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Bosi, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Capítulo 1 Colônia, culto e cultura (adaptado)

Alfredo Bosi analisa o conceito de cultura partindo da etimologia, do verbo latino colo, cujo
particípio passado é cultus e o particípio futuro é culturus. Em latim, colo significou eu moro,
eu ocupo a terra, e por extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo. Um herdeiro antigo desse
verbo é incola, o habitante; outro é inquilinus, aquele que reside em terra alheia.

Colo é a matriz de colônia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo que se pode
trabalhar e sujeitar.

Colonus é o que cultiva uma propriedade rural em vez do seu dono; o seu feitor no sentido
técnico e legal da palavra. Não por acaso, sempre que se quer classificar os tipos de
colonização, distinguem-se dois processos: o que se atém ao simples povoamento, e o que
conduz à exploração do solo. Colo está em ambos: eu moro; eu cultivo.

Na expressão verbal do ato de colonizar opera ainda o código dos velhos romanos. E (...) o que
diferencia o habitar e o cultivar do colonizar? Em princípio, o deslocamento que os agentes
sociais fazem do seu mundo de vida para outro onde irão exercer a capacidade de lavrar ou
fazer lavrar o solo alheio. O incola que emigra torna-se colonus.

Desde que o livro de Bosi trata da “dialética da colonização”, ele ao falar dessas palavras ele
continua ampliando o significado de colonizar, derivado da palavra colo. Porém, nós vamos nos
focar no conceito de cultura. Na página 13 Bosi faz nova referência à raiz do verbo:

“Se passo agora do presente, colo (...) para as formas nominais do verbo, cultus e culturus,
tenho que me deslocar do aqui-e-agora para os regimes mediatizados do passado e do futuro.
Para o passado (...) cultus atribuía-se ao campo que já fora arroteado e plantado por gerações
sucessivas de lavradores. Cultus traz em si não só a ação sempre reproposta de colo, o cultivar
através dos séculos, mas principalmente a qualidade resultante desse trabalho e já
incorporada à terra que se lavrou. Quando os camponeses do Lácio chamavam culta às suas
plantações, queriam dizer algo de cumulativo: o ato em si de cultivar e o efeito de incontáveis
tarefas, o que torna o particípio cultus, esse nome que é verbo, uma forma significante mais
densa e vivida que a simples nomeação do labor presente. O ager cultus, a lavra, o nosso
roçado (...) junta a denotação de trabalho sistemático à qualidade obtida, e funde-se com esta
no sentimento de quem fala. Cultus é sinal de que a sociedade que produziu o seu alimento já
tem memória”.

(...) Quanto a cultus, us, substantivo, queria dizer não só o trato da terra como também o culto
dos mortos, forma primeira de religião como lembrança, chamamento ou esconjuro dos que já
partiram. A Antropologia parece não ter mais dúvidas sobre a precedência do enterro sagrado
em relação ao amanho do solo; enquanto este data apenas do Neolítico e da Revolução
Agrícola (a partir de 7000 a. C., aproximadamente), a inumação dos mortos já se fazia nos
tempos do Homem de Neanderthal há oitenta mil anos atrás.

(...) Convém amarrar os dois significados desse nome-verbo que mostra o ser humano preso à
terra e nela abrindo covas que o alimentam vivo e abrigam morto:
Cultus (1): o que foi trabalhado sobre a terra; cultivado;
Cultus (2): o que se trabalha sobre a terra; culto; enterro dos mortos; ritual feito em honra dos
antepassados.

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A possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas
mediações simbólicas. É o gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que evoca, a fala que
invoca. No mundo arcaico tudo isto é fundamentalmente religião, vínculo do presente com o
outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e
que sustêm a sua identidade.

A esfera do culto, com a sua constante reatualização das origens e dos ancestrais, afirma-se
como um outro universal das sociedades humanas juntamente com a luta pelos meios
materiais de vida e as consequentes relações de poder implícitas, literal e metaforicamente, na
forma ativa de colo.

Na fundação de algumas colônias gregas não era raro apontar-se o desígnio dos deuses,
decifrado pelos oráculos, como a sua causa primeira. Apolo Archegeta é o deus que preside,
em Delfos, à fundação das colônias. As motivações expressas dos colonizadores portugueses
nas Américas, na Ásia e na África inspiram-se no projeto de dilatar a Fé ao lado de dilatar o
Império, de camoniana memória. E os puritanos que aportaram às praias da Nova Inglaterra
também declararam to perform the ways of God. (Bosi, 1992: 14-15)

(...) De cultum, supino de colo, deriva outro particípio: o futuro, culturus, o que se vai
trabalhar, o que se quer cultivar. O termo na sua forma substantiva, aplicava-se tanto às
labutas do solo, a agri-cultura, quanto ao trabalho feito no ser humano desde a infância; e
nesta última acepção vertia romanamente o grego paideia. O seu significado mais geral
conserva-se até nossos dias. Cultura é o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos
valores que se devem transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de um estado
de coexistência social. A educação é o momento institucional marcado do processo.

A terminação –urus, em culturus, enforma a ideia de porvir ou de movimento em sua direção.


Nas sociedades densamente urbanizadas cultura foi tomando também o sentido de condição
de vida mais humana, digna de almejar-se, termo final de um processo cujo valor é estimado,
mais ou menos conscientemente, por todas as classes e grupos. Como ideal de status, já
descolado do antigo culto religioso, aparece tardio em Roma, espelhando o programa,
igualmente tardio, da paideia que só se autodefine a partir do século IV a. C., conforme
esclarecem os estudos capitais de Jaeger e de Marrou. Paideia: ideal pedagógico voltado para
a formação do adulto na pólis e no mundo.

Cultura supõe uma consciência grupal operosa e operante que desentranha da vida presente
os planos para o futuro. Essa dimensão de projeto, implícita no mito de Prometeu, que
arrebatou o fogo dos céus para mudar o destino material dos homens, tende a crescer em
épocas nas quais há classes ou estratos capazes de esperanças e propostas como na
Renascença florentina, nas Luzes dos Setecentos, ao longo das revoluções cientificas e técnicas
ou no ciclo das revoluções socialistas. O vetor moderno do titanismo, manifesto nas teorias de
evolução social, prolonga as certezas dos ilustrados e prefere conceituar cultura em oposição a
natureza, gerando uma visão ergótica da História como progresso das técnicas e
desenvolvimento das forças produtivas. Cultura aproxima-se, então, de colo, enquanto
trabalho, e distancia-se, às vezes polemicamente, de cultus. O presente se torna mola,
instrumento, potencialidade de futuro. Acentua-se a função da produtividade que requer um
domínio sistemático do homem sobre a matéria e sobre outros homens. Aculturar um povo se
traduziria, afinal, em sujeitá-lo ou, no melhor dos casos, adaptá-lo tecnologicamente a um
certo padrão tido como superior. (Bosi, 1992: 16-17)

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