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A criação da polícia como a conhecemos hoje está intimamente relacionada

a dois eventos de natureza diversa, mas não sem relação: a criação do


Estado, como organização política das sociedades modernas, que
monopoliza o uso da força legítima em certo território e os processos de
urbanização, de criação da cidade no sentido moderno, como consequência
da industrialização.
O Estado, como organização política moderna, é criado para garantir a
segurança da população que integra seu território. Hobbes, um dos
ideólogos do Estado Absoluto, que constitui a primeira versão ou forma do
Estado, considera que os homens são extremamente perigosos para si
mesmos, que tendem a enfrentar, lutar e destruir a si mesmos (Homo hominis
lupus ist).
O papel do Estado, que realmente legitima sua existência, é precisamente o
seguinte: para evitar essa destruição, essa depredação do homem pelo
mesmo homem ou, em outras palavras, garantir a segurança da população e
do seu território.
Portanto, o Estado, como o conhecemos hoje, é concebido como um órgão
que monopoliza o exercício legítimo da força para poder dominar a força
destrutiva da natureza humana.
O surgimento do Estado enquanto instituição vem da necessidade de se
fundar um órgão impessoal capaz de gerenciar os conflitos sociais e de
interesses particulares, sendo zelador da vontade da maioria sobre a
fundamentação de se manter a ordem e a paz social, assim os sujeitos
sociais reconhecem e legitimam o poder e a ação do Estado que é impessoal
sobre suas vidas.
Antes os homens se encontravam no chamado estado de natureza onde há
ausência de regras que protejam os interesses individuais e que ao mesmo
tempo tracem limites para as relações sociais dentro do coletivo, assim
sendo o homem não pode apenas ser governado pela consciência, pois se
fosse assim reinaria a anarquia.
O reconhecimento da carência de uma estrutura social sólida e calcada em
uma unidade de governo que governe acima da consciência individual levou
a celebração do pacto ou contrato social.
Thomas Hobbes e John Locke são os principais expoentes desta doutrina,
expondo suas visões acerca do estado natural. Cabe ressaltar que tais
formas de pensamento irão formar as bases de assentamento do atual
Estado democrático de direito, onde todos estão submissos as leis e estas
em tese por sua vez prezam por serem equânimes e igualitárias em sua
abrangência e julgamento.
Inicialmente falando de Thomas Hobbes, poderíamos dizer que este filósofo
moderno foi o primeiro a formular uma tese contratualista. Em sua célebre
obra Leviatã, explicou os seus pontos de vista sobre a natureza humana e
sobre a necessidade de governos e sociedades.
Nesta obra, o autor traça as justificativas de um Estado Absoluto que reine
sobre a vontade da maioria e que converge para a estruturação de uma
sociedade civilizada e racional, pois na ausência desta peça chave (o Estado)
a sociedade correria grande risco, pois os homens dotados de desejos e de
paixões lutariam entre si para tornarem legítimos sobre outros esses
sentimentos.
Tal facto provocaria a guerra ou estado de caos sem um poder que zelasse
pela defesa e segurança comum. A saída segundo Hobbes esclarece é a
entrega da vontade de autogoverno a um ente impessoal que governe acima
das paixões, guiado pela razão e que assegure a paz e segurança de todos.
O Estado é comparado então a um Leviatã ou monstro que concentraria todo
o poder em torno de si, e que ordena todas as decisões da sociedade sem
que esta sequer o questione.
Como percebemos para que a atuação desse Estado Absoluto seja
concretizada é necessária uma aceitação geral por parte da população, pois
para o mesmo este Estado somente se torna legítimo em governo e em ação
se aceite por todos.
Apesar de ser de difícil definição devido à diversidade de formas
institucionais e funções que adquire, pode-se dizer que a polícia moderna é
uma instituição estatal criada para garantir a ordem e o cumprimento da lei, e
seu surgimento na Europa está associado ao gradual declínio do poder
privado e à concentração de poderes de vigilância e punição em órgãos dos
Estados de tipo moderno.
A partir do século XVII verificou-se, em alguns Estados europeus, um
processo gradual de desarmamento da população civil, tanto de poderosos
rivais dos soberanos, quanto da população em geral, que se deu
concomitantemente à expansão das forças armadas a serviço dos
governantes.
Paulatinamente, ocorreu uma divisão entre as forças armadas organizadas
para ataque aos inimigos externos do Estado (os exércitos) e aquelas
orientadas para o controle da população civil (as polícias), embora tal divisão
nunca tenha se completado, principalmente no que se refere ao controle de
áreas rurais.
Nas áreas urbanas, onde, diferentemente das áreas rurais, a maior parte do espaço
continuava sendo público, o patrulhamento e a vigilância mais sistemáticos
passaram a ser exercidos por polícias distintas das forças militares que agiam por
chamado nas zonas rurais. Segundo Charles Tilly foi nos Estados mais urbanizados
da Europa que a separação entre exército e polícia ocorreu mais cedo, mas somente
no século XIX é que foram instituídas as forças policiais uniformizadas, assalariadas
e burocráticas especializadas no controle da população civil.
É vasta a discussão sobre as razões para a emergência dos sistemas
policiais com as características que hoje têm. Porque razão os poderes
políticos instituíram instituições policiais? É uma pergunta difícil de responder
com dados claros e objectivos.
Não existe um factor, uma razão que tenha directamente influenciando este
processo de institucionalização, mas antes um conjunto de explicações e a
confluência de diferentes mudanças sociais que conduziram à configuração
contemporânea do policiamento. A um nível geral podemos referir a constituição de
uma ideia de sociedade umbilicalmente associada à construção do Estado-nação,
influenciando a consolidação, entre o poder político, de medidas activas de
mudança na sociedade como um todo (Bendix, 1977).
Olhando mais especificamente a emergência das instituições policiais
contemporâneas, o cientista político David Bayley (1975) assumiu uma
posição mais radical, segundo a qual o aparecimento de polícias teria ficado
a dever-se à transformação da organização dos poderes políticos e
resistências populares a esta maior capacidade governativa. Recusando,
desta forma, explicações como a criminalidade, industrialização, urbanização
ou o crescimento da população como factores directos.
No entanto, tanto os sociólogos como historiadores parecem confluir, para uma
explicação natural – o crime. A criminalidade é encarada a partir do século XIX como
problema social central. O aparecimento de instituições policiais teria por isso ficado
a dever-se a uma resposta do Estado no sentido de prevenir, primeiro, e punir,
depois, as acções criminosas. Este é o principal fio condutor nos estudos policiais
para justificar a existência de polícias (Emsley, 1996; Bayley, 2006 [1985]; Cain,
1973).
Os discursos e representações sobre a polícia e o policiamento tenderam ao
longo do tempo a classificar a investigação criminal como o verdadeiro
trabalho policial. Com efeito, o crime parece ter servido, desde sempre,
como catalizador e mobilizador da discussão pública e das políticas sobre
polícia.
No entanto, os investigadores da polícia, quer da parte da História (cf.
Monkkonen, 2004) quer da Sociologia (cf. Punch & Naylor, 1973) assinalaram
que debaixo da extrema visibilidade pública do crime, mas permanecendo
opacas aos olhos do público, um amplo conjunto de funções e de práticas
eram e são continuamente executadas pelas organizações policiais.
Da regulação do trânsito aos comportamentos quotidianos dos citadinos nas
ruas da cidade, passando por situações de emergência médica, violência
doméstica e todo o tipo de sociabilidades a polícia forneceu ao longo do
tempo um amplo conjunto de serviços, interagindo com as mais diversas
camadas da população urbana.
O Estado ao usar a força física como instrumento de controle e de coerção
social através das polícias, faz delas instrumentos de controle social
teoricamente, a serviço da coletividade. A atividade policial é crucial para se
definir a extensão prática da liberdade humana.
Além disso, a manutenção de um controle social é fundamentalmente uma questão
política. Não apenas ela define poderosamente o que a sociedade pode tornar-se,
mas é uma questão pela qual os governos têm um grande interesse, porque sabem
que sua própria existência depende disso. Por todas essas razões, a polícia entra
na política, querendo ou não. (BAYLEY, 2001:203)
Muitos trabalhos exclusivamente preocupados com a função de controle social da
polícia e/ou com a resistência interposta pela população às suas intervenções
acabam por também encará-la como instituição homogênea e manipulada pelos
interesses dos governantes e da classe dominante.
Nesse sentido, explicações da polícia a partir de sua função de controle social
correntemente pressupõem uma instituição homogênea e uma identificação
automática dos seus membros com os objetivos de imposição da lei e ordem
determinados pelo Estado e pelas elites, bem como tendem a não focalizar as
tensões e os fracassos na imposição desse controle e a sua constante recriação.
De se referir no entanto que, nem todas as funções desempenhadas pela polícia são
repressivas, já que, dentre as tarefas quotidianas de policiais, muitas seriam melhor
definidas como serviço social do que imposição da lei.
Nesse sentido, é preciso levar em conta críticas que chamam a atenção para o fato
de que o conceito de controle social tem sido usado para definir instituições e
projetos de reforma social tão diferentes quanto hospitais psiquiátricos,
organizações de caridade e polícia, por exemplo, sem que sejam respondidas
questões sobre quem exerce tal controle, quando, por quais razões, por que meios
e com qual efetividade; e sem o estabelecimento das diferenças entre formas de
controle coercivas e não coercivas.
Em termos genéricos, pode-se dizer que os estudos de história da polícia
dividem-se entre aqueles que analisam as práticas da instituição tomada
como um todo (partindo de perguntas como: O que é a polícia? e O que ela
faz?), e aqueles que entendem que é necessário investigá-la a partir das
práticas dos seus agentes (deslocando as perguntas para questões do tipo:
Quem são os policiais? e Como eles atuam no dia-a-dia?).
Importa finalmente referir que o historiador Clive Emsley (1999) utilizou a
metodologia Weberiana dos tipos ideais para empreender a classificação dos
vários modelos de polícia existentes na Europa.
Uma das suas principais conclusões foi a de que a dicotomia Europa
continental versus mundo anglo-saxónico não é na prática tão vincada como
as imagens estereotipadas poderiam levar a crer. Assim, existiriam três tipos
de Polícia: civil estatal; militar estatal; e municipal civil.
A polícia civil estatal segue o modelo da Metropolitan Police, dependente
exclusivamente da autoridade civil, normalmente aplicado nas cidades capitais
políticas e nas maiores cidades de cada país.
A polícia militar estatal segue o modelo francês da Gendarmerie, dependente
da autoridade civil mas também do ministério da guerra, utilizada sobretudo no
policiamento das zonas rurais.

Finalmente, a polícia civil municipal, era empregue em cidades menores e em


sistemas políticos mais descentralizados, caracterizando-se por deter um
elevado número de funções de governo da cidade.
A institucionalização de modernas organizações policiais acontece no movimento
mais amplo de emergência de um Estado centralizado (Bendix, 1964). A estruturação
dos novos poderes resultou, em parte, de uma dicotomia, conflituosa ou mais
negocial, entre Estado central e local. A forma como estes dois níveis de governo se
ajustaram foi o processo fundamental na definição do modelo de administração
pública. No que respeita à Polícia, a decisão sobre quem a controlava variou ao
longo do tempo, assumindo em diversas ocasiões uma partilha de poder entre os
dois níveis de administração.
Ao longo dos últimos dois séculos, no entanto, o governo central tomou
progressivamente o comando total dos serviços policiais. Esta situação verificou-se
em primeiro lugar nas cidades maiores, sobretudo as capitais políticas. A ideia do
poder político central controlar a direcção da polícia consolidou-se ao longo do
século XIX.
A disponibilização por parte deste de maiores recursos financeiros e, a partir do
início do século XX, de um saber técnico que emergia com a profissionalização
ajudou o Estado central a sobrepor-se ao poder municipal. Para além disso, a
centralização era vista como um meio eficaz de eliminação das influências políticas
e de corrupção em geral no trabalho policial.
A dependência ou independência da Polícia em relação a estes dois níveis de poder
não pode ser apenas analisada do ponto de vista formal. Informalmente, apesar da
centralização generalizada, as instituições e os políticos locais continuaram a
exercer influência sobre as políticas relativas à policia e, consequentemente, sobre
o estilo de policiamento praticado.

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