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WIPHALA: SÍMBOLO DA RESISTÊNCIA HISTÓRICA DOS POVOS

ANDINOS
No dia 11 de novembro de 2019 a população de El Alto e das Províncias indígenas
do altiplano andino saíram às ruas em defesa da Wiphala que, um dia antes, tinha
sido queimada e retirada dos uniformes de policiais bolivianos. Esta data ficou
reconhecida pelos movimentos aymara-quéchuas como o Día de la Liberación de la
Wiphala.

Fotos de 10 de novembro de 2019. À direita policiais bolivianos cortam o símbolo da Wiphala dos
uniformes, à esquerda pessoas afins de Luís Fernando Camacho queimam a bandeira.

“LA WIPHALA SE RESPETA, CARAJO”

No dia 10 de novembro de 2019, minutos depois da renúncia de Evo Morales,


Luis Fernando Camacho – representante da oligarquia de Santa Cruz de la Sierra – e
Marco Pumari – presidente do Comitê Cívico Potosinista – entraram ao Palácio de
Governo do Estado Plurinacional da Bolívia, ajoelharam-se diante de uma Bíblia
posicionada sobre a bandeira tricolor e proferiram: “A Pachamama nunca mais voltará ao
Palácio de Governo”. Este evento desencadeou duas ações contra a Wiphala que, desde a
promulgação da Constituição de 2009, foi considerada um dos símbolos do Estado
Plurinacional da Bolívia: a primeira ação foi a de pessoas afins ao movimento de
Camacho e Pumari que retiraram a Wiphala do Palácio de Governo e a queimaram; a
segunda ação foi a de policiais amotinados que cortaram a bandeira de suas insígnias.

Este foi o gatilho para que a cidade de El Alto e as comunidades indígenas do


altiplano andino saíssem às ruas no dia 11 de novembro em defesa da Wiphala gritando
em uníssono: “La Wiphala se respeta, carajo”. O líder histórico aymara Felipe Quispe
Huanca, conhecido como El Mallku, se pronunciou em suas redes sociais: “La Wiphala
no es del Evo Morales ni del MAS, es nuestro símbolo de los aymaras, quechuas y otras
naciones indígenas y originarias. El temblor vendrá desde abajo. Carajo” um pouco
antes de encabeçar o último movimento de bloqueios de sua vida, o que duraria quase um
ano até o fim do governo de Jeanine Añez e as novas eleições de outubro de 2020.

WIPHALA: Símbolo da narrativa histórica indianista

O movimento indianista1 foi o pioneiro em dar uma interpretação e um uso


político para a Wiphala. Entre os anos 1960 e 1980, Constantino Lima Chávez e Fausto
Reinaga evidenciaram este símbolo não somente como uma representação arqueológica
dos andinos – uma vez que a Wiphala aparece em tecidos Tiwanakotas e q’irus (vasos de
barro) incas -, mas como uma gramática própria da história de resistências anticoloniais
dos aymara-quéchuas. Segundo Franco Limber, militante do grupo de aymaras Jichha e
autor do livro “Wiphala: Historia real de un símbolo de lucha” (2020)2 na segunda metade
do século XX a Wiphala se transforma em um símbolo político anti-sistêmico3. Neste
sentido a luta de Constantino Lima Chávez4 foi indispensável para impulsionar este
símbolo entre os movimentos aymaras, já que foi ele quem começou a manipular as
Wiphalas nas reuniões indianistas, nas assembleias e nos congressos. No livro de
Constantino Lima Chávez “Wiphala del Tahuantinsuyu. El verdadeiro reaparecimento
histórico de las Wiphalas” (2003), o autor afirma que o redescobrimento da Wiphala
como símbolo político nos anos 1960 tem relação com o movimento anticolonial de Julian

1
Existe um erro muito cometido por intelectuais não-bolivianos que é o de associar o movimento indianista
com o movimento katarista para se referir à luta histórica anticolonial dos aymaras e quéchuas bolivianos.
O movimento indianista tem origem após a Revolução de 1952 como crítica à forma pela qual o Movimiento
Nacionalista Revolucionário reduziu os povos indígenas à condição de campesinato, desconsiderando sua
organização social, política e territorial própria, o horizonte do indianismo é a Revolução Índia, um
horizonte anticapitalista e anticolonial, e não ocupar o Estado. Já o katarismo tem duas vertentes principais,
mas ambas demonstram um interesse de ocupar espaços políticos no Estado Boliviano: a vertente de Jenaro
Flores e Victor Hugo Cárdenas se preocupava mais com as expressões sindicais dos indígenas andinos,
relacionando raça e classe com a luta do movimento sindical, não previam uma revolução nos termos dos
povos originários; já a linha katarista de Fernando Untoja prega pelo liberalismo aymara, vendo os povos
andinos como essencialmente capitalistas, seu objetivo é ocupar os espaços do Estado e construir uma elite
burguesa aymara.
2
Disponível em: https://jichha.blogspot.com/2021/09/wiphala-historia-real-de-un-simbolo-de.html?m=1
3
Para Limber, a característica anti-sistêmica da Wiphala relaciona uma memória histórica que é
anticolonial, anticapitalista e anti-neoliberal (especialmente pelas lutas da Guerra do Gás de 2003).
4
Constantino Lima Chávez, hoje com seus 88 anos, é o único dos fundadores do indianismo que segue
vivo. Ele foi o primeiro a popularizar a nomenclatura Abya Yala para o território latino-americano, já que
passou um tempo entre os Kuna durante um de seus exílios. Lima foi torturado 9 vezes durante governos
ditatoriais e “democráticos” da Bolívia, e teve filhos e o próprio pai assassinados como consequência da
luta pela libertação dos povos indígenas.
Apaza Tupac Katari e Bartolina Sisa em 17815: “minha preocupação principal foi a de
descobrir e conhecer as Wiphalas que, pela última vez, foram levantadas pelo povo índio
à cabeça de Bartolina Sisa e Julian Apaza Tupac Katari”.

Foto que faz parte do arquivo pessoal de Constantino Lima cedida para a autora. Na imagem de 1975,
Constantino Lima discursa em Genebra durante uma reunião de povos indígenas.

O que Constantino Lima faz é um exercício de memória histórica das resistências


anticoloniais por meio de um símbolo. A partir deste momento – segunda metade do
século XX – a Wiphala é utilizada como evidência de uma narrativa histórica até então
apagada pela narrativa histórica oficial boliviana. Mas é, segundo Franco Limber, Fausto
Reinaga quem teoriza a relação entre este símbolo e o movimento indianista, associando
a Wiphala como símbolo da nação aymara-quéchua e como representação do horizonte
indianista: a Revolução Índia6.

Outro sujeito da luta indianista que assumiu um papel importante na construção


de sentidos políticos da Wiphala foi Germán Choquehuanca (também conhecido como

5
O movimento de Tupac Katari e Bartolina Sisa em 1781 tinha como objetivo extinguir os tributos
indígenas que mantinham as colônias e a exploração forçada de trabalhos indígenas conhecida como m’ita.
Foram cerca de 80.000 indígenas que se mobilizaram ao lado de Tupac Katari e Bartolina Sisa, estruturando
os primeiros bloqueios à cidade de La Paz.
6
“La Revolución India” (1970) é um dos livros mais conhecidos de Fausto Reinaga, nele o autor teoriza o
indianismo, o sujeito político índio e os horizontes de uma sociedade índia. Este é, sem dúvidas, um dos
livros clássicos anticoloniais da América Latina.
Wáskar Chukiwanka)7. Nas palavras de Franco Limber, ele é quem “estandardiza este
símbolo. A estandardização é muito importante nos símbolos, porque quando se
estandardiza algo se cria uma linha para seu uso generalizado, antes dele existiam
Wiphalas de diferentes formas e cores, mas foi ele quem deu significado às cores, à sua
origem, ele fez uma revisão histórica séria, ligando-a a elementos exotéricos das
sociedades andinas. Neste momento era muito necessário dar um conteúdo ideológico à
Wiphala” (entrevista, 08 de novembro de 2021). O exercício de dar sentidos ideológicos
à Wiphala é a construção de uma historiografia indianista, um movimento anticolonial de
buscar a memória histórica das lutas dos povos andinos e plasmar estes eventos nos
símbolos, transformando a Wiphala em uma gramática própria da luta indígena.

No entanto, foi Felipe Quispe Huanca8 quem difundiu esta gramática histórica da
Wiphala, sobretudo durante as mobilizações de 2000 até a Guerra do Gás de 20039,
incorporando ao símbolo o sentido de anti-neoliberalismo contra as políticas do então
presidente Gonzálo Sanchez de Lozada. Os bloqueios realizados durante o Octubre Negro
foram um resgate histórico das mobilizações de 1781, da memória de resistências. Os
confrontos com militares deixaram um saldo de mais de 60 mortes, mas a mobilização
conquistou a renúncia de Gonzálo Sanchez de Lozada.

O sequestro simbólico da Wiphala e a polarização regional

Após as mobilizações de 2000-2003, os movimentos indígenas andinos apoiaram


a eleição de Evo Morales Ayma à presidência da Bolívia pelo MAS-IPSP (Movimiento
al Socialismo – Instrumento Político por la Soberanía de los Pueblos), com a promessa

7
Germán Choquehuanca faleceu no dia 10 de fevereiro de 2021 e deixou um legado literário e político
muito importante para as nações indígenas e paras as lutas anticoloniais.
8
Felipe Quispe Huanca foi um militante do indianismo tupak-katarista e historiador. É reconhecido pela
luta nos Ayllus Rojos e no Ejército Guerrillero Tupak Katari (EJTK) no fim dos anos 1980 e começo dos
anos 1990. Ele faleceu no dia 19 de janeiro de 2021, quando se candidatava à governador de La Paz. Para
saber um pouco mais sobre a trajetória de Felipe Quispe:
https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/bolivia-a-rebeldia-ancestral-de-felipe-quispe/
9
Mais informações em Mamani, Pablo Ramirez. “El rugir de la multitud: levantamiento de la ciudad aymara
de El Alto y caída del gobierno de Sánchez de Lozada” (2004). Para o autor, os sucessos de outubro de
2003, denominado Octubre Negro, mostraram o topo máximo da inconformidade da população racializada
com o sistema de governo neoliberal. O pedido era gás para todos os bolivianos e não para a exportação,
além de uma assembleia constituinte para reformular a estrutura do Estado, onde as maiorias, populações
indígenas rurais e urbanas, não fossem mais sujeitos de exclusão. Para o autor, o Octubre Negro foi um
cenário onde a população indígena mostrou para as elites dominantes da Bolívia que não era possível pensar
o país sem a participação das comunidades camponesas, originárias e dos indígenas que compunham as
cidades. A efetividade das mobilizações deu-se pelas estratégias de bloqueios e marchas, nas quais as Juntas
Vecinales de El Alto mobilizavam símbolos e recursos aymaras para articular e ativar um bloco
hegemônico. Dentre os símbolos mobilizados estavam a Wiphala, a folha de coca e personagens históricos
da memória coletiva como Tupac Katari e Bartolina Sisa.
da representação das pautas destes movimentos e de um “processo de mudança” (proceso
de cambio) que modifique as estruturas do Estado por baixo, pelas necessidades dos
camponeses, dos indígenas e das classes populares bolivianas. Neste sentido, Evo
Morales assumiu a responsabilidade de “mandar obedecendo o povo” e de transformar o
Estado Republicano, colonial e opressor em um Estado como instrumento de
transformação social. Para Elizabeth Huanca, indianista e membra do coletivo de
mulheres aymaras Warmi Sisas, o proceso de cambio nunca pertenceu ao MAS como
partido, sempre foi uma pauta dos movimentos sociais, especialmente dos movimentos
indígenas e, por isso, ainda que haja críticas às políticas do MAS nos últimos 14 anos
como contrárias à esta transformação10, é necessário apostar pelo proceso de cambio
como uma luta própria destes movimentos desassociando-o da cúpula do MAS e
devolvendo seu sentido popular.

Os movimentos regionalistas bolivianos já surgiram no contexto da Guerra do


Gás, provenientes especialmente das elites oligárquicas do oriente boliviano que não
aceitavam a Agenda de Octubre Negro. Para estes movimentos regionalistas – conhecidos
como Comitês Cívicos11, o mais reconhecido é o Comitê Cívico Pró Santa Cruz – a
exportação do gás natural deveria ser aprovada nos termos propostos pelo presidente
(Goni), além disso, eles solicitavam que a sede política do Estado deveria retornar à
Sucre12, criticando o que para eles era um centralismo de La Paz nas decisões do Estado.
Estes movimentos se expressaram violentamente contra migrantes kollas13 em 2003 e,
também, no contexto da Assembleia Constituinte entre 2006 e 200814; uma das práticas
assumidas pelos movimentos em Sucre foi a queima da Wiphala associando-a com o
MAS e, consequentemente, com um projeto político em favor das populações indígenas.

10
Existem diversos textos que evidenciam estas críticas ao governo de Evo Morales, deixo aqui algumas
referências: https://tapuia.milharal.org/2019/11/13/da-construcao-a-corrosao-das-bases-populares-dos-
governos-de-evo-morales-entrevista-de-chryslen-goncalves-ao-blog-do-tapuia/
https://www.nodal.am/2019/11/como-derrocaron-a-evo-por-pablo-stefanoni-y-fernando-molina/
11
Os Comitês Cívicos são organizações da direita que apoiaram historicamente regimes totalitários, em
geral, são compostos por representantes das elites empresariais e oligárquicas da Bolívia.
12
A sede do governo da Bolívia está em La Paz e é onde se encontram os poderes executivo e legislativo,
a capital está em Sucre que é onde se encontra o poder judiciário. Esta divisão é proveniente da Guerra
Federal de 1898-1899 com a vitória dos republicanos e a derrota dos conservadores.
13
Como caracterizam as pessoas provenientes das terras altas bolivianas. Esta nomenclatura tem relação
com a divisão incaica dos territórios, intitulando este como kollasuyu.
14
Muitos constituintes indígenas foram extremamente violentados por sucreños neste período. Algumas
imagens e vozes foram resgatadas no documentário Humillados y Ofendidos (2008) dirigido por César Brie,
Pablo Brie y Javier Horacio Alvarez. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=my_dfXXaLTI
É certo que foi um grande avanço para os povos bolivianos a aprovação da
Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia em 2009, texto que reconheceu a
Wiphala como símbolo do Estado e os princípios ético-morais dos povos indígenas. No
entanto, o processo de reconhecimento destes símbolos e da própria Pachamama
(normalmente traduzida como “madre tierra”) produziu um sequestro dos sentidos
históricos e populares destes símbolos, criando uma associação direta entre eles e o MAS.
Este sequestro se evidencia quando algumas políticas do governo de Evo Morales vão na
contramão do proceso de cambio, entre elas: o conflito com o Territorio Indigena e Parque
Nacional Isibóre Sécure que previa a construção de uma rodovia que atravessaria o
território indígena sem passar por uma consulta prévia às populações (direito previsto
pela Cosntituição); a manipulação de postos de liderança nas organizações sociais como
a CONAMAQ e a COB; o conflito com os produtores de folha de coca tradicional nos
Yungas pela aprovação da Ley de Cocas (Leu n. 906, 2017) que limitava os espaços de
produção de cocas nos Yungas e beneficiava a produção nos territórios do Chapare
(espaço onde Evo Morales foi representante sindical); o conflito em 2017 da comunidade
Achacachi contra práticas corruptas do prefeito vinculado ao MAS (conflito duramente
reprimido pelo Estado); entre outras práticas contrárias ao projeto de transformação no
qual o partido se apoiava discursivamente.

Nesta conjuntura, a Wiphala, que carregava um sentido político de luta


anticolonial em defesa dos interesses dos povos indígenas, começou a ser negada nos
espaços de resistência às políticas extremamente colonialistas do governo de Evo Morales
por ser associada diretamente ao MAS. Ela passa de uma representação histórica de
resistência indígena para uma representação partidária. Sobre isto, o integrante do
coletivo indianista La Curva, Roger Adan Chambi Mayta, escreveu um texto intitulado
“Interrogantes en torno al MAS y la simbologia en crisis” (2017)15, no qual o autor relatou
que, em uma manifestação de El Alto em defesa do Campo Ferial da cidade ele e outros
integrantes do coletivo participaram do ato com as suas Wiphalas, mas foram
questionados por outras pessoas que compunham o espaço se eles eram vinculados ao
MAS: “Usamos o nosso distintivo e também (devido à nossa formação e convicção
ideológica) a Wiphala. Fomos vaiados pela multidão. 'Eles não são masistas? Cuidado,
eles são infiltrados do governo! Como eles vem com a Wiphala? Que horror! Que
vergonha!' As pessoas presentes murmuraram e reclamavam, segurando as suas bandeiras

15
Disponível em: https://rogeradanchambi.blogspot.com/2017/06/interrogantes-en-torno-el-mas-y-la.html
tricolores.”. Chambi se questiona sobre o sequestro destes símbolos e de seus significados
pelo partido de Evo Morales, considerando que há exatos 14 anos, em El Alto, as
Wiphalas eram levantadas como símbolo da luta pelo mesmo território e pelos interesses
dos mesmos sujeitos que agora carregavam as bandeiras tricolores.

11 de novembro: Dia da libertação da Wiphala

Queimar a Wiphala foi o estopim para que muitos indígenas da cidade de El Alto
e das comunidades rurais saíssem às ruas, ocupassem e bloqueassem as passagens para a
cidade de La Paz, capital política da Bolívia, no dia 11 de novembro de 2019. As notícias
internacionais repercutiam o mesmo discurso polarizado: “populações saem às ruas em
defesa de Evo Morales”, uma tergiversação dos gritos que ressoavam nas ruas de El Alto:
“La Wiphala se respeta, carajo”, “La Pachamama se respeta!”, “Jallalla las mujeres de
pollera”16. Para estas populações, o ataque à Wiphala foi um ataque não só a um símbolo,
mas sim à existência mesma deles como sujeitos, à memória histórica destes povos, aos
seus direitos conquistados com muitas lutas e à sua identidade, todos estes elementos que
transbordam o MAS.

Interessados em manter a memória histórica deste “reposicionamento político da


Wiphala” - como proposto pelo sociólogo e integrante do movimento aymara-quéchua
Pablo Mamani Ramírez -, representantes dos mais diversos coletivos e grupos políticos
aymara-quéchuas se reuniram na Universidad Pública de El Alto – universidade com uma
ampla tradição de mobilização política em defesa dos povos indígenas andinos – no dia
11 de novembro de 2020, um ano após os eventos de 2019. Para Mamani, 2019 foi um
confronto com as elites e com a forma pela qual as elites oligárquicas bolivianas pensam
o país, uma forma de enfatizar que as conquistas dos povos indígenas não serão apagadas
da história boliviana. Para isso, estes movimentos decidiram criar um grupo aymara-
quéchua para organizar todos os anos, nesta mesma data, um evento recordando a
violência e a resistência de 2019, eles denominaram como “Dia da libertação da
Wiphala”. Para Franco Limber, o dia 11 de novembro de 2019 demonstra dois pontos
importantes sobre este símbolo: reforça a sua importância nas sociedades andinas e na
história da Bolívia, e desmistifica a associação antes existente entre a Wiphala e um

16
Polleras são as saias de camadas utilizadas como símbolos identitários pelas mulheres indígenas andinas
conhecidas como cholas.
partido ou governo específicos. O símbolo retorna para as mãos dos povos andinos e eles
devolvem seu sentido de resistência.

11 de novembro de 2020. Movimentos aymara-quéchuas reunidos pelo reconhecimento do “Dia da


libertação da Wiphala” na Universidad Publica de El Alto (UPEA). Entre eles estão Constantino Lima
Chávez e Germán Choquehuanca, representantes dos movimentos indianistas dos anos 1960-1980. Foto da
autora.

No dia 24 de setembro de 2021, durante um evento oficialista do Estado boliviano


em comemoração aos 211 anos do grito libertário de Santa Cruz de la Sierra, no ato oficial
de hastear as bandeiras, a Wiphala, colocada pelo vice-presidente boliviano David
Choquehuanca, foi retirada pelos representantes do Departamento de Santa Cruz – do
qual Luis Fernando Camacho é atualmente governador - com o argumento de que este
símbolo não representava o oriente boliviano, mas sim o Patujú (bandeira de uma flor que
é a representação dos povos indígenas do oriente). Este foi considerado um ato racista e
desencadeou mobilizações gigantescas de desagravo à Wiphala no dia 12 de outubro de
2021, com a participação de muitas organizações sociais, entre elas as organizações de
base do MAS17.

O subtexto da retirada da Wiphala em Santa Cruz não é a falta de representação


que este símbolo tem sobre este espaço, uma vez que parte substancial da população
cruceña é de migrações andinas. Não é do interesse da elite oligárquica cruceña evidenciar
símbolos de nenhum grupo indígena, seja do ocidente ou do oriente bolivianos, mas eles
veem na Wiphala mais do que a representação de uma população, este símbolo é a
evidência dos direitos desta população e de uma agenda política que, ao fim e ao cabo,
não beneficia a oligarquia.

Livros lançados pelos movimentos aymara-quéchuas sobre 2019:


GRUPO JICHHA. “Wiphala, crisis y memoria. Senkata, no te merecen” – La Paz, marzo
de 2020.
Mamani Ramírez, Pablo (coord.). “Wiphalas, luchas y la nueva nación” – El Alto: Círculo
de Estudios Estratégicos de El Alto, Editoral Nina Katari, Revista Willka, 2020.

17
É importante esclarecer aqui que após as eleições de 2020 a figura do vice-presidente Davi Choquehuanca
e sua postura crítica ao partido criou um bloco interessante e auto-crítico que deve ser analisado e que
parece disputar os espaços e narrativas no interior do MAS.

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