguns Cristãos-Novos, como o já citado Antonio Moniz de Lisboa.
Também da nação hebréia era Pero de Vila Nova, “judeu estrangeiro morador em Sergipe,
que se encarregara de entregar o dinheiro do suborno atrás aludido, para queimar os Autos
do sodomita Gaspar Rois, também foragido em São Cristóvão. Se se trata da mesma
pessoa, também era Cristão-Novo - segundo o índice de Anita Novinsky (1977:172) Luiz
Alvares, que em 1606 solicitava ao Capitão Mor Nicolau F. Vasconcelos a confirmação de
posse de uma gleba junto ao rio Sergipe, onde “o suplicante está povoando com sua mulher
e filhos com suas criações ordinárias, fazendo suas lavouras” (Freyre, 1977:402). Outro

6
– Observe-se um detalhe interessante para a história botânica de Sergipe: em 1623 já havia
mangueiras na nova Capitania. Como se sabe, estas terebentácias.foram importadas da Índia, posto
que nenhum dos primeiros cronistas ao arrolar as frutas nacionais se refere à presença da manga em
nossa terra. As mangueiras sergipanas talvez já fossem “filhas” de árvores aclimatadas
primeiramente na Bahia, vindas nas famosas naus da “carreira das índias”.
Cristão-Novo, membro da importante família Leão, era Baltasar Leão, que em 1602 pede
uma gleba de légua quadrada no Vasabarris 7, alegando ter participado da conquista ao lado
de Cristovão de Barros. Diz que aí mesmo em Sergipe se casara “ajudando a povoar e
sustentar a terra com sua pessoa, mulher, filhos e família” (Freyre, 1977:371). Segundo A.
Novinsky, Simão Leão, outro judeu, chegou a ter contratos dos dízimos em Salvador -
onde residia - e também em Sergipe del Rey, o que comprova a penetração destes semitas:
no setor comercial privado - “eram importantes mercadores de produtos coloniais para
diversos portos do Norte e Europa” - e no setor público, inclusive na própria Igreja, posto
que um dos patriarcas desta família, Diogo Leão, chegou a ser oficial da Confraria do
Corpo Santo na Bahia, apesar de publicamente reconhecido como “homem de nação”.
(1972:86)
Além destas referências aos Cristãos-Novos de Sergipe, outra citação a esta Capitania
traz novamente à baila “o abominável pecado de sodomia” - aliás, como veremos nas
próximas páginas, os sodomitas constituiram a principal preocupação dos inquisidores nas
terras de S. Cristovão durante todo o século XVII.
Corria o ano de 1645 quando os Inquisidores de Lisboa recebem uma carta
denunciando que na Bahia “grassam com tão escandalosa soltura alguns crimes que para
atalhar este dano o remédio era o juízo do Santo Ofício.” A soltura era tanta que um
Cristão-Novo, Diogo Lopes, proclamava que “a terra da promissão que Deus Nosso Senhor
prometera a seus avós, era o Brasil e que Portugal estava sujeito a quatro bêbados
Inquisidores”... Outro acusado, Francisco Rocha, blasfemava hehiondamente dizendo que
“os apóstolos de Cristo Nosso Senhor eram somítigos”8
De abril a agosto de 1646 é feita uma grande inquirição onde são ouvidas 118
testemunhas que confirmam a grande desenvoltura dos judeus - entre eles alguns membros
das família Leão, Homem, Lope, sobrenomes também constantes entre os primeiros
povoadores de Sergipe - ratificando-se da mesma forma a existência na Bahia de diversos

7
– Felte Bezerra, o especialista nas Etnias Sergipanas, engana-se ao dizer que “não foram
encontradas famílias sergipanas de comprovada ascendência israelita” (1950:125). Para os dois
séculos iniciais da história de Sergipe, indicamos ao longo deste trabalho quando menos uma
dezena de Cristãos-Novos residentes nesta capitania, entre eles Diogo Vaz, boticário, morador em
S. Cristóvão, preso pelo Santo Ofício em 1661 e sentenciado sob a acusação de ser “judaizante” aos
10 de abril de 1669. (Agradeço a Dra. Anita NOvinsky a indicação deste nome).
8
– ANTT, Caderno do promotor nº 29, Inquirição de 6.12.1645. O livro de Anita Novinsky,
Cristãos Novos na Bahia (1972) faz extensa análise deste documento sobretudo no tocante a questão
judaica.
sodomitas - de escravos a sacerdotes. Entre eles, Hilário Nunes, alferes reformado, “que já
era infamado do somítigo em Sergipe del Rey”, o qual além da fama abominável, era
acusado de ter proferido a seguinte máxima herética: “é maior pecado o ser bêbado que
somítigo”9. Amante apaixonado, diz uma testemunha bisbilhoteira que este militar ficava
muito enciumado de um camarada, Baltasar Vieira, quando este se recolhia tarde para sua
casa e pedia-lhe entre lágrimas que não tardasse ao voltar. Mesmo apartados para outro
quartel, por ordem de um Capitão, voltaram a viver juntos. Quanto tempo, onde morou e
sobre sua fama pública em Sergipe, infelizmente a documentação é omissa; Talvez ainda lá
em São Cristóvão vivesse Marcos Tavares, o mameluco degredado pela mesma paixão
homo-erótica. Aliás, Hilário Nunes não será o único que na Bahia já chegou” com fama de
sodomita quando vivia na Capitania vizinha: o pequeno número de sua população e o
intenso controle social decorrente também do exíguo número de vilas, fazia com que
praticamente todo mundo se conhecesse mutuamente e com dificuldade chegaria a esconder
um somítigo suas preferências libidinosas.
É em 1678 que Sergipe enquanto tal passa a se constituir como matéria prima para a
ação do Santo Oficio. Nº 14º Caderno do Nefando, encontramos a noticia dada por Frei
Inácio da Purificação, carmelita, que uma série de delitos contra a Fé e bons costumes
ocorriam na Capitania, que “na vila do Rio S. Francisco, diz o frade.. vi um homem por
nome Capitão Pedro Gomes, tão escandaloso em cometer o pecado nefando, que
publicamente o comete com brancos e pretos, e na mesma fama está também incurso um
sacerdote, Padre Diogo Pereira, morador na Cotinguiba, há 5 léguas de Sergipe del Rey”.
Denuncia mais o zeloso carmelítano que em São Cristóvão, havia dois bígamos cujas
primeiras esposas viviam em Pernambuco ; que na vila de Itabaiana, na boca do Sertão,
Francisco da Maia Correia, “tem fama de mourisco e” ao ouvir dizerem mal de sua filha,
comentou que ela era tão pura quanto a Virgem Nossa Senhora”. Mais ainda: um tal
Manoel Henriques, dizia a quantos quisessem ouvir que “não adorava a cruz, de pau porque
dele se faziam instrumentos baixos.” Também na mesma linha de suspeição da fé, denuncia
Fr. Inácio que no Rio Real, há 30 anos passados, “se fez uma procissão em que se deu culto
de santa a uma moça reputada por donzela e levando-a num carro, um seu primo, o Padre

9
– Certamente este acusado de sodomía baseava-se na 1ª Epistola de S. Paulo aos Corintios (Cap.
VI: 9-10), quando disse que nem “os bêbados, nem os imorais e os pervertidos entrarão no Reino de
Deus” - os termos originais em grego utilizados pelo Apóstolo dos Gentios são “malakoi” e
“arsenokoitai”, errônea e preconceituosamente traduzidos em muitas versões biblicas como
“sodomitas e efeminados” (McNeill, 1976).
Antônio Correia a foi incensando com um turíbulo e na igreja o Capelão fez uma prática em
louvor da dita”.
A denúncia era um prato cheio para os Inquisidores, pois envolvia a quase totalidade
dos crimes perseguidos pelo Santo Tribunal: sodomia, bigamia, blasfêmia e heresia.
Curioso notar a ausência de acusações à prática do judaísmo, crime que na época, nas
vizinhas Bahia, Pernambuco e Paraiba, causavam grandes padecimentos e consternações
aos cristãos-novos e cripto-judeus (Wiznitzer, 1966). Em contrapartida, suspeitava-se que
em Itabaiana um “mourisco” - outra das etnias duramente perseguidas pela Inquisição,
suspeitos sempre de praticar a “maldita seita de Mafona” - insultasse a ortodoxia católica na
pessoa imaculada da Virgem Santissima.
Observe-se que as denúncias do piedoso carmelita cobrem praticamente todos os
quadrantes do território da já quase centenária capitania: das margens do São Francisco a
Itabaiana, de São Cristóvão ao extremo do Rio Real, fronteira com a Bahia. Certamente foi
missionando por esses interiores que Frei Inácio recolheu todos estes episódios desviantes
“pertencentes ao conhecimento do Santo Oficio.” Sua carta, datada de 19 de junho de 1678,
teve boa acolhida, pois aos 4 de março do ano seguinte o Promotor da Inquisição de Lisboa
consegue que a Mesa do Santo Oficio envie uma ordem e comissão ao Arcebispo da Bahia,
mandando fazer sumário contra os delatos sodomitas. Que o leitor atente para o detalhe: os
Inquisidores fazem olho grosso das denúncias dos crimes de bigamia, heresia e blasfêmia,
ordenando devassar penas os homossexuais. A atitude do Santo Oficio inquirindo apenas o
crime de sodomia revela-se excepcional na pragmática inquisitorial, pois não notamos uma
maior intolerância dos Inquisidores face à homossexualidade em detrimento dos outros,
crimes10. Neste caso especifico, interpretamos a exclusividade dada à caça aos sodomitas
pelo fato de se tratar de pessoas importantes - um Capitão e um Sacerdote – e darem motivo
a grande publicidade e escândalo, posto que um dos denunciados chegava à inaudita proeza
de manter publicamente relações homossexuais com brancos e pretos, desrespeitando não
apenas a moral sexual mas também as regras de convivência social que na Colônia
reprimiam intimidades públicas entre brancos e as pessoas de cor.

10
– De um total de 4419 pessoas denunciadas pelo crime de sodomia referida nos Repertórios do
Nefando de Lisboa e Coimbra, aproximadamente 10% chegaram a ser realmente processadas e
presas, destas, menos de 1% morreu na fogueira que reflete relativa tolerância dos Inquisidores vis-
a-vis os sodomitas (Mott, 1985).
A comissão do Santo Oficio vai de Lisboa para o Arcebispo da Bahia : era então o
Prelado D. Gaspar Barata de Mendonça, 12 Arcebispo do Brasil (1679-1682), o qual nunca
chegou a tomar posse da mitra. Embora as comissões da Inquisição geralmente fossem
desencumbidas prontamente pelos eleitos do Santo Tribunal, estas diligências demoraram
mais tempo para ter inicio do que o usual: só em março de 1683 que iniciar-se á o sumário.
Por que 4 anos de adiamenfo entre a ordem da Mesa Inquisitorial e o início das inquirições?
Provavelmente a causa da demora foi a desorganização da Arquidiocese que na ausência de
seu titular, era dirigida por governadores ad hoc, menos expeditos neste tipo de
investigação. Quando D. Frei João da Madre de Deus chega à Bahia para tomar conta do
Arcebispado, em maio de 1683, a devassa em Sergipe apenas acabava de se completar.
O encarregado do sumário foi o Prior do Carmo de São Cristóvão, Frei Henrique de
Jesus, tendo como escrivão seu correligionário Frei Cosme do Desterro. Ao todo foram
ouvidas 19 testemunhas, transcorrendo o inquérito de 20 de março a 10 de maio, 51 dias.
Um quadro referente à identidade destas testemunhas ajudará o leitor a melhor vislumbrar a
composição social de Sergipe no último quartel do século XVII:

Testemunhas no Sumário do Santo Ofício (1683)

NOME IDADE OCUPAÇÃO NATURALIDAD RESIDÊNCIA


E
01. Lourenço Sousa Vieira 72 Capitão S. Cristóvão S. Cristóvão
02. Domingos Gonçalves 55 ? Cotinguiba Cotinguiba
Serqueira
03. Francisco Sousa 50 Alferes Bahia Poxim
Pereira
04. Diogo Calado 65 Alferes Viçosa, Port. S. Cristóvão
05. Jerônimo Pacheco 50 ? Cabo, Pernamb. Rio Sergipe
06. João Lopes Sales 50 Sapateiro Abrantes, Port. S. Cristóvão
07. João Antunes 37 Mercador Lisboa Rio Sergipe
08. Simão Cruz Porto 39 Capitão Bahia Maniçobas
Carreiro
09. Simeão Cruz Porto 73 Moço S.Mde Lisboa S. Cristóvão
Carreiro
10. Bartolomeu Figueiredo 70 ? Pernambuco Campos do Jacaré
11. Manuel Ferreira Leite 35 Alferes Bahia Japaratuba-Mirim
12. Antonio Vilela Cide 35 ? Rio Grande Japaratuba
13. Pedro de Souza 26 ? S. Cristóvão Japaratuba
14. Belchior da Costa 57 Capitão I. Graciosa Port. Cotinguiba
Miranda
15. Francisco Andrade 28 ? S. Cristóvão Poxim
Pacheco
16. Paulo Alvares 40 Sargento S. Lourenço, PE Japaratuba
17. Gregório Figueiredo 25 ? S. Cristóvão Jacaré'
18. Simão Ribeiro 20 ? S. Cristóvão Jacaré
19. Domingos Ferreira 35 ? Bahia Japaratuba
Leite

Numa diligência deste tipo, diferentemente das Visitações, o próprio Comissário do


Santo Oficio convocava as testemunhas, e o critério da escolha era a suspeição de terem
conhecimento ou informação sobre os denunciados. Destes 19, apenas dois disseram não ter
nada a declarar (Nº 4 e 10). A presença de sete militares é sintomática, considerando-se que
o principal delatado era um Capitão. Admiramos, outrossim, a ausência de clérigos e
religiosos entre ás testemunhas: nesta época, já haviam sido erectas além da freguesia de
Nossa Senhora da Vitória da cidade de São Cristóvão (1608), Nossa Senhora da Piedade do
Lagarto (1679), Santo Antonio de Vila Nova do Rio de São Francisco (1679), Santa Luzia
(1680) e Santo Antonio e Almas de Itabaiana (1675). Contava também Sergipe com
religiosos carmelitanos, jesuitas e beneditinos. Portanto, deveria haver ar quando menos,
uma dezena de sacerdotes e outro tanto de irmãos leigos e donatos. Como um dos dois
delatos era o Pe. Diogo Pereira, nada melhor que ouvir outros clérigos sobre os desvios
morais de um correligionário. Afinal, o Santo Ofício estava farto de saber que tinha
procedência o chamarem a sodomia de “vício dos clérigos”, tamanha a freqüência dos
homens do altar no temível Repertório do Nefando, o volumoso caderno onde estavam
arrolados em ordem alfabética todos os denunciados pelo nefando pecado de sodomia.
Malgrado estas ponderações, nenhum padre é chamado para testemunhar11.

11
– As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) proibiam que os clérigos fossem
testemunhas apenas “em negócios e causas seculares crimes ou cíveis, em juízo secular” (§474),
Esta lista permite-nos - à moda de “flash” - visualisar uma amostra da população de
Sergipe na época em que era seu Capitão Mor Braz da Rocha Cardoso, e que a população
total da Capitania devia beirar 17 mil almas (Mott, 1986:21).
Como a Inquisição recomendava que fossem ouvidos apenas “Cristãos Velhos, sem
sangue de judeu, mouro, mulato ou negro”, todo os depoentes são consequentemente
brancos. Dos 19 apenas seis são sergipanos, 5 portugueses, 4 baianos, 3 de Pernambuco e
um do Rio Grande (do Norte, provavelmente). Quase um século depois da Conquista, ainda
a maior parte dos habitantes brancos devia ser de alienígenas. Quanto a moradia, 4 residem
em S. Cristóvão, 3 no Jacaré (no termo da cidade-capital), 2 na Cotinguiba, 5 na Japaratuba
e dois no Poxim, todas localidades situadas a menos de dois dias de cavalo da sede da
Capitania. As idades dos denunciados vão de 20 a 73 anos, destacando-se entre os anciãos o
Capitão Lourenço Sousa Vieira, natural da própria cidade de S. Cristóvão, com 72 anos, o
que vale dizer que nasceu em 1610, portanto, um dos primogênitos da primeira geração de
sergipanos natos.
Os primeiros a serem chamados - entre março e meados de abril, são os moradores da
cidade e seus arredores. Os últimos achegarem, aqueles que residiam mais distantes, nos
baixios da Japaratuba. A inquirição deve ter-se realizado no próprio Convento do Carmo,
provavelmente na sala do Capitulo, o local mais apropriado dentro de um convento para
inquirições secretas como eram todas as diligências inquisitoriais. Tudo devia transcorrer
no maior segredo, tanto para não afugentar os suspeitos, como evitar difamálos no caso de
serem falsas ou inverídicas as denúncias. Tudo o que as testemunhas ouviram e falaram
perante o Comissário e seu escrivão devia ficar entre as quatro paredes capitulares:
qualquer inconfidência poderia redundar em punição dos tagarelas.
Como acontencia em locais de pouca atuação inquisitorial e tratando-se de
Comissários igualmente pouco familiarizados com as regras do jogo do Regimento do
Santo Ofício, as diligências em Sergipe vieram acompanhadas de um roteiro com três
perguntas a fim de orientar o Comissário. Após identificar-se, o denunciante devia jurar
com a mão direita sobre os Santos Evangelhos que diria apenas a verdade,
compromentendo-se a guardar segredo total do dito e ouvido. O escrivão secretariava o
Sumário, devendo anotar fielmente tudo o que era mencionado pela assustada testemunha.
A primeira pergunta era capiciosa : “Suspeita porque motivo é chamado perante o Santo
Oficio ?” Em muitas ocasiões semelhantes, a testemunha trêmula e ignorante do motivo
real da inquisição, posto que tudo relacionado à Inquisição, repetimos, era secretissimo e

não sendo do nosso conhecimento a interdição de que os mesmos clérigos e religiosos


testemunhassem em negócios do Santo Oficio.
praticamente ninguém sabia como funcionavam tais inquéritos - acusa-se de algum deslize
na ortodoxia, cumprindo em si próprio a triste profecia do feitiço que virou contra o
feiticeiro e de delator passa a réu-delato. Se sua resposta foi negativa, não suspeitando o
motivo de sua convocação, dirigia-lhe o Comissário a segunda pergunta: Conhece alguém
que tenha dito ou feito algo cujo conhecimento pertence ao Santo Ofício ?” No caso de
ignorar quais os “crimes” da alçada inquisitorial, uma lista dos principais desvios era lida
para o pobre homem, que a essas alturas devia estar revirando sua memória para descobrir
algum vizinho ou conhecido que pudesse ser incluido no rol dos bígamos, feiticeiros,
sodomitas, herejes, blasfemos, etc. Também ar ocorriam muitas surpresas para os
Comissários: por exemplo, a ordem de Sumário era contra feitiçaria e as testemunhas
delatam crimes de bigamia, heresia, etc. Que dizer: O Santo Oficio não perdia oportunidade
de, mesmo já estando na pista certa de delinqüentes, alevantar mais informações sobre
outros “maus cristãos”. A terceira pergunta era o cerne do sumário: “Sabe que alguma
pessoa cometesse o pecado nefando de sodomia ?” Somente ar que a testemunha ficava por
dentro dos reais motivos pelo qual fora chamado. Tudo o que disssera nas perguntas
anteriores fora uma cilada e fazia parte das regras do jogo secreto do Santo Tribunal que ao
lado da delação, tortura, silêncio compulsório de seus penitenciados, inabilitação a cargos
públicos civis e religiosos por muitas gerações dos descendentes e colaterais dos infelizes
processados, tinha como maliciosa estratagema “jogar verde para colher maduro”.
A testemunha em face de um comissário inquisitorial devia ficar trêmula e
assustadíssima, pois como todos os procedimentos internos do Terrível Tribunal eram
secretos, o máximo que as pessoas deviam saber, sobretudo no interior de Sergipe - era que
vários moradores do Brasil tinham sido presos, seus bens sequestrados, açoitados
publicamente, levados para os cárceres de Lisboa, sentenciados nos Autos de Fé, alguns
degredados para as galés, outros queimados na fogueira. Com toda certeza a noticia de
prisão de Diogo Vaz em 1661, morador em S. Cristóvão, o seqüestro de seus bens, seu
envio para a Casa do Rocio, sua sentença lida no Auto de Fé em 1669, deve ter percorrido
todas as vilas e povoações sergipanas. O ser chamado “da parte do Santo Ofício” devia
obrigar o infeliz a prescrutar minunciosamente todo o seu passado, para detectar alguma
palavra, ação ou até omissão “do conhecimento do Santo Ofício”, não só de si próprio,
como dos outros. Omitir suas próprias culpas, encobertar as alheias, ou levantar falso
testemunho provocava maior severidade por parte dos censores. Portanto, não havia
escapatória: que se dissesse a verdade, pois outra testemunha ou o próprio suspeito
poderiam com provas sólidas, desmascarar o falso testemunho e transformar a testemunha
em réu.
Sob este clima de suspense e muito medo é ouvida a primeira testemunha : a escolha
não poderia ter sido mais acertada, pois Lourenço Sousa Vieira devia ser certamente o
morador mais antigo de Sergipe : tinha praticamente a mesma idade da sociedade
sergipana, portanto, conhecera pessoalmente boa parte de seus moradores e forasteiros.
Denuncia como sodomita apenas o Padre Diogo Pereira, morador na vizinha freguesia
da Cotinguiba, tendo ouvido de um seu vizinho há 8 anos passados, que o negro Garcia,
escravo do incriminado sacerdote, reclamava que seu senhor “o perseguia no nefando e se
quisesse confirmar que fosse ver à noite.” Complacente ou desinteres-sado da vida alheia, o
referido vizinho não foi espiar as “velhacarias” do sacerdote.
Quatro dias após ouvir a primeira testemunha, comparece perante o comissário-
carmelita Domingos Gonçalves Serqueira, certamente filho de Domingos Gonçalves, que
em 1601 conseguira uma data de terra na Cotinguiba (Freyre, 1977:354). Disse ter ouvido
do próprio Vigário Geral da Capitania, o Pe. Sebastião Poderoso de Góis, que o delato
Padre Diogo Pereira cometia o nefando com seus escravos, o mesmo sendo-lhe confirmado
por Domingos Rois, servente do sacerdote e que depois mudara-se para Agua de Meninos
na Bahia : “isto ouviu em frente de vários moradores Portugueses do Porto e de Viana”,
completou o informante. Além de confirmar a denúncia, acrescenta mais lenha na fogueira:
informa de primeira mão que um tal de Manoel da Mota tinha fama pública em Sergipe de
cometer o nefando com um negro, denúncia que será confirmada por mais 10 testemunhas,
como Veremos mais adiante.
A terceira testemunha dá outro detalhe: que o fogoso sacerdote “cometia o nefando
com uma sua negra”, prática aliás bastante frequente entre os “devassos” de antanho que na
Inquisição acusam-se e são denunciados de terem praticado a pecaminosa cópula anal com
os dois sexos. O pecado de sodomia, de acordo com os tratados de Teologia Moral da
época, inclui a não apenas a relação anal entre pessoas do mesmo sexo, mas também com o
sexo oposto, embora os casos de sodomia heterossexual fossem muito menos perseguidos
do que entre os “fanchonos”, termo como eram apelidados os “gays” nos séculos passados
tanto em Portugal como no Brasil12. Sobre as “fanchonices” do Padre Pereira, apenas mais

12
– O termo “gay’ usado pela primeira vez somente em 1939 nos Estados Unidos para se referir aos
homossexuais, já era de uso corrente desde os séculos XIII-XIV na língua catalã-provençal,
exatamente para designar “pessoas com comportamento abertamente homossexual” (Boswell,
1980:43). De modo que mais antigo que o termo “homossexual”, que só foi cunhado em 1869 pelo
húngaro Benkert, o termo “gay” tem profundas raízes nas línguas latinas, inclusive na “flor do
Lácio”, donde os derivados portugueses: “gai” - alegre; “gaiato” - rapaz travesso, garoto, ladino,
esperto. (Cf. Dicionário Morais). Portanto, não se admire o leitor de falarmos de uma “cultura gay”
uma das testemunhas (nº 14) tem algo a declarar: diz que o clérigo “acometera” para o
nefando um seu negro e outro escravo de um seu vizinho natural da Ilha da Madeira.
Nenhuma das restantes 15 testemunhas tinha coisa alguma a acrescentar sobre as
“somitigarias” do padre da Cotinguiba, como também ficamos sem saber em que terra
nascera, sua idade, quanto tempo esteve em Sergipe e qual o seu paradeiro. Não consta na
Torre do Tombo processo em seu nome. Provavelmente para fugir à fama e evitar maiores
escândalos e perigosas consequências, mudou-se para outra capitania. Seu nome nunca
mais é mencionado na documentação do Santo Oficio, nem nos Cadernos nem nos
Repertórios do Nefando, apesar de contra ele pesarem graves denúncias - que iam do
Vigário Geral da Capitania a um de seus cúmplices, o preto Garcia. Aliás, como veremos
nas próximas páginas, em muitas denúncias de sodomia, há sempre a presença de um ou
mais escravos, seja do delatado, seja de seus vizinhos, envolvido no “peccatum contra
natura” : Gilberto Freyre tem razão quando enfatiza o quanto a escravaria esteve
comprometida, seja livremente, seja obrigada pela obediência servil, à vida venérea dos
donos do poder.
Contra o Capitão Pedra Gomes as denúncias eram mais graves, tanto no número - 12
testemunhas – quanto na variedade dos parceiros sexuais e publicidade escandalosa do
crime nefando. Pouco sabemos sobre este primeiro “Capitão Gay” da história de Sergipe:
era natural da Bahia e segundo Felisbelo Freyre, teria chegado em S. Cristóvão no ano de
1651, com a patente de Sargento Mor, capitaneando 200 mosqueteiros para reprimir a
rebeldia do Capitão Mor Manuel Pestana Brito contra as ordens do Conde de Antouguia,
então Governador da Bahia. Não encontramos seu nome na lista dos requerentes de terras e
sesmarias, apesar de vários capitães e alferes seus contemporâneos conseguirem nesta
mesma época importantes glebas para lavoura e criatório. As testemunhas divergem quanto
ao local de residência do Capitão: ora dizem que vivia na outra banda do Rio Sergipe, ora
no Rio São Francisco, mais precisamente, no “Benfica”. Sua fama pública de sodomita já
tinha 10 a 12 anos, o que nos permite conjecturar que nos seus quinze primeiros anos de
Sergipe, ou não praticava ou manteve sigilosa sua preferência homo-erótica. Várias pessoas
sabiam apenas que o Capitão nefandava com seus negros, outras testemunhas são mais
explícitas: o predileto era o escravo Gaspar. O próprio Gaspar quando certa vez perguntado
sobre este rumor público, reduziu para “solicitações” as investidas sensuais de seu amo à
sua pessoa, dizendo que em contrapartida, com o crioulo Felix e com o moleque Parfeito,

na Bahia seiscentista, ou dos “gays” denunciados em Sergipe no Século XVII. Outros termos
usados na época para se referir aos sodomitas e à homossexualidade: fanchono e fanchonice,
somítigo e somitigaria, velhacaria, nefandice, etc.
consumara o nefando pecado de sodomia. O próprio filho do Capitão João Abreu, também
se queixara dos assédios do companheiro de armas de seu pai.
O depoimento do Alferes Simeão da Cruz Porto Carreiro é particularmente
informativo sobre o disse-que-disse causado pelo Capitão Gay na provinciana Sergipe del
Rey. Este senhor, com 73 anos, é o mais velho dos inquiridos, lisboeta, ostentava o
pomposo título de ter sido “moço da Câmara de Sua Magestade”, função que deve ter
desempenhado junto a D. João IV (1640-1656). Desde 1625 que já existiam membros desta
ilustre família em terras sergipanas, data em que Domingos e Gaspar Cruz Porto Carreira
receberam glebas de 6 léguas em quadra na Ponta da Tabanga, ao sul do rio de S. Francisco
(Freyre, 1906:294). Para sua desonra, sua munher era tia da mulher de Pedro Gomes,
portanto, eis outra informação sobre a biografia do nosso Capitão sodomita: era casado.
Aliás, como acontecia desde a Idade Média (Boswell, 1980), até nos nossos dias, e mais
ainda nos tempos inquisitoriais, havia muito sodomita sacramentalmente casado, com filhos
dentro e fora do lar, o que não impedia praticarem às vezes, ou predominantemente, o
homo-erotismo, seja como agentes, seja como pacientes, seja das duas formas. Dois bons
exemplos contemporâneos ao Capitão Gomes que ilustram nossa afirmação são nada menos
que os Governadores da Bahia, Diogo Botelho (1602-1607) e Câmara Coutinho (1690-
1694), ambos casados e com farta, devassa e bem documentada vivência homo-erótica (2ª
Visitação à Bahia, 1618:380 ; Gregório de Matos, 1969:198-225).
Pois bem, certa vez, “pelejando” a matriarca dos Porto Carreiro com o negro Gaspar,
escravo infamado de transar com o Capitão-Gay, este acuado pela cobrança de sua má
fama, respondera que assim o fazia, “por que era cativo”, ao que a branca bisbilhoteira
atalhou demolidora: “E por seres cativo, servis de mulher ao teu senhor?” Infelizmente, o
Escrivão encerrou aí as informações sobre este bate-boca. Diga-se en passant, que
dispomos diversos documentos onde os cativos inteligentemente transferem para seus amos
a iniciativa do sexo-proibido, assim como mulheres que inocentavam-se do pecado nefando
da cópula anal, dizendo que foram sodomizadas à força por seus marido, às vezes debaixo
de pancadas. Daí provém talvez o termo tão lusitano “coitado” e “coitadinha”,
originalmente identificando aquele ou aquela que sofreu um coito.
Outros denunciantes trazem informações mais factuais sobre as “fanchonices” do
infamado Capitão Gomes, sobretudo seus vizinhos da Japaratuba, localidade que emprestou
o nome da primitiva aldeia indígena existente na região, missionada por Carmelitas, que
por sua vez possuiam grandes fazendas de criatório na mesma área. A 11ª testemunha narra
ter visto no traseiro de um moleque as provas do impulso sodomítico de delato, o qual
negrinho dissera que “seu senhor abrira com ele, molestando”. Também relata que Gaspar,
o negro predileto do Capitão, certa feita fugira de casa alegando que seu senhor dormia com
ele à força, pondo uma pistola em seu peito, ameaçando matá-lo caso não o satisfizesse.
Afirma que todos esses episódios eram do conhecimento público na Japaratuba. Talvez
tenha sido através dos Carmelitas missionários na Aldeia de Japaratuba que o Comissário
Frei Inácio da Purificação tenha tomado conhecimento das safadezas do Capitão, posto que
sua vida erótica tornara-se do conhecimento comum.
Que o leitor não se choque com essas cenas de violência sexual: outros episódios mais
cruéis serão oportunamente citados. Se o Santo Tribunal e o próprio Bispo torturavam;
açoitavam, mandavam queimar os infiéis, não há porque esperar douçura destes primeiros
povoadores do Brasil. As violências na prática libidinosa entre heterossexuais chegavam às
raias da insanidade, sobretudo quando senhores e escravas entretinham relações de
intimidade. Consulte-se Gilberto Freyre (1970:362) e nosso artigo “A tortura dos escravos
na Casa da Torre”, documento aterrador que desmascara as tiranias sádicas do Capitão
Garcia Dávila Pereira de Aragão com a escrava ria de seu borralho 13. Eis como o Ouvidor
da Comarca descrevia o caráter dos sergipanos após 200 anos de civilização: “Os mulatos;
negros forros a alguns brancos do país têm por desprezo trabalhar para si, e ser o trabalho
só para os cativos. A índole de todos é de suma reserva e vingança: por qualquer leve
caprichio se despicam e o fazem atraiçoadamente a tiro, vulgarmente atrás de pau. O
primeiro cuidado destes é haver uma arma de fogo, ornato que temem muito e com o qual
se tornam atrevidos e capazes de todo o mal. É neste continente o uso de espingarda
frequente, as mortes frequentes. Os homens quietos e arranchados temem esses vadios e os
sofrem, por evitarem cairem na indignação deles.”14
O episódio que narraremos a seguir reveste-se de extrema crueldade, pois redundou na
morte de um pobre escravo, motivada pela intolerância homofóbica de seu senhor 15. Foi a
12ª testemunha, morador na Japaratuba, quem fez esta denúncia: certa vez o capitão Pedro
Gomes pedira um negro emprestado a seu vizinho, Luiz Gomes, para acompanhá-lo numa
jornada. Ao voltar o negro “trouxera umas ceroulas vestidas. E perguntando seu senhor

13
– Eis apenas uma das torturas sádicas mais leves daquele potentado baiano que foi o homem mais
rico do Brasil nos meados do século XVIII: “Ele mandava as suas escravas deitarem-se com saias
levantadas, e ao mesmo tempo lhe vai botando ventosas com algodão e fogo nas suas partes
pudendas, com sua própria mão, dizendo: É para chuparem as umidades ..:” (Mott, 1984:7).
14
– Representação do Ouvidor da Comarca de Sergipe, Antonio Pereira de Magalhães e Paços,
dirigida à Rainha, 26-4-1799, in E. C. Almeida, 1914, Doc. Nº 20.852.
15
– “Homofobia” é um neologismo com ampla utilização nos meios acadêmicos estrangeiros, que
significa medo e intolerância à homossexualidade; é o contrário de “homofilia” (Murray, 1984:60).
donde ou a quem furtara, o não quiz dizer. E por este respeito, o mandara açoitar,
parecendo-lhe que as furtara. E estando a açoitar, confessara o negro que aquelas ceroulas
lhe tinha dado o Capitão Pedro Gomes, por cometer com ele o pecado nefando.” Se o
escravo Gaspar espalhava que o sodomita forçava-o ao nefando, este pobre cativo, pelo
contrario, fora graciosamente presenteado com um par de ceroulas, um presente,
convenhamos, bastante generoso, pois naquela época, não havia costume de se retribuir
materialmente pelos serviços sexuais da escravaria. Mesmo em Lisboa, muitos sodomitas
brancos contentavam-se, em troca pelos mesmos serviços sexuais, com um par de meias ou
apenas 2 vinténs, que foi a soma dada na Bahia pelo já citado Padre Frutuoso Alvares ao
seu cúmplice, o estudante Jerônimo Parada (1ª Visitação à Bahia, 1591 :39). Estas ceroulas
custaram a vida do pobre escravo: a mesma testemunha declarou que “este negro morrera
dos açoites que então lhe mandou dar seu senhor. Outro informante, Francisco Andrade
Pacheco, morador nos Poxins, foi mais categórico: “matou seu moleque por ter cometido o
nefando com Pedro Gomes”. E D. Marcos Antonio de Souza, ex-vigário da freguesia
Sergipana de São Gonçalo do Pé do Banco, depois Bispo do Maranhão e Deputado nas
Cortes de Lisboa, dizia em 1808 que em Sergipe, “esses desgraçados escravos são mais
bem tratados que na Bahia...”(1944:17) Imaginemos então o inferno que devia ser o
Recôncavo !16.
Avançamos uma hipótese para explicar tamanha crueldade e intolerância do
proprietário Luiz Gomes, da Japaratuba, vis-a-vis seu moleque, que sob tortura, confessou
ter mantido uma relação homossexual com o branco sodomita. Do mesmo modo como as
ricas senhoras - inclusive as freiras - no Brasil colonial, usavam os negros corpos de suas

16
– Com a maior institucionalização da justiça em Sergipe, os autores de excessivos
castigos contra a escravaria podiam ser punidos por lei. Em 1815, após uma briga entre um escravo
angola e um soldado - onde o militar chegou a levar umas cipoadas e forte dentada do cativo - tanto
o corpo militar de S. Cristóvão quanto o próprio senhor do angolano exigiram uma “satisfação
pública”. Em resposta a essa “justa representação, mandou o Governador lhe dar um pequeno
castigo: 50 cipoadas.” Diz o Governador que seu senhor queria castigá-lo mais, tendo sido impedido
pela autoridade. Tendo noticia do fato, o Ouvidor da Comarca mandou fazer corpo de delito e o
atestado do cirurgião foi de que o corpo do negro - pasme o leitor! – “estava perfeitamente bom,
sem deformidade alguma”. Passado algum tempo, chega a Sergipe um oficio do Capitão Mor da
Bahia repreendendo a autoridade de S. Cristóvão nos seguintes termos: “Se o negro delinquiu, a
satisfação pedida pelos oficiais é a que a lei marca, e de maneira nenhuma 50 cipoadas que V. S. lhe
mandou dar sem que para isso tenha autoridade, o que espero não torne mais a acontecer;” (Arquivo
Público do Estado do Bahia, Maço 229, Oficio do Coronel Governador de Sergipe, Luiz Antonio da
Fonseca Machado, ao Governador da Bahia, de 23 de junho de 1815).
escravas e molecas como “vitrines ambulantes” para exibirem sua jóias mais preciosas no
caminho da Igreja - confira-se as gravuras de Debret e Rugendas - inversamente, um
escravo trazendo a prova confessada e pública da somitigaria que praticou com outro
branco, representaria um ultraje humilhante para seu senhor17. O ouro nas escravas era o
ouro das Sinhás, do mesmo modo que a sodomia do escravo representava o desdouro e
aviltamento de toda a casa do senhor. Numa sociedade cuja sobrevivência individual e
coletiva baseava-se na violência e bravura, um homem “dar as costas” ou “servir de
mulher” a outro, punha em choque as bases onde se assentavam o poder e a estabilidade
senhorial. Um sodomita, sobretudo se efeminado e envolvido com amantes de estratos
antagônicos - p. ex., um Capitão do Exército amante de um moleque negro: punha em Jogo
a desejada impermeabilidade das classes sociais, destruindo o estereótipo do senhor branco
super-macho, deflorador das crias de seu borralho, rigoroso no uso do chicote, zeloso da
pureza e recato das mulheres de sua casa. O anônimo moleque sergipano foi morto a
chicotadas porque ultrajou o machismo de seu amo: queiram ou não, é o primeiro mártir
gay da história do Brasil. Que sua memória viva para sempre!
Não sabemos qual o paradeiro do infamado Capitão: provavelmente abandonara
Sergipe ao tomar conhecimento que sua vida e costumes estavam sendo devassados. Já uma
vez tivera de esconder-se para evitar a hora da verdade: o já citado patriarca Porto Carreiro
mencionou para o Comissário que ao visitar o Bispo de Pernambuco a Capitania de
Sergipe, D. Estevam Brioso (1678-1689), “o Capitão se ausentara para o Sertão e disseram
que foi para não tratar com o Bispo sobre esta matéria.” Se de fato desapareceu do mapa
com medo da Inquisição, fê-lo por temeridade, pois embora acusado de cometer o nefando
“publicamente”, nenhum dos inquiridos declarou ter testemunhado “de visu” o ato
sodômico, nem sequer houve a contra-prova de seus suspeitados cúmplices, posto que estes
não chegaram a ser interrogados, talvez também por não terem sido encontrados. E - justiça

17
– Os sentimentos e o código interacional dos brancos no período escravista eram bastante
diversos dos da atualidade. O episódio que narraremos a seguir reflete outra faceta da “honra
ultrajada”, preferindo uma mãe a privação da presença do filho, do que te-lo a seu lado infamado
por um negro. Estando ausente de Santa Luzia- o Tenente Francisco Gonçalvés Valença, um seu
inimigo Nicolau Jóaquim Miranda foi à sua roça com um escravo armado de faca, chicote e
calabrote, espancou um seu filho, João, de 14 anos, deixando-o com fartos vergões em seu corpo,
enquanto dizia: “mate esse cão, mate esse cão.” Sua mãe, Tereza da Anunciação de Jesus, manda
um requerimento ao Governador, onde diz: “Não queria mais ver este filho em minha presença,
chicoteado de um negro, e c mandei que procurasse V. Mercê ou tratasse de sua vida por onde eu
dele não soubesse, pois a paixão me não deu para mais.” (APEB, Maço 188, Sumário de
testemunhas ordenado por D. Rodrigo José de Menezes, Estância, 27 de junho de 1787).
seja feita à Inquisição - como a sodomia só se constituia em crime do conhecimento do
Santo Oficio quando se comprovava ao menos duas “penetratio cum seminatione in vas
praeposterum” (penetração com seminação no vaso posterior), e como nenhuma das
testemunhas viu a consumação deste ato, portanto, o Capitão Gay não tinha tanto o que
temer, pois mesmo se tivesse sido preso, pela má fama e escândalo, jamais teria chegado à
fogueira posto que não havia prova de consumação do abominável pecado de Sodoma.
Prova disto, é que este sumário não deu em nada: nenhum destes “escandalosos sodomitas”
de Sergipe chegou a ser preso e processado pela Inquisição.
Além do Capitão Pedro Gomes e do Padre Diogo Pereira, como já antecipamos, outro
sodomita foi denunciado neste mesmo inquérito presidido por Fr. Inácio da Purificação:
Manoel da Mota.Treze das 19 testemunhas confirmaram ser fama pública em S. Cristóvão e
seus arrabaldes que Manoel da Mota praticara o nefando ora com um negro seu escravo, ora
com dois moleques que tinha em sua casa, acometendo inclusive alguns negros na
Cotinguiba. Sua biografia é controvertida: alguns têm-no como baiano, outros como
lisboeta, morador primeiramente na Bahia. O Capitão Porto Carreiro afirma que o Mota era
“tio 29 da mulher do Capitão Pedro Gomes”, o que vale dizer, dois infamados de somitigos
numa mesma parentela! Também - como veremos mais adiante - as famílias brancas eram
minoria em Sergipe, de modo que praticamente todas as famílias se entrelaçavam. Segundo
o sapateiro de S. Cristóvão, João Lopes Sales, 50 anos, há 6 ou 7 meses passados, o negro
do Mota procurou o Vigário Geral de Sergipe, Padre Manuel Vieira de Bairros, queixando-
se “que o livrasse de tornar à casa de seu amo, porque não queria continuar no pecado”. Tal
denúncia provocou na autoridade eclesiástica máxima local o seguinte comentário racista:
“Se tivera uma testemunha branca, o havia de castigar, mas por serem ditos de negros, lhe
não dava crédito.” Dois dos inquiridos confirmam as palavras do Vigário (nº 9 e 11).
Lembremo-nos de um detalhe já citado: um dos soldados participantes da conquista de
Ceregipe acusou-se da blasfêmia de ter dito que acreditava tanto nas palavras dos negros
quanto nos Evangelhos de S. João - quer dizer, não acreditava em nenhuma das fontes. Cem
anos após, este mesmo descrédito racista é novamente enfatizado nas terras de Sergipe del
Rey. Os negros e mestiços tinham suas justas manhas para se vingar da tirania e crueldade
de seus senhores, - que iam desde a futrica, calúnias, falso testemunho, às vias de fato,
como revoltas equilombos, envenenamentos, incêndios criminosos e assassinatos de
Senhores e feitores. Para o século XIX dispomos de várias referências destes sinistros
ocorridos na Capitaniae. Província de Sergipe envolvendo a violência de negros contra
brancos (Mott. 1976;1978).
Qual seria o castigo aludido pelo Vigário Geral que poderia ter acionado contra um
comprovado sodomita? Até 1707, data da compilação das Primeiras Consituições do
Arcebispado da Bahia, obra de D. Sebastião Monteiro da Vide, o Brasil regia-se pelas
Constituições de Lisboa, embora desde 1605 o 49 Bispo da Bahia, D. Constantino Barradas
tenha reescrito alguns de seus capítulos, adaptando-os à realidade colonial. Assim sendo, de
acordo com as Constituições dos Arcebispados do Reino (1636), e com as bulas de Pio V
(1566) de Gregório XIII (1574), “sendo o crime de sodomia tão péssimo e horrendo, e tão
encontrado com a ordem da natureza e indigno de ser nomeado que se chama nefando, que
é o mesmo que pecado em que se não pode falar, quanto mais cometer, ordenava-se que “se
alguma pessoa leiga for em nosso juízo eclesiástico legitimamente convencida de crime de
sodomia, seja entregue à justiça secular para que o castigue conforme o direito e as leis.”
No caso do delinqüente ser clérigo, “seria privado do ofício e benefício, degradado das
ordens e entregue às mesmas justiças seculares” (Aguiar, 1926:536). Embora a sodomia
fosse um crime de “duplo foro”, podendo ser preso o delinquente tanto pelo bispo, quanto
pela Inquisição, assim como também pejas justiças seculares - sendo equivalente em termos
de gravidade civil ao crime de lesa magestade - de fato, a partir de 1536, ano da criação do
Santo Ofício, passou a ser monopólio dos inquisidores a perseguição dos sodomitas assim
como dos bígamos, feiticeiros, etc, outrora também castigados pelo braço secular. Portanto,
suspeitando-se de um sodomita, competia ao Vigário Geral de Sergipe “logo com toda
diligência e segredo, se informar, perguntando algumas testemunhas exatamente, e achando
provado quanto baste, prender os delinquentes e os mandarão ter a bom recato, e em
havendo ocasião, os remeterão ao Santo Ofício com os autos de sumário de testemunhas
que tiverem perguntado.” (Vide, 1707 : § 959)
Como neste caso a fama de sodomia de Manoel da Mota baseava-se em “ditos de
negros”, testemunhas inábeis por condição, o Vigário Geral comportou-se conforme o
costume do Santo Ofício: esperou que “ajuntassem mais provas”, Um detalhe revelado pela
179 testemunha talvez tenha ajudado a inocentar o suposto sodomita : disse o sergipano
Gregório Figueiredo, 23 anos, morador no Jacaré, que fora procurado pelo citado sapateiro
(6ª testemunha), mandando que jurasse no sumário contra Manoel da Mota. Talvez uma
vingança ou quem sabe, um falso testemunho destinado a prejudicar o delato forasteiro.
Quantas denúncias enviadas à Inquisição não revelaram ser maldosas calúnias ?! A
acusação de sodomia a estrangeiros indesejados era comum na Inglaterra renascentista
(Bray, 1982) e coincidentemente, todos os sodomitas denunciados em Sergipe del Rey
provinham de outras localidades, quer da Bahia, quer do Reino. Apesar do dito popular de
que “a mentira tem perna curta”, mesmo lançando-se mão de instrumentos sofisticados
como detector de mentiras, ou a tortura, sempre haverá perjuros e falsas testemunhas, as
Justiças sempre correndo o risco de serem enganadas. Para não incorrer em flagrantes erros
castigando inocentes e sendo alvo da critica dos poderosos e do povo em geral, o Santo
Ofício procurou sempre orientar minunciosamente seus prepostos e espiões na melindrosa
arte das “diligências”. Os Regimentos da Inquisição primam pelo casuísmo, determinando
minunciosamente todos os passos e atos a serem escrupulosamente seguidos desde o
recebimento da denúncia, realização ou não do sumário, sequestro, prisão, inquérito no
cárcere, tipo e intensidade da tortura, penalização, leitura da sentença, etc. Nada escapava
ao planejamento dos inquisidores, tudo maquiavelicamente programado pelo Regimento e
pela tradição centenária do Terrível Tribunal. A escolha do sacerdote encarregado de uma
diligência só se fazia após terem os Inquisidores certeza de que se tratava de alguém
comprovadamente confiável e capaz. Vejamos como exemplo, o caso de Frei Inácio da
Purificação, o carmelita que primeiro denunciou ao Santo Ofício as dezenas de
heterodoxias na fé e moral dos sergipanos. Em 1676 era este frade chamado de “Mestre do
Carmo”, tendo já neste ano feito um primeiro sumário - desaparecido - contra o Capitão
Pedro Gomes. Nesta época era superior do Convento de Sergipe Frei Lucas da Cruz, 28
anos18, sendo que em 1683 ocupava o mesmo priorado Frei Henrique de Jesus, o mesmo
que dirigiu o Sumário das 19 testemunhas, e que ao terminar enviou os papéis para o
mesmo Fr. Inácio, então “Prefeito do Convento do Carmo da Bahia”. Apesar de não termos
localizado nos cadernos das Habilitações do Santo Oficio na Torre do Tombo, o nome deste
religioso, em 1678 ele é chamado de “Comissário do Santo Oficio”, e de fato, parece tê-lo
sido, tanto que embargou, em nome da Inquisição, a expulsão para Angola de um jovem
frade que sem ter ordens sacras, celebrava os santos ofícios como se fosse sacerdote
ordenado19. Sua autoridade enquanto Comissário era superior à do embargado Prior do
Carmo da ocasião, tanto que o pobre falsário foi mesmo para os cárceres secretos do Rocio,
e não para a África, como pretendiam os carmelitas. Sendo assim, salvo erro, Fr. Inácio da
Purificação foi o primeiro Comissário do Santo Oficio a percorrer o território sergipano.
Era religioso já comprovadamente eficiente nas diligências inquisitoriais, “Mestre” e
“Prefeito”do Carmo da Bahia, assíduo informante-espião do Sagrado Tribunal. Por suas
mãos começou esta devassa, em suas mãos foram parar as denúncias antes de cruzarem o
Atlântico a caminho da Mesa Inquisitorial.
Aqui termina este sumário: o Prior do Carmo de Sergipe envia-o ao Comissário Frei
Inácio, do Carmo da Bahia. Junto, anexa as “custas do sumário” : afinal seus 51 dias de

18
– ANTT, IL, Proc. Nº 11.278.
19
– ANTT, IL, Proc. Nº 5912.
duração implicaram em certo dispêndio de trabalho por parte dos dois religiosos. E como o
Apóstolo Paulo já dizia, “o operário é digno de seu salário...” Remunerando seus “espiões”,
o Stº Ofício garantia a profissionalidade e o melhor desempenho destes funcionários. Frei
Henrique, o Prior, ficou com 1$040 réis e Frei Cosme, o secretário, com $447. Para a
notificação das testemunhas gastou-se $180 e mais $105 com a “rasa” e $121 com os
“termos”, que eram as taxas das respectivas custas processuais, as avoengas de nossa
célebre burocracia e emolumentos dos escriturários. Total das custas: 1$893. O que
significaria esta soma na época? Não era demais: em 1626, no Engenho Sergipe do Conde,
no Recôncavo, pagava-se 30$000 por ano a um advogado para resolver todos os problemas
jurídicos desta empresa açucareira, em média 2$500 réis por mês. Portanto, os dois frades
juntos receberam por quase dois meses de trabalho, pouco mais da metade do estipêndio
mensal de um advogado algumas décadas antes20. Tais pagamentos “por serviços
prestados” eram extraídos dos bens sequestrados dos “réus”, na época, sobretudo das
fortunas dos Cristãos-Novos (Novinsky, 1977).
Os últimos 20 anos do século XVII são marcados por variadas intervenções do Santo
Oficio em terras de Sergipe del Rey. À medida que se estratificava a nova Capitania, coma
criação de freguesias, vilas, distritos, a redução de suas aldeias indígenas, a criação de
companhias de ordenança, inclusive de homens pardos, todos esses novos aparatos
civilizatórios redundaram igualmente num maior controle social e conseqüentemente,
intensificação da vigilância por parte dos zeladores da ortodoxia católica. O caso sergipano
é particularmente interessante pois contradiz as opiniões de alguns autores que apontam
uma correlação direta da atuação seletiva da Inquisição nos lugares de prosperidade
econômica. Não negamos que o movimento anual da concessão de cartas de Familiares e
Comissários acompanha pari-passu o crescimento dos diferentes cicios econômicos na
Colônia21. Sergipe, contudo, revela outra dinâmica pois a atuação inquisitorial cresce

20
– ANTT; Cartório Jesuítico, Março 54, “Soldadas que pagam nesta safra de Maio de 1626 no
Engenho Sergipe do Conde”. Enquanto que anualmente ganhava o advogado do Engenho 30$000
réis, o Feitor-Mor recebia 100$000, o purgador e banqueiro 50$000, e o caixeiro, feitor, caldeireiro
45$000. Só o cirurgião e um mulato caldeireiro recebiam menos que o advogado: 25$000 e 24$000
respectivamente.
21
– O caso de Minas Gerais é patético. Tomando como amostra os Juramentos dos Oficiais do
Santo Ofício que receberam a patente no Brasil - sem terem ido pessoalmente recebe-Ia em Lisboa -
temos a seguinte evolução: a partir de 1714 que aparece o primeiro familiar do Santo Oficio nas
Gerais; de 1721 a 1731, são juradas 9 cartas patentes; de 1734 a 1746, 23; de 1747 a 1753, 41 ; de
1755 a 1757, 44; de 1759 a 1763, 27; de 1766 a 1771, 27 cartas; de 1771 a 1773, 10; de 1773 a
exatamente numa época em que a Capitania estava “depauperada”, segundo expressão de F.
Freyre, ostentando péssima situação financeira, chegando a falta de numerário a tal ponto
que o Capitão Mor Manuel Abreu Soares tem de solicitar a El Rey autorização para pagar
os impostos da Capitania “in natura”, com os gêneros da terra (1977:189). Para cumprir a
profecia do refrão regional de que “desgraça pouca é bobagem”, surge em 1686 a
devastadora “bicha”, a peste de variola acompanhada de febre, que dizima inumeráveis
vidas em Sergipe e na Bahia, entre elas, o próprio Arcebispo de Salvador22. Reforça o nosso
argumento o fato de que a Inquisição em Sergipe perseguiu sobretudo gente insignificante,
com recursos materiais desprezíveis, contradizendo o argumento dos que acusam o Santo
Oficio de estar predominantemente interessado nos réus afazendados para sequestrar-lhes
os bens móveis e imóveis. Como instituição que se auto-financiava com os bens dos réus,
sobretudo dos Cristãos-Novos, claro que o sequestro dos ricos despertava maior interesse
nos Santos Inquisidores, contudo, não podemos generalizar que a justiça Inquisitorial tenha
feito constantemente uma “opção preferencial pelos ricos”, como pretendem hoje em dia os
teólogos da libertação, contrariamente, ter optado pelos pobres. A grande parte dos mais de
500 sodomitas presos e processados pelos tribunais de Lisboa, Évora e Coimbra, eram
pessoas pobres, sem imóveis nem bens de valor.
Foi o que ocorreu em Sergipe neste final dos seiscentos. Nestes dois processos que
veremos a seguir, envolvendo dois falsos sacerdotes, revela-se inquestionávelmente que o
Santo Oficio estava primordialmente preocupado apenas em garantir a pureza da fé, o
respeito à hierarquia eclesiástica e a manutenção de sua hegemonia institucional, posto que
no inventário dos bens destes réus, não constava nada além da roupa do corpo. Um deles,
aos ser embarcado para Lisboa, foi “sem cama, nem mantimentos, devido à sua pobreza”.
Em 1676 estava preso no cárcere do Convento dos Carmelitas de S. Cristóvão um
seminarista de 29 anos, que cometera o sacrilégio deter celebrado missa sem ter ordenação
sacerdotal. Seu nome religioso, Frei Antonio do Desterro, sua pátria, o Rio de Janeiro,
embora costumasse mentir dizendo ser natural da Ilha da Madeira, certamente para
beneficiar-se das regalias inerentes à condição de reinól. Tinha morado na Bahia onde,

1776, 9 e finalmente, de 1776 a 1778, 5 cartas. O movimento cresce até 1757 e a partir dar, começa
a diminuir, refletindo o apogeu e decadência da atividade mineradora.
22
- “Por aviso celestial daquela grande peste, que chamaram Bicha, apareceu um funebre,
horroroso e ensanguentado cometa no ano de 1689, poucos dias antes do estrago.” (Gregório de
Matos, 1969:1204). Affonso Ruy (1949:227) situa a irrupção da epidemia da bicha em 1686.
provinda de Pernambuco, “não havendo casa em que não se tivesse a chorara- perda de algum
membro,” segundo informação de Rocha Pitta na sua História da América Portuguesa, p.309.
estudou princípios de filosofia. Nesta época, todo convento e mosteiro tinha uma ou mais
celas que se trancavam por fora, com grandes cadeados, destinadas ao cárcere onde se
prendiam os religiosos autores de graves faltas contra e Regra ou contra as Constituições
Conventuais. Foi do cárcere do Convento do Carmo da capital de Sergipe que Frei Antônio
se desterrou, escondendo-se no sul da Capitania, passando antes pela Freguesia de São
Gonçalo do Pé do Banco (atual município de Siriri) e pela vila de Santa Luzia do rio Real.
Ai celebrou onze missas em capelas de Dona Lourença Dória, matriarca da importante
família sergipana, inclusive as três solenes missas do Natal. Mais grave ainda: ouviu-
confissões e deu falsas absolvições. Andou por volta de dois anos nesta falsidade, sendo
finalmente preso e levado para a cadeia da Bahia.
Eis como o Regimento da Inquisição definia sua falta: “O Crime dos que dizem missa,
não sendo sacerdotes pertence à idolatria, por fazerem os que o cometem que adorem os
fieis cristãos o pão da hóstia e o vinho de cálice, como se foram o Verdadeiro corpo e
sangue de Cristo Nosso senhor, e os que confessem sem serem sacerdote , ficam usando
maio sacramento da penitência, com notável detrimento do próximo que cuida ficar
sacramentalmente absolvido dos seus pecados.” (1971:195)
Como Frei Antonio do Desterro já tinha votos simples na Ordem de N. Srª do Carmo,
o primeiro ato de seus superiores foi retirar-lhe o sagrado hábito e escapulário, expulsando-
o da milícia carmelitana, atitude comum com todas as ordens religiosas quando algum de
seus membros envolvia-se com o Terrível Tribunal. Logo desamparavam seu
correligionário para não mancharem o brio da agremiação religiosa. Já ia o pobre clérigo
sendo degredado para Angola, por conta e ordem do Juízo Eclesiástico de Salvador, quando
o nosso já conhecido Comissário Frei Inácio da Purificação embargou o degredo, enviando
o preso para a Inquisição lisboeta. Na casa do Rocio, em 1682, confessou seus infortúnios:
chamava-se no século Antonio Barcelos, e menino pobre no Rio de Janeiro, foi convidado
pelos carmelitas cariocas a entrar na Ordem no Convento de Sergipe, para se tornar frade.
Nestes tempos, faltavam vocações religiosas entre os brancos da terra, de modo que para
povoar os muitos “Conventos e hospícios, franciscanos, carmelitas, beneditinos”, jesuítas,
disputavam entre si os moçoilos de tez clara, os únicos aceitáveis para os votos solenes e as
ordens maiores. Leigos e donatos podiãm ser “de cor”, sacerdotes, apenas os que
comprovassem “limpeza de sangue”. Cansado da vida conventual, resolveu passar-se por
presbítero, para ser respeitado em sua fuga de Sergipe para a Bahia”. Dezenas e dezenas de
clérigos, menores e seminaristas usaram deste mesmo expediente no Brasil Colonial: em
Sergipe”mesmo, Frei Antônio do Desterro foi apenas o primeiro da lista.
Após vários meses de prisão, teve sua sentença lida no Auto de Fé de 6 de agosto de
1683: teve de fazer abjuração de leve suspeita na fé, ficou para sempre inabilitado para
receber a ordenação sacerdotal; foi açoitado publicamente “citra sanguinis effusione” do
Rocio até a Ribeira onde foi condenado a 6 anos de galés23.
Passados dois anos no cumprimento da pena, o infeliz ex-carmelita de Sergipe envia
um requerimento ao Santo Tribunal dizendo-se atacado da gota, hidrópico, tendo cardo da
ponte da Ribeira com outro seu companheiro de corrente, por pouco não morrendo, tem a
perna inchada, “deitado entre negros como humilde escravo, coberto de imundicies, sendo
criado na limpeza de sua cela e cama...” Após todo este inferno, os Inquisidores tiveram
misericórdia: sua pena foi comutada, devendo cumprir o que faltava no Algarve, na época,
área semi-desértica e valhacouto de soldados e degredados.
O segundo caso de falsidade ideológica envolveu o clérigo “in minoribus” Frei Luiz
Leite, da Ordem de São Paulo, natural de Lisboa e morador na Bahia 24. Sua insistência em
fingir-se sacerdote denota mais do que uma paranóica obsessão piegas: era sua estratégia de
sobrevivência para ganhar a vida às custas das espórtulas diárias das missas e demais atos
litúrgicos que celebrava. Nos Cárceres do Rocio confessou que de fato recebera as ordens
menores (da Epístola) das mãos do Bispo de Tarega. E que preso no Limoeiro - a terrível
masmorra lisboeta - por causa não revelada, “o tentou o demônio a dizer missa e celebrou-a
todos os dias por seis meses”. Conseguiu fugir do Limoeiro, mas sendo preso de novo, em
penitência, foi degredado para São Tomé, de onde outra vez conseguiu escapar para a
Bahia. Nos seis meses de travessia do Atlântico, não perdeu um dia sem “celebrar” o Santo
Sacrifício, obviamente, uma farsa, pois mesmo repetindo perfeitamente todo o ritual
canônico, como não recebera as Ordens Maiores (do Evangelho), sua “missa” não passava
de uma papagaiada sem qualquer valor espiritual. Assim sendo, pecava não só ele, por
mentir e cometer sacrilégio, como também os fiéis, por inobservarem o preceito dominical
da missa obrigatória.

23
– Neste Auto de Fé foi pregador um conterrâneo do infeliz carmelita : o dominicano D. Frei
Manuel Pereira. Bispo do Rio de Janeiro, Secretário de Estado e Deputado do Conselho Geral do
Santo Ofício. Dos 67 sentenciados, três foram queimados “em carne” e quatro em estátua, (apenas
suas estampas). Por pouco não houve uma fuga em massa dos penitenciados pois neste Auto
sucedeu haver dentro do cadafalso uma tal pendência de armas; com tão grande motim, que desde
então não se fez mais Auto no Terreiro do Paço. (Moreira, 1980).
24
– ANTT, IL, Proc. Nº 5912
Chegando na Bahia, após cepo tempo, pôs em prática o que aprendera na prisão: teve
a ousadia sacrílega de roubar as jóias de Nossa Senhora da Maravilha25. Preso novamente,
agora na cadeia da Bahia, debaixo da Câmara, consegue fugir outra vez, só que agora à
custa de uma facada que deu no carcereiro26. O paulino Frei Luiz era exímio fugitivo de
cadeias e dado a todo tipo de falcatruas, do furto de jóias a e tocadas em guarda carcerário.
Da Bahia foge para Pernambuco, quando no caminho, no Sertão do Rio Real, Capitania de
Sergipe del Rey, é capturado por Frei Domingos das Chagas. Com certeza exerceu todas as
funções sacerdotais por onde andou, abusando da boa fé dos devotos sergipanos do Sertão.
Sua sentença foi igual à do processo anterior: 6 anos de galés e inabilitado para sempre de
receber nova tonsura.
Ainda estava fresca a tinta destes processos quando nova denúncia vinda do Brasil
chega ao Santo Oficio de Lisboa: curioso que não é assinada nem pelo Comissário nem por
um religioso. É o Meirinho de Sergipe, Manoel Brandão, 52 anos, português de Penafiel
(Douro-Litoral), morador em S. Cristóvão quem dá o alarme junto à Inquisição.
Mais um caso de sodomia ! É o sétimo sodomita da história de Sergipe em pouco
menos de um século desde a Conquista. O delato agora é um mulato, Jerônimo,
“publicamente infamado no nefando, a ponto que os moradores costumam desempulhar-se
com falar do dito Jerônimo...”27.
Esta denúncia obriga-nos a um primeiro questionamento : se a função do Meirinho,
enquanto oficial da Justiça, era prender, citar, penhorar e executar os mandados judiciais,
como explicar sua iniciativa de denunciar um delito do conhecimento do Santo Oficio ?
Talvez percorrendo o interior da Capitania tomara conhecimento do escândalo, e na
qualidade de zeloso cristão ou antes, desejoso de tornar-se um apaniguado do Santo
Tribunal, correu a denunciar o mulato sodomita28. A isca apeteceu os inquisidores : a 9 de

25
– Esta imagem, a primeira da Mãe de Deus a ser venerada na Bahia, era de todas as mais
milagrosa, não obstante já em 1642 ter sido alvo de roubo sacrílego, sendo tirado de seu divino colo
o Menino Jesus em prata, quebrado em diversas partes, e jogado em lugares imundos de Salvador.
Dias depois foi miraculosamente reencontrado, conforme pode ser lido no edificante e espantoso
livro de Frei Agostinho de Santa Maria, Santuário Mariano e História das Imagens milagrosas de
Nossa Senhora (1722:22).
26
– Interessante descrição da cadeia da Bahia no ano de 1676 é dada por Delon, na Relation de
l'lnquisition de Goa (1688:344-345).
27
– “D esempulhar-se” significa rebater uma pulha, gracejo ou dito de escárneo.
28
– Embora os Inquisidores, o Arcebispo e excepcionalmente até o Vigário Geral pudessem dispor
de seus Meirinhos, dada a pequenês da hierarquia eclesiástica de Sergipe, dificilmente Manuel
novembro de 1685 é ordenada a realização do Sumário, sendo encarregado de presidi-lo o
Vigário Geral de Sergipe, Padre José Araujo, ou na sua ausência, o Prior do Carmo, Frei
Domingos da Ascenção. Os carmelitas sempre merecendo maior confiabilidade por parte
dos Guardiães da Fé, malgrado a presença em Sergipe de franciscanos, jesuitas e
beneditinos.
O sumário realizou-se certamente no mesmo Convento do Carmo de São Cristóvão,
onde 3 anos antes se fizera inquirições sobre o mesmo “feio pecado”. O secretário agora é
Frei Antonio da Encarnação, da mesma agremiação religiosa. São ouvidas 9 testemunhas
entre os dias 16 de dezembro de 1686 e 13 de março de 1687, portanto, 87 dias de duração.
Os autos orçaram em $899 réis, tocando $540 para o Prior e $359 para seu escrivão. Apesar
de mais prolongado em dias do que o Sumário contra o Capitão-Gay, foram ouvidas a
metade do número de testemunhas, dar seu orçamento mais reduzido.
O quadro abaixo, com a identidade dos inquiridos, revela alguns aspectos interes-
santes da composição social e distribuição espacial destes moradores dos limites meri-
dionais de Sergipe com a Bahia.

NOME IDADE OCUPAÇÃO NATURALIDADE MORADIA


1.Antonio Monteiro Freire 52 Capitão ? Camuciata
2. João Ribeiro 60 Comerciante Guimarães, Port. Catu
3. Diogo Alvares Afonso 60 Lavrador ? Catu
4. Tomé Correia d.e Meio 50 Lavrador ? Itapicuru
5. Antonio Prego Aguiar 33 Alferes Ponte Lima, Port. Rio Real
6. José da Silva 33 Comerciante ? Itapicuru
7. Manuel Brandão 52 Meirinho Penafiel, Port. S. Cristovão
8. Gonçalo Pereira 50 ? ? Cotinguiba
9. Antonia Rois de Torre 30 ? ? Itapicuru

Esta lista de testemunhas revela se bastante diversa da que analisamos anteriormente :


primeiro pela presença de uma mulher parda entre os depoentes, a forra Antonia Rois de
Torre. A presença desta mulher explica-se talvez pela dificuldade encontrada pelo
Comissário em encontrar homens que tivessem privado do conhecimento do delato. Nestes
sertões pecuaristas, as fazendas ou currais costumam ficar distantes uns dos outros três ou
mais léguas, limitando-se por conseguinte consideravelmente à rede de relações sociais e os

Brandão seria um membro do corpo eclesiástico, sendo mesmo Meirinho da Capitania Mor. Cf.
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, § 1104, 1016 ; 1081 ; 1311.
contactos de vizinhança entre os vaqueiros e seus escravos (Mott: 1985:53). O fato da
testemunha além de mulher, ser solteira e parda, eram atributos negativos, e suspeitos na
escolha dos valores da sociedade colonial, sobretudo na seleção de testemunhas para os
negócios do Sagrado Tribunal. Talvez se tratasse de uma beata solteirona de total confiança
dos carmelitas proprietários de herdades próximas à residência da parda Antonia, o mais
provável porém, dado o tom familiar como fala do denunciado, é que fosse vizinha mesmo
do infortunado Jerônimo.
A maior parte dos informantes passa dos 50 anos, sendo quatro deles oriundos do
Reino - do Minho e Douro Litoral- as regiões que maior número de emigrantes enviou para
a Bahia e Sergipe (Ott, 1955). O secretário desses autos foi menos cuidadoso que o
precedente, pois omitiu as naturalidades de vários depoentes, apesar de ter dado o estado
civil de 7 dos 9 informantes - destes, apenas as testemunhas nº 7 e 8 eram casadas,
surpreendendo o elevado número de celibatários, inclusive os dois mais velhos informantes
sexagenârios. Em certas zonas pecuaristas do Nordeste, sobretudo nesta fase de frente
pioneira, encontramos grande desequilíbrio da “sex-ratio” -90% de homens no Piauí em
1697, redundando obviamente em altas taxas de celibato definitivo (Mott: 1985:75). Muitos
brancos preferiam morrer solteirões, do que unir-se sacramentalmente a uma mulher de cor,
o que não quer dizer que vivessem em virtuosa castidade. A amancebia e concubinato,
apesar de ser gravemente penalizados pelas Constituições, atingiam cifras impressionantes:
60,5% no Sul da Bahia nos primórdios do Século XIX, e 95,2% nas Minas Gerais
setecentista (Mott, 1982:10).
O local de moradia destes informantes abarca não só vilas espalhadas pelo dilatado
território da antiga capitania de Sergipe, hoje anexados ao estado da Bahia (prado, 1919),
mas também localidades do próprio “termo da cidade da Bahia”, como Catu e Camociatá,
povoados da freguesia de Itapicuru, até 1740 território da Ouvidoria de Sergipe29. Dada a
distância e grande dispersão dos moradores e não constando no rol das custas processuais,
despesas com “notificação”, tudo nos leva a crer que para os moradores residentes no
Sertão abaixo do Rio Real, foram os próprios religiosos que deambularam à cata das
testemunhas, ouvindo-os judicialmente em suas próprias residências. Certamente os dois
carmelitas andarilhos matavam dois coelhos com uma só cajadada, pois além de cumprirem
a diligência inquisitorial. visitavam suas propriedades situadas no Rio Real e na cotinguiba,

29
– Lastimavelmente, a história religiosa de Sergipe ainda está para ser feita, pois nenhum autor
sistematisou informações sobre a ordens religiosas que ai atuaram, suas irmandades e confrarias,
nem sequer sobre suas freguesias e paróquia. Temos iniciado um estudo sobre as capelas, igrejas e
irmandades de Sergipe, que esperamos em breve divulgar.
desobrigando as almas por onde passavam, esmolando aqui e acolá, como era costume das
Ordens mendicantes30. Alguns frades nem sempre com muita disciplina e circunspecção
religiosa, como informava o Procurador da Coroa alguns anos antes, razão pela qual se
opôs à confirmação das terras que o Capitão Belchior da Fonseca doara aos religiosos do
Carmo, sitas no Rio Real, pois de acordo com as informações das autoridades sergipanas, o
religioso Frei Domingos Barbosa e seu companheiro “eram indignos do nome de
missionários, em vista da vida escandalosa que levavam” (Freyre, 1977:190). Os
escândalos sempre estiveram muito presentes na vida do clero brasileiro, e em Sergipe
particularmente, como veremos mais adiante ao tratar dos “padres solicitantes”
denunciações na Inquisição. O mau “exemplo clerical atingia as raias do delírio: os citados
padre Diogo Pereira, sodomita, e os dois clérigos menores travestidos em presbíteros foram
apenas o “hors-d’oeuvre”...
Voltemos ao Sumário contra o mulato Jerônimo, pois como há de concluir o leitor, a
biografia deste sodomita é uma história realmente fantástica. Todas as testemunha
confirmam com bastante detalhes o homo-erotismo do mestiço: que ele “acometeu alguns
negros ao pecado nefando” que era “voz pública e fama que acometera aos negros ,alguns
estando dormindo, que “sodomisara um moleque”, que “sua fama corria pelo sertão e que
era “público no vicio da sodomia”.
Seus antecedentes e passado eram objeto de muita especulação: uns diziam que viera
do Reino, outros que era do Porto, aqueloutros que procedia de Lisboa. Que na caravela que
atravessara o Atlântico. “havia murmuração contra ele”, e que esta fama trouxera consigo
do Reino. O minhoto João Ribeiro, solteirão, é o mais informado: diz que Jerônimo fugira:
da Inquisição do Porto há 40 anos passados, mandado embarcar por seu dono “porque
estavam prendendo os sodomitas em Portugal”. Cá chegando, viveu primeiro fartos anos na
Bahia, escravo de Antonio de Brito Correia, o qual o mandara para o Sertão do Itapicuru no
tempo da chegada da Armada Real, fugindo de novo “pelas mesmas culpas, tendo em
Sergipe agora como amo o ferreiro Manoel Morato. Por mais fantásticas que pareçam estas

30
– Infelizmente não localisamos informações referentes ao Século XVIII sobre as propriedades dos
Carmelitas em Sergipe. No ano de 1764 - quando a Ordem atinge seu apogeu, havia ao todo 34
religiosos na Capitania, entre donatos, irmãos leigos e sacerdotes. Em São Cristóvão residiam 20
frades, sendo 1 na residência de São Gonçalo, 1 no Engenho Quindonga e 2 no Engenho da
Comandaroba. No Hospício do Rio Real estavam 3 sacerdotes, 1 leigo e 1 donato e no Hospício de
Santo Amaro das Brotas, na Cotinguiba, 4 sacerdotes e 1 irmão leigo. (Almeida, 1919, doc. Nº
6697), Já em 1797, o número de religiosos tinha decaído para um total de apenas 8, sendo a
produção do principal engenhoo da Ordem orçada em 1:400$000.
estórias contadas em 1686 pelos sertanejos dos limites da Bahia com Sergipe, reportando-se
a episódios acontecidos há 40 anos passados, ela é absolutamente verdadeira! A memória
oral conservara intacta e fiel parte significativa da atribulada biografia deste sodomita
incorrigível, e graças à minúncia e conservadorismo dos funcionários do Santo Oficio, que
tudo anotaram com precisão, podemos reconstituir parí-passu quase meio século das
peripécias deste homossexual convicto e “assumido” que mesmo perseguido perigosamente
pelos inquisidores, tendo inclusive perdido cinco amigos e cúmplices de somitigaria
queimados na fogueira pelo “abominável pecado”, mesmo ostentando em seu corpo já
sexagenário várias cicatrizes causadas por “paqueras” mal-sucedidas, o mulato não se
emendava! Até quando dormiam, “acometia” outros homens! Divulgando sua biografia e
resgatando sua memória, trancada até hoje debaixo de sete chaves nas “Arcas do Nefando”
nos cárceres secretos do Santo Oficio de lisboa, alteramos a profecia da parda forra
Antonia, quando disse que “esta fama, Jerônimo só com a morte se livrará.” Corrigimos:
sua fama, agora revelada após tantos séculos desconhecida, continuara para sempre, como
exemplo da obstinação espontânea, corajosa e pertinaz de um ser humano que respeitou
mais sua natureza existencial do que as prescrições caducas dos intolerantes incendiários de
seres humanos. Mesmo que os Inquisidores rotulassem sua maneira de fazer amor de
“pecado contra a natureza”, assim mesmo o mulato optou por seguir sua inclinação mais
profunda. Jerônimo temeu o fogo inquisitorial - fugiu das garras do Santo Oficio ; quanto
ao temor do fogo do inferno, temos nossas duvidas. No século XVII, de Portugal à Itália,
no Brasil inclusive, há documentos que comprovam a existência de um lúcido ateísmo não
só entre os sodomitas (Mott, 1984), mas inclusive entre certos sátiros heterossexistas, como
o baiano Gregório de Matos, “o Boca do Inferno”, que não estava sendo o primeiro, nem
foi o último a declarar que o próprio Jesus Cristo Nosso Senhor era “nefando” (Peres,
1985).
O nome de Jerônimo aparece pela primeira vez na Inquisição em 1632 - portanto, 53
anos antes da denúncia do Meirinho de Sergipe. Coincidentemente, foi através de outro
Meirinho, sendo este do Eclesiástico de Lisboa, que o Santo Ofício passou a ter
conhecimento deste mulato somítigo. Domingos Araújo, 35 anos, era o Meirinho
proprietário de Jerônimo, o qual tendo fugido da casa de seu amo, fora abrigar-se na
morada de um sacerdote. Com ordem do Vigário Geral, dirigiu-se o Meirinho,
acompanhado de dois guardas, à casa do Padre Santos Almeida, 53 anos, sita ao Beco da
Rua do Saco sem Sarda, no primeiro sobrado31. Batendo à porta e mandando que a abrisse
“em nome do Vigário Geral”, o referido sacerdote não teve outra alternativa senão cumprir

31
– ANTT, IL, Proc. nº 6587
o ordenado apesar de ter “ficado conturbado” com a inspeção inesperada. Na casa, o
Meirinho diz ter visto uma grande cama na qual estava enconstada uma arca de pinho,
tornando-a ainda maior: não tinha lençóis. (O meirinho tinha olhos de “águia!) Dentro do
aposento estava um rapaz alvo e com grandes gadelhas (cabeleira), despido em camisa, que
se retirou logo da cama, onde também estava outro moço mais pequeno, vestido de baeta
pelo joelho, e sobre um bofete, descansava uma golilha de cetim. Apesar da pouca luz
“claramente se induzia que todos dormiam na dita cama”. Perguntado por Jerônimo, o
Padre disse que de fato, na véspera, o escravo viera procurá-lo “pelo conhecer e ser seu
amigo”. O Meirinho e Inquisidores devem ter torcido o nariz ao ouvir frase tão insensata:
onde se viu um sacerdote, “Capelão Real da Capela de São Miguel”, já de cabelos brancos,
dizer que um mulatinho adolescente, cativo, “era seu amigo” ?! Tinha dente de coelho nesta
História. O “conturbado” sacerdote completa: que Jerônimo chegara dizendo que “ia fugido
por seu senhor o querer ferrar no rosto”, dando um tempo na dita casa “para dar lugar a que
se passasse a raiva de seu senhor”. Marcando a costumeira letra “F” com o ferro em brasa
na cara do mulatinho, castigava-o duplamente seu senhor, com o “F” de fujão e de lambuja,
o “F” de fanchono. Quanto à homossexualidade de Jerônimo, não havia dúvida : além de
ter “sinais e modo afanchonado”, denunciou um vizinho morador no mesmo sobrado que o
Padre Santos, um tal de Gaspar de Brito, que o mulato sustentara o clérigo durante meses,
cozinhando para ele e vivendo entre “velhacarias e maldades, ceias e jantares, e
conversações de homens, moços e mancebos, o qual padre tinha furtado um filho a seu pai
e com ele se ia o clérigo para Sevilha.” O Meirinho deve ter ficado boquiaberto e admirado
que o vizinho “sofresse o que ia naquela casa”, sobretudo tendo visto e ouvido dizer que a
casa do Padre Santos “era escola e alcouce de fanchonos e que domingo próximo houvera
lá grandes pagodes”.32
De fato, o bisbilhoteiro vizinho não exagerava, pois pela confissão posterior do clérigo
dono da casa, assim como de dezenas de cúmplices seus, naquele sobrado se faziam
“grandes pagodes”, a tal ponto que “da janela desacatavam quem passava”, sendo merecida
a fama repetida por muitas pessoas de que “a casa do Padre Santos era Recolhimento de
Fanchonos”.

32
- “Pagode”, de acordo com o dicionarista Antonio Morais Silva, ele próprio vítima da Inquisição
quando estudante em Coimbra, como veremos mais adiante, “vem do indiano poutghede, e significa
função, divertimento que consiste em comidas e bebidas, danças, cantares e prazeres licenciosos
onde entram bailadeiras que ganham para eles e para manutenção de seus misteres o preço da
prostituição.”
Assim, levado “pelo zelo cristão”, chocadíssimo, o Meirinho correu a denunciar o que
vira e ouvira, deixando para os historiadores todos esses saborosos detalhes que ajuntados a
inúmeros outros depoimentos dos próprios autores destas “velhacarias” permitem-nos
reconstituir minunciosamente todos os meandros e mazelas da subcultura gay lusitana
durante os quase três séculos que perdurou a atividade inquisitorial. Trezentos anos da
história de uma nação que tinha no centro da principal praça do reino, o Rocio, local da
feira, das touradas, das festas de largo, nesta mesma praça lá estava: sobranceira, rabujenta
e vigilante, a “Casa do Rocio”, o sacrossanto Tribunal e Cárceres da Inquisição. Um
verdadeiro espinho encravado no coração da sociedade portuguesa, com suas ramificações
por todo o Reino e possessões ultramarinas.
Reputamos importante reconstituir, sumarissimamente alguns dos principais aspectos
do “ambiente” onde viveu Jerônimo, a fim de visualizarmos melhor sua frenética existência
duplamente discriminada: de mulato escravo e fanchono incorrigível.
Não faltavam documentos de onde era originário: como desde o século XV Portugal
abrigava no seio de sua população mais e mais escravos africanos - entravam anualmente
por volta de 2.000 escravos em Lisboa durante o século XVI (Saunders, 1982:21) -
provavelmente a mãe ou avó de Jerônimo fossem originárias da Guiné, na época a principal
área fornecedora de gado humano para a Europa. Calcula-se que nos fins dos anos
quinhentos, a escravaria representava de 1/3 a 1/5 da população de Lisboa (Azevedo,
1932:-102). Apesar de notar-se menor preconceito aos mulatos, do que contra os mouros e
negros puros, a condição servil tornava-os tão vulneráveis como qualquer outro cativo. A
ameaça do amo de Jerônimo em marcar-lhe o rosto com ferro em brasa é uma prova cabal
dos ingredientes tirânicos que compunham o dia a dia destes mestiços quer no Reino, quer
nas Colônias33. São dezenas os mulatos sodomitas referidos nos processos do Santo Ofício
das três inquisições : o primeiro gay a ser queimado de que temos noticia em Portugal
(1569) foi um mulato, o clérigo Gaspar Lopes, processado pela Inquisição de Evora,
embora sua principal culpa, dentro da ótica casuística inquisitorial, tenha sido a prática do
judaísmo34. Em 1575, outro mulato é “relaxado à justiça secular”; isto é, queimado: Luiz,
escravo, também condenado pela mesma Inquisição eborense35. Entre 1570-1595 seis

33
– Em 1737, ao denunciar seu senhor Antonio José da Silva, “o Judeu”, autor do famoso Guerra do
Alecrim e da Mangerona, sua escrava Lourença dizia que sua senhora “chegou com um tição de
lume á cara, querendo-lhe meter- na boca.” (Baião, 1924:184). Sobre a punição dos escravos em
Portugal, cf. Saunders, 1982:109.
34
– ANTT, Inquisição de Évora,Proc. nº 11.340.
35
– ANTT; IE, Proc. nº 5013.
mulatos são degredados para as galés, todos pela prática do abominável pecado de sodomia,
entre eles, outro clérigo36.
Quando se fala em sodomia em - Portugal, dois aspectos devem ser inicialmente
enfatizados: 1º) sua penetração em todos os segmentos sociais, envolvendo dos Reis D.
Pedro I (1320-1367) e D. Afonso VI (1658-1683), aos mendigos e ermitães esmoleres,
passando por numerosos representantes da alta nobreza de capa e espada, como o Conde de
Vila Franca, o Conde de Ericeira, tendo seus adeptos entre os grandes prepostos reais,
como os dois já citados Governadores da Bahia, além do Governador de Cabo Verde,
alastrando-se sobretudo por dentro dos conventos e sacristias, de Bispo a Deputado da
própria Inquisição, a noviços e coroinhas, perpassando todos os escalões das forças
armadas, de General a soldado raso (Aguiar, 1926); 2º) sua presença em todo o território
português: no Reino, do Algarve ao Minho, quer nas cidades e vilas, quer no recôndito das
póvoas e aldeias, quer nas ermidas mais isoladas; A sodomia é um fenômeno não apenas
urbano, mas corrente também na zona rural: no Ultramar, a mesma constatação, da India ao
sertão do Itapicuru, passando pelos territórios lusitanos em África, do Cabo-Verde à
Madeira e a São Tomé. Os mais de 500 processos de sodomitas e as mais de 4.000
denúncias constantes nos Repertórios do Nefando envolvem somítigos de todas as raças -
de Tupinambá a Canarim, de Flamengo a Mexicano, de Guineense e Angolano a Goense e
Ceilandês.
Obviamente, Lisboa, o coração deste imenso e multiracial império, era o “meltingpot”,
o cadinho onde se concentrava um dos ambientes mais-gays de toda a Europa
renascentista.Temos inúmeros documentos comprobatórios da existência de estalagens e
hospedarias procuradas sobretudo para encontros sodomíticos. Havia indivíduos com casas
especializadas em “dar mancebos para homens”. Mais de um “baile dos fanchonos” existiu
em Lisboa, tanto antes como depois da era dos Felipes d'Espanha, local onde havia rapazes
alegres vestidos de mulher, com “postura no rosto” (maquiagem), enormes gadelhas
algumas cacheadas a ferro, usando sapatos altos e chamando-se por nomes e apelidos
femininos. Foram famosos nesta época, entre muitos, o Padre Pedro Furtado (1698), mais
conhecido como “Paula de Lisboa”, e o Padre João Mendonça de Maia (1643), apelidado a
“Arquisinagoga”37.
Foi neste ambiente, nomeio destes rapazes alegres, participando de “grandes pagodes”
freqüentados por rapazes de gadelhas, golilhas de cetim e meias de seda, que iniciou o
adolescente Jerônimo sua vida no “ambiente”. Os Inquisidores, preocupados sobre tudo

36
– ANTT, IE, Proc. nº 6841.
37
– ANTT, IL, Proc. nº 378 e 207.
com a escalada judaica favorecida pelos holandeses - em guerra com Portugal, faziam olho
grosso dos fanchonos. Esses rapazes e velhos bizarros, apesar de sua vida pecaminosa e
debochada, constituiam menos perigo para a hegemonia da Santa Igreja e do Reino do que
os cripto-judeus, sempre acusados de manterem pactos secretos com os invasores. Porém,
tudo tem seu limite, e as denúncias cada vez mais frequentes e os detalhes da soltura e da
sexualidade dos somitigos cada vez mais escabrosos, levam os inquisidores de Lisboa a
desencadear quatro anos após a Restauração do Reino, uma rigorosa “blitz” contra os
fanchonos. Só em 1644 são presos 38 sodomitas em Lisboa, o récord em toda a história do
Santo Oficio português38. Destes, 8 são queimados num único Auto de Fé que realizou-se
no Terreiro do Paço, aos 25 de junho de 1645, sendo pregador Frei Felix Moreira, da
Universidade de Coimbra, contando entre os assistentes El Rey D. João IV, a Rainha, seus
filhos e toda a Corte. Quase todos os sodomitas queimados eram frequentadores do
“pagode” onde por meses viveu Jerônimo, entre eles, seu “amigo” e mecenas, o Pe. Santos
de Almeida, em cuja sentença foi lido o seguinte texto: “Vencido pelo Demônio, cometeu o
horrendo e abominável pecado de sodomia, sendo paciente, usando tais e tantas torpezas
que mais parecia um monstro da natureza que homem racional, as quais torpezas se não
declaram por não ofender os ouvidos dos fiéis cristãos, tendo casa pública e patente na qual
muitas pessoas se desencaminhavam e cometiam o dito pecado. Portanto, o réu é convicto,
confesso, exercente, devasso, escandaloso e incorrigível”.
O ar da cidade de Lisboa deve ter ficado impregnado do mal cheiro de carne queimada
por horas a fio : este episódio dramático da queima dos 8 sodomitas ainda era comentado
40 anos depois, do outro lado do Oceano, pelos moradores do sertão de Sergipe del Rey.
Certamente Jerônimo já estava longe de Lisboa, ou muito bem escondido, quando do
início do “progrom” de 1644, pois como desde 1632 seu nome já constava nos Cadernos do
Nefando, para evitar a ameaça de perder o capital representado pela sua pessoa”caso fosse
agarrado pela Inquisição, o próprio Meirinho seu dono deve ter vendido Jerônimo para
outra parte. Segundo alguns moradores de Sergipe, teria-o vendido primeiro a alguém do
Porto, e só depois que dar fora embarcado para a América Portuguesa.

38
– Na Holanda, em 1730, foram executados numa única perseguição 70 sodomitas ! Se
compararmos as cifras das execuções dos sodomitas pelas Inquisições Portuguesas com as de
Saragoça, Valência e Barcelona, igualmente notaremos que apesar de toda tirania, intolerância, os
portugueses foram muito menos incendiários que seus vizinhos : entre 1560-1640, 150 pessoas
foram mortas na Espanha pelos crimes de sodomia e bestialismo, nos trezentos anos de Inquisição
em Portugal, não ultrapassaram de 30 os sodomitas que tiveram a pena capital. (Monter, 1985).
O certo é que em dezembro de 1644, no Caderno do Promotor nº 21, já se informava
que Jerônimo vivia na Bahia nessa ocasião, escravo de um filho de Antonio Brito. É ar que
o Promotor da Inquisição solicita ordem de prisão do mulato, alegando que era acusado de
“ser infamado de alcovitar pessoas para pecarem no nefando, e ser ele próprio infamado de
sodomita.” A Mesa Inquisitorial não autoriza a prisão, alegando “não saber o mulato que as
pessoas pecavam em sua casa” (sic) e não haver testemunha contra ele de atos consumados
de sodomia. Jerônimo teve sorte, pois o casuismo dos Regimentos impediu que fosse
incluido no rol dos sodomitas, malgrado todas as evidências, suas companhias e seu
passado o incriminarem.
Assim sendo, já em 1644 Jerônimo encontrava-se na Bahia. Em 1646, outra vez, a
quarta! - chega o nome deste sodomita à Inquisição de Lisboa. Na “grande Inquirição”
realizada em Salvador no ano de 1646 - conforme já mencionamos em páginas anteriores
dentre os 18 sodomitas denunciados, aparece o mulato “Jerônimo Soares, escravo”.
Conforme depoimento do Desembergador Francisco Bravo da Silveira, havia “noticias
muito averiguadas que nesta Bahia se comunicavam muitos homens contra a natureza e há
gerais escândalos que necessitam castigo.” Sua interpretação é perfeita: “cresceram esses
erros de em Lisboa o Santo Oficio proceder neste particular, por cujo respeito algumas
pessoas se lançaram nesta Província, como o mulato de Manuel Pereira, escrivão da Mesa
de Consciência, muito infamado no nefando, agora na casa do Escrivão Antônio de Brito, e
outros mulatos mais.” Não resta dúvida tratar-se do mesmo Jerônimo, que só neste
momento é identificado com um sobrenome: “Soares”. Primeiro escravo do Meirinho
eclesiástico de Lisboa, depois do Escrivão da Mesa de Consciência da Bahia, agora do
Escrivão Antonio Brito : Jerônimo só tinha senhores importantes, funcionários graduados.
Seu modo afanchonado, sua experiência de cozinheiro, o fato de ser mulato e de ter vindo
de Lisboa, todos estes ingredientes certamente beneficiavam este cativo que deve ter
sempre sido “escravo urbano”. Agora, beirando os 30 anos, devia ocupar-se ou da cozinha
ou de serviços na cidade, nas casas destes altos funcionários da coroa. Este Antonio de
Brito deve ser o mesmo Antonio de Brito Correia citado nos documentos, que além de
escrivão, era dono de fazendas, pertencente à mesma família de Lourenço de Brito Correia,
fidalgo da Casa Real, um dos membros do triunvirato que governou a Bahia no ano de 1641
39
.

39
– Ruy, 1949:178. A partir de 1642, o nome de Antônio Brito Correia aperece várias vezes nas
Atas da Câmara de Salvador, quando da repartição de mátrizes de gado vacum entre os donos dos
currais. A primeira vez recebeu 80 cabeças de uma só vez, 200 na segunda e o mesmo tanto em
1645. Em 1653, Brito Correia está entre os maiores criadores da Bahia, com Seus currais, vaqueiros
Outro delator na Inquirição de 1646 revela que Jerônimo era amigo do mulato Mateus
Lopes, personagem muito conhecido na Bahia por que acompanhava seu senhor nas
comédias, fazendo figura de bugio (macaco), dançando com um pote na cabeça e que “por
toda a cidade se dizia que era somítigo”. Gozava fama pública de ter levado “por engano”
um homem para o mato, e ao estender uma capa no chão, dizendo “já muitos homens de
bem se haviam deitado naquela capa”, o homófobo valentão deu-lhe três cutiladas e
estocadas, ficando “a perigo de morte”. Ao ser socorrido, confessou, oportunista: “tantas
vezes pedi a Deus me tirasse desta ruim manha...”
Além de Jerônimo, do mulato “Bugio”, mais outros dois mulatos são acusados de
somitigaria em Salvador: quem os denuncia é o Desembargador, que acrescenta mais um
detalhe intimo - “ouvira que um chupava o outro”40.
Dispomos descrição minunciosa de mais de dez mil relações homossexuais narradas e
escritas pelos notários do Santo Oficio. Já dizia desde o século I o teólogo São Clemente,
que “não devíamos ter vergonha de falar do que Deus não teve vergonha de criar” : o sexo.
Os detalhes sobre o comportamento libidinoso destes homossexuais, assim como sobre a
vida sexual dos nativos das Ilhas Trobriandesas estudadas por B. Malinowski (1922),
considerado como um dos luminares da sexologia não ocidental, tais etnografias têm
grande interesse para a ciência antropólogica na medida em que revelam padrões
comportamentais sui-generis na dinâmica cultural das populações em questão. Para os mais
pudibundos leitores, oferecemos o bálsamo desta citação do grande sexólogo do século
passado - da época Vitoriana - Dr. Casper, de Berlim : “nenhuma ferida física ou moral por
mais corrompida que esteja, deve espantar aquele que se devota à ciência do homem,
obrigando-o a tudo ver, permitindo-lhe também tudo dizer.” (apud Lima, s/d : 17).
Conforme já antecipamos alhures, a perfeição do crime de sodomia, consistia na
penetração do membro viril no vaso traseiro com derramação de semente. Ósculos,
amplexos, carícias entre pessoas do mesmo sexo eram grave pecado contra a castidade, mas
não constituiam “crime de sodomia”. Além da cópula anal, cinco são as principais formas

e escravos espalhados pelo sertão do Itapicuru. Aliás, é exatamente em 1648 que se erigiu a
primeira capela dedicada a Nossa Senhora de Nazaré do Itapicuru de Cima, distante 35 léguas de
Cachoeira, 40 da Bahia e 36 de S. Cristóvão. (Pondé de Sena, 197:7).
40
– Este soneto de Gregório de Matos parece ter sido feito para descrever as descarações dos
“quimbandos” (sodomitas-negros) da Bahia seiscentista: (1969:1431) “Não vi putão mais
nefando, pois todos seus sarambeques, vai fazer com três moleques, o Jorge; o Surdo, o
Quimbando...” Só faltou o Jerônimo.
de relação encontradas nos documentos envolvendo o abominável pecado de Sodoma:
“molice”, comunente chamada de “coxeta” (intra-femura); “pulução”, conhecida desde o
século XVI como “punheta” (manus-tangere) ; “pulução recíproca” (ad invicem) chamada
comumente de “fazer as sacanas” ; “felação” que na época era chamada pelo inquisidores
de “sodomia per os” e “anilingus”.
Menos da metade das relações homossexuais descritas nos processos inquisitoriais
chegaram a completar a “sodomia perfeita”. Muitos gays, para evitar a “perfeição do
crime”, e ludribriar o casuismo inquisitorial, contentavam-se com o “coitus interruptus”, o
famigerado pecado de Onam, chamado pelos Inquisitores de “connatus” - isto é,
penetração, deleite, mas orgasmos fora do vaso prepóstero. A masturbação recíproca era
costume tão corriqueiro nos séculos passados, que a partir do século XVII cunha-se uma
expressão particular para descrever este ato venéreo: “fazer as sacanas” e “sacanagem”
originalmente significavam masturbar-se reciprocamente, “ad invicem”. O mulato Bugio
quando acusado de sodomita, retrucou inocentando-se que “só fizera as punhetas com o
soldado e não dormira com ele: O anilingus era pouquíssimo praticado, só aparecendo
referido entre as performances lascivas de 5 sodomitas, entre eles, além do frade José
Botelho, do Mosteiro dos Jerônimo de Belém41, nada menos que no do Governador de
Cabo Verde, Cristóvão Cabral, 33 anos, que ao ser chamado perante a Mesa Inquisitorial
(1630), confessou ter pecado sodomiticamente com 5 homens e 6 mulheres, sobretudo com
seu pagem Gaspar Telles, 25 anos, dormindo sempre na sua mesma cama e em, todas as
noites e sestas por quatro anos e meio; cometendo molices, sodomia como agente e
paciente, conatus e anilingus42.
A felação aparece em aproximadamente 40 processos, sendo também prática
relativamente rara na libido dos homo-eróticos de antanho. O historiador B.R. Burg, no seu
livro Sodomy and Pirate Tradition (1984), conjectura que a raridade da “sodomia per os”
devia-se aos inconvenientes da falta de higiene corporal entre os europeus numa época em
que o banho era considerado mais como terapêutica médica do que como prática comum de
higiene pessoal. Curioso que foi exatamente no citado processo do “amigo” de Jerônimo, o
Padre Santos Almeida onde 05 Inquisidores lisboetas mais teorizam a respeito da felação,
posto que este frenético sacerdote, de todos 05 gozos, tinha no sexo oral o seu preferido
deleite. 05 escandalizados inquisidores chamam a felação de “invenção do diabo” e
dividem-se quanto à sua gravidade moral: D. Pedro de Castilho, um dos mais famosos.
inquisidores de sua época, revela-se mais liberal, seguindo o Regimento à risca - diz que só

41
– ANTT, IL, Proc. nº 7118.
42
– ANTT, IL, Proc. nº 12.248.
se consusbstancia o crime de sodomia quando há cópula anal, opinando que o castigo
devido ao clérigo imoral devia ser seu degredo, para O Brasil. Por pouco Jerônimo não
reencontrou seu velho amigo! A intolerância porém saiu vitoriosa: D. Luiz Alvarez da
Rocha é dogmático: “é maior torpeza e mais abominável a sodomia “per os”, muito mais
em um sacerdote, que pela boca consagra, reza, comunga, diz missa e exercita os
sacramentos, portanto, mais castigo merece.”
A única prática sexual de Jerônimo mencionada nos documentos é referida pelo citado
Desembargador Silveira : ouvira que entre os mulatos, “um chupava o outro”. Não
encontramos nenhum outro depoimento que esclareça quais as preferências homo-eróticas
do escravo dos Brito Correia, Ninguém nunca o surpreendeu no ato sodomítico, nem
cúmplice algum relatou sua performance sexual. Escolado no “Recolhimento dos
fanchonos” do Padre Santos, certamente sua regra era a mesma de um monge beneditino da
Bahia contemporânea que ensinou “ex-cathedra” a um nosso informante: “na cama, é
proibido proibir...”
A grande Inquirição de l646 terminou sem grandes descobertas concretas, como muito
bem pondera A. Novinsky: “a maior parte dos denunciantes repetia acusações por ouvir
dizer, e não por terem eles próprios testemunhado. Predominam as informações
provenientes de diz-que-diz e murmurações, e são raros os depoimentos baseados em fatos
objetivos” (1972:132). Das cento e tantas pessoas denunciadas por judaísmo, feitiçaria,
sodomia, apenas três Cristãos-Novos foram processados e só um deles, José de Liz,
terminou na fogueira. Apenas de um sodomita se chegou a ser pedida a prisão: o Padre
Amador Antunes de Carvalho, Capelão Mor do Terço (Militar) da Bahia, infamadíssimo e
já com farta ficha de denúncias no Repertório do Nefando, mas que teve a sorte de morrer
de morte natural meses antes de chegar à Bahia sua ordem de prisão e seqüestro.
De 1646 a 1686 - quarenta anos, não sabemos nada sobre a vida de Jerônimo. Aliás,
após a grande Inquirição, os inquisidores diminuem sua investida no Brasil por algumas
décadas. Urgia que a Colônia tivesse um pouco de paz para reedificar-se das ruínas
deixadas pelo invasor batavo. Em 1649 é instituída a Companhia Geral do Comércio; em
1654 dá-se a expulsão definitiva dos holandeses de Pernambuco. Em Salvador em
cumprimento de uma promessa a Santo Antonio, fizeram-se solenes festas e procissões
comemorativas da reconquista do Norte (Ruy, 1949:183).
Quanto à vida gay em Salvador após a Inquirição de 1646, pouco sabemos. Com toda
a certeza os somitigos passaram a acautelar-se um pouco mais, pois nos últimos 50 anos do
século XVII, são presos e processados apenas 6 sodomitas no Brasil: 3 no Pará, 1 no
Maranhão e dois na Bahia. Em Salvador, na Visita Canônica realizada em 1679 na
freguesia de Nossa Senhora do Desterro, sairam denunciados apenas dois sodomitas : Luiz
Delgado, 40 anos, estanqueiro de fumo, condenado já uma vez pela Inquisição de Évora,
degredado para o Brasil e vivendo na Bahia a partir de 166843, o qual teve romances
seguidos e estrondosos com dois mancebos seus criados, “sendo público nesta cidade que
viera degredado por culpas do nefando.” O outro denunciado era seu amante na época da
Visita, o estudante carioca Doroteu Antunes, l8 anos44. Ambos foram presos inicialmente
por ordem do Bispo da Bahia, D. Frei Manuel da Ressurreição, e transferidos em seguida
para os cárceres secretos do Santo Ofício45.
Várias são as referências nos Cadernos do Nefando de outros homossexuais que
foram degredados ou passaram pela Bahia - na época parada obrigatória das naus que
faziam a carreira da Índia. Pode ser que Jerônimo tenha conhecido - inclusive no sentido
bíblico – alguns desses seus contemporâneos sodomitas:
- 1651 : Afonso Castelhano, 42 anos, Cavaleiro do Hábito de Cristo, viveu dois anos
na Bahia, fornicando (“connatus”) com seu negrinho angola de 10 anos, o qual vendeu na
Boa Terra antes de voltar para o Reino e se denunciar no Santo Ofício.
- 1656: Manuel Távora, 30 anos, soldado natural da Ilha da Madeira. Estando em
Matoim, numa barraca com outros soldados, “pegou na natura de um outro e quis beijá-lo,
virando-se de costas”, ao que o outro por pouco não o feriu com uma espada, dando parte
às demais pessoas.
- 1667: O Deão e Vigário Geral Pedro Cordeiro Espinoza denuncia que há seis anos
encontra-se em Salvador “com fama constante e sem diminuição” o Tesoureiro Mor da Sé,
Padre José Pinto de Freitas, o qual “comete o nefando com muitas pessoas eclesiásticas e
seculares, tendo inclusive metido sua mão nas partes ocultas do Vigário de Ilhéus,” e
muitas outras mais ousadias com vários estudantes e mulatos.
No ano de 1662, um mulato morador em Lisboa, João Rodrigues, 22 anos, dizia que
“a frota que estava para partir para a Bahia se havia de ir a pique porque levava tanto
somítigo...”46
Pode ser que Jerônimo tenha conhecido alguns destes sodomitas supra-mencionados.
Salvador, na época, deixava muito a desejar para quem viveu em Lisboa, apesar de possuir

43
– ANTT, IL, Proc. nº 4769
44
– ANTT, IL, Proc. nº 4230.
45
– Um terceiro sodomita anônimo também foi preso e antes que o Santo Oficio dele se ocupasse, o
ultra-zeloso Prelado degredou-o motu próprio para Angola, sob os protestos do Familiar Francisco
da Fonseca Vilas Boas. (ANTT, 14º Caderno do Nefando, fl. 105)
46
– ANTT, IL, Proc.nº 326.
seus encantos: contava com aproximadamente 2 mil casas, 12 grandes igrejas, várias
capelas e conventos, 1 hospital (Azevedo, 1969:180). O ex-prisioneiro do Santo Ofício de
Goa, Delon, ao passar pela Bahia nesta época, pinta o seguinte quadro da Capital do Estado
do Brasil: “Toda a cidade, incluindo a parte alta e a baixa, é tão grande quanto Lyon, e a
meu ver, mais populosa. Na cidade alta, há belíssimas ruas com casas soberbas, igrejas
magníficas e o Palácio do Governador, que é a sede do Parlamento (Relação) é de uma
grandeza e de uma beleza pouco comuns.” O arguto francês refere-se à escravaria que viu
pelas ruas, irmãos de condição do mulato de Antonio Brito Correia: “Os escravos aí são
vendidos publicamente nos mercados como vendemos o gado na França. Eles são
empregados nos trabalhos mais peníveis e são tratados de uma maneira tão cruel que os
cristãos que caem nas mãos dos corsários têm tratamento incomparavelmente mais suave.
Aqueles felizes que ganharam as boas graças de seus senhores são dispensados dos
empregos mais rudes e são ocupados em funções mais leves na casa, seguindo seu senhores
quando vão à cidade, carregando-os em redes e protegendo-os com grandes guarda-
chuvas.”(1688:343-361) Neste ambiente viveu Jerônimo quase quarenta anos, sempre
temendo que sua vida sexual ainda lhe causasse maiores problemas além de sua
transferência às pressas do Reino para o Novo Mundo. Passava dos sessenta anos quando
da chegada da Frota de 1683, impondo-lhe nova fuga.
Esta Frota da Armada Real trazia muita gente importante, entre eles o novo Bispo D.
Frei João da Madre de Deus e o Desembargador do Eclesiástico e poeta iconoclasta
Gregório, de Matos. A heterogeneidade dos viajantes devia ser gritante e indescritível a
curiosidade e suspense dos baianos na hora do desembarque dos numerosos navios. Meses
e semanas antes, as pessoas procuravam videntes e adivianhadores para saber se as
caravelas trariam o que tanto guardavam: um ente querido, uma promoção, uma
mercadoria; O recém citado Padre José Pinto de Freitas, Tesoureiro Mor da Sé, diziam que
tão logo chegou a frota de 1667, correu a consultar o Meirinho para saber se vinha algum
diligência contra sua somítiga pessoa.
Assim é que em Sergipe comentava-se que Jerônimo fugira da Bahia no tempo da chegada
da Armada Real, “vivendo a partir daí nos sertões de Itapicuru por ordem de Antonio Brito,
pois já estivera preso na Bahia por sodomita.” Outra informação sobre a biografia deste
mulato: em Salvador, chegou a ser preso, certamente por ordem episcopal, e como tinha
culpa no cartório, seu dono para evitar perde-lo, com a chegada de novo prelado, transferiu-
o para as fronteiras do Sertão. Essa sua prisão e soltura, sugerem que seu delito não chegou
a ser tão grave, pois caso contrário, teria sido remetido para os cárceres de Lisboa.
Nos quatro anos seguintes, nos sertões limítrofes entre Bahia e Sergipe, Jerônimo
apesar de beirar os 70 anos, continuava indômito em sua luxúria homófila, e coitado,
ostentava em seu corpo a violência de suas conquistas mal sucedidas: o escravo de José da
Silva ao ser “acometido” pela segunda vez, por ordem de seu senhor, “deu uma facada na
testa do réu, ferindo-lhe um olho” ; o negro de Maria Mesquita, “gera-lhe umas feridas”.
Apesar de “dar presentes aos negros”, por ser público no vicio; “o tinham maltratado e
ferido.” Jerônimo era realmente incorrigível: é tão devasso quanto seu santo de cabeça -
Xangô, o São Jerônimo do sincretismo afro-cató1ico, que de acordo com as representações
de antigas estátuas africanas, é ao mesmo tempo macho e fêmea, mostrando sua
ambivalência vestindo sempre calça debaixo das saias. Xangô era o segundo filho de
Yemanjá: sua sensualidade era tamanha que possuiu suas três irmãs, castrando seu próprio
pai e obtendo então a realeza. Por tantas proezas libidinosas, é considerado o Dom Juan dos
Orixás.
Assim foi Jerônimo: um lavrador de Itapicuru (4ª testemunha) contou que o mulato
“acometia aos negros, alguns estando dormindo” e que Manoel de Castro “acordando, deu-
lhe uma bordoada com um pau na cabeça fazendo-lhe uma grande ferida”.

Perguntado a seu último amo, no Sertão, Manoel Morato, porque não mandava
embora um cativo tão público no vício, dizia “precisar de seu serviço”. No Itapicuru, o
escravo de Tomé Correia de Meio, após ter sido açoitado quando soube seu senhor que
mantivera relação com o somítigo - costume, portanto, documentado de norte a sul na
Capitania - a partir de então, “os outros negros se desviavam dele.” Das festas e arruaças
comandadas pelo Capelão Real Pe. Santos Almeida na brilhante Lisboa, para o ostracismo
até dos próprios negros no ermo sertão de Itapicuru, a vida de Jerônimo fora cheia de altos
e baixos, e seus últimos anos, cego de um olho, cheio de cicatrizes, passando dos 70, devem
ter sido cheios de desilusão. A fama de sua fanchonice era tamanha que corria os sertões:
“os moradores costumavam desempulhar-se com falar no Jerônimo”. Outros diziam já
como um brocardo: “Guarda-te do Jerônimo do Morato” refletindo o grande medo que os
sertanejos tinham do homo-erotismo, a ponto de temerem um sodomita decrépito já em
finalzinho de carreira.
Provavelmente foi aí mesmo no sertão sergipano que Jerônimo terminou sua
existência atribulada de mulato escravo e sodomita incorrigível. Quem sabe, morreu
assassinado por algum homófobo mais violento, como acontece ainda hoje, em dia em
Sergipe, onde nos últimos três anos, seis homossexuais foram cruelmente assassinados,
vítimas de latrocínios e crimes sexuais. O último deles, “Adelaide”, morto a pauladas em
Aracaju no mesmo mês em que redigíamos este artigo: tinha 60 anos de idade.
Com este Sumário de Jerônimo, encerram-se em Sergipe as denúncias contra os
sodomitas. Encontramos todavia apenas uma referência de passagem, no mesmo 142
Caderno do Nefando, datada de 19 de julho de 1689, onde diversas testemunhas,
inclusive, um sacerdote de Sergipe do Conde, dizem que o sapateiro Manoel Fernandes
tinha por hábito “acometer muitas vezes alguns mulatinhos e outros escravos dos vizinhos,
persuadindo-os com palavras e perseguindo-os em partes esquisitas, e que já viera
infamado de Sergipe Del Rey”. (fl. 108) Curioso que na devassa de1686 contra o mulato de
Itapicuru não tenham mencionado este sodomita, contemporâneo de Jerônimo na mesma
Capitania Real.
Após esta denúncia, só temos notícia de um outro episódio envolvendo suspeita de
homossexualismo em Sergipe no ano de 1845: já faziam 24 anos que a Inquisição estava
enterrada, quando um professor de Itabaianinha é acusado de “atos ilícitos” com alguns
alunos-porém, parece que tudo não passou de falso testemunho47.
Finda o século XVII Sergipe aparecendo apenas de relance em três processos de
bigamia. O primeiro envolve um vaqueiro de 60 anos, Manoel Leme da Silva, nascido no:
Funchal e morador em Maragogipe (Bahia), o qual para escapar das garras da Inquisição,
fugiu escondendo-se na Capitania de Sergipe Del Rey48. Através de sua confissão nos
cárceres de Lisboa (18-XI-1699), ficamos sabendo sua história aliás, em vários aspectos
igual à de muitos outros bígamos reinóis - várias dezenas que tiveram a infelicidade de
terem suas vidas e estrepulias chegadas ao conhecimento dos Zelosos Guardiães dos Bons
Costumes. Quando rapazinho, o réu, na sua Madeira natal, teve “algum trato” com Catarina
Sousa, sendo obrigado a “casar-se preso na cadeia”. (Nossos atuais “casamentos na
delegacia” têm, portanto raízes antigas na práxis jurídica lusitana). Desgotoso foi-se para o
Alcácer do Sal, no Algarve, onde com o auxilio do falso Juramento de um soldado amigo,
alegou ser solteiro, casando-se segunda vez com uma donzela. Três meses são passados, e
morre-lhe a segunda mulher. Sua mesma sogra providencia-lhe uma viúva, com quem se
casa sacramentalmente. Arrependido (?), confessa-se ao Vigário local, o qual manda-o
voltar à sua primeira esposa. Obedece, mas aí que desgosta-se de vez daquela de quem fora

47
– Requerimento de Antonio Batista Fonseca de Oliveira, morador em Itabaianinha, reclamando
contra o Professor de primeiras letras Francisco José de Barros Padilha, que “atropelou tanto seus
dois filhos de 13 e 10 anos para fins ilícitos que os puxava para um quarto forçosamente para saciar
seus apetites, os quais não aceitando seus vis convites, principiou a ser mal afecto aos filhos do
representante.” A resposta do Presidente da Província de Sergipe é curta e definitiva: “O que o
suplicante alega não foi provado pelo Juiz de Direito nem pelo Inspetor Parcial.” (Arquivo Público
do Estado de Sergipe - doravante “APES:' - pacotilha 594 ).
48
– ANTT, IL, Proc. nº 10018.
o devedor da virgindade: Catarina abandonada, tivera uma filha adulterina, e tão logo soube
da chegada de seu legitimo marido, escondeu-se sem querer encontra-lo. Aí o
desafortunado Manuel parte para o Brasil. Anos depois, em Cachoeira (BA), é informado
por uma escrava vinda da Madeira que sua primeira mulher tinha morrido. Casa-se então
com Luíza Ferreira, 22 anos, portanto sua quarta consorte. Já tinham 2 filhos e 8 anos de
conúbio quando chega a denúncia ao juiz dos Casamentos da Bahia que a primeira mulher
do vaqueiro estava viva. Incontinenti o bígamo foge. O Arcebispo da Bahia, na época Dom
João Franco de Oliveira, oficia ao Pároco de Itapicuru, comunicando a fuga, suspeitando
que o réu estivesse foragido em Geremoabo, ambas localidades na época pertencentes à
Capitania de Sergipe. Como não havia então oficiais da Inquisição na Capitania, o
Comissário Antão Faria Monteiro - um dos três existentes na Bahia neste final de século,
incumbe ao Familiar Domingos Oliveira Lopes, da Bahia, de ir ao Vazabarris (Sergipe), ao
curral de João Barbosa Leão, para “com toda cautela” averiguar o paradeiro do bígamo
fugitivo, admoestando ao oficial que provavelmente adotara nome fictício. Judiciosa é a
recomendação dada a este Familiar: que não prendesse um homem por outro; que
requisitasse força policial caso fosse preciso cercar casas e senzala; que solicitasse oficiais
de justiça ou milícia caso houvesse precisão a fim de efetuar a prisão do réu. A conclusão
das recomendações fornece-nos um “flash” dos costumes do interior sergipano no final de
seu primeiro século de civilização: “Traga o réu com muita cautela pois nestes sertões, se
não guardam respeito ao Santo Ofício nem às justiças.” O desrespeito às autoridades
constituídas é fartamente documentado na História do Brasil, e em Sergipe, Felisbelo
Freyre relata vários episódios de insubmissão popular a Capitães Mores, Vigários que são
presos e mantidos incomunicáveis em suas próprias casas, Câmaras que entram em pé de
guerra com o Ouvidor da Comarca” e assim por diante. Desrespeito ao Santo Ofício,
porém, em finais do século XVII, denota ousadia inaudita - era o mesmo, como diz o ditado
regional, de “cutucar onça com pau curto”. Naquela época, à simples palavra de ordem”
Em Nome do Santo Ofício”, proferida por um Comissário ou Familiar em diligência, tanto
em Portugal como em suas possessões, implicava obrigatoriamente na obediência total às
ordens dos Oficiais da Inquisição, obrigando as pessoas a: estancarem caso estivessem
caminhando, abrir portas, entregar prisioneiros, emprestar cavalgaduras e prestar toda a
assistência material na prisão e condução dos réus. Equivalia, mutatis mutandis, à situação
de “estado de sítio” atual, onde todo o poder passava ipso-facto às mãos do agente
inquisitorial. Um dos privilégios dos Familiares era o trazerem armas proibidas por lei: nas
deligências podiam usar o hábito com a terrível cruz no peito49, a fim de cerimonializar

49
- “Os Familiares do santo Ofício serão pessoas de caridade conhecida, terão fazenda de que
mais a execução. Na Torre do Tombo há diversos processos contra pessoas que
perturbaram ou impediram “o ministério dos negócios e causas da Fé, ofendendo,
ameaçando e intimidando” funcionários, testemunhas e denunciantes da Inquisição50.
Graves castigos corporais puniam tais ousadias.
Foram gastos 37 dias de viagem catando o Familiar Lopes ao bígamo fujão,
percorrendo as regiões do Vazabarris e sertão sergipano até chegar em Geremoabo, nas
imediações da Cachoeira de Paulo Afonso. Após 80 e tantas léguas, encontrou-o no sertão
do Rio do Peixe, freguesia de Geremoabo, na fazenda de João Barbosa Leão, trazendo-o e
entregando-o “em bom recado” ao carcereiro da cidade da Bahia, para ser recambiado para
Lisboa. A sentença deste réu foi lida na Sala do Santo Ofício, recebendo como punição 7
anos de degredo nas galés, comutado depois para Castro Mearim, no Algarve.
Conforme a praxe, o Familiar Lopes recebeu 500 réis por dia de viático durante as
diligências, e “seu moço”, 2 tostões, o que perfez 33$300 réis a ser retirado “da fazenda do
preso se houver”, e não havendo, era o próprio Santo Ofício quem se encarregava de saldar
a despesa diligencial.
Nos dois outros casos de bigamia deste fim de século há menção explícita à região
sergipana do Rio de São Francisco. Aleixo Cabral Henriques, 40 anos, baiano, tinha 15
anos quando foi para Lisboa. Morando em casa da viúva Joana Correia, ao pedir-lhe a filha
em casamento, recebeu como resposta a ordem seguinte: “o casamento há de ser comigo
não com minha filha.” Joana tinha então 45 anos. Já embarcado para fugir deste indesejado
matrimônio, foi trazido à força para a casa da viúva, despido de suas vestes e introduzido na
alcova de Joana, ficando aí fechado por vários dias. Relutante, Aleixo “não consumou o
matrimônio com ela, dormindo umas noites sobre um bofete e outras embrulhado num
casacão, não a reconhecendo como sua mulher, tanto que poucas vezes comia com ela à
mesa, aonde originaram ódios e más querenças.”51 Viajaram a seguir para a Bahia e de lá
passaram a viver alguns anos em Sergipe. Considerando-se violentado tendo maiores

possam viver abastadamente e boa vida e costumes, capazes para se lhes cometerem negócios de
importância, sem infâmia alguma de fato ou de direito nas suas próprias pessoas, ou para elas
derivadas de seus pais, ou avós.” Regimento de 1714, título IX Cf. também Siqueira, 1978:172-181.

50
– Regimento do Santo Oficio de 1774, título XVIII, “Dos que impedem e perturbam o ministério
do Santo Ofício”.

51
- ANTT, IL, Proc. nº 6255.
ambições, com o adjutório do Vigário da Igreja da Vitória, conseguiu que sua mulher
fizesse um voto de castidade, certamente para facilitar seu desejo de um segundo
casamento, alegando defeito no primeiro posto que foi fundado no medo e na falta de seu
consentimento formal. Volta a Lisboa em 1677, onde às custas de 5 moedas de ouro
consegue uma certidão falsificada - apesar de trazer firma reconhecida do óbito de sua
primeira velha esposa. Casa-se então com Dª Inácia Maria. Viúvo desta, parte para o
terceiro enlace, agora com a filha do Oficial do Desembargo do Paço, Leonarda Cunha
donzela de apenas 15 anos de idade. Aí começa sua desgraça, pois a 6 de outubro de 1689,
chega à Inquisição de Lisboa uma carta dramática e tirânica de sua primeira mulher onde
conta as safadezas e infidelidades de seu marido ausente: “Sou uma mulher pobre chamada
Joana Correia, moradora neste Rio de São Francisco, 120 léguas da Bahia, e como
legitimamente desquitada, não tenho obrigação de ir buscar meu ex-marido, tenho porém
obrigação de o denunciar ao Santo Oficio, que está casado de novo em Lisboa com mulher
e filhos”. E vingativa, joga um pouco mais de lenha em sua fogueira: “dizem que ai em
Lisboa anda curando as pessoas com artes mágicas e ensalmos.”
Feita averiguação, constata-se a sua falta: é preso, julgado e sua sentença lida na sala
do Santo Ofício: não foi açoitado, em contrapartida, teve 10 anos de degredo para Angola.
Se voltou para o Nordeste, não informam os manuscritos.
O último caso do século XVII referindo-se a Sergipe envolveu Urbano Cardoso52,
português de Viseu, 60 anos. Sua história começa em 1663, quando em sua terra casou-se
pela primeira vez com Maria Marques, 8 anos de conúbio, 4 filhos. Comprometido com a
fuga de prisionieros da cadeia onde era carcereiro, foi degredado para a Índia, passando
depois para o Brasil, por conta própria, sem autorização superior. Após dois anos em
Pernambuco, soube que sua primeira esposa falecera. Diz ter então mandado correr banhos
em seu torrão natal, sem que recebesse o resultado. Passando o tempo e sequioso de casar-
se, sacramentou sua união com a recifense Francisca de Barros. A descrição de como
conquistou sua segunda mulher merece ser divulgada, pois além de ser muito saborosa,
retrata pari passuo desenrolar da corte e compromisso entre os nubentes na sociedade
nordestina de antanho, uma contribuição etno-histórica original ao Namoro à Antiga do
Prof. Thales de Azevedo. Conta o delato que “passando onde morava Francisca, a viu estar
penteando, e mandando-lhe um recado por um negro a pedir-lhe a trança de seu cabelo53, ao

52
- ANTT, IL, Proc. nº 6997.
53
- Pedir um cacho, uma mecha ou uma trança à pessoa amada era prática comum no Brasil antigo,
como se pode notar através desta canção ao folclore maranhense: “Me dá, me dá moreninha; uma
trança de teu cabelo, para mandar encastuar, no chifre de meu guerreiro reproduzido no disco
que a mesma respondeu descortesmente. Aí ele disse que se ela soubera ler e escrever, lhe
havia de mandar um escrito. Dizendo-lhe o negro que ela sabia, lhe mandou um escrito em
que pedia lhe quisesse falar. E entregando-lhe, ela o botou no chão, sem o querer ver e
vindo então sua mãe, Maria Cardoso de Azevedo e sabendo o sobredito, disse à mesma que
visse e lesse o escrito. E vendo que era cortês, disse à filha que lhe respondesse, o que ela
fez, mandando lhe dizer que se quisesse falar com ela, podia falar primeiro com seus pais.
E indo ele confessante falar com a sua mãe, estando fora da casa seu marido, disse à mesma
que sua tenção era casar com sua filha, pois (já) tinha dito (a ela) Manuel Brás de Viseu,
que ele confessante era viúvo. Depois dessa conversa escreveu algumas cartas a Francisca
de Barros, a que ela respondia e lhe falou algumas vezes diante da sua mãe, ainda que se
não resolvia a falar com Francisco de Barros, pai da dita moça e pedir-lha, pois melhor lhe
parecia tirar-lhe de casa e levá-la para casa de um seu amigo, o Alferes Domingos Leitão da
Silva, com o que a mãe não consentiu em ele casar com a dita sua filha nesta forma. Aí se
resolveu a pedi-la ao dito Pai e casou-se com Francisca...”
Quantas moçoilas em Sergipe não passaram por este mesmo ritual do penteado na
janela ou varanda, o dichote do moçoilo enamorado, a primeira recusa obrigatória da moça
recatada, o bilhete levado pelos negros e negras alcoviteiros, a indulgência facilitadora da
mãe conivente, a troca de carta com juras de amor, uma ou outra conversa dos “noivos” na
presença da progenitora, o temor do Pai, a tentação do rapto, o consentimento final.54
Malgrado tanto cuidado com sua pérola preciosa, a pobre família, Barros estava sendo
ledamente engabelada: o reinol Urbano não era viúvo nem aqui nem na China. Já tinha 8
filhos com Francisca, lar bem consolidado, quando os oficiais inquisitoriais recebem a
denúncia de que o ex-degredado na Índia achava se no Brasil e se casara segunda vez,
estando viva sua primeira consorte. Aí, em 1688, o Santo Ofício solicita novos serviços do
nosso já conhecido Frei Domingos da Ascenção, prior dos Carmelitas de São Cristóvão,
pois tinha-se a noticia que o réu andava pelo rio S. Francisco numa sumaca transportando

Música Popular do Norte (4976), recolhida por Vicente Salles na Praia do Mosqueiro (“Toada de
Boi”). Numa sociedade onde o ter cabelo liso era um dos sinais diacríticos da “limpeza de sangue”,
desenvolveu-se todo um fetichismo, materializado em diversas expressões de artesanato de lúxo,
tendo este elemento como matéria prima: nos museus e antiquários ainda podem ser encontrados
curiosas jóias, relicários, quadro ricamente ornamentados com trancelins feitos com fios capilares.
“Emcastuar” chumaços de cabelos com castão de ouro é costume ainda encontrado no nordeste
mais tradicional.
54
- Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) n'AS Mulheres de Mantilha fornece deliciosos
episódios sobre o controle paterno às filhas casadoiras do Rio de Janeiro setecentista.
açúcar. Obediente, lã vai de novo o carmelita para a beira do Velho Chico e no Convento
dos Franciscanos de Penedo, faz o sumário inquirindo 5 testemunhas. Ninguém diz
conhecer Urbano Cardoso na vizinhança. Altos custos para o Santo Ofício: 19 dias de
diligências, 19$000 réis sem conseguir qualquer pista do velho bígamo. Fr. Domingos faz
trabalho de Sherlock Holmes: vai pesquisar nos livros de batisado, casamento e óbito das
freguesias sergipanas de Santo Antonio do Urubu (Propriá) a seis léguas de Penedo; folheia
também os registros paroquiais de Vila Nova, porém não encontra nenhuma referência ao
réu. Os Inquisidores ignoram que Urbano residia há quase 20 anos em Recife. Assim
frustrada a diligência nas ribeirinhas do S. Francisco, fica este processo parado por falta de
pista durante 11 anos, até que em 1699 o filho adolescente de Urbano Cardoso e Francisca
de Barros desejoso em tomar as ordens menores, requer ao Santo Ofício o necessário
atestado de limpeza de sangue, comprovando que não tinha parte com nenhum das raças
infectas. Nesta época nosso bígamo tinha adotado mais um sobrenome, d'Almeida,
certamente como artifício para dificultar sua identificação. O requerimento de seu filho
sugere-nos duas hipóteses: ou Urbano ignorava sinceramente que sua primeira mulher
continuava viva, casando-se pela segunda vez em sã consciência, ou então, já passados 37
anos de seu registro matrimonial em Viseu, supunha que os Inquisidores não iriam localizar
seus antecedentes tão longínquos, sobretudo confundido agora pela alteração de seu nome
batismal. Lado engano! A burocracia inquisitorial e sua acuidade eram aterradoras: lá
estava o bígamo cujas pistas tinham-se perdido, e o filho ousadamente requerendo atestado
de limpeza de sangue, sendo como todos os outros sete irmãos, filho adulterino, ipso facto
afastado das ordens clericais. Incontinenti é mandada ordem ao Arcebispo da Bahia, D.
Sebastião Vale Pontes para prender o réu no aljube, embarcando-o a Lisboa em 1701. Na
Inquisição, confessou ter recebido noticia que sua primeira esposa morrera, só por isso
decidindo casar-se segunda vez no Recife. As raposas inquisitórias estavam calejadas de
ouvirem esta mesma desculpa: aplicaram-lhe o Regimento. Sua sentença de bígamo foi
lida no Auto de Fé, teve de fazer abjuração de leve suspeita na fé e foi degredado por 4
anos para Marzagão, a última fortaleza Luzitana no Marrocos 55. Lá chegando (1702),

55
- Neste mesmo auto de fé, no Convento de São Domingos, outro casado também foi degredado,
só que seu crime foi de falsa identidade, pois dizendo-se solteiro, recebeu as ordens sacras, embora
ainda vivesse sua legítima mulher. Em ambos os casos, 9 impedimento era o mesmo: estava ainda
com efeito o sacramento do matrimônio. Observe, entretanto o leitor, que a perseguição e castigo
aos bígamos ou aos que se fingiam solteiros não redundava, como seria de se esperar, na re-
constituição da vida familiar original dos delinqüentes, Na quase totalidade destes casos, além dos
muitos anos de degredo, o réu rarissimamente voltava para sua primeira família. Destarte, o excesso
manda um requerimento aos Inquisidores, narrando seus infortúnios: diz estar com erizipela
nas duas pernas, que já tendo ficado 11 meses preso, na Bahia antes de ser embarcado para
a Casa do Rocio, devia-se levar em consideração tal período, além do mais “tem uma filha
donzela bem parecida que fica desamparada e exposta ao perigo de sua honra e deve
200$000 aos seus genros do dote que lhes prometeu”. Pede portanto, para ir cumprir seu
degredo noutra parte do Brasil ou no Reino. Comutam-lhe o degredo para Castro Mearim,
localidade onde já outros moradores de Sergipe presos pela Inquisição tinham
anteriormente sido, confinados. Só em 1710 - com mais de 70 anos de idade, após a morte
de sua primeira mulher em Viseu, que lhe autorizam voltar para o Brasil, terminando aí as
atribulações do pseudo-viúvo que ousou pedir a trança à moça na janela. Fim da tragédia:
10 anos de privações e humilhações para sua família, o inocente filho impossibilitado par
sempre de receber ordens sacras, quem sabe, até sua filha donzela raptada por outro reinol
mais ousado. Se voltou a negociar açúcar pelo Rio S. Francisco, a documentação não
informa. Em todo caso, a mesma região sergipana voltará diversas vezes referida neste
trabalho, inclusive em outros casos de bigamia e mesmo de poligamia.

REGIMENTO DOS FAMILIARES DO SANTO OFFICIO.

Os Familiares do Santo Ofício ferão peffoas de bom proceder, e de confiança, e


capacidade conhecida: terão fazenda, de que pofsão viver abaftadamente, e as qualidades,
que conforme ao Regimento do Santo Ofício fe requerem em feus Officiaes.
Guardarão fegredo com particular cuidado, não fó nas materias, de que poderia
refultar prejuízo ao Santo Offício, fe foffem defcubertas, mas ainda naquellas, que

de zelo inquisitorial era duplamente pernicioso: para a primeira família que continuava abandonada,
e para a segunda que é condenada ao desamparo da ilegitimidade, os filhos sendo considerados
adulterinos. A indissolubilidade do matrimônio sempre foi uma das questões de honra do
catolicismo: se Roma preferiu perder toda a Inglaterra para não dissolver o casamento de Henrique
VIII, não seria por causa destes insignificantes moradores do interior do Brasil, que abrir-se-iam
excessões. Afinal, não juraram os cônjuges permaneceram Juntos até que a morte os separasse?
Desnecessário seria lembrar a correlação inseparável existente entre o matrimônio e o patrimônio,
assim como toda a importância na nossa sociedade patriarcal judaico-cristã da indivisibilidade
patrimonial e indissolubilidade matrimonial. O casamento com separação de bens e a lei do divórcio
são importantíssimas conquistas desestruturadoras de nossa tradição milenar que só com o tempo
nossos descendentes terão elementos para avaliar o quanto representaram avanço para uma maior
harmonia e felicidade do gênero humano, alforriado do casamento indissolúvel.
parecerem de menos importancia. Darão com fua vida, e coftumes bom exemplo, e tratar-
fe-hão com modeftia. Não farão aggravo, ou vexação a peffoa alguma com pretexto dos
Privilegios, de que gozão.
Não terão trato, ou comunicação particular com peffoas , que tenhão, ou fe entenda
que podem ter negocio no Santo Officio, nem dellas acceitarão coufa alguma, ainda que
feja de pouca valia. Não tomarão mercadorias, ou mantimentos a peffoa alguma por menos
preço do ordinário: e procurarão não contrahir dividas, de que pofsão refultar queixas, ou
efcandalo; e havendo de cafar, darão primeiro conta na Meza ; e cafando em outra forma,
ficarão fufpenfos de feus officios.
Acudirão á Meza do Santo Offício com pontualidade todas as vezes, que os
Inquifidores os chamarem a ella: e com a mefma farão tudo o que elles lhes ordenarem; e
feviverem fóra da Cidade, em que rende o Santo Officio , irão aos Commiffarios, fendo
chamados por elles, e farão o que lhes differem. Vindo á Meza algum Familiar, ou feja com
negocio, ou chamado, efperará na fala até o mandarem entrar, e fem iffo não entrará na
faleta , que eftá antes da Cafa do defpacho , falvo fe os Inquifidores ordenarem outra coufa.
Na vefpera, e dia de S. Pedro Martyr, fendo poffivel, fe acharão na Inquifição de reu
diftricto, para acompanharem o Tribunal.

Século XVIII: Judaizantes, Familiares e Comissários do Santo Ofício e Libertinos

Sergipe concluía os anos seiscentos quando recebeu a visita de dois Bispos, episódios
que devem ter marcado bastantemente a vida social e religiosa da Capitania, apesar de não
vir referido em nenhum dos compêndios dedicados à sua história colonial. O primeiro
prelado a percorrer o território sergipense foi D. Estevão Brioso (1678 - 1689), bispo de
Pernambuco : quando veio a Sergipe, o que fez, o porque de sua visita são temas ignorados
pelos historiadores. Não deixa de causar-nos admiração o Prelado de uma Capitania fazer
uma “visita” em território alheio, sobretudo porque tais visitações não eram de
cordialidade, mas geralmente punitivas. Talvez tenha percorrido apenas o território do
Bispado de Pernambuco no Rio S. Francisco, que até 1756 inclui a indevidamente a
freguesia de Brejo Grande ou Ilha da Parauna (Mott, 1975:33). O segundo prelado a
percorrer este sim todo o território da capitania de Sergipe foi D. João Franco de Oliveira,
42 Arcebispo da Bahia, que governou de 1692 a 1700 : no seu curriculum consta a penosa
visita que fez por quase todo o arcebispado, “penetrando o certão abaixo da cidade de
Sergipe del Rey, visitando-o até chegar ao rio S. Francisco56. Neste trajeto, crismou 40 mil
pessoas, um recorde que deveria constar no Guiness eclesiástico! Essas visitas pastorais
certamente declanchavam um afervoramento da religiosidade das populações interioranas,
pois além da administração dos sacramentos e práticas edificantes, os prelados tinham o
poder de também processar, prender, degredar, seqüestrar os bens dos culpados em delitos
graves, de modo que deviam causar grande temor entre os delinqüentes. Como citamos
anteriormente, o próprio Capitão-Gay, Pedro Gomes, teria fugido da Capitania quando da
visita do Bispo de Pernambuco, com medo de ser castigado.
Nesta época, início da centúria os setecentos, a vida religiosa na Capitania começava a
se sofisticar : o Carmelita baiano, Frei Antonio da Piedade, ex-Prior do Pará, Comissário da
Bula da Cruzada, Visitador Geral do Maranhão e Primeiro Instituidor da Aldeia de
Japaratuba de Sergipe, missionário do Rio S. Francisco, aos 19 de abril de 1700 fez na
igreja matriz de Santo-Amaro das Brotas, na Cotinguiba, o Sermão das exéquias da
Sereníssima Rainha D. Maria Sofia Isabel de Neoburo, pregado com toda solenidade e
impresso em Lisboa em 1703, na Tipografia de Miguel Deolandes. Salvo erro, é a primeira
obra literária produzida em território sergipano e dada à publicação. (Barbosa, Biblioteca
Lusitana, S/d).
O “Século das luzes” inicia-se com” presença de Sergipe nos processos inquisitoriais
envolvendo três cristãos-novos: o primeiro é de 1707, e infelizmente, só tomamos contacto
com este episódio através do livro Os Judeus no Brasil Colonial, não fornecendo A.
Wiznitzer qualquer detalhe sobre quem foi o infeliz morador de Sergipe que com mais
outros 12 judeus do Brasil foram condenados no Auto de Fé de 30 de julho: destes, apenas
um foi condenado à morte, Rodrigo Alvares, 32 anos, morador na Bahia (1966:131)”.
Consultando as listas dos Autos de Fé compiladas por Varnhagen (1845), abrangendo os
anos de 1711 a 1767, Sergipe aparece mencionado implicitamente apenas uma vez, quando
do processo de outro cristão novo, Antônio Fonseca, 54 anos, lavrador de roças, natural de
Mogadouro e morador no Rio de São Francisco. Foi sentenciado no Auto de Fé de 6 de
julho de 1732, condenado a carregar para sempre o habito penitencial identificador de sua
prática judaizante, o vergonhoso sambetino. Neste mesmo auto, celebrado na Igreja de São
Domingos de Lisboa, foram sentenciados 79 réus, entre eles saindo queimados um pai e um

56
- E. C. Almeida, 1914, doc. nº 2010, Oficio do Arcebispo da Bahia ao Rei, 30VIII-1755.
filho, ambos pela prática do judaísmo57.
No ano seguinte, no auto de 20 de setembro de 1733, outro morador do Rio S.
Francisco, também é penitenciado: Fernando Henrique Alvares, 38 anos, TAM bem com
parte do sangue de judeu, só que morador em Penedo, do outro lado do rio, na comarca de
Alagoas: teve a pena máxima da fogueira, acusado de ser judeu “convicto, ficto, falso
simulado, confitente, diminuto e impenitente.” A noticia de sua morte deve ter corrido por
todos os povoados do Velho Chico, pois era o primeiro, e salvo erro, foi o único morador
destas bandas a chegar à fogueira.
No ano seguinte à fatídica, execução do judeu de Penedo, neutro episódio Sergipe
reaparece na documentação inquisitorial58. Trata-se de mais um caso de falso. sacerdote:
Manuel Silva Oliveira, 30 anos. Nascido em Pernambuco, na vila de Serinhaém, vai para o
Recife onde recebe as ordens menores, partindo em seguida para e Rio de Janeiro, onde
pretendia candidatar-se ao presbiterato, chegando inclusive a ser aprovado nos primeiros
exames pelos jesuitas cariocas. Teve porém a infelicidade de contrair varíola (bexiga),
vendo-se obrigado a retornar então para sua terra natal. De lá viajou para a vila de Lagarto,
no centro da capitania de Sergipe, aí permanecendo. 4 anos. Nesta época alternava seus
expedientes de vida, era andando em trajes seculares, ora “como ermitão”, tirando esmolas,
com uma imagem de Nessa Senhora. Explorando a piedade popular arrecadou por esses
sertões mais de 30$000. D. Marcos Antônio de Sousa, que foi vigário de uma freguesia
próxima, dizia que os habitantes de Lagarto “são mais observantes das máximas santas da
Cristianismo.” (1944:28), encontrando portanto o falso ermitão campo fértil para suas
simonias. Devotos, carolas e fanáticos místicos é o que não falta ainda hoje nos sertões
nordestinos, e em Sergipe Setecentista, como veremos em outros processos, o fanatismo
religioso era sinônimo de virtude cristã. Beijando a imagem de Nessa Senhora e dando uma
esmola para o ermitão, esperavam assim estar garantindo um lugar certo na morada
celestial, debaixo do manto da Virgem Maria.
O esperto minorista vendo sua fonte secar em Lagarto, desce mais para o Sul, para a
freguesia de Nossa Senhora do Monte da Itapicuru da Praia, onde assume maior
desenvoltura, apresentando-se como sacerdorte, celebrando missas, confessando e dando
comunhão. Trazia coroa aberta no cocuruto, símbolo das ordens maiores, dizendo a todos
possui-las. Após denúncias, é preso por ordem do Comissário João Calmo, o mais ilustre
membro do clã dos Calmon, família que ainda hoje ocupa lugar tão importante no cenário
nordestino, (Mott, 1986). Mesmo dizendo ser sobrinho de Abade do Mosteiro de São Bento

57
- ANTT, IL, Proc. nº 10484.
58
– ANTT, IL, Proc. nº 820.
da Bahia, não teve escapatória: foi embarcado para Lisboa e condenada a 7 anos de galés,
antes passando pelo vexame de ter sua sentença lida no Auto público de Fé de 24 de Julho
de 1735, ficando inabilitado ad aeternum de receber outras ordens sacras. Pior sorte teve
um feiticeiro sentenciada neste mesmo Auto, que foi queimado com carocha, por ter pacto
com o Diabo! Dois anos após a degreda, requer misericórdia pois seu estado de saúde era
desesperador : lançando sangue pela boca, tísico e entrevado, sem poder andar senão com
um pau”. Foi perdoado em maio de 1737. Saiba, porém o leitor, que pouquíssimas presas
pelo Santo Oficio saíam das cárceres com saúde intacta : na prática, a Inquisição “se não
mata, aleija.” Este era o modus operandi dos zelosos representantes do Mestre do Divino
Amor!
Outro caso inquisitorial dos mais fantásticos ocorridos em Sergipe nesta mesma época
teve seu início milhares de léguas de distância, mais precisamente na cidade de Quito, no
Equador, no então chamado Reino do Peru. Tudo começou quando e quitenho José de
Igareta, irmão converso da Ordem de São Domingos, roubou os documentos de identidade
sacerdotal de um seu correligionário dominicano, fugindo para o Chile e Uruguai, onde
embarcou para o Brasil numa fragata exercendo falsamente o cargo de capelão, vindo parar
na Bahia de Todos os Santos59. Munida de falsa identidade presbiterial, apresentou-se ao
Arcebispo de Salvador, recebendo a necessária autorização para exercer o sacro ministério.
Após 4 meses, partiu para Sergipe, onde diz “ter percorrido todas as suas freguesias”,
celebrando falsas missas, confessando mentirosamente, e sobretudo, recolhendo esmolas
para um fictício “hospício” religioso. Espertalhão, conseguiu em Sergipe alguns “impressos
de indulgências e graças espirituais junto a um monge beneditino, Frei José Freixas, “os
quais vendia-os por altos preços, inscrevendo os colaboradores como irmãos na Confraria
de Monte Serrate”, também falsidade criada por sua rica e simoníaca imaginação
eclesiástica. Mais ainda: ao “confessar” os sertanejos, via muitos deles trazerem no pescoço
uns “bentinhos”, espécie de relicários, onde guardavam a Bula da Marca um atestado de
indulgências fartamente comercializados pelos Capuchinhos e outros religiosos naqueles
tempos em que o fogo do purgatório, e sobretudo do inferno, era o grande pesadelo dos
filhos de Deus60. Com astúcia, o frade equatoriano agora intitulando-se ora Familiar, ora

59
– ANTT, IL, Proc. nº 3693
60
- A Bula da Marca, mutatis mutandis, concedia os mesmos privilégios que a Bula da Cruzada, a
saber: seu portador podia ser obsolvido de todos os crimes reservados, comer carne nos dias
proibidos com licença médica e do confessor, comutar promessa ou votos “deitando nos cofres das
igrejas parte dos importes dessas promessas”, lucrar mais de 75 indulgências plenárias por ano.
“Quem lucrar uma indulgência plenária e morrer no mesmo instante, vai logo ao céu sem alguma
Comissário do Santo Oficio, retirava as Bulas de seus devotos e assustados Proprietários,
alegando serem falsas e proibidas, e ao chegar em outra freguesia, vendia as mesmas Bulas,
só que a preço de ouro! Nesta mesma época, nas Minas Gerais, outro espertalhão, um
clérigo in minoribus, ganhava a vida vendendo num papelinho cuidadosamente dobrado,
nada menos do que a relíquia do leite em pó da Virgem Maria, devoção, aliás, muito
valorizada inclusive, nos conventos de religiosas do Reino61. Não havia brasileiro
antigamente que não trouxesse enrolado no pescoço uma medalha, rosário, escapulário,
relíquia, bula, agnusdei, ou mesmo uma poderosa bolsa de mandinga ou patuá (Saint-
Hilaire, 1938:163). Nesta época, Deus e o Diabo apareciam freqüentemente aos fiéis, as
imagens e relíquias dos santos e santas faziam prodigiosos milagres, e os frades e bispos
encontravam no comércio das missas de defunto e na venda de indulgência e mais amuletos
sacros, importante fonte de renda para a manutenção de suas vidas ociosas. Constatando
que também em Sergipe predominava o costume de todo católico trazer no pescoço
qualquer símbolo de fé, “e sabendo que nesses sertões as pessoas usavam umas bolsas que
chamam Breves da Marca, com os quais negociavam e vendiam por alto preço, trazendo-os
consigo certificando que as pessoas que as tivessem não poderiam nunca ser ofendidas com
qualquer sorte de armas com que lhe quizessem fazer danos”, e passando o falso
Comissário num lugarejo do sertão sergipano (infelizmente não menciona o nome), viu
muita gente reunida com um cão tendo uma bolsa do Breve da Marca no pescoço, e lhe
disseram que uma pessoa queria comprar aquela bolsa, “e para prova se tinha ou não
virtude para não ser ofendido aquele que a trouxesse, queriam atirar de espingarda ao dito
cão e se não fizesse mal algum, nem o ofendesse, seria a bolsa verdadeira.” Uma situação
ideal de superstição coletiva para a ação inquisitorial : aí Igareta apresenta-se como
Comissário do Santo,Oficio e encarregado de recolher as ditas bolsas as quais foram por ele
entregues ao Bispo de Pernambuco, narrando ao Prelado o grande abuso que havia por
todas aquelas vizinhanças e grandes superstições com os ditos breves”.(Mais adiante
analisaremos um processo envolvendo um sergipano que foi encarcerado pela Inquisição
exatamente pelo uso indevido destes amuletos, o que comprova sua divulgação nesta
região.)
O fim deste falsário foi rocambolesco : no sertão do Pilão teve conhecimento que um

demora, nem pelo purgatório passa.” Para obter tão grande merecimento carecia visitar-se 5 altares
ou 5 vezes o mesmo altar “nas igrejas a onde há um só.” Podia-se também “comprar” bulas para os
defuntos a fim de tirá-los do fogo purgatorial. Devia-se comprar a Bula todos os anos e só com elas
lucrava-se as tão desejadas indulgências. Couto, 1882:49.

61
- ANTT, IL, Proc. nº 423.
rico fazendeiro, João de Sousa Pereira, detestado por seus vizinhos, era infamado de ter
açoitado um crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora, judiaria muito freqüentemente
atribuída aos Cristãos Novos ou cripto-judeus desde os tempos da primeira visitação à
Bahia em 1591. Igareta teve ar um prato cheio para sua ganância. Fez sumário com
testemunhas escolhidas a dedo; prendeu o pobre fazendeiro e seqüestrou-lhe os bens. Para
garantia de sua ação tão severa, forjou outro crime: vendo no peito do delato um agnus-dei
- que segundo seu dono, teria sido um presente dado pelo taumaturgo jesuíta Padre Gabriel
Malagrida62, aproveitou-se deste pequeno relicário e dentro meteu secretamente um
pedacinho de hóstia, acusando o fazendeiro de mais um delito: carregar sacrilegamente uma
partícula consagrada.
O seqüestro foi polpudo: 138 oitavas de ouro, 4 arateis de prata, 18 escravos, 60
porcos e mais de 100 cabeças de gado, além de outros bens móveis. De tudo fez leilão em
praça pública, embolsando a enorme fortuna. Acorrentou o desgraçado fazendeiro, montou
um séquito de mais de 12 pessoas, entre guardas, cavaleiros, pagens, escrivão, etc., e com
toda a pompa, com uma bandeira do Santo Ofício, atravessou todo o sertão até chegar à
Bahia. Imaginemos o pânico dos tabaréus nordestinos vendo o ex-rico fazendeiro
humilhado com corrente no pescoço, caminhando a pé amarrado na traseira de uma
montaria, tendo na frente do séquito o garboso “Comissário” Igareta, terrível juiz que não
titubeou em arruinar a fortuna dos Sousa Pereira para castigá-los da irreverência e
sacrilégio de seu titular.
Vários dos sequazes do falso Comissário, desconfiando de sua idoneidade, posto que
fazia-se também acompanhar por uma mulher de má vida com a qual mantinha suspeita é
escandalosa intimidade, aproveitavam-se das noites para fugir sertão a dentro. Aos trancos

62
- O Padre Gabriel Malagrida, jesuíta italiano, foi o maior taumaturgo que percorreu o interior do
Brasil, do Maranhão ao Sul da Bahia, pregando inúmeras missões e fundando recolhimentos de
donzelas e “madalenas arrependidas” em diversas capitanias. Foi grande devoto e dos primeiros a
divulgar no Brasil o culto ao Sagrado Coração de Jesus, devoção que teve grandes adeptos em
Sergipe, sobretudo em Laranjeiras, onde desde os finais do século XVIII existe igreja dedicada a
esse orago (Oliveira, 1981). Em Salvador, fundou dois recolhimentos dedicados a este culto, o
principal, Convento do Sagrado Coração de Jesus das Ursulinas da Soledade (1739) tendo entre
suas primeiras fundadoras algumas donzelas de Sergipe, filhas de importantes famílias de Santa
Luzía, Estância e da Cotinguiba. O final da vida deste religioso penitente foi trágico: culpando ao
Marquês de Pombal e à incredulidade dos portugueses como responsáveis pela ira divina, causadora
de devastador terremoto que em 1755 destruiu Lisboa, foi preso pela Inquisição, acusado de hereje
e de ter pacto com o demônio: morreu queimado em 1761, com 73 anos. O próprio Soberano
Pontífice reinante, ao saber de sua morte, teria dito: “Morreu um mártir.” (Mury, 1875)
e barrancos, desfalcado, delapidando pelas hospedarias de beira da estrada o dinheiro dos
bens seqüestrados, chega este fajuto exército de Brancaleone à Bahia. Era meia noite
quando o astuto equatoriano bateu às portas da casa do Comissário Antonio Rois Lima,
entregando-lhe o infeliz fazendeiro acorrentado. Passados alguns poucos dias, o verdadeiro
comissário, convicto de que Igareta era um impostor, manda-o prender no cárcere do
Convento do Carmo da Bahia. Sua prisão deve ter causado grande consternação em
Salvador, pois nunca a Bahia presenciara tamanho quiproquó. Lá, o trambiqueiro
dominicano demonstra o quanto era malicioso: ateia fogo na porta da cela com vistas a
fugir, e lança-se das janelas do Convento, vindo a cair na enorme ribanceira dos fundos do
Carmo, quebrando-se todo, e ficando á beira da morte. Arrependido, fez confissão geral,
narrando todos, esses fantâsticos episódios e peripécias, desde o Equador até o sertão
sergipano. Convalescente, é mandado para Lisboa : sua sentença lida no Auto de Fé de 18
de junho de 1741, condena-o a 10 anos de galés. Neste Auto, foram condenadas 43 pessoas,
das quais, 12 entregues à justiça secular para serem queimados. Entre estes, foram
executados um marido e sua mulher, e um pai com seu filho. O pregador, Frei Crispim de
Oliveira era da mesma ordem dominicana de Frei Igareta, e coincidentemente, para vexame
da Ordem dos Pregadores, o Auto realizou-se na própria igreja do Patriarca S. Domingos.
Passados 3 anos, o réu escreve um requerimento aos Inquisidores, dizendo-se aleijado
das duas pernas e de uma mão, com a barriga inchada, andando de muleta, tudo confirmado
por um atestado médico. E mandado para um convento de frades em Elvas, só que no
caminho, o astuto aleijadinho consegue a principal façanha de sua atribulada vida:
desaparece para sempre do mapa da Inquisição ! Nunca ninguém mais deu noticia do
fugitivo. Sua passagem “por todas freguesias de Sergipe” deve ter atemorizado os mais
superticiosos ao mesmo tempo deixado péssima impressão sobre a moral cínica dos
funcionários do Santo Oficio, que tomando o “Comissário” Igareta como exemplo, de
“Santo” só tinham mesmo o nome do “Oficio”.
A atuação deste falso padre e falso oficial inquisitorial em território sergipano sugere-
nos fazer aqui uma pausa na análise dos processos dos réus de crimes contra o Santo
Oficio, para abordar outro aspecto crucial na história da atuação do Terrível Tribunal no
Nordeste: a presença de funcionários da Inquisição com residência fixa em terras de
Sergipe del Rey. Veremos agora o outro lado da medalha.
Salvo erro, foi só a partir de 1729 que Sergipe passa a contar com seu primeiro
Familiar do Santo Oficio: José de Barros de Araújo. A segunda carta de confirmação para o
exercício desta mesma função só foi outorgada em 1764, a Domingos Dias Coelho.
Comissário residente em Sergipe, só descobrimos na documentação da Torre do Tombo um
nome: Padre Francisco de Almeida Branco, confirmado em 1775. Portanto, é sobre a vida e
atuação destes três senhores que nos ocuparemos a seguir.
De acordo com Sônia Siqueira, autora d'A Inquísição Portuguesa e a Sociedade
Colonial só a partir de 1613 que a Inquisição autorizou a nomeação de Familiares para os
territórios ultramarinos, existindo contudo desde 1605 até 1622, 18 familiares nas
Capitanias de Pernambuco e da Bahia (1978:178). A mesma autora fornece um quadro
onde podemos acompanhar a evolução desta instituição na região nordestina63.

Oficiais do Santo Oficio

Região Século XVII Século XVIII Século XIX Total


Baiana 103 634 54 791
Pernambucana 45 514 22 581
Total 148 1166 95 1372

De acordo com S. Siqueira, nos duzentos e poucos anos cobertos pelo seu
levantamento, 1372 oficiais da Inquisição policiaram o Nordeste brasileiro, a “região
baiana” sempre ostentando contingente superior de “espiões” do que a “região
pernambucana”. Como a partir dos meados do século XVIII, o Rio de Janeiro e Minas
Gerais adquirem importante significado econômico e religioso na sociedade colonial, é para
essas novas regiões que dirigem-se a partir de então as novas nomeações de Familiares e
Comissários, decaindo também na esfera inquisitorial a importância da região nordestina.
Elaboramos outro quadro sobre o panorama dos funcionários do Santo Oficio no
Brasil, tomando como base os livros de Juramento dos Familiares e Comissários que não
podendo ir pessoalmente a Lisboa para receber a patente inquisitorial, juraram o regimento
em suas respectivas Capitanias. Confrontando nossos dados com os de S. Siqueira;
arrolamos ao todo 936 indivíduos, que representam 33% do total dos oficiais da “região
baiana” e 37% dos da região pernambucana” relativamente ao século XVII64.

63
- Infelizmente S. Siqueira não revela as fontes utilizadas na elaboração deste quadro, não nos
esclarecendo se nos totais foram desprezadas as habilitações recusadas (1978:181).
64
– ANTT, livros de juramentos dos Familiares e Comissários do Santo, Ofício, nº 147-6-372; 144-
1-18; 144-1-22; 1207; 1243; 1111; 1094; 147-6-366; 1158; 1230; 147-6-364; 974.
Oficiais do Santo Oficio que receberam a patente no Brasil

1704-13 1714- 1722- 1734- 1747- 1755- 1766- 1776-80


21 31 46 53 63 76
Bahia 43 57 41 28 25 15 - -
Pernambuco 11 15 9 7 7 29 66 48
Minas Gerais - 1 9 23 41 71 38 5
Rio de Janeiro 15 38 48 53 39 61 34 3
Prá/Maranhão 1 1 - - 3 6 4 1
S. Paulo/ Paraná 2 2 3 1 4 4 8 -
Goiás/Mato - - - 2 2 5 2 -
Grosso
Rio Grande do - - - 2 - 1 2 -
Sul
Total 72 114 110 116 121 192 154 57

Como se deduz desta amostra, o número de Familiares e Comissários do Rio de


Janeiro, a nova capital da Colônia a partir de 1763, cresce à medida que a Bahia vai
perdendo importância, o mesmo acontecendo com as Minas Gerais, que entre 1755-1763,
recebe o juramento do impressionante número de 71 oficiais - em média, um novo “espião”
cada mês e meio. Certamente poucos oficiais das áreas mineradoras deslocavam-se até o
Reino para receber à venera inquisitorial, pois a febre do ouro, a célebre aurisacra fames”
devia impeli-los a preferir não afastar-se das faisqueiras, prestando o juramento aos pés dos
Comissários existentes nas duas ou três principais vilas possuidoras desta autoridades
inquisitoriais.
Não concordamos com Anita Novinsky quando afirma estar a Bahia, por volta de
1650, “abarrotada de Familiares” (1972:106). Num levantamento de 130 oficiais da
Inquisição cujos nomes começavam com a letra “A”, existentes nos livros de Habilitação
do Santo ofício65, encontramos 23, processos relativos ao século XVII, sendo o mais antigo
datado de 1675, Antonio Amorim Correia, cuja carta é negada por ter dois filhos naturais
de uma escrava do gentio da Guiné, situação que implicava na sua “falta de limpeza de
sangue” Coincidentemente neste processo encontramos importante comentário da Mesa
Inquisitorial sobre esta questão: “no Brasil é necessário que hajam muitos familiares”, um

65
– ANTT, Coleção dos livros de Habilitação, (de “A” a “M”), Sala de índices.
atestado de que de fato não eram ainda em número avultado nos finais do século XVII. No
caso dos Comissários, temos algumas evidências que parecem dar-nos razão quando
defendemos que é sobretudo a partir do último quartel dos anos seiscentos que começa-se a
conferir sistematicamente patentes de oficiais da Inquisição aos moradores do Brasil. Veja
o que dizia em 1691 o Padre Inácio de Sousa Brandão, natural e morador na Bahia, em
requerimento solicitando sua nomeação como oficial da Inquisição : Não há Comissário na
Bahia, e mesmo se houvesse, necessita de mais por ser mui populosa.66”
Assim é que nos inícios de 1692 é nomeado outro Comissário, o Pe. Antão Faria
Monteiro, também baiano de nascimento. Em 1699 comentava este sacerdote à Mesa
Inquisitorial : “Como O Estado do Brasil é grande, não prejudica ao Santo Oficio ter nele
mais comissários, para que deles se possa eleger e ocupar aqueles que com maior exação,
inteireza e verdade possam dar expediente aos negócios do Santo Oficio.”67 E em 1723,
declarava o Padre João de Oliveira Guimarães: “Só há dois Comissários na Bahia.”68.
Destarte, não podemos concordar com a ilação de que no Brasil “todas as vilas e
cidades de certa importância tinham Comissários e Familiares.” (Novinsky, 1984:20) Toda
a Capitania da Bahia, incluindo as Comarcas de Sergipe, Jacobina, Ilhéus, Porto Seguro e
até o Espírito Santo, provavelmente nunca teve mais de 5 Comissários ao mesmo tempo, e
salvo erro, pouquíssimas eram as vilas desta Capitania que possuíam um oficial da
Inquisição. Sergipe, por exemplo, que atingiu considerável prosperidade econômica no
século XVIII - contribuindo com aproximadamente 1/3 do açúcar que se exportava da
Bahia - só teve em toda sua história apenas um Comissário e dois Familiares confirmados.
E estes, somente a partir do segundo quartel do século XVIII.
Foi em janeiro de 1728 que José de Barros de Araújo deu entrada no Santo Oficio de
um requerimento desejando “melhor servir a Deus Nosso Senhor e para consolação de sua
alma”, solicitava a venera (medalha) de Familiar da Inquisição. 69 Como de praxe, dá as
coordenadas de sua pessoa e família, a fim de que os inquisidores procedessem às
diligências para ver se o candidato não possuía nenhuma mistura com “ruim sangue” de
judeu, mouro ou mulato; se não teve antepassados envolvidos com crimes do conhecimento
do Santo Oficio; se tinha cabedais suficientes para tratar-se com decência e não era
possuidor de filhos naturais. No caso de ser casado, as mesmas investigações seriam feitas
para a família de sua mulher.

66
– ANTT, Habilitações do Santo Ofício, “Inácio,. M.2-29
67
- ANTT, Habilitações do Santo Ofício, “Antão”, M. 7-153
68
- ANTT, Habilitações do Santo Ofício, “Antonio”, M. 55-1063
69
69) - ANTT, Habilitações do Santo Ofício, “José” , M. 32-517
Este candidato era nascido na região de Viana, na vila de Santa Comba: tinha 30 anos
e negociava em loja de fazendas secas na cidade de São Cristóvão, onde residia. Era
solteiro - como a maior parte dos candidatos a esta função. Em Sergipe desempenhava
também a função de Procurador da Câmara, já residindo nesta Capitania por 10 anos.
São feitas as diligências em sua terra natal para saber dos antecedentes raciais de seus
antepassados: nada incriminava seus pais Antonio de Araujo Xisto e Ana de Barros de
Serqueira, vianenses como boa parte dos emigrados para o Nordeste. Em Sergipe também é
feita a costumeira inquirição sobre a fama e situação material do candidato: o Comissário
João Calmon alegando estar muito distante São Cristóvão da Bahia, subdelega poderes para
conduzir a diligência ao Vigário Geral da capitania, o Padre Dr. Amaro Gomes de Oliveira,
tendo como escrivão o Pe. José de Sousa Pinto, exortando-os que elegessem testemunhas
“brancas e cristãos-velhos”. Ao todo são ouvidas cinco pessoas, todos portugueses natos:
Manuel Nunes de Azevedo, 40 anos, negociante, natural do Porto, o qual afirma ser o
candidato “bem procedido e de boa vida e costumes”. Todos os demais repetem a mesma
opinião : Manuel Francisco Carvalho, 34 anos, “dono de um negócio mercantil”, natural de
Barcelos; Tenente António Jordão Torres, 42 anos, mercador, nascido no Porto, casado;
Alferes Pedro de Almeida Rodrigues, 64 anos, braguense ; Alferes João Alvares Correia, 44
anos também de Braga, casado.
Quanto a seus cabedais, informam que “tem bastante para passar a vida sem
mendigar”, possuindo, segundo avaliação das testemunhas, por volta de 5 a 6 contos de réis
“livres”.
Não encontramos nenhuma referência nos documentos inquisitoriais sobre a atuação
deste Familiar cuja carta foi passada aos 29 de março de 1729. Quando da passagem por
Sergipe do falso Comissário Igareta, o Familiar Barros de Araújo já tinha quase dez anos de
feitura, e o seu silêncio perante os descalabros do falsário sugerem que o mesmo deve ter
evitado passar por S. Cristóvão, ou o Familiar-Lojista foi um dos que não desconfiaram do
irmão-leigo dominicano, ou ainda, talvez já tivesse se transferido para outra terra ou mesmo
falecido. Como infelizmente não tivemos acesso aos processos dos dois cristãos novos
presos no Rio S. Francisco em 1732-1733, não sabemos se este Familiar de Sergipe teve
alguma atuação naquelas detenções. Nossa impressão é que um bom número dos Familiares
do Brasil almejavam muito mais o prestígio do cargo, suas regalias e o status de ter sua
árvore genealógica considerada impecável pelo Santo Tribunal, pouco se envolvendo
depois de confirmados com as tarefas inerentes à perseguição de herejes e delinqüentes.
Sua nomeação coincide com uma das piores décadas da história de Sergipe, marcada sua
população pelos horrores, tiranias e prepotências de seu Capitão Mor, Francisco da costa
(1733/1741), sobre o qual existe pormenorizada documentação altamente incriminadora no
Arquivo Histórico Ultramariano de Lisboa70.
Uma terrível seca arruinou a Capitania por 4 anos seguidos, padecendo igualmente grande
escassez de mão de obra escrava. Como este primeiro familiar se incluía entre aqueles que
“vem de fora a morarem em São Cristóvão, com seus negócios, vendas e lógeas”71, com a
decadência do lugar e sua, péssima situação financeira, talvez tenha partido à busca de
melhores paragens, daí sua folha de serviços não ter ficado na história inquisitorial.
Domingos Dias Coelho, o segundo Familiar do Santo Ofício de Sergipe entrou com
seu requerimento aos 17 de dezembro de 1748, somente recebendo a patente aos 14 de
dezembro de 1764, portanto, 16 anos depois. Prazo mais longo que seu predecessor, mas
normal nos casos dos candidatos com família dispersa em diferentes localidades. Temos
casos de candidatos a Oficial da Inquisição cujas diligencias levaram até 23 anos de
demora.
Através de seu processo de habilitação, podemos reconstituir algumas datas e facetas
dá biografia de seu titular, assim como de sua parentela. A referência mais remota é o
casamento de sua avó-materna: aos 20 de junho de 1664, o Pe. Manuel Rois Caldeira
abençoou o matrimônio de Manuel Suzarte de Serqueira, natural de Santarém, no
Ribatejo, com Maria Andrade (Melo), natural da Cotinguiba. Casaram-se na Igreja de
Nossa Senhora de Guadalupe, sita no povoado da Estância, sufragânea da freguesia de
Santa Luzia, distante apenas duas léguas. Este Suzarte além de ostentar bom sobrenome era
Cavaleiro da Ordem de Cristo, importante distinção somente conferida a nobres, guerreiros
valorosos, todos comprovadamente cristãos-velhos72. Sua mulher certamente era filha de
um senhor de engenho, pois na Cotinguiba a família Andrade possuia ai importantes
propriedades canavieiras. Deste casamento, só temos conhecimento do nome de um filho,
Domingos Dias Coelho, pai do Familiar homônimo. Observe-se que não herdou nenhum

70
- AHU, Sergipe, antiga, Caixa 2, 6 de abril de 1733

71
- AHU, Sergipe, antiga Caixa 2, Representação do Juiz Ordinário Pedro da Silva Daltro, ao Rei,
solicitando autorização para ir resgatar escravos na Costa da Mina, de 12 de Julho de 1736.
72
- Já no século XIX, nos primeiros anos após a Independência, vários são os sergipanos a
solicitarem “a mercê do Hábito de Cristo”, todos alegando “ter bens suficientes para se tratar com
decência”, geralmente intitulando-se “senhores de engenho” e sendo “descendentes das famílias
mais distintas do país”. Outros alegam terem colaborado pecuniariamente ou com armas nas lutas
de 1822. Entre estes requerentes, arrolamos os seguintes nomes: Capitão José Trindade Prado,
Padre Antônio José de Oliveira, Pe. João Campos da Silveira, Hermenegildo José Telles de
Menezes, Antônio Leonardo da Silveira; Arquivo Nacional, IJJ9, 300.
dos sobrenomes dos pais : na época, as regras de nomeação eram diversas das de nossos
dias, apesar de ser muito comum repetirem os mesmos nomes e sobrenomes algumas
gerações depois, como é o caso de Manuel Suzarte de Siqueira, talvez irmão do Familiar,
posto que tem uma filha professa no Convento da Soledade da Bahia no ano de 1754 73.
Casou-se Domingos Dias Coelho (pai) aos 6 de abril de 1701, na mesma capela em
Estância: o celebrante foi o Vigário Antonio de Sousa Castelo Branco, tendo como
esposa outra representante da família Andrade, talvez sua prima, Maria de Siqueira
Andrade. Marido e mulher eram nascidos na vila de Santa Luzia, que por esta época
contava em seu termo 246 fogos e 1786 habitantes, dos quais provavelmente mais de 2/3
fossem negros e mestiços74. Já nesta época a família “Dias Coelho” devia ocupar lugar
proeminente na região, pois entre as testemunhas (padrinhos) deste consórcio constaram
dois alferes, Antonio Machado da Costa e Pedro Homem de Morais, além de Dona Maria
de Passos e Joana Andrade. Por ocasião das diligências para saber-se dos antepassados do
candidato a Familiar, informaram os moradores desta área que seus avós “eram lavradores
de mantimentos em Santa Luzia”. Entenda-se “lavrador” como possuidor de lavras,
sinônimo de proprietário rural. Contudo, Já em 1785 na “Lista das pessoas que plantam
mandioca para fabricarem farinha na Vila Real de Santa Luzia e seu termo”75, não consta
nenhum membro da família Suzarte Serqueira nem com o nome de Dias Coelho, o que nos
permite concluir que já nesta época estas famílias dedicavam-se exclusivamente à agro-
indústría açucareira na região do rio Cotinguiba, a área mais abastada da Capitania durante
os setecentos.
Após três anos de casamento nasce nosso futuro Familiar: na pia da mesma capela
onde seus pais se casaram, recebe o nome idêntico do progenitor. Seu batismo é celebrado
pelo Padre Feliciano da Cunha Filgueira, aos 10 de junho de 1704, tendo como
padrinhos Domingos Vieira de Meio76 e Ana Andrade, solteira, filha do Suzarte Cavaleiro

73
- Arquivo do Convento da Soledade, Catálogo das Recolhidas que entraram no Convento após
1739.
74
- Almeida; 1914, Doc. nº 8750. Através da interessante estatística “Mapa demonstrativo da
População da freguesia de Santa Luzia e Estância em 1825”, sabemos que ai existiam 2.109 brancos
e 10.885 pessoas de cor. Dos brancos, 97 eram considerados “ricos”, 239 “remediados” e 697
“pobres” (apenas a população masculina). Havia 87 negociantes, 1.279 lavradores “no número dos
lavradores se compreendem 26 proprietários de engenhos de fazer açúcar.” (Mott, 1977:3-9)
75
- APEB, Maço 188
76
- Este Domingos Vieira de Meio era rico proprietário da Estância, casado com Dona
Maria Carvalho da Costa: sua filha Isabel da Costa de Jesus professou no já citado Recolhimento da
de Cristo, portanto, sua tia paterna. Teve outro irmão, Antônio Dias Coelho, que seguirá
carreira eclesiástica, bem de acordo com os costumes da época, de cada família abastada ter
ao menos um membro sacerdote.
Nada sabemos sobre sua juventude. Nestes inícios dos setecentos, Sergipe viveu
tempos de relativa tranqüilidade social e política após a destruição de inúmeros quilombos
que assolovam os arredores das principais vilas. Certamente moravam na povoação de
Estância, que cada vez crescia mais, enquanto Santa Luzia, a sede da vila, estancava, tanto
que toda a representação oficial da vila morava ao pé da Igreja de N. S. de Guadalupe, na
Estância (Freyre, 1906:316). Domingos era meninote quando frustrou-se a tentativa dos
moradores de Estância em transferir para esta povoação a sede da vila de Santa Luzia: o
episódio não teve maiores conseqüências sociais. Como dizia D. Marcos Antonio de Souza,
“são doces os costumes de seus moradores”, ocupados no cultivo de mandioca e envio de
farinha para a Bahia, mais de 100 mil alqueires exportados anualmente. Uma vintena de
engenhos produzia por volta de 500 caixas de açúcar, exportados também para Salvador;
sendo a extração do ticum outra importante fonte de recursos para esta região meridional de
Sergipe (1944:23-25).
Em 25 de setembro de 1730 casa se Domingos Dias Coelho, então ostentando a
patente de Alferes,com Rosa Benta de Araújo : o enlace realiza-se na Capela de Nossa
Senhora da Luz, no engenho da Ribeira, propriedade do avô da noiva77. O celebrante é o
Padre Antonio Dias Coelho, irmão do noivo78. Faz-se necessário o recurso à dispensa
matrimonial pois os nubentes apresentavam parentesco de 42 grau por consanguinidade,
dispensa que é concedida pelo Deão da Sé da Bahia, mediante a costumeira contrapartida
de polpuda espórtula para “as obras de caridade”. Infelizmente não conseguimos localizar
no Arquivo da Cúria da Bahia tal processo. Entre as testemunhas do enlace duas patentes

Soledade em 1740. Portanto, a família Vieira de Meio e Suzarte Serqueira se entrelaçavam não
apenas na pia batismal, mas inclusive nos votos religiosos de suas filhas recolhidas na Bahia.
77
– Infelizmente não localizamos no Arquivo da Cúria da Bahia o Breve Pontifício autorizando a
celebração dos sacros oficios na capela de Nossa Senhora da Luz. Encontramos outrossim a Bula de
Autorização de Pio VII para o funcionamento da Capela do Engenho Unha de Gato, sito na
vizinhança do Engenho da Ribeira, de propriedade de Gonçalo Paes Azevedo e D. Antonia de
Moura Caldas, pais de Leandro de Almeida, Manuel Rolemberg e do homônimo Gonçalo Paes de
Azevedo, “todos vivendo à lei da nobreza:” Só os selos desta concessão custaram 20$000 réis.
(Arquivo da Cúria da Bahia, Breves e Oratórios).
78
– Em 1792 era vigário da matriz de Nossa Senhora do Socorro da Cotinguiba o Padre Antonio
Dias Coelho e Meio: seria irmão do Familiar Domingos Dias Coelho ou outro parente homônimo?
(ANTT, Ordem de Cristo, Bahia, Maço 1)
pertencentes a importantes cepas nordestinas: O Coronel Pedro da Silva Daltro, cuja família
terá destacada atuação na política sergipana na época da Independência, e o Alferes José
Ribeiro de Oliveira79.
Quem era a esposa do futuro Familar? As diligências probatórias de sua “pureza de
sangue” foram das mais, longas da centena de processos que manuseamos. Constou de 170
folhas e as custas atingiram 42$086 réis ! Rosa Benta de Araujo era filha do Coronel
Francisco de Araujo da Silva e de Dona Mariana Vieira de Meio, todos naturais da
Cotinguiba. Seus avós paternos foram o Alferes Luis da Silva, da Bahia, e Ana da Fonseca,
da Cotinguiba. Da mesma região sergipana eram seus dois avós maternos: Baltasar Vieira
de Meio e Lourença de Passos, senhores do Engenho da Ribeira. Quando foi feita a
inquirição para testar a limpeza do sangue de Benta, houve pequeno senão: seu avô, Luiz da
Silva, natural da Patatiba, na freguesia de N. Senhora da Purificação, a mesma, terra dos
Calmon e de Gregório de Matos, era infamado de descender de um homem da Índia,
portanto, de um “canarim”. Esta mácula chegou a ser usada por um tal Coronel Francisco,
numa contenda que teve com o pai de Benta. Nesta sociedade, o ser branco puro, cristão-
velho, implicava em regalias e privilégios, tanto que o arguto D. Marcos noticiava que os
moradores da cidade de Sergipe “pretendem ser muito distintos pela nobreza de seus
nascimentos. E verdade que ali habitam muitas famílias puras e podem numerar-se mais de
1500 brancos naturais da Europa e descendentes de europeus, seus primeiros povoadores.
Estes são os que servem nos cargos da câmara, nos postos das ordenanças, que contemplam
com os mais enobrecidos empregos e portanto com isso passam os seus dias muito
satisfeitos: (1944:16) Assim, acusar alguém e provar que tinha sangue “canarim” poderia
prejudicar irremediavelmente um concorrente numa disputa por um posto público ou
“enobrecido emprego”. Outro informante, Francisco Marques de Sousa, 83 anos, morador
no Socorro da Cotinguiba, quando inquirido sobre os antecedentes do candidato a Familiar,
disse que a avó de Benta, sua esposa, “tinha casta de Caramuru, cuja fama nascera de um
sussurro sem nome de autor”. Ser descendente de canarim ou de caramuru não era
obstáculo fundamental para quem pretendesse ser oficial da Inquisição, pois já em 1701, o
Cônego João Calmon recebia a bendita venera de Comissário apesar de também ser
descendente dos indígenas “Caramuru” (Mott, 1986). Justificando por que ter indulgência
com os descendentes dos ameríndios e não com os de negróides, dizia o Comissário Frei

79
– Em 1831 será internada no Convento da Soledade D. Josefa Vieira de Meio, filha do Coronel
José Agostinho da Silva Daltro, sobrinha do Coronel Pedro da Silva Daltro. Tinha apenas 13 anos
incompletos. “Arquivo do Convento da Soledade, Catálogo das Recolhidas.
Antônio Sampaio : “os índios são gentios do cabelo corredio... a qual casta tem sido
tolerada pelo Exímio Tribunal.”80
Malgrado esses sussurros, o certo é que a família de Benta vivia limpamente e com
abastança: seu pai era Provedor e Juiz da Santa Casa de Misericórdia de São Cristóvão e
possuidor de três engenhos: Calogi, Penha e outro na Patatiba.
Quando candidatou-se familiar, em 1748, Domingos Coelho já ostentava o título de
Coronel, morava na Cotinguiba e possuia dois engenhos: num produzia anualmente 366
arrobas de açúcar branco e 420 arrobas de mascavado ; no outro, 554 arrobas e 461
respectivamente. (Caldas, 1757:436)
Quando são feitas as diligências para ser Familiar, as 4 testemunhas “todos cristãos-
velhos e fidedignos”, com idades entre 53-65 anos., confirmam que o Coronel Domingos “é
homem muito exemplar, de boa vida e costumes, se trata à lei da nobreza com toda
grandeza e asseio, tem engenho de fazer açúcar com 50 escravos, que tudo poderá valer
mais de 30:000$000 réis para cima.”81 Situação deveras superior à do primeiro familiar de
Sergipe, o lusitano José de Barros de Araújo, cujo cabedal permitia-lhe apenas “passar a
vida sem mendigar”. Um dos informantes dá ainda outro detalhe sobre o passado do
pretendente: “foi tido e havido por bom estudante”. Talvez tenha cursado latim e algo de
filosofia com seu irmão padre no Colégio dos Inacianos da Bahia, sendo que na mesma
Capital já viviam várias parentas suas nos claustros do Convento da Soledade, conforme
podemos comprovar através dos livros de registro de entrada do referido Recolhimento.
Aproveitamos o ensejo para estimular a outros pesquisadores que investiguem mais
sobre a vida deste ilustre sergipano e de seu destacado clã, em cuja descendência incluem-

80
– ANTT: Habilitações do Santo Oficio, Proc. Padre Alexandre José Xavier de Andrade, 1787,
M.10-114

81
– Outro descendente deste clã, o Tenente Coronel Domingos Dias Coelho e Meio, citado entre os
proprietários de “apicuns” (marinhas) em 1817 (Arquivo Nacional, Cx. 191, pac. 1, Doc. 8), e
senhor dos Engenhos S. Pedro, Areias, Lagoa Preta e Itaporanga (APEB, Livro de Matricula dos
Engenhos da Capitania da Bahia, de 30-7-1807), em 1827 fez polpuda doação ao Vigário Miguel
Teixeira de Araujo para a construção do hospital N. Sª da Conceição na povoação de Estância
(Arquivo Nacional, IJJ9 - 300). Um outro membro da mesma parentela, Francisco Dias Coelho e
Mello, em 1845 assina um requerimento solicitando autorização para ir à França a continuar seus
estudos de Medicina, (APES, pac 594). Já em 1793 formava-se em Direito pela Universidade de
Coimbra Antonio Denis Ribeiro de Siqueira e Melo, igualmente membro da mesma família.
(Estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra, 1943).
se o Barão de Itaporanga e o Barão de Estância, pois revela ser a família Dias Coelho Mello
das mais sobranceiras na história sergipana. Ficam estas pistas e desiderato que outros
realizem futuras investigações82.
Localizamos duas citações contraditórias quanto à pessoa de Domingos Dias Coelho,
numa aparecendo como vilão, noutra como quase-santo. Em 1755, quando suas diligências
estavam tramitando pelas salas da Casa do Rocio, o Capitão Manuel da Cruz Silva, escreve
uma carta ao Soberano denunciando várias prepotências ocorridas na Capitania, dizendo-se
obrigado a prender “a um Domingos Dias Coelho, homem cigano por entrar na fazenda do
Sargento Mor pago das Ordenanças e levá-la à escada, arrasando-lhe os seus mantimentos”.
Porque teria sido chamado o Coronel de “cigano”? Pelo ser casado com uma suposta
descendente de canarim e serem os ciganos “raça de gente vagabunda de origem indiana”,
conforme ensina o Dicionário Morais? Ou terá sido o insulto motivado pela sua conduta de
quem “engana com arte, sutileza e bons modos”? O certo é que o mesmo Capitão informa
que Domingos Dias Coelho fora eleito depois para o cargo de Juiz Ordinário de S.
Cristóvão, e certa feita, quando da fuga do fascinoroso pardo João Correia Cabral, que fora
se homiziar no Covento de S. Francisco, por instigação do Guardião dos franciscanos,
Domingos Dias Coelho e o Vigário Geral resolveram soltar o perseguido do referido
Capitão Mor (Freyre, 1977:209).
É difícil acreditar nas acusações contra o Coronel-Familiar, pois se fosse tão arbitrário
como é acusado, não teria sido escolhido para Juiz de Paz, nem teria o apoio de dois
sacerdotes graves na soltura do dito prisioneiro. Em contrapartida, sobre o período do
governo de Manuel da Cruz Silva, o acusante do Familar, Felisbelo Freyre faz o seguinte
comentário: “Os espíritos viviam em um choque de intrigas. O bem geral era
completamente esquecido pelos representantes do poder, cuja atenção ficava presa às
dissensões provocadas por questões pessoais. Manuel da Cruz contribuiu para torná-los
mais efervecentes.” (1977:207-208) Pelo visto, o velhaco da história era mesmo o acusante
e não o delato “cigano”.
A outra referência histórica ao nosso biografado coloca-o no altar das virtudes, e é
mencionado por Frei Antonio de Santa Maria. Jaboatão, no seu célebre Orbe Seráfico

82
– Em 1799 dá entrada na Secretaria de Estado o requerimento de Domingos Dias Coelho
solicitando a confirmação da patente de Capitão, carta que lhe é outorgada ao 10 de dezembro de
1799 pelo Governador D. Fernando José de Portugal, nomeando-o Capitão do Terço das
Ordenanças e de Entradas e Assaltos da Vila de Santa Luzia, Certamente este Domingos Dias
Coelho era filho do Familiar homônimo, pois em 1802, quando é confirmada a patente, o espião da
Inquisição já teria quase cem anos. Cf. Almeida, 1914 : documentos nº 24.139-24.142.
(1761). O relato do franciscano revela uma faceta do sentimento religioso dominante
naquela época onde os milagres ainda faziam parte do dia a dia dos cristãos devotos.
Redundante seria chamar a atenção do leitor para a comprometida solidariedade da corte
celeste com os interesses da elite dominante, inclusive com a aristocracia sergipana. Apesar
de longa, a citação vale ser reproduzida in totum:

“Não deixaremos de repetir um milagre do nosso Santo Antonio também em beneficio


dos seus devotos. Fugiu ao Coronel Domingos Dias Coelho, morador nos distritos desta
Cidade de Sergipe: del Rey um preto, escravo seu, levando em sua companhia duas pretas,
escravas também de outros senhores. Com estas se foi arranchar no centro dos sertões da
Jacoca, aonde viveu alguns anos fora de todo o comércio de outra gente. Ao princípio com
o que davam o campo, os matos e os rios do Vazabarris, e ao depois, com roças e lavouras
que plantava, vestindo-se ele e as concubinas, com os filhos que delas ali teve, de peles de
veados que apanhava em fojos e à flecha, e os curtia.
Valeu-se o senhor depois de outras diligências sem efeito, de Santo Antônio. Eis que
aparece ao negro um frade, lá nesse recôndido em que se achava, e com voz repreensiva
lhe pergunta: Negro, que fazes aqui ? Respondeu ele, que estava ali por não se atrever com
o serviço do Senhor, que o não deixava descansar. Seja assim ou não, disse o frade, vai-te
embora daqui, e enquanto o negro se não pos a caminho, o frade o não largou, pondo-se
sempre adiante, e repetindo: Negro, vai-te daqui. Veio enfim o negro, e o frade adiante
dele, até a casa do homem de quem era uma das pretas, que entregou. E detendo-se ali
algum tempo, foi aviso ao Capitão do Campo, que o prendeu e entregou a seu senhor,
como também a outra negra, a quem pertencia, fazendo Santo Antônio esse beneficio ao
seu devoto, e sendo também a causa de se livrarem as almas destes miseráveis escravos
das contínuas culpas em que caiam.”(§546)

Como vemos, o glorioso Santo Antonio, além de eficaz casamenteiro, Capitão de


Infantaria do Rio de Janeiro (1710), também agia como poderoso Capitão-do-Mato,
tangendo escravos fugidos para as Senzalas de seus senhores devotos.
Após 16 anos de espera, aos 14 de fevereiro de 1764, tendo portanto 60 anos de
batisado, recebeu o Coronel Domingos Dias Coelho sua venera de Familia do Santo Oficio,
tornando-se o primeiro e único sergipano nato a merecer tamanha honraria. Provavelmente
deve ter feito seu juramento no altar da sacristia da Sé de Salvador, conforme era o costume
da época. Sua atuação como Familiar foi bastante limitada; posto ser em poucas as
diligências inquisitoriais nas terras sergipanas. Ao menos duas vezes encontramo-lo citado
nos documentos do Tribunal do Rocio, a primeira vez, oito anos após sua comenda (1772.)
no Caderno do Promotor nº 129 há uma denúncia enviada pelo Familiar Domingos de
que “no Mocambo, em Japaratuba, João Nunes Barros está casado com duas mulheres: a
primeira é Francisca de Brito e a segunda, Quitéria da Costa.” Não havendo na ocasião
Comissário em Sergipe, enviou sua denúncia diretamente a Lisboa, certamente para mostrar
seu zelo pela manutenção da Santa Fé e dos Bons Costumes em sua terra. Os Inquisidores
não levaram avante a denúncia, ficando os bígamos impunes. Sua segunda atuação como
Familiar deu-se 13 anos após ter recebido a venera, em 1777: foi encarregado pelo então
Comissário Francisco de Almeida Branco de realizar a prisão de outro bígamo, Antonio
Pereira Leitão, morador em Santa Luzia cujo processo veremos mais adiante. Cumpriu o
ordenado: prendeu o delinqüente, mas segundo o mesmo Comissário, recusou-se a
transportar o réu para a Bahia; certamente alegando ter idade avançada demais, 73 anos,
para uma viagem de quase uma semana a cavalo.
Nesta mesma ocasião, o Comissário Branco dá-nos importante informação ; “o único
Familiar de Sergipe é Domingos Dias Coelho”, revelando que o primeiro Familiar de São
Cristóvão ou morrera ou se mudara, e que malgrado a importância crescente das vilas
sergipanas, nem por isto a Capitania se abarrotou de espiões inquisitoriais. A presença
estratégica de um Familiar na Cotinguiba e um Comissário em Santa Luzia policiavam a
contento as terras situadas, entre o Rio Real e o de São Francisco.
Tramitava nos Estaus do Santo Oficio o processo do Coronel Domingos Dias Coelho
quando em 1753 dá entrada o requerimento do Padre Francisco de Almeida Branco,
solicitando a graça de ser Comissário. Ele era português do bispado de Miranda, nós Tráz-
os-Montes, limites com Espanha, do lugarejo de Nossa Senhora das Neves. Fazia 25 anos
que fixara residência em Sergipe, sendo o vigário colocado e da vara de Santa Luzia. Seu
pai, André Almeida Pinto, era de Braga e sua mãe, Isabel Fernandes de Miranda. Seu tio
materno, Tomás Teixeira Branco, desde 1735 era Familiar do Santo Oficio, o que
costumava facilitar bastante as diligências processuais. Era irmão do Capitão Mor
Domingos Almeida Branco, abastado proprietário local, dono do Engenho dos Poços, cuja
filha, portanto sobrinha do Comissário, D. Francisca Teresa de Jesus, teve a desventura de
cair no “golpe do viúvo”, casando-se com um bígamo português, como veremos mais
adiante.
As diligências do Padre Branco surpreendentemente arrastaram-se por 22 anos, umas
das mais longas de que temos noticia “talvez prejudicadas pelo terremoto de lisboa e
consequente desorganização da vida portuguesa, pois não houve nenhuma murmuração
contra a limpeza de sangue em sua familia que justificasse a delonga do processo. A
demora excessiva entre o pedido e a resposta dos Inquisidores podia prejudicar gravemente
a reputação dos candidatos dando lugar a murmuração de que não fossem “limpos” tanto
quanto supunha a opinião pública.
Em Sergipe, o sumário realizou-se no mês de maio de 1773, em casa do Padre Manuel
Franco da Cruz, vigário geral, tendo como escrivão o Pe. Antonio Pires. Cinco foram as
testemunhas; o Pe. Antonio Martins Ferreira, 60 anos, e o Padre. João Correia Pimentel, 63,
confirmaram que o habilitando “vive de suas ordens e bens patrimoniais, tratando-se com
todo respeito e decência.” A terceira testemunha, o Capitão de Mar e Guerra José Rois
Dantas, 68 anos, casado (possuidor de excelente caligrafia, o que sugere ter boa
escolaridade), diz que o Padre Branco possuía de 1:000$000 a 2:000$000 de renda anual83.
Comparado com os Comissários da Bahia - vários deles possuindo carruagem com lacaios,
um deles inclusive dono de 50 propriedades dentro de Salvador, nosso candidato de Sergipe
não passava de um “pé de chinelo”. A quarta testemunha nesta diligência é o Sargento Mor
Antonio Fernandes Beiris, 64 anos, casado: este senhor aparece na “Lista das pessoas que
plantam mandioca para fabricarem farinhas na Vila Real de Santa Luzia” nos anos de 1785-
1786, sendo o dono do sítio “Precioso”, no qual 8 escravos labutavam 8 mil covas de
mandioca, conforme determinação legal. Tanto este, quanto o licenciado João Dias Lara, 39
anos, solteiro, eram naturais da mesma pátria que o Pe. Branco, não tendo acrescentado
nada sobre a vida e costumes do candidato.
No seu requerimento, o Vigário pretendente a Comissário dá importante informação
que “já servia o Santo Oficio nas comissões dos Comissários da Bahia”, experiência que
deve ter pesado bastante favoravelmente na outorga de sua patente, a 12 de agosto de 1775.
De fato, o Pe. Branco tivera atuação num processo de bigamia em Santa Luzia (1754),
revelando aptidão para servir “com segredo e inteireza” nos negócios inquisitoriais. Mais
adiante voltaremos à atuação deste Comissário.84

83
- Renda bastante alta e oriunda certamente de negócios agro-industriais, pois nesta mesma época,
a renda anual da freguesia de Nossa Senhora do Socorro da Cotinguiba constante na folha de
pagamentos da Arquidiocese era de 15$000, acrescida de mais 6$000 proveniente de adjutório da
Folha do Eclesiástico. Só para termos um, ponto de comparação, cite-se que o orçamento para a
reconstrução da matriz do Socorro, incluindo Capela Mor, Torre e Sacristia, ficou em 4:700$000,
(ANTT, Ordem de Cristo, Bahia, Maço 1).
84
- Bem antes do Padre Francisco de Almeida Branco requerer o Comissariato, em 1724 outro
sacerdote, o Pe. João de Oliveira Guimarães, natural de Itapicuru obtinha sua patente de
Comissário, apesar de ter atuado com exclusividade na cidade da Bahia. Esse sacerdote sertanejo
nascera em 1692, filho de Bento Sousa de Guimarães, que por sua vez já era Familiar do Santo
Antes de encerrar esta parte consagrada aos Oficiais da Inquisição em Sergipe,
mereceria referirmos ao processo de um vigário da Cotinguiba que não conseguiu
aprovação em sua candidatura à Comissaria. Trata-se do muito polêmico Padre Antonio
Alves de Miranda Varejão, 40 anos, natural da freguesia pernambucana de Santa Luzia da
Alagoa do Norte, cujas arrogâncias e estrepulias estão fartamente documentadas nos
principais arquivos do Brasil e de Portugal85. Sempre alegou inocência face às acusações de
que era alvo, inclusive de um escandaloso adultério, mas seu próprio requerimento
encontrado na Mesa de Consciência e Ordens solicitando a legitimação de uma filha
natural, obriga-nos a dar mais crédito a seus opositores do que à sua inocência. Eis um
resumo das informações constantes em seu processo de habilitação advindas da denúncia
dos moradores da Cotinguiba, seus fregueses: “Ludibriando as Constituições, converteu a
igreja no mais escandaloso teatro de atrozes abominações pelas suas desordenadas paixões
e libidinosos apetites, ódio e vingança, revelando o sigilo da confissão, praticando
solicitações (às confitentes no confissionário), organizando homicídios voluntários. Para se
fazer mais temido, o Padre Varejão anda sempre de pistola e faca de ponta; inclusive
quando celebra missa traz as armas, sendo certa feita retiradas pelo Capitão Feliciano
Cardoso quando foi celebrar na capela de Nossa Senhora da Luz, da Ribeira. Seu preto
acompanhante traz bacamarte:” Outra vez, numa cerimônia religiosa, dentro da Igreja da
Cotinguiba, deu com o hissope de água benta na cabeça de Antonio Fonseca Dória, e foi
preciso o concurso de muita gente para evitar que não pelejassem fora do templo. Outra
vez, perseguiu vestido só de ceroulas e camisa, a um sapateiro pelo atrasar na entrega de
um par de botas. Mais ainda na capela do Bom Jesus, saiu do confissionário gritando que
“cuidava achar gente honrada e de vergonha, e só encontrava mulheres prostitutas e homens
infames: Era infamado de ter cometido um sem número de imoralidades: vivia pública e

Oficio, tendo como progenitora Isabel de Souza Oliveira, de Itapicuru, terra também de sua avó
materna. Bacharel em Coimbra, seus pais eram bastante abastados, “de muita autoridade e
estimação: Foi o primeiro oficial da Inquisição a ter nascido no então território sergipano. (ANTT,
Habilitações do Santo Oficio, “João, M. 55-1063). Após concluir esta monografia, voltando à
Torre do Tombo, encontrei outro morador de Sergipe habilitado como Familiar do Santo Oficio:
João de Souza português de São Pedrode Gahide, morador em Socorro da Cotinguiba, lavrador de
cana. Recebeu a venera em 1773. Não localizamos nenhum documento de sua atuação como
Familiar. ANTT, Hab. M. 155-1245. Agradeço à historiadora Daniela B. Colainho a indicação desta
referência.
85
– ANTT, ordem de Cristo, Bahia, Maço 1.
AHU, Alagoas; antiga Caixa 2, 1805.
AN, Sergipe, Cx. 267, Pac. 1.
escandalosamente amancebado com uma tal de Maximiana, que a roubou de seu marido, o
alferes José Luiz d'Àfonseca; tentou seduzir a viúva honesta Ana Josefa saltando por uma
janela de sua casa para violentá-la. “O confissionário era o teatro ainda mais escandaloso
das práticas e colóquios amorosos, qual lobo estragador pelo infernal precipício das
solicitações...” Alguns de seus casos eram do conhecimento público: levara a mulher de um
artífice para a capela de Nossa Senhora da Boa Morte onde satisfez sua sacrílega
concupiscência; na igreja do Senhor Bom Jesus levou Maria da Penha, casada, que ia ser
madrinha, para dentro da sacristia para dar o nome dos pais da criança e a seduziu; tinha
costume de mandar às suas penitentes que fossem pagar as conhecenças da confissão
quaresmal em sua casa, à noite, a fim de seduzi-las, chegando ao descalabro de excomungar
publicamente a D. Maria de Morais por não consentir em seus pérfidos desejos. Porém, a
mais desgraçada de todas suas vítimas foi Luiza Antonia, grávida, a quem os escravos do
Padre Varejão, sob suas ordens, deram tamanha surra com sacos de areia, que pouco tempo
depois veio a abortar e falecer, sendo portanto o indigno clérigo responsável por duplo
assassinato.

Os pecados de simonia do padre pernambucano eram tão graves quanto sua


intemperança no 6º Mandamento: inventou um regimento multando em 2$000 a todo
batisado e enterro realizado fora da matriz; para todo defunto que não deixou testamento,
exigia que seus parentes pagassem 10$000 Para a celebração de 9 lições fúnebres,
chegando ele próprio a desenterrar o cadáver de José Alves já em avançado estado de
putrefação, para ganhar os 10 mil réis da espórtula de sua missa de corpo presente, “cujo
incenso foram os vapores do cadáver86.” Na capela do Engenho da penha e na Igreja de
Jesus Maria José, fez ofícios solenes cobrando 16$000 ! Exigia $080 de conhecença pela
confissão quaresmal, indo para o confissionário com tinta e o rol de desobriga,
excomungando os que não traziam aquela quantia. “Mais parecêm os sacerdotes
mercadores e negociantes, do que ministros de Deus e curas de almas,” dizia o Autor de O
Peregrino da América em 1731, referindo-se ao clero do Brasil: Quanto aos religiosos, a
opinião do peregrino era igualmente negativa; “Alguns missionários costumam ir às Minas
e sertões mais levados pelos interesses do ouro e cabedais que do zelo de servir a Deus e ao
bem das almas...” (Pereira, 1938:341-342) Este texto parece ter sido encomendado para
descrever o materialismo do vigário da Cotinguiba.

86
- Para o leitor aquilatar o valor dessas cerimônias, saiba que em 1822, comprava-se um boi em
Sergipe por 10$000 (AN, IJJ9 - 299), sendo a espórtula de uma missa diária ou dominical em 1845
de 1$000, sendo missa de natal, 6$000 e os responsos de defunto, 4$000 (APES, Pac. 295, Oficio
do Provedor da Santa Casa de Misericórdia ao Presidente Amaral).
Alguns detalhes mais da conduta do Pe. Varejão desmascaram o quanto o clero luso-
brasileiro era prepotente e relapso em suas obrigações religiosas: durante os dois anos que
residiu na freguesia de Nossa Senhora do Socorro, testemunham seus paroquianos que o
Vigário não se confessou sequer uma vez. Também não rezava os ofícios do Breviário e
celebrava a missa pulando as partes, para terminar mais rápido. Certa vez na capela do Bom
Jesus, em plena missa dominical, deu um murro no altar gritando para os músicos: “calem a
boca, diabos !” e incomodado noutra ocasião com o choro de um pequeno sergipano, virou-
se também em plena missa, para os fiéis gritando que “essa vaca dê de mamar a seu bezerro
!” Muitas vezes negou ir confessar os moribundos, só os atendendo depois de mortos, para
cobrar-lhes a encomendação. Seu grande amor, além das amásias, era uma cadela a quem
dava papas na própria sacristia, limpando suas sacrílegas mãos nas próprias toalhas do
lavatório, para grande escândalo dos fiéis e desrespeito das alfaias sagradas.
Astuto, o Pe. Antonio Alves de Miranda Varejão não dormia de touca e contra atacou,
acusando através de ofício enviado para a Mesa de Consciência e Ordens e ao Arcebispado,
seu principal opositor, o Padre Antonio Dias Coelho e Meio, irmão do nosso já conhecido
Familiar Domingos Dias Coelho e primo do Vigário Geral de Sergipe, Padre Domingos
Vieira de Melo, por sua vez, primos dos Ludovice e de Dionísio Rois Dantas,
representantes dos principais clãs da Cotinguiba. Varejão acusa o Pe. Coelho de
desobedecer ao Concilio de Trento morando em seu engenho S. Pedro - segundo ele orçado
em 40 contos de réis, feito com dinheiro retirado da Igreja, isto há 16 anos. Que construiu
um novo engenho também às custas das esmolas que tirava de sua paróquia. Que seu
opositor fazia olho grosso para os amancebados, muitos passando até 8 anos sem se
ajoelharem no confissionário, desobedecendo portanto gravemente às Constituições do
Arcebispado. Que o Pe. Coelho não zelava em nada aos interesses da religião, tendo
negociado a igreja de Santo Amaro das Grotas com o coadjutor da mesma por 200$000 e
que de manhã cedinho ia todos os dias para seu canavial supervisionar sua escravaria,
voltando só à noite para a vila. Que também seu opositor vivia amancebado com uma sua
escrava, da qual teve um filho, Daniel, e que certa feita, por causa de uma pancadaria
ocorrida entre o Pe. Coelho e duas de suas amantes, mandou o sacerdote açoitar de noite
sua preta, amarrando-lhe os quatro membros em cima de um carro de boi, o que foi motivo
de grande murmuração na freguesia87.

87
– Açoitar os escravos à noite, ou em dias santos, sobretudo às 5ªs e 6ªs feiras Santas era
considerado requinte de crueldade e desrespeito à Paixão de Cristo. Além desta acusação contra o
Pe. Coelho, também na Bahia o senhor da Casa da Torre. Garcia Dávila Pereira de Aragão é
denunciado junto ao Santo Ofício por espancar seus cativos à noite e na semana santa (Mott, 1984).
Aí ficam os dois registros: das crueldades, indecências e simonias tanto do Pe. Varejão
quanto do Pe. Coelho. Muito provavelmente os dois sacerdotes tinham culpa no cartório,
pois o clero no Brasil nunca destacou-se com muito poucas excessões, pela virtude e zelo
religioso88. São numerosos os exemplos de padres imorais, solicitantes, envolvidos em
assassinatos, tiranias, politicagens. Apenas para concluir este capítulo, citamos alguns
episódios que confirmam tal realidade em terras sergipanas : em fins dos setecentos, o
Arcebispo da Bahia, D. Frei Antonio Correia informava à Mesa de Consciência e Ordens
que um dos vigários de Sergipe, o Pe. Luiz Seabra Vanicelli antes de vir para o Brasil
“estivera preso no Limoeiro, em Lisboa, por pertencer a uma quadrilha de ladrões, donde
fugiu para a Itália e de lá conseguiu colocação para uma igreja em Sergipe89.” Imagine só:
de ladrão perigoso e enturmado, para tornar-se cura de almas! Em 1805, o Sargento Mor
das Ordenanças de Santa Luzia oficiava ao Governador da Bahia referindo-se a diversas
irreligiosidades praticadas pelo vigário Jerónimo da Costa que mandou assassinar a várias
pessoas90. Em 1834, o próprio Presidente da Província de Sergipe, José Joaquim Germano
Moraes Navarro oficiava ao Ministério da Guerra dando parte contra o vigário da vila de
Própria, Padre Antonio José da Silva Coelho, “homem turbulento, machiavélico e
artificioso... e não podendo continuar nesta província sem eminente perigo da segurança e
tranqüilidade geral e individual, não havendo juiz de paz que se atreva a formar-lhe culpa
ou por ser criatura sua ou por temerem um funesto resultado deste monstro carregado de

88
– Execessões houve, é claro, de religiosos penitentes, humildes e verdadeiramente caridosos. Em
Sergipe, entre os Franciscanos, diz o Cronista da Ordem, Frei Jaboatão, que para o século, XVII
“não deixaram os contemporâneos notícia de religiosos de virtude...” Para o século XVIII, o
pregador Fr. Dâmaso de Jesus, famoso por seu amor à pobreza e ao espírito missionário (+1729)
juntamente com Frei João da Madre de Deus (+1748) foram os frades menores de maior virtude que
viveram nas celas do convento de S. Cristóvão: este último, devotíssimo da Imaculada Conceição e
dotado de prestigioso dom de clarividência e profecia. Natural também de Sergipe foi outro
franciscano, Irmão Inácio da Rocha, que depois de viúvo, recebeu na Bahia o hábito de donato
(1720), cujo nome encontra-se incluído entre os mais virtuosos Brasileiros Heróis da Fé
(Altenfelder Silva, 1928:183). Devotíssimo da Sagrada Eucaristia, passava as noites nos adros das
igrejas ou onde o acolhiam, tendo previsto com precisão o dia de sua morte. Teve de ser enterrado
de madrugada para evitar o afluxo da multidão, desejosa de arrancar pedacinhos de seu burel e
mesmo de seu corpo, pois os médicos enviados pelo Arcebispo encontraram “seu corpo flexível, em
todas as suas partes, movendo-se e dando estalos os dedos dos pés e mãos,” na época, sintoma de
santidade. (Frei Jaboatão, 1761:129/290).
89
– ANTT, Ordem, de Cristo, Bahia, Maço 2.
90
– APEB, Maço 205.
crimes, um verdadeiro antropófago sempre sedento de sangue e carnagem91”. Na freguesia
de Simão Dias, são os moradores que protestam contra o Vigário Antonio da Costa
Andrade : “presumido de valentão, não há freguês que não tenha sido por ele insultado,
tanto dentro como fora da igreja, entregue e dado em demasia ao vinho, poucos são os dias
que ele não se apresenta com os sentidos perturbados e que seus paroquianos não
presenciem este espetáculo de imoralidade: convive de noite pelas ruas com batuques e
danças e recusou-se a fazer as proclamas de uma nubente dizendo publicamente que a noiva
era de sua “pertenção92”.
Este florilégio clerical revela bem o tom e o estilo de vida de uma boa parcela de
sacerdotes do interior do Brasil, não só decadentes os padres seculares, mas também os
religiosos, pois como já vimos, desde os primórdios da colonização de Sergipe que os
Carmelitas são acusados de comportamentos indecentes e inconvenientes ao estado de
perfeição que juraram cumprir através dos votos de pobreza, castidade e obediência. Já no
século XIX, a situação de imoralidade entre os frades continuava a ponto de tornar-se
ameaça à tranquilidade pública: o Delegado de Laranjeiras oficiava ao Presidente da
Província denunciando “o mau comportamento de Frei Agostinho do Espírito Santo, o qual
vagando por esta vila, tem cometido os maiores desatinos e imoralidades, forçado pela
bebida, acometendo e entrando forçosamente pelas casas de pacíficos cidadãos, quebrando-
lhes todos os seus móveis, proferindo palavras obcenas e impróprias, se apresentando nu
pelas ruas, sem vestuário algum, sendo recolhido no quartel da vila diversas vezes e depois
de solto continua os mesmos desatinos93,” Se o mau exemplo vinha abundante dos próprios
discípulos de Cristo, o que esperar desta população mestiça, grande parte recém-sarda das
matas seja do Brasil, seja da África, criada na violência, no meio de tanta irreligiosidade e
“desatinos” ?
Deixemos estes abomináveis episódios da Igreja em Sergipe, para voltar ao processo

91
- AN, IJ1, 907
92
– APES, Pac. 847, de 17-1-1847.
93
- APES, Pac. 210. A situação de insubordinação e indiciplina dos religiosos de Sergipe chegou a
tal ponto, que o próprio Provincial dos Carmelitas de S. Cristóvão requeria ao Governador da
Capitania “a fim de ser preso por força militar o Padre Frei José da Pureza, residente na Missão de
Japaratuba, e levá-lo à Bahia por ser revoltoso e desobediente.” Temendo os ultrajes e vinganças do
religioso insubmisso, pede proteção policial, alegando o Prior não haver religiosos no seu Convento
que o defendam. (APEB, Maço 229). Certamente a desobediência do Frei Pureza devia ser
motivada pelo seu interesse em desfrutar das 17 fazendas de gado e muita escravatura que possuíam
os carmelitas na região ao Baixo S. Francisco. (E. C. Almeida, 1914, 6 de agosto de 1800, doc. nº
20.795).
de Pe. Varejão. Com tantas acusações de crimes tão hediondos, a Mesa do Santo Ofício
dispunha de péssima opinião sobre a conduta do habilitando: “Este clérigo tendo fugido de
seu bispado quando a justiça o perseguia, tem feito os requerimentos mais extravagantes
que se podem lembrar, fingindo-se inocente cordeiro quando nos Autos parecia um lobo e
monstro dos maiores que tem-se visto, autor de delitosatrocrssimos. E acusado de quase
todos os crimes que podem manchar a humanidade ou contra a sociedade em que vive.”
Esta avaliação não é nossa: são os próprios sacerdotes da Mesa de Habilitação que assim
avaliaram os costumes do Vigário do Socorro da Cotinguiba.
Desesperançoso de conseguir a tão almejada Comissaria, o Pe. Varejão manda outro
oficio a Inquisição alegando que na falta dos documentos comprobatórios do casamento de
seus avós, retirava sua candidatura, e como tinha feito depósito de 38$400 réis para
financiar as diligências costumeiras, requeria a devolução de 14$705 que ainda não tinham
sido gastos. Sua estratégia fora bem planejada, pois o vexame da reprovação de sua
candidatura seria muito mais desastroso para sua já maculada reputação do que a
desistência antes do final das diligências. Aí termina seu processo.
Podemos conjecturar que Sergipe lucrou muitíssimo com o desfecho negativo deste
processo, pois se como simples vigário o Pe. Varejão usava e abusava do seu poder e
imunidade clerical, se ungido com a comissaria, ninguém conseguiria controlar as tiranias
deste indigno discípulo do Mestre do Divino Amor94.
A análise do aparelho inquisitorial instalado em Sergipe, com nomeação de dois
Familiar s e um Comissário fez-nos chegar até o século XIX, quando dos fantásticos
episódios envolvendo a frustrada candidatura de Varejão ao comissariato. E chegado o
momento, após esta longa digressão, de retomarmos o fio da meada das ocorrências
Inquisitoriais passadas em território sergipano. O último episódio relatado foi o processo
rocambolesco do falso Comissário, o equatoriano Irmão Igareta, O.P., preso em 1740.
Esta prisão certamente deve ter chegado ao conhecimento de milhares de sergipanos,

94
– Em 1797, pouco faltou para que Sergipe fosse novamente premiado com outro infame sacerdote
da laia do Pe. Varejão. Trata-se do Pe. Antonio Furtado Barreto, já aprovado para vigário da mesma
paróquia do Socorro da Cotinguiba, quando o Arcebispo veta sua confirmação, sob o pretexto de
que estivera alguns dias preso por ter dado bofetadas num donato do Hospício da Palma. Suas
culpas incluíam “demasia de vinho, vício escandaloso em qualquer eclesiástico, muito mais num
pároco, e também ter entrada diurna e noturna em casa de uma viúva na freguesia de S. Pedro.”
(ANTT, Ordem de Cristo, Bahia, Maço 2). Em seu lugar Sergipe ganhou um presente de grego: o
famigerado Pe. Varejão, que tomou posse em 1804. Não seria exagero dizermos que “a emenda foi
pior que o soneto...”
posto que as listas dos Autos de Fé, com os nomes, identidades, crimes e sentenças dos réus
eram impressas e divulgadas publicamente. Samente em 1745 é que nosso Sergipe aparece
citado de novo no Santo Oficio : na visita que fez à Freguesia de Santa Luzia, aos 22 de
janeiro de 1754, o Visitador Pe. Venceslau Pinto de Magalhães Fontoura recebeu a
denúncia da existência de um bígamo nos limites do curato95. Trata-se de José Rois da
Silva, cuja história assemelha-se à de muitos outros portugueses que vieram tentar melhor
sorte no Brasil. Casou-se em sua terra natal, na Ilha de Faial, com Maria Dutra, em 1709 :
três anos de vida marital, dois filhos. Parte para a América vivendo primeiro dois anos no
Rio de Janeiro e Bahia, navegando em seguida por Costa da Mina, retomando à Nova
Colônia do Sacramento (RS), e estabelecendo finalmente morada em Santa Luzia. Ar em
Sergipe se engraça por Maria Domingas : consegue duas testemunhas falsas que juram
perante o Vigário da Vara, Pe. Antonio de Sousa Castelo, que conheciam o pretendente
desde sua infância, atestando ser solteiro e desimpedido. Pagou a fiança exigida pelo Juiz
de Casamento, 40$000, comprometendo-se a providenciar o necessário atestado de seu
batismo comprobatório de que era de fato celibátario. Em 1729 casa-se então com Maria
Domingas de Jesus, 35 anos, moradora no sitio da Miranga, na capela de “Nossa Senhora
da Agoa do Lupe da Instância”, termo de Sta. Luzia. Alguns anos após este segundo
matrimônio chega uma carta das Ilhas denunciando estar ainda viva sua primeira mulher,
alastrando-se a noticia com “pública voz e fama”. Temeroso, o bígamo desaparece do
mapa. Em maio de 1754, por ordem do Comissário Bernardo Germano de Almeida, de
Salvado , é feito sumário em Itapirucu, dirigido pela Vigário Aurélio Pais, com assessoria
do nosso já conhecido Pe. Franscisco de Almeida Branco, vigário de Santa Luzia e futuro
Comissário. E ouvida sua “chamada mulher” que ratifica a suspeita, dizendo ter sido
enganada pelo seu “fictício marido por tentação do demônio”, o qual prometera embarcar
para as Ilhas onde mataria sua primeira esposa e ar tirava certidão de viúvo para ratificar
seu fictício matrimônio96.”
Foi preso antes de realizar seu sinistro desiderato: sua sentença incluiu açoites,
abjuração de leve suspeita na fé e 5 anos de degredo nas Galés de Sua Magestade. Antes de

95
- ANTT, IL, Proc. nº 501. Infelizmente não encontramos qualquer outro documento informativo
sobre esta visita feita em Santa Luzia, certamente determinada por ordem episcopal, conforme
ordenavam as Constituições (Mott, 1982)
96
- É manifesta a semelhança entre este caso inquisitorial e a versão sergipana do poema “Conde
Alberto”, recolhido por Sílvio Romero em Lagarto no final do século XIX, onde as soluções para
ambos amores proibidos era matar a primeira mulher, posto que “descasar dois bens casados, coisa
que Deus não faria...” (Romero, 1977:77) .
cumprir sua pena, estava no cárcere quando ocorreu o devastador terremoto em Lisboa,
destruindo parte dos cárceres inquisitórias, redundando na fuga de vários de seus presos. O
bígamo de Santa Luzia foi um dos que preferiu manter-se obediente aos Inquisidores,
retomando à Casa do Rocio logo que o Santo Oficio o requisitou. Dois anos após sua
sentença, o degredo foi comutado para Porto Alegre (Alentejo), em consideração de ter sido
“um dos obedientes que andaram soltos depois do terremoto”. Tinha mais de 70 anos! Se
voltou a Sergipe após o término do degredo infelizmente a documentação nada diz. Uma
página, contudo, de seu processo, vale ser divulgada, pois revela-nos um detalhe importante
do triste desterro dos réus do Santo Oficio: primeiro, a observação do citado Comissário
Benardo Germano Almeida reclamando a falta de portadores confiáveis nas naus que iam
para o Reino, não encontrando a quem entregar o “malote” com a correspondência para a
Inquisição. Após esperar algumas partidas, finalmente o zeloso comissário entregou a quem
de sua confiança o precioso material, em troca do seguinte recibo :
“Digo eu, Bento Ribeiro Maciel, Familiar do Santo Oficio e Capitão da Nau Nossa
Senhora das Candeias; que faço viagem para Lisboa, que, recebi do Comissário B.G.A. o
preso José Rois da Silva e um saco de ruão vermelho com cartas e papéis para o Santo
Oficio, que vai fechado e lacrado com seu sinete e levando-me Deus a salvo, tudo me
obrigo a entregar na Santa Inquisição.
Bahia, 6 de agosto de 175497”.
Ao entregar o réu de Santa Luzia no porto de Salvador, o Familiar Felix Araujo
Aragão forneceu-lhe o seguinte enxoval - certamente comprado com parte do dinheiro
arrecadado com o sequestro de seus bens quando da prisão em Sergipe, e destinado a servir-
lhe durante a travessia do Atlântico e permanência nos cárceres inquisitoriais. Um detalhe
não deve ser esquecido: a nau saiu em Agosto da Bahia, chegando em Lisboa no fim de
outubro, portanto, inicio do inverno, dar carecer de agasalhos para enfrentar o frio europeu.
Os preços dessas peças de vestuário p. mitem-nos também avaliar outras despesas já citadas
deste trabalho:

Despesas com José Rois da Silva:

1 véstia e calção de pano 4$320


2 camisas de linho 1 $700

97
- Este Familiar era natural de Viana do Minho, e assistente na Bahia. Fora antes Capitão da nau
Nossa Senhora da Luz. (ANTT, Habilitações do Santo Oficio, “Bento”, M.11-163)
1 chapéu grosso $520
1 camisa riscada fina $800
1 par de sapatos $640
fivelas para os sapatos $140
meias de laia $640
2 côvados de baeta para cobertor 1 $200
dinheiro entregue ao preso $040
Total 10$000

Apenas um lembrete: 10$000 réis era o que o Pe. Varejão estava cobrando por cada
morto que encomendava na Cotinguiba : o equivalente, portanto, a um enxoval completo de
um presidiário. Como se deduz, seus fregueses tinham mesmo razão para protestar contra a
carestia das exéquias e demais cerimônias litúrgicas.
Outro processo assaz interessante por revelar uma faceta crucial da mentalidade
popular nordestina é o que redundou na infeliz morte de José Fernandes, acusado de ter
roubado uma hóstia consagrada98. O desafortunado réu era pardo, carapina de profissão,
natural da freguesia de Nossa Senhora da Abadia e morador em Sta. Luzia, viuvo e
marinheiro nas horas vagas, 26 anos. Tudo começou quando teve inicio um rumor na vila
apontando José Fernandes como portador de uma partícula consagrada envolta num papel e
guardada num saquinho dependurado no pescoço. Comentava-se que o pardo dissera:
“ainda que caísse no mar, se não afogava”, garantido que estava pela proteção desta
sacrossanta relíquia divina. Roubar uma hóstia consagrada equivalia a seqüestrar o próprio
Deus Nosso Senhor, sacrilégio que dependendo do grau de desacato. poderia levar o réu até
a fogueira, conforme autorizava Bula Papal99.
É feito sumário em junho de 1758 pelo Vigário da Vara de Abadia: várias
testemunhas de Sergipe confirmam a suspeita. Em fins de julho o sacrílego é remetido
debaixo de correntes para o aljube da Bahia. Perante o Comissário conta a seguinte história:
confessando-se na última quaresma e querendo afastar-se de sua amante, com quem vivia
amancebado há 4 anos, “de seu motu próprio” resolveu na hora da comunhão guardar um
pedacinho da hóstia embrulhando-o num paninho com o qual fez a bolsa de pano, cozida
com retrós amarelo, e passou a usá-lo no pescoço. Seu objetivo era virtuoso : afastar a
tentação de pecar com sua amásia, como de fato não conheceu mulher alguma durante o

98
- ANTT, IL, Proc. nº 8909
99
- Regimento do Santo Ofício de 1774, Titulo IX, “Dos que desacatam o Santíssimo
Sacramento”.
tempo que trouxe a dita bolsinha. Porém, o meio usado era considerado sacrílego, pelo
ensinamento da Igreja. Arrependido e temeroso, passados 15 dias foi à capela, fez ato de
contrição, comungou “sua” partícula e subiu numa palmeira no meio do mato e colocou o
paninho lá no seu alto. De fato, o pardo não mentia, ao menos quanto a este detalhe, pois o
vigário da Abadia atestou terem encontrado o dito paninho no alto da palmeira.
Seu sacrilégio comprovado e a prova do crime encontrada, redundaram na ratificação
de sua prisão e remessa para Lisboa. Em junho de 1760 faz nova confissão, agora sob os
olhos e ouvidos prescrutadores dos componentes da Mesa do Santo Ofício. Dá alguns
detalhes novos e corrige outros antigos. Diz que trabalhava em Estância quando
amancebou-se com Tereza, cujo marido ameaçava-o de morte, e por sugestão da amásia é
que roubou a hóstia, enrrolando-a, numa “oração do Justo Juiz” e de São Cipriano,
carregando este amuleto por espaço de um mês, pois tinha ouvido a muito concidadãos que
este “patuá” protegia o corpo de ferro, tanto de faca como da bala de bacamarte 100. Aí então
um velho seu amigo, residente em Santa Luzia, aconselhou-o dizendo que “de nada valia e
era invento do diabo para perder as criaturas,” Diz então que a partícula não era
consagrada, mas corrige logo a seguir dizendo que a tirara mesmo da boca, no ato da
comunhão. Aí José Fernandes revela-nos outro aspecto interessante destas prisões “em
nome do Santo Oficio”. Diz que o Vigário que o prendeu era seu padrinho, e que estando
preso, antes de ser remetido para a Bahia, as pessoas ao virem visitá-lo na grade do aljube,
diziam que ele “respondera como tolo no sumário, e como tolo ia para o Santo Oficio para
seu padrinho não ser tido como mentiroso,” Reprovavam-no portanto por ter respondido
lealmente à inquirição. Na Bahia, outros comentários são dignos de nota: disseram-lhe “que
vinha a morrer em Lisboa e se repetisse a mesma confissão, O matariam na Inquisição,” O
pobre sergipano deve ter-se sentido entre a cruz e a caldeirinha, daí a tentativa de negar que
a hóstia era consagrada. Imaginemos os medos e incertezas de um jovem do interior de
Sergipe, sertanejo, que por uma devoção mal praticada, do dia para a noite é lançado no
fétido calabouço, transportado para a Metrópole para ter sua vida e ações perqueridas por
inquisidores carrancudos, a convivência aterradora com outros prisioneiros que tinham
muitos casos de torturas, açoites e fogueiras para contar. Pobre José Fernandes !

100
- No arquivo do Santo Oficio há diversas cópias da oração de S. Cipriano, cujo inicio diz: “Esta
oração é muito virtuosa, é de S. Cipriano que foi Papa. Para pessoas ordenadas do mau efeito, para
qualquer regimento ou encantamento, e para as mulheres que estiverem no parto, pondo-lhe ao peito
e dali parirá sem perigo nenhum...”
Um ano ficou o infeliz sacn1ego nos cárceres do Rocio, sem que seu processo se
movesse um palmo da prateleira, até que em julho do ano seguinte (1761), a Mesa decide
que seria oportuno levá-lo a tormento, “para purgar pela tortura antes de fazer abjuração de
suspeito de leve na fé, conforme manda o Regimento,” Foi o único morador de Sergipe de
que temos notícia a ser torturado - exclusão feita de todos os bígamos que foram açoitados
“citra sanguinis effusionem”. Duas eram as principais formas de torturar os réus pelo Santo
Tribunal: a polé, que consistia em ataras mãos do réu nas costas e alçá-lo por um corda e
guindaste até o alto da casa de tormentos, por diversas vezes, deixando-o despencar do alto
sem atingir o chão, redundando tal queda em dores atrozes e lesões muitas vezes
irrecuperáveis nos músculos dos braços e ombro das vitimas; o potro consistia na segunda
forma mais usual de suplício - deitava-se o infeliz réu despido numa espécie de estrado de
madeira, e com correias de couro “atava-se perfeitamente” em 8 partes seus braços,
antebraços, coxas e pernas, dando-se voltas com um torniquete que iam apertando
violentamente os membros do pobre coitado, redundando em dores atrozes e hematomas
causadores às vezes de rupturas nos vasos sanguíneos com lesões também irrecuperáveis
nos membros inferiores e superiores da vítima. Em mais de mil processos por nós
pesquisados, só encontramos um caso de suplício da água, que consistia em deitar o réu
numa prancha, com a cabeça mais baixa que o restante do corpo, e com um pano na boca
ou funil, forçavam-no a engolir cântaros e mais cântaros de água, quase até sufacá-lo. O
suplício de passar banha nos pés dos presos e aproximá-los do fogo” só temos
conhecimento através de gravuras (Moreira, 1980:328-331).
Como as culpas do pardo sergipano não eram das mais graves, posto que roubara a
hóstia por superstição e não por sacrílego desprezo pelo Corpo de Cristo, os
misericordiosos” inquisidores mandaram que os tormentos limitassem-se a “um trato
corrido, o menor dos castigos, isto é, apenas uma volta no torniquete das correias do potro.
Cumpre notar que a simples ação de “atar as 8 partes dos membros” já implicava em
terrível dor e lesões físicas, pois encontramos casos de réus que apresentavam as mãos e
unhas totalmente escurecidas, como se tivessem “sangue pisado”, somente após alguns
poucos minutos de terem sido “atadas” perfeitamente, antes da primeira volta do torniquete.
O ritual do tormento era macabro : após lerem a confissão feita pelo réu, advertiam-no
que se quebrasse algum membro ou viesse a morrer durante a tortura, a culpa era dele, que
não quis confessar toda a verdade, e não dos Inquisidores, assistentes sádicos de tão
execrandas barbaridades cometidas em nome da glória de Jesus! Após ser examinado pelo
médico e cirurgião, começava-se a seção das dores. As vezes os médicos constatavam
algum membro roto ou hérnia (“virilha quebrada”), indicando então ser melhor a tortura do
potro do que na polé, pois oferecia menor risco de aumentar a lesão. A função destes
oficiais era também supervisionar o estado geral do réu para evitar fraturas e sua morte:
muitas vezes eles mandaram parar a tortura, ou reduzir-lhe a intensidade! Pois prossegui-la
implicaria em risco de vida para os infelizes penitenciados.
Mal tendo sido atado, já padecendo fortes dores e antevendo maior penar, muitos réus
“pedem mesa”, para completar ou reficar suas confissões originais. Foi o que sucedeu com
o sergipano: por três vezes pediu mesa, interrompendo o tormento. Porém, “não dizendo
nada que alterasse a ordem do tormento, foi torturado 10 a 12 minutos, sempre chamando
por Nossa Senhora Santíssima e Nosso Senhor lhe valessem.”
Não lhe valeu o auxilio divino: os 10 minutos atado perfeitamente no torniquete
devem ter durado uma eternidade. Ao sair desta sala tétrica, teve de ser carregado de volta
para o cárcere, pois tinha o corpo - os braços e as pernas, profundamente machucados pelas
correias do potro. Geralmente eram os companheiros de cela quem pensavam as feridas dos
retornados da casa dos tormentos.
Passa dois meses se tratando, para finalmente ouvir sua sentença : os Inquisidores
evitavam que seus sentenciados ostentassem em público, nos Autos de Fé, ou quando
açoitados pelas vias públicas, as marcas das torturas, esperando sempre que tivessem as
feridas curadas antes de exibi-los ao grande público.
Sua sentença foi lida no dia 20 de setembro de 1761, num dos Autos de Fé mais
concorridos da época, pois além de grande número de condenados - 57 réus! - foi queimado
o grande taumaturgo do Brasil, ex-confessor da Rainha, o jesuíta Padre Gabriel Malagrida,
ele próprio costumeiro em distribuir pelos sertões nordestinos “breves”, agnus-deis e
demais amuletos, conforme já noticiamos no processo do falso Comissário Igareta. A
sentença do sergipano sacrílego deve ter sido das mais brandas: açoites e 5 anos de galés.
Tal pena o infeliz não chegou a cumprir, pois 5 meses depois, a 23 de fevereiro de 1762,
consta na ultima página de seu processo a seguinte anotação “Faleceu da vida presente
com todos os sacramentos.” Certamente, não suportou outro Inverno europeu, muito mais
frio e úmido nas sombrias celas dos cárceres do Rocio. Talvez as lesões da tortura tenham
causado mazelas irrecuperáveis no seu corpo debilitado por 4 anos de infectas prisões e
calabouços. Morreu na flor da idade, com 30 anos, tudo por causa de sua paixão por Tereza,
sua manceba, da qual se pretendia separar para abandonar a pecaminosa amancebia.
Provavelmente seus parentes, vizinhos e amigos, a própria Tereza, nunca souberam de seu
triste fim, pois os falecimentos “intra-muros” na Casa do Rocio, sobretudo em se tratando
de gente pobre do ultramar, não implicava em notificação da parentela., Este pardo é um
dos vários nordestinos que por causa de uma hóstia roubada, ou pelo uso de patuás ou
bolsas de mandinga, deram-se mal com o Santo Ofício. Hoje em dia, em muitas igrejas, o
sacerdote entrega a hóstia consagrada nas mãos do comungante, que manducam-na a seguir
seja diante da mesa da comunhão, seja em seu banco. Não é mais sacrilégio, portanto, tocar
no Corpo de Cristo. Patuás são vendidos às dúzias no Mercado Modelo de Salvador e em
qualquer casa de produtos de Umbanda de norte a sul do país. Todos falam da injustiça
praticada contra Galileu, o próprio Papa atual reconheceu que a Igreja errou quando
pretendeu ser a dona exclusiva da verdade, inclusive no campo da astronomia. E
importante, é vital mesmo, que desmascaremos todos esses gritantes erros desta instituição
que se pretende infalível em matéria de fé e moral. A mesma revelação divina que
condenava ontem à tortura quem tocasse na hóstia ou comungasse sem estar em jejum
completo, hoje autoriza ao próprio sacerdote depositar a mesma partícula agrada nas mãos
dos leigos, tendo sido abolido o jejum antes da comunhão. Divórcio, heliocentrismo,
sodomia, materialismo, judaísmo, calundu, patuá, tudo isso dava cadeia, tortura, até
fogueira para os casos mais escandalosos e incorrigíveis. Hoje, a Ciência, da Astronomia à
Antropologia, confirmam inquestionavelmente que Galileu estava certo e os Inquisidores
errados; que o preconceito ao homo-erotismo baseia-se em interpretações erradas e
traduções mal feitas da escritura Sagrada; que o evolucionismo multilinear e o materialismo
são a única explicação plausível para a origem do universo, relegando para o nível da
fábula a explicação do Gênesis da criação em sete dias. A liberdade religiosa passou a fazer
parte dos direitos do cidadão, e o ateísmo não mais leva ninguém às barras do tribunal. Que
os erros do passado nos sirvam de lição e alerta para evitarmos outros monstros sagrados
como o Santo Oficio, que de Santo, por mais generoso que sejamos, só tinha mesmo o
indevido nome. Voltemos a Sergipe.
Melhor sorte que José Fernandes teve outro pardo, José Maria de Jesus, escrivão do
alcaide da vila de Santo Antônio do Urubu (Propriá), que em 24 de dezembro de 1763 é
acusado através de uma denúncia enviada diretamente ao Santo Ofício, de trazer uma bolsa
vermelha no pescoço na qual continha um pedacinho de sanguíneo (toalha com que o
sacerdote limpa o cálice e no qual ficam gotas do Preciosíssimo Sangue de Cristo), uma
lasquinha da pedra dara (sobre a qual, no altar, são celebradas as missas, e contem em seu
interior partículas de relíquias de muitos mártires), e junto a tão sacrossantos objetos, uma
partícula consagrada101. Apesar da gravidade do delito, ficou inócua a denúncia, não sendo
determinada a prisão deste sacrílego sergipano.
Porém fim trágico teve outro morador de Santa Luzia, Manuel Pereira do Nascimento,
25 anos, branco, natural de Conceição da Praia, preso em 1778 por ordem do Vigário da

101
– ANTT, Caderno do Promotor nº 126, fl. 459
Abadia. Pe. Antonio Carlos de Brito, acusado de ter-se casado duas vezes “in fascie
eclesiae”, a primeira vez com Maria Arcângela, da Pitanga do Itapicuru, e a segunda, com a
Índia Antonia Cardosa. Levado debaixo de correntes para a Bahia, no aljube
soteropolitanense conta a seguinte história ao já citado Comissário Bernardo Germano :
seus progenitores eram de Sergipe, e vindo a falecer, foi o jovem Manuel tomar posse de
sua herança em Santa Luzia, casando-se com Arcângela, afilhada do Sargento Mor Simeão
da Silva Lisboa. Mesmo em Santa Luzia, tinha o costume de ir assistir missa em dias de
obrigação na matriz de Abadia, ocasião em que o Pe. Carlos começou a desinquietar sua
mulher, solicitando-a “ad turpia”, comportamento aliás, bastante freqüente entre os homens
da batina, conforme veremos mais adiante. Desgostoso com este vil assédio, deliberou
mudar-se para longe, antes porém denunciando o solicitante junto ao Escrivão de Abadia.
Este foi o maior erro de sua vida, pois o Padre revoltado, pagou dois cabras para o
matarem. Deram-lhe dois tiros e muitas facadas, ficando repleto de cicatrizes na cabeça e
pelo corpo, chegando mesmo a ficar à beira da cova, mas teve a ventura de salvar-se. A
partir de então passaram a chamá-lo “o Cova”, em alusão a seu infortúnio. Não satisfeito, o
mau sacerdote - bem ao estilo do Padre Varejão, mandou-o prender no tronco com
correntes no pescoço102. Mais ainda: maquinou um sumário com testemunhas falsas,
obrigando-o à vergonha de “correr a rua de Abadia com uma assapata de couro por riba da
camisa”, seqüestrando seus bens, fazenda e dois escravos, e despachando-o em seguida
para,as justiças da Bahia. Quatro anos se passaram, e o infeliz lavrador mofando no aljube
de Salvador, aí morrendo em 1782, sem que o Santo Ofício tomasse qualquer deliberação
sobre seu futuro.
Tudo nos leva mais a acreditar no depoimento do réu, do que nas acusações do Vigário
de Abadia, tanto que em 1781, chega ao Santo Oficio uma denúncia contra este indigno
sacerdote103. Trata-se de uma representação do Juiz e mais Oficiais da Câmara de Abadia
contra seu vigário, Pe. Antonio Carlos de Brito (às vezes aparecendo com seus prenomes
invertidos), o qual é acusado de grande arbitrariedade: usar o nome sacrossanto do Santo
Ofício para prender seus inimigos, “não sendo oficial dele”. Chegam seus paroquianos a
anexar à Representação uma carta assinada pelo clérigo onde diz ter mandado prender a

102
– No “Museu Afro-Brasileiro” de Laranjeiras, o leitor interessado poderá encontrar alguns
troncos, correntes e outros instrumentos de suplício e prisão dos escravos, usados pelos senhores
sergipanos. Nas prisões menos seguras das vilas interioranas do Brasil Colonial, para evitar-se a
fuga dos réus, costumava-se prender no tronco ou agrilhoá-los em ferros, como aconteceu com este
infeliz perseguido do Vigário da Abadia.

103
- ANTT, IL, Proc. nº 300
Manuel Santos “por ordem e comissão do Santo Oficio.” Casos deste quilate despertavam
grande interesse e ira nos Inquisidores, pois constituiam perigosa ameça à hegemonia do
Conselho Geral e demais efeitos da hierarquia inquisitorial. Usar em vão o nome do Santo
Ofício constituia gravíssima ameaça ao monstro sagrado, tanto que despacham rapidamente
ordem à Bahia, ao Comissário Francisco Coelho de Carvalho, que incumbe por sua vez ao
novo vigário de Abadia, Pe. Francisco de Sá Araujo, de equacionar este quiproquó. Só em
1790 que vem a resposta, informando que o Padre Carlos prendera três negros, “por
mandingueiros, sendo que disto, dizem, nada tinham.” Explicaram as testemunhas que a
prisão, fora antes para vingar-se o indigno presbítero dos senhores dos ditos negros, por não
lhe terem dado 10 alqueires de milho conforme lhes exigira. Contam mais: que os três
cativos eram irmãos entre si e que no ato da prisão “estavam dançando bêbados, fazendo
com o corpo certas viragens e ligeirezas, ao que persuadiu o Vigário que tinham arte
diabólica.” Outra atitude arbitrária, por excesso de zelo, revoltou ainda mais os abadienses :
mandou prender a um tal Madeira, por pretexto de fazer orações supersticiosas e ter
amarrado a imagem de Santo Antonio para conseguir o que queria, persuadido que era
feiticeiro. Se nas Minas Gerais, pela mesma época, uma negra Mina picou de facão uma
imagem de Nossa Senhora e outra de Santo Antonio, cortando-lhes os braços e decepando-
lhes as cabeças, inclusive partindo o corpinho do Menino Jesus, e nem por isso o Santo
Ofício mandou-a para os cárceres de Lisboa, contentando-se que fosse asperamente
repreendida104, não seria por essas diminutas práticas supersticiosas que, um vigário se
arvoraria em guardião da fé, usando em vão o nome sagrado da Santa Inquisição. Mais
grave que as superstições era passar-se por oficial da Inquisição, tanto que a Mesa do Santo
Ofício assim se manifestou em 1791: “semelhantes casos pedem exemplar castigo,”
ordenando incontinenti a prisão do abusado sacerdote. Se chegou de fato a ser detido, não o
sabemos: o certo , é que desde 1790 outro presbítero respondia pela paróquia de Abadia:
Nunca é demais recordar o quanto foram numerosos no Brasil de antanho os
sacerdotes da laia do Padre Carlos de Abadia, do Padre Varejão da Cotinguiba e de tantos
outros que já citamos, famosos pela prepotência, irreligiosidade e descompostura. No
volumoso Livro dos Solicitantes105 localizamos o nome de 5 sacerdotes de Sergipe
denunciados pelo hediondo crime de solicitação. Eis como o Regimento do Santo Ofício
de 1774 se referia a esta torpeza : “Se algum confessor, no ato de Confissão sacramental,
antes ou imediatamente depois dele, ou com ocasião e pretexto de ouvir de confissão no

104
- ANTT, IL, Cadernos do Promotor, nº 128,Sabará” 1762.

105
- Biblioteca ,Nacional de Lisboa, Códice 8389
confissionário ou lugar deputado para ouvi-la, ou em outro escolhido para este feito,
fingindo que ouve a confissão, solicitar ou de qualquer modo, provocar a atos ilícitos e
desonestos, com palavras ou tocamentos impudicos para si ou para outrem; as pessoas que
a ele se forem confessar, assim mulheres como homens, havendo prova bastante ainda por
testemunhas singulares, se for clérigo secular, fará abjuração de leve (salvo havendo causa
que obrigue a maior abjuração), será privado para sempre do poder de confessar e
condenado nas mais penas justamente agravadas pelo Santo Padre Bento XIV, e será
degredado por oito até dez anos para fora do bispado e para sempre do lugar do delito, pelo
escândalo que nele deu com as culpas.” (Título XV).
A Inquisição tinha razão em castigar tão severamente os confessores libertinos, pois
esses padres desmoralizavam pela sua ousada lascívia, a santidade de um sacramento que a
duras penas a hierarquia da Igreja de Roma tentava convencer os cristãos à sua
indispensabilidade para a salvação. Muitos foram os fiéis processados pela Inquisição por
defenderem não ser necessária a confissão auricular - heresia divulgada pelos protestantes -
bastando o arrependimento íntimo dos pecados. Os padres solicitantes pecavam gravemente
fazendo do confissionário local para convites e conluios, imorais, em vez de repudiar pela
absolvição e bons conselhos as faltas dos penitentes, empurravam-nos ainda mais para as
chamas do fogo do inferno. O acordo com o Regimento, os solicitantes reincidentes deviam
ser agravados com a perda do uso das ordens sacras, ofícios e benefícios e degredados para
as galés por 10 anos. Castigos tão severos tinham sua razão de ser, pois a desmoralização
do sacramento da confissão chegou a tal ponto em Portugal e suas conquistas, que os
confissionários passaram a ser verdadeiras ai covas e antros de perversão. Foi sobretudo a
partir dos inícios do século XVIII que desenvolveu-se na Península Ibérica a bizarra heresia
intitulada “seita de Molinos”, também chamada “molinosismo”, que levou às barras do
Tribunal Inquisitorial várias dezenas de padres, freiras e demais penitentes, autores e
praticantes e um sem número de safadezas no ato da sacramento da penitência. Eis como é
descrita esta heresia no Processo nº 957 da Inquisição de Coimbra, lida no Auto de Fé
realizado aos 16 de abril de 1720, onde saíram condenadas três freiras Beneditinas do
Convento de Jesus de Viseu, condenadas por “brincarem com seus reverendo
confessores106”.

106
- “Brincar” do século XVI ao XVIII não significava apenas folgar, divertir-se, mas
também praticar atos lascivos, os chamados “brinquedos-amorosos”. Ainda no século XIX em
Sergipe, o termo conservava a mesma acepção avoenga: na trova popular recolhida por Sílvio
Romero em Lagarto, “D. Carlos de Montalban”, encontramos a seguinte estrofe:
“Eu topei a Claraninha com D. Carlos a brincar, da cintura para riba, muito beijos eu vi dar, da
“Todas seguiam a maldita seita de Molinos e outros heresiarcas, (defendendo) que
atos ilícitos e cópulas não eram pecado, nem deles se confessavam. Davam ósculos nos
confissionários, metendo a língua que chegasse uma, à outra pelos buracos do ralo, tinham
instrumentos para se abraçarem pelas grades, descobriam os peitos com os seus pais
Espirituais (para) chegarem Cristo com Cristo sacramentado. Os pais espirituais vindo da
missa lhe metiam os dedos pelos peitos porque vinham purificados e abriam a boca
bafejando dizendo: Pax tecum, accipe spiritum sactum. Tinham pulsões e outros atos
dizendo que não eram pecado porque eram sem ânimo de ofender a Deus, porque assim
como um homem dando uma estocada por engano em um seu amigo sem ânimo de o
ofender, o não ofendia, assim elas não ofendiam a Deus, e assim como um pai beijava e
abraçava uma filha sem ofender a Deus, também elas com os seus pais espirituais podiam
fazer o mesmo, sem pecado. E faziam estas cousas por obediência aos seus confessores e
que a maior virtude era serem obedientes. E tinham filhas espirituais que as doutrinavam os
seus padres espirituais, mandando que não se confessassem destas cousas pois não eram
pecados e que só com eles comunicassem e não com outrem, que as podiam acusar ao
Santo Ofício, não sendo pecado. E que só as pessoas com espírito como eles entendiam
estas cousas e que os mais não. As mais cousas não se declaram para não ofender os
ouvidos piedosos...”
Repetimos: dezenas e dezenas de padres, freiras e demais confessandas foram
processados em Portugal por seguirem seita tão esquisita, e que deixava os lascivos e
epicuristas pagãos a léguas de distância na imaginativa justificação filosófico-teológica do
prazer pelo prazer.
Infelizmente não dispomos de muitos detalhes sobre as investidas sexuais dos
sacerdotes de Sergipe em suas penitentes. Eis os oito sacerdotes cujos nomes localizamos
no Repertório e Cadernos dos Solicitantes :
- Padre João Francisco Xavier Lins e Paiva (1761), da freguesia de Santa Luzia. Após
confessar a Luiza Caetana, casada, com marido ausente, mandou o sacerdote espertinho que
ela fosse ao riacho do Santo Cristo para dar-lhe uma esmola. Ela obedeceu, só que fez-se
acompanhar de sua filha já mulher, e malgrado a presença desta testemunha, o padre por
três vezes solicitou-a pecar, dando-lhe algum dinheiro.
- Padre Antonio Alves de Miranda Varejão (1804), nosso já bastante conhecido
Vigário da matriz de N. S. do Socorro da Cotinguiba. Conforme já mencionamos alhures,
denunciavam seus paroquianos que “o confissionário era o teatro escandaloso das suas
práticas e colóquios amorosos, qual lobo estragador pelo infernal precipício das

cintura para baixo não vos posso mais contar...” (1977:79)


solicitações.”107 Entre suas vítimas, estavam a mulher de um artífice, a madrinha de um
batizado, D. Maria de Morais e muitas outras sergipanas, às quais mandava ir à sua casa de
noite buscar o atestado da confissão quaresmal. No Repertório dos Solicitantes constava
que certa feita “apertara a mão no ato da confissão a Rita Maria, casada com João Vaz.”108

107
– Dentro da mentalidade da época, ainda muito mais do que em nossos dias, “solicitar” uma
mulher, sobretudo se casada, além de pecado mortal contra o 9º mandamento, constituía gravíssimo
ultraje à indefesa representante do “sexo frágil” (sic), e insulto à sua família e/ou marido. Como já
antecipamos, as mulheres viviam outrora num tal sistema de reclusão, que não davam conversa com
homem algum além dó Vai, marido, irmãos e poucos parentes mais próximos. Cada vez saíam
menos de casa, nem mesmo para ir à missa dominical. Eis dois depoimentos da época sobre a
questão da reclusão feminina, culpando-se à concessão da licença de ter oratórios domésticos - tão
comuns nos engenhos de Sergipe e nas mansões dos mais ricos urbanitas – a manutenção desta
prática: “A condescendência de se permitirem todos os atos públicos em oratórios particulares tem
posto os templos vazios, pois sendo um dos primeiros artigos para mostrar o grande caráter da
pessoa e distinção de sua nobreza o não procurar igreja para ouvir missa, mas sim no seu oratório...
e isto é mais vulgar nos nacionais do que nos da Europa, para falar a verdade...” (“Os abusos que se
tem introduzido na Bahia”, do Capitão Domingos Alves Branco Moniz de Barreto, Biblioteca
Pública do Porto, Memórias, nº 1105, circa 1780). O outro depoimento é do próprio Arcebispo D.
José Botelho de Mattos, inicialmente opondo-se à abertura de mais um Recolhimento de Ursulinas
na Bahia, argumentando que “a função das Ursulinas é ensinar as donzelas e é impossível que os
pais e parentes consintam que suas filhas saiam de casa à missa, nem para alguma função, não só às
donzelas brancas, mas ainda as pardas e crioulas, que se confessam de portas a dentro.” (E. C.
Almeida, 1914, Doe. Nº 128, 20-7-1751). Assim, com tanto enclausuramento, ser uma mulher
solicitada, ou “desinquietada” como se dizia na época em Sergipe, consistia em ousadia merecedora
de severa punição: em sendo clérigo,do Bispo, ou mesmo da Inquisição, em sendo civil, da
autoridade policial. Este episódio ocorrido em Sergipe em 1817 é ilustrativo do que acabamos de
afirmar: “O tenente Coronel Comandante da Legião de Caçadores de Milícia de Santa Luzia
mandou preso para a Bahia o soldado Alexandre Guedes de Jesus, homem de mau procedimento e
faltar-lhe aquele comportamento regular sendo excessivo a ponto de solicitar uma mulher casada
separando-a da companhia do marido, homem estabelecido nesta Povoação, o qual se veio queixar-
se de todo o referido, manifestando-me que já não podia mais sofrer os acintes que continuamente
suportava deste ingrato homem.” (APEB, Maço 235). Imaginemos o desinquietador “deus-nas-
acuda” que devia ser um padre viciado na solicitação de suas penitentes numa pequena vila
interiorana, onde além dos “homens de família”, o único varão com quem as mulheres falavam e se
encontravam a sós, inclusive “confessando de portas a dentro” era o próprio tentador travestido de
sarcedote!
108
- Apertar a mão da penitente era “besteira pouca” para o Santo Ofício. Frei Pedro dos Sarzedos,
No Arquivo Nacional encontramos um requerimento do Padre Varejão, que na época
ostentava o honroso titulo de “Cavaleiro da Ordem de Cristo” - conseguida não sabemos à
custa de quantas negociatas - solicitando a legitimação de uma filha no mesmo ano da
chegada da família real no Brasil. Alega que “no estado de simples sacerdote teve de coito
sacrílego uma filha natural de nome Francisca Antonia dos Prazeres (...), com D. Maria do
Carmo Xavier de Jesus, viúva desimpedida, natural de Recife e ora falecida.” Diz que
desde seu nascimento a menina, agora com 14 anos, vive em companhia da mãe do padre
nas Alagoas, a qual concorda com a legitimação que tornaria sua filha, herdeira universal
de seus bens “para que não fique exposta para o futuro ao jogo da fortuna, faltando-lhe os
meios de subsistência, pagando assim uma culpa que não tem.” Ao menos ser bom pai foi
uma virtude que não podemos negar ao travesso sacerdote. A Mesa de Consciência e
Ordens passa carta de legitimação a 5 de junho de 1809, “a pedido de seu pai, o Pe. A.A.M.
Varejão.”109
- Padre José Gonçalves Pereira: seu nome consta no Repertório, sem maiores
indicações de seus delitos, nem em que igreja assistia na Cotinguiba. Quando em 1811 a
Câmara e Juiz Ordinário de S. Cristóvão oficiam a el Rey solicitando a ereção de uma
paróquia na povoação das Laranjeiras, em sua resposta, em 1814, o Bispo D. Frei Francisco
de São Dâmaso informa que a freguesia da N. S. do Socorro contava com 9800 pessoas e
um total de 2653 fogos, possuindo 6 “operários”(sacerdotes),”o que vem a tocar a cada um
deles 1633 pessoas, que podem muito bem ser apascentadas por um só operário sendo ele
zeloso.” Elogia o pároco atual, o Pe. Antonio José Gonçalves de Figueiredo, lusitano, “um
dos melhores do arcebispado”, apesar de mostrar-se intransigentemente racista contra as
pessoas de cor, e opor-se tenazmente às lutas pela Independência (Mott, 1974). E conclui o
Bispo: “A maior parte dos pastores que vim achar nesta diocese são lobos devoradores : só
cuidam nos seus interesses temporais e pouco lhes importa a felicidade espiritual de suas
ovelhas.”110 Certamente, o Pe. José Gonçalves Pereira pertencia a esta alcatéia referida pelo

(1759), Capucho do Convento da Guarda, consumava seu sadismo “picando a Luzia várias vezes
com o espinho de uma rosa.” (Livro dos Solicitantes nº 30, fl. 8). O Padre João Lopes da Costa, 39
anos, da Vila Pouca de Braga, “por indiscrição mandava suas confessadas declarar a maneira como
consumavam os atos conjugais e as palavras obcenas e atos torpes das partes ocultas de ambos os
sexos, mortificando-as algumas vezes com picadelas de alfinete na língua e nas mãos, e às freiras
mandava declarar no confissionário ou por escrito os nomes das partes impuras dos homens...”
(Cadernos do Promotor nº 134, fl. 69,1801)
109
- Arquivo Nacional, Cx. 123, Pacote 1.
110
- Arquivo Nacional, Cx. 285, Doc. 9
zeloso bispo franciscano.
Padre Manuel Saraiva, da freguesia de Santo Antonio do Urubu. Tal paróquia fora
desmembrada da de Santo Antonio de Vila Nova em 1718, pelo Arcebispo D. Sebastião
Monteiro da Vide, o famoso autor das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
“prelado muito exemplar, que visitou o Arcebispado e conheceu por si mesmo as
necessidades de suas ovelhas, dando-lhes o mais puro exemplo de suas virtude” (Sousa,
1944:42). Nada sabemos sobre este sacerdote, a não ser que seu nome aparece várias vezes
citado no Repertório dos Solicitantes, portanto, foram diversas suas investidas “ad turpia”
em direção às suas confessandas.
- Frei Inácio de Santa. Inês, frade (carmelita ou franciscano), é o único dos
confessores solicitantes pertencente a uma Ordem religiosa. Seu pecado era duplo, pois
além de desobedecer ao Direito Canônico, que exigia disciplinarmente o celibato de todo
sacerdote, desrespeitava seus votos solenes - particularmente o da castidade. Foi
sentenciado no Auto de 16 de outubro de 1746: a seu lado, mais outros três sacerdotes
condenados pela mesma descaração.
- Padre Francisco Rois, coadjutor na freguesia de Jesus Maria José e São Gonçalo da
vila do Pé do Banco, hoje município de Siriri ; aí foi vigário nos fins dos anos setecentos o
várias vezes citado D. Marcos Antonio de Souza. Não conseguimos mais informações sobre
este indigno sacerdote.
- Padre Antonio Martins, da fazenda Tuberaba, no rio S. Francisco (circa 1748) : quem
o denunciou foi a mulata Maria Josefa, escrava, relatando que o sacerdote após confessá-la
na sacristia, fechou as portas insistindo que com ele pecasse, ao que a moçoila negando,
retirou-se revoltada da igreja;111
- Padre Alexandre Pinto Lobão: é o último desta lista porno-erótico-sacramental. Era
natural de Lamego, nos Trás-os-Montes, nascido em 1776, tendo recebido o presbiterato na
Bahia. Desde 1799 reside em Sergipe, na freguesia de N. Srª dos Campos do Rio Real, nos
limites de Itapicuru e da vila de Lagarto112. Região de muito críatório, diz D. Marco que
nos inícios do século passado, só o Padre Martinho Freitas, ai possuía 5 mil ovelhas, além
de muito gado vacum e cavalar (1944:30). Atenção para este comentário do douto prelado:,
“E alimento quase comum (ai) a carne de ovelhas, à qual sê atribui certa virtude prolífica. É
certo que as mulheres têm uma natural fecundidade: costumam parir 20 a 25 filhos. São
muito inclinados ao toro conjugal.” (1944:31). Pelo visto, nem os sacerdotes escapavam
dos efeitos afrodisíacos da carne de borrego, dar as denúncias frequentes de solicitação

111
– ANTT., Cadernos dos Solicitantes, nº 26, fl. 388
112
– Arquivo Nacional, Cx. 267, Pac. 1
contra o Padre Lobão existentes tanto na Torre do Tombo quanto no Arquivo Nacional. Em
sua biografia consta uma volta a Portugal a fim de resolver problemas de herança com suas
irmãs órfãs, tendo sido “um dos infelizes que antes de D. João sair da Corte de Lisboa, foi
reconduzido para a Inglaterra, onde esteve violentado um ano.” Na época da Independência
(1823) o Padre Lobão era vigário de Itabaiana, opondo-se tenazmente aos ideais nativistas
dos sergipanos. E alvo de duas acusações por parte de seus fregueses, que apontam-no
como “acérrimo e perigoso inimigo da santa causa deste Império,” instigando em plena
missa aos fiéis que não apoiassem a aclamação de Sua Magestade Imperial, acusando-a de
ser “fomentada por quatro embriagados da vila de Cachoeira... porém que morta a rata, logo
infalivelmente morreriam os ratinhos”. Acusam-no também de libertino: “Desonrador de
mulheres casadas, exvirginador de donzelas cujos nomes por modéstia se omitem, é
homicida, pois com faca de ponta penetrante matou um seu escravo mulato de nome
Pedro”. E arrematavam seus paroquianos, entre eles assinando a denúncia o Juiz Ordinário,
Vereadores, Procurador, Capitães e muitos moradores de Itabaiaria : o Padre Lobão “é
desumano, imprudente, falto de caridade, excessivamente ambicioso até o extremo de não
querer batisar os infantes sem que primeiramente lhe entreguem por cada um deles $480
réis, sem os quais não batisa.” Etc, etc. Eis o arremate dos itabaianos : “Pedimos um
saudável remédio para o alívio de nossos padecimentos113.”
Em 1832, com 66 nos, ainda permanecia o Pe. Lobão na mesma freguesia de Santo
Antonio e Almas de Itabaiana: como desde 1821 a Inquisição fora extinta, não mais corria o
risco de perseguição pelas suas paqueras no confissionário114.
É no último quartel do século XVIII que se encerra a atuação do Santo Oficio, em
território sergipano: com as reformas de Pombal, com o iluminismo e liberalismo
fervilhando na Europa, com a Revolução Francesa, não havia mais ambiente para o
monstro inquisitorial continuar sua terrível marcha de paquiderme intolerante e rabujento.

113
- Arquivo Nacional, Cx. 314, Pac. 3, doc. 14

114
- Arquivo Nacional, IJ1-907, Relação de todos os vigários de Sergipe aos 29-11-1832. Hoje
quase não mais se ouve falar em padres solicitantes: deixando de ser obrigatório o uso da batina e
da tonsura, vestido à paisana, podem os padres andar livremente sem o controle social de
antigamente. A facilidade com que a Igreja de Roma tem secularizado e laicizado os padres
apóstatas e o movimento cada vez maior dentro do clero progressista pela extinção do celibato
eclesiástico fazem também da “solicitação ad turpia” um pecadilho que em breve estará nas
prateleiras do museu das antiqualhas.
Acostumado às trevas da intolerância obscurantista e à sombra das masmorras de tortura, o
“século das luzes” acabou por cegar os olhos ramelentos e maldosos do Terrível Tribunal.
Por mais que tentasse impedir e esperneasse, a humanidade marchava em direção à ciência,
ao racionalismo, à liberdade e ao pluralismo. A Igreja em toda parte ia perdendo seu poder
temporal e sendo questionado seu direito de condutora única dos destinos do Mundo
Ocidental. A própria extinção da Companhia de Jesus é um prenúncio de uma nova ordem
onde os “príncipes da Igreja” não mais terão o poder para prender, açoitar, degredar,
sequestrar e queimar. Restar-lhes-á apenas o poder de excomungar e fechar as portas do céu
àqueles que nele creem. A proibição de falar em público, contudo, ainda faz parte do
autoritarismo desta instituição romana nos extertores de sua caduquice: o teólogo da
libertação, o franciscano Leonardo Boff é uma das vitimas não mais da Santa Inquisição,
mas de sua herdeira, a Sagrada Congregação da Doutrina e da Fé. Lutero também foi
proibido de falar, Savonarola idem, e o padre baiano Manuel Lopes de Carvalho, queimado
vivo em 1726, por ter chamado os Inquisidores de “tribunal de ladrões,” e ter defendido que
“devia seguir o que Deus ensina e não o que lhe propunha a Mesa do Santo Ofício115.”
Felizmente os tempos são outros, e o puxão de orelha dado pelos teólogos holandeses em
João Paulo II é prenúncio de uma nova era menos intolerante. Já o velho sergipano Sílvio
Romero comentava no fim do século XIX: “Até 1868 o catolicismo reinante não tinha
sofrido nestas plagas o mais leve abalo, e a filosofia espiritualista, católica e eclética, a mais
insignificante oposição.” (1977:359). Nosso consolo é que a história não pára e as luzes da
ciência mais cedo que desejam os inquisidores do passado e do presente, hão de
desmascarar a violência, ignorância e tristeza das trevas de todos os misticismos - dos
Agnus-Dei aos patuás, das indulgências ao candomblé. Acreditamos firmemente que há de
se cumprir a profecia do Messias de Nazaré quando disse: “e conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará.” A verdade é a razão, a ciência, e esta nos liberta não só do vírus da
paralisia e nos dá a luz elétrica, mas nos há de libertar das mitologias mistificadoras que só
têm causado danos para a humanidade.
Estamos porém ainda em 1778 e em Santa Luzia ocorre o mais sensacional processo
de bigamia de toda a história de Sergipe, pois a engabelada no caso foi a própria família do
Comissário Francisco Almeida Branco.116
O réu chamava-se Antonio Pereira Leitão, lavrador de canas, 60 anos, natural de
Ourém, na Beira-Litoral, e morador Santa Luzia. Casou-se três vezes: a primeira em sua
terra natal, com Mariana da Silva - 9 anos de conúbio,3 filhos; a segunda no Maranhão,

115
- ANTT; IL, Proc. nº 9255 e 13.345
116
- ANTT, IL, Proc. nº 1827
com Angela Perpétua da Silva, viúva, da qual teve uma filha. Sendo descoberto, foi preso e
condenado pelo Santo Oficio a 5 anos de galés. Após um ano e meio de cumprimento da
pena, estando muito doente, recebe a misericórdia de sua comutação, voltando a fazer vida
marital com sua legitima primeira esposa. Saudoso do Brasil - ou mais provavelmente,
enfadado do matrimônio, passa para o Rio de Janeiro, “e por causa de uns contrabandos”,
retira-se para a Bahia e de lá para Santa Luzia, apresentando-se como viúvo. Faz rápida
amizade com o Capitão Domingos Almeida Branco, irmão do Comissário Pe. Branco,
estreitando de tal sorte os laços de simpatia que o Capitão logo ofereceu-lhe a filha em
casamento. Como tinha pressa de se enlaçar e fossem muito demorados os banhos corridos
em sua terra natal - às vezes levavam até mais de dois anos, e certamente por não desejar
“levantar a lebre”, posto que continuava viva sua primeira consorte, pagou a fiança para
casar-se mesmo sem ter os banhos corridos, e com autorização do Vigário Geral da
Capitania, recebeu em matrimônio em 1774 a D. Francisca Tereza de Jesus, 24 anos, filha
do Capitão Branco e de D. Francisca de Serqueira Pacheca, ambos naturais e moradores na
vila de Santa Luzia.
Muita ousadia demonstrou este “trígamo” sexagenário, pois tendo já antecedentes na
Inquisição, foi casar-se exatamente com a sobrinha carnal de um Comissário do Santo
Oficio ! A falta de “brancos puros” em Sergipe é que deve ter influenciado favoravelmente
ao Capitão Branco entregar sua filha donzela de 24 anos na mãos de um sexagenário que
conhecia há pouco tempo: a fascinação pelos reinóis devia ser muito mais forte do que se
supõe, e muitas hão de ter sido as brancas ricas que ficaram solteiras por não encontrarem
maridos da mesma qualidade. A quantidade de donzelas brancas oriundas das melhores
famílias sergipenses, recolhidas no Convento da Soledade da Bahia, reflete sem dúvida
muito mais do que genuína vocação para a vida enclausurada, antes, impossibilidade de
realizar matrimônio à altura das tradições da elite do poder. “Uma branca desposar um
mulato? Isso raramente se vê nas altas rodas, pois seria repelida por todos, execrada da
sociedade. O mais opulento mulato é inferior ao branco, ele o sabe e lhe será lembrado.”
(Expilly, 1854) Se em nossos dias, como ensina Thales de Azevedo, “casamentos de
pessoas de cor diferente sempre produzem algum mal estar, ou mesmo abalo nas famílias e
nos meios que ocorrem” (1966:6), como devia ser forte a oposição a casamentos hetero-
cromáticos numa época em que a cor negra era sinônimo de escravidão, selvageria e
barbárie ? Como desde 1708 havia um Decreto Real destinado a sustar a emigração do
Reino para o Brasil, redundando na concentração dos reinóis sobretudo nas áreas de maior
pujança econômica - nas Minas notadamente, as pequenas e pobres Capitanias viviam em
carência crônica de elementos brancos para futuros casamentos. No Piauí, por exemplo, os
sertanejos queriam pagar a preço de ouro o “passe” do criado de Spix e Martius, afim de
“melhorar” a raça local. O número crescente de moçoilas e meninotas de Santa Luzia,
Estância e da Cotinguiba enviadas como educandas e professas nos conventos da Bahia,
repetimos, sugerem uma situação de nubentes encalhadas sem perspectiva de construir
família. Só do Engenho São Paulo e Conceição do Campo Grande, de Leandro Ribeiro
Siqueira - gente aparentada com o Familiar Domingos Dias Coelho, foram internadas na
Soledade quatro filhas nos meados do século XVIII. A falta não era apenas de brancos:
faltavam brancos da mesma qualidade e condição social. Em 1814 quando o Capitão José
de Barros de Passos solicitava ao Juiz de Casamentos da Bahia dispensa para casar-se com
D. Maria Vitória de Almeida, sua prima sendo o pai do “orador”. José de Barros Pimentel,
irmão do Capitão Mor João de Aguiar Boto, pai da “oradora”, alegava tratar-se “de famílias
iguais desta freguesia de Santo Amara e São Gonçalo, e temerem a desigualdade que possa
haver e a oradora ficar assim protegida e amparada pelo orador117.” Quantas não seriam as
sergipanas que viveram a triste situação desta donzela do poema recolhido por Sílvio
Romero em Lagarto nos finais dos oitocentos:

“Soluçava Dona Silvana por um corredor que tinha


que seu pai não a casava, nem por esta conta fazia.
Eu não vejo neste Reino, com que case filha minha,
Só se for com o Conde Alberto, mas ele tem mulher e filhos.
Com este mesmo é que eu quero, com este mesmo eu queria,
Mandai vós, ó pai, chamá-lo, para nossa mesa um dia...” (1977:77)

Os pais desejavam tanto casar bem suas filhas, que eles próprios se encarregavam de
desvencilhar os impedimentos legais no caso do pretendente ser do Reino. For o que
sucedeu no caso do falso viúvo Leitão, que seu próprio futuro-sogro, o Capitão Branco,
pagou os 40$000 réis das diligências para dispensa dos banhos, conseguindo a autorização
do enlace apenas com o juramento de testemunhas que afiançavam ser solteiro o
pretendente.
Passam-se alguns anos casados o “viúvo” Leitão e a senhorinha D. Francisca Tereza.
Nasce-lhes um filha. Por esta época Leitão andava em negócios por Angola, retornando a
Santa Luzia certamente com as algibeiras repletas de ouro conseguido no comércio com a
Costa da África, levando talvez o tabaco e aguardente de Sergipe e trazendo carregamento
de escravos. Aí sucede o que sempre temia o reinol : um seu abelhudo primo carnal;

117
- Arquivo da Cúria da Bahia, Dispensas Matrimoniais, 1814
Custódio Lopes de Souza, negociante em Estância, natural de Leiria, na Beira-Litoral,
denuncia ao Comissário Branco que seu “parente” Leitão tinha ainda sua primeira mulher
viva em Portugal, e mais ainda, “andava carregado de crimes”.
Imaginemos o impacto causado por tão devastadora denúncia na vida da pobre moça
enganada, na reputação da família Almeida Branco e particurlamente do Comissário
Inquisitorial: um casamento nulo, uma solteirona deflorada, um lar desfeito, uma filha que
perdeu seu pai.
É feito sumário em Curém, e a primeira Senhora Leitão confirma que há sete anos seu
legítimo marido partira para o Brasil e ela continuava viva, esperando que voltasse a fazer
vida conjugal.
O Comissário Branco não teve outra saída : aos 10 de outubro de 1777 mandou que o
Familiar Cel. Domingos Dias Coelho efetuasse a detenção do réu, seu ex-parente. De amigo
querido, Leitão se torna o inimigo número um da Família que anos antes o acolhera com
tanta simpatia. Aí o Pe. Branco oficia ao Comissário da Bahia, Pe. Gonçalo Falcão,
alertando que o Familiar de Sergipe não quer levar o delinqüente para Salvador, por isto
continuava preso na cadeia de Santa Luzia, “que é muito fraca e o preso muito arrojado e
destemido, não deixando-se prender com ferro.”
Visualisemos a mudança de atitude da família Almeida Branco : de amigo intimo do
Capitão, seu genro de repente o reinol é confinado na cadeia e só não é aguilhoado, como
um reles escravo fujão, porque faz valer seu arrojo e destemor. Finalmente é enviado preso
para a Bahia. Estes versinhos, também recolhidos por Silvio Romero na vizinha, região de
Lagarto parecem ter sido encomendados para descrever as agruras do infeliz polígamo
saudoso de sua sergipana :

“Eu vou preso prá Bahia, eu vou preso não vou só,
Só levo um pesar comigo, é a filha do Major,
Eu vou preso prá Bahia, levo guarda e sentinelas,
Prá saber quanto custa, a honra de moças donzelas.” (1977:122)

Em duas semanas o desafortunado Sr. Leitão é embarcado para Lisboa: era sua sexta
travessia do Atlântico! Sua confissão será somente em fevereiro do ano seguinte. Aí então
evidencia-se que era reincidente no mesmo crime, pois os burocratas funcionários do Santo
Ofício localizaram imediatamente seu primerio processo quando foi preso no Maranhão.
Em junho de 1778 vai pela segunda vez ao Auto de Fé, onde é declarado convicto no crime
de bigamia e relapso no cumprimento da penitência: é obrigado a fazer abjuração de
veemente suspeito na fé, recebe nova bateria de açoites, o degredo é aumentado para 10
anos e suas três mulheres e 5 filhos - em Portugal, no Maranhão e em Sergipe, ficam a ver
navios. Termina o processo com uma carta anexa, do Vigário de Fátima - o mesmo local
onde cento e tantos anos depois os três pastorinhos dirão ter visto a aparição de Nossa
Senhora - pedindo proteção ao Santo Oficio, pois o réu prometera que havia de matar ao
sacerdote pelo fato de ter enviado a Estância seu primo Custódio a proclamar que sua
primeira mulher continuava viva. Foi portanto este sacerdote o causador da última desgraça
na vida do Sr. Leitão. Se cumpriu o prometido, não ficamos sabendo. Hoje em dia, com a
legalização do divórcio, todas estas desgraças teriam sido evitadas e Sergipe contaria com
mais uma dinastia pois a novel família começava muito bem amparada: um dos padrinhos
do casamento frustrado era nada menos que o Capitão, de Mar e Guerra José Rois Dantas,
dono do Engenho de Nossa Senhora da Lapa da Cachoeira118, um dos homens mais
abastados do lugar.
Quatro anos são passados depois da prisão do polígamo de Santa Luzia, quando outro
sergipano é preso por ter prestado falso testemunho num processo de bigamia. José Cardoso
de Mello, 59 anos, curtidor de couros e criador de gado, era natural da freguesia de Santo
Antonio do Urubu de Baixo do Rio S. Francisco119. Seu delito foi o seguinte: jurou
conhecer a João Cavalcante de Albuquerque, do Engenho Apuá, na freguesia de N. S. da
Luz de Pernambuco, ratificando ser o pretendente livre e solteiro, desimpedido para casar-
se com Maria Pereira do Vale. Provada posteriormente a farsa, foi preso e em Lisboa, aos
27 de março de 1783 confessou que não tinha conhecimento próximo do nubente, o qual
com muitas instâncias havia rogado que jurasse em falso, como de fato o fez. Sua sentença
foi leve: três anos de degredo, obrigação de confessar e comungar, e mais algumas
penitências espirituais. Em abril de 1785 desembarca degredado na Bahia, apresentando-se
perante o Comissário Manuel Anselmo de Almeida Sande120; em setembro do mesmo ano,

118
- Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Coleção Sebrão Sobrinho, Cópia da
Matrícula dos Engenhos de Sergipe, 13 de outubro de 1823.
119
- ANTT, IL, Proc. nº 2778

120
- Este mesmo comissário era nos ínicios do século XIX Juiz encarregado das dispensas
matrimoniais na Relação Eclesiástica da Bahia por ocasião em que vários sergipanos solicitaram
autorização para se casarem com parentes consangüíneos. Alguns exemplos de nubentes
“incestuosos” pertencentes a famílias já citadas neste trabalho: José Bernardino Dias Coelho e
Antonia Tereza de Jesus (1814) são dispensados da consangüinidade de 2º grau mediante a esmola
de 40$000 “para as obras pias”; Antonio Coelho Barreto e Joana Francisco de Meio (1815), 4º grau
de consanguinidade, 16$000 de multa; Tomás Aquino Vieira e Francisca Desidéria (1815), 4º grau
de consanguinidade e mais a dispensa de idade pois a oradora tinha tão somente onze anos e dois
o Vigário de Propriá, Padre Alexandre Morato de Albuquerque, diz que o réu chegou em
sua freguesia e está sob vigia. Dois meses depois é o próprio José Cardoso de Mello quem
escreve ao Santo Ofício pedindo clemência: diz que por pouco não morreu de bexigas no
navio, que ficou cego de um dos olhos e encontrava-se na maior pobreza. Diz que sua
mulher e filhos padecem a maior miséria, moradores em Jaguaribe, no Reconcavo, a 300
léguas do Rio S. Francisco. Pede para ir fazer vida marital com sua mulher.
Só em 1787, 4 anos depois é que chega a permissão, porém ainda em 1789 o mesmo
Vigário de Propriá noticiava que o falso testemunho encontra-se no sertão, cuidando de seu
sustento e que tão logo chegasse à povoação, dar-lhe-ia a liberdade para retomar para sua
mulher e filhos. Entre sua prisão em 1782 e a última notícia deste Vigário em 1789,
passaram-se 7 anos: 7 anos de castigo, penúria, doenças, desamparo familiar, um olho
furado, tudo isso por ter colaborado com um amigo que desejava casar-se pela segunda vez.
Oh tempora! Oh mores!
Reservamos para encerrar este levantamento sobre a atuação do Santo Ofício em
Sergipe uma denúncia e confissão de blasfêmia e ateísmo. Aos 14 de setembro de 1777, no
mesmo ano em que Pombal era desterrado e da morte de D. José I, envia o Comissário
Branco uma denúncia ao Santo Oficio, comunicando que o Tabelião do Juizo Ordinário de
Lagarto no sertão de Sergipe. dizia publicamente: “Como podia Deus estar em todas as
hóstias? Então eram muitos Deuses?!” Além desta máxima herética, manifestava-se
também anticlerical quando dizia: “Que são sacerdotes? São Oficiais que ganham a sua

meses, autorização concedida com base no atestado do médico Dr. Antonio Joaquim de Lancastro,
confirmando ter a donzela maturidade suficiente para o enlace, multa de 12$000. (Arquivo da Cúria
da Bahia. Dispensas Matrimoniais, 1814-1815). Um último processo, já depois de extinta a
Inquisição : os noivos são Francisco de Lavre e Menezes e Maria Teresa de Jesus (1828), têm,
muitos parentes em comum - o bisavô dela era irmão do avô do orador por parte paterna e a avó
materna da oradora era irmã da avó materna dele. Para reforçar o pedido, um fait-accomplis : a
noiva é duplamente coitada, pois além de órfã, “já está vivendo em companhia do (apressado)
orador, e foi deflorada de sua virgindade pelo noivo, difamada pelo mundo e sem abrigo algum, e só
casando ficará livre das misérias humanas e para viverem em graças de Deus Nosso Senhor pedem,
a dispensa...” E concedida mediante o pagamento de 15 patacas, sempre para as obras pias. A falta
de famílias brancas, o isolamento das grandes propriedades rurais, o desejo da endogamia clânica
são os fatores que explicam tantos casamentos consinguíneos em Sergipe assim como, nas demais
capitanias do Brasil antigo.
vida por aquele ofício121.” O nome do autor destas irreverâncias: Antonio Bernardo Rocha.
Salvo erro, esta foi a única denúncia do Comissário Branco em toda sua vida de
Oficial da Inquisição em Sergipe : ou os sergipanos eram muito cautelosos não dando
oportunidade a delações contra a fé e os bons costumes, ou então, o velho comissário fazia
olho grosso das irreligiosidades de seu rebanho. Vivendo a tantas décadas no interior da
Capitania, o Pe. Branco talvez nunca tivesse se deparado vis-a-vis com um blasfemo
anticlerical, posto que embora antigo, é sobretudo no século XVIII que pipocarão na
Europa e no Novo Mundo, manifestações mais frequentes e estruturadas de oposição ao
dogma católico e à teologia cristã.
Passam-se quase dois anos desta denúncia quando o próprio delato, o Tabelião de
Lagarto, comparece pessoalmente perante o Comissário Branco para confessar-se de certas
heterodoxias pertencentes ao conhecimento do Santo Oficio. Apresenta-se identificando-se
como filho de Dr. José Cipriano da Rocha - provavelmente um dos primeiros doutores de
Sergipe, membro da elite lagartense.
Começa sua confissão dizendo que lera em Lisboa alguns livros heréticos, como
“Systeme de la Nature”, cujo autor era “um refinado ateísta”. Disse mais, que embora
algumas pessoas acusem-no de ter proferido publicamente certas heresias contra a religião,
negava-as, assumindo apenas ter dito que “o artífice que fez Nossa Senhora da Piedade da
Igreja de Lagarto era bom para fazer tamancos, pelos muitos defeitos da imagem.” Como
seus inimigos ameaçaram denunciá-lo, para evitar consequências contra sua pessoa, tomou
a iniciativa desta confissão, de tudo pedindo perdão antecipadamente.
Lagarto, a terra deste tabalião, é vila desde 1698, tendo sua freguesia como orago N.
S. da Piedade “cuja imagem devota tem atraído a veneração dos Povos”, diz D. Marcos
Antonio de Souza. (1944:28) E sobre esta venerável imagem que o irreverente confessante
fez o comentário jocoso que a mesma apresentava “muitos defeitos”. Vila pobre,
dependente da policultura de subsistência e do criatório extensivo, “seus habitantes não
estão ainda bem civilizados, a sua razão não tem sido cultivada por boa educação”, dizia o
mesmo prelado em 1808. No último quartel do século XVIII a situação sócio-cultural desta
vila devia ainda ser muito mais rústica: “As chitas, fustões, panos finos e galões com que
(seus habitantes) se apresentam nos dias festivos na vila e na matriz, este aparato fazem
ostentação de sua grandeza ...” Gente simples e iletrada : “Em todo este termo não se acha
um Mestre publico que ensine a ler e escrever, aritmética e os princípios de uma conduta
religiosa e temente a Deus. Quanto é difícil aos moradores de Lagarto apartarem de sua
companhia os tenros filhos e os enviar para aprenderem os primeiros elementos das letras

121
- ANTT, Caderno do Promotor nº 129 e 130.
(em S. Cristóvão ou Santa Luzia), em tão remotas distâncias...” (1944:29)
Este era o estilo de vida da terra do Tabelião Rocha antes de ir para Lisboa. Seu
percurso em direção à “civilização” teve um estágio no Rio de Janeiro, onde estudou latim
e teologia. Coincidentemente, no mesmo Caderno do Promotor onde encontramos sua
confissão, poucas páginas antes, há a denúncia de um capuchinho carioca, Frei Felix de
Cremona, contra o Padre José da Motta, autor de duas máximas heréticas: disse que não
existia inferno e se acaso houvesse, o tormento aí era a privação de Deus e não o fogo, tema
predileto dos barbadinhos em suas pregações (RJ, 12 de junho de 1778).
Talvez o lagartense já estivesse no Rio quando em 1763 foi preso pelo Santo Ofício
Padre Antonio Carlos Monteiro, 33 anos, filho de um abade, que afirmava a quem quisesse
ouvir: que o céu, a chuva, o sol não foram criados por Deus, pois todo seu movimento
procedia da natureza; que a morte dos pais de família deixando filhos desamparados e a
sobrevivência de pessoas inúteis comprovava a inexistência da Divina Providência; que
Jesus Cristo era puramente homem “e foi o mais ladino de seu tempo, sabendo fingir muito
bem”, etc, etc.122 Opunha-se igualmente a importantes do mas católicos: negava a
infalibilidade do Papa, dizia que Cristo não ressucitara, que Nossa Senhora não era Virgem.
Preso, confessa na cadeia que aprendera essas heresias em livros proibidos franceses,
italianos e latinos, juntamente com outros clérigos na cidade do Porto.
Se no Rio de Janeiro assim como noutros centros mais intelectualizados da Colônia o
“deísmo” e o ateísmo tinham fervorosos adeptos até dentro do clero 123, no Reino a
influência dos Enciclopedistas, de Voltaire, Diderot, era ainda muito mais efervescente. No
mesmo ano em que o tabelião de Lagarto se confessa, sintomaticamente em Lisboa, no
Auto de Fé de 11 de outubro de 1778, saíram condenadas 10 pessoas, todas culpadas de
“ateísmo”. Em Coimbra, sede da principal universidade portuguesa, o materialismo, anti-
clericalismo e ateísmo viçavam desbragados. Tomemos como exemplo o que sucedeu com
o carioca Antonio de Morais e Silva124, autor de um dos melhores dicionários da língua
portuguesa, denunciado por vários colegas universitários de não crer no céu, nem no

122
- ANTT, IL, Proc. nº 9697
123
- No Maranhão, o Administrador da Companhia de Comércio, Marçal Inácio Monteiro, (1779), é
acusado de ser “libertino”, e encontram em sua estante as seguintes obras: “Educação do Homem,
Questões sobre a Enciclopédia, O Espírito das Leis, A Decadência do Império Romano, Cartas do
Santo Padre Clemente XIV, História do Imperador Carlos V, Marquez d'Argent, O Príncipe de
Machiavel, Helvéticas, O Príncipe de Frei Paulo Sorre.” (ANTT, Proc. nº 2814)
124
– ANTT, IL, Proc. nº 2015. Um resumo com transcrição de algumas partes deste processo
podem ser encontradas in Baião, 1924:101
inferno, de comer carne na quaresma, reprovar o culto dos santos, e dizer que “a graça
santificante era um bicho muito grande, com uma grande mitra na cabeça.”
E certa feita, vendo Morais uma gata parir, comentou com ironia: “Se não fosse o pecado
de Adão, não sofreria tanto.” Só de livros, diziam que o bacharel brasileiro tinha 70$000,
entre eles: “Fausto, a Ensaio sobre o Homem de Pope, Rousseau, a Sistema de Mirabeau”,
Era chamado pelos seus colegas “o pai dos libertinos”125. Na sua confissão, em 1785,
declara de fato ter lido obras anti-católicas, inclusive uma que falava mal das crueldades da
Inquisição, e ter seguido “as perversas e erradas doutrinas da religião natural”, não
acreditando na lei da graça, na hierarquia eclesiástica, no poder do Papa e dos Bispos,
Temendo a intolerância do Santo Oficio, fugiu para a Inglaterra, onde por 4 anos trabalhou
na edição de nova versão do Dicionário de Bluteau. Ao voltar ao Reino, apresentou-se
espontaneamente à Inquisição “arrependido e pedindo perdão” (sic). Sua sentença é lida na
Mesa: faz abjuração de seus erros de heresia e apostasia da fé, recebendo apenas castigos
espirituais - obrigação de confessar-se 4 vezes por ano nas grandes festas litúrgicas, rezar
um terço semanal e rezar em todas as 6ª feiras 5 Padre Nosso e 5 Ave-Maria pelas chagas
de Cristo. Será que cumpriu a penitência? Parece que não, pois ao voltar ao Brasil, o
Bacharel Morais estabelece-se em Pernambuco, passando a viver no Engenho Moribeca, e
em 1806, nova acusação chega à Inquisição, inculpando-o da mesma irreligiosidade e
libertinagem de seu tempo de universitário. Com uma série de outros pernambucanos é
delatado por proclamar as seguintes blasfêmias: “Deus é corno, a Virgem Maria uma puta,
não há inferno e a missa pode ser celebrada no “vaso” de uma prostituta126.”
Assim pensava e falava uma das parcelas mais intelectualizadas do Brasil e Portugal
nestes finais do século XVIII. E nosso Tabelião de Lagarto, tendo morado no Rio de
Janeiro e em Lisboa, teve muitas ocasiões para ler e trocar idéias sobre os “autores
modernos” defensores do materialismo, anti-clericalismo, ateísmo e libertinismo. Dentre as
obras destes autores, o irreverente lagartense citou apenas Le Systeme de la Nature, cujo
autor, “um refinado ateísta” omite o nome. Talvez o inculto Comissário Branco tivera
dificuldade em escrever o nome do franco-germano Paulo Henri Dietrich, Barão d'Holbach
(1723-1789), autor da obra. O Tabelião tivera razão em chamá-lo de ateísta, pois o barão-

125
- Eis o que o próprio Morais em seu Dicionário indica sob o verbete “libertino” : o que é
licencioso, dissoluto na vida, mal procedido, Que é incrédulo na religião e ofende suas práticas; que
é imoral em costumes, dissoluto, depravado. Pessoa que sacudiu o jugo da revelação, entendendo
que' a razão por si só pode guiar com certeza no que respeita a Deus, à vida futura, etc e por isso
não segue os preceitos da religião, e antes pratica atos contrários aos seus princípios.
126
- ANTT, IL, Proc. nº 14.321
filósofo fora ferrenho inimigo de todas as doutrinas, as quais condiserava instrumentos do
despotismo, defensor apaixonado do materialismo e mecanicismo. Colaborador da
Encylopedie, publicou o seu Systéme de la Nature em 1770, sendo também autor de
importante obra histórico-filosófica Le Christianisme Devoilé127, Infelizmente o sergipano
não cita quais outros “livros heréticos” que leu. Seu conhecimento de Holbach, a poucos
anos após sua publicação, sugere-nos que devia ter trilhado a mesma bibliografia de Morais
e demais ateus da época, passando por Rousseau, Hume, Spinoza, Voltaire, Machiavel,
Bodin, Diderot, Pope, etc.
Sua confissão fora sem dúvida estratégica - como a de Morais, pois em negócios do
conhecimento do Santo Ofício, “melhor era prevenir do que remediar”. Uma confissão
raramente se desdobrava em processo, diferentemente das denúncias que poderiam implicar
em sumário e prisão. E como em Lagarto “diziam que ele dizia publicamente heresias”,
preferiu colocar logo uma pá de cal sobre este murmúrio do que arriscar-se a ser delatado.
Imaginemos a pequenina vila de Lagarto, que em 1775 possuía tão somente 317 fogos e
2342 almas128, com seus habitantes vestidos de chita e fustões na saída da missa dominical
lavradores e vaqueiros rústicos, considerados entre os sergipanos como “os mais
observantes das máximas do cristianismo”, que escândalo não teria causado nessas
cabecinhas simples o discurso do Bacharel recém chegado do Reino, citando autores anti-
clericais e um “refinado ateísta”, fazendo chacota sobre os defeitos da milagrosa N. S. da
Piedade, questionando a transubstanciação e a sacrossantidade do sacerdócio ?! Se um
século depois, em Laranjeiras, o povo “tentou linchar e apedrejar as casas” dos primeiros
protestantes de Sergipe, imaginemos a intolerância religiosa e fanatismo dos lagartenses,
numa época em que o Padre Malagrida, o maior santo do Brasil setecentista assim como a

127
- “É com o Barão d'Holbach que as tendências verdadeiramente ateístas do pensamento do séc.
XVIII virão a ser formuladas em termos filosóficos num primeiro passo em direção à argumentação
naturalista do século seguinte. Foi à sua mesa que David Hume confessou nunca ter conhecido um
ateu ao que lhe retorquiram estar nesse momento na companhia de dezessete ! Holbach é talvez o
primeiro ateu inequivocamente declarado na tradição ocidental. Nele vemos as consequências
lógicas dos pressupostos da nova filosofia cientifica levadas à sua primeira conclusão explicita e
assim nele podemos ver o que significa “a natureza” depois de eliminadas todas as conotações
religiosas. Para Holbach a natureza ou Universo não passa de matéria em movimento... Holbach
ataca abertamente a religião na sua obra Le Système de la Nature. Nela se fazem três acusações
principais à religião: 1º de construir uma base errada para a moral; 2º de não ser cientifica e se opor
à ciência; 3º de construir a religião o suporte principal de uma ordem social corrupta e sua doutrina
da vida depois da morte desvia a nossa atenção dos males presentes.” (Thrower, 1982:112-115)
128
- E. C. Almeida, 1914, Doc. nº 8750
maior parte dos católicos atribuíam o terremoto de Lisboa à ira divina provocada pelos
pecados e irreligiosidade dos homens129.
Atentemos para um detalhe: a confissão de Antonio Bernardo da Rocha é datada de 20
de fevereiro, provavelmente logo após o início da Quaresma. Até 1821, no mesmo domingo
que hoje em todas as igrejas católicas inaugura-se a “Campanha da Fraternidade.
antigamente nesta mesma data eram lidos solenemente os famigerados “Editais do Santo
Ofício”. Em alto e bom tom, na Igreja matriz de Lagarto, assim como ocorria em todas as
missas dominicais da totalidade das matrizes por este Brasil e Portugal a fora o Vigário
lembrava aos fiéis suas obrigações de confessarem e denunciarem todos e quaisquer
desvios da Santa Fé. Estes “Editais” eram em seguida afixados em lugar bem visível para
que os fiéis tivessem ao alcance da vista as obrigações relativas ao conhecimento do Santo
Oficio.
“Os Inquisidores Apostólicos contra a herética pravidade a apostasia nesta cidade e
seu distrito, fazemos saber aos que a presente virem, ou dela por qualquer via tiverem
notícia, que considerando nós a obrigação que temos de procurar reprimir e extirpar todo
delito e crime de heresia e apostasia, para maior conservação dos bons costumes e pureza
de nossa Santa Fé Católica, e sendo informado que algumas pessoas por não terem perfeito
conhecimento dos casos que pertencem ao Santo Oficio, deixam de vir denunciar de alguns
deles (...) que num prazo de 30 dias venham denunciar e manifestar ante nós o que
souberem dos casos abaixo declarados”. Aí seguem-se uma vintena de “heresias e
apostasias” que deviam ser erradicadas, por exemplo: não crer no inferno, praticar as
malditas seitas de Maomé e Moisés, casar-se duas vezes, fazer feitiçarias, cometer o pecado
nefando, etc, etc. Dentre estas cláusulas, algumas pareciam carapuças encomendadas para o
rebelde bestunto do filho do Dr. José Cipriano da Rocha. Veja só : “Se souberem ou
ouvirem que algum cristão haja dito ou feito alguma coisa contra nossa Santa Fé Católica,
duvidado ou sentido mal de algum dos artigos dela e de tudo aquilo que tem, crê e ensina a
Santa Madre Igreja de Roma... Se negaram haverem de ser venerados os Santos e tomados
por nossos intercessores diante de Deus, ou recusado a veneração às suas relíquias e
imagens... Se sabem ou ouviram que alguma pessoa, sem legítima licença, comprasse ou
vendesse ou tenha ou leia livros ou escritos que claramente contenham qualquer dos

129
- Independentemente das discussões teológico-ecológicas mantidas entre o Padre Malagrida e os
sequazes de Pombal, o certo é que Sergipe como o resto das Capitanias, teve obrigatoriamente de
contribuir por muitos anos com a reedificação da cidade de Lisboa. Em 1779. Sergipe enviou
2:820$000 para a dita re-urbanização, o equivalente a 1/10 do que enviava somente a Capitania da
Bahia. (APEB, Maço 180)
sobreditos erros, ou sejam proibidos ou embaraçados pelo Tribunal competente...” (Mott,
1985)
Como dissemos, provavelmente para evitar maiores problemas, o jovem tabelião
humildemente cumpriu o ordenado pela Carta Monitória : “Nos lugares onde houver
Comissário do Santo Oficio, denunciarão diante dele.” Custa-nos crer que o delinqüente
tivesse conhecimento que seu nome já fora enviado a Lisboa pelo próprio vigário de Santa
Luzia: a correspondência destinada à Casa do Rocio era cercada de total sigilo, e
dificilmente seu conteúdo escapava dos cárceres secretos. Outros brasileiros também com
culpa no cartório, tomavam ainda maiores precauções: em 1795, o pernambucano João
Coelho da Silva, da freguesia da Boa Viagem, doutor em Direito Canônico por Coimbra,
escreve prolixa carta ao Santo Oficio onde faz sua protestação de fé, dizendo que a Santa
Inquisição “tem sido sempre a âncora segura que tem salvado a barca de São Pedro,
conservando ilesa no Reino e seus domínios a pureza dos costumes e a fé.” Não contente
com tanta bajulação, renova sua servil obediência à Santa Madre Igreja: recita o Credo em
latim, diz crer no Decálogo, na Bíblia e nos escritos dos Santos Padres. Diz ainda abominar
o deísmo, materialismo, fatalismo e Rousseau, porém “conversando sobre esses erros, pode
ser que alguma pessoa menos esclarecida o ouvisse mal e se escandalizasse, e isto tem-lhe
inquietado o espírito.” Preste atenção o leitor o quanto as pessoas viviam atemorizadas de
caírem nas malhas e má vontade dos Inquisidores ! Sendo pessoa importante - Cavaleiro da
Ordem de Cristo e Tesoureiro do Real Erário em Pernambuco, o bacharel Coelho da Silva
temia que algum inimigo despeitado o quisesse prejudicar com calúnias, pois reconhecia ter
perdido algumas missas e comido carne em dias proibidos, porém, como licença médica...
Termina humildemente ratificando “não crer nas falsas doutrinas dos malvados libertinos
que negam a imortalidade da alma, o livre arbítrio, a Providência divina, cuja cegueira tem
chegado a tanto que até negam a existência de Deus, absurdo que repugna a toda
razão130...”
Tanta esmola... o santo desconfia! Talvez se o tabelião de Lagarto tivesse manuscrito
sua confissão, teria produzido um depoimento do teor deste seu colega de beca. A nosso
ver, o que une tanto o dicionarista Morais, quanto os bacharéis de Lagarto e de
Pernambuco, além da prática do libertinismo, é a falsidade da confissão e da protestação de
fé, tudo não passando de uma encenação programada para engabelar velhos sacerdotes
indubitavelmente muito mais ignorantes e iletrados que os poliglotas acadêmicos.

130
- ANTT, Caderno do Promotor, nº 133
Em 1821, quando é extinta a Inquisição, provavelmente o Tabelião Rocha ainda
estava vivo, e podia então respirar mais tranqüilo e falar mais livremente, pois não havia
mais tribunal que condenasse convicções filosófico- teológicas divergentes do catecismo
católico. Apesar dos sergipanos ainda apedrejarem os protestantes em finais do último
século, novas luzes começavam a brilhar neste rincão nordestino. Observem a fantástica
coincidência: nesta mesma Lagarto, terra dos mais devotos sergipanos, o materialismo do
Tabelião deixou raízes profundas, tanto que em 1851, nascerá nesta mesma vila, um dos
mais destacados filhos de Sergipe del Rey: Silvio Romero, entusiasta discípulo e
divulgador do evolucionismo e agnosticismo de Darwin e Spencer, inimigo ferrenho da
metafísica, grande luminar da Escola do Recife. Mais prudente e menos iconoclasta que seu
contemporâneo do século XVIII, Silvio Romero dirá em 1901, num discurso na Câmara
dos Deputados, ao defender a instauração do Casamento Civil: “Não se trata de repetir as
pugnas, hoje estéreis, das facécias do Voltaireanismo e dos rancores do fanatismo : as
pilhérias anti-religiosas fizeram já o seu tempo, as crenças rudes e intensas não se
desarraigam a golpes de ridículo ; mas também os furores dos fanáticos e as cóleras dos
teólogos não convencem mais ninguém,” (1904:45)
E continua mais além, demonstrando que o evolucionismo monista deu-lhe as
premissas para uma crítica constrututiva do casamento enquanto instituição que os católicos
defendiam “como uma espécie de quimérico noli me tangere a perder-se nas nuvens entre
os cânticos dos anjos.” (No Plenário da Câmara, muitos apoiados!!!” e “não apoiados !!!”).
Eis o argumento do autor da Etnografia Brasileira (1888): “Será mister com a filosofia
evolucionista lembrar que o casamento é uma simples criação humana, não divina,
sucedânea da promiscuidade primitiva, do matriarcado, da Poliandria, que se foi lentamente
depurando através de diversas fases de evolução da cultura, desde o regime tribal até a
organização dos grandes estados antigos e assim sucessivamente até os tempos hodiernos”
(1904:48).
O materialismo e ateísmo continuarão sua caminhada em Sergipe, alastrando-se
inclusive na beata Laranjeiras, que pretende ter a primazia no Brasil, do culto ao Sagrado
Coração de Jesus. Aí nesta vila, a mais próspera da Província, no século XIX, no seu último
quartel, o Dr. Domingos Guedes Cabral, médico pela Academia de Medicina da Bahia, “foi
perseguido por causa de seu irritante e inoportuno ateísmo”, conforme as palavras do
piedoso vigário local, Cônego Philadelpho de Oliveira. “Sua tese, Funções do Cérebro,
explodiu nos acampamentos católicos como uma bomba de dinamite... O vírus do ateísmo
infiltrou-se no corpo social laranjeirense de cima para baixo. São estas infiltrações as mais
perniciosas, porque vêm das camadas superiores para as inferiores. Por toda a cidade só se
falava em Religião e Direito, tendo cada laranjeirense em baixo do braço, a Bíblia e o
Código. Morrendo o cético D. Cabral, em 1883, homem de grande inteligência, caráter
rígido e inquebrantável, deixou seu nome gravado, nas frias páginas da sua materialista
tese, surgiram os pregadores da revolta contra o Império e a Igreja. (Oliveira, 1981:138).
Caiu o Santo Ofício, caiu o Império e a “barca de S. Pedro” apesar de todo o
“aggiornamento” e das comunidades de base, também perde terreno.

CONCLUSÃO

Com a confissão do Tabelião de Lagarto termina nessa documentação sobre a ação do


Santo Oficio em Sergipe. Em 1821, quando da extinção do Terrível Tribunal cujo última
Inquisidor Mor, triste sina, foi o pernambucano. D. José Joquim da Cunha Azevedo
Coutinho, já tinham falecido e Familiar Domingos Dias Coelho e o Comissário Francisco
Alves Branco. Sergipe entrava numa neva era: seu neve Governador recém-nomeado,
Carlos Cesar Burlamarque, empossado em fevereiro de 1821, declarava em sua primeira
prestação de contas à Corte : “No decurso de meu geverno, não foi preso ninguém por
opinião.” (Freyre, 1977:237) Bens ares reinavam na Capitania!
Contudo, já na primeira junta de Geverno Provisório, logo após a Independência, entre
seus membros dirigentes, lá estava o Coronel Domingos Dias Coelho e Meio, filho de
principal Familiar de Santo Oficio de Sergipe : querendo eu não, uma lembrança sinistra e
atemorizadora dos tempos das trevas e da fogueira, mostrando que o “caciquismo”
brasileiro também teve na Inquisição suas raízes (Benassar, 1976).
Cento e sessenta e quatro anos são passados após a extinção de Terrível Tribunal :
muita água correu por baixo da bela ponte de Laranjeiras. A velha capital S. Cristóvão é
relegada a cidade-museu: Aracaju, desde 1855, representou o elan de uma neva era
modernista neste que é o menor estado do Brasil (Mott, 1983). Se Sergipe é a terra de
evolucionista Silvio Romero, também ai nasceu o ultra-conservador católico. Jacksen de
Figueiredo, e mais combativo inimigo das idéias liberais e socialistas, autor da Literatura
Reacionária (1924). Teria sido intransigente Familiar de Santo Oficio caso tivesse vivido
nos tempos de absolutismo clerical. A fundação nos últimos anos em Aracaju, do “1º
Templo de Demônio.” revela, contudo, que a tentação de misticismo e das artes cabalísticas
continua forte em terras de Sergipe del Rey, e mesmo não existindo mais Inquisição, a
esdrúxula igreja satânica teve suas portas fechadas por ordem judicial, evidentemente, por
mais checante que possa parecer, um grave desrespeite à liberdade de culto garantida pelas
nessas Constituições.
Concluo estas páginas dedicando este trabalhe à memória de todos esses moradores de
Sergipe - escravos, pequenos lavradores, marinheiros, emigrantes portugueses, militares,
mulheres enganadas, meleques que foram perseguidos e tiveram suas vidas prejudicadas
pela sanha intolerante e obscurantista da Inquisição.. Ignorados pela histeriografia oficial,
esses personagens cujo direito à história até então se lhes negou, são um exemplo de
coragem, ousadia e determinação de seres humanos superiores, que anteviram o engodo
reacionário e e ranço intolerante da “Santa Inquisição.” cuja santidade não aceitaram,
pondo em risco suas próprias vidas, mas não abrindo mão do livre arbítrio, da auto
determinação e da busca da felicidade aqui mesmo na terra. Que o exemplo desses
moradores de Sergipe nos sirva de lição. A eles, nosso respeito, admiração e
agradecimento, por terem aberto o caminho da contestação ao autoritarismo e à intolerância
religiosa.

Bahia de Todos os Santos; 1985


Ano 164 de Fim da Inquisição.

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“Um documento inédito para a história da Independência”,


in Carlos G. Motta (Ed.) Dimemsões 1822, Editora Perspectiva, SP. 1972.

“Cautelas de Alforria de duas escravas na Provincia do Pará, 1829-1846”

Revista de História, USP, nº 95, 1972

“A Escravatura: a propósito de uma representação a El Rei sobre a escravatura no Brasil”


Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, USP, nº 14, 1973

“O Peregrino Instruido: a propósito de um formulário etnográfico do Século XV,”

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A Suplementary bibliography on Marketing and Marketplaces.


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“Fazendas de Gado do Piauí: 1698-1762”


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“Subsídios à historia do pequeno comércio no Brasil”


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“Marchés ruraux au Nordeste du Brésil”


Mainzer Geographische Studien, Mainz, 1976

Os pecados da Família na Bahia de Todos os Santos.


Centro de Estudos Baianos, Salvador 1982
“A Revolução dos Negros do Haiti e o Brasil”

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“Relações raciais entre homossexuais no Brasil Colonial”


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“Etno-demonologia : Aspectos da vida sexual do Diabo no Mundo Ibero-Americano”


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“Aids : reflexões sobre a sodomia”


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Sergipe Del Rey:


População, Economia e Sociedade
(Coleção Jackson da Silva Lima) - FUNDESC Aracaju - 1986

O Lesbianismo no Brasil:
Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1987

“A Inquisição no Piaui”
Diário do Povo, 29-10-1987

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