Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ANDINOS
No dia 11 de novembro de 2019 a população de El Alto e das Províncias indígenas
do altiplano andino saíram às ruas em defesa da Wiphala que, um dia antes, tinha
sido queimada e retirada dos uniformes de policiais bolivianos. Esta data ficou
reconhecida pelos movimentos aymara-quéchuas como o Día de la Liberación de la
Wiphala.
Fotos de 10 de novembro de 2019. À direita policiais bolivianos cortam o símbolo da Wiphala dos
uniformes, à esquerda pessoas afins de Luís Fernando Camacho queimam a bandeira.
1
Existe um erro muito cometido por intelectuais não-bolivianos que é o de associar o movimento indianista
com o movimento katarista para se referir à luta histórica anticolonial dos aymaras e quéchuas bolivianos.
O movimento indianista tem origem após a Revolução de 1952 como crítica à forma pela qual o Movimiento
Nacionalista Revolucionário reduziu os povos indígenas à condição de campesinato, desconsiderando sua
organização social, política e territorial própria, o horizonte do indianismo é a Revolução Índia, um
horizonte anticapitalista e anticolonial, e não ocupar o Estado. Já o katarismo tem duas vertentes principais,
mas ambas demonstram um interesse de ocupar espaços políticos no Estado Boliviano: a vertente de Jenaro
Flores e Victor Hugo Cárdenas se preocupava mais com as expressões sindicais dos indígenas andinos,
relacionando raça e classe com a luta do movimento sindical, não previam uma revolução nos termos dos
povos originários; já a linha katarista de Fernando Untoja prega pelo liberalismo aymara, vendo os povos
andinos como essencialmente capitalistas, seu objetivo é ocupar os espaços do Estado e construir uma elite
burguesa aymara.
2
Disponível em: https://jichha.blogspot.com/2021/09/wiphala-historia-real-de-un-simbolo-de.html?m=1
3
Para Limber, a característica anti-sistêmica da Wiphala relaciona uma memória histórica que é
anticolonial, anticapitalista e anti-neoliberal (especialmente pelas lutas da Guerra do Gás de 2003).
4
Constantino Lima Chávez, hoje com seus 88 anos, é o único dos fundadores do indianismo que segue
vivo. Ele foi o primeiro a popularizar a nomenclatura Abya Yala para o território latino-americano, já que
passou um tempo entre os Kuna durante um de seus exílios. Lima foi torturado 9 vezes durante governos
ditatoriais e “democráticos” da Bolívia, e teve filhos e o próprio pai assassinados como consequência da
luta pela libertação dos povos indígenas.
Apaza Tupac Katari e Bartolina Sisa em 17815: “minha preocupação principal foi a de
descobrir e conhecer as Wiphalas que, pela última vez, foram levantadas pelo povo índio
à cabeça de Bartolina Sisa e Julian Apaza Tupac Katari”.
Foto que faz parte do arquivo pessoal de Constantino Lima cedida para a autora. Na imagem de 1975,
Constantino Lima discursa em Genebra durante uma reunião de povos indígenas.
5
O movimento de Tupac Katari e Bartolina Sisa em 1781 tinha como objetivo extinguir os tributos
indígenas que mantinham as colônias e a exploração forçada de trabalhos indígenas conhecida como m’ita.
Foram cerca de 80.000 indígenas que se mobilizaram ao lado de Tupac Katari e Bartolina Sisa, estruturando
os primeiros bloqueios à cidade de La Paz.
6
“La Revolución India” (1970) é um dos livros mais conhecidos de Fausto Reinaga, nele o autor teoriza o
indianismo, o sujeito político índio e os horizontes de uma sociedade índia. Este é, sem dúvidas, um dos
livros clássicos anticoloniais da América Latina.
Wáskar Chukiwanka)7. Nas palavras de Franco Limber, ele é quem “estandardiza este
símbolo. A estandardização é muito importante nos símbolos, porque quando se
estandardiza algo se cria uma linha para seu uso generalizado, antes dele existiam
Wiphalas de diferentes formas e cores, mas foi ele quem deu significado às cores, à sua
origem, ele fez uma revisão histórica séria, ligando-a a elementos exotéricos das
sociedades andinas. Neste momento era muito necessário dar um conteúdo ideológico à
Wiphala” (entrevista, 08 de novembro de 2021). O exercício de dar sentidos ideológicos
à Wiphala é a construção de uma historiografia indianista, um movimento anticolonial de
buscar a memória histórica das lutas dos povos andinos e plasmar estes eventos nos
símbolos, transformando a Wiphala em uma gramática própria da luta indígena.
No entanto, foi Felipe Quispe Huanca8 quem difundiu esta gramática histórica da
Wiphala, sobretudo durante as mobilizações de 2000 até a Guerra do Gás de 20039,
incorporando ao símbolo o sentido de anti-neoliberalismo contra as políticas do então
presidente Gonzálo Sanchez de Lozada. Os bloqueios realizados durante o Octubre Negro
foram um resgate histórico das mobilizações de 1781, da memória de resistências. Os
confrontos com militares deixaram um saldo de mais de 60 mortes, mas a mobilização
conquistou a renúncia de Gonzálo Sanchez de Lozada.
7
Germán Choquehuanca faleceu no dia 10 de fevereiro de 2021 e deixou um legado literário e político
muito importante para as nações indígenas e paras as lutas anticoloniais.
8
Felipe Quispe Huanca foi um militante do indianismo tupak-katarista e historiador. É reconhecido pela
luta nos Ayllus Rojos e no Ejército Guerrillero Tupak Katari (EJTK) no fim dos anos 1980 e começo dos
anos 1990. Ele faleceu no dia 19 de janeiro de 2021, quando se candidatava à governador de La Paz. Para
saber um pouco mais sobre a trajetória de Felipe Quispe:
https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/bolivia-a-rebeldia-ancestral-de-felipe-quispe/
9
Mais informações em Mamani, Pablo Ramirez. “El rugir de la multitud: levantamiento de la ciudad aymara
de El Alto y caída del gobierno de Sánchez de Lozada” (2004). Para o autor, os sucessos de outubro de
2003, denominado Octubre Negro, mostraram o topo máximo da inconformidade da população racializada
com o sistema de governo neoliberal. O pedido era gás para todos os bolivianos e não para a exportação,
além de uma assembleia constituinte para reformular a estrutura do Estado, onde as maiorias, populações
indígenas rurais e urbanas, não fossem mais sujeitos de exclusão. Para o autor, o Octubre Negro foi um
cenário onde a população indígena mostrou para as elites dominantes da Bolívia que não era possível pensar
o país sem a participação das comunidades camponesas, originárias e dos indígenas que compunham as
cidades. A efetividade das mobilizações deu-se pelas estratégias de bloqueios e marchas, nas quais as Juntas
Vecinales de El Alto mobilizavam símbolos e recursos aymaras para articular e ativar um bloco
hegemônico. Dentre os símbolos mobilizados estavam a Wiphala, a folha de coca e personagens históricos
da memória coletiva como Tupac Katari e Bartolina Sisa.
da representação das pautas destes movimentos e de um “processo de mudança” (proceso
de cambio) que modifique as estruturas do Estado por baixo, pelas necessidades dos
camponeses, dos indígenas e das classes populares bolivianas. Neste sentido, Evo
Morales assumiu a responsabilidade de “mandar obedecendo o povo” e de transformar o
Estado Republicano, colonial e opressor em um Estado como instrumento de
transformação social. Para Elizabeth Huanca, indianista e membra do coletivo de
mulheres aymaras Warmi Sisas, o proceso de cambio nunca pertenceu ao MAS como
partido, sempre foi uma pauta dos movimentos sociais, especialmente dos movimentos
indígenas e, por isso, ainda que haja críticas às políticas do MAS nos últimos 14 anos
como contrárias à esta transformação10, é necessário apostar pelo proceso de cambio
como uma luta própria destes movimentos desassociando-o da cúpula do MAS e
devolvendo seu sentido popular.
10
Existem diversos textos que evidenciam estas críticas ao governo de Evo Morales, deixo aqui algumas
referências: https://tapuia.milharal.org/2019/11/13/da-construcao-a-corrosao-das-bases-populares-dos-
governos-de-evo-morales-entrevista-de-chryslen-goncalves-ao-blog-do-tapuia/
https://www.nodal.am/2019/11/como-derrocaron-a-evo-por-pablo-stefanoni-y-fernando-molina/
11
Os Comitês Cívicos são organizações da direita que apoiaram historicamente regimes totalitários, em
geral, são compostos por representantes das elites empresariais e oligárquicas da Bolívia.
12
A sede do governo da Bolívia está em La Paz e é onde se encontram os poderes executivo e legislativo,
a capital está em Sucre que é onde se encontra o poder judiciário. Esta divisão é proveniente da Guerra
Federal de 1898-1899 com a vitória dos republicanos e a derrota dos conservadores.
13
Como caracterizam as pessoas provenientes das terras altas bolivianas. Esta nomenclatura tem relação
com a divisão incaica dos territórios, intitulando este como kollasuyu.
14
Muitos constituintes indígenas foram extremamente violentados por sucreños neste período. Algumas
imagens e vozes foram resgatadas no documentário Humillados y Ofendidos (2008) dirigido por César Brie,
Pablo Brie y Javier Horacio Alvarez. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=my_dfXXaLTI
É certo que foi um grande avanço para os povos bolivianos a aprovação da
Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia em 2009, texto que reconheceu a
Wiphala como símbolo do Estado e os princípios ético-morais dos povos indígenas. No
entanto, o processo de reconhecimento destes símbolos e da própria Pachamama
(normalmente traduzida como “madre tierra”) produziu um sequestro dos sentidos
históricos e populares destes símbolos, criando uma associação direta entre eles e o MAS.
Este sequestro se evidencia quando algumas políticas do governo de Evo Morales vão na
contramão do proceso de cambio, entre elas: o conflito com o Territorio Indigena e Parque
Nacional Isibóre Sécure que previa a construção de uma rodovia que atravessaria o
território indígena sem passar por uma consulta prévia às populações (direito previsto
pela Cosntituição); a manipulação de postos de liderança nas organizações sociais como
a CONAMAQ e a COB; o conflito com os produtores de folha de coca tradicional nos
Yungas pela aprovação da Ley de Cocas (Leu n. 906, 2017) que limitava os espaços de
produção de cocas nos Yungas e beneficiava a produção nos territórios do Chapare
(espaço onde Evo Morales foi representante sindical); o conflito em 2017 da comunidade
Achacachi contra práticas corruptas do prefeito vinculado ao MAS (conflito duramente
reprimido pelo Estado); entre outras práticas contrárias ao projeto de transformação no
qual o partido se apoiava discursivamente.
15
Disponível em: https://rogeradanchambi.blogspot.com/2017/06/interrogantes-en-torno-el-mas-y-la.html
tricolores.”. Chambi se questiona sobre o sequestro destes símbolos e de seus significados
pelo partido de Evo Morales, considerando que há exatos 14 anos, em El Alto, as
Wiphalas eram levantadas como símbolo da luta pelo mesmo território e pelos interesses
dos mesmos sujeitos que agora carregavam as bandeiras tricolores.
Queimar a Wiphala foi o estopim para que muitos indígenas da cidade de El Alto
e das comunidades rurais saíssem às ruas, ocupassem e bloqueassem as passagens para a
cidade de La Paz, capital política da Bolívia, no dia 11 de novembro de 2019. As notícias
internacionais repercutiam o mesmo discurso polarizado: “populações saem às ruas em
defesa de Evo Morales”, uma tergiversação dos gritos que ressoavam nas ruas de El Alto:
“La Wiphala se respeta, carajo”, “La Pachamama se respeta!”, “Jallalla las mujeres de
pollera”16. Para estas populações, o ataque à Wiphala foi um ataque não só a um símbolo,
mas sim à existência mesma deles como sujeitos, à memória histórica destes povos, aos
seus direitos conquistados com muitas lutas e à sua identidade, todos estes elementos que
transbordam o MAS.
16
Polleras são as saias de camadas utilizadas como símbolos identitários pelas mulheres indígenas andinas
conhecidas como cholas.
partido ou governo específicos. O símbolo retorna para as mãos dos povos andinos e eles
devolvem seu sentido de resistência.
17
É importante esclarecer aqui que após as eleições de 2020 a figura do vice-presidente Davi Choquehuanca
e sua postura crítica ao partido criou um bloco interessante e auto-crítico que deve ser analisado e que
parece disputar os espaços e narrativas no interior do MAS.