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A dinâmica social da verdade e neutralidade

científicas: o caso das novas biotecnologias


Social dynamics of scientific truth and neutrality:
the case of new biotechnology

Adriano Premebida1
Fabrício Monteiro Neves2

RESUMO
Este artigo examina a relação teórica entre verdade científica e dispositivos de poder e discute os efeitos de
neutralidade do discurso científico tendo em vista as controvérsias sobre as consequências sociais e ambientais
das novas biotecnologias e a participação de não peritos nestas questões.

PALAVRAS-CHAVE
Neutralidade científica - Biotecnologias e dispositivos de poder.

ABSTRACT 7
This paper examines the theoretical relation between scientific truth and power apparatus and the debate
about scientific discus’s impartiality effects, looking the controversies about socials and environments conse-
quences of news biotechnologies and the no-expert’s participations in these topics.

KEYWORDS
Impartiality scientific - Biotechnology and Power apparatus.

1
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS. É pesquisador e Diretor Técnico-científico
da Fundação Djalma Batista – FDB, no Estado do Amazonas. E.mail: premebida@hotmail.com
2
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS e professor colaborador desta mesma
Universidade. E.mail: fabriciomneves@gmail.com

Ciência em Movimento | Ano XI | Nº 22 | 2009/2


A dinâmica social da verdade...

INTRODUÇÃO do conhecimento, como as condições de investi-


Tem sentido afirmar que a ciência é uma institui- mento, institucionalização e disseminação da ciên-
ção autônoma, neutra e objetiva e não referendar a cia e tecnologia. Para esta posição, o conteúdo do
participação de leigos ou do público em geral nas conhecimento está desvinculado do contexto so-
decisões sociotécnicas? A ciência ou a tecnociên- cial; sua validade é intrínseca à sua verdade5. Pode-
cia3 possui uma base de critérios objetivos para re- se acrescentar que esta posição traça uma diferen-
solver disputas sociotécnicas que porventura aden- ça entre o contexto da descoberta e o contexto da
trem no âmbito político? De que modo o “esqueci- justifi cação, argumentando que mesmo havendo
mento” do contexto social como algo integrado à uma vinculação imprópria entre ciência e elemen-
prática científica funciona como uma estratégia sim- tos sociais na descoberta, a depuração aparecerá
bólica performativa constituidora de realidades? A consequentemente no momento de sua justifi ca-
partir destas questões, o objetivo deste artigo é ção e validação.
apontar algumas discussões predominantes nos es- O grau de competição e polêmica em torno das
tudos sociais da ciência e/ou nos Science Studies tecnologias do DNA recombinante falseia a ideia de
sobre as estratégias históricas de neutralidade que homogeneidade de procedimentos na pesquisa
os agentes da ciência assumem no debate referen- científica e o ideal iluminista de instrumentalização
te às pesquisas e consequências sociais e ambien- metodológica e semântica, capaz de garantir o con-
tais das novas biotecnologias , e na participação de
4
senso em torno da disseminação de artefatos tecno-
não-peritos nestas questões. Através de uma apre- lógicos nas sociedades. A maior parte das perspec-
ciação crítica da atividade científica, apontam-se al- tivas dos agentes da ciência sobre os transgênicos,
guns elementos e pressupostos discursivos que por exemplo, é orientada pela convicção de que esta
afirmam a neutralidade científica como caráter cen- tecnologia é uma oportunidade excepcional na solu-
tral nas estratégias de legitimação das novas biotec- ção de problemas de produção agrícola, de saúde e
8 nologias e os seus efeitos políticos sobre a percep- também de alimentação (PREMEBIDA, 2008, p. 161-
ção e gestão da vida. 164). A política, por outro lado, ocupa um lugar se-
Utilizando os novos conhecimentos biotecnoló- cundário na solução destes problemas, tendo em
gicos como exemplo, as estratégias discursivas que vista a perspectiva da ciência/tecnologia possuir um
visam o efeito de neutralidade e objetividade do co- modelo de construção de verdades objetivas e con-
nhecimento científico (enunciados sobre os trans- sensuais, mais eficaz quanto a decisões tecnocien-
gênicos, organismos geneticamente modificados, tíficas. Este ideal de ciência e desprestígio do políti-
seus derivados e seus impactos) são empregadas co tangencia e renova o argumento de que as novas
como um dos fundamentos para a legitimação da biotecnologias podem reforçar a aspiração de cada
fala científica. As influências do contexto social são indivíduo cuidar de si (saúde e bem-estar), através
consideradas negativas para a atividade científica e dos produtos biotecnológicos disponíveis no merca-
tecnológica e, assim, concebidas como apartadas do de forma eficaz e “apolítica” (ORTEGA, 2004).
de qualquer processo de construção da objetividade Um discurso científico que protagoniza o cientificis-
e validade científica. O social é subentendido ape- mo e apenas o lado técnico de questões transcien-
nas nos processos sociais “externos” ao conteúdo tíficas, acaba desautorizando enunciados dos não-

3
Entende-se tecnociência como a indissociabilidade da atividade científica com a inovação tecnológica. Ao longo do artigo, os
conceitos de ciência e tecnociência são usados de modo intercambiável. O antepositivo tecno reforça a ideia de que mais que
um sistema de teorias a ciência — graças a um conjunto de técnicas e equipamentos utilizados em nível experimental — é
uma prática de intervenção sobre o mundo.
4
Toda referência à biotecnologia neste artigo está pautada por uma perspectiva bem restrita, apenas aos avanços técnicos
alcançados pelos conhecimentos da biologia molecular e engenharia genética, ou seja, aos organismos geneticamente mo-
dificados, transgênicos e seus derivados.
5
Como preconiza a sociologia da ciência clássica. Conferir Merton (1968, p. 554-559).

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especialistas, reproduzindo o modelo da república base de sustentação deste discurso apareça. Para
dos sábios platônica. isto, pode-se recorrer tanto aos trabalhos da história
A tendência em considerar os especialistas — da ciência quanto aqueles ligados à sociologia do co-
em virtude dos atributos que produzem a legitimi- nhecimento científico, ou seja, o objetivo aqui é co-
dade da ciência e tecnologia — os únicos e mais nectar o novo discurso científico, moderno, à sua
capacitados na decisão sobre a utilização dos arte- base histórica e social.
fatos tecnológicos controversos (transgênicos, no No alto medievo, três tipos de classes de trabalho
caso), na gestão dos seus riscos e impactos sociais, intelectual podiam ser diferenciados (ZILSEL, 2000).
ainda é preponderante. Os argumentos sobre os A primeira classe estava ligada ao racionalismo esco-
transgênicos no complexo contexto de riscos e im- lástico, exercitado fundamentalmente nas universi-
pactos sociais em que estão envolvidos tratam de dades; a segunda classe vinculava-se aos secretaria-
obter a dissociação dos elementos não-técnicos ou dos, escritórios municipais e aos príncipes, cuja for-
fatores não-epistêmicos, para legitimar a consolida- mação envolvia latim e cultura clássica e era funda-
ção dos artefatos biotecnológicos em questão. Es- mental, para eles, o desenvolvimento da eloquência
tes artefatos são vistos apenas pelo lado cognitivo discursiva e da escrita agradável — eram mais inte-
e técnico, como se a gênese e estabilização do co- ressados nas palavras que nas coisas, nas formas li-
nhecimento não envolvesse interesses profi ssio- terárias que nos conteúdos, foram os precursores do
nais, convicções morais e pressões econômicas. Os humanismo —; a terceira e última classe era dedica-
motivos para essa neutralização do social no discur- da aos trabalhos manuais e às observações empíri-
so tecnocientífico são variados, mas o foco aqui é a cas, era constituída pelos artesãos, marinheiros,
gestão do biológico — possível principalmente pe- construtores navais, artistas, alquimistas e todos
los avanços da biotecnologia — legitimado por um aqueles dedicados aos trabalhos mecânicos, que se
padrão biopolítico (e seu discurso cientificista) de valiam do método experimental (BARNES, BLOOR,
configuração social. HENRY, 1996). Estas três esferas de investigação
9
apresentavam separadamente três características
QUESTÕES SOCIOHISTÓRICAS que iriam permear a prática científica, a saber, a lógi-
SOBRE A NEUTRALIDADE DO ca, a estética da argumentação — ligada à tradição
CONHECIMENTO CIENTÍFICO sofista — e a experimentação.
A necessidade de um discurso racionalmente
fundamentado para a validação de afirmações a res- Os dois componentes do método científico es-
peito do mundo nem sempre foi uma exigência. É de tavam ainda separados antes de 1600 — treinamen-
to metodológico do intelecto fora preservado, pela
se supor, e existem trabalhos na história da ciência
classe superior, do ensino popular, para universitá-
que afirmam o mesmo, que esta necessidade tenha rios escolásticos e humanistas; experimentação e
aparecido como uma exigência fundamental para a observação fora deixadas mais ou menos para os
ciência ocidental. Mas, então, esta exigência deveria trabalhadores plebeus (ZILSEL, 2000, p. 942).

estar localizada, quer dizer, deveriam existir razões


históricas para que este discurso específico a respei- O decisivo evento para a gênese da ciência, nes-
to do mundo ganhasse legitimidade a partir de seu te sentido, foi, no fim do século XVI, a utilização, por
status racionalmente fundamentado e empiricamen- universitários treinados academicamente, dos mé-
te testado. Ou seja, existiria uma diferenciação tem- todos dos trabalhadores manuais. Dois dos proces-
poral entre formas discursivas específicas, maneiras sos fundamentais da ciência moderna haviam se
de se referir ao mundo. Estas formas emergiram es- encontrado, a saber, o racionalismo humanista e o
pecificamente com a ciência ocidental; cabe então método experimental6. Neste domínio discursivo a
apontar alguns elementos deste sistema para que a norma era a depuração do conhecimento científico

6
Sobre a gênese do método experimental, suas bases sociais, políticas, religiosas e retóricas ver (HENRY, 1998).

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dos “ídolos”, como queria Francis Bacon7 (BACON, tivas diferenciadas, é de se supor que o conhecimen-
1979). A ideia geral era a de que elementos estra- to científico não pode ser reduzido nem à investigação
nhos ao sistema cognitivo e técnico correspondente racional pura (escolástica) e nem à experimentação
incidiriam na verdade e funcionalidade subjacente à estrito senso. Deve, então, ser considerado um fenô-
sua conclusão, apresentando e dominando de forma meno emergente9, quer dizer, o conhecimento cientí-
distorcida o mundo. fico não se reduz a nenhum estrato cognitivo sobre o
Esta concepção foi herdada pelos sistemas filosó- qual ele se constituiu historicamente, embora sua
ficos e científicos posteriores, e o que ficou mais pa- emergência dependa de cada um deles. Decorre dis-
tente foi o golfo estabelecido entre os “elementos so que o mecanismo fundamental sobre o qual se
intelectuais” e “elementos sociais” na produção da assenta a investigação científica dependa fundamen-
verdade científica. O conhecimento foi considerado talmente dos mecanismos parciais que participaram
propriedade filosófica e sagrado, no empirismo inglês de sua gênese, a saber, da prova empírica resultante
dos dezessete e no romantismo alemão dos dezeno- da experimentação e da sistematicidade da teoria ra-
ve, isolado do domínio da polis, da política e da vida cionalmente construída, a história da ciência é recor-
prática. A ponte entre estes domínios só era feita pa- rente com suas origens. Mas, uma dualidade se afir-
ra argumentar, como Bacon faz acima, que a verdade, ma na história da ciência, e produz uma guerra de
objetividade e universalidade do conhecimento esta- trincheira entre aqueles que na tradição do empirismo
vam comprometidas com o poder ou com a ideologia clássico afirmaram a neutralidade dos dados da expe-
(SHAPIN, 1995). Ou seja, em tais condições, o conhe- riência como guias para a neutralidade das teorias
cimento não podia ser considerado neutro. Em suma, científicas10 e, contrariamente, àqueles que contes-
qualquer abordagem sobre o conhecimento científico tam esta tese afirmando que toda observação está
caía no rótulo de “internalista” ou “externalista”, ca- carregada de teoria11 (GEYMONAT; GIORELLO, 1986),
bendo à primeira a defesa da racionalidade e à segun- um imbróglio ainda sem solução.
10 da a argumentação por meio dos fatores sociais da Estas concepções estruturaram o discurso cientí-
gênese do conhecimento. Uma dualidade que coloca- fico e cristalizaram o ponto de vista da neutralidade
va em lados opostos a filosofia e a sociologia8. científica12. Afinal, discutir a sobreposição empírica ou
Se a compreensão da gênese da ciência ocidental teórica é se localizar no interior do debate puramente
passa pelo entendimento das articulações entre es- lógico do discurso científico; verificacionismo ou fal-
tratos sociais diferenciados, com dinâmicas investiga- sificacionismo são lados opostos da mesma moeda

7
Bacon é um representante chave das transformações que naquela época operavam no conhecimento. Sua teoria dos ídolos
é uma proto-teoria do discurso moderno da neutralidade científica, nele está presente desde erros advindos da própria ma-
neira humana de observar instalada em uma sociedade (“ídolos da tribo”), até aqueles erros que emergem dos sistemas fi-
losóficos e suas maneiras errôneas de demonstração (“ídolos do teatro”), passando pelos erros individuais de interpretação
(“ídolos da caverna”) e pelos erros da comunicação (“ídolos do foro”). Há uma controvérsia em relação a isto, Oliveira (2002)
defende um ponto de vista que resgata Bacon desta leitura fundacionista de sua obra. Para Bacon, argumenta Oliveira, a
própria aspiração fundacionista é uma das ilusões e ídolos do pensamento.
8
Nem todo filósofo concordava com a visão internalista (FEYERABEND, 1977) como nem todo sociólogo estava de acordo
com a visão externalista (MANNHEIM, 2001). Mais que isso, esta dicotomia foi praticamente abandonada atualmente, tendo
sido este debate conduzido para vertentes mais ecléticas que se localizam em determinadas faixas de um espectro (HENRY,
1998). Para uma discussão mais pormenorizada, ver SHAPIN (1992).
9
O conceito de fenômeno emergente é tributário da cibernética de segunda ordem de Heinz Von Foerster, seu uso aqui, ain-
da que com sentidos bastantes semelhantes, origina-se da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann (1996).
10
Reformulada pelo círculo de Viena através do “Princípio de validação”, mas que ainda assim não colocava em discussão a
tese empiricista.
11
O nome mais proeminente desta vertente é Karl Popper, que contrapôs ao “Princípio da verificação” vienense seu “Princípio
da falsificação”.
12
É o que se chama de “peso da tradição” na historiografia da ciência desde Thomas Kuhn (BARNES 1982), e diz respeito aos
aspectos pedagógicos dos paradigmas. Aqui se estende este peso, relacionado ao ensino e treinamento de cientistas, aos
valores que são compartilhados por eles, incluindo o valor da “neutralidade”.

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internalista, para usar uma expressão já em desuso. movimentos de protestos quanto à neutralidade das
Mas foi exatamente este discurso que criou os limites afirmações científicas e as consequências técnicas
da ciência e, desta forma, sua funcionalidade social advindas delas.
está ligada à produção de “verdades”. Em termos sis- São vários os relatos de fraudes e de influências
têmicos, o que significaria abrir mão deste “interna- não puramente racionais nos resultados científicos,
lismo”, o que significaria para a funcionalidade cientí- como atestam as distorções produzidas pela reputa-
fica admitir que fatores de outras ordens possam par- ção científica e pelas instituições de origem, mais pro-
ticipar da construção do conhecimento científico? pícias à validação de seus resultados (BOURDIEU,
Não é difícil imaginar, que diante disso, um “anything 1983). Ou ainda aos diversos estudos de caso que
goes” se faria presente na semântica social da “ver-
13
apresentam uma ciência na prática menos idealizada
dade” — recorrentemente a proposta pós-moderna e menos neutra, como no caso do anúncio da fusão
ensejou algo parecido, ou a sociologia do conheci- fria em 1989 ou da publicação da clonagem humana
mento em suas várias vertentes — e uma onda de na revista Science por sul-coreanos em 2006.
irracionalismos equipararia o conhecimento científico
às outras formas de conhecimento. O fim do século Assegurar patentes e envolver-se com coberturas da
passado assistiu uma rodada desta batalha, porém, mídia são partes da ciência moderna de que não se
pode escapar, uma ciência que o reconhecimento
não dá para saber se é a primeira ou a última14.
institucional e o financiamento são cada vez mais
O que se quer afirmar é que a legitimidade e a importantes. Não há como voltarmos atrás no tem-
manutenção de um sistema na sociedade encarrega- po até alguma era de ouro mítica em que os cientis-
do de gerar “verdades” se estruturou a partir de bases tas eram verdadeiros cavalheiros (COLLINS; PINCH,
2003, p. 114).
discursivas que pressupunham a neutralidade como
justificativa de sua existência. Inclusive as discussões
filosóficas no século XX a respeito da ciência se con- OS VÍNCULOS ENTRE VERDADE
centraram neste problema, sendo o “internalismo” e CIENTÍFICA E RELAÇÕES DE PODER
11
o “externalismo” códigos que estruturaram o debate. Tanto histórica, social e cognitivamente, a neutra-
Porém, e cada vez mais, parece que o discurso da lidade, a objetividade e a autonomia são atributos
neutralidade vem perdendo força, e isso se evidencia mais abstratos e relativos, do que concretos, na ativi-
pela observação das relações que a ciência atualmen- dade científica. O intuito aqui, não é uma desqualifi-
te vem tendo com outros sistemas, de forma clara cação epistemológica completa destes atributos, mas
com o sistema econômico e com o político . Mais 15
relativizá-los, pois muitas vezes aparecem como ab-
que isso, parece que as consequências técnicas e o solutos nos discursos sobre o empreendimento cien-
envolvimento maior do interesse científico com ou- tífico e tecnológico. A potencialidade criadora e posi-
tras formas de interesse16 suscitam desconfianças e tiva da ciência e da tecnologia depende de dispositi-

13
Para usar a expressão consagrada por Paul Feyerabend, que anarquicamente defende um ponto de vista metodológico que
aproxima a ciência do mito: “A ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem, e não necessa-
riamente a melhor” (FEYERABEND 1977, p. 447).
14
É o que se convencionou chamar de “the science wars”, que colocou em lados opostos cientistas naturais e toda sorte de
construtivistas e pragmatistas do conhecimento científico (HACKING, 1999). No Brasil pode-se acompanhar um panorama
dos argumentos envolvidos em Vaitsman e Girard (1999), com ênfase na oposição entre Popperianos e pragmatistas, e Freitas
(2003), para crítica do socioconstrutivismo. Veja ainda a diferença estabelecida entre Popper e Kuhn por Bloor (1991), relacio-
nando o primeiro à tradição iluminista e o segundo às ideologias românticas.
15
Faz-se uso da noção de diferenciação funcional da sociedade segundo Luhmann (1996), a sociedade como sistema se dife-
renciou internamente através de um processo constante de diminuição de complexidade que deu origem a sistemas funcio-
nais distintos como a ciência, o direito e a religião, entre outros.
16
Sobre isto ver a Gibbons et al. (1994) e a nova forma de produção de conhecimento chamada mode 2, nela, a concepção
de “boa ciência” não está ligada à neutralidade, mas a critérios emergentes dos consensos dos diversos atores envolvidos
no empreendimento científico.

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vos de poder para se efetivar. É um caminho duplo, quando articulada a instâncias mais gerais de histori-
um reforço simultâneo entre verdade científica, e cidade e validação social. Esta articulação da verdade
seus artefatos, e dispositivos de poder. A cumplicida- como símbolo (político ou cultural) é estruturada atra-
de entre ciência e poder não designa um julgamento vés de relações de poder e de práticas sociais condi-
se a relação é boa ou má. cionantes (incentivo a investimento, por exemplo), e
Se a ciência tem uma dinâmica própria, ela alimen- dependentes (demanda de novos conhecimentos e
ta uma rede de saberes de grande alcance, constitu- produtos pela indústria), da produção científica. Um
ída por discursos e práticas instituidores da coerência fato científico relevante gera efeitos de poder decor-
de temas diversos, tais como sexualidade, alimenta- rentes de sua aceitação social e consequente trans-
ção e saúde, tradicionalmente conhecidos pela abor- formação em símbolo. Quando da geração e consoli-
dagem de Michel Foucault (FOUCAULT, 2002). Se dação de um novo fato científico, através de experi-
estes temas são amplos o suficiente para se esqui- mentações e ajustamento teórico17, tem-se mais uma
varem de qualquer objetivação e monopólio da ciên- baliza para definir ou delimitar o que será verdade ou
cia, sua legitimação ou aceitação social, por outro não-verdade. Os efeitos de poder de uma verdade
lado, principalmente quando de intervenções mais sobre a sociedade são gerados a partir das ações dos
diretas de políticas públicas ou de acirramento de indivíduos, caso uma verdade constitua um sentido
controvérsias, adquire maior legitimidade quando re- para um modo de vida, para o estabelecimento de
ferendados por ela. Este fenômeno de legitimação é coerência de princípios capazes de explicar aspectos
o ponto de encontro entre a verdade científica e os da realidade, da interação sociedade/natureza e mo-
dispositivos de poder. delos de comportamento.
As verdades — particulares ou gerais — produzi- Uma das particularidades da verdade científica é
das pelo aparato laboratorial e institucional da ciência sua pretensão em apartar qualquer elemento que pos-
não transitam de forma isolada e autônoma nos sa estar relacionado ao “social” em seu processo de
12 enunciados. Elas não são constituídas por dados sem denotação do fato científico. A transparência ou a li-
aderência a modelos e artifícios de observação es- gação direta entre a verdade de um fato e os concei-
pecializados — tais como equipamentos laborato- tos, teorias e experimentações que o indicam, é de
riais — e teóricos. Elas articulam-se na produção de tal ordem, que a verdade acaba por se naturalizar. Não
sentidos mais amplos do que os provenientes dos há espaço para conotações ao se retirar as pontes
contextos peculiares e de rigorosa observância e — garantidoras de uma flexibilidade interpretativa —
controle que as produziram. A verdade científica po- entre fatos científicos e seu contexto gerador; ou se-
de saltar do contexto de sua produção e se relacionar ja, toda parafernália de equipamentos, técnicas, me-
com outros saberes e outras verdades sociedade todologias, conceitos, teorias e suporte social e eco-
afora. É desta forma que os discursos são construí- nômico. Este mecanismo de naturalização confere à
dos, conectando verdades isoladas (produzidas em verdade científica um papel de extrema importância
contextos estritos) para dar-lhes sentidos abrangen- nas sociedades modernas, pois, em grande medida,
tes (em contextos maiores), de maior efeito social, ela (a verdade científica ou a ciência) tem a condição
político e cultural. Com uma ascendência no pragma- privilegiada de transitar para além das contingências
tismo, utiliza-se o conceito de verdade neste artigo históricas e das diatribes ideológicas.
como aquilo sobre o qual se fala “sem ser contesta- De um ponto de vista sociológico, a questão em
do” (RORTY, 1997, p.37-41). jogo é saber como a ciência produz este efeito discur-
Por si, uma verdade não imprime coerência e per- sivo e retórico de naturalização da verdade, de deslo-
manência. Ela, em termos de sentido e compreensão, camento de influências culturais e históricas de seu
comporta-se mais como símbolo do que conceito, conteúdo. Este efeito pode ser uma consequência di-

17
Nas abordagens dos Science Studies e dos estudos sociais em ciência pressupõe-se a autonomia entre experimento e
teoria. É mera contingência a concordância e dependência de ambos (LENOIR, 2004, p. 64).

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reta da objetividade da ciência em representar a na- por diversos discursos, não estão restritas apenas ao
tureza tal como é; ou seja, já que a natureza e seus discurso científico, mas também ao político, ao reli-
fenômenos não dependem da humanidade para exis- gioso, ao agroalimentar, ao jurídico entre outros. Para
tir, a explicação e representação científica não reque- se ter uma ideia da transmissão e propagação da te-
rem elementos sociais em demasia — a não ser a mática biotecnológica (particularmente a associada à
simbologia de sistemas de comunicação e represen- engenharia genética) em áreas do conhecimento e de
tação próprios dos seres humanos. Entre outros18, interesses sociais difusos, basta atentar para a com-
este primeiro argumento contém um dado vital para posição dos membros da Comissão Técnica Nacional
se sustentar: a eficácia19 da ciência e da tecnologia na de Biossegurança (CTNBio). Dividida nas áreas de
resolução de determinados problemas técnicos, des- Saúde Humana, Área Animal, Área Vegetal e Área de
de o lançamento de um foguete a Marte, até as ino- Meio Ambiente, a Comissão é formada por represen-
vações na área biológica, médica e eletrônica. Ne- tantes do Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministé-
nhum sistema de conhecimento, no quesito de con- rio da Defesa, Mistério da Agricultura, Pecuária e
trole de sistemas técnicos e da natureza, foi tão efe- Abastecimento, Ministério da Saúde, Ministério do
tivo até agora. Meio Ambiente, Ministério do Desenvolvimento Agrá-
Um segundo argumento opera mais pela ótica da rio, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Co-
linguagem, ao opor-se a uma abordagem epistemoló- mércio Exterior, Secretaria Especial Aqüicultura e Pes-
gica que valida a neutralização dos interesses sociais ca da Presidência da República, Ministério das Rela-
na legitimação do conhecimento científico20. De acor- ções Exteriores, especialistas em Defesa do Consu-
do com esta perspectiva os cientistas operam sobre midor, da área de Saúde, Meio Ambiente, Biotecnolo-
enunciados e não sobre a natureza ou a realidade. A gia, Agricultura Familiar e Saúde do Trabalhador. Os
realidade, afinal, é uma construção da ciência quando interesses em jogo com as biotecnologias são vastos
esta estabiliza grupos de enunciados. Esta estabiliza- e muitos não estão nitidamente definidos. As ciências
ção acontece quando a refutação de enunciados, ma- da vida estão criando mais opções de controle e rei-
13
terializados em máquinas, códigos, programas, con- vindicações a partir de fatos biológicos, tanto em ní-
ceitos, técnicas, rotinas de pesquisa, medições etc., veis macros — como o ambiental e dinâmica das po-
torna-se muito trabalhosa, pela complexidade envol- pulações (longevidade, por exemplo) — até níveis
vida em uma possível replicação ou aperfeiçoamento mais estritos como percepção de identidade a partir
experimental, e onerosa, pelo custo envolvido na ob- de novas descobertas na genética21.
tenção de determinados equipamentos, por exemplo, Ainda que os cientistas tenham maior legitimida-
(LATOUR; WOOLGAR 1997, p. 277-278). O fenômeno de para dirigir a pauta sobre os assuntos relativos à
da naturalização da verdade ou neutralização do social, biotecnologia, as mudanças científico-tecnológicas
mais a eficiência tecnológica, conferem à ciência ex- em sociedades democráticas se destacam nos
trema legitimidade, tornando-a modelo e parâmetro meios de comunicação (especializados e leigos),
de julgamento de outras verdades, de relativa aceita- sensibilizam o público em geral, geram agendas po-
ção social, mas não “científica”. líticas e ativismo social, referentes às interações en-
As biotecnologias, enquanto temáticas, transitam tre problemas tecnológicos e intervenção no am-

18
Como a relação, relativamente independente, entre teoria e experimento, na obtenção de provas experimentais previstas
teoricamente, algo “habitual” nos ensaios em aceleradores de partículas.
19
Conferir o argumento de Hugy Lacey (1998, p.113-140) acerca da eficácia como um dos fundamentos da legitimação cien-
tífica e tecnológica.
20
Ainda assim o argumento da eficácia continua valendo.
21
Exemplo disso é a percepção pessoal e dos “outros” sobre aprendizado, impulsividade e distração a partir da associação
com o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). O que antes era considerado um fator social ou psicosso-
cial tende, agora, a ser explicado como um fator biológico e medicável. O fisicalismo está tomando novo fôlego com as ino-
vações das biotecnologias.

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biente. A participação pública nos problemas relacio- so e suas verdades dependerá, em grande parte, de
nados a políticas de inovação tecnológica já é um seus atributos de cientificidade, tal como o procedi-
importante assunto em numerosos países. As deci- mento de retirada de qualquer elemento social do
sões sobre a gestão do risco derivado da tecnociên- conteúdo do conhecimento, com a finalidade de mar-
cia tendem a não ser monopólio do argumento es- cá-lo com a impressão de objetividade. A objetividade,
pecialista. A participação de outros agentes, além de de modo simplificado, pode ser entendida de duas
cientistas, na gestão da aplicação e utilização do co- maneiras. A primeira, de cunho mais metodológico, é
nhecimento científico e dos artefatos tecnológicos, a forma de avaliar e interpretar observações e dados
gera o inevitável debate sobre a objetividade e neu- com critérios claros e explícitos, sem margem para
tralidade das decisões técnicas, e a questão de sa- ambiguidades, esclarecendo os viéses e tendenciosi-
ber até que ponto o público não especializado tem dades da pesquisa. A segunda maneira, de viés mais
condições de decidir sobre assuntos técnicos e de epistemológico, é a tentativa de construir uma corres-
alta complexidade. pondência direta entre realidade e representação do
Esta permeabilidade da temática biotecnológica a mundo. Este tipo de objetividade requer certas con-
múltiplos campos sociais é um bom exemplo da rela- dições ideais de observação e descrição da realidade,
ção entre verdade e discurso. Para adquirir maior efei- sem a interposição de juízos de valor e preconceitos.
to social uma determinada verdade não transita, em É muito discutível a possibilidade concreta deste tipo
termos de enunciação, de forma isolada. Além do fa- de objetividade, sem a interferência da mediação de
to do sentido de uma verdade estar inserido em um ideias e sistemas simbólicos, construídos socialmen-
contexto teórico de interpretação, uma verdade pode te, na formulação de teorias e conceitos. A questão
relacionar-se com outras verdades, e instituir sentidos aqui, não é demonstrar a total impossibilidade de
mais amplos no interior de um discurso. O discurso é constituir critérios de objetividade22 do conhecimento
uma unidade ampliada de significado, que vincula ver- científico sobre sistemas físicos/naturais e biológi-
14 dades desencontradas sob um sentido com maior cos23, como propõe o Programa Forte em Sociologia
resultado de orientação sobre as ações individuais e do Conhecimento (BLOOR, 1991), por exemplo, mas
institucionais. Sob o manto de um discurso mais tentar compreender como se dá a transposição dos
abrangente, as verdades, em conjunto, adquirem critérios de objetividade da ciência, para questões de
maior significado prático, inserção social e efeito de decisão iminentemente políticas.
poder, e maiores resistências à crítica. As verdades A imagem do conhecimento científico como o re-
no âmbito do discurso adquirem coerência uma em presentante fiel da natureza, e da objetividade, pode
relação às outras. reforçar de forma negativa uma outra imagem, a de
Cada discurso mantém uma coesa articulação en- que a política e as diatribes humanas nada valem fren-
tre diversas verdades e estratégias de validade e acei- te às verdades e razões naturais. Esta oposição histó-
tação social. A partir desta articulação, uma verdade rica forma um conjunto de procedimentos discursivos
ou fato científico particular, dá um salto de sentido de dos mais importantes na legitimação social do discur-
um contexto laboratorial para outros campos da vida so científico. Estes procedimentos buscam o consen-
social, relacionados à educação, à saúde, à economia so frente às opiniões humanas desencontradas, diri-
e à política, por exemplo. A formação das referências gidas pelo senso comum, afastadas de qualquer exer-
do discurso verdadeiro, atualmente, é condicionada e cício mais elaborado e metódico de pesquisa empíri-
padronizada pelo conhecimento científico e pela ope- ca. Mais uma vez, a questão aqui, é entender o efeito
racionalização tecnológica. A aceitação de um discur- de validação propriamente discursivo de discussões,

22
Objetividade como representão fiel de um objeto, sem mediação social.
23
Para as ciências sociais e humanas a objetividade é discutida mais na forma metodológica do que epistemológica. Não faz
muito sentido achar que a vida social, em toda sua complexidade, possa ser representada de “forma pura”, sem se fiar em
procedimentos hermenêuticos socialmente formulados.

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temáticas e decisões, friccionadas entre ciência e po- O grau de reflexividade sobre as decisões práticas
lítica, como aparecem cada vez mais a partir das ino- dos indivíduos, em grande parte, é ajustado a partir
vações científicas e tecnológicas. do que se considera científico. Estilos de vida são
Pelas possibilidades de legitimação social, a ques- condicionados por novos artefatos ou produtos tec-
tão de quem e como se decide o que é e não é cien- nológicos. Os novos conhecimentos em biotecnolo-
tífico e, portanto, verdadeiro, torna-se um dos princi- gia, principalmente na área de biologia molecular,
pais ambientes de aparecimento das relações entre moldam entendimentos sobre a vida e sua gestão
verdades científicas e dispositivos de poder. As dispu- sobre práticas rotineiras de cada indivíduo. Os proces-
tas sobre cientificidade ultrapassam o estrito campo sos de formação de subjetividades estão condiciona-
científico e recaem sobre a política, ou seja, as instân- dos sobre critérios de verdade de um período, sobre
cias de decisão sobre a manutenção e modificação do esquemas fundamentais de juízo entre verdade e fal-
mundo. Na política os critérios de julgamento e esco- sidade. Se na política, idealmente, os juízos são de-
lha não seguem o modelo e ordem da ciência. As terminados sobre a opinião de cada um, na ciência
correspondências e contatos entre um campo e outro isso acontece sobre critérios de validação experimen-
vão se firmando diante da progressiva agenda de de- tal. Interessa agora pontuar como a hegemonia do
cisões decorrentes dos impactos ambientais e modi- discurso científico pode orientar a incidência de efei-
ficações de vida, condicionados pela tecnociência. tos de poder, a partir das pesquisas e inovações da
Temas como produção de energia, aquecimento glo- biotecnologia. Como lidar com questões situadas en-
bal, ciências da informação, transgenia, clonagem, tre a ciência e a política?
nanotecnologias e neurociências estão cotados como
estratégicos nos programas de política científica, e A FRICÇÃO ENTRE CIÊNCIA E POLÍTICA
econômica, dos principais países do mundo. O proble- Talvez se possa dizer que a ciência (para o concei-
ma aqui, é a tentativa de validar e convencer uma to de tecnociência isso já não é tão óbvio), não defina
decisão política apenas por critérios científicos. Bruno o uso dos artefatos e objetos decorrentes do conjun-
15
Latour pergunta-se se a ciência não é a política por to de seu conhecimento. Além dos problemas decor-
outros meios. Poder-se-ia aceitar uma resposta afir- rentes da relativa separação entre experimentação e
mativa tendo em vista os estudos sobre a produção teoria (HACKING, 1983), a questão sobre as repercus-
da ciência e tecnologia tal como se dá. Mas o enfoque sões políticas, e a valoração ética do conteúdo do co-
pretendido aqui é sobre o modo como a verdade cien- nhecimento científico, é percebida por muitos como
tífica e os dispositivos de poder adquirem, historica- algo extrínseco ao seu rol de preocupações25. Como
mente, dependência um do outro. De acordo com na política e no âmbito axiológico as regras de com-
Ruiz “a verdade científica legitima os dispositivos de provação da verdade, ou do uso coerente de um sa-
poder a elas vinculados, tornando-os socialmente ber, não se sustentam simplesmente pela comprova-
aceitáveis, e os dispositivos de poder tendem a legi- ção empírica, ou previsão teórica, os pressupostos
timar e divulgar as verdades que os validam” (RUIZ, epistemológicos da ciência retiram, como não perti-
2005, p. 172). Na expressão de Mannheim estar-se-ia nentes às suas preocupações, qualquer questão rela-
discutindo muito mais as proposições relacionais exis- tiva ao tema destas. Isto está sendo posto de forma
tentes entre ciência e contexto social, e não as pro- ideal e genérica, já que os matizes e a amplitude dos
posições universais (estas independentes de contex- embates relativos às consequências sociais e am-
tos sociais) , embora ambas as proposições sejam
24
bientais do conhecimento científico e tecnológico
dependentes e simultâneas (MANNHEIM, 1976). após, principalmente, a explosão de artefatos atômi-

24
Dá para notar que é neste espaço entre contexto de produção e conteúdo da ciência que reside a principal discussão teó-
rica das abordagens contemporâneas da sociologia da ciência.
25
Embora exista posicionamento político e ético de cada cientista enquanto membro de uma sociedade, a questão colocada
é sobre se e como estas preocupações se inserem na própria dinâmica e institucionalidade do campo científico.

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cos no final da Segunda Guerra Mundial, são mais de eficiência, ao validar os efeitos de poder da tecno-
complexos e imbricados do que aparentam aqui. ciência sobre a vida. O biopoder potencializa as for-
O interessante é que as questões axiológicas e mas de intervenção sobre os seres vivos, sob a égide
políticas sobre os produtos biotecnológicos, apare- da instrumentalização da vida, de acordo com os cri-
cem e são importantes nos pareceres técnicos ge- térios de eficiência tecnológica e de técnicas de go-
rais e de segurança referentes à saúde humana, aos verno das populações dependentes de variáveis bio-
organismos vivos e ao meio ambiente. O debate lógicas. Na modernidade, a vida tornou-se um dos
sobre os organismos geneticamente modificados e mais importantes meios de ação para gerar positivi-
transgênicos, mostra com clareza a dubiedade de dades: saúde, bem estar e riqueza. O ambiente e a
limites entre o que é técnico e político, nos parece- vida das pessoas tornaram-se importantes compo-
res sobre os riscos de uso destas novas tecnolo- nentes de investimento e cuidado, com vistas a po-
gias. A complexidade das questões científicas e tencializar resultados sociais, políticos e econômicos.
tecnológicas atuais, visibiliza ainda mais, as rela- Técnicas de governo sobre a vida são gestadas a par-
ções de interesses não apenas nas tomadas de de- tir do conhecimento científico, amparam diversos sa-
cisão sobre a construção, experimentação, manipu- beres na formulação de políticas, com o fito de pre-
lação, transporte, cultivo, armazenamento, descar- servar e gerir a vida e, assim, exprimir a possibilidade
te, comercialização e consumo de organismos ge- de maior ordenamento e controle dos dispositivos de
neticamente modificados e derivados, mas da pró- poder atrelados ao conhecimento científico.
pria pesquisa laboratorial26. Deste ponto de vista, as variáveis da vida biológica
Sociologicamente, o interessante é verificar como devem ser conhecidas e controladas com o objetivo
o discurso científico ocupa-se com a dualidade em a) de intervir sobre os seres vivos, de acordo com obje-
exonerar-se da preocupação, durante as pesquisas, tivos de produtividade e racionalização do mundo. O
com os possíveis usos dos conhecimentos científicos código genético foi a chave para a maior eficiência e
16 e artefatos tecnológicos pela sociedade, se for válido rapidez na intervenção e domesticação da natureza.
o argumento de que a única motivação para a pesqui- É necessário, então, repensar a propagação de con-
sa é o conhecimento em si; e b), ao mesmo tempo, ceitos biológicos na vida social, pois a partir dessa
chamar a si a total autoridade (pois o discurso cientí- expansão, o conceito de ambiente e o conhecimento
fico é objetivo, neutro e verdadeiro) para as decisões científico e tecnológico tornaram-se políticos, ou me-
sobre os usos destes conhecimentos e artefatos fora lhor, biopolíticos.
dos laboratórios, quando conclusos. A questão é a
luta pelo monopólio da verdade relativa aos efeitos CONSIDERAÇÕES FINAIS
dos artefatos biotecnológicos, e pela teleologia preci- As pesquisas em biotecnologias ou nas áreas
sa de suas consequências sociais e ambientais. Os mais pervasivas, tal como nas nanotecnologias e tec-
critérios da verdade científica são utilizados para vali- nologias da informação, demonstram a multiplicidade
dar decisões no âmbito político, justamente por ser o de procedimentos experimentais, com tortuosos ca-
discurso científico o “monopolizador da verdade”. Mas minhos técnicos e metodológicos, que não garantem
a ciência não tem capacidade de estabelecer, sozinha, consenso quanto aos seus resultados no meio cien-
critérios sobre as formas de existência e convivência tífico. As controvérsias científicas se complexificam
humanas. No âmbito da política, a verdade, como en- quando seus resultados se estendem aos usuários,
tendida idealmente no campo científico, não impera, através de inovação, de forma a quebrar modos usuais
e os critérios de legitimação são outros. de pensar o corpo, a saúde, a natureza e as relações
Com as inovações biotecnológicas, a noção de entre humanos e máquinas. A entrada de artefatos no
biopoder (FOUCAULT, 2002) está atrelada ao conceito mundo humano não se faz sem um complexo sistema

26
As “etnografias de laboratório”, como o célebre estudo de Latour e Woolgar (1997), corroboram no aumento de interesse
das ciências sociais e humanas sobre as práticas científicas.

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de mediação entre diversos sistemas normativos e exemplo. Os sistemas sociais geradores de verdades
regulatórios, explícitos e oficiais ou informais. O co- não se baseiam, evidentemente, exclusivamente na
nhecimento científico e tecnológico está asseverado ciência, mas esta tende a tomar uma posição de su-
por uma base política para se sustentar; uma política perioridade. Mais do que pelo pressuposto da neutra-
do conhecimento e da verdade, do que é legítimo lidade, a legitimidade científica decorre, atualmente,
conhecer e como conhecer. de suas consequências técnicas, principalmente na
Embora afirme-se, neste artigo, o lastro político sua concretização em sistemas e artefatos tecnoló-
das decisões tecnocientíficas, o modelo discursivo da gicos. As inovações biotecnológicas saltam contex-
ciência e da tecnologia, ao longo de sua história, fir- tos diversos, carregam consigo toda uma estrutura
mou-se por construir sua objetividade e consensuali- de legitimação, nascida no laboratório e transposta
dade ao largo do testemunho da lógica da autoridade para o mercado e sistema legal. Um conjunto de tra-
política. Por este raciocínio argumentou-se, sob o cri- ços identificadores de grupos sociais e novas expres-
tério de uma sociedade pautada pela tomada de de- sões culturais formam-se pela socialização e redes-
cisões individuais sobre as considerações dos riscos crição, através de múltiplas formas de uso, destes
tecnológicos e do conhecimento perito, que o discur- produtos tecnológicos. Neste processo, modelos de
so orientado pelo credenciamento da ciência, poderá decisão sobre práticas individuais de cuidado de si,
tornar-se uma forma corriqueira de consolidação de formação de subjetividades e seu controle, têm, gra-
identidades e interação social. A biotecnologia aplica- ças aos novos fármacos, diagnósticos e terapias, um
da à saúde, neste particular, torna-se um referencial campo de estudos sociais sobre o impacto das ciên-
na reconstrução de identidades somáticas. O biológi- cias da vida na sociedade e seus efeitos de poder. É
co, com as constantes inovações tecnológicas, mol- fundamental, então, modelos de decisão que con-
da-se como cultura, disponibiliza-se no mercado e templem a participação de não-peritos, pois, atual-
concretiza-se pelo discurso da eficácia. mente, as principais decisões políticas são tomadas
A legitimidade da verdade científica é uma cre- sobre o uso de sistemas tecnológicos (energia nucle-
17
dencial nas constantes descrições de si e nos mode- ar, bicombustível, redução de emissões de gases de
los de comportamento; sobre como alimentar-se, efeito estufa, transgenia, novas tecnologias reprodu-
como agir para ter uma vida saudável e calcular, por tivas, sistemas mitigadores dos efeitos das mudan-
antecipação, um histórico familiar de doenças congê- ças climáticas, por exemplo) e a incidência de seus
nitas, hábitos de vida e riscos tecnológicos, por efeitos ambientais e sociais.

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