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Material para Filosofia I do IFSul, Câmpus Charqueadas. 2021, módulo 1.

Rafael B. Santos, rafaelbittencourt@ifsul.edu.br

OS PRÉ-SOCRÁTICOS

O início?

A filosofia ocidental tem como um dos seus marcos as investigações de um grupo de


teóricos dos séculos VI a IV AEC. Elas registram um modo peculiar de investigação e uma
concepção própria de natureza, talvez um novo tipo de investigação e uma nova concepção de
natureza. Alguns tomam-nos como os primeiros filósofos de que se tem registro. i Essa é uma
afirmação que exige um pouco de atenção.
A palavra registro é importante. Às vezes a afirmação vem sem
esse adendo. A filosofia não é uma atividade exclusivamente escrita, de
modo que a limitação do nosso registro escrito não pode, sem mais,
ser tomada como a limitação da antiguidade da filosofia ela mesma.
Assumindo que estamos falando do que temos registrado, ela
marca uma distinção entre os pensadores desse período e dos
anteriores em termos do que é filosofia, afinal ela implica que os escritos
anteriores não são filosóficos. A afirmação é controversa porque há
registros anteriores nas civilizações orientais — no Egito, na
Mesopotâmia, na Pérsia, na Índia e na China — que poderíamos
Confúcio, filósofo chinês dos
considerar próprios da filosofia. Há também uma discussão arcana séculos VI-V AEC

sobre o caráter ocidental ou não da filosofia, seja isso acidental ou não, que influencia e informa
as nossas aproximações do assunto. Não entraremos nessa discussão, mas é importante que você
saiba dessa controvérsia para não tomar automaticamente o início do nosso curso como o início
da filosofia nem a geografia do nosso curso como a geografia da filosofia.

O nome

É comum denominar os filósofos deste período como pré-socráticos. Isso dá a entender


que eles são anteriores no tempo a Sócrates, o que é falso: o período dos pré-socráticos vai de
585 AEC a 400 AEC, e Sócrates viveu de 470 AEC a 399 AEC. ii Perceba que o ano “fim” dos
pré-socráticos é imediatamente anterior ao da morte de Sócrates. Marca-se, mais propriamente, o
começo do legado de Sócrates. Sobre isso e sobre ele, trataremos mais adiante no curso.
A nomenclatura é reconhecidamente problemática e traz consigo diferentes insinuações
sobre esse conjunto de filósofos, iii mas é utilizada nos textos de referência. Podemos nos referir a
eles também como filósofos gregos anteriores, distinguindo-os do período clássico da filosofia
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grega antiga, caracterizado pelas escolas que dominaram o cenário intelectual a partir século IV AEC.
Eu irei me referir daqui por diante a eles como naturalistas, porque nosso foco de estudo serão as
reflexões deles sobre a natureza, a physis. Physis é a palavra grega para natureza e, por isso, às vezes eles
são chamados físicos (eram os physikoi). Como “física” nos remete a um estudo mais restrito, de um
aspecto da natureza, escolhi a palavra de raiz latina (natura), para marcar sua maior amplitude. Essa
denominação não é sem problemas, porque sugere que refletiram exclusivamente sobre a natureza, o
que é falso. Tanto eles preocuparam-se com filosofia moral como os filósofos gregos posteriores
preocuparam-se com filosofia natural. Ainda assim, o tipo de preocupação deles com a natureza marca
sua especificidade em relação aos registros anteriores que temos. É enquanto fundadores de uma
ciência da natureza que os abordaremos.

A natureza

Deixemos de preâmbulos e passemos à filosofia propriamente dita. Cotidianamente, “natureza”


nos remete a tudo a nossa volta que não foi feito por nós. Pense nesse estudo como no estudo da
natureza das coisas. Eles não se interessam simplesmente pela natureza, e sim pela natureza das coisas.
Nesse contexto, quando falamos da natureza (da physis), falamos da natureza das coisas.
Podemos explicar o nosso mundo com uma narrativa. No princípio, era o Verbo. No princípio,
era a singularidade. Então deus disse “faça-se a luz”.
Então houve uma grande expansão, ou um big bang.
O que temos aqui é uma causação, um evento ou uma
coisa que leva a outro ou outra. Uma sequência causal
é uma sequência de dominós caindo: o primeiro
derruba o segundo que derruba o terceiro e assim por
diante em um processo que se estende no tempo.
Assim, temos uma história, seja ela contada a partir da Foto da atmosfera terrestre (Nasa)
ação de deus ou dos deuses, seja ela contada por processos naturais.
Esse paralelo entre a narrativa religiosa e a científica é importante porque o que distingue os
naturalistas gregos não é um repúdio à religião nem é a cientificidade tal como nós a compreendemos
hoje o que os caracteriza. O par religião/ciência tal como usamos faz parte de uma história posterior e
só de modo estereotipado é que poderemos aplicá-lo ao contexto grego. É verdade que as investigações
dos naturalistas estão nas raízes do que hoje compreendemos por ciência. iv Os conceitos que eles
cunharam são importantes para compreendermos a ciência. Todavia, a tensão entre o científico e o
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religioso ou entre a razão e a fé não é o que estrutura o seu pensamento.


Voltando. Podemos explicar o mundo por uma narrativa. Podemos também explicar o mundo
através de princípios. Um princípio não explica uma só coisa ou um só evento, mas todos de que é
princípio. Pus a chaleira no fogo e a água ferveu. Não temos apenas uma explicação “narrativa” para
isso, não compreendemos essa sequência de modo particular. Não é que desta vez a água ferveu. É que
a água ferve quando aquecida. Isso é da sua natureza. Isso é natural.
O que caracteriza as investigações e reflexões dos naturalistas é a busca por explicações naturais
nesse sentido. Isso é usualmente apresentado como a passagem do mito à filosofia. O mito não é apenas
uma história qualquer, ele carrega consigo uma explicação. v Ocorre que sua estrutura é eminentemente
narrativa: primeiro isso, depois aquilo. Esses filósofos não necessariamente negavam a narrativa, por
vezes eles acrescentavam uma camada a mais de
explicação.vi Os mitos foram importantes para a
própria constituição dessas investigações. vii Pode ser
que Urano, o Céu, tenha chovido sobre Gaia, a
Terra, e então tenham surgido os novos Titãs e
depois os deuses e depois os seres humanos. Há
algo necessário, isto é, inevitável, nessa história? De
que são feitos o céu, a terra, os deuses e os A queda dos Titãs, Jacob Jordaens, 1638.

homens? Qual é o princípio, a arché, disso tudo?


Essa camada explicativa vem com uma exigência de comunicabilidade e persuasão. A narrativa
mítica pode ser particularizada: cada região pode ter a sua versão, o seu modo de contar o princípio de
tudo. Embora o mito possa ser compreendido literalmente, ele pode ser também compreendido
metaforicamente. Urano chove sobre Gaia: percebemos a sugestão da fertilidade, os elementos
masculino e feminino, o reconhecimento da água como motor do ciclo natural. Quando nos
perguntamos pela natureza das coisas, querendo com isso investigar o que faz delas o que elas são e não
outra coisa, deixamos de lado essa variabilidade. Passamos a perguntar: é, e por que seria, necessário um
elemento masculino e um feminino? A água é o que engendra o ciclo natural? Por que ela e não os
outros elementos? Agora, não queremos mais uma narrativa, mas a razão. Razão traduz lógos. Aqui, não
devemos pensar na razão como um pensamento na nossa cabeça. Devemos pensar na razão das coisas:
se temos razão, temos compreensão das coisas. Se expresso um pensamento “racional”, expresso a
própria ordem das coisas. Como vivemos no mesmo mundo, quem tem razão não pode tê-la sozinho.
Se você descobriu a razão das coisas, deve ser capaz de me mostrá-la. Porque essa razão não é sua, é a
razão do mundo. É como se você tivesse “acoplado” à realidade.
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Isso tudo vem acompanhado da concepção do mundo como um todo organizado (kosmos). O
mundo não simplesmente existe ou passou a existir, ele existe de maneira estruturada, harmônica, em
certo sentido, bela.

Os milésios

Os primeiros naturalistas, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, são de Mileto. Por isso, ficaram
conhecidos como da Escola de Mileto.
Mileto não fica na atual Grécia, e sim na atual Turquia. Quando falamos na Grécia Antiga,
falamos de um conjunto de povos e cidades que partilhavam de culturas e línguas aproximadas, não do
atual território grego. Geograficamente, estavam espalhadas por várias partes das costas dos mares
Mediterrâneo e Negro. Não havia uma unidade política nem uma uniformidade cultural.

Mapa da Grécia Antiga, sem as colônias na Itália e no Bósforo.


Tales postulou que tudo veio da água ou que tudo é feito de água, não sabemos ao certo.viii
Evidentemente, ele não quis dizer que tudo sacia a sede. Pensemos na pergunta pela arché (pelo princípio)
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ou pela physis (pela natureza das coisas). A natureza de tudo o que existe seria a água. Tudo seria uma
combinação de água. Sabemos que um elemento pode dar origem a diferentes coisas a depender da sua
estrutura: pegue o grafite e o diamante, que são feitos apenas de carbono. Tales não compreendia os
elementos como nós compreendemos os elementos químicos, isso serve apenas de ilustração.
Perceba que ao postular que tudo é água, Tales está dizendo que há
algo fundamental na realidade (outra tradução de arché é fundamento) e que não é
diretamente perceptível. Nós não vemos água nos cães e nas pedras. A
afirmação de Tales implica que cães e pedras são água ou constituídos
inteiramente de água. Não em parte, inteiramente. A água seria o elemento
básico a partir do que tudo o mais seria feito.
Não sabemos a base observacional de Tales, a evidência que ele
pensou ter para fazer essa afirmação, embora possamos especular, nem
estamos tentados a aceitá-la. O que nos interessa é perceber o que está
envolvido em seu raciocínio. O mundo como experienciamos é de uma
grande variedade de coisas e temos aqui um raciocínio que procura a
semelhança de todas as coisas. Uma semelhança que não está a olhos vistos, que exige uma inferência,
uma abstração. Uma semelhança que é origem de todas as coisas (origem é ainda outra tradução para
arché). Uma semelhança que explica a natureza da realidade e, ao explicá-la, seja a sua razão ou o seu
fundamento.
Antes de prosseguirmos, perceba que a
explicação de Tales não necessariamente contradiz as
narrativas míticas. Certamente as nega caso elas
impliquem que os elementos fundamentais da realidade
são outros que a água, que, para ficar no nosso
exemplo, Urano e Gaia não tenham surgido ou existido
a partir de uma composição aquosa. Entretanto, isso

Ruínas de Mileto
provavelmente não está implicado
no mito. Também não implica a
inexistência dos deuses. Ainda assim, há uma diferença no estilo de composição: o
que Tales produz é pretensamente baseado em observação e argumentação
enquanto os mitos são legados pela tradição, pelos relatos, pelas memórias e pelas
revelações aos antigos (o mythos é a “palavra dita”)ix. É aqui que marcamos o caráter
pretensamente racional das explicações oferecias pelos naturalistas. x
Tales de Mileto
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Dentre os milésios, há mais dois em nosso percurso. Anaximandro, que dizia que o princípio é
o ilimitado e não se identifica a nenhum elemento material, xi e Anaxímenes, que contradizia a segunda
parte da posição de Anaximandro, afirmando que o elemento material fundamental é o ar
acompanhado de duas operações, a rarefação e a condensação. xii Vamos por partes.
Comecemos pela posição de Anaximandro. O que quer que signifique dizer que o princípio da
natureza é o ilimitado, isso implica que ele não tem nenhuma definição. Pensemos assim: tudo que
percebemos tem algum limite, algum fim, algum contorno. O princípio, segundo Anaximandro, não
pode ter isso. Ao se recusar a apontar um elemento material como fundamental, recusa-se a apontar um
fundamento material para a ordenação desse ciclo. Farejamos aqui a ideia de um
princípio, explicação, fundamento ou origem não material para a realidade. Estamos
chegando à ideia de um âmbito exclusivamente racional da realidade ou da natureza,
que explica e que não se identifica com a matéria. Se isso
parecer muito esotérico, pense nas leis científicas. Elas
explicam os fenômenos que acontecem, mas não são os
fenômenos que acontecem (essa não é a única posição sobre
o que são leis científicas, mas a trago porque é a que oferece
Anaximandro, na tela
"A escola de Atenas" uma boa ilustração). Elas podem ser tidas como a estrutura
racional da realidade, a estrutura que fundamenta os eventos que vivenciamos. Anaxímenes

Passemos a Anaxímenes. O que nos interessa em sua divergência com Anaximandro é a


afirmação de duas operações que regem o elemento fundamental. Temos a afirmação não só da matéria
primordial, mas também do modo como ela se comporta para formar as demais. Temos a identificação
do movimento ou da transformação fundamental da natureza. Como uma aproximação, podemos
imaginar que isso é um antecedente do que hoje temos como leis naturais.

Os pitagóricos

Os pitagóricos formaram uma escola ou uma seita xiii inspirados nos ensinamentos de Pitágoras
de Samos. Esse Pitágoras é aquele do Teorema de Pitágoras, assim como o Tales que vimos é o do
Teorema de Tales. Não focamos aqui nos demais feitos dos filósofos, mas cabe dizer que eles eram
bastante ecléticos em seus interesses.
Os pitagóricos afirmavam que as coisas são números.xiv Assim como fizemos com Tales, devemos
compreender essa afirmação como uma afirmação a respeito do fundamento da realidade, da natureza
das coisas, da ordem do mundo. Cada número expressaria algo sobre a natureza. O Um, por exemplo,
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expressaria a unidade primordial.xv Os demais números estavam associados às formas geométricas e à


harmonia musical, que por sua vez estariam associadas à natureza das coisas.
Sem entrar na doutrina pitagórica, marquemos novamente a abstração feita na concepção da
natureza. À moda de Anaximandro, temos uma concepção não-material da natureza, agora com um
pouco mais de desenvolvimento. Além disso, o que é bastante importante, associada à matemática. A
matemática, aqui, não é um instrumento para explicar a realidade ou para constituir um método de
previsão dos fenômenos, ela é a realidade.
Paremos um pouco diante dessa afirmação: ela é a realidade. Devemos
notar que estamos lidando implicitamente com uma diferenciação daquilo que
vivemos e experienciamos entre o que é propriamente real e o que é aparente.
Não é, embora já chegaremos a uma atitude mais negativa, que o aparente é
uma ilusão, é que o aparente não é por si só real: sua realidade depende de
algo mais fundamental, que é propriamente real. Ao dizer que tudo é número, os
pitagóricos não necessariamente afirmavam que o pão que comemos é uma
ilusão. O que estava implicado é que o pão que comemos é a “superfície” da
Pitágoras
realidade, é a sua “casca”, e tem as suas características e existência devidas aos
números.

Heráclito de Éfeso

Heráclito defendeu que o elemento fundamental é o fogo, que o mundo é eterno e que tudo
flui.xvi Toda identificação que fazemos é uma identificação ilusória, porque cada coisa é uma coisa
diferente a cada momento. Iludimo-nos quando cremos que algo é o mesmo em instantes diferentes.
Uma ilusão necessária, talvez precisemos admitir (em algum sentido você deve crer que você é agora o
mesmo que começou a ler este texto), de todo modo, uma ilusão. Não é um acidente que tudo seja
fluxo, é necessário que assim seja. Pense em um rio: se a água parar de fluir, o rio deixa de ser, deixa de
existir. De uma parte, rio nunca é o mesmo, porque a água que nele corre é sempre outra. De outra, o
ser do rio consiste na sua mudança. Isso valeria para toda a realidade. Chamamos esse caráter transiente
da natureza de devir.
Perceba que a explicação de Heráclito envolve tanto um princípio material, o fogo, como a
identificação de um processo, o devir. Note que, ao falar de um elemento fundamental, ele não está
falando do elemento “mais importante”, ele está falando do elemento básico, daquilo que constitui tudo
o que existe. A expressão “elemento fundamental” é aqui um tanto redundante, porque nesse contexto
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falar “elemento” é falar do constituinte básico da natureza. Porém, tão importante quanto esse
princípio material é o fluxo, o movimento, a transformação. Deparamo-nos com o movimento ou a
transformação como uma das características mais importantes da natureza.
Ao dizer que o mundo é eterno, ele está dizendo que ele não começou nem terminará. Perceba
agora que o princípio, a origem ou o fundamento (as diferentes traduções e sentidos de arché) não pode mais
fazer referência a um primeiro cronológico, um primeiro no tempo, um primeiro em antiguidade.
Chegamos a mais uma característica que muito será associada à estrutura racional da realidade, à
explicação racional: ela não é temporal, isto é, ela não está no tempo. Voltando à analogia com as leis
científicas, é plausível (mas não consensual) que as leis não tenham surgido. A água ferve a 100°C ao
nível do mar e a pouco mais que 70°C nas alturas do Himalaia: a temperatura varia, mas a lei que
determina essa variação não varia. É a mesma aqui, no Himalaia, em Marte e talvez tenha sido a mesma
desde o princípio do Universo.

Os eleatas

Siponto Mar Adriático Dentre os eleatas, assim chamados porque


Campânia
Cápua Apúlia eram da cidade de Eleia, destacam-se Parmênides,
Cumas Neápolis
Ísquia Dicearquia Melisso e Zenão. Eles negavam a realidade do
Metaponto
Pesto Tarento
Eleia
Pixos Heracleia
Siris movimento. Isso significa dizer que toda mudança,
Mar Tirreno Calípolis
Lao Síbaris
toda transformação, é ilusória. xvii Literalmente
Túrio
Dialetos gregos da Magna Grécia Lucânia Petélia ilusória. Nós podemos navegar por essa ilusão,
Dórico Grego do noroeste
Terina Crotona

Jônico Aqueu Escilécio sim.xviii Os eleatas, inclusive, também eram


Medma

Messana
Escileu Caulônia
Lócris
investigadores da natureza.xix Ocorre que essa
Hímera Régio
Calacte
Tauromênio investigação ocorre no domínio da doxa, da opinião,
Selinunte
Sicília Mar Jônico
Heraclea Minoa Catânia
Leôntino
e trata de aspectos efêmeros, transitórios, da
Agrigento Casmenas
Gela Siracusa
Camarina
realidade. O domínio da episteme, do conhecimento,
Cidades gregas na região da Magna Grécia, atual Sicília e sul da Itália não trata do que é efêmero, e sim do que é eterno.
Trataremos mais dessa diferenciação quando chegarmos a Platão.
Segundo Parmênides, o que é, é.xx Formulação bastante sintética. Tentemos destrinchá-la.
Quando algo surge, é porque não era (não existia) e passou a ser (a existir). De onde tira sua existência?
A pergunta parece desarrazoada, porque estamos acostumados a ver as coisas surgindo e
desaparecendo. O pensamento de Heráclito soa mais palpável. Porém, é precisamente contra Heráclito
que Parmênides se bate: se Heráclito estiver certo, nenhum conhecimento é possível.
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Voltemos. Vamos assumir que do nada, nada vem. Afinal, o nada não é. Se algo vem do nada,
parece que tinha coisa nele. Logo, que era. Ou não era ‘nada’ (então, era algo) ou teríamos que afirmar
“o nada é”, um contrassenso.
Pensemos na mudança ou na transformação. Quando algo
muda, deixa de ser o que era e passa a ser outra coisa. Um pouco
diferente, muito diferente, não importa. Importa que deixa de ser uma
coisa e passa a ser outra. De onde vem essa outra coisa? Novamente,
parece uma pergunta desarrazoada. Pense assim: se explicamos o que
ela é agora pelo que ela era antes, não explicamos a mudança. Ela já era
isso antes e a mudança foi ilusória. Se ela não era isso, parece que algo
veio do nada. A mudança é uma passagem do que não é para o que é,
aparentemente, portanto, do nada para algo. Ou, então, do que é para o
que não é, aparentemente, do algo para o nada.
Parmênides
Ao dizer o que é, é, Parmênides diz que o ser (tudo aquilo que é)
é eterno. Eterno, porque não pode deixar de ser. Se deixasse de ser, estaríamos assumindo a existência
de outra coisa além dele (além de tudo aquilo que é). Diz que é imutável, porque mudar é deixar de ser
algo e passar a ser outro. Diz que é indivisível, porque não tem partes. Se tivesse partes, cada parte seria
uma coisa diferente e poderia mudar.
É consequência dessa posição que tudo o que percebemos é ilusório. Não que não seja
importante, continua sendo importante fazer o almoço e comer. Parmênides sugere um caminho dos
mortais.xxi O ilusório nesse contexto não é o que não nos afeta, o que é mera fantasia. Talvez seja que
vivamos na fantasia e por isso precisamos prestar atenção às ilusões e “compreendê-las”. Ocorre que
essa compreensão não será a apreensão da verdade, do princípio, do fundamento. Isso só seria
conquistado via pensamento. Essa conquista, perceba, não necessariamente nos ajuda a andar nesse
reino de fantasias. O objetivo da reflexão deixa de ser melhorar as nossas chances de sobreviver no
mundo. Passa a ser a mera compreensão do mundo. Isso é outro marco.
É algo bastante abstrato e difícil, talvez incompreensível. No entanto, constitui parte do que se
compreende, talvez até hoje, por conhecimento. Quando pensamos que existem aspectos da realidade
que não mudam, trazemos conosco uma intuição eleática.

Anaxágoras

Anaxágoras de Clazômenas, outra cidade na costa da atual Turquia, foi o primeiro dos filósofos
de que temos registro de que morou em Atenas,xxii a cidade que domina o nosso imaginário quando
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falamos na filosofia grega. Concentrar-nos-emos em uma das suas afirmações: a de que o princípio é o
noûs (o pensamento ou a mente).xxiii
Anaxágoras não toma o noûs como aquilo que constitui tudo o mais (não é, por exemplo, como
a água de Tales). Tudo o que existe tem em si a sua natureza.xxiv Nisso, ele difere dos demais que aqui
vimos por postular a multiplicidade da natureza: não há um elemento material básico ou um princípio
que rege a matéria, há inúmeros. Toda mudança seria, na verdade, transferência de elementos para um
lado ou para outro. Esse é um modo de enfraquecer a crítica dos eleatas à mudança: nenhuma mudança
consiste numa mudança das coisas, toda mudança é uma mudança de composição nas coisas. Os
compostos mudam, os simples permanecem.
O noûs é princípio porque é o que organiza tudo o mais. Não
devemos pensar aqui em uma consciência que planeja o mundo,
como poderíamos estar tentados dado nosso contexto cultural. É
mais próximo pensar em uma consciência no mundo ou na afirmação
da racionalidade do mundo: a organização natural é uma organização
racional.xxv Essa é uma intuição duradoura na história da filosofia, a
saber, a de que a ordem é razão. Não retomamos ao longo do
material a noção de kosmos, mas aqui ela se faz inteiramente presente.
A compreensibilidade da natureza, permitida pela sua harmonia, pela
sua boa ordenação, seria expressão da sua racionalidade. Se
conseguimos apreendê-la, se conseguimos pensá-la, ela seria tal
Anaxágoras, afresco na Universidade de
Atenas como a apreendemos, seria também pensamento.
O noûs é também um elemento ao lado dos demais e explica os graus de consciência dos
seres:xxvi os mais conscientes, como os humanos, têm mais noûs em si; os menos, como as pedras, têm
menos.
***
Não esgotamos o assunto, mas isso é suficiente para uma boa amostra da discussão que estava
acontecendo. É importante, nisso tudo, notar o tipo de esforço estava sendo feito, que está na raiz do
constitui o que veio a ser chamado investigação racional. A favor, ao lado ou contra a palavra dita, o
exame próprio da natureza. Um exame que pode ser defendido ou contestado. Sobre uma natureza que
não está a olhos vistos, mas como que se esconde da nossa percepção. Com um princípio não apenas
temporal, mas também lógico.
Para estudar
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1. Relacione os conceitos arché, physis, lógos e kosmos.


2. Em que sentido a natureza pode ter uma origem e ser eterna? (O que é eterno não tem começo,
além de não ter fim).
3. O que é natureza (tal como os naturalistas compreendem)? Que relação há com o nosso uso
cotidiano da palavra?
4. Qual a relação entre ordem, fluxo e permanência?
5. Aponte semelhanças e diferenças entre:
a. o discurso mítico e o discurso científico;
b. o discurso dos naturalistas e o discurso científico.

Referências bibliográficas

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ii Barnes, Early Greek philosophy, xi.
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vi Algra, “The Beginnings of Cosmology”, seç. 1.
vii Jaeger, Paideia, 191-192/197.
viii Barnes, Early Greek philosophy, 11.
ix Brison e Pradeau, Vocabulário de Platão, 50.
x Maciel Jr, Pré-Socráticos, 36–37.
xi Barnes, Early Greek philosophy, 22.
xii Barnes, 24.
xiii Burnet, A aurora da filosofia grega, 107.
xiv Burnet, 299.
xv Maciel Jr, Pré-Socráticos, 78.
xvi Barnes, Early Greek philosophy, 54–55.
xvii Burnet, A aurora da filosofia grega, 195.
xviiiBurnet, 197.
xix Barnes, Early Greek philosophy, xxxix.
xx Burnet, A aurora da filosofia grega, 192.
xxi Burnet, 193.
xxii Burnet, 271.
xxiiiBurnet, 274.
xxivBurnet, 273.
xxv Maciel Jr, Pré-Socráticos, 132–33.
xxviCurd, “Anaxagoras”.

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